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Triste balneário
Desculpa, São Paulo
O que aprendi com quem
Serhumanidade
Terra estrangeira
Chupa, Dado
Perdemos
Estágios do assalto
Ator e autor
Sísifa feliz
Empatia é quase amor
Todos atentos olhando pra TV
A cerimônia do adeus
Sábado
Capricha no chorinho
Somos todos pinguins
Viva a falta de respeito
O grande romance do século XXI
Minha avó Ivna
Lembrar de esquecer
Abraço caudaloso
O sangue que corre nas nossas veias
O céu fica aqui pertinho
Haters gonna hate
Neologismos
Bíblia secreta — parábolas apócrifas
Vergonha parcelada
Viver pra postar
Contra a corrupção!
Calvofobia
Álvaro, me adiciona
Social das redes sociais
Crônica de raiz
O novo pau-de-selfie
Que ódio
Querido pastor
A privada e a bicicleta
RIP Rio
Não quer ajudar, não atrapalha
Não entendo
Por que odiar o PT
Não era amor, era cilada
Aquele mamão mofado
Do outro lado da folha
Luisa
Mundo, Brasil, Rio, Casa
O folgado e o ilunga
Carteira cheia, carteira vazia
Só neste país é que se diz neste país
Dois mil e crise
A mesa de cabeceira
Aforismos pra sabedoria de vida
Achados e perdidos
Alô. Som. Testando.
Contratempos
O certo, o justo e o imbecil
Adeus, Facebook
Festa estranha, gente esquisita
Os ignorantes do Leblon
Até que a morte nos separe ainda mais
Dietas do verão
Carnaval: modo de usar
Potenciais assassinos
O bloco que não acabou
Um dia vai ser muito estranho
Dúvidas de um ignorante
Do que é que se tem saudade
O sequestro das palavras
Festejando no precipício
Amanhontem
WhatsApp: modo de usar
Nunca é tarde pra abrir os olhos
Faltou combinar com os russos
Permissão pra sonhar
House of Soraya
Não se mate ainda, não
O que é que ele tem
Barbara
Cacarecos da língua
O relacionamento aberto
Lambança do Datafolha revela Folha mais conservadora que
capitalista
Dona Folha, tá difícil te defender
Desculpe o transtorno, preciso falar da Clarice
Triste balneário
Toda relação filial passa por três fases. Um: meu pai é a
melhor pessoa do mundo. Dois: meu pai é a pior pessoa do
mundo. Três: meu pai talvez não seja a pior pessoa do
mundo nem a melhor, mas alguma coisa entre os dois.
É a terceira vez que vou a Portugal, e é a terceira vez que
me surpreendo. Nunca vi um país tão engraçado. O humor
que eles fazem está léguas à nossa frente em inovação,
coragem e consciência política. Discute-se política nas ruas,
na televisão e no rádio. O rádio não é considerado um
veículo menor que a televisão, mas um canal paralelo, tão
forte quanto, onde os melhores humoristas falam
diariamente — e as músicas que tocam não são ditadas pelo
jabá.
Apesar da crise econômica persistente, Lisboa continua
borbulhante de cultura e gastronomia. Come-se muito bem,
e pela metade do preço do Rio. A noite dura a noite inteira,
e às vezes atravessa o dia. O turismo se incrementa de
maneiras inusitadas: carrinhos elétricos (“tuctucs”) circulam
numerosos e ônibus anfíbios mergulham no rio Tejo. As
pessoas marcam de jantar e chegam na hora, e durante o
jantar quase não tiram o celular do bolso. (Portugueses não
vão concordar porque se consideram pouco pontuais e
viciados em celular — portugueses: venham passar um
tempo no Brasil pra entender do que estou falando.)
Quando falam dos pais “históricos”, os brasileiros
parecem presos eternamente na fase 2: meu pai é uma
besta e minha vida é uma catástrofe por culpa única e
exclusiva dele. Adoramos creditar a culpa do nosso atraso
civilizatório à herança portuguesa: chegamos ao ponto de
inventar o mito da burrice lusitana — e muita gente acredita
nele.
“Se a gente tivesse sido colonizado pelos ingleses, tudo
seria diferente” — a gente tem inveja até da colonização
alheia, como se ela tivesse sido menos brutal. Pior: o
famoso complexo de vira-lata contamina toda a árvore
genealógica galho acima. Atinge negros, índios, europeus:
“O índio brasileiro era diferente do índio americano: o nosso
era muito mais atrasado”. Cheguei a ouvir: “Os negros que
vieram pro Brasil não se comparam aos negros que foram
pros Estados Unidos, os nossos eram mais preguiçosos”.
Acreditamos ser a soma das escórias africana, indígena e
europeia, e isso justifica nosso atraso.
Melhor mesmo seria crescer e chamar a responsabilidade
do suposto atraso para si, fugindo do determinismo
genético. Mas, mesmo que a gente não conseguisse escapar
do que estaria escrito no sangue que corre nas nossas
veias, talvez fosse o momento de procurar, nele, a
educação, o afeto, a poesia, a cultura, a profundidade e o
humor lusitanos.
Temos muito a aprender com nossos pais — só precisamos
fazer um pouco de psicanálise.
O céu fica aqui pertinho
Detesto usar este espaço pra falar sobre coisas que odeio.
A razão é simples: a crônica é um pedaço de amor cercado
de ódio por todos os lados. A crítica odeia o filme, o editorial
odeia o governo, a carta do leitor odeia o editorial (e o
governo).
Queria que este espaço fosse dedicado aos passarinhos
que pousaram no parapeito. Mas até hoje nenhum
passarinho pousou no meu parapeito — os cocôs de
passarinho, em compensação, não param de surgir.
O ódio, na maior parte das vezes, é irracional.
Odeio os carros quando tô a pé. Odeio os pedestres
quando tô de bicicleta. Odeio os ônibus quando tô de carro.
Odeio os ônibus quando tô de ônibus. Odeio o mundo
quando eu acordo. Odeio cigarro. E odeio quem se
incomoda com cigarro quando eu tô fumando. Odeio
acordar cedo e odeio acordar tarde. Odeio o Brasil e odeio,
ao mesmo tempo, as pessoas que odeiam o Brasil.
Tem ódio que não faz o menor sentido. Mas tem ódio que
faz.
Por exemplo: sem nenhuma razão plausível,
acrescentaram um pitoco no meio da tomada, tornando
obsoletos todos os eletrodomésticos do país. Não por acaso
a tomada tem três pinos como um tridente: eu tenho
certeza de que foi obra do demônio. Ou do Eduardo Cunha.
O que dá no mesmo.
Mas pior que a tomada de três pinos (tá bom: tão ruim
quanto) é o novo (que já nasceu velho) acordo (com o qual
ninguém está de acordo) ortográfico. O desacordo é a
tomada de três pinos da língua portuguesa.
Não bastasse termos poucos livros e uma população que
não lê, os gramáticos tornaram obsoletos todos os livros do
país. De 1911 até hoje, o português brasileiro sofreu cinco
reformas ortográficas. Nesse mesmo período, o inglês, o
francês e o espanhol não sofreram nenhuma.
E o pior: a reforma não faz o menor sentido. Caiu o hífen
em pé de moleque. Mas não caiu em pé-de-meia. Caiu em
pão de ló. Mas não em pão-de-leite. Caiu o hífen de copiloto,
e junto com ele o de cocomandante. (Sim, isso mesmo.
Agora o cocô é o mandante.)
Dos acentos, o trema é o que faz menos falta (embora
tivesse grande valor afetivo). Agora “para” de parar se
escreve igual a para de “em direção a”. O que antes parava
agora não para mais. A manchete “trânsito para São Paulo”
pode significar duas coisas opostas. A população que já não
sabia escrever agora sabe menos.
Quem ganha com isso? Os gramáticos, claro, classe com a
qual ninguém se importa até o momento em que se
proclamam indispensáveis. Os gramáticos são os
fabricantes de benjamim da língua portuguesa.
Querido pastor
Querido pastor,
Aqui quem fala é Jesus. Não costumo falar assim,
diretamente — mas é que você não tem entendido minhas
indiretas. Imagino que já tenha ouvido falar em mim — já
que se intitula cristão. Durante um tempo achei que falasse
de outro Jesus — talvez do DJ que namorava a Madonna —
ou de outro Cristo — aquele que embrulha prédios pra
presente —, já que nunca recebi um centavo do dinheiro
que você coleta em meu nome. Nem quero receber, muito
obrigado. Às vezes parece que você não me conhece.
Caso queira me conhecer mais, saiu uma biografia bem
bacana a meu respeito. Chama-se Bíblia. Já está à venda
nas melhores casas do ramo. Sei que você não gosta muito
de ler, então pode pular todo o Velho Testamento. Só
apareço na segunda temporada.
Se você ler direitinho vai perceber, pastor-deputado, que
eu sou de esquerda. Tem uma hora do livro em que isso fica
bastante claro (atenção: SPOILER), quando um jovem rico
quer ser meu amigo. Digo que, pra se juntar a mim, ele tem
que doar tudo pros pobres. “É mais fácil um camelo passar
pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos
céus.”
Analisando sua conta bancária, percebo que o senhor
talvez não esteja familiarizado com um camelo ou com o
buraco de uma agulha. Vou esclarecer a metáfora. Um
camelo é três mil vezes maior que o buraco de uma agulha.
Sou mais socialista que Marx, Engels e Bakunin — esse
bando de esquerda-caviar. Sou da esquerda-roots,
esquerda-pé-no-chão, esquerda-mujica. Distribuo pão e
multiplico peixe — só depois é que ensino a pescar.
Se não quiser ler o livro, não tem problema. Basta olhar as
imagens. Passei a vida descalço, pastor. Nunca fiz a barba.
Eu abraçava leproso. E na época não existia álcool gel.
Fui crucificado com ladrões e disse, com todas as letras
(Mateus, Lucas, todos estão de prova), que eles também
iriam pro paraíso. Você acha mesmo que eu seria a favor da
redução da maioridade penal?
Soube que vocês estão me esperando voltar à Terra. Más
notícias, pastor. Já voltei algumas vezes. Vocês é que não
perceberam. Na Idade Média, voltei prostituta e cristãos me
queimaram. Depois voltei negro e fui escravizado — os
mesmos cristãos afirmavam que eu não tinha alma.
Recentemente voltei transexual e morri espancado. Peço,
por favor, que preste mais atenção à sua volta. Uma dica:
olhe pra baixo. Agora mesmo, devo estar apanhando — de
gente que segue o senhor.
A privada e a bicicleta
Cara elite,
Sei que não é fácil ser você. Nasci de você, cresci com
você, estudei com você, trabalho com você. Resumindo: sou
você. Sei que você (a gente) quer o bem do país.
Sei que era por bem que você não queria abolir a
escravidão. “Se a gente tiver que pagar pelo serviço que os
negros fazem de graça, o país vai quebrar.” Você não queria
que o Brasil quebrasse. Você não precisava ficar nervoso: o
Brasil não quebrou.
Sei que era por bem que você pediu um golpe em 64.
Você tinha medo do Jango, tinha medo da reforma agrária,
tinha medo da União Soviética. Sei que depois você se
arrependeu, quando os generais começaram a matar seus
filhos. Mas já era tarde.
Sei que você achou que o Collor era honesto. Sei que você
achou (acha?) que o Lula é um braço das Farc, que por sua
vez é um braço do Foro de São Paulo, que por sua vez é um
braço do Fidel, que por sua vez é um braço da Coreia do
Norte. Sei que você ainda tem medo de um golpe comunista
— mesmo com Joaquim Levy no Ministério da Fazenda. Sei
que você tem medo. E seu medo faz sentido.
Não é fácil ser assaltado todo dia. Dá um ódio muito
profundo (digo por experiência própria). A gente comprou
um iPhone 6 com o suor do nosso rosto — e pagou muitos
impostos. Sei que nessas horas dá uma vontade enorme de
morar fora. Afinal de contas, como você sabe bem, lá fora
você pode abrir seu laptop na praça, pode deixar a porta
aberta, a bicicleta sem cadeado. Mas lá fora, você também
sabe disso, é você quem limpa sua privada. Você já tentou
relacionar as duas coisas?
Nos países em que você lava a própria privada, ninguém
mata por uma bicicleta. Nos países em que uma parte da
população vive pra lavar a privada de outra parte da
população, a parte que tem sua privada lavada por outrem
não pode abrir o laptop no metrô (quem disse isso foi o
Daniel Duclos). Não adianta intervenção militar, não adianta
blindar todos os carros, não adianta reduzir a maioridade
penal (SPOILER: isso nunca adiantou em lugar nenhum do
mundo). Sabe por que os milionários americanos doam
tanto dinheiro? Não é por empatia pelos mais pobres.
Tampouco tem a ver apenas com isenção fiscal. Doam
porque sabem que, quanto mais gente rica no mundo, mais
gente consumindo e menos gente esfaqueando por bens de
consumo. O.k., também doam porque o imposto sobre
doação é muito menor que o imposto sobre a herança, mas
isso é outra história.
Um pobre menos pobre rende mais dinheiro pra você e
mais tranquilidade nos passeios de bicicleta. A gente quer o
seu (o nosso) bem. É melhor ser a elite de um país rico que
a de um país pobre — mesmo que, volta e meia, isso
implique lavar uma privada.
RIP Rio
Meu amor,
Escrevo pra dizer que acabou de vez. Pode ter certeza de
que dói mais em mim que em você. Afinal, foram tantas
noites em claro, tantas tardes em que eu deveria estar
trabalhando e passei do seu lado, tantas vídeos virais que
descobrimos juntos. Era você que eu cumprimentava assim
que abria os olhos.
Quando te conheci, estava vindo de um término
complicado com o Orkut: uma relação que durou muito mais
do que deveria. Aos poucos você foi me ganhando e quando
vi estava pagando pra ter sua atenção. Doeu quando
descobri que você vendia informações minhas e nunca me
deu um centavo. Essa sua mania de guardar tudo: você
sabe que isso não tá certo. Outro dia saí com o Snapchat, a
gente se divertiu pra cacete e no dia seguinte ele não
lembrava de nada. Que delícia.
Hoje faz uma semana que a gente não se vê. Às vezes é
estranho. As pessoas falam de você o tempo todo: na
família, no trabalho, nas festinhas. Isso também mudou:
antigamente você servia pra falar das festinhas. Hoje
parece que as festinhas servem pra falar de você. Até
minhas tias-avós estão obsessivas. Outra coisa: até hoje
não entendi o que você tem contra mamilos femininos.
Hoje percebo que o problema não sou eu, é você. É
aquela mania de tocar vídeos que eu não pedi pra ver. É
aquela sua mania de perguntar: “O que é que você está
pensando?”. Deixa eu pensar em paz, porra. Por sua causa,
deixei de ler. Tentava abrir um livro e você não calava a
boca: “Ei, olha pra cá! Tá rolando treta! Tá rolando nude!”.
Nenhuma obra da literatura pode competir com treta e com
nude. Você sabe disso.
O término não foi bacana. Você me obrigou a dizer o
motivo. “Tô perdendo tempo demais com você”. E você:
“Calma, a gente pode se ver menos, eu dou um jeito”. E eu:
“Você me faz uma pessoa mais triste”. E você: “Eu vou
melhorar. Desculpa. Fica. Se ficar, libero até mamilos
femininos. Fica”. Você não tem amor-próprio, cara?
Quando viu que nada mais podia me convencer, você foi
baixo. “Olha só esses amigos. Eles vão sentir sua falta.” Não
precisava insinuar que eles só são meus amigos por sua
causa. Mesmo os amigos que eu conheci através de você
sabem onde me achar: e já estão me achando. A gente não
precisa mais de você.
Não vou pedir que você devolva as mil horas que você me
tomou — e nunca deu. Só queria mesmo que você soubesse
que sem você eu passo bem demais.
Sim, eu sei. Posso voltar pra você a hora que eu quiser. No
hard feelings. Você não tem amor-próprio, cara?
Festa estranha, gente esquisita
Tive uma ideia louca. Talvez até subversiva. Sei que vocês
vão dizer que não vai dar certo, mas peço a permissão pra
sonhar.
Imaginem um sistema político em que o povo escolhe
seus representantes. Calma. Sei que parece loucura, mas
nesse sistema a vontade de cada cidadão teria o mesmo
peso. Podíamos chamar esse peso da vontade de cada
cidadão de “voto”. É uma palavra bonita. Voto. O
representante que tivesse mais votos seria o “eleito” —
podíamos chamar esse processo todo de “eleições”. Aqueles
que não fossem eleitos podiam esperar — vou chutar um
tempo — quatro anos pra tentar se eleger de novo. Se
perdessem outra vez, esperavam por mais quatro anos. E
daí por diante. Caso o representante cometesse um crime,
seria deposto e convocaríamos novas eleições. Caso
contrário, não.
Calma que o sonho não acabou. Nesse sistema louco, a
Igreja seria separada do Estado. Ninguém citaria a Bíblia pra
justificar uma lei — até porque não haveria só cristãos no
país. As funções de pastor, padre ou babalorixá não
poderiam ser exercidas ao mesmo tempo em que a função
pública, pra não haver confusão. As igrejas, que também
são empresas, pagariam impostos como qualquer empresa.
Pra designar esse Estado, pensei na palavra “laico” — que
não rima com nada, mas é uma palavra linda.
A parte mais louca está por vir. Ninguém teria menos
direitos por ser mais pobre. Ninguém precisaria pagar pra
ter saúde e ninguém estaria condenado a morrer por falta
de dinheiro. A expectativa de vida, nesse regime louco, não
seria proporcional à conta no banco. A qualidade da escola
de uma criança não dependeria do salário dos seus pais.
Mulheres — imagina só — ganhariam a mesma coisa que os
homens e teriam os mesmos direitos sobre o próprio corpo.
Claro, também haveria mulheres no poder. Sim, inclusive
ministras. Por que não?
As pessoas fariam sexo com quem quisessem e usariam
as substâncias que bem entendessem — o corpo seria
delas, e o que esse corpo ingeriria ou penetraria não seria
assunto do Estado. Chamaríamos esse conceito louco de
“liberdade”. Talvez esteja indo longe demais, mas ninguém
seria preso por ser negro, pobre, gay ou “trans”, e ninguém
seria condenado por ser do jeito que nasceu.
Pra batizar esse regime louco, uma palavra grega, que
significa “o povo no poder”: democracia. Sei que não vai
pegar por aqui. Mas que era lindo, era.
House of Soraya