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Sophia e o nome das coisas 1.ª Edição, Porto, Reúnem-se aqui os textos
Pensamento e obra de dezembro de 2020 apresentados no Congresso
Sophia de Mello © U.Porto Press Internacional “Sophia e o
Breyner Andresen Universidade do Porto Nome das Coisas: Pensamento
Praça Gomes Teixeira, e obra em Sophia de Mello
Organização 4099-002 Porto Breyner Andresen”,
Maria Celeste Natário que decorreu na Faculdade
Instituto de Filosofia http://up.pt/press de Letras da Universidade
da Universidade do Porto editup@reit.up.pt do Porto, na Faculdade
de Letras da Universidade
Renato Epifânio
Retrato de Lisboa e na Faculdade
Instituto de Filosofia
José Emídio de Filosofia da Universidade
da Universidade do Porto
Retrato de Sophia, de Santiago de Compostela,
Maria Luísa Malato 2010, Aguarela, 35x26 cm, por iniciativa do Instituto
Instituto de Filosofia Coleção Porta XIII de Filosofia da Universidade
da Universidade do Porto/ do Porto (Grupo de
Instituto de Literatura Design Investigação “Raízes
Comparada Margarida Losa Diana Vila Pouca e Horizontes da Filosofia
Paulo Borges e da Cultura em Portugal”).
Centro de Filosofia Impressão e acabamentos
da Universidade de Lisboa Penagráfica.
Artes Gráficas, Lda.
Coordenação Editorial
Isabel Pacheco, ISBN
U.Porto Press 978-989-746-284-9
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Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Pra poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes
(ANDRESEN, 2015, P. 81)
que fosse outra, tendo aceitado outros convites da sua superabundância e assim
se libertado de pelo menos alguns dos “laços” e “limites” que parecem fixar o
indivíduo numa dada identidade aparente. Que essa identidade não seja no fundo
verdadeira é uma “fabulosa descoberta”, embora dela diga, no poema “Às vezes
julgo ver nos meus olhos”, do mesmo livro Poesia, que só lhe “vem o terror e a
mágoa” de se “sentir sem forma, vaga e incerta / Como a água” (Andresen, 2015,
72). Apesar desta experiência pontual de incómodo e recuo perante a indefinição
de si, a poeta não aspira todavia a ter uma forma precisa e definida, mas antes a
realizar todas as possibilidades que essa ausência de forma lhe abre de se fundir
e coincidir com a múltipla totalidade da vida e do mundo.
É essa na verdade, mais do que aspiração, a certeza que expressa no poema
Em todos os jardins:
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Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Sophia anuncia aqui, numa profecia da sua própria realização plena, que no seu
“fim” – que não entendemos necessariamente como o da sua morte física, podendo
ser o da sua culminação e perfeição em vida corporal, no sentido do télos grego, do
verbo telein (realizar, findar) que originará teleté, os mistérios iniciáticos gregos – será
todas as coisas e se unirá a “tudo quanto existe”, identificando-se com “jardins”, “lua
cheia”, “praias”, “mar”, “areia” e “floresta”. Será então o “ritmo das paisagens”, ou seja,
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As “imagens” podem ser as representações – palavras, conceitos, imagens
propriamente ditas – que “transbordam” dos seus limites e se desvanecem dei-
xando a experiência despojada ou despida ante o real, ante os fenómenos não
filtrados pelas categorias e modalidades da perceção humana do mundo, con-
dicionada pelo filtro cerebral da consciência, onde se reflete o aparato históri-
co-cultural e muito particularmente a linguagem, que em geral convida a uma
perceção ontologicamente separativa e reificante (Kastrup, 2016, 38-44; Kastrup,
2017, 20-24). Isso acontece por haver nos humanos um “impulso” sem fim que
leva a experiência, e a consciência que lhe é inerente, a transcender os moldes
das representações e a procurar ser (ou reconhecer que já é) tudo o que expe-
riencia, jamais se podendo por isso deter em qualquer objetivação e sua inerente
representação. É assim que entendemos aqui a “presença”, não como a presen-
ça ontológica do que é tal como é, mas como a presença representativa e id-enti-
ficativa que nunca pode “cumprir” o veemente e pacificante “impulso” de superar
a separação sujeito-objeto ou mesmo identidade-alteridade.4 Não será todavia
essa superação que plenamente acontece quando ainda “estamos nus em frente
às coisas vivas”, pois aí porventura ainda não estamos plenamente nus, uma vez
que quedamos revestidos dos conceitos de haver alguém “em frente” de alguma
Sophia e o nome das coisas
coisa. A imagem do estar “em frente” pode ser ainda uma “presença” que há que
diluir nesse “tudo ser e em cada flor florir” de que fala este poema, equivalente
ao florir “Em todos os jardins” do poema assim intitulado, na mesma passagem
da mera promessa das “imagens” representativas para a “secreta abundância
dessa festa” de com tudo coincidir (Andresen, 2015, 104).
Todavia, esta plenitude por osmose com a vida e o mundo, que Em todos
os jardins surge como certa mas ainda futura, como se a separação, limitação
e parcialidade da vida individuada fossem por enquanto a sua realidade
incontornável, é porventura ao mesmo tempo algo já consumado, numa outra
dimensão de si, como o sugere o poema As Fontes:
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Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser
(ANDRESEN, 2015, 106)
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na verdade nem sequer existe ou alguma vez existiu. O “mundo do irreal” pode
designar o fluxo de todos os fenómenos psicológicos que prendem e desviam
a atenção do ser “vivo e total”, como os objetos, entidades, experiências, ativi-
dades, perceções, pensamentos, volições, emoções, projetos e memórias que
povoam externa e internamente a consciência e a levam a envolver-se freneti-
camente com eles, dominada pelo medo e expectativa a seu respeito ou pela
identificação com os seus instáveis remoinhos ou turbilhões.5 É essa a “agita-
ção” que turva a consciência, lhe impede reconhecer o ser pleno que é a sua
natureza verdadeira e a distrai e diverte com o que a não vale. É por isso que,
como visa a prática meditativa (Borges, 2017a; Borges, 2017b), só desfazendo,
ou deixando de se identificar com, o que a vincula a isso – as “pontes”, que as-
sumem aqui o sentido negativo do vínculo ao que é ilusório e da própria ilusão
que lhe subjaz – pode ter a “calma” ou serenidade que lhe possibilite ascender
às “fontes” onde reside o “límpido esplendor” da própria e íntima “plenitude”.
Só fazendo ou deixando ruir, por não mais as percorrer e alimentar, todas as
“pontes” da alienação pode enfim aceder irreversivelmente ao brotar originário
de si, colhendo tudo o que já vislumbrou e fugazmente pressentiu nas oca-
sionais mas fulgurantes epifanias e promessas de vida plena que a visitaram
Sophia e o nome das coisas
pelas frestas ou brechas da vida inautêntica.6 Tudo depende do que foi “como
um voo” – como o rapto ou arroubo, como o êxtase ou visitação, de uma expe-
riência fugaz de trespasse e abertura ao “ser, vivo e total” – se converter num
cumprimento, ou seja, numa realização e consumação, desse mesmo ser, por
uma consciência que o reconhece, nele se reconhece e nele, ou seja, em si, en-
fim e sem fim repousa. Repousando na quietude do ser pleno, livre dos “laços”
e “limites” do primeiro poema, que equivalem às “pontes” para a “agitação do
mundo do irreal”, desaparece a frustrante sensação de impossibilidade de res-
ponder a todos os súbitos “convites” da “vida de mil faces transbordantes”, pois
agora já não se está perante essa vida, como um sujeito diante de um objeto,
agora é-se essa mesma vida. O ser cumpre-se reconhecendo e desfrutando a
sua própria e primordial superabundância. Aquela para a qual no fundo desde
o início se convidava e era convidado, pois agora se sabe que quem convida, os
convites e o convidado são apenas diferentes aspectos da mesma e não-dual
“vida de mil faces transbordantes”.
A experiência de pleno cumprimento narrada neste poema pode equivaler à
realização que expressa o poema Promessa, que acolhe vários níveis de sentido,
complementares, desde o de um encontro amoroso ao de um encontro consigo e
com o real ou a vida plena, vivido como um renascimento primaveril:
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És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante
(ANDRESEN, 2015, 137)
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Notas
1. Falando do Tao “com nome”, Lao Tse diz que é “a Mãe das dez mil criaturas”
(Tse, 2010, 23).
4. “[...] só haverá paz para a consciência humana quando não existir distinção
alguma entre o “eu” e o “outro” (Silva, 2002, 304).
Referências
Andresen, Sophia de Mello Breyner (2015), Obra Poética, Lisboa, Assírio & Alvim.
Franke, William (2018), Apophatic Paths from Europe to China. Regions without Borders,
New York, State University of New York.
Hulin, Michel (1993), La Mystique Sauvage. Aux antipodes de l’esprit, Paris, Presses
Universitaires de France.
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Kastrup, Bernardo (2011), Dreamed Up Reality. Diving into mind to uncover the
astonishing hidden tale of nature, Winchester, Iff Books.
Kastrup, Bernardo (2016), More Than Allegory. On religious myth, truth and belief,
Winchester, Iff Books.
Llansol, Maria Gabriela (2003), Na Casa de Julho e Agosto, Lisboa, Relógio D’Água.
Rose, Kenneth (2018), Yoga, Meditation, and Mysticism. Contemplative Universals and
Meditative Landmarks, London, Bloomsbury Academic.
Silva, Agostinho da (2002), Estudos sobre Cultura Clássica, Lisboa, Âncora Editora.
Stace, W. T. (1972), Mysticism and Philosophy (1972), London, The MacMillan Press.
Tse, Lao (2010), Tao Te King. Livro do Caminho e do Bom Caminhar, Relógio D’Água.
Wilber, Ken (1996), The Atman Project, Wheaton / Chennai, Quest Books.
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