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eamuei eecxen

Molloy

Tradução de
RUI GUEDES DA SILVA

EDITORIAL PRESENÇA
Presença/ Nova Série
1. O PROCESSO, de Kafka - adaptação teatral de
André Gide e J .• L. Barrault
2. MOLLOY. de Samuel Beckett
Título Original
MOLLOY
© Copyright by EDITIONS DE MINUlT

CAPITULO 1

Estou no quarto da minha progenitora. Sou


eu quem cá vive agora. Nem sei como cá
Arranjo Gráfico de cheguei. Numa ambulância talvez, num veículo
F. C. qualquer certamente. Ajudaram-me pois. So-
zinho, não teria chegado. Esse fulano que vem
cá todas as semanas, talvez seja graças a ele
que estou aqui. Ele diz que não. Dá-me um
dinheirito e leva as folhas. Tantas folhas,
tantas. Sim senhor, trabalho, um pouco como
antigamente, simplesmente agora já não sei
trabalhar. O que não tem importância, su-
ponho. Quanto a mim, gostaria agora de falar
das coisas que me restam, de fazer as minhas
despedidas, de acabar de morrer. Eles não
querem. Sim, são muitos, parece. Mas é sempre
o mesmo que vem. Fará isso mais tarde, diz ele.
Muito bem. Já não tenho muita vontade, como
vêm. Quando vem buscar as folhas, torna
a trazer as da semana anterior. Vêm marcadas
com sinais que não entendo. Aliás, nem as
releio. Quando não faço nada, não me dá nada,
e ralha comigo. E no entanto, eu não trabalho
por dinheiro. Por que trabalho, então? Nem
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à sei. Não sei grande coisa, com franqueza. A
Editorial Presença - Rua Augusto Gil, 2-cjv esq. - LI.SBOA morte da minha mãe, por exemplo. Estaria ela
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já morta quando eu cheguei? Ou só terá mor- Tudo se esbate. Um pouco mais e é a cegueira.
rido mais tarde? Por morta quero dizer pronta Na cabeça. Ela já não anda, diz: já não
para enterrar. Não sei. Talvez nem a tenham ando . Ficamos mudos também e os ruídos en-
ainda enterrado. Seja como for, sou eu quem fraquecem. Mal transpomos o limiar é isto.
tem agora o quarto dela. Deito-me na cama ~ a cabeça que já não deve poder mais. De
dela. Faço no penico dela. Tomei o lugar dela. maneira que dizemos para connosco: Desta vez
Devo parecer-me com ela cada vez mais. Só sim, hei-de chegar, depois mais outra quem
me falta um filho . .Devo ter um algures, quem sabe, depois mais nada. E é a custo que for-
sabe? Mas não creio. Seria agora velho, quase mulamos tal pensamento, porque de um pen-
tanto como eu. Era uma rica sopeira. Não era samento se trata, em certo sentido. Queremos
o verdadeiro amor. O verdadeiro amor era com então prestar atenção, considerar atentamente
outra. Já vão ver. Esqueci-lhe outra vez do todas estas coisas obscuras, dizendo-nos, pe-
nome. Tenho às vezes a impressão que nosamente, que a culpa é nossa. A culpa? É a
cheguei a conhecer o meu filho, que me ocupei palavra que empregamos. Porém que culpa?
dele. Depois digo para comigo que isso era Não se trata do adeus, e quanta magiamestas
impossível. Impossível eu ter podido ocupar-me coisas obscuras a que há-de ser tempo, na
de alguém. Esqueci-me também da ortografia nossa próxima passagem, de dizer adeus. Por-
e de metade das palavras. O que, parece, não que é necessário dizer adeus, seria estúpido
tem grande importância. Isso queria eu. :m não dizer adeus, na altura devida. Se pensa-
um tipo bizarro, este que me vem ver. Vem mos em contornos à luz de outrora é sem
aos domingos, suponho, não falha um. Aos saudades. Mas não pensamos nisso, com que
outros dias não está livre. Foi ele quem me pensaríamos? Não sei. Passa gente também,
disse que eu começara mal , que era preciso da qual não é fácil distinguirmo-nos com ni-
começar de outra maneira. Isso queria tidez. Eis o que é desencorajador. Foi assim
eu. Comecei no princípio, vejam lá, como um que eu vi A e B caminharem lentamente um
bandalho. Ora aí têm o meu principio. Mesmo para o outro, sem se darem conta do que fa-
assim, se bem compreendi, vão guardá-lo. O ziam. Era numa estrada de uma nudez pal-
trabalhão que me deu. Aqui o têm . Custou-me pável, isto é sem sebes nem muros nem orlas
muito. Era o princípio, não sei se compreen- de qualquer espécie, em pleno campo, porque
dem. Ao passo que, agora, é quase o fim. Será em campos imensos vacas ruminavam, deita-
melhor, o que faço agora? Não sei. O pro- das e de pé, no silêncio do entardecer. Talvez
blema não está aí. Aqui têm o meu começo, esteja a inventar um tanto, talvez embeleze,
muito meu. Algum significado deve ter, visto mas no conjunto era assim. Ruminam, depois
que o guardam. Aqui o têm. engolem, depois após uma curta pausa pro-
vocam sem esforço a dentada seguinte. Um
Esta vez, depois ainda mais uma acho eu, tendão do pescoço estremece e as mandíbulas
depois será o fim acho eu, também daquele recomeçam a triturar. Mas isto talvez não
mundo. "8: o sentido do que precede o fim. passem de recordações. A estrada, dura e
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branca! rasgava as brandas pastagens, subia cada um seguiu o seu caminho, A para a
e descia ao sabor dos valados. A cidade não cidade, B através de regiões qu e parecia
er a longe. Eram dois homens, impossível o conhecer ma l, ou mesmo nada, porque avançava
engano, um grande e outro pequeno. Tinham com passo mal seguro e parava muit as vezes
saído d~ cidade, pri meir o um, depois o outro, para olhar à volta, como quem procura fixar
e o primeiro, est afa do ou recordando uma no espírito pontos de r eferência , porque um
obrigação, fizera ma r cha atrás. Estava fres- dia, quem sabe, talvez lhe fosse necessário
cote, visto que ambos vinham de sobretudo. As- voltar at rás, nunc a se sa be. As colinas trai-
semelhavam-se, se bem que não mais do que a dor as em que se aventu r ava ap avorado, decert o
o~t.ros. Um grande espaço-separava-os a prin-
não as conhecia a não ser por as ter visto de
crpio. Nunca teriam cons eguido ver-se, mesmo longe, t alvez da janela do seu quarto, ou do
erguendo a cabeça e procurando-se com os cocuruto de um monumento num dia de sofri-
olhos, por causa precisamente desse grande mento em que, nada t endo de especial a fazer
espaço, e além disso por causa dos valados e buscando na altitude o r econforto, esmi frar a
do terreno, valados que faziam com que a os seus t rês ou seis dinheiros e escalara até
estrad a fosse às ondas, pouco profundas é à plataforma a escada de car acol. Daí devia
certo, mas suficientemente, oh muito suficien- ver tudo, a planície, o mar e mais além essas
temente: ~as o momento chegou em que ambos mesmas colinas a que alguns chamam mont a-
Se precipitaram para a mesma concavidade nhas, roxas nalguns pont os à luz do entar-
e foi nessa concavidade que ambos finalment~ decer, correndo a perder de vist a um as atr ás
se encontraram. Dizer que se conheciam não das outras, atravessadas de val es que se não
qu; ideia, nada permite afirmá-lo. M~s ao vêm mas adivinham, por virtude da degrada-
ruí do quem sabe dos passos um do outro ou ção de tons e ainda por causa de outros indícios
advertidos por qualquer obscuro instint~ o intraduzíveis em palavras e mesm o impensá-
cer to é que levantaram a cabeça e se obse;va- veis. Porém nem todos se adivinham, mesmo
ram, durante à vontade uma boa quinzena de dessa altura, e muitas vezes no sítio onde
passos, antes de estacarem, um contra o outro se vê apenas uma encosta, uma única crista,
como muitas vezes fazem no campo, ao entar~ há na realidade duas, duas encostas, duas
decer, ~uma estrada deserta, dois passeantes cristas, separadas por um vale. Mas essas
qu.e se Ignoram, sem que ISSO tenha qualquer colinas, agora conhece-as, quer dizer, conhe-
coisa de extraordinário. Mas estes talvez se ce-as melhor, e se alguma vez lhe calha outra
conhecessem. Seja como for, agora conhe- vez contemplá-las de longe será julgo eu com
cem-se e hão-de reconhecer-se acho eu, e sau- outros olhos, e não ape nas elas, mas o interior,
dar-se, mesmo nas profundas da cidade. Vol- t odo esse esp aço interior, todo esse espaço
taram ~ cara para o mar que, ao longe a leste, inter ior que se não vê nunca, o cérebro e o
para alem dos campos, saltava alto para o céu cor ação e as out r as cavernas onde sentimento
lív~do, e trocaram algumas palavras. De-
e pensamento perpetram o sabá comum, tudo
POlS cada um seguiu o seu caminho. Depois isso disposto muito diversament e. Tem ar de

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velho e mete dó vê-lo andar assim tão só
após tantos anos, tantos dias e noites dedicados
sem regatear a esse rumor que se levanta à as características do caminho, e portanto devia
nascença e mesmo antes, a esse insaciável ver a rocha a cuja sombra eu estava agachado,
Como fazer? Como [aeer t , ora baixo, num à maneira de Bellacqua, ou de Sordello, já
murmúrio, ora nítido, como o E para beber? não me lembro. Porém um homem, e por maio-
do mordomo, e ainda muitas vezes berrado até ria de razão eu, é coisa que não faz propria-
ao rugido. Para partir afinal de contas com- mente parte das características de um caminho,
pletamente só, ou quase, por caminhos des- porque sim. Quero eu dizer na minha .que se
conhecidos, ao cair da noite, amparado a um por milagre ele tem um dia de tornar a passar
bordão. Era um bordão enorme, servia-se dele por ali, após longo lapso de tempo, vencido, ou
para avançar e além disso para se defender, para procurar qualquer coisa esquecida, ou
no caso disso, de cães e meliantes. Sim, para queimar sei lá o quê , é a rocha que
a noite caía, mas o homem estava inocente, há-de procurar com os olhos, e não o mero
inocentíssimo, nada temia, sim, temia, mas acaso à sua sombra dessa coisa irrequieta e
não tinha necessidade de temer o quer que fugidia que é a carne com vida. Não, de cer-
fosse, nada podiam contra ele, ou podiam tão teza que não me viu, pelas razões que aduzi,
pouco. Mas isso, sem dúvida, ele próprio igno- e ainda porque, nessa noite, ele não tinha
rava. Eu próprio, com a condição de reflectir cabeça para tanto, tinha lá cabeça para os
nisso, o ignorava também. Via-se ameaçado, no vivos, tinha sim para aquilo que não muda de
corpo, na alma, e talvez o estivesse, não obs- lugar, ou muda de lugar tão lentamente que
tante a sua inocência. Que vem fazer a inocência uma criança se parte a rir, para não falar de
nesta história? Que relação com os inumeráveis um ancião. Seja como for, quero eu dizer tenha
agentes do mafarrico? Não é nada claro. Trazia ou não me tenha visto, repito que o via afas-
na cabeça um chapéu pontiagudo, pelo menos tar-se, a braços (eu) com a tentação de me
assim parecia. Chamou-me este a atenção, como levantar e de o seguir, de ir mesmo talvez com
o não teria feito, por exemplo, um barrete, ou ele um dia, para o conhecer melhor, para eu
um chapéu de coco. Vi-o afastar-se, possuído próprio ficar menos sozinho. Mas apesar de
pela sua inquietação, enfim por uma inquieta- este impulso da minha alma para ele, e o elás-
ção que não era neeessàriamente a sua, mas tico da minha alma não dava para mais, eu
de que fazia de algum modo parte. Era, quem via-o muito mal, por causa da obscuridade e
sabe, a minha própria inquietação que o pos- também do terreno, atrás de cujas pregas desa-
suía. Ele nem me tinha visto. Que eu estava parecia de vez em quando, para tornar a
empoleirado acima do nível mais elevado da emergir mais adiante, mas sobretudo creio por
estrada e ainda por cima rentinho a uma rocha mor das outras coisas que me chamavam e
da mesma cor do que eu, isto é, cinzenta. Que para as quais igualmente a minha alma desar-
ele visse a rocha, é possível. Ele olhava à volta, vorava uma após outra, sem método e esbafo-
como já fiz notar, como a gravar na memória rida. Falo naturalmente dos campos embran-
quecendo sob o orvalho e dos animais dei-
12 xando de neles vaguear sem tomar as suas
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atitudes nocturnas, do mar do qual não direi mais nisso penso mais disso estou convicto.
palavra, do céu onde sem as ver sentia estre- E no entanto. Ora esse senhor teria vindo
mecer as primeiras estrelas, da minha mão assim de longe, cabeça ao léu, alpergatas, cha-
sobre o meu joelho e ainda sobretudo do outro ruto na boca, seguido de um lulú da Pomerânia?
passeante,. ~ ou B já me não lembro, que Não tinha ele antes o ar de quem saíra das
volt~va aJ~lzadam~nte para casa. Sim, para
muralhas, depois de um bom jantar, para pas-
a minha mao tambem, que o meu joelho sentia sear o seu cão, sonhando e peidando, como
tremer e de que os meus olhos não viam senão fazem tantos citadinos, quando faz bom tempo?
o punho, as costas fortemente vinculadas e a Porém o charuto não seria na realidade quem
brancura das primeiras falanges. Mas não é sabe um cachimbo, e as alpergatas sapatos
dela, quero dizer da mão, que quero falar cardados brancos da poeira, e o cão esse o que é
presentemente, cada coisa em seu tempo, mas que o impedia de ser um cão vadio desses que
desse A ou B que se dirige para a cidade de recolhemos e tomamos nos braços, por com-
onde acaba de sair. Mas no fundo o seu ar paixão ou porque erramos muito tempo sôzinhos
.
que tinha de especialmente urbano?' Ia de ca- sem outra companhia além das estradas infin-
beça ao léu, calçava alpergatas, fumava charuto. dáveis, das areias, dos seixos, dos pântanos, dos
Deslocava-se com uma espécie de preguiça bosques, de toda essa natureza que releva de
flanante que com razão ou sem ela me parecia u.ma justíça, e de longe a longe de um co-pri-
expressiva. Mas tudo isso não provava nada sioneiro que apetece abordar, abraçar, mungir,
não refutava coisa alguma. Vinha talvez d~ aleitar, mas cruzamos, de olhos torvos, com
longe, do outro extremo da própria ilha, cami- medo de que não vá ele permitir-se certas fami-
nhava para essa cidade talvez pela primeira liaridades. Até ao dia em que, já não podendo
vez ou regressava a ela após uma longa au- mais, neste mundo para vocês sem braços, agar-
sência. Seguia-o um cãozito, um lulú da Pome- ram nos vossos os cães sarnentos, trazem-nos o
rânia creio, mas não creio. Não tinha a certeza tempo que é preciso para que vos amem, para
no próprio momento e ainda hoje não a tenho que vocês os amem, depois atiram-nos fora.
se bem que nisso tenha pensado muito pouco: Ele estava talvez neste ponto, mau grado as
O cãozito seguia-o com dificuldade, à maneira aparências. Desapareceu, a coisa fumegante na
dos lulús da Pomerânia, parava, dava grandes mão, a cabeça caída para o peito. Eu expli-
voltas, desistia, quero dizer abandonava, reco- co-me. De objectos em via de desaparecimento
meça va depois um pouco mais longe. A diarreia é com grande antecedência que desvio o olhar.
nos lulús da Pomerânia é sinal de boa saúde. Fixá-los até ao último momento, não, não con-
A um dado momento, pré-estabelecido se quise- sigo. Foi neste sentido que ele desapareceu.
rem, eu não quero outra coisa, o senhor deu Os olhos algures, pensava nele, dizia para
meia volta, agarrou o cãozito nos braços, tirou comigo. Ele mingua, mingua, mingua. Eu cá
o cha!"1lto da boca e mergulhou o rosto no pêlo me entendia. Sabia que podia ir ter com ele,
laranja, Era um senhor, isso vía-se. Sim, era por muito estropiado que estivesse. Não tinha
um lulú da Pomerânia cor de laranja, quanto mais do que querer. E no entanto não, porque

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queria. Levantar-me, ganhar a estrada, lan- mas o quê, as leis da consciência talvez da
o çar-me coxeando em sua perseguição, chamá-lo ~nha. consciência, que por exemplo a água ~obe
em altos brados, nada mais fácil. E ele ouve a medida que mergulhamos nela e que faríamos
os meus gritos, volta-se, espera-me. Atiro-me melhor, enfim tão bem como, apagar os textos
contra ele, contra o cão, ofegante, entre as em vez, de lhes ene~recer as margens, obstruí-
muletas. Ele sente algum medo, alguma piedade -los ate que tudo fique branco e liso e que a
de mim. Enojo-o sofrivelmente. Não sou bonito bandalheira mostre o seu verdadeiro rosto um
de ver, não cheiro bem. O que desejo? Ah esse s~m. sentido cu sem saída. Fiz portanto' sem
tom que conheço, feito de medo, de piedade, de dúvida bem, enfim igualmente bem, em não
nojo. Quero ver o cão, ver o homem, de perto, me mexer do meu posto de observação. Mas
saber o que fuma, inspeccionar os sapatos, em lugar de observar tive a fraqueza de re-
acentuar outros indícios. :m boa pessoa, diz-me gressar ~m espírito para o outro, para o homem
isto e aquilo, ensina-me coisas, de onde vem, do bordao. Foram então de novo os murmúrios
para onde vai. Acredito, sei que é a minha S1;ls.citar o silêncio, eis o papel dos objectos:
única oportunidade de - a minha única opor- ~Izla para comigo, Quem sabe se ele não saiu
tunidade, acredito em tudo o que me dizem , Simplesmente para tomar ar, relaxar os mús-
demais me recusei a isso durante a minha longa culos, desenferrujar as pernas, descongestio-
vida, agora chupo tudo, com avidez. Do que na~ o cerebro fazendo afluir o sangue aos pés,
preciso é de histórias, levei muito tempo a a ~Im de para SI assegurar uma boa noite, um
sabê-lo. Aliás não estou certo disso. Então f~lIz despertar, um novo dia encantador. Trazia
pronto, fixei-me em certas coisas, sei certas somente uma sacola? Aquele andar porém
coisas a respeito dele, coisas que ignorava, que aque!~s olhares ansiosos, aquela tranca, podia~
me arreliavam, coisas mesmo que não tinha concíliar-sg com a ideia que se faz do que se
suportado. Que língua. Sou mesmo capaz de chama u,ma vo.ltinha? Mas aquele chapéu era
ter sabido qual é a sua profissão, eu que me in- um chapeu de Cidade, velho relho mas de cidade
teresso tanto pelas profissões. Pensar que faço que a mais Iigeíra brisa levaria para longe:
o possível para não falar de mim. Dentro em A men~s que esbvess~ atado debaixo do queixo,
pouco falarei das vacas, do céu, vão ver. Então, por meio d~ um cordao ou de um elástico. Tirei
pronto, ele deixa-me, está com pressa. Não tem o l?eu chapeu e contemplei-o. Um atacador com-
ar de quem tem pressa, flanava, já o fiz notar, prido segura-o, desde sempre, à minha botoeira,
porém após três minutos de conversa comigo, se1?pre a mesma, seja qual for a estação. Logo
está com pressa, tem que se despachar. Acre- existo desde sempre. É bom que se saiba. A mão
dito. E de novo estou não direi só, que ideia, que se. apoderara do chapéu e o agarrava ainda,
não é o meu género, mas, como dizer, não sei, afastei-a, ~ mais possível de mim e fi-la des-
restituído a mim, não, nunca saí de mim, livre, crever varies arcos. Ao fazer isto olhei para o
ora aqui está, não sei o que quer dizer mas é forro do meu capote e vi-o abrir e fechar.
a palavra que pretendo empregar, livre para Compreendo agora porque nunca trazia flor
fazer o que quiser, de nada fazer, de saber, na lapela, bastante ampla para receber um
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ramalhete inteiro. A minha lapela está reser- mente, na minha vida desmesurada tacteei todos
vada para o meu chapéu. Era o chapéu que eu os sonos, mas na época que descubro fazia a
floria. Mas não é do meu chapéu nem do meu minha soneca de dia e, o que é mais, de manhã.
capote que quero falar agora, seria prematuro. Que não me venham falar da lua, não há lua
Deles falarei sem dúvida mais tai de, quando na minha noite, e se me acontece falar de
se tratar de fazer o inventário dos meus teres e estrelas é por descuido. Ora de todos os ruídos
haveres. A menos que os perca de aqui até lá. dessa noite nem um foi o daqueles pesados
Mas mesmo perdidos terão o seu lugar, no passos incertos, dessa tranca com que às vezes
inventário dos meus bens. Porém estou tran- batendo na terra a fazia estremecer. Como é
quilo, não os perderei. As minhas muletas agradável ter a confirmação, após um período
também as não perderei. Mas talvez um dia mais ou menos longo de vacilação, destas pri-
as deite fora. Devia encontrar-me no alto, ou meiras impressões. :Ê isto sem dúvida o que tem-
nos flancos, de uma eminência pouco comum, pera as angústias do passamento. Não que a
se não como teria podido mergulhar o olhar tivesse de uma maneira concludente, quero dizer
em tantas coisas próximas e longínquas, fixas a confirmação da minha primeira impressão a
e moventes. Mas que vinha fazer uma eminên- respeito de - esperem aí - de B. Porque as
cia nesta paisagem imperceptivelmente ondu- carroças e as carretas que um pouco antes do
lada? E eu que tinha ido ali fazer? Isso é o alvorecer passaram com fragor de trovoada,
que vamos tentar saber. Aliás não tomemos levando para o mercado frutas, ovos, manteiga
estas coisas a sério. Há, parece, de tudo na e queijo, em qualquer delas ele teria talvez
natureza e os morros abundam nela. E eu con- tomado lugar, vencido pela fadiga ou pelo de-
fundo no fundo talvez várias ocasiões diferen- desencorajamento, quem sabe se morto. Ou
tes, e as horas, e o fundo é o meu ambiente, teria conseguido entrar na cidade por outro
ah mas não o fundo do fundo, algures entre a caminho, demasiado distante para que eu pu-
espuma e a vasa. E talvez tivesse sido um dia A desse ouvir o que nele se passava, ou por pe-
em tal sítio, depois noutro B naqueloutro, depois quenas veredas através dos campos, pisando
num terceiro o rochedo e eu, e assim sucessiva- silenciosamente a erva e calcando o solo silen-
mente com os outros componentes, as vacas, o cioso. Foi assim que eu me arranquei a essa
céu, o mar, as montanhas. Não posso acreditar. noite longínqua, partilhado entre os murmúrios
Não, não vou mentir, concebo-o fàcilmente. Lá do meu ser pàlidamente perplexo e os tão dife-
por isso não seja a dúvida, prossigamos, faça- rentes (tanto como isso?) de tudo o que per-
mos como se tudo tivesse surgido do mesmo manece e passa entre dois sóis. Nem uma única
tédio, mobilemos, mobilemos, até à noite total. vez uma voz humana. Porém as vacas sim, à
O que é certo, é que o homem do bordão não passagem dos campónios, chamando em vão
tornou a passar por ali nessa noite, porque o que as viessem mugir. A e B, nunca mais os
teria ouvido. Não digo que o teria visto, digo tornei a ver. Mas talvez torne a vê-los. Porém
que o teria ouvido. Durmo pouco e o pouco saberei reconhecê-los? E terei a certeza de
que durmo, durmo de dia. Oh não sistemàtica- não os ter tornado a ver alguma vez? E a que
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chamo eu ver e tornar a ver? Um instante de
silêncio, como quando o chefe de orquestra tantas bicicletas da tua serre, não sei porquê.
bate na estante, levanta os braços, antes Revejo-a de bom grado. Teria prazer em por-
do deflagrar. dos metais. Fumo, paus, carne, menorizá-la. Tinha uma pequena corneta ou
cabelos, .a X:OIte, ao longe, em redor do desejo cláxon em lugar da buzina em moda nos nossos
de um irmao. Estes farrapos sei suscitá-los dias. Accionar essa corneta era para mim um
para com eles cobrir a minha vergonha. Per~ verdadeiro prazer, uma volúpia quase. Vou
gunto a mim mesmo o que isso quer dizer. Mas mais longe, digo que se houvesse de fazer a
não estarei muito tempo necessitado. Mas a relação das coisas que não me chatearam à
propósito do desejo de um irmão direi que grande no curso da minha interminável exis-
tendo acordado entre as onze horas e o meio-dia tência, o acto de tocar a corneta ocuparia nela
(ouvi as avé-rnarias, em memória da encar- um lugar memorável. E quando tive que me
nação, pouco tempo depois) resolvi ir ver separar da minha bicicleta tirei-lhe a corneta
~inha mãe. Era preciso, para me resolver a e guardei-a só para mim. Ainda a tenho, julgo,
Ir ver essa mulher, razões que representassem algures, e se já me não sirvo dela, é porque
um carácter de urgência, e essas razões visto emudeceu. Mesmo os automóveis de hoje não
que e~ não sabia o que fazer, nem onde ir, têm corneta, no sentido em que a entendo, a
que fOI para mim uma brincadeira de menino não ser raramente. Quando dou com uma, na
de menino amimado, ocupar de tal maneira ~ rua, pelo vidro abaixado de um automóvel em
espírito com elas, que dele bani todas as outras estacionamento, muitas vezes páro e sirvo-me.
preocupações e me pus a tremer só à ideia de Seria necessário tornar a escrever tudo isto no
que me p~diam impedir de lá ir, quero dizer a mais-que-perfeito. Falar de bicicletas e de cor-
casa da mmha mãe, acto-contínuo. Levantei-me netas, que descanso. Desgraçadamente não é
por consequência, ajustei as muletas e desci disso que se trata mas daquela que me deu o
à estrada, onde se encontrava a minha bicicleta ser, pelo ânus se bem "que me lembro. Primeira
(olhem não esperava isto) precisamente no dor de barriga. Acrescento portanto tão so-
lugar onde devia tê-la deixado. Isto permite-me mente que todos os cem metros mais coisa
faz.er notar que, por, ~uito estropiado que menos coisa parava para descansar as pernas,
estivesse, andava de bicicleta com relativa fa- a boa tanto como a má, e não somente as
cilidade, nessa época. Vejam como eu me ar- pernas, não somente as pernas. Para falar com
ranjava. Amarrava as muletas à barra superior propriedade não descia do selim, deixava-me
do quadro, uma de cada lado, entalava o pé da ficar encavalitado, os dois pés em terra, os
minha perna hjrta (esqueço qual, presente- braços no guiador, a cabeça nos braços, e es-
mente ambas sao hirtas) à saliência do eixo perava sentir-me melhor. Mas antes de deixar
da roda da frente e pedalava com a outra. Era esses encantadores locais, suspensos entre a
uma bi~iclet~ sem correntes, de roda livre, se montanha e o mar, ao abrigo de certos ventos
essa COIsa existe. Querida bicicleta não te cha- e abertos a tudo o que o sul costuma trazer, a
marei velocípede, eras pintada de'verde, como este país maldito, de perfumes e calores, ficava
mal comigo se calasse o grito terrível dos ralos
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que corre~ de noite pelos trigais, durante a outra letra. E ao mesmo tempo eu satisfazia
bela estação, a matraca a dar a dar. Isto uma necessidade profunda e sem dúvida íncon-
permite-me, além do mais, saber quando come- fessada, a de ter uma ma, isto é uma mamã, e
çou essa irreal viagem, penúltima de uma forma de o anunciar, em voz alta. Porque antes de
cada vez mais pálida entre formas cada vez dizer mag diz-se ma, é forçoso. E da, na minha
mais pálidas, e que eu declaro sem outra forma região, quer dizer papá. Aliás para mim o
de. processo ter começado na segunda ou ter- problema não se punha, na época em que estou
cerra semana de Junho, isto é, no momento entre em vias de me insinuar, quero dizer o problema
todos penoso em que sobre o que se chama o de lhe chamar ma, Mag ou a condessa da Caca,
nosso hemisfério o encarniçamento do sol porque havia já uma eternidade que era surda
atinge o seu máximo e em que a claridade como um penico. Julgo que fazia nas pernas,
árctica vem r.iijar sobre as nossas meias-noites. à grande e à francesa, mas uma espécie de
Ê então que os ralos se fazem ouvir. A minha pudor fazia-nos evitar ess e assunto, no decurso
mãe ~ia-me de boa vontade, quero dizer que me das nossas conversas, e eu nunca pude adquirir
recebia de boa vontade, porque há que vidas a certeza. De resto devia ser bem pouca coisa,
me não via. Esforçar-me-ei por falar disto umas quantas caganitas de cabra parcimonio-
com calma. Éramos tão velhos, ela e eu, tinha- samente regadas todos os dois ou três dias.
-me tido tão jovem, que éramos como um O quarto cheirava a amoníaco, oh não que o
casal de velhos compadres, sem sexo, sem pa- amoníaco, mas o amoníaco, o amoníaco. Ela
rentesco, com as mesmas recordações, os mes- sabia que era eu, pelo cheiro. O seu velho
mos rancores, a mesma expectativa. Nunca me rosto pergaminhado e peludo iluminava-se, fi-
chamava filho, aliás não o teria suportado, mas cava contente por me cheirar. Articulava mal,
Dan, não sei porquê, não me chamo Dan. Dan com um chinfrim de dentadura, e a maior parte
era talvez o nome de meu pai, sim, ela toma- do tempo não dava conta do que dizia. Outro que
va;-me ta!vez pelo meu pai. Eu tomava-a pela não eu ter-se-ia perdido neste taramelar de
mmha mae, e ela ela tomava-me pelo meu pai. castanholas, que não parava senão durante cur-
Dan, lembras-te do dia em que salvei a ando- tos instantes de inconsciência. Aliás eu não
rinha. Dan, lembras-te do dia, em que enter- vinha para a ouvir. Entrava em comunicação
raste o anel. Eis de que maneira ela me falava. com ela dando-lhe pancadas no crânio. Uma
Lembrava-me, lembrava-me, quero dizer que pancada significava sim, duas não, três não sei,
sabia 'p0u~o mais ou menos do que ela falava, quatro dinheiro, cinco adeus. Tinha tido um
e se nao tmha sempre participado pessoalmente trabalhão para habituar a este código o seu
nos incidentes que invocava, era igual ao litro. entendimento arruinado e delirante, mas lá
Eu chamava-lhe Mag, quando tinha que lhe dar tinha conseguido. Que ela confundisse sim,
um ~ome .. E . se lhe chamava Mag era porque não, não sei e adeus, era-me indiferente, eu
na mmha IdeI~, se~ que soubesse dizer porquê, próprio confundia. Mas que ela associasse as
a letra g aboha a sílaba ma, e por assim dizer quatro pancadas com outra coisa que não o
escarrava-lhe em cima, melhor do que qualquer dinheiro, eis o que era preciso obviar a todo

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o preço. Durante o período de amestramento vida, nunca se sabe, é a esse lado que irei
portanto, enfiava-lhe uma nota de banco de- escarafunchar em primeiro lugar, ao lado dessa
baixo do nariz ou pela boca dentro. Ingénuo- pobre unípara, e da minha pessoa último
zinho que eu era! Ê que ela parecia ter perdido, da minha raça, sei lá qual raça. Acrescento,
se não absolutamente a noção da medida, pelo antes de chegar aos factos, porque se diriam
menos a faculdade de contar além de dois. Era verdadeiramente factos, essa distante tarde de
para ela longe demais, vejam lá , de um a quatro. Verão em que, com essa velha surda, cega,
Chegando à quarta pancada julgav a estar impotente e louca, que me chamava Dan e a
apenas na segunda, tendo-se as outras duas quem eu chamava Mag , com ela e com mais
varrido da sua memória tão completamente ninguém, eu - não, não posso dizer. Isto é
como se nunca as tivesse sentido, embora eu poderia dizê-lo, mas não direi, sim, ser-me-ia
não veja muito bem como uma coisa uma vez fácil dizê-lo, porque não seria verdade. Da fu-
sentida se possa varrer da memória, e no en- laninha, que via eu? Um focinho sempre, al-
tanto isso acontece correntemente. A fulana gumas vezes as mãos, raramente os braços. Um
devia julgar que eu lhe dizia sempre não, focinho sempre. Velado de pêlos, de rugas, de
quando nada estava tão longe das minhas in- porcaria, de baba. Um focinho que obscurecia
tenções. Esclarecido por estes raciocínios pro- o ar. Não que seja importante vê-lo, mas
curei, e acabei por encont rar, um meio mais sempre é um começozínho, Era eu quem tirava
eficaz para inserir no seu espír ito a ideia de a chave de debaixo do travesseiro, quem tirava
dinheiro. Consistia este em substituir as quatro o dinheiro da gaveta, quem tornava a pôr a
pancadas do meu indicador por um ou mais chave debaixo do travesseiro. Mas não vinha
(consoante as minhas necessidades) murros, no pelo dinheiro. Julgo que havia uma mulher
crânio. Então compreendia. Aliás eu não vinha que vinha todas as semanas. Uma vez pousei
por dinheiro. Apanhava-lhe algum, mas não os lábios, vagamente, precipitadamente, na-
vinha por isso. Não lhe quero muito mal, à quela raquítica pêra acinzentada e enrugada.
minha mãe. Sei que ela fez tudo para não me Pfff! Isso deu-lhe prazer? Não sei. A sua taga-
ter, salvo evidentemente o principal, e se nunca relice parou um instante, depois recomeçou.
conseguiu eliminar-me, é porque o destino me Deve ter perguntado aos seus botões que raio
reservava a outra fossa que não a da abastança. lhe acontecia. Disse talvez pfff para consigo.
Mas a intenção era boa e isso me basta. Não, Senti um cheiro terrível. Perfume de antigui-
bastar não basta, mas levo em conta, à minha dade. Oh não a critico, eu também não rescendo
mãe, os esforços que fez por mim. E perdoo-lhe a Arábias. Devo descrever o quarto? Não. Mais
ter-me sacudido um tanto nos primeiros meses tarde terei talvez ocasião para isso. Quando pro-
e de ter estragado o único período pràticamente . curar nele asilo, esgotados todos os expedientes,
potável da minha enorme história. E levo-lhe a humilhação bebida até às fezes, no recto,
ainda em conta não ter recomeçado, instruída quem sabe. Muito bem. Agora que sabemos para
pelo meu exemplo, ou ter parado a tempo. E se onde vamos, àvante. É tão bom sabermos para
um dia tiver de procurar um sentido à minha onde vamos, nos primeiros tempos. Isso quase

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nos tira a vontade de irmos. Estava distraído, rou. Eis o que me sucede regularmente quando
eu que o sou tão pouco, porque havia de ser, e sou acuado à confabulação, creio sinceramente
quanto aos meus movimentos ainda mais in- ter respondido às perguntas que me fazem e
certo do que de ordinário. A noite devia ter-me na realidade longe disso. Não reconstituirei
fatigado, enfim enfraquecido, e o sol, trepando esse diálogo em todos os seus meandros. Acabei
cada vez mais a leste, tinha-me envenenado, por compreender que a minha maneira de des-
enquanto dormia. Entre ele e eu, antes de cansar, a minha atitude durante o repouso, às
fechar os olhos, devia ter posto a massa do ro- cavalitas na bicicleta, os braços no guiador, a
chedo. Confundo leste e oeste, os pólos também, cabeça nos braços, atentava contra já não sei
inverto-os a meu bel-prazer. Não estava em o quê, contra a ordem, contra o pudor. Indiquei
mim . E olhem que eu sou fundo, como um prato modestamente as minhas muletas e ousei al-
de sopa, e é raro não estar em mim. Eis por guns ruídos a respeito da minha enfermidade,
que o assinalo. Fiz não obstante algumas mi- que me obrigava a repousar como podia, em
lhas s em obstáculo e cheguei assim às mura- vez de como devia. Julguei compreender então
lhas. Aí desci do selim, conforme o regulamento. que não havia duas leis, uma para os escorrei-
Sim, para entrar na cidade e para sair del~ a tos e outra para os inválidos, mas uma única,
polícia exige que os ciclistas desçam do selim, à qual deviam curvar-se ricos e pobres, jovens
que os automóveis andem em primeir~, que os e velhos, felizes e tristes. Era um fala-barato.
hipomóveis avancem a passo. A razao desta Fiz notar que não estava triste. O que fui eu
postura é julgo a seguinte, ,que as vias ?e acess..0, dizer! Os seus papéis, exigiu, soube-o um ins-
e bem entendido as de salda, desta CIdade sao tante mais tarde. Mas não, disse eu, mas não.
estreitas e obscurecidas por imensas arcadas, Os seus papéis, gritou. Ah os meus papéis. Ora
sem excepção. É uma boa regra e eu obedeço- os únicos papéis que eu trago comigo, é um
-lhe cuidadosamente, mal-grado a dificuldade pedaço de papel de jornal, para me limpar, não
que tenho em avançar servindo-me das muleta~ sei se compreendem, quando vou aos lavabos.
e empurrando a bicicleta ao mesmo tempo. Lei Oh não digo que me limpe todas as vezes
me arranjava. Urgia pensar nisso. Assim fran- que vou aos lavabos mas gosto de ter a
queámos esse passo difícil, a minha bicicleta possibilidade de o fazer, se for caso disso.
mais eu , ao mesmo tempo. Porém um pouco. É uma coisa natural, parece-me. Esbaforido
mais adiante ouvi interpelarem-me. Levantei tirei esse papel do bolso e pus-lho debaixo
os olhos e dei com um agente da polícia. Isto do nariz. O tempo estava para o bom. To-
é uma maneira elíptica de falar, porque não foi mamos por ruelas cheias de sol, poucos tran-
senão mais tarde, por via da indução, ou de de- seuntes, eu saltitando entre as muletas, ele em-
dução, já não sei, que eu soube o que aquilo purrando delicadamente a minha bicicleta, com
era. Que faz o senhor aí? perguntou: E~tou a sua mão enluvada de branco. Eu não - eu
habituado a esta pergunta, compreendi-a Ime- não me sentia infeliz. Parei um momento, à
diatamente. Estou a descansar, respondi. Im- minha responsabilidade, levantei a mão e toquei
porta-se de responder à minha pergunta? ber- o cocuruto do chapéu. Escaldava. Senti volta-
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identificar. Estes pormenores, tive tempo de os
rem-se à nossa passagem caras alegres e cal- registar, antes de o tipo me mandar embora.
mas, caras de homens, de mulheres, de cri- Ouviu o relatório do subordinado, depois pôs-se
anças. Pareceu-me ouvir, a dado momento, uma a interrogar-me num tom que, do ponto de
música longínqua. Parei, para melhor a escutar. vista da correcção, deixava muitíssimo a dese-
Para a frente, disse ele. Ouça, disse eu. Para jar, em minha opinião. Entre as suas perguntas
a frente, repetiu. Não me autorizav.am a ouvir e as minhas respostas, falo das que mereciam
música. Isso podia provocar um ajuntamento. ser tomadas em consideração, havia intervalos
Deu-me um empurrão nas costas. Tinha-me mais ou menos longos e barulhentos. Tenho
tocado, oh a pele não, mas de qualquer maneira, tão pouco o hábito que me perguntem qualq~er
a minha pele tinha-o sentido, a essa dura ma- coisa que quando me perguntam qualquer coisa
nápula de homem, através das roupas. Embora levo tempo a saber o que me perguntam. E o
avançando com o meu melhor passo entre- mal que eu faço, é que em vez de reflectir tran-
gava-me a esse instante dourado, como se eu quilamente no que acabo de ouvir, e que ouço
acaso fosse outro. Era a hora do repouso, perfeitamente bem, sendo como sou bastante
entre o trabalho da manhã e o da tarde. Os fino de ouvido, apesar da provectidade, deste,
mais espertalhões talvez, estiraçados nas pra- apresso-me a responder não importa o quê, com
ças ou sentados diante das portas, saborea- receio provàvelmente que o meu silêncio leve
vam-lhe a languidez final, esquecidos das ao máximo a cólera do meu interlocutor. Sou
preocupações recentes, i?d;iferentes .às próxi- um medroso, toda a minha vida tenho vivido
mas. Outros pelo contrario aproveitavam-na com medo, com medo que me batam. Os insul-
para fazer planos, a cabeça entre as mãos. tos, as invectivas, suporto-os fàcilmente, ma~
Haveria um único para se pôr no meu lugar, às pancadas nunca consegui habituar-me. E
para sentir quão pouco eu era, nessa hora, aqu~lo engraçado. Mesmo os escarros ainda me fazem
que parecia, e nesse pouco quanta força ha~la, sofrer. Mas que sejam um pouco meigos comigo,
amarras tensas até ao estalo. :m possível. Sim,
eu disparava para esse falso profundo, com quero dizer, que se abstenham de me brutali-
falsos ares de gravidade e de paz, atirava-me zar, e é raro que não chegue a dar satisfação,
para dentro dele com todos os meus velhos no fim de contas. Ora o comissário contenta-
venenos, sabendo que nada arriscava. So~ o va-se em ameaçar-me com uma régua cilín-
azul do céu nas barbas do guarda. Esquecido drica, de maneira que teve a vantagem de saber,
de minha ~ãe liberto dos actos, fundido na pouco a pouco, que eu não tinha papéis no
hora dos outros, dizendo para comigo tréguas, sentido em que esta palavra tinha sentido para
tréguas. Chegado à esquadra, fui introduzido ele, nem ocupação, nem domicílio, que o meu
junto de um surpreendente ~uncionário. Ves~ido nome de família me escapava de momento e que
à civil, em mangas de camisa, estava, e~poJado me dirigia a casa de minha mãe, à custa de
numa poltrona, os pés sobre a secretaria, cha- quem agonizava. No que respeitava ao endereço
péu de palha na cabeça ~ saindo-lhe_da boca u~ desta última, sabia muito bem lá ir, mesmo na
objecto delgado e flexível que nao consegui obscuridade. O bairro? O dos matadouros, meu

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príncipe, porque do quarto da minha mãe, vam -me ficar de chapéu na cabeça, pergunto-me
através das janelas fechadas, mais forte que o porquê. -m o nome de sua mãe, perguntou o
cacarejar dessa senhora, eu ouvia o rugido comissário, devia ser um comissário. Molloy,
dos bovinos, esse mugido violento, rouco e tre- disse eu, chamo-me Molloy. Esse é o nome de
mido que não é das pastagens, mas das cidades, sua mãe? r epetiu o comissário. Como ? per-
dos matadouros e feiras de gado. Sim, pensando guntei. O senhor chama-se Molloy ? perguntou
bem talvez tivesse avançado demais ao dizer o comissário. Sim , senhor, respondi, ocorreu-me
que minha mãe habitava perto dos matadouros, de r epente. E a sua mãezinha? pergu nt ou o
porque podia também muito bem ser a feira comissário. Não compreendi a. Chama-se tam-
de gado, essa coisa ao pé da qual ela habitava. bém Molloy? repet iu o comissário. Se ela se
Tranquilize-se, disse o comissário, o bairro é o chama Molloy? perguntei. Sim, respondeu o
mesmo. O silêncio que seguiu estas amáveis comissário. Reflecti. A su a mãezinha, disse
palavras, empreguei-o a virar-me para a janela, o comissário, chama-se -. Deixe-me reflectir!
sem nada ver verdadeiramente, porque fechara gritei. Enfim, imagino comigo mesmo que
os olhos, oferecendo a essa doçura de azul e isto devia passar-se as sim. Reflicta, dis se
ouro apenas o rosto e a garganta e o espírito o comissário. Se a mamã se chamava Molloy?
vazio também, ou quase, porque eu devia per- Sem dúv ida. El a deve chamar-se Molloy,
guntar a mim mesmo se não teria vontade de concluí. Levaram-me para a sala da guarda ,
me sentar, depois de tanto tempo de pé, e re- julgo eu, e aí disseram para me sentar .
cordar-me do que aprendera a esse respeito, a Explicamo-nos. Encurto razões. Obtive a au -
saber que a posição de sentado já não era para torização, se não de me estender num ban co,
mim, por virtude da minha perna curta e ao menos de ficar de pé contra a parede. A
hirta, que para mim havia apenas duas, a ver- sala era sombria e per corrida em todos os
tical, esbodegado entre muletas, deitado de pé, sentidos por gente apr essada, malfeitores, po-
e a horizontal, por terra. E não obstante a lícias, homens de leis, padres e jornalistas,
vontade de me sentar vinha-me de tempos a suponho. Tudo aquilo era sombrio, formas som-
tempos, voltava-me de um mundo desaparecido. brias umas contra outras num espaço sombrio.
E eu nem sempre lhe resistia, por mais cons- Não me davam atenção e eu pagava-lhes da
ciente que estivesse. Sim , tal sedimento o meu mesma moeda. Então como podia eu saber que
espírito sentia-o certamente bulindo não se sabe me não davam atenção e como podia eu pagar-
como, como saibro miúdo no fundo de um -lhes da mesma moeda, dado que eles me não
charco, enquanto sobre as feições e a enorme davam atenção? Não sei. Sabia-o e pagava-lhes
maçã de Adão me pesavam o céu soberbo e o da mesma moeda, mais nada. Mas eis que de
ar do Verão. E de súbito lembrei-me do meu repente diante de mim surge uma enorme mulher
nome, Molloy. Chamo-me Molloy, exclamei, num gorda vestida de negro, ou antes de roxo. Ainda
berro, Molloy, ocorreu-me agora mesmo. Nada hoje me pergunto se não seria assistente social.
me obrigava a fornecer essa informação, mas Estendia-me uma tigela cheia de um sumo
forneci-a, esperando sem dúvida agradar. Deixa- acinzentado que devia ser chá verde assacarí-

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nado, com leite em pó, num pires desempare-
lhado. E não era tudo, porque entre a tigela e o minha falta, sabendo agora por que motivos me
pires estendia-se precàriamente uma grande tinham apreendido, se ns ível às irregularidades
fatia de pão seco, da qual me pus a dizer, com que o meu interrogatório pusera à vista, espan-
uma espécie de angústia, Vai cair, vai cair, como tei-me por reencontrar tão depressa a liberdade,
se isso tivesse importância, que caísse ou não. se de liberdade se tratava, e sem que fosse
Um instante mais tarde eu próprio ' agarrava, questão da mais pequena sanção. Terei, sem o
com as mãos a tremer, aquela pequena rima de saber, um protector nas altas esferas? Teria
objectos heterogéneos e tem-te-não-caias, onde impressionado o comissário, sem querer? Te-
avizinhavam o duro, o líquido e o mole, e sem riam conseguido contactar minha mãe e fazer
compreender de que maneira a transferência confirmar por ela, ou pela gente do bairro,
se acabara por efectuar. Vou dizer-vos uma parte das minhas afirmações? Considerariam
coisa, quando as assistentes sociais vos ofere- que não valia a pena pôr-me uma acção cor-
cem qualquer cagada, a título gracioso, o que reccional? Castigar de maneira sistemática
para elas é uma obsessão, é escusado recuar. um ser como eu, não é cómodo. · Isso
Perseguir-vos-ão até aos confins da terra, de acontece, mas a prudência desaconselha-o. Ê
vomitivo na mão. As do exército de salvação preferível contentarmo-nos com a acção dos
não são melhores. Não, contra o gesto carita- agentes. Francamente não sei. Se o porte de
tivo não existe parada, que eu conheça. Baixa- papéis de identidade é de rigor, por que não
mos a cabeça, estendemos as mãos baralhadas insistiam para que eu andasse com eles?
e a tremelicar e dizemos obrigado, obrigado Porque isso custa dinheiro e eu não o tinha?
minha senhora, muito obrigado minha boa Nesse caso não poderiam embargar-me a bi-
senhora. A quem nada tem é proibido não amar cicleta? Provàvelmente não o podiam, sem um
a merda. O líquido transbordava, a tigela vaci- mandato do tribunal. Tudo isso é incompreen-
lava com um estrépito de dentes a bater uns sível. O que é certo, é que nunca mais re-
nos outros, os meus não eram, já não os tinha, pousei daquela maneira, os pés obscenamente
e o pão empapado escorregava, escorregava até pousados no solo, os braços no guiador e caída
ao momento em que, no cúmulo da inquieta- nos braços a cabeça, abandonada e oscilante.
ção, arremessei tudo para longe de mim. Não Era com efeito um triste espectáculo, e um
deixei cair, isso sim, antes com um impulso triste exemplo, para os citadinos, que têm
convulsivo das duas mãos esmigalhei aquilo con- tanta necessidade de ser encorajados, no
tra o chão, ou contra a parede, tão longe quanto seu duro labor, e de não ver à volta senão
as forças mo permitiam. Não contarei o que se manifestações de força, de alegria e de audácia,
seguiu, porque estou cansado desse lugar e sem o que seriam capazes de desabar, coitados,
quero ir para outro lado. A tarde estava já ao fim do dia, e de rolar fulminados pelo chão.
muito avançada quando me disseram que me Não têm mais do que me ensinar em que
podia retirar. Fizeram-me a recomendação de consiste a boa conduta e eu conduzir-me-ei bem
me portar melhor para o futuro. Consciente da na medida em que o meu físico o permita. .À
prova é que não cessei de me aperfeiçoar, sob
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esse ponto de vista, porque eu - eu era inteli- estamos sempre inteiros. Aliás também dessa
gente e vivo . E no que respeita a boa vontade, vida terei talvez um dia a bondade de vos
tinha para dar e vender , a boa vontade exaspe- falar, no dia em que souber que julgando
rada dos ansiosos. De sorte qu e o meu repor- sa?e: não fazia mais do que existir e que a
tório de atitudes admit idas , não deixou de se paixao sem forma nem estações me terá devo-
enriquecer, desde os meus primeiros passos rado até às carnes pútridas e que sabendo isso
até aos derradeir os, executados no ano passado. nada sei, que mais não faço senão gritar como
E se eu se mp re me condu zi como um cavalo, a não tenho feito senão gritar, mais ou menos
culpa não é minha , mas dos meus superiore s, alto, ma;is ou menos abertamente. Gritemos pois ,
que me corrigiam apenas em pont os de por me- o que diz o povo faz bem. Sim, gritemos, desta
nor em lugar de me most r ar em a essência do vez, depois talvez mais uma. Gritemos que o
sistema, como se faz nos grandes colégios an- sol moribundo dava em cheio na branca fachada
glo-saxónicos, e os princípios de onde decor re m da esquadra. Dir-se-ia estarmos na China.
as boas maneiras e a man eir a de passar, sem Uma sombra complexa desenhava-se nela. Era
margem de erro, daqueles para estas, e de re- eu. e a bicicleta. Pus-me a brincar, gesticulando,
montar às fon tes a partir de uma postura dada. agitando o chapéu, fazendo ir e vir a bicicleta à
Porque isso t er- me-ia per mitido, a nte s de su s- minha frente, para diante, para trás, businando.
tentar em público cer t as maneiras de proc eder Olhava para a parede. Das janelas gradeadas
que rel evam exclusivamen te da comodi dade do observavam-me, sentia os olhos sobre mim. O
corpo, t ais como o dedo no nari z, a mão nos polícia de serviço diante da porta ordenou-me
tes tículos, o assoar s em lenço e a mijada am- que me pusesse a mexer. Sàzinho ter-me-ia acal-
bulante, refer enciar-me pelas pri meir as regras mado. A sombra ao fim e ao cabo não é mais
de uma teoria raciocion ad a. Sim senhor, eu não ~ivertida. do que o c?rpo. Pedi ao polícia que
tinha a est e respeito mais do qu e noções nega- tivesse piedade de mim, que me ajudasse. Ele
tivas e empíricas, o que equivale a dizer que não compreendia patavina. Eu já lam entava a
vivia nas trevas, a maior parte do tempo, e bucha da assistente social. Tirei do bolso um
tanto mais profundamente quanto as minhas seixo e pus-me a chupá-lo. Era liso, à força de
observações, re colhidas ao longo de todo o sé- chupado, por mim, e de rebolado, pela tempes-
culo , sempre me disp unham a pôr em dúvida tade. Um pequeno seixo r edondo e liso na boca,
mesm o os fundamentos do saber-v iver , inclusi - acalma, refresca, corta as voltas à fome, engana
vamente nu m espaço restrito. Porém, só depois a sede . O polícia dirigia-se para mim , a minha
de deixar de viver é que penso, nest as e nou tras lentidão desagradava-lhe. Também ele era
coisas. Ê na t ranquilidade da decomposição que observado das janelas. Algures riam. Em mim
me recordo dessa longa emoção confusa que foi também havia alguém a rir. Agarrei na perna
a minha vida, e que a julgo, como se diz que doente e fi-la passar por cima do quadro. Parti.
Deus nos há-de julgar e com a mesma imper - Esquecera-me para onde ia. Parei para pensar
tinência. A decomposição também é viver, bem nisso. Ê difícil pensar em andamento, para
sei, bem sei, não me aborreçam, mas aí nã o mim pelo menos. Quando quero pensar em

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Dentro do fosso a erva era basta e alta tirei o
andamento, perco o equilíbrio e caio. Falo no chapéu e arrumei as compridas folhudas hastes à
presente, é tão fácil falar no presente, quando roda da cara. Cheirei então a terra, o cheiro da
se trata do passado. Refiro-me ao presente terra estava na erva, que as minhas mãos en-
mitológico, não me liguem. Já me embrulhava trançavam sobre o rosto, de tal maneira que
no meu êxtase de trapos quando me lembrei fiquei sem ver. Comi também umas tantas. Vol-
que isso não se deve fazer. Retomei o meu t?u-me à me~ória, de maneira tão incompreen-
caminho, esse caminho de que nada sabia, como sivel como ~a momentos o meu nome, que saíra
caminho, que era apenas uma superfície clara para ver minha mãe, na manhã desse dia agora
ou escura, igualou acidentada, e sempre ado- no fim, As minhas razões? Tinha-as esquecido.
rável, pensando bem, e esse adorável ruído de Porém conhecia-as, julgava conhecê-las não
coisa que se esvai e que uma subtil poeira tinha mais que descobri-las para voar a c~sa da
saúda, em tempo seco. Eis-me pois, sem me ~inha mãe, nas asas de galinha da n~cessidade.
lembrar de ter saído da cidade, à beira do canal. E verdade, a partir do momento em que sabe-
O canal atravessa a cidade, bem sei, bem sei, até ~os porquê: tudo se torna fácil, simples ques-
há dois. Mas então os valados, os campos? Não tao de magra. Conhecer o santo, eis o busílis,
te atormentes, Molloy. De repente que vejo, a qualquer bandalho se pode aventurar. No que
perna hirta era, nessa época, a minha perna toca a pormenores, para quem se interesse por
direita. Penando ao longo do caminho da sirga pormenores, não há razão para desesperar, aca-
vi virem na minha direcção, na outra margem, ba-se sempre. por ir bater à boa porta, da
uma equipagem deburricos cinzentos, e ouvi melhor maneira . No que toca ao conjunto é
gritos de cólera e pancadas surdas. Pus pé em que parece não haver cabala. Talvez nem
terra para ver melhor o batelão que se aproxi- e:cis t a conjunto, a não ser póstumo. Não é pre-
mava, tão suavemente que a água não fazia uma CISO ser muito sagaz para encontrar um cal-
ruga. Era um carregamento de madeiras e de mante à ,,:ida dos mortos. Que es pero eu, então,
pregos com destino sem dúvida a qualquer para conjurar a minha? Há-de chegar, há-de
carpinteiro. O meu olhar apanhou o olhar de chegar, estou aqui estou a ouvir o grande
um dos burros, baixei os olhos para os seus berro que vai tudo apaziguar, embora não seja
passos curtos, delicados e corajosos. O bar- ~u, quem o há-de soltar. Enquanto se espera,
queiros apoiava o cotovelo num joelho, a cabeça inútil sabermo-nos defuntos, não estamos, a
na mão. De três ou quatro em três ou quatro gente torce-se ainda, os cabelos crescem, as
fumaças, sem tirar o cachimbo da boca, escar- unhas alongam-se, as entranhas esvaziam-se
rava na água. O sol punha no horizonte cores de todos os gatos-pingados estão mortos. Algué~
enxofre e de fósforo, e para elas é que me puxou as cortinas, nós mesmo quem sabe.
dirigia. Desci finalmente do selim, alcancei sal- ~em o mais pequeno ruído. Onde as moscas que
titando o fosso e deitei-me, ao lado da bicicleta. tao faladas foram? Há que rendermo-nos à
Deitei-me todo ao comprido, os braços em cruz. evidência, não somos nós que estamos mortos
O branco espinheiro inclinava-se para mim, des- são todos os outros. Então, levantamo-nos ~
graçadamente detesto o cheirete a espinheiro.
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vamos a casa da nossa mãe, que julgamos viva. mas menos fixamente do que o dono, porque
Esta é a minha impressão. Mas agora vai ser de vez em quando deixava de me olhar para
preciso que eu me safe deste fosso. De boa mordiscar furiosamente as próprias carnes nos
vontade desapareceria por ele abaixo enter- sítios provàvelmente em que as carraça~ lhe
rando-me mais e mais por influência das cham~vam um figo. Tomar-me-ia ele por um
chuvas. Um dia sem dúvida hei-de cá voltar, carneiro preto preso pelos espinheiros e es-
ou a uma depressão análoga, confio nos meus peraria a ordem do dono para me enxotar dali ?
pés para isso, como um dia sem dúvida hei-de Não creio. Eu não cheir o a carneiro, bem gos-
tornar a encontrar o comissário mais os seus tar~a de c.heirar a carneiro, ou a bode. As pri-
ajudantes. E se acaso, demasiado mudado para meiras COIsas que se me oferecem , ao acordar,
os poder reconhecer, não conseguir esclarecer vejo-as co:n ba_stante nitidez, e compreendo-as,
se sim ou não são os mesmos, podem estar des- quando nao sao complicadas demais. Depois
cansados, hão-de ser os mesmos, ainda que nos olhos e na cabeça põe-se-me a cair, como
mudados. Porque abandonar um ser, um local, de um ralo de re gador, uma chuva muito fina.
ia dizer uma hora, mas não qu ero ofender Isto é que é im portante. Soube portant o logo
ninguém, e depois não se servir mais dele, isso qu e se tratava de um pas t or mais o seu cão
seria, como dizer, não sei. Não querer dizer, aquilo que eu tinha di ante, ou melhor por cima,
não saber o qu e se qu er dizer, não poder o que porque os tipos não saíram do caminho. E
se julga que se quer dizer, e dizer sempre ou i.9"ua l!llente os ~alidos do r ebanho, inquieto por
quase, eis o que importa não perder de vista, ja nao se sentir espica çado, identifiquei sem
no calor da redacção. Essa noite não foi como dificuldade. Foi também nesse momento que o
a outra, se tivesse sido tê-lo-ia sabido. Porque sentido das palav ras me pareceu me nos obs-
essa noite, que passei na margem do canal, curo, de maneira qu e disse , com tranquila se-
quando tento pensar nela não encontro nada, gurança , Para onde os leva você , para os cam-
nada de noite propriamente dita, apenas Molloy pos ou para o matadouro? Devo ter perdido
dentro do fosso , e um silêncio perfeito, e das completamente o s entido da direcção como se
minhas cerradas pálpebras a pequena noite isso tivesse alguma coisa qu e ver com o pro-
em que manchas claras nascem, cintilam, se blema, a direcção. Porque mesmo na hipótese
extinguem, ora vazias, ora povoadas, como de ~e se ?irigir para a cidade, o qu e é qu e o podia
excrementos de santos a chama. Eu digo nessa Impedir de a contornar, ou de sair por outra
noite, mas houve talvez outras. Traiamos, traia- porta, para alcançar pastagens re pousantes, e
mos, oh que pensamento tão traidor. Porém de se dela se afastasse isso também nada signifi-
manhã, uma manhã, torno a encontrá-lo, uma cava, porque não é só nas cidades que há ma-
manhã já avançada, e a soneca que fiz então, tadouros, há-os em toda a parte, os campos nã o
como é meu hábito, e o espaço outra vez sonoro, fogem à regra, cada magarefe tem matadouro
e o pequ eno pastor que me contemplava a dor- próprio e o direito de abater, consoante as ne-
mir e sob cujo olhar abri os olhos. Ao seu lado, cessidades. Mas ou porque não compreendesse
um cão ofegante, que me contemplava também, ou porque não quisesse responder, não respon-

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deu mesmo, e lá se foi sem dizer palavra, isto têm também o seu lado bom, estas perplexidades.
é, sem dizer palavra à minha pessoa, porque Que país tão rural, meu Deus, vêem-se quadrú-
falou ao cão que o escutou atentamente, de pedes por toda a parte. E não é tudo, há ainda
orelhas espetadas. Pus-me de joelhos, não os cavalos, e as cabras, para mencionar apenas
senhor, isto não vai, e observei a pequena cara- estes, tenho a impressão que eles me espiam,
vana a afastar-se. Ouvi-o assobiar, o pastor, para se me atravessarem no caminho. Não
pois pudera, e vi-o a fazer sarilhos com o va- tenho necessidade disso. Mas eu não perdia de
rapau, e o cão esfalfando-se à roda do re- vista o objectivo do meu esforço imediato, a
banho, que sem ele talvez tivesse ido dar com saber, alcançar a minha mãe o mais ràpidamente
as trombas ria' água do canal. Tudo isto vi possível, e de pé dentro do fosso chamei em meu
através de uma poalha refulgente e passado socorro todas as boas razões que tinha para lá
pouco tempo igualmente através dessa chuva ir, sem perda de um momento. E se eu era capaz
miudinha que todos os dias me entrega a mim de fazer muitas coisas sem reflexão, não sa-
mesmo e me esconde o resto e me esconde a bendo o que ia fazer senão quando já estavam
mim. Os balidos diminuíam, ou porque os car- feitas, e mesmo assim, ir a casa de minha mãe
neiros estivessem menos inquietos, ou por não figurava no número destas coisas. Os meus
efeito do afastamento, ou talvez porque eu pés, vejam uma coisa destas, não me conduziam
ouvisse menos distintamente do que há bocado, a casa de minha mãe sem uma imposição de
o que me espantaria, porque ainda tenho o ou- mais alto, para esse efeito. O tempo delicioso,
vido bastante fino, um tudo nada diminuído é delicioso, outro que não eu ter-se-la rebolado
certo por voltas do amanhecer, e se me acon- de gozo com ele. Mas eu não tenho nada que me
tece não ouvir raspas durante horas é por rebolar de gozo com o sol e evito fazê-lo. O
razões que ignoro completamente, ou porque homem do Egeu, sedento de calor, de luz,
em meu derredor de vez em quando, tudo se matei-o, matou-se ele, muito cedo, em mim.
torna verdadeiramente silencioso, ao passo que As pálidas sombras dos dias de chuva corres-
para os justos os ruídos do mundo nunca se pondiam mais ao meu gosto, exprimo-me mal,
calam. E foi assim que começou esse segundo ao meu humor, também não, eu não tinha nem
dia, a menos que se tratasse do terceiro ou gosto nem humor, perdi-os muito cedo. O que
do quarto, e foi um começo mau, porque fez quero talvez dizer é que as pálidas sombras,
entrar em mim uma perplexidade de longo etc., me escondiam melhor, sem por isso me
fôlego, em relação ao destino daqueles car- parecerem especialmente agradáveis. Mimético,
neiros, entre os quais havia cordeirínhos, e contra vontade, eis o que é Molloy, visto de
muitas vezes me perguntava se eles teriam certo ângulo. E durante o Inverno, debaixo do
realmente chegado a qualquer inculta pasta- meu capote, envolvia-me todo' em faixas de
gem ou se teriam tombado, o crânio despeda- papel de jornal, apenas me despojava delas, ao
çado, num estrebuchar de patas magras, pri- acordar da terra, o autêntico, em Abril. O
meiro de joelhos depois de borco sobre o flanco Suplemento Literário do Times era excelente
lanzudo, debaixo do maço do magarefe. Mas para esse efeito, de uma solidez e não-porosi-

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dade a toda a prova. Os peidos não o rasgavam. desconhecido, . eu que no entanto conhecia
Que querem vocês, o gás solta-se do fundo de bem essa cidade, em que nascera e da qual
mim apropósito de tudo e de nada, sou por- nunca conseguira afastar-me mais de quinze
tanto obrigado a fazer-lhe alusão de vez em ou vinte milhas, tanta atracção exercia sob.:e
quando, não obstante a repugnância que isso mim, não sei porquê. De maneira que nao
me inspira. Um dia contei-os. Trezentos e estava longe de me perguntar se estava real-
quinze peidos em dezanove horas, ou seja uma mente na cidade certa, a que me tinha dado a
média de mais de dezasseis peidos por hora. noite e que ainda encerrava algures minha
Ao fim e ao cabo não é um exagero. Quatro mãe ou se não tinha ido dar, por virtude de
peidos de quarto em quarto de hora. Não é uma falsa manobra, a outra cidade qualquer
nada. Não chega a um peido de qu atro em de que ignorasse até o nome. Poz:.que eu co~hec~a
quatro minutos. Não se acredita. Vamos, va- apenas a minha cidade natal, nao tendo Jamais
mos, não passo de um pequeno peidorreiro, noutra posto os pés. Porém . tinha lido ?om
fiz mal em falar nisto. Extraordinário como as atenção, na época em que sabia ler, narrativas
matemáticas nos ajudam a conhecer-nos. Aliás de viajantes mais felizes do que eu, em que
toda esta questão de clima não tinha int eresse era questão de outras cidades tão belas como a
para mim, eu ad aptava-me a todos os molhos. minha, e mesmo mais belas, ainda que de
Acrescentarei portan to tão somente que fa zia outra beleza. E essa cidade, a única que me
muitas vezes sol de ma nhã, nessa r egião, até tinha sido dado conhecer, procurava-lhe o nome,
às dez horas dez horas e meia, e que nesse na memória, com a intenção, logo que a encon-
momento o céu se cobr ia e a chu va caía, caía trasse, de me deter e dizer a alguém que pas-
até à noite. Então o sol surgia e punha-se, a sasse, tirando o chapéu, Perdão, meu caro
terra molhada brilhava um instante, depoi s senhor, isto aqui é realmente X, porque X era
apagava-se, privada de luz. Eis-me portanto o nome da minha cidade. Esse nome que eu
outra vez no seli m, no embot ado coração um procurava, parecia-me bem que começava por
ponto de inquietação, a do canceroso obrigado um B ou por um P, mas apesar deste indício,
a consultar um dentista. Porque eu ignorava se ou quem sabe se por causa da sua falsidade,
estava ou não no bom caminho. Era raro que as outras letras continuavam a escapar-me.
todos os caminhos não fossem bons para mim. Havia tanto tempo que vivia longe das palavras,
Porém quando ia a casa de minha mãe havia compreendem, que me bastava ver a m~nha
apenas um caminho bom, o que lá levava. ou cidade por exemplo, porque se trata da mmha
um dos que lá levavam, porque nem todos lá cidade, para não poder, compreendem. Isto, a
levavam. Eu ignorava se estava num dos bons mim é demasiado difícil dizer. Da mesma ma-
caminhos e isso aborrecia-me, como me abor- neir~ a sensação da minha pessoa envolvia-se
rece tudo o que me chama à vida. Imaginem de um anonimato muitas vezes difícil de pe-
portanto o meu alívio quando a cem passos à netrar, como acabamos creio de ver. E assim
minha frente vi surgir as muralhas familiares. sucessivamente para as outras coisas que fa-
Tendo-as transposto, encontrei-me num bairro ziam troça dos meus sentidos. Sim, mesmo

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nessa época, em :que tudo já se desvanecia,
ondas e partículas, a condição do objecto era para falar francamente (francamente!) eu
não ter nome, e inversamente. Digo isto agora, nunca fui particularmente resoluto, quer dizer
mas no fundo que sei eu agora, dessa época, sujeito a tornar resoluções, mas antes mais
agora que me açoitam as palavras geladas de predisposto a marrar de cabeça baixa merda
sentido e que o mundo também morre, cobar- adentro, sem saber quem nem contra quem
demente, pesadamente com nome? O que en- cagava nem para que lado tinha interesse em
sinam as palavras e as coisas mortas sei eu e raspar-me. Mas também dessa predisposição
isso já constitui um lindo sornatôriozinho, com eu estava bem longe de tirar satisfações e se
começo, meio e fim, como nas fossas bem cons- dela nunca me curei completamente não foi
truídas e na longa sonata dos cadáveres. E que por falta de o ter desejado. O facto é que,
eu diga isto ou aquilo ou outra coisa qualquer, dir-se-ia, tudo o que se pode esperar é ser-se
pouco importa verdadeiramente. Dizer é in- um pouco menos, no fim de contas, do que se
ventar. O falso como o justo. Não Se inventa era de começo, e assim sucessivamente. Porque
coisa nenhuma, julgamos inventar, evadirmo- mal ainda acabara de estabelecer o plano, na
-nos, não se faz mais do que balbuciar a lição, minha cabecinha, quando violentamente entrei
retalhos de uma chatice aprendida e esquecida, por um cão dentro, soube-o mais tarde, e caí
a vida sem lágrimas, tal qual a choram. E mais por terra, imperícia tanto mais imperdoável
do que isto merda. Vejamos. Incapaz de me quanto o cão, devidamente atrelado, se não en-
lembrar do nome da minha cidade tomei a contrava na rua mas no passeio, arrastando-se
resolução de me deter, à beira do passeio, es- ajuizadamente ao lado da dona. As precauções,
perar que passasse um senhor de maneiras como as resoluções, são de tomar com precau-
agradáveis e instruídas, tirar o meu chapéu ção. A tal senhora devia julgar nada deixar
e dizer-lhe, com sorriso: Perdão, meu caro ao acaso, no que se refere à segurança do seu
senhor, desculpe-me, meu caro senhor, como cão, quando na realidade não fazia mais do que
se chama esta cidade, se faz favor? Porque uma desafiar a natureza inteira, da mesma maneira
vez vomitada a palavra saberia ver se era real- que eu com as minhas loucas pretensões de
mente a palavra que procurava, na memória, tirar tudo a claro. Porém em vez de por meu
ou outra. Teria assim a certeza. Esta resolução, lado rastejar, fazendo valer a avançada idade
que cheguei a formar enquanto pedalava, uma e as enfermidades, agravei a minha situação
absurda pouca sorte impediu-me a sua exe- querendo fugir. Depressa fui alcançado, por
cução. Com efeito, as minhas resoluções tinham uma pequena matilha de justiceiros de ambos
isto de particular, apenas tomadas sobrevinha os sexos e de todas as idades, porque apercebi
um incidente incompatível com a respectiva barbas brancas e carinhas quase inocentes, e
aplicação prática. E sem dúvida por isso que dispunham-se já em fazer-me em picado, quando
presentemente sou ainda menos resoluto que na a senhora interveio. Disse em substância, disse-
época de que falo e que nessa época era-o -mo mais tarde e eu acreditei, Deixem tranquilo
relativamente pouco ao lado de outrora. Mas este pobre velhinho. Ele matou Teddy, sobre
isso estamos de acordo, Teddy que eu amava
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como filho, mas isso é menos grave do que pa- que ja não podiam ter esperança de que as
rece, porque eu levava-o precisament~ ao ve- coisas corressem mal para mim. Porém ainda
terinário, para pôr fim aos seus padecimentos. se voltou e disse, Retire o seu cão imediata-
Porque Teddy era velho, cego, surdo, tolhidinho mente. Livre enfim de partir pus-me em pos-
do reumático e fazia no chão a todo o mo- tura de o fazer. Porém a senhora, uma tal
mento, dia e noite, não só dentro de casa como Madarne Loy, mais vale dizê-lo já, ou Lousse,
no jardim. Este pobre velhinho portanto evi- já não sei, de nome próprio qualquer coisa
tou-me uma diligência penosa, sem falar numa género Sofia, reteve-me, pelas abas, dizendo,
despesa que não estou ~~ estado de suport~r, supondo que a frase foi a mesma da última vez e
tendo como tenho por umco recurso a pensao da primeira, Senhor, tenho necessidade de si.
de guerra do meu querido defunto, morto por E vendo pela minha expressão de dúvida;
uma pátria que diziam ser dele e de que ele que me traiu sem mais aquelas, que tinha
nunca enquanto vivo retirou a mais pequena compreendido, deve ter dito com os seus
vantagem, mas tão somente afrontas e pan- botões, Se compreende isto, pode compreender o
cadas no lombo. O ajuntamento já se disper- resto. E não se enganava, porque ao cabo de
sava, o perigo tinha passado, mas a. boa _da certo tempo en contrei-me na posse de certas
senhora - lançada. Os senhores dir-me- ão, ideias ou pontos de vista que não me podiam ter
disse ela, que ele fez mal em tentar a fuga, q~e vindo senão dela, a saber que tendo morto o
devia ter-me pedido desculpa, ter-se expli- cão de sua propriedade, eu tinha a obrigação
cado. De acordo. Mas vê-se logo que ele não moral de a ajudar a transportá-lo para sua
tem o juízo todo, que já não o possui, por casa e a enterrá-lo, que ela não desejava apre-
razões que ignoramos e que nos fariam talvez sentar queixa do que eu fizera , mas que nem
vergonha a todos, se as conhecêssemos. Per- sempre se não fazi a o que se não queria, que eu
gunto a mim mesma se ele sabe o que fez. lhe era simpático apesar do meu aspecto he-
Desprendia-se um tão grande tédio dessa voz diondo e que para ela seria um grande prazer
igual que eu preparava;-me 'para retom~r o m.eu socorrer-me, e já não sei que mais ainda. Ah
caminho quando surgiu diante de mim o m- sim, parecia que também eu tinha necessidade
dispensável agente da polícia. Abateu pesada- dela. Ela tinha necessidade de mim, para a
mente sobre o meu guiador a enorme pata pe- ajudar a fazer desaparecer o cão , e quanto a
luda e vermelha, eu próprio reparei nisso, e mim tinha necessidade dela para não sei que
teve, parece, com a senhora a seguinte con- motivos. Ela deve ter-mos indicado, porque
versa. Parece que este indivíduo esmagou o se tratava de uma insinuação que eu não podia
seu cãozinho, minha senhora. É exacto, senhor decentemente passar em silêncio como passara
guarda, e depois? Não, não posso r:pr.oduzir em silêncio o resto, e não me acanhei nada de
tão imbecis trocas de palavras. DIrei por- lhe dizer que não tinha necessidade dela nem
tanto apenas que o guarda acabou também de ninguém, o que talvez foss e um certo exa-
por dispersar, o termo não é forte demais, gero , porque devia ter necessidade de minha
resmungando, seguindo os últimos basbaques mãe, se não para que me obstinava eu em ir a
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bocas que não ousam berrar senão conscien-
casa desta? Eis uma .das razões por que temente, desse céu que se põe a pingar, já
evito falar sempre que possível. Porque digo estou farto de andar fora, sitiado, visível.
sempre ou demais ou de menos, o que me faz Um senhor remexia no cão, com a ponta da
sofrer, porque sou um amante da verdade. E bengalinha. Era um cão inteiramente amarelo,
não qu ero abandonar este assunto, ao qua l s em bastardo sem dúvida, distingo mal cães bastar-
dúvida não terei ocas ião de voltar, de tal dos e de raça. Deve ter sofrido menos com a
maneira as núvens se amontoam, antes de fa- morte do que eu com a queda. E além disso
zer a curiosa observação que se segue: suce- estava morto. Pusemo-lo de-través no selim
dia-me muitas vezes , no t empo em que ainda e lá partimos não' sei como, ajudando-nos um
falava ter dito demais jul gando t er dito de ao outro suponho, a amparar o cadáver, a fa-
menos' e ter dito de menos julgando ter dito zer avançar a bicicleta, a avançar nós próprios,
demais. Quero dizer que pensando bem , ou através da multidão zombeteira. A casa de
antes a longo prazo, os meus excessos de pala- Sofia - não, já não posso chamar-lhe assim,
vras se revelavam pobrezas e inv ersamente. vou tentar chamar-lhe Lousse, Lousse simples-
Curiosa inversão, não é verdade , oper ada pela mente - a casa de Lousse não era longe. Oh
simples passagem do tempo. Por outras pala- perto também não era, que eu tinha a minha
vras, dissesse o que dissess e, não er a nunca conta ao chegar lá. Isto é, na realidade, não a
nem bastante nem suficiente. Não me calava, tinha. Era por me saber chegado que eu tinha
ora aí está, dissesse o que dissesse n~o me a minha conta, tivesse eu feito mais uma milha
calava. Divina análise, que ela vos ajude a e não teria tido a minha conta senão uma hora
conh ecer-vos e por consequência aos vossos mais tarde. Assim somos. Essa casa, devo
sem elhantes, se conhecem disso. Porque ao mesmo descrevê-la? Acho que não. Nada disso
dizer que não tinha necessidade de ninguém , farei, é tudo quanto sei de momento. Talvez
não dizia demais, apenas uma ínfima parte do mais tarde, à medida que a for penetrando. E
que deveria dizer, não saberia dizer, deveria Lousse? Difícil evitá-lo. Primeiro enterremos
calar. Nec essidade da minha mã e! Sim , verda- ràpidamente o cão. Foi ela quem cavou o bu-
deiramente inefável , a ausência de necessidade raco, de baixo de uma árvore. Enterram-se
em que eu perecia. De sorte que ela deve ~er-me sempre os cães debaixo de uma árvore, não sei
indicado, falo agora outra vez de SofIa,. as porquê. Quer dizer, tenho a minha opinião a
razões por que tinha necessidade dela, VIsto esse respeito. Foi ela quem cavou o buraco por-
que eu me permitia contradizê-la a esse res- que eu, embora homem, não teria podido, por
peito. E dando-me ao trabalho tornaria s~m causa da perna. Isto é, teria podido com um
dúvida a encontrá-las, mas ao trabalho, muito desplantador, mas com uma pá não. Porque,
obrigado, não serei eu quem se vai dar. E já quando se cava, há uma perna que suporta o
estou farto dessa avenida, devia ser uma ave- peso do corpo enquanto a outra, dobrando-se,
nida, desses justos que passam,. desses guar..?as desdobrando-se, enterra a pá na terra. Ora, a
que espreitam, de todos esses. pes, dessas maos, minha perna doente, já não sei qual, pouco
calcando, infligindo, frustados de bater, dessas
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importa na/ocorrência, não estava à altura nem t~stíCl!los, fazer, gala neles como outros em suas
de cavar, porque é hirta, nem de me servir ela c~catrIze~, ao album de fotografias da avó-
só de suporte, porque se iria abaixo. Dispunha zm~a. Na? eram eles de qualquer maneira quem
por assim dizer apenas de uma perna, moral- me Impediam de cavar, mas a perna. Foi Lousse
mente era unijambista, e eu seria mais feliz, quem ca.vou o buraquinho enquanto eu segu-
mais leve, amputado ao nível da virilha. E se rava o. cao n~s b~aços. Já estava pesado e frio ,
na mesma ocasião me tivessem arrancado os mas ainda nao tinha começado a feder. Chei-
testículos não teria dito nada. Porque os meus r~va mal, s~ assim querem, mas mal como um
testículos a-dar-a-dar a meio da perna na ex- cao velho, nao como um cão estoirado. Também
tremidade de um magro cordão, já nada havia ele cavara buracos, quem sabe se nesse mesmo
a tirar deles, a prova é que eu já não tinha von- lugar. Enterramo-lo tal qual, sem caixa nem
tade de tirar deles o que quer que fosse, antes envoltura de qualquer espécie, como um car-
me apetecia vê-los desaparecer, a essas teste- tuxo, mas com a trela e a coleira. Foi ela quem
munhas de acusação de ejaculação do meu o .meteu no buraco, eu não posso curvar-me, nem
interminável processo de pronúncia. Porque ajoelhar-me, por causa da minha enfermidade
se eles me acusassem de os ter capado, também e ~e alguma vez isso me acontece, olvidado d~
me dariam os parabéns, do fundo do respectivo m!nha pe:sonagem, curvar-me ou ajoelhar-me,
escroto roto, o direito mais baixo do que o nao acreditem, não serei eu, mas outro. Atirá-lo
esquerdo, ou inversamente, já não sei, irmãos para o bur~co, ~is tudo o que teria podido fazer,
em circo. E, coisa ainda mais grave, dificulta- e ISSO te~Ia fe~to de muito boa vontade. No
vam-me o andar e o sentar, como se a perna entanto nao o fIZ. Todas as coisas que faríamos
doente já me não bastasse, e quando ia de de boa vontade, oh sem entusiasmo mas de boa
bicicleta batiam em todo o lado. Tinha portanto vontade, não há aparentemente nenhuma razão
interesse em que desaparecessem e eu próprio ~ara ~ão fa~er, e não fazemos! Não seremos
me teria encarregado disso, com uma faca ou h:rres. Isto e de examinar. Porém qual foi a
um secador, não fosse o medo que me gelava da minha contribuição para esse enterro? Foi ela
dor física e das chagas infectadas. Sim, toda a quem fez o buraco, quem pôs o cão dentro dele,
minha vida vivi no terror das chagas infecta- quem tapou o buraco. Eu mais não fazia em
das, eu que nunca me infectava, de tal modo era suma do que assistir. Contribuía com a minha
ácido. A minha vida, a minha vida, tanto falo presença. Como se se tratasse do meu próprio
dela como de coisa acabada, como de uma gra- enterro. E era. Tratava-se de um larício árvore
cinha que ainda dura, e faço mal, porque ela está c?z:ífera. É a única árvore que consigo iden-
acabada e dura simultâneamente, mas com que tificar com segurança. Curioso ela ter escolhido
raio de tempo do verbo exprimir isto? Relógio para enterrar o cão por baixo, a única árvor~
que concertado o relojoeiro enterra, antes de que consigo identificar com segurança. As agu-
morrer, e cujas rôdinhas torcidas, um dia fala- lhas verde-água são como de seda e recamadas
rão de Deus, aos vermes. Porém no fundo, no parece-me, de pontinhos vermelhos. O cão tinh~
fundo eu devia ter um certo apego pelos meus carraças nas orelhas, tenho olho para essas

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coisas, foram enterradas com ele. Quando aca-
bou de inumar ela passou-me a pá e re-
colheu-se. Julguei que ia chorar, era o mo- de merda de c.v.cagada. Devia. ter pertencido
mento, mas pelo contrário riu. Era talvez a sua a alguma criatura francesa ante de pertencer
maneira de chorar. Ou era eu que me enganava a Lousse. Os animais mudam tantas vezes de
e ela chorava realmente, com um ruído de quem p~opri~t~rio. Ele pouco mais dizia de diferente.
está a chorar . Os risos e as lágrimas, não per- SIm, di~la também Fuck! Não tinha pois sido
cebo patavina disso. Não o veria mais, ao seu u!lla criatura francesa quem lhe ensinara a
Teddy, que ela amara como a um filho. Pergun- d~zer, Fuck!. Talyez tivesse aprendido sozinho,
to-me por que razão, tendo com toda a evidência nao. me admiraria, Lousse tentava ensinar-lhe
a intenção bem definida de enterrar o cão em a. dizer, Pretty Polly! Acho que já era dema-
sua casa, não tinha ela mandado chamar o siado tarde. Ele ouvia, a cabeça à banda
veterinário para suprimir o bicho in loco. Iria reflectia, depois dizia: .. . de merda de c.. ~
ela verdadeiramente ao veterinário no momento c~gada. Via-se que fazia um esforço. Tam-
em que o seu caminho se cruzou com o meu? Ou bem a ele, ela havia de enterrar um dia
tê-lo-ia afirmado com o único fim de me atenuar Dentro da gaiola, provàve!mente. Também ~
a culpabilidade? As visitas a domicílio custam mi~, se ali tivesse ficado, ela teria enterrado.
evidentemente mais caro. Ela conduziu-me à Se bv~e o endereço dela, escrever-lhe-ia, para
sala de jantar e deu-me de comer e de beber. qu~ VIesse enterrar-me. Adormeci. Despertei
boas coisas pois de certo. Desgraçadamente eu deitado numa cama, despido. Tinham levado a
não gostava muito de comer boas coisas. Mas impudên?ia ao ponto de me lavar, a julgar
embebedava-me de muito boa vontade. Se ela pe!o ,cheIro que deitava, já não deitava. Fui
vivia com dificuldades, não se via. Tais difi- ate a porta. _Fech~da .à chave. -Até à janela.
culdades, eu sinto-as logo. Vendo o trabalhão Gradeada. Nao fazia ainda de todo noite. Que
que eu tinha para me manter sentado, ela avan- ~e pode tentar depois de tentar a porta e a
çou uma cadeira para a minha perna hirta. Janela? Talvez a chaminé. Procurei as minhas
Enquanto me servia fazia-me discursos de que roupas. Encontrei um interruptor e dei-lhe a
eu não apreendia a , cantésima parte. Com a volta. Sem resultado. Que história! Tudo
própria mão tirou-me o chapéu, partiu com ele, aquilo me deixava sofrivelmente indiferente
para o levar para qualquer sítio, um cabide sem Dei com as minhas muletas, de encontro a um~
dúvida, e pareceu espantada que o atacador polt:rona. Achar-se-á. estranho que eu tenha
lhe quebrasse o impulso. Tinha um papagaio, podido fazer os movimentos que indiquei sem
muito bonito, de todas as cores mais aprecia- a ajuda delas. Pois eu acho estranho. A gente,
das. A esse compreendia eu melhor do que a ao aco;dar, não se lembra logo de quem é. En-
dona. Não quero dizer que o compreendia me- contrei sobre uma cadeira um penico branco
lhor do que a dona o compreendia, quero dizer co~ um rolo de papel higiénico dentro. Não
que o compreendia melhor do que a compreen- deixavam nada ao acaso. Conto estes instantes
dia. a. ela. Ele dizia de tempos a tempos: ... com uma certa
. minúcia,
. isso alivia-me ' sinto, do
que se vai seguir. Aproximei uma poltrona de
52 uma cadeira, sentei-me naquela, pus sobre esta
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teria perdido terreno. Devo ter adormecido,
a perna hirta. O quarto estava a ab.arrotar d~ porque eis uma lua enorme enquadrada pela
cadeir.as e de poltronas, que fer~Ilha vam, a janela. Duas barras dividiam-na em três
minha volta na penumbra. Havia tambem partes, das quais a média permanecia cons-
mesas redo~das, tamboretes, cómodas, etc., tante enquanto pouco a pouco a direita ganha-
em abundância. Estranha sensação de obstru- va o que perdia a esquerda. Porque a lua mo-
ção desvanecendo-se com o dia,. que o lustre via-se da esquerda para a direita ou o quarto
também alumiou, porque eu deixara o ~on­ da direita para a esquerda, ou talvez se mo-
tacto. Faltavam-me pêlos na cara, soube Isto vessem simultâneamente uma e outro ou am-
ao passar por esta a mão angustiada. Tinham- bos da esquerda para a direita, somente o
-me feito a barba, tinham-me rapado os meus quarto menos depressa que a lua, ou da direita
restos de barba. Como pudera o meu sono para a esquerda, somente a lua menos depressa
resistir a tantas familiaridades? O meu sono do que o quarto. Mas poder-se-ia falar de
habitualmente tão leve. A esta pergunta ~n­ direita e de esquerda, naquelas condições? Que
contrei um certo número de respostas. Porem movimentos de uma grande complexidade es-
sabia lá qual era a boa. Talvez fossem tO?as tavam em marcha, isso parecia certo, e não
más. A minha barba não cresce verdade~r~­ obstante que coisa aparentemente simples
mente a não ser no queixo e na papada. No SItIO aquela imensa claridade amarela vogando lenta-
onde aos outros crescem lindos pêlos, a mim mente atrás das minhas grades e comendo
não crescem. Mesmo assim tinham-na aparado, pouco a pouco a parede opaca, até a eclipsar.
à minha rica barba. Talvez também ma ti,v:s- E nesse momento a sua marcha tranquila ins-
sem tingido, nada me provava o contr.arlO. crevia-se nas paredes, sub-color de claridade
Sentia-me nu naquela poltrona, mas acabei por raiada de alto a baixo e que durante alguns
compreender que tinha ves~ida uma .camisa de instantes as folhas, se folhas eram, fizeram
noite extremamente leve. TIvessem vmdo anun- estremecer, e que desapareceu por sua vez, dei-
ciar a minha imolação ao amanhecer isso ter- xando-me na obscuridade. Como é difícil falar
me-ia parecido natural. Co~o é . possí,:el da lua com contenção! É tão estuporada, a lua.
ser tão estúpido. Tinha tambem a impressao Deve ser o cu que ela nos mostra sempre. Vê-se
de que me tinham perfumado, talvez com la- logo que, outrora, me interessava pela astro-
vanda. Conheço malas perfumes. Disse a mim nomia. Para quê negá-lo? Depois foi a geologia
mesmo, Se a tua pobre mãe te pudesse .ver. que me fez passar um bom bocado. A seguir
Adoro as fórmulas. Parecia-me longe, a mmha foi com a antropologia que me chateei bre-
mãe, longe de mim e não obstante est~va um vemente e com outras disciplinas, tais como a
pouco mais perto dela do que na noite pre - psiquiatria, que nela entroncam, dela se des-
cedente se os meus cálculos eram exactos. tacam e nela se reentroncam, consoante as
Mas se;iam? Se estivesse na cidade certa, ti?l~a mais recentes descobertas. Do que eu gostava
feito progressos. Mas estaria? Se ao.contrar20 na antropologia, era do seu poder de negação,
estivesse noutra cidade, de onde mmha mae da sua obstinação em definir o homem, à ima-
estaria necessàriamente ausente, nesse caso
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gem de Deus, em termos do que não é. Porém solidões em que a autêntica claridade nunca
nunca tive a este propósito senão ideias muito existiu, nem a verticalidade, nem a singela
confusas, conhecendo maIos homens e não base, mas sempre essas coisas pendentes que
sabendo muito bem o que isso quer dizer, ser. deslizam num desmoronamento interminável,
Oh tentar, tenho tentado tudo. Foi por fim à sob um céu sem memória de manhã nem es-
magia que caiu a honra de se instalar nos meus perança de noite. ~sas coisas, mas que coisas,
escombros, e ainda hoje, quando neles passeio,
encontro vestígios dela. Porém as mais das de onde vindas e feitas de quê? E parece que
vezes trata-se de um local sem plano nem fron- aí nada mexe, nem nunca mexeu, nem me-
teira e do qual mesmo os materiais me são in- xerá algum dia, a não ser eu, que também me
compreensíveis, sem falar da respectiva dispo- não mexo quando lá estou, apenas olho e
sição. E a coisa em ruínas, não sei o que é, deixo que me olhem. Sim, é um mundo acabado,
nem o que era, nem por consequência se se não apesar das aparências, foi o seu próprio fim
trata menos de ruínas do que da inelutável que o suscitou, foi ao acabar que começou, não
confusão das coisas eternas, se é esta a justa é isto bastante claro? E eu também estou aca-
expressão. É em todo o caso um lugar sem bado, quando aqui estou, os olhos fecharam-se-
mistério, a magia abandonou-o, achando-o sem -me, os meus padecimentos acabam e acabo,
nenhum mistério. E se lá não vou de vontade, dobrado como os vivos não conseguem. E hei-de
vou lá talvez mais de vontade do que a outro escutar ainda esse sopro longínquo, há muito
sítio, espantado e tranquilo, ia dizer como num calado e que finalmente ouço, hei-de aprender
sonho, mas nada disso, oh nada disso. Porém outras coisas ainda, a esse respeito. Mas não o
esse lugar não é desses em que nos encontra- escutarei mais, de momento, porque não gosto
mos, algumas vezes, sem saber como, e que dele, do tal sopro longínquo, até o receio. É
não deixamos quando queremos, e onde nos porém um som que não é como os outros, que
encontramos sem o mais pequeno prazer, mas se ouve, quando muito bem se quer, e que
com menos desprazer talvez do que nos sítios muitas vezes se pode fazer calar, afastando-nos
de que nos podemos afastar, dando-nos a esse ou tapando os ouvidos, é porém um som que
trabalho, sítios misteriosos, mobilados de mis- se nos põe a zoar dentro da cabeça, não se
térios conhecidos. Escuto e ouço-me a suge- sabe como, nem porquê. É com a cabeça que
rir-me um mundo petrificado em perda de equi-
líbrio, a uma luz fraca e calma e nada mais,
-
o ouvimos,
, as orelhas nada têm a ver com isso ,
enao e possível calá-lo, mas ele cala-se sozinho,
suficiente para ver, compreendem, e igual- quando muito bem lhe apetece. Ouça-o ou não,
mente petrificada. E ouço murmurar que tudo isso não tem portanto importância, ouví-lo-eí
dobra e verga, como ao peso de um fardo, sempre, a trovoada não será capaz de me li-
mas aqui não há fardo nenhum, incluíndo o bertar dele, até que cesse. Porém nada me
solo, pouco próprio para alombar, e incluíndo obriga a falar dele, já que isso não é da minha
o dia, a caminho de um fim que parece nunca competência. E isso é da minha competência
mais chegar. Porque qual o fim para tantas de momento. Não senhor, o que é da minha

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competência de momento, é acabar com aquela portância nenhuma, faz tão bem mudar ~e
história da lua que ficou incompleta, isso sim merda, alcançar uma merda um pouco ma~s
sei eu. E se tiver de acabar pior do que estar distante de quando em vez, borboletear pOIS
completamente em mim, mesmo assim acabarei então como se efémeros fôssemos. E se nos
o melhor que puder, pelo menos acho. Aquela enga~amos, e enganamo-nos, quero dizer re-
lua portanto, pensando bem, encheu-me de re- ferindo circunstâncias que teria sido melhor
pente de estupor, de espanto s~ prefere~. S.im, calar e calando outras, a justo título se qui-
pensava nela à minha maneira, com indife- serem , mas, como dizer, sem razão, a justo .
rença, tornava de certo modo a vê-la em pen- título mas sem razão, tal essa lua nova, ISSO
samento, quando um grande terror se apoder?u é muitas vezes de boa fé, de excelente fé.
de mim. E considerando que mesmo aSSIm Teriam então transcorrido, entre a noite na
valia a pena lá meter o nariz, meti e não tardei montanha, a dos meus dois ladrões e da decisão
a fazer a seguinte descoberta, entre outras, tomada de ir ver minha mãe, e a presente,
mais tempo do que supusera, a saber, quinze
mas apenas retenho a seguinte: essa lua que dias bem contados ou quase. Neste caso esses
acabava de me passar orgulhosa e plena diante quinze dias bem contados ou quase, que teria
da janela, na véspera ou ante-véspera, na ante- sido feito deles e para onde teriam passado?
-véspera tinha-a eu visto, muito fresca e del- E como conceber a possibilidade, fosse qual
gada, d~ :pernas para o ar, u~ cavaco. E disse fosse o seu conteúdo, de os fazer caber no en-
para comigo, Tem graça, o tipo esperou a. lua cadeamento tão rigoroso de incidentes de que
nova para se lançar a caminhos desconhecidos eu acabava de pagar a despesa? Não haveria
rumo ao sul. E depois um pouco mais tarde, E antes interesse em supor, ou que a lua vista na
se eu fosse ver a minha mãezinha amanhã. ante-véspera, longe de ser nova como jul-
Porque umas coisas estão para as outras, por gara, estava em vésperas de ser cheia, como
obra e graça do espírito santo, como soi dizer-se. me parecera, ou que a lua vista da casa de
E se não mencionei esta circunstância no seu Lousse, longe de ser cheia, como me aparecera,
devido lugar, é porque não se pod~ mencio,n~r mais não fazia na realidade do que iniciar o
tudo no seu devido lugar, antes e necessario seu primeiro quarto, ou enfim que se tratava
escolher entre as coisas que não valem a pena de duas luas tão afastadas da nova quanto
ser men~ionadas e as que valem ainda menos. da cheia e parecendo-se de tal maneira, no que
Porque se se quisesse tudo mencion8:r, ~ra um respeita à curvatura, que o olho nu tinha difi-
nunca mais acabar, e o problema e so esse, cultade em distingui-las, e que tudo o que se
acabar, acabar de uma vez para sempre. Oh punha de través destas hipóteses não passa.va de
eu sei , mesmo mencionando apenas algumas . fumo e de ilusão? De qualquer maneira fOI com
das circunstâncias em presença, nem por ISSO . estas considerações que consegui acalmar-me e
se acaba, eu sei, se sei. Mas muda-se de merda. reencontrar, face às traquinices da natureza,
E se todas as merdas se parecem umas com as essa ataraxia que vale o que vale. E voltou-me
outras, o que não é verdade, isso não tem imo igualmente ao espírito, que o sono ganhava no-
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contrário, me pareceu naturalissimo. Agarrei
numa e pus-me a bater com ela nos móveis
vamente, que as minhas noites não tinham lua
mas nao- com. muita força, apenas o bastante'
e que a lua nada tinha a ver com elas com as
minhas noites, de sorte que essa lua que aca- para os derrubar, sem os partir. Eram menos
bava de ver mostrando-se através da janela, numerosos que durante a noite. A bem dizer
remetendo-me a outras noites, a outras luas empurrava-os mais do que lhes batia, eram es-
nunca a tinha visto, eu esquecera quem era (~ tocadas e botes, que lhes atirava, o que não
com razão) e .falara de mim como teria falado é propriamente empurrar, mas é mais empurrar
de outro, se me tivesse sido absolutamente do que. b~ter. Porém, lembrando-me de quem
necessãrio falar de outro. Sim, isso acontece- era, deitei logo fora a muleta e imobilizei-me
-me e acontecer-me-à ainda, esquecer quem sou a meio do quarto, decidido a não pedir mais
e evoluir diante de mim próprio à maneira de nada e a jâ não fazer de conta que estava zan-
um estranho. li: nessas alturas que vejo o céu gado. Porque se eu queria as roupas, e julgava
diferente do que é e que a terra se reveste querê-las, isso não era razão para simular a
também de falsas cores. Tudo isso tem um ar cólera quando mas recusavam. E de novo só,
de repouso, mas é mentira, deslizo contente retomei a minha inspecção do quarto, e ia
n~ claridade dos outros, a que devia ser a encontrar-lhe outras propriedades quando o
mmha outrora, não digo o contrário, depois é a criado voltou e me disse que me tinham man-
angústia da volta, não direi aonde, não posso, dado buscar as roupas e que mas entregaria
talvez à. ausência, é preciso lá voltar, é tudo o dentro de momentos. Depois pôs-se a endi-
que sei, não é bom lã ficar, não é bom deixá-la. reitar os móveis que eu derrubara e a pô-los
No dia seguinte exigi as minhas roupas. O nos seus lugares, espanejando-os ao mesmo
criado foi informar-se. Voltou com a notícia tempo com um espanador que lhe apareceu
de que as tinham queimado. Continuei a ins- de repente na mão. E imediatamente pus-me a
peccionar o quarto. Era mais coisa menos coisa ajudá-lo o melhor que podia, maneira de mos-
um cubo perfeito. Através da janela alta via trar que não estava zangado com quem quer
ramos. Balouçavam suavemente, mas não todo que fosse. E se não podia fazer grande coisa,
o tempo, bruscas sacudidelas agitavam-nos por por causa da perna hirta, fazia não obstante o
momentos. Notei que o lustre estava aceso. que podia, isto é, apoderava-me dos móveis à
As mi~as roupas, exigi, as minhas muletas. medida que ele os ia levantando e procedia com
EsqueCia que as muletas estavam ali mesmo uma minúcia maníaca à sua colocação em bom
de encontro à poltrona. Saiu outra vez do lugar, recuando os braços no ar para melhor
quarto, deixando a porta aberta. Pela porta vi julgar do efeito e precipitando-me depois para
uma grande janela, maior do que a porta que lhes fazer modificações imperceptíveis. E ar -
ul~rapassava por. todos os lados, e opaca. O regaçando as fraldas da camisa de noite apli-
c~lado voltou e disse-me que as roupas tinham cava-lhes pontapés petulantes. Porém, também
s~do mandadas para a tinturaria, para lhes nesta mímica me não pude manter e ímobíli-
tirarem. o lustro. Trazia-me as muletas, o que zei-me bruscamente a meio da quadra. Mas
me devia ter parecido estranho, mas que pelo
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vendo-o pronto a partir, dei um passo em com desenvoltura nessa ordem de coisas e
direcção a ele e disse, A minha bicicleta. E esta apreciar-lhe os refinamentos. Mas tinha.? h~­
frase , repeti-a até que tivesse dado ares de a bito de ver o sol levantar-se ao sul e de ja nao
ter compreendido. Esse criado, miudinho e sem saber para onde ia, de tal modo tudo girava com
idade, não sei a que raça pertencia, não ~ inconsequência e arbítrio, nem o que aban-
branca de certo. Era t alvez oriental , o qu e e donava, nem c que me acompanhava. Ir a casa
vago, ori ental, filho do levante. Trazia calç.as da nossa mãe nestas condições, devem con-
brancas, camisa branca e colete amarelo, dir- fessar que não é cómodo, menos cómodo do que
-se-ia de antílope, com botões dourados, e san- ir a casa das Lousses, sem querer, ou aos
dá lias. 1f: r aro eu tomar conhe cimento com t al correios, ou a outros sítios qu e, sinto, me es-
nit idez do que vestem as pess oas e esto u con- peram. Mas tendo-me o cri ado trazido as rou-
tente por poder fazer-vos ti rar pro veito disso. pas, dentro de um papel que desem~rulh~u
Iss o explica-se talvez pelo fa cto de dur an te toda diante de mim , constatei que o chapeu nao
essa man hã não se te r fal ad o por assim dizer estava lá , o que me obri gou a pedir, O meu
senã o em roupas, nas minhas. E eu t alvez me chapéu. E quando ele compreendeu o que eu
dissesse em substância, Olhem-me só aquele, queria, foi-se embora e voltou daí a pouco c0,!ll
t ran quilo naquelas suas r oupas, ao passo que o chapéu. Ag ora já mais nada faltava, a nao
eu flut uo para aqui dentro de uma camisa de ser o atacador para me amarrar o chapéu à
noite estranha, e de mulher provàv elmente, botoeira, mas isso não tinha eu esperança de
porque er a cor de rosa e t ra nsparente e guar- lhe fazer compreender e por consequência não
necida de fitinhas, franzi dos e re ndas. O quarto, dei cavaco. Um velho atacador é coisa que se
pelo contrário, via-o mal , tod as as vezes que encontra sempre, nem é ete r no, um atacador,
r etomava a sua inspecção parecia-me mudado, como são as roupas propriamente ditas. Quanto à
e a isso chama-se ver mal no estado actual bicicleta, tinha grande esperança que estivesse
dos nossos conhecimentos. Mesmo os ramos à minha espera algures em baixo, talvez mesmo
par eciam mudar de lugar, como que dotados diante da escadaria da entrada, pronta a levar-
de uma velocidade orb ital própria, e dentro -me para longe daqueles horríveis locais. E eu
da grande janela opaca a porta já não se con- não via que interesse teria em aludir de novo
servava , antes se deslocara ligeiramente para a isso , em impor-nos a ele e a mim essa nova
a direita ou para a esquerda, já não sei, de prova, quando ele tinha meios de no-la poupa~.
maneira a receber no respectivo enquadra- Estas considerações atravessaram-me o espi-
mento um trecho de parede branca, sobre o qual rito com uma certa rapidez. Os bolsos, quatro
eu podia provocar ténues sombras fazendo de- ao todo das minhas roupas, revistei-os diante
terminados movimentos. Ainda que para tudo do criado e constatei que o seu conteúdo não
isso houvesse explícações naturais, quero bem estava completo. A pedrinha para chupar so-
convir, porque os recursos da natureza são bretudo já lá não estava. Mas pedras para
aparentemente infinitos. Era eu qu~ nã~ era chupar, encontram-se com bastante facilidade
suficientemente natural para poder mserir-me nas nossas praias, a condição é saber onde
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procurá-las, e julguei preferível nada dizer a de ser alivia do. Porque sobre o que perdi é
esse respeito, tanto mais que ao cabo de uma natural que me estenda menos do que sobre o
hora de discussão ele teria podido ir buscar-me que não consegui perder, é lógico. E se nem
ao jardim uma pedra completamente inehu- sempre tenho o ar de me conformar com este
pável. Esta decisão também a tomei por assim princípio, é porque ele me escapa, volta e meia,
dizer instantâneamente. Quanto aos outros e desaparece, corno se nunca o tivesse desco-
objectos que tinham desaparecido, que adian- berto. Frase demente, pouco importa. Porque
tava falar neles , visto que não sabia exacta- já não sei muito bem o que faço, nem porquê,
mente quais eram. E talvez me tivessem ficado são isto coisas que compreendo cada vez menos,
com eles no comissariado, sem eu dar por isso , não o oculto, porque para quê ocultar, e rela-
ou talvez os tivesse perdido quando da minha tivamente a quem , a vocês, a quem nada é
queda ou em qualquer outro momento, p~r possível ocultar? E depois fazer enche-me de
via de jacto quem sabe, porque me sucedia um tal, não sei quê, impossível, para mim, expri-
deitar fora tudo o que tinha sobre mim, em mir neste momento, após tanto tempo, com-
momentos de despeito. Nesse caso que adian- preendem, que não me detenho a saber em
tava eu falar. Decidi-me no entanto a afirmar virtude de que princípio. E tanto menos quanto
em alta voz que me faltava um canivete, um o quer que faça, isto é, o quer que diga, será
belo canivete, e fi-lo de tal maneira e tão bem sempr e de alguma maneira a mesma coisa,
que me deram um belo canivete para cortar le- sim, de alguma maneira. E se falo de princípios,
gumes, presumivelmente inoxidável, mas que quando não os há, contra isso nada posso. Deve
não levei muito tempo a oxidar, e que ainda por havê-los em qualquer parte. E se fizermos
cima abria e fechava, ao contrário de todos os sempre a mesma coisa de alguma maneira não
canivetes para cortar legumes que conhecera, é a mesma coisa que nos conformarmos com
e tinha uma mola de segurança que cedo se o mesmo princípio, também contra isso nada
revelou impotente para deter fosse o que fosse, posso. Aliás como saber se nos conformamos
de onde feridas inumeráveis, ao longo dos ou não com ele? E como ter vontade de o
meus dedos entalados entre o cabo de autêntico saber? Não , tudo isso não merece que a gente
chifre presumivelmente da Irlanda e a lâmina se detenha, e não obstante detemo-nos, in-
vermelha de ferrugem e de tal maneira gasta conscientes dos valores. E com as coisas que
que se tratava a bem dizer menos de feridas do valem a pena, não nos detemos nós, deixamo-las,
aue de contusões. E se falo tão longamente pela mesma razão, ou por experiência, sabendo
desse canivete, é porque julgo ainda o tenho que essas histórias de valores não são para
algures, entre os meus haveres. ie porque tendo vocês, que já não sabem muito bem o que
dele falado longamente neste sítio, já não terei fazem, nem por que fazem, e que devem conti-
que falar dele quando chegar o momento, se nuar a ignorá-lo, sob pena de, pergunto-me
alguma vez chegar, de fazer o inventário dos de quê, sim, pergunto-me de quê. Porque pior
meus haveres, e estarei aliviado disso, num do que o que eu faço, sem saber o quê, nem
momento em que, sinto, hei-de ter necessidade porquê, eis uma coisa de que nunca consegui
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ter a mais pequena ideia, o que não me espanta, vamo Dir-se-ia que os freios estavam paraliza-
porque nunca tentei. Porque tivesse eu podido dos , o que no entanto não era o caso, porque a
conceber pior do que aquilo que tinha, e, tal minh a bicicleta não tinha freios. E sentindo-me
qual me conheço, ter-me-ia precipitado para subitamente invadido por uma grande fadiga,
isso, para o ter. E aquilo que tenho, aquilo ~ue apesar da hora que era a da minha vitalidade
sou basta-me, sempre me bastou, no que respeita máxima, atirei com a bicicleta para a moita e
à ~inha paixoneta de futuro também estou deitei-me por terra, sobre a relva, sem me
tranquilo, não estou à beira de me aborrecer. importar com o orvalho, nunca receei o orvalho.
Então vesti-me, tendo-me previamente certi- Foi então que Lousse, aproveitando a minha
ficado de que coisa alguma mudara ao estado fraqueza, se acocorou a meu lado e se me pôs
das minhas roupas, isto é, vesti as calças, o a fazer algumas propostas, às quais devo con-
capote, e os sapatos. Os meus sapatos. Est~s fessar ter distraidamente prestado ouvidos, não
subiam-me até onde teria os tornozelos se ti- tendo outra coisa a fazer, ou mesmo não po-
vesse tornozelos, e metade abotoavam-se, ou dendo fazer outra coisa, e com certeza a fu-
ter-se-iam abotoado, se tivessem botões, e me- laninha deitara-me na cerveja qualquer pro-
tade atacavam-se, e ainda os tenho, creio, al- duto destinado a amolecer-me, a amolecer
gures. Depois agarrei nas muletas e saí do Molloy, de sorte que eu não era por assim
quarto. Todo o santo dia se con~umira ne:>B a.s dizer mais do que uma massa de cera em
mesquinharias e era de novo noite. Examíneí, estado de fusão. E dessas propostas, que ela
ao descer a escada, a janela que vira através enunciava lentamente, repetindo várias vezes
da porta. Era ela que dava luz à esca?a, ~uz cada artigo, acabei por depreender o que segue
esverdeada e violenta. Lousse estava no jardim, e que constituía sem dúvida o essencial. Eu
entretida a remexer na campa do cão. Semeava não podia impedir que ela sentisse simpatia por
nela erva, como se a erva não crescesse sozinha. mim, ela também não. Eu ficaria em casa dela,
Aproveitava-se de o calor ter afrouxado. Ao onde estaria como em minha casa. Teria de
ver-me, veio para mim com cordiali.dade e comer e de beber, de fumar também se fumasse,
deu-me de comer e de beber. Restaurei-me de a título gracioso, e a minha vida decorreria sem
pé. procurando a bicicleta com os olhos. Ela preocupações. Susbtituiria de certa maneira o
falava. Depressa saciado, pus-me à procura cão que eu matara e que lhe fazia as vezes de
da bicicleta. Seguiu-me. Acabei por encon- filho. Ajudaria no jardim, na casa, quando
trá-la, à bicicleta, apoiada contra uma moita quisesse, se quisesse. Não sairia à rua, porque
muito fofa que lhe engolia uma metade. Lar- uma vez na rua não saberia voltar. Escolheria
guei as muletas e deitei-lhe as mãos, ao selim o ritmo de vida que melhor me conviesse, le-
e ao guiador, com a intenção de lhe rodar um vant ando-me, deitando-me e tomando as refei-
bocado a roda, para a frente, para trás, antes de ções às horas que me desse na gana. Se não qui-
me encavalitar nela e de me pôr a mexer para sesse andar limpo, USar roupas decentes,
sempre daquelas paragens malditas. Porém de- lavar -me, etc., nada me obrigaria a isso . Ela
balde empurrei e arrastei, as rodas não roda- sofr er ia com isso, mas o que era o sofrimento

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dela ao lado do meu sofrimento? Tudo o que brevemente, depois de novo cada vez mais lon-
ela pedia, era que me sentisse bem em casa gamente. Isto só para vos dar uma ideia do
dela, junto dela, e que pudesse contemplar de vez tempo que a fulana levou a apoderar-se de mim,
em quando este corpo extraordinário, nas res- da sua paciência e da sua resistência física,
pectivas estações e idas e vindas. Eu volta e porque durante todo tempo permanecia acoco-
meia interrompia-a, para lhe perguntar em que rada ou ajoelhada a meu lado, enquanto eu
cidade me encontrava. Porém, ou porque não não abria boca a não ser para perguntar, de
soubesse compreender-me, ou porque preferisse longe em longe, e cada vez mais baixo, em que
deixar-me na ignorância, não dava resposta à cidade estávamos. E finalmente segura do seu
minha pergunta, antes prosseguia o discurso, êxito, ou simplesmente consciente de ter feito
voltando com uma paciência infinita ao que tudo o que estava em seu poder e que insistir
acabava de dizer, depois lentamente, suave- mais não levaria a nada, levantou-se e foi-se
mente, indo mais àvante na exposição das não sei para onde , porque eu fiquei onde estava,
vantagens que eu teria em fixar residência em contra vontade, mas com moderação. Porque
casa dela e que teria, ela, em ter-me. Até ao em mim sempre houve dois bobos, entre outros,
momento em que mais nada existiu a não ser um que não pede outra coisa senão ficar onde
aquela voz monótona, a meio da noite mais e se encontra e outro que imagina que mais longe
mais escura e do cheiro a terra húmida e a estaria um pouco menos mal. De sorte que eu
uma flor muito perfumada que no momento não estava sempre servido, de certa maneira, fi-
consegui identificar, mas que identifiquei mais zesse o que fizesse, nesse domínio. E capitulava
tarde como sendo a flor da alfazema. Havia alternadamente, a esses tristes compadres, para
canteiros disso em toda a parte, naquele jardim, lhes permitir que compreendessem o respectivo
porque Lousse adorava. a alfazema, ela própria erro. E nessa noite não estava em causa .a lua,
mo deve ter dito, se não nunca teria sabido, nem outra luz, foi mais uma noite de escuta,
gostava muito mais dela do que todas as ervas uma noite dada aos subtis sussurros e sus-
e flores, por causa do cheiro, e além disso piros que agitam de noite os jardinzinhos de
também pelas espigas e pela cor. E tivesse eu prazer, feitos do tímido sábá das folhas e das
conservado o sentido do cheiro que o cheiro pétalas e do ar que neles circula de maneira
da alfazema me faria sempre pensar em Lousse, diferente de noutros sítios onde existe menos
segundo o mecanismo bem conhecido da asso- constrangimento, e de maneira diferente de
ciação de ideias. E essa tal alfazema, colhia-a, durante o dia que permite vigiar e gramar, e
assim que chegava à maturidade, punha-a a de outra coisa ainda que não é muito nítida,
secar e com ela confeccionava saquinhos que co- mas não é nem o ar nem o que este move.
locava nos armários para perfumar os lenços m talvez o ruído longínquo sempre o mesmo
assim como a sua roupa de vestir e a da casa. que a terra faz e os outros ruídos abafam,
Mas não obstante, eu ouvia, de vez em quando, não por muito tempo. Porque as pessoas não
dar horas, nos campanários e nos relógios, cada se apercebem desse ruído que se ouve quando
vez mais longamente, depois de súbito muito se escuta verdadeiramente, quando tudo parece

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calar-se. E havia ainda outro ruído, o da minha não sei porquê, nada me obrigava a isso, e
vida, que este jardim cavalgando a terra dos ele teria sem dúvida preferido apanhá-lo ele
abismos e dos desertos chamava a si. Sim. próprio. E o esforço que isso me custou, por
acontecia-me esquecer não somente quem era, causa da perna hirta! Essas palavras insere-
mas que era, esquecer-me de ser. Então já não se veram-se-me para sempre na memória, sem
tratava dessa caixa fechada à qual devia ter-me dúvida porque as compreendi imediatamente,
conservado tão bem, mas de um tabique que o que não me acontecia muitas vezes. Não que
descia e me enchia por exemplo de raízes e de fosse duro de ouvido, porque era até bastante
sapientes hastes de tutores há muito mortos fino de ouvido, e não comportando os ruídos
e que brevemente iriam a queimar, no descanso sentido bem definido, percebia-os talvez melhor
da noite e da expectativa do sol, e ainda do do que ninguém. Então de que se tratava? De
ranger do planeta que tinha as costas largas, um defeito de entendimento talvez, que res-
porque girava a caminho do Inverno, e o In- soava apenas quando percurtido várias vezes,
verno o depuraria das crostas irrisórias. Ou ou que ressoava se assim quiserem, mas a um
então eu era desse Inverno a calma precária, nível inferior ao do raciocínio, se é conce-
a fusão das neves que nada mudam e os hor- bível uma coisas destas, e é, visto que o con-
rores do recomeço. Porém isso não me acontecia cebo. Sim, as palavras que ouvia, e ouvia-as
muitas vezes, a maior parte do tempo ficava na muito bem, sendo bastante fino de ouvido,
minha caixa que não conhecia nem estações nem ouvia-as pela primeira vez, e mesmo ainda pela
jardins. E mais valia isso. Mas dentro dela é segunda, e muitas vezes até pela terceira, como
preciso estar atento, pôr problemas, por sons puros, libertos de toda a significação, e
exemplo o de saber se se continua a ser, e se se esta é provàvelmente uma das razões pelas
não, quando se deu o bafo, e se sim quanto quais a conversação me era indizivelmente
tempo vai a coisa durar ainda, qualquer coisa penosa. E as palavras que eu próprio pronun-
não importa qual que nos impeça de perder o ciava e que deviam quase sempre filiar-se num
fio do sonho. Quanto a mim punha-me proble- esforço de inteligência, faziam-me muitas vezes
mas de boa vontade, um após outro, só para o efeito de um zumbido de insecto. E isto ex-
os contemplar mais nada. Não, de boa vontade plica a razão por que eu era pouco conversador,
não, racionalmente, para me julgar sempre lá e a dificuldade que tinha para compreender não
dentro. E não obstante estar sempre lá dentro somente o que os outros me diziam, mas tam-
não me dizia absolutamente nada. A isso cha- bém o que eu próprio lhes dizia a eles. É ver-
mava eu reflectir. Reflectia quase sem des- dade que com muita paciência acabávamos por
canso, não ousava parar. Era talvez a isso que nos compreendermos, mas compreendermo-nos
devia a minha inocência. Ela estava um pouco a respeito de quê, não me dizem, e para que
debotada e como comida nas bordas, mas eu resultado. E aos rumores da natura, e das obras
estava contente por tê-la, sim, bastante con- dos humanos, eu reagia de maneira muito
tente. Bastante obrigado, como me disse um minha, suponho, e não pensava em tirar deles
dia um garoto a quem eu apanhara o berlinde, qualquer lição. E o meu olho igualmente, o
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bom, devia estar mal ligado à armação, já de pioneiro. E à popa, curvado sobre as vagas,
que nomeava com tanta dificuldade o que nele escravo tristemente hilare, contemplo o orgu-
se reflectia, muitas vezes com nitidez. E sem lhoso e inútil trilho. O qual, não me afastando
ir até ao ponto de dizer que via o mundo de de nenhuma pátria, me não transporta para
pernas para o ar (o que seria simples demais), nenhum naufrágio. Portanto um bom mo-
certo é que o via de uma maneira exagerada- mento em casa de Lousse. :m vago, um bom
mente formal, sem que por isso fosse nem por momento, alguns meses talvez, um ano sei lá.
sombras esteta, ou artista. E tendo apenas um Sei que fazia outra vez calor no dia da minha
olho, em dois, a funcionar mais ou menos con- partida, porém isso nada queria dizer, na minha
venientemente, apreendia mal a distância que região, onde parecia fazer calor ou frio ou sim-
me separava do outro mundo, e muitas vezes plesmente assim, assim, em não importa que mo-
avançava a mão para o que se encontrava fran- mento do ano e em que os dias não desciam
camente fora de alcance e muitas vezes esbar- em declive suave, oh não, nada de declives
rava contra sólidos mal visíveis no horizonte. suaves. Isso talvez tenha mudado depois. Sei
Mas mesmo quando tinha os dois olhos era portanto apenas que fazia mais ou menos o
assim, parece-me, ou talvez não fosse, porque mesmo tempo quando da minha partida e
esse período da minha vida está longe e dele quando da minha chegada, na medida em que
guardo uma recordação mais do que imperfeita. era capaz de saber o tempo que fazia. E havia
E ao pensar bem nisso, as minhas tentativas de já tanto tempo que andava fora, por tempos
sabor e de olfacto não valiam muito mais, chei- bons e maus, que os distinguia bastante bem
rava e saboreava sem saber exactamente o quê, uns dos outros, o meu corpo distinguia-os e
nem sequer se era bom ou se era mau, e raras parecia mesmo ter as suas preferências. Acho
vezes duas vezes seguidas a mesma coisa. Eu que ocupava vários quartos, um após outro,
teria dado, suponho, um excelente marido, in- ou por alternância, não sei. Na minha ideia há
capaz de me queixar da minha esposa e não a várias janelas, disso estou certo, mas talvez
enganando senão por distracção. Agora, di- seja sempre a mesma, diversamente aberta
zer-vos por que razão fiquei com Lousse, du- sobre o universo em procissão. A casa não
rante um bom pedaço, é-me impossível. Isto se mexia, eis talvez o que eu quero dizer ao falar
é, havia com certeza de o conseguir, dando-me desses diferentes quartos. Jardim e casa eram
a esse trabalho. Mas porque me havia de dar? imóveis, graças a não sei que mecanismo de
Para estabelecer de maneira irrefragável que compensação, e eu, quando estava quieto, e
me era impossível proceder de outro modo? estava a maior parte do tempo, estava também
Porque era a isso que eu chegaria fatalmente. imóvel, e quando me deslocava, fazia-o com
Muito gostara eu da figura desse velho extrema lentidão, como numa gaiola fora do
Geulincx, morto na flor da idade, que me dava tempo como costuma dizer-se, calão de estu-
a liberdade de, sobre o navio negro de Ulisses, dantes, e bem entendido fora do espaço tam-
me escoar para levante, sobre a ponte. Isto é bém. Porque estar fora de um sem estar fora
uma grande liberdade para quem não tem alma do outro, era para os mais espertos do

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que eu que não era esperto, mas bajojo. Não vam entre si as diferentes partes do jardim.
posso porém enganar-me inteiramente. E essas Porém essa vontade, em lugar de tentar dar-lhe
diversas janelas que se abrem na minha ideia, satisfação, ficava a contemplá-la, se me atrevo
quando me debruço sobre esse período, existiam a assim dizer, a ver que pouco a pouco,
talvez realmente e existem talvez ainda, apesar ia encarquilhando e que finalmente desapare-
de eu já lá não estar, quer dizer no momento cia, como a famosa peau de chagrin, apenas
de as contemplar, de as abrir e fechar, ou muito mais ràpidamente. Porque parece haver
encolhido ao fundo no de me espantar com duas maneiras de nos comportarmos em pre-
os objectos nelas enquadrados. Não me demora- sença das vontades, a activa e a contemplativa,
rei sobre esse episódio de uma brevidade em e embora ambas conduzam aos mesmos resul-
suma irrisória e tão pobre de estofo. Porque tados, para a segunda iam as minhas prefe-
eu não ajudava nem na casa nem no jardim e rências, questão de temperamento sem dúvida.
nada sabia dos trabalhos que aí se efectuavam; O jardim estava cercado de uma alta muralha,
dia e noite, e cujos ruídos chegavam até mim, com a crista eriçada de cacos de vidro em
ruídos surdos e também secos e além destes forma de barbatana. Porém, coisa absoluta-
muitas vezes o do ar agitado com força, pare- mente inesperada sem dúvida, uma portinhola
cia-me, e que talvez fosse muito simplesmente em clarabóia inseria-se nela e dava livre acesso
o da combustão. Preferia o jardim à casa, a à rua, porque não era fechada à chave, tenho
julgar pelas longas horas que nele passava, quase a certeza, por tê-la aberto e fechado
porque nele passava a maior parte do dia e da várias ocasiões sem a mais pequena dificul-
noite, fizesse bom ou fizesse mau tempo. Ho- dade, tanto de dia como de noite, e por ter
mens afadigavam-se continuamente nele, ocu- visto outros além de mim transpô-la, nos dois
pados em não sei que trabalhos. Porque o jar- sentidos. Punha o nariz de fora, depois ràpi-
dim permanecia sensivelmente o mesmo, dia damente metia-o para dentro. Ainda algumas
após dia, abstracção feita das miúdas altera- observações. Jamais vi mulheres naquele re-
ções devidas ao ciclo habitual dos nascimentos, cinto, e por recinto entendo não somente o
vidas e mortes. E a meio desses homens eu jardim, como sem dúvida devia, mas também
errava como uma morta folha de mola, ou a casa, mas homens unicamente, com excepção
deitava-me por terra, e então passavam-me de Lousse evidentemente. O que eu via e não
por cima com precaução como se eu acaso fosse via, não quererá evidentemente dizer grande
um canteiro de preciosas flores. Sim, era sem coisa, mas assinalo-o da mesma maneira.
dúvida com o fim de impedir que o jardim mu- Lousse, essa, via-a pouco, não se mostrava
dasse de aspecto que se obstinavam daquela muito, a mim pelo menos, por discrição talvez,
maneira. A minha bicicleta tinha desaparecido receando espantar-me. Mas acho que me es-
de novo. Algumas vezes vinha-me a vontade de piava muito, escondida atrás das moitas, ou
a procurar, para a tornar a ver e para me fazer das cortinas, ou encolhida num quarto do pri-
uma ideia mais nítida do seu estado ou para meiro andar quem sabe se com ajuda de binó-
rolar um pouco nas áleas e carreiras que liga- culo. Porque não tinha ela dito que desejava

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antes de mais nada ver-me. tanto indo e vindo mentos pós e líquidos maléficos e sem sabor.
~omo petrificado no repouso? E para ver bem Aliás tivessem -t ido sabor e isso nada teria
e preciso o buraco da fechadura, a pequena mudado ao caso, teria engolido tudo e mais
clareira ~ntre as folhas, tudo o que impeça alguma coisa exactamente com a mesma bono-
sermos VIstos e ao mesmo tempo não revele mia. Aquele famoso gostinho a tâmaras, por
do objecto contemplado senão fragmentos si- exemplo, não era isso que me tirava o apetite.
multâneos. Não? Sim senhor, ela inspecciona- O meu apetite! Falemos um pouco do meu ape -
va-me, naco a naco, e sem dúvida na intimi- tite. Eu tinha muito pouco apetite, comia como
dade do meu deitar, do meu sono e do meu le- um passarinho, mas o pouco que comia engolia-o
vantar, nas manhãs em que me deitava. Porque com um frenesim que se atribui de preferência
sob esse aspecto permanecia fiel ao meu hábito, aos grandes garfos, e sem razão, porque os
que era dormir de manhã, quando dormia. grandes garfos em geral comem com lentidão
Porque me acontecia não dormir absoluta- e método, como se deduz da própria noção de
mente nada, durante vários dias, sem sentir o grande garfo. Ao passo que eu me atirava ao
mais pequeno inconveniente. Porque a minha prato único, devorava- metade ou metade da
vigília era uma espécie de sono. E não dormia metade em duas abocanhadelas de peixe de
sempre no mesmo sítio, mas ora dormia no rapina, isto é, sem mastigar (e com que teria
jardim, que era grande, ora dormia dentro de eu mastigado?), depois atirava o resto para
casa, que também era grande, na verdade ex- longe com repulsa. Dir-se-ia que comia para vi-
tremamente espaçosa. E essa incerteza quanto ver! Da mesma maneira engolfava cinco ou seis
às horas e aos locais do sono devia encher canecos de cerveja um após outro, e depois não
Lousse de gozo, imagino, e fazer-lhe passar o bebia mais nada durante uma semana. Que
tempo de maneira muito agradável. Mas é querem, é-se aquilo que se é, em parte pelo
inútil insistir nesse período da minha vida. menos. Nada ou pouco a fazer. Quanto aos
À força de chamar minha vida a isto vou produtos que ela insinuava assim nos meus di-
acabar por acreditar nisso. Ê este o princípio versos sistemas, não posso dizer se eram esti-
da publicidade. Esse período da minha vida. mulantes ou se não eram antes deprimentes.
Faz-me pensar, quando nele penso, em ar dentro Para dizer a verdade, do ponto de vista da ce-
de uma conduta de água. Acrescentarei por- nestesia entenda-se, sentia-me mais coisa menos
tanto apenas que essa mulher continuava a coisa como era hábito, quer dizer - atenção,
envenenar-me a fogo lento, introduzindo não
sei que produtos tóxicos quer no que me dava ai vai alho - de um nervosismo tão palpitante
de beber, quer no que me dava de comer, ou que perdia de certa maneira a sensibilidade,
quem sabe se nas duas coisas, ou um dia uma, para não dizer o conhecimento, e flutuava. no
outro dia outra. Ê uma grande acusação que fundo de um torpor misericordioso atravessado
eu lanço aqui e não o faço com ligeireza. E de breves e abomináveis clarões, é como tenho a
faço-o sem ressentimento, sim, acuso-a sem honra de vos dizer. Que podiam contra seme-
ressentimento de me ter acrescentado aos ali- lhante equilíbrio as miseráveis mêsinhas de

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Lousse, ministradas provàvelmente em doses para impedir as coisas de cair, e pintada de
infinitesimais, para fazer durar o prazer. Que laca vermelha, estalada aqui e acolá. Era além
tudo isso ficasse inteiramente sem efeito, não, disso pequena, como convinha a bandeja que
não vou até aí. Porque de tempos a tempos tem que conter um prato único e um naco de
surpreendia-me a dar um saltinho para o ar uns pão. Porque o pouco que eu comia, enfiava-o
dois ou três pés pelo menos, pelo menos, eu que pela boca abaixo com ambas as mãos, e as gar-
nunca saltava. A coisa parecia-se com levita- rafas, que esvaziava de um trago, traziam-nas
ção. E acontecia-me também, o que é menos à parte, num cestinho. Esse cesto porém nunca
surpreendente, quando andava, ou mesmo me fez grande impressão, nem boa nem má, e eu
apoiado contra qualquer suporte, desabar de hão seria capaz de dizer como era feito. E, mui-
repente, à maneira de um fantoche a quem tas vezes, tendo-me afastado por uma ou outra
largam os cordéis, e ficar um bom momento razão do local aonde me tinham levado as provi-
por terra, literalmente desossado. Sim, isso pa- sões, já não podia encontrá-las, quando a vontade
recia-me menos estranho, porque era useiro e me vinha de as consumir. Procurava-as então
vezeiro em tais desabares, mas com o seguinte por toda a parte. muitas vezes com felicidade,
a menos: sentia-os vir e tomava as minhas dis- porque conhecia bastante bem os sítios suscep-
posições, como faz um epiléptico advertido da tíveis de me ter aceitado, mas também mui-
aproximação da crise. Quero dizer que, sabendo tas vezes em vão. Ou não procurava, preferindo
que ia tombar, me estendia ao comprido, ou ficar com fome e sede a dar-me ao trabalho
escorava-me de pé com tanta habilidade que de procurar sem saber com antecedência que
nada a não ser um tremor de terra me poderia encontrava, ou ao trabalho de reclamar que me
desalojar, e esperava. Porém tais precauções trouxessem outra bandeja e outro cesto, ou os
não as tomava sempre, preferindo a queda à mesmos, ao lugar onde estava. Então sentia
chatice de me deitar ou de me escorar. Ao falta da minha pedra para chupar. E quando
passo que as quedas que dava em casa de digo por exemplo preferir, ou sentir falta, não
Lousse, não tinha tempo de as evitar. Porém, é necessário supor que optava pelo mínimo
de qualquer maneira surpreendiam-me menos, mal, e o adoptava, porque isso seria um erro.
eram mais do meu múnus, do que os saltinhos. Mas não sabendo exactamente o que fazia ou
Porque mesmo em garoto não me lembro de evitava, fazia-o e evitava-o sem suspeitar que
ter dado saltos, nem a raiva nem a dor me um dia, mais tarde, seria obrigado a abjurar
faziam saltar, mesmo em garoto, por muito todas essas acções e omissões, empalidecidas e
pouco qualificado que esteja para falar dessa embelezadas pela distância, para as arrastar
época. As minhas refeições, parece-me que as na poluição endemonista. Porém devo dizer que
comia como, quando e onde melhor me calhava. a minha saúde sm casa de Lousse se mantinha
Nunca tive que as reclamar. Traziam-mas, estacionária, pouco mais ou menos. Quer dizer
onde quer que estivesse, numa bandeja. Ainda que o que já tinha desarranjado se desarranjava
vejo a bandeja, posso tornar li. vê-la, quase à cada vez mais, pouco a pouco, como era de
vontade, era redonda, com um pequeno rebordo, esperar. Mas não se acendeu mais nenhum
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foco de sofrimento ou de infecção, à parte os também tão poucas vezes. E a voz dela não
actualmente criados pela extensão das plétoras era de uma gravidade muito duvidosa? É assim
e deficiências já existentes na praça. A bem que presentemente ela me aparece. Não te ator-
dizer é difícil afirmar o quer que seja de mentes, Molloy, homem ou mulher, que adianta?
seguro a esse respeito. Porque as desordens Porém não posso impedir-me de pôr o problema
que viriam, como por exemplo a queda dos que se segue. Uma mulher teria podido deter-
dedos do meu pé esquerdo, não, engano-me, do -me na corrida para minha mãe? Sem dúvida.
meu pé direito, quem pode saber exactamente Melhor , tal encontro seria possível, quero dizer
em que momento acolhi em mim, oh bem con- .
entre mim e uma mulher? Os homens, rocei-me
tra a minha vontade, as suas funestas semen- por alguns, mas as mulheres.? Pois bem, desis!o
tes? Tudo o que posso dizer, por consequência, de ocultar, sim senhor, rocei-me por uma. Nao
e esforço-me por não dizer mais do que isso, é falo da minha, a essa fiz mais do que o
que durante a minha estadia em casa de roçar. E depois, vamos deixar minha mãe fora
Lousse nada se declarou, no plano patológico, destas histórias, se não se importam. Mas de
de notável ou inesperado, nada que eu não outra, que teria podido ser minha mãe, e mesmo
tivesse podido prever se pudesse, nada de com- creio minha avó, se o acaso não tivesse decidido
parável com a ,súbita pe~da ?e meta~e dos de outra maneira. Ei-Io que fala agora de
meus dedos do pe. Porque ISSO e uma coisa que acaso. Foi ela quem me fez conhecer o amor.
nunca poderia ter previsto e de que nunca Tinha o nome pacífico de Rute, mas não posso
penetrei o sentido, isto é, a relação .com os dar a certeza. Talvez se chamasse Edite. A fu-
meus outros incómodos, falta de conhecimentos lana tinha um apartamento giro, não, giro não,
médicos provàvelmente. Porque, sinto, tudo ~e mas onde nos dava vontade de encontrar um
equivale, na longa loucura do corpo. Mas nao cantinho e nunca mais nos levantarmos. Agra-
vale a pena prolongar a narrativa desse trecho dava-me. Estava cheio de móveis pequenos, sob
do meu, minha, da minha existência, porque os nossos murros desesperados a cadeira avan-
ela não tem significação, a meu ver. É uma çava sobre as rodas, tudo caía à nossa volta,
teta que espremo em vão, _dela não sae~ era o pandemónio. As nossas relações não _eram
senão bolhas e perdigotas. Nao acrescentarei sem ternura, ela cortava-me com as maos a
portanto senão as poucas observações que tremer as unhas dos pés e eu esfregava-lhe a
seguem e das quais a primeira é esta: Lousse garupa com bálsamo Benguê, O nosso idílio foi
era uma mulher extremamente chata, no físico de culta duração. Pobre Edite, talvez eu tenha
entenda-se, a tal ponto que me pergunto ainda precipitado o seu fim. Enfim foi ela quem t0Il?-0u
hoje, no silêncio muito relativo da minha der- a iniciativa. A única coisa que, a esse respeíto,
radeira moradia, se ela não era antes um me aborrece, é a indiferença com que soube da
homem ou pelo menos um andrógino. Tinha o morte dela. uma noite em que me arrastava
fâcies ligeiramente peludo, ou serei eu que para sua casa, indiferença suavizada é certo
assim o imagino, para comodidade da n~r­ pelo desgosto de ver secar uma fonte de receita.
rativa? Via-a tão pouco, coitada, e olhei-a Morreu tomando um banho tépido como fazia
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sempre antes de me receber. A coisa amolecia-a. que se tratava de uma mulher velha, viúva
Quando penso que ela podia ter esperado estar e ressequida, e que a Rute era outra que
nos meus braços! A banheira voltou-se e a tal, visto que também falava do respectivo
água suja espalhou-se por toda a parte e até defunto marido e da impossibilidade em que se
para a casa da vizinha de baixo, que deu o encontrava de satisfazer os seus legítimos fu-
alarme. Toma lá anda, julgava não conhecer rores. E dias há, como esta noite, em que ambas
tão bem esta história. Devia tratar-se real- se confundem na minha memória e em que eu
mente de uma mulher, o contrário ter-se-ia tenho a tentação de ver nelas apenas uma
sabido, lá no bairro. :m verdade que em tudo o única e mesma velhota, achatada e enraivecida
que tocasse em questões sexu~is se er.~ extr~­ pela vida. E, para vos confessar o fundo do meu
ordinàriamente fechado, na mmha regrao, Nao terror, Deus me perdoe, a imagem da minha
sei como a coisa se passa hoje em dia. E é mãe vem algumas vezes juntar-se às duas, o
muitíssimo possível que o facto de se encontrar que é propriamente insuportável, o suficiente
um homem quando seria preciso encontrar uma para nos julgarmos em plena crucificação, não
mulher fosse imediatamente recalcado e esque- sei porquê nem faço questão de saber. Mas por
cido, por parte dos poucos que ~ivessem a des- fim abandonei Lousse, por uma noite quente e
graça de o saber. Como é possível que toda a sem aragem, sem dizer adeus, o que no entanto
gente estivesse ao corrente, e falasse nisso, teria sido a mínima coisa, e sem que ela ten-
excepto eu mais ninguém. Há porém uma coisa tasse deter-me a não ser sei lá por meio de
que me aflige, quando me interrogam a ess.e sortilégios. Mas ela deve ter-me visto partir,
respeito, e é o problema de saber se toda a .ml- levantar-me, agarrar nas muletas e pôr-me a
nha vida decorreu sem amor ou se verdadeira- mexer, cortando o ar, bem apoiado nelas. E
mente o conheci, com a Rute. O que posso garan- deve ter visto o postigo fechar-se atrás de
tir é que nunca procurei renovar a experiência, mim, porque este se fechava sozinho, graças a
tendo sem dúvida a intuição de que tudo aquilo uma mola de tracção, e ter sabido que eu par-
fora perfeito e único, no seu género, acabado e tira, para sempre. Porque ela sabia como
inimitável, de que me importava guardar a eu fazia quando ia ao postigo e apenas punha
recordação, pura de toda a reles imitação, no o nariz de fora, para logo o meter para dentro
peito, sob pena de recorrer de vez em quando . um segundo depois. E não tentou sequer deter-
aos pretensos bons ofícios do chamado .praz~r -me, antes se foi sentar talvez ao lado da campa
solitário. Não me venham falar da sopeira, fia do cão, que em certo sentido era também a
mal em falar nela, isso foi muito antes, estava minha, e onde , seja dito de passagem, não
eu doente, talvez nunca tivesse havido sopeira, semeara relva, como eu pensara, mas toda
na minha vida. Molloy, ou a vida sem sopeira. a espécie de florzinhas multicores e de plantas
Tudo isto para frizar que o facto de eu ter herbáceas, seleccionadas de tal maneira que,
encontrado Lousse e mesmo de a ter frequen- sinto, quando umas se apagavam logo outras se
tado, em certo sentido, nada provava quanto ao acendiam. Deixei-lhe a bicicleta que me pusera
seu sexo. E eu bem quero continuar a crer de repente a detestar, suspeitando-a de ser o
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ma dúvida, devia fazer a guarda de não sei que
veiculo de qualquer agência maléfica e a causa trabalhos de escavação. Vejo uma brazeira. A
talvez das minhas mais recentes desgraças. Tê- essência do ar, como se diz, devia ser fresca.
-la-ia mesmo assim trazido comigo se tivesse Fui por via de consequência mais longe e ins-
sabido onde parava e se ainda estava em estado talei-me nos degraus de uma escada, de uma
de andar. Mas tais coisas não sabia eu. E tinha pobre, visto que não tinha porta ou que a
medo, ao ocupar-me delas, de me servir da porta não fechava, não sei bem. Muito antes
vozinha que dizia, Põe-te a mexer, Molloy, da madrugada aquela casa pobre começou a
agarra nas muletas e põe-te a mexer, e que eu esvaziar-se. Pessoas desceram a escada. Gru-
levara tanto tempo a compreender, porque ha- dei-me contra a parede. Não me prestaram
via muito que a ouvia. E talvez a compreendesse atenção, ninguém me fez mal. Também eu aca-
de través, mas compreendia-a e essa era a bei por sair, quando julguei prudente, e vagueei
novidade. E parecia-me também que essa par- pela cidade, à procura de qualquer monumento
tida não era forçosamente definitiva, e que meu conhecido, que permitisse dizer, Estou na
poderia trazer-me de novo, através de anéis minha cidade, no fim de contas, tenho estado
complexos e informes, ao seu lar, um dia. E sempre nela. A cidade despertava, as soleiras
talvez ainda não esteja de todo no fim da mi- animavam-se, o barulho atingia jã um volume
nha corrida. Na rua fazia vento, era outro muito respeitâvel. Porém, visando uma estreita
mundo. Não sabendo onde estava nem por passagem entre dois altos imóveis olhei à volta,
consequência que direcção tinha interesse em e esgueirei-me por ela adentro. Apenas peque-
tomar, tomei a direcção do vento. E quando nas janelas davam para ela, de um lado e outro,
bem suspenso entre as muletas me atirava para uma em cada andar. Dispostas simetricamente
a frente, sentia que ele me ajudava, esse ven- enfrentavam-se. Eram sem qualquer dúvida as
tinho que soprava sabia lã de que bairro. E janelas das retretes. Existem mesmo assim de
quanto às estrelas, não me falem nelas, dis- vez em quando coisas que se nos impõem ao
tingo-as mal e não sei decifrá-Ias, não obstante entendimento com a força de axiomas, sem
os meus estudos de astronomia. Entrei porém que saibamos porquê. A passagem não tinha
no primeiro abrigo que encontrei e ai me deixei saida, portanto não era uma verdadeira pas-
estar até de madrugada, porque sabia que o sagem mas um beco sem saída, Na extremi-
primeiro policia não deixaria de me barrar o dade tinha dois prolongamentos, não, não é
caminho e de me perguntar o que fazia por esta a palavra exacta, um em face do outro,
ali, pergunta para que confesso nunca consegui juncados ambos de detritos diversos e de excre-
encontrar a boa resposta. Mas aquele não devia mentos, de cão e de dono, uns secos e inodoros,
tratar-se de um verdadeiro abrigo e eu não outros ainda húmidos. Ah estes papéis ninguém
fiquei lã até de madrugada, porque um homem mais lerá, talvez ninguém tenha lido. Ali com
entrou nele pouco depois de mim e correu certeza se fornicava de noite e se trocavam
comigo. E não obstante havia à vontade lugar juras de amor. Meti-me num dos recantos, nem
para dois. Era julgo uma espécie de guarda mais, e apoiei-me contra a parede. Teria pre-
nocturno, tratava-se de um homem sem nenhu-
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ferido estender-me e nada me dizia que o não cidências, e a morte, essa, não me espantaria,
fizesse. Mas de momento contentava-me em deve ser também uma espécie de reincidência.
apoiar-me contra a parede, os pés longe da Disse já que o vento amainara? Uma chuva
parede, numa postura deslizante, mas com ou- miúda que cai, afasta de certa maneira toda a
tros pontos de apoio, as extremidades das mu- ideia de vento. Tenho joelhos enormes, acabo
letas. Mas alguns minutos mais t arde atr avessei de os ver, ao levantar-me um instante. Ambas
o beco para ir para outra capela, pois ent ão, as minhas pernas são hirtas como a justiça e
onde me parecia que estaria um pouco melhor , e não obstante levanto-me de vez em quando.
aí me pus na mesma posição de hipotenusa. E a O que é que vocês querem? Assim de vez em
princípio pareceu-me que estava com efeito quando recordarei a minha existência actual
um pouco melho r . Porém adquiri a certeza da qual a que narro não pode dar senão uma
de que não era o caso. Caía uma chuva fina e p.álida ideia . Mas de longe a longe somente, a
tirei o chapéu para que a pud esse gozar no fim de que se possa dizer, se for caso disso
crânio todo enrugado e gretado e a escaldar, Será realmente possível que aquilo ainda viva';
a escaldar. Mas tirei-o também por que ele me Ou então, Mas descansem, é um diário íntimo
entrava pela nuca dentro, por causa da resis- está aqui está a acabar. Que tenha joelhos enor~
tência da parede. Tinha portanto duas boas mes, que me levante ainda de vez em quando, não
razões para o tirar e não eram demais, uma só ~e vê muito bem à primeira vista que significado
nunca me teria bastado para me decidir creio ISSO possa t er. O que me dá ainda mais vontade
eu. Atirei-o fora com um gesto negligente e de me exibir. Saído portanto enfim do beco sem
generoso e ele voltou para mim, na ponta do saída, onde metade de pé metade deitado aca-
respectivo cordão ou atacador, e após alguns bava talvez de fazer uma soneca, porque essa
sobressaltos ficou imóvel, contra a minha era a minha hora para isso, tendo amainado o
ilharga. Pus-me então a reflectir, isto é, a es- vento, dirigi-me, não caiam, para o sol, à falta
cutar com mais força. Poucas probabilidades de melhor. Ou antes para o quarto menos
de me encontrarem ali, estava tranquilo por sombrio do céu que uma vasta nuvem cobria
todo o tempo que pudesse aguentar a tranqui- do zénite aos horizontes. Dessa nuvem é que
lidade. O espaço de um momento encarei a caia a chuva a que tenho feito alusão. Vejam
possibilidade de me instalar, de fazer ali o meu como tudo se equivale. E quanto a decidir qual
jazigo e o meu refúgio, o espaço de um mo- quarto do céu era menos sombrio, não era nada
mento. Tirei do bolso o canivete para cortar fácil. Porque à primeira vista o céu era uni-
legumes e apliquei-me a abrir com ele o pulso. formemente sombrio. Porém, dando-me ao tra-
Porém, a dor não tardou a vencer-me. Gritei balho, porque na vida eu dava-me volta e meia
primeiro, depois parei, fechei o canivete e tornei ao trabalho, cheguei a um resultado, isto é,
a metê-lo no bolso. A minha decepção não foi tomei uma decisão, a esse respeito. O que me
muito grande, no fundo nunca esperara outro permitiu retomar o meu caminho, dizendo para
resultado. Ora ai estão Sempre me entristeceu comigo, Vou em direcção ao sol, isto é, em
reincidir, mas a vida, dír-se-ía, é feita de rein- princípio para leste, ou talvez sudeste, porque

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já não estou na casa de Lousse, mas de novo muito mais depressa. Sem afastar a hipótese
em cheio na harmonia pré-estabelecida, que de uma recaída em passagens meticulosas e fe-
produz uma música tão suave, que é uma dorentas. Mas que por sua vez darão nasci-
música tão suave, para quem sabe ouvir. As mento a grandes frescos, pincelados com re-
pessoas iam e vinham com passo as mais das pugnância. Ao homem mensura é indispensável
vezes irritado e precipitado, quer ao abrigo de o estafe. Eis-me portanto sozinho por minha
guarda-chuvas, quer sob a protecção talvez um vez debaixo do alpendre. Não esperava que
pouco menos eficaz de capotes impermeáveis. viessem ali pôr-se, a meu lado, e não obstante
E via também quem se refugiara debaixo de não excluía essa possibilidade. Eis uma boa
árvores e de arcadas. E entre os que, mais cora- caricatura do meu estado de espírito naquele
josos ou mais frágeis, iam e vinham, e entre momento. Resultado, deixei-me estar onde es-
os que tinham parado para se encharcarem tava. Eu trouxera de casa de Lousse alguma
menos, eram numerosos os que para si diziam, baixela, oh não muita coisa, na maior parte
Faria melhor se fizesse como eles, entendendo colheres de café massiças, e além delas objectos
por eles a categoria de que não faziam parte, miúdos de que não alcançava a utilidade mas
pelo menos suponho. Como também devia haver que pareciam dever ter grande valor. Entre
muitos que se felicitavam pela maneira como estes últimos um havia que volta e meia ainda
sabiam fazer as coisas, vociferando ao mesmo hoje me persegue. Compunha-se de dois XX
tempo contra o mau tempo que os obrigava reunidos, ao nível da intersecção, por uma
a recorrer a essa ciência. Vendo porém um barra, e parecia-se com uma minúscula cábrea,
jovem ancião de aspecto miserável, tiritando com esta única diferença porém: os XX da ver-
sozinho debaixo de um pequeno alpendre, re- dadeira cábrea não são XX perfeitos, mas trun-
cordei-me de-súbito do projecto concebido no cados ao alto, ao passo que os XX do pequeno
dia do meu encontro com Lousse e com o cão objecto de que falo eram perfeitos, isto é,
e que esse encontro precisamente me impedira compostos cada um de dois VV idênticos, um
de levar a cabo. Fui portanto postar-me ao superior aberto para cima, aliás como todos
lado do velhinho, tomando, assim esperava, o os VV, e outro inferior aberto para baixo ou
ar de quem se diz, Aquele fulano é um finório, mais precisamente de quatro VV rigorosamente
vou fazer como ele. Porém, antes que tivesse semelhantes, os dois que acabo de nomear e
tido tempo de lhe dirigir a palavra, que eu ainda outros dois um à direita, outro à esquer-
desejava natural e por consequência não ime- da, tendo a abertura respectivamente para a
diata, o fulano partiu debaixo da chuva e afas- direita e para esquerda. Talvez seja porém
tou-se. Porque se tratava de uma palavra sus- deslocado falar aqui de direito e de esquerdo, de
ceptível, pelo conteúdo, se não de ofender pelo inferior e de superior. Porque esse pequeno
menos de espantar. E é por isso que importava objecto a bem dizer não parecia ter base, antes
colocá-la no devido momento e num tom ajus- se mantinha com igual estabilidade sobre qual-
tado. Peço desculpa de tantos pormenores, mas quer das suas quatro .bases e sem nada mudar
daqui a bocado andaremos mais depressa, ao seu aspecto, o que não é o caso da verdadeira
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cábrea. Este estranho instrumento, tenho-o sempre presente ao espírito, e o desejo de saber
ainda, julgo, em qualquer sítio, não tenho nunca se me encontrava na sua vizinhança, começa-
podido resolver-me, mesmo no extremo da minha vam a estar menos um e outro, talvez por causa
necessidade, a trocá-lo por dinheiro, porque não das pratas que trazia no bolso, mas não creio,
conseguia compreender para que podia ele ser- e além disso também porque se tratava de
vir nem mesmo esboçar uma hipótese a esse pr eocupações muito antigas e o espírito não
respeito. E de tempos a tempos tirava-o do pode estar sempre a remoer as mesmas preocu-
bolso, com um olhar espantado e não direi pações, antes tem necessidade de mudar de vez
afectuoso, porque eu era incapaz de afeição. em quando de preocupações, a fim de poder
Mas durante certo tempo inspirou-me, creio, ret omar as antigas preocupações no momento
uma espécie de veneração, porque eu tinha por devido, com acrescido vigor. Mas será o caso de
certo que não se tratava de um objecto de falar aqui de preocupações antigas e de novas?
virtude, antes tinha uma função das mais es- Penso que não. Mas ser-me-ia difícil fazer a
pecíficas e que sempre me permaneceria es- prova disso. O que posso afirmar sem receio
condida. Podia portanto interrogá-lo ínterminà- de - sem receio, é que se me tornava indife-
velmente e sem perigo. Porque nada saber, nada rente nomeadamente saber em que cidade me
é, nada querer saber também não, mas nada encontrava e se iria em breve ter com a minha
poder saber, saber nada poder saber, eis por mãe a fim de resolver o assunto que nos inte-
onde passa a paz, na alma do investigador ressava. E até a natureza desse assunto perdia,
negligente. l!: então qUE; começa a verdadeira para mim, a consistência, sem contudo se
divisão, de vinte e dois por sete por exemplo, dissipar inteiramente. Porque não se tratava
e que os cadernos se enchem finalment e de de um assunto sem importância, e eu fazia
verdadeiros algarismos. Porém, desejaria nada questão na coisa. Toda a minha vida, creio, eu
afirmar a este respeito. O que pelo contrário tinha feito questão na coisa. Sim senhor, na
me parece inegável, é que, vencido pela evi- medida em que podia fazer questão no quer
dência, melhor por uma muito forte probabili- que fosse, ao longo desta vidinha, tinha feito
dade, saí de debaixo do alpendre e pus-me a questão em resolver esse assunto entre minha
balouçar lentamente para a frent e, através dos mãe e eu, mas não tinha conseguido fazê-lo. E
ares. O andar de quem anda de muletas, é embora me fosse dizendo que o tempo urgia e
coisa que tem, devia te r, qualquer coisa de que em breve seria demasiado tarde, que talvez
exa ltant e. Porque é uma série de pequenos já fosse demasiado tarde, para proceder à re-
voos, à flor da te rra. Descola-se, aterra-se, por solução em questão, eu sentia que derivava
entre a multidão dos tépidos, que não ousam para outras preocupações, outros aspectos. E
levantar um pé da terra sem ter plantado nela bem mais do que saber em que cidade me en-
o outro. E mesmo a mais jovial corrida destes contrava tinha agora pressa de sair dela, mesmo
é menos aérea do que o meu coxear. Mas isto que se tratasse da certa, em que a minha mãe
são raciocinios, baseados na análise. E embora tanto esperara, e esperava ainda quem sabe.
a preocupação com a minha mãe me estivesse E parecia-me que andan do sempre em linha
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recta acabaria por sair dela, forçosamente. Foi
portante a isso que me apliquei, com toda a antes se fundem insensivelmente umas nas ou-
minha ciência, tendo em conta a deslocação tras. E eu nunca observei nada disso. Porém,
para a direita da débil claridade que me guiava. por mais longe que tenha ido, num ou noutro
E tanto e tão bem me obstinei que alcancei sentido, foi sempre o mesmo céu, e a mesma
realmente as muralhas, ao cair da noite, tendo terra, exactissimamente, que vi, dia após dia,
feito sem dúvida pelo menos um quarto de noite após noite. Por outro lado, se as regiões
círculo, por não ter sabido navegar. Mas é se fundem insensivelmente umas nas outras,
preciso dizer também que me não tinha poupado o que está por provar, é possível que eu tenha
a paragens, para fingir que descansava, porém saído muitas vezes da minha, julgando perma-
paragens de curta duração, porque me sentia necer nela. Mas preferia ater-me à minha sim-
esporeado, sem razão, sem dúvida. Porém, no ples crença, a que me dizia, Molloy, a tua região
campo outra justiça reina, e outros justiceiros, é de uma grande extensão, tu nunca saíste e
nos primeiros tempos. E transportas as mura- nunca sairás dela. E onde quer que vagueies,
lhas tive que reconhecer que o céu se desanu- entre os seus mais longínquos limites, será
viava, antes de revestir outra mortalha, a mor- sempre a mesma coisa, precisamente. O que
talha da noite. Sim senhor, a grande nuvem levaria a crer que as minhas deslocações nada
esfiapava-se, para deixar espreitar aqui e além deviam aos locais que faziam desaparecer, antes
um céu pálido e moribundo. E o sol, sem ser eram devidas a outra coisa, à roda invisível
exactamente visível como disco, dava sinal de si que me levava, por imprevisíveis sacões, da
por meio de chispas amarelas e cor-de-rosa, que fadiga ao repouso, e inversamente, por exemplo.
se atiravam em direcção ao zénite, caíam, Mas presentemente já não vagueio, em nenhuma
lançavam-se de novo, cada vez mais débeis parte, e até quase me não mexo, e não obstante
e mais claras, e, mal acesas, votadas à extinção. nada mudou. E os confins do meu quarto, do
Esse fenómeno, se me posso fiar na memória meu leito, do meu corpo, estão tão longe de
das minhas recordações, era característico da mim quanto os da minha região, ao tempo do
minha região. Talvez hoje a coisa se passe de meu esplendor. E o ciclo continua, aos sola-
outra maneira. Embora eu não veja muito bem, vancos, ciclo de fugas e de acampamentos, num
não tendo nunca saído da minha região, com Egipto sem limites, sem menino e sem mãe.
que direito falo das suas características. Não E quando olho as minhas mãos sobre o lençol,
senhor, fugir nunca fugi, e mesmo os limites que elas já se deleitam em amachucar, elas
da minha região, ignorava-os. Julgava-os po- não são minhas, menos que nunca minhas, não
rém bastante recuados. Mas tal crença não era tenho braços, formam um par, brincam com o
baseada em nada de sério. Porque se a minha lençol, são talvez brincadeiras amorosas, uma
região me tivesse acabado à mão da barca, vai talvez subir para cima da outra. Mas isso
tenho a impressão que uma espécie de gra- não dura muito, trago-as outra vez para ao pé
dação mo teria feito pressentir. Porque as de mim, e é o repouso. E com os pés sucede-me
regiões não acabam bruscamente, que eu saiba, o mesmo, às vezes, quando os vejo aos pés da
cama, um com dedos, outro sem. E isso é
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diversamente digno de nota. Porque as minhas celebrações, as congratulações, as alocuções,
pernas, que aqui me substituem os braços de há mas isso não é nada comparado à manhã, nem
bocado, estão presentemente ambas hirtas e de ao desporto. Evidentemente, pelas quatro ou
grande sensibilidade, e eu não deveria poder es- cinco horas há a equipa da noite, os vigilantes,
quecê-las como posso esquecer os braços, que que começam a agitar-se. Mas é já fim do dia, as
estão por assim dizer intactos. E no entanto sombras alongam-se, as paredes multiplicam-se,
esqueço-as e olho o par que se observa, longe de rasamos os muros, prudentemente curvados,
mim. Mas os meus pés, quando voltam a ser prontos à obsequiosidade, nada tendo a escon-
pés, não os aproximo de mim, porque não posso, der, escondendo-nos apenas por medo, não
ficam antes onde estão, longe, embora menos olhando nem para a direita nem para esquerda,
longe do que há bocado. Fim da advertência. escondendo-nos mas não ao ponto de excitar
Mas dir-se-ia que uma vez francamente saído a cólera, prontos a mostrarmo-nos, a sorrirmos,
da cidade, e tendo-me voltado para a olhar, a escutarmos, a rastejarmos, nauseabundos
numa parte do seu conjunto , dir-se-ia que nesse sem sermos pestilentos, menos ratos que sapos.
momento deveria ter chegado à conclusão sobre Depois é a verdadeira noite, também perigosa
se se tratava ou não da minha cidade. Nada mas favorável a quem a conheça, a quem saiba
disso, olhei-a em vão, e talvez sem de maneira abrir-se a ela com as flores ao sol, a quem seja
alguma a interrogar, e simplesmente para, ao também noite, de dia e de noite. Não, também
voltar-me, solicitar o destino. Talvez fingisse não é famosa, a noite, porém ao lado do dia
olhá-la, muito simplesmente. Não lamentava é famosa, e sobretudo ao lado da manhã é in-
ter perdido a bicicleta, não , na verdade não. discutivelmente famosa. Porque a depuração'
Não me repugnava demasiado avançar como que nela se prossegue é assegurada por técnicos,
disse, oscilando ao rés da te rra, na obscuridade, na maior parte. Eles só fazem isso, o grosso da
pelas veredas desertas do campo. E ia dizendo população não participa, preferindo dormir,
comigo mesmo que tinha poucas possibilida- tudo bem considerado. Lincha-se de dia, porque
des de ser inquietado e seria. antes eu a in- o sono é sagrado, e sobretudo de manhã, entre
quietar os outros, se me vissem. :m de manhã o pequeno almoço e o repasto do meio-dia.
que é preciso escondermo-nos. As pessoas acor- O meu primeiro cuidado portanto, ao cabo de
dam, frescas e bem dispostas, sedentas de algumas milhas na alvorada deserta, foi procu-
ordem, de beleza e justiça, exigindo a contra- rar um sítio onde dormir, porque o sono tam-
partida. Podem ter a certeza, das oito ou nove bém é uma espécie de protecção, por mais para-
até ao meio-dia, é a passagem perigosa. Mas doxal que isso possa parecer. Porque o sono,
por volta do meio-dia a coisa mingua, os mais se é certo que excita o instinto de captura,
implacáveis estão saciados, recolhem a casa, parece apaziguar o da matança imediata e san-
nem tudo é perfeito mas trabalhou-se bem, grenta, qualquer caçador vo-lo pode dizer. Para
houve trânsfugas mas tão inofensivos, cada o monstro que se desloca, ou que espreita,
um conta os seus tostões. Ao princípio da tarde agachado no seu velhacouto, não há piedade,
a coisa pode recomeçar, após o banquete, as ao passo que aquele que se deixa surpreender

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a dormir tem possibilidades de beneficiar de metade a dormir, metade a suspirar, gemendo
outros sentimentos, que fazem baixar o canhão e ri ndo, ou passando as mãos pelo corpo, a ver
e embainhar a espada. Porque o caçador no se não havia modificação, que o frenesim ma-
fundo não passa de um fraco e de um senti- t inal se acalmasse. Depois retomei as minhas
mental, com reservas de ternura e de com- espirais. E quanto a dizer no que dei, ou para
paixão, que não pedem outra coisa senão trans- onde ia, nos meses se não nos anos que se
bordar. E é precisamente ao doce sono do esgo- segu ir am, não tenho essa intenção. Porque
tamento, ou do terror, que muita fera de mau começo a estar farto destas invencionices e há
cariz, e digna de exterminação, deve o facto out ras que me reclamam. Porém, a fim de
de poder esperar tranquilamente o fim dos enegrecer mais umas quantas páginas dir-vos-ei
seus dias no jardim zoológico, onde muitas que passei alguns tempos à beira-mar, sem
vezes estala a inocente alegria das crianças e a incindentes. Há pessoas a quem, o mar não
mais ajuizada dos adultos, em domingos e quadra, preferem a montanha ou a planície.
dias de festa. E no que pessoalmente me diz Pelo que me toca estou lá tão bem como noutro
respeito, sempre preferi a escravatura à morte, sítio qualquer. Grande parte da minha vida
ou antes à matança. Porque a morte é uma arrebentou diante dessa arripiada imensidade,
condição de que nunca logrei fazer uma repre- ao rumor das vagas grandes e pequenas e das
sentação satisfatória, e que não pode portanto garras da ressaca. Que digo eu diante, no
entrar legitimamente em linha de conta, no mesmo terreno unha com carne, estendido na
inventário dos males e dos bens. Ao passo que areia ou dentro de uma gruta. Na areia então
sobre a matança eu tinha noções que me ins- estava no meu elemento, deixando-a escorrer
piravam confiança, com razão ou sem ela, e às por entre os dedos, cavando buracos que tapava
quais me parecia lícito referir-me, em certas logo a seguir, quando eles não se tapavam
circunstâncias. Oh não eram noções como as sozinhos, atirando-a ao ar com ambas as mãos,
vossas, eram noções como as minhas, todas r ebolando nela. E na gruta, onde de noite en-
sobressaltos, suores e tremores, onde não en- travam as luzes dos faróis, eu tinha artes de
trava um átomo de bom senso ou de sangue conseguir sentir-me lá tão bem como noutro
frio. Porém eu contentava-me com elas. Mas sítio qualquer. E que os meus domínios não
para vos dar uma ideia de até onde ia a con- fossem. mais longe, pelo menos de um lado, não
fusão das minhas ideias sobre a morte, dir- era coisa que me desagradasse por aí além.
-vos-ei francamente que não excluía a possibi- E sentir que havia pelo menos um sentido para
lidade de ela ser ainda pior do que a vida, como onde não podia ir, sem me encharcar primeiro
condição, entenda-se. Eu achava portanto nor- e me afogar depois, era-me grato. Porque eu
malissimo não me precipitar no seu seio e, sempre me disse, Primeiro aprende a andar, de-
quando me esquecia ao ponto de o tentar, pois dá-te ao luxo de ter lições de natação. Po-
deter-me a tempo. :m a minha única desculpa. ré m, não fiquem a imaginar que a minha terra
Deixei-me escorregar portanto provàvelmente se detinha no litoral, seria um erro crasso. Por-
para dentro de um buraco qualquer e esperei, que a minha terra era também omar, mais os

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respectivos recifes e ilhas longínquas, e abismos podia muito bem acontecer que fossem sempre
ocultos. E aí também já tinha dado as minhas as mesmas quatro pedras a circular. E, neste
voltas, numa espécie de esquife sem remos, e cas o, longe de chupar as dezasseis pedras uma
até tinha construído um pangaio. E muitas ve- de cada vez, não chupava na realidade senão
zes me pergunto se cheguei realmente a voltar, quatro, sempre as mesmas, uma de cada vez.
desse passeio. Porque se me vejo meter-me ao Por ém, eu misturava-as muito bem dentro dos
mar, e a vogar longo tempo sobre as ondas, não bolsos, antes da hora da chucha, e fazia isso,
distingo o regresso, a dança sobre os rochedos ant es de proceder às devidas transferências, na
à flor da água, e não ouço ranger na praia a esper ança de generalizar a circulação das pe-
flébil quilha. Aproveitei esta estadiazinha para dras , de bolso para bolso. Mas esta não era
me fornecer bem de pedrinhas para chupar. a pior das soluções com que um homem como
Eram calhaus é o que eram, mas eu chamo-lhes eu se não podia contentar por muito tempo.
pedrinhas. Sim senhor, dessa vez, armazenei Pus-me pois à procura de outra coisa. E antes
uma reserva importante. Distribuí-as com equi- de mais perguntei-me se não faria melhor
dade pelos meus quatro bolsos e chupei-as uma t r ansferi r as pedras quatro a quatro, em vez
de cada vez. Isto criava um problema que re- de uma a uma, isto é, enquanto chupava, tirar
solvi em primeira mão da seguinte maneira. Eu as três pedras que ficavam no bolso direito do
tinha suponhamos dezasseis pedras, das quais capot e e pôr no seu lugar as quatro do bolso
quatro em cada um dos meus bolsos que vinham dir eito das calças, e no lugar destas as quatro
a ser os dois bolsos das calças e os dois bolsos do bolso esquerdo das calças, no lugar destas
do capote. Tirando uma pedra do bolso direito as quatro do bolso esquerdo do capote, e final-
do capote, e metendo-a na boca, substituía-a mente no lugar destas últimas as três do
no bolso direito do capote por uma pedra do bolso direito do capote mais a que, assim que
bolso direito das calças, a qual substituía por acabasse de a chupar, estava na minha boca.
uma pedra do bolso esquerdo do capote, a qual Sim senhor, parecia-me a princípio que proce-
substituía pela pedra que tinha na boca, assim dendo assim chegaria a melhor resultado.
que acabava de a chupar. Desta maneira havia Por ém, pensando bem, tive que mudar de opio
sempre quatro pedras em cada um dos bolsos, nião, e confessar a mim mesmo que a circu-
porém de maneira alguma as mesmas pedras. lação das pedras por grupos de quatro vinha
E quando me voltava a vontade de chupar a dar exactamente no mesmo que a respectiva
abastecia-me no bolso direito do capote, com circulação por unidades. Porque se eu estava
a certeza absoluta de não ir lá buscar a mesma segur o de encontrar todas as vezes, no bolso
pedra que da última vez. E, sem deixar de . direito do capote, quatro pedras totalmente
chupar, tornava a arrumar as outras pedras, diferentes das que aí as tinham imediata-
como acabo de explicar. E assim sucessiva- mente precedido, não subsistia menos a possi-
mente. Mas esta solução apenas me satisfazia bilidade de ir cair sempre na mesma pedra, no
cinquenta por cento. Porque me não escapava interi or de cada grupo de quatro, e que por
que, por efeito de um extraordinário acaso, consequência, em lugar de chupar as dezasseis
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uma de cada vez, como desejava, não chupo mar, as dezasseis pedras espalhadas diante dos
efectivamente senão quatro, sempre as mesmas, meus olhos, eu contemplava estas com cólera e
uma de cada vez. Era preciso portanto pro- preplexidade. Porque se me sentava dificilmente
curar algures que não no modo de circulação. numa cadeira, ou numa poltrona, por causa da
Porque fosse qual fosse a maneira de fazer cir- minha perna hirta não sei se compreendem, sen-
cular as pedras, caía sempre no mesmo inconve- tava-me fàcilmente por terra, por mor da minha
niente. Era evidente que aumentando o número perna hirta e da minha perna a ficar hirta, por-
dos meus bolsos aumentava automàticamente as que foi por essa época que a minha perna boa,
possibilidades de tirar proveito das minhas boa no sentido de não ser hirta, se pôs a ficar
pedras como pretendia, isto é, uma após outra hirta. Era-me indispensável um suporte debaixo
até ao esgotamento do número. Tivesse eu tido do jarrete, não sei se compreendem, e mesmo
oito bolsos, em lugar dos quatro que tinha, e debaixo de todo o comprimento da perna, o
o mais malevolente acaso não teria conseguido suporte da terra. E enquanto eu comtemplava
impedir que das minhas dezasseis pedras chu- assim as minhas pedras, ruminando combina-
passe pelo menos oito, uma de cada vez. Para ções tão defeituosas umas como as outras, e
dizer tudo ter-me-iam sido necessários dezasseis esmagando punhados de areia, de maneira que
bolsos para ficar completamente tranquilo. E a areia me escorria por entre os dedos e tor-
durante muito tempo ative-me a esta conclusão, nava a cair sobre a praia, sim, enquanto eu
qUE) a menos de ter dezasseis bolsos, cada um conservava assim alerta o espírito e uma parte
com a sua pedra, não chegaria nunca ao fim do corpo, um dia de súbito, num clarão, veio-me
que me propusera, a menos de um acaso extra- esta àquele: poderia talvez alcançar os meus
ordinário. E se concebível fosse dobrar o nú- fins sem aumentar o número dos meus bolsos,
mero dos meus bolsos, nem que fosse dividindo nem reduzir o das minhas pedras, mas muito
cada bolso em dois , com a ajuda suponhamos de simplesmente sacrificando o princípio da ar-
uns quantos alfinetes de dama, quadruplicá-los rumação. Esta proposição, que se pôs de re-
parecia-me ultrapassar as minhas possibili- pente a cantar dentro de mim, como um versí-
dades. E eu não estava interessado em ter culo de Isaías, ou de Jeremias, levei algum
tanto trabalho por uma meia medida. Porque tempo a penetrar-lhe a significação, e nomea-
eu começava a perder o sentido da medida, damente permaneceu-me muita tempo obscuro
desde o tempo em que me metera nessa história, o termo arrumação, que desconhecia de todo.
e a dizer de mim para .comigo, H á-de ser tudo Mas ao fim e ao cabo julguei adivinhar que o
ou nada. E se por um instante encarei a possi- termo arrumação não podia significar nem
bilidade de estabelecer uma proporção mais outra coisa, nem melhor, do que a repartição
equitativa entre as minhas pedras e os meus das dezasseis pedras em quatro grupos de
bolsos reconduzindo estes ao número daquelas, quatro, cada grupo em cada bolso, e que fora
não foi mais do que um instante. Porque isso a recusa de encarar outra repartição que não
teria equivalido a confessar-me vencido. E fosse esta que falseara todos os meus cálculos
sentado na areia da praia, bem em frente ao e tornara o problema prõpriamente insolúvel.

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ECA
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I BIBLIOTECA
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E foi a partir dessa interpretação, fosse boa ou bolso esquerdo do capote. E assim sucessiva-
não, que consegui por fim chegar a uma so- mente até que o bolso direito do capote fique
lução, solução de certo pouco elegante, porém vazio (à parte o seu conteúdo habitual e de
sólida, sólida. Agora, que existissem, que exis- passagem) e que as seis pedras que acabo de
tam mesmo ainda, para esse problema outras chupar uma atrás de outra, estejam todas no
soluções, tão sólidas quanto a que eu vou tentar bolso esquerdo do capote. Detendo-me então,
descrever, porém mais elegantes, quero acre- e concentrando-me, porque se trata de não
ditá-lo, acredito mesmo firmemente. E creio fazer um disparate, transfiro par? o bolso
também que com um pouco mais. de teimosia, direito do capote, onde já não há pedras, as
um pouco mais da resistência, teria eu próprio cinco pedras do bolso direito das calças, as
podido encontrá-las. Mas eu estava fatigado, quais substituo pelas seis pedras do bolso
fatigado, e contentei-me vergonhosamente com esquerdo do capote. Eis portanto que já não
a primeira solução que o fosse, para este há outra vez pedras no bolso esquerdo do capote,
problema. E sem recapitular as fases, os pa- ao passo que o bolso direito do capote está
vores, por que passei antes de chegar a ela, outra vez cheiinho delas, e como deve ser, isto
aqui a têm, a minha solução, em toda a sua é, de pedras diferentes das que acabo de chupar
hediondez. Não havia mais nada (mais nada!) e que me ponho logo por sua vez a chupar, uma
a fazer senão pôr, para começar, por exemplo, após outra, e a transferir à medida que as
seis pedras no bolso direito do capote, porque chupo para o bolso esquerdo do capote, estando
é sempre esse o bolso que fornece, cinco no absolutamente certo, tanto quanto se pode estar
bolso direito das calças, e por fim cinco no nesta ordem de ideias, de que não chupo as
bolso esquerdo das calças, o que dava conta mesmas pedras de há bocado, mas outras. E
certa, duas vezes cinco mais seis dezasseis, e quando o bolso direito do capote está de novo
nenhuma, porque não restava mais nenhuma, vazio (de pedras), e que as cinco que acabo de
no bolso esquerdo do capote, que por instantes chupar se encontram todas sem excepção no
ficava vazio, vazio de pedras bem entendido, bolso esquerdo do capote, procedo então à
porque o seu conteúdo habitual lá permanecia, mesma redistribuição de há bocado, ou a uma
assim como os objectos de passagem. Porque redistribuição análoga, isto é, transfiro para o
onde julgam vocês que eu escondia o meu bolso direito do capote, outra vez disponível,
canivete para cortar legumes, a minha baixela, as cinco pedras do bolso direito das calças, as
a minha buzina, e o resto, que ainda não no- quais substituo pelas cinco pedras do bolso
meei, que não nomearei talvez nunca? Muito esquerdo do capote. E eis-me pronto a recome-
bem. Agora posso começar a chupar. Olhem çar. Devo continuar? Não, que ideia, porque é
bem para mim. Tiro uma pedra do bolso di- claro claríssimo clarinete que ao cabo da pri-
reito do capote, chupo-a muito bem, não a meira série, de chupadelas e de transferências,
chupo mais, meto-a no bolso esquerdo do ca- a situação inicial se terá restabelecido, quer
pote, o vazio (de pedras). Tiro uma segunda dizer, terei de novo as seis primeiras pedras no
do bolso direito do capote, chupo-a, meto-a no bolso devedor, as cinco seguintes no bolso di-

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reito das minhas velhas calças e finalmente as bolsos, simetricamente dispostos, cada um com
cinco últimas no bolso esquerdo das mesmas, a sua pedra. Então sim, não teria necessidade
e as minhas dezasseis pedras terão sido chu- nem de números nem de reflexão, mas apenas,
padas numa sucessão impecável uma primeira enquanto chupava uma dada pedra, de fazer
vez, sem que uma única tenha ficado por chupar. avançar as outras quinze, mas dentro das
Verdade é que recomeçando não podia de ma- minhas possibilidades, e de ir buscar sempre
neira alguma esperar chupar as pedras . na ao mesmo bolso quando me desse na gana
mesma ordem que da primeira vez e que a chupar. Assim sim, ficaria tranquilo, não so-
primeira, a sétima e a décima segunda do mente no interior de cada ciclo separadamente
primeiro ciclo por exemplo podiam muito bem considerado, mas igualmente em relação ao
não ser mais do que a sexta, a décima primeira e conjunto dos ciclos, fossem estes infinitos. Po-
a décima sexta respectivamente do segundo, rém, a minha solução, por muito imperfeita que
isto a ver as coisas pelo pior. Porém, isso era fosse, estava até todo contente por tê-la encon-
um inconveniente que não podia evitar. E se trado sozinho, sim senhor, todo contente. E se
nos ciclos tomados em conjunto devia reinar era menos sólida do que julgara, no primeiro
uma confusão inextricável, ao menos no inte- entusiasmo da descoberta, a sua deselegância
rior de cada ciclo estava eu tranquilo, enfim permanecia inteira. E era sobretudo deselegante
tão tranquilo quanto se pode estar, neste género nisto, em minha opinião claro, em que a repar-
de actividade. Porque para que cada ciclo fosse tição desigual das pedras me era penosa, fisi-
semelhante, no que respeita à sucessão das camente. 1!.: verdade que uma espécie de equi-
pedras na minha boca, e sabe Deus se eu dava líbrio se estabelecia a um dado momento, no
importância a isso, ter-me-iam sido precisos princípio de cada ciclo, a saber, após a terceira
ou dezasseis bolsos ou pedras numeradas. E chupadela e antes da quarta, mas isso não
a mandar fazer mais doze bolsos ou numerar durava muito. E o resto do tempo sentia o
as pedras, eu preferia contentar-me com a peso das pedras que me puxava, ora para a
tranquilidade muito relativa que gozava no in- direita, ora para a esquerda. Era portanto
terior de cada ciclo separadamente considerado. mais do que a um princípio que eu renunciava,
Porque numerar as pedras não seria tudo, ter- ao renunciar à arrumação, era a uma necessi-
-me-ia sido ainda preciso, todas as vezes que dade física. Porém, chupar as pedras como
punha uma pedra na boca, lembrar-me do disse, não de qualquer maneira, mas com mé-
número certo e procurar nos bolsos. O que me todo, era também, creio, uma necessidade física.
teria feito passar o gosto da pedra, em muito Eram portanto duas necessidades físicas que
pouco tempo. Porque nunca teria a certeza de se confrontavam, inconciliáveis. São coisas que
me não ter enganado, a menos que mantivesse acontecem. No fundo, porém, estava-me absolu-
uma espécie de registo, onde apontasse as mi- tamente nas tintas por me sentir em desequilí-
nhas ricas pedras à medida que as fosse chu- brio, puxado para a direita, para a esquerda,
pando. Do que me julgava incapaz. Não senhor, para a frente, para trás, como também me era
a única solução perfeita teria sido os doze perfeitamente igual ao litro chupar uma pedra

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diferente de cada vez ou sempre a mesma, fosse porque esta trata-se da minha última, da minha
pelos séculos dos séculos. Porque ao fim e ao antepenúltima, a última nunca existirá, à beira-
cabo elas tinham todas exactamente o mesmo -mar. Seja como for, vejo uma mulher que,
gosto. E se eu tinha juntado dezasseis, não era dirigindo-se embora para mim, pára de vez em
de maneira alguma para me encher de lastro quando e olha para as companheiras. Apertadas
desta ou daquela maneira, ou para as chupar como ovelhas umas contra as outras estas
uma de cada vez, mas simplesmente para ter vêem-na afastar-se e dirigem-lhe sinais de en-
uma pequena provisão, para não ter faltas. Mas corajamento, rindo-se sem dúvida, porque julgo
se tivesse faltas, no fundo também me estava ouvir rir, ao longe. Depois vejo-a de costas,
nas tintas para isso, quando já não tivesse ela arripia caminho e é agora para mim que
mais não tinha mais, não me sentiria com se dirige, timidamente, mas sem se deter. Mas
isso nem pior, nem melhor. E a solução eu confundo talvez numa só duas ocasiões, e
que acabei por adoptar foi mandar passear duas mulheres, uma que se dirige para mim,
todas as pedras, salvo uma, que guardava ora timidamente, seguida pelos gritos e pelos risos
num bolso, ora noutro, e que naturalmente não das companheiras, e a outra que se afasta, com
tardei a perder, ou a deitar fora, ou a dar, ou um andar até bastante decidido. Porque as
a engolir. Passava-se isto numa parte bastante pessoas que se dirigiam para mim, a maior
selvagem da costa. Lembro-me de não ter ai parte do tempo eu via-as chegar de longe, esta
sido seriamente molestado. O pontinho negro é uma das vantagens das praias. Via-as como
que eu era, na pálida imensidão das areias, como pontinhos negros ao longe, podia perfeitamente
querer-lhe mal? As pessoas aproximavam-se, fiscalizar-lhes manobras, dizendo para mim,
sim, mas para verem o que se tratava, se se Olha, mingua, ou Olha, aumenta. Sim, ser apa-
tratava de um objecto de valor, proveniente nhado desprevenido, era por assim dizer impos-
de um naufrágio e arrojado à praia pela tem- sível, porque muitas vezes também virava a
pestade. Mas assim que viam que o destroço cara para a areia. Vou confessar-vos uma coisa,
vivia, conveniente embora pobremente vestido, eu via melhor a beira-mar! Verdade, esquadri-
afastavam-se. Mulheres já velhas, e novas tam- nhando em todos os sentidos essas extensões
bém palavra de honra, vindas ali apanhar lenha, por assim dizer sem objecto, nem vertical, o
nos primeiros tempos, excitavam-se ao verem- meu olho bom funcionava melhor e quanto ao
-me. Mas eram sempre as mesmas e eu debalde mau havia dias em que também esse devia vol-
mudava de lugar, acabavam todas por saber tar-se do avesso. E não somente via melhor,
o que eu era e guardavam as suas distâncias. como me era menos difícil mascarar com um
Julgo que uma delas um dia, destacando-se das nome as raras coisas que via. Estas são algumas
companheiras, veio oferecer-me de comer e eu das vantagens e das desvantagens da beira-mar.
olhei-a sem responder, até que se retirou. Sim, Ou seria talvez eu quem mudava, porque não?
tenho impressão que se produziu por essa época E de manhã, na gruta, e mesmo algumas vezes
um incidente qualquer desse género. Mas estou de noite, quando soprava a tempestade, sentia-
talvez a confundir com outra estadia, anterior, -me sofrivelmente ao abrigo, dos elementos e
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dos seres. Mas aí também há um preço a pagar. guma vez negá-lo. Mas daí a afirmar que o mar
No chôco, nas grutas, também há um preço a vinha lavar os pés da minha cidade, há uma
pagar. E que se paga de boa mente, durante grande margem. E na parte que me cabe não
algum tempo, mas que se não pode pagar sem- me associarei nunca a tamanha perversão (da
pre. Porque comprar sempre a mesma coisa, verdade), a menos que a tal seja obrigado ou
uma miserável renda vitalícia, não é possível. venha a ter necessidade de que as coisas assim
E existem desgraçadamente outras necessidades sejam. E esse tal pântano conhecia-o eu
além da de apodrecer em paz, não é bem este alguma coisa, por nele ter arriscado com pre-
o termo, falo naturalmente de minha mãe, caução a vida, mais de uma vez, num período
cuja imagem, já há algum tempo em quaren- da minha vida muito mais rico em ilusões do
tena, recomeçava agora a trabalhar-me o es- que este que aqui alicerço, isto é, mais rico em
pírito. Eu tornei portanto a ganhar o interior, certas ilusões, mais pobre noutras. De maneira
porque a minha cidade não é precisamente à que não havia meio de abordar directamente
beira-mar, diga-se o que se disser a esse res- a minha cidade, por via marítima, antes era
peito. E para a ela ter acesso era preciso passar necessário desembarcar muito ao norte ou muito
pelo interior, pelo menos eu não conhecia outro ao sul e lançar-se uma pessoa às estradas,
caminho. Porém, entre a minha cidade e o mar imaginem, porque os caminhos de ferro exis-
havia uma espécie de pântano a respeito do tiam ainda apenas em estado de projecto, ima-
qual, tanto quanto me posso lembrar, e algumas ginem. E agora a minha progressão, sempre
das minhas recordações mergulham no passado lenta e penosa, era-o mais do que nunca, por
imediato, se continuava a discutir se se devia causa da minha perna 'Curta e hirta, aquela
drenar, sem dúvida por meio de canais, ou que já há muito tempo me parecia ter atingido
transformar numa vasta obra portuária, ou os limites da rigidez, mas vão-se mas é lixar,
dotar de cidades operárias construídas sobre ela tornava-se mas é mais hirta do que nunca,
estacas, explorar enfim de uma maneira ou coisa que teria julgado impossível, e ao mesmo
de outra. E simultâneamente ter-sé-ia suprimido tempo encurtava cada dia o seu bocado, mas
o escândalo que constituía, mesmo às portas sobretudo por causa da outra perna, .q ue tam-
de uma grande cidade, um pântano fétido e bém se ia tornando mais hirta, ela que tão
fumegante, onde se abismava todos os anos flexível -fora, mas não lhe dava para encurtar
um número incalculável de vidas humanas, as ainda, desgraçadamente. Porque quando as
estatísticas escapam-me neste momento e sem duas pernas encurtam ao mesmo tempo, e à
dúvida escapar-me-ão sempre, de tal maneira mesma cadência, a coisa não é terrível, longe
esse aspecto da questão me deixa indiferente. disso. Mas quando há uma que encurta, en-
E que tenham efectivamente começado os tra- quanto a outra lhe dá para ficar estacionária,
balhos e que algumas construções tenham mes- então a coisa começa a ser inquietante. Oh
mo podido resistir até aos nossos dias ao eu a bem dizer inquietar não me inquietava,
desencorajamento, aos fracassos, à lenta exter- mas ficava chateado, ora aí têm. Porque
minação dos efectivos e à inércia dos poderes compreendem entre os meus volteios e me-
públicos, não me passa sequer pela cabeça al- neios sabia lá que pé havia de pôr no chão.
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Procuremos um pouco de claridade neste dilema. -me sobre ela. Porque ela encurtava. não o
A perna já hirta, sigam-me bem, causava-me esqueçamos, ao passo que a outra, embora se
dores, bem entendido, e era portanto a outra tornasse hirta. ainda não encurtava, ou encur-
que normalmente me servia de base. ou de pi- tava com tal atraso em relação à camarada,
lar. Mas eis que esta última, sem dúvida pelo que era a mesma coisa que, era a mesma coisa
facto do respectivo enrijamento, que não ia que, estou perdido, não faz mal. Se ainda a
sem um certo pandemónio entre os nervos e pudesse dobrar, pelo joelho, ou mesmo pela
os tendões, começava a causar-me ainda mais anca, teria podido torná-la artificialmente tão
dores do que a outra. Que tragédia, assim eu cur ta como a outra, o tempo que bastasse para
me não lixe com ela. Porque ao sofrimento aterrar sobre a verdadeira curta, antes de re-
antigo, não sei se me compreendem, já eu estava tomar o impulso. Mas não podia! O quê? Do-
de certa maneira habituado, sim pois , de certa brá-la. E realmente como dobrá-la, se era hirta?
maneira. Porém ao novo , ainda que exactamente Eu era portanto obrigado a fazer trabalhar a
da mesma família, não tinha ainda tido tempo mesma perna que no passado, embora esta se
de me habituar. Não esqueçamos também que ti vesse tornado, no plano da sensação pelo
tendo eu uma perna má e além dessa outra, menos, a pior das duas e a que tinha mais
pràticamente boa, podia poupar aquela, e re- necessidade de ser poupada. Algumas vezes
duzir os seus e meus sofrimentos ao mínimo, ao é verdade, quando tinha a felicidade de dar com
máximo, servindo-me exclusivamente desta, uma estrada convenientemente arqueada, ou ao
graças às minhas ricas muletas. Porém, já nem tirar proveito de um fosso não profundo demais,
esse recurso tinha! Porque eu agora já não ou de qualquer outro desnível podendo servir
tinha uma perna má e outra pràticamente boa, para o caso, lá me arranjava para dar à perna
mas ambas más. E , na minha maneira de sentir, curta um temporário acréscimo e para a fazer
a pior era precisamente a que até então tinha trabalhar, no lugar da outra. Mas havia já tanto
sido boa, enfim relativamente boa, e da qual eu tempo que ela estava à boa vida que já nem
não tinha encaixado a alteração. De maneira que, sabia como se haver. E acho que uma rima de
num certo sentido, se assim quiserem, eu con- pratos me teria oferecido melhor sustentação
tinuava a ter uma perna má e uma perna boa, do que ela, ela que me sustentara quando
ou antes uma menos má , apenas presentemente eu era larva, tão bem. Aliás intervinha aqui,
a menos má já não era a mesma que no passado. isto é, quando eu explorava assim os acidentes
Era portanto sobre a má de antigamente que do terreno, outro elemento de desequilíbrio, re-
eu tinha muitas vezes vontade de me apoiar, firo-me às muletas, que deveriam ser uma curta
a meio dos meus passos de muleta. Porque se e outra comprida, para me impedirem de obli-
ela era extremamente sensível, era-o de qual- quar em relação à vertical. Não? Não sei. De
quer maneira menos do que a outra, ou era-o resto os cam inhos que se me ofereciam eram na
igualmente, se assim quiserem, mas não me sua maior parte pequenas veredas de floresta,
causava esse efeito, por virtude da sua anti- o que se compreende, em que as divergências de
guidade. Porém, não conseguia. O quê? Apoiar- nív el, se não faltavam , eram demasiado confu-

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SaB, e seguiam traçados demasiado erráticos me interessava, e a minha mãe, poderia cu
para poderem ser-me úteis. Porém, no fundo, fi- esperar que ela me continuasse a esperar, há
zesse-me a perna greve ou tivesse a infeliz que tanto tempo? E a minha perna, as minhas
trabalhar, haveria assim tão grande diferença, pernas. Mas as ideias de suicídio tinham
no que se refere às dores? Não creio. Porque ~ouco domínio sobre mim, já não sei porquê,
a que nada fazia, o seu sofrimento era cons- Julgava sabê-lo, mas vejo que não. A ideia
tante e monótono. Ao passo que a que se obri- de estrangulamento em particular, por mais
gava a esse suplemento de dor que era o traba- tenta;dora que fosse, livrei-me sempre dela,
lho conhecia essa diminuição de sofrimento depois de curta luta. Vou dizer-vos uma
que era o trabalho suspenso, o espaço de. um coisa, nunca tive nada nas vias respiratórias,
instante. Mas eu sou humano, acho, e a mmha à parte naturalmente as misérias inerentes
progressão ressentia-se disso, de~se est.ado d~ a esse sistema. Verdade, os dias em que o
coisas, e de lenta e penosa que tmha sido ate ar, que ao que parece contém oxigénio, parecia
ali, tenha eu dito o que tiver, transformava-se, já não querer descer em mim nem, lá descendo
salvo o vosso respeito, em verdadeiro calvário, por fim, deixar-se expulsar, podia perfeitamente
sem limite de estações nem esperança de cruci- contá-los, teria podido contá-los. Ah sim a
ficação. Digo isto sem falsa modéstia, e sem minha asma, quantas vezes não tive a tentação
Simão, e obrigando-me a paragens frequentes. de lhe pôr fim, cortando uma carótida ou a
Sim senhor, a minha progressão obrigava-me traqueia-artéria. Mas aguentei firme. O barulho
a parar cada vez mais frequentemente, era este traía-me, ficava violeta. Isso dava-me sobre-
o único meio de progredir, parar. E embora tudo de noite, não sabia se devia ficar contente
não entre nas minhas vacilantes intenções tra- .ou descontente. Porque se é verdade que
tar a fundo, como não obstante merecem, esses de noite a mudança de cor tem muito menos
breves instantes de expiação imemorial, vou im?or~ânc~a, por outro lado o mais pequeno
dedicar-lhes no entanto algumas palavras, vou ruído ínabítual faz-se notar melhor, em virtude
ter essa bondade, a fim de que a minha narra- do silêncio da noite. Mas isso não passavam
tiva, de resto tão clara, não acabe na obscuri- de crises, e as crises são coisa pouca, compa-
.
dade , na obscuridade dessas imensas florestas, rado a tudo o que nunca se detém que não
dessas folhagens gigantes, em que coxeio, es- conhece fluxo nem refluxo, de superfície de
cuto, me estendo ao comprido, me levanto, chumbo, e infernais profundidades. Nem uma
escuto, coxeio, perguntando-me por vezes, terei palavra, nem uma palavra contra as cri ses,
necessidade de assinalar, se alguma vez torna- ~ue me !Ue empolgavam, me sacudiam e por
rei a ver o dia odiado, enfim pouco amado, fim gentIlmente me atiravam fora, sem dizer
pàlidamente estíraçado entre os derradeiros água vai. E vai eu enrolava o sobretudo à
troncos, e a minha mãe, para tratarmos dos volta da cabeça, o que abafava o obsceno ruído
nossos assuntos, e se não faria melhor, enfim do esganamento, ou camuflava este com um
igualmente bem, pegar numa liana e enforcar- acesso de tosse, universalmente admitido e apro-
-me num ramo. Porque o dia, francamente, não vado e cujo único inconveniente é corrermos
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o r isco de provocar a compaixão. E talvez seja mal. Quer por não lhes ter dado suficiente
o momento de fazer notar, já que nunca é atenção, t~o absorvido andava pela metamor-
demasiado tarde para fazer bem, que ao dizer - fose da minha excelente perna, quer por não
que a minha progressão diminuía de velocidade, haver realmente nada de especial a as sinalar
como s equência da fraqueir a que dera à minha nesse particular. Porém, mal abandonei a praia :
perna sã, não exprimo senão uma pa rt e da acossado pelo terror de acordar um belo dia
verdade. Po r que na verdade eu possuía outros longe de min~a mãe, e com as pernas tão r'ija a
pontos fracos, por aq ui, por acolá, que igual- quanto as minhas muletas, mal abandonei a
men te se tornavam cada vez mai s fracos, como praia, dizia, deram um salto em frente, os meus
era de prever. Po rém, o que não era de prever, pontos fracos, e de fracos fizeram-se literal-
era a rapidez com que a respectiva fraqueza mente moribundos com todos os inconvenientes
aumentava, depois de ter deixado a beira-mar. que isso comporta, quando se não trata de
Porque durante todo o tempo que eu permane- pontos vitais. Situo nessa época o cobarde
cera à beira-mar os meus pontos fr acos, embora abandono dos meus dedos do pé, por assim dizer
aumentando de fraqueza, como era de esperar, em ca!?po raso. pir-me-eis que isso faz parte
só aumentavam insensivelmente. De tal maneira ~as mmh~ chatices com as pernas, que não
que me teria visto em palpos de aranha para tinha a mais pequena importância, visto que de
afirmar, ao apalpar por exemplo o olho do dito, qualq~er maneira não podia pôr no chão o pé em
Tem piada, está mu ito pior do que ontem, já questao. De acordo. Porém, sabem vocês por
nem parece o mesmo. Peço desculpa de vol- acaso de que pé se trata? Não. Nem eu tão-
tar mais uma vez a este vergonhoso orifício, é a -pouco. Esperem, já vou dizer-lhes. Mas vocês
minha musa que exige. Ta lvez seja necessário tê!? razão, ~ão se trata de um ponto fraco pró-
ver nele menos a tara tão conhecida do qu e o príamente dito, .os meus dedos do pé, eu até os
símbolo das que eu calo, dignidade devida talvez Julgava em. muito bom estado, à parte alguns
à sua centralidade e aos se us ares de traço de calos, calosidadss e unhas encravadas e uma
união ent re mim e a outra merda. Subestimam, tendenclazmha para as cãibras. Não senhor, os
em minha modesta opinião, este pequeno buraco, meus verdadeiros pontos fracos eram outros. E
e fi ngem desprezá-lo. Mas tentarei não obstante se não pespego já aqui sem mais demora a res-
conceder-lhe doravante um pouco menos de lu- pectiv~ impressi0!1ante lista é porque nunca
gar. E isso há-de ser-me fácil , porquanto o fu- a farei. E com efeito não a farei nunca ou sim
turo, nem fal emos nisso, está muito longe de ser ~al~ez sim. E além disso não desejaria dar um~
incerto. E no que diz respeito a deixar de lado o ideia falsa a respeito da minha saúde, a qual,
essencial, nisso suponho sou eu forte, e tanto sem ser o que se chama brilhante, ou insolente,
mais quanto é certo não possuir sobre tal fenó- era r;o fundo de ~ma ro~ust.ez inaudita. Porque
meno senão informaçõ es muito contraditórias. se nao como teria eu atingido a enorme idade
Mas para voltar aos meus pon tos fracos, repito que a~i~gi? Graças a qualidades morais? A
que à beira-mar se tinham desenvolvido normal- uma higiene apropriada? Ao ar livre? À sub-ali-
mente, palavra, eu nada tinha notado de anor- mentação? À falta de sono? À solidão? À
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perseguição? Aos longos uivos mudos (é peri-
goso uivar)? Ao desejo quotidiano de que a vou-me r:servando, com os olhos no sprint.
terra me engolisse? Por quem são, por quem Porque n~o cons:guir sprintar, quando chegar
são. O destino é rancoroso, mas não até esse a hora, ISSO nao, antes desistir. Porém é
ponto. Olhem a minha mãe. De que terá ela proibido desistir e mesmo parar um instante.
estourado, ao fim e ao cabo? Pergunto-me a Espe!o portanto, enquanto avanço com pre-
mim mesmo. Não me espantaria que a tivessem cauçao, qu.e a, sm~ta me diga, Molloy, não te
enterrado viva. Ah ela bem mos transmitiu, o poupes mais, e o fim. :Ê assim, com a ajuda de
estupor, as suas indefectíveis porcarias de cro- Imagens po~c~ apropri~das à minha situação,
mossomas. Que eu viva eriçado de borbulhas que eu raclO~mo. E n~o me larga mais, ou
desde a mais tenra idade, olha que grande quase, o sentlm~nto, nao sei porquê, de que
coisa! O coração bate, e de que maneira! Que hei-de ter um dia umas palavrinhas a dizer
eu tenha os ureteres - ná, nem uma palavra que ainda não disse sobre tudo o que hei-de vir
a este respeito. E as cápsulas. E a bexiga. E a a ter. Mas para is~o tenho que esperar, para
uretra. E a glande. Santa Maria. Vou revelar- estar seguro ~e mais nada poder adquirir, ou
-vos uma coisa, já não mijo, palavra de honra. perder, ou delt~r fora, ou dar. Poderei então
Porém, o meu prepúcio, sat verbum, cheira que dlz~r, sem receio de engano, o que me resta,
tresanda a urina, dia e noite, enfim não creio a final ?as contas, dos meus teres e haveres.
que se trate de urina, cheira mas é a rim. Eu Po,rq~e ISSO sera o final das contas. E daqui
que tinha perdido o sentido do olfacto. Poder- ate la posso emp?brecer, enriquecer, oh não
-se-á falar em mijar em tais condições? Por ao ponto de a minha situação se modificar
amor de Deus. E o meu suor igualmente, e não poré~ sUficient~!l1ente para me impedir <1~
faço outra coisa senão suar, tem um odor anunciar, desde ja, o que ainda não disse sobre
. bizarro. E creio que a minha saliva, sempre tudo o que hei-de ter, porque ainda não tive
abundante, também o arrasta. Ah mas eu tudo. Mas eu não compreendo esse pressenti-
livro-me deles, dos meus desperdícios, não é mento, e esse é, julgo, muitas vezes o caso dos
a mim que a uremia há-de fechar os olhos. Tam- melh~res pressentimentos, não se entenderem
bém a mim haviam de me inumar vivo, em patavina. Talvez se trate portanto de um ver-
desespero de causa, se houvesse uma justiça. dad:iro pressentimento, susceptível de verifi-
E a tal lista, dos meus pontos fracos, que não caçao. Os falsos pressentimentos porém serão
farei nunca, com medo de dar cabo de mim, ac~so mais compreensíveis? Acho que sim,
talvez a faça um dia, quando se tratar de fazer po~s claro, acho que tudo o que é falso se
o inventário dos meus teres e haveres. Porque del~a . reduzi~ 1l?'ais fàcilmente a noções claras
nesse dia, se alguma vez despontar, terei menos e distintas, distintas de todas as outras noções.
medo de dar cabo de mim do que hoje. Porque M~s posso enganar-me. Eu não era porém uma
hoje, se me não sinto precisamente no início criatura de pressentimentos, mas de sentimen-
da corrida, também não tenho a pretensão de tos. sem mais, ou antes de epissentimentos se
me julgar à beira da meta. Por consequência aS~lm ouso exprimir-me. Porque eu sabia' as
coisas com antecedência, o que me evitava
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pressentir. Irei mesmo mai s longe (o que me se tem as pernas hirtas, não é coisa muito
custa isso?), eu apenas sabia com antecedência simples. Mas estejam descansados, eu conse-
porque no próprio momento já não sabia, terão guia. Quando se tratava do meu conforto, não
talvez reparado, ou à custa de esforços sobre- me poupava a esforços. A floresta rodeava-me
-humanos, e imediatamente depois também já todo e as ramagens, entrelaçando-os a uma al-
não sabia, tornava a encontrar a ignorância. tura prodigiosa, em relação à minha, protegiam-
E tudo isso, tomado em conjunto, se possível, -me do dia e das intempéries. Certos dias não
deve poder explicar muitas coisas, e nomeada- ~azia Jl.lais do que trinta a quarenta passos,
mente a minha espantosa velhice, ainda verde Juro. DIzer que estrebuchava a meio de impene-
aqui e acolá, supondo que o estado da minha tráveis trevas, não , não posso. Estrebuchava
saúde, mal-grado tudo o que disse supra, seja sim, mas as trevas não eram impenetráveis.
insuficiente para dar dela uma ideia. Simples Porque reinava uma espécie de sombra azul ,
suposição, sem compromisso. Mas dizia eu que , mais do que suficiente para as minhas neces-
na fase em que me encontrava, se a minha sidades visuais. Espantava-me que tal sombra
progressão se tornava cada vez mais lenta e do- não fosse verde, em vez de azul , via-a porém
lorosa, não era unicamente por causa das azul e talvez o fosse . O vermelho do sol, mis-
pernas, mas igualmente por causa de uma mul- turando-se ao verde das folhas, dava um re-
tidão de pretensos pontos fracos, nada tendo sultante azul , pelo menos eu raciocinava assim.
a ver com as pernas. A menos que se suponha, Mas de vez em quando. De vez em quando. Que
e nada a isso convida, que estes e as minhas bondade nestas palavrinhas, que ferocidade.
pernas re levavam do mesmo sindroma, que Mas de vez em quando dava de caras com uma
nesse caso teria sido de uma complexidade espécie de encruzilhada, uma estrela, que jul-
diabólica. O facto é que, e eu lamento-o, mas gam, como as há nas florestas inexploradas. E
agora é demasiado tarde para lhe dar remédio, então virando-me metodicam ente para as áleas
pus demasiado o acento sobre as pernas, ao que dela irradiavam, com não sei que esperança
longo de to da esta passeata, a expensas do dava uma volta completa sobre mim mesmo, ou
resto. Porque eu não er a um estropiado vulgar, menos de uma volta, ou mais de uma volta
longe disso, e dias hav ia em que as minhas de tal maneira essas áleas se assemelhava~
pernas eram mesm o o que eu t inha de melhor, entre si. Nesses sítios a som bra era menos pr o-
abstracção feita do cérebro capaz de formar funda e eu ti nha pressa em afastar -me deles.
tal juízo. Eu era portanto obrigado a parar cada Não gosto que a sombra se atenue, é suspeit o.
vez mais frequentemente, não me cansarei de o Nessa floresta fiz naturalmente um certo nú-
dizer, e de me estender, a despeito do regula- mero de encontros, onde se não fazem, porém
mento, ora sobre as cost as, ora sobre o ventre, sem gravidade. Encontrei nomeadam ente um
ora s obr e um lado, ora sobre outro, e o mai s carvoeir.o. Teria podido gostar dele , cr eio, se
possível os pés mais alto do que a cabeça, para acaso tivesse menos setenta anos. Mas não
que o sangue desco agulasse. E deitar-se a gent.e tenho a certeza. Porque nesse caso também eu
com os pés mais altos do que a cabeça, quando teria menos outros tantos, anos, oh outros

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tantos não , mas muitos. Nunca tive exacta- o meu caminho. Po rém, ma l tendo dados uns
mente o que se chama ternura para dar e quantos passos, e nessa altura par a mim uns
vender, mas também tive disso a minha pequena quantos passos era qualquer coisa, fiz meia-
quota-parte, quando era miúdo, e tem graça -volta e voltei até ele, para o examinar. Vendo
era aos velhos que a dava, de preferência. E que continuava a r espir ar , contentei-me em
julgo mesmo que cheguei a ter tempo de amar mandar-lhe algumas calorosas calcadelas de
um ou dois, oh não um verdadeiro amor de- tacão nas costelas. Vejam só como me desen-
certo, nada que se compare com a velha, esque- rasquei. Escolhi cuidadosamente a minha colo-
ci-me outra vez do seu nome, Rosa, ou não, cação, a alguns passos do corpo, voltando-lhe
enfim, como dizer, ternamente, como os pro- bem entendido as costas. Depois, bem escorado
metidos a uma terra melhor. Ah eu era precoce, ent re as muletas, os pés juntos, ou antes as
em pequeno, e em grande ainda sou. Agora pernas apertadas, por que como juntar os pés,
chat eiam-me os a-apodrecer, da mesma maneira considerando o estado das minhas pernas? Po-
que os verdes e os não maduros. Precipitou-se rém, como apertar as pernas, um a contra a
sobr e mim e suplicou-me que partilhasse com outra, considerando o estado delas? Apertei-as ,
ele a sua cabana, acreditem se quiserem. Um é tudo o que posso dizer-vos . Ponto parágrafo.
per feito estranho. Doente de solidão, provà- Ou não as apertei. Que impor tância pode isso
velmente. Disse carvoeiro, mas no fundo sei ter? Baloucei, eis o essencial, com uma amplidão
lá. Vejo fumo algures. l!J coisa que nunca me sempr e crescente, até ao momento em que,
escapa, o fumo. Seguiu-se um longo diálogo, julgando o fulano voltado a si, me atirei com
entrecortado de gemidos. Não pude perguntar- todas as minhas forças para a frente e logo,
-lhe o nome da cidade, cujo nome me escapava um instante depois, para trás, o que deu o re-
sempre. Pedi que me indicasse o caminho da sultado almejado. De onde me vinha esse acesso
cidade mais próxima, encontrei as palavras e de vigor? Da minha fraqu eza talvez. O choque
as entoações necessárias. Ignorava. Nascera derrubou-me naturalmente. Dei uma camba-
pr ovàvelment e na floresta e nela passara a lhota. Não se pode t er tudo, já notei muitas
vida inteira. P edi-lhe que me explicasse a ma- vezes. Repousei um bocado, depois evantei-me,
neira de sair da floresta o mais ràpidamente apanhei as muletas e fui postar-me do outro
possível. Tornava-me eloquente. A resposta dele lado do corpo, onde me entreguei com método
foi das mais confusas. Ou eu não compreendia ao mesmo exercício. Sempre tive a mania da
patavina do que ele dizia, ou ele.não sabia pata- simetria. Porém, tinha visado um pouco baixo
vina, ou ele queria guardar-me junto de si. e um dos meus tacões enterrou-se num a parte
É para est a última hipótese que com t oda a mole. Enfim, se tinha falhado as costelas, com
modéstia me inclino, porque quando quis afas- esse tacão, tinha sem dúvida atingido o ri m,
tar-me , o tipo reteve-me pela ma ng a. Liber tei oh não com a força bas t ant e pa r a arrebent ar
portanto prontamente um a muleta e pregu ei- com ele, não, não creio. As pessoas imaginam
-lhe uma boa marretada no crânio. Isso acal- que, porque se é velho, pobre, enferm o, teme-
mou-o. Velho nojento . Levant ei-me e retomei roso, se é inc apaz de defe sa, e de uma maneira

lfO lfl
geral isso é verdade. Porém, considerando con- saíra dela , ma is de uma vez, e conhecia a difi-
dições favoráveis, um agressor débil e desas- culdade de não fa zer mais uma vez o que já se
trado, da nossa estatura pois, e um lugar afas- fez . Mas as coisas tinham sido um tanto di-
tado, é algumas vezes permitido mostrar de que f ere ntes. Não obstante tinha boas esperanças
massa somos feitos. E foi sem dúvida com o 'de ver um dia est remecer , através dos lindos
fim de recordar ess a possibilidade, demasiadas imóveis, como talhados em cobre, e que nunca
vezes esquecida, que me demorei num incidente o mais pequeno sopro agitava, a estranha luz
sem interesse em si mesmo, como tudo o que da planura, aos remoinhos rápidos e pálidos.
instrui, ou adverte. Mas comeria eu de vez em Esse dia porém, também o temia. De maneira
quando ao menos? Forçosamente, forçosamente, que não duvidava já que chegasse, cedo ou
raízes, bagas, às vezes uma amorazinha, um t arde. Porque eu não estava muito mal na flo-
cogumelo quando o rei faz anos, e a tremer resta, podia imaginar pior, e teria até ficado
todo, porque conhecia maIos cogumelos. Que nela per manentement e sem demasiados remor-
mais, ah sim, alfarrobas, tão caras às cabras. sos, sem chorar demais o dia e a planura e as
Enfim o que encontrava, as florestas abundam outr as amenidades da minha região. Porque eu
em coisas boas. E t endo ouvido dizer, ou mais conhecia-as, as amenidades da minha região,
provàvelmente lido em qualquer parte, no tempo e considerava que a floresta lhe levava a palma.
em que julgava ter interesse em instruir-me, ou E não sômente as valia em minha opinião,
em divertir-me, ou em embrutecer-me, ou em como tinha sobre elas a vantagem seguinte: a
matar o tempo, que julgando caminhar sempre de eu estar nela. Eis, nã o é verdade, uma estra-
em fren te, na florest a, mais não se faz na rea- nh a maneira de compreender as coisas. Talvez
lidade do que andar à roda, eu fazia o mais que menos do que parece. Porque estando na flo-
podia para andar à roda, esperando assim ca- rest a , local nem pior nem melhor do que os
minhar sempre em frente. Porque eu deixava outros, e sendo livre de lá ficar ou não, eu não
de ser tanso e tornava-me espertalhão, todas tinha o dir eito de lhe ver as vantagens, va nta-
as vezes que me dava ao trabalho. E re ti vera gens que lh e vinham nã o do que ela era, mas
todos os ensinament os que me podiam ser de eu estar nel a. Porque eu estava nela. E
úteis, na vida. E se ' não caminhava em linha estando nela já não tinha necessidad e de lá ir,
rigorosamente re ct a , à força de andar à r oda , o que não era para desdenhar , dado o estado
pelo menos não an dava à roda, e isso já er a das minhas pernas e do meu corpo em geral.
qualquer coisa. E assim fazendo, dia após dia, Eis tudo o que queria dizer, e se o não disse logo
e noite após noite, eu esper ava realmente sair foi porque qualquer coisa a isso se opunha.
da floresta, um dia . Porque a minha região Porém, não podia, isto é : ficar na floresta, não
não era apenas floresta , longe disso. Mas tinha me era lícito. Quero dizer : teria podido, fisica-
também planície, montanha e mar, e algumas mente nada me teria sido mais fácil , mas eu
cidades e aldeias, ligadas entre si por estradas, não era de maneira alguma apenas físico, e
por caminhos. E eu estava tanto mais persua- teria tido o sentimento, ficando na floresta , de
dido que sairia um dia da floresta quanto já passar além de um imperativo, pelo menos tinha'

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a copla habitual veio colocar-se a seguinte
essa impressão. Mas podia estar enganado e teria advertência solene, Talvez já seja demasiado
talvez feito melhor ficar na floresta, teria po- tarde. Era em latim, nimis sero, julgo que é
dido, quem sabe, ficar nela sem remorsos, sem latim. Uma simpatia, os imperativos hipoté-
a penosa impressão de estar em falta, quase em ticos. Mas se eu nunca conseguira liquidar esse
estado de pecado. Porque, sempre me tenho problema da minha mãe, não é preciso culpar
furtado furtado muito aos murmúrios dos meus unicamente essa voz que me abandonava antes
pontos. 'E se não posso decentemente felicitar- da hora. Tinha a sua parte de responsabilidade,
-me por isso não vejo também ~enhum~ razã~ é tudo o que se lhe pode censurar. Porque o
para sentir desgosto. Mas os l1?'perativ~s , . e exterior também se opunha, por meios diversos
um pouco diferente, e sempre tive tendência e retorcidos, de que já dei alguns exemplos. E
para lhes obedecer, não sei porquê. Porque mesmo que a voz tivesse podido atanazar-me
nunca eles me levaram a parte algu ma, antes até à vista da terra da promissão nem ·por isso
me arrancaram sempre a sítios em que, sem quem sabe eu teria conseguido lá chegar, por
estar bem não estava pior que nos outros, virtude dos outros obstáculos que me barravam
para depois se calarem, deixand.o-me p~rdido. o caminho. E nessa ordem que hesitava, depois
Conhecia-os portanto, aos meus imperativos , e morria, como não subentender, Molloy, não
no entanto obedecia-lhes. Tinha-se tornado um mexas palha! Não me chamava ela sem cessar
hábito. :f: preciso dizer que eles incidiam qu ase ao dever apenas para me mostrar melhor o
todos sobre o mesmo problema, o das minhas respectivo absurdo? :Ê muito possível. Feliz-
relações com minha mãe, e sobre a necessidade mente que ao fim e ao cabo não fazia mais do
de lhes trazer quanto antes um pou co de cla- que apoiar, para ridicularizar logo em seguida
ridade e até sobre o género de claridade que se quiserem, uma disposição permanente e que
convinha trazer-lhe e sobre os meios de lá não tinha necessidade de apóstrofes para se
chegar com o máximo de eficác~a: Sim , senhor, saber leviana. E sozinho, desde há muito, eu
eram imperativos bastante explícit os , e mesmo ia a caminho de minha mãe, a fim de assentar
pormenorizados, até ao momento em que, tendo parece-me as nossas relações sobre bases menos
logrado pôr-me em movimento, se punham a oscilantes. E quando estava em casa dela, e
algaraviar, antes de se calarem complet~mente , muitas vezes tenho lá chegado, deixava-a sem
deixando-me para ali como parolo que na o sab e nada ter feito. E quando já lá não estava, de
para onde nem por que motivo vai. E inci diam novo me punha a caminho em direcção a ela,
quase todos, já o disse talv~z, sobre o mes~o esperando fazer melhor na vez seguinte. E
e espinhoso problema. E creio mesmo que nao quando dava ares de renunciar a isso e de me
seria capaz de citar um só que fosse de. outro ocupar doutra coisa ou de já não me ocupar
teor. E o que me incitava então, a del~ar .a de coisa alguma, mais não fazia na realidade do
floresta o mais ràpidamente possível nao di-
que aperfeiçoar os meus planos e procurar o
feria em nada, quanto ao fundo, dos ~utros a caminho de casa. Isto está a tomar um rumo
que estava habituado. Porg.u~ 9uanto a for~a muito pândego. De maneira que, mesmo sem esse
julguei notar um pormenor inédito, Porque apos
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124
pretenso imperativo que ponho em causa, te~­ de memoria. Ou que exprimo sem cair tão
-me-ia sido difícil permanecer na floresta, pois baixo como na oratio recta, mas por meio de
que devia supor que minha mãe lá não estava. outras figuras , igualmente enganadoras, como
Porém, essa difícil estadia, teria talvez feito por exemplo : Parece-me que, etc., ou, Tinha a
melhor tentá-la. Mas dizia também para comigo, impressão que , etc ., porque não me parecia
De aqui a muito pouco tempo, com o caminho coisa nenhuma e não tinha impressão de es-
que as coisas levam, já não poderei deslocar-me, pécie alguma, mas havia simplesmente qualquer
e onde quer que me encontre serei obrigado a coisa mudada algures, que fazia com que tam-
ficar a menos que seja transportado. Oh eu bém eu devesse mudar, ou que também o mundo
não tinha comigo mesmo tão límpida lingua- devesse mudar, para que não mudasse coisa
gem . E quando digo, eu dizia para comigo, etc., alguma. E são estes pequenos ajustamentos,
quero dizer somente que sabia confusamente como entre os vasos de Galileu, que posso
que assim era sem saber exactamente do que se apenas exprimir dizendo, por exemplo, Temia
tratava. E todas as vezes que digo, Eu dizia a que , ou, Esperava que , ou, -m esse o nome da
mim mesmo tal e tal coisa, ou que falo de uma sua mãe? perguntou o comissário, e que eu
voz interior dizendo-me, Molloy, e depois uma poderia sem dúvida exprimir de outra maneira
bela frase mais ou menos clara e simples, ou e melhor, dando-me a esse trabalho. E fá-Ic-ei
que me encontro na obrigação de emprestar a talvez um dia em que tiver menos horror ao
terceiros palavras intelígiveis, ou que em in- trabalho do que hoje, mas não creio. Dizia
tenção de outrem me saem da boca, mais ou portanto para comigo, De aqui a muito pouco
menos convenientemente, sons inarticulados, tempo, com o caminho que as coisas levam, já
mais não faço do que me curvar às exigências não poderei deslocar-me e onde quer que nesse
de uma convenção que exige que mintamos ou momento me encontre, serei obrigado a ficar,
nos calemos. Porque era muito ao contrário a menos que apareça alguém suficientemente
que as coisas se passavam. Eu não dizia por- amável para me transportar. Porque as minhas
tanto para comigo, Com o caminho que as coisas etapas faz iam-se cada vez mais curtas e as
levam, de aqui a muito pouco tempo, etc., mas minhas paragens, por consequência, cada vez
isso parecia-se talvez com o que me teria di~o, mais frequentes e acrescento prolongadas, por-
se tivesse sido capaz disso. De facto eu nao que a noção de paragem longa não decorre
me dizia absolutamente nada, antes ouvia um forços~mente da de etapa curta, nem também,
rumor, qualquer coisa de mudado no silêncio, reflectmdo bem , a de etapa frequente, a menos
e aplicava-lhe o ouvido, à maneira imagino de que se dê a frequente um sentido que não tem,
um animal que estremece e finge que está morto. o que não queria fazer por nada neste mundo.
E então, algumas vezes, nascia confusamente E parecia-me tanto mais desejável sair dessa
em mim uma espécie de consciência, o que floresta o mais ràpidamente possível quanto
exprimo dizendo, Eu dizia para comigo, etc., ou é certo que eu estaria incessantemente na im-
Molloy, não mexas uma palha, ou, Esse é o possibilidade de sair do quer que fosse, mesmo
nome de sua mãe? perguntou o comissário, cito que se tratasse apenas de uma moita. Era

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Inverno devia ser Inverno, e não somente
muitas 'árvores tinham perdido as r es pecti vas Po~ia pensar um instante que se tratava nem
folhas, mas essas folhas t inha m-se tornado ~als nem men,os do que o meu coração, batendo
negras e esponjosas e as minhas muletas en- ainda. Mas so um mstante. Porque esse não
terravam-se nelas, por vezes até à ramificação. repercute, o meu coração, é talvez na hidráulica
Coisa digna de nota, já não tinha frio como no que seria necessário procurar o ruído que faz
passado. Talvez fosse apenas Outono. Sempre essa velha bomba. As folhas também as escu-
fui porém pouco sensível às mudanças de tava, antes da queda, com baldada atenção.
temperatura. E a sombra, se par~cia _ter per- Que elas se calavam, imóveis e hirtas dir-se-
dido o seu tom azulado, permanecia tao densa -iarn de latão, aposto que já o fiz notar. 'E basta
como outrora. O que acabou por me fazer de murmúrio~ da floresta, De tempos a tempos
dizer Ela é me nos azul porque há menos verde, apertava a minha buzina, através do tecido do
é
mas tão densa graças ao plúmbeo céu de In- b?lso. Dava um som cada vez mais abafado.
verno. Depois qualquer coisa sobre os ra~os Tmha-: separado da bicicleta. Em que mo-
negros dos quais caía negro, qualquer COIsa mento .. Nao sei. E agora, acabemos com isto.
nesse género. Os montões de folhas negras e Estendído de bruços, servindo-me das muletas
a modos que lama cent as retardavam-me sen- co.mo de vides, mergulhava-as na floresta à
sivelmente. Mas mesmo sem elas teria renun- minha frente, e quando as sentia bem agar-
ciado a caminhar de pé, como os homens. E radas, arr.astava-me para diante, à força de
lembro-me ainda do dia em que, deitado de pulso, felIzmente bastante vigorosos ainda
bruços, pretexto para descansar, des prezando o mal-grado a caquexia, embora todos inchado~
regulamento, de r epente gritei, batendo na e ator~entados provàvelmente por uma espécie
testa Caramba, mas h á a reptação, já nem me de artrite defor~ante. Eis em poucas palavras
lemb~ava. Mas como fazer, consider an do o como o consegUIa. Este modo de locomoção
estado das minhas pernas, e do meu t ronco? tem ~obre os outros, falo dos que experi-
E da minha cab eça. Mas antes de ir mais menteí, esta vantagem, que quando a gente
longe, um a palavrinh a sobre os murmúrios ~a quer descansar pára e descansa, sem outra
floresta. Po r mais que escutasse, nada OUVIa forma de processo. Porque de pé não há
que com isso se par ecesse. Mas quando m~ito, repouso, sentado também não. E homens
com muita boa vontade e um pouco de imagma- h~ que circulam sentados, e mesmo ajoelhados,
çã o, de longe a longe um longínquo t 051ue de atirando-se para a direita, para a esquerda,
gongue. A trompa, nas florestas, esta bem, par~ a frente , para _trás~ por meio de ganchos.
espera-se. :m o monteiro. Mas gongue! Mesmo ~ore~, na locomoçao reptil, parar é começar
o tam-tam, rigorosamente, não me t eri a cho- ímedíataments a repousar, e a própria loco-
cado. Mas gongue ! E ra decepcionant e, querer moção é até um~ espécie de repouso, ao lado das
uma pessoa ao menos tirar va ntagem dos out.ras locomoçoes, falo daquelas que tanto me
célebres mur múri os e não conseguir ouvir fatigaram. E dessa maneira eu avançava flo-
senão gongue, ao longe, e de longe a longe. resta adentro, lentamente, mas com uma certa
regularidade, e chegava a fazer os meus quinze
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129
passos por dia sem me empenhar muito a dentro dele que abri os olhos, porque por que
fundo. E fazia-os mesmo de costas, mergu- razão os teria eu aberto se não? Contemplei
lhando às cegas as muletas atrás de mim na,s a planície que ondeava diante de mim a perder
brenhas nos olhos semicerrados a negra abo- de vista. Não, não completamente a perder de
bada de' ramaO'ens. Ia para casa de minha mãe. vista. Porque, tendo-se os meus olhos habituado
E de tempos; tempos dizi~, Mamã, s,em dúvida à luz do dia, julguei ver, perfilando-se ténue-
para me encorajar. Perdia o chapeu a cada mente no horizonte, as torres e os campanários
instante, havia muito tempo que o atacado.r de uma cidade, da qual naturalmente nada me
se partira, até ao momento em .que, m~m. mOVI- deixava supor fosse a minha, até mais ampla
mento de mau génio, o enterrei no cramo .com informação. A planície, é verdade, parecia-me
uma violência tal que nunca mais consegui ar- familiar, porém na minha região todas as pla-
rancá-lo. E se tivesse sido apresentado a s.en~o­ nícies se assemelhavam, conhecer uma, era
ras, e as tivesse encontrado, encontrar-me-Ia ~m­ conhecer todas. De resto, fosse ou não a minha
possibilitado de as saudar correctamente. Porem, cidade, que sob aquela fina fumarada algures
tinha sempre presente ao espírito, que con- minha mãe respirasse ou que esta empestasse
tinuava a funcionar, embora ao retardador, a a atmosfera a cem milhas Je ali, eram proble-
necessidade de andar à roda, de andar sem mas prodigiosamente ociosos, para um homem
cessar à roda e de três ou quatro em três ou ~a minha situação, se bem que de inegável
quatro reparadoras paragens mudava o m~u mteresse no plano do ~ conhecimento puro.
norte, o que me obrigava a descrever, s,e nao Porque de que maneira me arrastar através
um círculo, pelo menos um vasto pohgono, desse vasto ervaçal, onde as minhas muletas
faz-se o que se pode não é verdade, e ate me pe~­ tacteariam em vão? Ã reboleta, talvez. E depois?
mitia ter a esperança de avançar sempr~ a di- Deixar-me-iam rebolar até à casa da minha
reito em linha recta apesar de tudo, de dia e de mãe? Felizmente que nessa penosa conjuntura,
noite, em direcção a minha mãe. E o dia.veio com que eu tinha vagamente previsto, mas sem
efeito em que a floresta acabou ~ eu VI a lu~ da faz~r ~ma ideia de toda a sua amargura, eu
planície, exactamente como tl?ha prevIsto; OUVI dizer dentro de mim que não me mexesse
Porém, não a vi de longe, tremehcando par.a la que haviam de correr em meu socorro. Textual-
dos troncos severos, como esperava, mas vl-m~ mente. Essas palavras, posso afirmar, e não
dentro dela de-repente, abri os olhos e con~t8:tel exagero, que soaram tão alto e claro aos meus
que tinha chegado. E isso explica-se. ,se~ duvI~a ouvidos, e ao meu entendimento, como o bas-
pelo facto de há um bo~ pedaço J~ nao abrir tante obrigado do miúdo a que eu tinha
os olhos a não ser muito excepCIOnalmente. a~anhado o berlinde. Não te aflijas, Molloy,
E mesmo as minhas pequenas mudanças d,e hão-de chegar. Enfim, é preciso sem dúvida
direcção, fazia-as pelo tino, às e~cur~s. A flo~ termos visto tudo, incluindo o socorro, para
resta terminava por um fosso, nao sei por que termos um quadro completo dos recursos do
razão, e foi nesse fosso que tomei conhecimento nosso planeta. Deixei-me escorregar até ao
do que me acontecera. Foi com certeza ao cair fundo do fosso. Devia ser Primavera, uma

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manhã de Primavera. Parecia-me ~uvir os p~s­
saros. talvez. Havia muito que _nao os ?UVia.
Como era possível que eu nao os !lveS~e
ouvido na floresta? Nem visto. Isso entao nao
me tinha parecido estranho. P?rém~ ness~ mo,-
mento pareceu-me estran_ho. Te-los-~a ouvido a
beira-mar? Gaivotas? Nao consegu.ia l~~brar­ 1
-me. Lembrei-me .dos ralos. Os dois viajantes /
voltaram-me à memória. Um trazia uma moca.
Tinha-os esquecido. Torne} a ver ~s. ovelhas. CAPITULO II
Por fim digo isto agora, Nao me aflígta, ou~r.as
cenas da minha vida voltavam-me a memoria.
Parecia-me que chovia, fazia sol, al~ernada­ J;:: meia-noite. A chuva fustiga as vidraças.
mente. Um verdadeiro tempo de Primavera. Estou calmo. Tudo dorme. Não obstante levan-
Tinha vontade de voltar para a florest~. to-me e sento-me à secretária. Não tenho sono.
Oh num uma grande vontade. Molloy podia A luz da lâmpada é firme e suave. Regulei-a
ficar onde estava. para dar até de manhã. Ouço o bufo, ave noc-
turna. Que terrível grito de guerra! Outrora
ouvia-o impassível. O meu filho dorme. Que
durma. Virá a noite em que também, não po-
dendo dormir, se sentará à mesa de trabalho.
Estarei esquecido.
O meu relatório vai ser longo. Talvez não
o acabe. Chamo-me Moran. Jacques Moran. Ê
assim que me chamam. Estou quilhado. O meu
filho também. Nem o suspeita. Deve julgar-se
no limiar da vida, da autêntica vida. O que
aliás é exacto. Chama-se Jacques, como eu.
Isso não pode prestar-se a confusões.
Lembro-me do dia em que recebi ordem
para me ocupar de Molloy. Era um domingo de
Verão. Estava eu sentado no meu jardinzinho,
numa poltrona de rotim, um livro negro fechado
em cima dos joelhos. Deviam ser onze horas
mais coisa menos coisa, demasiado cedo ainda
para me ir meter na igreja. Saboreava o repouso
lSS
132
melro e tordo à cabeça, cujos cantos morriam
dominical, deplorando ao mesmo tempo a impor- se:n eles quererem, vencidos pelo calor, e que
tância que se lhe atribui, em certas paróquias. delxava.m os altos ramos da aurora pela sombra
Trabalhar, e mesmo brincar, ao domingo, não é d~s mOlta~. E respirava com prazer as exala-
coisa forçosamente repreensível, em minha çoes da minha erva-cidreira.
modesta opinião. Tudo dependia do estado de Foi .neste quadro que decorreram os meus
espírito de quem trabalhava, ou brincava, e da derradeiros momentos de felicidade e de calma.
natureza do respectivo trabalho, das respectivas Um homem eJ.1trou no jardim e avançou vi-
brincadeiras, isto em minha modesta opinião. v~~ente para rmm. Conhecia-o bem. Que um
Pensava com satisfação que esta maneira um vlzI.nho venha, dar-me os bons-dias, ao domingo,
tanto literária ganhava terreno, mesmo entre s~ ~sso lhe da na gana, admito-o na pior das
o clero, cada vez mais disposto a admitir que hipóteses, embora prefira não ver ninguém.
o sabbat, desde que se vá à missa e se esportule M:s o homem :m questão não era um vizinho.
o dízimo, pode ser considerado um dia como os A~ J.10ssas relaçoes eram unicamente de negócios
outros, sob certos aspectos. Isso não me tocava e vIera. de longe, incomodar-me. Estava por-
pessoalmente, sempre adorei nada fazer. E tanto dISposto a recebê-lo bastante friamente
teria de bom grado repousado igualmente nos t~~to mais que se permitia vir directamente a~
dias de trabalho se para isso tivesse meios. SItIO onde eu estava sentado, à sombra do meu
Não que eu fosse positivamente preguiçoso. pomar. Porque eu via com muito maus olhos
Era outra coisa. Ao ver fazer o que eu próprio as. pessoas que tomavam tal liberdade. Se de-
teria feito melhor, se tivesse querido, e que sejavam falar-me não tinham mais do que
fazia melhor todas as vezes que me decidia a ~ocar ~ porta .da minha casa. Marta tinha
isso, tinha a impressão de desempenhar uma instruções. Eu Julgava-me subtraído aos olhos
(unção para a qual nenhuma actividade teria de toda a gente que entrasse em minha casa
sabido educar-me. Porém, não podia abando- e p~rc~rre~se a curta álea que liga a cancela
nar-me a essa alegria senão muito raramente, do J~rdlm a pO,rta da casa, e estava-o com efeito.
durante a semana. Poren:, ~o :'U1do d~ portão atirado, voltei-me
Fazia um tempo lindo. Olhava vagamente com irritação e VI, esmaecida pelas folhas,
as minhas colmeias, o vai vem das abelhas. a~uela fI~ura c0II!-prida que desarvorava di-
Ouvia no cascalho os passos precipitados do re~ta a num, atraves do relvado. Não me levan-
meu filho, perdido não sei em que fantasia de tei nem o convidei a sentar-se. Parou à minha
fugas e perseguições. Gritei-lhe que não se frente e olhámo-nos em silêncio. Vinha pesada-
sujasse. Não respondeu. mente, som?ri~mente endomingado, o que aca-
Tudo calmo. Nem um sopro. Da chaminé bou por me indispor. Essa grosseira observância
dos meus vizinhos o fumo subia direito e azul. de fa?hada, quando a alma exulta em seus
Ruídos repousantes, tinidos de malhetas e de andrajos, sempre me pareceu uma coisa abo-
bolas, um ancinho sobre areia, uma longínqua minável. Olhei .os enormes pezorros que es-
máquina de aparar a relva, o sino da minha magavam as minhas margaridas. Tê-lo-ia ex-
querida igreja. E pássaros, bem entendido,
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pulso de boa vontade, à azorragada. Infeliz- Volta e meia fechava o canhenho, tendo ú
mente não se tratava apenas dele. Sente-se, disse cuidado de deixar um dedo dentro, entregava-se
amolecido pela reflexão de que ao fim e ao a comentários e considerações que me não di-
cabo ele não fazia mais do que o seu ofício ziam respeito, porque o meu trabalho conheço
de intermediário. É verdade, de súbito tive eu. Quando por fim terminou, disse-lhe que
piedade dele, piedade de mim. Sentou-se e en- aquele trabalho não me interessava e que o
xugou a testa. Entrevi o meu filho que nos patrão faria melhor dirigir-se a outro agente.
espiava por detrás de uma moita. O meu filho Ele quer que seja você, sabe Deus porquê,
tinha treze ou catorze anos por essa época. disse Gaber. Ele sem dúvida disse-lhe porquê,
Era grande e vigoroso para a idade. A sua inte- insisti farejando o elogio, por que eu me
ligência por momentos parecia atingir a média. pelava. Ele disse, respondeu Gaber, que apenas
Meu filho , sim senhor. Chamei-o e dei-lhe ordem você era capaz de fazer este trabalho. Era mais
para ir buscar cerveja. Eu era muitas vezes ou menos o que eu queria ouvir. No entanto,
obrigado a atitudes de cóca . O meu filho imi - disse, o caso parece-me de uma simplicidade
tava-me instintivamente. Voltou ap ós um mo- infantil. Gaber pôs -se a criticar com rancor o
mento notàvelmente curto com dois copos e nosso patrão, que o tinha feito levantar a meio
uma garrafa de cerveja de litro. Desrolhou a da noite, no preciso momento em que se punha
garrafa e serviu-nos. Ele adorava desrolhar em postura de fazer amor com a mulher. Por
garrafas. Disse-lhe que se fosse lavar, ajustar uma estupidez destas, acrescentou. E ele disse-
as roupas, numa palavra aprontar-se para apa- -lhe que não tinha confiança senão em mim?
recer em público, porque daí a pouco era hora perguntei. Ele já não sabe o que diz, respondeu
da missa. Ele pode ficar, disse Gaber. Mas eu Gaber. E acrescentou, Nem o que faz. Limpou
não quero que ele fique, retorqui. E virando-me o forro do coco, olhando atentamente para
para o meu filho disse-lhe mais uma vez que dentro dele, como se procurasse qualquer coisa.
se fosse arranjar. Se alguma coisa havia que É-me portanto difícil recusar, disse, sabendo
me desagradasse, nessa época, era chegar tarde perfeitamente que de qualquer maneira me era
à missa do meio-dia. Como quiser, disse Gaber. impossível recusar, Recusar! Mas entre nós
Tínhamos tentado tratar-nos por tu. Em vão. agentes divertimo-nos muitas vezes a refilar,
Eu não trato, não trataria, por tu senão duas entre nós, e a darmo-nos ares de homens livres.
pessoas. Jacques afastou-se a refilar e de dedo Você parte hoje mesmo, disse Gaber. Hoje,
na boca, detestável e pouco higiénico hábito, exclamei, mas o tipo está maluco ou quê! O
porém tudo considerado preferível, em minha seu filho acompanha-o, disse Gaber. Calei-me.
opinião, à do dedo no nariz. Se pôr o dedo na Quando a coisa se tornava séria calávamo-nos.
boca evitava que o meu filho o pusesse no nariz, Gaber abotoou o canhenho c meteu-o outra vez
ou noutro sítio, então tinha razão em fazê-lo , no bolso, que abotoou igualmente. Levantou-se,
em certo sentido. passeou as mãos pelo peito. Bebia bem outro
Aqui estão as suas" instruções, disse Gaber. copo, disse. Vá à cozinha, disse, a criada serve-o.
Tirou um canhenho do bolso e pôs-se a ler. Tarde Moran, disse.

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Era tarde demais para ir à missa. Não tinha mente. E se o padre Ambrósio não pudesse
necessidade de olhar para o relógio para o informar-me, dirigir-me-ia ao bedel, a quem era
saber, sentia que a missa tinha começado sem inconcebível que a presença do meu filho na
mim. Eu que nunca faltava à missa, ter faltado missa do meio-dia tivesse passado despercebida.
precisamente nesse domingo! Quando tinha uma Porque eu sabia de boa fonte que o bedel tinha
tão grande necessidade dela! Para me espe- uma lista dos fiéis e que, postado ao pé da pia
vitar! Tomei a resolução de solicitar uma au- de água benta, nos apontava o nome no mo-
diência particular, no decurso da tarde. Passaria mento da ablução, Pormenor a notar, o padre
sem pequeno almoço. Com o bom padre Am- Ambrósio ignorava toda essa estrangeirinha,
brósio havia sempre maneira de nos arran- sim senhor, tudo o que fosse vigilância lhe era
jarmos. execrável, ao bom padre Ambrósio. E teria
Chamei Jacques. Sem resultado. Disse para corrido acto-contínuo com o bedel se o tivesse
comigo, Ao ver-me sempre em conferência, foi julgado capaz de tal exagero. Devia ser para
com certeza à missa sozinho. Esta explicação edificação própria que o bedel mantinha essa
revelou-se boa, em seguida. Porém, acrescentei, lista em dia, com tanta assiduidade. Eu sabia
Podia muito bem ter-me vindo ver antes de apenas, bem entendido, como as coisas se pas-
partir. Raciocinava de preferência monolo- savam na missa do meio-dia, não tendo pessoal-
gando e por isso me viam mover os lábios. Mas mente a mais pequena experiência dos outros
tinha tido sem dúvida medo de me inco- ofícios, em que nunca punha os pés . Mas ouvira
modar e de se deixar prender. Porque me dizer que o mesmo controlo exactamente se
acontecia ultrapassar a medida quando me agar- exercia, se não pelo próprio bedel, ocupado sem
rava ao meu filho, que por consequência tinha dúv ida algures, por um dos seus numerosos
a sua medosca de mim. A mim então nunca filhos. Estranha par óquia em que as ovelhas
ninguém corrigiu suficientemente. Oh também sabiam mu ito mais do que o pastor sobre uma
ninguém me amimou, simplesmente me descu- circunstân cia que mais parecia da jurisdição
raram. Donde maus hábitos para os quais deste que da del es.
já não há remédio e os quais me~mo ~ ~ais Eis em que eu pensava enquanto esperava
meticulosa devoção nunca conseguiu eliminar. pelo regresso do meu filho e pela partida de
Eu esperava poupar esse infortúnio ao meu Gaber, qu e ainda nã o tinha ouvido partir. E
filho dando-lhe uma boa tareia de vez em nesta noite acho estranho que tenha podido
quando, com .razões em, apoio. pep?is disse de pensar em tudo isso, no meu filho, na minha
mim para mim, Ousara ele vir dizer-me que falta de educação, no padre Ambrósio, no bedeJ
vem da missa se não esteve lá, se por exemplo Joly mais o seu registo, num momento daqueles,
o que fez foi correr atrás do rapazio, por trás Não tinha então em que me ocupar mais útil-
do matadouro? E a mim mesmo prometi tirar mente, depo is do qu e acabava de ouvir? O facto
os nabos da púcara ao padre Ambrósio a esse é que ainda não tinha começado a tomar aquele
respeito. Porque era necessário que o meu filho assunto a sério. E espanto-me tanto mais com
não imaginasse que podia mentir-me impune. isso quanto é certo que . tal indiferença não
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estava na minha maneira de ser. Ou seria para
pôr a salvo ainda alguns instantes de c~lma cerveja, respondi. Ninguém me p,e~iu c?isa
que eu evitava instintivamente pensar nisso? nenhuma, respondeu Marta. A prop~slto, disse
Mesmo se, à leitura do relatório de Gaber, o sem me desconcertar, não almoço hoje. Pergun-
assunto me tivesse parecido indigno de mim, a tou-me se estava doente. É que eu era acima
insistência do patrão em me escolher, a mim de tudo um bom garfo, de meu natural. E em
Moran, de preferência a qualquer outro, e a particular o almocinho de domingo, que~ia-o
notícia de que o meu filho me ia acompanhar, sempre muito copioso. Cheir8:va bem na ?ozmha.
deveriam ter-me advertido de que se tratava Hoje almoço um pouco mais tarde, .els tudo,
de um trabalho que saía da rotina. E em lugar respondi. Marta olhou-~e com furor. As .quatro
de lhe aplicar sem tardança todos os recursos horas mais ou menos, disse. Eu bem sabia tudo
do meu espírito e da minha experiência, não o que galopava e espinoteava ~or t~ás d_aquel~
senhor, pensava nas fraquezas do meu san~ue testa estreita e grisalha. Voce hoje nao sai,
e nas singularidades das minhas companhias, acrescentei friamente, lamento. Ela atirou-se
Mas no entanto o veneno trabalhava-me, o ve- às caçarolas, muda de cólera. Conserve-I?e tudo
neno que acabavam de me servir. Mexia-me isso quentinho, o melhor que puder, disse eu.
sem descanso na poltrona, passava as mãos E, sabendo-a capaz de me envenenar, _acres~en­
pela cara, cruzava e descruzava as pernas, etc. tei, Fica com todo o dia de amanha, se ISSO
O mundo mudava já de cor e de peso, em lhe faz jeito.
breve seria preciso confessar a mim mesmo Saí e fui até à estrada. Gaber tinha então
que estava ansioso. partido sem tomar a cerveja. E no entanto bem
Lembrei-me com enfado da cerveja que a tinha desejado. l!: uma boa marca, WalI.ens-
acabava de absorver. Conceder-me-iam o corpo tein. Espreitava a chegada de Jacques. Vmdo
de Cristo depois de um copo de WalIenstein? da igreja apareceria à minha direita, à J?~nha
E se não dissesse nada? Está em jejum, meu esquerda se viesse do matadouro. Um vizinho
filho? Mas não me perguntavam. Mas Deus livre-pensador vinha a passar. Olha, olha, fez
havia de saber cedo ou tarde. Talvez me per- ele, não adoramos hoje? Ele conhecia os meus
doasse. Porém daria o mesmo efeito, tomada hábitos, os meus hábitos dominicais, quero
sobre cerveja, embora de Março? podia dizer. Toda a gente os conhecia, e o patrão
de qualquer maneira tentar. Qual era sobre talvez melhor do que ninguém, apesar do seu
isso o ensinamento da igreja? Se fosse cometer afastamento. Você tem ar de quem viu bicho,
um sacrilégio? Decidi-me a chupar algumas disse o tal vizinho. Vejo bicho, respondi-lhe,
pastilhas de hortelã, a caminho do presbitério. todas as vezes que o vejo. Entrei em casa, nas
Levantei-me e fui à cozinha. Perguntei se minhas costas o sorriso conscenciosamente
Jacques já tinha voltado. Não o vi, respondeu horrendo. Estava ali estava a vê-lo a correr
Marta. A fulana parecia de mau humor. E o para casa da concubina e dizer-lhe, Tu conheces
outro? perguntei. Qual outro? perguntou. O aquele pobre b~ndalho do Mor.an, se tu. me
que veio de minha parte pedir-lhe um copo de visses bandarilha-lo! Já nem sabia o qne dizer!
Pôs-se na alheta!
140
Jacques voltou pouco tempo depois. Não que não tem sentido. Porém, se estava nos meus
trazia nenhum sinal de diabruras. Disse que hábitos decidir em primeiro lugar esta delicada
tinha estado sozinho na igreja. Fiz-lhe algumas questão do transporte, não era nunca sem ter,
perguntas pertinentes, sobre o desenrolar do se nao aprofundado, pelo menos tomado em
rito. Respondeu sem se espalhar. Mandei-o la- consideração, os factores de que dependia.
var as mãos e ir para a mesa. Voltei à cozinha. Porque como decidir de que maneira partir
Ia e vinha, não fazia outra coisa. Pode servir, se se não sabe previamente onde se vai, ou ao
disse. Ela tinha chorado. Olhei ràpidamente menos com que objectivo se vai? Mas no caso
para as caçarolas. Irish. Stew. Prato alimenticio presente atirei-me ao problema do transporte
e económico, um tanto indigesto. Honra para sem outra preparação além do conhecimento
o país cujo nome popularizou. Às quatro horas distraído que tivera do relatório de Gaber. Os
vou para a mesa, avisei. Não era preciso dizer mínimos pormenores de tal relatório, podia
em ponto. Eu amava a exactidão, todos os que tornar a lê-los quando quisesse. Mas não me
viviam debaixo do meu tecto a deviam amar tinha ainda dado a esse trabalho, tinha evitado
também. Subi para o meu quarto. E aí, esten- fazê-lo, dizendo-me, É um caso banal. Querer
dido na cama, as cortinas corridas, fiz uma decidir o problema do transporte nestas con-
primeira tentativa para me abrir ao caso dições, era uma loucura. Era não obstante o
Molloy. que fazia. Já começava a perder a cabeça.
Em primeiro lugar não queria considerar Gostava muito de partir de bicicleta a mo-
senão os respectivos aborrecimentos imediatos, tor, adorava essa forma de locomoção. E na
os preparativos a que me obrigava. O fulcro ignorância em que estava das razões que se lhe
do caso Molloy, evitava sempre pensar nele . opunham, decidi-me a partir de bicicleta a
Sentia uma grande confusão ganhar-me. motor. Assim se inscrevia, no limiar do caso
Partiria em bicicleta a motor? Foi por esse Molloy, o funesto princípio do prazer.
problema que comecei. Eu era um espírito me- Os raios de sol passavam pela fenda entre
tódico e não partia nunca em missão sem ter as cortinas, tornando visível o sabbat da poeira.
longamente reflectido na melhor maneira de Daí concluí que o tempo continuava em bom
partir. Esse era o primeiro problema a resolver, e com isso me regozijei. Quando se parte de
no princípio de cada inquérito, e não mexia um bicicleta a motor é preferível que faça bom
pé sem o ter resolvido, com plena satisfação tempo. Enganava-me, o tempo já não estava em
minha. :Eu ora tomava a bicicleta a motor, ora bom, o sol cobria-se, em breve choveria. Porém,
o comboio, ora o carro, e sucedia-me também de momento o sol continuava a brilhar. Era
partir a pé, ou de bicicleta, silenciosamente sobre isso que me baseava, com uma leviandade
durante a noite. Porque quando estamos rodea- inconcebível, não possuindo outros elementos
dos de inimigos, como eu estou, não podemos de apreciação.
partir de bicicleta a motor, mesmo de noite, Atirei-me a seguir, segundo o meu hábito,
sem nos fazermos notar, a menos que nos sir- ao problema capital das bagagens a levar. E
vamos dela como de uma bicicleta simples, o teria também tomado a esse respeito uma

142
Gabava-se de saber viver, o padre Ambrósio,
decisão inteiramente ociosa sem a intrusão do de conhecer os costumes, ele que nunca fumava.
meu filho, que queria saber se podia sair. ~ toda a gente ?izia dele que era muito magnâ-
Dominei-me. Ele limpava a boca com as costas rumo. Perguntei-lhe se tinha reparado no meu
da mão. Uma coisa que eu detestava ver. Mas fil?o .na missa do meio-dia. Decerto, respondeu,
há gestos mais feios, também sei isso. ate fizemos dois dedos de conversa. Devo ter
Sair? perguntei, para ir aonde? Sair! Que parecido surpreendido. Sim, continuou não o
vaga detestável. Eu começava a ter muita fome. vendo a si no seu lugar, na primeira fila dos
Aos Ulmeiros, respondeu. Chama-se assim o celebrantes, receei que estivesse doente. Mandei
nosso jardim público. E no entanto nele não portanto chama;r a adorável criança, que me
se vêem ulmeiros, segundo me asseguraram. Fa- sossegou, ~ecel:)l uma visita das mais intempes-
zer o quê? tornei a perguntar. Rever a minha tívas, expliquei, de que não pude libertar-me
botânica, respondeu ele. Havia ocasiões em que a tempo. Foi o que o seu filho me explicou
eu suspeitava que o meu filho era sonso. Esse d~sse ele:. E !1cresceI.1tou, Mas sentemo-nos, qu~
foi um. Teria quase preferido que me dissesse, diabo, nao e sangria desatada. Riu-se e sen-
Tomar ar, ou, Olhar para as raparigas. A tou-se, arregaçando a pesada sotaina. Posso
desgraça é que ele sabia muito mais do que oferecer-lhe um digestivo? perguntou. Eu es-
eu, de botânica. Se não teria podido armar-lhe tava perplexo. Teria Jacques deixado escapar
algumas rasteiras, quando voltasse. Eu quando a!guma .alus~o à. cervejinha? Era bem capaz
muito amava os vegetais, muito simplesmente. dISSO. VIm ca pedir-lha um grande favor disse
Via mesmo neles uma prova supérflua da exis- eu. Está concedido, disse ele. Observá~o-nos
tência de Deus. Vai, disse eu, mas está de volta É .isto~ disse eu, um domingo sem viático, par~
às quatro e meia, tenho que te falar. Muito mim e como -. Levantou a mão. Sobretudo
bem papá, respondeu. Muito bem papá! Ah! nada de comparações profanas, disse. Talvez
Dormi um pedaço. Encurtemos razões. Ao pensasse no beijo sem bigodes ou no rosbife
passar em frente da igreja, qualquer coisa me sem mostarda. Não gosto nada que me inter-
deteve. Contemplei o portal, de estilo jesuítico, r?mpam: Amuei. Já vejo onde quer chegar,
muito belo. Achei-o horroroso. Apressei o passo disse, dIga. depressa homem, você deseja co-
até ao prebistério. O senhor abade está a dormir, mungar. Baixei a cabeça. l!:: um tanto irregular,
disse a criada. Eu espero, disse eu. l!:: urgente?, acrescentou. Perguntei a mim mesmo se ele
perguntou. Sim e não, respondi. Introduziu- tinha com~d? Sabia que se entregava de bom
-me na sala de visitas, de uma nudez pavorosa. grado . a jejuns prolongados, por espírito de
O padre Ambrósio entrou, esfregando os olhos. mortífícação, evidentemente, e além disso por-
Incomodo-o, meu padre? perguntei. Estalou que o seu médico lho tinha aconselhado. Assim
a língua contra o palato, em sinal de protesto. com uma cajadada matava dois coelhos. Não
Não descreverei as nossas atitudes, caracterís- di,ga nada a ninguém, pedi, que isto fique entre
ticas as suas dele, as minhas de mim. Ofereceu- nos e-. Interrompeu-me levantando um dedo
-me um charuto que aceitei de boa vontade e e os olhos, para o tecto. Tem graça, disse, que
pus no bolso, entre a caneta e a lapiseira. /0
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mancha é aquela? Olhei para o tecto por minha as minhas galinhas me davam muitas preocu-
vez. É uma mancha de humidade, respondi. pações, e em particular a minha galinha cin-
Caramba, disse, que aborrecido. A ~al8:vra ca- zenta, que já não queria nem pôr nem chocar
ramba pareceu-me de uma demência sem e que já há mais de um mês ficava sentada,
exemplo. Vezes há, disse ele, em que somos ten- de manhã à noite, o cu na areia. Como Job,
tados a deixarmo-nos ir até ao desespero. Le- ahah, disse ele. Eu também fiz ahah. Como
vantou-se. Vou buscar a minha trouxa, disse. faz bem rir, de vez em quando, disse ele. Não
Só, as mãos apertadas até fazer estalar as é verdade? disse eu. É próprio do homem,
falanges, pedi conselho ao Senhor. Sem re- disse ele. Já reparei, disse eu. Seguiu-se um
sultado. O que já era um ga~o. Quant<? ao curto silêncio. Como é que a alimenta? per-
padre Ambrósio, dada a maneira como tmha guntou. De milho principalmente, respondi.
saltado para ir buscar a sua trouxa, pare- Cozido ou grão? perguntou. Das duas maneiras,
cia-me certo que não suspeit~v~ de nad~. respondi. Acrescentei que ela já não comia
Ou diverti-lo-ia ver até onde eu ma? Ou terI~ coisa alguma. Os animais nunca se riem, disse
ele prazer em induzir-me em pecado? Resumi ele. Só n6s é que achamos isso engraçado, disse
a minha situação na fórmula seguinte. Se ele eu. Como? perguntou. Só nós é que achamos
sabe que eu bebi cerveja e me faz comungar isso engraçado, repeti com força. Reflectiu.
mesmo assim, peca da mesma maneira que Cristo também nunca se riu, disse, que se saiba.
eu, se pecado há. Não arriscava p.o~tanto Olhou-me. Que quer o senhor, disse eu. Eviden-
grande coisa. Voltou. com uma especte de temente, disse ele. Sorrimos um para o outro,
cib6rio-mala, abriu-o e despachou-me sem uI? tristemente. Estará com a pevide? perguntou.
instante de hesitação. Levantei-me e agradeci- Respondi que não, de certo que não, ela tinha
-lhe com calor. Bah, disse ele, parvoeiras. Agora tudo o que quisesse, mas a pevide não. Reflectiu.
podemos conversar. . _ Você já experimentou o bicarbonato? pergun-
Eu não tinha mais nada a dizer-lhe, Nao tou. Diga? disse eu. O bicabornato de sódio,
aspirava mais do que a voltar a casa o mais disse ele, já experimentou? Caramba não, disse
depressa possível e enfardar-me . de stew.• A eu. Experimente! exclamou ele, corado de pra-
alma saciada faltava-me o dente. Tendo porem zer, faça-a engolir algumas colheradas à sobre-
um ligeiro ~vanço sobre .0 m~u horário, re- mesa, várias vezes por dia, durante alguns
signei-me a conceder-lhe oito mmutos. Que me meses. Você verá, como lhe fica outra. É um pó?
pareceram bem longos. Informou-me que Ma- disse eu. Por quem é, disse ele. Agradeço-lhe
dame Clément, a mulher do farmacêutico e muito, disse eu, vou experimentar hoje mesmo.
ela própria farmacêutica de primeira classe, Uma galinha tão bonita, disse ele, uma poedeira
tinha caído na sua loja, do alto de uma escada, tão boa. De qualquer maneira a partir de ama-
e tinha partido o colo -. O colo! exclamei. nhã, disse eu. Tinha-me esquecido que a farmá-
Do fémur, respondeu, você não me deixa aca- cia estava fechada. Salvo caso de urgência,
bar. Acrescentou que isso devia acontecer. E evidentemente. E agora este pequeno digestivo,
eu, para dizer qualquer coisa, informei-o que diss e ele. Agradeci-lhe.

147
Esta conversa com o padre Ambrósio dei-
xou-me uma penosa impressão. Era sempre o ~ivesses batido cem vezes, respondi, e não
mesmo homem adorável, e no entanto não era. tmhas o direito de avançar antes de eu ter
Parecia-me ter surpreendido, no rosto dele, uma dito que sirr:. Mas, disse ele. Mas o quê? per-
falta, como direi, uma falta de nobreza. E ao guntei, T~ disseste para eu ~star ~á às quatro
regressar a casa sentia-me como um homem ~ mela, disse ele. Ha uma coisa, disse eu, mais
que, tendo engolido um analgésico, se espanta Importante na vida do que a pontualidade, é
primeiro, a seguir se indigna, ao constatar que o pudor. Repete. Naquela boca trocista a minha
continua a sofrer na mesma. E chegava quase frase f3:zia-me vergonha. Estava todo molhado.
a suspeitar que o padre Ambrósio, instruído Queestiveste tu a olhar? perguntei. As liliáceas
sobre os meus excessos durante a manhã, me papa, respondeu. As liliáceas, papá! Tinha um~
impingira pão ázimo. Ou que fizera restrição man 7ira d~ dizer papá, o meu filho, quando me
mental, ao pronunciar as palavras mágicas. queria ferir, muito particular. Agora ouve-me
E foi de muito mau humor que cheguei a casa, b,:m, disse e1!' O seu rosto ganhou uma expres-
debaixo de chuva a cântaros. s~o de atenção angustiada. Partimos esta noite
O stew decepcionou-me. Onde estão as cebo- dISS~ eu em substância, de viagem. Tens qu~
las? gritei. Desfeitas, respondeu Marta. Pre- ~estIr o teu fato de ir às aulas, o verde - . Mas
cipitei-me para a cozinha, à procura das cebolas e azul, papá, disse ele. Azulou verde tens de
que suspeitava ter ela deitado fora, sabendo vesti-lo, levantei a voz. E reatei. Pões n~ mochila
como eu gostava delas. Cheguei a esgaravatar pe9uena, q~e eu te dei nos teus anos, as tuas
no caixote do lixo. Nada. A tipa observava-me, COlS~S de toilette, assim como uma camisa, sete
trocista. calções e. um pa~ de peúgas. Compreendeste?
Subi para o meu quarto, abri as cortinas Que carmsa, papa? perguntou ele. Pouco irn-
sobre um céu de desastre e estendi-me. Não po:ta que camisa, gritei, uma camisa! Que
compreendia o que me sucedia. Era-me penoso pe~gas devo levar? perguntou ele . Tu tens
não compreender, nessa época. Fiz um esforço dois pares de peúgas, respondi, as de domingo
para me dominar. Falhou. Forçosamente. A e as de todos .os dias, perguntas-me qual deves
minha vida escoava-se, mas ignorava para levar. Soergui-me. Estaras a mangar comigo?
onde. Consegui no entanto passar pelas brazas, perguntei.
o que não é fácil, quando a desgraça está deli- ~cabava de ~ar ao meu filho instruções
mitada. E estava eu todo contente, nesse sono p~ec;sas:. Mas ~erlam boas? Resistiriam à refIe-
crepuscular, por tê-lo conseguido, quando o xao. Nao sena eu levado, dentro de muito
meu filho entrou, sem bater. Ora se há coisa pouco tempo, a alterá-las? Eu que nunca mu-
que eu abomine, é que me entrem pelo quarto dava de opinião diante do meu filho. Tudo
sem bater. Eu podia muito bem estar precisa- era de temer.
mente em posição de me masturar, em frente Ond: vamo~, papá? perguntou. Quantas
do meu espelho Brot. Chamei-o sem doçura vezes nao lhe tmha eu dito para não me fazer
à ordem. Protestou que havia batido duas vezes. perguntas. ~ aon~e íamos nós, de facto. Faz
o que te disse, disse eu. Amanhã tenho que
ir ao senhor Py, disse ele. Vais outro dia, disse decisivos, esses antes de os olhos se habituarem
eu. Mas eu tenho dores, disse ele. Há mais à obscuridade. Ainda aí estás? perguntei.
dentistas, disse eu, o senhor Py não é o único Ainda ali estava. Perguntei-lhe o que esperava
dentista do hemisfério setentrional. E acres- ele para fazer o que lhe dissera. No lugar do
centei imprudentemente, Nós não vamos para meu filho há que vida me teria posto a mexer.
o deserto. Mas é um dentista muito bom, disse Mas, ele não valia o que eu valia, não era do
ele. Todos os dentistas valem o mesmo, disse mesmo estofo. Não podia fugir a esta conclusão.
eu. Podia muito bem ter-lhe dito que me dei- Parca satisfação com efeito a de nos sentirmos
xasse em paz mais o seu dentista, mas não superiores aos nossos filhos e bem insuficiente
senhor, argumentava suavemente com ele, fa- para acalmar o remorso de os termos chamado
lava-lhe como a um igual. Teria podido igual- à vida. Posso levar a minha coleccção de selos?
mente fazer-lhe notar que mentia ao dizer que perguntou. O meu filho tinha dois álbuns, um
tinha dores. Tinha tido dores, creio que num grande constituindo a colecção prõpríamente
pré-molar, mas já não sofria. O próprio Py dita e um pequeno contendo os repetidos. Au-
mo tinha dito. Pus-lhe um penso no dente, torizei-o a levar este último. Quando posso dar
tinha-me ele dito, é impossível que o seu filho prazer, sem violentar os meus princípios, faço-o
ainda sofra. Lembrava-me muito bem dessa de boa vontade. Retirou-se. .
conversa. Ele tem naturalmente muito maus Levantei-me e fui até à janela. Não podia
dentes disse Py. Naturalmente? perguntei, ficar quieto. Passei a cabeça por entre as cor-
como ~aturalmente? O que é que o senhor está tinas. Chuva miudinha, céu fechado. Não me
para aí a insinuar? Ele nasceu com maus dentes, tinha mentido. Aberta de prever dentro de oito,
respondeu Py, e terá sempre maus dentes. Eu oito horas e meia. Belo pôr-de-sol, crepúsculo,
farei naturalmente tudo o que puder. O que noite. Quarto minguante, aí por voltas da meia-
queria dizer, Nasci disposto a fazer tudo o -noite. Toquei para chamar Marta e tornei a
que puder, farei forçosamente tudo o que pude~. deitar-me. Jantamos em casa, avisei. Olhou-me
Nasceu com maus dentes? Quanto a num, ja com espanto. Não jantávamos sempre em casa?
não me restavam senão os incisivos, os que Ainda não lhe dissera que partíamos. Só lho
agarram. . . , diria no último momento, o pé já no estribo,
Ainda chove? perguntei. O meu filho tmha como se costuma dizer. Tinha nela quando
tirado um espelhinho do bolso e examina~a.o muito uma confiança limitada. Chamá-Ia-ia no
interior da boca, erguendo com o dedo o lábio último momento e dir-lhe-ía, Marta, partimos,
superior. Oah!, disse, sem interromper a ~n~­ por um dia, dois dias, três dias, oito dias,
pecção. Basta de escarafunchar a boca! grl~e~. quinze dias, que sei eu, adeus. Nem era neces-
Vai à janela e diz-me se ainda chove. FOl a sário que estivesse inteirada. Então por que tê-
janela e disse-me que ainda chovia. O céu está -la incomodado? Ter-nos-ia servido de jantar de
todo coberto? perguntei. Está, respondeu. Nem uma maneira ou de outra, como fazia todos
a mais pequena aberta? perguntei. Não, res- os dias. Cometera o erro de me pôr no lugar
pondeu. Fecha as cortinas, mandei. Instantes dela. E por que razão ter-lhe suprimido a sua

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parte da tarde? Isso já se compreendia melhor. Zulu! Zuluzinho! e ele lá vinha dizer-me
Porém dizer-lhe que jantávamos em casa, que bom dia, através do gradeamento. Mas era pre-
dislate. Porque ela já sabia, julgava saber, ciso que eu estivesse feliz. Não gosto de ani-
sabia de facto. E na sequência dessa inútil mais. Quanto a Deus, começa a enojar-me.
precisão iria farejar o insólito e espiar-nos, Agachado beliscava-lhe as orelhas, através
para tentar saber o que se tramava. Primeiro do gradeamento, dizendo-lhe palavras meigas.
erro. Segundo, primeiro aliás no tempo, tinha- Ele não se apercebia que me enojava. Empina-
-me esquecido de recomendar ao meu filho que va-s e sobre as patas trazeiras e apoiava o peito
não repetisse a ninguém o que lhe dissera. contra as grades. Via-lhe então o pequeno
O que evidentemente não teria impedido coisa pénis preto prolongado por uma magra trança
alguma. Pouco importa, devia tê-lo exigido, de pêlos molhados. Sentia-se instável, os jar-
devia isso a mim mesmo. Só fazia asneiras, retes tremiam-lhe, as patitas procuravam o res-
eu habitualmente tão espertalhão. Procurei pectivo lugar, uma após outra. Também eu
emendar a coisa, dizendo , Um pouco mais tarde oscilava, sentado sobre os tacões. Com a mão
do que habitualmente, não antes das nove livre agarrava-me ao gradeamento. Também
horas. Retirou-se, o espírito frustre já em eu o enojava quem sabe. Tive dificuldade em
ebulição. Não estou para ninguém, recomendei. arrancar-me a estes pensamentos.
Sabia bem o que ia ela fazer, ia deitar uma Perguntei a mim mesmo, num momento de
saca sobre os ombros e esgueirar-se até ao rebelião, o que me obrigava a aceitar aquele
fundo do jardim. Aí chamaria por Hanna, a trabalho. Mas já o tinha aceite, tinha dado a
velha cozinheira das irmãs Elsner, e pôr-se-iam minha palavra. Tarde demais. A honra. Apres-
ambas a bichanar um bom momento, através sei-me a dourar a minha impotência.
do gradeamento. Hanna nunca saía, não gos- Mas não poderia adiar a nossa partida para
tava de sair. As manas Elsner eram vizinhas o dia seguinte? Ou partir sozinho? Rodeios
muito razoáveis. Faziam talvez um pouco de inúteis. Porém, não partiríamos senão no último
música demais, eis tudo o que conseguia cen- momento, um pouco antes da meia-noite. Esta
surar-lhes. Se há coisa que me complique com decisão é irrevogável, disse para comigo. O
o sistema nervoso é a música. O que eu afirmo, estado da lua aliás justificava-a.
nego, ponho em dúvida, no presente, posso Fazia como quando não podia dormir. Pas-
fazê-lo ainda hoje. Empregarei porém sobretudo seava em pensamento, lentamente, anotando
as formas do passado. Porque as mais das vezes cada pormenor do labirinto, de veredas tão
não estou certo, talvez já não seja assim, não familiares como as do meu jardim e não obs-
sei ainda, não sei pronto, nunca saberei talvez. tante sempre novas, desertas a contento ou
Pensei um pouco nas manas Elsner. Tudo ainda animadas por estranhos encontros. E ouvia
por organizar e eu a pensar nas manas Elsner. longínquos címbalos. Tenho tempo, tenho tempo.
Elas tinham um aberdeen chamado Zulu. Mas a prova que não, é que parei, tudo desa-
Chamavam-lhe Zulu. Algumas vezes, quando pareceu e tentei de novo pensar no caso Molloy.
estava de bom humor, punha-me a chamar, Incompreensível espírito, ora mar, ora farol.

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Nós, agentes, não fazíamos nada por escrito. a falar da infância e da família em termos mui-
Gaber não era agente no sentido em que eu o tíssimo plausíveis. Ser o único a poder ler-se a
era, Gaber era mensageiro. Tinha portanto si próprio, fechado sem saber ao sentido
direito ao canhenho. Para se ser mensageiro dos próprios recados e incapaz de os reter
eram necessárias singulares qualidades, os bons durante mais de alguns segundos, eis dispo-
mensageiros eram mais raros do que os bons sições raramente reunidas no mesmo indivíduo.
agentes. Eu que era um excelente agente, teria Era no entanto isso que se exigia dos nossos
dado um péssimo mensageiro. Muitas vezes mensageiros. E a prova de que eram mais
o lamentava. Gaber era multiplamente prote- considerados do que os agentes, de qualidades
gido. Servia-se de anotações incompreensíveis mais sólidas que brilhantes, está em que ti-
para todos menos ele. Cada mensageiro antes de nham um ordenado base de oito libras por
ser nomeado, devia submeter as suas anotações semana ao passo que nós recebíamos apenas
à directoria. Gaber não compreendia patavina seis e meia, estando excluído destes números
das mensagens que trazia. Reflectia sobre elas gratificações e despesas de deslocação. E
e delas tirava conclusões de uma falsidade es- quando falo de agentes e de mensageiros no
pantosa. Sim, não bastava que ele nada com- plural, é sem qualquer garantia. Porque
preendesse, era preciso também que julgasse nunca vira outro mensageiro além de Gaber
tudo compreender. E não é tudo. A sua memória nem outro agente além da minha pessoa.
era defeituosa a tal ponto que as suas mensa- Supunha porém que não éramos os únicos e
gens não existiam na sua cabeça, mas unica- Gaber devia supor a mesma coisa. Porque,
mente no seu canhenho. Ele não tinha mais do suponho, não teríamos podido suportar sen-
que fechar o canhenho para se tornar, um tirmo-nos únicos nos nossos respectivos gé-
minuto mais tarde, de uma inocência perfeita neros. E devia parecer-nos natural, a mim
a respeito do respectivo conteúdo. E quando que a cada agente fosse afectado um único
digo que reflectia nas suas mensagens e delas mensageiro e a Gaber que a cada mensageiro
tirava conclusões, era não como nós teríamos fosse afectado um único agente, por isso eu
reflectido, vocês e eu, o livro fechado e pro- pudera dizer a Gaber, Ele que dê esse trabalho
vàvelmente também os olhos, mas sim à medida a outro, não o quero, e Gaber pudera respon-
que ia lendo. E quando levantava a cabeça e der-me, Ele não quer mais ninguém senão você.
se abandonava aos comentários, era sem perda E estas últimas palavras, a supor que Gaber
de um instante, porque se perdesse um instante as não tivesse inventado, de propósito para me
teria esquecido tudo, o texto e a glosa. Muitas chatear, tinha-se o patrão pronunciado talvez
vezes me cheguei a perguntar se não sujei- com o único objectivo de alimentar a nossa
tariam os mensageiros a uma intervenção ilusão, se ilusão havia. Tudo isto é pouco claro.
cirúrgica, para que ficassem amnésicos a esse Se nos víamos membros de uma rede imensa,
ponto. Mas não creio. Porque para tudo o que era sem dúvida também em virtude do senti-
não tocasse nas mensagens eles tinham uma mento muito humano que quer que a partilha
memória bastante boa. E tenho ouvido Gaber diminua o infortúnio. Mas ao menos a mim,

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king-chair na cozinha. Eu recusara com indi g-
que sabia escutar o falsete da razão, era evi- nação. Depois, vendo-a inabalável, cedera. Tinha
dente que éramos talvez os únicos a fazer o demasiado bom coração.
que fazíamos. Sim, nos meus momentos de lu- Entregavam-me, todos os sábados, a minha
cidez tinha isso por possível. E para nada vos provisão de cerveja para toda a semana, ou
ocultar, essa lucidez atingia por vezes tal acui- seja, uma meia dúzia de garrafas de litro. Não
dade que eu chegava a duvidar da existência do lhes tocava nunca' antes do dia seguinte, porque
próprio Gaber, E se não tivesse tornado viva- é preciso que a cerveja assente após a mais
mente a mergulhar nas trevas teria talvez ido pequena deslocação. Destas seis garrafas, Gaber
ao ponto de escamotear o patrão e de me julgar e eu, nós dois, tínhamos esvaziado uma. Deviam
único e exclusivo responsável pela minha des- portanto restar cinco, mais um fundo de gar-
venturada existência. Porque eu sabia-me des- rafa da semana anterior. Fui ao escritór io. As
venturado, a seis libras e meia por semana ma is cinco garr afas lá estavam, rolhadas e seladas,
gratificações e falsas despesas. E tendo su- e uma gar r afa aberta três quartos vazia. Marta
primido Gaber e o patrão (um tal Youdi) ter- segu ia-me com os olhos. Saí, sem lhe dirigir
me-ia acaso podido recusar o prazer de - já me a palavra e subi ao primeiro andar. Ia e vinha,
compreenderam. Mas eu não era feito par a a não fazia outra coisa. Entrei no quarto do meu
grande luz que aniquila, não me tinham dado filho. Sentado à mesinha de trab alho este admi-
mais que uma lâmpada pequena e uma pac iência rava os selos, os dois álbuns, o grande e o
grande, para as passear ao longo das sombras pequeno, abertos diante dele. À minha aproxi-
vazias. Eu era um sólido, entre outros sólidos. mação fechou-os vivamente. Compr eendi ime-
Desci à cozinha. Não esperava lá encontrar diatamente o que ele maquinava. Mas disse
Marta, mas encontrei-a Estava sentada na sua primeiro, P rep araste as tuas coisas? Levan-
rocking chair, ao canto da chaminé, e balou- tou-se, agarrou na moch ila e estendeu-ma . Olhei
çava-se monotonamente. Essa rocking-chair, a para dentro. Pus a mão dentro e a pal pei o
acreditar nas suas palavras, era o único haver conteúdo. Estava lá tudo. Restituí-lha. Que
a que dava estimação e não se teria separado estás a fazer? perguntei. Estou a olhar um
dela por um império. Pormenor a notar, não a bocado para os selos, respondeu . Tu chamas
tinha instalado no seu quarto, mas na cozinha, a isso olhar para os selos? retorqui. Pois claro,
ao canto da chaminé. Deitando-se tar de, le- respondeu ele, com um descaramento inimagi-
vantando-se cedo, era ao canto da cozinha que nável. Cala-te, grande mentiroso ! gritei. Sabem
dela tirava o melhor proveito. São nume rosos o que ele estava a fazer? A transferir mu ito
os patrões, e eu estava entre eles, que vêm com simplesmente da sua bela colecção propriamente
maus olhos móveis de puro prazer no local de dita para o álbum dos repetidos os selos raros
t rabalho. A criada quer repousar? Muito bem . e de valor, que contemplava todos os dias com
Que se retire para o seu quarto. Que tudo na extático gozo e que sua excelência não podia
cozinha seja de madeira branca e severo. Devo resolver-se a abandonar, mesmo por alguns dias.
dizer que Marta exigira, antes de entrar ao meu Mostra-me o teu Timor novo, o cinco r éís ama-
serviço, que eu a autorizasse a ter a sua roc-
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relo, pedi-lhe. Ele hesitou. Mostra-me! gritei. purga. A dor muda é muito mais de temer,
Tinha-lho dado eu mesmo, custara-me um flo- na minha ideia.
rim. Uma pechincha, naquela época. Pu-lo aqui Com os álbuns debaixo do braço recolhi ao
dentro, confessou lamentàvelmente, erguendo o meu quarto. Tinha poupado ao meu filho uma
álbum dos repetidos. Era tudo o que eu queria grave tentação, a de meter no bolso os poucos
saber, ou antes ouvi-lo a ele dizer, porque saber selos de que gostava muito particularmente
sabia eu já. Muito bem, disse. Fui até à porta. a fim de poder fartar-se deles no decurso d~
Vais deixar os dois álbuns cá em casa, continuei, nossa viagem. Não que o facto de ter alguns
o pequeno e também o grande. Nem uma palavra selos com ele fosse em si repreensível. Mas isso
de censura, um simples futuro profético, no mo- ter~a s~do des?b ediência. Para os contemplar
delo daquele em que Youdi era inimitável. O te~la Sido obrigado a esconder-se do próprio
seu filho acompanhá-lo-á. Saí. Mas enquanto pai. E quando os tivesse perdido, como não
que com passos delicados, requebrando-me podia deixar de suceder, teria sido acuado à
quase, felicitando-me como era hábito do acol- mentira, I2ara me justificar o seu desapareci-
choado da minha carpete, eu seguia em direcção mento. Não, se lhe era realmente impossível
ao meu rico quarto, um pensamento assaltou- separar-se das vinhetas pr eferidas, teria valido
-me de tal maneira que me obrigou a retroceder mais que levas se o álbum inteiro. Porque um
até ao quarto do meu filho. Este estava sentado álbum perde-se menos fàcilmente do que um
no mesmo lugar, porém numa atitude ligeira- selo. Mas eu era melhor juiz do que ele daquilo
mente modificada, os braços sobre a mesa e a que podia e não podia. Porque eu sabia o que ele
cabeça sobre os braços. Aquela visão foi-me ainda não sabia, entre outras coisas que aquela
direita ao coração, mas nem por isso deixei de provação lhe seria salutar. Bollst enibehren
fazer o meu dever. Não se mexia. Para maior eis a lição que desejava inculcar-lhe, enquanto
segurança, disse eu, vamos pôr esses álbuns fosse jovem e tenrinho. Palavras mágicas que
no cofre-forte, até ao nosso regresso. Conti- até aos quinze anos não imaginava poderem se-
nuava a não se mexer. Estás a ouvir-me? pergun- q~er aplicar-se-lhe. E mesmo que essa minha
tei. Levantou-se de um pulo que lhe derrubou atitude devesse tornar-me odioso aos olhos dele
a cadeira e proferiu estas palavras furiosas, e o levasse a odiar, para além da minha pessoa,
Faz o que quiseres! Não quero vê-los mais. l!: a própria ideia de pai, não deixaria de a tomar
necessário deixar passar a cólera, é a minha com todas as minhas forças. O pensamento d~
opinião, é necessário operar a frio. Agarrei nos ~ue entre a minha morte e a sua, parando um
álbuns e retirei-me, sem uma palavra. Tinha-me Instante d~ me ultrajar a memória, podia per-
faltado ao respeito, mas não era o momento de guntar .a SI ~esr.n0' o e~pa~o de um relâmpago,
lho fazer ver. Imóvel no corredor ouvi ruídos se eu nao teria tido razao, ISSO bastava-me, isso
de queda e colisão. Qualquer outro, menos , compensava-me de todo o mal que me impusera
e. me imporia a~nd~. Havia de responder nega-
senhor de si do que eu de mim, teria intervindo.
Porém, não me desagradava positivamente que ti vamente, a primeira vez, antes de prosseguir
o meu filho desse livre curso à sua dor. Isso com as suas blasfémias: Porém, a dúvida esta-

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ria semeada. Voltaria a si. Era assim que eu
raciocinava. procuram em vão quaisquer parecenças cada
Restavam-me ainda algumas horas antes ponto da pel~ me grita O1!tra mensagem, 'sosso-
do jantar. Decidi aproveitá-las conscíenciosa- bro na neblma dos fenomenos. É prisioneiro
mente. Porque depois do jantar passo habitual- destas sensações, que felizmente sei ilusórias
mente pelas brazas. Tirei o casaco e os sapatos, que tenho de viver e trabalhar. É graças a ela~
desabotoei as calças e enfiei-me debaixo dos q~e. me encontro um sentido. Assim aquele que
cobert or es . :m estendido, bem no quente, na sub~ta dor despe~ta. Imobiliza-se, retém a respi-
obscuri da de, que eu penetro melhor na falsa raçao, espera, diz de si para si, ~ um sonho
turbulência do exterior, nela situo a criatura mau, .ou, um pouco de nevralgia, respira torna a
que me entregam, tenho a intuição do caminho dormir, tremendo todo ainda. No entanto não é
a seguir, me ap aziguo com a absurda desespe- desagradável, antes de pormos mãos ao trabalho
r ança a lheia . Longe do mundo, do seu chinfrim, retemperar-nos neste mundo massiço e lento:
dos seus empreendimentos, das suas feridas onde t1!do se .move com a monótona gravidade
e da sua lúgubre claridade, julgo-o, e não só d.o~ bOIS, pacientemente por caminhos imemo-
aqueles que nele estão irremediàvelmente riais, ~ onde bem entendido todo o trabalho de
mergulhados , como aquele que precisa que eu tnvestígação seria impossível. Porém, na ocor-
o liberte, eu qu e não sei libertar-me. Tudo é rencia, digo ben:, na ocorrência, eu tinha para
obscuro, mas dessa obscuridade simples que re- ISSO outras razoes espero mais sérias e rele-
pousa ap ós os grandes dila ceramentos. Massas van~o .menos do agradável que do útil. Porque
desloca m-se, nuas como leis. Saber de que são era unícamente deslocando-se nesta atmosfera
feitas, nem se pensa nisso. O homem também como direi, de finalidade sem fim, porque não:
lá está, algures , vast o bloco am assado de todos que eu ousava considerar o trabalho a execu-
os reinos, si mples e só a meio dos outr os e tão tar. Porque onde Molloy não pudesse estar nem
desprovido de imprevisto como um rochedo. de resto Moran, Moran podia debruçar-se sobre
E nesse bloco, algures, julgando-se um ser à Moll?y. E se desse exame nada devesse sair de
parte, está escondido o cliente. Qualquer pessoa partlc~larmente fecundo nem de útil para a
'podia fazer o trabalho. Mas pagam-me para exec~çao do mandato, teria não obstante esta-
procurar. Chego e ele destaca-se, durante toda b:lecldo uma espécie de relatório, e de relatório
a sua vida não esperou outra coisa, ser prefe- nao forçosamente falso. Porque a falsidade dos
rido, julgar-se maldito, afortunado, julgar-se termos na.o arrast~ fa~almente a da relação,
medíocre, entre todos. Tal é o efeito que algu- que eu saiba. E nao somente isso, mas teria
mas vezes têm sobre mim o silêncio, o calor, a emprestado .ao meu pobre diabo, desde o iní-
penumbra, os cheiretes do leito. Levanto-me, Cl~, aparencias de ~er fabuloso, o que não podia
saio, e tudo se transforma. A cabeça esvazia- deixar ~e me servI~, na sequência, tinha esse
-se-me de sangue, de todos os lados me assaltam pressentimento. Tirei portanto o casaco
os ruídos das coisas fugindo umas às outras, e os sapatos, desabotoei as calças e deslizei
unindo-se, voando em estilhas, os meus olhos para baixo dos cobertores, a consciência tran-
quila, sabendo muito bem o que fazia.
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Molloy, ou Mollose, não era um desconhe- filho, que Deus sabe estava longe de o ser, quero
cido para mim. Tivesse eu tido colegas, e teria dizer distinto. Ao fim e ao cabo, talvez eu nada
podido suspeitar de já ter falado com eles a seu soubesse a respeito da mãe de Molloy, ou Mol-
respeito, como de alguém destinado a ocu- lose, salvo na medida em que tal filho dela
parmo-nos dele cedo ou tarde. Porém, colegas conserva traços, como restos de nuvem.
não tinha e ignorava em que circunstância.s Desses dois nomes, Molloy e Mollose, o
soubera da sua existência. Talvez o tivesse segundo parecia-me talvez o mais correcto.
inventado, quero dizer na minha encontrado Mas pouco mais. O que eu ouvia, no meu foro
pronto a servir na cabeça . É certo que se encon- interior sem dúvida, de tão má acústica era
tram por vezes infelizes que o não são completa- uma p~imei:a sílaba, MoI, muito nítida, seiuida
mente, por terem desempenhado qualquer quase imediatamente de uma segunda o mais
papel em certas sequências cerebrais. Tal nunca fofa possíyel, como engolida pela primeira, e que
me acont.ecera, não me julgava fadado para tanto podia ser oy como podia ser ose, ou ote,
semelhantes experiências, e mesmo o simples ou ~esmo oe. E se me inclinava para ose, era
já visto me parecia infinitamente fora do meu provavelmente porque o meu espírito tinha um
alcance. Porém isso tinha todo o ar de me fraco por essa final, ao passo que as outras
acontecer nessa ocasião. Porque quem teria lhe ,não faziam vibrar a mais pequena corda.
podido falar-me de Molloy se não eu e a Porem, desde o momento em que Gaber dissera
quem se não a mim teria eu podido Molloy, não uma mas várias vezes, e todas as
falar dele? Procurava em vão. Porque nas mi- vezes com igual nitidez, forçoso me era reco-
nhas raras conversas com os homens evitava nhe~er que também eu devia ter dito para
semelhantes assuntos.. Tivesse-me outra pessoa comigo Molloy e que quando me dizia Mollose
falado de Molloy e ter-lhe-ia pedido que se laborava em erro. E doravante, esquecendo
calasse e por nada deste mundo teria confiado preferências próprias, obrigar-me-ei a dizer
a sua existência a quem quer que fosse. Tivesse Molloy, como Gaber. Que se pudesse tratar de
eu tido colegas e não teria sido evidentemente duas pessoas diferentes, uma o meu Mollose,
a mesma coisa. Entre colegas dizemos coisas outra o Molloy do inquérito, tal ideia não me
que em qualquer outra sociedade calamos. Mas aflorara sequer o espírito, e se tivesse aflorado
eu não tinha colegas. E isso explica sem dúvida tê-Ia-ia enxotado, como se enxota uma mosca,
o imenso mal-estar que desde o início deste ou uma vespa. Como o homem está pouco de
caso sentia. Porque não era caso de somenos, acordo consigo mesmo, santo Deus. Eu que me
para um homem maduro e que se julgava no gabava de ser ponderado, frio como cristal.
cabo das suas surpresas, ver-se teatro de que- e igualmente virgem de falsa profundidade.
janda ignomínia. Havia realmente que estar
Estava portanto ao corrente de Mol1oy, sem
alarmado. no entanto saber grande coisa a seu respeito.
A mãe de Molloy, ou Mollose, parecia-me,
também não me era completamente estranha. Direi brevemente o pouco que sei a seu res-
Era porém muito menos distinta do que o peito. Indicarei, na mesma ocasião, desse co-

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nhecimento que tinha de Molloy, as lacunas cebendo o que pudera pô-lo em tal estado não
mais salientes. concebia .
, também de que maneira , abanddnado
O fulano dispunha de muito pouco espaço. a?s proprios meios, poderia pôr-lhe termo. Um
Tinha igualmente o tempo cronometrado. Apres- fll? natu:al parecia-me pouco provável, não
sava-se incessantemente, como por desespero, sei porque. Mas o meu próprio fim natural e
em direcção a metas afinal muito próximas. estava bem decidido a ele, não seria ao mesmo
Tanto, prisioneiro, se precipitava para ~ão sei tempo o seu próprio fim? Modesto não tinha
que estreitos limites, quanto, perseguido, se a coisa por assente. Aliás, a exi~tirem fins
refugiava rumo ao centro. não naturais, não estarão eles todos na bela
Ofegava. Não tinha mais que surgir eI!'l natureza, os inegàvelmente bons como os con-
mim para eu próprio ficar cheio da sua respr- siderados maus? Não nos percamos em con-
ração entrecortada. jecturas vãs.
Mesmo em campo raso dava a impressão . Sobre_o seu rosto ~ão possuía nenhuma
de abrir caminho. Investia mais do que andava. l~formaça;o. Supunha-o hírsuto, pétreo e percor-
Não obstante avançava muito lentamente. Os- rido de tiques. Nada me autorizava a tanto.
cilava à direita e à esquerda, à maneira de Que um tipo como eu, tão meticuloso e
um urso. calmo no conjunto, virado tão pacientemente
Rolava a cabeça proferindo palavras inin- para o exterior como para o mínimo mal,
teligíveis. . criatura de sua casa, do seu jardim, dos seus
Era massiço e tosco, mesmo disforme. parcos haveres, fazendo fielmente e com habi-
E sem ser negro, de cor sombria. lidade um trabalho repugnante, conservando
, Estava sempre a caminho. Nunca o vira o pensamento nos limites do cálculo tal o
repousar. Por vezes estacava e lançava olhares horr?r que tem ao incerto, que um tipo assim
furibundos em redor. fabricado, porque eu era uma fabricação, se
Era assim que ele me visitava, a interval~s d~lxe assombrar.e possuir por quimeras, deve-
muito espaçados. Não era nessas alturas l?~lS rra ter-me parecido estranho, levar-me mesmo
do que estrépito, grosseria, cóle~a, asfixia, ~ pôr as coisas em ordem, no meu próprio
esforço incessante, arrebatado e vao. Exac~­ interesse. ~as nada d~s~o: Via nisso apenas
mente o contrário de mim, que julgam. Aquilo uma necessld!1de de solitário, necessidade pou-
distraía-me. Via-o desaparecer, numa espécie co .rec?mendavel .decerto, mas que devia ser
de uivo de todo o corpo, quase contra vontade. satisfeita, ~e q.UIsesse continuar solitário, e
Quanto a saber onde queria ele chegar, não fazia questao russo, com tão pouco entusiasmo
fazia a mais pequena ideia. c?mo nas minhas galinhas ou na minha fé , po-
Nada me indicava a idade que poderia ter. rem com a mesma clarividência. Aliás isso
Esse aspecto que lhe via ter, convencia-m.e que o~upa~a bem pouco lugar na inenarrável car-
o devia já ter desde sempre e o havia; de píntaría que era a minha existência não a
guardar até ao fim, fim de resto que_ tinha compr?metia. mais do que os meus s~nhos e
dificuldade em representar-me. Porque nao con- esquecia-sa igualmente depressa. Abandonar
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sempre me pareceu razoável. E se tivesse que algures esperava por mim. A estes acrescen-
a casa para salvar o resto antes da conflagração, t~ria o de Youdi, não fosse a exactidão prodí-
contar a minha vida nem teria sequer feito glOsa. de Gab~er ~m tu~o .0 que dizia respeito às
alusão a tais presenças, e à do infortunado suas íncumbêncías .. ~essImo raciocínio. Porque
Molloy menos do que a qualquer outra. Porque pode.rIa supor-se seriamente que Youdi tivesse
havia outras, diversamente empolgantes. cOnfIad? a Gabet: tudo o que sabia, ou julgava
Mas esta espécie de imagens, não torna a saber (Igual ao litro, para Youdi) sobre o seu
vontade a encontrá-las senão violentando-se. protegido? Seguramente que não.' Ele não lhe
Esta tira e põe. E o Molloy que desbastava, dissera~ senão o que julgava útil à boa e rápida
nesse memorável dia de Agosto, talvez não fosse execuçao das. suas ordens. Acrescentarei por-
exactamente o das minhas alfurjas, porque não tanto um qumto Molloy, o de Youdi. Porém,
era ainda a hora deste. No que respeita porém esse Molloy não se confundiria forçosamente
aos traços essenciais, estava tranquilo, a se- com o quarto, como quem diz o verdadeiro,
melhança existia. E fosse o desfasamento ainda o que acompanha a sua sombra? Teria pago
maior não teria que me queixar. Porque o que caro para o saber. Havia outros evidentemente.
eu fazia, não fazia nem por Molloy, para quem Mas fiquemos por aqui, se não se importam
me estava nas tintas, nem por mim, a quem no nosso circulozinho de iniciados. E não me~
renunciava, mas no interesse de um trabalho tamos também o nariz na questão de saber até
que, se tinha necessidade de nós para se rea- que ponto esses cinco Molloys eram fixos ou
lizar, era em sua essência anónimo, e subsis- até que ponto eram sujeitos a flutuações. Por-
tiria, habitaria o espírito dos homens, quando que Youdi tinha essa particularidade, mudava
os seus míseros artesãos já não existissem. de opinião com uma facilidade bastante grande.
Ninguém nunca dirá, creio, que eu não tomava O que perfaz três observações. Ora eu não
o meu trabalho a sério. Antes se dirá, com en- previra mais que duas.
ternecimento, Ah aqueles velhos companheiros, , p gelo assim quebrado, julguei-me em con-
a raça deles está extinta e o seu molde partido. dições de afrontar o relatório de Gaber e de
Duas observações. entrar ao vivo nos dados oficiais. Parecia-me
O Molloy de que assim me aproximava que o ,inquérito ia finalmente começar.
cautelosamente não devia parecer-se com o ve- FOI neste momento mais ou menos que o
lho Molloy, aquele com quem iria em breve barulho de um gongue, percurtido com força,
haver-me, por montes e vales, a não ser de uma encheu a casa. Eram com efeito nove horas.
maneira muito vaga. ~evantei-me, ajustei as roupas e desci preci-
Misturava já talvez, sem me dar conta, ao pítadamente. Prevenir que a sopa estava na
Molloy assim recuperado em mim elementos mesa, que digo eu, que estava em vias de con-
do Molloy descrito por Gaber. gelar, era sempre para Marta uma pequena
Havia em suma três, não, quatro Molloys. vitória e uma grande satisfação. Porque habi-
O das minhas entranhas, a caricatura que eu tualmente eu est~va já à mesa, o guardanapo
fazia desse, o de Gaber e o que, em carne e osso, desdobrado no peíto, cortando o pão aos boca-

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dinhos, batendo no talher, brincando com o emprego, alguns dias antes. Tinha portanto
suporte da faca, à espera que me servissem, boa esperança de que ele me dissesse que não
alguns minutos antes da hora combinada. Ati- compreendia. Mas era um grande espertalhão,
rei-me à sopa. Onde está o Jacques? perguntei. à sua maneira. Marta! vociferei. Ela apareceu.
Ela encolheu os ombros. Detestável gesto de O resto, mandei. Olhei mais atentamente para
escravo. Diga-lhe que desça imediatamente, a janela. Não somente a chuva cessara e isso
mandei. Ã minha frente a sopa já não fumegava. já eu sabia, mas a ocidente listas de um belo
Teria ela fumegado alguma vez? Voltou pouco vermelho cambiante ganhavam altura a cada
depois. Ele não quer descer, informou. Pousei momento. Adivinhava-as mais do que as via,
a colher. Diga-me, Marta, que vem a ser este através da minha mata. Uma grande alegria,
preparado? Disse-me o nome. Já o comi alguma não chego a exagerar, inundou-me diante de
vez? perguntei. Assegurou-me que sim. Então tanta beleza, de tanta promessa. Afastei os
sou eu que não estou hoje nos meus dias, disse. olhos com um suspiro, porque a alegria que
Este dito de espírito ajudou-me enormemente, a beleza inspira não é muitas vezes sem mescla,
ri-me de tal maneira que fiquei com soluços. e vi diante de mim aquilo a que com justa razão
Mas passou a leste de Marta que me olhava com chamara o resto. Que mais vem a ser isto?
estupor. Ele que desça, disse por fim. O que perguntei. Habitualmente domingo à noite
diz? perguntou Marta. Continuava com o ar comíamos um jantar frio, os restos das aves,
sinceramente perplexo. Somos três neste pe- frango, pato, ganso, perú, nem sei que mais,
queno Trianon, disse, você, o meu filho e por do sábado à noite. Tive sempre muito sucesso
fim eu. Digo que desça. Mas ele está doente, com os meus perús, são mais interessantes do
disse Marta. Estivesse na agonia, tinha que que os patos, como criação, no meu modesto
descer. A cólera arrastava-me por vezes a li- entender. Mais delicados, talvez, mas de um
geiros desvios de linguagem. Não podia lamen- muito melhor rendimento, para quem sabe li-'
tá-los. Parecia-me a mim que toda a linguagem songeâ-los, poupá-los, em suma para quem os
é um desvio de linguagem. Confessava-os com ama e deles se sabe fazer amar. É a comida do
naturalidade. Era preciso não é verdade que pastor, 'r espondeu Marta. Provei, mesmo da
a meu respeito carregasse um pouco nas tintas. travessa. E que fez a senhora ao frango de
Jacques estava vermelho como uma peónia. ontem? perguntei. O rosto de Marta ganhou
Come a tua sopa, disse, depois me darás uma expressão de triunfo. Ela esperava essa
notícias. Não tenho fome, disse ele. Come a tua pergunta, é evidente, contava com ela. Pensei,
sopa, repeti. Compreendi que ele não a come-
ria. De que te queixas tu? perguntei. Não me respondeu, que o senhor faria melhor comer
sinto bem, respondeu. Que coisa abominável qualquer coisa quente, antes de abalar. E quem
a juventude. Procura ser mais explicito, disse. lhe disse a si que eu estava de abalada? pergun-
Empreguei de propósito este termo um tanto tei. A fulana dirigiu-se para a porta, sinal evi-
difícil para todos os jovens, porque lhe tinha dente de que ia lançar-me uma flecha. Só sabia
explicado a respectiva significção e o modo de insultar a fugir. Não sou ceguinha, respondeu.

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Abriu a porta. Infelizmente, acrescentou. E tempo aguçava o seu jovem espírito para uma
fechou a porta atrás de si. via das mais fecundas, a saber a do horror do
Olhei para o meu filho. Tinha a boca aberta corpo e das respectivas funções. Mas eu cons-
e os olhos fechados. Foste tu quem nos traiu ? truíra mal a frase, devia antes ter dito, Não te
perguntei. Fez de conta que não estava al i. enganes na entrada. Foi ao perscru~ar de mais
Disseste a Marta que íamos pa r tir ? insisti. perto a comida do pastor que senti esse arre-
Disse que não. E porque não? tornei. Nem a pendimento. Levantei-lhe a crosta com a colher
vi, respondeu com cinismo. Mas ela. acaba, de e olhei para dentro. Sondei-a c~m ? garf?
subir ao teu quarto, disse eu. A comida esta a Chamei Marta e disse-lhe, O seu cao nao comia
ficar fria, disse ele. E ra quase digno de mim isto. Pensei sorrindo na minha escrevaninha
por momentos. Fazia mal porém em invocar a que não tinha ao todo e por t?do senão .seis
comida. Mas era verde e inexperient e e renun- gavetas, três de cada lado do vazio ?x:de enf;ava
ciei a atormentá-lo. Procura dizer-me, dis se eu , as pernas. Visto que o seu jantar e intragável,
com um pouco mais de precisão, o que sentes. disse eu , tenha a gentileza de me prepar~r u,!ll
Tenho dores na barriga, respondeu. Dores na pacote de sanduíches, com o que. voce nao
barriga! Terás febre? perguntei. Sei lá , r espon- conseguiu comer do frango. O meu filho ,voltou
deu. Concentra-te, disse eu. Tinha o aspecto finalmente. Valia bem a pena um termometro
cada vez mais embrutecido. Felizmente que eu instantâneo. Passou-mo para as mãos. Lim-
gostava bastante de pôr os pontos nos ii. Vai paste-o ao menos? perguntei. Ao ver-me en-
buscar o termómetro ins t antâneo, man dei, na tortar os olhos com o mercúrio, foi até à porta
segunda gaveta à direita da minha se cretári a, e acendeu a luz. Como Youdi estava longe,
a começar de cima, ti r a a temper a tur a e traz- nesse instante. Algumas vezes de inverno, ao
-me cá o termómetro. Deixe i passar algu ns mi- voltar a casa extenuado e derreado depois
nutos, depois, sem ser convi dado, r epeti pal av ra de um dia de diligências infrutuosas, encon-
por palavra, e lentamente, essa frase bastante trava as minhas babuchas a aquecer diante do
longa e difícil, em que figuravam nada menos do fogo, as gáspeas voltadas para as chama~. Tinha
que três imperativos. Enquanto se afas tava ten- febre. Não tens nada, disse. Posso subir ? per-
do sem dúvida compreendido o essencial, acres- guntou. Para fazer o quê? perguntei. Deitar-
centei com jovialidade, sabes em que boca -me respondeu. Estaria nesse momento a
hás-de metê-lo, pá? Entregava-me de bom ,
desenvolver-se um belo caso de f orça 'maior ?:
grado, nas conversas que tinh ~ com o meu Sem dúvida, mas eu nunca ousaria invocá-la.
filho, a graças de um gosto duvidoso, com u,!ll Não ia atrair os coriscos de que talvez nunca
objectivo educativo. Aquelas de que ele nao me levantasse, simplesmente porque o meu
apreendia no momento todo o sal, e deviam ser filho tinha cólicas. Se ele caísse seriamente
numerosas, podia reflectir nelas a seu bel-pra- doente no caminho, o caso era outro. Eu não
zer ou procurar-lhes mais os seus compichas estudara o antigo testamento para inglês ver.
a interpretação mais verosímil. O que era em Hoje cagaste, filho meu? perguntei com ternur~.
si mesmo um excelente exercício. E ao mesmo Tentei, respondeu. Mas tens vontade? perguntei.
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Sim, respondeu. Mas não sai nada, disse eu. Não. não tens nada na barriga. Fez-me notar que
confirmou. Um pouco de vento, disse eu. Sim, tinha almoçado. Não tocaste em nada, insisti.
confirmou. Lembrei-me de repente do charuto Calou-se. Eu tinha acertado. Esqueceste-te que
do padre Ambrósio. Acendi-o. Já vamos ver partimos dentro de uma hora ou duas, acres-
isso, disse, levantando-me. Subimos ao primeiro centei. Não pcsso, disse ele. De maneira que,
andar. Dei-lhe um clistér, de água salgada. prossegui, é preciso que comas. Uma dor vivís-
Debateu-se, mas não muito tempo. Retirei sima atravessou-me o joelho. O que é que tens,
o pipo. Tenta conservá-la um bocado, disse, papá? perguntou-me. Deixei-me cair no banco,
não fiques para aí sentado no bacio, arregacei as calças, observei o joelho, dobrei
deita-te mas é de barriga para baixo. Estávamos a perna várias vezes. A tintura de iodo de-
na casa de banho. Deitou-se sobre o ladrilho, o pressa, pedi. Estás sentado em cima, respon-
trazeiro para o ar. Deixa-a penetrar bem, deu. Levantei-me e a perna das calças tornou
recomendei. Que dia. Contemplei a cinza do a cair-me à volta do tornozelo. Há nesta inér-
charuto. Era azul e compacta. Sentei-me na cia das coisas qualquer coisa capaz de dar
borda da banheira. A porcelana, os espelhos, connosco literalmente em doidos. Soltei um
os cromados, fizeram descer em mim uma rugido que as manas Elsner devem ter ouvido.
grande calma. Pelo menos supunha que foram As fulaninhas páram de ler, levantam a cabeça,
eles. Aliás não era uma calma por aí além. olham uma para a outra, escutam. Nada mais.
Levantei-me, pousei o charuto e esfreguei os Um grito na noite, mais um . Duas velhas mãos,
incisivos. As gengivas do fundo, esfreguei-as cheias de veias, de anéis, procuram-se, aper-
também. Olhei para mim, os lábios arreganha- tam-se. Arregacei outra vez a perna das calças,
dos, eles que em repouso me entravam pela enrolei-a raivosamente sobre a coxa, levantei
boca dentro. De que raio tinha eu ar? pergun- o tampo da retrete, peguei na tintura de iodo
tei-me. A vista do meu bigode, irritou-me, como e esfreguei o joelho. O joelho está cheio de '
sempre. Não estava propriamente impecável. ossinhos que mexem. Fá-la penetrar bem, disse
Ficava-me bem. Sem bigode eu era inconce- o meu filho. Aquela havia de ma pagar mais
bível. Mas podia ficar-me melhor. Teria bastado tarde. Quanto acabei, tornei a pôr tudo no lugar,
uma pequena modificação no corte. Mas qual? desenrolei as calças, tornei a sentar-me na
Seria demais, seria insuficiente? Agora, disse retrete e escutei. Nada mais. A não ser que
eu, sem deixar de me inspeccionar, senta-te prefiras que se tente um verdadeiro vomitivo,
outra vez no penico e faz força. Não seria antes continuei, como se nada se tivesse passado.
a cor? Um estrépito de despejo trouxe-me de Tenho sono, foi tudo quanto disse. Vai-te deitar,
novo a preocupações menos elevadas. Pôs-se de ordenei, eu levo-te à cama uma pequena refei-
pé a tremer todo. Curvámo-nos os dois sobre o ção de que vais gostar muito, dormes um
bacio que após um bom momento agarrei pela bocado e depois partimos juntos. Puxei-o contra
asa e me pus a inclinar de um lado para outro. o meu peito. Que dizes a isto? perguntei. Ele
Algumas aparas fibrosas nadavam no líquido disse a isto, Sim papá. Amar-me-ia ele nesse
amarelado. Como queres tu cagar, disse eu, se momento tanto como eu o amava? Nunca se

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podia ter a certeza com aquele sonsinho. Vai dirija-se ao doutor Savory. Levei esta súbita
já para a cama, ordenei, tapa-te bem, eu volto amabilidade ao ponto de lhe apertar a mão, que
já. Desci à cozinha, preparei e arrumei na ela enxugou ràpidamente ao avental, ao desco-
minha bela bandeja de laca uma taça de leite brir as minhas intenções. O aperto acabado,
quente e uma fatia de pão com compota. Quer não larguei logo aquela mão vermelha e mole.
então um relatório. Pois há-de tê-lo, o seu Antes lhe agarrei um dedo com a ponta dos
relatório. Marta olhava-me sem dizer palavra, meus, aproximei-a de mim e observei-a. Tivesse
atolada na sua rocking-chair. Dir-se-ia uma lágrimas a derramar tê-Ias-ia derramado nesse
Parca com o novelo avariado. Deixei tudo muito momento, em torrentes, durante horas. Ela de-
bem limpinho atrás de mim e dirigi-me para a via perguntar-se provàvelmente se eu não iria
porta. Posso ir deitar-me? perguntou. A fulana fazer-lhe propostas desonestas. Abandonei-lhe
tinha esperado precisamente o momento em a mão, peguei nas sanduíches e fui-me embora.
que eu estava de pé, a bandeja carregada nas Havia já muito tempo que Marta estava ao
mãos, para me fazer aquela pergunta. Saí, meu serviço. Eu andava muitas vezes em via-
pousei o tabuleiro em cima da cadeira ao pé da gem. Pois nunca me despedira dela daquela
escada, voltei à cozinha. A senhora preparou maneira, antes sempre com desenvoltura,
as sanduíches? perguntei. Durante todo aquele mesmo quando tinha razões para recear uma
tempo o leite esfriava e cobria-se de uma nata ausência prolongada, o que não era o caso nesse
revoltante. Tinha-as preparado. Vou-me deitar, dia. Algumas vezes mesmo ia-me embora sem
anunciou. Toda a gente se ia deitar.. Mas olhe lhe dizer palavra.
que tem de se levantar dentro de uma hora ou Antes de entrar no quarto do meu filho
duas, avisei, para me fechar os ferrolhos. A entrei no meu. Tinha ainda o charuto nos lábios
ela decidir se lhe valia ou não a pena deitar-se, mas a bela da cinza tinha caído não sei onde.
naquelas condições. Vai ela perguntou-me por Censurei-me aquela falta de cuidado. Eu pró-
quanto tempo eu tencionava ausentar-me. Teria prio dissolvi no leite um somnífero em pó. Não
dado conta de que eu não partia só? Sem dúvida. lhe perdoaria nada. Já me vinha embora com o
Quando subira para dizer ao meu filho que tabuleiro quando o meu olhar caiu sobre os
descesse, mesmo na hipótese de este nada lhe dois álbuns pousados . em cima da secretária.
ter dito, a fulana devia ter reparado na mochila. Perguntei-me se não poderia retirar a minha
Não faço ideia, respondi. Depois logo a seguir, proibição, ao menos no que respeita ao álbum
vendo-a tão velha, pior do que velha, a enve- dos repetidos. Havia pouco ele tinha ali vindo,
lhecer, tão só e rabugenta no seu eterno canto, procurar o termómetro. Tinha-se demorado.
Não por muito tempo, descanse. E recomendei- Teria aproveitado a ocasião para se apoderar
-lhe, em termos para mim calorosos, que des- de alguns dos seus selos preferidos? Eu não
cansasse bastante durante a minha ausência tinha tempo para controlar tudo. Pousei o
e se distraísse visitando as amigas e recebendo- tabuleiro e procurei alguns selos ao acaso, o
-as. Não poupe chá nem açúcar, acrescentei, e Togo carmim de um marco com o barco giro,
se por acaso tiver necessidade de dinheiro, o Niassa dez réis de 1901, e alguns outros.

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Muito gostava eu do Niassa. Era verde e repre-
sentava uma girafa no momento de depenicar Visto que eu recuava desta maneira o acon-
o cocuruto de uma palmeira. Est.avam todos no tecimento, terei de me excusar a dizê-lo? Deixo
seu lugar. O que não provava nada. Provava cair esta sugestão muito ao acaso. E sem lhe
tão somente que os selos estavam no seu lugar. dar importância por aí além. Porque neste
Cheguei à conclusão de que não podia voltar dia ao escrever sou de novo aquele que o su-
atrás com a minha decisão, livremente tomada portou, quem o atafulhou de uma vida fútil e
e claramente expressa, sem que a minha auto- ansiosa, com o único objecto de se atordoar, de
ridade sofresse com isso uma diminuição, o que poder não fazer o que tinha a fazer. E assim
ela não estava mesmo nada em condições de como então o meu pensamento se recusava a
suportar. Tive pena. O meu filho já dormia. Molloy, o mesmo sucede esta noite à minha pena.
Acordei-o. Bebeu e comeu com caretas de repug- Há já algum tempo que esta confissão me tra-
nância. Vejam de que maneira me agradecia. balhava. E não me alivia nada.
Voltou-se para a parede e eu ajeitei-lhe a Pensei com amarga satisfação que se o meu
roupa. Pouco faltou para o beijar. Nem ele nem filho vivesse a estourar no caminho, eu não
eu pronunciávamos palavra. Já não tínhamos ~seja~~. -A cad~ um as respectiva
necessidade de palavras, de momento. Era ali' s. responsabihdades. SeI bem que estas não
raro que o meu filho falasse_em_primeiro lugar. impedem de dormir.
~ quando era eu que lhe falava, o tipo as mais Disse para mim mesmo, Há qualquer coisa
das vezes nem sequer me respondia a não ser nesta casa que me impede de agir. Um homem
com lentidão e como contra a vontade. Com os como eu não pode esquecer, nos seus esqui-
amigalhaços no entanto, quando me julgava vanços, aquilo a que se esquiva. Desci ao jardim
longe, era de uma volubilidade incrível. Que a e pus-me a passear na obscuridade quase total.
minha presença tivesse o efeito de extinguir Fosse-me o jardim menos familiar e teria en-
tal disposição, não era isso de molde a desagra- trado pelos meus massiços, ou pelas minhas
dar-me. De ouvir e calar, nem um ser entre cem colmeias, adentro. O charuto tinha-se-me apa-
é capaz, nem mesmo faz ideia do que isso signi- \gado sem que me desse conta. Sacudi-o e me-
fica. :m não obstante então que se distingue, ti-o dentro do bolso, com a intenção de o deitar
para além do absurdo chinfrim, o silêncio de que no cinzeiro, ou no cesto dos papéis, mais tarde.
é feito o universo. Eu desejava essa vantagem Porém, no dia seguinte, já longe de Shit, tornei
para o meu filho. E que ele se mantivesse a encontrá-lo dentro do bolso e palavra de
afastado daqueles que se felicitam de saber honra não sem satisfação. Porque ainda conse-
abrir os olhos. Eu não me tinha ralado, e lutado, gui tirar dele algumas fumaças. Descobrir o
sofrido, criado uma situação, vivido como um charuto frio entre os dentes, cuspi-lo, procurá-lo
bajojo, para que um filho meu fosse o mesmo na obscuridade, tornar a apanhá-lo, perguntar-
do que eu. Retirei-me na ponta dos pés. Eu ia -me o que seria conveniente fazer dele, sacudir-
com bastante boa vontade até ao fim dos meus -lhe a cinza e pô-lo dentro do bolso, represen-
papéis. tar-me o cinzeiro e o cesto dos papéis, eis os
principais pontos de apoio de um processo que
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fiz durar um quarto de hora pelo menos. Outros de sentir-me pouco à vontade. Eu adoro, de
diziam respeito ao cão Zulu, aos perfumes decu- noite, interrompendo um passeio, aproximar-me
plicados pela chuva e de que me divertia a ten- das janelas. estejam ou não iluminadas, e olhar
tar descobrir as origens na minha cabeça e nas para dentro, para ver o que se passa pelos
mãos, a uma luz em casa de tal vizinho, quartos. Cubro a cara com as mãos e olho
a um barulho em casa daqueloutro, e assim através dos dedos . .Já apavorei mais do que um
sucessivamente. A janela do meu filho estava vizinho desta maneira. Precipitam-se para fora
debilmente iluminada. Ele gostava de dormir de casa, não encontram ninguém. Os quartos
sempre com uma lamparina ao lado. Não me mais obscuros saem então da sombra para mim,
perdoava o permitir-lhe essa fantasia. Não ha- como que ainda carregados do dia desaparecido
via muito tempo só conseguia dormir com a ou da lâmpada recém-apagada, por motivos
condição de ter nos braços um urso de peluche. mais ou menos confessáveis. Porém aqueles
Quando tivesse esquecido o urso (o Joãozinho) clarões da cozinha eram de outra categoria e
suprimir-lhe-ia a lamparina. Que teria eu feito provinham da lamparina do globo vermelho
nesse dia sem o derivativo do meu filho? O que, no quarto de Marta, contíguo à cozinha,
meu dever quem sabe. ardia eternamente aos p és de uma pequena
Vendo-me tão pouco valente no jardim quan- nossa senhora de madeira esculpida, pregada
to dentro de casa, retomei o caminho desta, à parede. Cansada de balouçar, a tipinha dei-
dizendo para comigo que das duas coisas uma, xava a cozinha para se ir estender sobre a cama,
ou a minha casa nada tinha que ver com a deixando aberta a porta do respectivo quarto
espécie de aniquilamento em que evoluía ou era a fim de não perder pitada dos ruídos da casa.
preciso ' acusar disso o conjunto da minha pe- Mas talvez tivesse adormecido.
quena propriedade. Adoptando esta segunda Tornei a subir ao primeiro andar. Detive-me
hipótese desculpava-me do que tinha feito e, diante da porta de meu filho. Curvei-me e colei
com antecedência, do que ia fazer, até à partida. o ouvido à fechadura. Outros colam o olho, eu
Ela trazia-me qualquer coisa como um perdão o ouvido, às fechaduras. Nada ouvi, com grande
e um instante de liberdade factícia. Adoptei-a espanto meu . Porque o meu filho dormia ruido-
portanto. samente, de boca escancarada. Guardei-me de
De longe a cozinha parecera-me na obscu- abrir a porta. Porque com esse silêncio já
ridade. E em certo sentido estava. Mas noutro tinha com que ocupar o espírito, durante
sentido não estava. Colando um olho à vidraça algum tempo. Fui para o meu quarto.
distingui nela uma débil claridade avermelhada, Foi então que se viu esta coisa sem prece-
que não podia vir do forno, porque não dentes: Moran preparando-se para partir na
tínhamos forno, mas um simples fogão que ignorância daquilo a que se ia meter, sem ter
trabalhava a gás. Um forno, se assim quiserem, consultado mapa nem indicador, não tendo con-
mas um forno a gás. Quer dizer: havia também siderado o problema do caminho e das suas
um forno na cozinha, mas não o usávamos. etapas, sem se ralar com as perspectivas mete-
Que querem, numa casa sem forno a gás havia reológicas, tendo apenas noções muito confusas

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de Inverno, ou mesmo de Outono, em lugar de
Verão, talvez tivesse levado ambos. Isso já me
sobre a utensilhagem de que importava munir- tinha acontecido e apenas tivera que me feli-
-se, a respeito da duração provável da expedição, citar com o facto.
sobre a soma de dinheiro de que havia de ter j\ssim vestido não odia esperar assar _
necessidade e até sobre a natureza do trabalho desQercebido. Nem o desejava. 'F azer mü=iiõs
a fornecer e por consequência sobre os meios a - Iiõtar na rofissão ue exercia, ea fiifância da
pôr em acção. E não obsta~te eu a~s?biava , arte. FazeL.!!ascec sentImentos de piedade,
enquanto ia metendo no surrao um mmimo de ---a~indulgência , provocar_a _hilar1dãâe ~ _o~_
porcarias análogas às que indicara ao meu filho. sàrcasmos, iss<Lsim é indis ensáve1. Outros
Enverguei o meu velho fato de caça sal e - t ant os t r unfos secretos no bara o. Com a con-
pimenta, de calção curto abotoado acima do dição de não podermos comover-nos, nem dene-
joelho, meias a condizer e um par de batifarras grir, nem rir. Eu punha-me fàcilmente nesse
pretas , de cano alto. Curvei-me, as mãos nas estado. Depois havia a noite.
nádegas, e observei as pernas. Frágeis e cam- O meu filho apenas me podia estorvar.
badas acomodavam-se mal àquela fatiota que Parecia-se com milhares de rapazes da sua
aliás a minha aldeia não me conhecia. Porém, idade e da SU8i condição. Um pai é por definição
quando partia de noite, para destino remoto, mais sério. Mesmo grotesco, impõe sempre um
punha-a de bom grado, sentindo-me nela muito certo respeito. E quando o vêem flanar com o
à vontade, embora um tanta borra-botas. Só tenro filho, cujo rosto cada dia mais se alonga,
me faltava uma rede de apanhar borboletas então já não há possibilidade de trabalharmos.
para ter vagamente o ar de um professor pri- Tomam-nos por viúvos, as cores mais berrantes
mário de província em férias de convalescença. nada podem contra isso, até agravam a situação,
As pesadas botas de um negro brilhante! e que porque fazem com que nos imputem esposas
pareciam implorar umas calças ?e. s~rJ:: azul mortas de longa data, de parto provàvelmente.
marinho, davam o golpe de misericórdía aquele E em mim, veriam nas minhas excentricidades
conjunto que sem elas teria podido parecer, aos apenas um efeito da viuvez, que me teria
olhos de gente mal informada, de um mau gosto obnubilado o entendimento. Subia dentro de
de bom tom. Como chapéu, após madura hesi- mim a cólera contra quem me impunha tal
tação, decidi-me pelo meu palhinhas,. a;marele- entrave. Tivesse ele querido ver-me falhar, não
cido pela chuva. Tinha perdido a fitinha de teria conseguido arranjar melhor. Se tivesse
borla, o que o fazia parecer de uma altura podido reflectir com o meu sangue-frio habi-
desmesurada. Tive a tentação de levar o meu tut.l no trabalho que me exigiam, tê-la-ia jul-
pesado guarda-chuva de inverno de castão mas- gado talvez de natureza a ser facilitado pela
siço. A capa é uma vestimenta prática e eu presença do meu filho em vez de ser prejudicado
tinha muitas. Deixa aos braços uma grande por ela. Mas não vamos voltar a esse problema.
liberdade de manobra e ao mesmo tempo Talvez conseguisse fazê-lo passar por meu
dissimula-os. Ocasiões há em que a capa é por assistente, ou por um mero sobrinho. Proibi-
assim dizer indispensável. Mas o guarda-chuva
tem também grandes méritos. E se tivesse sido 181
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-lo-ía de me chamar papá, ou de me testemunhar suspensório, impede-me de a perder. Essa ca-
afeição, diante dos outros, sob pena de eu lhe deia, quatro ou cinco vezes mais comprida do
pregar uma daquelas abençoadas bofetadas que que seria necessário, repousa, enrolada, no bolso,
tanto temia. por cima do mólho. O peso faz-me inclinar para
E se, enquanto desfiava esses lúgubres pen- a direita quando estou fatigado ou me esqueço
samentos, me acontecia não obstante assobiar de o compensar, com um esforço muscular.
de vez em quando alguns compassos, é que no Deitei um derradeiro olhar em redor
fundo devia estar contente por deixar a minha notei que descuidara certas precauções, reme~
casa, o meu jardim, a minha aldeia, eu que diei a coisa, agarrei no surrão, por pouco es-
habitualmente deixava tudo isso com pesar. crevia na guitarra., no chapéu de palha, no
Há pessoas que assobiam sem razão para isso. guarda-chuva, espero não esquecer nada, apa-
Eu não. E enquanto ia e vinha no meu quarto, guei a luz, saí para o corredor e fechei a porta
pondo as coisas em ordem, arrumando no armá- à chave. Eis o que é claro como água. Ouvi logo
rio as roupas e nas respectivas caixas os cha- a seguir um som de estrangulamento. Era o
péus que tirara para fora, a fim de poder fazer meu filho a dormir. Acordei-o. Não temos um
livremente a minha escolha, fechando à chave minuto a perder, disse-lhe. O tipo agarrava-se
as diferentes gavetas, durante esse tempo todo desesperadamente ao próprio sono. Era natural.
vía-ms com alegria longe da minha comuna, das Algumas horas de um sono mesmo de chumbo
trombas dos conhecidos, de todas as minhas não bastam a um organismo ainda púbere
âncoras de salvação, sentado na obscuridade abalado pela indigestão. E quando o sacudia
sobre um marco, as pernas cruzadas, uma não e ajudava a sair da cama, puxando-o primeiro
na coxa, o cotovelo nessa mão, o queixo na pelo braços depois pelos cabelos, afastou-se de
outra, os olhos fixos no chão, como num tabu- mim cheio de raiva, para junto da parede, e
leiro de xadrez, traçando friamente os meus enterrou as unhinhas no colchão. Tive que
planos, para o dia seguinte, e para o dia se- fazer apelo a todo o meu vigor para quebrar
guinte ao seguinte, criando o tempo por vir. aquela resistência. Porém, mal o arrancara da
E nesse momento esquecia que o meu filho cama, o tipo escapuliu-se ao meu abraço ati-
estaria a meu lado, agitando-se, lamuriando, rou-se ao chão e pôs-se a rebolar, soltando
reclamando que comer, que dormir, sujando as berros de cólera e de revolta. A coisa já come-
cuecas. Tornei a abrir a gaveta da mesa de çava. Diante de tão nojenta exibição forçoso
cabeceira e tirei dela um tubo inteiro de com- me foi utilizar o guarda-chuva, agarrado pela
primidos de morfina, o meu calmante favorito. ponta, com ambas as mãos. Uma palavra porém
O meu mólho de chaves é enorme, pesa bem s~bre o meu palhinhas, antes que me esqueça.
mais de uma libra. Não há porta, nem gaveta Tmha o bordo trespassado por dois buracos,
em minha casa, cuja chave me não acompanhe u:m de cada lado naturalmente, que eu próprio
para onde quer que vá. Trago-as no bolso fizera, com uma pua. E nesses buracos amar-
direito das calças, dos calções na ocorrência. rara as duas pontas de um elástico comprido
Uma cadeia massíça, muito bem atada a um bastante para me passar por baixo do queixo,

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ou antes por baixo dos maxilares, mas não nele uma grande desordem. Fora fazia bom
demasiado comprido, porque era necessário tempo, na minha modesta opinião. O ar estava
que me ficasse bem justo, ou antes por baixo perfumado. O cascalho chiou debaixo dos nossos
dos maxilares, Dessa maneira, fossem quais passos. Não, disse eu, por aqui. Embrenhei-me
fossem as voltas que desse, o meu palhinhas na mata. Atrás de mim o meu filho estrebu-
ficava sempre em seu lugar, que era sobre a chava, às topadas contra os troncos. Não sabia
minha cabeça. Tu não tens vergonha, gritei, orientar-se no escuro. Era ainda tão jovem,
seu nojento, seu malcriadão! Ia enfurecer-me as palavras de censura morreram-me nos lábios.
não tardava, se me não contivesse a tempo. Ora Detive-me. Agarra-me a mão, disse. Teria po-
a cólera é um luxo que não posso permitir-me. dido dizer, Dá-me a tua mão. Disse, Agarra-me
Porque então fico cego, uma cortina de sangue a mão. Bizarro. Mas a vereda era demasiado
instala-se-me diante dos olhos e, à semelhança estreita para podermos avançar os dois de
do grande Gustavo, ouço estalar o banco dos frente. Pus portanto a mão atrás das costas
réus. Oh não é impunemente que se é meigo , e o meu filho agarrou-a, com gratidão pare-
delicado, razoável, paciente, dia dia após dia, ceu-me. Chegámos assim ao postigo rústico
ano após ano. Atirei com o guarda-chuva e de clarabóia fechado à chave. Abri-o e afastei-
precipitei-me para fora do quarto. Na escada -me, para que o meu filho passasse primeiro.
encontrei Marta que sub ia , sem t ouca, os cabelos Voltei-me para ver a casa. A mata ocultava-ma
desgrenhados e as vestes em desordem. O que em parte. A crista denteada do telhado, a
é que se passa? gritou. Olhei-a. Voltou para a única chaminé mais os seus quatro canos, mal
cozinha. Corri a tremer à cocheira, agarrei no se destacavam de encontro ao céu onde babu-
machado, saí para o pátio e pus-me a dar com javam algumas estrelas afogadas. Ofereci o
toda a gana num velho tronco que ali havia e rosto àquela massa negra de vegetação rescen-
sobre o qual tranquilamente no Inverno rachava dente que me pertencia, de que eu podia fazer
em quatro os meus cavacos. A lâmina acabou o que bem me apetecia sem que ninguém me
por se enterrar tão profundamente nele que fizesse observações. Estava gafa de pássaros
não consegui mais libertá-lo. Os esforços cantores com a cabeça debaixo de uma asa e
que fiz para esse efeito trouxeram-me, com nada temendo, porque me conheciam. As minhas
o esgotamento, a calma. Subi ao primeiro árvores, os meus arbustos, os meus canteiros,
andar. O meu filho vestia-se , chorando. Toda os meus minúsculos relvados, julgava amar
a gente chorava. Ajudei-o a pôr a mochila isso tudo. Se lhes suprimia às vezes um ramo,
às costas. Recomendei-lhe que não se es- uma flor, era unicamente para bem deles, para
quecesse do impermeável. Ele quis metê-lo que crescessem mais escorreitos e mais felizes.
dentro da mochila. Disse-lhe que, de momento, Mas palavra que o fazia com o coração apertado.
o levasse no braço. Era quase meia-noite. Le- De resto era simples, não o fazia eu, mandava
vantei o guarda-chuva do chão. Indemne. Christie fazê-lo. Eu não cultivava legumes. O
Avança, ordenei. Saiu do quarto que contem- galinheiro não ficava longe. Menti quando disse
plei um instante, antes de o seguir. Reinava que tinha perús, etc. Tinha apenas algumas

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galinhas. A minha galinha cinzenta lá estava, a esquerda nem para a direita, com o ar de
não no poleiro com as outras, mas por terra, quem não dá por nada, mas na realidade atento
a um canto, ao pó, à mercê dos ratos. O galo aos mínimos pormenores do caminho. Porém,
já não a procurava para lhe saltar raivosa- comigo o ladrão tomava invariàvelmente a di-
mente em cima. Não estava longe o dia em recçãoerrada, bastava uma encruzilhada, ou
que, se não arrebitasse, as outras galinhas, uma si mples junção, para se afastar do bom
unindo esforços, a fariam em pedaços, à bicada caminho, o que eu escolhera. Não creio que o
e à garrada. Tudo silencioso. Tenho um ouvido fizesse de propósito. Porém, descansando em
apuradíssimo. Porém não sou nada musical. mim, já não dava atenção ao que fazia, não
Percebi aquele adorável rumor feito de ín- olhava para onde ia e avançava maquinal-
fimas pisadelas, de nervosas penas, de ínfimos mente mergulhado numa espécie de sonho. E
cacarejos logo reprimidos, que é o dos gali- olr-se-ía que se deixava aspirar por todas as
nheiros de noite e que termina muito antes da aberturas susceptíveis de o fazer desaparecer.
aurora. Quantas noites o não escutava com De sorte que tínhamos adquirido o hábito de
deleite, dizendo-me, Amanhã estou livre. Vira- passear cada um por seu lado. E o único passeio
va-me assim uma última vez para os meus que dávamos regularmente juntos vinha a ser
pequenos haveres, antes de os deixar, na espe- o que nos levava, todos os domingos, de casa
rança de os conservar. para a igreja e, terminada a missa, da igreja
Já na ruela, tendo fechado devidamente a para casa. Levado então pela lenta onda dos
porta à chave, vou eu e digo assim para o meu fiéis o meu filho já não estava só comigo. Antes
filho, Para a esquerda. Havia muit<? tempo que fazia parte desse dócil rebanho que ia agradecer
renunciara a passear com o meu filho, apesar mais uma vez a Deus a suas benesses e implo-
do vivo desejo que algumas vezes tinha de o rar perdão e miseri córdia, e a seguir, voltando
fazer. A mais pequena saída com ele, era para costas, tranquilizada a alma, ala para outras
mim um suplício, de tal modo se enganava nas satisfações.
direcções. Sozinho no entanto parecia conhecer Esperei que volt asse atrás, antes de pro-
todos os atalhos. Quando o mandava à merce- nunciar as palavras destinadas a regular essa
aria, ou a casa da Madame Clément, ou mesmo questão uma vez por todas. Põe-te sempre atrás
mais longe, à estrada de V buscar sementes, de mim, disse , e segue-me. Esta solução tinha
estava de volta em metade do tempo que eu coisas boas, sob vários pontos de vista. Seria
próprio teria levado a fazer o mesmo trajecto, e ele porém capaz de me seguir? Não chegaria
sem ter corrido. Porque eu não queria que fatalmente o momento em que levantaria a
se visse filho meu às cabriolas pelas ruas, cabeça e se descobriria só, num sítio desconhe-
como os valdevinos que ele frequentava às cido, e em que eu, sacudindo os pensamentos,
escondidas. Não senhor, queria que andasse olharia para trás para constatar o seu desa-
como eu ando, com passinhos rápidos, cabeça parecimento? Namorei por momentos a ideia
alta, respiração igual e bem medida, ba- de o amarrar a mim com uma corda
louçando os braços, não olhando nem para comprida, cujas duas extremidades enrolaría-
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mos à volta das nossas cinturas. Há varias
maneiras de nos fazermos notados e eu não es-
tava certo se essa estaria entre as boas. E além enfiados entre duas tabuinhas do postigo, eu
disso o tipo podia desfazer os nós em silêncio, estava imóvel como uma estátua. Ele voltou
e dar o fora, deixando-me seguir o meu caminho portanto atrás uma segunda vez. Disse-te que
sozinho, seguido de uma corda comprida a me seguisses e tu precedes-me, ralhei.
arrastar na poeira, como um bom burguês de Estava de férias grandes. O seu boné de
Calais. Até ao momento em que a cor da, pren- estudante era verde com iniciais e uma cabeça
dendo-se a qualquer objecto fixo ou pesado, de veado ou de javali bordadas a ouro à frente.
me quebrasse o impulso. Teria sido portanto Estava colocado sobre o seu enorme crânio
necessário, em lugar de uma corda mole e louro com uma exactidão de cápsula. Assim é
silenciosa, uma corrente, coisa com que se não que ele gostava de a usar. Há não sei o quê
devia sonhar. Mas não obstante sonhei, diver- nos bonés postos assim rigorosamente a prumo
ti-me um momento a sonhar com ela , a imagi- que tem o dom de me exasperar. Quanto ao
nar-me para comigo num mundo menos mal impermeável, em lugar de o t razer dobrado no
feito e a descobrir de que maneira, não tendo à braço, ou atirado por cima do ombro, trazia-o
disposição mais do que uma simples cadeia, sem enrolado em bola e agarrava-o com as duas
golinha nem coleira nem ferros de qualquer mãos, sobre a barriga. Ali estava à minha
espécie, poderia acorrentar a mim o meu rico frente, os enormes pés afastados, os joelhos do-
filho de modo que se não pusesse a mexer. brados, a barriga saliente, o busto metido para
Tratava-se de um problema de laços e de nós dentro, o queixo no ar, a boca aberta, numa
e tê-la-ia resolvido se necessário. Porém, já me atitude de verdadeiro minus habens. Também
fazia negaças outra imagem do meu filho eu devia ter o ar de me ag uent ar de pé graças
caminhando, não atrás de mim , mas à frente. unicamente ao guarda-chuva e ao apoio do pos-
Assim colocado em relação a ele teria podido tigo. Lá consegui por fim articular, És capaz de
tê-lo debaixo de olho e intervir, ao mais pe- me seguir? Não respondeu. Porém adivinhei-
queno falso movimento da sua parte. Mas além -lhe o pensamento t ão claramente como se o
de que eu ia ter outros papéis a desempenhar, tivesse exprimido, a saber, E tu, serás capaz de
durante esta expedição, que não o de vigilante me conduz ir? Soou a meia-noite, no campanário
e de enfermeiro, a perspectiva de não poder da minha querida igreja. Pouco importava. Em
dar um passo sem ter debaixo dos olhos aquele minha casa já não estava. Procurei no meu
corpinho roliço e sensaborão era-me intole- espírito, onde se encontrava tudo que neces-
rável. Vem cá! gritei. Porque o tipinho ao sito, que objecto da sua afeição podia ele
ouvir-me dizer que era preciso ir para a es- ter trazido. Espero, disse, que não tenhas
querda tinha ido para a esquerda, como se esquecido o teu canivete de escuteiro, podemos
estivesse apostado em pôr-me fará de mim. vir a ter necessidade dele. Esse canivete com-
Derreado sobre o guarda-chuva, a cabeça baixa portava, além das cinco ou seis lâminas de
como sob uma maldição, os dedos da mão livre primeira necessidade, um saca-rolhas, um abre-
-latas, um furador, uma chave de parafusos,
188 um pé-de-cabra e não sei que outras futilidades

189
ainda. Eu é que lho tinha dado , por ocasião do e pus-lhe a mão no ombro, dizendo, Paciência,
seu primeiro prémio de história e geografia, meu filho, paciência. O que é terrível nestes
ciências assimiladas por obscuras razões urna casos é ter-se vontade e não ter os meios, e
à outra na escola que frequentava. O último dos inversamente. Mas isso não podia o meu filho
cancros em tudo o que respeitava às letras suspeitar ainda, pobrezinho, devia acreditar
e às ciências exactas, não tinha par em datas que aquela raiva que o fazia tremer, e lhe
de batalhas, restaurações e outras façanhas alterava os traços, o não deixaria a não ser no
do género humano, na sua lenta ascensão em dia em que pudesse fazer-lhe as honras. E
direcção à luz, e em traçados de fronteiras e mesmo assim. Palavra, ele devia atribuir-se
altitudes de picos. Tudo isso valia bem um cani- urna alma de pequeno Dantes, cujas macacadas
vete de campismo. Não me digas que o deixaste lhe eram aliás familiares; tal qual as edições
em casa, continuei. Claro que não, respondeu, Hatchet se permitem relatar. Depois, com urna
com orgulho e satisfação, batendo na algibeira. boa palmada naquela omoplata impotente,
Muito bem, pássa-mo para cá , disse eu. Não res- disse-lhe, A caminho. E palavra de honra pus- .
pondeu, naturalmente. Não estava nos seus há- -me efectivamente a cam inho e o meu filho
bitos ter em conta uma primeira advertência. locomoveu-se atrás de mim. Partia, acompa-
Passa para cá esse canivete, repeti. E deu-mo .. nhado de meu filho, conformemente às ins-
Que queriam que fizesse, sozinho comigo de truções que recebera.
noite e sem testemunhas? Era para o bem dele , Não tenho a intenção de relatar as diversas
para evitar que se perdesse. Porque onde estiver aventuras que nos couberam, a mim e ao meu
o respectivo canivete, está o coração do es cu- filho, em conjunto e separadamente, antes da
teiro, a menos que tenha meios para comprar nossa chegada ao país de Molloy. Seria fasti-
outro, o que não era o caso do meu filho. Por- dioso. Mas não é isso que me detém. Tudo é
que, não tendo necessidade, nunca ele trazia nu- fastidioso, nesta narrativa que me impõem. Mas
merário consigo. Em compensação metia cada hei-de conduzi-la corno me der na real gana,
dinheiro que recebia, e não recebia muitos, pri- até certo ponto. E se não tiver a dita de agra-
meiro no seu mealheiro italiano, depois na caixa dar, ao comanditário, se este nela encontrar
económica, cujo livrete eu guardava em meu passagens menos corteses para ele e respectivos
poder. Naquele momento sem dúvida ter- associados, tanto pior para todos nós, tanto
-me-ia degolado de muito boa vontade, com esse pior para todos eles, porque para mim já não
mesmo canivete que eu metia tão vagarosa- existe pior. Isto é: para fazer urna ideia disso
mente no bolso. Mas era ainda muito novinho, ser-me-ia preciso mais imaginação do que
o meu filho, um pouco mole ainda, para os tenho. E no entanto tenho muito mais do que
grandes actos justiceiros. Porém o tempo tra- antigamente. E este triste trabalho de ama-
balhava por ele e talvez se consolasse com con- nuense que não é da minha competência, sub-
siderações desse género, estúpido corno era. meto-me a ele por razões que estão longe de
Fosse corno fosse, conteve dessa vez as lágri- ser as que se podiam supor. Obedeci mais urna
mas, por isso lhe fiquei grato. Empertiguei-me vez às ordens, se se quiser, porém já não é o
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à minha aproximação, e todas as absurdas do-
medo que me inspira. J!: mentira, continuo a ter çuras do meu interior, em que cada coisa tem
medo, mas isso é mais um efeito do hábito. E o seu lugar, em que tenho tudo o que é neces-
a voz que escuto, não precisei de Gaber para sário à mão para poder suportar ser homem,
ma transmitir. Porque ela está em mim e onde os meus inimigos me não podem atingir
exorta-me a ser até ao cabo o fiel servidor que levei a vida inteira a edificar a embelezar'
que tenho sido sempre, servidor de uma causa a aperfeiçoar, a conservar? Estou' velho demai~
que não é minha, e a cumprir pacientemente o para perde: tudo isso, para recomeçar, estou
meu papel até às derradeiras amarguras e ex- velho demais! Vamos, Moran, calma, calminha.
tremidades, como eu queria, no tempo em que Nada de emoções, por amor de Deus.
ainda tinha querer, que os outros fizessem. Dizia eu que não relataria todas as vicis-
E isto tudo odiando o meu patrão e com des- situdes do caminho que vai do meu país ao de
prezo pelos seus objectivos. Como vêem, tra- Molloy, pela razão simples que tal não se en-
ta-se de uma voz bastante ambígua e que nem contra nas minhas intenções. E ao escrever
sempre é fácil de seguir nos seus raciocínios e estas linhas sei quanto me exponho a denegrir
decretos. Mas não obstante sigo-a, mais ou aquele que eu teria sem dúvida interesse em
menos, sigo-a neste sentido: compreendo-a, e, poupar, agora mais do que nunca. Mas escre-
neste sentido, obedeço-lhe. E são raras as ve- vo-as mesmo assim, e com mão firme inexo-
zes de que se possa dizer tanto. E tenho a im- rá:vel. lançadeira que me devora a página com
pressão de que doravante a seguirei, ordene- a indiferença de um flagelo. Porém vou narrar
-me o que me ordenar. E quando se calar, dei- com brevidade algumas delas, porquanto isso
xando-me na dúvida e na obscuridade, esperarei me parece desejável, e para dar uma ideia dos
que volte, antes de fazer o quer que seja, e nem métodos da minha plena maturidade. Mas antes
que o mundo inteiro, por intermédio das suas de.lá chegar direi o pouco que sabia, ao deixar a
inumeráveis autoridades reunidas e unânimes, mmha casa, do país de Molloy, tão diferente
me ordene isto ou aquilo, sob pena de sevícias do meu. Porque uma das características deste
indescritíveis. Porém esta noite, esta manhã, frete é que não me é permitido saltar etapas
bebi um pouco mais do que é costume, e e dizer sem mais aquelas do que se trata. Antes
amanhã posso ser de outra opinião. E diz-me ~evo ignorar outra vez o que já não ignoro e
também, essa voz que só agora começo a conhe- Julgar saber o que ao partir de minha casa
cer, que a recordação desse trabalho cuidado- julgava saber. E se derrogo volta e meia esta
samente executado até final me ajudará a regra, é somente em pormenores de pouca
suportar os longos horrores da liberdade e da monta. Mas no conjunto conformo-me a ela.
vagabundagem. Quererá isto dizer que serei E .com tal. calor que sem exagero sou, ainda
expulso, um dia, da minha casinha, do · meu hoje, a maior parte do tempo, mais aquele que
jardim, que perderei as minhas árvores, os descobre do que aquele que narra. E é com
meus relvados, os pássaros que um a um me dificuldade qu~, no silêncio do meu quarto, e
são familiares, cada um com a sua maneira o assunto arquivado no que me diz respeito, sei
de cantar, de voar, de vir a mim ou de fugir
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melhor para onde vou e o que me espera do que existe termo abstracto ou genérico para tais
na noite em que me agarrava ao postigo, ao subdi~isões do te~ritório. E para as designar
lado do esparvoado do meu filho, na ruela. E possuímos outro sistema, de uma beleza e sim-
não me espantaria se me afastasse, nas páginas plicidade notáveis, e que consiste em dizer
que vão seguir-se, da marcha estreita e real dos Bally (visto que se trata de Bally) quando nos
acontecimentos. Porém, mesmo a Sísifo não queremos referir a Bally e Ballyba quando nos
penso lhe seja imposto que se coce, ou quando nos queremos referir a Bally mais as ter-
gema, ou exulte, a acr editar numa doutrin a ras a~ja~entese Ballybaba quando nos queremos
muito em vog a , sempre nos mesmos sítios re~en~ as terra~ de Bally exclusivas de Bally
exactamente. E é mesmo possível qu e não se pr~prlamente ~lta. Eu por exemplo vivia em
esteja demasiado a cavalo no caminho que se Shit, e reflectmdo bem ainda vivo em Shit
tome desde que se chegue a bom porto, nos capi~al de Shitba. E de noite quand~ passeava:
prazos previstos. E qu em nos diz que ele não peneiras de apanhar fresco, fora de Shit era o
julga todas as vezes qu e se t r ata da primeira ? fresco de Shitba que apanhava, e mais n~nhum.
Isso alimentar-lhe-ia a esperança , não é ver- _ Bal~ybaba, mal-grado a sua pouca extensão,
dade, a esperança que é a dis posi ção infernal nao deixava de oferecer uma certa variedade.
por exc elência, contràriamente ao que se pôde Pastagens como quem diz , algumas turfeiras,
acreditar até aos nossos dias. Ao passo que u~a;> quantas matas e, à medida que nos apro-
vermo-nos r eincidir infinitamente, enche-nos xlmavamo.s dos confins, aspectos encapelados
de alegria. e quase ridentes, como se Ballybaba estivesse
Por país de Molloy entendo a região mui- c~:mtente por não ir mais longe. Porém a prin-
tíssimo restricta de que ele nunca transpusera, c~pal beleza dessa região vinha a ser uma espé-
e verosimilmente jamais transporá, os li- CIe de estrangulada angra que marés lentas
mites administrativos, ou porque tal lhe fora e cinze~tas esvaziavam e enchiam, esvaziav am
interdito, ou porque não est iver a para isso, ou e ,enchIam. E as pessoas men os romanescas
quem sabe se naturalmente por efeito de um saiam do burgo em magote, para admirar tal
extraordinário acaso. Essa região estava si- espectáculo. Diziam uns, Nada é mais belo do
tuada a norte, rel ativamente à mais amena em que estas areias mal molhadas. E outros E
que eu vivia, e compunha-se de um aglomerado na maré alta que é preciso vir, para apreciar a
que alguns gratificavam com o nome de burgo angra de Ballyba. Quão bela é então essa água
e onde outros mais não viam do qu e uma aldeia, plúmbea e que se diria morta, não estivéssemos
e de campos circunvizinhos.. Esse burgo, ou nós informados do contrário! E outros final-
essa aldeia, digamo-lo já, chamava-se Bally, e mente afirmavam que aquilo se parecia com
representava, com as terras dele ou dela de- um lago subterrâneo. Porém estavam todos de
pendentes, uma superfície de cinco ou seis acordo, a exemplo dos habitantes de Isigny
milhas quadradas quando muito. Nos países que a cidade deles dava para o mar. E vai d~
evoluídos chama-se a isso, creio, uma comuna, escreverem Bally-sobre-o-mar nos cabeçalhos
ou um cantão, não sei bem, mas entre nós não do papel de carta.

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Ballyba era pouco povoado, com o que para
ser franco me regozijava antecipadamente. As com o aqui-jaz e a data do meu nascimento.
terras prestavam-se mal a uma exploração. Depois era só acrescentar a da minha morte.
Porque mal uma lavra ganhava certa amplidão, Não me deixaram. Algumas vezes sorria, como
ou quem diz uma lavra diz um pradinho, se já estivesse morto.
logo quebrava as ventas numa mata druídica Caminhámos a pé durante alguns dias, to-
ou numa faixa de pântanos de onde nada mando caminhos secretos. Não queria mos-
havia a tirar a não ser uma miséria de trar-me na estrada principal.
turfa de péssima qualidade ou destroços de No primeiro dia, encontrei a beata do cha-
carvalho raquítico de que se fabricavam amu- ruto do padre Ambrósio. Não só não a atirara
letos, corta-papéis, argolas de guardanapo, ro- fora, para o cinzeiro, para o cesto de papéis,
sários, escapulários e outras bugigangas deste como a metera no bolso ao mudar de fato. Isto
género. A nossa senhora de Marta, por exemplo, passa:a-se .sem eu saber. Olhei-a com espanto,
provinha de Ballybaba. As pastagens, apesar acendi-a, tirei algumas fumaças, deitei-a fora.
das chuvas torrenciais, eram de uma extrema Foi o facto marcante desse dia.
pobreza e salpicadas de rochedos. Nelas apenas Ensinei ao meu filho como se servir da
cresciam com abundância grama e uma curiosa bússola de bolso. Adorava. Ia-se comportando
gramínea azul e amarga imprópria para a ali- bem, muito melhor do que esperava. Ao ter-
mentação do gado de grande porte, mas a que ceiro dia restitui-lhe o canivete.
não tinham outro remédio senão adaptar-se a O tempo favorecia-nos. Fazíamos fàcil-
cabra e o carneiro preto. De onde tirava então mente as nossas dez milhas por dia. Dormíamos
Ballyba a opulência? Já vos digo. Não, não direi ao relento. A prudência assim aconselhava.
nada. Nada. Mostrei ao meu rapaz como se fazia um
Eis portanto uma parte daquilo que jul- abrigo de ramos de árvore. Estava nos escu-
gava saber a respeito de Ballyba ao partir de teiros, mas não sabia fazer coisa nenhuma.
casa. Pergunto-me ainda hoje se a não con- · Sabia sim, sabia fazer fogueiras. Em todas as
fundiria com outro sitio qualquer. paragens me suplicava que o deixasse exercer
Mais ou menos a uma vintena de passos esse talento. Eu não via a utilidade da coisa.
do postigo a ruela punha-se a rasar o muro Comíamos refeições frias, coisas enlatadas
do cemitério. Quanto mais a ruela descia, mais que eu o mandava comprar pelas aldeias. Ser-
o muro subia. A partir de certo ponto caminha- via-me para isso. Bebíamos a água dos ribeiros.
-se mais baixo do que os mortos. :tr: ai que tenho Todas essas precauções eram certamente
a minha concessão a título perpétuo. Enquanto inúteis. Um dia num campo lobriguei um ca-
houver terra, esse lugar será, em princípio, seiro do meu conhecimento. Caminhava em
meu. Ia lá de vez em quando contemplar a nossa direcção. Fiz imediatamente meia volta
minha campa. Esta já estava no seu lugar de- agarrei o meu filho pelo braço e arrastei-o n~
vido. Uma simples cruz latina, muito branca, sentido oposto ao que devia ser. O caseiro
Bem tinha querido mandar gravar nela o nome, apanhou-nos como eu tinha previsto. Tendo-me
saudado, perguntou-me onde íamos. O campo
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devia ser dele. Respondí-lhe que voltávamos coisa que faltava para que o relatório de Gaber
para casa. Felizmente não estávamos ainda ficasse completo. Tinha a impressão que ele
muito' longe dela. Perguntou-me então onde me devia ter dito o que seria preciso fazer de
tínhamos estado. Talvez lhe tivessem roubado Molloy uma vez este encontrado. Trabalho meu
algum boi ou algum leitão. Dar uma volta, - nunca acabava com a descoberta. Isso seria bom
respondi. Tinha muito prazer em levá-los no demais. Antes tinha que agir sempre sobre o
meu carro, ofereceu, mas só parto de noite. interessado de uma maneira ou de outra. con-
Que pena, disse logo. Se quiserem esperar, con- soante as instruções. Essas instruções reves-
tinuou, é de boa vontade. Agradeci-lhe. Feliz- tiam formas inteiramente diversas umas das
mente não era ainda meio-dia. Não querer es- outras, desde as mais enérgicas às mais dis-
perar até à noite, nada tinha pois de estranho. cretas. O caso York, que levei perto de três
Pois então, bom regresso, disse. Fizemos um meses a levar .a cabo, terminou no dia em que
grande desvio e retomámos o caminho do norte. consegui apoderar-me do respectivo alfinete
Tais precauções eram sem dúvida exage- de gravata e destruí-lo. Estabelecer o contacto
radas. Para fazer as coisas como deviam ser não era a mínima parte do meu trabalho. En-
teria sido talvez necessário viajar de noite e contrei York ao terceiro dia. Nunca me pediam
escondermo-nos de dia, ao menos nos primeiros a prova dos meus sucessos, acreditavam na
tempos. Mas fazia tão bom tempo que não podia minha palavra. Youdi devia ter meios de ins-
resolver-me a isso. Não pensava senão no meu pecção. Uma vez ou outra pediam-me relatório.
prazer, não queriam lá ver! Coisa semelhante Doutra vez a minha missão tinha consistido
nunca me tinha sucedido, no meu trabalho. E a em conduzir determinada pessoa a determinado
lentidão com que avançávamos! Eu não devia lugar. Trabalho dos mais delicados, porque se
ter muita pressa de chegar. tratava de uma mulher. Nunca tivera que me
Reflectia aos repelões, abandonando-me ao ocup8;r ~e mu~heres. O que lamento. Acho que
mesmo tempo à doçura do Verão moribundo, nas YOUdl nao se interessava muito por elas. Lem-
instruções de Gaber. Não conseguia reconsti- bro-me a propósito disto de uma piada de
tuí-las com inteira satisfação para mim. De barbas a respeito da alma das mulheres. Per-
noite, sob as ramadas, subtraído às atracções da gunta, As mulheres terão alma? Resposta,
natureza, entregava-me inteiro a esse problema. Têm. Pergunta, Para quê? Resposta, Para que
Os ruídos que o meu filho fazia a dormir possam ser condenadas às penas do inferno.
perturbavam-me consideràvelmente. Algumas Muito divertido. Tinham-me concedido uma
vezes saía do abrigo e passeava de um lado para grande licença para esse dia. O importante era
outro, no escuro. Ou então sentava-me de costas a hora, não a data. Uma vez no local marcado
contra um tronco, encolhia os pés por baixo de abandonei-o, a pretexto de qualquer coisa.
mim, envolvia as pernas com os braços e apoiava Tratava-se de um gentil rapaz, bastante triste
o queixo sobre um joelho. Mesmo nessa atitude e taciturno. Lembro-me vagamente de ter in-
não conseguia ver claro. Que procurava eu ventado uma história de saias. Esperem, agora
exactamente? Era difícil dizer. Procurava a me lembro. Pois, pois, disse-lhe que ela estava
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apaixonada por ele havia seis meses e desejava depois os avisaria, que até lá teria tempo, que
vivamente encontrá-lo num lugar afastado. a coisa me voltaria à memória quando menos
Cheguei a dizer-lhe o nome da fulana. Trata- esperasse e que, depois de encontrar Molloy, se
va-se de uma actriz bastante conhecida. Tendo-o continuasse a ignorar o que seria preciso fazer
conduzido ao local designado por ela , era por- dele, podia sempre arranjar maneira de con-
tanto natural que me retirasse, por delicadeza. tactar Gaber sem que Youdi soubesse. Tinha
Ainda o estou a ver a ver-me afastar. Teria o seu endereço como ele tinha o meu. Mandar-
adorado ter-me como am igo, tenho a certeza. -lhe-ia um telegrama, Que fazer de M? Ele havia
Não sei o que foi feito dele. Desinteressava-me de saber responder-me em termos claros em-
dos meus operados, uma vez a intervenção ter- bora velados se necessário. Mas haveria telé-
minada. Direi mesmo que não tornei a ver um grafo em Ballyba? Mas dizia ta mbém para
único deles, depois, Digo isto sem pensamentos comigo, o que era humano, quanto mais tar-
reservados. Oh as histórias que poderia con- dasse a encontrar Molloy mais oportunidades
tar-vos, se estivesse sossegado. Que horda nesta teria de me lembrar do que devia fazer dele.
cabeça, que galeria de vencidos. Murphy, Watt, E teríamos continuado a avançar tranquila-
Yerk, Mercier e tantos outros. Nunca teria mente a pé, sem o incidente que se segue.
acreditado que - acredito pois, não me custa Uma noite, tendo acabado de adormecer
nada. Histórias, mais histórias. Não as soube como de costume ao lado do meu filho , acordei
contar. Nem esta teria sabido contar. em sobressalto, com a impressão de que aca-
Não conseguia portanto saber de que ma- bavam de me agredir violentamente. Estejam
neira devia agir sobre Molloy, assim que o tranquilos, não vou contar nenhum sonho pro-
encontrasse. As indicações que Gaber não podia priamente dito. A obscuridade mais profunda
ter deixado de me dar a esse respeito tinham- reinava no abrigo. Escutei atentamente sem
-se-me varrido completamente da memória. Eis me mexer. Nada ouvi a não ser os roncos e o
o resultado de ter passado o domingo todo arquejar do meu filho. Ia eu já dizer como
ocupado em parvoeiras. Inútil dizer-me, Veja- habitualmente que não passava tudo de um
mos, o que é que habitualmente me pedem? As pesadelo quando uma dor fulgurante me tres-
minhas instruções nada tinham de habitual. passou o joelho. Estava portanto explicado o
Havia é certo determinada operação que rea- meu súbito despertar. A coisa com efeito pare-
parecia volta e meia, porém não tão frequente- cia-se com uma pancada, com o que imagino
mente para que tivesse a sorte de ser a que uma patada de cavalo. Esperei com ansiedade
procurava. Mas se me tivessem pedido outra que o estupor voltasse, imóvel e mal respirando,
coisa uma única vez que fosse, essa única vez e naturalmente suando. Fazia em suma exactís-
teria bastando para me ligar de pés e mãos, de simamente o que eu julgava saber que se fazia,
tal maneira eu era escrupuloso. em semelhantes conjunturas. E efectivamente
A mim mesmo dizia que mais valia não pen- a dor voltou alguns segundos mais tarde, menos
sar mais nisso, que não tinha outra coisa a forte porém do que da primeira vez, ou antes
fazer senão encontrar Molloy primeiro, que da segunda. Ou parecer-me-ia ela menos forte
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apenas porque já a esperava? Ou porque primeiro não poder dobrar a perna, depois
começava já a habituar-me a ela? Acho que obstinando-me lá consegui dobrá-la, um pouco-
não. Porque a magana voltou ainda, várias chinho. A anquilose não era total. Continuo a
vezes, e cada vez com menos força do que a falar do. meu joelho. Seria porém o mesmo que
precedente, e finalmente desapareceu de todo, me acordara ao princípio da noite? Não o teria
de maneira que consegui voltar a adormecer jurado. Não me doía. Resistia muito simples-
sofrivelmente tranquilizado. Mas antes de ador- mente à flexão. A dor, essa, tendo-me preve-
mecer tive tempo de me lembrar que a dor em nido em vão por várias vezes, calara-se. Eis
questão não era completamente nova. Porque já de que maneira eu via a coisa. Ter-me-ia sido,
à sentira, na casa de banho, quando dava o clistér por exemplo, impossível ajoelhar, porque seja
ao meu filho. Mas então atacara-me apenas qual for a maneira de nos ajoelharmos é sempre
uma vez e não voltara mais. E adormeci per- necessário dobrar os dois joelhos, a menos que
guntando-me, como quem se embala, se nessa se adopte uma atitude francamente grotesca c
altura teria sido o mesmo joelho que acabava impossível de sustentar durante mais de alguns
de me doer tanto ou outro. E isso foi coisa que segundos, isto é a perna doente estendia para
nunca consegui esclarecer. E o meu rapaz, in- a frente, à maneira dos dansarinos caucasianos.
terrogado a esse respeito, também não foi Observei o joelho doente à luz da lâmpada
capaz de me dizer qual dos dois joelhos eu es- eléctrica. Não estava nem vermelho nem in-
fregara diante dele, com tintura de iodo, na chado. Fiz mover a rótula. Dir-se-ia um clítoris.
noite da nossa partida. E tornei a adormecer Durante este tempo todo o meu filho soprava
um pouco mais tranquilizado, dizendo para como uma foca. Ele não fazia ideia do que era
comigo, É um pouco de nevralgia provocada capaz a vida. Também eu era ingénuo. Mas
pelas longas caminhadas e pelas noites frescas sabia-o.
e húmidas, e prometendo a mim mesmo arranjar Fazia essa luz horrível que precede de pouco
um rolo de algodão em rama termogéneo com o nascer do sol. As coisas voltam a ganhar
um lindo diabo por fora, na primeira ocasião. sorrateiramente as respectivas posições diurnas,
Tal é a rapidez do pensamento. Mas a coisa não instalam-se, fingem-se mortas. Sentei-me com
estava acabada. Porque tendo de novo acordado precaução sobre a terra e devo dizer que com
pela madrugada, desta vez sob o efeito de uma certa curiosidade. Outro teria querido sentar-se
necessidade natural, e para maior veromisi- como habitualmente, num movimento irreflec-
lhança, com o pénis ligeiramente erecto, não tido. Eu não. Por muito nova que me fosse essa
consegui levantar-me. Quer dizer: por fim lá cruz arranjava logo a melhor maneira de a acar-
acabei por me levantar, e bem precisava, mas retar. Porém quando a gente se senta por terra
ao cabo de quantos esforços! Dizer não poder tem que se sentar à alfaiate, ou à feto, que são
não custa, escrever também não, quando na por assim dizer as únicas posturas possíveis,
realidade nada há mais penoso. Sem dúvida para um principiante. Não tardei portanto a
por causa da vontade, que a mais pequena deixar-me escorregar até ficar de costas. Não
oposição parece desencadear. Assim julguei ia tardar também a acrescentar à soma dos
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Não desenvolverei o meu raciocínio. Ser-
meus conhecimentos este: quando de todas as -me-ia não obstante fácil. Raciocínio que levou
posições que assume sem pensar o homem à decisão que permite a composição da passa-
normal nos restam apenas duas ou três gem seguinte.
abordáveis, há então enriquecimento destas. Dormiste bem? perguntei, assim que o meu
Teria de preferência sustentado o contrário e filho abriu os olhos. Teria podido acordá-lo,
tenazmente, se não tivesse passado por isso. mas não, deixei-o acordar naturalmente. Acabou
Sim senhor, não podendo ficar de pé nem por me dizer que não se sentia bem. Respondia
confortàvelmente sentado, refugiamo-nos nas muitas vezes a latere da pergunta, o meu rico
diferentes posições horizontais como a criança filho. Onde estamos nós, perguntei, e qual é
no regaço da mãe. Exploramo-las como nunca a aldeia mais próxima? Disse-me o nome. Eu
anteriormente e nelas encontramos insuspei- conhecia-a, já lá tinha estado, tratava-se de
tadas delicias. Em suma tornam-se infinitas. um importante burgo, o acaso trabalhava por
E se apesar de tudo nos viermos a cansar a nós. Tinha mesmo lá alguns conhecimentos,
longo prazo, mais não temos que nos pormos entre os habitantes. Em que dia estamos hoje?
de pé alguns instantes, ou mesmo muito tornei a perguntar. Precisou-me o dia sem um
simplesmente nos sentarmos. Eis as vantagens minuto de hesitação. E acabava de recuperar
de um paralisia local e indolor. E não me o conhecimento nesse momento! Já vos disse
espantaria que as grandes paralisias clássicas que ele era um ás em história e geografia. Foi
comportassem satisfações análogas e até talvez com ele que aprendi que Condom é banhado pelo
ainda mais perturbantes. Na verdade estarmos Baíse. Muito bem, disse, tens de ir imediata-
finalmente na impossibilidade de nos movermos, mente a Hole, é coisa que te vai levar mais ou
isso sim deve ser qualquer coisa! Tenho ton- menos - calculei - mais ou menos três horas
turas quando penso nisso. E ainda por cima no máximo. Olhou-me com espanto. Aí, expli-
quei, compras uma bicicleta do teu tamanho,
uma afasia completa! E por que não uma surdez em segunda mão se possível. Podes gastar até
total! E quem sabe uma paralisia da retina! cinco libras. Dei-lhe cinco libras, em fracções
E muito provàvelmente a perda da memória! de dez xelins. :Ê indispensável um porta-baga-
E não mais que o bastante de cérebro deixado gens muito sólido, continuei, se não for muito
intacto para podermos jubilar! E para temer- sólido manda-o substituir, por outro muito
mos a morte como um renascimento. sólido. Esforçava..-me por ser claro. Perguntei-
Reflecti no que seria preciso fazer no caso -lhe se estava contente. Não tinha nada ar de
de o meu joelho não melhorar ou piorar. Obser- estar contente. Repeti as mesmas instruções e
vava, através das ramagens, o céu a baixar. perguntei-lhe outra vez se estava contente. Ti-
O céu de manhã baixa, não se tem relevado nha mais ar de estar estupefacto. Efeito talvez
bastantemente este fenómeno. Aproxima-se da enorme alegria que sentia. Talvez nem
como para nos ver. A menos que seja a terra acreditasse no que ouvia. Compreendeste ao
que se soergue, para se fazer aprovar, antes de menos? insisti. Como faz bem, de vez em
abalar.
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quando, um pouco de autêntica. convers~ç~o. dou a acabrunhar-me. Ordenei-lhe que parasse.
Diz-me o que tens que fazer, pedi. Era o U~ICO Talvez escondesse os dez xelins na manga, ou
meio de saber se o tipo tinha compreendido. na boca. Teria sido necessário que eu me levan-
Tenho que ir a Hole, disse ele, a quinze milhas tasse e o revistasse, da cabeça aos pés. Mas
daqui. Quinze milhas? exclamei. Sim, confirmou ent.ão ele veria que eu estava doente. Não que
ele. Muito bem, disse, continua. Comprar uma eu estivesse exactamente doente. E por que ra-
bicicleta, continuou. Eu à espera. Mais nada. zão não quereria que ele soubesse que estava
Uma bicicleta! berrei. Mas há milhões de bicicle- doente? Sei lá. Teria podido contar o dinheiro
tas em Hole! Que género de bici~leta ? Puxou ~o que me restava. Mas para que me teria servido
bestunto. Em segunda mão, arriscou. E se nao isso? Sabia acaso que soma tinha trazido de
encontrares nenhuma em segunda mão? Tu dis- casa? Não. Também a mim eu aplicava de muito
seste-me em segunda mão, defendeu-se. Calei-me bom grado o método socrático. Sabia acaso
um bom mas um bom bocado. Se não encontrares quanto tinha gasto? Mantinha habitualmente
uma em segunda mão, disse por fim, que diab~ uma contabilidade rigorosíssima das minhas
farás tu? Não me disseste, respondeu. Como e viagens de negócios, justificava até ao último
repousante um poucochin~o ?e colóq~io, de dinheiro as minhas despesas de deslocação.
vez em quando. Quanto dinheiro te dei ? per- Desta vez não. Tratasse-se de uma viagem de
guntei. Contou as fracções. Quatro libras e recreio e eu não teria atirado o dinheiro ao ar
dez, respondeu. Conta outra vez, ordenei. Con- com tanta desenvoltura. Suponhamos que me te-
tou-as outra vez. Quatro libras e dez, res- nha enganado, disse, e que te tenha dado apenas
pondeu. Dá-me essa porc~ria, ordeJ.lei. Passou- quatro libras e dez. O fulaninho apanhava com
-me as fracções para a mao e contei-as, Quatro fleuma os objectos que juncavam o solo e
libras e dez. Mas eu dei-te cinco, insisti. Não metia-os outra vez nos bolsos. De que maneira
respondeu, deixou que os. números. f~lassem. fazer-lhe compreender? Deixa isso e escuta-me,
Ter-me-ia roubado dez xelins que dissimulava disse-lhe. Estendi-lhe as fracções. Conta-as,
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algures na sua pesso~ Esvazia os ?olsos, or- ordenei. Contou-as. Quanto faz? perguntei.
denei. PÔS-Sê a esvaziá-los. Eu continuava es- Quatro libras e dez, respondeu. Dez quê? per-
tendido é preciso não esquecer. E ele não sabia guntei. Dez xelins, respondeu. Tens portanto
que eu' estava doente. Aliás eu não estava quatro libras e dez xelins, disse eu. Pois tenho,
doente. Olhava vagamente para os objectos disse ele. Não era verdade, tinha-lhe dado
que ele dispunha diante de mim. Tirava-os dos cinco. Estás de acordo, disse eu. Estou, disse
bolsos um por um, mantinha-os delicadamente ele. E para que julgas que te dei tanto dinheiro?
no ar entre o polegar e o indicador, fazia-me ver perguntei. Para quê tanto dinheiro, repetiu.
as respectivas diversas partes e pousava-os O rosto iluminou-se-lhe. Para comprar uma
finalmente no solo ao meu lado. Quando um Qicicleta, respondeu. Que espécie de bicicleta?
bolso ficava vazio tirava o forro para fora e perguntei. Em segunda mão, respondeu, sem
sacudia-o. Surgia então uma pequena nuvem tirar nem pôr. Tu imaginas que uma bicicleta
de poeira. O absurdo desta verificação não tar- em segunda mão custa quatro libras e dez xe-
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lins? perguntei. Não sei, respondeu. Eu também
não sabia. O problema porem nao era esse. <? bicicleta, perguntei, para Goering? Ainda não
que é que eu te disse exactamente? perguntei. tinha compreendido que a bicicleta era para ele.
Ambos tentámos lembrarmo-nos. Em segunda Verdade se diga que ele não era muito mais
mão se possível, disse eu por fim, :,is o que te pequeno do que eu, nessa época. Quanto ao
disse. Ah, disse ele. Este dueto, nao o trans- porta-bagagens, era como se nada lhe tivesse
crevo in extenso, indico tão ~õmente as suas dito. Mas o seu espírito lá acabou por alcançar
linhas essenciais. Eu não te disse e~ segunda tudo. A ponto de me perguntar o que devia
mão, disse, disse-te em segunda m~o se P?S- faz er se não tivesse dinheiro que chegasse.
sível. Voltara a arrumar as suas co~as. D~Dm Voltas aqui e avisamos, respondi. Eu tinha
isso, gritei, e dá atenção ao que te digo, Del:C0u naturalmente previsto, quando reflectia em
cair com ostentação um grande rolo d~ gult~S todos aqueles problemas antes de o meu filho
entrelaçadas. Quem sabe se ~s ~ez xehns nao acordar, que lhe podiam criar dificuldades e
estariam no meio. Não ves pOIS d~ferença e~tre
A
perguntar-lhe, dada a sua juventude, onde tinha
em segunda mão e em segunda mao se possível, arranjado tanto dinheiro. E sabia o que ele
disse eu. Consultei o relógio. Eram dez horas. devia fazer neste caso, a saber ir procurar, ou
Eu estava apenas a lançar mais confusão nas pedir que lhe fôssem buscar, o brigadeiro Paulo,
nossas ideias. Pronto, não tentes compreender, declinar o nome e dizer que fora eu , Jacques
disse eu, mas ouve ao menos o que te vo~ dizer, Moran, quem o encarregara de comprar uma
porque não o direi duas vez~s. Aproxlmou-~e bicicleta em Hole, deixando ao mesmo tempo
de mim e pôs-se de joelhos. Dlr-se-~a que e.u la supor que me encontrava em Shit. Tratavam-se
dar a alma ao criador. Sab es tu, o ~eu. fl1~o, evidentemente de duas operações distintas, pri-
o que é uma bicicleta novll;? pergunt~l . SeI, Sl~ , meiro a que consistia em prever o caso (antes
Ó meu pai, respondeu. MUlto bem , disse, se n~o de o meu filho acordar) e depois a que lhe dava
encontrares uma bicicleta em s~gunda ma? solução (quando da notícia que Hole era a
compras uma biciclet~ nova. ~~ repito. E r~petI. aglomeração mais próxima) . Mas renunciei a
Eu que dissera que nao repetiria. Agor2: diz-me comunicar-lhe instruções a tal ponto subtis.
o que tens a fazer, disse. E, acresc~ntel, ~fa_s. Mas não tenhas medo, disse eu, tens mais do
ta-me essa cara, 'fedes da boca. Estive vai nao que o suficiente para comprar uma bela bici-
vai para acrescentar, não lavas os dentes .e cleta para ti , que trás para aqui sem perda de
ainda te queixas de ter abcessos, mas conti- um momento. Com o meu filho era necessário
ve-me a tempo. Não era a altu~a de !evantar prever todas as hipóteses. Nunca teria podido
outro motivo de discussão. Repeti, Entao o que imaginar o que seria necessário fazer com a
é que tens que fazer? Racolheu-se. Ir a ~ole , bicicleta uma vez comprada. Seria até capaz de
respondeu, que fica a quinze mllha~ - . I;l'ao te se deixar ficar em Hole, sabe Deus em que
preocupes com as milhas, atal~el. :!pstas em condições, à espera de novas directivas. Às
Hole . O que foste lá fazer? Nao, nao ,Posso. tantas perguntou-me o que é que eu tinha.
Acabou por compreender. Para quem e essa Devo ter feito com certeza alguma careta.
Tenho que estou farto de te ver, respondi.
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Perguntei-lhe por minha vez de que raio estava assim pernas para que te quero. Talvez tivesse
à espera. Não me sinto bem, respondeu o tipo. medo que lhe corresse atrás. Na verdade, acho
Eu, a quem ele perguntava o que tinha, nada que há qualquer coisa de assustador na minha
dizia, e ele a quem ninguém nada perguntava, maneira de correr, a cabeça para trás, os dentes
sua excelência anunciava que não se sentia cerrados, os cotovelos dobrados ao máximo e
bem. O quê, não estás contente, perguntei, por os joelhos quase a baterem-me na cara. E
teres uma bicicleta novinha em folha, só para muitas vezes cheguei a apanhar mais rápidos
ti? Decididamente fazia muita questão em do que eu graças a essa maneira de correr.
ouvi-lo dizer que estava contente. Mas arrepen- Páram e esperam-me, de preferência a prolon-
di-me da minha frase, que não fazia mais do gar no encalço tão horrível desencadeamento.
que aumentar a sua confusão. Mas isso pràtí- Quanto à lanterna, não tínhamos necessidade
camente bastou a este colóquio familiar. Ele lá de lanternas. Mais tarde, quando a bicicleta
se resolveu a deixar o quente do abrigo e tivesse tomado o seu lugar na vida do meu
quando achei que já devia estar bastante longe filho, na sua vida de deveres e jogos inocentes,
saí por minha vez, gemicando. Ele dera uma então sim uma lanterna seria indispensável,
vintena de passos mais ou menos. Fingi um ar para iluminar as suas corridas nocturnas. E
desenvolto, as costas apoiadas com à vontade fora sem dúvida na previsão desse futuro feliz
a um tronco e a perna largamente dobrada em que eu pensara na lanterna e que gritara ao
frente da outra. Gritei-lhe de longe. Voltou-se. meu filho que comprasse uma boa, a fim de que
Agitei a mão. Olhou-me um instante, depois vol- mais tarde as suas idas e vindas fossem ilumi-
tou-me as costas e retomou o seu caminho. nadas e sem perigo. E teria podido dizer-lhe
Berrei-lhe o nome. Voltou-se outra vez. Uma igualmente que desse atenção à campainha, que
lanterna! gritei. Uma boa lanterna! O tipo não desenroscasse o respectivo tampão e olhasse
compreendia. E como havia ele de compreender bem para dentro, para ficar certo de que se
a vinte passos, ele que a um só não compreendia tratava realmente de uma boa campainha e
patavina? Voltou atrás. Fiz-lhe sinal que se em bom estado, antes de concluir o negócio, e
afastasse, gritando-lhe, Põe-te a mexer! Põe-te que a tocasse previamente para ficar com uma
a mexer! Parou e olhou-me, a cabeça de lado ideia do som que dava. Mas teríamos tempo,
como um papagaio, de todo desamparado na mais tarde, de nos ocuparmos de todas essas
aparência. Fiz inconsideradamente o movimento coisas. E seria podem crer com alegria que
de me curvar, para apanhar do chão uma pedra ajudaria o meu filho, chegado o momento,
ou um taco de madeira ou um torrão, um a pôr na bicicleta os melhores faróis, tanto
projéctil qualquer, e ia caindo. Parti o galho atrás como à frente, e a melhor campainha e os
de uma ramada e atirei-o violentamente na melhores travões que houvesse.
direcção dele. Deu meia volta e partiu a correr. O dia pareceu-me longo. O meu filho fazia-
Havia na verdade vezes em que não compreen- -me falta! Ocupei-me o melhor que pude.
dia o meu rapaz. Ele devia saber que não podia Comi várias vezes. Dei várias vezes a volta
atingi-lo, mesmo com uma boa pedra, e mesmo ao abrigo, na convicção de que esse exer-
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fazer crer que não tenho medo, ao passo que o
tipo me lançava volta e meia um olhar rápido,
CIClO faria bem ao meu joelho. Avançava com e baixava depois os olhos, aparentemente menos
bastante rapidez e sem demasiada dor, mas por timidez do que para reflectir tranquilamente
cansava-me depressa. Depois de uma dúzia de a respeito do que acabava de ver, antes de lhe
passos uma grande fadiga apoderava-se-me da acrescentar outras imagens. Porque a olhadela
perna, ou antes um peso, e tinha que parar. era de uma frieza e de uma força extremas.
Mas passava logo e eu podia continuar. Tomei O rosto era pálido e belo, a mim far-me-ia
um pouco de morfina. Fiz-me certas perguntas. feliz. Ia dar-lhe aí uns cinquenta e cinco anos
Por que não tinha dito ao meu filho que me quando tirou o chapéu, conservou-o um ins-
trouxesse com que"me tratar? Por que lhe tinha tante na mão, depois voltou a pô-lo na cabeça.
ocultado que estava doente? Estaria eu no A coisa não se parecia mesmo nada com o que
fundo contente com o que me acontecia, a se chama habitualmente uma chapelada. Porém
ponto de não querer curar-me? Abandonei-me achei por bem fazer-lhe uma vénia. O chapéu
bastante complacentemente às belezas do local, era qualquer coisa de extraordinário, na forma
contemplei, longamente, as árvores, os campos, e na cor. Não vou tentar descrevê-lo, não
o céu, os pássaros, e escutei atentamente os cabia em nenhuma das categorias que me eram
ruídos que me chegavam de perto e de longe. familiares. Os cabelos, cuja sujidade não escon-
Um instante julguei aperceber o silêncio que, dia a brancura, eram abundantes e tufados.
creio, já foi aqui falado. Estendido no abrigo, Tive tempo, antes de ele os comprimir de novo
pensei na tarefa em que estava emp.enhado. por baixo do chapéu, de os ver espetarem-se-lhe
Tentei de novo lembrar-me do que devia fazer lentamente sobre o crânio. A cara era suja e
a Molloy, quando o encontrasse. Arrastei-me até peluda, sim senhor, ele era pálido, belo, sebento
ao ribeiro. Deitado mirei-me nele, antes de e peludo. Teve um movimento bizarro, como
lavar a cara e as mãos. Esperei que a minha uma galinha que incha as penas e depois len-
imagem se reconstruísse, olhei-a que trémula tamente fica mais pequena do que antes. Jul-
se parecia mais e mais comigo. De vez em guei que ia partir sem me dirigir a palavra.
quando uma gota caindo da minha cara, tur- Mas de súbito pediu-me que lhe desse um naco
vava-a outra vez. Durante o dia não vi vivalma. de pão. Acompanhou esta sua humilhante pe-
Mas para a tarde ouvi passos à volta do abri~o. tição de uma olhadela flamejante. O seu sotaque
Não me mexi. Os passos afastaram-se. Porem era de estrangeiro ou então de alguém que
um pouco mais tarde, saído de não sei g.ue perdera o hábito da palavra. Com efeito dissera
buraco, vi um homem a alguns passos de mim, para comigo, com grande alívio, só de o ver
de pé e imóvel. Voltava-me as costas. Vestia de costas, Trata-se de um estrangeiro. O senhor
um capote pesado para a estação e apoiava-se quer uma lata de sardinhas? perguntei. Ele
a um pau de tal modo massiço, e de tal modo pedia-me pão e eu propunha-lhe peixe. Todo o
mais grosso em baixo do que em cima, que se meu carácter está aqui chapado. Pão, repetiu.
diria uma móca. Voltou-se e olhámo-nos ainda Entrei no abrigo e agarrei no pedaço de pão
assim longamente em silêncio. Isto é: eu fixa-
va-o olhos nos olhos, como faço sempre, para 213
212
que reservava para o meu filho, o qual de cer- outras coisas, pertencentes a serres distintas
teza havia de vir cheio de fome quando regres- e aparentemente sem ligação entre si. Porém
sasse. Dei-lho. Esperava que o devorasse ali ao acordar era outra vez dia e a fogueira estava
mesmo. Porém partiu-o em dois e meteu os apagada. Mas as brasas ainda estavam quentes.
pedaços dentro dos bolsos do capote. O senhor O meu joelho não ia melhor, mas também não ia
permite-me que eu veja bem o seu bordão? pior. Isto ~: talvez fosse um pouco pior, sem
pedi. Avancei a mão. Não se mexeu. Pus a que eu estivesse em estado de me aperceber
mão sobre o bordão, mesmo por debaixo da disso, em virtude do hábito cada vez mais mise-
dele. Senti-lhe os dedos a afrouxarem lenta- ricordioso que adoptava. Mas não creio. Porque
mente a pressão. Pouco tempo depois era eu enquanto auscultava o joelho e depois o punha
quem segurava no bordão. A sua leveza espan- à prova, desconfiava dessa habituação e tentava
tou-me. Tornei a meter-lho na mão. Deitou-me abstrair-me dela. E quem sabe se não seria
um último olhar e foi-se embora. Era quase outro que, único admitido no segredo das
noite. Caminhava a passo rápido e inseguro, minhas sensações, dizia, Tudo na mesma, Mo-
arrastava mais a bengala do que se servia dela, ran, tudo na mesma. O que pode parecer im-
mudava muitas vezes de direcção. De bom possivel. Fui à mata cortar um bordão para
grado o teria seguido com os olhos. Teria ado- meu uso. Mas quando finalmente encontrei o
rado que fosse meio-dia, mesmo a meio do r~mo qu~ me convi~ha, lembrei-me que não
deserto, e segui-lo com os olhos até que não tinha canivete. Voltei ao abrigo, esperando lá
fosse mais do que um pontinho, rés-vês do encontrar o canivete do meu filho esquecido
horizonte. Deixei-me ficar fora ainda um bom entre os objectos que ele espalhara no solo e
momento. De vez em quando afinava os ouvidos. se esquecera de arrumar. Não estava. Em com-
Como começasse a sentir frio tornei a entrar pensação o meu olhar caiu sobre o meu guarda-
no abrigo e estendi-me, por baixo do capote do -chuva e disse para comigo, Para quê talhar
meu filho. Mas sentindo o sono ganhar-me, sai um bordão se tenho o guarda-chuva. E exer-
outra vez e acendi uma grande fogueira, para citei-me a andar apoiado ao guarda-chuva. E
guiar o meu filho até mim. Quando o fogo se dessa maneira não avançava nem mais de-
pegou, disse para comigo, Agora sim vou poder pressa nem com menor dor, ao menos fatiga-
aquecer-me! Lá me aqueci, esfregando as mãos va-me menos depressa. E em lugar de parar de
uma na outra depois de as estender para a dez em dez passos para descansar, dava quinze
chama e antes de as estender outra vez, de à vontade, antes de ser obrigado a parar. E
costas para o fogo e abas do casaco levantadas, durante o descanso o guarda-chuva também
e andando à roda como um espeto. E por fim, me era útil. Porque apoiado a ele constatava
já não podendo mais com o calor e com a fadiga, que o pêso da minha perna, devido sem dúvida
estendi-me no chão ao pé da fogueira e ador- a um defeito de circulação, se dissipava ainda
meci, dizendo para mim mesmo, Talvez uma mais depressa do que quando me conservava
fagulha me deite fogo à roupa e eu acorde de pé graças ao único socorro dos meus mús-
uma tocha viva. E dizendo-me ainda muitas culos e da árvore da vida. E assim equipado
215
não me contentava em andar à roda do abrigo, migalhamento, com um ruir enraivecido de
como fizera na véspera, mas irradiava em todos tudo o que desde sempre me protegia daquilo
os sentidos. E alcancei mesmo uma pequena que desde sempre estava condenado a ser. Ou
eminência de onde dominava melhor toda a assistia a uma espécie de sondagem cada vez
extensão de onde o meu filho podia sur gir de mais rápida em direcção a não sei que dia e
um momento para outro. E em imaginação rosto, conhecidos e renegados. Mas como des-
via-o de vez em quando, curvado sobre o guia- crever essa sensação que de sombria e massiça,
dor ou de pé sobre os pedais, cada vez mais de estridente e pétrea, se fazia de súbito líquida.
próximo, e ouvia-o ofegar e via-lhe pintada E via então como uma esfera subindo lentamente
na cara gorducha a alegria de enf im voltar. das profundezas, através das águas calmas,
Mas ao mesmo tempo ia vigiando o abrigo, que inteiriça primeiro, quase nada mais clara que
me atraía de uma maneira ex tr aor dinár ia , de os remoinhos que a escortam, depois pouco a
sorte que passar de um para outro sítio, ao nível pouco rosto, com os buracos dos olhos e da
do seu maior afastamento, o que teria sido boca e os outros estigmas, sem que se pudesse
cómodo, me era impossível. Tinha porém que dizer se era rosto de ho mem ou mulher, jovem
refazer a minha saída em sentido inverso todas ou velho, nem se a sua calma seria igualmente
as vezes, até ao abrigo, para me assegurar que um efeito da água que a separa do dia. Porém
tudo lá estava em ordem, antes de empreender devo dizer que concedia apenas uma atenção
outra. E consumi a maior parte desse segundo distraída a essas pobres figuras em que sem
dia nessas vãs idas e vindas, nesse alerta e dúvida o meu sentimento de derrocada procu-
nessas imaginações, mas não o dia inteiro. rava conter-se. E o facto de não me esforçar
Porque também me estendia de vez em quando mais por isso mostrava ainda mais a que ponto
no abrigo, que se tornara a minha casa eu já estava mudado e como se me tornava in-
em modelo reduzido a fim de reflectir tranquila- diferente o domínio de mim próprio. E talvez
mente em certas coisas, e nomeadamente nas tivesse ido de descoberta em descoberta, a
minhas provisões de boca que se iam esgotando meu respeito, se tivesse insistido. Bastava
ràpidamente, a tal ponto que depois de uma re- porém começar a lança r um pouco de claridade
feição engolida às cinco horas apenas me resta- sobre isso, isto é sobre essa obscura agitação
vam duas latas de sardinhas, uma mão cheia de que me ganhava, com o auxílio de uma figura
biscoitos e algumas maçãs. Mas tentava igual- ou de um juízo, para me entregar a outras
mente lembrar-me do que devia fazer de preocupações. E um pouco mais tarde tinha
Molloy, depois de o encontrar. E também me que recomeçar tudo de novo. E nesta maneira
debruçava sobre mim, sobre o que havia há de agir tinha também dificuldade em me reco-
algum tempo de mudado em mim. E tinha a nhecer. Porque não era da minha natureza,
impressão de me ver envelhecer à velocidade quer dizer dos meus hábitos, fazer cálculos de
do efémero. A ideia de envelhecimento porém frente, antes os separava uns dos outros e os
não era exactamente a que se me apresentava levava a cabo um de cada vez. E mesmo as
então. E o que via parecia-se mais com um es- indicações que me faltavam a respeito de

216 217
Molloy, quando as sentia agitarem-se-me no chegar mesmo ao pé de mim, sem eu dar por
fundo da memória, substituí-as abruptamente isso. Se há coisa que me irrita é ser apanhado
por outras incógnitas. E eu que quinze dias desprevenido. Eu continuava portanto, apesar
antes teria calculado com alegria quanto tempo do meu movimento de medo que esperava ti-
podia ainda subsistir com os víveres que me vesse passado despercebido, a atiçar a fogueira
restavam, fazendo provàvelmente intervir a como se estivesse só. Mas ao contacto da mão
questão das vitaminas e das calorias, e estabe- dele abatendo-se sobre o meu ombro fui obri-
lecido na cabeça uma série de ementas a apro- gado a fazer o que qualquer outro teria feito
ximarem-se assimptotamente do nada alimen- em meu lugar, o que consegui voltando-me
tar contentava-me nesse dia em constatar pre- vivamente com um movimento bem simulado
gui~osamente que em breve morreria de. ~na­ espero de temor e de cólera. Eis-me face a face
nição, se não chegasse a renovar. as provisoes. com um homem de que primeiro distinguia
Assim decorreu esse segundo dia. Mas resta mal o físico e os traços, por causa da obscu-
ainda um incidente a anotar, antes de passar ridade. Viva amigo, disse ele. Mas pouco a
ao dia seguinte. pouco fui fazendo uma ideia do género de
Acabava eu de acender a minha fogueira, e indivíduo que se tratava. E palavra de honra
contemplava-a, quando ouvi alguém interpelar-o havia entre as suas diversas partes uma grande
-me, A voz, já tão próxima que tive um sobres- concordância e uma grande harmonia, e podia-
salto era de homem. Mas depois do sobressalto -se dizer dele que tinha o corpo da sua cara,
domi~ei-me e continuei a ocupar-me da fogueira e inversamente. E se tivesse podido ver-lhe o
como se de nada se tratasse, remexendo-a com trazeiro, sem dúvida o teria encontrado digno do
uma ramada que apanhara para esse efeito resto. Não esperava encontrar ninguém neste
pouco tempo antes, de que arrancara as ~astes deserto, continuou, foi uma sorte. E afastan-
e as folhas e mesmo uma parte da casca, so com do-me da fogueira, que começava a dar chama,
com as unhas. Sempre adorei descascar ramos e cuja luz, já não sendo interceptada por mim,
e pôr-lhes a nu a rica polpa clara ~ lisa. Mas caiu sobre o intruso, pude dar-me conta de
obscuros sentimentos de amor e piedade em que não me enganava e que era bem o género
relação à árvore detiveram-me a maior parte de chato que entrevira. Pode dizer-me uma
das vezes. E eu contava entre os meus íntimos coisa, disse. Vou ser obrigado a descrevê-lo
o dragoeiro de Tenerife que. m~rreu com a lin?a sucintamente, embora isso seja contrário aos
idade de cinco mil anos, atingido por um raio, meus princípios. Era mais pequeno que outra
Um belo exemplo de longevidade, Era um grosso coisa, mas robusto. Vestia um fato grosseiro
ramo cheio de seiva que não se inflamava azul marinho (casaco assertoado ) de um corte
quando o metia no fogo. Eu agarrava-o com horroroso e um par desses sapatos pretos, de
a ponta dos dedos. A crepitação do fogo, ou largura desmesurada, cuja ponta sobe mais
antes da lenha que ele encarquilhava, porque alto do que o peito do pé. Esta horrenda ten-
o fogo triunfante não crepita, mas faz um ruído dência parece ser monopólio dos sapatos pretos.
completamente diferente, permitira ao fulano O senhor por acaso não sabe, insistiu. As pon-
218 e19
tas franjadas de um cachecol escuro, com sete
pés de comprido pelo menos, enrolado várias
vezes à volta do pescoço, pendiam-lhe costas Calei-me. Há quanto tempo está você aqui?
abaixo. Trazia na cabeça um chapéu de feltro perguntou. O corpo dele tornava-se fluido,
azul de abas pequenas, em cuja fita espetara como se se desconjuntasse. Que raio faz você
um anzol enfeitado com uma mosca de Maio aqui? perguntou. O senhor está encarregado da
artificial, o que lhe dava um ar o mais possível vigilância do território? retorqui. Avançou uma
desportivo. O senhor está a ouvir-me? pergun- manápula na minha direcção. Julgo que lhe
tou. Mas tudo aquilo nada era ao pé do rosto disse de novo que se retirasse dali. Lembro-me
que se parecia vagamente, lamento dizê-lo, com ainda da mão que vinha direita a mim, esbran-
o meu, menos fino evidentemente, o mesmo quiçada, a abrir e a fechar. Dir-se-ia movida a
bigodinho falhado, os mesmos olhinhos de fu - auto-propulsão. Não sei o que então se passou.
rão, a mesma parafimose do nariz, e uma boca Mas um pouco mais tarde, muito mais tarde
fina e vermelha, como congestionada à força talvez, encontrei-o estendido por terra, a cabeça
de querer expelir a língua. Ouça lá, voltou à feita num bolo. Lamento não poder indicar
carga. Voltei-me para a fogueira. Estava bem mais claramente de que maneira esse resultado
lançada. Deitei-lhe mais lenha. Há cinco mi- foi obtido. Daria um belo trecho. Mas não é
nutos que estou para aqui a falar consigo, disse. chegado a este ponto da minha narrativa que
Dirigi-me para o abrigo, barrou-me o caminho. me vou lançar na literatura. Pessoalmente eu
Vendo-me coxear ganhou coragem. Aconselho-o nada tinha, sim tinha, algumas arranhadelas
a responder-me, ameaçou. Eu não conheço o que descobri apenas no dia seguinte. Curvei-me
senhor, respondi. Ri. Boa piada, com efeito. O sobre ele. Ao fazer isso apercebi-me que a
senhor deseja ver o meu bilhete de identidade? minha perna dobrava outra vez. O tipo já não
perguntou. O bilhete nada me elucidaria, res- se parecia comigo. Agarrei-o pelos tornozelos
pondi. Aproximou-se de mim. Saia daí, disse eu. e arrastei-o para o abrigo, às arrecuas. Os sa-
Foi a vez de ele rir. Você recusa-se a responder? patos brilhavam-lhe com uma espessa camada
perguntou. Fiz um enorme esforço. Que deseja de graxa oleosa. As meias eram enfeitadas
saber? perguntei. Deve ter julgado que eu com um desenho de chaveirões. As calças su-
voltava a melhores sentimentos. Assim gosto biam, deixando à mostra a carne branca e
mais, disse. Chamei em meu socorro a imagem glabra das pernas. Tinha os tornozelos finos e
do meu filho que podia chegar de um momento ossudos, como os meus. Os meus dedos davam-
para o outro. Já lhe disse, disse ele. Eu tremia. -lhe quase a volta. Usava ligas, das quais uma
Faça a fineza de repetir, disse eu. Encurtemos se desfizera e pendia. Esse pormenor enter-
razões. Perguntou-me se eu não vira passar um neceu-me. Voltei para o pé da fogueira. Ca-
velhote com um bordão. Descreveu-o. Mal. A ramba o meu joelho enrijecera outra vez.
voz parecia-me chegar de longe. Não, respondi. Também já não tinha necessidade de ser flexí-
Como não? perguntou. Não vi ninguém, res- vel. Tornei ao abrigo e agarrei no capote do
pondi. No entanto ele passou por aqui, tornou. meu filho. Voltei para o pé do fogo e estendi-me,
debaixo do capote. Não preguei olho, mas dormi
um pouco. Ouvi as corujas. Não eram bufos,
era um grito como um apito de locomotiva. relva, precisassem ou não. E de vez em quando
Ouvi um rouxinol. E as cigarras longínquas. Se soerguia-me sobre as mãos, para melhor do-
tivesse ouvido falar de mais pássaros que gri- minar a cena. E várias chaves, localizadas
tam e cantam de noite, tê-los-ia escutado igual- assim a uma grande distância de mim, alcan-
mente. Vi morrer a fogueira, as duas mãos cei-as rebolando sobre mim mesmo, como um
abertas uma sobre a outra e uma face por cima. grande cilindro. E não encontrando mais cha-
Pus-me à cóca da aurora. Mal a vi raiar levan- ves, disse para comigo, Não vale a pena con-
tei-me e fui até ao abrigo. O outro também tinha tá-las, porque ignoro quantas eram. Então
os joelhos sofrivelmente rijos, mas as articula- pus-me outra vez a procurá-las com os olhos.
ções lombares continuavam felizmente a fun- Mas finalmente disse para comigo, Tanto pior,
cionar. Arrastei-o até à mata, parando muitas contentar-me-ei com as que tenho. E quando
vezes para descansar, mas sem lhe largar as procurava assim as chaves, dei com uma orelha
pernas, a fim de não ter que me baixar para que atirei para a mata. E, coisa mais estranha
lhes tornar a pegar. Depois desfiz o abrigo e ainda, encontrei o meu palhinhas que julgva
deitei sobre o corpo os ramos assim recupe- estar sobre a minha cabeça ! Um dos buracos
rados. Refiz e pus às costas os dois sacos, por onde passava o elástico alargar a até à borda
agarrei no capote e no guarda-chuva do meu da borda, se ouso exprimir-me assim, e por tal
filho. Levantei o acampamento pois então. Mas facto já não era um buraco, mas uma fenda.
antes de partir recolhi-me um instante para me Porém o outro aguentara e o elástico conti-
assegurar que nã o me esquecia de nada, e sem nuava lá. E finalmente disse para comigo, Vou
me fiar apenas no cérebro, porque apalpei os agora levantar-me e, com um olhar sobranceiro,
bolsos e olhei à volta. E foi ao apalpar os fazer uma última inspecção do terreno. Meu
bolsos que constatei a ausência das chaves, dito, meu feito. Foi então que encontrei o anel,
ausência de que o meu cérebro não pudera in- primeiro um bocado, depois outro. Depois, não
form ar-me. Não tardei em encontrá-las, espa- encontrando mais nada que fosse meu ou do
lhadas por terra, com o porta-chaves partido. meu filho, alombei de novo com os sacos, en-
Em primeiro lugar a bem dizer encontrei a terrei bem o palhinhas crânio abaixo, do-
corrent e, depois as chaves e finalmente o anel, brei no braço o capote do meu filho, agarre i
em dois pedaços. E como não podia pensar, no guarda-chuva e aí fui eu. Mas não fui longe.
mesmo com a ajuda do guarda-chuva, em bai- Porque em breve me detive no cocoruto de um
xar-me t odas as vezes para apanhar uma chave, montículo de onde podia observar, sem me
pousei os saco s, o guarda-chuva e o capote e fatigar, não só o local do acampamento como o
deitei-me de bruços entre as chaves que desta campo em derredor. E fiz esta observação cu-
maneira consegui recuperar com bast ante faci - riosa: a terra nesse síti o, e até as núvens do
lidade. E quando uma se encontrava fora do céu, estavam dispost as de maneira e conduzir
meu alcance, arrastava-me até ela, agarrando suavemente os olhos para o campo, como num
a relva a mãos ambas. E tod as as chaves, antes quadro de mestre. Instalei-me t ão confortàvel-
de as tornar a meter no bolso, limpava-as na mente quanto possível. Desembaracei-me dos
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Pergunta. Deveria informar o meu filho do
diversos fardos e comi uma lata de sardinhas que sucedera?
inteira e uma maçã. Estendi-me de barriga Resposta. Não, porque então seria seu dever
para baixo sobre o capote do meu filho. E denunciar-me.
ora apoiava o cotovelo à terra, travando os Pergunta. Denunciar-me-ia?
maxilares com as mãos, o que me arrastava o Resposta.
olhar para o horizonte, ora afeiçoava com as Pergunta. Como me sentia eu?
mãos um pequeno coxim de terra e deitava Resposta. Mais ou menos como de costume.
uma face sobre ele, cinco minutos uma, cinco Pergunta. No entanto eu mudara e conti-
minutos outra, sempre de barriga para baixo. nuava a mudar?
Teria podido fazer um travesseiro com os dois Resposta. Sim
sacos, mas não fiz, nem pensei nisso. O dia Pergunta. E apesar disso sentia-me mais ou
decorreu na calma, sem incidente algum. E menos como de costume?
apenas um cão me rompeu a monotonia desse Resposta. Sim.
terceiro dia, rondando à volta dos restos da Pergunta. Como era isso possível?
minha fogueira primeiro, depois entrando pela Resposta.
mata dentro. Mas não o vi de lá sair, quer Estas perguntas e outras ainda eram sepa-
porque a minha atenção já estivesse algures, radas por intervalos de tempo mais ou menos
quer porque ele tivesse saído por out::o lado, prolongados não sõmente umas das outras, mas
não tendo feito mais em qualquer das hipóteses também das respostas que lhes cabiam. E as
do que a atravessar de lado a lado. Concertei respostas não eram sempre dadas na ordem das
o chapéu, abrindo, com a ajuda da chave da perguntas. Antes enquanto procurava a res-
lata de sardinhas, um novo buraco ao lado do posta, ou as respostas, a uma dada pergunta,
antigo e amarrando-lhe outra vez o elástico encontrava a resposta, ou as respostas, a uma
E concertei também o porta-chaves, entortando pergunta, que já me fizera em vão, no sentido
os dois pedaços um no outro, e nele enfiei as de que não soubera responder-lhe, ou encon-
chaves e prendi outra vez a corrente. E para trava outra pergunta, ou outras perguntas, que
que o tempo me parecesse menos longo fiz-me exigiam por sua vez lhes respondesse imedia-
certas perguntas e esforcei-me por lhes res- tamente.
ponder. Aqui estão algumas. Reportando-me agora em imaginação ao
Pergunta. O chapéu de feltro azul, que seria instante presente, afirmo ter escrito toda esta
feito dele? passagem com mão firme e mesmo satisfeito, e
Resposta. o espírito mais tranquilo do que há muito
Pergunta. O velho do bordão não seria tempo. Porque hei-de estar longe, antes de
suspeito? lerem estas linhas, e onde ninguém sonhará
Resposta. Muito provàvelmente. vir procurar-me. E além disso Youdi também
Pergunta. Quais as suas possibilidades de há-de cuidar de mim, nem deixará que me cas-
provar a inocência? tiguem por uma falta cometida durante o ser-
Resposta. Magrinhas.
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viço. E contra o meu filho ninguém 'poderá Levanta-a, mandei. Levantou-a. O que é que te
nada, até o hão-de lamentar, de ter tido tal aconteceu? perguntou. Caí, respondi. Caíst e ?
pai, e as ofertas de assistência e os certificados perguntou. Sim, cai, gri t ei, e tu, nu nca caíste ?
de estima hão-de afluir -lhe de todos os lados. Procurei o nome da planta que nasce das
Assim decorreu esse terceiro dia. E pelas ejaculações dos enforcados e grita quando a
cinco horas comi a minha última lata de sar- colhem. Quanto deste por ela? perguntei. Qua-
dinhas e alguns biscoitos, com bom apetite. De tro libras, respondeu. Quatr o libras! exclamei.
maneira que não me restavam senão algumas Se me tivesse dit o duas libras, ou mesmo trinta
ma çãs e alguns biscoitos. Mas pelas sete horas, xelins, teria gritado da mesma maneira. Pedi-
já com o sol mui to baixo, o meu filho chego~. ram-me quatro libras e cinco, disse ele. Tens
Devia ter cochilado um momento, porque nao o recibo? perguntei. Não sabia o que era um
o apercebi primeiro no horizonte, depois au- recibo. Fiz-lhe a descrição. O dinheiro que eu
mentando a cad a momento, como tinha pre- gastava com a educação do meu filho e ele nem
visto . Antes já estava entre mim e o campo, €' sequer sabia o que era um simples reci bo. Mas
dirigindo-se para este último, quando o aper- desconfio que o sabia tão bem como eu. Porque
cebi. Inundou-me uma grande irritação e levan- quando lhe disse, Diz-me agora o que é um
t ei-me vivamente e pus-me aos uivos, brandindo recibo, disse-o na ponta da língua. No fundo
ao mesmo tempo o guarda chuva. Ele voltou-se era-me completamente igu al, que lhe tivessem
e fiz-lhe sinal para se aproximar, agitando o feito pagar pela bicicleta t rês ou quatro vezes
guarda-chuva como se quisesse agarrar qual- o que valia ou que se ti vess e ap oderado de um a
quer coisa com o cabo . Jul~uei um i.nstant e, que part e do dinheiro destinado à compra. Não
ia desafiar-me e prosseguir o cammho ate ao ficava nem mais r ico nem mais pobr e. Dá cá os
campo, porque já n ão havia campo nenhum. dez xelins, pedi. Gastei-os, confessou. Bas ta,
Mas acabou por se me dirigir. Empurrava basta. Pôs-se a explicar-me que no primeiro
uma bicicleta que, ao alcançar-me, deixou dia as lojas estavam fechadas , que no segun-
cair com um gesto significativo de que já do - . Disse-lhe, Basta, basta. Olhei para o
não podia mais. Lev anta-a, ordenei, para eu porta-bagagens. Era o que a bicicleta tinha de
ver. Devia ter sido na verdade uma bicicleta melhor. Isso e a bomba. Ao menos anda? per-
muito boazinha. Teria muito prazer em des- gunt ei. Tive um furo a duas milhas de Hole ,
cr evê-la, teria muito prazer em escrever quat ro respondeu, fiz o resto do caminho a pé. Olhei-
mil pa lavras sobre ela . É isso, a tua bicicleta? -lhe para os sapatos. Enche-me essa porcaria
perguntei. Não esperando nem por sombras que outra vez, ordenei. Agarrei na bicicleta. Não
me respondesse, continuei a olhar para a bici- sei já de que roda se tratava. Quando há duas
cleta. Mas havia no seu silêncio não sei quê coisas mais ou menos iguais já não sei em que
de inusitado que me fez levantar os olhos para terra ando. O tipo fez batota, o ar saía por
ele. Os olhos saíam-lhe das fu ças. Que é que entre a válvula e o pipo que de propósito não
te ns, pergunte i" tenho por acaso a barguilha enroscara até ao fim. Segura a bicicleta, disse,
desabot oada ? Largou outra vez a bicicleta. e dá-me cá essa bomba. O pneu ficou ràp ída- '

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-me! gritei. O meu filho ajudou-me a levantar-
mente duro. Olhei para o meu filho. Pôs-se -me. Tinha as meias rasgadas e a perna a
a protestar. Fi-lo calar-se. Cinco minutos sangrar. Tratava-se felizmente da perna doente.
mais tarde apalpei o pneu. Não per~era um Que teria sido de mim com as duas pernas
bocadinho da sua dureza. :ms um miserável, avariadas? Lã me teria arranjado. Talvez fosse
disse-lhe. Tirou uma pasta de chocolate do mesmo um mal que viesse por bem. Eu pensava
bolso e estendeu-ma. Agarrei nela. Mas em naturalmente na flebotomia. Tu não tens nada?
lugar de a comer, como me apetecia, e em- perguntei. Não, respondeu. Evidentemente.
bora deteste o desperdício, atirei-a para longe, Com o guarda-chuva atirei-lhe uma pancada
depois de um momento de hesitação. Mas seca ao jarrete, precisamente onde lhe via bri-
esse momento de hesitação, esperava que lhar a carne entre os calções e as meias. Deu
não o tivesse notado o meu filho. Basta. um grito. Queres dar cabo de nós? perguntei.
Descemos à estrada. Era mais uma vereda Não tenho forças, respondeu, não tenho forças.
que outra coisa. Tentei sentar-me no porta- A bicicleta aparentemente nada tinha, a roda
-bagagens. O pé da perna hirta queria entrar-me de trás talvez um pouco empenada. Compreendi
pela terra, campa dentro. ~lcei-me gr~ças à imediatamente o mal que fizera. :m que me
mochila. Aguenta-a bem, disse eu. Nao era sentara sem a mais pequena cerimónia, os pés
suficiente. .Juntei o surrão. As respectivas pendentes, antes de partir. Reflecti. Vamos
bossas entravam-me pelas nádegas. Quanto tentar outra vez, decidi. Não posso, disse ele.
mais as coisas me resistem mais me obstino. Não me faças sair de mim, disse eu. Escar-
Com tempo, só com unhas e ~en!es nada ranchou-se no quadro. Começa a andar deva-
mais subiria das entranhas ate a crosta garinho quando te der sinal. Retomei o meu
da t~rra, sabendo embora perfeitissima.~en!e lugar atrás. Sentado, os meus pés não chegaram
que nada ganhava com isso. E quando ja nao a tocar o solo. Era o que era preciso. Espera
tivesse unhas, nem dentes, rasparia a rocha pelo sinal, disse. Deixei-me deslizar de lado até
com os ossos. Eis em poucas palavras a solução o pé da perna sã tocar na terra. Sobre a roda
a que cheguei. O surrão primeiro, depois a mo- motora apenas pesava agora a perna doente,
chila, depois o capote d? meu rapaz dobrado penosamente erguida e afastada. Enterrei os
em quatro, tudo isso sohdame~te amarrado, dedos no casaco do meu filho. Avança devaga-
com as pontas da guita do meu filho , ao porta- rinho, recomendei. As rodas lã se puseram a
-bagagens e à trave do selim. Quan~o ao g':lar- rodar. E lã segui, meio arrastado, meio salti-
da-chuva, pendurei-o ao pescoço, a fim de fICa!' tando. Receava pelos meus testículos que são
com as duas mãos livres para me agarrar a bastante balouçantes, Mais depressa! gritei.
cintura do meu filho, ou antes por baixo dos Ele apoiou nos pedais. De um salto retomei o
sovacos, porque com tudo aquilo o meu poleir? meu assento. A bicicleta vacilou, equilibrou-se,
era mais alto do que o dele. Pedala, ordenei, tomou velocidade. Bravo! gritei, doido de ale-
Fez um esforço desesperado, quero acreditar gria. Hurrah! gritou o meu filho. Como detesto
que fez. Caímos. Senti uma dor vivíssima na essa exclamação! Por pouco não reparava nela.
tíbia. Estava entalado na roda traseira. Ajuda-
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Ele estava, suponho, tão contente como eu. O mim, tenho que confessá-lo. Era des astrado es-
seu coração batia-me debaixo da mão, e não obs- túpido, lento, porco, ment iroso, gast ador, so~so,
tante a minha mão estava longe do seu coração. pouco afectuoso, mas não me abandonava. Eu
Felizmente que a ver eda er a a des cer. Feliz- pensava muito em mim. Quero dizer que me
mente que tinha concertado o meu chapéu, sem concedia muitas vezes uma vista de olhos, fe-
o que o vento o teria leva do. Felizmente que chava estes, esquecia, r ecomeçava. Levámos
fazia bom tempo, e que eu já não estava só. muito tempo a chegar a Ballyba , onde chegámos
Felizmente, felizmente. mesmo sem saber. Pára, disse um dia a meu
Desta maneira alcançámos Ballyba. Não filho. Acabava eu de avistar um pastor cujo
falarei dos obstáculos que tivemos de vencer, aspecto me agr ada va. Sentado em te rra acari-
dos seres malfazejos que tivemos de evitar, ciava um cão. Carneiros pretos, com pouca lã,
dos desvios de conduta do meu filho, dos des- erravam à volta de ambos , sem temor. Que
maios do pa i. E u tinha a int enção, tinha quase país pastor il, meu Deus. Deixando o meu filho
vontade, de contar tudo isso, regozijava-me com à beira do caminh o dirigi-me a eles, através do
a ideia de que havia de chegar o mome nto em prado. Est acava muitas vezes e descansava
que pudess e fazê-lo. Agora já não te nho essa apoiado ao guarda-chuva. O pastor via-me ~
intenção, o moment o chegou e a vont ad e foi- aproximar-me, sem se levantar. O cão idem
-se-me. O meu joelho não ia melhor. P ior t am - aspas, sem ladrar. Os carneiros também. Sim,
bém não ia. A ferida na tíbia tinha fechado. pouco a pouco , uns após out ros, voltavam-se
Sozinho, nu nca teria chegado. Devo-o à ajuda p~ra mim, faziam-me face, viam-me a apro-
do meu filho. O quê? Ter chegado. Ele que i- ximar-me Apenas alguns breves movimentos
. xava-se muitas vezes da saúde , da barriga, dos de ,recuo, uma pata magra batendo o solo,
dentes. Dei-lhe morfina. O seu aspecto ia de t raiam a sua pertubação. P areciam pouco me-
mal a pior. Quando lhe perguntava o que tinha drosos, para carneiros. E o meu filho natural-
não sabia responder-me. Tivemos aborrecimen- mente via-me a afastar-me, sentia o olhar dele
tos com a bicicleta. Mas venci-os. Não teria nas minhas costas. O silêncio era absoluto.
chegado sem o meu filho. Levámos tempo a Enfim, profundo. Foi, tudo muito bem pensado,
chegar. Semanas. Ã força de nos enganarmos um momento solene. O tempo estava delicioso.
de caminho, de não nos apressarmos. Conti- A noite caía. Todas as vezes que me detinha
nuava a não saber o que devia fazer de Molloy, olhava à volta. Olhava o pastor, os carneiros
depois de o encontrar. Já nem pensava nisso. o cão e mesmo o céu. Mas ao andar via apena~
Pensava muito em mim, durante o caminho re- a terra e o jogo dos meus pés, o bom que se
pimpado atrás do meu filho , a cabeça mais alta atirava para a frente, se retinha, pousava, es-
do que a dele, e no acampamento enquanto ele ia perava que o outro viesse ter com ele. Parei
e vinha, e durante as suas ausências. Porque ele finalmente a uns dez passos do pastor. Não
ausentava-Se muitas vezes, para recolher in- valia a pena ir mais longe. Como teria tido
formações e para comprar provisões. Não fazia prazer em estender-me sobre ele. O cão ama-
por assim dizer mais nada. Cuidava bem de va-o, os carneiros não o temiam. Em breve

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havia de levantar-se, ao sentir cair o orvalho. terra. Mas eu sentia-os agora, homem e cão,
A mangedoura era longe. Veria de longe a luz virarem-se de novo para mim, e aquele voltar
da sua casa. Eu estava agora a meio dos car- a chupar o cachimbo, na esperança de o não
neiros, estes faziam circulo em meu redor, os ter apagado. E eu sabia-me só a fixar aquele
seus olhos convergiam para mim. Talvez fosse longínquo clarão o qual também sabia se iria
para eles o magarefe que vinha fazer a escolha. avivando, avivando, antes de bruscamente se
Levantei o chapéu. Vi os olhos do cão segui- extinguir. E perturbava-me estar só, com o
rem-me o movimento da mão. Olhei mais uma meu filho porque não, não, só, a sentir tamanha
vez à volta sem poder dizer palavra. Não sabia fascinação. E perguntava-me como iria poder
como iria romper aquele silêncio. Estive vai retirar-me sem demasiado desgosto, demasiada
não vai para voltar atrás sem ter falado. Disse dor, quando uma espécie de imenso suspiro à
finalmente, Ballyba, num tom que esperava minha volta anunciou que não era eu que partia,
interrogador. O pastor tirou o cachimbo da mas o rebanho. Vi-os a afastarem-se, o homem
boca e dirigiu o pipo para o chão. Tinha von- à cabeça, depois os carneiros, apertados uns
tade de lhe dizer, Leve-me consigo, servi-lo-ei contra os outros, a cabeça baixa, aos encon-
fielmente, só pela dormida e pelo comer. Eu trões, dando volta e meia um pequeno trote,
tinha compreendido, mas provàvelmente não arrancando sem se deterem e como às cegas
mostrava, porque ele renovou o gesto, apon- à terra uma derradeira dentada, e finalmente
tando para o solo o pipo do cachimbo, mais o cão, balouçando e agitando a grande cauda
do que uma vez. Bally, disse eu. Ele levantou negra e peluda, embora não houvesse ninguém
a mão, esta hesitou um instante como por cima para apreciar o seu contentamento, se de con-
de um mapa, depois imobilizou-se. O cachimbo tentamento se tratava. E a pequena tropa lá
ainda fumegava debilmente, o fumo azulava o ia numa ordem perfeita, sem que o chefe
ar por um momento, antes de desaparecer. tivesse de gritar nem o cão de intervir. E sem
Olhei na direcção indicada. O cão também. dúvida iria assim até ao estábulo ou tapada.
Estávamos todos os três virados para norte. E ai o pastor afasta-se para deixar passar os
Os carneiros começavam a desinteressar-se de animais, e por descargo de consciência conta-os
mim. Talvez tivessem compreendido. Ouvi-os enquanto desfilam à sua frente. Depois vai
recomeçarem a tasquinhar, a vaguear. Percebi, para sua casa, a porta da cozinha está aberta,
enfim, no limite da planície, um rubor confuso, a lâmpada arde, entra e põe-se à mesa, sem
soma de mil luzes nítidas turvadas pela distân- tirar o chapéu. Porém o cão estaca no limiar,
cia. A coisa parecia uma galáxia. A coisa dir- sem saber se pode entrar ou se deve ficar
-se-ia uma quebra na bela linha direita e som- fora.
bria do horizonte. Agradeci a noite que faz as Essa noite tive uma cena bastante violenta
luzes, as estrelas no céu e sobre a terra as com o meu filho . Não me recordo a propósito
corajosas luzinhas dos homens. De dia o pastor de quê. Esperem, talvez seja importante.
teria apontado em vão o seu cachimbo, para a Não, não sei. Tive tantas cenas com o meu
comprida comissura nítida e clara do céu e da filho. Na altura deve ter-me parecido uma
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cena como as outras, é tudo quanto sei. Tive 3.° Eu tinha-lhe recomendado que conser-
que a conduzir segundo uma técnica compro- vasse os olhos bem abertos, durante as suas
vada demonstrando-lhe com mestria a enor- andanças, para a compra de uma segunda
mida'de dos seus erros. Mas no dia seguinte bicicleta, levezinha e baratinha. Porque eu es-
compreendi que me tinha enganado. Porque tava até aqui com o porta-bagagens e além disso
acordando de manhãzinha cedo déí comigo só, via chegar o dia em que o meu filho já não
no abrigo, eu que acordava sempre primeiro. teria força para pedalar por dois. E eu julga-
E havia mesmo muito tempo que estava sozinh o, va-me capaz, que digo eu, eu sabia-me capaz,
dizia-me o instinto, muito tempo já que a com um pouco de treino, de aprender a pedalar
re spir ação do meu filho se não misturava à só com um pé. E então retomaria o lugar que
minha, no estreito abrigo que este cons~ruíra, me cabia, isto é, à cabeça. E o meu filho se-
sob a minha direcçã o. E que tivesse partido de guiria atrás de mim. E assim já não se veri-
biciclet a, durante a noite ou às primeiras hor as ficaria essa coisa escandalosa, a saber o meu
da manhã, isso em si nada tinha de profunda- filho desprezando as minhas instruções, to mando
mente inquiet ante. E eu até teria sabido en- à esquerda quando lhe dizia para tomar à
cont r ar para isso excelentes e respeitáv~is direita, ou à direita quando lhe dizia à esquer da ,
razões, se disso apenas se tratasse. Infeliz- ou a direito quando lhe dizia à direita ou à
mente o tipo levara consi go o mochila assim esquerda, como se verificava cada vez com
como o capote. Não me restava no ab ri go, nem mais fr equência esses últimos tempos.
fora do abrigo, nada que fos se dele, abso lut a- Eis tudo o que desejava acres cent ar.
mente na da ..E não apenas isso, pa r tir a com Visitando porém o meu porta-moedas cons-
uma soma de dinheiro cons iderável, ele que tatei que não continha ma is do que quinze
apenas tinha direito a alguns dinheir os de vez xelins, o que me levava a crer que o meu rico
em quando, para meter no seu mealheiro it a- filho se não contentara com a soma que já tinha
liano. Porque desde que ele se ocupava de tudo, consigo mas me fora aos bolsos antes de
debaixo da minha dir ecção pois decerto, e partir, enquanto eu dormia. E o meu primeiro
nomeadamente das compras, eu depositava nele movimento, como a alma é bizarr a, foi ficar-lhe
inteira confiança no que respeita a dinheiro rec onhecido por me ter deixado essa pequena
até um certo ponto claro está. E além disso soma, suficiente para me desenrascar até à
guardava com ele uma soma muito superior ao chegada de socorros, e via mesmo nisso uma
estrictamente necessário. E para que isto pareça espécie de delicadeza!
mais verosímil acrescenta.rei o que se segue. Estava portanto só, ma is o meu surrão, o
1.° Eu desejava que ele aprendesse a man- meu gu ar da-chuva que o tipinho podia muito
ter uma contabilidade parcialmente em dupli- bem t er levado e quin ze xelins, sentindo-me
cado e inculcara-lhe os rudimentos dela. friament e abandonado, de propósito deliberado
2.° Eu já não tinha coragem par.a me e sem dúvida com pr emedit ação, em Ballyba se
ocupar dessas misérias que outrora faziam a -quiserem, se realmente lá estava, mas ainda
minha alegria. bastante longe de Ba lly. E vários dias, não sei
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quantos, permaneci no mesmo sítio em q.ue o meu rosto exprimisse outra coisa além de
meu filho me abandonara, comendo as minhas tristeza e serenidade. Porém ele sacudia-me
últimas provisões (ele podia fàcilmente tê-las todo o corpo, e até as pernas, de ~l maneira
levado) , não vendo vivalma, incapaz de -agir, ou . que tinha de me apoiar a uma arvore, ou
talvez finalmente bastante forte para nao mais um arbusto, quando me surpreendia de pé,
agir. Porque eu estava tranquilo, sabia que tudo já não bastando o guarda-chuva p.ara me manter
ia acabar, ou ressurgir, pouco importava, e em equilíbrio. Riso estranho se ris? era e a que
pouco importava de que maneira, não me res- reflectindo bem apenas chamo assim talvez por
tava mais do que esperar. E divertia-me mesmo preguiça, ou p~r ignorância. E quanto .à minha
a deixar crescer em mim de longe em longe, para pessoa, esse fiel passatempo, devo dizer que
melhor as esmagar depois, pueris esperanças, já não pensava nada nela. Mas por momentos
por exemplo que o meu filho, passada a cólera, parecia-me já não estar muito longe dela, que
teria piedade de mim, yoltaria para mim! . ~u dela me aproximava como a praia da vaga que
que Molloy, em cujo pais me encontrava, viria se enfuna e branqueia, figura devo dizer desde
até mim, que não soubera ir até ele, e que já muito pouco apropriada à minha situação,
havia de fazer dele um amigo, um pai, e que ele que mais era a da merda à espera da descarga
me ajudaria a fazer o que tinha a fazer, de de água. E anoto já aqu~ o pequen~ baque no
maneira que Youdi se não zangasse comigo e coração que uma vez tive, em minha casa,
me não castigasse! Sim, deixava-as crescer e quando uma mosca , voando baixo sobr~ o meu
amontoar em mim, fulgurar e enfeitar-se de cinzeiro, levantou neste um poucachinho de
mil pormenores encantadores, e depois varria- cinza com a viração das asas. E ia ficando cada
-as com uma grande vassourada desdenhosa, vez ~ais fraco e mais contente. Há já vários
limpava-me delas e contemplava com satisfação dias que não comia nada. Teria podido provà-
o vazio que tinham poluído. E de noite vol- velmente encontrar amoras e cogumelos, mas
tava-me para as luzes de Bally, via-as brilhar não me interessava. Ficava todo o santo dia
cada vez mais ardentes, depois apagaram-se estendido no abrigo, lamentando vagamente o
quase todas ao mesmo tempo, imundos in- capote do meu filho, e à noite saía a gozar um
significantes pisca-piscas dos homens amedron-
tados. E dizia para comigo, Pensar que também pouco as luzes de Bally. E embora sofrendo um
lá estaria, se me não acontece esta desgraça! tanto de cãimbras e de dilatações de estômago
E esse tal Obidil de que estive vai não vai para sentia-me extraordinàriamente contente, con-
falar, que eu tanto teria gostado de ver de tente comigo mesmo, quase exaltado, encantado
perto pois bem, não o vi nunca, nem de com a minha personagem. E dizia de mim para
longe' nem de pert~, e se ess~ dia?o não e~is.tis~e mim, Muito em breve vou perder de todo o
não me espantaria por ai alem. E a Ideia conhecimento, é só uma questão de tempo. Mas
das sanções que Youdi podia tomar contra a chegada de Gaber pôs fim a estes folguedos.
mim era sacudido por um riso enorme, sem Foi uma noite. Vinha eu de me arrastar para
que se ouvisse o mais pequeno ruído e o fora do abrigo para a minha gargalhadinha
habitual e para melhor sentir a minha fra-
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queira. Já ali estava havia algum tempo. Estava vra. E no entanto eu não fizera a barba desde o
sentado num tronco, meio a dormir. Viva Mo- dia em que o meu filho trouxera a bicicleta de
ran, saudou. Você reconhece-me? perguntei Hole, nem me lavava, sem falar nas privações
Tirou o canhenho do bolso e abriu-o, molhou o de toda a espécie e nas grandes metamorfoses
dedo, folheou as páginas, encontrou a que que- interiores. O senhor reconhece-me? exclamei.
ria, levantou-a até aos olhos e ao mesmo tempo Se o reconheço 't perguntou. Reflectiu. Eu bem
baixou estes até ela. Não vejo nenhum, disse sabia o que ele fazia, procurava a frase mais
ele. Estava vestido como da última vez. Tinha capaz de me ferir. Filho da mãe de Moran!
por t anto feito mal em pensar mal do seu endo- disse finalmente. Eu vacilava de fraqueza. Ti-
mingamento. A menos que fosse outra vez vesse morrido a seus pés e ele teria dito na
domingo. Mas não o tinha eu visto sempre mesma, Ah este velho Moran, sempre na mesma.
assim vestido? Você por acaso não tem fósfo- Fazia cada vez mais escuro. Perguntei a mim
r os? perguntou. Não lhe conhecia aquela voz mesmo se se trataria mesmo de Gaber. E le
longínqua. Ou então uma lanterna de ~olso, está zangado ? indaguei. Você não terá por
acrescent ou. Deve ter-me visto na cara que eu acaso uma canequinha? Estou-lhe a perguntar
de luminoso nada tinha. Tirou do bolso uma se ele não está zangado, berrei. Zangado, res-
minúscula lanterna eléctrica e alumiou a pá- pondeu Gaber, você tem cada uma, zangado,
gina. Leu , Mora n, Jacques Moran, deve voltar ele esfrega as mãos de manhã à noite, ouço-lhe
a su a casa, acabadas to das as diligências. as pa lmas da ante-câmara. Mas isso não quer
Apagou a lanterna, fech ou o canhenho com o dizer nada, disse eu. Ele goza sozinho, disse
dedo e pôs-se a olhar para mim. Não poss o Gaber. Ele com certeza que está zangado co-
andar, disse eu. Como? perguntou. Estou do- migo, disse eu. Você sabe o que ele me diss e no
ente, não me posso mexer, tornei. Não ouço outro dia? perguntou Gaber. Ele mudou muito ?
uma pal avra do que você está a dizer, disse ele. perguntei. O quê? perguntou Gaber. Se ele mu-
Gritei-lhe então que não podia deslocar-me, que dou muito? gritei. Se mudou, r espondeu Gabe r,
estava doente, qu e seria necessário t ran spor- não, que ideia , não mudo u, porque havia ele de
tarem-me, que o meu filho me abandonara, que ter mudado, está a ficar velho, eis t udo, como o
estava até aqu i. E xaminou-me grosseiramente mundo. O senhor está com uma voz patusca
da cabeça aos pés. Dei alguns passos arrimado esta noite, observei. Não creio que me ouvisse.
ao guarda-chuva para lhe mostrar que não Bem , bem , diss e ele passando outra vez as
podia andar. Tornou a abrir o canhenho, alu- mãos pelo peito, de cima a ba ixo, deixa-me ir,
miou out ra vez a tal página , interrogou-a já que o meu am igo nada te m para me da r .
paulatinamente e disse, Jacques Moran deve Afastou-se, sem me dizer adeus. Mas fui atrás
volt ar a sua casa, acabadas todas as diligências. dele e apanhei-o, apesar do asco que me ins-
Fechou o canhenho, tornou a pô-lo no bolso, pirava, apesar das minhas fracas forças e da
tornou a pôr a lanterna no bolso, levantou-se, perna doente, e travei-o pela manga. O que é
passou as mãos pelo peito e an unciou que mor- que ele lhe disse? perguntei. O tipo estacou.
ria de sede. Sobre o meu aspecto nem uma pala- Moran, avisou, o senhor começa a chatear-me

238 239
Nessa noite meti-me ao caminho de regres-
seriamente. Suplico-lhe, insisti, diga o que so. Não fui longe. No entanto foi já um pe-
ele lhe disse. Deu-me um empurrão. Caí. Não queno começo. E o primeiro passo é que conta.
me tinha feito cair de propósito, não fazia O segundo conta menos. Cada dia me via avan-
ideia do estado em que eu estava, apenas qui- çar um pouco mais. Esta frase não é clara, não
sera afastar-me. Nem tentei pôr-me de pé. diz o que eu esperava. De início contava por
Desatei aos urros. Aproximou-se e inclinou-se dezenas de passos. Estacava quando já não
sobre mim. Usava-me um enorme bigode cas- podia mais e dizia para comigo, Bravo, isto
tanho à gaulesa. Vi-lhe o bigode estremecer, os faz tantas dezenas, mais tantas do que ontem.
lábios a abrirem-se, e ouvi quase imediatamente Depois contava por quinzenas, por vintenas e
como mumuradas palavras de solicitude. Não finalmente por cinquentenas. Palavra, por fim
era brutal, o Gaber, conhecia-o bem. Gaber, podia fazer cinquenta passos antes de parar,
disse-lhe, não lhe peço grande coisa. Lembro- para descansar, apoiado ao meu fiel guarda-
-me tão bem desta cena. O tipo quis ajudar-me -chuva. A princípio devia ter vagueado um
a levantar-me. Repeli-o. Estava muito bem onde pouco por Ballyba, se na verdade estava em
estava. O que é que ele lhe disse? implorei. Ballyba. A seguir seguia mais ou menos os
Não compreendo, disse Gaber. Você dizia há caminhos que tomáramos à vinda. Os caminhos
bocadinho que ele tinha dito uma coisa, conti- porém mudam de aspecto, feitos em sentido
nuei, e eu depois interrompi-o. Você interrom- inverso. Comia, racionalmente, tudo o que a
peu-me? perguntou Gaber. Você sabe o que natureza, os bosques, os campos, as águas, me
ele me disse no outro dia, insisti, foram estas propunham de comestível. Acabei a morfina.
mesmo as palavras que o senhor empregou. Recebi ordens para voltar a casa em Agosto,
O rosto iluminou-se-lhe, Era quase tão vivaço Setembro o mais tardar. Cheguei a casa na
como o meu filho, o gorducho do Gaber. Ele Primavera, não quero precisar mais. Cami-
disse-me, disse Gaber, ele dis - . Mais alto, nhara portanto todo o Inverno.
gritei. Ele disse-me, disse Gaber, Gaber, disse- Outro que não eu ter-sé-ia deitado na neve,
-me ele, a vida é uma coisa muito bela, Gaber, decidido a nunca mais se levantar. Eu não.
uma coisa incrível. Sorriu. Fechei os olhos. Julgava outrora que os homens me não vence-
Os ratos, que coisa tão bonita, tão encorajante, riam a resistência. Continuo a julgar-me mais
desde que se tenha um pouco de perspectiva. esperto do que as coisas. Há os homens e há
Disse, O senhor acha que ele falava da vida as coisas, não me venham cá falar dos
humana, insisti. Tornei a abrir os olhos. Estava animais. Nem de Deus. Uma coisa que me
só. Tinha as mãos cheias de ervas e terra resista, mesmo que seja para meu bem, não me
que arrancara sem saber, e continuava a resiste muito tempo. Aquela neve, por exemplo.
arrancar. Desenraizava, literalmente falando. Embora a bem dizer ela me atraisse mais do
Deixei de o fazer, palavra, assim que compre- que me resistia. Mas em certo sentido resis-
endi o que tinha feito, o que fazia, uma coisa tia-me. E isso bastava. Venci-a, rangendo os
tão feia, que horror, pus-lhe logo ponto final. . dentes de alegria, pode-se muito bem ranger
abri as mãos, que em breve ficaram vazias.
16
os incisivos. Por ela abria eu caminho, em vos disse, apenas iguais a mim seriam capazes
direcção ao que teria chamado a minha perda de me vencer.
se tivesse podido conceber o que perdia. Talvez Não direi porém grande coisa a respeito
o tenha concebido depois, talvez não tenha dessa viagem de regresso, dos seus furores e
ainda acabado de a conceber, com o tempo traições. Passarei em silêncio os homens mal-
consegue-se forçosamente, lá chegarei. Porém fazejos e os seus espectros que quiseram impe-
durante a viagem não a concebia, exposto como dir-me o regresso a casa, como Youdi me
estava à malignidade das coisas e das pessoas ordenara. Mas mesmo assim vou aflorá-la em
e às fraquezas da minha carne. O joelho, abs- breves palavras, para minha edificação pessoal
tracção feita da habituação, não me fazia sofrer e para ver se arranjo alma que me permita
nem mais nem menos do que no primeiro dia. concluir. Em primeiro lugar os meus raros
O mal, fosse qual fosse, não evoluía. Será pensamentos.
possível explicar uma coisa destas? Mas vol- Alguns problemas de ordem teológica preo-
tando às moscas, acho que as há, que saem dos cupavam-me bizarramente. Eis alguns.
ovos no princípio do Inverno, dentro das casas, 1.° Que vale a teoria segundo a qual Eva
e morrem pouco tempo depois. Vêmo-las muito teria saído, não da costela de Adão, mas de um
pequeninas voando nos cantos tép~dos, lenta- tumor no redondo da perna?
mente, sem genica nem ruído. Quer dizer : vemos 2.° A serpente restejava ou, como afirma
uma que outra de tempos a tempos. Dev:m Comestor, andava de pé?
morrer muito jovens, sem ter chegado a por. 3.° Maria concebeu pelo ouvido, como que-
Varremo-las, arrastamo-las à vassourada para rem Santo Agostinho e Adobardo?
o caixote do lixo, sem dar por elas. Eis uma 4.° Por quanto tempo ainda o anti-cristo
estranha geração de moscas. Mas eu ia sendo abusará da nossa paciência?
pasto de outras afecções, . não .é ?em :sta a 5.° Terá verdadeiramente importância sa-
palavra, na maior parte intestinais. Nao .me ber-se com que mão se limpa o pousadouro?
apetece já comunicar-vo-las, lamento muito, 6.° Que pensar do juramento dos irlandeses
teria dado um lindo trecho. Direi apenas que proferido com a mão direita nas relíquias dos
outro que não eu as não teria vencido sem santos e a esquerda no membro viril?
assistência. Mas eu! Dobrado em dois, com a 7.° A natureza observará o sabbat?
mão livre comprimindo o ventre, eu avançava, 8.° Será exacto que os diabos não sofrem
soltando de vez em quando um rugido de aflição os tormentos infernais?
e triunfo. Alguns dos musgos que comia deviam
ter alguma responsabilidade nessa história. Se 9.° A teologia algébrica de Craig. Que
pensar dessa coisa?
se me metesse no bestunto apresentar-me pon-
tualmente no local do suplício, a desinteria mais 10.° Será verdade que Saint-Roch menino
sanguinolenta não seria capaz de me impedir, não queria mamar nem às quartas nem às
sextas?
avançaria a quatro patas se preciso fosse ca-
gando bofes e tripas e entoando maldições. Já 11.° Que pensar da excomunhão dos para-
sitas no século dezasseis?
12. Será de aprovar o sapateiro italiano
0

Lovat que, depois de se castrar, se crucificou? 11.~ Que seria feito das minhas galinhas,
13. Que raio magicava Deus antes da
0
das minhas abelhas? A minha galinha cinzenta
criação? éstaria ainda viva?
14.° A visão beatífica não será uma fonte de 12.0 Zu, as manas Elsner, ainda esta-
tédio, a longo prazo? riam vivos?
15.° Será verdade que o suplício de Judas 13. Youdi teria ainda o escritório no mesmo
0

é interrompido ao sábado? sítio, no número 8 da Square das Acácias? E se


16. E se se dissesse a missa dos mortos
0
eu lhe escrevesse? Havia de explicar-lhe. O que
aos vivos? lhe havia eu de explicar? Havia de pedir-lhe
E só para mim ia recitando o adorável perdão. Perdão de quê?
Padre Nosso quietista, ó Deus que não estais 14. O Inverno era ou não era de uma se-
0

nos céus nem na terra nem no inferno, não veridade excepcional?


quero nem desejo que o vosso nome seja san- 15. Há quanto tempo não ia eu à confissão
0

tificado, sabeis melhor que ninguém o que vos e à comunhão?


convém. Etc. O meio e o fim são muito lindos. 16. o Qual era o nome daquele mártir que
Era neste mundo frívolo e encantador que preso, carregado de cadeias, coberto de piolho~
me refugiava, quando a minha taça acabava e de feridas, não podendo mexer-se, celebrou
por transbordar. me~mo assim a consagração sobre o próprio
Punha-me porém outros problemas tocan- estomago e deu a absolvição a si próprio?
do-me talvez de mais perto. Eis alguns. 17. Que faria eu até à morte? Não haveria
0

1. Por que não ter pedido emprestado al-


0 meio de apressar esta, sem cair no pecado?
guns xelins a Gaber? Porém antes de pôr em movimento, através
2.o Por que ter obedecido à ordem de vol tar daquelas solidões geladas, depois, com o degelo,
para casa? pantanosas, o meu corpo propriamente dito,
3.° Que teria sido feito de Molloy? díreí que pensava muito nas minhas abelhas
4. 0 A mesma pergunta a meu respeito. muito mais do que nas minhas galinhas, ~
5.0 O que iria ser de mim? Deus sabe quanto eu pensava nas minhas ga-
6. o As mesmas perguntas a respeito do linhas. E pe.nsava sobretudo na Sua dança,
meu filho. porque as minhas abelhas dançavam, oh não
7. 0 A mãe dele estaria no céu? como dançam os homens, para se divertirem
8. o A mesma pergunta em relação a mas de outra maneira. Eu julgava ser o únic~
minha mãe. homem no mundo a sabê-lo. Fizera investi-
9.o Eu iria para o céu? gações aturadíssimas sobre o assunto. Essa
10. Encontrar-nos-íamos um dia todos no
0 dança manifestava-se sobretudo nas abelhas
céu, a minha mãe, o meu rapaz, Youdi, Gaber, que regressavam à colmeia, mais ou menos
Molloy, a mãe deste, Yerk, Murphy, Watt, car::egadas de ~éctar, e comportava uma grande
Camier e os outros? variedade de figuras e de ritmos. E eu tinha
mesmo acabado por ver nela um sistema de
sinais por meio do qual as abelhas contentes qualquer nível, ao puro acaso, antes havia três
ou descontentes da respectiva colheita indi- ou quatro níveis, sempre os mesmos, em que
cavam às que partiam para que lado era ou dançavam. E se vos dissesse quais eram esses
não era necessário dirigirem-se. Mas as abelhas níveis, e quais as relações entre eles, porque
que partiam também dançavam. Era com cer- os tinha medido cuidadosamente, não me acre-
teza a maneira de elas ' dizerem, Compreendi, ditariam. Ora não é este o momento para con-
compreendi, ou então, Não te preocupes comigo, vencer incrédulos. Dir-se-ia algumas vezes que
mete-te na tua vida. Porém, longe da colmeia, escrevo para o público. E apesar de todo o tra-
em pleno trabalho, as abelhas não dançavam. Aí balho que consagrara a esses assuntos, estava
a. palavra de ordem parecia ser, Cada uma por mais do que nunca fascinado pela complexidade
SI, supondo que as abelhas são capazes de tais daquela dança inumerável, onde deviam intervir
noções. A dança consistia sobretudo em figuras outras determinantes de que eu não fazia a mais
muito complicadas, traçadas durante o voo, pequena ideia. E dizia para comigo, com deleite,
e eu já tinha classificado um grande número Aqui está uma coisa que eu podia estudar a
delas, com a respectiva provável significação. vida inteira, sem nunca a compreender. E du-
Mas havia ainda o problema do zumbido, cuja rante essa viagem de regresso, quando me
diversidade de timbre, à aproximação e à par- interrogava sobre as possibilidades de uma
tida da colmeia, podia dificilmente ser um efeito pequena alegria futura, era pensando nas
do acaso. Tinha chegado primeiro à conclusão minhas abelhas e na sua dança que quase me
de que cada figura era reforçada por meio de reconfortava. Porque eu continuava a não
um zumbido particular. Tive porém que aban- dispensar uma pequena alegria, de tempos a
donar essa agradável opinião. Porque eu via tempos! E que essa dança no fundo não fosse
a mesma figura (enfim aquilo a que eu chamo outra coisa senão a dos ocidentais, frívola e
a mesma figura) ser acompanhada de zumbidos sem significação, admitia sem pestanejar essa
muito diversos. De maneira que disse para possibilidade. Mas para mim, sentado perto
comigo, O zumbido não serve para sublinhar das minhas colmeias banhadas pelo sol, seria
a dança, mas ao contrário para a avariar. E a sempre uma coisa bela de se ver e de um alcance
mesma figura exactamente muda de sentido que os meus pensamentos de homem contra
consoante o zumbido que a acompanha. E eu vontade não lograriam nunca conspurcar. E eu
tinha recolhido e classificado um grande nú- seria incapaz de fazer às minhas abelhinhas
mero de observações a esse respeito, não sem a injustiça que fizera ao meu próprio Deus, a
resultado. Porém, não se tratava somente da quem me tinham ensinado a atribuir as minhas
figura e do zumbido, mas igualmente da altura cóleras, os meus pavores e os meus desejos, e
a dançar, mas ao contrário para a variar. E a. até o meu corpo.
vicção de que a mesma figura, acompanhada Já falei de uma voz que me dava instruções,
do mesmo zumbido, não significava a doze pés ou antes conselhos. Foi durante esse regresso
do solo a mesma coisa que a seis. Porque as que a ouvi pela primeira vez. Não lhe dei
abelhas não dançavam indiferentemente em atenção.
Da banda do corpo tornava-me então tinha desciam-me até aos tornozelos. E ao ver a
a impressão ràpidamente irreconhecível. E carne azulada entre as calças e o canhão dos
quando passava as mãos pela cara, num gesto sapatos, pensava às vezes no meu filho e na
familiar e então mais do que nunca escusa do, pancada que lhe dera, de tal maneira o espírito
já não era a mesma cara que as minhas mãos se excita com as mais pequenas analogias. Os
sentiam e já não eram as mesmas mãos que sapatos ficaram-me inteiriçados com a falta
sentia a minha cara. E não obstante o fundo de cuidado. É a maneira de nos defendermos
da sensação era o mesmo de quando andava do couro morto e curtido. O ar circulava li-
bem barbeado e perfumado e tivera do inte- vremente neles, impedindo talvez que os pés me
lectual as mãos brancas e flácidas. E essa gelassem. Tive igualmente a lamentar separar-
barriga que não conhecia conti nuava a ser a -me das minhas ceroulas (duas) . Tinham apo-
minha barriga, a minha velha barriga, graças drecido, ao contacto dos meus transbordamen-
a não sei que intuição. E pa ra dizer tudo con- tos. Então o fundo das minhas calças, também
tinuava a reconhecer-me e tinha mesmo da puídas a grande velocidade, assou-me o rêgo
minha identidade um sentido mais nítido e depois o cóccix até ao nascimento do escroto.
mais vivo do que antes, mau grado as suas Que mais tive eu de deitar fora? A camisa?
lesões íntimas e as chagas de que se cobria. Ah não que ideia. Mas vestia-a muitas vezes
E sob este ponto de vista eu estava mui niti- do avesso e a frente para trás. Ora vejamos.
damente em estado de inferioridade em relação Tinha quatro maneiras de vestir a camisa. A
aos meus outros conhecimentos. Lamento que frente do direito para a frente, a frente do
esta última frase me não tenha saído melhor. avesso para a frente, a frente do direito para
Merecia, quem sabe, não ser ambígua. trás, a frente do avesso para trás. E ao quinto
No entanto há também as roupas que mol- dia recomeçava. Isto na esperança de a fazer
dam tão bem o corpo e dele são por assim dizer durar. Tê-la-à feito realmente durar? Não sei.
inseparáveis, em tempo de paz. Sim, sempre Durou. Preocuparmo-nos com as pequenas
fui muito sensível às roupas, sem ser nem por coisas, é alcançar as grandes, com o tempo.
sombras dandy. Nunca tive razão de queixa Mas que tive eu ainda que deitar fora? Os
das minhas, sólidas e de bom corte. Eu estava colarinhos postiços, sim, deitei-os todos, e até
naturalmente insuficientemente coberto, porém antes de os ter usado até ao fio. Mas a gravata
de quem a culpa? E fui obrigado a separar-me guardei-a , usava-a mesmo, amarrada ao pes-
do meu palhinhas, pouco apto para fazer face coço, por bas ófia, suponho. Era uma gravata
à estação morta, e das minhas meias (dois de bolas, esqueço-me de que cor.
pares) que o frio e a humidade, as marchas Quando chovia, quando nevava, quando
longas e a impossibilidade em que me encon- geava, dava comigo colocado diante do dilema
trava de as lavar convenientemente, reduzi- seguinte. Ou cont inuar a avançar arrimado ao
ram em pouco tempo literalmente a nada. Esti- guarda-chuva e deixar-me encharcar ou parar
quei porém os suspensórios até ao máximo e e abrigar-me debaixo do guarda-chuva aberto.
as calças, largueironas como as que se prezam, Era um falso dilema, como tantos dilemas são.

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Porque da cúpula do guarda-chuva não me res- de árvore. Porque em pouco tempo deixou de
tava mais do que alguns farrapos flutuando à haver folhas, só havia as agulhas de certos
volta das varetas e eu teria podido continuar a coníferas. Porém não era bem essa a razão por
avançar muito lentamente, empregando o guar- que eu já não tolerava os verdadeiros abrigos.
da-chuva não já como apoio, mas como abrigo. não era não. :Ê que dentro deles pensava sem
Porém tinha de tal maneira o hábito, por um tréguas no capote do meu filho, via-o literal-
lado da perfeita impermeabilidade do meu rico mente ao capote diante dos olhos, não via outra
guarda-chuva, por outro de já não poder andar coisa, enchia-me o espaço. Tratava-se a bem
sem o seu apoio, que o dilema permanecia in- dizer daquilo a que os nossos amigos ingleses
teiro, para mim. Teria podido naturalmente fa- chamam um trench-coat, e eu sentia-lhe o
zer um bordão, com um ramo, e continuar a cheiro a bor r acha , muito embora os trench-
avançar, apesar da chuva, da neve, da geada. -coats geralmente não sejam de borracha.
apoiado a isso e o guarda-chuva aberto por cima Evitava portanto tanto quanto possível recorrer
de mim. Porém nada disso fiz, não sei porquê. aos verdadeiros abrigos, os de ramos de árvore,
Mas quando caía chuva, e as outras coisas que e preferia recorrer ao meu fiel guarda-chuva,
nos caem do céu, às vezes continuava a avan- ou a uma árvore, um valado, uma moita, uma
çar, apoiado ao guarda-chuva, deixando-me en- ruína qualquer.
charcar, porém mais frequentemente ficava Quanto a ganhar a estrada principal, a
imóvel, abria o guarda-chuva por cima de mim fazer-me transportar de veículo, nem tal
e esperava que aquela porcaria acabasse.. E me passou pela cabeça.
então deixava-me encharcar da mesma maneira. Quanto a fazer-me socorrer nas aldeias, nas
Mas o problema não era esse. Se se pusesse a casas dos aldeões, tal ideia não me teria desa-
cair o maná eu teria esperado imóvel, debaixo gradado, se a tivesse tido.
do guarda-chuva, que ele acabasse, antes de Voltei a casa com os quinze xelins intactos.
me aproveitar. E quando o braço me ficava Não, gastei dois. Eis em que circunstâncias.
cansado de conservar o guarda-chuva no ar, Tive que. suportar outros aborrecimentos
passava-o para a outra mão. E com a livre além desse, outras impertinências, mas não vou
batia e esfregava todas as partes do corpo que contá-las. Contentemo-nos com os paradigmas.
podia alcançar, a fim de conservar uma circu- Terei talvez que suportar outros no futuro•.
lação abundante, e passeava-a pela cara, num· não é certo, mas ninguém há-de saber, é mais
gesto característico muito meu. E a comprida que certo.
ponta do meu guarda-chuva era tal qual um Foi uma noite. Esperava eu muito tranqui-
dedo. Os melhores pensamentos vinham-me duo lamente, debaixo do guarda-chuva, que o tempo
rante essas paragens. Porém quando acontecia levantasse, quando de repente fui brutalmente
a chuva, etc., não parar durante todo o dia, ou abordado por trás. Não tinha ouvido nada.
toda a noite, forjava uma razão qualquer e Tinha estado num sítio onde havia apenas eu.
construía um verdadeiro abrigo. Mas eu já não Uma manápula obrigou-me a voltar-me. Era
tolerava os verdadeiros abrigos, os de ramos um gordo rubicundo quinteiro. Vestia encerado,
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pondi. Outro ter-sé-ia desmanchado. Eu não.
chapéu de coco e botas. As bochechas inchadas Eu conhecia-os, os pontos fracos dos nOSSOM
escorriam-lhe, o suor pingava-lhe dos grandes campónios. Você não chega lá, disse ele. ~ a
bigodes. Mas para que servem estas indicações. ela que eu devo ter perdido o J?eu fil~o,. con-
Olhámo-nos com ódio. Talvez fosse o mesmo tinuei, mas ter conservado a mmha mãezinha,
que me propusera tão amàvelmente levar-me Tais sentimentos não podiam deixar de agradar
a mim e ao meu filho no carro dele. Não creio. a um criador de vacas. Se ele soubesse! Expli -
A sua cara no entanto era-me familiar. E não quei-lhe mais longamente o que ai de mim se
só a cara. Trazia uma lanterna na mão. Apa- não passara. Não que tenha saudades dr
gada. Mas que podia acender de um momento Ninette. Mas ela, porém talvez, de qualqu r
para o outro. Na outra trazia uma pá. Boa para maneira, sim, oh que pena, enfim. É a nossa
me enterrar. Agarrou-me o casaco, pelo avesso. senhora das grávidas, e eu jurei arrastar-m
Ainda não me sacudia exactamente, começaria miseràvelmente até ao seu santo nicho, para
a sacudir-me quando muito bem lhe parecesse. lhe exprimir o meu reconhecimento. Este inci -
Injuriava-me apenas. Escogitei no que teria eu dente permitirá admirar a minha habilidad ,
feito, para o pôr naquele estado. Com certeza mesmo nessa época. Mas eu fora um pouco
levantara as sobrancelhas. Mas eu levanto longe demais, porque o seu olhar ficou outra
sempre as sobrancelhas, elas dão-me quase pelo vez bera. Permite-me que lhe peça um grande
cabelo, a minha testa o que é senão cabelos a favor, disse eu, Deus vo-lo retribuirá. Acres-
cavalo uns nos outros. Lá acabei por com- centei, Foi Deus quem me enviou o senhor,
preender que não estava em minha casa. Estava esta noite. Pedir humildemente um favor a
nas suas terras. O que diabo fazia eu nas suas quem está prestes a abater-nos, dá ~s vezes
terras? Se há pergunta que receie mais que muito bons resultados. Um pouco de cha quente,
todas, à qual nunca consegui dar uma resposta implorei, sem açúcar nem leite, para me dar
satisfatória, é bem essa. E nas terras de outrem forças. Fazer este pequeno favor a um pere-
ainda por cima! E de noite! E por um tempo grino à rasca, confessem que é tentador. Bem,
que nem para cães! Porém não perdi o san- venha à minha casa, disse o tipo, venha enxu-
gue-frio. 'É uma promessa, respondi. Tenho gar-se. Não posso, não posso, gritei, jurei i;
uma voz bastante distinta, é só eu querer. Deve sempre em linha recta. E para apaga~ ~ ma
tê-lo impressionado. Largou-me. Uma peregri- impressão criada por estas palavras tirei um
nação, encadeei, aproveitando a vantagem. Vai florim do bolso e dei-lho. Para os seus pobres,
ele pergunta-me aonde. A partida estava ganha. disse eu. E acrescentei, por causa da obscuri-
A nossa senhora de Shit, respondi. Nossa se- dade um florim para os seus pobres. Ê longe,
nhora de Shit? perguntou o tipo, como se diss~ ele. Deus o acompanhe, disse eu. Ficou
conhecesse Shit como os seus dedos e não exis- a meditar. Havia de quê. Sobretudo nada de
tisse lá nossa senhora nenhuma. Mas qual o comer disse eu, não de maneira nenhuma, não
sítio onde não exista uma nossa senhora? Essa devo domer nada. Ah velho Moran, ladino como
mesmo, respondi. A negra? perguntou, para me
uma serpente. Naturalmente eu teria preferido
experimentar. Que eu saiba negra não é, res-
252 253
o género forte e feio, mas não ousava arris- vam mortas, eu sabia. Simplesmente essas,
car-me Afastou-se por fim dizendo-me que tinham sido mortas de outra maneira, salvo
esperasse por ele. Não sei quais eram as suas talvez a cinzenta. As minhas abelhas, as minhas
intenções. Quando o julguei bastante longe galinhas, tinha-as abandonado. Fui para casa.
fechei o guarda-chuva e parti na direcção oposta Toda às escuras. A porta fechada à chave.
perpendicular à certa, debaixo de chuva a Arrombei-a. Talvez a tivesse podido abrir, com
cântaros. Foi assim que eu gastei um florim. uma das minhas chaves. Abri o interruptor.
Agora vou poder concluir. Qual luz. Fui à cozinha, ao quarto de Marta.
Ladeei o cemitério. Era de noite. Meia-noite Ninguém. Mas basta de histórias. A casa es-
talvez. A ruela sobe, eu estava estafado. Um tava abandonada. A companhia tinha cortado
ventinho expulsava as nuvens através do céu a corrente. Bem quiseram tornar a abri-la.
debilmente iluminado. É bom a gente ter uma Mas eu não quis. Eis no que me tornei. Voltei
concessão a título perpétuo. É uma coisa ao jardim. Na manhã seguinte contemplei o
mesmo muito bela. Se houvesse apenas essa meu punhado de abelhas. Uma poeira de asas e
eternidade. Cheguei diante do postigo. Estàva de anéis. Encontrei correio, em baixo da escada,
fechado à chave. A sete chaves. Mas não con- na respectiva caixa, Uma carta de Savory. O
segui abri-lo. A chave entrava no buraco, mas meu filho estava bem. Naturalmente. Não fa-
não dava a volta. Longa falta de uso? Fecha- lemos mais nesse indivíduo. Voltou. Dorme.
dura nova? Arrombei-a. Recuei até ao outro Uma carta de Youdi, na terceira pessoa, pe-
lado da ruela e precipitei-me. Tinha voltado a dindo um relatório. Há-de tê-lo, o seu relatório.
casa, como Youdi me ordenara. Levantei-me É outra vez Verão. Há um ano partia. Vou-me
por fim. Que diabo cheirava tão bem? Lilases? embora. Um dia recebi a visita de Gaber. Queria
Primaveras talvez. Fui até às minhas colmeias. o relatório. Tem piada, julgava que tinham
Lá estavam elas, como eu receava. Tirei a porta acabado, os encontros, os discursos. Torne a
a uma delas e pousei-a na terra. Tinha um passar por cá, disse-lhe. Outro dia recebi a
telhadinho, de cúpula aguçada, e bruscas faldas visita do padre Ambrósio. Será possível! excla-
descendentes. Meti a mão dentro do cortiço, mou ao ver-me. Acho que ele gostava verdadei-
passei-a através dos favos vazios, passeei-a pelo ramente de mim, à sua maneira. Disse-lhe que
fundo. A um canto, fui dar com uma bola seca não contasse mais comigo. Pôs-se a discorrer.
e porosa. Esboroou-se ao contacto dos meus Tinha razão. Quem não tem razão. Eu aban-
dedos. Tinham-se reunido em cacho, para terem donei-o. Vou-me embora. Talvez encontre Mol-
um pouco mais de calor, para tentarem dormir. loy. O meu joelho não está melhor. Pior também
Tirei um punhado delas para fora. Fazia dema- não está. Agora ando de muletas. A coisa vai
siado escuro para poder ver, meti-o no bolso. mais depressa. Há-de vir o bom tempo. Hei-de
Não pesava nada. Tinham-nas deixado fora todo sabê-lo. Tudo o que era para vender, vendi.
o Inverno, tinham-lhes tirado o mel, não lhes Tinha porém pesadas dívidas. Não suportarei
tinham dado açúcar. Sim, agora posso concluir. mais ser homem, não tentarei mais. Não acen-
Não fui à capoeira. As galinhas também esta- derei mais esta lâmpada. Vou soprar-lhe em

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cima e vou para o jardim. Penso nos dias longos
de Maio, de Junho, em que vivia no jardim.
Um dia falei com Hanna. Deu-me novas de
Zu , das manas Elsner. Sabia quem eu era,
não tinha medo de mim . Não saía nunca, não
gostava de sair. Falava-me da janela. As novas
eram más, mas não inteiramente. Tinham tam-
bém as suas coisas boas. Oh que belos dias.
O Inverno fora excepcionalmente rigoroso, toda
a gente dizia. Tínhamos portanto direito a
este Verão soberbo. Não sei se tínhamos di-
reito. Os meus pássaros, esses não ti nham sido
mortos. Eram pássaros selvagens. E não obs-
tante bastante confiantes. Reconhecia-os e eles
pareciam reconhecer-me. Mas sabe-se lá. Havia
alguns que faltavam e havia novos também.
Tentava compreender melhor a sua linguagem.
Sem recorrer à minha.Eram os mais longos, os
mais belos dias do ano. Eu vivia no jardim. Já
falei de uma voz que me dizia isto e aquilo. Co-
meçava a entrar em acordo com ela por essa
altura, a compreender o que me queria. Não se
servia das palavras que tinham ensinado ao me-
nino Moran, que este por sua vez tinha ensinado
ao seu menino. De maneira que a princípio não
sabia o que me queria. Mas acabei por com-
preender essa linguagem. Compreendi-a, com-
preendo-a, quem sabe se de través. O problema
não está aí. Foi ela quem me disse que fizesse
o relatório. Quererá isto dizer que agora já
não sou livre? Não sei. Hei-de sabê-lo. Voltei
então a casa e escrevi, Ê meia-noite. A chuva
fustiga as vidraças. Não era meia-noite. Não
chovia.

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i\ p,!b'; nção de: A1dIo)', de Samuel rseckett, constitui um verda-
deiro acontecimento Iiterârio, dada a importância deste romance na
obra do grande escritor irlandês .
Molloy foi saudado pela crítica como um dos livros capita is do
pós-guerra. de par com a Náusea de Sartre. Foi ele também um dos
romances que levou Beckett a COnquist ar em 1961 o Prémio Inter -
nacional dos Editores e em 1969 o Prémio Nobel da Literatura. Além
disso, é cada vez maior a projecção do nome de S muel ijP-;k ~t t ne
literatura do nosso século, podendo afirmar-se q
da de um Kafka e James Joyce, é das que mai
ao movimento de renovação do rOlbance conten ""U
Não incorremos pois no mai s leve exagero, •
ao leitor este Mo lloy como obra Ver.nQ<lA;rQ~An'A ; "

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