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Carlos Reichenbach assina uma das cinematografias mais consistentes e facilmente

reconhecíveis do cinema brasileiro. Diretor que acumulou experiência na Boca do Lixo


paulistana, Reichenbach alimenta uma descrença no centro, em um Brasil oficial e na
representação que dele é feita. Como disse certa vez o crítico Inácio Araújo, o seu cinema
sempre entra pela porta dos fundos, pela entrada de serviço, onde flagramos aquilo que
nosso país ou cidade parecem empenhados em esconder. Carlão, como é chamado, faz um
cinema eminentemente ético, sem um glamour especial, sem um appeal programado, mas
libertário, emocionado e emocionante. Carlão tem fé no cinema. A cada filme, um novo
universo de personagens e suas excentricidades, e a mesma generosidade de sempre. Em
“Falsa Loura”, seu 15º longa metragem, ele retoma o universo das mulheres proletárias,
anteriormente abordado em “Garotas do ABC”, e dirige, com generosidade e inteligência, o
seu melhor filme em algum tempo.

O longa era originalmente um dos quatro roteiros que Reichenbach escreveu para um
projeto chamado “ABC – Clube Democrático”. Inspirado por ‘Berlim Alexander Platz’, de
Fassbinder, a idéia do cineasta era retratar o seu imaginário a respeito da mulher operária
no trabalho e no tempo livre: “Durante dois anos, eu mergulhei no ambiente das tecelãs do
ABCD. Todos os roteiros partiam de uma premissa anarco-libertária de que o verdadeiro
espaço de liberdade é o tempo livre; de que o trabalho só tem sentido quando enxergado
como prazer. A idéia inicial era filmar os quatro roteiros já escritos de uma só vez.
Consegui filmar o primeiro deles ‘Aurélia Schwarzenega’ (posteriormente batizado de
‘Garotas do ABC’) e por algum tempo abandonei o projeto. Quando resolvi centrar
esforços com a minha sócia em produzir o que seria o terceiro dos filmes já desenvolvidos,
encontramos sérias dificuldades, justamente por ele estar veiculado a um filme de quatro
anos atrás. Numa atitude extrema, resolvemos mudar o perfil inicial. Com a produtora de
elenco Vivian Golombek e o diretor assistente Daniel Chaia, fui em busca de atrizes com
quem nunca havia trabalhado antes. O ambiente proletário e operário continuou o mesmo,
embora com uma nova geografia. Mantive, no entanto, a essência da narrativa dramática e
o "olhar político" do projeto original”, explica Reichenbach.

“Falsa Loura” nos traz a história de Silmara (Rosanne Mulholland), uma operária de
exuberante beleza, que se envolve com dois mitos diferentes da música popular, e,
experimenta, com cada um deles, traumáticas lições de vida. Ela sustenta o pai, Antero
(João Bourbonnais), um ex-presidiário, fisicamente deformado pelo fogo. No trabalho, ela é
instada por sua melhor amiga, a também operária Luiza (Vanessa Prieto), a se tornar a
"pigmalião" da tímida, desajeitada e solitária Briducha (Djin Sganzerla). Após um show, ao
se envolver emocionalmente com o ídolo Bruno de André (Cauã Reymond), Silmara passa
a representar para suas amigas do trabalho a utópica possibilidade de rápida ascensão
econômica e social e se torna um mito entre as colegas Milena (Suzana Alves), Valquíria
(Priscila Dias), Fátima (Naruna Costa) e Rosecler (Ingrid Silveira).

Aos poucos, Reichenbach nos apresenta e nos aproxima dos personagens, mostra suas
contradições e explora sempre o inusitado de um universo recheado de clichês. “Falsa
Loura” é uma espécie de semi-musical cafona. Mas, mais uma vez, o que se destaca neste
filme é a total adesão do realizador aos caminhos do protagonista. Reichenbach acredita em
sua personagem, concede a ela o direito de errar sozinha. O clichê funciona então como
uma manifestação espontânea do modo de relação que os personagens negociam com a
vida. Reichenbach quer entender como este universo preenche estas mulheres. Assim,
caminhamos de mãos dadas com Silmara em seus devaneios cafonas. Por vezes
Reichenbach adota o visual mais brega possível (com direito a piscina de água de plástico
ao som do personagem cantor de Maurício Mattar e músicas acompanhadas por aquelas
"bolinhas" de ritmo de karaokê) na tentativa de expor via imagem e som o mundo da
personagem.

Percebe-se também que, em relação a “Garotas de ABC” e “Bens Confiscados”, “Falsa


Loura” declara de maneira mais explícita os seus artifícios - talvez esta opção esteja
intimamente relacionada com o movimento do filme, que trata de personagens repletos de
máscaras. A fotografia de Jacob Solitrenick e a montagem de Cristina Amaral contribuem
também para a construção de um sentido que abraça o acidente e à imperfeição. É o caso,
por exemplo, da belíssima primeira cena do filme, em que vemos duas garotas dançando. A
câmera tenta acompanhá-las, mas por vezes não consegue. “Normalmente, é o andamento
da música que me conduz às minhas decisões. Lembro ter avisado ao Jacob (diretor de
fotografia) para ele não se assustar ao ver as atrizes saindo e entrando no quadro; de ter
pedido para ele nunca corrigir a altura do enquadramento. Eu fui guiando pessoalmente o
operador da dolly, de olho no video-assist (aquela micro-TV que é acoplada à câmera). De
certa maneira, eu tentei fazer a câmera dançar, sem nunca ficar subserviente às
personagens. O enquadramento não existe para ilustrar a ação; ele deve ter vida própria,
respirar por si mesmo”.

É preciso também destacar o incrível trabalho musical. “Falsa Loura” tem uma trilha sonora
bastante heterodoxa. Bach, música pop, e brega convivem e se misturam por entre os
personagens. “Nelson Ayres funcionou em ‘Falsa Loura’ como co-roterista da sua ‘leitura’
musical. Acho que o filme tem uma leitura extremamente sofisticada quando enxergado à
luz da trilha. A música é quase um protagonista. Nós não gostamos de trilhas que ilustram
as imagens, mas que dialoguem ou questionem o que é mostrado. Além de músico e
arranjador excepcional, Nelson Ayres não tem medo do risco, adora desafios e não tem
preconceito contra nenhum gênero. Foi ele quem sugeriu convidar Marcos Levy para cuidar
da parte pop da trilha. O que ele não gosta ou acha que não domina, ele delega a quem
confia. Ayres sempre foi muito além do que eu esperava. Eu vivo repetindo: dos meus
colaboradores e cúmplices eu nunca espero palpites, mas subsídios”.

Não podemos tampouco esquecer que “Falsa Loura” é um filme político. A relação que
Silmara terá com os dois principais personagens masculinos do filme se dará por
relações de poder. Reichenbach concorda: “Acho que as relações de poder se explicitam
na seqüência em que o Dr. Vargas ‘invade’ o ambiente familiar de Silmara e no encontro
dela com Cassandra, no restaurante. Lembro do impasse surgido no corte final: como juntar
o close desamparado de Silmara após descobrir ter sido iludida e o penoso calvário de seu
retorno ao ambiente de trabalho. As poucas pessoas que tiveram acesso ao penúltimo corte
resistiram muito ao retorno do Dr. Vargas ao filme. Mas uma dúvida levantada pela minha
filha me deu a certeza da necessidade de incluir a cena de Vargas sendo apresentado a uma
nova e futura ‘Silmara’. Este fragmento foi essencial para a ‘leitura política’ de ‘Falsa
Loura’. Com esta pequena seqüência Silmara se revela explicitamente um objeto
descartável. O ‘parênteses’ é cruel, mas essencial para não destruir o desfecho com
chantagem sentimental”.

Todos os elogios têm em um horizonte próximo a entrega de Rosanne Mulholland a


Silmara. O elenco como um todo faz bonito. Mas é por Silmara que a câmera se
apaixona. “Falsa Loura” pertence à família dos longas femininos de Carlão, como
"Lilian M" (1974) e "Anjos do Arrabalde" (1986) - lembra também o “A moça com a
valise” (1961) de Valerio Zurlini, um cineasta por quem Reichenbach é confessadamente
influenciado. São filmes que transbordam um fascínio por mulheres proletárias e seus
confrontos cotidianos com a vida. Silmara pertence a esta estirpe de heroínas, sempre
à beira do abismo. Vítimas das circunstâncias que insistem em não se entregarem a
elas. Talvez a grande diferença seja o fato de que, neste mais novo longa, há um olhar
mais duro em relação a visão ingênua da protagonista quanto às possibilidades de
ascensão social. “Falsa Loura” é um conto moral, sem nunca ser moralista. O filme é
cruel, mas nunca deixa de ser generoso e solidário em relação às opções de Silmara. A
seqüência que fecha o longa, em um lindo momento de curva descendente de sua
protagonista, reforça os laços com ela (e conosco).

E Reichenbach não para e já tem dois projetos na ponta da agulha: “O certo é que volto aos
‘filmes masculinos’. Um deles é o mais ambicioso da minha carreira e parte da minha
ressurreição no INCOR; especificamente, dos quatro ou cinco dias do pós-operatório, em
que sobrevivi à base de morfina. No hospital, sob o efeito da morfina e das horríveis dores
intermitentes, fiz um inventário mental - às avessas - da minha vida, de tudo que deixei de
fazer, das pessoas que eu não soube amar ou acolher, dos erros cometidos, etc. Tudo isso
misturado com a encenação do tal conto, como um filme que já tivesse sido feito. Assim
nasceu o pré-roteiro de ‘O Mar das Mulheres Finais’, que espero poder filmar com Ênio
Gonçalves, o Fausto de ‘Filme Demência’. O outro projeto, ‘Um Anjo Desarticulado’, é
quase um BO (baixo-orçamento). Tenho que filmá-lo com uma equipe de, no máximo, dez
pessoas; vou invadir alguns ‘terrenos sagrados’ como seminários, igrejas, centros espíritas,
etc, que exigem silêncio, respeito e concentração. Tenho certeza que vai intrigar aqueles
que acompanham os meus filmes, pois se trata de uma investida pessoal na seara teológica.
Seria ótimo poder filmar os dois projetos, já que um complementa o outro”.

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