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DE

PORTUGAL
PARA
O
MUNDO
1
Banco do Brasil
apresenta e patrocina

DE
PORTUGAL
PARA
O CCBB
MUNDO RIO DE
JANEIRO
SÃO
PAULO
BRASÍLIA
Banco do Brasil apresenta e patrocina De Portugal para o Mundo,
uma seleção do melhor do cinema português da última década.

Com curadoria de Pedro Henrique Ferreira, a mostra traz 28 títu-


los, entre longas, médias e curtas-metragens, de importantes ci-
neastas contemporâneos, com destaque para filmes como A Por-
tuguesa, de Rita Azevedo Gomes, e Tabu, de Miguel Gomes. Será
exibido, em caráter de pré-estreia no Brasil, o premiado Vitalina
Varela, de Pedro Costa. O projeto também conta com atividades
paralelas, que acontecem em formato virtual, e catálogo com
textos inéditos e reproduções assinadas por pesquisadores, críti-
cos de cinema e produtores portugueses e brasileiros.

Ao realizar este projeto, o Banco do Brasil reafirma o seu apoio


ao audiovisual e mantém o compromisso de oferecer uma progra-
mação de qualidade, além de propor um diálogo cultural com os
espectadores em torno do cinema lusitano e de suas influências.

Centro Cultural do Banco do Brasil

4 5
INTRODUÇÃO

TEXTOS
8

12
Sumário
Como pensar o cinema português hoje? 12 FICHA TÉCNICA DOS FILMES 164
MICHELLE SALES
MINIBIOS DOS AUTORES 218
Uma análise sobre as imagens coloniais e pós-coloniais 20
a partir de seis obras do cinema português (2010-2020)
THIAGO ORTMAN CRÉDITOS 224
A escola portuguesa e sua permanência no cinema 30
português dos últimos dez anos AGRADECIMENTOS 229
SÉRGIO ALPENDRE

Uma crise pandêmica e a ecologia dos laços humanos 42


SABRINA MARQUES

O efeito pintura, ou O museu imaginário do cinema 54


português
LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR.

Adaptação, alegoria e arquivo: contextualizando 62


narrativas epistolares no cinema português
contemporâneo
NUNO BARRADAS JORGE

O mistério das origens, ou O cinema português no 84


tempo da pós-ruralidade
MIGUEL CIPRIANO

Vai e vem – A internacionalização do cinema português 96


PAULO CUNHA

Mudar de perspetiva: a dimensão transnacional 112


do cinema português contemporâneo
IVÁN VILLARMEA ÁLVAREZ

Quebrando tabus: para uma análise dos modos 134


de produção no cinema português contemporâneo
PAULO CUNHA E DANIEL RIBAS

6 7
Introdução Eduardo
Do ponto de vista artístico, a atual filmografia portugue-
sa é uma das mais consistentes do mundo. No entanto, foi

Cantarino na década que agora se fecha que ela parece ter recebido
sua devida atenção enquanto um conjunto de filmes. Seja

Pedro
pela articulação aguerrida de seus membros (de produto-
res a diretores e diretoras, de atores e atrizes a diretores de

Henrique fotografia, som, diretores de arte e todas as outras funções


da realização cinematográfica), seja pela relação, às vezes

Ferreira positiva, às vezes complicada, com o próprio governo, fato


é que o Cinema Português conseguiu firmar-se no imaginá-

Thiago
rio cinéfilo da última década quase como um oásis de no-
vas proposições cinematográficas, sempre buscando unir

Brito a investigação estética e de expressão artística a modelos


de produção mais diversificados, indo de filmes com equi-
pe exíguas a produções e sets mais tradicionais. Dentro de
um mercado audiovisual cada vez mais internacionalizado,
os filmes portugueses parecem buscar certo equilíbrio entre
questões sociais, políticas e culturais enraizadas no cenário
local mais imediato e a absorção de elementos expressivos

De
e estilísticos divulgados e desenvolvidos perante os maiores
festivais de cinema do mundo.

Portugal
Se em um momento anterior o Cinema Português era co-
nhecido a partir de um conjunto relativamente estável de ci-
neastas icônicos, como Manuel de Oliveira, João César Mon-

para o
teiro ou Rita Azevedo Gomes, a nova década acompanhou
tanto a confirmação do fôlego artístico de artistas cujas
obras marcaram a produção do final do século XX e princípio

mundo:
do XXI – Miguel Gomes, com Tabu (2012) e Mil e Uma Noites
(2015); Pedro Costa, com Cavalo Dinheiro (2014) e o atual Vi-
talina Varela (2019); João Pedro Rodrigues e seu O Ornitólo-

voos em
go (2016); etc. – quanto uma verdadeira explosão de novos
talentos, cujas obras recheiam a curadoria da mostra De
Portugal para o Mundo. Esta vitalidade do Cinema Português

torno da
Contemporâneo nos obriga a compreender que não se trata
apenas de uma nova geração – ou seja, não se trata de uma
geração de cineastas que deram seus primeiros passos no

década
formato do longa-metragem durante esta última década –,
mas de um mosaico de gerações cujas referências estéticas
ou mesmo visões de mundo não podem ser limitadas a uma

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cartilha de princípios compartilhados, unificados. Se no momento do Cinema Novo
Português uma certa posição política e artística pôde adquirir um status progra-
mático na sua busca por atualização e revitalização do cinema feito em Portugal,
o Cinema Português Contemporâneo destaca-se exatamente por sua diversidade,
por seus diferentes núcleos de produção e de ideias. O único verdadeiro denomi-
nador comum parece ser a compreensão de que o Cinema, ao fim e ao cabo, é um
empreendimento artístico cuja lógica comercial – embora presente – não parece
impor-se como pressuposto único de valoração e realização.

Ao mesmo tempo, há tópicos relevantes que parecem permeá-lo. É em torno


destes seis eixos que a retrospectiva se organiza: a visão sobre a herança coloni-
zadora de Portugal, que por vezes se volta às ex-colônias na África, Ásia e América
Latina, a fim de conferir o triste legado que nesses territórios foi deixado; a outra
herança política e social muito marcante da história portuguesa, o salazarismo, e
seus efeitos na vida social presente; a maneira pela qual as tradições pictóricas e
literárias portuguesas mobilizam hoje as formas estéticas deste cinema e consti-
tuem uma espécie de “escola portuguesa” suprageracional; os singulares appro-
aches, dispositivos e estratégias elaborados, que releem a genealogia de Antônio
Reis e Margarida Cordeiro para lidar com a realidade documental do mundo; a for-
ma como alguns destes filmes se inserem no contexto internacionalizado do cine-
ma de autor e do cinema experimental; e, por fim, os singulares métodos de produ-
ção por meio dos quais surgiu uma cinematografia tão rica.

Levando em conta esta pluralidade, começamos a desenhar nosso catálogo


como um conjunto de perguntas, linhas de força e frentes que objetivam lidar
com esta produção. Seguindo o espírito da curadoria da mostra De Portugal para
o Mundo, nosso catálogo não busca fazer uma apreciação crítica de um ou outro
filme, mas investigar os altos e baixos, as mudanças e continuidades, o desenho
no mar da História que estes filmes nos apresentaram em nossa última década.
De 2010 para cá, o que aconteceu com o Cinema Português? Como seu modo de
produção, de realização e de distribuição adaptou-se, ou não, às intempéries de
uma década? Qual a relação possível entre esta safra de filmes e a de um mo-
mento anterior? Quais fantasmas da História de Portugal reaparecem aqui, talvez
redivivos, talvez meros espantalhos?

Sem querer esgotar nosso objeto de investigação, desejamos atiçar no leitor


desavisado a faísca da curiosidade, apresentando-lhe textos que analisam, investi-
gam e dialogam com uma cinematografia cujas proposições artísticas extravasam
o breve espaço de nosso catálogo. Outras e novas questões estão aí, colocadas
em cada filme, em cada plano. Aqui, ensaiamos um primeiro voo em torno desta
década, com a certeza de que haverá outros.

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DE
PORTUGAL Para pensar o cinema português hoje, reconhecendo a importância do sucesso re-
PARA
O cente de inúmeros realizadores e realizadoras no contexto internacional e o im-
MUNDO pacto dessa filmografia atual no Brasil, recorro a um breve resgate histórico que
nos permitirá abrir pistas de discussões e conclusões parciais, esperando que esta
mostra, De Portugal para o Mundo, com curadoria de Pedro Henrique Ferreira, e
este texto provoquem novos desdobramentos e investigações futuras, não apenas
sobre o cinema português, mas também sobre as relações cinéfilas mantidas com
este cinema, como é o nosso caso no Brasil.

É preciso dar início a este texto lembrando que o cinema português tem vivido
desde os seus primeiros anos com a incessante questão de sua inviabilidade, ou
mesmo de sua inexistência. Como parte da cinematografia europeia, o cinema por-

Como
tuguês viveu no século XX uma longa crise que, como a nossa, manifestava-se nos
altos custos de produção, na pouca disponibilidade estatal para criar ou adaptar

pensar o
uma legislação própria e, no caso específico português, no desejo recorrente de se
tornar Arte. Encurralado, portanto, entre “a arte e o artifício”, entre “a vanguarda e
a indústria”, o cinema português fechou-se em si próprio no decorrer do século XX,

cinema
e é apenas no limiar do século XXI que começamos a perceber uma maior abertura
deste campo cinematográfico, que se resumiu na adoção de algumas políticas pú-
blicas para o cinema, como: uma aposta mais consistente na formação de jovens

português
realizadores, com a criação de novas escolas, como a Escola Superior de Teatro
e Cinema (sucessora do Conservatório Nacional, fundado por Almeida Garrett), o

hoje?
investimento por meio de editais específicos para o formato do curta-metragem, a
consolidação de acordos de coprodução, não apenas com países da Europa mas
sobretudo com o Brasil, o que resultou em diversos filmes luso-brasileiros.

Michelle Sales
Numa curta digressão histórica, recordamos que o cinema português nos pri-
meiros anos manteve sua produção quase que exclusivamente à responsabilidade
de estrangeiros, e será por isso que a questão de afirmar um cinema nacional, que
levasse às telas a “alma do povo português”, transformou-se num dos objetivos cen-
trais de grande parte da filmografia portuguesa do início do século XX. Entretanto,
não é difícil perceber que tal questão movimentou praticamente a totalidade da
crítica e da produção do cinema português até o final do século XX, obviamente
com transformações e algumas polêmicas.

Outro aspecto que é preciso comentar é o fato de o cinema português ter


convivido durante 48 anos com a ditadura de António Salazar (1933-1974)1 e suas
políticas conservadoras implementadas por António Ferro para o campo da arte.

1. António Salazar foi um ditador, chefe de governo durante o Estado Novo português (1933-1974). Governou oficial-
mente entre 1933 e 1968. A partir de 1968, após cair da cadeira e bater fortemente a cabeça, seu sucessor, Marcello
Caetano, deu continuidade às políticas colonialistas, conservadoras e de austeridade até 1974, quando o regime é
derrubado pela Revolução dos Cravos, em 25 de abril de1974.

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Este atravessamento gerou uma enorme cicatriz no âmbito cultural português ao lon- des Hautes Études Cinématographiques – possibilita o surgimento de Os Verdes
go do século XX. Durante décadas, o cinema de Portugal foi representado por docu- Anos, mas representa principalmente a influência de um novo modo de pensar e
mentários oficiais (mas também algumas ficções) sobre o regime de Salazar, filmes fazer cinema, proposto pela Nouvelle Vague francesa. A formação desta geração,
históricos, comédias fáceis e adaptações literárias de grandes escritores portugueses. intitulada pela crítica de Novo Cinema Português e pela crítica francesa de “nou-
velle vague portugaise”, não se constitui sem polêmicas e tampouco é defendida
À exceção do circuito de produção e de exibição bastante limitados está Manoel
de forma homogênea pelos especialistas e historiadores da cinematografia portu-
de Oliveira, descrito pelo crítico de cinema português Roberto Nobre como o «Eisens-
guesa, servindo essa afirmação para destacar o trabalho hercúleo que vem sendo
tein de Portugal”. Até o surgimento de uma geração cinéfila capaz de confrontar a es-
feito em Portugal por uma nova geração de pesquisadores em torno da criação
tética conservadora adotada pela “Política do Espírito” de Ferro, Manoel de Oliveira é
da AIM, Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento, organização já
uma espécie de artista solitário, o tal “caso à parte do cinema nacional”.
presidida por Ana Isabel Soares, Tiago Baptista, Daniel Ribas, Sérgio Dias Branco e
Manoel de Oliveira faz parte de um grupo limitado de artistas, escritores e pro- Filipa Rosário.
dutores que tiveram o modernismo como fenômeno estético e a modernidade como
De volta aos anos 1960, a experiência de Os Verdes Anos foi fundamental para
promessa do século XX em Portugal. Esta geração foi marcada também pelo desejo
a criação do Centro Português de Cinema, o CPC, cooperativa de cinema em Portu-
de melhor integração com o restante da Europa, sobretudo com os ditames de Paris.
gal criada à semelhança da Cooperativa do Espectador, dos anos 1950, responsável
Na virada dos anos 50 para os 60, surge uma nova geração de cinéfilos, graças por grande parte dos filmes hoje caracterizados como integrantes do ciclo intitulado
à intensa atividade cineclubista que movimenta a década de 1950 em toda a Euro- Novo Cinema Português. Nos anos 1960 e 1970, a geração do cinema novo conviveu
pa (e que é uma das muitas frentes contra a ditadura de Salazar), à semelhança do com a censura, com a perseguição política e com a escassez de recursos, uma vez
que acontecia em outros países ao redor do mundo. que o Estado Novo perdurou até 1974. Esta geração deu ao mundo realizadores como
Fernando Lopes, António Pedro Vasconcelos e João César Monteiro. O legado dessa
É também nos anos 1950 que surge mais um “caso isolado” na cinematografia por-
geração, suas ideias e práticas, é fortemente sentido na geração posterior, que hoje
tuguesa, o realizador Manuel Guimarães, responsável por filmes como Nazaré, de 1952,
configura o cinema português contemporâneo através de nomes internacionais,
num forte diálogo com o movimento literário do neorrealismo português e também
como Pedro Costa, Teresa Villaverde e Margarida Cardoso. Para grande parte da crí-
com o cinema neorrealista italiano. Em alguns textos, defendo a genealogia de uma
tica de cinema atual, o cinema contemporâneo português é formado esteticamente
transformação cinéfila e estética a partir da produção deste realizador, e que culmina
(e também ideologicamente) pela geração do Cinema Novo Português.
na geração que se consagra em torno da alcunha Novo Cinema, nos anos 1960. Desta-
co também o trabalho de investigação de Leonor Areal, que aprofunda um olhar para Entretanto, antes de comentar a geração do cinema português contemporâ-
a cinematografia portuguesa dos anos 1950 numa direção semelhante. neo explorada pela curadoria desta mostra, irei apontar outros desdobramentos
que a geração do Cinema Novo proporcionou ao campo cinematográfico portu-
Assim, do ponto de vista consensual, como discuti em minha tese de doutora-
guês e que têm a ver com o contexto político e social após o 25 de Abril.
mento Em Busca de um Novo Cinema Português (SALES, 2011), o “grupo” que corres-
ponde ao movimento de renovação da cinematografia portuguesa teve seu marco Os anos posteriores ao 25 de Abril, também conhecidos como os anos do PREC
histórico com o filme de Paulo Rocha Os Verdes Anos (1963). Após anos de cinefilia, (Processo Revolucionário em Curso), ficaram marcados por uma forte tensão social
Portugal parecia, por meio desta geração, dar a ver um projeto coletivo de moder- e política, tendo em conta o enorme desgaste causado pela Guerra Colonial, ou
nização de seu cinema. Embora tenhamos Os Verdes Anos como uma espécie de Guerra de Libertação, que compreendeu os anos de 1961 até 1974. Não é possível
marco de uma nova cinematografia, Manoel de Oliveira foi considerado por muitos dissociar o período do Estado Novo em Portugal, bem como o imaginário nacional
críticos (e ainda é) como um “pai” do Cinema Novo Português. português edificado por Salazar, da história do recrudescimento do colonialismo
recente do século XX.
Paulo Rocha, assim como outros recém-egressos de cursos de cinema no es-
trangeiro, transformou as estruturas precárias de produção de cinema em Portugal, Com o fim do colonialismo formal e o retorno compulsório dos antigos colonos
ao propor sobretudo novas temáticas e novos modos de fazer cinema. O encontro que viviam em África, a nação portuguesa sofreu um forte abalo identitário, cultural
de Paulo Rocha com António da Cunha Telles, ambos egressos do IDHEC – Institut e simbólico. A literatura foi mais rápida do que o cinema em apontar e trabalhar

14 15
questões relativas à identidade cultural portuguesa no período pós-25 de Abril, e ções inóspitas da cadeia produtiva em Portugal. Pouco visto pelo público nacional,
em trazer à tona o trauma pós-colonial. o cinema português consagra-se em janelas de exibição para cinemas indepen-
dentes, em diálogo com festivais na Europa, e também no Brasil.
Nesse contexto, destaco o filme As Armas e o Povo (1975), documentário rea-
lizado de forma conjunta, pelo Coletivo de Trabalhadores da Actividade Cinema- Sobre esta aparente dicotomia, entre ser um cinema nacional e um cinema
tográfica, que registrou a ebulição social no dia 25 de abril de 1974 e também no 1º para circulação no exterior, o pesquisador Iván Villarmea Álvarez aponta, no en-
de maio em Portugal. Esta ação coletiva contou com a participação de Glauber saio “A dimensão transnacional do cinema português contemporâneo”, argumen-
Rocha, que, naqueles anos, vivia em Portugal. Fundamental para compreender os tos interessantes, que permitem localizar o cinema português como uma invenção
anos do PREC e as fortes discussões políticas sobre as transformações sociais em construída desde o exterior, a partir de uma visão que consolida cinematografias
Portugal é o filme de Thomas Harlan, Torre Bela (1975), documentário que registra a marginais no rótulo “world cinema”.
ocupação de uma herdade no Ribatejo no auge do debate público sobre a reforma
De acordo com Iván:
agrária no país. A par deste contexto, e tendo trabalhado de forma aprofundada
nos mecanismos de realização deste filme, o realizador José Filipe Costa lança, em
2012, Linha Vermelha, documentário que aponta para uma aguda reflexão sobre a Quando a crítica internacional põe a sua atenção num determina-
relação do cinema com os desdobramentos políticos do pós-25 de Abril, como faz do cinema nacional – quer o romeno, quer o filipino, para nomear
apenas dois casos célebres na década passada –, não está sempre
também seu filme mais recente, Prazer, Camaradas! (2019). a chamar a atenção sobre o caráter representativo desse cinema
com respeito à sua correspondente nação, senão que às vezes está
Assim como José Filipe Costa (e cito-o aqui mesmo que esteja fora da curado- apenas a definir estes cinemas nacionais como cinemas estrangei-
ria apresentada por esta mostra), os realizadores hoje notáveis da cinematografia ros ou exóticos para o público cinéfilo internacional, que muitas ve-
zes coincide com o público nacional de países como França, Reino
contemporânea portuguesa, que figuram no panorama apresentado pela curado-
Unido ou Estados Unidos. (ÁLVAREZ, 2015, p. 105)
ria da mostra De Portugal para o Mundo, fazem parte de uma geração formada
pelos anos pós-25 de Abril, e por isso são de certa forma “herdeiros” do Novo Ci-
nema Português e do legado político dos anos do PREC (e seus desdobramentos). Essa afirmação é importante, pois permite-nos contextualizar as dinâmicas do
Evidentemente, por outro lado, há também um cinema absolutamente comercial e cinema português contemporâneo num cenário global de disputas estéticas, ora
novelesco em Portugal, mais notadamente a partir dos anos 1990; porém, este não marcado pela predominância e importância das grandes mostras e festivais, bem
será aqui objeto de análise. como por seus ritos de consagração e legitimação. De um ponto de vista crítico,
Chamo a atenção para o fato de que é apenas nesta nova geração, que sur- são os posicionamentos assumidos em determinadas mostras e festivais que muito
ge aos finais dos anos 1990 e daí em diante, que se consagram – e que conseguem têm contribuído para dar a ver a filmografia de realizadores como Miguel Gomes,
manter atividade regular no campo do cinema – as realizadoras Teresa Villaverde, Gonçalo Tocha e João Nicolau, cineastas que aprofundam um olhar sobre aspectos
Margarida Cardoso, Susana de Sousa Dias e, mais recentemente, Salomé Lamas, Le- próprios da vida portuguesa, e que são vistos pela crítica internacional a partir de
onor Teles, Rita Azevedo Gomes, Catarina Mourão, entre outras. Até a chegada desta uma dinâmica que confronta cineastas locais com cineastas globais.
geração de realizadoras em Portugal, sabia-se apenas superficialmente da trajetória Vista como uma espécie de “gênero cinematográfico” pela mesma crítica interna-
das primeiras cineastas portuguesas, como Bárbara Virgínia e Amélia Borges Rodri- cional, a filmografia portuguesa no período pós-Cinema Novo chegou a ser caracteri-
gues, apontada como a primeira mulher a filmar em Portugal, pelo historiador Paulo za pela existência de uma “école portugaise”, como argumentou João Maria Mendes:
Cunha no interessante ensaio “Para uma história das histórias do cinema português”.

De forma geral, esta geração contemporânea seguiu em busca de uma forte O cinema português é singularmente visto, por uma parte da sua
marca autoral, de um cinema exclusivamente experimental, algumas vezes hermé- recepção e da crítica, como um “género” ou um “quase-género”, e
essa classificação inspira-se em Georges Sadoul, que entendeu, na
tico para o grande público, e notadamente premiado em festivais internacionais.
sua história do cinema, exercitar um vasto olhar dedicado às “ci-
Como exposto por críticos e especialistas, o cinema português dos anos 1990 em nematografias nacionais”, suas caracterizações e idiossincrasias.
diante prioriza a circulação em festivais e mostras no exterior, em face das condi- Em determinado momento do “pós-Cinema Novo”, parte da crítica

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internacional, sobretudo francófona, chegou a falar de uma école guesa, pondo em cena cineastas locais versus globais, temáticas distintas e pró-
portugaise, a despeito da variedade das experiências autorais que
prias do cenário sociopolítico atual de Portugal e do mundo, com a exibição de ci-
nela se singularizavam. (MENDES, 2013, p. 502)
neastas consagrados – como Manoel de Oliveira, Pedro Costa e Teresa Villaverde
– ao lado de nomes recentemente em evidência, como Catarina Mourão, Gabriel
Uma questão premente na geração atual relaciona-se com a crise identi- Abrantes e João Nicolau.
tária das filmografias europeias, que tem a ver com a dinâmica estabelecida pela Parabenizo a organização desta mostra e o empenho de todos e todas en-
discussão “cinema nacional versus cinema global”, mas que se relaciona fortemen- volvidos, lembrando que o exercício cinéfilo entre Brasil e Portugal é um enorme
te com o contexto político dos anos 2000 em diante, quando a Europa começa a trabalho por fazer.
experimentar uma forte crise social, marcada pelo aumento da presença de imi-
grantes e refugiados a compor o tecido social, pelo aprofundamento da discussão
em torno do legado colonial e a necessidade de implementação de políticas de re-
paração, bem como pela crise global do capitalismo e seus desdobramentos eco-
nômicos, que culminaram no empobrecimento e precarização geral da população
na Europa (mas não só).

O fim do colonialismo no século XX, marcado pelo ciclo de guerras de liberta-


ção em África, não impediu que formas orgânicas ao modo de pensar (e sentir) eu-
ropeu permanecessem ativas e extremamente vivas nas antigas colônias mundo
afora. Esse entendimento, a visão de que é questão do século XXI romper com o
projeto ocidental de globalização cujo lastro é o legado colonial, tem ativado, em
diferentes níveis, reações contrárias ao imperialismo eurocêntrico ocidental, mo-
vimentando organizações civis, movimentos sociais e coletivos artísticos também
nas periferias racializadas do continente europeu. As filmografias de Pedro Costa,
Margarida Cardoso, Susana de Sousa Dias, Leonor Teles e Miguel Gomes, trazidas

Referências
pela curadoria da mostra De Portugal para o Mundo, aprofundam e debruçam-se
sobre questões relativas ao passado colonial e/ou envolvem a discussão sobre ra-

bibliográficas
cialidade no contexto atual da sociedade portuguesa.

No contexto do século XXI, já num panorama político assustador, marcado


pelo recrudescimento de práticas patriarcais, conservadoras e neocoloniais, crise
também marcada pela corrosão inédita das formas de democracia representa- ÁLVAREZ, Iván Villarmea. “A dimensão transnacional do cinema português contem-
tiva, uma nova onda de contestação irrompe na Europa, confrontando violenta- porâneo”. In: Aniki, v. 3, n. 1, 2016.
mente o legado colonial através de suas práticas e saberes ainda ativos ao redor BAPTISTA, Tiago. “Nacionalmente correcto: a invenção do cinema português”. In:
de todo o mundo ocidental. Esta forte onda de contestação global tão própria Revista Estudos do Século XX, v. 9, 2009.
da segunda década do século XXI pode ser melhor compreendida através do
interesse pela discussão de temáticas que permeiam também a precarização da CUNHA, Paulo. “Para uma história das histórias do cinema português”. In: Aniki, v. 3,
n. 1, 2016.
vida, como é visto na obra de Salomé Lamas, Teresa Villaverde, João Canijo, Joa-
quim Pinto e Nuno Leonel. MENDES, João Maria. Novas & Velhas Tendências do Cinema Português. Faro: CIAC,
2013.
De forma ampla, reforço o trabalho dedicado da mostra De Portugal para o
Mundo ao montar uma seleção vasta, diversa e plural da cinematografia portu- SALES, Michelle. Em Busca de um Novo Cinema Português. Covilhã: UBI, 2011.

18 19
DE
PORTUGAL Ao olhar para a produção cinematográfica portuguesa dos últimos anos, o que po-
PARA
O demos depreender das imagens em torno do seu passado colonial e das fissuras
MUNDO

Uma análise
deste processo que perdurou por longos anos?

Para desenvolver este texto, pretendo realizar uma análise em torno das obras da

sobre as imagens
mostra De Portugal para o mundo que apontam para este tema. Os imbricamentos
para recuperar as narrativas e imagens coloniais e pós-coloniais ao longo destes 10
últimos anos dispõem de possibilidades bastante heterogêneas. Elejo, assim, seis dos

coloniais e pós-
filmes da mostra que apontam para o tema: Tabu (2012), de Miguel Gomes; Cartas da
Guerra (2016), de Ivo M. Ferreira; Nyo Vweta Nafta (2017), de Ico Costa; Fordlândia Ma-
laise, de Susana de Sousa Dias; Understory, de Margarida Cardoso; e Vitalina Varela,

coloniais a partir
de Pedro Costa (estes três últimos lançados em 2019). São filmes de realizadores de dis-
tintas gerações, que buscam, em seus respectivos trabalhos, filmar histórias que pro-
blematizam as ações e as consequências destas ações nas ex-colônias de Portugal.

de seis obras do Pode-se dizer que este conjunto de filmes já encontrava as suas inquietações no
cinema de realizadores como Paulo Rocha, Manoel de Oliveira, João Cesar Monteiro,

cinema português
António Reis e Margarida Cordeiro, para me restringir a cinco nomes de fundamental
relevância do cinema português. Ao contrário dos filmes que são apresentados neste

(2010-2020)
texto, que utilizam as ex-colonias para filmar e consequentemente problematizar as
questões da colonialidade, estes realizadores que iniciaram seus principais trabalhos
a partir de 1960 e 1970 procuravam desenvolver aspectos sociais e culturais de Por-
tugal a partir de um olhar voltado para o próprio território. Por isso, quando falamos
de uma “inquietação”, lembramos que ela está atrelada a um anseio em comum em

Thiago Ortman captar e criticar as questões sociais e culturais que atravessam Portugal.

Talvez seja possível absorver um pouco deste sentimento a partir das impres-
sões de Pedro Costa quando assistiu Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Mar-
garida Cordeiro, pela primeira vez:

Para mim, a partir do momento em que vi Trás-os-Montes, tive a


oportunidade de começar a sentir que o cinema português tinha
um passado. Encontrei a razão poética que havia buscado no punk,
do tipo “não há nada antes e o futuro não existe, portanto, há que
inventá-lo”; isto o dizia alguém de forma exata, que dizia o mesmo
mediante os filmes que já existiam, que eram magníficos. Por um
lado era reconfortante; por outro, era como poder constituir, como
diz, uma espécie de passado, de família, de identidade que me dava
segurança. Não só me sucedeu com Reis, mas também com Paulo
Rocha, ao menos com os filmes que eu mais gosto dele, Os Verdes
Anos e Mudar de Vida.1

1. COSTA, Pedro. “Entrevista con Pedro Costa sobre António Reis”. Entrevista concedida a Anabela Moutinho e Maria
da Graça Lobo. In: Reis, António; CORDEIRO, Margarida. A Poesia da Terra. Faro: Cineclub de Faro, 1997. Disponível
em: http://elumiere.net/especiales/cordeiroreis/entrevistacostareis.php.
20 21
Vale comentar que Costa foi aluno de António Reis na Escola Superior de Tea- Ao contrário do clássico homônimo do cinema silencioso de F. W. Murnau e Robert
tro e Cinema durante o início da década de 1980. Dito isto, parto para uma breve Flaherty – realizado em 1931 –, nesta obra as ações do explorador europeu e até
análise sobre os filmes citados na introdução deste texto. mesmo dos africanos são exauridas por uma consciência presentificada dos danos
que os europeus causaram no continente africano. A violência apontada por Tabu
é endereçada à apropriação cultural pelos europeus; este movimento é revelado
Tabu (2012) na figura de Aurora, outra protagonista do filme, idosa que no tempo presente do
filme está em constante atrito com a sua cuidadora, Santa, a terceira protagonista
Ao retomar os filmes da mostra, podemos encontrar as suas potências nas
da primeira parte do filme, intitulada “Paraíso perdido” – como um dos capítulos
teias narrativas que buscam repensar e tensionar o passado e o presente colonial
do filme silencioso de Murnau e Flaherty. Abandonada por todos, inclusive por sua
do país. Neste sentido, Tabu talvez seja o que melhor saiba personificar as tensões
filha – que mora no Canadá –, Aurora crê que Santa realizou algum tipo de feitiçaria
coloniais no presente a partir de uma perspectiva europeia.
para afastá-la da filha. Enquanto a personagem de Santa é a personificação da
Antes de seguir, devo explicar que denominarei “africanos” ao longo deste tex- presença dos imigrantes na Europa do presente, a de Aurora aponta para o racismo
to, de forma tão genérica e ignorante, à luz do próprio filme, que conscientemente e a xenofobia dos europeus, herdados dos tempos coloniais.
se exime de particularizá-los dentro do seu próprio território. Embora as locações
Ao longo da primeira metade do filme, acompanharemos os últimos dias
de Tabu na África sejam filmadas em Moçambique, toda a narrativa ocorre em um
de vida de Aurora em companhia de Santa e da vizinha Pilar. A segunda meta-
local denominado Monte Tabu, espaço físico que jamais existiu no continente. A
de, intitulada “Paraíso”, será marcada por um longo flashback que narra uma
intenção aqui é esvaziar culturalmente, a todo instante, a África dos muitos povos
história delirante de amor entre dois europeus em solo africano: a jovem Auro-
que lá se encontram, assim como fizeram incessantemente os europeus por todo o
ra e o italiano Gianluca.
processo de colonização.
Para além da narrativa de amor, “Paraíso” materializa a vivência alienante dos
O filme se abre com um curtíssimo prólogo. A história de um explorador euro-
europeus em solo africano durante o entreguerras. Com um olhar ácido sobre estes
peu que, após perder a sua amada, vaga sem rumo pela savana africana. Ao final
personagens, Miguel Gomes aponta para a ausência de consciência dos seus con-
da “jornada”, decide oferecer-se em sacrifício a um crocodilo na beira de um rio. O
terrâneos, que vivem um cotidiano tolo de festas e passatempos fúteis em meio à
que chama a atenção nesta anedota de sacrifício é a estagnação do europeu pe-
degradação evidente do processo colonial.
rante aquele espaço, que se revela tanto nas suas inações corporais como na sua
indisposição como explorador. No primeiro plano do filme, o observamos com uma Muito se pode dizer a respeito deste grande filme de Gomes; porém, ficarei
postura curvada na centralidade do enquadramento, enquanto os africanos se apenas com uma citação do crítico Filipe Furtado que contribui para uma certa sín-
deslocam, trabalhando, ao seu redor. O olhar de um possível encantamento em re- tese: “A África de Tabu, à parte de sua última virada histórica introduzida por Gian
lação ao espaço não existe. As suas ações são mecânicas até mesmo no momento Luca, é um espaço curiosamente desprovido de africanos, e é parte da grandeza
em que há uma aparição do fantasma de sua mulher - no primeiro diálogo do filme do filme que ele tenha plena consciência de que ele não é sobre a África, mas so-
–, e o sujeito é incapaz de lidar com a surpresa, assumindo para a amada que seu bre europeus, para europeus”2.
fim está próximo, já premeditando o gesto que ocorrerá alguns planos a seguir.

Após o prólogo, um corte abrupto nos revela uma sala de cinema onde Pilar,
Cartas da Guerra (2016)
uma das protagonistas, acompanha solitariamente a sessão em um tempo presen-
te do filme. Assim se entende que a história que acompanhamos se trata de um fil- Após reorganizarmos os campos narrativos de Tabu, partimos para outro filme
me. Tabu de Miguel Gomes, por sua vez, aborda justamente sobre as possibilidade que tem o continente africano como cenário principal. Cartas da Guerra, de Ivo M.
que o cinema oferece para narrar as histórias de exploração e colonização. Ferreira, explora a história das guerras de independência/colonial a partir de frag-
mentos do testemunho do escritor português António Lobo Antunes. Baseado em
Além de fazer uso da espacialidade da África, propondo uma mise-en-scè-
ne que rompa e, à sua maneira, ironize o passado do seu país/continente (Europa). 2. FURTADO, Filipe. “Tabu, de Miguel Gomes”. In: Revista Cinética, out. 2014. Disponível em: http://www.revistacine-
tica.com.br/tabu.htm.

22 23
D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas da Guerra (2005), um compilado são surpreendidos por morcegos, que surgem como vultos e interrompem o seu lazer,
das cartas que o escritor trocou com a sua primeira mulher, Maria José Lobo Antu- passando a malogradamente tentar expulsá-los. Então um dos portugueses atinge
nes, durante os anos em que esteve em Angola, entre 1971 e 1973. uma lâmpada, cortando a luz do local e, consequentemente, a sequência do filme.

Aos 28 anos, o recém-formado médico António parte junto com seus compa-
nheiros em um navio, em direção ao continente africano. As apreensões de Antu-
Vitalina Varela (2019)
nes são demarcadas desde a partida de Portugal nas cartas lidas por sua esposa,
interpretada pela atriz Margarida Vila-Nova, que é a principal narradora do filme. Enquanto Cartas da Guerra consiste em uma obra baseada em uma troca de
correspondências. Vitalina Varela (2019), último filme de Pedro Costa, aponta justa-
Assim como Tabu, a obra de Ivo Ferreira opta pelo preto e branco para filmar
mente para a ausência das cartas de ordem pessoal. Esta informação se desenvol-
a África. Enquanto Miguel Gomes propõe um esforço ao sedimentar os problemas
ve com maior atenção em Cavalo Dinheiro (2014), obra anterior do diretor. Neste
atemporais da colonialidade portuguesa a partir da ausência de cor, Ivo se utiliza
filme, Vitalina aterriza em Lisboa, em um momento presente, para tratar do funeral
da escolha para dar um estilo à sua obra. Fazendo uso do excesso de escuridão,
de seu marido, que partiu de Cabo Verde nos anos 1970 e nunca mais retornou. A
os belos horizontes da savana angolana e os soldados imersos naquele ambiente
primeira aparição da mulher ocorre em um encontro com Ventura no hospital em
são apresentados com constância durante o filme, apontando para um aspecto
que ele se encontra acamado. Vitalina surge como uma personagem que ressalta
estereotipado dos filmes de guerra nesses ambientes. Ao acompanhar o cotidiano
os trâmites burocráticos da migração na Europa atual. Ela descobre o falecimento
daqueles jovens soldados portugueses, vemos que a utilização das elipses nas se-
do marido a partir de um carta enviada para a embaixada de Cabo Verde. Portan-
quências de batalha e a ausência dos que estão do outro lado do front demarcam
to, a carta que chega a ela é um registro oficial.
as potências da obra. Afinal, nesta história, os grandes “inimigos” são os próprios
personagens que se encontram à frente do ecrã na necessidade de defender a Vitalina Varela, obra que conquistou o Grande Prêmio de Veneza em 2019, parte
pátria portuguesa e a manutenção das colônias. de alguns relatos da protagonista já exibidos no filme anterior. Em Cavalo Dinheiro,
Vitalina narra o seu atraso ao funeral do marido, que se deu por causa dos proble-
O interesse de Ivo Ferreira se destaca pelo testemunho do autor nos seus dois
mas de migração: “Eu cheguei em Portugal com uma febre ardente, toda molhada,
anos em Angola. Todo o filme progride a partir da leitura de Maria José, que narra os
com muito frio. Isso foi em 30 de junho de 2013. O funeral de meu marido fora três
desencantos do marido pela guerra e os anseios em retornar ao seu país natal para
dias antes”5. Estas falas são transmutadas em imagens na introdução do filme de
reencontrar a esposa e conhecer a sua filha. Sendo “o primeiro conjunto de cartas
2019. No primeiro plano, vemos um grupo de pessoas carregando o caixão em uma
escritas na guerra colonial de Angola a ser publicado em Portugal”3, como aponta
marcha fúnebre. Em seguida, acompanhamos 10 minutos da comunidade da Cova
o pesquisador Pedro Aguiar. Mesmo que tardiamente (2005), é compreensível o in-
da Moura, espaço que agora acolhe parte dos antigos moradores das Fontainhas6.
teresse por torná-lo uma obra cinematográfica a partir dos relatos do escritor de
Em uma sequência recheada de planos-tableaux, Costa filma o cotidiano do local
Os Cus de Judas (1979)4. No entanto, no campo das imagens, o filme pouco comple-
e de seus residentes, que lidam com os dias após o funeral. O luto consome a ener-
xifica as relações em torno de toda a violência colonial e racial perpetrada pelo
gia daquele local. Enfim veremos a chegada de Vitalina, que sai do avião com a
exército português em Angola naquele período. Pouco é explorado nesse sentido;
urina escorrendo pelas pernas (a cena é filmada em um cuidadoso plano-detalhe
quando é, acaba sendo de maneira clichê e mal-acabada, como se vê nas duas
dos pés descalços da protagonista descendo as escadas do avião). Um grupo de
sequências de assédio dos soldados às mulheres angolanas, situações de violência
funcionários do aeroporto irá recepcioná-la.
racial e sexual que são filmadas de forma banal no filme.
Assim como acontece em Cavalo Dinheiro, aqui as palavras da personagem se
A cena mais interessante da obra de Ivo Ferreira lida justamente com a inapti-
tornam a força motriz do filme. Pedro Costa, que desde No Quarto da Vanda (2000)
dão daqueles portugueses em meio ao ambiente em que eles são intrusos. Na meta-
cunha essa relação de temporalidade com seus personagens, seja no tempo de
de do filme o grupo de soldados está jantando e conversando sobre a vida quando

5. Fala de Vitalina Varela no filme Cavalo Dinheiro (2014).


3. AGUIAR, Pedro. “A guerra colonial portuguesa em Angola nas ‘Cartas da Guerra’, de António Lobo Antunes”. 6. Fontainhas foi o bairro cujo processo de destruição Pedro Costa acompanhou em seus filmes Ossos (1997), No
4. Clássico de Lobo Antunes que também narra a sua experiência de guerra na ex-colônia portuguesa. Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006) – bloco intitulado “A trilogia das Fontainhas”.

24 25
produção, seja no tempo dos seus planos, nesta obra cede a Vitalina. Ela carre- ta do passado, com toda a mão de obra explorada; e a colheita do presente, com
gará toda a potência narrativa, e desorganizará valores daquele campo comuni- todo o maquinário envolvido – e, lá e aqui, o permanente processo de exploração
tário com sua jornada de luto e reconstrução pessoal. Um exemplo? Ao se banhar laboral. Entre a utilização de materiais como imagens de arquivo e registros atuais,
na casa em que está hospedada na Cova da Moura, um pedaço do reboco cai (por exemplo, um evento internacional de chocolate na Bélgica), o “leifmotiv esté-
sobre a sua cabeça. Vitalina mais adiante comentará que “aquelas casas foram tico” do filme se encontra no detalhamento dos planos do cacaueiro e todo o seu
mal construídas […] , são abrigos construídos de forma ‘apressada’, por homens ca- ecossistema. Margarida busca aproximar o espectador do microcosmos da planta,
bo-verdianos que já habitam Portugal há muitos anos”. Torna-se necessário dizer para, a partir dele, expandir a narrativa de forma panorâmica.
que estes homens estavam muito ocupados nos canteiros de obras da Lisboa dos
Em um filme carregado de irregularidades, o terceiro ato se apresenta como o
anos 1970, subindo edificações que os europeus/portugueses depois habitariam ou
de maior pertinência acerca das imagens coloniais, e também é emblemático ao
apreciariam. Para aqueles que já assistiram a outros filmes de Costa, como não
“apontar a câmera” para a figura do senhor português que detém o cultivo de ca-
recordar da marcante visita de Ventura à Fundação Calouste Gulbenkian em Ju-
cau na floresta amazônica dos dias de hoje. Para além de toda a narrativa colonial,
ventude em Marcha (2006)? Naquele museu cujas paredes o próprio Ventura subiu,
salta aos olhos observar a propriedade do homem: uma casa colonial em ruínas.
ele se torna um intruso e é expulso pelo segurança, também cabo-verdiano, que
Uma imagem impactante para espaços e modos de trabalho que insistem em pros-
guarda aquele lugar.
seguir com o capitalismo e o neocolonialismo.
Como ficou evidente nos parágrafos anteriores, é difícil abordar um filme de
Pedro Costa sem deixar de fazer comentários sobre outros que compõem a sua
obra. Mas o que é possível dizer é que Vitalina Varela expande o trabalho do diretor Fordlândia Malaise (2019)
para um novo campo, o que fica claro quando observamos o plano derradeiro do
Understory retrata o ciclo do cacau: sua narrativa inicia nas plantações do
filme: um flashback de Vitalina em Cabo Verde. Aqui, mesmo que por meio de um
Amazonas e termina na mesma localidade, apontando para uma inextinguível pro-
recurso narrativo temporal, a última imagem que se contempla é a de um retorno e
blemática (neo)colonial. Fordlândia Malaise, por sua vez, surge como uma obra que
de um conforto após toda uma jornada de luto da personagem. Um retorno a uma
expõe os rastros da bestialidade capitalista a partir do ciclo da borracha na flores-
boa nostalgia e, para além disso, um retorno à terra que que lhe pertence. Talvez
ta amazônica. A diretora Susana Sousa Dias se orienta pela narrativa da cidade
esta possa ser a imagem mais generosa que o filme possa conceder a esta perso-
que dá título ao seu trabalho: Fordlândia – uma cidade projetada às margens do
nagem que ao longo de Cavalo Dinheiro e de seu filme torna-se a incorporação da
Rio Tapajós na década de 1920 do século XX. O projeto de Henry Ford buscava
violência do processo migratório em Portugal/Europa na atualidade.

(…) explorar a Hevea brasiliensis e assim romper com o monopólio bri-


Understory (2019) tânico (...) [A] cidade de Fordlândia é paradigmática, por um lado, da
indissociabilidade entre o projeto (neo-) colonial e o projeto capitalis-
Understory é o trabalho mais recente de Margarida Cardoso, cineasta perten- ta e, por outro, da implementação de programas políticos e ideológi-
cos que não só contemplavam a exploração laboral – assente, neste
cente à mesma geração de Pedro Costa, e que, assim como ele, passa a ganhar re-
caso, na interpenetração entre os sectores industrial e agrícola –, mas
conhecimento no final dos anos 1990. Margarida viveu a sua infância em Moçambi- que também delineavam um verdadeiro modelo biopolítico.7
que, devido ao fato de seu pai ser um militar das forças aéreas. Vivenciou de perto
o período das guerras de independência. Entre ficções e documentários, sua obra
se desenvolve em torno das discussões coloniais e pós-coloniais. O filme abre com uma sequência de fotografias dos anos em que Fordlândia
“vibrava” como um modelo e projeto de cidade capitalista. Os registros se mesclam,
Em seu novo documentário, a diretora se propõe a investigar o ciclo do cacau.
apresentando a arquitetura das casas com padronização americana; o cotidiano
Ao tratar de uma história que atravessa diretamente a escravidão, torna-se inevi-
de labor e lazer dos trabalhadores e suas famílias; e as paisagens de devastação
tável lidar com todo o passado colonial que envolve o fruto. Estas imagens são ex-
ploradas pela diretora por meio de montagens de quadros paralelos, com a colhei-
7. SCHEFER, Raquel. “A trama colonial: Fordlândia Malaise, de Susana de Sousa Dias”. In: Esferas, n. 16. 2019.

26 27
ecológica do monocultivo das seringueiras. Uma sonora batucada “invade” a sequ- do argentino Eduardo “Teddy” Williams, outro jovem realizador que despontou no
ência de fotos, e elas passam a adquirir um ritmo alucinante. As imagens são re- cinema mundial na última década. Assim como o cineasta argentino, Ico realiza um
petidas como parte de um procedimento de reafirmação dos elementos que eram filme em que a câmera (muitas vezes na mão) passeia geograficamente por entre
norteadores naquele espaço: um ciclo ininterrupto de imagens dos explorados, dos grupos de jovens e tem como interesse desvelar os seus anseios. Porém, enquanto
exploradores e da matéria-prima. Ao final, as fotografias que se sobressaem são Williams desenvolve os seus personagens a partir de um universo próprio, que tran-
imagens de fim/tumulares, demarcadas pelo cemitério, pela terra arrasada. A sequ- sita entre a realidade e o sonho, Ico Costa parte de diálogos triviais dos jovens para
ência fotográfica se encerra na imagem de uma “máquina de bater ponto” destru- apresentar seu estilo de vida na atual Moçambique.
ída dentro de uma fábrica, igualmente arruinada. Este momento demarca o fim do
Um exemplo é o plano de encerramento do curta de Ico, que ocorre no topo de
projeto de Fordlândia, que durou pouco menos de 20 anos, encerrando-se em 1945.
um baobá. Ali, rapazes colhem os frutos da árvore enquanto falam sobre como é
Fordlândia Malaise circunda o passado das fotografias de arquivo e aporta seu caro viver em Maputo:
registro no momento atual da cidade: um presente distópico. Planos filmados com
“– O preto estragou tudo. Viste Maputo como era dantes? Era terra de brancos.
drone captam das alturas a cidade esvaziada. A escolha pelo preto e branco, já ob-
servado nas fotografias históricas, se mantém nesta longa etapa do filme. Para além – Os meus avós tinham trabalho.
da estratégia de associação com a tecnologia panóptica dos drones (que tudo vê e
– Os teus avós eram explorados.”
controla), a combinação dos planos aéreos com vozes de moradores da cidade nos
faz observar esse território fantasma como uma gigante maquete. As vozes em off Ao longo do mesmo plano, que se desprende dos personagens que estão no alto
entram como elementos espectrais que reordenam aquele espaço, como as vozes da árvore para realizar um movimento virtuoso em direção ao solo, um dos rapazes
das crianças, que vão indicando o que “os americanos construíram” na cidade, em comenta que o malambe, o “superfruto” do baobá, está na moda na Europa e, sem
um tempo em que elas ainda nem eram nascidas. O que parece estar em jogo neste seguida, diz: “Maputo, o passaporte para a Europa”. Assim, ele lembra que o escoa-
episódio do filme de Susana é a ideia de brincar de Deus. Talvez por isso os depoi- mento de malambe sai da capital de Moçambique para o continente europeu. Ao
mentos dos residentes da cidade abordem aspectos que asseguram a existência da- filmar os jovens com seus uniformes do Barcelona, diálogos que fazem menção a
quele espaço, local que foi devastado pelas práticas do capital de exploração. marcas de roupas das calçadas do Champs-Élysées e toda uma lógica de traba-
lho que visa ao capital europeu, o realizador português tenta apresentar uma visão
Apresentado o contexto do filme dentro deste painel de imagens coloniais, indico
panorâmica de Moçambique. No entanto, ao passo que reitera incessantemente os
um excelente artigo sobre o filme, já citado nesta seção: “A trama colonial: Fordlân-
espectros do consumismo, ele acaba por esvaziar a identidade daqueles jovens e
dia Malaise de Susana de Sousa Dias”, da pesquisadora portuguesa Raquel Schefer.
criar uma obra paradoxal, que pretende comentar sobre os reflexos do colonialismo
português, mas acaba tornando a temática um tanto quanto superficial.

Nyo Vweta Nafta (2017) A partir do painel de realizações do cinema português apontado aqui, chega-
mos à conclusão de que é notável que haja um desejo de olhar atentamente para
O curta-metragem de Ico Costa abre com um homem português flanando por
os fantasmas do passado colonial e de questioná-los em um tempo presente. Entre
Maputo (Moçambique), à procura de uma mulher denominada Nafta. Esta premis-
erros e certos, quando as imagens descritas ao longo do texto são propostas por
sa se desmancha em poucos minutos e dá uma “rasteira” no espectador - e conse-
esses realizadores, há um ímpeto de apresentá-las como um espelho, para que a
quentemente aparente protagonista que está em busca da jovem moçambicana.
sociedade europeia, especialmente a portuguesa, assimile as violências que são
Na sequência seguinte, vemos Nafta pegar carona com um rapaz e conversar fruto da herança colonial e que ainda permanecem.
com ele sobre marcas de celular e roupa – o assunto segue para temas como ter ou
não uma casa própria, um automóvel, etc. A câmera de Ico está mais interessada
em acompanhar alguns grupos de jovens que vivem e trabalham nas províncias de
Inhambane e Maputo do que realizar um filme de busca, que propiciaria uma nar-
rativa mais cronológica. Nesse sentido, Nyo Vweta Nafta encontra ecos no trabalho

28 29
DE
PORTUGAL Tanto pelo aspecto narrativo quanto pelo comercial ou artístico, são muitos os ti-
PARA
O pos de cinema português. O desejo constante de desbravar outros mundos é uma
MUNDO característica de Portugal, e as diversidades culturais são imensas, dependendo da
região onde se filma, seja nas duas maiores cidades, Lisboa e Porto, no Alentejo, na
Beira, em Trás-os-Montes ou no Algarve, mesmo considerando o tamanho diminu-

A escola
to do país, de dimensão pouco inferior à do estado brasileiro de Pernambuco. Há
também a velha dicotomia, ainda não de todo superada, entre o cinema que os
portugueses (que portugueses?) supostamente querem ver e o cinema de exporta-

portuguesa e
ção, resumido na famigerada e preconceituosa expressão “filmes para Bragança,
filmes para Paris”, popularizada nos anos 1980. Há ainda as coproduções, incluindo
as luso-brasileiras. Por outro lado, há também um fator comum a todos esses tipos

sua permanência
de filme, que se pode resumir com o título de um velho documento do final dos anos
1960 que pedia por subsídios ao cinema português, então totalmente sem rumo: “O

no cinema
ofício do cinema em Portugal”. Nunca foi fácil fazer cinema em Portugal. Contudo,
há uma pujança no cinema português, conforme explica Nelson Araújo (2016, p. 112):

português dos Condições histórico-culturais que nos são próprias permitiram que
num país economicamente atrasado em relação aos outros da Eu-
ropa tenha florescido um cinema de autor capaz de, na década

últimos dez anos


de oitenta do século passado, gerar um variado conjunto de obras
que, em função da sua organização essencialmente visual, produziu
uma tendência de estilo.

Sérgio Alpendre O investigador lembra que prêmios em festivais internacionais legitimaram o


cinema português nessa década, e que tudo começou com o desejo de renovação
estética dos realizadores que começaram nos anos 1960. Há, sobretudo, um aspec-
to, em parte fruto desse documento endereçado à Fundação Gulbenkian, que tor-
nou esse cinema um dos mais fortes do mundo a partir dos anos 1980: o rigor formal
do estilo de muitos dos melhores filmes realizados no país.

Por isso, essa pequena palavra define boa parte do cinema português: rigor.
Há várias maneiras de se filmar com rigor, e há várias maneiras de encontrar esse
rigor no cinema português. Uma delas é a de Joaquim Pinto em E Agora? Lembra-
-me (2013), longa duríssimo, de uma austeridade desconcertante, com quase três
horas, em que o diretor se expõe em um longo tratamento contra a hepatite crô-
nica e o HIV (mas seus momentos de leveza, geralmente pelo uso da música, são
mais desconcertantes ainda, como os momentos com os cães). Outra maneira é a
de Pedro Costa, sobretudo em seus últimos filmes, como Cavalo Dinheiro (2014) e
Vitalina Varela (2019), de uso constante de claro-escuro, com atores e atrizes fre-
quentemente estáticos. E há ainda um rigor semelhante ao de Costa, mas com uma
variação importante, da qual me ocuparei mais tarde: o de Rita Azevedo Gomes

30 31
em A Vingança de uma Mulher (2012) e A Portuguesa (2018), marcado por um cuida- O principal formulador prático da escola portuguesa foi Manoel de Oliveira,
do com a composição do espaço filmado e com o uso do texto literário. Esses dois num momento, entre os anos 1960 e 1970, em que outros autores europeus (Sergei
últimos tipos de rigor, o de Rita e o de Costa, e em menor grau o de Pinto e outros Parajanov, R.W. Fassbinder, Marguerite Duras, Chantal Akerman, Jean-Marie Straub
realizadores contemporâneos, se encaixam em um tipo de cinema muito frutífero e Danièle Huillet, Werner Schroeter, Raúl Ruiz) buscavam efeitos semelhantes na
e que tem se desenvolvido desde os anos 1960, conhecido, em sua parte estética, organização dos planos e no uso da palavra. Oliveira desenvolveu aos poucos sua
como “escola portuguesa”1. Embora de definição variável, entre o social e o esté- poética, em sintonia com esses autores (alguns deles, contudo, começariam de-
tico, conforme o desejo do investigador ou do crítico, tal escola envolve um estilo pois), em filmes como Acto da Primavera (1963), o curta A Caça (1963), O Passado e
que, grosso modo, passa pelos seguintes elementos: claro-escuro, rigor no enqua- o Presente (1972) e Benilde ou A Virgem Mãe (1975), chegando na consolidação de
dramento, que eventualmente leva aos tableaux vivants (literalmente, “quadros vi- seu estilo em Amor de Perdição (1979) e Francisca (1981), os dois longas responsáveis
vos”), atores-estátuas (também como decorrência dos tableaux vivants), recusa pelo início de seu prestígio. Paulo Rocha foi um discípulo confesso de Oliveira, sobre-
do naturalismo, distanciamento narrativo, uso inventivo do som, respeito ao texto tudo em A Pousada das Chagas (1972) e A Ilha dos Amores (1982), e foi o primeiro a
e à palavra, liberdade na duração dos planos, rompimento da quarta parede. Pou- conceituar a escola, ainda sem bases definidas, mas já sob uma ideia de cinema
cos filmes informalmente associados a essa escola têm todas essas características moderno que rompia com o cinema português do passado. João César Monteiro
juntas, e muitos filmes se aproximam dessa estética apenas ocasionalmente. No foi um dos diretores portugueses que seguiram de perto os passos de Oliveira, prin-
entanto, são essas as principais características que fazem do cinema português cipalmente a partir de Veredas (1978), confirmando-se no caminho com Silvestre
um cinema tão forte. O oposto dessa escola pode ser encontrado em filmes como (1982) e À Flor do Mar (1986).
São Jorge (Marco Martins, 2016), Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017), A Fábrica de
Igualmente importante para o estabelecimento dessa escola estética é o tra-
Nada (Pedro Pinho, 2017) ou Mosquito (João Nuno Pinto, 2019), filmes que derivam
balho do casal António Reis e Margarida Cordeiro, sobretudo nos três longas que
também dos anos 1960, da chamada “crise da mise-en-scène”, que, décadas mais
realizaram juntos, Trás-os-Montes (1976), Ana (1982) e Rosa de Areia (1989). É mesmo
tarde, desembocará na “estética do fluxo”. Entre um extremo e outro, do rigor à sol-
possível dizer que Veredas, longa que afirma João César Monteiro como um diretor
tura da câmera, situa-se uma enormidade de filmes que compõem o quadro rico
de ponta no cinema português, é o resultado das influências de Manoel de Oliveira
da cinematografia portuguesa deste século.
com a dupla Reis e Cordeiro, juntamente com as influências externas ou de outras
Este artigo pretende, entretanto, explorar uma parte dessa cinematografia, épocas – Jean Renoir, Carl Dreyer, Jean-Luc Godard. Se Oliveira trabalha a compo-
justamente aquela que dá algum prosseguimento, no cinema contemporâneo, aos sição de quadro geralmente em casarões ou cenários artificiais, Reis e Cordeiro a
preceitos estéticos da chamada “escola portuguesa”. É por isso que essa expres- trabalham nos exteriores, nas paisagens montanhesas ou no contato com a natu-
são tão difundida e questionada, e ainda certeira em muitos aspectos, atravessará reza. Obviamente, Manoel de Oliveira também trabalha em exteriores, e Reis e Cor-
todo o texto, juntamente como a palavrinha mágica rigor. A prioridade é entender deiro, em interiores. Mas os planos mais marcantes desses cineastas geralmente
como os filmes selecionados para a mostra De Portugal para o Mundo dialogam pertencem à formulação anterior. António Reis foi professor de vários realizadores
com essa base estética. Antes, porém, um brevíssimo histórico. das gerações posteriores (ver nota de rodapé). A influência de Jaime (António Reis,
1974) percorre toda a obra posterior de João César Monteiro, além de Veredas e
Silvestre, também Recordações da Casa Amarela (1989). Os longas assinados por
*** Reis e sua esposa Margarida Cordeiro são referências sensíveis em filmes de Pedro
Costa, Manuela Serra, Gonçalo Tocha, Manuel Mozos e Marta Mateus, sobretudo na
1. É necessário dizer que desde Paulo Rocha a menção a uma escola portuguesa não se dá sem questionamentos.
maneira como a natureza e os trabalhadores do campo ou os desfavorecidos são
Muitos historiadores investigaram o conceito de escola e se ele é aplicável ao cinema português. Segundo a histo- retratados em filmes como O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985), Juven-
riadora Leonor Areal, em seu excelente livro Cinema Português: um país imaginado Vol. II (2011, pp. 267-301), a escola
portuguesa, sobre a qual dedica um capítulo, dá-se principalmente do ponto de vista estético a partir da influência tude em Marcha (Pedro Costa, 2006), É na Terra Não é na Lua (Gonçalo Tocha, 2011),
de Manoel de Oliveira na geração que começa a fazer filmes nos anos 1960 e se confirma quando alguns desses
realizadores associados ao Novo Cinema Português – Paulo Rocha, António Reis e Alberto Seixas Santos – come- Ruínas (Manuel Mozos, 2009) e Farpões, Baldios (Marta Mateus, 2017).
çam a dar aulas na Escola de Cinema do Conservatório Nacional, tendo como alunos futuros realizadores, como
Joaquim Pinto, Manuel Mozos, Teresa Villaverde, Pedro Costa. A ideia de escola, com transmissão de conhecimento Estão definidas as maiores características da chamada “escola portuguesa”
de professores para alunos, é, portanto, estabelecida. Ver também os autores João Mário Grilo e João Bénard da
Costa, que, entre muitos outros, detiveram-se na conceituação da escola portuguesa. com este quinteto (ou quarteto, se considerarmos as parcerias): Manoel de Oliveira,

32 33
Paulo Rocha, António Reis e Margarida Cordeiro e João César Monteiro. Diretores de embora a relação entre luz e sombra não seja sempre uma prioridade, como em
uma geração posterior, que consideravam heróis alguns ou todos esses cineastas, Costa. No cinema de ambos, há o artificialismo de falas e gestos como força mo-
pavimentaram definitivamente o que seria a escola em seu aspecto formal (como triz, com atores e atrizes estáticos ou em transe, formando verdadeiros tableaux
também na relação mestre-discípulo) justamente na década de 1980: João Mário vivants. Numa outra comparação, que só parece deslocada se ignorarmos um as-
Grilo, João Botelho, José Álvaro Morais, entre outros. Cada um desses discípulos iria pecto mais geral da aparência visual-narrativa desses filmes, Rita seria Marguerite
desenvolver um estilo próprio, enriquecendo ainda mais o arcabouço estético da es- Duras, Costa, Chantal Akerman. Os dois carregam consigo o melhor do cinema de
cola. No século XXI, enquanto todos esses cineastas portugueses se distanciavam (às seu tempo, mas Costa, como Akerman, permite-se um encantamento com o po-
vezes se reaproximando depois) parcial ou totalmente da escola portuguesa, Montei- pular, com as músicas que o povo canta, enquanto no cinema de Rita, como no de
ro e, principalmente, Oliveira, continuaram reforçando-a, e faziam de seus estilos (se- Duras, a música é quase sempre solene, mesmo quando pop. Obviamente nessas
melhantes até certo ponto, mas com diferenças marcantes) os mais representativos comparações, e dependendo de cada filme que pegarmos de todos os envolvidos,
do cinema português. Monteiro filmou Vai e Vem (2003), seu último longa. Oliveira fez as forças podem ser invertidas, mas geralmente são essas as associações que mais
longas formidáveis, como Palavra e Utopia (2000), O Princípio da Incerteza (2002), O vêm à mente quando pensamos nesses cineastas.
Quinto Império – Ontem como Hoje (2004), Belle Toujours (2006) e O Estranho Caso
As diferenças não param aí. Se ambos realizam sobre-enquadramentos inven-
de Angélica (2010), provavelmente os cinco longas, entre os assinados por ele neste
tivos, utilizando janelas, espelhos, enfeites e toda sorte de contornos possíveis, e se
século, que mais se filiam à escola que ele mesmo ajudou a consolidar.
ambos trabalham com a imobilidade como marca de estilo, por vezes nos dando a
impressão de que a imagem está congelada, Costa trabalha com pobres, cabo-ver-
dianos em Lisboa ou no Tarrafal, que falam baixo porque não têm voz neste mundo,
***
só têm voz nos filmes dele. Daí sua opção por sombras e sussurros. Rita trabalha com
aristocratas, intelectuais, literatos, nobres, geralmente de uma outra época, de um
outro contexto cultural. Mesmo quando em tempo indefinido, do que se pode presu-
A mise-en-scène mais elaborada do cinema português atual pode ser encon-
mir que são contemporâneos, eles pertencem a uma fração da sociedade que tem
trada nos trabalhos de Rita Azevedo Gomes e Pedro Costa. Enquanto a primeira
posses, quando não riquezas. A nobreza nos filmes de Rita pode ser decadente, mas
tem uma encenação que privilegia a colocação dos atores no espaço e tende a
determina o rigor de enquadramento e o uso de objetos para ajudar a encenação.
trabalhar com simetria e geometria no quadro, o segundo parece organizar tudo a
Costa seria um pintor maneirista ou barroco (o que não o impede de criar quadros
partir dos recortes de luz e da escuridão, recortes que surgem como rasgos, como
que se assemelhem a pinturas do romântico Géricault), Rita, classicista ou românti-
se a luz invadisse o espaço sem pedir permissão. Numa comparação menos des-
ca. Costa critica a sociedade por meio das vítimas do que ele critica. Rita critica a
locada do que parece, Rita seria Mizoguchi, enquanto Costa seria Ozu. Isto porque
sociedade que mostra – a nobreza e a burguesia. Eles herdam alguns dos principais
a mise-en-scène de Rita permite maiores variações conforme o que é filmado, de
preceitos estéticos da chamada “escola portuguesa” para seguir caminhos muito
acordo com o tipo de filme, se é ensaio, drama histórico ou romance adolescente.
particulares. São, por isso, os grandes autores portugueses em atividade.
Falta, obviamente, a insistente movimentação de Mizoguchi, e em seus filmes a in-
venção geralmente não está no fora de quadro que a certa hora invade o plano, Mas Rita Azevedo Gomes e Pedro Costa não são os únicos realizadores dignos
ela nasce dentro do quadro, no meio de um plano estático – ou por um espelho, ou de nota, e nem mesmo os únicos entre os que podem ser associados, em maior ou
alguma entrada (nisso A Vingança de uma Mulher é assombroso de tão belo). Em menor grau, à escola portuguesa. André Gil Mata realiza, com A Árvore (2018), um
Costa, o espaço recortado pela luz envolve atores e atrizes que parecem viver em trabalho de imponente rigor desde o primeiro plano: um borrão nos mostra o que
transe, como em protesto por uma vida de privações. Obviamente, Costa também parece ser uma paisagem de telhados expressionistas, até que a câmera recua
trabalha com simetria e Rita com o claro-escuro, embora ambos pareçam se mo- muito lentamente, revelando um menino que desenha algumas coisas no vidro de
ver em direções contrárias: os filmes de Costa, principalmente Juventude em Mar- uma janela, do lado de dentro de uma casa. A penumbra domina o quadro, mas o
cha, Cavalo Dinheiro e Vitalina Varela, partem da relação luz e sombra para atingir desenho de luz permite vermos que estamos numa espécie de cozinha, com uma
uma composição rigorosa com o posicionamento dos atores; os filmes de Rita par- mesa coberta com uma toalha, um prato, alguns guardanapos, e na parede ao
tem dessa mesma composição rigorosa para, por vezes, pintar também com a luz, lado da janela alguns utensílios, como copos e panelas. O recuo lento da câmera e

34 35
a entrada de uma outra personagem podem sugerir menos uma filiação à mencio- dão uma pista de quem são esses personagens e do que significa o impressionante
nada escola do que uma influência do cinema de Andrei Tarkovski, ou de Sharunas primeiro plano do filme. Mas não depende desse entendimento a força desse ótimo
Bartas nos anos 1990 (Bartas é amado por parte considerável da cinefilia portu- experimento formal.
guesa), ou ainda de Béla Tarr, já que Gil Mata estudou na escola do grande diretor
Da mesma geração de Rita Azevedo Gomes e Pedro Costa, a geração dos
húngaro (estamos, de todo modo, numa outra escola cinematográfica, a do tempo
nascidos nos anos 1950, Manuel Mozos e João Canijo realizam com Ramiro (2017) e
dilatado, esculpido, e dos herdeiros de Tarkovski). A continuidade do plano mostra
Fantasia Lusitana (2010) seus filmes mais atípicos. Extremamente português pela
uma parede envelhecida e ressecada (diferente das paredes úmidas dos filmes de
junção de elementos como o alfarrabista, a tasca, a solidão e a Feira da Ladra em
Tarkovski) e nos leva a um outro cômodo, onde um homem velho está deitado em
Lisboa, Ramiro é também o filme que mais se afasta da dita “escola portuguesa”
uma cama, num quarto iluminado unicamente pela luz da Lua e por uma vela. A câ-
entre todos os realizados por Mozos (curtas inclusos), exceto por um ou outro plano
mera continua o seu lento passeio até a janela do quarto, mergulhando novamente
(as exceções de sempre, que confirmam a força da escola mesmo em filmes dis-
num borrão azulado. Da abstração à apresentação dos personagens, e de novo à
tantes). Fantasia Lusitana se afasta por um outro lado, o da colagem, na relação
abstração, num semicírculo seguido pelo título do filme em bósnio (o filme se passa
com outros filmes de Canijo. Porque esse diretor só trabalha, aqui, com imagens
na Bósnia-Herzegovina): Drvo. O movimento lentíssimo da câmera já provoca uma
de arquivo da época em que o Estado Novo de Salazar se aproximava perigosa-
dissociação imediata com qualquer personagem. Estamos num tipo de filme em
mente do nazismo e da época do alívio com o fim da Segunda Guerra Mundial.
que a câmera perscruta um lugar, nos levando à contemplação. Não é simples-
Nada da densidade de filmes como Malnascida (2007). Muito diferentes entre si, e
mente um efeito demasiado artístico, mas um pedido para que entremos no tempo
até mesmo opostos em suas preocupações e tons, Mozos e Canijo mostram, com
interno pretendido pelo diretor. Por esse plano, podemos pensar em Rita Azevedo
esses filmes, até onde podem se exercitar em aspectos formais que se distanciam
Gomes, sobretudo a de Frágil como o Mundo (2001), mas em menor grau a de A
daqueles com os quais melhor trabalharam.
Portuguesa, como uma ponte possível entre Tarkovski (ou Tarr) e André Gil Mata. A
câmera que paira como uma assombração nos apresenta esses três personagens O caso de A Vida Invisível (2013) é particular. Marca o retorno ao cinema de
em contato com a escuridão e o desolamento, embora perceba-se algum carinho Vítor Gonçalves, outro diretor nascido nos anos 1950, 27 anos após sua estreia com
entre a mulher e o menino (mãe e filho?). Os poucos ruídos se resumem à arruma- Uma Rapariga no Verão (1986). Depois de um primeiro filme pertencente geracio-
ção da mesa e a algumas explosões vindas de fora. Esse plano inicial é longo, tem nalmente à escola portuguesa, no sentido de pertencimento à geração que iniciou
cerca de 15 minutos – tornado possível com o digital. Não importa se houve algum a carreira nos anos 1980, geração esta que aprendeu a fazer cinema, direta ou in-
truque de montagem num dos momentos mais escuros do passeio da câmera, o diretamente, com os realizadores do Novo Cinema Português dos anos 1960 e 1970,
que importa é a intenção de continuidade, o plano único (trucado ou não) que nos este segundo longa encontra ainda mais a escola portuguesa no aspecto estético.
leva de uma janela à outra, de uma abstração a outra. Muitos filmes se justificam Calcado na duração dos planos, em certa fixidez da câmera, nos enquadramentos
pelo percurso a uma determinada imagem ou a um único plano, mas geralmente muito pensados em termos de luz e sombra e também em simetrias e arranjos dos
isso acontece com imagem/plano, num clímax ou mesmo no encerramento do fil- elementos em cena, e no texto literário, que dá suporte às angústias do protagonis-
me, como em Stalker (Andrei Tarkovski, 1979): o lento travelling de recuo que mostra ta, o filme flagra um realizador curiosamente apartado de seu tempo e do tempo
os copos movidos por telecinese pela filha do “stalker”. Gil Mata é bem ousado ao atual. Em 2013, A Vida Invisível se parecia com tudo e ao mesmo tempo não se
iniciar seu filme com um plano desses. O risco de perder boa parte dos espectado- parecia com nada. Lembrava outros procedimentos muito utilizados pelos filmes
res é grande, e é o tipo de plano que diz muito bem a que veio. Difícil não decepcio- mais sintonizados com a escola portuguesa e ao mesmo tempo nenhum filme em
nar o espectador empolgado inicialmente, pois ficamos esperando sempre algo a especial. Um caso curioso de filme perdido numa espécie de limbo estético. A es-
essa altura. A esse desafio o diretor responde com um outro plano de semelhante tranheza e a falta de foco narrativo (um foco que parece ser buscado, o que é pior)
rigor, em que o velho se movimenta dentro da casa enquanto a câmera o segue do fez com que a recepção fosse desigual. Hoje, o deslocamento temporal parece ser-
lado de fora, lentamente, numa escuridão que mal revela seus passos. Esse plano vir melhor ao deslocamento do diretor e de seus personagens, o que faz com que a
é mais curto, e dá lugar a um outro, mais móvel, em que a câmera o persegue. O irregularidade no tom e na interpretação dos atores incomode menos.
ritmo está estabelecido, e o diretor não abrirá mão dessa proposta no longa mais
Alguns outros filmes resvalam na escola portuguesa de maneira indireta, talvez
radical (e dos mais belos) do cinema português contemporâneo. Os créditos finais

36 37
frágil, mas é curioso como os enquadramentos desses filmes revelam um desejo de menos a mesma coisa, com a diferença de que aqui a intenção é mesmo provo-
fazer diferente, de provocar algum tipo de estranheza. É o caso de É na Terra Não é car um estranhamento pela forma, pela fixidez afrontosa da câmera. Praticamente
na Lua, Eldorado XXI (Salomé Lamas, 2016) e Understory (Margarida Cardoso, 2019), metade do filme é uma imagem fixa de pessoas se deslocando, com luzes em seus
no campo do documentário ensaístico, e de Colo (Teresa Villaverde, 2017), Tabu capacetes, num trabalho com a duração dos mais ousados. Understory vale-se so-
(Miguel Gomes, 2012) e John From (João Nicolau, 2015), na ficção. bretudo da força das palavras, do texto poético que embala as belas imagens de
paisagens tropicais (com o uso surpreendente da música de India Song [1975], gran-
Colo e Tabu são filmes de diretores que não pareciam muito próximos da es-
de filme de Marguerite Duras), de um uso feliz do split screen e da importância dada
cola portuguesa, a não ser pelo desejo de continuar no campo autoral, a despeito
à composição do quadro, que atravessa todo o filme, exceto nos momentos em
de terem se formado na Escola Superior de Cinema. Nesses trabalhos em especial,
que o documentário assume um andamento mais solto, ligado ao registro fidedigno
aproximam-se mais da escola portuguesa, sem se distanciar totalmente de suas
dos cotidianos locais e às falas dos habitantes das regiões filmadas.
propostas estéticas anteriores (vejam, por exemplo, Os Mutantes [1998], de Villa-
verde, e Aquele Querido Mês de Agosto [2008], de Gomes, para uma comparação). Outros filmes também têm com a escola portuguesa uma relação pendular,
John From dá continuidade a uma evolução formal que se consolidaria, sem grande como a dos filmes mencionados nos dois parágrafos anteriores, ora se aproximan-
mudança, apenas em Technicolor (2019), mas, no caso, João Nicolau me parece do, ora se afastando, mas nunca aderindo a ela ou recusando-a de todo. Cartas da
mais próximo da escola, apesar de ter se formado em Antropologia, tanto pelos Guerra (Ivo M. Ferreira, 2016), Voltar à Terra (João Pedro Plácido, 2014) e O Ornitólogo
filmes anteriormente realizados quanto pelo trabalho na edição do catálogo sobre (João Pedro Rodrigues, 2016) são exemplos curiosos de filmes tipicamente portu-
João César Monteiro para a Cinemateca Portuguesa (o que indica uma relação mí- gueses, esteticamente bem diferentes entre si, mas que mantêm algum laço com
nima de filiação). Em Colo e Tabu, a organização dos atores e das atrizes nos qua- as marcas da escola. Vamos das memórias das guerras coloniais aos percalços
dros pede, por vezes, um rigor maior, como parte da estrutura narrativa e da evolu- malucos de um ornitólogo aventureiro, passando pela vida numa região rural que
ção dos dramas em jogo. Em Tabu, a parte colonial tende a ser mais formalmente representa mais um dos inúmeros retornos ao tipo de filme de ficção com feições
rigorosa, enquanto a parte contemporânea se afasta da escola portuguesa. Em etnográficas muito prolífico em Portugal nos anos posteriores ao 25 de abril. Cartas
Colo, boa parte dos planos tem uma organização mais solta, embora menos que da Guerra se desenvolve conforme o texto de António Lobo Antunes, num preto e
em Os Mutantes; um ou outro momento, por vezes com um movimento bem-calcu- branco edulcorado, que por pouco não sufoca o drama dos personagens. Talvez
lado da câmera e com o uso da arquitetura (janelas, pilastras, paredes), revela um seja o que mais se aproxime de um rigor estético, semelhante ao de Tabu de Miguel
cuidado maior com as formas geométricas (como parte de um efeito de isolamento Gomes (no uso do preto e branco) e de A Árvore de André Gil Mata, mais ligado a
dos personagens, mesmo quando juntos de outros), o que torna o enquadramento uma escola do Leste europeu do que propriamente à escola portuguesa, embora
mais composto, o suficiente para que Colo pareça um filme mais rigoroso do que com claros pontos de contato com a segunda. Voltar à Terra mescla rigor imagé-
realmente é. John From, embora dialogue com Colo, parece ser, entre os três, o que tico com uma soltura típica das buscas realistas contemporâneas. É o que mais
mais procura uma suavização da proposta estética mais rigorosa para uma ade- se encaixa nesse movimento pendular. O Ornitólogo é uma produção luso-franco-
quação ao universo adolescente que ele retrata. -brasileira que reflete o lado expansionista dos portugueses, com um personagem
disposto a embarcar numa viagem inesperada que pode lhe custar – e custa – mui-
Em É na Terra Não é na Lua, a paisagem única de uma pequena ilha dos Açores
to. Se pensarmos nos casarões e grandes espaços fechados enquadrados com o
provoca enquadramentos originais, e o desejo de nos mostrar a vida sui generis dos
máximo do cuidado, no jogo com luz e sombra e na atenção à palavra como mar-
habitantes da única aldeia existente na ilha do Corvo, com seus quase 500 habi-
cas máximas da escola portuguesa, O Ornitólogo, na maior parte do tempo, vai no
tantes (“Já foram 900”, “Já foram 300”), automaticamente leva a um cuidado extra
sentido oposto. Aventura na selva, filme de mochila nas costas e de corredeiras, de
nos enquadramentos, ainda que esse cuidado apareça em momentos estratégicos
coisas místicas e inesperadas. O ritmo e a fixidez da câmera em alguns planos no-
espalhados pelo filme, e ainda que no filme impere sobretudo a ideia de movimen-
turnos o associam à tão mencionada escola, embora menos que outros filmes de
to como contraponto ao isolamento e à imobilidade da ilha. Com a geografia local,
Rodrigues, como O Fantasma (2000) e Morrer como um Homem (2009). Mas o filme
uma vila situada entre morros de pedra e o mar, não era difícil encontrar ângu-
termina se associando mais ao Luis Buñuel de A Via Láctea (1969), de uma maneira
los únicos para a câmera, que criam facilmente enquadramentos que chamam a
inusitada típica dos dois diretores.
atenção do espectador para a composição. Em Eldorado XXI, acontece mais ou

38 39
Nos curtas, é mais visível a influência da escola portuguesa em Farpões, Bal- mencionados. Na verdade, essas características, aliadas ao fato de serem todos
dios, de Marta Mateus. Nas internas, os mesmos rasgos de luz na escuridão que filmes portugueses, é que fizeram desses filmes trabalhos únicos e determinaram o
observamos nos últimos longas de Pedro Costa. Nas externas, um cuidado com a recorte do texto: filmes portugueses que se afinam, de variadas formas e intensida-
composição do quadro e com as posições estáticas dos atores e atrizes chama des, à escola portuguesa. Se o claro-escuro, o rigor de enquadramento e a atenção
atenção. Ascensão (Pedro Peralta, 2016) está em sintonia com o longa A Árvore, co- à palavra são as características mais frequentes entre esses filmes, é necessário
mentado anteriormente. Ou seja, tem sua nítida filiação na escola portuguesa, mas lembrar que essas características também aparecem em diversos outros filmes de
também na escola do Leste europeu, pois alia uma rigidez típica do cinema portu- vários outros países. Entendo, porém, que a marca seja tão forte que quando pen-
guês à lenta movimentação de câmera típica de um Béla Tarr. A neblina, as roupas samos em cinema português, a imagem de um filme em claro-escuro e atores está-
das mulheres e a feição dura dos homens nos remetem a um Portugal invernal. Os ticos é a primeira que vem à mente, assim como quando pensamos em cinema ja-
enquadramentos verticalizados, com mais espaço entre as cabeças dos atores e ponês lembramos logo das geometrias nos enquadramentos. O cinema português
o limite superior da tela, também nos remetem ao cinema do Leste europeu, ain- se fortaleceu nas décadas de 1970 e 1980 graças à chamada “escola portuguesa”.
da que com um pé na escola portuguesa. Com essas características, o curta de
Peralta, assim como A Árvore, é bem forte e indicativo dos possíveis encontros en-
tre uma escola e outra. A similaridade com a escola portuguesa também é visível,
embora seja um filme dirigido por um norte-americano radicado na França, em
Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (Eugène Green, 2018). O estilo de Green,
nos “minifilmes” (como ele os chama) ou nos longas, encontra facilmente o da es-
cola portuguesa, embora este curta tenha um formato mais anedótico. Encontra-o
ainda mais porque Green procura inserir em seus filmes portugueses (neste e em
A Religiosa Portuguesa, de 2009) elementos como o fado, o sebastianismo e outros
signos típicos da cultura lusitana. Num sentido contrário, de Portugal para a Europa
central, Redenção (Miguel Gomes, 2013), mais do que qualquer longa de Gomes,
escancara uma relação com o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, na
textura de algumas imagens em Super 8, nas lendas rurais, na vida do campo e nas Referências
imagens de Máscaras (1976), de Noémia Delgado, filme-irmão de Trás-os-Montes
(1976), de Reis e Cordeiro. Como o curta de 26 minutos é dividido em quatro histó-
rias de personagens de nacionalidades diferentes, algo como um dia imaginado do
bibliográficas
passado de quatro políticos (Pedro Passos Coelho, de Portugal; Silvio Berlusconi, da ARAÚJO, Nelson. Cinema Português – Interseções Estéticas nas Décadas de 60 a 80
Itália; Nicolas Sarkozy, da França; Angela Merkel, da Alemanha), a filiação se mostra do Século XX. Edições 70, 2016.
mais evidente na parte da criança portuguesa, que ocupa os primeiros minutos. AREAL, Leonor. Cinema Português – um País Imaginado (em dois volumes). Edições
Redenção é outro filme português que faz questão de se afirmar como também, 70, 2011.
ou principalmente, europeu. E é no cinema português, mais do que no de qualquer
outro país europeu, que se comenta ou celebra a União Europeia. COSTA, João Bénard da. Cinema Português – Anos Gulbenkian. Cinemateca Portu-
guesa, 2007.

COSTA, João Bénard da. Histórias do Cinema. Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
*** 1981.

GRILO, João Mário. O Cinema da Não Ilusão – Histórias para o Cinema Português.
Livros Horizonte, 2006.
O teor deste texto pode fazer parecer que são características únicas do ci-
nema português as que identifiquei em maior ou menor número nos filmes aqui RAMOS, Jorge Leitão. Dicionário do Cinema Português (1962-1988). Ed. Caminho, 1989.

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Right-Wing
Number of Terror
140 Incidents in Europe

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Fonte: www.opendemocracy.net

Porque o cinema e a sociedade são indissociáveis, é imperativo situar este ciclo


numa altura em que todo o mundo mudou em consequência de uma pandemia
global. E se os autores destes filmes são portugueses, este cinema comunica, no
seu todo, com os valores mais basilares que orientam a experiência humana. Numa

Uma crise
hora em que se fala sobre a ecologia dos recursos num planeta exausto, circunscre-
vemos esta abordagem a outro tipo de orientação ecológica, de equivalente ma-
nutenção da vida humana na Terra: a da preservação dos laços humanos. Em re-

pandêmica lance geral, ressalvamos entre este conjunto de títulos, como o cinema recente tem
enfatizado, directa ou indirectamente, certas faces da organização em sociedade.

e a ecologia
E contra um clima contaminado pela propagação do pânico, pelas imposições au-
toritárias dos Estados e pela privação das liberdades individuais, recordamos os
modelos de entreajuda e de deslocalização do poder que se tornaram relevantes

dos laços
na resposta social à crise pandémica. Assim, ao falar de ecologia das relações hu-
manas, colocamos a tónica na agência individual, em consciência e com o bem
colectivo em vista.

humanos 1. Ecologia relacional: os laços de vizinhança

Sabrina Marques
Apesar da medida domiciliar do confinamento obrigatório no estado de emer-
gência, a organização comunitária reforça os laços familiares e de vizinhança. De-
senhando modelos funcionais de cooperação, entreajuda e acção social, também

42 43
o activismo político se fortalece, especializando-se e localizando-se com precisão pai/filho. Assim, face ao desapare-
produtiva, à medida das necessidades específicas. cimento súbito pelo qual qualquer
um pode passar, meditamos sobre
Ramiro (Manuel Mozos, 2017) fala precisamente sobre os laços de vizinhança
os vestígios, o legado e a herança,
como alternativas funcionais, assim substituindo, nos desafios do quotidiano, a fa-
expondo a derradeira necessidade
mília de sangue.
da passagem de testemunho.
A acção de Vitalina Varela (2019) passa-
Num tão pessoal E Agora? Lem-
-se na Cova da Moura, bairro clandestino que, A Árvore (André Gil Mata, 2018)
bra-me (2013), Joaquim Pinto e Nuno
depois do ciclo das Fontainhas, tem sido ce-
Leonel constroem um filme-teste-
nário do cinema de Pedro Costa. Construído
munho, cru e sincero como uma meditação retrospectiva. Feito com os próprios
ilegalmente por imigrantes cabo-verdianos, o
meios, é também sobre a impossibilidade de fazer filmes que aqui se fala, num
bairro argumenta a necessidade evidente da
país onde os apoios são tão débeis que continuar na cultura se torna insustentá-
habitação e resiste quase em autossuficiên-
vel. Hoje dedicado à vida rural e debatendo-se com “o dinheiro que se calhar não
cia até hoje. É precisamente neste contexto
chega para o mês que vem”, o realizador Joaquim Pinto começa o filme recordan-
que esta casa por terminar, com um telhado
do a prévia desistência do cinema, motivada pela impossibilidade de viver do tra-
permanentemente por arranjar, se apresenta
balho na área. Manifestamente, este momento evoca de forma directa a crise na
como matéria da viuvez precoce de Vitalina.
cultura que o presente veio agudizar. Por consequência da imposição de medidas
Defronte dos escombros deste bairro, teste-
de confinamento, à precariedade dos trabalhadores das artes e dos espectáculos
munhamos como, definitivamente, um confi-
adicionou-se a desprotecção governamental pelo estado de excepção. Assim, se a
namento domiciliário não é igual a outro.
crise afecta todos os sectores profissionais, ataca primeiramente os trabalhadores
Em É na Terra, Não é na Lua (2011), Gon- pontuais e prestadores de serviços, por configuração, desprotegidos de quaisquer
çalo Tocha visita a remota ilha do Corvo, povo- vínculos laborais: os chamados “recibos-verdes”.
ação dos Açores em que todos os habitantes
se conhecem e não há fechaduras nas portas
porque não há roubos. Retratando cada tes-
2. Ecologia relacional: papéis sociais
temunho em discurso directo, esta viagem
afectiva rima directamente com o regresso às O confinamento imposto na sequência da crise sanitária veio evidenciar algu-
Vitalina Varela (Pedro Costa, 2019)
raízes descrito por Volta à Terra (2014), de João mas das mais latentes desigualdades de uma sociedade previamente agitada por
Pedro Plácido. Aqui, ouvimos do velho agricul- crises, na qual o sexismo (“Me Too”), o capitalismo de vigilância (Assange/Snow-
tor, curvado sobre a cadeira de pau enquanto corta batatas: “Dizem que Salazar den), a pobreza (“The 1%”) e o racismo (George Floyd) já ocupavam a discussão.
é fascista, mas o Salazar vai morrer e o fascismo vai ficar enraizado em Portugal
Criticar um sistema de desigualdades é almejar o seu nivelamento. Com uma
para toda a vida”. E estas palavras comunicam com um presente protagonizado
Mãe ao centro, o curta Ascensão (2016), de Pedro Peralta, releva a força de um
por figuras como Trump, Bolsonaro, Maduro, Le Pen e Orbán, em que assistimos,
feminino ancestral, narrando a resistência de uma aldeia concentrada no resgate
com receio, ao incremento populista da extrema direita no ocidente.
do corpo de um rapaz do interior de um poço. Acompanhando uma rainha que
Esta árvore do filme de André Gil Mata (A Árvore, 2018) é a da genealogia. O aprende a sê-lo, A Portuguesa (2019), de Rita Azevedo Gomes, descreve, em moldu-
encontro entre o velho e o jovem acontece como uma duplicação do eu: nasce ra heroica, um combate feminino pelo amor, enquanto o contraponto masculino se
da velhice um confronto ao espelho com o que se foi na infância. Essa mesma deixa enredar nos vícios da guerra.
transmissão está inscrita em A Vida Invisível (2013), de Vítor Gonçalves, que se de-
senvolve a partir da relação entre dois colegas de trabalho, com um decalque de

44 45
3. Ecologia relacional: poder colectivo No longa-metragem Colo (2017), de Teresa Villaverde, uma história de desin-
tegração familiar problematiza, com contornos hiper-realistas, as consequências
A contenção do vírus impôs regras variá-
humanas da crise financeira. A precariedade catalisa um afastamento entre os
veis de confinamento, traduzindo-se numa re-
membros desta família, e a figura do pai/marido estilhaça-se: à falta de emprego
configuração do espaço público. Ao distinguir
corresponde uma dissolução da autoimagem.
entre serviços de primeira necessidade e os
restantes, a hierarquização profissional pelo
contínuo excepcional do estado de emergên- 5. Ecologia relacional: análise pós-colonial
A Fábrica de Nada (Pedro Pinho, 2017)
cia engoliu, sem contemplações, um dos pila-
res-base da Constituição Portuguesa: o “Direi- No epicentro da crise, a ascensão populista do conservadorismo e o ressurgi-
to ao Trabalho” (Art. 58º). Agita-se, crescente, mento da extrema direita convocam, um pouco por todo o globo, a necessidade de
a onda de despedimentos e desemprego, en- combater os discursos de ódio dirigidos às minorias étnicas e raciais. Numa hora em
quanto os números de mortos e infectados que os Estados solidificam a sua soberania e, por controlo, fecham as fronteiras na-
crescem diariamente nos telejornais. cionais, mais do que nunca questões como o racismo e os fluxos migratórios actua-
lizam-se. Em Portugal, flagra o populismo conservador do deputado André Ventura
A contenção sanitária protagoniza as preocupações políticas e mediáticas, ali- (partido Chega), que atingiu o terceiro lugar nas mais recentes eleições presidenciais
mentando a hipérbole do pânico. Apresentado como uma ameaça à sobrevivência (em janeiro de 2021). Com um programa político fundamentalmente assente no pre-
humana, o vírus legitima a sucessiva naturalização de medidas excepcionais, reforça conceito, ataca indiscriminadamente ciganos, mulheres, migrantes e refugiados.
a autolegitimação do próprio Estado e estreita o perímetro de vigilância (do Estado
ao cidadão e do cidadão a seus pares). Assim se agudiza a passividade de cada in- Na liberdade do Super 8, Leonor Teles reflecte, em Balada de um Batráquio
divíduo: silenciados pelo medo, facilmente trocamos a liberdade por segurança. (2016), sobre o ódio endógeno à etnia cigana, que na sociedade portuguesa ainda
hoje se expressa pela colocação simbólica de
Descrevendo a ocupação e autogestão de uma fábrica pelos seus trabalha- sapos de loiça à entrada de casas e de lojas.
dores, A Fábrica de Nada (2017), de Pedro Pinho, celebra a possibilidade interventi- É também a partir de arquivos domésticos
va da acção directa. O caminho histórico da luta dos trabalhadores por melhores em Super 8 que mostram o verão nas praias
condições de trabalho é também convocado por Farpões, Baldios (2017), curta de portuguesas no início do século que Catarina
Marta Mateus sobre o fracasso, no Alentejo, das promessas da reforma agrária no Mourão constrói O Mar Enrola na Areia (2019).
período pós-revolucionário. Filmando nos Andes peruanos, Salomé Lamas constrói Aqui, ela descreve como, até no lazer balnear,
Eldorado XXI (2016) como uma denúncia das condições miseráveis dos milhares de
trabalhadores que, nas minas de La Rinconada, enfrentam as mais adversas con-
Colo (Teresa Villaverde, 2017)
dições na triste (e vã) procura de ouro.

O Mar Enrola na Areia (Catarina Mourão, 2019)


4. Ecologia relacional: organização do espaço público

Em meados de dezembro de 2020, Portugal iniciava o seu plano obrigatório de


vacinação contra a COVID-19, começando pelos grupos prioritários: lares de idosos,
profissionais de saúde, classe política e doentes cardiorrespiratórios.

Sinalizando os contactos, o isolamento profiláctico de cada cidadão é monito-


rizado pela polícia com visitas domiciliares. Estudam-se as consequências psicoló-
gicas catalisadas pela incerteza quanto ao fim do isolamento. Escalam os casos de
violência doméstica e as taxas de divórcio.

46 47
a época inscreve a sua estratificada pirâmide de classes: ‘‘Os pobres eram os bi- A presença europeia também
chos de estimação dos ricos’’. deixou marcas nos territórios africa-
nos, e hoje os ícones da cultura de
Também a partir de fontes de arquivo Super 8, o curta Redenção (2013), de
consumo agem à escala global. Assim,
Miguel Gomes, acompanha quatro personagens diferentes, em épocas distintas.
começamos de scooter o curta Nyo
Entre as narrativas fragmentadas, interpela-nos a voz off de uma criança retor-
Vweta Nafta (Ico Costa, 2017), acom-
nada à metrópole em 1975 e que, habituada aos privilégios coloniais nos territórios
panhando um pedido de casamento
ocupados, rejeita “Portugal e os miseráveis portugueses”: “Portugal é muito triste e
emoldurado por emblemas ocidentais Nyo Vweta Nafta (Ico Costa, 2017)
será sempre assim”. Apesar deste desencanto pós-tropical, o ecrã povoa-se com
de status: “Um telefone novo, Sam-
enérgicos rituais com máscaras que quase parecem misturar as celebrações tradi-
sung Galaxy, roupa de marca Dolce
cionais africanas aos ritos pagãos do imaginário transmontano português.
& Gabbana, Versace, um carro novo,
uma casa de pedra...”.

É também no exercício da mescla cultural que Eugène Green constrói o humo-


rístico curta Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (2018), ensaboando o mito se-
bastiânico do quinto império (de que o nacionalismo salazarista se serviu), com a
necessidade de receber com um slogan publicitário a Coca-Cola, primeira marca da
abertura portuguesa à globalização: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.

Hoje, a condição global expressa com evidência o seu problema: todos esta-
mos irremediavelmente interligados. Como veio demonstrar a crise pandémica, a
rede também é biológica.
Redenção (Miguel Gomes, 2013)

Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (Eugène Green, 2018)


A questão do idílio luso-tropical fora já abordada por Miguel Gomes em Tabu
(2012), cuja meticulosa construção em película a preto e branco influenciará decer-
to Ivo Ferreira, no seu Cartas da Guerra (de 2016). Em suma, são filmes que partem
da falsificação da memória pelo contínuo estado de desinformação para explicar
esse estado de fantasia que a guerra e a revolução viriam estilhaçar.

Efectivamente, esta falta de correspondência entre a realidade do país e sua


imagem imperial, alicerçada por 48 anos de propaganda, está perfeitamente plas-
mada em Fantasia Lusitana (2010), de João Canijo. Este impressionante documen-
tário construído a partir de imagens de arquivo revela como a qualidade demons-
trativa do salazarismo se inscreve no criterioso sentido de espectáculo público dos
restantes fascismos ocidentais.

48 49
6. Ecologia relacional: transmissão identitária tos, discriminando entre corpos
saudáveis e corpos doentes. Os
Se assistimos, por um lado, à aceleração abrupta da atomização individual, a um drones infestam os ares, ecoando
acréscimo da alienação e do isolamento e à consequente destruição do tecido social; mandamentos da Direcção-Geral
por outro, a crise na saúde mental amplia-se pelo globo em proporções equiparáveis da Saúde3. E nos smartphones, o
às da Segunda Guerra Mundial. “Estamos a chocar as pessoas até à obediência”1, evi- Governo português manda insta-
denciava a americana Naomi Klein em A Doutrina do Choque, explicando como a in- lar, à imagem da ditadura chine-
dução colectiva a um estado de infância nos torna mais inclinados a seguir líderes que sa, uma app obrigatória chamada O Corcunda (Gabriel Abrantes e Ben Rivers, 2016)
se propõem a proteger-nos. O perigo contínuo do estado de emergência cria, assim, StayAwayCovid, para monitorizar
“uma forma de separatismo já não negada mas antes exigida, um separatismo da so- a interacção entre os cidadãos. Não tardou a que a revista The Economist catego-
brevida e do medo, de certa forma um separatismo rasteiro, relegado para baixo, para rizasse Portugal como uma “democracia com falhas”.4
o confinamento imposto”2, como afirma o filósofo francês Frédéric Neyrat.

Antes lugar de construção colectiva e identidade cultural, hoje o espaço pú-


7. Ecologia relacional: protecção comum
blico é de circulação interdita e de apertada excepção securitária. Depois da con-
fiança do governo português nos seus números e de um relaxamento das medidas São vários os instrumentos da democracia que retrocedem face à impossibi-
restritivas no Natal de 2020, Portugal entrava em 2021 como o país do mundo com lidade de ajuntamentos, no contexto da emergência sanitária. Por implicarem a
mais mortes por COVID-19. Este desastre colocou a descoberto questões centrais reunião massiva, o direito ao protesto torna-se uma questão. As eleições também.
sobre a manutenção identitária: como é possível continuar a preservar os mecanis- Mas se, considerando o activismo, os movimentos cívicos tantas vezes se adiantam
mos intergeracionais de reprodução cultural? Como é que as camadas mais idosas à capacidade de resposta governamental, também expõem a incapacidade políti-
da população, em particular risco, preservaram as relações interpessoais quando ca da previsão: por mais que os surtos anteriores a previssem, o mundo não estava
estas passaram a estar fundamentalmente mediadas por aparelhos tecnológicos? preparado para uma pandemia à escala global.

O futuro incerto de Portugal via-se discutido no curta de Manoel de Oliveira, O Uma das poucas habitantes da Fordlândia sintetiza,
Velho do Restelo (2014). Aludindo ao martírio pela tradição protagonizado pelo icónico com lucidez, em Fordlândia Malaise (2019): “Foi um sonho
Velho do Restelo, da lírica camoniana, sentam-se juntos Dom Quixote, Camões, Teixei- mal planeado, não foi bem realizado, não foi bem-sucedi-
ra de Pascoaes e Camilo Castelo Branco, para ensaiar sobre o destino da ibéria inscri- do, pela ambição do próprio Homem. A Natureza reagiu e
to na sua mais clássica arte narrativa. Em comunicação com formas, é recorrendo a com tudo isso eles foram expulsos daqui, pela própria Na-
efeitos especiais que homenageiam as mais afectivas técnicas artesanais do cinema tureza”. Construída por Henry Ford em 1928, esta cidade
primitivo que, em O Estranho Caso de Angélica (2010), Manoel de Oliveira explora, com industrial procurava explorar a borracha necessária para
pinceladas sobrenaturais, o ideal romanesco do “amor para lá da morte”. os pneus para automóveis. No entanto, plantadas dema-
siadamente próximas umas das outras, por oposição às
Também actualizando um clássico, em O Corcunda (2016), Gabriel Abrantes e
naturalmente espaçadas na selva, as árvores sucumbiram
Ben Rivers bebem delírios de As Mil e Uma Noites e reconstroem a narrativa de Vic-
tor Hugo numa distopia sci-fi. Se aqui a empresa Dalaya.com força os seus empre- Fordlândia Malaise (Susana de Sousa Dias, 2019)

gados a participar em programas de reintegração emocional, decalcamos desta


imposição corporativa sobre os corpos um travo contemporâneo. Hoje, a imposi- 3. Direcção-Geral da Saúde (DGS): autoridade de saúde do governo português que funciona como um serviço do
Ministério da Saúde, embora tenha autonomia administrativa. Tem como função regulamentar, orientar e coor-
ção ordenadora orienta a participação em espaços sociais para evitar ajuntamen- denar as actividades de promoção da saúde e de prevenções de doenças, além das definições das condições
técnicas para adequada prestação de cuidados de saúde.
4. Pode ler-se na notícia da RTP (3 fev. 2021): “Portugal desceu de categoria no Índice de Democracia elaborado
anualmente pela revista The Economist, deixando de ser um ‘país totalmente democrático’ para regressar à ca-
1. Naomi Klein, em A Doutrina do Choque (Smartbook, 2009). tegoria de ‘democracia com falhas’, um recuo impulsionado pelas medidas restritivas impostas pela pandemia”.
2. No artigo “Vírus e separação’’, 2020, de Frédéric Neyrat, traduzido para português no site situ.media: Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/the-economist-portugal-perde-categoria-de-pais-totalmen-
https://situ.media/2020/05/25/frederic-neyrat-virus-e-separacao/. te-democratico_n1294588.

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às pragas agrícolas e hoje Fordlândia subsiste nos seus edifícios em esqueleto. Tam-
bém Understory (2019), de Margarida Cardoso, se dedica a reflectir sobre as poten-
cialidades do território amazónico e a sua domesticação pela presença humana.

Avançando para a floresta como para dentro dum território pleno e sem coor-
denadas de nacionalidade, O Ornitólogo (2016), de João Pedro Rodrigues, critica o
delírio das religiões “do livro”, enfatizando a observação directa da Natureza como
a via verdadeira da experiência.

À mercê dos sucessivos prolongamentos do isolamento por decreto governa-


mental, o futuro é incerto. Emergiremos desta crise mais próximos da Natureza?
Sairá o individualismo reforçado, catalisando a violência competitiva e abrindo es-
paço a novos déspotas? Ou reforçaremos comunalmente a confiança na organiza-
ção local, capaz de contornar as insuficiências do capitalismo decadente?

Hoje, pelas ruas da capital, ecoam


as sirenes da polícia, das ambulâncias
e dos bombeiros. A rua hiperpoliciada
– esse espaço público tornado interdi-
to – povoa-se de grafitti onde se podem
ler: ‘‘COVID 1984’’, ‘‘Desliga a TV’’, ‘‘Stay
Home’’, ‘‘Stay Negative’’, etc.

Enquanto isso, nos ecrãs sempre li-


O Ornitólogo (João Pedro Rodrigues, 2016)
gados, é o audiovisual que sai reforça-
do enquanto instrumento de reflexão e de companhia. Abre-se da circunstância
o espaço-tempo para, com mais urgência do que nunca, examinar a realidade
através dos filmes.

52 53
DE
PORTUGAL Sem desprezar as particularidades de cada projeto de cinema e o estilo individual
PARA
O de cada diretor, podemos dizer que os filmes apresentados nesta mostra – basica-
MUNDO mente, a nata daquela que, olhada em conjunto, constitui a melhor cinematografia
das últimas duas décadas – partilham uma característica em comum: uma tempo-
ralidade e uma mise-en-scène decantadas à baixa temperatura, conduzidas por
um ritmo que, em comparação com o diapasão dominante na cultura audiovisual
contemporânea, soa mais lento, mais meditado e (nenhuma contradição) mais in-
tenso que o que se verifica na produção corrente1.

A intensidade, no caso do cinema português, não provém de uma aceleração


da narrativa, da duração e da montagem, mas, contrariamente, da solicitação de
um olhar detido sobre imagens cuja densidade plástica requer, acima de tudo, con-
centração, atenção aos detalhes. Com frequência, a despeito de sua postura as-
cética, de sua discreta sobriedade, os filmes portugueses manifestam um excesso,
uma sobra, não tanto no sentido de uma sobrecarga de informações visuais (em-
bora haja momentos disso) ou de uma pletora de efeitos decorativos: trata-se, an-
tes, da lógica do excesso como um resto, como alguma coisa que não se quis deixar
absorver pela linguagem do cinema. Assim, elementos derivados de outra substân-
cia estética e semiótica – da pintura, da literatura, do teatro – parecem se depo-

O efeito pintura,
sitar sobre a tela sem o menor esforço de adaptação, sem buscar vazão “natural”
dentro da representação fílmica. Os diálogos com métrica e léxico apropriados da

ou O museu
literatura, a composição plástica de inspiração pictórica, a cenografia, a imposta-
ção de voz e a movimentação cênica tipicamente teatrais, enfim, essas formas de
expressão heterogêneas são acolhidas – às vezes, todas ao mesmo tempo – nos

imaginário do
filmes de Rita Azevedo Gomes, de Teresa Villaverde ou de Manoel de Oliveira.

A composição luminosa de um plano do cinema português quase nunca é sim-

cinema português
ples. As cores, por sua vez, são pensadas e dispostas criteriosamente, como fru-
to de pesquisa, de trabalho formal, de busca criativa. As frases ditas pelas perso-
nagens raramente são triviais, amiúde remetendo a fontes literárias de séculos já
distantes. A mise-en-scène – e eis um cinema que, em pleno século XXI, não tem
medo da mise-en-scène – dificilmente se prende aos expedientes sistematizados

Luiz Carlos pela decupagem clássica (é um desafio tentar achar um campo/contracampo em


algum desses filmes – e quando há, posso garantir que não é uma simples alternân-

Oliveira Jr. cia entre interlocutores entretidos numa conversa; algo a mais se passa nas fendas
de separação/ligação entre os olhares, as falas, os silêncios e os cortes). Há nesses

1. Antes que minha argumentação sofra o risco da generalização leviana, adianto que essas considerações sobre o
tempo lento e meditado do cinema português se atêm ao recorte proposto pela presente mostra. É evidente que
o cinema português contemporâneo, além de Pedro Costa, Rita Azevedo Gomes, Teresa Villaverde, Manuel Mozos,
Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, etc., possui também outras vertentes, a exemplo da extravagância queer-
-futurista de Diamantino (Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, 2018), que se coloca em registro diverso e, em certa
medida, inverso ao dos filmes que aqui comentarei.

54 55
filmes, em suma, o que podemos chamar – na falta de expressão melhor – de uma ma – a importância da figura mais central do cinema português: Manoel de Olivei-
erudição estética, que passa, é claro, por uma cultura propriamente cinematográfi- ra. Desde cedo, Oliveira indicou o caminho de um cinema que seria eternamente
ca, por um conhecimento evidente tanto dos estilos de iluminação e encenação do tensionado pelas artes precedentes, sem temer a estilização, o distanciamento
cinema clássico quanto de alguns radicalismos estéticos do cinema moderno, que implicado por uma encenação posada e teatral, a insistência em composições
os portugueses parecem admirar menos no registro da colagem vanguardista do hieráticas, que se assemelham a pinturas temporalizadas, o estranhamento que
Godard dos anos 1960 do que na chave austera de Bresson, Duras e Straub/Huillet. a palavra falada causa ao ser encarada como uma coisa concreta que, saída da
boca das personagens, projeta-se no espaço tridimensional da cena, podendo ser
Mas tal erudição inclui também um saber iconológico que se remonta à história
visualizada e filmada de diferentes ângulos e pontos de vista. Esse caminho não
da pintura em toda sua extensão. O cinema português contemporâneo é atraves-
forneceu ao cinema autoral português uma receita ou – o que seria ainda pior –
sado por um efeito pintura. Não se trata meramente de mobilizar a pintura como
uma “tradição de qualidade”. Ele apenas lhe conferiu sua inscrição noemática:
referência culta, como reserva patrimonial de figuras icônicas que podem ser re-
justamente por não pertencer à narrativa da história da arte senão como coadju-
tomadas e reelaboradas. Trata-se, antes de tudo, de se aproximar da pintura, a
vante, Portugal se tornaria o lugar privilegiado para investigá-la – não através da
um só tempo, como um tipo rigoroso de sensibilidade plástica e como um passado
glosa historiográfica, mas reencenando a pintura através dessa mídia moderna,
histórico inesgotável, fonte incontornável de conhecimento e inspiração. Em quase
o cinema, que ao mesmo tempo a recoloca na rota do presente e a desloca para
todos esses filmes, há uma espécie de desvio pela pintura, como se não houves-
outro paradigma. Isso, sem dúvida, o cinema português deve a Oliveira, cujo papel
se outra escolha, ou melhor, como se qualquer outra escolha fosse redundar num
precursor e decisivo, portanto, prova-se incontestável.
cinema sem fardo histórico, algo que parece pecaminoso aos olhos dos cineastas
dessa geração tardia, assombrada por um passado político, social e artístico que, Por outro lado, parece-me ainda mais importante destacar a função formado-
em vez de negligenciado ou conjurado, é inscrito no centro da imagem, doravante ra desempenhada pela Cinemateca Portuguesa e pelas propostas de programa-
convertida em repositório de camadas acumuladas de tempo e reflexão. ção e discussão promovidas por sua autoridade intelectual máxima, o já falecido
crítico e ensaísta João Bénard da Costa, que, enquanto dirigiu a instituição, impri-
Essa densidade pictural das imagens do cinema português não possui equi-
miu-lhe uma filosofia que passava por, entre outras coisas, situar o cinema numa
valente em qualquer outra parte da produção cinematográfica atual. À primeira
história artística que extrapolava o contexto das especificidades fílmicas e trazia
vista, a constatação causa espécie: Portugal, afinal, está longe de ter uma tradição
para o centro dos debates a complexa trama em que o cinema se inseriu ao longo
pictórica equiparável à de outros países europeus (Itália, Espanha, Holanda, Fran-
de sua história, sempre no entrecruzamento de múltiplas séries culturais e práticas
ça, Alemanha, Inglaterra), e tampouco dispõe, em seus museus, de coleções que
significantes. Criou-se em torno da cinemateca, então, uma verdadeira escola do
possam ser qualificadas de magnânimas, ou que sequer façam das principais ci-
olhar, um lugar de formação e aprendizado estético que abolia a separação entre
dades portuguesas passagens obrigatórias para os interessados em pintura. As pi-
história do cinema e história da arte.
nacotecas do Museu Nacional de Arte Antiga e da Fundação Calouste Gulbenkian,
sem dúvida, são respeitáveis, mas infinitamente mais modestas se confrontadas Em 2005, por exemplo, a Cinemateca Portuguesa realizou um ciclo intitulado
com os acervos do Prado, do Louvre, do Hermitage, da National Gallery de Londres, Cinema e Pintura, com a produção de um volumoso catálogo de 337 páginas or-
dos inúmeros museus da Itália e dos Estados Unidos, etc. Uma vez em Lisboa, é nas ganizado por João Bénard da Costa e Jean Louis Schefer, contendo textos não só
igrejas barrocas, nos belíssimos azulejos e nas ruínas do Convento do Carmo que os deles próprios, mas também de Dominique Païni, de Eric de Kuyper e de historia-
historiadores da arte concentram suas prioridades. dores da arte como Jean-Claude Lebensztejn e Stephen Bann. Além da qualidade
dos ensaios escritos, sobressai no catálogo uma exuberante pesquisa iconográfica,
De onde pode vir, então, essa cultura estética que caracteriza os cineastas
com centenas de ilustrações (435, no total) que justapõem fotogramas de filmes
portugueses, e que parece enraizada em um gosto pelo passado e, em especial,
a reproduções de pinturas de diferentes épocas e estilos. As páginas promovem
pelo passado da pintura?
os mais insuspeitos raccords, suscitando iluminados diálogos visuais entre gestos,
Por um lado, é indispensável que consideremos – sem querer, com isso, reduzir composições, formas, cores, signos plásticos. Os planos dos filmes selecionados
tudo à velha questão das influências e das linhas de sucessão, que costuma nos para o ciclo se conectam com um ícone medieval aqui, com o pormenor de um
afastar de uma compreensão mais aprofundada da história dos estilos no cine- quadro renascentista acolá, com uma tela expressionista mais adiante, abrindo no-

56 57
vas perspectivas sobre o cinema e sua inclusão na história das imagens. O trabalho que as imagens podem ocasionalmente ganhar no cinema de Rita Azevedo Gomes
comparativo é minucioso e, sob nenhum aspecto, estaciona nos lugares-comuns ou de Manoel de Oliveira. As referências plásticas de O Ornitólogo surgem num con-
do cotejo cinema/pintura. Lendo os créditos do catálogo, descubro que a direção texto mais sensualista e irreverente, às vezes beirando a profanação iconoclasta
artística coube a Rita Azevedo Gomes. do próprio repertório erudito do diretor. O protagonista do filme, numa hagiografia
nada ortodoxa, transmuta-se sucessivamente nas figuras de diferentes santos do
Ora, basta assistir aos filmes da cineasta para tudo fazer sentido. Ninguém re-
catolicismo (São Sebastião, Santo António de Pádua), sempre com a pintura como
presenta melhor que ela o efeito pintura ao qual venho me referindo. Em A Portu-
bússola representativa, a guiar o filme na sua trajetória errante, feita de explora-
guesa (2018), por exemplo, é praticamente impossível encontrar um plano que não
ções cegas de um mundo aparentemente indecifrável, mas que, pouco a pouco,
pareça aludir a alguma obra pictórica: paralelamente a um enredo calcado mais
mostra-se como um grande texto a ser descoberto por trás da superfície fenomê-
em esperas e estases do que em intrigas romanescas, o filme constrói um segundo
nica dos seres e das coisas. O mundo visível contém, na forma do signo à espera
enredo, plástico-figurativo, que é narrado através de uma miríade de referências
da leitura ou da decifração, as “verdades” que levarão o protagonista – a princípio
– de Vermeer aos pré-rafaelitas, passando pelo Renascimento italiano e pela arte
concernido com a observação, descrição e classificação da natureza, mais especi-
pompier (aqui revisitada quase como um comentário reflexivo sobre o papel que
ficamente dos pássaros selvagens – ao êxtase místico e à metamorfose final. Cada
ela desempenhou como fonte dos principais clichês estilísticos do cinema de épo-
sequência é como uma rapsódia sensorial que culmina na cristalização de uma
ca, desde o pioneiro Cabiria, realizado por Giovanni Pastrone em 1914, até o peplum
figura com lastro na tradição iconográfica do cristianismo. O episódio bíblico de
dos anos 1950/60 e as megaproduções de temática épico-bíblica atuais).
Pentecostes, evocado em epígrafe, ressurge na pomba branca que representa o
Na verdade, para além do impulso citacional, a pictorialidade do cinema de Espírito Santo e nas situações de heteroglossia que se manifestam no terço final
Rita Azevedo Gomes reside, sobretudo, na maneira de conceber o plano como lu- do filme. A imagem de São Sebastião amarrado ao tronco de uma árvore, motivo
gar de investimento estético total. Se a pintura tem de recobrir com igual empenho predileto dos pintores do Renascimento quando eles queriam exibir sua maestria
toda a superfície da tela, o cinema fará igual, como se sua imagem não contasse no nu masculino, reaparece em O Ornitólogo para reafirmar tanto o desejo erótico
mais com o automatismo fotográfico da câmera, devendo tratar cada centímetro que os pintores (Botticelli, Andrea Mantegna, Antonello da Messina) sempre inves-
do quadro não como uma realidade a registrar, mas como um espaço plástico a tiram nessa cena quanto as percepções homossexuais que, passadas em silêncio
construir. Os planos de A Portuguesa nos convidam a deter o olhar sobre cada pon- na época de produção dos quadros, afloraram nas análises de correntes recentes
to da imagem, das figuras em primeiro plano ao que se estabelece na profundida- da história da arte, que desrecalcaram o homoerotismo latente na anatomia mus-
de de campo – e nesse filme, assim como em A Vingança de uma Mulher (2012), a culosa desses inúmeros santos strippers da pintura renascentista. Em determinado
diretora propicia os melhores momentos de mise-en-scène em plano-sequência e momento, um crânio humano é encontrado no meio do mato: a câmera o isola por
profundidade de campo que se puderam ver na década passada. Por uma espécie alguns segundos, o suficiente para fabricar uma natureza morta, organizada em
de hiper-realismo de alta definição, o fundo da imagem ganha relevo e textura sa- torno da presença central do símbolo mor da pintura de vanitas.
lientes: os muros de pedra recobertos por musgo, as rachaduras na parede, as do-
É com essa mesma “naturalidade” que, a partir de dois corpos adolescentes
bras e reentrâncias dos tecidos, os veios das madeiras do cenário – tudo ressai na
entrelaçados na cama, com a menina emprestando seu braço esquerdo como po-
imagem com uma materialidade visível que chega a ser excessiva. A proliferação
leiro para um passarinho, Teresa Villaverde insere no fluxo cotidiano de um dra-
de pormenores “insignificantes” nos leva a apreender todo e qualquer elemento
ma familiar a recriação simultânea de duas pinturas de Courbet, Le Sommeil e La
em quadro como alvo de atenção e mesmo de deleite visual. Sobre essa profusão
Femme au Perroquet, ambas de 1866. Se a premissa de Rossellini era a de que “as
de detalhes hiper-realistas, a dramaturgia se desenvolve entre momentos natura-
coisas estão aí” e não há por que manipulá-las, a do cinema português consiste em
listas e passagens francamente anti-ilusionistas e artificiais, fazendo da fruição do
afirmar que “a pintura está aí, para que negá-la?”.
filme uma permanente aventura estética.
Nem tudo, evidentemente, se resume a uma cultura gestada nos museus e nas
É claro que a forma como a pintura aparece no cinema português contempo-
salas da Cinemateca Portuguesa. Posso, inclusive, estar cedendo à pura mistifica-
râneo não é sempre a mesma, variando enormemente de um cineasta para outro.
ção. Mas, ao assistir a um filme como Ramiro (2017) – com suas cenas noturnas de
Em O Ornitólogo (2016), de João Pedro Rodrigues, não veremos nada da solenidade
interior à meia-luz, suas personagens embebidas numa atmosfera ao mesmo tem-

58 59
po maciça e pulverizada, como se o espaço óptico estivesse no limbo entre uma
presença indelével e uma desaparição em curso –, imagino seu diretor, Manuel Mo-
zos, passando a tarde na Cinemateca, acompanhando um ciclo de Jacques Tour-
neur ou de Jean-Claude Biette, e depois visitando o Museu Calouste Gulbenkian,
onde se detém prolongadamente diante do quadro A Leitura (1870), de Henri Fan-
tin-Latour, e toma nota da distribuição desigual da luz pelo ambiente, do misto de
lassidão e inquietação da jovem mulher que encara o observador de frente, da
maneira como o chale vermelho e o enfeite azul de cabelo perturbam a paleta pre-
dominantemente em preto, marrom e cinza. Consigo entrever também Pedro Costa
estudando obsessivamente o esquema luminoso da pintura tenebrista de Carava-
ggio, em seguida folheando um catálogo de Géricault e esboçando numa folha de
papel os traços definidores do jogo postural e fisionômico dos retratos realizados
pelo pintor francês, sobretudo aqueles dedicados a modelos negros e às mulheres
internadas nas instituições psiquiátricas que visitou e observou assiduamente.

Repito: pode ser tudo uma grande fábula genealógica, ou uma especulação
tentadora sobre as origens desse manancial cinéfilo/pictórico tão flagrante no ci-
nema português contemporâneo. Mas os indícios estão aí, por que ignorá-los?

Portugal, como se gosta de falar por aqui em tom jocoso, fica quase na Europa.
Mas, por enquanto, é no cinema português que o passado pictórico do Velho Conti-
nente encontra sua mais eloquente câmara de eco no século XXI.

60 61
1. Introdução
DE
PORTUGAL Uma rápida pesquisa nos sites de duas das maiores livrarias portuguesas, a Fnac.pt
PARA
O e a editora Bertrand, indicaria o significado das narrativas epistolares na cultura lu-
MUNDO sófona contemporânea. Mais do que apenas a edição usual de clássicos epistolares,
estes varejistas de livros oferecem um número considerável de compilações de textos
que foram inicialmente concebidos como trocas íntimas. Duas tendências principais
podem ser percebidas aqui. Uma é a publicação de cartas e outras comunicações
pessoais de diferentes escritores, como Fernando Pessoa, António Lobo Antunes e
Sophia de Mello Breyner Andresen. Essas publicações podem ser entendidas como
fonte de material para estudos acadêmicos, mas também como um complemento
à obra já disponível de tais autores. A outra tendência consiste na compilação de
correspondência escrita por integrantes do exército destacados em diferentes fren-
tes do que, em Portugal, é comumente chamada de “Guerra Colonial”. Como outros
exemplos deste subgênero epistolar, esses livros refletem narrativas de testemunhos
que complementam aqueles encontrados na ficção literária ambientada no período
colonial e pós-colonial português (RIBEIRO, 2004, p. 256).

O cinema português contemporâneo reflete esse interesse pelas cartas e suas

Adaptação,
narrativas episódicas e subjetivas. Longas-metragens como Correspondências
(Rita Azevedo Gomes) e Cartas da Guerra (Ivo M. Ferreira), ambos produzidos em

alegoria e arquivo:
2016, podem ser entendidos como adaptações de narrativas epistolares. O filme
de Azevedo Gomes é estruturado em torno de cartas trocadas entre os escrito-
res portugueses Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena entre 1959 e

contextualizando
1978, textos que foram publicados posteriormente em 2006. Cartas da Guerra, de
maneira semelhante, adapta, parcialmente, para o cinema o livro homônimo de
António Lobo Antunes (publicado em 2005), composto pela correspondência ínti-

narrativas
ma enviada pelo escritor à sua esposa, Maria José Xavier da Fonseca e Costa, no
início dos anos 1970, ao servir no exército destacado em Angola durante a Guerra
Colonial. Este interesse dos cineastas portugueses pelo material epistolar transcen-

epistolares no de a adaptação cinematográfica de obras publicadas. Os documentários experi-


mentais dirigidos por Aya Koretzky, por exemplo, refletem uma abordagem ensa-

cinema português
ística do formato epistolar por meio de uma justaposição de material proveniente
do arquivo pessoal do cineasta e o uso de narração voice-over. Da mesma forma,
Miguel Gomes utiliza dispositivos estilísticos semelhantes em seu curta-metragem

contemporâneo
Redemption1 (Redenção, 2013), uma obra estruturada em torno de cartas ficcionais
lidas em voice-over e ilustrada com imagens provenientes de diferentes arquivos.

Provisoriamente, estes filmes portugueses recentes podem ser entendidos tan-

Nuno Barradas Jorge1


to como adaptações de material epistolar quanto trabalhos colocados em cate-
gorias como o documentário experimental ou o filme-ensaio. Exemplos da primeira

Tradução: Ana Carolina Brito Brandão 1. N.T.: Os títulos não traduzidos pelo autor foram mantidos como no texto original.

62 63
circunstância comumente transcodificam as convenções da narrativa episódica o formato audiovisual, tais interstícios textuais também vêm a depender da pre-
do romance epistolar em enredos que transmitem narrativas fílmicas lineares. É o sença autoral do cineasta e do público cinematográfico, que tentam dar sentido
caso, por exemplo, de inúmeras adaptações para a tela de Dangerous Liaisons, de ao contexto pessoal e à materialidade histórica implícita no texto. Nesse sentido, o
Pierre Choderlos de Laclos (Les Liaisons Dangereuses), publicado inicialmente em dispositivo epistolar passa a negociar com uma expressão emocional, inicialmente
1782 (HUTCHEON, 2013, p. 40). O filme experimental, ao contrário, se apropria das confiada ao domínio do pessoal, mas que, inevitavelmente, também reflete uma
convenções encontradas na correspondência escrita – tanto a privada quanto a intertextualidade em camadas.
encontrada no formato de romance epistolar – para estruturar narrativas em pri-
Este artigo oferece uma contextualização do uso do dispositivo epistolar no ci-
meira pessoa. Este dispositivo epistolar pode ser encontrado nas obras seminais
nema português contemporâneo, discutindo estratégias estilísticas e narrativas que
dirigidas por Chris Marker, como Lettre de Sibérie (1957) e Sans Soleil (1983), e em
traduzem e remediam as qualidades textuais e intertextuais das cartas. A seguir, dis-
News from Home, de Chantal Akerman (1977), entre outros. Tropos cinematográfi-
cuto um conjunto de filmes que usam o dispositivo epistolar, organizados em três gru-
cos observados nesses diferentes filmes, como o uso de narração em voice-over
pos temáticos possíveis. O primeiro diz respeito à utilização de material de arquivo,
e justaposição de (ou alternância entre) estilos de ficção e documentário, simu-
com especial enfoque no uso da voz epistolar e na remediação do arquivo pessoal,
lam uma “voz ensaística” em primeira pessoa, criando um modo de tratamento
conforme observado na obra de Aya Koretzky. O segundo grupo temático diz res-
definido entre o subjetivo e o factual (CORRIGAN, 2011, p. 51; NAFICY, 2001, pp. 101-
peito ao uso de cartas e uma forma de adaptação cinematográfica. Filmes como
103; RASCAROLI, 2009, p. 49). Mais do que apenas confinado a formações históri-
Correspondências e Conversa Acabada (João Botelho, 1981) empregam, embora de
cas passadas, esse modo de tratamento tem estado constantemente presente nos
maneiras diferentes, mecanismos estilísticos do formato de carta através das poé-
circuitos de cinematecas e galerias de arte. Exemplos recentes de tal abordagem
ticas das imagens e da utilização de voice-over. Aprofundo a investigação dessas
podem ser observados em obras como A Letter to Uncle Boonmee (Apichatpong
características ao discutir, por fim, filmes que empregam material epistolar para ofe-
Weerasethakul, 2009) e as obras em vídeo digital que integram a série Correspon-
recer analogia entre fatos históricos e histórias pessoais, como exemplificados em
dencias (Víctor Erice e Abbas Kiarostami, 2005-2007) e Todas las Cartas (2009-2011),
Redemption, Cartas da Guerra e, mais amplamente, na obra de Pedro Costa. Mais do
dirigido por diferentes cineastas internacionais sob encomenda do Centro de Cul-
que fornecer uma taxonomia possível, meu objetivo geral aqui é contextualizar as ca-
tura Contemporânea de Barcelona.
racterísticas-chave de uma expressão fílmica heterogênea que reflete, mas também
Os filmes portugueses listados acima podem ser colocados dentro dessas duas questiona, possíveis nuances do potencial narrativo do formato epistolar.
tendências estilísticas amplas. No entanto, essas obras e suas diferentes aborda-
gens estilísticas e narrativas refletem uma heterogeneidade que complica tal leitura.
Mais do que apenas refletir tradições históricas do cinema ou tendências contem- 2. Transmidialidade e arquivo pessoal
porâneas, esses filmes também levantam preocupações teóricas sobre os modos
Uma das principais tendências no cinema português contemporâneo, como
de tratamento ambíguos e multifacetados encontrados tanto na literatura episto-
Horacio Muñoz Fernández e Iván Villarmea Álvarez argumentam, é o surgimento
lar quanto em missivas provenientes de arquivos pessoais. Eles espelham, embo-
de um grupo de obras cinematográficas que se apropriam de material de arquivo
ra de forma diferente, uma preocupação com o emprego de formatos narrativos
(2015, p. 42). Exemplos dessa preocupação com a revisão de arquivo podem ser
que transcendem as fronteiras entre ficção e documentário, uma exploração das
encontrados em documentários que centram a atenção em material de arquivo
possibilidades multifacetadas do arquivo pessoal como fonte narrativa e temática
relacionado com o Estado Novo, a ditadura de extrema direita portuguesa abran-
e, além disso, questionam as limitações impostas pelos gêneros cinematográficos
gendo o período de 1933 a 1974. Entre os exemplos apontados por Fernández e
(FERNÁNDEZ; ÁLVAREZ, 2015, p. 40). O uso de epístolas nesses filmes (adaptadas,
Álvarez estão Fantasia Lusitana (João Canijo, 2010), que utiliza cinejornais de pro-
remediadas ou, como no caso do curta-metragem de Gomes, fabricadas) revela
paganda, e obras da documentarista Susana de Sousa Dias – nomeadamente
a natureza complexa de um intercâmbio dialógico entre o escritor e o destinatá-
Natureza Morta (2005) e 48 (2009) –, a primeira composta por filmes de propagan-
rio. Como Hamid Naficy nos lembra, “abordar alguém em uma epístola cria uma
da e found footage, a última composta exclusivamente por fotografias policiais
ilusão de presença que transforma o destinatário de uma figura ausente em uma
de presos políticos tiradas durante aquele período. Podemos adicionar a esta lista
presença implícita nos ‘interstícios do texto’” (2001, p. 103). Ao transpor cartas para
outros documentários que, da mesma forma, revisam o arquivo, combinando-o

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com filmagens e entrevistas contemporâneas. É o caso de Processo-Crime 141/53, Filha de pai japonês e mãe belga, Koretzky nasceu no Japão, onde morou até
de Sousa Dias (2000), e, em outro formato, A Toca do Lobo, de Catarina Mourão os nove anos. A posição política e ecológica de seus pais os motivou a se mudar, no
(2015). O último documentário se baseia tanto em material de arquivo pessoal início de 1990, para uma área rural perto da cidade de Coimbra, no centro de Por-
quanto público para rastrear a biografia do avô de Mourão, o escritor português tugal. Yama No Anata, em particular, documenta a mudança abrupta vivenciada
Tomaz de Figueiredo, e o ambiente político restritivo do Estado Novo, dirigido por pela família e, mais notadamente, a adaptação cultural e emocional da cineasta a
António de Oliveira Salazar. um novo país. Koretzky fornece o contexto dessas mudanças pessoais:

Outros documentários contemporâneos que, da mesma forma, contam com


uma combinação de material de arquivo e filmagens contemporâneas centram Meu primeiro filme, Yama No Anata, relembra essa transição por
meio de cartas que escrevi para amigos e familiares no Japão. Era
sua atenção especificamente em documentos epistolares. É o caso de Cartas a
1992, antes do e-mail e do Skype. Nossa casa em Portugal inicial-
uma Ditadura, de Inês de Medeiros (2006), e de Cartas de Angola, de Dulce Fernan- mente não tinha eletricidade ou linha telefônica, então me senti
des (2011). Ambos os documentários usam cartas e outros documentos pessoais muito distante do Japão e perdi muitos amigos. Mas a nossa nova
vida em Portugal foi uma grande aventura também – renovamos
para ilustrar os contextos históricos particulares de tais materiais. O documentário uma casa do século XVII que não tinha telhado. (VOELCKER, 2019)
de Medeiros oferece um estudo da política de gênero durante o regime ditatorial,
conforme o ilustrado em cartas escritas no final dos anos 1950 por mulheres que
expressavam seu apoio a Salazar. O documentário de Fernandes parte das cartas Como em alguns dos exemplos anteriormente citados, o filme se alterna entre
enviadas por voluntários cubanos que lutaram na guerra civil angolana a suas famí- o formato de entrevista e a leitura de cartas trocadas entre a cineasta e amigos e
lias do outro lado do Atlântico, para refletir sobre a própria identidade pós-colonial conhecidos japoneses. Na trilha sonora do filme, predominantemente não diegética,
da cineasta – uma portuguesa nascida em Angola às vésperas da independência ouvimos Koretzky questionar seus pais sobre a decisão de se mudar para a casa de
do país, em 1975. Medeiros e Fernandes contam também com entrevistas com al- fazenda abandonada na zona rural de Portugal e sobre suas lembranças do Japão.
gumas das pessoas envolvidas nas trocas epistolares apresentadas nos seus do- Os pais da cineasta narram, em voice-over, os motivos da mudança e a difícil adap-
cumentários. Essas entrevistas fornecem uma compreensão mais aprofundada de tação ao Portugal rural. Esses relatos são complementados pela leitura de cartas
suas possíveis narrativas factuais e discursivas, bem como dos diferentes contextos recebidas e enviadas pela cineasta numa correspondência com seu amigo japonês
em que foram escritas. Como Processo-Crime 141/53 e A Toca do Lobo, estes dois Kazumasa e com sua ex-professora. As cartas do Japão interrogam uma jovem Ko-
documentários transmitem uma ligação coerente entre o factual e o subjetivo, co- retzky sobre a sua adaptação a Portugal, ao mesmo tempo que reportam as mudan-
locando lado a lado o arquivo e as memórias pessoais. ças ocorridas durante a sua ausência. As cartas enviadas pela cineasta, da mesma
forma, descrevem a Kazumasa aqueles cenários novos e pouco familiares.
A obra de Aya Koretzky veicula um diálogo semelhante entre o arquivo e me-
mória, embora levando a natureza autorreflexiva vista em A Toca do Lobo e Cartas Inicialmente, o uso deste dispositivo epistolar permite que o público monte
de Angola muito mais longe. Os filmes de Koretzky Yama No Anata – Para Além das apenas remotamente uma narrativa – algo que é intrínseco à natureza episódica
Montanhas (2011) e A Volta ao Mundo Quando Tinhas 30 Anos (2018) mapeiam es- de tais documentos. Funcionando como uma forma de negociação à distância,
pécies de biografia pessoal, tanto dela quanto de seus pais, por meio de artefatos essa correspondência escrita sustenta uma narrativa que é principalmente con-
coletados de arquivos pessoais: cartas e diários, fotos e slides de 35mm e vídeos textual, contando com os arredores contrastantes em que as duas interlocutoras
caseiros. Como o A Toca do Lobo, os filmes de Koretzky exemplificam uma aborda- estão localizadas. Perto do final do filme, no entanto, o enredo que emerge dessas
gem recente do arquivo, que mobiliza “objetos materiais ou textuais com os quais trocas mostra um desenvolvimento conclusivo. Koretzky lê uma carta comovente
o cineasta tem alguma conexão pessoal” para estruturar obras que “seguem não enviada pelos pais de Kazumasa, informando-a de sua morte trágica, aos 13 anos,
a trajetória definida de uma jornada, mas sim movimentos experimentais de uma devido a um acidente de bicicleta. Esse final abrupto da narrativa criada pela
exploração” (BARON, 2007, p. 14). No entanto, o tom factual, autorreflexivo e confes- correspondência epistolar entre a cineasta e seu amigo íntimo é complementada
sional das obras de Koretzky dificulta sua natureza documentária, aproximando-as por outra carta do Japão, desta vez do tio de Koretzky para seu pai, dando notí-
de um experimentalismo comumente observado no filme-ensaio. cias da morte de sua mãe.

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Yama No Anata é exemplar em trazer à tona a natureza transmidiática do 3. Adaptando trocas epistolares
dispositivo epistolar no cinema. Koretzky usa diferentes mídias para apoiar as
Essa relação entre diferentes mídias também se manifesta em outras obras por-
técnicas visuais e usa as composições narrativas para dar materialidade, por
tuguesas que visam traduzir para a linguagem cinematográfica narrativas epistola-
um lado, à troca de cartas com Kazumasa e, por outro, à narrativa fornecida
res e cartas particulares trocadas entre escritores portugueses. Conversa Acabada
por seus pais. No caso da primeira, Koretzky ilustra suas leituras em voice-over
(1981), de João Botelho, recria momentos-chave da vida de dois dos mais significa-
das trocas epistolares entre ela e seu amigo com filmagens contemporâneas
tivos autores do modernismo português, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa,
gravadas pela cineasta. Muitas vezes, a leitura de cartas é ilustrada com ima-
por meio da utilização da correspondência que mantiveram entre 1912 e 1916. Um
gens que mostram o reflexo de árvores na água e da Lua cheia, provavelmente
exemplo mais recente, já mencionado aqui, é Correspondências, de Rita Azevedo
registradas na fazenda de sua família. A natureza não representacional dessas
Gomes, dedicado às trocas epistolares entre a poetisa e escritora Sophia de Mello
imagens bucólicas não transmite qualquer arranjo narrativo perceptível até
Breyner Andresen e o escritor e acadêmico Jorge de Sena. Conversa Acabada e
que elas comecem a ser combinadas com filmagens de arquivo, o que aconte-
Correspondências são ambivalentes na negociação entre um tom biográfico e as
ce posteriormente no filme.
convenções da adaptação cinematográfica. Embora os dois filmes sejam diferen-
A narração em voice-over resultante das entrevistas com os pais de Koret- tes em suas abordagens estilísticas sobre a vida desses autores, ambos se baseiam
zky é combinada com fontes visuais de arquivos da família. As descrições do em suas circunstâncias pessoais e contextuais, misturando suas personae pesso-
cenário em Coimbra, por exemplo, são ilustradas com inúmeras fotos da família ais, literárias e históricas. Simultaneamente, os dois filmes adaptam textos existen-
que exibem a restauração da casa de fazenda abandonada e a preparação de tes, mesmo recorrendo a diferentes formas de traduzi-los para o cinema. Conversa
seus arredores para começar as atividades agrícolas. De maneira semelhante, Acabada é adaptado de cartas, mas também de outros materiais textuais, como
as descrições dos pais de Koretzky da vida de cada um antes da mudança para poemas e prosa literária, para combinar as biografias factuais de Sá-Carneiro e
Portugal justapõem materiais de arquivo audiovisual a filmagens contemporâ- Pessoa com o universo ficcional criado pela produção inventiva de ambos os escri-
neas gravadas pela cineasta em Tóquio e na fazenda de Coimbra. Durante seus tores (particularmente profuso no caso de Pessoa e seus numerosos heterônimos).
relatos sobre sua vida no Japão, Koretzky usa diferentes filmes caseiros, dando Correspondências, mais claramente, dá primazia ao conteúdo da troca epistolar
centralidade particular para um vídeo gravado por seu pai durante uma festa de Mello Breyner e Sena, ao mesmo tempo que considera os contextos factuais de
da escola dela. A narrativa deste vídeo caseiro é inicialmente contextualizada ambos os escritores. Em sua maior parte, esses dois filmes, Correspondências em
pela cineasta em voice-over. No entanto, as imagens nebulosas contidas no vi- particular, transmitem uma preocupação em abordar essas missivas como textos
deocassete, ligeiramente deteriorado, adquire mais significado posteriormente, literários de pleno direito. Isso é verdade mesmo quando se considera que as tro-
quando Koretzky lê a carta dos pais de Kazumasa. Através de uma montagem cas íntimas adaptadas em ambos os filmes foram, originalmente, paralelas ao (ou
cuidadosa deste vídeo caseiro, a imagem de seu amigo de infância, inicialmen- mesmo excluídas do) corpo principal da obra de seus escritores.
te mesclada com a das demais crianças nas atividades escolares, começa a
Esses dois filmes, ainda que sui generis em termos de sua abordagem, tanto
ganhar força. Esta personificação de seu amigo, que ocorre mais tarde no filme,
do texto adaptado, quanto do processo de adaptação, servem como exemplos da
revela a natureza evolutiva do dispositivo epistolar. A representação visual do
presença enraizada de obras literárias no cinema português. Historicamente, as
conteúdo dessas cartas inicialmente dá primazia ao ato da leitura, uma ativi-
adaptações cinematográficas dos clássicos da literatura portuguesa foram impor-
dade íntima que é entregue aqui através do voice-over e ilustrada com imagens
tantes fontes de roteiros de filmes produzidos no período mudo, e posteriormente
não representacionais que expressam o possível estado emocional da leitora. A
na década de 1940, foram incorporadas nas diretrizes culturais e ideológicas pro-
inclusão de outros materiais de arquivo permite a corporificação da escritora,
movidas pelo Estado Novo (VIEIRA, 2013, p. 61; BAPTISTA, 2010, pp. 7-8; PINA, 1986,
como uma forma de recriação de uma aproximação temporal e espacial comu-
pp. 93-94). Em termos contemporâneos, como aponta Filomena Sobral, o cinema
mente invocada por meio de memórias pessoais. De fato, a transmidialidade do
português ainda manifesta uma conexão estreita com a literatura, buscando ins-
dispositivo epistolar, pelo menos neste caso, simula tanto o flashback cinema-
piração em obras literárias clássicas e recentes (2009, p. 30). A obra de Manoel de
tográfico como a expressão dialógica das cartas.
Oliveira resume tal emaranhado criativo. Em uma carreira de aproximadamente
oito décadas, Oliveira manteve uma estreita ligação com a literatura. Isto se ma-

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nifesta, sobretudo, no considerável número de adaptações cinematográficas de pelo uso de projeções de imagens no fundo, conjuntos estilizados e contrastes níti-
obras de, entre outros, Camilo Castelo Branco, Madame de La Fayette, José Régio, dos entre luz e sombra. Essas cenas, marcadas pela artificialidade teatral, contras-
Paul Claudel e Eça de Queirós. Também se reflete numa relação de trabalho de lon- tam com interlúdios que foram filmados em locação, em que vários participantes
ga data com a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís. O trabalho desenvolvido leram poemas de Pessoa. Apesar de distintas, essas cenas dão primazia ao ma-
por Oliveira e Bessa-Luís foi particularmente produtivo e inclui adaptações cine- terial textual usado no filme. Além disso, o dispositivo epistolar unifica a narrativa
matográficas de vários romances da escritora: Francisca (1981), O Convento (1995), fragmentada e episódica de Conversa Acabada. As cartas servem como um meca-
O Princípio da Incerteza (2002), Espelho Mágico (2005), entre outros. Essa parceria nismo cronológico usado para estabelecer uma linha do tempo que culmina com o
se estende a roteiros de cinema e outras trocas autorais criativas entre o cineasta suicídio de Sá-Carneiro em Paris. Seu conteúdo também confere densidade à de-
e a escritora, em filmes como Visita ou Memórias e Confissões (produzido em 1982, terioração emocional e física vivida pelo escritor, sobre a qual comunicou a Pessoa
mas só lançado comercialmente em 2015) e na coautoria do roteiro de Party (1996). através das suas cartas expressivas, e, muitas vezes, comoventes. A plasticidade
do material epistolar utilizado por Botelho, sendo episódico mas proporcionando
Mais relevante para a discussão aqui, a obra de Oliveira, ao longo dos anos,
uma consolidação do enredo cinematográfico, fornece pistas para um processo de
forneceu inspiração tanto pela insistência em lidar com fontes literárias quanto pe-
adaptação que tenta explorar os limites da narrativa cinematográfica. É pertinente
las amplas possibilidades estilísticas e narrativas de suas adaptações para a tela.
notar que este mesmo processo parece emergir de sua adaptação para o cinema,
Particularmente desde meados da década de 1970, sua produção artística é clara-
quase três décadas depois, do inacabado Livro do Desassossego, de Pessoa.
mente fruto da sinergia entre cinema, teatro e literatura. Seus trabalhos suscitam
um artifício cinematográfico informado por uma mise-en-scène teatralizada, com O cinema de Rita Azevedo Gomes revela uma relação exploratória semelhan-
a entrega rígida dos atores e a recitação frequente do texto roteirizado para enfa- te com os textos, combina as possibilidades narrativas da linguagem textual e
tizar sua natureza literária (JOHNSON, 2007, p. 38; COELHO, 1983, pp. 128-29; PINA, cinemática. Além disso, sua formação inicial em artes plásticas e sua experiência
1986, p. 198). O artifício resultante desta sinergia emerge igualmente no trabalho de em produção teatral vieram inteirar sua produção cinematográfica ao longo dos
Botelho e Azevedo Gomes (ambos ex-colaboradores de Oliveira). Botelho trabalha anos. Azevedo Gomes colaborou com Oliveira nos seus anos de formação pro-
regularmente com fontes textuais, como atestam as inúmeras adaptações cine- fissional como cineasta, em meados da década de 1970, e, como ele, incorpora
matográficas de obras literárias, parciais ou integrais. É o caso de Conversa Aca- textos literários na maioria dos seus longas-metragens. Exemplos recentes dis-
bada e, de 2010, O Filme do Desassossego, adaptação de Livro do Desassossego so são A Vingança de uma Mulher (2012) e A Portuguesa (2019). Ambos os filmes
(1982), de Pessoa, inacabado e publicado postumamente. A filmografia de Botelho exploram e expandem as possibilidades de um processo criativo informado por
também inclui, por exemplo, a adaptação de obras de: Charles Dickens – Tempos fontes literárias. A Vingança de uma Mulher é uma adaptação de um conto de
Difíceis(1988) –; Almeida Garrett – Quem És Tu? (2001) –; Denis Diderot – O Fatalista Jules Barbey d’Aurevilly (1874), cuja narrativa Azevedo Gomes desmonta por meio
(2005) –; Agustina Bessa-Luís – A Corte do Norte (2008) –; e Eça de Queirós – Os de uma mise-en-scène rigorosamente estilizada, que destaca o aparato ficcional
Maias – Cenas da Vida Romântica (2014).2 (SALVADÓ-CORRETGER; BENAVENTE, 2016, p. 138; PENA, 2018, pp. 95-96). A Portu-
guesa é uma adaptação de Three Women, de Robert Musil (1924), retrabalhada
Voltando a Conversa Acabada, o primeiro longa-metragem de Botelho combi-
em colaboração com Agustina Bessa-Luís. O filme transporta o artifício teatral
na estéticas diferentes e tropos narrativos que evocam o artifício cinematográfico,
de A Vingança de uma Mulher para um cenário naturalista organizado como uma
dando primazia ao texto (escrito). A influência de Oliveira se reflete aqui, tal como
natureza morta, ao mesmo tempo que desconstrói as convenções do drama de
seu endosso ao projeto (aliás, a primeira cena do filme retrata Oliveira como um pa-
época, particularmente por meio do anacronismo.
dre administrando os últimos ritos a Pessoa, em seu leito de morte). O filme é estru-
turado em episódios, que tanto recriam momentos particulares da vida de Pessoa e Quanto a Correspondências, o filme adapta o conteúdo de algumas das tro-
Sá-Carneiro quanto adaptam parte de sua produção criativa; por exemplo, trechos cas epistolares publicadas entre Mello Breyner e Sena para documentar a cumpli-
do conto “A confissão de Lúcio” (1914), do último escritor. Os momentos biográficos cidade estética e política entre os dois escritores, e para fornecer contexto às suas
reencenados no filme adquirem um tom claramente simulado e artificial, reforçado circunstâncias pessoais. Como muitos intelectuais e artistas portugueses, cujas
ideologias políticas colidiam com os valores impostos pelo regime, Sena recorreu à
2. No tempo da escrita deste artigo, em 2019, a adaptação de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), de José Sara-
mago, encontrava-se em fase de pós-produção. saída de Portugal, instalando-se primeiro no Brasil e, posteriormente, nos EUA. Os

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motivos e condições difíceis de seu exílio estão constantemente latentes nas car- você encontra uma diversidade de formatos, de câmeras e possibi-
lidades de filmagem. E eu entendi que essa variedade se misturava
tas que dirigiu a Mello Breyner. As cartas escritas pela poeta, igualmente, relatam
bem, que eu poderia trabalhar com todos esses formatos diferen-
sua crescente segregação social e profissional, que foi causada por sua produção tes, como Super-8 e vídeo digital. (HERNANDO, 2019)
literária controversa e, mais ainda, pela militância abertamente antifascista de seu
marido, Francisco Sousa Tavares. Esta correspondência fornece um relato em pri-
meira pessoa de um país que foi paroquial em termos culturais e que foi sufocado A preocupação de Azevedo Gomes em retratar os paralelos entre o cinema e
pela repressão política. a literatura nos lembra que, em um “mundo pós-celuloide”, a adaptação cinemato-
gráfica dos textos literários se tornou menos dependente da “tradução”, apoiando-
Desde o início, Correspondências levanta questões produtivas sobre a nature-
-se mais na “reformatação” e “transcodificação” (STAM; RAENGO, 2005, p. 11-12). Esta
za da epístola no cinema, bem como sobre as diferentes possibilidades de tradu-
qualidade transmidiática é claramente visível em Correspondências. As cartas tro-
ção em imagens e sons de tais narrativas episódicas e seus contextos em camadas
cadas entre os dois escritores são transmitidas por diferentes estratégias narrativas
– pessoais e políticos, mas também emocionais e estéticos. Como a adaptação
para estabelecer uma negociação entre o documentado e o atuado. O filme é estru-
cinematográfica de romances epistolares, a narrativa curta e contextualizada das
turado por meio do uso de uma variedade de materiais textuais, visuais e auditivos
cartas apresenta dificuldades para a dramatização (HUTCHEON, 2013, p. 40). Des-
– alguns gravados durante a filmagem, outros de natureza arquivística. O dispositi-
de o começo do projeto, a cineasta evitou abordar este material textual por meio
vo epistolar é realizado, em primeiro lugar, combinando tableaux vivants episódicos,
de ilustração simples ou reencenação. Como ela explica:
que são frequentemente ambientados em espaços domésticos, nos quais os atores
leem as cartas ou encenam atividades que constantemente chamam a nossa aten-
Decidi que seria melhor não ilustrar o que foi dito nas [cartas]. En- ção para os contextos multifacetados relatados nessas cartas. Essas cenas são, em
tão, penso que a imagem faz outras coisas, que talvez coincidam ou segundo lugar, complementadas por outro material que fornece densidade contex-
não com as palavras, mas também pode falar sobre o [texto]: pode
dizer outras coisas, pode somar e nos elevar a um espaço que não é tual para o dispositivo epistolar. Azevedo Gomes combina esses episódios gravados
inteiramente ilustrativo3. (ZGAIB, 2017). durante a filmagem do filme com diferentes arquivos de áudio e fontes visuais dire-
tamente relacionadas com Mello Breyner e Sena. O uso da narração em voice-over
e da constante sobreposição de diferentes materiais diegéticos e não diegéticos (ou,
O filme, em vez disso, reflete a natureza em camadas dessas cartas, base- mais precisamente, textos) fornece contexto para a obra dos escritores e sua vida
ando-se nas semelhanças entre o formato epistolar e outras narrativas literárias. pessoal; além disso, imprime sua presença autoral no filme.
Além disso, Azevedo Gomes aproxima literatura e cinema, como mídias que con-
tam particularmente com a conexão entre o sujeito que escreve e o sujeito que lê, Essa presença autoral se estende também à cineasta e à equipe de produção.
e aponta para as múltiplas conexões intertextuais entre eles. Mais do que se referir Azevedo Gomes traz um material que, tradicionalmente, fica de fora da narrativa
simplesmente às cartas, o título do filme é exemplar em chamar a atenção para as cinematográfica, e que é usado apenas para auxiliar ou documentar o processo de
diferentes correspondências que acontecem nele. As reflexões da cineasta sobre o produção do filme: testes de tela e ensaios dos atores, filmagens da equipe prepa-
processo criativo do filme são, mais uma vez, úteis aqui: rando o set, assim como gravações pessoais da cineasta. A inclusão deste material
destaca a própria produção do filme e seus processos autorais, bem como suas
influências intertextuais (STAM, 1985, p. 129). Além disso, e como observado no filme
Quando eu fazia Correspondências (...), eu tinha [uma questão]:
de Aya Koretzky, a materialidade dos diferentes suportes utilizados na produção
o que fazer com o texto. Um filme com cartas pode ser entedian-
te! Então, comecei a partir de algo completamente espontâneo de Correspondências torna-se visível para nós. Esses suportes são variados: vídeo
(...). Comecei com poemas [de Mello Breyner], que falam sobre as digital HD, formatos Super 8 e 16mm, e até mesmo videoclipes gravados com tele-
mesmas coisas que estão nas cartas; depois, os materiais diversos,
várias pessoas, várias línguas, e de alguma forma isso começou a fones celulares. O arranjo desses diferentes suportes midiáticos chama a atenção,
replicar o que está acontecendo com o cinema atualmente, onde mais uma vez, para as sinergias existentes entre aparatos de literatura e filme. As
inconsistências visuais, causadas por sua combinação, de alguma forma espelham
os dialogismos criados pelos diferentes idiomas usados ao ​​ longo do filme; as cartas
3. N.T.: Versão criada a partir da tradução da citação original pelo autor.

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de Mello Breyner, as de Sena e outros escritos são lidos em sua língua original, por- Sousa Tavares por jornalistas franceses na década de 1960, em que eles debatem
tuguês, mas também em espanhol, francês, italiano, grego e inglês. abertamente as restrições políticas e sociais impostas pelo Estado Novo. O diálogo
entre o pessoal e o histórico, mantido através do uso de material epistolar surge,
Essa superposição de diferentes mídias textuais e fílmicas, originalmente
insistentemente, em outras obras cinematográficas portuguesas contemporâneas.
apoiadas em formatos diversos, destaca ainda mais a estrutura episódica do dis-
O curta-metragem Redemption, de Miguel Gomes, por exemplo, usa cartas fictícias
positivo epistolar. Correspondências não veicula o que tradicionalmente pode ser
escritas por líderes políticos europeus para traçar paralelos entre seus traços de
entendido como estrutura narrativa. Em vez disso, o filme é organizado por mo-
personalidade e a crise da dívida soberana europeia durante a década de 2010.
mentos estruturados a partir de uma montagem de materiais diegéticos e não die-
Este diálogo também é encontrado na adaptação cinematográfica de Ivo M. Fer-
géticos. Azevedo Gomes ambienta muitos desses momentos em espaços domés-
reira das cartas enviadas por António Lobo Antunes à esposa. Cartas da Guerra
ticos e apresenta um âmbito familiar – encenado ou real –, mantido por meio de
retrata as condições de vida cotidiana da(s) guerra(s) colonial(coloniais)/de inde-
interações entre os diferentes atores. O filme conta com esse ambiente doméstico
pendência por meio de narrativas episódicas contidas em tais cartas. Um entrela-
para refletir sobre a natureza da troca epistolar (originalmente íntima) entre Mello
çamento muito mais marcado entre os fatos históricos e o subjetivo é observado
Breyner e Sena. No entanto, o espaço doméstico de Correspondências não é repre-
na obra de Pedro Costa, que comumente usa o dispositivo epistolar para ilustrar a
sentado como um cenário de produção criativa ou de redação de cartas. Em vez
condição pós-colonial dos personagens dos filmes que ele dirige.
disso, esse ambiente é utilizado para o consumo desses textos, incluindo o ato de
ler como uma das possíveis atividades realizadas no cotidiano. O filme retrata os Em termos temáticos, o curta epistolar de Gomes pode ser entendido como
atores, sozinhos ou “en famille”, lendo em voz alta ou refletindo sobre seus contex- um preâmbulo ao longa-metragem tríptico As Mil e Uma Noites (2015). Este último
tos textuais ou extratextuais. O aparecimento regular de diferentes aparatos vem trabalho adapta livremente o clássico do Oriente Médio ao contexto dos anos 2010
apoiar tais atividades; naturalmente, os livros e outros materiais escritos adquirem de um Portugal lutando para se adaptar às severas medidas de austeridade eco-
uma centralidade visível no filme, mas ocasionalmente outros dispositivos, como o nômica impostas pela União Europeia e o FMI, medidas que foram aplicadas pelo
projetor de slides ou o laptop, também são incluídos em algumas cenas. governo de centro-direita do país. Redemption se relaciona com este mesmo tema,
sendo estruturado através da leitura em voice-over de quatro textos epistolares.
Complementando a materialidade proporcionada pelos diferentes forma-
Escrito por Gomes e a roteirista Mariana Ricardo, esses textos são apresentados
tos de registro do material incluído em Correspondências, a inclusão diegética
no filme como se fossem escritos pelos primeiros-ministros português e italiano da
desses dispositivos em um espaço doméstico encenado provoca um consumo
época, Pedro Passos Coelho e Silvio Berlusconi, pelo presidente francês Nicolas
possibilitado por “tecnologias de memória” comumente usadas para registrar
Sarkozy e pela chanceler alemã Angela Merkel. Esses pequenos textos se baseiam
e reproduzir atividades familiares (HALE; LOFFREDA, 1996). Essas tecnologias e
em momentos biográficos desses líderes políticos europeus, no poder durante a
formatos fornecem suporte transmídiático para os diferentes contextos dessas
crise da dívida soberana europeia, para apresentar em primeira mão um (falso)
cartas, aumentando sua força textual inicial por meio da representação do seu
balanço de sua condição humana. Em primeiro lugar, somos apresentados à carta
consumo no espaço doméstico.
de Passos Coelho, com 10 anos de idade, enviada desde Portugal para seus pais, a
viverem em Angola na véspera da independência da ex-colônia. O sonho colonial
veiculado na carta corresponde ao profundo desdém de Coelho pelas pessoas
4. Em direção a uma história subjetiva
“feias” e pobres que compõem a população portuguesa. A seguir, um nostálgico
Conforme já indicado, a qualidade intertextual de Correspondências não é Berlusconi dedica uma carta a seu primeiro amor, filha de um industrial fascista,
simplesmente limitada à natureza dialógica da troca epistolar e sua representação tentando de alguma forma justificar alguns dos traços de sua personalidade que
cinematográfica. O contexto histórico dessas cartas e de seus autores está cons- o tornaram mal-afamado em Itália e internacionalmente. O caráter confessional
tantemente presente no filme. O clima político vivido em Portugal durante a ditadu- dessas duas cartas corresponde à carta fictícia escrita por Sarkozy, às vésperas
ra, constantemente aludido nessa correspondência, torna-se ainda mais claro em de perder as eleições presidenciais francesas de 2011, que revela à sua filha a
trechos de imagens de arquivo utilizados por Azevedo Gomes. Um exemplo disso é “falta de habilidade” que o impede de ser uma figura paterna. Da mesma forma,
a inclusão de um extrato de uma entrevista filmada com Mello Breyner e Francisco

74 75
uma entrada no diário de uma Merkel recém-casada e profundamente reprimida Cartas da Guerra é uma representação ficcional das missivas escritas por um
transmite desconforto em sua obsessão pelo “imperialista, ainda que tão esplên- aspirante a autor lisboeta (interpretado por Miguel Nunes) para sua esposa grávida
dido” Parsifal, uma ópera do “Wagner nazista” que trai os ideais socialistas de (Margarida Vila-Nova), enquanto ele servia como médico do exército em Angola.
sua juventude. Inicialmente, esses textos epistolares são apresentados sem muito Sua narrativa cobre um período entre janeiro de 1971 e abril de 1972. O filme segue
contexto, e não é claro quem os escreveu. A farsa desses textos só é revelada no a jornada inicial e a adaptação do médico para as rotinas da vida do exército, e o
final do filme em um epílogo escrito, aparecendo logo antes dos créditos finais, declínio progressivo de sua saúde mental e a de seus companheiros, causado pela
que nomeiam seus (supostos) autores. intensificação do conflito. O filme de Ferreira dá primazia ao conteúdo dessas mis-
sivas usando a narração epistolar em voice-over, uma estratégia que também aju-
Esses textos fictícios podem transmitir, de algumas formas, qualidades reden-
da a delinear sua linha do tempo narrativa. Curiosamente, as leituras em voice-o-
toras sinceras, e podem até servir para explicar as medidas políticas impopulares
ver dessas cartas são feitas pela destinatária e não pelo autor, dando assim maior
tomadas por seus escritores hipotéticos. O tom irônico de Redemption, no entanto,
presença a uma personagem que permanece essencialmente secundária, no que
deliberadamente transforma essas missivas em uma crítica às medidas de austeri-
diz respeito à representação (visual). Neste sentido, Cartas da Guerra representa
dade impostas a Portugal. Críticos internacionais de cinema comumente apontam
um casal separado fisicamente, mas com constante presença (auditiva ou visual)
que o cinema de Gomes, em termos mais amplos, costuma transmitir um humor ex-
por meio das cartas do médico. Essa conexão é feita ainda mais quando, em uma
cêntrico, “evasivo e inexpressivo” (BRADSHAW, 2010), frequentemente combinado
ocasião, uma de suas cartas apaixonadas é ilustrada com um sincrônico momento
com outros modos fílmicos – dramático e musical –, e em um formato docuficção
autoerótico realizado pelos dois os personagens.
que costuma ser autorreflexivo (HALLIGAN, 2012). Embora expresse tais caracte-
rísticas, Redemption também é, em termos cinematográficos, distinto das outras É relevante notar que, de todos os casos aqui examinados, Cartas da Guerra
obras de Gomes. O curta é estruturado exclusivamente a partir de um mosaico é o que mais reflete os mecanismos da narrativa e da dramaturgia fílmica clássi-
de filmagens antigas, como filmes etnográficos e educacionais, cinejornais e filmes ca, bem como as convenções do gênero cinematográfico. Mesmo adaptando as
caseiros. Este material de arquivo e sua combinação com o mecanismo de voice- narrativas episódicas das cartas de Lobo Antunes, o enredo do filme é estruturado
-over nos faz lembrar as convenções do filme-ensaio. Essa filmagem, no entanto, por meio de uma narrativa linear, utilizando sequências associativas para vincular
adquire qualidades em camadas. Por um lado, serve para ilustrar parte da factu- a narração em voice-over às ações representadas visualmente. Da mesma forma,
alidade aludida nas cartas, seja por estar sincronizada com a leitura oferecida na o filme transmite uma recriação histórica coerente com qualidades temáticas co-
narração voice-over, seja por complementar seu contexto histórico. Por outro lado, mumente observadas no gênero de filmes de guerra. Essas características trans-
a organização dessas filmagens, combinada com uma trilha sonora não diegética, parecem na recepção internacional do filme, com frequência enquadrado nesse
reforça o tom cômico do filme. gênero, e na comparação com filmes americanos como o épico de guerra “The Thin
Red Line”, de Terrence Malick, de 1998 (ver, por exemplo, ROMNEY, 2016). Contudo, o
A analogia irônica, entre o (historicamente) factual e o pessoal (fabricado), ofe-
tom contemplativo e poético de Cartas da Guerra (realçado por um preto e branco
recida por Gomes em Redemption encontra seu reverso na narrativa epistolar since-
cuidadosamente elaborado pelo diretor de fotografia João Ribeiro) o posicionou à
ra e convincente de Cartas da Guerra. O filme dirigido por Ivo M. Ferreira é o exemplo
parte da reconstituição de guerra histórica fílmica tradicional. Apesar de retratar
mais recente de um conjunto de obras cinematográficas e televisivas tematicamente
as constantes tensões psicológicas sofridas em tal cenário, visualmente o filme re-
centradas no conflito colonial português e nas suas consequências imediatas. Entre
presenta apenas de forma muito breve e esporádica cenas de conflito. Em vez, o fil-
outros, podemos encontrar exemplos de narrativas sobre a Guerra Colonial Portu-
me reflete sobre suas consequências físicas e psicológicas, apresentadas por meio
guesa em filmes como Um Adeus Português (João Botelho, 1985), Non, ou a Vã Glória
do testemunho em primeira pessoa. Este modo de tratamento direto corresponde
de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990) e Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso,
ao que surge de forma consistente na produção literária inicial de Lobo Antunes,
2004), este último, uma adaptação do livro homônimo de Lídia Jorge. A esta lista po-
em que a factualidade histórica passa a ser incorporada a uma narrativa autobio-
demos acrescentar outras obras cujos temas tratam das repercussões do conflito
gráfica fabricada (MOUTINHO, 2011, p. 72).
colonial português, como Paraíso Perdido (Alberto Seixas Santos, 1986-1995), Tabu, de
Gomes (2012), Yvone Kane (Margarida Cardoso, 2014) e a série de televisão Depois do Essa tensão entre fato histórico e biografia pessoal, observada no modo de
Adeus, produzida pela rede pública portuguesa RTP em 2013. tratamento epistolar de Cartas da Guerra, adquire maior complexidade no traba-

76 77
lho de Pedro Costa. Como observa Lourdes Monterrubio, as cartas (tanto como ob- seu falecido marido. Também em Casa de Lava temos conhecimento de cartas,
jetos quanto como dispositivos narrativos) são centrais no trabalho deste cineasta, notadamente aquela escrita por um preso político que faleceu no campo de prisio-
tanto em termos textuais como contextuais (2017, p. 103). As epístolas ganham par- neiros do Tarrafal, colônia penal criada em Cabo Verde para encarcerar ativistas
ticular visibilidade em Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro (2014), além contrários à ditadura portuguesa.
de estarem presentes em Casa de Lava (1994). Juventude em Marcha e Cavalo Di-
Seja explicitamente ou por inferência, todas essas diferentes epístolas têm o
nheiro dependem, consideravelmente, de uma grande medida de diálogo autoral
mesmo modelo, uma carta escrita pelo poeta francês Robert Desnos para sua es-
entre Costa e alguns atores não profissionais cabo-verdianos que colaboraram
posa do campo de concentração de Buchenwald. Em vez de reencenar o conteúdo
no filme – José Tavares Borges (comumente conhecido como Ventura) e Vitalina
desta (ou destas) carta(s), as missivas encontradas no cinema de Costa criam uma
Varela. Esses colaboradores trouxeram para esses longas-metragens sua história
analogia entre a condição pós-colonial dos cabo-verdianos e a repressão políti-
pessoal, ligada à diáspora cabo-verdiana sediada em Lisboa e seus arredores. A
ca histórica (RANCIÈRE, 2014, p. 135). A abordagem das narrativas epistolares e do
esses elementos biográficos, Costa sobrepõe o contexto histórico em que essas his-
testemunho pessoal observada no cinema de Pedro Costa é claramente distinta
tórias pessoais são ambientadas. Juventude em Marcha acompanha Ventura nas
da abordagem das demais obras aqui discutidas. Essas comunicações epistolares
suas andanças entre um passado, ambientado na antiga favela das Fontainhas
repetem o que parece ser a preocupação de Costa em traduzir fatos históricos e
em Lisboa, na sequência da revolução de abril de 1974, que pôs fim à ditadura por-
condições políticas por meio de narrativas pessoais. Esse tipo de tratamento des-
tuguesa, e as atuais condições de vida dos cabo-verdianos que vivem no conjunto
considera as narrativas cronológicas e a precisão histórica. As cartas nos filmes
estatal de habitação social de Casal da Boba. Cavalo Dinheiro revisita o mesmo
de Costa, discutidas acima, transcendem seu papel de comunicação pessoal. Elas
período histórico e combina-o com as condições de vida de Ventura no momento
são, em vez disso, símiles da condição perpétua e constante da vida desses perso-
da gravação do longa. No filme, “ambientações históricas e de rememoração [pes-
nagens e dos atores que os interpretam.
soal] são mescladas para representar as questões vividas por ambos os atores:
imigração, deslocamento, isolamento social e falta de condições básicas de vida”
(JORGE, 2020, p. 130). O filme coloca Ventura em estreito diálogo com Vitalina, uma
5. Conclusão
cabo-verdiana recentemente chegada a Lisboa para comparecer ao funeral do
marido. A sua história é aprofundada no filme mais recente de Costa, Vitalina Va- O grupo heterogêneo de filmes aqui discutidos revela diferentes preocupações
rela (2019), uma reflexão sobre o destino das esposas de migrantes cabo-verdianos estilísticas e temáticas, abordagens autorais, bem como diferentes mecanismos
deixadas para trás quando os maridos foram trabalhar em Lisboa. É pertinente ob- narrativos de transposição da subjetividade das cartas. Embora as obras de Pedro
servar que, em termos temáticos, este filme fecha um círculo narrativo iniciado em Costa e Cartas da Guerra reflitam, por exemplo, algumas das consequências do co-
meados dos anos 1990, em Casa de Lava, centrado num tema semelhante (embora lonialismo português, suas abordagens das narrativas em primeira pessoa são di-
não seja ambientado em Portugal, mas em Cabo Verde). ferentes em termos estéticos, narrativos e políticos. No caso dos longas-metragens
de Costa, as narrativas pessoais dos atores são comparadas a (e complementa-
O universo cinematográfico coerente que une todos esses filmes dirigidos por
das por) documentos, como a carta de Desnos. Essa relação entre o testemunho
Costa ao longo de mais de duas décadas resulta de sincronia temática e de sobre-
pessoal e a evidência documental é ainda mais visível em Cavalo Dinheiro, com
posições narrativas. Essa coerência ganha expressão posterior ao considerarmos
Costa incorporando ao filme diversos textos de mídia, como fotos de cortiços em
que a obra de Costa, cada vez mais reflete uma atenção aos documentos – regis-
Nova York, tiradas por Jacob Riis no final do século XIX, e a canção “Alto cute-
tros oficiais, relatos de primeira mão, fotografias e pinturas, canções –, tão clara-
lo”, interpretada pelo grupo cabo-verdiano Os Tubarões. Podemos ver também,
mente observável em Cavalo Dinheiro e Juventude em Marcha, e pressentida em
embora de maneira diferente, um diálogo similar entre o pessoal e o histórico em
Casa de Lava. No que diz respeito ao dispositivo epistolar, todos esses filmes retra-
Redemption. A qualidade lúdica desta obra de Gomes está em sintonia com mui-
tam a produção ou a leitura de cartas. Em Juventude em Marcha, Ventura recita,
tos de seus outros longas e curtas-metragens, nos quais as narrativas pessoais
com insistência, uma carta ao amigo Lento (interpretado por Alberto Barros), para
muitas vezes servem para representar uma visão irônica de contextos históricos
que ele a envie à sua esposa em Cabo Verde; em Cavalo Dinheiro, Ventura escreve
e contemporâneos (este tom irônico também é encontrado em obras dirigidas
uma carta que, mais tarde, entregará a Vitalina, como se tivesse sido escrita por
por outros cineastas, como João Nicolau e Gabriel Abrantes.) À primeira vista, a

78 79
analogia sugerida pelos filmes de Costa e Gomes parece ausente em Cartas da
Guerra. O filme dirigido por Ivo M. Ferreira, no entanto, apresenta também um tom
subjetivo, inerente ao material que o filme adapta. Embora ofereça uma recria-
ção ficcional de um momento histórico, a presença do escritor destas cartas –
António Lobo Antunes – está sempre latente, assim como os contextos subjetivos
e factuais contidos nestas obras e na sua outra produção literária.

Como filmes que também contam com uma adaptação, Correspondências


e Conversa Acabada podem convidar a leituras semelhantes às oferecidas por
Cartas da Guerra. Existem, no entanto, diferenças na forma como o processo de
adaptação se manifesta nesses filmes. Mais do que apenas recriar a subjetividade
dos acontecimentos históricos transmitidos por cartas, Azevedo Gomes e Botelho
reconstroem, através da experimentação narrativa, os contextos possíveis a que
aludem. Esse processo está particularmente marcado na diegese de Correspon-
dências, pois somos constantemente alertados sobre a prática criativa e o método
investigativo que permitem reconstruir as biografias de Mello Breyner e Sena. As-
pectos diferentes do processo investigatório de narrativas epistolares são encon- Referências
trados na obra de Koretzky. Os documentos pessoais utilizados em Yama No Anata
são montados por meio de um processo experimental que dá primazia a um tom
confessional e reflexivo, comumente veiculado em material epistolar. Isto o apro-
bibliográficas
xima de outros documentários portugueses que contam com um narrador em pri- BAPTISTA, Tiago. “Nationally correct: the invention of Portuguese cinema.”. In: Portu-
meira pessoa para relatar experiências de vida – Vida Activa (Susana Nobre, 2014) guese Cultural Studies, 3(1), 2010, pp. 3-18.
e E Agora? Lembra-me (Joaquim Pinto, 2013) são dois exemplos diferentes dessas
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http://doi.org/10.1353/ vlt.2007.0010.
Latente nas possíveis correspondências entre os filmes aqui examinados está a
relação com o arquivo. Esses filmes transmitem, ainda que em graus diversos, uma BERGALA, Alain. “La réminiscence (Pierrot avec Monika)”. In: AUMONT, Jacques (Ed.).
preocupação com as fontes arquivísticas – tanto em sua materialidade factual Pour un Cinéma Comparé: Influences et Répétitions. Paris: Cinématèque Française,
1996, pp. 51- 68.
quanto em seu potencial narrativo. Mais do que meras adaptações de cartas exis-
tentes ou fabricadas, todas essas obras contam com processos autorais que evi-
BRADSHAW, Peter. “Our beloved month of august”. In: The Guardian, 28 jan. 2010.
denciam sua relação com diferentes fontes textuais relativas a seus temas e seus Disponível em: http://www.theguardian.com/film/2010/jan/28/our-beloved-mon-
th-of-august-review.
contextos factuais. Como também discutido aqui, Correspondências, Redemption
e Yama No Anata vão ainda mais longe nessa vinculação com o arquivo e na sua
COELHO, Eduardo Prado. Vinte anos de Cinema Português (1962-1982). Lisboa: Insti-
natureza intertextual, combinando diferentes objetos de mídia como parte de sua tuto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983.
estrutura narrativa. Essa relação com o arquivo levanta questões produtivas sobre
como diferentes objetos textuais e midiáticos, bem como evidências imateriais, são CORRIGAN, Timothy. The Essay Film: From Montaigne, After Marker. Oxford: Oxford
University Press, 2011
remediados e amalgamados para ilustrar narrativas epistolares. Esses diferentes
filmes portugueses contemporâneos mobilizam o arquivo para explorar o subjetivo,
questionando, assim, o factual nos contextos multifacetados das narrativas episto- HALE, Grace E.; LOFFREDA, Beth. “Clocks for seeing: technologies of memory, po-
pular aesthetics, and the home movie”. In: Radical History Review, n. 66, 1996, pp.
lares, a sua produção e, talvez, até o ato de sua leitura – fora da tela e dentro dela. 163-171.

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82 83
DE
PORTUGAL
PARA
O
MUNDO

O mistério das
1

“In work or relaxation: the traditional, the modern, the ultramodern. This is the

origens , Ou o
mixture that is Portugal.” Era assim que, em 1956, o filme Introducing Portugal, fei-

1 to pela NATO, apresentava o país. Num evidente registo de propaganda, relatos


dos feitos marítimos mostram um país com uma intensa relação com o mar. Os

cinema português
campinos, os pescadores, os agricultores e os pastores são a imagem do Portugal
profundo, um Portugal de regiões bem-delimitadas e aldeias confinadas: “Aqui
pouca coisa mudou”. Lisboa, simultaneamente símbolo de tradição e desenvolvi-

no tempo da
mento, é a cidade dos bairros antigos, “perdidos numa metrópole cujo tamanho
e população duplicou em apenas cinquenta anos”. Salazar, responsável por “es-

pós-ruralidade
tabilizar a economia”, é também o homem que fez de Portugal um país de barra-
gens, pontes, campos de golfe, autoestradas, bombas de gasolina e hotéis – “tra-
dicionais na essência, mas modernos no estilo” – capazes de receber qualquer
viajante que atravessasse a fronteira.

Já então em pleno Estado Novo se fazia o elogio do progresso (para inglês

Miguel Cipriano
ver, certamente). Em vez da imagem posteriormente veiculada de um regime to-
talmente fechado e orgulhosamente só, aqui a ditadura vangloriava-se com a
alegada modernização do país, e, embora a tradição tenha sido uma importante
bandeira, o regime nem sempre simpatizou com as representações mais tipifica-
Novas &
das da sociedade portuguesa.
Velhas Tendências
no Cinema Português Em 1939, estreia Aldeia da Roupa Branca, de Chianca de Garcia. Na linha de
Contemporâneo Maria Papoila (1937), de Leitão de Barros, que anos antes fundara os “filmes de sa-
loios” enquanto género, Aldeia da Roupa Branca fazia um retrato polarizado dos
universos rural e urbano. Numa história sobre a “oposição entre o velho e o novo”
(PINA, 1986, p. 173), o velho acaba por prevalecer quando Chico, no final do filme,
volta à sua aldeia depois de um período em Lisboa a trabalhar como motorista,

1. Citamos aqui Chris Fujiwara na sua análise de Casa de Lava (1994), de Pedro Costa, filme no qual “o mistério das
origens ganha uma importância extrema. Casa de Lava torna as origens num problema, levando-nos a perguntar,
em relação às personagens, de onde virão e para onde irão – e deixando-nos sem resposta clara”.

84 85
mantendo-se “a separação tradicional que existia entre aqueles dois mundos” facções, enquanto Manoel de Oliveira, com o seu Aniki-Bobó, é elevado por alguns
(BAPTISTA, 2008, p. 45). críticos a símbolo de uma geração por vir.

Durante a década de 40, proliferaram no cinema português as histórias saloias, Depois de anos de reconstituições e adaptações que não chamavam público
revisteiras e folclóricas. Não porque, ao contrário do que repetidamente se diz, o e que raramente caíam no gosto dos intelectuais, chega-se ao afamado “ano zero”
regime tivesse especial apreço por elas e pelo país que retratavam, mas porque de 1955, o ano em que nenhuma longa-metragem foi produzida. Confirmava-se,
iam ao encontro do gosto “da pequena e média burguesia dos meios urbanos”, que assim, o pressagiado óbito do cinema português.
representava uma parte considerável do público que estimava o género e “não
Simultaneamente, o país transformava-se de forma profunda. Com a fome e
acorria a outras incursões” (COSTA, 1991, pp. 67-70). Alguns destes filmes chegaram
o analfabetismo a assolarem a província, desencadeou-se um dos maiores êxodos
a alcançar resultados de bilheteira pioneiros (Aldeia da Roupa Branca foi um dos
da história portuguesa recente. Dos que partiam para França ou para as colónias
primeiros filmes portugueses a transpor os cem mil espectadores), mas era certo
do império ultramarino, aos que se fixavam à volta de Lisboa e do Porto, o território
que o poder preferia outras fitas. E nunca escondeu esse facto. No anúncio da Lei
tornava-se espelho da convulsão social. Em 1963, Paulo Rocha reage a estas ten-
de Protecção ao Cinema Nacional, em dezembro de 1947, António Ferro foi tudo
sões com Os Verdes Anos, filme que lança o tão ansiado Cinema Novo Português.
menos ambíguo ao afirmar que as comédias, “filmes com indiscutível mas lamen-
Logo na altura da estreia, foram muitos os que sentiram esse carácter fundador
tável êxito”, reveladores do “que há de mais inferior na nossa mentalidade”, eram “o
deste objecto “bem secreto e bem singular” (COSTA, 1991, p.120). O realizador, que ti-
cancro do cinema nacional”.
nha estado em Paris com uma bolsa do Institut des Hautes Études Cinématographi-
ques e estagiado com Jean Renoir, juntou-se ao produtor António da Cunha Telles
Hoje, de todos estes filmes, esquecidas as canções, esquecidas as para contar a história de um jovem casal que, vindo do interior, tenta a sua sorte em
stars, o que ficou foi o talento dessa ínclita geração de cómicos numa
Lisboa, ela como criada, ele como sapateiro. A cidade que vão encontrar não é a
personificação, que o tempo só tornou mais visível, do provincianis-
mo português da época e do provincianismo dos valores que reflec- Lisboa bairrista e tradicional que o cinema retratara nas três décadas anteriores, é
tiam Portugal no regime e o regime em Portugal. (COSTA, 1991, p. 80) agora uma “cidade opressora que os humilha e marginaliza” (BAPTISTA, 2008, p. 94).
É uma cidade de “espaços claustrofóbicos, sem saída, onde tudo se agoniza numa
morte branda”. Seguindo a tradição neorrealista de personagens desajustadas em
Os filmes cantados, que, em 1947, com Fado, História de uma Cantadeira, de
ambientes coercivos, Paulo Rocha aborda, através da rua, a violência da ditadura
Perdigão Queiroga, chegavam ao fim do seu apogeu, dão lugar a uma década de
que se abatia sobre o país, dando “a ver Lisboa e Portugal como espaços de frus-
crises várias – no cinema, mas sobretudo a nível social e político – e de grandes
tração” (COSTA, 1991, p. 120).
transformações. Depois das tumultuosas e encenadas eleições de 1945, acentu-
am-se a perseguição e a censura. Em 1948, entra em vigor a Lei de Protecção ao Mas 1963 é também o ano de dois importantes filmes de Manoel de Olivei-
Cinema anunciada no ano anterior, e, com ela, a criação de um fundo que visava ra. O Acto da Primavera e A Caça foram apoiados pelo “fundo dos pastelões”,
subsidiar obras “representativas do espírito português”. Guerra aberta, portanto, mas, ao contrário destes, conseguiram o elogio praticamente consensual da crí-
às comédias e aos musicais, iniciando-se um período de “pastelões históricos” e de tica. Filmado numa aldeia em Trás-os-Montes com habitantes-actores, O Acto
adaptações de “pios escritores católicos” (COSTA, 1991, p. 104). Como reacção à lei, da Primavera encena a Paixão de Cristo num filme que João Bénard da Costa
a crescente “rapaziada dos cineclubes” (assim lhes chamou Leitão de Barros num considera um “ponto de partida, onde se prefigurava o cinema futuro, não só do
artigo do Diário de Notícias de 1º de março de 1955, apelando a uma mudança insti- Autor, mas também de todo o cinema que teria início no final da década” (1991,
tucional e à emancipação da dita rapaziada, pois o “cinema português activo e pu- p. 122). É o filme que mais notoriamente abre duas importantes tradições do cine-
jante não será possível com os homens que hoje o têm nas mãos”), não raras vezes ma português: a da antropologia visual, no seguimento da “etnoficção” de Jean
apoiada na esquerda clandestina, elaborava uma agenda para mudar o cinema e, Rouch, e a da vontade de filmar “não o artifício da realidade, mas sim a realidade
através dele, transformar o país. Sobe de tom a luta das ideias e de Itália sopram do artifício” (PINA, 1986, p. 166). Pela sua aclamada modernidade, O Acto da Pri-
ventos neorrealistas. Manuel Guimarães, com as suas incursões nesse género tão mavera tornar-se-ia uma referência de um tipo de cinema que fazia questão de
afecto da esquerda, torna-se, por momentos, poço de esperança para algumas denunciar o seu próprio dispositivo. Um cinema que pratica a militante “recusa da

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ilusão”, como João Mário Grilo diria mais tarde (2007, p. 80). Tudo começou em 1972, quando, por iniciativa da Fundação Calouste Gul-
benkian (que tinha, quatro anos antes, decidido financiar filmes da nova geração)
Em 1964 surge Belarmino, de Fernando Lopes, que, juntamente com os três
e do governo marcelista, é criada a Escola Piloto para a Formação de Profissionais
aplaudidos filmes de 63, alcançaria o reconhecimento internacional nos anos se-
de Cinema, futura Escola de Cinema, instalada no Conservatório Nacional de Te-
guintes. Aos olhos do país e da Europa, (re)nascia uma cinematografia.
atro. Alberto Seixas Santos é escolhido como director. Algumas caras do Cinema
Novo, como António da Cunha Telles, Paulo Rocha e Fernando Lopes, ocupam-se
O cinema português recriava uma tradição, enunciava um novo da docência. Em 1977, junta-se a eles António Reis, que em 73 tinha surpreendido
tipo de imaginário e afirmava-se em obras e não só em intenções
toda a gente com o poético Jaime, “um dos mais belos filmes da história do ci-
como um cinema novo. Tudo isso – como sempre – se apagou mui-
to depressa, mas uma demarcação de águas era agora possível. nema”, segundo João César Monteiro2, e em 76 com o panteísta Trás-os-Montes,
(COSTA, 1991, p. 123) “cometa [que] atravessou o cinema português, então em céu particularmente es-
curo”, para Augusto M. Seabra3. Apesar de mais velho do que a maioria dos cine-
astas Gulbenkian, António Reis era um cineclubista conhecido do meio que tinha
Com o 25 de Abril e a social-democracia, iniciaram-se grandes desenvolvimen-
inclusivamente trabalhado com Manoel de Oliveira em O Acto da Primavera e
tos ao nível da industrialização e urbanização do país (que já tinha visto alguns
com Paulo Rocha em Mudar de Vida (1966). Lecionou até 1991, ano da sua morte
avanços a partir da década de 50). Portugal abriu-se finalmente à Europa e ao
inesperada, e foi um dos professores mais influentes da Escola de Cinema. A altu-
mundo. Para melhor percebermos o alcance destas mudanças, avancemos, por
ra do seu desaparecimento foi também a altura em que muitos dos seus alunos
momentos, no tempo.
começaram a dar os primeiros passos.
Durante os últimos anos da primeira década do século XXI, um grupo de “ami-
O instante pioneiro foi Uma Rapariga no Verão (1986), de Vítor Gonçalves. Impor-
gos e de amigos de amigos”, procurando “a troca, o conhecimento e a descober-
tante filme de arranque, segundo Joaquim Leitão, “pela maneira como foi feito, pelo
ta”, reunia-se regularmente em tertúlias. Chamavam de Fatamorgana a sua asso-
envolvimento de toda aquela geração”4. Formada sob o olhar atento dos do Cinema
ciação. Entre eles estava o arquitecto Pedro Campos Costa, que andava há vários
Novo, esta geração tinha passado por uma Escola de Cinema muito particular:
anos a maturar um projecto que tivesse como base a “nova constelação de pe-
quenas cidades, vilas e aldeias, ligadas por um tecido fino de relações e de histó-
ria”. Era, para ele, urgente estudar esta “paisagem diversificada” de um Portugal Eu acho que o cinema português está dividido entre aquilo a que
eu chamo “cinema português” e aquilo a que eu chamo de “cinema
que, em poucas décadas, se tinha transformado imenso. Romanticamente, Pedro
internacional”. E isso acontece em todas as cinematografias, como
traçava um mapa do interior do país que “poderia passar a ser desígnio nacio- existe em arquitectura o estilo internacional (…). Existe, portanto,
nal”, imaginando uma “Toscana possível”, ao nível do modelo de desenvolvimento uma fórmula, que é aquilo que se ensina numa escola de cinema,
ensina-se a filmar segundo esse estilo (…). A maior parte dos pro-
do território, enquanto muitos lhe censuravam a megalomania e chamavam a fessores da Escola de Cinema em Portugal, durante o período mais
atenção para a complexidade do tema. Entre estes estava Nuno Louro, também interessante da Escola de Cinema, não eram professores do “estilo
arquitecto e com experiência ao nível do desenvolvimento territorial da costa. internacional”, eram professores de outra coisa. (GRILO, 2007, p. 79)

Juntos, decidiram avançar com um projecto que os colocasse no terreno, para


que um levantamento (mesmo que parcial) pudesse finalmente ser feito (COSTA
Com Vítor Gonçalves na realização, José Bogalheiro na produção, Daniel Del-
et al., 2009). Escolheram, então, percorrer Portugal em duas linhas – uma traçada
-Negro na fotografia, Pedro Caldas no som, Ana Luísa Guimarães na montagem,
no litoral e outra no interior, ambas de norte a sul. De dez em dez quilómetros, à
medida que avançavam, paravam o carro e tiravam uma fotografia “representa-
2. MONTEIRO, João César. “Jaime de António Reis: o inesperado no cinema português”. In: Cinéfilo, n. 29, 20 abr.
tiva” de cada local. Concluída a viagem, caíram por terra muitos dos preconceitos 1974: “Estou a falar de António Reis e do dia em que o conheci e que, por acaso profissional, coincidiu com a
primeira vez que vi Jaime, quanto a mim, um dos mais belos filmes da história do cinema, ou, se preferem: uma
iniciais: o Portugal contemporâneo era diverso, fragmentado, desfigurado, difícil etapa decisiva e original do cinema moderno, obrigatório ponto de passagem para quem, neste ou noutro país,
de caracterizar. A partir dos anos 90, quase duas décadas antes desta viagem, quiser continuar a prática de um certo cinema, o cinema que só tolera e reconhece a sua própria austera e radi-
cal intransigência
também o cinema ganhou consciência e tornou-se expressão de uma sociedade 3. SEABRA, Augusto M. “No rasto do cometa”. In: Público, 12 set. 1991, p. 27.
em conflito com a sua identidade. 4. LEITÃO, Joaquim apud MOURINHA, Jorge. “Geração perdida”. In: Ípsilon, 25 set. 2009.

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Pedro Costa na assistência de realização e Joaquim Leitão como figurante, Uma Muitos dos primeiros filmes desta “terceira geração”8 contam histórias de crian-
Rapariga no Verão reuniu muitos nomes que hoje lembramos e outros que passá- ças perdidas. O Sangue (1990), de Pedro Costa, A Idade Maior (1991), de Teresa Villa-
mos a conhecer de outras lidas. Tal como Vítor Gonçalves, Daniel Del-Negro e Ana verde, e Xavier (rodado em 1991, concluído onze anos depois), de Manuel Mozos, são
Luísa Guimarães só realizariam uma longa-metragem, respectivamente Atlântida: exemplos de filmes que lidam com a ausência dos pais. No já citado artigo “Gera-
Do Outro Lado do Espelho (1985) e Nuvem (1992). Pedro Caldas ficaria pela direcção ção perdida”, António Pires, jornalista e antigo aluno da Escola, diz que isso se explica
de som e pela realização de curtas, até há pouco ter estreado a sua primeira lon- com “a desagregação da família” na sociedade pós-25 de Abril. Para Teresa Villaver-
ga, Guerra Civil (2010). “Porque houve tantos realizadores a seguir carreira como a de, “é normal que a ‘coisa mágica’ do primeiro filme vá buscar coisas à infância”.
ficar pelo caminho”, Jorge Mourinha apelidou-os de “geração perdida”. No entanto, Jorge Mourinha admite que esta recorrência é mais casual do que proposi-
e como Manuel Mozos comentou com Mourinha, esta ideia de geração (perdida ou tada, mas pensamos que há um outro ponto de contacto a ter em conta. Por altura
não) é uma “construção ‘a posteriori’, embora existisse uma “teia” de relações, por- da morte de António Reis, Saguenail constatou que o realizador contara “sempre a
que “havia um grande cruzamento nas noites do Bairro Alto, e porque acabávamos mesma história de crianças abandonadas, mas alargando o sentido dessa ficção
por colaborar nos filmes uns dos outros””5. de filme para filme”. Saguenail não chega a especular sobre a hipótese de haver
É, então, na passagem dos 80 para os 90 que os que integravam essa teia co- aqui uma herança directa (à data de publicação do texto, a “terceira geração” ain-
meçaram a dar mais nas vistas. E muitos deles, de Vítor Gonçalves a Joaquim Lei- da não existia como tal e muitos filmes estavam por fazer), mas reconhece que Reis
tão, passando por Ana Luísa Guimarães e Pedro Costa, elegiam António Reis como “deixou-nos a braços com a angustiante situação arquetípica encenada nos seus
mestre primeiro. Teresa Villaverde, que não tinha passado pela Escola, mas que filmes: a necessidade de ultrapassar o tempo e a morte, de prosseguir uma busca
também se integrou no meio, tendo trabalhado como assistente, diz ter sentido errante sem seguir as pegadas do pai desaparecido”9. Aquando da estreia de Ne
carinho pelos realizadores mais velhos, que tinham procurado “trazer algo de novo Change Rien (2009), Pedro Costa voltou a abordar a questão dos pais:
a um país espartilhado por um regime sufocante”6.

Mas, em aparente contradição, alguns destes cineastas afirmam agora que O punk que eu conheci na Escola [de Cinema] foi o António
Reis (...). O confronto com ele, por um lado, deu razão àquele
não se sentiram assim tão presos à geração que tinha desbravado caminho e colo- nervosismo e àquela insolência. Disse-me: “Não, não, conti-
cado o cinema português no mapa das cinematografias mundiais: nua assim, desespera”. Por outro, deu-me a coisa mais impor-
tante, que foi (…) uma espécie de calma para conseguir fazer
filmes em português. Essa era uma grande dificuldade para
mim e para todos os meus colegas dessa altura; creio que to-
Eu não julgo que haja uma geração filha de outra (…). Apesar de
dos vivíamos essa angústia. Nós não tínhamos pais, não tí-
vários realizadores do Cinema Novo terem sido professores des-
nhamos tradição. Nem temos. Quer dizer, o Manoel de Olivei-
ses realizadores que então surgem, julgo que não há entre eles
ra não serve para isso, e ainda bem: é sozinho, é excepcional,
uma ligação tão grande quanto isso. Aqui não há o corte com a
mas não tem o cinema todo. E Portugal não teve, para mim,
geração anterior, como aconteceu com o Cinema Novo, é quase
um cinema a sério.10
pura e simplesmente ignorar a geração precedente sem levantar
ondas nenhumas7.

8. MOZOS, Manuel. Na entrevista antes citada: “Com o próprio aparecimento da Escola de Cinema, saem os pri-
meiros realizadores formados. O João Botelho é um dos poucos que vêm de início, mas mesmo quando a Escola
começa a ter mais realizadores, os filmes não têm muita notoriedade. Numa primeira fase o Vítor Gonçalves ou o
Daniel Del-Negro, e na continuidade disso vão surgindo o Pedro Costa, o Joaquim Leitão, eu, o Luís Alvarães, a Ana
Luísa Guimarães, com algumas abertas para outros realizadores que, não vindo da Escola, estão mais ou menos
na mesma faixa etária, como a Teresa Villaverde ou o João Canijo (que não fez a Escola mas passou por lá). O João
Botelho, a Solveig Nordlund e a Monique Rutler estão mais conotados ainda com os realizadores do Cinema Novo.
5. MOZOS, Manuel. MOURINHA, Jorge. “Geração perdida”. In: Ípsilon, 25 set. 2009. Havia um filme do Vítor Gonçalves e do Daniel, mas é com o Joaquim Leitão e com o Pedro Costa que há uma
6. VILLAVERDE, Teresa apud MOURINHA, Jorge. “Geração perdida”. In: Ípsilon, 25 set. 2009. terceira geração, digamos assim”.

7. MOZOS, Manuel. Entrevista a CIPRIANO, Miguel. “Isto é menos cinzento do que parece”. In: Novas e Velhas 9. SAGUENAIL. “O-CULTO”. In: A Grande Ilusão, n. 13/14, p. 13, out. 1991, Porto: Ed. Afrontamento.
Tendências no Cinema Português Contemporâneo, set. 2010, Ed. Biblioteca da Escola Superior de Teatro e Cinema. 10. COSTA, Pedro. Entrevista a MENESES, Inês. “Fala com ela”. In: Rádio Radar, nov. 2009.

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É com este sentimento de desamparo e desenraizamento que muitos dos no- que a cintura de favelas à volta da Cidade do México, porque aí ao menos há um
vos cineastas começam a olhar para o mundo que os rodeia. Na ausência de um espaço individual para as pessoas. Aqui, não”13. Com a superurbanização dos paí-
cinema português com o qual se consigam relacionar e confrontados com uma so- ses, a cidade deixou de ser “uma ideia de um ‘interior’ confinado aos seus limites”
ciedade em acelerada mudança, estes jovens (os mais bem-formados do cinema – a paisagem está hoje cheia de “cidades continuadas” (DOMINGUES, 2009, p. 40)
português até então), tal como muitas das personagens que irão criar, não sabem
O primeiro filme a conseguir lidar pacificamente com as tensões desta pós-ru-
ao certo de onde vêm e olham para o futuro com incerteza. Além disso, muitos de-
ralidade14 é Aquele Querido Mês de Agosto (2008), de Miguel Gomes. Tendo come-
les, mesmo os mais novos, ainda se debatiam com um fantasma que tinham vivido
çado com um sólido argumento de ficção e uma estrutura de produção digna de
de perto: o da prisão do regime de Salazar. O mesmo regime que roubou “metade
um “Ben-Ur da Beira”15, Aquele Querido Mês de Agosto teve que ser inteiramente
do século XX” e nos deixou “órfãos da modernidade” (GRILO, 2007, p. 78).
repensado poucas semanas antes da rodagem, por causa de cortes no financia-
Como já vimos, “depois da longa letargia do país atrasado e bastante fecha- mento. Miguel Gomes decidiu, numa primeira fase, abandonar o argumento e filmar
do à modernização, a Revolução de Abril, a Democracia e os fundos da União as festas de verão da zona de Arganil. No ano seguinte, fez um casting pelas aldeias
Europeia permitiram um impulso de infraestruturação avassalador”. Este súbito e filmou uma versão reescrita da história, que intercalaria com as imagens das fes-
aceleramento do tempo fez com que fosse cada vez mais difícil “identificar o Por- tas e da equipa em processo de rodagem. Quase meio século depois de O Acto da
tugal rural contemporâneo”, bem como os “territórios da urbanização recente” Primavera, o cinema português continuava um trabalho de denúncia activa dos
(DOMINGUES, 2009, p. 43). códigos de representação.

Saguenail fala num esvaziamento identitário que se torna evidente em dois Aqui, a relação das pessoas com a terra (que, como vimos, em Portugal se ti-
filmes de 2005: Odete, de João Pedro Rodrigues, e Alice, de Marco Martins. Estes nha vindo a alterar desde as primeiras vagas migratórias de meados do século XX)
realizadores (que, apesar de mais novos, Mozos ainda associa à “terceira geração”: contrasta visivelmente com os hábitos rurais retratados no filme de 1956 ao qual
“não estão tão longe de nós, acabam por fazer parte do grupo, (…) embora haja fizemos alusão no início deste texto. “Aquele Querido Mês de Agosto abdica de pro-
nuances”) situam os seus filmes num universo “urbano, europeu, ocidental, que não curar os traços de uma cultura especificamente rural num universo onde ela já não
tem nada de específico de Portugal”11, como é o supermercado de Odete e a Lis- é preponderante” (BAPTISTA, 2008, p. 219). Esbate-se a dicotomia campo/cidade
boa descaracterizada de Alice. Além disso, reivindicam “uma certa narratividade que nos anos 30 e 40 tinha dado azo a tantas histórias. Os montes enchem-se ago-
à americana” em filmes que “remetem nitidamente para um modelo externo do ra de florestas de pinheiro ou eucalipto que durante o verão são cuidadosamente
cinema, mas que não praticam nenhuma citação” (2007, p. 103). vigiadas para que os incêndios pontuais não ponham em risco todas as casas e
infraestruturas deste novo interior. Aqui tudo mudou.
Pedro Costa e João Canijo, por seu lado, vão-se colocar naquele que é, por
excelência, o território urbano do mundo contemporâneo: o subúrbio. Na “trilogia
das Fontainhas”, começada em 1997 com Ossos, Pedro Costa muda a sua forma de
fazer cinema (largando o excesso de material de rodagem e as grandes equipas)
e adopta a “etnoficção”. Depois de um começo atribulado de carreira, o realizador
encontra junto dos habitantes do bairro das Fontainhas a sua estabilidade.

João Canijo chega à periferia em Ganhar a Vida (2000), um filme sobre a co-
munidade portuguesa em Paris e a primeira “abordagem directa e primordial”12 à
emigração no cinema português. Onze anos depois, em Sangue do Meu Sangue,
Canijo decide também ir para os arredores de Lisboa, “que toda a gente sabe que
existe mas ninguém conhece. É a miséria humana total (...). É mais deprimente do 13. CANIJO, João. Entrevista a CÂMARA, Vasco. “Acho que isto não tem cura”. In: Ípsilon, 22 abr. 2010. Disponível em:
http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=255087.
14. Este conceito é elaborado por Luís Silva, no artigo “Contributo para o estudo da pós-ruralidade em Portugal”
11. SAGUENAIL. Entrevista a CIPRIANO, Miguel. In: Um Filme Português (2011). Disponível em: http://www.fcsh.unl.pt/revistas/arquivos-da-memoria/ArtPDF/02_Luis_Silva.pdf.
12. MATOS-CRUZ, José de. “Uma portuguesa em Paris”. In: DN Mais, 5 maio 2001. 15. GOMES, Miguel. Entrevista a SEQUEIRA, Luísa. In: Fotograma, 2008, RTP2.

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Referências
bibliográficas
PINA, Luís de. História do Cinema Português. Mem Martins: Ed. Publicações Europa-
-América, 1986.

BAPTISTA, Tiago. A Invenção do Cinema Português. Lisboa: Ed. tinta-da-china, 2008.

COSTA, João Bénard da. Histórias do Cinema. Lisboa: Ed. Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 1991.

COSTA, Pedro Campos; DOMINGUES, Álvaro et al. Duas Linhas. Ed. Costa/Louro, Pe-
dro Campos/Nuno, 2009.

SAGUENAIL et al. Ler Cinema: o Nosso Caso. Lisboa: Ed. Câmara Municipal de Lis-
boa, 2007.

GRILO, João Mário. O Cinema da Não Ilusão: Histórias para o Cinema Português.
Lisboa: Ed. Livros Horizonte, 2006.

FUJIWARA, Chris et al. Cem Mil Cigarros: os Filmes de Pedro Costa. Lisboa: Ed. Orfeu
Negro, 2009.

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1

DE
PORTUGAL Resumo
PARA
O O desejo de internacionalização nasceu com o próprio cinema português. Desde
MUNDO

Vai e vem –
Aurélio da Paz dos Reis, o “pai” do cinema português, a internacionalização tem
sido uma vontade, uma ambição ou uma necessidade para o cinema português,
tanto para a sua expansão como para a sua sobrevivência. O objectivo deste bre-

A internacionalização1
ve texto é fazer uma panorâmica retrospectiva sobre as principais estratégias de
internacionalização tentadas ao longo da história do cinema português, propondo
uma reflexão sobre os diferentes contextos em que foram esboçadas.

do cinema português ***

Paulo Cunha O desejo de internacionalização nasceu com o próprio cinema português.


Desde Aurélio da Paz dos Reis, o “pai” do cinema português, a internacionalização
tem sido uma vontade, uma ambição ou uma necessidade para o cinema portu-
guês, tanto para a sua expansão como para a sua sobrevivência. O objectivo des-
te breve texto é fazer uma panorâmica retrospectiva sobre as principais estraté-
gias de internacionalização tentadas ao longo da história do cinema português,
propondo uma reflexão sobre os diferentes contextos em que foram esboçadas.

1. Aurélio e a Invicta: do Porto para o mundo

Aurélio da Paz dos Reis foi o primeiro português a tentar obter sucesso cinema-
tográfico fora de Portugal, mais concretamente em terras brasileiras. Como acre-
dita Manuel Félix Ribeiro (1983, p. 16), o Brasil seria mesmo o objectivo inicial do em-
preendedor portuense:

Seria de estranhar que tão grande esforço, persistência e va-


lor económico, pois a iniciativa deveria ser largamente dis-
pendiosa para o tempo, tivesse sido levada a efeito para a
exclusiva realização de uma meia dúzia de espectáculos no
país. O seu intento fora certamente outro – a miragem de um
entusiástico e compensador negócio no Brasil deveria tornar-
-se, como o demonstra o cartaz contendo já os escudos dos
dois países, o motivo principal dessa iniciativa.

1. Artigo publicado originalmente em Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n. 24, Cinema Português em
Perspetiva, 2016. Instituto Camões de Cooperação e da Língua.

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No dia 15 de janeiro de 1897, apenas dois meses depois das primeiras exibições Perto da falência, a Invicta Film ainda ponderou apostar o seu destino numa
realizadas no Porto, Paz dos Reis faz a sua estreia brasileira, no Teatro Lucinda, parceria com Virgínia de Castro e Almeida, uma escritora portuguesa radicada em
no Rio de Janeiro. As intenções do promotor estão explicitamente declaradas na Paris convertida em produtora de cinema (fundara, um ano antes, em Lisboa, a For-
publicidade ao evento: “Surprehendente Collecção de Quadros reproduzindo Sce- tuna Films) com fortes aspirações. Confiante nas suas relações com “companhias
nas e Epizodios da Vida Portugueza, Vistas de Portugal e muitas outras de grande inglesas, francesas e belgas”, a empreendedora acreditava que o seu arrojado pro-
e actual interesse”. A comunidade portuguesa do Brasil, “sedenta da presença de jecto conquistaria “os mercados de Portugal, Espanha, Brasil e talvez uma percen-
motivos pátrios”, seria o público privilegiado para o Kinetographo Portuguez de Paz tagem doutros” (RIBEIRO, 1983, p. 131).
dos Reis. Sem grande sucesso, e mesmo com direito a severas críticas a propósito
Tal como a Invicta, também a produtora de Virgínia de Castro e Almeida não
de insuficiências técnicas, as apresentações concluíram-se a 20 de janeiro; quatro
teria sucesso na sua estratégia de escoamento dos filmes produzidos em Portugal
dias depois, Paz dos Reis já estava de regresso a Portugal (Ibidem).
para o mercado europeu. O diagnóstico dos dois projectos foi realista – a peque-
Vinte anos mais tarde, também no Porto, o cinema português tentaria nova- na dimensão do mercado cinematográfico português não permitia investimentos
mente a estratégia da internacionalização. As origens da Invicta Film remontam a numa estrutura industrial de produção contínua –, mas a estratégia de internacio-
1910, mas seria depois de 1918 que a pequena firma produtora de filmes de actuali- nalização falhara no principal mercado de escoamento, o europeu. Em contrapar-
dades e industriais se transformaria no maior projecto de produção cinematográfi- tida, as comunidades de portugueses espalhados pelo mundo, particularmente no
ca contínua até então. A estratégia passava pela transformação da Quinta da Pre- Brasil, pareciam dar respostas promissoras.
lada no maior estúdio de cinema português e pela contratação de vários técnicos
estrangeiros, nomeadamente Georges Pallu, um experiente realizador francês que
fizera carreira nas importantes firmas Film d’Art e Pathé Frères. 2. Durante o Estado Novo: a “irmandade ibérica” e a “projecção atlântica”

Apesar da presença de vários técnicos estrangeiros, a divisa publicitária Ainda que o lema “Orgulhosamente Só” fosse um dos postulados salazaristas,
da Invicta Film não deixava dúvidas: “Romance Português – Filme Português – o Estado Novo sempre procurou aliados internacionais que legitimassem a sua ide-
Cenas Portuguesas – Artistas Portugueses”. As sucessivas adaptações cinema- ologia no exterior. Próximos ideologicamente, o Brasil do Estado Novo de Getúlio
tográficas de Frei Bonifácio (1918), A Rosa do Adro (1919), Os Fidalgos da Casa Vargas e a Espanha do “generalíssimo” Franco foram os principais aliados interna-
Mourisca (1920), Amor de Perdição (1921) e O Primo Basílio (1923) materializavam cionais do regime ditatorial de Salazar, alianças que também se fizeram notar nas
uma estratégia de internacionalização da produtora portuense que apostava políticas culturais e cinematográficas.
no compromisso entre o exotismo e regionalismo dos romances oitocentistas
Após esses primeiros resultados positivos verificados na recepção a filmes por-
portugueses e o género do film d’art francês.
tugueses no Brasil no início da década de 30 – Ver e Amar (Chianca de Garcia, 1930),
Ao contrário do sucesso alcançado por vários filmes de actualidades, nomea- A Severa (Leitão de Barros, 1931) e A Canção de Lisboa (Cottinelli Telmo, 1933) –, o
damente Naufrágio do Veronese (1912), a falta da distribuição internacional revelar- Brasil foi declaradamente o destino privilegiado para as obras cinematográficas de
-se-ia fatal na estratégia da Invicta: pensada sobretudo para o público estrangeiro, “interesse nacional” que obedeciam às directivas do regime no sentido de tentar
os filmes acabaram por circular pouco no país e menos ainda na Europa, onde a “nacionalizar” a população das comunidades portuguesas no estrangeiro. A sua
concorrência era forte e a qualidade técnica e artística, mais reconhecida. boa recepção no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, levaria mesmo
alguns dos protagonistas destes filmes – Dina Teresa, Beatriz Costa, Vasco Santana
O Brasil e as comunidades portuguesas dos Estados Unidos foram os mercados
e António Silva – a tornarem-se “ídolos popularíssimos” junto da comunidade de
que, tentados como recurso, ainda deram algum retorno, graças às parcerias com
portugueses radicados no Brasil.
empresas portuguesas com interesses nesses países, mas isso seria insuficiente
para garantir a viabilidade do projecto (RIBEIRO, 1983, p. 134). Nos dois casos, a di- As Pupilas do Senhor Reitor (1935) e Bocage (1936), ambos de Leitão de Barros,
áspora portuguesa demonstrava que poderia ser um mercado com potencial para ainda repetiriam – e mesmo ultrapassariam – o sucesso comercial em terras bra-
complementar um mercado interno insuficiente para uma produção cinematográ- sileiras; mas passada a “euforia” inicial, o mercado brasileiro foi deixando de estar
fica contínua e exigente do ponto de vista técnico e artístico. receptivo aos filmes portugueses, à medida que a expectativas dos “colonos” pelas

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imagens de Portugal se transformavam em desilusão perante a constatação do (SPN), o plano propunha uma aproximação a diversos países latino-americanos –
atraso estrutural português. Perante este problema, começaram a ouvir-se vozes Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Colômbia e México –, mas elegia o Brasil e os
a apelar aos “senhores produtores e realizadores de Portugal” que “em Portugal se Estados Unidos da América como os parceiros privilegiados.
realize e no Brasil se exiba a mais eficaz propaganda da nossa Pátria”, e quanto a
Como sublinha Carla Ribeiro (Ibidem), a possibilidade de criar um espaço de
“filmes para nosso próprio ridículo, mais vale que não atravessem o Atlântico”.
influência cultural latino-americana a partir dos antigos colonizadores estava
Para António Ferro, uma das prioridades do cinema português seria servir o presente em diversas narrativas, nomeadamente cinematográficas: de visita a
público português, mas um “público português” que não se esgotava na metrópole, Lisboa em finais de 1940, o cineasta Jean Renoir propôs a criação de uma União
englobando também todos os portugueses das possessões ultramarinas e todos do Cinema Latino (“O grande realizador francês Jean Renoir está em Lisboa” [Ani-
os portugueses espalhados pelo mundo, em particular no Brasil. Um dos melho- matógrafo, 2 dez. 1940, p. 4]); também o produtor e realizador António Lopes Ri-
res exemplos das obras consideradas “exportáveis” pelo regime foi A Revolução de beiro, num relatório de 1941 intitulado “Colocação de filmes portugueses em Es-
Maio (1937), filme de propaganda do e ao Estado Novo realizado por António Lopes panha e no Brasil”, procurou promover um projecto de estabelecer uma indústria
Ribeiro. Num texto publicado na revista Cinéfilo (5 jun. 1937), o próprio realizador de filmes nacionais para um mercado que integrasse Espanha, o Brasil e toda a
definia como um dos “quatro pontos cardeais” do seu filme “servir o público portu- América Latina (RIBEIRO, 2014).
guês” numa concepção mais alargada, incluindo “o público português de Portugal,
E o cinema seria um eixo fundamental do plano de Ferro: primeiro para comba-
do Brasil, das Possessões Ultramarinas, da Europa, da América e da África”, que
ter a hegemonia e a influência do cinema norte-americano junto ao público portu-
“reclama filmes falados em língua portuguesa”.
guês e depois para divulgar a mensagem do Estado Novo pelo mundo, introduzindo
No final dos anos 40, Leitão de Barros idealizou aquele que seria o mais ambi- no estrangeiro “o cinema português (quando este for apresentável) em bases co-
cionado projecto de coprodução luso-brasileira: Vendaval Maravilhoso (1949). Reu- merciais, porque são também as melhores, para uma propaganda eficaz” (FERRO
nindo um importante conjunto de apoios financeiros e logísticos tanto em Portugal apud RIBEIRO, 2014).
como no Brasil, Leitão de Barros pretendia imortalizar na tela a história do poeta
Simultaneamente a esta “cruzada da lusitanidade” em terras brasileiras, e
brasileiro Castro Alves (1847-1871), uma figura central da luta antiescravagista no
apesar de todas as desconfianças históricas que afastavam Portugal e Espanha,
Brasil. Depois de longos meses de rodagem nos estúdios da Tobis e da Lisboa Filme,
António Ferro foi também trabalhando num projecto de “irmandade ibérica” que
o realizador rumou ao Brasil para rodar diversas sequências em cenários naturais
seria benéfico aos cinemas dos dois países.
no Recife, na Baia e nos estúdios brasileiros de Niterói e da Cinédia.
Assim, entre 1945 e 1951, estrearam nas salas de cinema portuguesas 12 filmes
Ao contrário das elevadas expectativas, o filme foi um fracasso comercial tan-
produzidos em regime de coprodução entre empresas portuguesas e espanholas.
to em Portugal como no Brasil, precipitou o fim da carreira cinematográfica de Lei-
Estes números são ainda mais significativos se se atender para o facto de que
tão de Barros e terá enterrado por várias décadas o projecto de criação de um
essas coproduções correspondem a aproximadamente 30% dos 44 longas-me-
mercado cinematográfico lusofalante. Apesar de partilhar uma mesma língua com
tragens de produção cinematográfica portuguesa que estrearam nas salas por-
o Brasil – mas um vocabulário e uma pronúncia muito distantes –, o cinema portu-
tugueses nesse mesmo período.
guês há muito deixara de colher sucesso em terras brasileiras.
O período áureo da colaboração cinematográfica entre portugueses e espa-
Estas iniciativas integram o que Carla Ribeiro (2014) designa por “cruzada da
nhóis aconteceu na primeira metade da década de 1940. E certamente não foi es-
lusitanidade”, um projecto de política cultural externa pensado por António Ferro.
tranha a esta colaboração a aproximação política entre os dois estados ibéricos
Em 1942, na sequência de uma viagem pelo Brasil e América do Sul, realizada meses
promovida por Salazar e Franco, que teve a sua maior mediatização com a assina-
antes, o secretário da propaganda nacional concebera o “Plano de uma campa-
tura do Pacto Ibérico, em março de 1939.
nha de propaganda em toda a América e no Brasil em particular”, um documento
interno dirigido ao próprio Salazar que pretendia garantir a “definitiva projecção O modelo de coprodução não era uniforme, prevendo diversas modalidades
atlântica” de Portugal. Englobando três ministérios (Educação Nacional, Econo- ou métodos: filmes dirigidos por realizador português em estúdios espanhóis ou
mia e Negócios Estrangeiros), para além do Secretariado da Propaganda Nacional dirigidos por realizador espanhol em estúdios portugueses; filmes com duas ver-

100 101
sões dirigidas por dois realizadores, com os mesmos actores e técnicos ou com De resto, como Luís de Pina sublinha, e muito bem, este modelo de coprodução
actores e técnicos diferentes; filmes com equipas mistas de produção rodados nunca terá colhido grande entusiasmo por parte de António Ferro, adepto de um
entre Portugal e Espanha. “conceito fechado de produção portuguesa”. De resto, seria essa a política defini-
da pela célebre Lei de Protecção do Cinema Nacional, de 1948, na qual a categoria
O envolvimento nestas produções de nomes maiores das duas cinematogra-
“filme português” era definida por um conjunto de condições exclusivas:
fias, como os realizadores Leitão de Barros, Arthur Duarte, Ladislao Vajda e Rafael
Gil, os actores António Vilar, João Villaret, Julia Lajos e Ana María Campoy, ou os
técnicos Heinrich Gärtner, Jaime Mendes, Aquilino Mendes e Felipe Sáenz, são bem a) Ser falado em língua portuguesa; b) Ser produzido em es-
representativos do investimento empregue pelos produtores envolvidos nestes pro- túdios e laboratórios pertencentes ao Estado ou a empresas
portuguesas instaladas em território português; c) Ser repre-
jectos cinematográficos. sentativo do espírito português, quer traduza a psicologia, os
costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo,
Do lado português, o grande entusiasta desta cooperação começou por ser quer se inspire nos grandes da vida e da cultura universais.
Luís Dias Amado, o coprodutor de Inês de Castro (1944). Quando surgiu este pro-
jecto, não exista qualquer convénio oficial entre os dois países para uma política
cinematográfica de colaboração, mas a obra de Leitão de Barros se beneficiou de Para além de excluir a maioria das coproduções do financiamento público, a
largos apoios das entidades oficiais portuguesas e espanholas. Em entrevista ao mesma lei levantava alguns obstáculos à participação de técnicos estrangeiros
Diário Popular (11 dez. 1944), o próprio Leitão de Barros definiria em breves palavras em filmes portugueses: “A concessão de licenças para a colaboração de técnicos
quais eram os objectivos desta colaboração: estrangeiros nos filmes portugueses fica dependente do parecer favorável do Se-
cretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), só sendo de
admitir elementos de comprovada competência”.
Tanto Portugal como Espanha ganham com a iniciativa de fa-
zer filmes destinados aos dois mercados de antemão garanti-
dos e que constituem o todo peninsular. O cinema em portu-
guês ligado a um filme em espanhol é o vínculo mais seguro, 3. Mudar de vida: a Europa e o cinema moderno
mais rápido e mais eficaz para manter esse contacto antigo
da Península Ibérica com a América Latina. Na década de 1960, a afirmação do Novo Cinema Português pressupôs uma
ruptura radical com todo o passado cinematográfico português, poupando ape-
nas alguns nomes à mediocridade dominante, concretamente Manoel de Oliveira
As expectativas para esta iniciativa eram tais que o produtor anunciava, ainda e Manuel Guimarães, dois exemplos de uma ética singular e de um percurso margi-
durante a rodagem de Inês de Castro, um plano de trabalho bastante ambicioso nal. Mas, esteticamente, as referências desta geração eram quase exclusivamente
para os anos seguintes: “Se as coisas correrem bem, propomo-nos continuar esta estrangeiras. Assumindo essa ruptura com todo o passado, criticando ainda a forte
colaboração dando aos dois mercados um mínimo de 10 filmes por ano em colabo- dependência do velho cinema de áreas do entretenimento com poucas afinidades
ração e com a intervenção de artistas e técnicos dos dois países. com a estética cinematográfica, nomeadamente o teatro de revista ou o desig-
O relativo sucesso de Inês de Castro nos dois mercados favoreceu o surgimento nado “nacional-cançonetismo”, a nova geração de aspirantes a cineastas afirma-
de filmes de outras produtoras portuguesas – Lisboa Filme, Doperfilme, Aníbal Con- va-se, nas palavras de João César Monteiro (O Tempo e o Modo, mar./abr. 1969, p.
treiras – que procuravam conquistar o mercado de exibição ibérico e, em última 407), como a “primeira geração de cineastas cultos existentes em Portugal”.
instância, o mercado da América Latina. Destas produções, apenas duas tiveram Essa supostamente inédita cultura cinéfila dependia de dois factores determi-
algum reconhecimento da crítica do país vizinho: Inês de Castro foi declarado “fil- nantes: o contacto com os principais textos cinematográficos produzidos em toda
me de interesse nacional” pelo governo espanhol e vencedor do prémio de melhor a Europa, através da leitura de revistas de referência, como as francesas Cahiers
filme do ano; Rainha Santa (1947) representou a Espanha no festival de Veneza. Em du Cinema e Positif ou as italianas Bianco & Nero e Cinema Nuovo; e os cursos de
Portugal, a generalidade das coproduções com Espanha teve carreiras comerciais formação e estágios no estrangeiro de vários aspirantes a cineastas, promovidos
algo discretas, e a crítica nacional não lhes foi particularmente entusiasta. pelo Fundo Nacional de Cinema, a partir de 1959, e pela Fundação Calouste Gul-

102 103
benkian, a partir de 1961 (CUNHA, 2009, pp. 204-209). seu crescente circuito de divulgação, que passava pelos festivais de cinema e pela
exibição em contextos culturais.
Paulo Rocha considerou mesmo a experiência europeia como estruturante da
cultura cinéfila desta geração, sobretudo a influência das correntes de renovação O imperativo da internacionalização deixou de ter motivações meramente co-
das principais cinematografias europeias, com que aprenderam a entender o cine- merciais, financeiras, políticas ou ideológicas, passando a ser necessário por razões
ma como uma experiência artística e estética (MONTEIRO, 2000, p. 312). estéticas e cinéfilas. Sem perder as referências sociológicas e culturais da socieda-
de portuguesa, as propostas fílmicas do Novo Cinema Português reflectem as influ-
Em 1964, o sociólogo português Adérito Sedas Nunes não tinha dúvidas em con-
ências das novas vagas e da cinefilia moderna. Segundo testemunhos dos próprios
cluir que a “modernização” cultural e sociológica que a sociedade portuguesa então
realizadores, os filmes estariam mais próximos de um público cinéfilo internacional
vivia se devia em grande medida à crescente abertura às influências exteriores, sobre-
do que do público português, porque esses filmes desafiavam o cânone dominante
tudo europeia: “Acesso à visão, e mesmo à vivência imaginária, de outras sociedades,
norte-americano e usavam referências cinéfilas e estéticas que o público portu-
outras condições de vida, outras formas de pensar e agir” (NUNES, 2000, p. 50).
guês desconhecia ou desvalorizava.
No caso particular dos jovens cinéfilos, a importação de “estímulos, imagens,
Inspirados pelo inesperado e relativo sucesso crítico internacional de Manoel
oportunidades, solicitações e concepções” foi fundamental para que os “horizon-
de Oliveira na década anterior, os jovens cineastas portugueses começam a apos-
tes mentais” e o “campo social de referência dos seus comportamentos, ideias,
tar na participação em festivais de cinema internacionais, em géneros marginais e
aspirações e decisões” se abrissem a “uma nova dimensão” e assumissem “novos
específicos, como o cinema publicitário, turístico, religioso ou industrial, e valorizam
elementos e perspectivas” (Ibidem, p. 51), nomeadamente a materialização de uma
esse circuito pela sua importância na afirmação e reconhecimento internacionais.
oposição fílmica que, em termos escritos, vinha já sendo divulgada desde a década
A participação de filmes portugueses em festivais de cinema, geridos pelo próprio
de 1950. O contacto com cinematografias estrangeiras, desde as obras clássicas
SNI, demonstra que, na década de 60, surgiu uma nova estratégia de promoção in-
aos movimentos de ruptura, forneceu aos cinéfilos mais inconformados com o ci-
ternacional tentada por jovens produtores, nomeadamente António da Cunha Tel-
nema português uma base de comparação a partir da qual estes reviam as suas
les. Dos filmes que integram o corpus do Novo Cinema Português, foram diversos os
objecções culturais e estéticas (CUNHA, 2009, p. 217).
seleccionados ou premiados em vários certames cinematográficos internacionais:
A campanha publicitária ao filme Verdes Anos (1963) é um excelente exem- Veneza, Berlim, Cannes, Siena, Locarno, Valladolid, Lecce, Biarritz, Manheim, San
plo dessa ruptura com o passado e esse desejo de filiação numa matriz moderna Remo, Leipzig, Lille e Sitges (CUNHA, 2012).
europeia: “Porque está mais perto esteticamente dos modernos filmes italianos e
Progressivamente, a nova geração de cineastas passou a ter outro público
franceses do que do cinema português habitual” (Diário de Lisboa, 28 nov. 1963, p.
de referência que não o português. As boas recepções internacionais de alguns
3); “Gente nova, sem passado e sem responsabilidade na produção nacional. E que
filmes dos anos 60 parecem ter convencido a apostarem definitivamente na
tem do cinema uma visão universal, que lhe advém do longo contacto com os estú-
internacionalização dos seus filmes. Ao contrário do grande público português,
dios parisienses” (Diário de Lisboa, 29 nov. 1963, p. 6).
que estava condicionado por décadas de censura cinematográfica e de iso-
Ironicamente, parece ter sido o fracasso comercial das primeiras propostas fíl- lamento cultural sentenciados pela ditadura salazarista, os jovens cineastas
micas que parece ter convencido a generalidade dos cineastas que a sua existên- portugueses acreditavam que o público cinéfilo internacional estaria preparado
cia teria de ser garantida à margem das leis do mercado. Esta consciência de uma para receber e aceitar as novas propostas fílmicas, viabilizando financeira e
posição de marginalidade perante o mercado cinematográfico potenciou uma prá- esteticamente o Novo Cinema Português.
tica fílmica mais voltada para o radicalismo e o experimentalismo.

Gradualmente, o Novo Cinema Português operou uma mudança de paradig-


4. De Bragança a Paris: para um cinema transnacional
ma no cinema português ao propor uma ruptura com os projectos anteriores de
um cinema nacional para um público português (ou lusofalante, no caso das coló- As políticas culturais públicas promovidas no pós-25 de Abril promoveram e
nias ultramarinas e da comunidade de portugueses e lusodescendentes no Brasil) consolidaram esse gradual processo de internacionalização dos modos de produ-
e uma aproximação estética ao cinema moderno das novas vagas europeias e ao ção para o cinema português, desde a produção à circulação, parecendo oferecer

104 105
garantias para romper com as limitações do mercado interno e respeitar as novas de Ouro recebido no Festival de Veneza em 1985 – pelo filme em particular e pela
orientações da diplomacia portuguesa de aproximação ao espaço europeu. carreira de Oliveira em geral – constituiu o mais importante troféu internacional ga-
nho por um cineasta português.
Assim, nos anos seguintes à Revolução de Abril, foram assinados diversos acor-
dos bilaterais de cooperação cultural e cinematográfica com países até então pou- A estratégia das coproduções com parceiros internacionais e a entrada no cir-
co aliados, nomeadamente países da então chamada esfera de influência socia- cuito dos festivais de cinema de renome internacional haveriam de nortear defini-
lista: Roménia, Iugoslávia, URSS, Senegal, Bulgária, Checoslováquia (todos em 1976), tivamente a carreira de Oliveira sob a produção de Branco. Tornar-se-ia frequente,
Líbia (1977), Venezuela, Argentina (ambos em 1979), Grécia (1980), Iraque, Kuwait, daí em diante, que os filmes de Oliveira fossem apresentados em diversos festivais
Congo, Costa do Marfim (todos em 1984) e Tailândia (1985). de prestígio antes da sua estreia comercial em Portugal. Como afirma João Bénard
da Costa, os sucessivos responsáveis pela pasta da Cultura, “gostassem ou não de
Entretanto, em 1981, a par destes novos parceiros, Portugal estabeleceria pro-
Oliveira, e a maior parte não gostava, tropeçavam com colegas que só de Oliveira
tocolos de cooperação que pretendiam consolidar relações com dois dos seus par-
lhes falavam” (COSTA, 1998, p. 70).
ceiros mais históricos e estratégicos: França e Brasil. Se os acordos com os novos
parceiros anteriormente referidos haviam sido fugazes ou efémeros, as relações De Le Soulier de Satin até Quinto Império – Ontem como Hoje, todos os filmes
com estes dois países revelar-se-iam cruciais para as estratégias de internacionali- de Oliveira foram concretizados em regime de coprodução com capitais franceses,
zação do cinema português. públicos ou privados. Aliás, não é por mero acaso que dos 25 filmes de Oliveira produ-
zidos por Branco, 5 têm o título original em língua francesa (Nice – À Propos de Jean
Para fortalecer a aposta na linha “europeia”, em 1989 eram assinados acordos
Vigo, Le Soulier de Satin, Mon Cas, La Lettre e Je Reentre à La Maison) e 8 são falados
de cooperação com Espanha e Alemanha, acordos ainda em vigor; mas seria a
maioritariamente em língua francesa (os 5 anteriores mais Party, Viagem ao Princípio
França o alfa e o ômega do cinema português nas décadas seguintes. A influência
do Mundo e Um Filme Falado). Para além do financiamento francês, os filmes de Oli-
francesa foi tal que, em meados dos anos 80, perante um crucial impasse nas po-
veira/Branco beneficiaram-se também de diversos fundos espanhóis, italianos, suí-
líticas públicas de apoio à produção cinematográfica, o então Ministério da Edu-
ços, alemães, brasileiros e da própria Comissão Europeia (Fundo Eurimages).
cação e da Cultura, titulado por Francisco Lucas Pires, resumiria as duas principais
tendências com uma expressão fortemente estigmatizada, que ficaria célebre: “A Naturalmente, a estratégia internacional serviria de modelo a outros cineastas,
infeliz metáfora dos ‘filmes para Bragança ou dos filmes para Paris’” (COSTA, 1991, como João César Monteiro, João Botelho, Pedro Costa – e sobretudo a Paulo Bran-
p. 28). A depreciativa designação “filmes para Bragança” referia-se às obras com co, que estabeleceu uma estrutura de produção luso-francesa que vingou durante
uma preocupação mais comercial e popular, destinadas a agradar ao grande pú- mais de três décadas.
blico nacional, enquanto os “filmes para Paris” seriam as obras com preocupações
Os anos 80 e 90 foram, até então, os mais internacionais do cinema portu-
estéticas e artísticas mais elaboradas, usando-se a capital francesa como referên-
guês. Duplamente internacionais porque foram os anos de maior divulgação in-
cia cultural e artística de um património cinematográfico supranacional.
ternacional de cineastas portugueses e porque Portugal também se foi tornando,
Entre 1982-83, o produtor Paulo Branco garantiria importantes apoios estran- gradualmente, um espaço potenciado por diversos projectos estrangeiros que aqui
geiros (França e Itália) para Manoel de Oliveira realizar os documentários Lisboa procuravam condições de rodagem privilegiadas. A entrada na então Comunidade
Cultural (1983) e Nice – À Propos de Jean Vigo, obras que reforçavam o prestígio Económica Europeia (CEE), em 1986, e as facilidades oferecidas pela livre-circula-
internacional do realizador. O prestígio internacional cultivado por Paulo Branco, ção de pessoas e mercadorias nesse espaço comunitário europeu favoreceram um
desde 1979, em torno da figura e da obra de Oliveira daria os seus frutos em 1984. processo progressivo de internacionalização do cinema português, tanto na parti-
Nesse ano, numa estratégia de expansão cultural francófona, o ministro da cultura cipação de técnicos e actores em produções estrangeiras produzidas em Portugal
francês Jack Lang aceitou a proposta de Branco/Oliveira para adaptar ao cinema o como na distribuição de filmes portugueses noutros mercados europeus.
clássico Le Soulier de Satin, de Paul Claudel, numa megaprodução com quase sete
Na direção oposta à Europa, do outro lado do Atlântico, estava o Brasil, um
horas de duração e um orçamento total de 250 mil contos (quando o custo médio
país com 200 milhões de falantes da mesma língua. Por outro lado, o Brasil seria
de uma produção era de 40 mil). Este projecto de produção europeia reuniu finan-
ainda, em tese, uma porta de entrada privilegiada para o espaço ibero-americano.
ciamento francês, alemão, suíço e português (IPC e Ministério da Cultura). O Leão

106 107
Ao abrigo da Cooperação Ibero-Americana, diversos países assinaram, em 1989, eram reconhecidos internacionalmente como “cineastas portugueses”, hoje o pa-
um Convénio de Integração Cinematográfica Ibero-Americana. Apesar de não ter radigma alterou-se significativamente e cineastas como Pedro Costa, João Pedro
ainda formalizado a adesão a este acordo, Portugal tem participado, de forma vo- Rodrigues ou Miguel Gomes são vistos internacionalmente, nos circuitos dos fes-
luntária, no programa Ibermedia, um fundo de apoio à produção e distribuição de tivais de cinema de autor, como “autores globais”. Naturalmente, estes cineastas
filmes latino-americanos criado em 1997 por acção da Conferência de Autoridades não deixam de ser portugueses, mas esta categoria funcionará agora sobretudo
Audiovisuais e Cinematográficas Iberoamericanas (CAACI). Além de estimular a co- como uma identificação geográfica, não mais como uma matriz estética comum,
produção de filmes para cinema e televisão, o Ibermedia conta com linhas de ac- como aconteceu no caso da escola portuguesa.
ção para financiar a elaboração de projectos, a distribuição e promoção de filmes
Consequentemente, os universos de referência destes cineastas, pelos quais são
e a formação de recursos humanos. Actualmente contam-se 18 países membros do
reconhecidos criticamente no circuito cinéfilo internacional, não são agora as refe-
Ibermedia, programa que, até 2005, tinha apoioado cerca de 30 filmes com produ-
rências eminentemente nacionais (literárias, culturais ou mesmo cinematográficas),
tores portugueses, dirigidos por realizadores portugueses e estrangeiros.
mas outras mais globalizadas: a política dos autores em Costa, o film noir e o melo-
No geral, a estratégia de internacionalização dominante a partir dos anos 80 drama em Rodrigues ou o cinema clássico americano em Gomes. Portanto, como
seguia um novo paradigma de produção e distribuição, próprio no contexto de glo- sugere Iván Villarmea Álvarez (2016, p. 116), deixou de fazer sentido “continuar a pen-
balização e pós-modernidade, que privilegiava um tipo de cinema com uma di- sar o cinema português a partir da diferença, como uma entidade autónoma e iso-
mensão transnacional, que vai diluindo progressivamente a categoria de cinema lada que fica à margem destes processos globais”. Ainda assim, mesmo adoptando
nacional, influenciado sobretudo pela aproximação estética entre os cineastas o modo de produção transnacional, os filmes de cineastas portugueses continuam,
portugueses e congéneres estrangeiros numa lógica de reconhecimento crítico na sua generalidade, a reflectir sobre questões centrais da memória e da identida-
que podemos designar por “world cinema”, ou “cinema global”. Já no séc. XXI, este de colectiva portuguesa (a ditadura salazarista, o passado colonial ou a integração
modelo seria determinante no processo de afirmação internacional de cineastas europeia, só para citar alguns exemplos). E esta continua a ser uma singularidade do
como Pedro Costa, João Pedro Rodrigues ou Miguel Gomes. cinema produzido em Portugal nesse contexto global que o afirma e valoriza.

Nas últimas quatro décadas de democracia, uma das apostas do Estado por-
tuguês tem passado pela internacionalização do cinema do país, procurando nos
Algumas conclusões
mercados externos uma forma de viabilização económica e de reconhecimento
cultural. Este enorme esforço de integração do cinema feito em Portugal num con- Ao longo da sua história, o cinema português foi conhecendo vários projec-
texto de produção mais abrangente e global tem promovido uma reconfiguração tos que alteravam as prioridades de internacionalização: o projecto voltado para
da forma de fazer e pensar o conceito de “cinema português”. Num contexto de o mercado europeu da Invicta Film (1918-24); a vocação “nacional” da “Política do
globalização económica, o modo de produção cinematográfico transnacional pro- Espírito” de António Ferro (1933-49), que privilegiava o público lusofalante de África
move uma interação entre equipas técnicas e criativas que influencia a forma de e do Brasil; o acordo de coprodução assinado entre o Portugal de Salazar e a Es-
produção e circulação dos anteriores “cinemas nacionais”, esbatendo as caracte- panha de Franco (1945-51), que visava conquistar o mercado latino-americano; a
rísticas mais particulares de cada cinematografia. aproximação à cinefilia europeia e a entrada no circuito internacional de festivais
de cinema iniciada no final dos anos 60, que dominariam as preocupações interna-
Com uma condição crónica de falta de financiamento privado e de financiamen-
cionalizadoras até aos anos 80, quando a adesão à CEE fortaleceu essa utopia de
to público muito limitado, o cinema português encontrou no sistema de coprodução
um mercado cinematográfico europeu; e o projecto de criação de uma comunida-
internacional uma solução para projectos mais ambiciosos em termos orçamentais.
de cinematográfica e audiovisual no espaço alargado da América Latina.
Tem sido este o modelo de produção recentemente adoptado por cineastas portu-
gueses como Miguel Gomes, em Tabu (coprod. Portugal, Alemanha, Brasil, França e Actualmente, em matéria de cooperação cinematográfica, o Estado português
Espanha) ou As Mil e Uma Noites (coprod. Portugal, França, Alemanha e Suiça), ou mantém activos apenas oito acordos bilaterais de cooperação: quatro com países
João Pedro Rodrigues, em O Ornitólogo (coprod. Portugal, França e Brasil). lusófonos (Angola, Brasil, Cabo Verde e Moçambique) e os outros quatro com países
europeus (França, Espanha, Alemanha e Itália). Esta contabilidade é expressiva das
Se até há poucos anos Manoel de Oliveira, João César Monteiro ou António Reis

108 109
Referências
prioridades portuguesas no que à internacionalização diz respeito: de um lado, ra-
zões económicas e estéticas justificam uma proximidade ao mercado europeu do
cinema de autor; do outro, razões políticas e culturais sustentam uma aposta cada
vez mais sólida e persistente na criação de uma espaço lusófono, com potencial
expansão para o mercado ibero-americano.
bibliográficas
Em suma, as estatégias de internacionalização, ou a falta delas, foram sem- ÁLVAREZ, Iván Villarmea. “Mudar de perspetiva: a dimensão transnacional do cine-
ma português contemporâneo”. In: Aniki, v. 3, n. 1, pp. 101-120, 2016.
pre motivadas ou orientadas por directivas económicas, ideológicas e culturais
que, sendo transversais aos contextos e momentos da história do séc. XX portu-
guês, sempre estiveram, na sua generalidade, muito condicionadas ou dependen- COSTA, João Bénard. Histórias do Cinema. Lisboa: INCM, 1991.
tes da iniciativa pública e das políticas culturais definidas pelo Estado português.
Em termos gerais, o cinema produzido em Portugal na actualidade deriva de um ______. “Breve história malcontada de um cinema malvisto”. In: Portugal 45-95 nas
lento processo de internacionalização dos modos de produção que remonta aos Artes, nas Letras e nas Ideias. Lisboa, Centro Nacional de Cultura, 1998, pp. 47-80.
anos 60 e a um modelo de financiamento público que apostou no reconhecimen-
to artístico e crítico internacional como forma de o afastar das leis do mercado e CUNHA, Paulo (2009), «As origens do novo cinema português: o turismo cinéfilo e o
o tratar antes como bem cultural, e não como um produto comercial. Nesse mo- novo cinema português», in: Atas do XI Encontro da SOCINE, Brasília, SOCINE, 202-219.
vimento, vários cineastas portugueses afastaram-se do clássico paradigma “na-
cional”, que vigorou durante o séc. XX, e aproximaram-se de uma matriz estética ______. “Os festivais de cinema na internacionalização do novo cinema português”.
e cinéfila globalizada, com a qual interagem. In: Actas das IV Jornadas Cinema em Português. Covilhã: Labcom, 2012, pp. 187-200.

______. “Quando o cinema português foi moderno”. In: CUNHA, Paulo; SALES, Michel-
le (Ed.). Cinema Português: Um Guia Essencial. São Paulo: SESI-SP, 2013, pp. 173-191.

MONTEIRO, Paulo Filipe. “Uma margem no centro: a arte e o poder do ‘novo cine-
ma’”. In: TORGAL, Luís Reis (Ed.). O Cinema Sob o Olhar de Salazar. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2000, pp. 306-338.

NUNES, Adérito Sedas. Antologia sociológica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais,


2000.

RIBEIRO, Carla. “António Ferro e a projeção atlântica de Portugal através do cine-


ma”. In: Aniki, v. 1, n. 2, pp.151-175, 2014.

RIBEIRO, Manuel Félix. Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português


(1896-1949). Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1983.

110 111
1

Resumo

O cinema português desenvolveu, década após década, uma tradição associada


com uma série de constantes temáticas e estéticas que aparecem, como sinais
de identidade, nas filmografias de vários de seus principais cineastas, como
seriam, por exemplo, Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, Fernando Lopes, João César
Monteiro, António Reis e Margarida Cordeiro, Pedro Costa ou Teresa Villaverde. A

Mudar de
crítica cinematográfica costuma estudar as relações e semelhanças entre os filmes
destes e doutros cineastas portugueses para assinalar os elementos que distinguem

perspetiva:
o cinema português doutros cinemas nacionais. Esta abordagem, no entanto, é
incompleta no contexto da globalização e da pós-modernidade, quando o presente
e o futuro dos cinemas nacionais depende da sua maior ou menor conexão com as

a dimensão
grandes redes estéticas e económicas globais: assim, quanto maior for a conexão,
maior será a distribuição desses filmes e, portanto, mais possibilidades terá um
país e uma cultura de ocupar um lugar relevante na geopolítica do cinema. A partir

transnacional
desta lógica, o objetivo deste artigo é inverter a abordagem tradicional dos estudos
sobre cinemas nacionais para explorar os vínculos transnacionais dos filmes e dos
cineastas portugueses, a fim de compreender a sua posição dentro do sistema-

do cinemamundo do audiovisual contemporâneo.

Palavras-chave: Cinema Português; Cinema Nacional; Cinema Transnacional;

português
Cinefilia; Cosmopolitismo.

Iván contemporâneo1 ***

Villarmea O termo cinema transnacional foi criado há cerca de 20 anos para identificar
aqueles filmes que mostravam os efeitos da globalização económica através da

Álvarez sua forma, do seu conteúdo e mesmo da sua própria conceção como produto
audiovisual. Este conceito permitiu superar a dicotomia entre cinema nacional –
entendido como cinema próprio – e cinema estrangeiro – entendido como cinema
dos outros – pelo que, em poucos anos, foi aceite massivamente pela crítica
académica, como comprovam os trabalhos de Lu (1997), Nestingen e Elkington
(2005), Ezra e Rowden (2006) ou Durovicová e Newman (2009). Este sucesso, porém,
também provocou uma banalização no emprego deste termo, que derivou, anos
depois, na sua desvalorização como conceito operativo, como aponta a teórica
dinamarquesa Mette Hjort:

1. Artigo originalmente publicado em:  Aniki – Revista Portuguesa da Imagem em Movimento,  3 (1), 2016, pp. 101-
120. Disponível em: https://doi.org/10.14591/aniki.v3n1.212.

112 113
The term ‘transnational’ has assumed a referential scope so última instância, a integração de qualquer cinema nacional – neste caso, do cinema
broad as to encompass phenomena that are surely more in-
português – dentro de alguma das diferentes redes que dão forma ao sistema
teresting for their differences than their similarities. As a re-
sult, and quite against the intentions of those who use it, audiovisual contemporâneo.
‘transnational’ ends up playing a strangely homogenizing role
that brings to mind Hegel’s sarcastic reference to the ‘night in
which all cows are black’ as a response to thinking in which
conceptual distinctions are effaced rather than properly de- O cinema português como cinema nacional
veloped. (2009, p. 13)
Num dos textos mais influentes sobre o que foram os cinemas nacionais
até aos anos 80, o crítico britânico Andrew Higson distinguia entre duas formas
O artigo a que pertence este excerto tinha como objetivo redefinir o significado deste opostas para identificar as particularidades de um determinado cinema nacional:
termo através de uma série de exemplos que davam forma ao que Hjort denominou “a a primeira partia de uma perspetiva endógena, que entende a nação em relação
tipology of cinematic transnationalisms” (2009, pp. 15-30)2. Este esforço por dotar este consigo mesma, com a sua história, a sua tradição e os seus signos de identidade
conceito de um sentido preciso terá continuidade em publicações posteriores, como comum; a segunda, pelo contrário, adotava uma perspetiva exógena para afirmar a
particularidade de um cinema nacional mediante as suas diferenças com respeito
o artigo inaugural do primeiro número da revista científica Transnational Cinemas, no
a outros cinemas nacionais (1989, pp. 36-46). O cinema português costuma ser
qual Will Higbee e Song Hwee Lim reivindicavam a prática de um “transnacionalismo
definido da primeira forma, como uma expressão dos valores e elementos ligados
crítico” (2010, pp. 7-21), ou no texto “Deconstructing and Reconstructing ‘Transnational
ao conceito de “portugalidade”4, porque desse modo o próprio cinema permite
Cinema’”, no qual Deborah Shaw comentava até 15 categorias diferentes ligadas
estabelecer uma imagem da nação, percebida como autorrepresentação, que
ao conceito de cinema transnacional, numa tentativa de distinguir entre “industrial contribui para afirmar determinados discursos culturais ou ideológicos promovidos,
practices, working practices, aesthetics, themes and approaches, audience reception, às vezes, desde o próprio poder. A definição de cinema português por oposição
ethical questions, and critical reception” (2013, p. 51)3. Todo este trabalho teórico a outros cinemas nacionais, no entanto, não é tão frequente nem tão útil – ainda
conseguiu, por um lado, o esclarecimento do significado deste termo e, por outro lado, a menos no presente pós-moderno e globalizado – porque nesse caso a única
ampliação dos casos nos quais pode ser utilizado com propriedade, já que as distintas oposição evidente é a que confronta o cinema industrial de grande orçamento –
tipologias e categorias criadas por Hjort e Shaw fornecem aos críticos exemplos quer americano, quer europeu – com o cinema de baixo orçamento, denominado
concretos que podem extrapolar a outras situações, filmes e cineastas. Neste contexto, também cinema “pobre”, ou cinema artesanal. Os produtores e cineastas
portugueses são plenamente conscientes das suas limitações económicas e,
o propósito deste artigo é explorar a hipotética dimensão transnacional de um cinema
portanto, da sua condição de artesãos do cinema (ver URBANO, em MARTINS;
tão aparentemente fechado sobre si mesmo como o cinema português, para inverter,
CIPRIANO, 2013, p. 351), mas esta circunstância não implica uma particularidade
desta forma, a perspetiva com a que a crítica, a história e os estudos de cinema têm
que possa diferenciar claramente o cinema português de outros cinemas nacionais
abordado tradicionalmente esta cinematografia. Portanto, este texto não vai analisar
de baixo orçamento procedentes de Europa, Ásia ou América Latina. A situação, de
aqueles elementos que identificam e individualizam o cinema português defronte de facto, é a contrária: uma das formas mais habituais para reivindicar a alteridade
outros cinemas nacionais dentro da geopolítica do cinema, senão outros elementos que de um determinado cinema nacional funciona aqui à inversa, isto é, como um meio
permitem o diálogo entre cineastas, públicos e cinematografias para facilitar, em para encontrar dinâmicas e elementos similares noutras latitudes.

Um trabalho recente que, de forma indireta, identifica desde uma perspetiva


2. Esta tipologia seria formada pelas seguintes categorias: “epiphanic transnationalism”, “affinitive transnationa-
lism”, “milieu-building transnationalism”, “opportunistic transnationalism”, “cosmopolitan transnationalism”, “glo- endógena algumas das características que definem o cinema português
balizing transnationalism”, “auterist transnationalism”, “modernizing transnationalism” e “experimental transna-
tionalism”. As três mais importantes para este artigo serão, em concreto, “epiphanic transnationalism”, “affinitive contemporâneo como um cinema nacional é o artigo “Objectos únicos e diferentes.
transnationalism” e “cosmopolitan transnationalism”.
3. Essas 15 categorias seriam “transnational modes of production, distribution and exhibition”, “transnational
modes of narration”, “cinema of globalisation”, “films with multiple locations”, “exilic and diasporic filmmaking”,
“film and cultural exchange”, “transnational influences”, “transnational critical approaches”, “transnational view- 4. Sobre este conceito, será útil consultar as recentes teses de doutoramento de Vitor de Sousa, intitulada Da
ing practices”, “transregional / transcommunity films”, “transnational stars”, “transnational directors”, “the ethics “Portugalidade” à Lusofonia (2015, Universidade do Minho), e de Daniel Ribas, intitulada Retratos de Família (2014,
of transnationalism”, “transnational collaborative networks” e, por último, “national films” (SHAW, 2013, pp. 47-66). Universidade de Aveiro e Universidade do Minho).

114 115
Por uma nova cultura organizacional do cinema português contemporâneo”, escrito tua entre águas difíceis de distinguir, as do cinema de
por João Maria Mendes dentro do volume coletivo Novas & Velhas Tendências no autor, as do cinema ‘de arte e ensaio’ e as do cinema
independente. Mas gostaria de se ver classificado – se ultra-
Cinema Português Contemporâneo (2013, pp. 74-137). Nesse texto, Mendes é muito passasse os problemas de qualidade técnica das suas histó-
crítico em relação às inércias herdadas em matéria de produção dos tempos do rias e conteúdos, dos seus actores, dos seus modos de pro-
dução e de realização – na categoria que um David Bordwell
Novo Cinema Português, porque considera que limitaram o desenvolvimento de designa por international art films, ou que [Shohini] Chaudhuri
uma cultura organizacional mais eficiente, mesmo mais profissional, ao converter designa por World Cinema. Tais categorias – cinema de autor,
determinadas escolhas estéticas – as mesmas que, no estrangeiro, identificam o de arte e ensaio, independente e aproximável do internatio-
nal art film ou do World Cinema – são consctructs genéricos e
cinema português como um cinema nacional – numa forma de trabalho. aproximativos, mas a sua articulação num conjunto de signi-
ficados heterogéneos tornou-se o referente imaginário do ci-
Entre os traços gerais que ele descreve, há dois que reforçam precisamente nema português contemporâneo: ele deseja, confusamente,
a permanência do cinema português dentro do paradigma do cinema nacional: ser tudo isto ao mesmo tempo – um borderliner, um habitante
de fronteiras. (MENDES, 2013, p. 97).
a sua dependência económica dos subsídios públicos de apoio à produção
cinematográfica, já que o financiamento obtido através de produtoras estrangeiras
é marginal com respeito às cifras de investimento estatal; e a sua fraca circulação
O interesse dos cineastas portugueses em associar os seus filmes a estas categorias
internacional, quer nos mercados europeus, americanos ou asiáticos (MENDES,
marca uma mudança na própria construção interna do conceito cinema português,
2013, p. 94, p. 102). Este modelo impossibilita que os filmes portugueses entrem na
já que muitos cineastas, sem romper com a tradição nacional nem renunciar a uma
primeira categoria analisada por Deborah Shaw: “modos de produção, distribuição
hipotética filiação com ela, começaram há uma ou duas décadas a procurar referentes,
e exibição transnacional”5. Esta tendência responde às transformações
paralelos ou simples inspiração noutras cinematografias nacionais ou regionais.
que os processos globais provocaram no funcionamento interno do sistema
cinematográfico mundial: num primeiro momento, nos anos 80 e 90 do século Mendes (2013, p. 105) dá como exemplos concretos as cinematografias
passado, houve uma fase de dispersão da produção de que se aproveitaram grega e iraniana, assim como também, de uma forma mais geral, uma parte das
muitos cinemas nacionais para vir à tona; para depois, a partir do novo milénio, cinematografias europeias, asiáticas e sul-americanas, com as quais o cinema
entrar numa fase contrária, de concentração da produção, que obrigou a que esses português “partilha, mesmo que imaginariamente, a ‘síndrome de pobreza’, mas
mesmos cinemas nacionais tivessem de desenvolver estratégias de colaboração também a reivindicação da sua ‘originalidade’ e ‘qualidade’, e por vezes uma
e coprodução para manter os seus níveis de bilheteria e de visibilidade. Nestas ideologia de ‘resistência’”.
circunstâncias, a questão é como pode o cinema português encontrar o seu lugar
Este deslocamento desde uma autodefinição do cinema português em relação
dentro do sistema audiovisual contemporâneo se permanece fora destes circuitos
a si próprio para uma definição em relação a outras cinematografias – atenção,
de financiamento e distribuição transnacionais. Deve então continuar a reivindicar
relações de semelhança e de proximidade, não relações de oposição – tem a ver
uma determinada ideia, já fossilizada, do que se supõe que deva ser a sua tradição
com a evolução recente do conceito de identidade, que segundo o filósofo francês
nacional, sem que esta possa mudar com os tempos? A resposta, segundo Mendes,
Jean-Luc Nancy passou de construir-se a partir da primeira pessoa do singular
seria a vontade do cinema português de ser percebido no estrangeiro como parte
mas passou a pôr a ênfase na primeira pessoa do plural, porque não pode haver
do que se poderá designar por world cinema:
existência individual sem coexistência com um outro: qualquer “eu”, portanto, tem
sempre um sentido social, expressa a relação de interdependência entre um sujeito
Dados os seus meios e as competências disponíveis, e e uma comunidade, estabelece uma comunicação bilateral ou mesmo multilateral
dada a cultura organizacional característica do cine- (NANCY, 1996). Se agora aplicamos esta lógica às dinâmicas da globalização,
ma português, este não pode pretender (e talvez por isso
maioritariamente não queira) fazer parte do mainstre- podemos encontrar uma interdependência similar entre o local e o global, porque
am cinematográfico e dos seus géneros, mas antes se si- algo é local em relação àquilo que é global, mas também porque desde uma
perspetiva global pode interessar enfatizar uma determinada particularidade,
5. “This category relates to financial questions: funding for filmmaking through co-productions; the question of como adverte o sociólogo britânico Roland Robertson (1995, p. 26): “What is called
niche markets; the policies of distribution and exhibition companies, and the marketing of films to global audienc-
es” (SHAW, 2013, p. 52).

116 117
local is in large degree constructed on a trans- or super-local basis. In other words, Cineastas nacionais, cineastas globais
much of the promotion of locality is in fact done from above or outside”.
A crítica internacional sente-se à vontade no circuito de festivais de cinema,
Esta última ideia abre uma nova possibilidade para definir o cinema onde experimenta a ilusão de conhecer o conjunto da produção cinematográfica
português como cinema nacional que não dependeria dos discursos gerados mundial de um determinado ano. As sessões oficiais dos grandes festivais, como
pelos cineastas portugueses. Desde esta perspetiva, o cinema português poderia Cannes, Toronto, Veneza, Berlim ou Locarno, desejam funcionar como uma
ser uma invenção do exterior, da crítica e dos distribuidores estrangeiros, pelo sinédoque do cinema mais relevante do presente, embora sejam o resultado de
menos desde os anos 80, como já afirmaram pesquisadores como Tiago Baptista uma combinação de interesses estéticos, económicos, políticos e ideológicos. A
ou o próprio João Maria Mendes: estreia mundial de um filme português em algum destes eventos implica, como
explica o cineasta João Pedro Rodrigues, “ter meio caminho andado, e a partir daí
é uma espécie de bola de neve” (em SOUSA DIAS; PEREIRA; JÁCOME, 2013, p. 270).
A ideia de “cinema nacional”, que antes unira realizadores,
público e críticos no que parecera a melhor maneira de pro- O problema, no entanto, reside na elevada concorrência e na arbitrariedade das
mover a cultura portuguesa e competir com o cinema estran-
geiro, acabou por reduzir o cinema português a um “nicho de decisões de programação, que podem seguir um sistema de quotas nacionais para
mercado” no seio do “cinema de arte” europeu – posição que reproduzir uma certa ideia da geopolítica do cinema. A lógica dos festivais pode ser
encontrou na categoria de “escola portuguesa”, imposta a
partir do estrangeiro, a sua expressão mais acabada. (BAP- assim injusta e reducionista, até ao ponto de simplificar o cinema produzido num
TISTA, 2009, p. 309) determinado país aos nomes dos suspeitos do costume, como adverte o crítico
O cinema português é singularmente visto, por uma parte da australiano Tom O’Regan (2004, p. 521): “For the vast bulk of countries, which are
sua recepção e da crítica, como um “género” ou um “quase small or medium-sized in population terms or are comparatively impoverished in
género”, e essa classificação inspira-se em Georges Sadoul, terms of film-production funding and circulation, we can be looking at ‘one-person’
que entendeu, na sua história do cinema, exercitar um vasto
olhar dedicado às “cinematografias nacionais”, suas carac- film industries”. Por este motivo, a perceção internacional do cinema português
terizações e idiossincrasias. Em determinado momento do esteve limitada, durante muito tempo, ao trabalho de Manoel de Oliveira, um
“pós-Cinema Novo”, parte da crítica internacional, sobretudo
francófona, chegou a falar de uma école portugaise, a des- cineasta considerado, simultaneamente, como autor nacional e como autor global.
peito da variedade das experiências autorais que nela se sin- Esta condição quase anfíbia, que o situou numa posição intermédia entre o local e
gularizavam. (2013, p. 502). o global, é consequência de uma das maiores virtudes da sua obra: ser “um cinema
feito de olhos postos no estrangeiro, mas sem nunca virar as costas à realidade
cultural do seu país de origem”, segundo a definição de Tiago Baptista (2009, p. 314).
Quando a crítica internacional põe a sua atenção num determinado
cinema nacional – quer o romeno, quer o filipino, para nomear apenas dois O caminho inaugurado por Manoel de Oliveira seria depois percorrido por
casos célebres na década passada –, não está sempre a chamar a atenção outros cineastas mais novos, como Paulo Rocha, João César Monteiro, Pedro
sobre o caráter representativo de uma determinada nação, senão que às vezes Costa ou Miguel Gomes. O facto de que este sucesso anteceda à distribuição
está apenas a definir estes cinemas nacionais como cinemas estrangeiros ou dos filmes nas próprias salas nacionais confirma a tese, defendida por Baptista,
exóticos para o público cinéfilo internacional que os lê, e que muitas vezes de que o “autorismo nacional” foi “construído a partir do estrangeiro” (2009, p.
coincide com o público nacional de países como França, Reino Unido ou Estados 310). A dedução lógica que se pode fazer a partir desta ideia é que os cineastas
Unidos. “[T]he phenomenon of the art house”, escreve a teórica indiana Jigna portugueses precisam primeiro afirmar-se como autores globais para depois serem
Desai (2004, p. 37), “is based on positioning ‘foreign’ films as ethnographic reconhecidos como autores nacionais. O modelo a imitar seria, portanto, o do autor
documents of ‘other’ (national) cultures and therefore as representatives of global, segundo foi descrito pelo historiador do cinema Thomas Elsaesser (2005, p.
national cinemas”. Nestes casos, a identificação de um cinema nacional é 499) há mais duma década:
produto da sua circulação internacional, pelo que não se pode entender este
conceito como uma entidade autónoma e isolada, sobretudo se queremos que
continue a ser operativo no presente.

118 119
He/she must be able to attract attention on the festival circuit, segunda etapa, na qual o conteúdo seria local e a forma, internacional. Os filmes que
but otherwise need not be capable of captivating the broad Manoel de Oliveira realiza a partir da Tetralogia dos Amores Frustrados, assim como
general cinema-going public. The auteur’s natural home would
then be world cinema, rather than the old national cinemas, o trabalho de outros cineastas modernos associados à escola portuguesa, supõem
thereby signalling a cinema that, while perhaps not suited for a entrada na terceira etapa. Por último, a consolidação do cinema pós-moderno
the national market, does well in international export markets,
reaches the secondary markets of television or even the mass no novo milénio permite reconhecer a quarta etapa, mas os trabalhos dos poucos
marketing of DVD releases with their vast network of internet- autores globais portugueses que há no presente, entre os quais Pedro Costa e Miguel
-based fan sites and DVD reviews. A world cinema auteur thus Gomes, ainda não tiveram uma repercussão tão generalizada para que seja possível
can reach across many different countries, and under diffe-
rent reception conditions, can find a niche market with a de- identificar o cinema português com uma cultura transmissora.
dicated audience.

Influências transnacionais: o cinema como pátria


Um número elevado de autores globais procedentes de um mesmo país – por
pequeno que seja – ajuda os cinemas nacionais a ocupar uma posição de poder nos A aceleração das dinâmicas de troca e dos processos de transferência cultural a
processos de transferência cultural. Estes processos, estudados pelo semiótico russo partir dos anos 80 provocou que o paradigma dos cinemas nacionais ficasse obsoleto
Yuri M. Lotman, são o resultado das relações de troca estabelecidas entre diferentes na transição do milénio. A causa principal desta mudança de paradigma, segundo
culturas, que costumam desenvolver-se em cinco etapas sucessivas: na primeira, argumentam Elizabeth Ezra e Terry Rowden, é que as estruturas epistemológicas e
os produtos culturais importados mantêm a sua estranheza e são mais valorizados referenciais que os filmes contemporâneos requerem para ser descodificados estão
que os produtos autóctones; na segunda, começa uma lenta reestruturação entre a perder as particularidades nacionais e culturais que tiveram no passado (2006,
a cultura importada e a cultura local, no que aumenta a apreciação dos produtos p. 4). Esta explicação surge depois da quebra do paradigma anterior, embora haja
autóctones; na terceira, essa reestruturação evolui numa fusão onde ainda é possível outros críticos, começando pelo próprio Andrew Higson, que procuram as causas
distinguir os modelos e valores importados; na quarta, a influência estrangeira fica desta quebra nos defeitos de construção do próprio paradigma. Num exercício de
definitivamente diluída na cultura local; e na quinta, a cultura receptora evolui até se autocrítica muito louvável com respeito ao seu trabalho prévio sobre os cinemas
converter numa cultura transmissora, capaz de influenciar outras culturas através da nacionais, Higson (2006, p. 20) reconhece que “the concept of national cinema is hardly
exportação dos seus próprios produtos culturais (LOTMAN, 1990, p 146). able to do justice either to the internal diversity of contemporary cultural formations
or to the overlaps and interpenetrations between different formations”. Para além
Nas últimas décadas, um dos poucos cinemas nacionais que atravessou disso, o próprio conceito de cinema nacional só faz sentido num contexto estável e
estas cinco etapas, passando do estádio de cultura receptora ao de cultura estático, que não admite evolução nenhuma, pelo que qualquer definição do que
transmissora, foi o cinema produzido na Coreia do Sul, que em apenas 15 anos possa ser um cinema nacional fica restringida a um momento histórico concreto:
conseguiu posicionar vários dos seus cineastas – Bong Joon-ho, Hong Sang-soo, Im
Kwon-taek, Kim Ki-duk, Lee Chang-dong, Park Chan-wook, entre outros – dentro
do seleto grupo dos autores globais. The problem with this formulation is that it tends to assume
that national identity and tradition are already fully formed
O caso português é bem diferente. Longe do modelo coreano, que assenta sobre and fixed in place. It also tends to take borders for granted
and to assume that those borders are effective in containing
a existência de uma indústria audiovisual e de um mercado interior muito fortes, o political and economic developments, cultural practice and
cinema português percorreu três ou quatro etapas do processo, mas a sua fraqueza identity. In fact, of course, borders are always leaky and there
is a considerable degree of movement across them (even in
económica não lhe permite ainda atingir o quinto e último níveis. A oposição entre as the most authoritarian states). It is in this migration, this bor-
comédias “à portuguesa” e o cinema clássico de Hollywood dos anos 30, 40 e 50 seria der crossing, that the transnational emerges. Seen in this light,
um bom exemplo da primeira etapa, que permite a introdução de novos formatos e it is difficult to see the indigenous as either pure or stable. On
the contrary, the degree of cultural cross-breeding and inter-
paradigmas críticos numa determinada cultura para iniciar o seu posterior processo penetration, not only across borders but also within them, su-
de regeneração. As tentativas do Novo Cinema Português de aproximar o cinema ggests that modern cultural formations are invariably hybrid
and impure. (HIGSON, 2006, pp. 18-19)
português da modernidade europeia dos anos 60 e 70 implicaria a entrada na

120 121
A sociedade portuguesa contemporânea é herdeira de todas as suas formas os Muros da Escola (Laurent Cantet, 2008), 24 City (Jia Zhang-ke, 2008,), Alamar
anteriores – a sociedade autoritária do Estado Novo, a sociedade militante da (Pedro González-Rubio, 2009), As Quatro Voltas (Michelangelo Frammartino, 2010)
Revolução dos Cravos, a sociedade consumista da III República, etc. – e muda e Vocês Todos São Capitães (Oliver Laxe, 2010); e Tabu (Miguel Gomes, 2012), por
constantemente como resultado do seu encontro com a história. O cinema último, inclui referências explícitas a Tabu (Friedrich Murnau, 1931), Viver a Vida
português, em paralelo, reflete o imaginário destas sociedades, nas quais há (Jean-Luc Godard, 1961), Entre Dois Amores (Sydney Pollack, 1985) e Paraíso Perdido
sempre permanências do passado e influências do estrangeiro. Por este motivo, (Alberto Seixas Santos, 1995), entre outros filmes.
os cineastas mais novos, especialmente aqueles abertamente pós-modernos,
O trabalho de reconhecimento destas referências forma parte dum jogo
trabalham na interseção entre o cinema nacional – a herança da escola portuguesa
que os cineastas pós-modernos estabelecem com o seu público, embora Gomes
– e o cinema transnacional – a influência de referentes e companheiros de geração
não se limite a acumulá-las sem intervir nelas, mas processa-as, transforma-as
que formam “uma rede arquipelágica de empatias internacionais relativamente
e integra-as a seu próprio universo criativo, seguindo o modelo popularizado por
desenraizadas”, nas palavras de João Maria Mendes (2013, p. 543), “cujos membros
cineastas norte-americanos como David Lynch, Todd Haynes, Quentin Tarantino,
se sentem próximos uns dos outros independentemente das suas proveniências ou
Paul Thomas Anderson ou Guy Maddin.
inscrições regionais”. Nesta deriva, a filiação com a escola portuguesa é apenas
uma possibilidade estética entre muitas outras que dependem dos gostos pessoais Este jogo de reconhecimento de referências serve mesmo para explicar o
e da educação cinéfila de cada cineasta. A cinefilia, definida na sua versão pós- dispositivo estético adotado durante a segunda parte de Tabu. Assim, a frase
moderna pelo académico norte-americano David Desser (2003, p. 528) como “Aurora tinha uma fazenda em África no sopé do Monte Tabu” (Tabu, 2012,
“the ability and necessity of acknowledging the intertextual chain of references, 00:50:10-00:50:32) remete a uma linha equivalente de Entre Dois Amores: “I had a
borrowings, and reworkings”, está de facto na base de duas das categorias do farm in Africa at the foot of the Ngong Hills”. A sua função narrativa é idêntica – as
cinema transnacional analisadas por Deborah Shaw: “influências transnacionais” duas frases dão início ao relato de um tempo passado –, mas Gomes aproveita
e “aproximações críticas transnacionais”6. Esta autora reforça a ideia de que o reconhecimento por parte dos espectadores desta citação para dar uma
nenhum cinema nacional pode existir numa situação de completo isolamento, dica sobre a origem das imagens que vamos ver a seguir. A frase em questão é
sobretudo num momento histórico marcado pela crescente interconexão e pronunciada pelo personagem de Gianluca Ventura, o antigo amante de Aurora,
interdependência entre sistemas económicos, culturais e sociais. diante de Pilar e Santa, duas mulheres de meia-idade que sabemos que gostam
muito dos relatos cinematográficos – Pilar vai várias vezes ao cinema durante
Alguns exemplos muito evidentes de cineastas-cinéfilos dentro do cinema
a primeira metade de Tabu – e literários – Santa lê Robinson Crusoé (DEFOE,
português contemporâneo seriam Pedro Costa, Manuel Mozos, João Pedro
1719) para as suas aulas de educação para adultos. A cara de incredulidade que
Rodrigues, Miguel Gomes ou João Nicolau. O caso particular de Gomes é tão
apresenta Pilar depois de ouvir essa frase sugere que a sua personagem também
paradigmático que Paulo Cunha chegou a escrever há dois anos um texto sobre
reconhecera a referência a Entre Dois Amores, de forma que as imagens que
a sua obra titulado, precisamente, “Miguel Gomes, el cinéfilo”. Nessas páginas,
veremos a partir de então poderão ser o produto da sua imaginação cinéfila,
Cunha (2014, pp. 108-133) fazia um percurso por algumas das referências cinéfilas
alimentada por títulos clássicos – e estrangeiros –, como Mogambo (1953) ou Hatari!
que apareciam nos seus filmes anteriores ao projeto As Mil e Uma Noites (2015),
(1962). Nesta sequência, a cinefilia de Gomes projeta-se sobre a cinefilia da sua
e os resultados não podiam ser mais diversos em termos temporais, nacionais,
personagem, e apela também à cinefilia dos espectadores sem marcar nenhuma
estilísticos e genéricos: A Cara que Mereces (2004), por exemplo, contém citações
fronteira nacional ou cultural. Portanto, a operação de pôr em imagens a paixão
e referências a Branca de Neve e os Sete anões (1937), O Mágico de Oz (1939) e à
de Aurora e Gianluca combina vários elementos transnacionais: um autor global
obra do cineasta norte-americano Wes Anderson; Aquele Querido Mês de Agosto
que põe uma personagem portuguesa a imaginar um continente alheio – África –
(2008) atualiza a tradição portuguesa da ficção documental, representada por
a partir de referentes cinéfilos predominantemente norte-americanos.
Acto de Primavera (1963) e Nós por Cá Todos Bem (1978), num momento em que este
género experimenta uma forte renovação internacional, com títulos como Entre João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata levam ainda mais longe este
jogo de referências transnacionais em A Última Vez Que Vi Macau (2012), um filme
6. “These categories assume intertextuality in that every film made has been consciously or unconsciously que é muitos filmes ao mesmo tempo: um documentário sobre a cidade de Macau,
shaped by pre-existing cultural products from all over the world” (SHAW, 2013, p. 58).

122 123
um autorretrato urbano de Guerra da Mata, uma autoficção, um thriller neonoir, portuguesa, já que implica o desaparecimento simultâneo do seu passado como
um filme fantástico, um filme de catástrofes, e mesmo uma reescrita pós-moderna indivíduo. A progressiva tomada de consciência da sua condição de sujeito pós-
do filme Macao (Josef von Sternberg e Nicholas Ray, 1952). O próprio título é um colonial reflete-se em muitas linhas do comentário, que emprega uma perspetiva
trocadilho, porque pode fazer alusão à última vez que Guerra da Mata – quer o subjetiva e individual para atingir uma dimensão coletiva e nacional:
cineasta, quer o protagonista desta autoficção – viu Macau, a cidade, ou Macao, o
filme. A fascinação pelo trabalho de Josef von Sternberg e Nicholas Ray leva Rodrigues
No centro da praça mais emblemática da cidade, revestida
e Guerra da Mata a reproduzir a sua iconografia com uma vontade caligráfica, mas da nacionalista calçada portuguesa nos últimos anos da nos-
com uns interesses completamente diferentes. Por exemplo, a personagem a que sa dominação, encontro um retrato de Mao Tsé-Tung com os
seus operários, soldados e camponeses a posar para a recor-
Guerra da Mata dá voz, com uma dicção muito similar à dos detetives particulares
dação duma eufórica Revolução Cultural. Como se a história
dos filmes noir dos anos 40, chega à cidade por mar, como Julie Benson e Nick se apagasse com um simples clique das dezenas de máqui-
Cochram, as personagens que interpretavam respetivamente Jane Russell e Robert nas fotográficas que obsessivamente congelam a memória
e ficcionam a felicidade. (A Última Vez Que Vi Macau, 2012,
Mitchum em Macao. Ele vai ao encontro da sua amiga Candy, que trabalha como 00:13:28-00:13:58)
cantora de night club – mais uma vez, da mesma forma que Julie –, mas só encontra
As ruas pareciam-me todas iguais. Perdi-me. Pedi explica-
os seus rastos: em concreto, um sapato e umas meias-calças – os mesmos objetos ções, mas ninguém conseguia compreender. Quatro séculos
que Julie atirava e que atingiam Nick. Por último, os dois filmes situam uma das suas de Portugal em Macau e ninguém fala português. (A Última
Vez Que Vi Macau, 2012, 00:18:45-00:19:22)
sequências mais importantes – a morte e o desaparecimento de uma personagem
– nas docas de Macau. Todas estas coincidências, que só podem ser voluntárias,
ajudam o público e a personagem de Guerra da Mata a navegar entre o passado
O reencontro frustrado de Guerra da Mata com a sua antiga cidade será um
e o presente: o cineasta tem explicado em várias apresentações do filme7 que a
caso de “transnacionalismo epifánico”, uma categoria em que “the emphasis”,
cidade que ele conheceu na sua infância, nos anos 70, tinha mais parecenças com
como escreve Mette Hjort (2009, p. 16), “is on the cinematic articulation of those
a Macau imaginária de Sternberg e Ray do que com a cidade que ele encontrou
elements of deep national belonging that overlap with aspects of other national
40 anos depois. Neste sentido, por estranho que pareça, a referência cinéfila a um
identities to produce something resembling deep transnational belonging”. Outro
filme estrangeiro rodado completamente em estúdio, longe do próprio território,
filme português que poderá entrar nesta categoria é Ganhar a Vida (João Canijo,
resulta mais próxima, e aparentemente mais fiel, às suas recordações emocionais.
2001), já que a sua forma e o seu conteúdo partilham elementos de diferentes
tradições nacionais: por um lado, a tradição portuguesa, porque o seu relato
decorre no interior de uma comunidade de emigrantes portugueses instalada
Transnacionalismos epifánicos, por afinidade e cosmopolita
num bairro periférico de Paris; por outro lado, a tradição francesa, porque esse
Os elementos transnacionais que aparecem em A Última Vez Que Vi Macau mesmo relato pode ser percebido desde a perspetiva contrária, como um relato
são mais complexos e profundos do que um simples jogo de reconhecimento de de imigrantes dentro do género do cinema de banlieu; e, por último, a tradição
referências. Este filme está concebido a partir do confronto entre o passado colonial europeia do cinema de autor, influenciada nessa altura pelas propostas do
e o presente pós-colonial de Macau, uma contradição na qual a personagem de movimento cinematográfico dinamarquês Dogma 95, do que João Canijo tira
Guerra da Mata é um sujeito deslocado, porque apenas pode reconhecer os seus algumas ideias estilísticas relativas à rodagem com câmara digital.
locais através da memória. A sua desorientação é o resultado das transformações
Ganhar a Vida é uma das muitas coproduções franco-portuguesas que
urbanas e culturais de Macau, uma cidade que aproveita o seu património colonial
se produzem desde os anos 80, pelo menos desde que o produtor Paulo Branco
como anúncio turístico, enquanto enche as suas ruas de símbolos chineses e,
multiplicou a sua atividade cinematográfica entre Lisboa e Paris. Os filmes
sobretudo, capitalistas. O relato da cidade mudou por completo, e só um ex-colono
sucessivamente produzidos pelas suas empresas – Madragoa Filmes, Gemini Films,
como Guerra da Mata parece preocupado com o desaparecimento da herança
Clap Filmes, Alfama Films, etc. – são exemplos da categoria “transnacionalismo
por afinidade”; ou seja, um tipo de coprodução focada, segundo Hjort (2009, p. 17),
7. Um exemplo concreto seria no colóquio posterior à projeção de A Última Vez Que Vi Macau, no III Encontro Anual
da AIM, que aconteceu a 10 de maio de 2013, em Coimbra. “on ‘the tendency to communicate with those similar to us’, with similarity typically

124 125
being understood in terms of ethnicity, partially overlapping or mutually intelligible Os cabo-verdianos de Lisboa são então tão portugueses como os minhotos
languages, and a history of interaction giving rise to shared core values, common ou os algarvios, porque encarnam o outro cultural que, como lembra Catherine
practices, and comparable institutions”. Russell (1999, p. 24), sempre fez parte de nós próprios e das nossas nações. Estando
consciente desta situação, Costa está há 20 anos a dar voz e visibilidade a esta
Esta categoria é aquela na qual mais filmes portugueses encontram uma
comunidade, lutando para que a sua história seja também parte da história
dimensão transnacional, porque sabem aproveitar o apoio económico estrangeiro
nacional portuguesa: primeiro, Casa de Lava introduziu no cinema português a
para transformar essas relações de afinidade em sinergias criativas. Neste sentido,
figura do trabalhador africano emigrante empregado no setor da construção;
Mistérios de Lisboa (Raúl Ruiz, 2010) é a grande obra-prima do “transnacionalismo
depois, Ossos (1997) mostrou a morada destes trabalhadores e a sua relação com
por afinidade”: trata-se duma coprodução franco-portuguesa realizada por um
a cidade; No Quarto da Vanda (2000) ofereceu um relato oral da história dos seus
cineasta chileno que conta uma história, adaptada de vários escritos de um autor
bairros, representados pelas Fontainhas, no preciso momento da sua destruição;
clássico português (Camilo Castelo Branco), falada em várias línguas e que se passa
Juventude em Marcha (2006) documentou a deslocação da comunidade para um
em quatro países diferentes – Portugal, França, Itália e Brasil. Qual será então a
bairro novo, Casal da Boba, onde chegará também com os seus próprios fantasmas;
nacionalidade de Mistérios de Lisboa?
e, por último, Cavalo Dinheiro (2014) explora abertamente a memória histórica da
Raúl Ruiz é também um dos casos mais claros de cineasta cosmopolita: primeiro comunidade, uma memória feita de traumas pessoais e laborais, que às vezes pode
começa a filmar no seu país natal, Chile; depois, durante a ditadura de Augusto Pinochet, mesmo inverter os discursos fundacionais da nação portuguesa.8
continua a sua obra no exílio, em França; nestes anos também visita Portugal em
Os intérpretes com quem Costa trabalha desde Ossos – Vanda, Nhurro,
várias ocasiões para fazer filmes com Paulo Branco; nos anos 90 emigra pontualmente
Ventura, Lento, Vitalina – têm a virtude de ser, ao mesmo tempo, eles mesmos e
para Estados Unidos por motivos profissionais; e volta também de modo recorrente ao
todas as pessoas que alguma vez foram como eles: cabo-verdianos, drogados,
Chile para lá filmar nos últimos anos da sua vida. Este nomadismo fez com que Ruiz
imigrantes, os párias da história, os ninguém de nenhures. Ventura, por exemplo,
desenvolvesse uma identidade cosmopolita que lhe permitiu entrar e sair de diferentes
representa as vítimas dos processos de globalização económica, mas também
cinemas nacionais, assim como transmitir, em filmes como Diálogos de Exilados (1975),
aqueles emigrantes capazes de sobreviver à adversidade num ambiente hostil até
a situação pessoal dos sujeitos deslocados pela história: indivíduos expatriados, pós-
conseguir melhorar a sua qualidade de vida, como lhe lembra o fantasma de Lento
coloniais e pós-nacionais, que devem lidar com a emigração, o exílio e umas sociedades
numa das sequências finais de Juventude em Marcha. O sentimento de perda e de
de acolhimento nem sempre tão hospitaleiras como deveriam. Estas pessoas são os
dépaysement que experimentam este tipo de personagem nos filmes inscritos no
protagonistas dos filmes inscritos na categoria do transnacionalismo cosmopolita, que
transnacionalismo cosmopolita não é representado “as transitional states on the
explora “issues relevant to particular communities situated in a number of different
transnational subject’s path to either transcendence or tragedy”, como escrevem
national or subnational locations to which the cosmopolitan auteur has a certain
Elisabeth Erza e Terry Rowden (2006, p. 7), “but instead as more or less permanent
privileged access” (HJORT, 2009, p. 20).
conditions”. O seu drama não pode responder a um arco argumental fechado,
A comunidade emigrante de Ganhar a Vida é o sujeito característico do porque atinge ao conjunto da sua vida: depois do filme acabar, a saudade destes
“transnacionalismo cosmopolita”, mas há um exemplo mais evidente desta sujeitos permanece fora do ecrã, lá onde vive uma pessoa deslocada.
modalidade no cinema realizado em Portugal: o longa saga cabo-verdiano filmado
Sónia, a protagonista de Transe (Teresa Villaverde, 2006), sofre também este
por Pedro Costa a partir de Casa de Lava (1994). Apesar destas populações marginais
mesmo destino durante a sua longa viagem através da Europa, desde a Rússia até
terem sido historicamente privadas de representação, porque não entram no perfil
Portugal, passando por Alemanha e Itália. Vítima das redes de tráfico de pessoas e
habitual de cidadãos nacionais, a sua perspetiva tornou-se essencial nas últimas
de exploração sexual, primeiro perderá a sua liberdade, depois a sua identidade e
décadas para compreender a experiência histórica e cultural das metrópoles
finalmente a sua própria vontade, a sua capacidade de resistência. Este processo é
ocidentais contemporâneas, como argumenta o teórico indiano Homi K. Bhabha
(1994, p. 6): as nossas sociedades devem assim enfrentar “its postcolonial history,
told by its influx of postwar migrants and refugees, as an indigenous or native 8. O exemplo mais evidente desta dinâmica seria a experiência dos cabo-verdianos durante o 25 de Abril, refletida
tanto em Juventude em Marcha como em Cavalo Dinheiro. Os dois filmes mostram o pânico que viveu durante es-
narrative internal to its national identity”. ses dias esta comunidade ao ser vítima da violência gratuita que os mesmos soldados que lutavam pela liberdade
do povo português exerciam contra eles como divertimento noturno.

126 127
gradual e irreversível, e vem marcado pela passagem de sucessivas fronteiras e pelo Nesse artigo, Baptista chega à conclusão de que “as ideias predominantes
emprego de quatro línguas diferentes: russo, alemão, italiano e português. Embora sobre o que o ‘nosso’ país é (ou não é), excluem muito silenciosamente – mas
a cineasta e a intérprete protagonista, Ana Moreira, sejam portuguesas, Transe não também muito eficazmente – várias outras pessoas, memórias e experiências do
se pode inscrever num único cinema nacional, nomeadamente porque a natureza que é a vida, o trabalho e o lazer em Portugal” (Ibidem, p. 322). Para inverter esta
do tema abordado e do tratamento escolhido é profundamente transnacional. tendência, a geração de Costa, Canijo, Villaverde e Rodrigues, juntamente com
outros cineastas mais jovens, como Miguel Gomes, João Nicolau, João Salaviza
A mesma história já foi contada sem sair de Portugal – mesmo sem sair dum
ou Salomé Lamas, tentam filmar o mundo desde Portugal, para assim posicionar
único local – em Noite Escura (João Canijo, 2004), no qual assistimos ao início de um
Portugal no mundo.
processo similar: o pai de uma família proprietária de uma casa de alterne vende
a sua jovem filha – que curiosamente também se chama Sónia – a uma rede de Os seus filmes apresentam as qualidades das formas que Mette Hjort (2009, p.
tráfico de pessoas para saldar uma dívida que tem com eles. As dinâmicas internas 15) considera mais valiosas do cinema transnacional: em primeiro lugar, “a resistance
da família protagonista, como tem analisado Daniel Ribas (2014) na sua tese sobre to globalization as cultural homogenization”, porque são filmes realizados desde
o cinema de João Canijo, mostram umas características tipicamente portuguesas, Portugal e sobre Portugal, isto é, desde as margens da indústria cinematográfica e
mas a casa de alterne está concebida como um não lugar extraído do seu contexto, do sistema-mundo, mas com uma clara vocação de abordar problemas universais;
que poderia estar em qualquer lugar de Europa, e as mulheres que lá trabalham e, em segundo lugar, “a commitment to ensuring that certain economic realities
são, mais uma vez, sujeitos transnacionais condenados ao movimento perpétuo. O associated with filmmaking do not eclipse the pursuit of aesthetic, artistic, social,
filme, desta vez, não foi coproduzido com nenhum outro país, mas mesmo assim a and political values”, porque são filmes exigentes, intransigentes e comprometidos
sua história e o seu estilo, como já acontecia no anterior trabalho de Canijo, Ganhar com a sua própria concepção de cinema, incluindo os trabalhos lúdicos e evasivos
a Vida, apresentam uma clara vocação cosmopolita. de Miguel Gomes e João Nicolau.

Todos estes cineastas apelam para a inteligência do público e não se


envergonham dos seus baixos orçamentos, relativamente ao padrão norte-
Conclusão
americano ou mesmo algum europeu, que às vezes funcionam mesmo como
Pedro Costa, João Canijo, Teresa Villaverde e João Pedro Rodrigues pertencem estímulos criativos, como acontece em A Última Vez Que Vi Macau e Cavalo Dinheiro
a uma geração de cineastas que, a partir dos anos 90, vão ampliar os temas e as – ainda que esta situação não agrade a investigadores como João Maria Mendes,
personagens abordadas até então pelo cinema português. Esta geração introduziu que reclamam uma cultura organizacional mais complexa e diversificada.
uma mudança muito significativa no próprio conceito de cinema português, porque
Os temas escolhidos, as personagens representadas, as decisões estéticas e as
soube renovar a sua tradição através de um encontro, inédito e inesperado nessa
dinâmicas narrativas de uma parte do cinema português contemporâneo refletem
altura, com o presente e com o real, como explica Tiago Baptista (2009, pp. 320-321):
de forma direta ou indireta a integração de Portugal no sistema cinematográfico
mundial. Não faz sentido, portanto, continuar a pensar o cinema português a partir
Poucos filmes, antes destes, pareciam tão ancorados no seu da diferença, como uma entidade autónoma e isolada que fica à margem destes
próprio tempo. E poucos, também, tinham demonstrado ta- processos globais. Faz falta, pelo contrário, que os críticos mudem de perspetiva,
manha indiferença às reflexões sobre a “portugalidade”. Pou-
cos, em suma, tinham mergulhado tão profundamente no país sobretudo depois da mudança já realizada por muitos cineastas.
e, ao mesmo tempo, se tinham distanciado tanto dele (…). As
personagens destes filmes viviam, trabalhavam, sofriam e
morriam como pessoas, e não como portugueses. Quando
os filmes portugueses mergulharam de cabeça no presente
e descobriram tudo o que ele não tinha de especificamente
português (e era muito), conseguiram escapar pela primeira
vez às armadilhas de um “cinema nacional”.
24 City [longa-metragem]. Dir. Jia Zhang-ke. Bandai Visual Company/ Bitters End/

128 129
Filmografia No Quarto da Vanda [longa-metragem]. Dir.: Pedro Costa. Contracosta Produções/
Ventura Film/ Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual/ Pandora
Filmproduktion/ Televisione Svizzera Italiana/ Zweites Deutsches Fernsehen,
Portugal/ Alemanha/ Suíça, 2000. 170 min.
China Resources/ Office Kitano/ Shanghai Film Group/ Xstream Pictures, China/
Noite Escura [longa-metragem]. Dir.: João Canijo. Madragoa Filmes/ Gemini Films,
Hong Kong/ Japão, 2008. 112 min.
Portugal, 2004. 94 min.
Acto de Primavera [longa-metragem]. Dir. Manoel de Oliveira. Portugal, 1963. 94 min.
Nós por cá Todos Bem [longa-metragem]. Dir.: Fernando Lopes. Centro Português
Alamar [longa-metragem]. Dir. Pedro González-Rubio. Mantarraya Producciones/ de Cinema (CPC), Portugal, 1978. 80 min.
Xkalakarma, México, 2009. 73 min.
Ossos [longa-metragem]. Dir.: Pedro Costa. Madragoa Filmes/ Gemini Films/
Aquele Querido Mês de Agosto [longa-metragem]. Dir. Miguel Gomes. O Som e a Zentropa Productions, Portugal/ França/ Dinamarca,1997. 94 min.
Fúria/ Shellac Films, Portugal/ França, 2008. 147 min.
Entre Dois Amores (Out of Africa) [longa-metragem]. Dir.: Sidney Pollack. Mirage
A Cara que Mereces [longa-metragem]. Dir. Miguel Gomes. O Som e a Fúria, Enterprises, Universal Pictures, Estados Unidos, 1985. 161 min.
Portugal, 2004. 108 min.
Paraíso Perdido [longa-metragem]. Dir.: Alberto Seixas Santos. Animatógrafo
Casa de Lava [longa-metragem]. Dir. Pedro Costa. Madragoa Filmes/ Gemini Films/ / Fundação Calouste Gulbenkian / Instituto Português de Cinema (IPC) /
Pandora Filmproduktion, Portugal/ França/ Alemanha, 1994. 110 min. Radiotelevisão Portuguesa (RTP), Portugal, 1995. 90 min.

Cavalo Dinheiro [longa-metragem]. Dir.: Pedro Costa. Sociedade Óptica Técnica, As Quatro Voltas (Le quattro volte) [longa-metragem]. Dir.: Michelangelo
Portugal, 2014. 103 min. Frammartino. Invisibile Film/ Ventura Film/ Vivo Film/ Essential Filmproduktion
GmbH et al., Itália/ Alemanha/ Suíça, 2010. 88 min.
Diálogos de Exilados [longa-metragem]. Dir.: Raúl Ruiz. Chile / França, 1975. 100 min.
Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs) [longa-
Entre os Muros da Escola (Entre les murs) [longa-metragem]. Dir.: Laurent Cantet. metragem]. Dir.: David Hand, William Cottrell, Wilfred Jackson, Larry Morey, Perce
Haut et Court/ France 2 Cinéma et al., França, 2008. 128 min. Pearce, Ben Sharpsteen. Walt Disney Productions, Estados Unidos, 1937. 83 min.
Ganhar a Vida [longa-metragem]. Dir.: João Canijo. Madragoa Filmes/ Gemini Tabu [longa-metragem]. Dir.: Miguel Gomes. O Som e a Fúria / Komplizen Film
Films/ Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM)/ La Sept-Arte/ / Gullane Filmes / Shellac Sud Z et al., Portugal / Alemanha / Brasil / França /
Radiotelevisão Portuguesa (RTP), Portugal/ França, 2001. 115 min. Espanha, 2012. 118 min.
Hatari! [longa-metragem]. Dir.: Howard Hawks. Malabar, Estados Unidos, 1962. 157 min. Tabu (Tabu, a Story of the South Seas) [longa-metragem]. Dir.: Friedrich W. Murnau.
Murnau-Flaherty Productions, Estados Unidos, 1931. 86 min.
Juventude em Marcha [longa-metragem]. Dir.: Pedro Costa. Contracosta
Produções / Ventura Film / Les Films de L’Etranger / Radiotelevisão Portuguesa Transe [longa-metragem] Dir.: Teresa Villaverde. Madragoa Filmes/ Gémini Films /
(RTP) / Unlimited, Portugal / França / Suíça, 2006. 155 min. Clap Filmes/ Revolver Film/ The Hermitage Bridge Studio, Portugal/ França/ Itália/
Rússia, 2006. 126 min.
Macao [longa-metragem]. Dir.: Josef von Sternberg e Nicholas Ray. RKO Radio
Pictures, Estados Unidos, 1952. 81 min. Vocês Todos São Capitães (Todos vós sodes capitáns) [longa-metragem]. Dir.:
Óliver Laxe. Zeitun Films, Espanha, 2010. 78 min.
As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto; Volume 2, O Desolado; Volume 3, O
A Ultima Vez Que Vi Macau [longa-metragem]. Dir.: João Pedro Rodrigues e João Rui
Encantado [três longa-metragens]. Dir.: Miguel Gomes. O Som e a Fúria/ Shellac
Guerra da Mata. Blackmaria/ Epicentre Films/ Instituto do Cinema e do Audiovisual
Sud/ Komplizen Film/ Box Productions et al, Portugal/ França/ Alemanha/ Suíça,
(ICA), 2012. 82 min.
2015. 125 min. /131 min. /125 min.
Viver a Vida (Vivre sa vie: Film en douze tableaux) [longa-metragem]. Dir.: Jean-Luc
Mistérios de Lisboa [longa-metragem]. Dir.: Raúl Ruiz. Clap Filmes et al., Portugal/
Godard. Les Films de la Pléiade / Pathé Consortium Cinéma, França, 1961. 80 min.
França, 2010. 272 min.
O Mágico de Oz (The Wizard of Oz) [longa-metragem]. Dir. Victor Fleming. Metro-
Mogambo [longa-metragem]. Dir.: John Ford. Metro-Goldwyn-Mayer, Estados
Goldwyn-Mayer, Estados Unidos, 1939. 102 min.
Unidos, 1953. 116 min.

130 131
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132 133
1
DE
PORTUGAL 1. Introdução: para uma metodologia de investigação
PARA
O As histórias do cinema são um lugar estabelecido nas últimas décadas. Parte do dis-
MUNDO
curso construído por essas histórias relaciona-se com autores ou movimentos que
marcaram determinada época ou período. Muitas vezes, essas histórias foram fei-
tas a partir dos espaços nacionais, permitindo a criação de cânones de filmes. No
entanto, nas décadas mais recentes, um conjunto de novas abordagens ao cinema
nacional têm permitido repensar esse espaço na sua eminente diversidade (CROFTS,
2002; HIGSON, 2002). Para além disso, as novas preocupações com o conceito de
cinema nacional e as suas problemáticas originaram, entre o final dos anos 90 e os
anos 2000, diversos livros que discutem a amplitude do conceito, sobretudo respon-
dendo às novas inquietações com os conceitos de Estado-nação e identidade na-
cional. Olhar para um cinema nacional exige, portanto, uma complexidade de análi-
ses, em que se depreenderão conceitos diferentes sobre o que é um filme nacional.

Quebrando
Andrew Higson (2002, pp. 52-53) desenvolveu uma conceptualização das ideias do
cinema nacional, dividindo-as em diferentes categorias, expressando, dessa forma,
os diferentes ângulos sobre os quais podemos falar de cinema nacional:

tabus: para
· A organização da estrutura produtiva da indústria nacional: as suas
empresas de produção, os seus recursos humanos e técnicos, as relações

uma análise
entre os setores de produção, distribuição e exibição; neste aspeto tanto
se fala dos modos de produção como da organização económica do setor
em determinado país;

dos modos
· a dimensão textual das obras e o que as narrativas e as formas de filmar
nos dizem sobre determinando contexto, procurando estilos comuns; é

de produção
aqui que se colocam diversas questões temáticas sobre a identidade
nacional e a nação;

no cinema
· a audiência de determinando espaço de exibição: os filmes que são vistos
proporcionando práticas culturais específicas; esta dimensão permite
reanalisar aquilo que pensamos sobre uma cultura cinematográfica

português1
nacional.

· por último, um enfoque a partir do ponto de vista dos discursos críticos,

contemporâneo
que se desenvolvem a partir de uma tradição modernista e de elites no
contexto dos Estados-nação ocidentais; são estes discursos que promo
vem a criação de cânones.

Paulo Cunha
e Daniel Ribas 1. Este texto foi originalmente publicado em: GARCÍA, F. G.; ALVES, P. (Ed.). Oficios del Cine: Manual para Prácticas
Cinematográficas. ICONO14/CITCEM, 2017. Agradecemos aos seus editores a autorização para a republicação.

134 135
Este cânone nacional, para além de ter origem no interior da cultura nacional, é assinala o autor (2005, p. 65), esse favorecimento – assente numa circulação in-
desenvolvido sobretudo a partir da circulação internacional dos filmes, nomeada- ternacional através dos festivais e salas de cinema de arte e ensaio – minimiza a
mente através dos festivais de cinema, e da promoção de uma receção crítica que receção comercial no mercado nacional, estabelecendo tensões entre o cinema
esses festivais sugerem, e de textos publicados em prestigiadas revistas críticas in- de autor e o cinema comercial no contexto nacional. Aliás, os discursos que impli-
ternacionais. Por isso, podemos falar, no que diz respeito a um cinema nacional, de cam rótulos nacionais fabricam um horizonte de expectativas que se aproximam
uma marca (brand) que cria um discurso homogeneizador e o desenvolve a partir do sistema de convenções dos géneros cinematográficos. Assim, há um efeito ho-
de determinadas características estilísticas e temáticas, configurando um certo mogeneizador que associa determinado filme (ou conjunto de filmes) como repre-
caráter exótico dessa cultura. Neste último caso, a marca nacional é produzida a sentativo de determinada nação; como consequência, “essa redutora simboliza-
partir de informações visuais e narrativas que permitem reconhecer aspetos da ção nacional-cultural remete para segundo plano uma articulação complexa da
cultura nacional a partir de um olhar exterior. Esse olhar é, muitas vezes, estereoti- identidade nacional” (CROFTS, 2002, pp. 41-42).
pado, fundado em convenções críticas. Como adverte Andrew Higson (2005, p. 58),
Neste texto, destacaremos, sobretudo, o cinema nacional como uma indústria
esta taxonomia cria barreiras e elimina a diversidade cultural:
audiovisual, analisado o caso português, na forma como essa indústria se formou
e quais as alterações substanciais nos tempos mais recentes. Interessa-nos des-
[o cinema nacional] é, claramente, um dispositivo útil de ro- tacar, nesse sentido, as profundas mudanças das últimas três décadas e a forma
tulagem taxonómica, um meio convencional de referência como essas mudanças estruturais complexificaram o que se entende por “cinema
no complexo debate sobre o cinema; no entanto, o processo
português”, sobretudo através do binómio cinema de autor e cinema comercial, e
de rotulagem é sempre, até certo ponto, tautológico, fetichi-
zando o nacional em vez de meramente o descrever. Por isso, a forma como a pesquisa desse binómio pode ser feita através da análise à estru-
esse fenómeno ergue fronteiras entre filmes produzidos em tura industrial e à distribuição internacional do cinema português. Este texto nasce
diferentes Estados-nação, embora eles possam ter bastante
em comum. Pode, dessa forma, obscurecer uma certa diver- de um particular interesse que, nos últimos anos, nos tem ocupado em termos de
sidade, troca e interpenetração cultural que marca muito da investigação académica (CUNHA; ARAÚJO, 2015; CUNHA; SALES, 2013; CUNHA, 2011,
atividade cinematográfica. 2014, 2015; RIBAS, 2010, 2013, 2014, 2016).

O cinema nacional pode, até, ser caucionado por uma dimensão mais insti- 2. Percurso histórico: das “fábricas de fitas” ao cinema transnacional
tucional, a partir do aparelho do Estado, porque, ao ser o principal financiador do
cinema nacional, os institutos governamentais podem promover a consolidação de Como sucedeu com várias outras cinematografias, as primeiras décadas de pro-
uma determinada marca nacional em mercados internacionais, potenciando va- dução cinematográfica em Portugal foram essencialmente marcadas por tentativas
lores turísticos e de reputação internacional de determinado país (HIGSON, 2005, de reprodução de um modelo de produção com provas dadas no estrangeiro, seguin-
p. 63). Como salientámos, o papel dos festivais de cinema – sobretudo no contexto do os paradigmas dominantes: fundada em 1909, a lisboeta Portugália Film, de João
europeu, a partir da década de 60 – é também decisivo na construção de um câ- Freire Correia, investiu na produção de filmes de atualidades e de publicidade, estra-
none nacional, como muito bem demonstrou Thomas Elsaesser (2005, pp. 82-104): tégia seguida pela portuense Caldevilla Film, de Raul de Caldevilla, fundada em 1916.
através das suas estruturas em rede, os festivais “adicionam valor” aos filmes, apre- Entretanto, a portuense Invicta Film, reestruturada a partir de 1918, investiria
sentando-os a um público internacional e permitindo a construção de um discurso, num projeto de produção de filmes “artísticos” (film d’art) destinados à exportação.
também ele tautológico, à volta de autores, movimentos e cinemas nacionais. Este O modelo organizacional desta autêntica “fábrica de fitas” assentava num cresci-
discurso é devolvido, nestes fóruns, para o espaço público nacional, misturando-se mento animador dos mercados de distribuição e exibição internos e, fundamental-
com o discurso nacional. mente, das otimistas perspetivas de internacionalização. O enorme investimento
Como consequência da criação de um cânone nacional, como refere Higson no apetrechamento técnico dos estúdios e do laboratório, seguindo um paradig-
– e tendo em conta todas as dimensões que influenciam esse cânone –, há um ma industrial inspirado nos mais reputados estúdios norte-americanos e europeus,
favorecimento que obscurece determinados filmes nacionais. Muitas vezes, como pressupunha a criação de uma “linha de montagem” contínua. Apesar da aparente

136 137
infalibilidade do modelo de produção, que passava pela escolha de argumentos contínua e a baixo custo. Cunha Telles impõe também uma nova figura: a do pro-
“tipicamente portugueses” (a partir de alguns clássicos da literatura portuguesa dutor enquanto coautor. A nova “filosofia de produção” de Cunha Telles distan-
oitocentista) e pela contratação de experientes técnicos estrangeiros, a Invicta não ciava-se do conceito tradicional de produção conhecido até então em Portugal:
trabalhou como deveria a necessária articulação com os setores da distribuição e rejeitando a conceção do produtor como figura de “mulher a dias” ou “capataz”,
da exibição, que “acabariam (...) por estar na origem da sua falência” (BAPTISTA, responsável financeiro pelo filme, Cunha Telles afirmava-se como produtor que
2013, p. 80). Como sublinha Tiago Baptista (2013, pp. 81-82), a Invicta instalou então contrariava a clássica tarefa de “administrar os dinheiros e criar uma estrutura”, im-
em Portugal um modelo de organização “fabril” (seguido também pela Caldevilla pondo uma espécie de “produtor-autor” inédita no cinema português e que procu-
Film, Pátria Film e Fortuna Film) que se revelou desadequado a um mercado cine- rava “intervir do ponto de vista da conceção artística – cinematográfica – pôr o re-
matográfico de pequena dimensão e pouco capitalizado como o português. alizador em contacto com profissionais de qualidade”, como afirmado pelo próprio
(em Celulóide, jan. 1964, pp. 5-7). Consciente de que o chamado “cinema de autor”
Em 1929, António Lopes Ribeiro empreendeu uma missão técnica pelas princi-
tendia a desvalorizar a influência do produtor tradicional, geralmente conduzida
pais indústrias cinematográficas europeias, passando por Paris, Berlim, Varsóvia,
por motivos comerciais, Cunha Telles reinventava, no cinema português, a função
Moscou, Viena, Milão, Nice e Barcelona. O objetivo era conhecer de perto os gran-
do produtor através de uma forte ligação criativa e estética com o realizador: “o
des estúdios e laboratórios cinematográficos para preparar a instalação em Portu-
produtor tem de ter um certo feeling, deve falar de cinema, saber o que é que um
gal do cinema sonoro. Poucos meses depois, Lopes Ribeiro seria um dos elementos
realizador quer” (TELLES, 1985, pp. 55-56).
da Comissão nomeada pelo governo que esteve na origem da criação, em 1932, da
Tobis Portuguesa, a entidade que monopolizaria a produção de cinema em Por- Ao fim de poucos anos, em sérias dificuldades financeiras, Cunha Telles propo-
tugal durante as décadas de 1930-40. Protegida e promovida pelo regime, a Tobis ria um modelo alternativo de financiamento: produzir filmes publicitários e turísticos
Portuguesa funcionaria um pouco à semelhança da extinta Invicta Film: um modelo de encomenda de forma a possibilitar um “fundo” para a produção de cinema de
de produção contínua de filmes artísticos de grande orçamento “feitos por portu- longa-metragem destinado ao circuito comercial. Nesse final dos anos 60, regista-
gueses para portugueses”. -se a criação de algumas empresas que seguiriam esse novo modelo proposto por
Cunha Telles: a Média Filmes (produtora de Uma Abelha na Chuva, 1968, que junta-
O modelo monolítico do Estado Novo começaria a ser contestado sobretudo
va Fernando Lopes, Fernando Matos Silva, Alfredo Tropa, Alberto Seixas Santos e
após a saída de António Ferro da direção do Secretariado Nacional da Informação,
Manuel Costa e Silva), a Unifilme (produtora de O Recado, 1972, de José Fonseca e
Cultura Popular e Turismo (1949), quando a sua “Política do Espírito” perdeu fulgor
Costa) ou a Cinenovo (do próprio Cunha Telles, destinada a produzir O Cerco, 1969).
e relevância junto de Salazar, que achava o cinema uma “indústria horrivelmente
cara”. A criação da televisão pública (1957) haveria de esvaziar ainda mais o investi- Nos anos 70, o paradigma que se instala no cinema português é o das coope-
mento público na produção de cinema, já que o novo meio serviria de forma mais ca- rativas de realizadores. O modelo fora definido pelo Centro Português de Cinema
paz e eficaz os interesses propagandísticos do Estado Novo. Nos anos 50 e 60, surge (CPC), constituído formalmente em 1969, e seguido por experiências similares, como
um modelo alternativo que privilegia as produções de baixo orçamento, filmadas em as cooperativas Cinequanon, Cinequipa, Grupo Zero, FilmForm, Prole Filme, VirVer,
exteriores, com equipas e tempos de rodagem mais reduzidos. Este novo paradigma Paz dos Reis, Eranova, entre outras. Na história do cinema português havia já experi-
desponta a partir de uma série de influências do neorrealismo italiano, do cinema ências protocooperantes2, mas o modelo instituído nos anos 70, a partir do exemplo
de amadores, das novas vagas europeias e, também, das inovações tecnológicas do CPC, desvalorizava de forma significativa a figura do produtor, remetendo-o para
ao nível da fotografia e da sonoplastia. Desse período, importa destacar três casos uma categoria meramente técnica de “diretor de produção”, e valorizando a figura
particulares: Manuel Guimarães, com os seus modelos protocooperantes, em Nazaré do cineasta-autor, que está presente em todos os momentos do processo produtivo.
(1952) e Vidas sem Rumo (1956); o cineasta amador António Campos; e Manoel de
Em resposta a este modelo, o Estado Novo criara, em 1973, o Instituto Português
Oliveira, que, depois de um interregno de mais de uma década, regressa ao cinema
de Cinema (IPC), órgão que visava recuperar o controlo público sobre a produção
e torna-se cineasta-produtor de todos os seus filmes produzidos entre 1956 e 1972.

Será neste contexto que aparecerá, no início dos anos 60, a Produções António
2. Como a Cooperativa do Espectador (sociedade constituída para rodar o filme Dom Roberto, 1962, de Ernesto de
da Cunha Telles, um projeto inovador que assentava num esquema de produção Sousa), a sociedade Artistas Unidos (constituída para o filme Cais do Sodré, 1946, de Alejandro Perla) ou algumas
das produções já referidas de Manuel Guimarães.

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através da monopolização dos meios de produção. No período revolucionário, seria fenómenos tiveram, e ainda têm, uma repercussão enorme naquilo que é o cinema
no IPC que surgiriam as “unidades de produção”, grupos que reuniam diversos téc- português e naquilo em que ele, inevitavelmente, se está a tornar.
nicos e funcionavam de forma autónoma, escolhendo os próprios projetos. As “uni-
Na prática, essa mudança consubstanciou-se na afirmação de um bipolarismo
dades de produção” foram uma “experiência fugaz de coletivização do cinema”
– os “filmes para Bragança” contra os “filmes para Paris”3 – e a forma como essas
que vigoraram no seio do IPC entre maio de 1974 e junho de 1976 e que propunham
tendências se têm consolidado, produtiva e tematicamente, no cinema português
uma produção cinematográfica sob estrito controlo estatal, como “um instrumen-
contemporâneo.
to de luta de classes no campo cultural”, e, portanto, fortemente partidarizadas,
como documenta José Filipe Costa (2015). Desde os anos 80, estes dois polos têm travado uma luta sobre a legitimidade
do cinema português, sobre as suas condições de produção e exibição, tal como a
Na viragem para a década de 80, uma a uma, as cooperativas foram fechando
história do capítulo anterior evidenciou. Aliás, em 2010, passados 30 anos do início
atividade ou reconvertendo as suas estruturas cooperativas para uma produção de
desta separação, a luta continuaria espelhada nas páginas do jornal Público (12
mercado. O conturbado processo de produção do filme Amor de Perdição (Mano-
mar. 2010), através de um manifesto subscrito por vários realizadores e encabeça-
el de Oliveira, 1976-78) marcaria, simbolicamente, a falência do modo de produção
do por Manoel de Oliveira. No texto podia ler-se: “Nunca como nos últimos 20 anos
cooperativo e lançaria um novo paradigma que vingaria na década de 1980: a inter-
teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão gran-
nacionalização do cinema português através da coprodução, iniciada anos depois
de vitalidade criativa. E nunca como hoje ele esteve tão ameaçado.” Na opinião
por António-Pedro Vasconcelos e Paulo Branco na VO Filmes, “produtora de filmes
deste grupo, o “cinema português vive hoje uma situação de catástrofe iminente e
de autor, um pouco no espírito dos produtores franceses de arte e ensaio” (GRILO,
necessita de uma intervenção de emergência por parte dos poderes públicos”. O
2006, p. 27). Apesar de experiências anteriores conhecidas, como as coproduções
alerta tinha diretamente a ver com a crise financeira mundial que iniciara em 2009,
luso-espanholas dos anos 40 ou as coproduções luso-francesas de Cunha Telles, o
e que continuaria nos anos seguintes. Mas esta crise tornava evidente uma realida-
modelo de financiamento da coprodução instalar-se-ia de forma proeminente em
de: uma luta intestina pelo poder financeiro do Estado.
Portugal apenas nos anos 80, com a figura de Paulo Branco em destaque. Depen-
dente de financiamento público, Branco desenhou um modelo de produção transna- Parece, então, que será pertinente usar estas duas categorias operativas para
cional de cinema de autor, apostando forte na sua promoção junto dos circuitos da situar os modos de produção atuais do cinema português. Será através delas que
crítica especializada e dos festivais internacionais de cinema, tal como abordamos usaremos estudos de caso, não para prolongar uma discussão estéril sobre qual é
no primeiro capítulo. Para garantir o apoio financeiro público, Branco coloca-se pro- o tipo de cinema português mais interessante, mas para notar que, indelevelmente,
positadamente fora de qualquer lógica de mercado, reclamando para o cinema um as atuais condições mudaram radicalmente. Curiosamente, um detalhe interessan-
estatuto similar ao das artes, usando um sistema de validação que assentaria no seu te tem inundado a opinião pública: à crítica cruzada da legitimidade do cinema
reconhecimento pelos setores internacionais mais especializados. O IPC tornar-se-ia, português – por um lado, os festivais de cinema como corolário da qualidade do
nestes anos, o principal, senão o único, financiador do cinema português, algumas cinema; por outro, o box office como sinal do interesse do público – somou-se um
vezes em parceria com institutos similares de outros países. número que, insistentemente, tem sido trazido para o espaço público: a percenta-
gem do público português que vê filmes portugueses é a mais baixa da Europa.

3. Transformações na indústria audiovisual

Desde a década de 90, o mercado português de cinema teve uma transforma-


ção sem precedentes, pulverizando aquilo que se entendia como “cinema portu-
guês”. A consciência de tal facto revela uma significativa alteração dos modos de
produção de filmes em Portugal, em toda a sua cadeia de valor: produção, distri- 3. No início dos anos 80, perante um crucial impasse nas políticas públicas de apoio à produção cinematográfica, o
então Ministério da Educação e da Cultura, titulado por Francisco Lucas Pires, resumiria as duas principais tendências
buição e exibição. É bastante evidente que estas transformações estiveram direta- com uma expressão fortemente estigmatizada que ficaria célebre: a depreciativa designação “filmes para Bragan-
mente ligadas a, pelo menos, dois grandes fenómenos do cinema contemporâneo: ça” referia-se às obras com uma preocupação mais comercial e popular, destinadas a agradar ao grande público
nacional, enquanto os “filmes para Paris” seriam as obras com preocupações estéticas e artísticas mais elaboradas,
a passagem para o digital e a consolidação de um capitalismo globalizado. Estes usando-se a capital francesa como referência cultural e artística de um património cinematográfico supranacional.

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Analisando os dados disponíveis sobre a circulação cinematográfica comercial em
“sala de cinema”, verifica-se, de facto, que a evolução dos números é decrescente, des-
de o pico estratosférico de meados da década de 70 – com números superiores a 40 mi-
lhões de espectadores/ano – até ao número atual, que ronda entre os 12 e os 15 milhões.
Se é certo que a marca dos 40 milhões tem um contexto específico – o fim da censura,
imediatamente após o 25 de Abril –, a verdade é inegável: o fenómeno social da sala de
cinema tem decaído vertiginosamente. Como o quadro seguinte mostra, há, de facto,
uma descida do número de espectadores entre a década de 70 e a situação atual. Aliás,
essa descida é comparável também com o decréscimo de recintos, embora esse núme-
ro tenha que ser visto com reserva, já que não implica a descida do número de ecrãs.

Espectadores
Anos Recintos Ecrãs Sessões
(milhares)
1960 - 1969 456,5 - 86 978,8 26 003,8
1970 - 1979 - - 129 957,7 33 801,1
1980 - 1989 387,9 - 192 166,2 21 140,6
1990 - 1999 245,7 - 204 776,0 10 400,8
2000 - 2009 191,2 505,3 557 837,1 17 283,5
2010 - 2013 162,5 554,3 633 551,0 14 654,7
Figura 2: Evolução do número de espectadores nas salas portugueses entre 1960-2013. Dados recolhidos no portal pordata.pt.

A análise destes números obviamente implica uma passagem recente do “ver ci-
nema” de um paradigma de sala para outras práticas cinéfilas, sobretudo digitais. A úl-
tima década do mercado cinematográfico português tem revelado as transformações
genéricas que têm acontecido noutros países, acompanhando também a globalização
de um certo consumo cinematográfico. Aliás, como está expresso num dos relatórios
desenvolvidos pelo Observatório da Comunicação, “observa-se um acentuado e gene-
ralizado reforço do processo de privatização do consumo de conteúdos cinematográfi-
cos na esfera doméstica, transversal à sociedade portuguesa” (CHETA, 2007, pp. 39-40).
Figura 1: Quota de mercado do cinema nacional em 2014. Dados recolhidos no jornal Público (16 ago. 2015).
Nesse estudo são caracterizados diversos grupos socioeconómicos e a sua relação com
a experiência cinematográfica. Os dois mais significativos são os “cinemas integrados”
e os “cinemas inovadores”, que apostam em formas diversas de ver cinema (no primeiro
Os dados oficiais (GOMES, 2015) referentes a 2014 atribuem uma quota de 4,8% caso, com uma forte componente da utilização do DVD; no segundo, utilizando todas as
ao cinema português no mercado interno, longe dos 44,4% da França ou dos 25,5% plataformas, incluindo o download na Internet de banda larga e o Video on Demand).4
da vizinha Espanha. Estes números têm servido para apimentar a discussão, mas
4. No texto “Cinema de garagem: distribuição e exibição de cinema em portugal” (CUNHA, 2015), são apresentados
também não têm em conta toda a circulação internacional e os novos modos de alguns casos e práticas representativas de diferentes estratégias operadas por distribuidores e exibidores portu-
exibição do cinema no contexto contemporâneo. Será também sobre estes dados gueses para tentar contornar as regras práticas num setor e mercado tendencialmente monopolizado, nomeada-
mente as tournées dos filmes Estrada de Palha (Rodrigo Areias, 2012) e Filme do Desassossego (João Botelho, 2010),
que nos iremos deter mais à frente. assim como casos de estudo de formas alternativas de circulação de filmes que tradicionalmente estão à margem
do esquema convencional, desde o mercado de DVD ao Video on Demand (VOD).

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Em qualquer um dos casos anteriores (DVD, download e VOD), é quase impos- al” será, a partir desta fase, uma arena de intenso debate entre as duas conceções
sível determinar os números concretos deste consumo, mas é admissível como dominantes do cinema português, já que colocou em causa a geração do novo ci-
“senso comum” a generalização destas práticas. Para além desta privatização, nema, que até então dominara a frágil indústria de cinema.
observa-se uma crescente diversificação da oferta de exibição, que passa por
Ainda nos anos 90, será a televisão privada – a SIC – a trazer-nos o seu mode-
dois fenómenos que marcam os últimos anos: a sistematização de programação
lo para o cinema português, através da produção associada com Tino Navarro e
de cinema alternativo e a institucionalização dos festivais. Prolonga-se, neste
que inicia com a produção e exibição de Adão e Eva (1995), definindo algumas das
contexto, as formas de cinefilia que marcaram a história do cinema e a história
características que vão dominar, nos anos seguintes, toda a ficção comercial. Tal-
do cinema visto em Portugal.
vez pela primeira vez, este domínio televisivo da ficção cinematográfica impulsio-
O momento fundador destas alterações acontece, sem dúvida, em meados na uma promoção avassaladora em televisão, contrariando o estigma do cinema
da década de 80, com o processo de integração europeia de Portugal (primeiro na português nas salas (o filme acabaria por conseguir atingir mais de 250 mil espec-
Comunidade Económica Europeia e, depois, na União Europeia). Essa entrada é, a tadores). Com um volume avassalador de trabalho, a televisão capta as equipas
todos os níveis da sociedade portuguesa, um momento marcante para uma nova cinematográficas que passam a fazer um vaivém entre o cinema e a televisão. No
identidade social, cultural e económica. Para o nosso motivo de análise, interessa- quadro do box office português desde 1975, em anexo neste artigo, pode ver-se
-nos focar nos aspetos político-económicos dessa entrada, já que, nos anos 90, o como parte substancial dos filmes que estão no topo da lista são produções com
cinema português sofrerá uma metamorfose na sua dinâmica de produção. Para o apoio das televisões privadas, sobretudo em termos de distribuição televisiva,
além do dinheiro – questão central do financiamento do cinema português –, a mas também com um enorme impacto na promoção dos filmes aquando da sua
Europa significou também uma crescente importância da elaboração de políticas estreia comercial em sala.
culturais modernas, de práticas de produção estandardizadas e de uma política
Para além disso, entre 2000 e 2001, a SIC assinou um protocolo com o Ministério
comum para o cinema (da qual é porta-estandarte o programa MEDIA).
da Cultura para a realização de 30 telefilmes, alguns com lançamento cinemato-
É esta fase que Jacques Lemière (2006), em relevante artigo sobre as altera- gráfico previsto. Foi criada a SIC Filmes, com a participação de 49% por parte do
ções dos modos de produção do cinema português, classifica como a “Fase Defen- ICAM, e o escolhido como parceiro executivo deste projeto foi o experiente produtor
siva” dos cineastas-autores que marcaram todo o cinema português desde o Novo António da Cunha Telles, através da sua produtora Animatógrafo II. O custo médio
Cinema. Esta fase, na opinião do investigador francês, passa pela “europeização de cada telefilme rodava os 350 mil euros, com uma comparticipação pública de
das práticas e veleidades comerciais” (LEMIÈRE, 2006, p. 748). Esta mudança tem 100 mil euros, e a SIC garantia, para além dos direitos de difusão, o papel de produ-
contornos institucionais também interessantes, já que ao longo da década de 90 tor, com direito de decisão sobre os argumentos, realizadores, elencos e montagem
o organismo público de apoio ao cinema altera a sua designação para IPACA (Ins- final (CUNHA; ARAÚJO, 2015).
tituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual, 1994), na qual a palavra
No final dessa década, a nova líder de audiência da televisão portuguesa, a
“audiovisual” adquire uma conotação muito significativa face à importância da te-
TVI, decidiu apostar numa série de telefilmes de emissão semanal designada Ca-
levisão no contexto português a partir dessa década5.
sos da Vida. Para a primeira temporada estavam previstos apenas oito episódios,
A alteração do léxico da indústria de cinema para uma verdadeira indústria mas o sucesso alcançado foi tão surpreendente que a TVI decidiu “alargar” esta
audiovisual foi também proporcionada pelo advento das televisões privadas, que temporada para 24 telefilmes e produzir uma segunda temporada de 20 telefilmes,
levou ao aparecimento da SIC (1992) e da TVI (1993), que rapidamente encontraram dos quais apenas 13 seriam produzidos. Assim, entre janeiro de 2008 e março de
um caminho para fazer frente, ao nível das audiências, ao canal público, a RTP. A 2009, a TVI transmitiu um total de 37 telefilmes, de 90 minutos cada, todos inspira-
televisão privada acabaria por fazer crescer a ideia de uma indústria audiovisual, dos em casos verídicos. Em 2011, a TVI decidiu recuperar o modelo e apostou forte
que culminara, sem dúvida, no modelo televisivo atual, dominado, no caso da fic- na produção de 26 telefilmes, agora em coprodução com a produtora de teleno-
ção, pela telenovela e por outros fenómenos de Reality TV. Esta ideia de “audiovisu- velas e habitual parceira Plural, com elencos recheados de atores popularizados
pelas telenovelas do próprio canal, com narrativas muito simplificadas e equipas
5. O instituto mudaria o seu nome para ICAM (Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia), em 1998; e, finalmen- técnicas bastante experientes em televisão (CUNHA; ARAÚJO, 2015).
te, para ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), em 2007, nome que mantém atualmente.

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Sensivelmente na mesma altura, a televisão pública RTP anunciou uma série te melhorar as suas qualidades técnicas. Um dos resultados desta especialização
de telefilmes nos mesmos moldes: produzida pela Plural, a série Grandes Histórias é o nascimento de uma nova geração de diretores de fotografia cuja atividade na
– Toda a Gente Conta incluiu 12 telefilmes com exibição mensal durante o ano de publicidade irá também influenciar, do ponto de vista estético, o cinema português.
2012, e abordando pequenas histórias do quotidiano que interessam às pessoas Podem citar-se os nomes de Rui Poças, Paulo Ares ou Carlos Lopes, por exemplo.
porque estão na agenda mediática (CUNHA; ARAÚJO, 2015). Também neste âmbito, é graças à publicidade que, nos últimos anos, toda a indústria
audiovisual (incluindo o cinema) tem adotado, rapidamente, os melhores standards
Em comum, de forma mais ou menos declarada, estes telefilmes da SIC, TVI
de câmaras digitais. Pelo impulso do trabalho continuado da publicidade, câmaras
e RTP permitiram uma “adaptação” do modo de produção cinematográfico em
de filmar como a RedCam ou a Alexa da Arri (ou mesmo as câmaras fotográficas
“produção televisiva”, reduzindo o período de rodagem e os recursos financeiros
DSLR) têm ganhos técnicos qualificados e garantias de qualidade de imagem seme-
e técnicos disponíveis. Na prática, trata-se basicamente de conteúdos televisivos
lhante ao 35mm, levando à sua adoção no cinema (caso paradigmático de Sandro
defeituosamente “travestidos” de cinema que nivelam “por baixo” os modos de
Aguilar, em termos de qualidade estética; mas também usado na geração do Novo
produção. A título de exemplo, o primeiro telefilme TVI da série Casos da Vida (“As
Cinema, como nos últimos filmes de João Botelho ou mesmo Manoel de Oliveira).
noivas de maio”, 2008) teve uma duração de 90 minutos e foi rodado em apenas
cinco dias. Em última análise, esta “adaptação” da forma de filmar é condicionada As novas práticas de produção que surgem nos anos 80 – reflexo, sobretu-
diretamente pelos meios envolvidos e, sobretudo, pelo baixo orçamento disponí- do das coproduções, da produção televisiva e também da produção estrangeira
vel. Indiretamente, estas experiências de “cinema televisivo” acabam por afetar em Portugal – são introduzidas gradualmente. Nas palavras de Jacques Lemière
significativamente a própria produção cinematográfica, ao promover uma espécie (2006, p. 761), assiste-se “a uma ampliação das equipas de rodagem, numa divisão
de concorrência no acesso aos meios técnicos e recursos humanos e, sobretudo, crescente das tarefas, e a uma duplicação dos cargos, que modificam os hábitos
estabelecer em vários produtores a ilusão de que é possível fazer “o mesmo” com anteriores da produção artesanal portuguesa”. De facto, a expressão “artesanal”,
menos orçamento (CUNHA; ARAÚJO, 2015). No entanto, devemos aqui assinalar que utilizada por Lemière, é todo um programa da geração do Novo Cinema que, com
o projeto da SIC Filmes, apesar de ter modos de produção semelhantes aos tele- poucos meios, reinventou essa pobreza de materiais para uma prática reflexiva,
filmes posteriores, apareceu numa altura em que a indústria audiovisual era ainda lenta, de que o ícone máximo, no cinema contemporâneo, é o cineasta Pedro Costa
incipiente (recorde-se que as televisões privadas aparecerem apenas nos anos 90) (aliás, profusamente citado por Lemière na crítica deste novo modelo de produ-
e serviu como impulso e método alternativo de financiamento a novos realizadores ção). Daí que, continuando com Lemière (2006, p. 761), se assista a “uma pressão
e argumentistas que assim tinham uma hipótese de experimentar a duração longa para a diminuição do tempo de filmagem: de uma média de cerca de oito a nove
(muito deles vinham mesmo da “Geração Curtas” ou da publicidade). semanas, estamos a ir em direcção às cinco, seis semanas”. O modelo televisivo e
publicitário tem aqui uma enorme influência, até pela circulação das equipas de
A par da televisão, é relevante notar que, com o crescimento da indústria
rodagem, e pelas montagens financeiras internacionais.
audiovisual, o filme publicitário ganhou uma expressão sem precedentes. A publi-
cidade é, neste particular, muito significativa, porque ela tornar-se-á um laborató- Em 2007, a deputada do Bloco de Esquerda Alda Sousa, que foi relatora do parecer
rio de invenção cinematográfica para uma nova geração de autores (como Marco de 14 de abril de 2004 da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura sobre
Martins ou Tiago Guedes, para citar dois dos exemplos mais óbvios), conduzindo a a proposta de lei 42/2004, denunciava a “grande ilusão de uma indústria cinematográ-
uma especialidade muito importante numa estratégia de produção, face aos va- fica em Portugal”, argumentando que era impossível “ter Hollywood em Portugal”:
lores financeiros envolvidos (sempre altos), assim como às inovações tecnológicas
e ao ínfimo cuidado estético. A subida de qualidade e quantidade da produção
A sequência da autoestrada de Matrix custou o mesmo que
publicitária anda de mãos dadas com o crescimento das televisões privadas e com todos os filmes portugueses desde 1975 (…). Não há competi-
a garantia que ambas trazem para um tecido produtivo carente de trabalho. ção possível neste domínio. A não ser fazer com qualidade,
fazer diferente, fazer melhor. O cinema português não será
Uma das consequências da publicidade, para além dos realizadores já citados, nunca autossustentado. Entregá-lo às televisões e às empre-
sas de telecomunicações só servirá para matar de vez o cine-
é a crescente especialização das equipas de produção, estruturadas em esquemas ma nacional. (esquerda.net, 27 jul. 2007).
claramente industriais e que, com uma intensa atividade, podem continuamen-

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Este alerta denunciava aquilo que será, certamente, o cerne da questão: o ci- Em teoria, e pelos padrões internacionais, todo o cinema português poderá ser,
nema português não pode concorrer em mercado aberto com cinematografias de então, um cinema de “baixo orçamento”? Atualmente existem algumas estratégias
paradigmas industriais; desde 1971, um núcleo de cineastas que controlou a insti- mais habituais usadas por produtores que tentam contornar esta falta de capital
tuição “cinema português” optou deliberada e estrategicamente por “estatizar” o com apostas em projetos mais ambiciosos que exigem recursos financeiros e técni-
cinema português, colocando-o sob proteção do Estado para que fosse reconheci- cos superiores à média, entre as quais:
do como um “bem cultural e artístico” e assim afastá-lo definitivamente das leis do
mercado e de eventuais pretensões comerciais (CUNHA, 2014, pp. 447-448).
a) Parcerias com televisões (sobretudo a RTP), como aconteceu com Os
Em 2004, no auge da discussão acerca da criação do FICA6 e da possibilidade
Maias – Cenas da Vida Romântica (João Botelho, 2015) ou antes com
de uma indústria cinematográfica em Portugal, a Associação Portuguesa de Re-
As Linhas de Wellington (Valéria Sarmiento, 2012), Sangue do Meu
alizadores, que representa mais de meia centena de profissionais, fez um ataque
Sangue (João Canijo, 2011) ou Os Mistérios de Lisboa (Raúl Ruiz, 2010),
demolidor a esta hipótese:
em que as produções recebem um reforço financeiro por parte dos
operadores de televisão que em contrapartida asseguram também
A verdade é que nenhum raciocínio económico pode supor- uma versão exclusiva do filme em formato de minissérie de dois ou
tar a legitimidade deste cinema ‘caro e comercial’, nem o Go- três episódios;
verno – em absoluta e irresponsável navegação à deriva – se
apoiou em qualquer estudo prospectivo. Não queremos po- b) Parcerias bilaterais, sobretudo com o Brasil e a França, que se benefi-
líticas comerciais ou industriais no Ministério da Cultura (ain-
da por cima, completamente ilegais no quadro dos acordos ciam de protocolos de cooperação que visam à entrada de filmes em
internacionais do comércio), mas efectivas políticas de pro- mercados de circulação mais abrangentes, como o europeu ou o
tecção e defesa do cinema português, num mercado selvati- latino-americano, garantindo ainda apoios extras de programas mul-
camente abandonado aos interesses das grandes produtoras
americanas. (APR, 2004). tinacionais, como o europeu Media ou o ibero-americano Ibermédia;

c) Parcerias transnacionais, como aconteceu recentemente com As Mil


Em Portugal não existem atualmente grandes produtoras, nem sequer produ- e Uma Noites (2015) e Tabu (2012), ambos de Miguel Gomes, ou com
toras com capital para investir autonomamente de forma continuada numa produ- José e Pilar (Miguel Gonçalves Mendes, 2010), em que os produtores
ção regular de cinema. A perda de protagonismo do produtor Paulo Branco (Madra- recorrem ao regime de coprodução com parceiros estrangeiros com
goa Filmes, Clap Filmes, Leopardo Filmes), que dominou o panorama português de outra dimensão que, simultaneamente, também trazem garantias de
produção durante os anos 80 e 90, não significou o surgimento de nenhuma outra uma distribuição internacional (falaremos com mais detalhe sobre
figura tutelar no meio. Antes pelo contrário, verificou-se o surgimento ou crescimen- Tabu no capítulo seguinte).
to de pequenas produtoras geridas por realizadores (O Som e a Fúria, Terratreme,
Rosa Filmes, David & Golias, Artistas Unidos, entre outras) que não se preocuparam
Desde os anos 1990, o cinema português conheceu um novo panorama tam-
muito em estabelecer um modo de produção industrial, mas sim em consolidar um
bém do ponto de vista das políticas públicas, e que se refletiu, desde logo, na criação
cinema de autor sem preocupações comerciais (CUNHA; ARAÚJO, 2015).
de mecanismos financeiros – pela parte do Estado – para a sustentação de uma
6. De todas as tentativas pouco consequentes para criar dinâmicas industriais na produção de cinema em Portu- pequena indústria audiovisual. Por isso mesmo, desde essa década, o Instituto do
gal, o Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual (FICA) foi o mais recente e mediático. Criado em 2004, Cinema e do Audiovisual (ICA) apostou numa política de apoio transversal. São pro-
mas só instituído em 2007, com o objetivo de atrair investimentos para a produção de obras cinematográficas, au-
diovisuais e multiplataforma, este fundo de investimento de capital reunia, para além do próprio Estado português duzidos e apoiados, neste contexto, documentários, curtas-metragens, animações,
(40%), a distribuidora e exibidora Zon Lusomundo (30%, dedutíveis em impostos) e os três operadores de televisão
em sinal aberto em Portugal: a pública RTP (6%) e as privadas SIC (12%) e TVI (12%). Na prática, e somando os 30% séries de televisão, escrita de argumento, etc. No campo dos longas-metragens, os
da Zon Lusomundo que eram subtraídos nos impostos, o Estado português assegurava 76% do orçamento total do
FICA. Constituído para um período inicial de sete anos, o FICA paralisou em 2009, apenas com dois anos de ativi-
apoios são também complexificados, com apoios específicos a primeiras obras,
dade. No fim das contas, o FICA foi uma experiência malsucedida que potenciou “cisões e confrontos profundos apoios diretos a realizadores com determinados números de bilheteira anteriores,
entre produtores e realizadores de cinema e o Ministério da Cultura”, acentuando problemas crónicos no débil
setor cinematográfico português (Público, 6 abr. 2010). para além dos habituais concursos de apoio. Esta diversidade, aliada – a partir do

148 149
final da década de 90 – a uma razoável quantidade, fez crescer uma estrutura in- Realizador Projetos Total atribuído
dustrial frágil. A título de exemplo, entre 2007 e 2014, anualmente, o valor concedido
António-Pedro Vasconcelos 3 2.000.000,00 €
pelo ICA em apoios à produção tem rondado os 7,5 milhões de euros. Tendo em conta
Luís Filipe Rocha 5 1.627.813,38 €
que em 2012 não abriram concursos de quaisquer tipos de apoio, o ICA financiou 326
Teresa Villaverde 4 1.530.000,00 €
projetos, atribuindo um total de cerca de 53 milhões de euros, entre os quais:
Joaquim Leitão 2 1.400.000,00 €
Manoel de Oliveira 2 1.400.000,00 €

Produtora Projetos Total atribuído João Canijo 4 1.370.000,00 €


João Botelho 5 1.369.500,00 €
O Som e a Fúria 29 6.245.613,38 €
Raúl Ruiz 2 1.345.000,00 €
Filmes do Tejo II 22 4.616.300,00 €
Fernando Lopes 2 1.330.000,00 €
MGN Filmes 6 3.502.071,64 €
Edgar Pêra 4 1.289.500,00 €
Alfama Filmes 7 2.817.000,00 €
Miguel Gomes 2 1.200.000,00 €
Clap Filmes 8 2.547.000,00 €
Marco Martins 4 1.199.000,00 €
Fado Filmes 13 2.492.693,70 €
João Nicolau 4 1.090.000,00 €
David & Golias 13 1.865.500,00 €
João Pedro Rodrigues 5 1.004.500,00 €
C.R.I.M. 17 1.812.500,00 €
Vicente Alves do Ó 2 1.000.000,00 €
Ukbar Filmes 10 1.753.265,04 €
Figura 4: Apoios à produção do ICA por realizador entre 2007-2014, com montantes superiores a um milhão de
Terratreme Filmes 17 1.681.500,00 € euros. Dados recolhidos nos anuários do ICA (cf. MOREIRA, 2016).

Bando à Parte 19 1.601.831,64 €


Midas Filmes 5 1.449.731,53 €
Rosa Filmes 6 1.336.000,00 € N.º projetos Projetos Valor total fi- Média por
Tipo apoiados por ano nanciado projeto
Cinemate 6 1.315.000,00 € Curtas-metragens
50 7 3.651.480 € 73.029 €
Ar de Filmes 4 1.310.000,00 € de animação
FF-FilmesFundo 5 1.217.000,00 € Curtas-metragens
88 12 3.720.000 € 42.272 €
de ficção
Black Maria 8 927.500,00 €
Stopline Filmes 3 827.171,15 € Documentários 70 10 4.269.930 € 60.999 €

LX Filmes 5 725.000,00 € Longas-metragens


29 4 17.500.000 € 603.448 €
de ficção
Costa do Castelo 3 690.000,00 €
Take 2000 2 685.500,00 € Figura 5: Apoios à produção do ICA entre 2007-2014, excluindo apoios minoritários de coprodução. Em 2012, o ICA
não atribuiu apoios. Dados tratados a partir dos anuários do ICA.
Alce Filmes 2 680.000,00 €
OPTEC 2 616.964,80 €
Gafanha Filmes 1 600.000,00 € Em suma, o que estes dados revelam é que os apoios públicos têm sido regu-
Faux 2 559.500,00 € lares e fundamentais para o funcionamento das principais produtoras portugue-
Luz e Sombra 2 545.000,00 € sas, nomeadamente para produtoras que se estabeleceram mais recentemente (O
Som e a Fúria, C.R.I.M., Ukbar, Terratreme, Bando à Parte, entre outras). Em relação
Figura 3: Apoios à produção do ICA por produtor entre 2007-2014, com montantes superiores a 500 mil euros.
Dados recolhidos nos anuários do ICA (cf. MOREIRA, 2016). aos realizadores, se os apoios do ICA beneficiaram sobretudo cineastas cujas ati-

150 151
vidades remontam aos anos 60 (António-Pedro Vasconcelos, Manoel de Oliveira, (Público, 24 jun. 2010), no qual a então ZON Lusomundo (atual NOS Lusomundo) era
Fernando Lopes), também permitiram a consolidação de carreiras de uma geração acusada de maltratar o cinema português ao não divulgar um catálogo de mais
intermédia (Teresa Villaverde, João Canijo, Edgar Pêra ou João Pedro Rodrigues) e o de uma centena de produções nacionais. Em suma, os subscritores do texto acu-
surgimento de jovens cineastas como Miguel Gomes, João Nicolau ou Marco Martins. savam a ZON Lusomundo de fazer uso da sua posição monopolista nos setores da
distribuição e da exibição em Portugal de ter uma atitude “sempre tão generosa
Mas parte da radical mudança em todos os pressupostos do cinema mundial
com os filmes americanos e o cinema pimba português, a quem prodigaliza sem-
está nas alterações nos modelos de distribuição e exibição. Este é ainda um campo
pre o melhor tratamento” e de ter uma ação decisiva em várias instâncias (desde as
de pesquisa delicado, mas podemos afirmar que estas mudanças estão a acon-
salas, mercado do DVD, até à própria televisão a cabo), para impor um modelo de ci-
tecer agora e a um ritmo previsível. No caso português, pode-se assegurar que as
nema que visa apenas ao lucro; “que destrói os filmes portugueses que adquiriu, cuja
salas de cinema tem perdido espectadores a um ritmo constante e crescem os
única habilitação é de servir o mau cinema americano no nosso país; que dá cabo
modelos alternativos. Em 2014, de acordo com dados oficiais do ICA, na liderança
dos distribuidores independentes; que uniformiza o cinema que se pode ver e limita a
do setor da distribuição, cimentando uma posição que vem ocupando nas últimas
liberdade de escolha dos espectadores; que põe e dispõe dos dinheiros públicos do
décadas, encontra-se a NOS Lusomundo (com 57,2% da receita bruta), herdeira da
FICA ao serviço dos delinquentes e do cinema pimba” (Público, 24- jun. 2010).
histórica Filmes Lusomundo, empresa distribuidora criada em 1953. A segunda dis-
tribuidora com maior quota de mercado é a Big Picture 2 Films (com 26,1% da receita Independentemente das “boas” ou “más intenções” da atual NOS Lusomundo,
bruta), criada em 2011 mas que conquistou uma posição de destaque no contexto o que os números confirmam é que o mercado de distribuição e exibição de cinema
português por assegurar o exclusivo da distribuição dos importantes catálogos das em Portugal está monopolizado por um grupo restrito de interesses e esse monopó-
major norte-americanas 20th Century Fox e Sony Pictures7. lio prejudica de forma objetiva os produtores, distribuidores e exibidores indepen-
dentes, com claro prejuízo para o próprio futuro do cinema português.
À semelhança da distribuição, a exibição é outro setor com óbvias responsa-
bilidades na situação de crescente “marginalidade” e “invisibilidade” mediáticas a Nos setores da distribuição e exibição, parece claro que o estado atual das coisas
que é sujeita a generalidade do cinema português. Os números são muito similares se deve essencialmente a uma clara falta de regulação e de arbitragem por parte do
à situação da distribuição: a NOS Lusomundo também lidera este segmento, deten- Estado: ao permitir que a concentração do mercado distribuidor e exibidor tenha acon-
do 39,7% dos ecrãs nacionais e arrecadando 61,6% da receita bruta de bilheteira. Ao tecido nas últimas décadas num esquema que favorece alguns grupos de interesse e a
longo das últimas duas décadas, Portugal viu o seu parque exibidor transformar-se consequente monopolização, ao não garantir quotas para a distribuição e exibição de
num país dominado pela exibição de cinema em multiplex, que concentram cerca cinema português ou de outras cinematografias minoritárias no circuito comercial, ao
de 90% da receita bruta e dos espectadores em apenas 40% dos recintos. Este va- não cumprir a sua função na formação de novos públicos e na garantia de diversidade
lor significa que 60% dos recintos de cinema em Portugal é composto por exibidores da oferta, ou ao não aproveitar a televisão pública ou mesmo os contratos de conces-
que tem apenas um ecrã (91 recintos que disponibilizam ao público apenas 102 ec- são de televisão em sinal aberto para impor quotas ou regras claras que promovam a
rãs). Na generalidade, estes recintos são auditórios municipais que não se dedicam oferta da diversidade cinematográfica, só para apontar alguns exemplos.
em exclusividade à exibição de cinema, acumulando esses espetáculos com outras
expressões artísticas e culturais. Em geral, são também esses os espaços utilizados
por cineclubes e outras associações culturais (CUNHA, 2015). 4. A situação atual (um estudo de caso)

Em junho de 2010, alguns meses antes de se lançar na “volta a Portugal em ci- Na última década, o cinema português enfrentou, assim, um desafio crescen-
nema” com o Filme do Desassossego, João Botelho foi uns dos 16 subscritores de um te da sustentação do seu tecido económico. Como já notado, persistem ainda as
texto de opinião intitulado “A agonia do cinema português: o abafador tem nome” clivagens entre dois modos antagónicos de encarar o cinema português. Contudo,
no terreno, continuam a trabalhar e a nascer novas produtoras de cinema que ar-
7. Existe uma relação muito estreita entre as duas principais distribuidoras portuguesas: a Big Pictures 2 Films é
riscam em se afirmar no débil contexto português. Por isso mesmo, apresentamos
detida em 20% do seu capital pela NOS Lusomundo e o seu CEO é aposentado e administrador não executivo da agora um caso de estudo dos dois tipos de cinema, demonstrando, com ele, a for-
maior distribuidora portuguesa (Diário de Notícias, 13 jan. 2012; RTP, 14 set. 2011). Apesar de ter uma separação for-
mal, as duas distribuidoras constituem na prática um mesmo grupo de interesse que detém uns impressionantes e ma como se cimentam os novos modos de produção no cinema português atual.
esclarecedores 83,3% da receita bruta do mercado português.

152 153
Com o crescimento sustentado desde a viragem do século, O Som e a Fúria Brasil (Gullane Filmes) e a Alemanha (Komplizen Films) detêm 20% cada e a França de-
tem-se afirmado como uma das mais destemidas pequenas produtoras, reinven- tém 10% (Shellac Sud). Tabu teve também a participação dos canais de televisão RTP e
tando as formas de produção do cinema de autor português. Por outro lado, o final da ZDF/Arte; e os apoios públicos do ICA, ANCINE (Brasil), Fundo Regional de Hamburgo
da década de 2000 conhecia a fundação de uma nova casa de produção com um (Alemanha), CNC (França) Região PACA (Marselha, França) e do programa Ibermedia.
claro objetivo comercial: a VC Filmes, que recuperava uma marca histórica – a Va-
Esta montagem financeira só foi possível pelo potencial do projeto de filme,
lentim de Carvalho – e que tinha um programa bem definido de produção de cine-
assim como do currículo do seu realizador. Recorde-se que, antes de Tabu, Go-
ma português com vocação de grande público. O objetivo deste estudo de caso é
mes lançara, com razoável sucesso internacional, Aquele Querido Mês de Agos-
perceber quais as características de produção de ambas as produtoras, assinalan-
to, assim como tivera uma longa e premiada carreira nos curtas-metragens.
do uma transformação radical dos modos de distribuição. Utilizaremos, para isso,
Tabu estreou mundialmente em fevereiro de 2012, na Seleção Oficial em Com-
os dois sucessos de cada produtora: Tabu (2012), de Miguel Gomes, e Amália – o
petição do Festival de Berlim, vencendo dois prémios importantes: Prémio Alfred
Filme (2008), de Carlos Coelho da Silva.
Bauer (prémio de inovação cinematográfica) e o Prémio da Crítica FIPRESCI. Foi
No caso de O Som e a Fúria, a produtora nasceu e cresceu durante o boom também muito bem recebido pela crítica: em notícia de 15 de fevereiro de 2012,
de produção de curtas-metragens na transição de século. Ancorada na experiên- o jornal Público intitulava o seu texto com a expressão “Tabu, de Miguel Gomes,
cia dos realizadores Sandro Aguilar e João Figueiras, a produtora serviu, de início, é considerado o filme-sensação no Festival de Berlim”, revelando depois que
para a autoprodução dos seus projetos, mas foi evoluindo, lentamente, e apresen- “o filme, muito aplaudido segundo as crónicas dos enviados especiais, é hoje
ta-se hoje como uma produtora que privilegia a autoridade criativa do realizador elogiado pela imprensa”. Esta apreciação crítica prosseguiu em momentos dife-
(entretanto, João Figueiras foi substituído por Luís Urbano, que assume a figura de rentes da vida do filme, tanto em estreias nacionais como nas tradicionais listas
produtor em exclusividade). Na sua apresentação, a produtora reclama “um vín- de melhores do ano. Tabu foi capa da Cinema Scope e chamada de capa em
culo com o cinema de autor e independente [em que as suas traves mestras são outras revistas, como a Cahiers du Cinéma ou a Sight & Sound. Esteve incluído
a] qualidade das propostas cinematográficas, associadas ao desenvolvimento do nos top do ano de 2012: Cahiers du Cinéma (8º), Sight & Sound (2º), Cinema Scope
universo singular dos seus autores”8. Nascida em 1998, produziu até 2016 um total de (2º), Film Comment (11º) e The New Yorker (6º), entre outros.
9 documentários, 41 curtas-metragens de ficção e 13 longas-metragens de ficção
Consequência deste fervor crítico foi a presença esmagadora do filme em
(algumas das quais em coprodução minoritária). De facto, a primazia dada ao uni-
festivais de cinema, fazendo uma carreira por mais de 70 festivais: Berlim, Toron-
verso de autor permitiu à produtora apresentar, por exemplo, três dos mais jovens
to, Nova York, Mostra de São Paulo, BAFICI, Karlovy Vary, entre muitos outros. Esta
realizadores idiossincráticos do cinema português: Miguel Gomes, Sandro Aguilar e
apetência para uma circulação internacional (da qual é impossível obter núme-
João Nicolau. O maior sucesso comercial da produtora é Tabu, um filme de Miguel
ros de espectadores) verteu-se também em vendas de distribuição internacional,
Gomes, filmado a preto e branco e contando duas histórias: a de Pilar, numa Lisboa
tornando Tabu, muito provavelmente, o filme português com maior distribuição in-
contemporânea, e a de Ventura e Aurora, numa África colonial.
ternacional. A exibição comercial em salas ocorreu em 26 países, como o quadro
Seguindo um modelo já testado, O Som e a Fúria conseguiu montar uma ousa- seguinte demonstra:
da coprodução internacional para Tabu, com um valor global orçado em 1.500.000
€, baseada em vários acordos de coprodução: convenção europeia de coprodu-
ção cinematográfica, acordo bilateral de coprodução entre Portugal e Brasil e con-
venção ibero-americana de coprodução. Com esta montagem financeira, o filme
passa a ter o “passaporte” (reconhecimento nacional) dos países envolvidos na
coprodução9. No caso em estudo, Portugal (O Som e a Fúria) detém 50% do filme, o

8. Citado no sítio oficial da produtora: http://www.osomeafuria.com/about-us/.


9. Uma das condições necessárias para os filmes terem reconhecimento nacional dos países que estão envolvidos
na coprodução é que cada parceiro participe no financiamento em determinadas condições.

154 155
País Data Espectadores Receita Nº Salas uma distribuição internacional ampla (apesar da falta de vários números em di-
9 versos países). Esta distribuição permite que o filme – claramente suportado por
Portugal 05/04/2012 23 571 115.788 €
uma estética de cinema de autor – tenha um assinalável sucesso comercial a nível
México 27/05/2012 - 21.733 € 2
internacional, muito potenciado pela sua presença num festival de classe A, mas
Reino Unido 07/09/2012 9 637 80.551 € 11
também pelo trabalho anterior de coprodução. A distribuição internacional não foi
Canadá 21/09/2012 - - - feita apenas em sala de cinema, já que o filme foi editado em DVD em diversos
Rússia 01/11/2012 1 663 4.649 € - mercados (Portugal, França, EUA., Reino Unido, Alemanha) e esteve disponível on-
Áustria 08/11/2012 4 966 44.892 € 1* line na plataforma streaming MUBI. Em Portugal, o filme está ainda disponível em
- VOD e foi exibido na RTP e no canal por subscrição TVCine. Tabu foi também motivo
Suíça Alemã 22/11/2012 8 177 99.574 €
de cerca de 300 artigos na imprensa internacional.
França 05/12/2012 200 886 1.658.705 € 46
Alemanha 20/12/2012 11 898 91.324 € 25 O outro caso de estudo é Amália – O Filme, realizado por Carlos Coelho da
Silva, filme biográfico da vida de Amália Rodrigues, a maior cantora de fado do
EUA 23/12/2012 10 075 71.800 € -
país. O filme foi produzido pela Valentim de Carvalho Filmes, produtora que apare-
Bélgica 09/01/2013 11 060 37.124 € 3
ce no mercado português com um firme propósito comercial, conforme as palavras
Espanha 18/01/2013 12 687 102.252 € 13 do seu diretor-geral, Manuel S. Fonseca (2008):
Chile 18/01/2013 - - -
Suíça Francófona 23/01/2013 - - - O cinema que queremos produzir na VC Filmes é este. Um ci-
Hungria 21/02/2013 880 - - nema narrativo e de forte comunicação com o público. Um
cinema de actores de que a Carla Chambel, a Ana Padrão ou
Grécia 28/02/2013 4 862 - - o Ricardo Carriço são muito bons exemplos. Um cinema que
se pretende ligado às mais fortes tradições da história do ci-
Polónia 01/03/2013 3 103 - -
nema, ou seja aos grandes filmes americanos e europeus que
Taiwan 29/03/2013 - - - converteram o cinema na arte popular do século XX, enchen-
do salas, motivando acesos debates e modificando compor-
Argentina 25/04/2013 17 985 103.545 € 6 tamentos. Um cinema com impacto social. Um cinema capaz
- de contar, com encanto e emoção, as nossas histórias.
Eslovénia 06/05/2013 1 074 -
Uruguai 10/05/2013 - - -
Austrália / Nova Zelândia 16/05/2013 33 070 530.795 € - O cinema com forte pendor comercial assenta, neste caso, num conjunto de
Países Baixos 13/06/2013 8 850 63.236 € - características específicas, de que Amália – O Filme é um excelente exemplo: um
3** cinema marcadamente de género (como o biopic, mas também o filme histórico;
Brasil 28/06/2013 20 233 156.653 €
ou o filme para adolescentes, como ocorreu com Uma Aventura), construído numa
Japão 13/07/2013 10 370 114.648 € -
lógica de produtor (é, neste caso, o produtor que descobre o filme que se vai fa-
Bolívia 04/10/2013 - 2.103 € 3 zer), com o recurso a argumentistas (Pedro Marta Santos e João Tordo, ambos com
TOTAL 382 482 3.299.372 € - experiência de escrita de ficção) e, como neste caso, um realizador com forte ex-
Figura 6: Distribuição comercial em sala de Tabu, de Miguel Gomes. Fontes: O Som e a Fúria, FilmScope Worldwi-
periência de televisão (Carlos Coelho da Silva, também autor de O Crime do Padre
de, Base de Dados Lumière, ICA. Amaro, um dos filmes mais vistos de sempre no box office português). A máquina
* o filme esteve em exibição durante 27 semanas. de produção é muito estruturada, com uma equipa complexa, e com um conjunto
** o filme esteve em exibição durante 29 semanas. de atores reconhecível e popular junto do grande público.

O filme foi feito em coprodução com a RTP, e pretendia assumir a sua dupla
vertente de filme comercial, mas também com uma apetência para a circulação
Como demonstra o quadro anterior, podemos ver que Tabu é um exemplo de

156 157
internacional. O orçamento anunciado foi de três milhões de euros (Diário de Notí- Receita
cias, 23 maio 2008), assumindo-se como a produção mais cara de sempre do cine- Box Office Box Office Box Office Bruta
Filme Produtora Orçamento
Portugal Internacional combinado Sala de
ma português (Público, 13 ago. 2008), com a participação do FICA (Fundo de Investi- Cinema
mento para o Cinema e Audiovisual, que já abordámos este texto). Amália – O Filme O Som
Tabu 1.500.000 € 23.571 85.º 371.476 382.482 3.299.372 €
acabou por ter uma carreira nas estreias em sala comercial fundamentalmente e a Fúria

nacional, tendo apenas sido distribuído em dois países europeus (ver figura seguin- Amália –
VC Filmes 3.000.000 € 214.614 14.º 9.587 224.201 929.680 €
te), assim como em Israel (Correio da Manhã, 24 jun. 2011). O Filme

Figura 8: Quadro comparativo entre Tabu e Amália – O Filme.

País Data Espectadores Receita Nr. Salas


Portugal 04/12/2008 214.614 929.680 -
Polónia 18/06/2010 8.026 - - Assim, este estudo de caso – que utiliza, é certo, apenas dois filmes para com-
Holanda 07/05/2009 1.561 - - paração – permite tirar algumas conclusões sobre a capacidade de “exportação”
Total 224.201 - - do cinema português, que parece reservada ao cinema de autor e, mesmo nesse
Figura 7: Distribuição comercial em sala de Amália – O Filme, de Carlos Coelho da Silva. Fonte: Base de Dados universo, apenas a alguns casos especiais, como foi Tabu. O cinema comercial por-
Lumière, ICA. tuguês, personificado aqui no exemplo de Amália – O Filme, não tem demonstrado
essa capacidade e tem permanecido limitado ao mercado interno português, onde
é claramente maioritário. Esta conclusão pode ser também aferida a partir das ta-
Com uma circulação também muito restrita em festivais de cinema, o filme belas de box office português e da base de dados Lumière, que nos mostram que
foi lançado em DVD e em plataformas de VOD. Vendeu, em Portugal, cerca de 47 esta divisão bipolar se confirma com amostras maiores.
mil unidades (fonte: VC Filmes) e foi vendido para distribuição televisiva nos mer-
cados do Oriente Médio e em áreas geográficas, como Brasil, Luxemburgo, Bélgica
e Europa do Leste. 5. Conclusão
A análise que aqui fazemos está limitada, essencialmente, por problemas de Neste texto, procurámos perceber o complexo circuito de produção-distribui-
acesso a dados, apesar da existência de algumas bases de dados internacionais. ção-exibição do mercado audiovisual português. Esta análise foi efetuada a partir
Umas das maiores limitações prende-se, sobretudo, com o acesso a dados relativos de um ponto de vista histórico, mas com particular incidência no momento con-
à exibição comercial em plataformas digitais. Ainda assim, dos dados recolhidos, temporâneo. Verificámos, neste aspeto, as profundas alterações que aconteceram
é possível fazer uma comparação entre dois filmes que se apresentam ao público nas últimas décadas e a transformação do tecido empresarial português. Estas
– da parte das suas produtoras ou dos seus realizadores – como filmes direciona- transformações são o resultado do aparecimento das televisões privadas e dos
dos para públicos diferentes: enquanto Tabu é um filme realizado no contexto do novos modelos de distribuição cinematográfica.
cinema de autor português, Amália – O Filme é feito no contexto de uma indústria
No entanto, apesar das transformações, a nossa análise consolidou uma pers-
audiovisual, com fortes intuitos comerciais. O quadro seguinte detalha a compara-
petiva: a de que o bipolarismo do cinema português – com a divisão entre cinema
ção entre os dois filmes:
de autor e cinema comercial – deve ser lido com particular cuidado, já que verificá-
mos duas tendências maioritárias: o cinema de autor tem um grande potencial de
exportação; e o cinema comercial tem o seu sucesso apenas no mercado interno.

158 159
Referências
Sabemos que a manipulação dos números é sempre fácil. Apesar disso, tentámos
que o nosso caso de estudo fosse paradigmático. Para isso, utilizámos diversos dados
que nos mostram a tendência que atrás descrevemos. Apesar de haver um problema
de fontes, os números que indicamos são claros. bibliográficas
Muitos outros ângulos poderiam ser usados nesta análise. Não o fizemos
por absoluta falta de espaço. Por exemplo, a diversidade do mercado audiovisual Baptista, T. “O cinema ‘tipicamente português’”. In: CUNHA, P.; SALES, M. (Ed.). Cine-
português, fruto das já assinaladas políticas públicas de apoio à produção. Essa ma Português: Um Guia Essencial. São Paulo: SESI-SP, 2013, pp. 70–92.
diversidade iria mostrar também uma assinalável quantidade e qualidade dos di-
ferentes produtos audiovisuais. Nesse aspeto, poderíamos ter mostrado como a in- CHETA, R. Cinema em Ecrãs Privados, Múltiplos e Personalizados. Transformação
nos Consumos Cinematográficos. Research Report. Lisboa: OberCom, 2007. Dispo-
ternacionalização do cinema português tem também sido possível no reduto das nível em: http://www.obercom.pt/content/452.np3.
curtas-metragens (cf. RIBAS, 2016) ou do documentário. Por outro lado, faltou uma
caracterização da exibição de cinema em Portugal. Apesar de avançarmos alguns COSTA, J. F. O Cinema ao Poder! A Revolução do 25 de abril e as políticas de cinema
dados, nota-se que a cultura cinematográfica em Portugal é feita de diversas mo- entre 1974-76: Os Grupos, Instituições, Experiências e Projetos (2.a ed.). Rio de Janeiro
e Guimarães: Edições LCV e Nós por cá todos bem, 2015.
dulações, e é relevante notar a importância do cinema americano de Hollywood
nestas décadas e como isso afetou a cultura visual das novas gerações. Questões CROFTS, S. “Reconceptualizing national cinema/s”. In: WILLIAMS, A. (Ed.) Film and
importantes para um debate que é urgente iniciar em Portugal. Nationalism. Londres: Rutgers University Press, 2002, pp. 25-51.

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162 163
Ficha
técnica
164
dos filmes 165
A
ÁRVORE
2018, 104 MIN, P&B E COR

Direção Sinopse
André Gil Mata Um homem que quer esquecer seu
passado e uma criança que não
Roteiro sabe lidar com o presente se encon-
André Gil Mata tram sob uma árvore na beira de um
rio, compartilhando a mesma me-
mória e o mesmo segredo. Eles en-
Produção contram um no outro a serenidade, o
Joana Ferreira, Isabel Machado silêncio e o tempo que perderam na
água corrente do rio.
Direção de Fotografia
João Ribeiro

Som
António Figueiredo

Montagem
Tomás Baltazar

Elenco
Filip Zivanovic, Petar Fradelic, Sanja Vrzić

Produtora
C.R.I.M. Produções

Trailer
166 167
A FÁBRICA
DE NADA
2017, 177 MIN, COR

Direção Sinopse
Pedro Pinho Em uma fábrica portuguesa, um gru-
po de funcionários começa a no-
Roteiro tar um esquisito padrão: a cada dia,
Pedro Pinho, Luísa Homem, mais e mais máquinas e matérias-
-primas somem do complexo indus-
Leonor Noivo, Tiago Hespanha trial. Logo, eles descobrem que seus
próprios patrões são os responsáveis
Produção pelos roubos. Determinados a mudar
João Matos, Leonor Noivo, a situação, eles decidem adotar uma
Luísa Homem, Pedro Pinho, postura drástica: permanecer na fá-
brica até os roubos cessarem.
Susana Nobre, Tiago Hespanha

Direção de Fotografia
Vasco Viana

Som
João Gazua

Montagem
Cláudia Oliveira,
Edgar Feldman, Luísa Homem

Elenco
José Smith Vargas,
Carla Galvão, Daniele Incalcaterra

Produtora
Terratreme Filmes

Distribuidora
Imovision

Trailer
168 169
A
PORTUGUESA
2019, 136 MIN, COR

Direção Sinopse
Rita Azevedo Gomes Durante a disputa pelo domínio do
Principado Episcopal de Trento, no
Roteiro norte da Itália, Lorde von Ketten via-
Rita Azevedo Gomes ja até Portugal para encontrar uma
esposa. Assim que o casal regressa
à Itália, ele precisa partir novamente
Produção para a guerra, mas sua esposa está
Rita Azevedo Gomes determinada a fazer da morada da
família, um castelo pouco aconche-
Direção de Fotografia gante, um lar.
Acácio de Almeida

Som
Olivier Blanc

Montagem
Rita Azevedo Gomes,
Patrícia Saramago

Elenco
Clara Riedenstein,
Marcello Urgeghe, Ingrid Caven

Produtora
Leopardo Filmes

Trailer
170 171
A VIDA
INVISÍVEL
2013, 73 MIN, COR

Direção Sinopse
Vítor Gonçalves Uma noite, Hugo, um funcionário no
Terreiro do Paço, está sentado nas
Roteiro escadas do ministério onde trabalha.
Vítor Gonçalves, Não consegue voltar a casa. Hugo
lembra-se da reunião em que Antó-
Mónica Santana Baptista, nio, seu superior no ministério, lhe fa-
Jorge Braz Santos lou de como temia a proximidade da
morte. E como parecera querer dizer
Produção algo sobre a vida do próprio Hugo. As
Luís Urbano, Sandro Aguilar imagens de uns misteriosos filmes de
8 milímetros estão sempre a voltar ao
seu espírito. Encontrou-os em casa
Direção de Fotografia de António depois deste ter falecido.
Leonardo Simões Agora, o desejo de Hugo em adivinhar
o que teria ficado por dizer entre os
Som dois traz-lhe outras memórias do pas-
Ricardo Ganhão sado. Inesperadamente, recorda a
mulher que amou, Adriana, reencon-
trando de novo o sentimento duma
Montagem vida não vivida.
Rodrigo Pereira,
Rui Alexandre Santos

Elenco
Filipe Duarte,
João Perry, Maria João Pinho

Produtora
Rosa Filmes

Distribuidora
Rosa Filmes

Trailer
172 173
ASCENSÃO
2016, 17 MIN, COR

Direção Sinopse
Pedro Peralta Alvorada: um grupo de camponeses
tenta resgatar o corpo de um rapaz
Roteiro de um poço. O tempo escasseia. As
Pedro Peralta mulheres velam ansiosas em silên-
cio. Os homens resistem no limite das
suas forças. No centro de todos eles:
Fotografia uma Mãe aguarda o resgate do filho.
João Ribeiro A espera acaba. O corpo do rapaz
emerge das profundezas da terra.
Som Como pode a Vida cessar, se na Na-
tureza tudo renasce, imensamente?
Ricardo Leal e Miguel Martins
Ao fundo o sol inunda o horizonte. Há
um novo dia adiante.
Montagem
Francisco Moreira

Produtor
João Matos

Elenco
Domicília Nunes, Ricardo Francisco,
Alice Calçada, António Pote,
António Eusébio, Daniela Toito,
Fábio Leiria, João Paulo, José Manuel,
Leonel Pirralha, Manuela Domingos,
Marlene Monteiro, Susana Monteiro
e Vitalina Ferreira

Produtora
Terratreme Filmes

Distribuidora
Portugal Film
Trailer
174 175
BALADA DE UM
BATRÁQUIO
2016, 12 MIN, COR

Direção Sinopse
Leonor Teles Tal como os ciganos, os sapos de
loiça colocados à entrada de casas
Roteiro e estabelecimentos comerciais não
Leonor Teles passam despercebidos a um olhar
mais atento. Este filme consiste num
acto interventivo e social contra o
Fotografia significado simbólico e real contido
Leonor Teles nesses mesmos sapos.

Montagem
Leonor Teles

Som
Bernardo Theriaga

Desenho de Som
Branko Neskov

Mixagem
João Matos

Correção de Cor
Andreia Bertini

Produtores
Filipa Reis, João Miller Guerra

Distribuidora
Portugal Film

Trailer
176 177
CARTAS
DA GUERRA
2010, 105 MIN, P&B

Direção Sinopse
Ivo M. Ferreira Uma compilação de cartas que Antó-
nio Lobo Antunes (na altura um jovem
Roteiro soldado português destacado para
Ivo M. Ferreira, Edgar Medina Angola) escreveu à esposa durante
serviço em Angola na década de 1970.
Montagem
Sandro Aguila

Som
Ricardo Leal

Música
Ricardo Leal

Elenco
Miguel Nunes, Ricardo Pereira,
Tiago Aldeia, Margarida Vila-Nova

Produtora
O Som e a Fúria, ZDF/Arte

Distribuidora
Imovision

Trailer
178 179
COLO
2017, 136 MIN, COR

Direção Sinopse
Teresa Villaverde Em Portugal, uma família de classe
média passa por uma grave crise fi-
Roteiro nanceira. O pai perde o emprego e
Teresa Villaverde não consegue encontrar outro traba-
lho, a mãe consegue acha uma segun-
da ocupação para aumentar a renda,
Fotografia mas anda sempre cansada e mal para
Acácio de Almeida em casa. Enquanto se tornam estra-
nhos uns aos outros, a filha adolescen-
Montagem te, negligenciada por ambos e cheia
de segredos, começa a se rebelar.
Rodolphe Molla

Som
Heine Florian

Elenco
João Pedro Vaz, Beatriz Batarda,
Clara Jost, Alice Albergaria Borges

Produção
Teresa Villaverde e
Cécile Vacheret

Produtora
Alce Filmes, Sedna Films

Distribuidora
Zeta Filmes

Trailer
180 181
COMO
FERNANDO PESSOA
SALVOU PORTUGAL
2018, 26 MIN, COR

Direção Sinopse
Eugène Green Nos anos 1920, a pedido de um dos
seus empregadores, o poeta Fernan-
Roteiro do Pessoa cria um slogan publicitário
Eugène Green para a bebida Coca-Louca, que cria
o pânico no seio do governo autoritá-
rio da altura.
Fotografia
Raphaaël O`Byrne

Montagem
Valérie Loiseleux

Montagem
Carloto Cotta, Manuel Mozos,
Diogo Dória, Alexandre Pieroni
Calado, Ricardo Gross,
Mia Tomé, Eugène Green

Produtores
Julien Naveau, Jérôme Vidal,
Luís Urbano, Sandro Aguilar,
Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne

Distribuidora
Agência – Portuguese
short film agency

Trailer
182 183
E AGORA?
LEMBRA-ME
2013, 164 MIN, COR

Direção Sinopse
Joaquim Pinto Joaquim Pinto convive com HIV e He-
patite C há quase 20 anos. O filme é o
Roteiro caderno de anotações de um ano de
Joaquim Pinto ensaios clínicos com drogas tóxicas e
ainda não aprovadas para a Hepati-
te C. Uma reflexão aberta e eclética
Fotografia sobre o tempo e a memória, as epide-
Joaquim Pinto e Nuno Leonel mias e a globalização, a sobrevivên-
cia para além do esperado, a dissen-
Montagem são e o amor absoluto. Num vai e vem
entre o presente e o passado, o filme
Joaquim Pinto e Nuno Leonel
é também um tributo aos amigos que
partiram e aos que permanecem.
Som
Joaquim Pinto e Nuno Leonel

Produtora
C.R.I.M. Produções e
Presente Edições de Autor

Distribuidora
Midas Filmes

Trailer
184 185
ELDORADO
XXI
2016, 125 MIN, COR

Direção Sinopse
Salomé Lamas Um número incontável de pessoas
mora num lugar inóspito nos Andes
Fotografia Peruanos e trabalha em condições
Luis Armando Arteaga muito precárias, esperando encontrar
ouro e uma vida melhor.
Montagem
Telmo Churro

Som
Bruno Moreira

Produção
Luís Urbano

Produtora
O Som e a Fúria

Distribuidora
O Som e a Fúria

Trailer
186 187
FANTASIA
LUSITANA
2010, 66 MIN, P&B E COR

Direção Sinopse
João Canijo Documentário que explora a relação
do povo português com os estran-
Roteiro geiros refugiados da Segunda Guerra
João Canijo Mundial, a forma como a sua estadia
no nosso país influenciou (ou não) o
nosso olhar sobre a guerra, e a procu-
Montagem ra pela herança cultural deixada (ou
João Braz não) pela sua passagem. Uma leitura
interpelante da história portuguesa
Produção do século XX construída inteiramente
a partir de imagens de arquivo e da
João Trabulo
leitura de testemunhos desses refu-
giados nas vozes de Hanna Schygulla,
Produtora Rudiger Vogler e Christian Patey.
Periferia Filmes

Distribuidora
New Talks

Trailer
188 189
FORDLÂNDIA
MALAISE
2019, 40 MIN, P&B

Direção Sinopse
Susana de Sousa Dias Um filme sobre a memória e o pre-
sente de Fordlândia, a cidade-in-
Roteiro dústria construída por Henry Ford na
Susana de Sousa Dias floresta amazônica em 1928. O filme
reúne imagens de arquivo, drones,
testemunhos, contos e narrativas,
Fotografia mitos e canções.
Susana de Sousa Dias

Montagem
Susana de Sousa Dias

Desenho de Som
António de Sousa Dias,
Susana de Sousa Dias

Som
Susana de Sousa Dias

Produção
Ansgar Schaefer

Produtora
Kintop

Distribuidora
Kintop

Trailer
190 191
JOHN
FROM
2015, 100 MIN, COR

Direção Sinopse
João Nicolau Embora Rita não se queixe, suas fé-
rias de verão não são as mais ani-
Roteiro madas. Também não são as mais
João Nicolau chatas: entre cafés gelados, tardes
quentes de namoro juvenil e saídas
noturnas com a amiga Sara, ela sem-
Fotografia pre arranja tempo para molhar o
Mário Castanheira chão da varanda e tomar banho de
sol. Sua rotina muda quando vai à ex-
Montagem posição de um novo vizinho no centro
comunitário local. Uma sucessão de
Alessandro Comodin
eventos muito precisos e silenciosos
João Nicolau permite a aproximação da jovem
ao novo vizinho e a transformação
Produção do bairro numa ilha do Pacífico Sul.
Luís Urbano, Sandro Aguilar Ou poderíamos dizer ao contrário: a
transformação do bairro numa ilha
do Pacífico Sul e a aproximação da
Elenco jovem ao novo vizinho tornam possí-
Júlia Palha, Clara Riedl-Riedenstein, vel uma sucessão de eventos muito
Filipe Vargas, Leonor Silveira, precisos e silenciosos?
Adriano Luz

Produtora
O Som e a Fúria, Shellac Sud

Distribuidora
Tucuman Filmes

Trailer
192 193
NYO VWETA
NAFTA
2017, 22 MIN, COR

Direção Sinopse
Ico Costa Inhambane. Moçambique. King-Best.
Samsung. Galaxy. Versace. Pitas. Galo
Roteiro branco. Não há palitos na Noruega.
Ico Costa Coqueiros. Malambes. Superfrutos.
Vitamina C. Passiflorina. Ácido alfa-li-
nolénico. SMS em chinês. Megabytes.
Fotografia Hotel Cardoso. Café é vício de branco.
Hugo Azevedo Ngadzango. Minha mulher. Nafta.

Assistente de Câmara
Luís Duzenta

Correção de Cor
Marco Amaral
Elenco
Som Zacarias Covela,
Roland Pickl e Tiago Matos Domingos Marengula,
Édio Peleve,
Música Belton Guilade, King Best,
Puto Zaca Mimórcia Nhantumbo,
Vivaldo Zandamela,
Montagem Hélder Tinga, Big John e
Ico Costa e Eduardo Williams Carlos Hernandez

Produtores Produção
Vasco Costa e Celeste Alves Terratreme Filmes

Produtores Executivos Distribuição


João Matos, Leonor Noivo, Ico Costa Portugal Film

Trailer
194 195
O
CORCUNDA
2016, 29 MIN, COR

Direção Sinopse
Gabriel Abrantes e Ben Rivers Uma delirante transfiguração do conto
“O Corcunda”, das “Mil e Uma Noites”,
Roteiro em versão Sci-Fi. Numa distopia futu-
Gabriel Abrantes e Ben Rivers rista, Dalaya.com, uma empresa onipo-
tente, força os seus empregados a par-
ticipar em programas de reintegração
Fotografia emocional simulando outras épocas.
Jorge Quintela

Som
Pedro Melo, Carlos Abreu

Montagem
Margarida Lucas

Elenco
Carloto Cotta, Gustavo Sumpta,
Anton Skrzypiciel, Norman MacCallum,
Mariana Mourato, Randolph Albright,
Celia Williams, Elizabeth Bochman,
Pedro Alfacinha,
Jonathan Weightman, Maya Booth

Produção
A Mutual Respect Productions (PT) /
Les Films du Bélier (FR)

Distribuição
Portugal Film

Trailer
196 197
O ESTRANHO
CASO DE ANGÉLICA
2010, 97 MIN, COR

Direção Sinopse
Manoel de Oliveira Os limites entre a fantasia e a realidade
se confundem para um fotógrafo que
Roteiro se apaixona por uma noiva morta que
Manoel de Oliveira ganha vida através das lentes de sua
câmera fotográfica.
Produção
François d’Artemare,
Renata de Almeida,
Maria João Mayer, Luis Miñarro

Direção de Fotografia
Sabine Lancelin

Som
Henri Maïkoff

Montagem
Valérie Loiseleux

Elenco
Pilar López de Ayala,
Carmen Santos, Filipe Vargas

Produtora
Les Films de l’Après-Midi, Eddie Saeta
S.A., Filmes do Tejo, Filmes da Mostra

Distribuidora
Filmes da Mostra

Trailer
198 199
O MAR ENROLA
NA AREIA
2019, 15 MIN, P&B

Direção Sinopse
Catarina Mourão A partir de 30 segundos de película en-
contrados num arquivo de família, o
Roteiro filme constrói um retrato de Catitinha,
Catarina Mourão personagem misterioso que vagava
pelas praias portuguesas nos anos de
1950, atraindo crianças com um apito e
Fotografia contando histórias.
Paulo Menezes

Som
Armanda Carvalho
e Tiago Matos

Música
Joana Gama,
Luís Fernandes, Ricardo Jacinto
e Bruno Pernadas

Montagem
Pedro Mateus Duarte

Produção
Laranja Azul

Distribuição
Portugal Film

Trailer
200 201
O
ORNITÓLOGO
2016, 118 MIN, COR

Direção Sinopse
João Pedro Rodrigues Fernando é um homem solitário de
40 anos que trabalha como ornitólo-
Roteiro go. Ao viajar pelo curso de um rio a
João Pedro Rodrigues bordo de um caiaque, a correnteza
forte derruba sua pequena embar-
cação e ele inicia uma jornada sem
Produção volta e repleta de perigos.
João Figueiras

Direção de Fotografia
Rui Poças

Som
Nuno Carvalho

Montagem
Raphael Lefèvre

Elenco
Paul Hamy, João Pedro Rodrigues,
Chan Suan, Juliane Elting,
Xelo Cagiao, Flora Bulcão

Produtora
Blackmaria Produção Audiovisual,
House on Fire, Ítaca Films Brasil, Le
Fresnoy Studio National des
Arts Contemporains

Distribuidora
Vitrine Filmes

Trailer
202 203
O VELHO DO
RESTELO
2014, 19 MIN, COR

Direção Sinopse
Manoel de Oliveira Sentados em um banco de um jardim,
Dom Quixote, o poeta Luís Vaz de Ca-
Roteiro mões e os escritores Teixeira de Pas-
Manoel de Oliveira coaes e Camilo Castelo Branco, discu-
tem os rumos de Portugal, o passado
glorioso e o futuro incerto.
Fotografia
Renato Berta

Montagem
Valérie Loiseleux

Som
Henri Maïkoff

Produtores
Daniel Chabannes,
Luis Urbano, Sandro Aguilar

Elenco
Diogo Dória, Luís Miguel Cintra,
Ricardo Trêpa e Mário Barroso

Produção
Épicentre Films e O Som e a Fúria

Distribuição
Agência – Portuguese
short film agency

Trailer
204 205
RAMIRO
2017, 104 MIN, COR

Direção Sinopse
Manuel Mozos
O filme gira à volta de Ramiro, alfarra-
bista lisboeta e poeta com bloqueios
Roteiro de criatividade, que vive a sua vida en-
Mariana Ricardo, Telmo Churro tre a sua loja e a tasca, acompanhado
pelo seu cão, os seus amigos, e as suas
Produção vizinhas, até que em certa altura, toda
essa rotina é interrompida devido a
Luís Urbano, Sandro Aguilar
uns certos acontecimentos.

Direção de Fotografia
João Ribeiro

Direção de Arte
Artur Pinheiro

Som
Miguel Martins

Montagem
Pedro Filipe Marques

Elenco
António Mortágua,
Madalena Almeida, Fernanda Neves,
Vitor Correia, Sofia Marques

Produtora
O Som e a Fúria

Distribuidora
Alambique Filmes

Trailer
206 207
REDENÇÃO
2013, 26 MIN, P&B E COR

Direção Sinopse
Miguel Gomes Composto por imagens de arquivo
em Super 8, o curta acompanha qua-
Textos tro personagens diferentes, em épo-
Miguel Gomes e Mariana Ricardo cas distintas. Um idoso em Milão, em
2011, uma noiva em Leipzig, 1977, uma
criança em Portugal, 1975, e um pai em
Montagem Paris, em 2012. Todos os personagens
João Nicolau, Miguel Gomes, Mariana buscam pela mesma coisa de formas
Ricardo com a participação dos diferentes: redenção.
alunos do Le Fresnoy – Promotion
Raoul Ruiz / Promotion Chris Marker

Edição de som e Mixagem


Miguel Martins

Produtores
Luís Urbano e Bertrand Scalabre

Elenco
com as vozes de Jaime Pereira,
Donatello Brida, Jean-Pierre
Rehm e Maren Ade

Produção
O Som e a Fúria, Le Fresnoy,
Komplizen Film e Okta film

Distribuidora
O Som e a Fúria

Trailer
208 209
TABU
2012, 118 MIN, P&B

Direção Sinopse
Miguel Gomes Aurora, uma idosa de opiniões contra-
ditórias, convive com uma empregada
Roteiro cabo-verdiana e uma amiga engajada
Miguel Gomes e Mariana Ricardo em causas sociais. Após sua morte, fa-
tos obscuros de seu passado surgem, e
as companheiras de Aurora conhecem
Produção sua trágica aventura na África.
Sandro Aguilar e Luís Urbano

Direção de Fotografia
Rui Poças

Som
Vasco Pimentel

Montagem
Telmo Churro e Miguel Gomes

Elenco
Teresa Madruga, Laura Soveral,
Ana Moreira, Carloto Cotta,
Isabel Cardoso, Henrique Espirito
Santo, Ivo Müller e Manuel Mesquita

Produtora
O Som e a Fúria,
Komplizen Film, Gullane,
Shellac Sud

Distribuidora
Gullane

Trailer
210 211
UNDERSTORY
2019, 81 MIN, COR

Direção Sinopse
Margarida Cardoso Um ensaio em forma de documentá-
rio sobre o cacau e suas ramificações,
Roteiro as quais permeiam tanto a cultura
Margarida Cardoso quanto a economia dos locais. Des-
construindo a história da exploração
na época colonial, a realizadora Mar-
Produção garida Cardoso pesquisa sobre as
Luís Correia possíveis formas de o fruto ter sido
utilizado sem opressão, injustiça e ex-
Direção de Fotografia ploração exagerada. Nessa jornada,
ela observa que, majoritariamente, as
Margarida Cardoso,
pessoas que fazem a diferença nesse
Luís Correia, Miguel Costa processo são as mulheres. 

Montagem
Pedro Marques,
Francisco Costa

Som
Nuno Carvalho

Produtora
Lx Filmes

Distribuidora
Lx Filmes

Trailer
212 213
VITALINA
VARELA
2019, 124 MIN, COR

Direção Sinopse
Pedro Costa Vitalina Varela, 55 anos, cabo-verdia-
na, chega a Portugal três dias depois
Roteiro do funeral do marido. Há mais de 25
Pedro Costa anos que Vitalina esperava o seu bi-
lhete de avião.
Produção
Abel Ribeiro Chaves

Direção de Fotografia
Leonardo Simões

Som
João Gazua

Montagem
João Dias, Vítor Carvalho

Elenco
Vitalina Varela, Ventura,
Manuel Tavares Almeida,
Francisco Brito,
Imídio Monteiro,
Marina Alves Domingues

Produtora
Optec

Distribuidora
Zeta Filmes

Trailer
214 215
VOLTA À
TERRA
2014, 78 MIN, COR

Direção Sinopse
João Pedro Plácido O jovem pastor Daniel tenta trazer
de volta as práticas de seus antepas-
Roteiro sados enquanto sonha encontrar o
João Pedro Plácido, amor da sua vida.
Laurence Ferreira Barbosa

Produção
Luís Urbano, Sandro Aguilar

Direção de Fotografia
João Pedro Plácido

Consultor de Som
Vasco Pimentel

Montagem
Pedro Marques

Produtora
O Som e a Fúria,
Close Up Films, Les Filmes de l’air

Distribuidora
Fênix Filmes

Trailer
216 217
Minibios
dos autores

218 219
DANIEL RIBAS MIGUEL CIPRIANO
Daniel Ribas é investigador, programador e crítico de cinema. É professor auxiliar na Miguel Cipriano é um fotógrafo e escritor português. Formou-se em cinema na Esco-
Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena a Licenciatu- la Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e em fotografia na Academia Real de Be-
ra e o Mestrado em Cinema, e é vice-diretor do CITAR – Centro de Investigação em las-Artes de Antuérpia. Foi pesquisador no projeto e livro Novas e Velhas Tendências
Ciência e Tecnologia das Artes. Foi curador de várias mostras, nomeadamente para no Cinema Português Contemporâneo, para o qual contribuiu com vários ensaios e
o Porto/Post/Doc IFF – no qual foi membro da Direção Artística entre 2016 e 2018 – e entrevistas. Correalizou o documentário Um Filme Português, no mesmo contexto.
do festival Curtas Vila do Conde IFF. Doutor em Estudos Culturais pela Universidade Em Antuérpia, desenvolveu o conceito de fotografia fluida na tese Towards a Poeti-
de Aveiro e pela Universidade do Minho, escreve sobre cinema português, cinema cs of the Fluid Photograph: the Case of Torbjørn Rødland, e posteriormente integrou
contemporâneo e experimental. As suas mais recentes publicações são Reframing o projeto de pesquisa The Unruly Apparatus, sobre a interseção entre a fotografia e
Portuguese Cinema in the 21st Century (2020, coeditado com Paulo Cunha) e Uma a escultura. Este projeto, e a exposição que dele resultou, pôs em diálogo o trabalho
Dramaturgia da Violência: Os Filmes de João Canijo (2019). artístico dos pesquisadores com o de vários artistas contemporâneos, tais como
Thomas Ruff, Seth Price e Wade Guyton. O seu trabalho fotográfico, que lida com a
transformação da esfera privada num mundo aceleradamente tecnológico, já foi
IVÁN VILLARMEA exposto em Portugal, Bélgica e Holanda.
Iván Villarmea Álvarez é doutor em História da Arte pela Universidade de Zaragoza
(Espanha) e trabalha atualmente como professor auxiliar convidado de estudos fíl-
micos na Universidade de Coimbra (Portugal). É autor do livro Documenting Citysca- NUNO BARRADAS JORGE
pes. Urban Change in Contemporary Non-Fiction Film (2015) e coeditor dos volumes Nuno Barradas Jorge é investigador de cinema e mídia, além de docente no Depart-
coletivos Jugar con la Memoria. El Cine Portugués en el Siglo XXI (2014, com Horacio ment of Cultural, Media and Visual Studies da Universidade de Nottingham, Reino
Muñoz Fernández) e New Approaches to Cinematic Space (2019, com Filipa Rosário). Unido. É o autor de ReFocus: The Films of Pedro Costa (2020) e cocoordenador de
Desde 2011, escreve na revista digital de crítica cinematográfica A Cuarta Parede. Slow Cinema (2016).

LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR. PAULO CUNHA


Luiz Carlos Oliveira Jr. é crítico de cinema e pesquisador. Professor do Curso de Ci- Paulo Cunha é docente no Departamento de Artes da Universidade da Beira In-
nema e Audiovisual do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz terior, onde dirige o mestrado em Cinema. É doutor em Estudos Contemporâneos
de Fora (IAD-UFJF). Autor do livro A Mise-en-scène no Cinema – Do Clássico ao Ci- pela Universidade de Coimbra, investigador integrado no LabCom – Comunicação
nema de Luxo (2013). É professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em e Artes e colaborador do INCT/Rede Proprietas. Foi coordenador editorial da Aniki:
Artes Visuais do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. Atuou como crítico Revista Portuguesa da Imagem em Movimento (2018-2020), coordenador do Semi-
na revista Contracampo (2002-2011). nário Temático Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da Sociedade Brasileira de Es-
tudos de Cinema e Audiovisual (2016-2019) e vice-presidente da Federação Portu-
guesa de Cineclubes (2018-2020). Atualmente, integra a comissão organizadora das
MICHELLE SALES Jornadas Cinema em Português e é programador do festival internacional Curtas
Michelle Sales é professora associada da Escola de Belas Artes da Universidade Fe- Vila do Conde e do Cineclube de Guimarães.
deral do Rio de Janeiro, investigadora do Centro de Estudos em Comunicação e So-
ciedade (CECS) da Universidade do Minho (Portugal) e coordenadora da rede Cine-
mas Pós-Coloniais e Periféricos, no Brasil e em Portugal.

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SÉRGIO ALPENDRE
Sérgio Alpendre é crítico de cinema, professor, pesquisador, curador e jornalista. Es-
creve na Folha de S.Paulo desde 2008. Doutor em Comunicação/Cinema pela Uni-
versidade Anhembi-Morumbi, com bolsa da CAPES (incluindo bolsa sanduíche para
11 meses em Portugal). Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP, com
bolsa da CAPES. Edita a Revista Interlúdio e o blog de cinema <sergioalpendre.com>.
Participou como palestrante dos Encontros Cinematográficos, na cidade de Fundão,
em Portugal (março de 2015 e maio de 2017). Ministrou uma Master Class na UBI – Uni-
versidade da Beira Interior, em Covilhã, Portugal (março de 2015). Escreveu dois textos
para a Sala de Projeção, da Cinemateca Portuguesa. Foi coordenador do Núcleo de
História e Crítica da Escola Inspiratorium (de 2011 a 2017). Foi curador da edição de
2014 do festival FICBIC – Festival Internacional de Cinema da Bienal de Curitiba. Foi
redator do Roteiro Cinesesc, de janeiro a março de 2015. Foi oficineiro do programa
Pontos MIS (de 2012 a 2015). Fundou e editou a Revista Paisà, publicação impressa de
cinema (de 2005 a 2008). Editou a 4ª edição da Revista da Programadora Brasil (2010).
Editou o catálogo da IV Mostra de Cinema Grego. Já escreveu para importantes veí-
culos de imprensa, como UOL, Contracampo, Teorema, Cineclick, Foco, MOVIE, Tatu-
rana, Cinequanon, Revista E, Bravo e Filme Cultura. Foi curador das mostras Por Den-
tro do Blockbuster, A Portuguesa Rita Azevedo Gomes, do FICBIC (Festival de Cinema
da Bienal Internacional de Curitiba), Retrospectiva do Cinema Paulista e Tarkovski e
seus Herdeiros. Participa de seleções e júris em festivais de cinema, além de ministrar
cursos de História do Cinema e oficinas de crítica por todo o Brasil.

SABRINA MARQUES
Sabrina D. Marques é uma artista visual e investigadora que vive e trabalha em
Lisboa. Licenciada em Comunicação (FCSH), especializada em Cinema (ESTC),
doutoranda em História da Arte (FCSH), vertente Contemporânea, pesquisa sobre
Fotografia e Cinema (IHA). Publica em várias revistas e editoras nacionais e interna-
cionais. Trabalha com programação e escrita para festivais, mostras, museus, ga-
lerias, cineclubes. Tem experiência em freelance em realização e argumento para
cinema e televisão. É formadora universitária pontual. Participa em projetos auto-
rais de cinema, fotografia e teatro.

THIAGO ORTMAN
Thiago Ortman é roteirista, curador de mostras de cinema e pesquisador. É
formado em Cinema e mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), com um trabalho em torno da obra do
realizador Pedro Costa.

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Créditos 225
Patrocínio Identidade Visual Debates CATÁLOGO
Banco do Brasil Flávia Trizotto Rio de Janeiro:
Edição
Realização Redes Sociais “Portugal e as colônias” Dilúvio Produções
Centro Cultural Banco do Brasil Fausto Gomes Jr. Debatedores:
Carolin Overhoff Ferreira e Idealização, Organização
Organização e Produção Revisão de Cópia 35mm Juliano Gomes e Coordenação Editorial
Dilúvio Produções Caroline Nascimento Mediação: Thiago Ortman Eduardo Cantarino
Pedro Henrique Ferreira
Idealização e Curadoria Transporte de Cópias “Onde está o mundo? Thiago Brito
Pedro Henrique Ferreira LogCine Das estratégias de aproximação”
Debatedores: Fábio Andrade, Produção
Coordenação de Produção Legendas Hernani Heffner e Luís Mendonça Eduardo Cantarino
Eduardo Cantarino Luiz Guilherme Richard Mediação: Pedro Henrique Ferreira Pedro Henrique Ferreira
Thiago Brito
Produção Executiva Legendagem Descritiva Bate-papos Thiago Ortman
Pedro Nogueira Saulo Magnus Rio de Janeiro:
Autores dos Textos
Produção de Cópias Audiodescrição Gonçalo Tocha Daniel Ribas
Eduardo Cantarino Patrícia Almeida Mediação: Pedro Henrique Ferreira Iván Villarmea
Pedro Nogueira Jairo Jardim Luiz Carlos Oliveira Jr.
Susana de Sousa Dias Michelle Sales
Assistência de Produção Vinheta e Teasers Mediação: Eduarda Kuhnert Miguel Cipriano
Thiago Ortman Fabian Cantieri Nuno Barradas Jorge
Paulo Cunha
Monitoria RJ Assessoria de Imprensa RJ Sérgio Alpendre
Isabella Raposo Júnia Azevedo Sabrina Marques
Thiago Ortman
Produção Local e Monitoria SP Assessoria de Imprensa SP
Luiz Guilherme Richard ATTi Comunicação e Ideias Identidade Visual
e Caroline Nascimento e Diagramação
Assessoria de Imprensa DF Flávia Trizotto
Produção Local e Monitoria DF
Daniela Marinho e Revisão de Texto
Guilherme Marinho Martins Feiga Fiszon

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As cópias exibidas na mostra foram AGRADECIMENTOS
provenientes dos seguintes acervos e
distribuidoras: André Gil Mata, Anele Rodrigues, Ansgar Schaefer (Kintop), Ben Rivers, Carolin
ABMIC – Associação Brasileira Mostra Overhoff Ferreira, Catarina Mourão, Claudio A. Silva (ABMIC – Associação Brasileira
Internacional de Cinema, Basilisco Fil- Mostra Internacional de Cinema), Daniel Ribas, Daniela Azzi (Zeta Filmes), Diego
mes, C.R.I.M. Productions, Fênix Filmes,
Gullane, Imovision, Kintop, LX Filmes, Cavalcante (Gullane), Diogo Cavour, Eduarda Kuhnert, Eduardo Garretto Cerqueira
Newtalks, O Som e a Fúria, Portugal Film, (Zeta Filmes), Elaine Vegnaduzzi (Vitrine Filmes), Elias Oliveira (Imovision), Emanuel
Portuguese Short Film Agency, Rosa Fil- Oliveira (Portuguese Short Film Agency), Eugène Green, Fabienne Martinot (O Som
mes, Vitrine Filmes, Zeta Filmes.
e a Fúria), Fábio Andrade, Felipe Lopes (Vitrine Filmes), Fernanda Verardo, Filipa
Henriques (Portugal Film), Filipe (Basilisco Filmes), Francesca Azzi (Zeta Filmes),
- Gabriel Abrantes, Gonçalo Tocha, Henrique Fialho (O Som e a Fúria), Hernani
As imagens publicadas neste catálogo Heffner, Ico Costa, Iván Villarmea, Ivo Ferreira, João Canijo, João Nicolau, João Pedro
pertencem às seguintes produtoras/dis- Plácido, João Pedro Rodrigues, João Trabulo (Newtalks), Joaquim Pedro Pinheiro
tribuidoras ou diretores:
(Portuguese Short Film Agency), Joaquim Pinto, Juliana Guimarães (Zeta Filmes),
ABMIC – Associação Brasileira Mostra Juliano Gomes, Leonor Teles, Luís Correia (LX Filmes), Luís Mendonça, Luís Urbano (O
Internacional de Cinema, Basilisco Fil-
mes, C.R.I.M. Productions, Fênix Filmes, Som e a Fúria), Luiz Carlos Oliveira Jr., Manuel Mozos, Margarida Cardoso, Margarida
Gullane, Imovision, Kintop, LX Filmes, Moz (Portugal Film), Marina Pessanha, Marta Alves (Rosa Filmes), Marta Mateus,
Newtalks, O Som e a Fúria, Portugal Film, Mateus Ribeiro Gomes (C.R.I.M. Productions), Michelle Sales, Miguel Cipriano, Miguel
Portuguese Short Film Agency, Rosa Fil-
mes, Vitrine Filmes, Zeta Filmes, acervos Gomes, Nuno Leonel, Paulo Cunha, Pedro Costa, Pedro Peralta, Pedro Pinho, Priscila
pessoais dos diretores. Rosario (Fênix Filmes), Renata de Almeida (ABMIC – Associação Brasileira Mostra
Internacional de Cinema), Rita Azevedo Gomes (Basilisco Filmes), Sabrina Marques,
- Salette Ramalho (Portuguese Short Film Agency), Salomé Lamas, Sara Caixinhas
(C.R.I.M. Productions), Sérgio Alpendre, Sofia de Sousa (C.R.I.M. Productions), Susana
A organização da mostra lamenta pro-
fundamente se, apesar de nossos esfor- de Sousa Dias (Kintop), Tamara Ganhito (Vitrine Filmes), Teresa Villaverde, Thiago
ços, algum detentor foi omitido. Compro- Ortman, Vítor Gonçalves.
metemo-nos a reparar tais incidentes
caso novas edições sejam realizadas.

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