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Maya Deren: mentora de Barbara Hammer

Camila Vieira da Silva1

Em palestras e aulas de cinema nas universidades, Barbara Hammer costuma afirmar


que uma das grandes influências do seu trabalho na realização de filmes é a obra de
Maya Deren2. No livro Hammer! Making Movies Out of Sex and Life (2010), Barbara
dedica um capítulo – nomeado de “Maya Deren and Me” – a narrar como conheceu
tardiamente o cinema da realizadora ucraniana, considerada pioneira do cinema de
vanguarda, em especial pelas próprias palavras de Jonas Mekas 3. Hammer tinha então
30 anos e fazia o segundo mestrado – desta vez em cinema, na Universidade de São
Francisco – quando assistiu a Meshes of the Afternoon (1943) em sala de aula. Em uma
turma de quase 100 estudantes, Hammer era uma das poucas mulheres, junto com duas
amigas feministas, que constantemente questionavam a ausência de diretoras nos
conteúdos das aulas de história do cinema.

O contato com o filme de Maya Deren levou Barbara Hammer a perceber que estava
diante de imagens dotadas de uma sensibilidade diferente e, a partir dali, ela teve
consciência de que também poderia ter espaço dentro do cinema, como uma mulher que
fazia filmes4. Apesar de propostas estéticas distintas e filmografias consolidadas em
tempos históricos diferentes – Deren com apenas 9 filmes (7 completos e 2 inacabados)
realizados ao longo dos anos 40 e 50 e Hammer com mais de 80 filmes feitos desde o
final dos anos 60 até hoje –, é possível traçar intersecções, pontes ou diálogos entre as
obras das duas cineastas.

O que de imediato impressionou Hammer em relação ao cinema de Deren foi a singular


fisicalidade: a sensação forte de sua presença atrás da câmera, como diretora, e também
diante da câmera, como performer. Deren se considerava uma poetisa que manipulava
imagens. Ela gostava da possibilidade das imagens se transformarem em outras 5. Dentro
dos inúmeros caminhos de transfiguração que o cinema de Maya Deren inventou,
Barbara demonstra interesse particular por dois procedimentos: a geografia criativa e a
filmagem vertical.

1
Jornalista, crítica de cinema e realizadora. Doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dirigiu os curtas “Multidões” (2013) e “Rua dos Vagalumes”
(2015). Escreve críticas no blog Sobrecinema e no site Verberenas. É fundadora e curadora do
Cineclube Delas, no Rio de Janeiro, com ênfase na exibição de filmes dirigidos por mulheres.
2
“Os filmes, a escrita crítica e as estratégias de exibição e distribuição de Maya Deren têm grande
influência para a minha realização de cinema e minha vida profissional” (HAMMER, 2001, p. 261)
3
Em depoimento para o documentário “No Espelho de Maya Deren” (Im Spiegel der Maya Deren,
2002), de Martina Kudlácek.
4
É importante lembrar como a própria Maya Deren tinha consciência de seu cinema a partir do que ela
chamava de “qualidade do tempo de uma mulher”, que implica a espera (diretamente relacionada ao
tempo que toda mulher tem ao conceber uma criança) em contraposição à urgência do homem (as
“criaturas do agora”). Confira tal trecho no documentário “No Espelho de Maya Deren” (Im Spiegel
der Maya Deren, 2002), de Martina Kudlácek.
5
Confira os áudios da cineasta em “No Espelho de Maya Deren” (Im Spiegel der Maya Deren, 2002),
de Martina Kudlácek.
A noção de geografia criativa implica na experimentação de uma montagem que
expande o tempo e o espaço. Em Meshes of the Afternoon, o mesmo gesto dos pés de
Maya caminhando é apresentado de modo contínuo em cinco planos distintos que
mostram a ação acontecendo sucessivamente em espaços diferentes (na areia, na terra,
na grama, no piso e no tapete). Hammer se apropria da ideia de geografia criativa para
expandir os limites do frame retangular do filme e da projeção de tela em Available
Space (1978). Neste trabalho, Hammer aparece em cena, literalmente empurrando os
limites do quadro, do frame fílmico e do frame espacial, em oito planos diferentes. Nas
projeções, ela inclusive mudou o espaço arquitetônico das salas de cinema, até mesmo
portas ou janelas, dependendo do lugar em que o filme era exibido.

Outro filme de Hammer influenciado pela geografia criativa dereniana é Bent Time
(1983). Neste curta de 21 minutos, ela usa lentes de ângulo aberto de 9 mm para compor
um passeio visual por paisagens dos Estados Unidos – da Califórnia até a ponte do
Brooklyn – a partir de um só ponto de perspectiva. Tal estratégia só foi possível pelo
uso de “um frame de filme por pé de espaço físico”6 para simular o conceito de que o
tempo se dobra.

A compreensão da filmagem como vertical é outra característica do cinema de Maya


Deren que permeia a obra de Barbara Hammer. Dentro deste conceito, os objetos
inanimados ganham força em Meshes of the Afternoon: a chave em um plano é
substituída por uma faca no plano seguinte, uma figura dentro de uma cena desaparece
no próximo quadro. Tais transmutações imagéticas não revelam intencionalidades
psicológicas, tampouco desvelam qualquer narrativa linear.

A filmagem vertical considera um desdobramento inclusive material. Se a película


costuma ser pensada no senso comum como uma fita de celuloide em que cada imagem
se sucede horizontalmente, Deren criava seus filmes ancorados pelo processo interno
vertical de imagens em camadas, a ponto de construir um cinema poético de sensações
no lugar de histórias lineares. Para o cineasta experimental Stan Brakhage, os filmes de
Deren são “rituais de efeito e movimento visual”, algo que revela uma visão única de
forma fílmica7.

Hammer extrapolou tal procedimento cinematográfico de Deren ao fazer do início de


Opctic Nerve (1985) o simples desenrolar de uma fita de celuloide que apresenta
sucessivas imagens no sentido vertical, expondo a natureza do sistema de projeção por
meio da impressão ótica e de recursos da montagem. Ao ralentar esta passagem da fita,
os limites de cada frame aparecem bem definidos em sua materialidade – algo que torna
evidente as linhas de separação entre uma imagem e outra. Horse is Not a Metaphor
(2009) também é um exercício de filmagem vertical pela forma como justapõe as
imagens, compondo múltiplas camadas que só podem ser experimentadas em seus
breves momentos.

Uma visão mais apressada da filmografia de Barbara Hammer poderia enquadrá-la


como uma cineasta experimental que se conecta à natureza prioritariamente pelo
6
“One frame of film per foot of physical space” (HAMMER, 2001, p. 262).
7
Veja depoimento de Brakhage em “No Espelho de Maya Deren” (Im Spiegel der Maya Deren, 2002),
de Martina Kudlácek.
elemento da terra. De fato, vários filmes de Hammer mostram mulheres em contato
ritualístico com a terra, com plantas (flores e frutos) e animais terrestres (cobras,
minhocas) ou com paisagens rochosas. Dyketactics (1974), Menses (1974), Multiple
Orgasm (1976), Women I Love (1976) e Stone Circles (1983) são os exemplos mais
evidentes. Já a proximidade de Maya Deren com a natureza era declaradamente pelo
contato com a água. Sua cor favorita era o azul; vários cômodos da sua casa-estúdio
eram decorados com conchas, corais e desenhos de animais aquáticos; e seu filme At
Land (1944) tem uma praia como locação. No entanto, Hammer dedicou pelo menos
dois filmes em que a água é elemento principal: as piscinas monumentais de Pools
(1981) e o brilho das ondas e as texturas das algas marinhas em Pond and Waterfall
(1982).

A devoção de Hammer por Deren desembocou em sua mais recente homenagem: o


curta de 30 minutos, Maya Deren’s Sink (2011). Híbrido de documentário e ensaio
performático, o filme partiu da descoberta inusitada da pia do banheiro da casa de Deren
no acervo do Anthology Film Archives, em Nova York. Ao se deparar com a presença
deste objeto que fazia parte da vida cotidiana de Deren, Hammer decidiu visitar a casa
da realizadora em Los Angeles e filmá-la com projeções de imagens de Meshes of the
Afternoon, já que tal filme foi todo rodado naquela locação.

Além das diversas projeções não só de trechos do emblemático filme como também de
fotografias antigas em diferentes superfícies – na pia, nas paredes, nas cortinas –,
Hammer não só brinca com fusões, justaposições e incrustações de imagens, que
revelam mais uma vez seu apreço pela filmagem vertical. Ela procura reconstituir
algumas cenas de Meshes mediante a performance de Bekka Lindstrom (atriz bem
parecida fisicamente com a cineasta ucraniana), e propõe a leitura de textos originais de
Deren que se interpõem com depoimentos dos atuais proprietários da casa e de críticos
que falam de sua obra e vida. Talvez seja a mais bela demonstração do amor de Hammer
pelo cinema de Maya Deren por explicitar sua aproximação afetiva mediada pela
fantasmagoria: o espectro de sua eterna mentora cinematográfica.

Bibliografia

HAMMER, Barbara. Hammer! Making Movies Out of Sex and Life. New York: The
Feminist Press, 2010.

_________________. “Maya Deren and Me”. In.: NICHOLS, Bill (ed.). Maya Deren
and the American Avant-Garde. California: University of California Press, 2001,
pp. 261-266.

KELLER, Sarah. “‘Art Is Energy’: Barbara Hammer Speaks with Sarah Keller about the
State of Experimental Cinema after Maya Deren”. In.: The International Journal
of Screendance 3, 2013, pp. 61-71.

TRANOULI, Eleni. “About Maya Deren’s Sink” In.: The International Journal of
Screendance 3, 2013, pp. 61-71.
Filmes consultados de Maya Deren

Meshes of the Afternoon (1943), de Maya Deren


At Land (1944), de Maya Deren

Filmes consultados de Barbara Hammer

Dyketactics (1974)
Menses (1974)
Multiple Orgasm (1976)
Women I Love (1976)
Available Space (1978)
Pools (1981)
Pond and Waterfall (1982)
Bent Time (1983)
Stone Circles (1983)
Opctic Nerve (1985)
Horse is Not a Metaphor (2009)
Maya Deren’s Sink (2011)

Filmes adicionais

No Espelho de Maya Deren (Im Spiegel der Maya Deren, 2002), de Martina Kudlácek

Vídeos consultados na internet

EUROPEAN GRADUATE SCHOOL. Barbara Hammer. Meshes with Maya Deren.


2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2jTU7_tkyK8>. Acesso
em: 29 mar. 2017.

MOMA. Modern Women: Barbara Hammer on Maya Deren. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=3pTVbQilDqY>. Acesso em: 29 mar. 2017.

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