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MANIFESTO – EM DEFESA DAS LIBERDADES

DE CONVICÇÃO E JULGAMENTO
R ENÉ A RIEL D OTTI *

“Legus servi sumus, ute líberi esse possímus” (Somos escravos das
leis, para podermos ser livres) MARCO TÚLIO CÍCERO (106-43 a.C.)

Esta Colenda 6ª Turma, na sessão de 9 do corrente mês, concedeu o


habeas corpus nº 76.686 – PR, para declarar a nulidade parcial de um feito
criminal diante da obtenção, por meios ilícitos, da prova resultante de
escutas telefônicas. Foi relator do writ o emérito Ministro Nilson Naves,
tendo o seu lúcido e irretocável voto sido acompanhado pelos demais
magistrados presentes: Paulo Gallotti, Maria Thereza de Assis Moura e Jane
Silva. A revista Veja, da semana passada, destaca a frase do Ministro
Gallotti sobre a ilegalidade e o abuso praticados no aludido caso: “Dois
anos de escuta é devassar a vida da pessoa de uma maneira indescritível. A
pessoa passa a ser um nada”1.
Certas práticas de investigação criminal em nosso país revelam a
existência de um direito penal do medo, difundido por métodos de um
processo penal do terror. A audácia incontrolável de autoridades e de
agentes públicos, que deviam proteger os direitos e as garantias individuais,
está transformando os espaços da intimidade do cidadão em centrais
reprodutoras da insegurança e na imagem de imensos e infinitos aquários
de peixes. Em histórica Resolução, o Conselho Nacional de Justiça aprovou
critérios reguladores para procedimentos de interceptações telefônicas e de

* Professor Titular de Direito Penal. Detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos
Deputados (proposição do Dep. Osmar Serraglio). Detentor do Prêmio Vieira Neto da OAB-PR.
Sócio Benemérito do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado desde 1958.
1 Edição nº 2078, de 17.09.2008, p. 64.

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sistemas de informática e telemática, os quais vêm sendo manipulados


criminosamente ao afrontar o espírito e a letra da Constituição.
Apesar da escorreita decisão desta Turma, surgiram manifestações
beligerantes de juízes paralelos, ancorados em veículos de comunicação
social, e de alguns membros do Ministério Público e da Polícia Federal,
hostilizando publicamente a decisão2. Há relações íntimas e melindrosas
entre agentes públicos encarregados da apuração de crimes e núcleos da
mídia sensacionalista para a propaganda e opressivas ações policiais,
autorizadas por magistrados que fazem do imprudente arbítrio o norte de
suas atuações. Os juízes paralelos são apóstolos da suspeita temerária e
militantes no exército popular da presunção da culpa. Mais que a notícia do
fato delituoso, o interesse estampado nas páginas da imprensa e nas
imagens da TV é a condenação prévia de meros suspeitos ou simples
indiciados, com a exposição de suas figuras para o anúncio da repressão do
Estado e a catarse de milhões de telespectadores. Esse malsinado tipo de
justiçamento sumário, com o ícone das algemas desnecessárias, restaura a
marca de ferro quente, utilizada pelas Ordenações do Reino de Portugal para
apontar os ladrões, abolidas há um século e meio pela Constituição do
Império. Instrumento de terrorismo social, surge a sacralização da escuta
telefônica como a nova rainha das provas, em holocausto às garantias
constitucionais e legais do acusado e que substitui a tortura corporal da
antiguidade pela ameaça espiritual dos dias correntes. Os fundamentalistas
do arbítrio fazem do julgamento antecipado o patíbulo para a decapitação da
ordem jurídica.
Contra o insensato e temerário protesto em favor do abuso e da
ilegalidade na extração da prova3, ao argumento falacioso de que Justiça
favorece a impunidade, nada melhor que referir lições do presente e do

2 Em artigo publicado no jornal Gazeta do Povo, editado em Curitiba, os advogados Antonio Carlos
de Almeida Castro, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Juliano Breda e José Carlos Cal Garcia,
que defendem os acusados beneficiados pelo HC nº 76.686 – PR, contestam aquela declaração de
hostilidade, nos seguintes termos: “O respeito que nutrimos pela instituição [do Ministério Público
Federal] e pelo Poder Judiciário sempre norteou as manifestações da defesa, que, sob os ditames
da ética profissional, jamais criticou publicamente as decisões contrárias a seu interesse, ainda
que, em sua avaliação, fossem injustas. A defesa lutou e recorreu em silêncio, buscando
incansavelmente o direito que lhe assistia, agora reconhecido por unanimidade pelo STJ” (A
decisão do caso “Sundown”, 13.09.2008, p. 2. Opinião).
3 Alguns membros da Polícia Federal e Procuradores da República usaram a imprensa para dizer
que o precedente acima referido comprometerá milhares de investigações em curso. Esse discurso
autoritário e insensato surge perante à consciência popular como a ideologia de que os fins
justificam os meios.

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passado. O mestre FIGUEIREDO DIAS, ao tratar do princípio da verdade


material, proclama que no processo penal está em causa a procura de uma
verdade que, “não sendo ‘absoluta’ ou ‘ontológica’, há de ser antes de tudo
uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o
preço mas processualmente válida”4. E PIMENTA BUENO, passado um século
e meio, ao tratar da obediência da forma como garantia de validade do
processo, deixou registrado em seus antológicos Apontamentos sobre o
processo criminal brasileiro: “As formalidades dos actos e termos do processo
são fructos da prudencia e razão calma da lei. É de muita importância que a
luta que se estabelece entre o accusado e o poder público não soffra outra
influencia ou direcção que não seja a d’ella. Os termos e condições que a lei
prescreve, são meios protectores que garantem a execução imparcial da lei, a
liberdade e plenitude da accusação e da defesa: são pharóes que assignalão a
linha e norte que os magistrados e as partes devem seguir, precauções
salutares que encadeão o arbitrio e os abusos, que esclarecem a verdade, e
dão authenticidade ou valor legal aos actos. O seu fim é conciliar o interesse da
justiça repressiva com a protecção devida á innocencia que póde existir”5.
Mais incisivamente, arremata o mestre imortal: “É pois conseqüente
annular-se o processo, desde que são preteridas as suas formulas
substanciaes, ou as cominações expressas da lei, porquanto o que se pratica
contra seus preceitos nada vale: seria contradictorio estabelecel-as com esse
caracter, e deixar violal-as impunemente”6.
Senhor Presidente e demais Ministros:
“Órgãos do próprio Estado – responsável por garantir o direito de
todos – estão provocando e disseminando a epidemia do medo, que se irradia
para muito além do espaço das investigações criminais, alcançando os
cenários da sociedade em geral, a pretexto de punir alguns possíveis
culpados, mas invadindo a privacidade de milhões de inocentes. Contra
esse paradoxo intolerável, todos os cidadãos, independente de origem
profissional ou social, têm o dever de cumprir e fazer cumprir a
Constituição e as leis do país, em defesa dos valores essenciais da vida
coletiva e da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da
República.

4 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1981, vol. I, p.
194. (Os destaques em itálico são do original. Os demais são meus).
5 PIMENTA BUENO, José Antonio. Apontamentos cit., ed. Empreza Nacional do Diario, RJ, 1857, p.59,

60. (Os destaques são meus. Foi mantida a ortografia original).


6 Ob. cit. pág. 60. (Idem, ibidem).

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O presente manifesto será encaminhado a outros tribunais brasileiros;


ao Congresso Nacional; aos Conselhos Nacionais da Magistratura e do
Ministério Público; aos Conselhos Federal e Estadual da Ordem dos
Advogados do Brasil; às associações e escolas da Advocacia, do Ministério
Público e da Magistratura, bem como será divulgado na imprensa e na
próxima Conferência Nacional da OAB”7.
Não se trata de um desagravo, mesmo porque a Corte não pediu e
nem dele precisa. Também não é mero ato de cortesia interesseira junto ao
Poder Judiciário. Trata-se da reação de um profissional do Direito e da
Justiça, com dez lustros de atividade modelada pela experiência dos
embates forenses. A legitimidade do manifesto está no reconhecimento
constitucional de que o advogado é indispensável à administração da
Justiça, sendo-lhe imposto, pelo seu Código de Ética, o dever de “contribuir
para o aprimoramento da instituições do Direito e das leis” (art. 2º,
parágrafo único, IV), porquanto, em seu ministério privado, ele “presta
serviço público e exerce função social” (Lei nº 8.906/94, art. 2º, § 1º). Ao
tempo da ditadura militar, quando sindicatos, associações, instituições e
outros núcleos sociais sofreram a interdição da liberdade de crítica dos atos
do governo autoritário, foram os advogados, ao lado da Associação
Brasileira de Imprensa e da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil,
que defenderam a causa do Estado Democrático de Direito e, entre suas
bandeiras, a restauração plena dos predicamentos da magistratura,
suspensos pelos Atos Institucionais.
Entre os desafios enfrentados pelo Poder Judiciário brasileiro, em
toda a sua história, penso que este é o mais relevante, porque caracteriza
não somente a guarda da Constituição e a tutela das leis no Estado
Democrático de Direito, como também mostra a resistência contra a
encarnação ideológica da famigerada lei dos suspeitos8 e o surgimento de
novos Comitês de Salvação Pública9, de triste memória e lamentável frustração

7 A se realizar nos dias 11 a 15.11.2008, em Natal (RN), com o tema central Estado Democrático de
Direito versus Estado Policial. Dilemas e desafios em duas décadas da Constituição.
8 A lei dos suspeitos foi um instrumento do Comitê de Segurança Pública, braço da Convenção
Nacional e do tribunal revolucionário. Aprovada em 17.09.1793, a loi des suspects permitia que
autoridades, sumariamente, prendessem, julgassem e mandassem para a guilhotina os suspeitos
de conspiração.
9 O Comité de Salut Public (1793-1795) foi criado na França revolucionária pela Convenção de 6 de
abril de 1793 para promover, nas circunstâncias urgentes, as medidas de defesa geral, para efeitos
internos e externos. Inicialmente com 9 membros, teve a sua composição ampliada para 12. Mais
tarde, sob o comando de Maximiliano Maria Isidoro de Robespierre (1758-1794), o Comité

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dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, divulgados pouco


anos antes pela Revolução Francesa, com a extraordinária e rediviva
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (26.08.1789).
O presente manifesto foi lido por ocasião da sustentação oral do HC
nº 109.205 do qual o Professor RENÉ ARIEL DOTTI é um dos impetrantes,
dispensada a leitura das notas de rodapé em face ao limite de tempo.
Brasília, Sala de Sessões da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
em 23 de setembro de 2008.

disseminou o terror ao ponto de condenar à morte pela guilhotina um dos líderes revolucionários
e ex-dirigente daquele organismo: Jorge Jacques Danton (1759-1794). No dia seguinte à Batalha de
Valmy (1792), a grande vitória dos franceses que deteve a invasão prussiana e reforçou o prestígio
da Revolução, Danton proclamou que para vencer era preciso audace, audace et audace!
Robespierre, cognominado pelos parisienses de O Incorruptível e que chegou a ser o senhor
absoluto da França, também morreu na guilhotina.

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DERECHO PENAL ECONÓMICO: SU
LEGITIMACIÓN PARA LA DEFENSA DE LOS
DERECHOS FUNDAMENTALES *
F ERNANDO M. M ACHADO P ELLONI **
A PD D R . C ARMEN T HIELE

Tabla de contenido: I – Punto de partida; II – Paralelas de política


criminal: derechos civiles y derecho penal, derechos económicos-
sociales y derecho penal económico. Derecho Penal Internacional
y Internacional Penal, y integración; III – Impacto en la parte
general; IV – Impacto en la parte especial; V – Incidencia en la
integración; VI – Balance definitivo; Bibliografía esencial.

Sumario: El estudio persigue asociar el respeto y la promoción de


los derechos fundamentales con la legitimación del derecho
penal. Para ello, tras una recensión sobre la internacionalización
de los derechos y su capilarización en cada Estado, se justifica la
línea del derecho penal como barrera frente a abusos en la puja
entre libertad y poder y se rodea a la función estatal en un
sentido, para su adopción, de guías únicamente para proteger
derechos humanos, lo que también expone – más allá de excesos
– defectos u omisiones en un plan de política criminal bajo esa
atenta mirada. Los condicionamientos se pueden percibir en
áreas de parte general y también de la especial, en donde la
órbita del bien jurídico-penal, el tipo y sus elementos (pero
también podría alcanzar a todos los segmentos del delito), como
así también la pena, ponen a prueba la técnica empleada como al
propio producto legislativo. En tal sentido, se hacen varios
ejercicios sobre el orden jurídico nacional y sobre derechos
comparados, para finalizar después con un cierre, a modo de

* Contenidos de esta contribución fueron discutidos con diversos colegas. En lo que hace a la teoría
general, mucho le debo a Luciano FELDENS, Stefano PRATESI y Gabrielle MARRA. Sobre la
incidencia en el campo del delito económico a Andrei ZENKNER SCHMIDT. Eso no significa que lo
aquí se presentará sea como ellos ven el tema. La única certeza es que los errores integran mi
patrimonio.
** Docente de Universidad de Buenos Aires. Profesor visitante de Roma “La Sapienza”, UniRitter &

PUC, Rio Grande do Sul. Doctorando con tesis presentada en la U. del Salvador, Argentina.

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excursus, sobre la integración regional, hasta llegar a las


conclusiones.

I – P UNTO DE P ARTIDA
Es usual y, en consecuencia, no sorprende la mención de los derechos
humanos en el lugar central de la política y ello, en todos los niveles y en
todos los órdenes. Lo hace el gobierno de turno y también la oposición.
Organizaciones no gubernamentales aplauden o critican lo que el primero
concreta o cuanto deja de concretar. Estados extranjeros, con panoramas
distintos y no tanto, por igual, hacen suya la cuestión, todos a su vez bajo la
mirada, a veces cuestionada y cuestionable, de Naciones Unidas. Además,
por otra parte, con ellos se ha trazado un puente universal entre la
comunidad internacional, cuando no ha sido sino materia de acuerdos y
cooperación en términos bilaterales o multilaterales entre la mayoría de los
países.
Con anterioridad a la Declaración Universal de 1948 no era así. Si se
pone atención sobre lo que ocurría en Alemania e Italia previo a la Segunda
Guerra Mundial, no cabe duda que la materia quedaba reservada, antes que
cualquier otra perspectiva, a la propia reacción de los recursos internos con
que cada Estado podía hacer frente a la violación de los derechos
fundamentales por parte de sus autoridades. Este ejemplo es simbólico,
podrían darse muchos más. No obstante, es suficiente a los fines de dejar
expuesta una idea sobre la gran dimensión de los derechos, de entonces a
hoy.
Pero, a pesar de lo expuesto, subsisten dos enormes conflictos,
capaces de alcanzar ulteriores problemáticas. Lograr un acuerdo sobre los
predicados de los derechos fundamentales y también sobre sus garantías y,
más tarde, comprender como misión que no es igual alcanzarlo en lo
político que en lo jurídico. En tal sentido, unos cuantos ejercicios podrán
esclarecer lo que sostengo. Cuando George W. Bush traza su meta de
proyectar el respeto de aquellos en Afganistán e Irak, no duda de que en los
Estados Unidos no se violan – en particular contra sospechosos de actos de
terrorismo –, a pesar de que por fortuna la Suprema Corte empezó a discutir
por el peso de la evidencia esa extraña coherencia. Bajo idéntica casuística,
no es igual denunciar una violación al proceso legal debido siendo

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norteamericano que siendo extranjero. Reformulado en clave dogmática


continental, hasta se cuestiona la pertenencia al núcleo de atributos básicos
de los enemigos del Estado de Derecho1.
El balance que dio el tránsito desde el siglo XVI al XIX tiene íntima
conexión con la indagación. El Estado de naturaleza, por empezar, desde
una lectura clásica en la descripción lockeana, resolvía los conflictos de los
asociados con sus propios elementos y, hacía fuera, los vencedores
regulaban a instancia de su propia victoria, el derecho de los vencidos,
como sea, sin jueces sobre la elección de su forma y menos sobre su
sustancia: un modelo en donde se podría llegar a conceptualizar la relación
como específica de la guerra. Nadie se preocupaba por un lenguaje común a
varios interloctures.
A ello seguía la pauta de la reciprocidad. En el seno de la sociedad, se
dependía del trato de unos con otros – bajo el principio rebus sic santibus –,
en donde en cualquier caso, el lesionado iba por la reparación en su derecho
o por la persecución de la sanción, si existía resto político o militar estatal.
Sin embargo, lo que era clave entonces, y útil para comparar con el presente,
es que los Estados extranjeros no atendían ni se preocupaban por las
condiciones de ese pacto. El derecho internacional se limitaba por entonces
a las relaciones diplomáticas y al trato para los que las llevaban adelante, de
modo tal que no apuntaban a los intereses de las personas en un ideal de
universalidad, a lo sumo se detenían en individualizaciones o
sectorizaciones.
El esquema se limitaba a lo que sigue a continuación. Lejos de situarse
en el lugar exacto de las víctimas a las violaciones de los derechos humanos,
cada uno de los Estados atendía a su propia situación y, en cualquier caso,
respondía frente a lo que resultara de la lesión o amenaza de sus intereses.
La comunidad internacional en un todo no era en nada distinto de lo
singular.
El cuadro se cierra por la falta de protagonismo de los pueblos y de
las personas. Si no cabe, por inexacto, afirmar que las relaciones comerciales

1 Porque son Unperson, por lo que recuperan un fundamento normativo penal en base a una noción
die Sorge capaz de posicionarse en una suerte de reciprocidad, lo que es ampliamente criticado con
excepción de doctrina en Sevilla, más allá de la minoría alemana. Sobre la situación de Estados
Unidos con especial interés en la garantía procesal constitucional del hábeas corpus me ocupé en
Santiago de Chile hace más de dos años.

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entre personas de distintos países no se desarrollaron por falta de cultura


sobre los derechos fundamentales, el ataque arbitrario del gobierno de un
Estado a personas de otro dependía mucho de la proactividad del último, lo
que es sujetarlo a la política2.
El conjunto de notas características que preceden – en especial, la
última – ha llegado a que incluso hasta mitad de la centuria anterior, se
descalificara a los titulares de los derechos, como simples destinatarios de
diferentes normas estatales o a lo mucho inter-estatales. Esto nos deja a
considerable distancia de la propia realización de los atributos personales,
en la medida que no están en el centro de la escena3.
La repentización por el cuidado de los derechos fundamentales, como
resulta, hace a la historia del derecho reciente4. Luego de 1945 ocupa un
lugar esencial la dignidad humana, que se conecta con la función limitadora
pero también de fundamentación de la disciplina penal. Con ella – en una
perspectiva de igualdad – se reconoce y promueve la libertad personal
aunque en clave universal, sin discriminaciones arbitrarias. Esto, a su vez,
parejamente, va impulsado con una grave condena para actos atroces que
atenten contra aquella, singular vehículo de comunicación de cada hombre
y mujer: esta es la propuesta básica que se observa apenas se repasan los
treinta artículos fuertes de la Declaración de 1948, con el valor agregado de
que a contramano de cuanto había sido hasta entonces, ahora surgía – como
obligación, incluso sin fuerza coactiva – que todos los Estados se
comprometieran a su realización5.
Los derechos civiles y también los económicos-sociales hacen parte
del compromiso de protección. Sin embargo, sin trasladar los distintivos de
la falta de evolución de la causa a nivel exterior, en el plano interno los
grupos no se habían movido iguales en cuanto a reconocimiento. La
discusión sobre la naturaleza u origen y el alcance de la libertad negativa
llevó toda la atención durante cientos de años; pasó de Europa a las colonias

2 Sobre estas consideraciones agrupadas, ampliar en CASSESE, Antonio, I Diritti Umani Oggi, Editori
Laterza, Roma-Bari, 2008, ps. 10-11.
3 Cfr. CASSESE, Antonio, I Diritti Umani Oggi, op. cit., p. 12.
4 Cfr. DE MORAES, Alexandre, Direitos Humanos Fundamentais, Editora Atlas, São Paulo, 2007, p. 17.
5 Cfr. DE MORAES, Alexandre, Direitos Humanos Fundamentais, op. cit., p. 17-18. Hay que tener en

consideración la polarización del mundo en mitades, entre el bloque occidental y oriental a


consecuencia del delicado equilibrio de posguerra, para la falta de fortaleza sancionatoria de la
Carta.

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de América del Norte y de allí, retroalimentadas, volvieron de donde


habían salido. En lo que hace al Contrato, la sociedad le confiaba a cada
Estado el orden público, pero el núcleo de sus facultades eran previas, pre-
existentes o, como sea, a pesar de aquél. Se le reconoce en especial a GROCIO
que la ejecución del Pacto se convirtiera en una obligación estatal, al punto
de tener que brindarse por una defensa de esa cualidad característica en
todo ser humano, que creía universal por cierto, lo que en alguna medida se
justificaría luego con la consagración en diferentes países de distintos
enunciados normativos. En efecto, cualquier exploración por Declaraciones
del Siglo XVIII – como la de Virginia de 1776, o la de Francia de 1789 – dará
muestras sobre la meta de cualquier unión política, que es la preservación
de la persona y sus atributos.
Ahora, para la época, aparecía una obra importante que iba por igual
a marcar la visión fragmentaria de los derechos humanos hacia adentro. La
tesis de SMITH trasladaba la libertad negativa al circuito económico y el
retraimiento que implicó que el Estado absolutista le diera espacio a la
realización de los planes de vida, impactó a su vez el desarrollo de las
personas económicamente más fuertes, incluso a costa de las más débiles,
los que no estaban a salvo por el desarrollo de los textos de entonces. No fue
sino hasta una centuria más tarde que el panorama iba a cambiar, a
instancias de la clase trabajadora: un importante sector social requería de
otro rol del Estado. En esta inteligencia, probablemente el primer intento de
conciliar unos y otros se vea recién en la Constitución de Weimar de 1919,
donde se tutelaba al trabajador y se lo cubría en situación de desempleo,
entre otros hitos que coordinaban la zona del bien común.
La síntesis vuelve a situarnos en ecuaciones conocidas6. La misión por
los derechos humanos define en lo interno la puja entre poder y libertad, y
en lo exterior prevención, control y desarrollo de aquellos. Ahora en lo que
hace a ese proceso de contenidos y también a su defensa y promoción, es de
mi interés analizar como ingresa el derecho penal en relación a todos ellos y
la importancia que tiene en todo esto. No sólo en el plano puertas adentro,
sino en la integración regional y por fuera de ella en un espectro macro
todavía más amplio. En ello hay que hacer un seguimiento valorativo.

6 La evolución de contenidos se puede consultar en OESTREICH, Gerhard, Die Idee der Menschenrechte
in ihrer geschichtlichen Entwicklung, Völkerverlag, Düsseldorf, 1951, p. 10ss.

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II – P ARALELAS DE P OLÍTICA C RIMINAL : D ERECHOS C IVILES


Y D ERECHO P ENAL , D ERECHOS E CONÓMICOS -S OCIALES Y
D ERECHO P ENAL E CONÓMICO . D ERECHO P ENAL
I NTERNACIONAL Y I NTERNACIONAL P ENAL , Y
I NTEGRACIÓN
A partir de lo reflejado en mi ingreso a la presente tarea, también la
rama criminal en su perfil más técnico-jurídico practicó sus ajustes, lo que se
traduce como sigue a continuación. Los iure innata van de la mano de la ley,
que es una consecuencia operativa del Contrato. En tal sentido, cabe
recordar los términos de la Declaración de 1789 que en su art. 2° decía: “El
fin de toda asociación política es la conservación de los derechos naturales e
imprescriptibles del hombre”. Para que ello sea así, la tutela del derecho
subjetivo requirió – y todavía lo hace – de un ordenamiento objetivo7.
Por intermedio del derecho objetivo, en efecto, se limita el objeto y la
extensión de la protección. El histórico documento antes mencionado,
reuniendo calidades difíciles de conciliar como ser elasticidad y precisión,
dará una fórmula – según su art. 4° – que hasta la actualidad impacta en la
legislación penal: “La libertad consiste en poder hacer todo lo que no
perjudica a otro: así, el ejercicio de los derechos naturales de cada hombre
no tiene otros límites que los que aseguren a los otros miembros de la
sociedad el disfrute de esos mismos derechos. Estos límites no pueden ser
determinados más que por la Ley.” Esto es clave8.
Con todo, ello no hace que la legislación penal se concentre en
derechos subjetivos sino en bienes jurídicos, que los tienen en consideración
aunque los superan9. Esto implica que el interés por prevenir ataques o
puestas en peligro de la libertad de vivir de alguien, o la de disponer de su
propio patrimonio, no se hace en su nombre ni en la de sus cosas, sino en la
de la sociedad, volviéndose la razón – por traspersonal – intersubjetiva. Los

7 Cfr. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, La lengua de los derechos: la formación del derecho público
europeo tras la revolución francesa, Alianza editorial, Madrid, 1999, p. 76.
8 Cfr. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, La lengua de los derechos..., op. cit., p. 80.
9 Para esta cuestión se puede ampliar en la polémica entre BINDING y ROCCO sobre los intereses de

la disciplina. Cfr. BINDING, Karl, Grundriss des deutschen Strafrechts. Allgemeiner Teil, Scientia
Verlag Aalen, Hamburg, 1975, p. 214ss; también Die Normen und ihre Übertretung, Band 1 Normen
und Strafgesetze, Scientia Verlag Aalen, Hamburg, 1991, p. 293ss y ROCCO, Arturo, l´Oggetto del
reato e della tutela giuridica penale en Opere Giuridiche, vol. I, Societá editrice del “Foro Italiano”,
Roma, 1932, p. 94ss.

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delitos, en la idea iluminista, eran actos dañosos y la pena atendía la


finalidad de prevenirlos, como amenaza primero, como reacción después.
De la mano de la legalidad formal – que los documentos de la época
reflejaron, en especial con la Revolución – los delitos “naturales” fueron
recogidos en el ordenamiento penal, a partir de las reflexiones que surgían
sobre la necesidad de defender la libertad negativa10. Ahora con
regularidad, la conexión entre aquella y la sustancia no iba a asegurarse
sino con la aparición de la Constitución – así nuestros artículos 18 y 19 tan
elementales –, dado que un sistema cerrado, requiere procedimentalización
y valoración respecto de lo socialmente relevante. Sin embargo, según se
anunció ut-supra, la experiencia de dejar a salvo la dignidad de toda
persona, a su vez, desaconsejó la renuncia de un interés exterior por ella
ante signos o evidencia de atentados a manos de un Estado.
La lucha entre libertad y poder no se ha abandonado. Justamente, la
problematización según la experiencia histórica, hace de la tensión una
ecuación complicada de resolver. En un punto por la respuesta a la
violencia de una persona contra otra y, en el otro, para que en la tarea no se
comprima al individuo en un nivel de anulación. A propósito de la
coexistencia, de la convivencia, y en pos de evitar derechos objetivos que
lleguen a conjuntos de defensa social – ligados a Estados autoritarios –, el
derecho internacional de los derechos humanos sienta las columnas para
que subsidiariamente desde fuera se preste atención a cuanto suceda.
Detrás de la guía que fue la Declaración de 1948 y los Pactos de 1966, de
Derechos Civiles y Políticos y de Derechos Económicos, Sociales y
Culturales con Comités con monitorin por Naciones Unidas, se llegaron a
idear instrumentos que con iguales ideales, rindieran todavía más y mejor
en la defensa o promoción de todos aquellos, acortando la enorme distancia
entre los Estados del mundo, por los que integran una región: así llegamos
en 1950 a la Convención Europea y en 1969 a la Convención Americana –
vital a la Argentina desde 1984 y desde la Constitución Reformada de 1994 –
que con sus respectivos órganos se suman a mantener el equilibrio11.
El interés por la libertad (también la de los económicamente
oprimidos) demanda políticas públicas diferentes y conduce a otro derecho

10 A partir de la viva defensa de la libertad contra el absolutismo o totalitarismo, en LOCKE, GROCIO,


PUFFENDORF, WOLFF y KANT, entre otros. Cfr. MATTES, Heinz, Untersuchungen zur Lehre von den
Ordnungswidrigkeiten, I, Geschichte und Rechtsvergleichung, 1977, Duncker & Humbolt, Berlin, p.
5ss.
11 Cfr. CASSESE, Antonio, I Diritti Umani Oggi, op. cit., p. 50.

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penal. Si la percepción de tributos es elemental para cumplir con los


programas correspondientes al desarrollo, en consecuencia los delitos allí
califican como de máxima importancia en la sociedad de un Estado de
Derecho12.
Lo anterior vuelve sobre la criminalidad y el papel de la autoridad al
enfrentarle. Ni cualquier acto califica como delito ni tampoco toda medida
gubernamental puede dictarse para hacer frente a un acto real o
potencialmente dañoso. Es que el diálogo entre delincuencia y política tiene
que atender a la realidad, a las reglas de la experiencia y además a los
derechos comparados, y ello nos va a dar un coeficiente de variables y otro
de constantes, las que son históricas. Las últimas se vinculan a los delitos
“naturales”, siendo la defensa más elemental de la libertad humana13. Las
primeras, por el contrario, se ven afectadas por tiempo y espacio, no siendo
posible un reduccionismo de distinción entre lo social y lo antisocial: está a
la vista que puede que no se vean sujetos pasivos o que los valores no se
presenten personales14. Antes de la operatividad de la Comunidad
Económica Europea, el Reino de España y Portugal tenían un fuerte control
de divisas con válvula penal en violación a la regulación estatal de las
transacciones cambiarias que, naturalmente, tuvieron que hacer a un lado.
No obstante, hay que distinguir y esto no es nuevo. Lo que hace al
núcleo del derecho penal – derecho de justicia – y el que vincula al derecho
penal económico – derecho policial, luego administrativo – contaba con
antecedentes incluso con la iluminación15. Por entonces ya se sabía que
podría minarse la libertad por una sustracción a la legalidad formal o
porque la materia era insustancial. En este último supuesto, la gestión de la
administración puede disparar un volumen de disposiciones que nada
tienen de relación con las reglas del derecho penal, ni con su fundamento, lo
cual deja una gestaltende Verwaltung creciente en su Daseinsvorsorge.
Como en el caso de los derechos civiles, la intervención del Estado en
el campo económico y social, a través de la espada penal, está pautada

12 Cfr. ALMEIDA RUIVO DOS SANTOS, Marcelo, Criminalidade Fiscal e Colarinho Branco: a Fuga ao Fisco é
exclusividade do White-Collar? en DE FARIA COSTA, José; MARQUES DA SILVA, Maco Antonio
(coordenação), Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: visao Luso-Brasileira,
Quartier Latin do Brasil, São Paulo, 2006, p. 1179.
13 Cfr. MANTOVANI, Ferrando, Il problema della criminalità, CEDAM, Padova, 2005, p. 56.
14 Cfr. MANTOVANI, Ferrando, Il problema della criminalità, op. cit., p. 56-58.
15 Cfr. FIGUEREDO DIAS, Jorge de, Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a

reforma do direito penal económico e social portugués, en PODVAL, Roberto (coordenação), Temas de
direito penal económico, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000, p. 12.

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desde la Constitución – tras el paso del texto de 1949 y la incorporación del


art. 14bis en la versión de 1957 – y también para frenar abusos en el
emprendimiento, cae bajo el radar internacional. La libertad de
emprendimiento, que también es el transporte de la dignidad humana, debe
ser reconocida, también auspiciada pero su goce no puede costearse a
expensas de la comunidad o sector. Las funciones del poder no pueden ni
deben inutilizarla, como así tampoco permanecer inmóvil frente a sus
abusos: a éstas les cabe el rol elemental de asegurar obligatoriamente que
nada malo suceda. Ingresa aquí la movilidad en la tutela: pues mientras en
una época se mantenía el orden socioeconómico sin equipararlo en las
prioridades penalmente relevantes a la función dinámica del Estado,
actualmente y con finalidades separadas, ello convive con la atención al
interés público16.
Todavía hay más. Las violaciones masivas a los derechos
fundamentales han llegado a dar fundamento de un nuevo orden de
intervención. Así como en su conjunto aquellos acuerdan un marco racional
de tutela intersubjetiva para dar espacio a la convivencia social, la
experiencia trágicamente ha señalado que actos individuales bajo el aparato
estatal podrían imposibilitarla hasta el punto de su destrucción, y entonces
surgió y se desarrolló el derecho internacional penal. Es su aspecto macro –
desde la organización hacia al delito, el esquema o estructura criminal y su
despliegue colectivo –, en lo que atentado a la dignidad humana se refiere,
lo que dota de profunda significación la reacción punitiva de parte de todos
los Estados17. La síntesis de los hechos tratados por los juicios en
Núremberg, genocidio, acciones de lesa humanidad y contra la paz se han
dado cita para un ambicioso Estatuto adoptado en la ciudad eterna, sobre el
curso de 1998, con la reconocida excepción en la tipicidad de la agresión
para ser precisos con la verdad18. La propia guerra en lo peor de su
escenario de horror ha sido regulada por el derecho internacional
humanitario, para controlar medios, modos y límites de los países que se
lanzan a ella en la tutela de víctimas e incluso actores protagónicos en ella.

16 El genial codificador argentino – no hay que llegar tan lejos como a Edwin SUTHERLAND – por
ejemplo atendió y entendió los problemas de los abusos de la libertad en el comercio e industria a
manos de unos pocos grupos económicos, según su obra, en lo que observaba como nuevas
formas de delincuencia. Cfr. MORENO (h.), Rodolfo, El Código Penal y sus antecedentes, 7, Tommasi
editor, BsAs., 1923, p. 56. Diría que luego se abrieron pasos otros hechos punibles.
17 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, Nomos, Baden-Baden, 2005, p. 24

y 145ss.
18 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 24 y 146ss.

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La distancia entre esto último y el derecho penal internacional es más


que semántica y responde a intereses que justifican constelaciones
normativas cualitativamente distinguidas19. Recorrerla es alcanzar a
comprender el compromiso por la defensa de los atributos básicos de toda
persona. Por esta poderosa razón se creó una Corte Penal con pretensión de
juzgar los delitos que masivamente desconocen al ser humano,
emprendidos por quienes tenían a su cargo respetarlos, tanto en la paz
como en la guerra. En cambio, los hechos en donde se comprometía a la
libertad en lo que hacía al desarrollo de las personas y que involucraban los
intereses soberanos de varios países – delicta iuris gentium –, bastaba con un
concierto de todos ellos para enfrentarlos conjuntamente, o sea en
cooperación20.
Con la integración sucede algo similar. Cuando varios Estados se
comprometen en una estructura de desarrollo que los supera
individualmente y que asume ser más que la suma de ellos, hay que
analizar y si corresponde adecuar respuestas frente a usos de la libertad que
ya no atentan contra algún país sino contra la unidad, de la que aquél es
apenas un miembro. Esto es lo que puede explicar la reunión o conjunto de
delitos contra aquella21. Lo que hay que tomar en consideración aquí es que
si las acciones afectan el crecimiento económico, el eje de la reacción
sancionatoria incidirá sobre la multa o donde se observe una restricción o
pérdida en la disponibilidad de derechos patrimoniales22. Cada integrante
toma para sí el compromiso de trabajar para impedir que ello ocurra lo que,
además, vuelve sobre los derechos humanos, en la medida que una
ejecución presupuestaria cubre – o debe cubrir – necesidades específicas de
un Estado de Derecho y asista en donde una persona no cuente con recursos
para idear o cumplir su plan de vida. El vínculo es por doble partida.
Es que en Europa – máximo ejemplo en la materia –, por una parte,
ninguna sanción va a llegar sin que se respeten los principios que alimentan
las reglas penales bajo la Convención respectiva, principalmente en lo que

19 Un distinguido Profesor y amigo desde Rosario ha tratado en profundidad la evolución sobre la


conformidad y disconformidad de la doctrina respecto de la existencia del derecho penal
internacional. A propósito de la discusión, FIERRO, Guillermo J., La Ley Penal y el Derecho
Internacional, 1, Astrea, BsAs., 2007, p. 5ss. Con su partida deja un espacio que nadie podrá ocupar
para todos los que estudian la relación entre la ley punitiva y el derecho internacional.
20 Cfr. FIERRO, Guillermo J., La Ley Penal y el Derecho Internacional, 1, op. cit., p. 25.
21 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 77.
22 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 78.

24
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hace al proceso legal debido23. Pero, y mucho antes de llegar a ello, formar
parte de la Unión demanda de cada Estado un muy serio compromiso con
los predicados de aquella, en donde la Corte Europea de Derechos
Humanos ha elaborado una jurisprudencia constante – de menor a mayor –
en lo que hace a la adecuación de los derechos internos en su confrontación
con el derecho internacional que aplica24.
Hasta el momento he acentuado el entrecruzamiento de los derechos
civiles y de los derechos económicos, sociales y culturales como una
cristalización sintética de los derechos humanos, con las múltiples
manifestaciones del derecho penal: sea en lo interno en clave principal, o en
lo internacional en rol subsidiario, aún con sus variantes. Creo que con ello
se ha logrado una base racional para filtrar forma y sustancia en aquél.
El trazado constante en cuanto al respeto, reconocimiento, tutela y
promoción de los derechos fundamentales, me habilita a condicionar la
legitimación de un sistema de derecho penal en dos sentidos que, a
contramano, logran un equilibrio razonable, siempre perfectible. En efecto,
si el derecho y sus metas, sea en la elaboración de la ley como norma
genérica (o en la publicidad de la sentencia, como individualización de
aquella) y las finalidades están más que nunca condicionadas teórica y
operativamente por una Constitución y por los derechos fundamentales de
un sistema o varios en el contexto internacional, las instituciones del poder
tienen y deben de poder trabajar un orden jurídico-penal coherente con las
guías y con la supervisión a ellas25. La transformación del Das Strafrecht ist
die unübersteigbare Schranke der Kriminalpolitik, en los inicios del nuevo
milenio por un nuevo encabezado titulado Menschenrechte repercute en la
arena de la limitación: en una orilla, el Estado no puede pasarse con su
regulación – a veces con prohibición total en ello –; en la otra, no lo pueden
hacer las personas con su ejercicio, no sin que aquél intervenga y al respecto
– con este fundamento – debe de hacerlo26. Y así es como tampoco el

23 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 79.
24 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 142ss.
25 Si los derechos fundamentales cuentan con jerarquía constitucional es una ventaja, como en Brasil

o como resulta de la perspectiva teleológica de la GG. Ahora si el ingreso se hace en concentración


a la Norma Fundamental, ello puede ser un problema, como se explica de la lectura de calificada
doctrina en lo que hace al concepto de bien jurídico y sobre lo que no puedo extenderme aquí.
Ampliar, AMELUNG, Knut, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft, Athenäum Verlag,
Franfurt, 1972, p. 214ss.
26 Con una perspectiva análoga, sin limitación o distinción en el derecho penal, aunque partiendo de

la Constitución para llegar a los derechos humanos, art. 5 de la Constitución de 1998, v. ZENKNER

25
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derecho penal económico ni la integración escapan al derecho internacional


de los derechos humanos. Lo veré a continuación, desde múltiples ángulos.

III – I MPACTO EN LA P ARTE G ENERAL


En lo que hace a los límites de la intervención penal, por regla los
derechos fundamentales no son comprendidos en términos absolutos, lo
que fundamenta la edificación de delitos-tipos en torno de los bienes
jurídicos – ligados con aquellos –, que son el núcleo u objeto de tutela27. No
obstante, es indispensable acentuar que per se ello asume una fuerte
restricción a las incursiones en miras a recortar la libertad, cuando la
procedimentalización para la producción de normas de comportamiento ya
no basta para su justificación, como tampoco la voluntad histórica del
legislador que la ponía en movimiento28.
El orden macro-económico, tributario y financiero hace a una de las
funciones del Estado. Lo fiscal influye en el ingreso de recursos para que
aquél se ocupe del gasto público, siendo que además forma parte del
cálculo de las finanzas públicas – sumado al crédito o endeudamiento – en
lo que hace al presupuesto que se elabora para su funcionamiento –
imputación en administración y en desarrollo de programas –, lo cual como
cuestión no está al margen de las personas. La explicación, que fue
adelantada ut-supra, deriva en esto: la legitimación de un derecho penal en
torno a lo precedente debe explicarse a través de la necesidad de dar con
políticas públicas y sociales, cuya concreción puede depender de que no se
vean expuestas frente a actos de daño29.

SCHMIDT, Andrei-FELDENS, Luciano, O Crime de Evasão de Divisas: a tutela penal do sistema financeiro
nacional na perpectiva da política cambial brasileira, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 19ss; que se
vincula a otro trabajo previo – que he discutido oral y por escrito con su autor –, véase también
FELDENS, Luciano, A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais,
Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 38ss. Más reciente, STERNBERG-LIEBEN, Detlev, Bien
jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal (Rechtsgut, Verhältnismässigkeit und die Freiheit
des Strafgesetzgebers, trad. Iñigo Ortiz de Urbina Gimeno) en HEFENDEHL, Roland (ed.), La teoría del
bien jurídico, Marcial Pons, Madrid-Barcelona, 2007, p. 106.
27 Por un achicamiento de la distancia entre la versión en favor y en crítica de bien jurídico,

ALCÁCER GUIRAO, Rafael, Apuntes sobre el concepto de delito, en Derecho Penal Contemporáneo, 2-2003,
Legis, Bogotá, p. 5ss, especialmente p. 18, reproducido y ampliado en Sobre el concepto de delito:
¿lesión del bien jurídico o lesión de deber?, Ad-Hoc, BsAs., 2003.
28 Cfr. ZENKNER SCHMIDT, Andrei-FELDENS, Luciano, O Crime de Evasão de Divisas: a tutela penal

do sistema financeiro nacional na perpectiva da política cambial brasileira, op. cit., p. 22.
29 La determinación del bien común no puede hacerse en un documento de naturaleza o pretensión

pétrea. Requiere, al contrario, un análisis dinámico, que justamente está confiado al legislador.
Habrá que estar atentos a la justificación de la selección de herramientas jurídicas, en particular,

26
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Aunque las acciones u omisiones se presenten contra esas metas,


ideadas y ejecutadas por las funciones del poder del Estado y entonces, de
un modo u otro, se llegue a situar a este último como sujeto pasivo, no cabe
dudar que la transpersonalidad del bien jurídico no oculta – porque no
puede – la repercusión en cada individuo del tejido social, que es tenido en
cuenta en la elaboración de los planes30. La capacidad contributiva hace a un
resultado conjunto; una fracción – cuanto más, mejor gestión – es luego
redistribuida – o debe serlo – justamente en donde se necesita, para quien
no puede costear ciertos derechos fundamentales, los económicos, sociales y
culturales. El reporte entre los últimos y el poder es el test de este derecho
penal diferenciado del tradicional – o de los delitos “naturales” –, también
llamado secundario – Nebenstrafrecht –, que cuanto más distancia presente
entre los puntos de conexión, menos defensa de limitación de la libertad
lucirá.
Los factores a observar para recortar espacios de libertad, como ser
finalidad, necesidad (subsidiaridad) y estricta proporcionalidad son
innegociables para el Estado social y democrático de derecho. Así como la
evasión fiscal – figura básica, art. 1 Ley 24.769 – los agrupa como hecho
punible, pues persigue el funcionamiento dinámico de las actividades
estatales merced al ingreso regular de los tributos, y aunque la ingeniería –
con los procedimientos – de la administración pueden ser útiles para
perseguir la recaudación no son idóneos contra actos que ponen en serio
peligro, dificultan o imposibilitan el alcance de la gestión de las
autoridades. Por otro lado, la norma de comportamiento, de no seguirse,
tiene una reacción punitiva razonable en el teatro de penas donde los
sujetos activos son las personas y el pasivo, como se dijo antes, es el propio
Estado31. Y esto también en derechos comparados32. Sin embargo, si se
hiciera por igual el análisis en el delito-tipo agravado – art. 2, íd. –, se podría

del derecho penal. Véase, BÖSE, Martin, Derechos Fundamentales y derecho penal como “derecho
coactivo” (Grundrechte und Strafrecht als “Zwangsrech” trad. María Martín Lorenzo y Margarita
Valle Mariscal de Gante) en HEFENDEHL, Roland (ed.), La teoría del bien jurídico, Marcial Pons,
Madrid-Barcelona, 2007, p. 138ss.
30 Cfr. ZENKNER SCHMIDT, Andrei-FELDENS, Luciano, O Crime de Evasão de Divisas: a tutela penal do

sistema financeiro nacional na perpectiva da política cambial brasileira, op. cit., p. 43.
31 Así en el caso de la defraudación a la administración, art. 174 inc. 5° CPA. Hechos punibles

análogos como el contrabando de los arts. 863 u 864 del CA., Ley 22.415, encuentran un quantum
más bajo pero también más alto.
32 Como ejemplo el art. 305, primer apartado del código penal del Reino de España de 1995; también

el art. 1° de la ley 8.237 de 1990 de la República Federativa del Brasil. En términos semejantes, el
Steuerhinterziehung § 370 de la Abgabenordnung de 2002 de Alemania.

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advertir el faltante de un requisito, lo que obsta a su legitimación: si la


visión de la pretensión de la pena deja de practicarse bajo la medida de la
culpabilidad, porque se la desplaza por cualquier otra excusa o pretexto,
esto la invalidaría33.
En verdad, es imprescindible que asistan a la convocatoria del estudio
delito-objeto estos tres elementos citados, dada la dificultad entre la
atención de lo colectivo y la afectación de lo individual, como la desatención
de aquello por una omnipotencia liberal34. Hay que comprender que con su
asistencia obligada desde una visión legitimada, se tiende a evitar llegar a
islas de criminalización sin ninguna relación con el desarrollo personal35.
Otro tanto conduce a aceptar la punibilidad de los delitos contra la
seguridad social36 o el contrabando. En los primeros existe una directa
relación con los derechos económicos, sociales y culturales en donde
participan los trabajadores activos con sustanciales aportes, destacándose la
salud – enfermedad, o supuesto de invalidez – o cobertura por desempleo
como característica de la asistencia a los que más la requieran, afectándose a
su vez el patrimonio público que sufre un daño con cada sustracción a las
correspondientes contribuciones que atienden las necesidades del sistema37.
La trascendencia de estos hechos punibles alcanza a la actividad
empresarial38: aunque no cabe duda quienes son los destinatarios de los
beneficios, la distinción que existe entre la industria que cumple con el giro
de las cargas de la que no, por igual lesiona la competencia lícita de la

33 Yo hago un seguimiento, mutatis mutandi, a los considerandos de Fallos: 321:3630. No se tutela


ningún bien jurídico -que a su vez es alimentado por derechos fundamentales- con una
cancelación de iure a la libertad en tanto se sustancia el proceso penal.
34 Ampliar ALCÁCER GUIRAO, Rafael, Apuntes sobre el concepto de delito, op. cit., p. 29 y Sobre el

concepto de delito: ¿lesión del bien jurídico o lesión de deber?, op. cit., p. 106.
35 Cfr. STERNBERG-LIEBEN, Detlev, Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal, op. cit.,

p. 117.
36 Los arts. 7 y 8 de la Ley 24.769 guardan una escala penal idéntica, en los delitos-tipos básicos y

agravados respectivamente, con los de evasión. Cabe entonces, para los últimos igual comentario
críticos en atención a la proporción de su consecuencia. También, el § 266a del StGB que altera el
orden de la seguridad social.
37 Cfr. BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal. Parte Especial 5, Saraiva, São Paulo, 2008,

p. 250 como reflexión al art. § 337. Así como en Argentina – arts. 14bis e inc. 22° (PIDESC.) del 75
CN.–, también en Brasil hay una retroalimentación desde los derechos básicos – que la Norma
Fundamental de 1988 a más de veinte años de su sanción enuncia –, arts. 6 y 194.
38 En tal sentido hay que prestar atención a órganos y decisiones tomadas por ellos respecto de la

posición de la empresa de cara al trabajo y la seguridad social para luego atender el fraude
previsional. Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, 26. Aufl., C.H. Beck,
München, 2007, p. 1232.

28
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economía real39. Sin embargo, probablemente y sin desatender el eje de


defensa de la libertad positiva, los actos subsumidos lógicamente en otras
disposiciones de la ley atienden mucho mejor esta problemática40.
Respecto de lo segundo, del control del servicio aduanero a manos
del Estado, corresponde lo siguiente: como en todo lo antecedente, la
función dinámica del último está presente y también el ingreso arancelario,
de modo que dificultar o sustraerse a éste que depende de la fiscalización en
un modo u otro afecta el ingreso de recursos y parejamente, el gasto – sea en
administración o imputación –. Por otro lado, ello que es capaz de arriesgar
o acabar en los derechos de las personas a través de salud y educación
pública, o amenazar o ridiculizar la expresión de soberanía en lo que a
seguridad por voluntad política del país toca, no deja de aproximarse o
evidenciarse todavía más en un plano de igual importancia, si además
ponen en peligro esos bienes por el ingreso de productos que afectan la
libertad, como el ejercicio razonablemente legal del comercio o la industria41.
En tal sentido, además de la fórmula genérica y detalladas de los arts. 863 y
864 CA., hay que tener presente los delitos-tipos agravados, con detalle del
art. 865 incs. “g” y “h”, o los tipos objetivos de las disposiciones 866 y 867
íd., que giran en torno a estas anotaciones42.
La limitación de la libertad a esta altura puede relacionarse, bien a
través de la función dinámica del Estado, con derechos fundamentales: éste
puede dar incentivos para el desarrollo, los que no pueden ni deben ser
objeto de abuso que debían su finalidad43. No obstante, a pesar de lo
mencionado, he adelantado algo sobre la existencia de una marca, de una
limitación. La delgada línea que divide aguas entre la arena penal – o del

39 Cfr. MUÑOZ CONDE, Francisco, Derecho Penal. Parte Especial, Tirant lo Blanch, Valencia, 2004, p.
1056 en el ingreso previo al tratamiento del art. 307 del texto de 1995. También se vincula el bien
jurídico penalmente relevante de la seguridad social con el art. 41 de la Constitución del Reino de
España de 1978, que capilariza los derechos fundamentales que requieren de intervención estatal
para el goce de la libertad.
40 Así por caso, las políticas fiscales sobre el inc. 18 o 19 del art. 75 CN. en relación al art. 3 de la Ley

24.769.
41 Cfr. BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal. Parte Especial 5, op. cit., p. 218-219, con

análisis del § 334.


42 Con escalas más altas cuanto más puedan afectar los derechos de libertad.
43 Así los delitos de los arts. 3 y 4 de la ley 24.769, que no es más que una desviación sucesiva o

inicial, de inyecciones o estímulos para determinadas actividades, frustradas por la aparición del
delito. Esto es bastante semejante a lo que se persigue en el derecho alemán a través del § 264 del
StGB, atendiendo al efecto del hecho. Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian, Strafgesetzbuch
Kommentar, op. cit., p. 1193.

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delito – y la de la administración – o de la infracción o contravención según


ordenamientos comparados – también se liga a los elementos ut-supra
referidos. Sintéticamente, si la segunda es insertada como hecho punible
sería ilegítimo. También que el primero sea una falta y esto es así por el
deber primario de intervención estatal en la protección de los derechos44. Lo
que hay que tomar en consideración es la incidencia en la divisoria de aguas
de los condicionamientos espacio-temporales que colaboran con la difícil
tarea, en el reenvío a zonas extrasistemáticas de la legislación criminal para
el orden jurídico-administrativo45. En mi opinión, actos como los que
mencionamos más arriba vinculados con roles Daseinvorsorge e irradiación
en la condición social de todas las personas, no son simples desórdenes a la
gestión estatal; el punto es que consistiendo los hechos idénticos en sendas
tipificaciones en un segmento u otro – contrabando o evasión en más o en
menos –, se presenta como racional y relacional que la estructura judicial
atienda los más graves. La exposición in commento, conocida como de
conversión “cuantitativa en cualitativa”, tiene en consecuencia una sólida
base: en lo interno, en el bloque de constitucionalidad del inc. 22 del art. 75
CN. y en lo externo con el derecho internacional de los derechos humanos,
dando por resultado la producción una legislación que comparte con la
tradicional su formalidad pero también sus contenciones en lo material46.
En una profundización, es posible que tras apelar al conjunto de
elementos que reunidos posibilitan la defensa de la libertad por la
maquinaria penal, se llegue a concluir que con la intervención
administrativa se captan y atienden comportamientos masivamente menos
relevantes y con ello se adecua la respuesta estatal con consecuencias
proporcionales, mientras que la función judicial se concentra en
intermitentes hechos que sacuden – o podrían hacerlo – al bien tutelado y

44 No puedo extenderme en demasía aquí, sin perjuicio de lo que puedo anotar ut-infra en mi
trabajo. Solamente me atrevo a decir que la habitualidad con la que se aborda el límite al ius
puniendi estatal para el escrutinio con el que se procede al estudio del derecho penal, las más veces
no nos hace ver que la razón limitadora puede rendir y satisfactoriamente para su propia
fundamentación, en la medida que se tenga presente la aproximación teleológica de los dos
primeros apartados.
45 Cfr. FIGUEREDO DIAS, Jorge de, Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo

para a reforma do direito penal económico e social portugués, en PODVAL, Roberto (coordenação),
Temas de direito penal económico, op. cit., p. 34.
46 En similares términos, a partir de la Constitución de Portugal de 1976, en rectificación de un

trabajo previo a ella, véase FIGUEREDO DIAS, Jorge de, Para uma dogmática do direito penal secundário.
Um contributo para a reforma do direito penal económico e social portugués, en PODVAL, Roberto
(coordenação), Temas de direito penal económico, op. cit., p. 37.

30
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que requieren de una posición más contundente47. La distribución


entrecruzada en estudio no pierde de vista los derechos fundamentales,
antes al contrario pone acento en la preservación del brazo punitivo como
ultima ratio legis y su proporcionalidad se orienta a una auténtica protección
de aquellos. Sería un atentado a la finalidad estatal dejar todo a la
administración o, en el extremo contrario, hacerlo con el elefante judicial
penal. Por igual, si la primera dimensión fuera diminuta y la segunda
gigante, asistiríamos entonces a la deslegitimación del derecho penal
económico. Ciertamente una indagación por temas de parte especial me
volverá a encontrar en este sendero.
Ahora toca analizar la técnica a la hora de la composición del hecho
punible. Desde la legalidad formal, el delito económico comparte el
principio constitucional y del derecho internacional de los derechos
humanos conocido como nullum crimen sine lege48. No obstante hay
problemas que aunque pueden ser compartidos, resultan encabezados por
él, surgiendo así una especie de Tatbestandsfunktionen, en donde las
cualidades del tipo como lex stricta resultan ablandadas por las exigencias –
supuestas – de hacer frente, del mejor modo posible, a la defensa de valores
penalmente relevantes49. Así por caso, el inc. “f” de la ley cambiaria 19.359
que amenaza con reacciones punitivas a cualquier infracción a la regulación
administrativa del control del tipo de cambio y que torna en enunciados
ejemplificativos los tipos precedentes, es una puerta abierta a la dimensión
desconocida, incluso para los propios agentes estatales, habida cuenta del
volumen de disposiciones que se dictan sobre la materia, lo que además
encuentra la gran dificultad de llevar a la moneda nacional que persiguen
tutelar a bien jurídico conectado con los atributos básicos de la persona,
ligándose entonces con mantener un orden administrativo50. Cabe entonces

47 Experiencia que es por igual conocida en derechos comparados, véase sino BITENCOURT, Cezar
Roberto, Tratado de Direito Penal. Parte Especial 5, ob. cit., p. 235-236; también MUÑOZ CONDE,
Francisco, Derecho Penal. Parte Especial, op. cit., p. 1041.
48 Este principio – Keine Strafe ohne Gesetz es entendido en la dogmática alemana como

Gesetzlichkeitprinzip – es característico de los Estados de Derecho, en donde los mecanismos


procedimentales de la democracia por expresión de sus órganos dan vida política a las normas de
comportamiento, penalmente incentivadas. Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian, Strafgesetzbuch
Kommentar, op. cit., p. 9ss.
49 Como sea, esto se puede presentar de varios modos, como ser mutando la focalización en el delito

para hacerlo en la sanción, según esquemas de política criminal de Bewertungsnorm o


Sanktionsnorm. En el caso del contrabando en grado de tentativa, se asiste a una equiparación de
disvalor de acción con el de resultado, lo cual es ilegítimo.
50 Cfr. ZENKNER SCHMIDT, Andrei-FELDENS, Luciano, O Crime de Evasão de Divisas: a tutela penal do

sistema financeiro nacional na perpectiva da política cambial brasileira, op. cit., p. 140-141 y 154.

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criticar la subsistencia de un paquete de normas de comportamiento que


pueden estar guiadas racional, necesaria y proporcionalmente por áreas
como la de la ley penal tributaria o la de blanqueo de capitales y que salen
mejor paradas al ser confrontadas para su legitimación. Por igual, hay que
extenderse a la quita protectora de principios claros que controlan la
arbitrariedad de la ius puniendi estatal, como la prohibición de la
retroactividad de la benignidad de reformas que afecten la sanción, como en
el caso del art. 20 íd. y que merecieran la atención de la Corte a propósito de
la primacía del derecho internacional de los derechos humanos51.
En lo que se conoce dogmáticamente como ley penal en blanco hay
para discutir desde el límite que los derechos fundamentales le imponen al
Estado para que, a propósito, adopte medidas para su tutela. Si bien se ha
dicho que la problematización, en principio, no sería lo bastante, la
afirmación es opinable52. Para ello hay que prestar atención al objeto de
remisión, quien resulte ser autor de la cobertura y la finalidad que la
fundamente53. Con atención todavía al tema cambiario, la competencia del
Banco Central para atender todo lo relativo a los pormenores de la actividad
configura una delegación inaceptable de facultad legislativa en términos
penales54. Por otra parte, habrá que aplicar el test sobre el repertorio de la
administración para ver si atiende un objeto, necesidad y proporcionalidad
y, a su vez, medir si se tratan de impactos que no afectan la función de
garantía o que, todo lo contrario, lo hace55. Lejos de la función amplificatoria

51 Cfr. Fallos: 321:824 disidencias de Fayt, Boggiano y Bossert y, por separado, de Petracchi,
retomada recientemente en mayoría en Fallos: 329:1053. En este último se remitió a su disidencia
el juez Fayt y se le sumó la jueza Argibay. Agrego que argumentos análogos se pueden trasladar a
otras disposiciones como la presunción de dolo y el ataque al in dubio pro persona que supone el
orden penal cambiario.
52 Cfr. BACIGALUPO, Enrique, La problemática constitucional de las leyes penales en blanco y su repercusión

en el derecho penal económico, en BACIGALUPO, Enrique, Curso de Derecho Penal Económico, Marcial
Pons, Madrid, 1998, p. 39-40.
53 Ampliamente, SCHÜNEMANN, Bernd, Las reglas de la técnica en derecho penal (Die Regeln der Technik,

trad. Cancio Meliá, Manuel y Perez Manzano, Mercedes), en SCHÜNEMANN, Bernd, Temas actuales
y permanentes del Derecho Penal después del milenio, Tecnos, Madrid, 2002, p. 153ss.
54 El principio de legalidad y la separación de funciones en del poder, separan a uno democrático de

uno totalitario. Si se piensa que aquél responde a características del primer modelo pero surgen
estas contradicciones como son delegaciones a la administración, minimizándolas o
relativizándolas, se asiste a otro menos democrático y más autoritario de lo que se cree. Este
legado del iluminismo no es patrimonio del derecho penal sino de una teoría del Estado,
elaborada en rigor por Beccaria, verdad que por evidente alcancé solo por intervención del
catedrático Lucio MÓNACO en Urbino.
55 Ver las reflexiones de Petracchi en los fallos de Corte citados ut-supra. En lo que hace al art. 22 de

la ley 7.492/86 de Brasil tan solo un inciso es permeable a críticas por requerir cualquier giro de

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que se le asigna a esta legislación dinámica, la interpretación debe tender a


una reducción, recurriéndose a un derecho penal a la medida de una
Constitución compatible con el derecho internacional de los derechos
fundamentales56.
Los derechos fundamentales tienen capacidad para impactar en todo
el encadenamiento que supone la teoría del delito, por la combinación que
supone el deber de intervención en su defensa y a su vez la contención o
limitación en el desempeño de la tarea, lo que acentúa una axiología
bifuncional57. En tal sentido ahora me concentraré en una hipótesis
particular a propósito del tema escogido, que además se relacionará ut-infra
con el mandato de intervención que en algún aspecto es deficiente, en
especial a la hora de concentrarnos en las obligaciones de las autoridades y
su cruce con una mirada de accountability.
Una problemática anudada con la función estatal dinámica que se
recuesta sobre lo que captura su tesoro a través de distintas dependencias es
su incumplimiento con las prestaciones que satisfacen derechos
fundamentales de libertad positiva. En efecto, al contrario de la noción más
elemental de objeción fiscal, en donde se cuestiona la atención de un
porcentaje de la hacienda a gastos que un contribuyente no comparte –
exemplo docit, al área militar –, se plantearía el rechazo a la desatención de
servicios o funciones públicas estatales58. A diferencia de los países centrales
de la Unión Europea, en donde “la obligación de pagar impuestos es [...] de
carácter general y no tiene ninguna influencia precisa en la conciencia. [...]
su neutralidad está ilustrada igualmente por el hecho que ningún

divisas autorización del Banco Central, que además se concentra en la evasión de aquellas como
elemento especial del elemento subjetivo del tipo; no obstante, no habla de cumplir con la
totalidad de una normativa, siendo más puntual. Cfr. ZENKNER SCHMIDT, Andrei-FELDENS,
Luciano, O Crime de Evasao de Divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional na perpectiva da
política cambial brasileira, op. cit., p. 157. Si las remisiones no alcanzan el test afectarían la
prohibición. Véase, también, BACIGALUPO, Enrique, La problemática constitucional de las leyes penales
en blanco y su repercusión en el derecho penal económico, en BACIGALUPO, Enrique, Curso de Derecho
Penal Económico, op. cit., p. 42ss.
56 Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 11 y sobre

Nebenstrafrecht, p. 12ss.
57 Cfr. FORTE DE NEGREIROS DEODATO, Felipe Augusto, Qual o caminho seguro para uma Gesamte

Strafrechtswissenschaft, en D´AVILA, Fabio Roberto-SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius, Direito


Penal Secundário, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p.168-169.
58 Sobre la noción básica, NAVARRO-VALLS, Rafael-MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier, Las objeciones de

conciencia en el derecho español y comparado, McGraw-Hill, Madrid, 1997, p. 81ss.

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contribuyente puede elegir el destino de sus impuestos”59 aquí se cuestiona


que no se giren, o que no lo sean en forma suficiente. No es, con claridad,
un comportamiento a tono con un delito fiscal, porque no persigue afectar
la hacienda: en realidad fija su atención en la distribución del presupuesto60.
Esto no quita, sin embargo, que se conecte con otros actos que por afectar la
función pública, como la expresión de la posición en espacios que
condicionen radios de libertad negativa y puedan concluir en la imputación
de un hecho punible, aunque lo último se relacione más con desobediencia
civil61. Ocurre que si la legitimación del derecho penal – también el que se
ocupa de los delitos económicos – se dirige a la tutela de derechos
fundamentales, un acto que se apoya en la defensa de éstos, en principio y
para que el Estado no se contradiga, no podría castigarse. A partir de ahí su
relevancia.
En lo que hace a la objeción fiscal clásica, con fundamento en el
interés público que persigue la tributación, normalmente no se la admite.
Pese a ello, y a propósito del art. 34.4 o 34.3-5-6 del CPA.62, cuestionamientos
severos en lo que hace a las finanzas públicas que ocupan el presupuesto y
la repartición del gasto, no solamente en el plano teórico, antes bien en la
vereda de la realidad, podría llevar a la justificación de reclamos y protestas
contra los mandatarios a instancia de los mandantes o sea, de los propios
contribuyentes. Esta senda debe ser transitada, no obstante, con extremo
cuidado: por un lado, para que su invocación no sea antojadiza y
desconectada; pero por el otro, para que en estricta ponderación a los bienes
en juego con visión del marco fáctico, tampoco se la rechace

59 Cfr. Comisión, decreto de diciembre 15 de 1983, app. 10.358/83, citada por AYALA, Ignacio-
CEREZO, Álvaro-GONZÁLEZ, Ivana-MARTÍNEZ, Daniel, La objeción de conciencia en el derecho europeo
y comunitario, en MOTILLA DE LA CALLE, Agustín, Tolerancia y objeción de conciencia en el Estado
Democrático, Universidad de Alcalá, 1998, p. 38. También la app. 14.049/88, en igual sentido.
60 Cfr. NAVARRO-VALLS, Rafael-MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier, Las objeciones de conciencia en el derecho

español y comparado, op. cit., p. 84-85. En otros términos, faltarían elementos del tipo.
61 Así para el caso italiano, sobre el art. 415 CP, decreto 602/73. Si la incitación proviene de un

ministro de culto es más grave según el 327 íd.. Cfr. MATURO, Renata-MAZZONE, Livia Chiara-
PARUTA, Federico-TAGLIAFERRE, Vera, L´Obiezione di Coscienza nell´ordinamento giuridico italiano:
problemi e prospettive, en MOTILLA DE LA CALLE, Agustín, Tolerancia y objeción de conciencia en el
Estado Democrático, op. cit., p. 58-59.
62 Cfr. BACIGALUPO, Enrique, La problemática constitucional de las leyes penales en blanco y su

repercusión en el derecho penal económico, en BACIGALUPO, Enrique, Curso de Derecho Penal


Económico, op. cit., p. 45ss. en donde toma disposiciones del 20.7 del texto español.

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dogmáticamente63. El factor de enfrentamiento es tan serio y como es


notorio tan alejado de los elementos de tipicidad que, descartado lo
anterior, podría elevarse a ser tratado en la exclusión de la culpabilidad o en
la de responsabilidad por desinterés preventivo especial64.
En estrecha conexión con la (falta de) gestión política – y no en
cambio con un desastre a nivel empresarial, sea productivo, competitivo o
análogo e imputable a los órganos de la persona jurídica – también la
persecución de la propia subsistencia en perjuicio de un interés macro,
como lo es el la actividad dinámica estatal emparentado a bienes y servicios
públicos, puede ser reconsiderado desde los derechos fundamentales. Si se
piensa por ejemplo en evasión (fiscal o de seguridad social) y el monto
permanece en el comercio o industria – no en el patrimonio personal del
comerciante o industrial –, ante una crisis sin respuesta gubernamental
alguna o con una traducida en mayor presión fiscal, podría justificarse o
disculparse el acto en miras a la oscilación fáctica. Ahora, como en el caso
anterior, hay que proceder con prudencia judicial, fundamentalmente
porque, con sus diferencias, en los polos del enfrentamiento resaltan luces
de interés social bastante para una solución que exime o que condena65.

IV – I MPACTO S OBRE L A P ARTE E SPECIAL


En el título anterior he intentado acentuar la relación que existir entre
la libertad que hace a la constelación de los derechos fundamentales con la

63 Aunque se advierte que la desobediencia no debe ser confundida con el derecho de resistencia –
art. 20IVGG –, puede por fundamentos llegar a justificarse. Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian,
Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 226-227.
64 Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 229. Piénsese en el

propio 34.2 CPA. o en la raíz de la culpabilidad a partir del 18 CN. Bien podría pensarse, como en
el 169 CP. de Italia en un caso de perdón, al analizar hasta que punto sobrevive el
encadenamiento de los elementos del delito.
65 Una visión legitimada de un derecho penal orientado hacia la protección de bienes jurídicos en

extrema conexión, mediata e inmediata con derechos fundamentales, traspasa lo sustantivo. Sobre
sus variantes en lo que se conoce como versión “integral”, véase principalmente WOLTER, Jürgen,
Estudio sobre la dogmática y la ordenación de las causas materiales de exclusión, del sobreseimiento del
proceso, de la renuncia a la pena y de la atenuación de la misma. Estructuras de un sistema integral que
abarque el delito, el proceso penal y la determinación de la pena (Zur Dogmatik und Rangfolge von
materiellen AusschluBgründen, Verfahrenseinstellung, Absehen und Mildern von Strafe. Strukturen eines
ganzheotlichen Straftat-, StrafprozeB- und Strafzumessungssystem, trad. G. Benloch Petit) y FREUND,
Georg, Sobre la función legitimadora de la idea de fin en el sistema integral del derecho penal (Zur
Legitimationsfunktion des Zweckgedankens im gesamten Strafrechtssystem, trad. Ramón Ragués i
Vallés), en WOLTER, Jürgen – FREUND, Georg, El sistema integral del derecho penal, Marcial Pons,
Madrid-Barcelona, 2004, p. 31ss. y p. 91ss.

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legitimación de una limitación de ella por la espada penal. Lo que me


propongo en este pasaje es estudiar un grupo de delitos-tipos que permitan
confirmar, en particular, la tesis enunciada.
Si la regla es la libertad y la excepción legitimada por la defensa de
aquella es el delito, la intromisión estatal en manifestaciones elaboradas a
partir de tipos de asociación es cuestionable y dificilmente superan un test
en base a derechos fundamentales66. Para ello hay que hacer el confronte
sobre el principio de ofensividad.
En una apretada tarea, la lesividad que legitima la intervención del
derecho criminal supone que el acto afecta (o puede hacerlo) bienes
indispensables, que el orden jurídico-penal recoge. Vale recordar, más allá
de la movilidad permeable de valores que incorpora un texto, que todo
núcleo de defensa supone una capacidad para ser violado o para estar en
situación de peligro67. El reconocimiento pero también la promoción de la
persona como titular de atributos elementales e inviolables por el Estado,
solidifica una relación – en líneas generales – en donde reina aquella y es
súbdito éste. Con ello la edificación de simples desobediencias, violaciones
a supuestas obligaciones – que no existen hasta que se hacen propias por la
autodeterminación individual – o a deberes de fidelidad, posiciones o
intenciones que no acepten normas de comportamiento no pueden
plantearse como victorias de la legislación68.
La visión en conjunto plasma un condicionamiento, una prohibición a
la fuente competencial de producción de normas. Mientras que antes las
reglas de la técnica eran la visa – autorizada en Marburgo según die gesamte
Strafrechtswissenschaft – para el paso de la legislación penal desde un rincón
temporalmente trabado a principios de la centuria pasada, no basta. Por
esta razón, cuando surgieron las bases del tipo de asociación ilícita en
nuestro código, producto que respondía a los límites de entonces, los picos
de discusión no trepaban hasta analizarlo como inaceptable sino como
desaconsejable o inconveniente, o viceversa69. La puja sobre su ubicuidad en

66 He tratado esto en una oportunidad anterior en visión de dogmática penal. Renovaré mi


argumentación con un prisma ahora más concentrado en derechos humanos.
67 A partir de Johann M. F. BIRNBAUM, ver MARINUCCI, Giorgio-DOLCINI, Emilio, Corso di Diritto

Penale, 1, Giuffrè, Milano, 2001, p. 434.


68 Cfr. MARINUCCI, Giorgio-DOLCINI, Emilio, Corso di Diritto Penale, op. cit., p. 452.
69 Polémicas que oscilaban entre la titulación del bien jurídico, cfr. SOLER, Sebastián, Derecho Penal

Argentino, IV, TEA, BsAs., 1988, p. 695ss. o directamente a su resolución en autoría o participación
para ser desplazada por una figura de hecho punible, cfr. MORENO (h.), Rodolfo, El Código Penal y

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torno del objeto de protección y como lograrlo, con raíces en la legalidad y


la tipicidad, es una pelea callejera cuando en rigor la temática a abordar es
la admisibilidad de ser, pertenecer o querer algo, en lugar de hacerlo y que
ello represente una dimensión de antijuricidad capaz de dañar o colocar en
peligro ciertos derechos humanos, idea que aprisiona a las funciones del
poder doblemente: en abstracto al legislador, en concreto al magistrado
judicial. In primis, para no quitar espacios soberanos a la libertad por
tendencias e in secundis, con auxilio de la categoría del bien jurídico, dejar
fuera acciones inofensivas70.
Ello así, el fundamento de los derechos fundamentales no distingue,
por su naturaleza de matriz negativa o positiva, que aquello de la
movilidad fáctica que se vuelve antijurídico, se sustraiga a sus pilares en el
ámbito penal económico (secundario como tal y sin perjuicio que, incluso,
subsista el hecho punible como caracterológico del derecho penal clásico)71.
Por más que varios derechos comparados se repitan en esta línea caótica y
en extremo simbólica, por resultar hondamente ineficaz, no cabe otra
posición que rechazar productos legislativos a contramano con la ideología
de la regla de la libertad72. El umbral marcado muy bien por las guías que
salen desde la escuela napolitana sería el que sigue: si se trata de la
anticipación de atentados directos o puestas en peligro, cualquier delito-tipo
debe inequívocamente dar señales que no admitan confusión con un goce a
total amparo de los derechos humanos y separar asociaciones lo traspasa, a
no ser que se acrediten otros hechos punibles, lo que resolvería el problema
(que se ve o que se crea) en su justo espacio: el delito puntual – probable
incidencia gravitante en la antijuricidad –, la pluralidad de personas –
autoría y participación, con ojos depositados en el dominio –, la delictiva –

sus antecedentes, 5-6, p. 419ss y p. 5ss., respectivamente. En origen la incorporación del tipo de
asociación respondía a un contexto de arribo de ideologías que no se compartían.
70 Cfr. MARINUCCI, Giorgio-DOLCINI, Emilio, Corso di Diritto Penale, op. cit., p. 453-454.
71 Es indisoluble la fusión entre política criminal y derechos humanos. No cabe desatender la

economía y a su vez practicar el terror penal. Por un complemento, en una gran síntesis, BRAUDE
CANTERJI, Rafael, Política criminal e Direitos Humanos, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008, p.
67ss.
72 Usual ejemplo del complot francés, le Code Pénal § 412-2, al que se le suma el hecho punible bajo

terrorismo § 421-2-1; quizás sea más concreto el grupo con armas del § 431-13. En Italia el § 416
con su estela de elementos pero también está el StGB con su krimineller Vereinigungen del § 129 y
siguiendo tiempos modernos el § 129a, al igual que el CPA. claro con el concierto de “bises” al §
210 y la capilarización en la ley federal de estupefacientes con su § 29ter. Lo que ocurrió en la ley
penal tributaria es más de lo que resulta inútil. Si se ve presta atención todo gira detrás de los
actos que si lesionan o ponen en peligro cierto bienes conectados visibilidad a los derechos
fundamentales.

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concursos – y la pena – a la medida de la culpabilidad, aunque todavía se


escriba como se la alcanza –.
Con epicentro en la irradiación milanesa, sin más, se los descalifica
como ilegítimos, por vaciamiento de la ofensividad, más que nada por la
distancia con el objeto de tutela73. El ardid aquí es dotarlos de un cierto dolo
específico, capaz de sustentar un peligro concreto de lesión, cuando el acto
todavía es inidóneo, lo que le cae a la perfección al inc. “c” del art. 15 de ley
24.76974, sea que los asociados amenacen la función dinámica del Estado o el
orden (la tranquilidad) pública75. Dicho de otro modo, si la idoneidad es
lograda por los verdaderos delitos que caen bajo el tejido social, los cuales
quedan impunes, sería ajustado que las funciones del poder mejoren allí, no
en recortes a la regla de libertad que no satisfacen el test de legitimación, por
la baja sensible de los delitos fiscales a partir del “descubrimiento” de esta
brillante figura76.
Si aplicamos los elementos para cruzarla, se cristaliza la
desproporción77. Para comenzar, la adecuación. En atención al objeto de
tutela, no debe reducirse la mirada al escudo inmediato o mediato de
protección de derechos humanos sin analizar, adicionalmente, si los tipos
son irrelevantes de cara a ellos78. A continuación se procede con el estudio
de la necesidad, también conocida como exigibilidad: subyace en la
condición que el precio que paga la libertad puede ser mejorado por otros
recursos, menos intrusivos79. Al fin, la medida de una estricta proporción
sitúa bajo la lupa la desventaja del medio – penal – para la ventaja de
mantener intacta la función dinámica estatal80. El paquete opera como un
termómetro que indica la prohibición de exceso a la luz de la libertad: cabe
un juicio negativo por inadecuación, cuando media una maratón entre la
reunión de personas y la alteración evidente en la recepción y aplicación de
la renta, como cuando una mayor presencia en el control de los

73 Cfr. MARINUCCI, Giorgio-DOLCINI, Emilio, Corso di Diritto Penale, op. cit., p. 459ss, 600.
74 Cfr. to. Ley 25.874.
75 Discusión repetida, por ejemplo también en Alemania. Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian,

Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 629.


76 Podría decirse por la tipicidad objetiva que sería dogmáticamente un error una descalificación por

adelantamiento de punibilidad, porque siquiera demanda un hacer comisivo relacional o perdería


su autonomía como delito-tipo. Pero en términos de libertad, sería merecedor de más objeciones.
77 Sintéticamente compendiados en FELDENS, Luciano, Direitos Fundamentais e Direito Penal, Livraria

do Advogado, Porto Alegre, 2008, p. 81ss. Los emplearé en lo sucesivo, como se verá.
78 Cfr. FELDENS, Luciano, Direitos Fundamentais e Direito Penal, op. cit., p. 83.
79 Cfr. FELDENS, Luciano, Direitos Fundamentais e Direito Penal, op. cit., p. 84.
80 Cfr. FELDENS, Luciano, Direitos Fundamentais e Direito Penal, op. cit., p. 85.

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profesionales contables luce más eficaz y menos oneroso a la regla o si la


finalidad no se cumple y un hecho más distante del bien jurídico cuenta con
una consecuencia punitiva más gravosa que la propia evasión81. Entonces no
queda más que un deber de fidelidad, antes que un atentado a un valor
relevante, planteándose su protección sin el menor ataque82.
El absurdo de una política criminal fuera de la limitación impuesta
por los derechos humanos puede llegar a recortes que lejos del crecimiento
económico, podría llegar a lo contrario. Las sociedades offshore contribuyen
al desarrollo y también son empleadas en hechos punibles que afectan la
función dinámica estatal83. Como suponen niveles de inversión y
rentabilidad con riesgo bajo y poca tributación, son opciones trazadas por
diversos países, muchos de ellos orientadas a no residentes como forma de
atracción. No se sigue que cualquier participación en ellas se una a delitos y
sería por igual ilegítimo que se sustraiga una porción de libertad para
constituirlas, porque algunas encripten crímenes.
Por el contrario, en el blanqueo la situación difiere, porque es una
variante de ofensa a los derechos que se cubre por los actos atrapados por la
frustración del control estatal o por la impunidad en la comisión de ciertos
delitos, el contrabando u otros hechos punibles como el tráfico de sustancias
estupefacientes, que capitalizados por no haberse prevenidos, igual se
vuelven contra las personas. En otras palabras, si las afectaban directa e
indirectamente según las situaciones en el hecho prefijado, el agotamiento
del último por la ganancia del delito, regresa en su lesión social84. Para ir a
una comparación con la figura que mereció toda la crítica, lejos de una
anticipación desmedida, hay un seguimiento racional al producto del delito.
Tengo en cuenta aquí que la trascendencia es en lo macroeconómico como
en lo microeconómico, desde que son capaces de alterar mercados o afectar

81 Por una clasificación en paridad, escalamiento y distanciamiento de penas, cfr. FELDENS, Luciano,
Direitos Fundamentais e Direito Penal, op. cit., p. 88. En Italia hay intervención legal pero orientada
a la función administrativa en lo que hace a profesionales cuya actividad pueda rozar, por
ejemplo, el reciclaje.
82 Sobre esto, GÜNTHER, Klaus, Von der Rechts – zur Pflichtverletzung. Ein „Paradigmawechsel“ im

Strafrecht? In: Vom unmögliche Zustand des Strafrechts, Peter Lang, Frankfurt am Main, 1995, p.452 y
KINDHÄUSER, Urs, Gefährdung als Strafrecht. Rechtstheoretische Untersuchungen zur Dogmatik der
abstrakten und konkreten Gefährdungsdelikte, Klostermann Frankfurt am Main, 1989, p.168.
83 Cfr. FERREIRA DA COSTA, Luis Miguel da Conceição, Sociedades Offshore. Uma abordagem á luz do

Direito Penal Económico, en Revista de Direito Penal, Año 1, N° 2, Universidade Autónoma di


Lisboa, 2002, p. 47ss., 71.
84 En sentido similar, MUÑOZ CONDE, Francisco, Derecho Penal. Parte Especial, op. cit., p. 542, 546-547.

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la credibilidad de sistemas financieros o la de inversionistas, como también


alterar las reglas comerciales del juego competitivo85.
Desde el sector europeo la incriminación del reciclaje de capitales
sucios es una prioridad por la conexión con la criminalidad organizada y
por su alto impacto en el mercado y el libre desarrollo de la economía86. Con
una técnica legislativa mejorada en comparación a la versión precedente
que puntualizaba los bienes producidos por una taxatividad de delitos, con
la reforma de la ley 328 de 1993 al art. 648bis – apenas se destaca que el
hecho no debía ser culposo –, el caso italiano se puso a tono con la
disposiciones comunitarias para extremar cuidados para evitar y minimizar
el blanqueo87.
Es natural que los delincuentes quieran utilizar el dinero que
proviene de la actividad delictiva y en tal caso, golpear o intentar hacerlo
allí, es un modo de incidir a su vez en la comisión de los hechos que
generan los recursos88. Por eso la partición de los delitos-tipos en
receptación y en favorecimiento aconseja la atención en ese doble plano, a
través de la sustitución de valores o la obstaculización de su seguimiento.
En doctrina no escapa que la figuras contra el lavado son amplias y
ser así observadas con el prisma de los derechos humanos, por reducir la
libertad, especialmente en cuanto implica deberes a la hora de informar
sobre operaciones puede encontrar algún eco89. Sin embargo, no es tan así.
La confrontación entre el mundo que queda atrapado por una tipicidad de
asociación de otra (en particular) de favorecimiento es que en el primero las
fuerzas que chocan entre actos idóneos e inidóneos dan balance
desproporcionado, siendo difícil distinguirlos sino hasta que se revelen
otros hechos punibles; en el segundo muy por el contrario, los otros delitos
quedan eclipsados y a lo sumo, como el reflejo del sol oculto detrás de la
luna, se sabe que están pero no se los puede ver, ni que decir de probar.
Bajo la tutela del orden económico, los traslados de bienes en un teatro
global le quedan muy ajustados en talle al derecho administrativo, habida

85 Cfr. FERREIRA DA COSTA, Elder Lisboa, “O crime do colarihno branco e a lavagem de dinheiro”, en
D´AVILA, Fabio Roberto-SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius, Direito Penal Secundário, Revista
dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 358.
86 Cfr. FIANDACA, Giovanni-MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte Speciale, vol. II-tomo II, Zanichelli,

Bologna, 2007, p. 247.


87 Cfr. FIANDACA, Giovanni-MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte Speciale, op. cit., p. 249-250. De otros

ordenamientos me he ocupado en otra oportunidad.


88 Cfr. FIANDACA, Giovanni-MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte Speciale, op. cit., p. 254.
89 Cfr. FIANDACA, Giovanni- MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte Speciale, op. cit., p. 254.

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cuenta de la relevancia del bien jurídico y la efectividad que los recursos de


inversión, en lo negativo, tienen para alterarlo90. La confianza en que el
Estado puede reasegurar así los valores hace parte en esta batería de
prescripciones91. No obstante, hay que evitar perder de vista que la
obligación siempre es para con el respeto de los derechos fundamentales y
si está presentado que actos capaces de subsumirse en los tipos de
referencia pueden atentar contra ellos, su defensa no puede hacerse a través
de formas que, aunque diferente, también son una amenaza a lo que
representan. Digo con esto que si el derecho comparado admite la
utilización de provocadores en estas hipótesis, bajo la apertura que se
hiciera por tráfico de estupefacientes, abrir la cacería sería ilegítimo92.
La última situación dista de otra en donde, como adición o
suplemento aunque con igual orientación que la legislación de blanqueo, se
tipifica el empleo de capitales de fuente delictiva, lo que es bastante original
en derechos comparados. Ello así, en la medida que va más allá del reciclaje,
en la cobertura de una fase agotadora del lavado, como lo es la utilización
de capitales. Este momento sucesivo es la parte conclusiva de la inversión
productiva proveniente del hecho punible y es por esta vía que se persigue
impedir que el orden económico sufra graves perturbaciones, explicado en
la libre competencia donde habría quienes pueden alcanzar ubicaciones
privilegiadas o monopólicas por bienes que son el resultado de empresas
delictivas: la clave es la incorporación de una estrategia de protección
residual93. A pesar de ello, todavía está inserta en un panorama de completa
adecuación al bien jurídico y se presenta necesario por la relevancia social
en la insuficiencia de tutela ya no solamente por otras ramas del
ordenamiento sino también por la presencia de los restantes tipos94.
Por cierto que un tipo objetivo que persiga la utilización es permeable
a observaciones de cierta indeterminación, aunque el contexto puede poner
los límites a cualquier traspaso prohibido, en la medida que los bienes
deben provenir del delito y la aplicación condicionada a actividades

90 Serían todos juicios positivos o de legitimación. Cfr. FELDENS, Luciano, Direitos Fundamentais e
Direito Penal, op. cit., p. 86.
91 Cfr. LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 695.
92 Para la doctrina opera como causal de no punibilidad, FIANDACA, Giovanni-MUSCO, Enzo, Diritto

Penale. Parte Speciale, op. cit., p. 257.


93 Sobre § 248ter del CPI, FIANDACA, Giovanni-MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte Speciale, op. cit., p.

258. Va más allá del catálogo de la ley 25.246.


94 La apreciación atiende a la relación bien jurídico e imputación, no a la sistematicidad que es

criticada en el caso italiano, por navegar en los delitos patrimoniales.

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económicas o financieras. En este sendero, tras la planificación del


legislador, el intérprete tiene y debe de hacer ajustes restrictivos ante una
figura en estos términos95.
El material antecedente es lo que hay hasta aquí, con juicio variable.
Uno para quitar, el otro para sostener o a lo sumo rectificar. Toca en suerte
lo que no existe, que debe de incorporarse como intervención necesaria en
la defensa o promoción de los derechos fundamentales. En mi concepto, la
planificación de la política criminal en lo que es el delito económico se ha
concentrado como suele pasar en el soberano, es decir la sociedad como
mandante y no tanto, en contrario, en el súbdito, los funcionarios como
mandatarios96. Si el Estado tiene un rol primario en la obligación de
reconocer y promover los derechos humanos, además de la limitación que
salta en el modo o en su adopción, lo que es criticable bajo la prohibición y
condena de exceso, puede asomarse la omisión que se constituye en la
cobertura deficitaria97. Yo creo que cabe criticar el faltante de disposiciones
que también atiendan, desde la autoridad pública, la función dinámica del
Estado.
Así como es importante la tutela de la hacienda, no es menor que la
administración en toda su expresión atienda con seriedad al presupuesto y
al gasto que allí se ha fijado. La autoridad pública tiene una obligación en su
compromiso con los derechos humanos y el derecho penal debe de estar
reactuando en él. En mi opinión, Brasil da buenas señales normativas que
plasman entonces una necesidad entre nosotros. Esto es así porque con las
leyes 101 (complementaria) y 10.328 de 2000 que se presenta como
complemento de la ley de improbidade administrativa – 8.429 de 1992 – se
diagraman nuevos tipos que giran satelitalmente sobre las cuentas estatales
y su manejo. Por otra parte, las críticas que se hacen respecto al uso aquí de
la técnica en blanco, merecen una distinción con el caso de disposiciones
cuyo destinatario es cualquier habitante98. Como lo veo, el último no tiene
control sobre la producción normativa del poder, mientras que un
funcionario lo tiene o puede con facilidad acceder a él; además aquél es

95 Cfr. FIANDACA, Giovanni-MUSCO, Enzo, Diritto Penale. Parte Speciale, op. cit., p. 259.
96 Sobre la importancia de los derechos humanos, la relación con la Constitución y la relación con la
dogmática de Übermassverbot e Untermassverbot me he ocupado en otro lugar. Aquí me enfocaré en
un derecho comparado que aprecio como importante en mi proposición.
97 Cfr. FELDENS, Luciano, Direitos Fundamentais e Direito Penal, op. cit., p. 90.
98 Cfr. BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal. Parte Especial 5, op. cit., p. 417.

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titular de la regla de libertad caracterológica y éste siempre preso de la


competencia y jerarquía que condiciona su obrar permanentemente99.
Los derechos fundamentales cuestan dinero100. Bajo esta notoriedad –
los hospitales, las escuelas, las fuerzas de seguridad lo necesitan, como las
políticas públicas que los involucran –, es coherente que los agentes
estatales que lo manejan, lo hagan con responsabilidad y, todavía más, con
eficiencia: quien crea que es demasiado puede dejar de ser funcionario a la
brevedad, para recuperar el gran beneficio que es ser y obrar al amparo de
la regla de la libertad. Es una exigencia caracterológica del Estado
democrático que ello sea así y entonces también que una mala rendición de
cuentas – que si quiera se intenta en algún espacio – tenga su espacio
punitivo.
Lo anterior puede fundamentar la necesidad de incorporar nuevos
delitos-tipos: entre los más significativos, porque no es el caso ocuparnos de
todos, están los que se pueden relacionar con el endeudamiento como con la
afectación presupuestaria101. La deuda pública y su atención hace parte del
gasto que el Estado, a través de sus recursos, debe hacer frente. Su manejo
debe ser prudente y cuidadoso, en miras al objetivo que se persigue con esa
financiación y a su realización. Si bien una importante dimensión de la
cuestión viene teñida por la acción política, la formalidad de su proceder
atiende dos universos; por un lado su irradiación en la defensa o en la
promoción de los derechos fundamentales y por el otro, el de la
transparencia de un gobierno republicano en lo que hace a su gestión. Es
disvalioso endeudarse por y para nada – lo que a nivel interno o externo
luego hay que pagar –, como que se siga por funcionarios sin competencia
para ello, sea porque alegan una delegación ilegítima o porque la urgencia o
emergencia que esgrimen para proceder no lo es. En este punto, porque la
responsabilidad en otras esferas ha dado señales de su insuficiencia, como
el presupuesto para atender obligaciones y en consecuencia, ver disminuido
su potencial para prestaciones básicas, que asome el derecho penal no es
una expansión simbólica o ilegítima sino necesaria102.

99 Se trata la función pública, como conjunto de obligaciones, de una parte esencial a la regla de la
libertad que suponen los derechos humanos. No es del caso ampliar las dos tesis aquí.
100 No se si la frase le pertenece a alguien más pero la he escuchado y la justificaron varios

profesores como Bill BOWRING (Reino Unido) y Maija MUSTANIEMI-LAAKSO (Finlandia).


101 Art. 359A, 359F.
102 Sucede en la República Federativa de Brasil, como al Sur de Bolivia. Un tipo como el § 359C que

recoge la toma de endeudamiento en el último año de la función, condicionando así a la futura


administración, puede ser desproporcionado para el derecho penal. Sin embargo, como proceder

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V – I NCIDENCIA S OBRE LA I NTEGRACIÓN


Uno de los pilares más importantes de un proceso de integración es la
protección y la promoción de derechos fundamentales, como se adelantó en
un principio. Por igual, ingresa también la seguridad de ese proyecto
macropolítico y de los valores en común sobre los que se apoya, lo que en la
experiencia del derecho europeo ha dado paso a la cooperación en
administración judicial, a partir del Tratado de la Unión (Maastrich, Tít. V y
VI, art. 29, 30, 31 y 32), antes incluso de que se lograra la Constitución. Otra
esquina en las bases del compromiso, es un mercado único en donde los de
los miembros se reflejan en la oferta de bienes y servicios, al igual que si
resultara en los espacios internos a cada uno. Esto lleva a la necesidad, en
un plan serio y sostenido, de complemento entre la legislación integradora y
la nacional de quienes resultan ser miembros.
Lo que informa la experiencia es que la evolución del derecho
comunitario también parte de los derechos humanos y reconoce
restricciones a partir de ellos, de modo que no solo hace imposiciones a los
Estados parte. Ello desemboca en la adopción de medidas desde esa
estatura en lo que a legislación nacional se refiere, dándose preferencia en
principio – y en sentido teleológico – a la supranacional. Se puede recordar,
en un terreno significativo, como se ha defendido la libertad de asociación103,
profesión104, de comercio e industria105 parejamente a las civiles de
privacidad a la vida familiar106, expresión107 o defensa y juicio justo108, como

frente a una irresponsabilidad política que de otro modo luce impune y que indudablemente,
porque las cuentas no cierran, hacen daño en el tratamiento de servicios que se capilarizan en
derechos de las personas. Con esto voy a que si mandatos de protección en hipótesis de desarrollo
personal, necesitan de un esfuerzo del legislador para su admisibilidad, la cuestión relacional
puede encontrarse satisfecha. Ampliar, STERNBERG-LIEBEN, Detlev, Bien jurídico, proporcionalidad y
libertad del legislador penal, op. cit., p. 121-122.
103 Sobre asociarse en empresas en diferentes miembros, caso 414/06, “Lidl Belgium GmbH & Co.

KG”, mayo 15 de 2008.


104 Cfr. abril 28 1977 , “Thieffry/Conseil de l’ordre des avocats de la Cour de Paris”.
105 Sobre producción, caso 429/00, “Radiosistemi”, junio 20 de 2002.
106 Sobre matrimonio con extracomunitarios, caso 127/08, “Metock”, de julio 25 de 2008.
107 La circulación de bienes garantizada por un Tratado no necesariamente impide una reunión para

protestar; caso 112/00 junio 12 de 2003 (Oberlandesgericht Innsbruck): “Eugen Schmidberger,


Internationale Transporte und Planzüge v Republic of Austria” (1) OJ C 163, 10.6.2000.
108 Por ejemplo sobre bis in idem, la caso 367/05 “Kraaijenbrink”, de julio 18 de 2007 y sobre control

de la prueba, caso 105/03 “Pupino”, de noviembre 11 de 2004; en materia civil y comercial,


283/05, “ASML”, de diciembre 11 de 2006.

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escenario de reconocimiento y promoción en la tarea de integración a


manos del Tribunal Europeo de Justicia109.
Muchos son los instrumentos de los que sobresalen los derechos
fundamentales. De la Convención Europea, por volver sobre una ya
anunciada, a la Carta de la Unión, en tratados extensivos sobre los políticos
y en materia de derechos económicos y sociales la Carta de 1989, con la
resistencia entre sus miembros. El derecho penal ingresa para profundizar
esa proyección que, enmarcada en contexto, además de presentarse en la
persecución de intereses de desarrollo, también descubre una importante
cuota (a veces sólo teórica) de solidaridad social y cultural110.
Hay una extensión pero ella viene justificada111. Es decir, se expande
en la arena por un fusión que excede a los Estados europeos que están a
resguardo con sus propios ordenamientos, adecuados (desde una lectura
general) a la función limitadora y de fundamentación que se ha seguido en
este trabajo: si el derecho económico se ocupa, en un pasaje, de intereses
financieros particulares, esta versión atiende los de la Unión. Un trabajo los
agrupó – compendio del Corpus Juris 2000 – 112.
Aquello implica el diagrama de delitos-tipos supranacionales con esa
orientación113. Y más también. Ocurre que, si bien en una gran mayoría, la
relación entre aquellos y núcleo de protección es clara – estafa en perjuicio
de los intereses comunitarios (1. Betrügereien zum Nachteil des
Gemeinschaftshaushalts) –, en otras no, verificándose la problemática de todo
orden normativo ilegítimo por desproporcionado – asociación ilícita contra
la Unión (4. Bildung einer kriminellen Vereinigung) – 114. Es que todavía no hay
relación entre la interferencia en la libertad y el perjuicio o peligro próximo

109 La apertura de esta puerta de ingreso a los derechos humanos en la UE. en jurisprudencia diversa
de la Corte Europea se la debo al profesor Tobias GRIES (Alemania).
110 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 92.
111 En alguna medida puede importar una restricción de un derecho interno, como la circulación de

divisas vedada hace años en España y Portugal, como se dijo en el principio. Además se trata de
una protección en la que se siguen delitos-tipos para una naturaleza delictiva supranacional. Cfr.
SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 90.
112 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 87.
113 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 89.
114 Los faltantes son: estafa en operaciones licenciatarias o adjudicatarias (2.- Ausschreibunsbetrug);

lavado de dinero y encubrimiento (3.- Geldwäsche und Hehlerei sowie); corrupción y soborno (5.-
Bestechlichkeit und Bestechung); malversación (6.- Amptspflichverletzung); abuso de funciones (7.-
Missbrauch von Amtsbefugnissen); y violación de secretos en el servicio (8.- Verletzung des
Diensgeheimnisses). Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 87.

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a la protección buscada115. Esta situación es por entero distinta en la que


ingresa el abuso de funciones, que se legitima aunque más relacionado con
el Estado democrático y de Derecho, que con las finanzas de la Unión; igual
que la respuesta frente a la violación de secretos en la prevención de delitos.
En las demás previsiones se puede alcanzar el vínculo116.
Con material de esta clase se superaría la problematización de todo
procesamiento de adecuación, caracterizado por la correspondencia entre
directivas supranacionales y su arribo con posterioridad al orden interno, lo
cual significa acomodar para armonizar, también el derecho penal según las
coordenadas comunitarias, sea en clave interpretativa117 o por adecuación
legislativa118. Como sea, para esta última hipótesis o para la eficaz pretensión
de la primera, es importante, de nuevo y previo a ello, que el proceso pueda
recostarse en una cultura por los derechos humanos, trascendente al ámbito
material e inclusiva del derecho procesal en un espacio judicial común119.
Ahora bien, el recorrido que queda hasta un lugar siquiera cercano al
de la Unión Europea es enorme. Si se hace un recopilación normativa del
Mercosur, la importancia en la defensa y promoción de los derechos
fundamentales, no ya en el orden propio de sus miembros, sino del bloque
aparece cuanto menos intrascendente frente a la constancia de los miembros
europeos. Esta distinción, en mi opinión, no es menor. Es a partir del
permanente recordatorio sobre la capital importancia de éstos que se puede
repensar un espacio único de desarrollo económico, porque ellos tienen y
deben incidir valorativamente en la construcción política.

115 En Fallos: 327:3312 al menos los jueces Petracchi, Boggiano y Maqueda – con claridad – se
animaron a admitir tipos de asociación en miras a la comisión de delitos de lesa humanidad. La
tensión de la protección difiere, como sea, entre este último caso – de derecho internacional penal
– y el de un proyecto de integración. En otra oportunidad hice referencia a la problemática que
existe en la parte general del Corpus Juris, en la desproporción que puede implicar la falta de
regulación de la tentativa, pareciéndome insuficiente la aplicación subsidiaria en el plano
nacional, si progresara la eliminación por una política superadora de signo subjetivista.
116 Cfr. BACIGALUPO, Enrique, La parte especial del Corpus Juris en Revista Canaria de Ciencias

Penales, 3-1999, Instituto Iberoamericano de Política Criminal y Derecho Penal Comparado, Las
Palmas, 1999, p. 155-156. En esencia ha cambiado la numeración, no la figura, que el autor estudia
en la versión del Corpus Juris 1996 (su comentario sobre secretos sería hoy propia al 8º y no al 6º, o
al abuso del 7º y no del 5º).
117 Cfr. SATZGER, Helmut, Internationales und Europäisches Strafrecht, op. cit., p. 120ss.
118 Véase LACKNER, Karl-KÜHL, Kristian, Strafgesetzbuch Kommentar, op. cit., p. 1525ss.; MUÑOZ

CONDE, Francisco, Derecho Penal. Parte Especial, op. cit., p. 1052ss.


119 Cfr. BACIGALUPO, Enrique, El Corpus europeo y la armonización del derecho procesal penal en la Unión

Europea, en BACIGALUPO, Enrique, Curso de Derecho Penal Económico, Marcial Pons, Madrid, 1998,
p. 415-416. Por el tema escogido no me extenderé sobre una profundización del proyecto de
integración aquí en todos sus niveles.

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La gran cita no se da sino hasta el Protocolo de Asunción sobre


Compromiso con la Promoción y Protección de los Derechos Humanos del
Mercosur120. En tal sentido, si bien se rescata positivamente su incorporación
al Tratado de Asunción, parece no ser suficiente121. El acordonamiento se
hace, sin quita de su necesidad, en los supuestos de excepción o de crisis
institucional, en donde las lesiones o atentados resulten graves y
sistemáticas122. No obstante, falta al parecer recíproco interés por el estado
de la defensa y proyección de los atributos sin que se alcancen condiciones
como las estipuladas, de lo que sigue que una afectación que no sea grave –
que para su titular difícilmente no lo sea – o intermitente será irrelevante.
La idea que subyace, sin embargo, en una política de unión
integradora es – y si no lo es en el plano gubernamental, debería ser –
mucho más ambiciosa. Es obvio lo que se ha logrado por el Protocolo de
compromiso: no interesa un desarrollo en base a la tortura. Ocurre que no
se me presenta como posible o, rectifico, admisible imaginar la atención de
los problemas financieros o económicos que derivan de delitos de blanqueo
de capitales si el trabajador de una empresa lícita trabaja ochenta horas a la
semana y no subsiste, como tampoco si el Estado miembro no interviene
activamente en el reconocimiento y respeto a todos sus derechos si
demanda atención médica y no la recibe. Otro integrante del bloque no
podría dejar el tránsito de mercaderías manufacturadas por seres humanos
que lejos de dignificarse por el trabajo, son sujetos pasivos de la esclavitud
de las propias carencias que cada gobierno en cumplimiento de sus
obligaciones debe desactivar. Algo igual ocurriría en donde la libertad de
pensamiento y expresión son comprimidas o donde las garantías por norma
no existen, por ir a una temática de derechos preferidos123.

VI – B ALANCE D EFINITIVO
En el ocaso de la tarea emprendida considero haber demostrado el
hipervínculo existente entre los derechos humanos – todos ellos, civiles pero
también económico-sociales – y el derecho penal, en especial el que toca a
hechos punibles con repercusión en la actividad financiera y económica. Es

120 Dada por el Consejo del Mercado Común, XXVIII en Asunción en junio 19 de 2005.
121 Art. 7º. El Tratado constitutivo es de marzo 26 de 1991. Han pasado más de catorce años para que
se cristalizara la preocupación por la temática. El Protocolo de Usuhaia de julio 24 de 1998 se
concentra en las instituciones democráticas. Si bien es cierto en la relación de las temáticas, no es
igual.
122 Art. 3º.
123 Esto genera necesidades mayores de las que toca abordar aquí.

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en el fortalecimiento de este lazo en donde se halla la legitimación del menú


coactivo estatal, en todos sus niveles.
La transformación en la estimación meritoria o bien su antítesis, a
partir de lo anterior, excede el campo de orientaciones dogmáticas cerradas
a lo estrictamente penal. No se trata de prescindir de ellas sino si, además
de resolver problemas de criminalidad o de sistematicidad en lo que hace a
la consideración y respuesta frente a un supuesto dado – fáctico y de
derecho – se refiere, es compatible con el eje de los derechos humanos.
En la parte general se han dado evidencias que legitiman la
intervención estatal en el enfrentamiento al delito fiscal, al de la seguridad
social pero también el que compromete el control del servicio aduanero.
Todos ellos vuelven sobre la libertad positiva, aunque sea posible criticar
algunos tipos calificados bajo el test de proporcionalidad. En lo que hace a
las reglas de la técnica, o a las formas de la estructura del hecho punible, la
regulación de las infracciones cambiarias, en cambio, por su amplitud e
inexactitud frente a lo que sería con especificación la norma de
comportamiento y a su vez, por su estrecho puente con los derechos a
tutelar, advierte que el orden normativo no resiste.
Los ejercicios de relación también han mostrado que en la parte
especial la restricción a la libertad es desproporcional en los tipos de
asociación, como resulta apropiada en lo que hace al blanqueo de capitales.
Justamente la finalidad como llegada a los derechos en uno y otro bien
jurídico es mucho más racional, aunque se ha visto que hay derechos
comparados todavía más armados para el último caso. Es más, hasta se ha
podido constatar que existe cierto déficit de protección en lo que hace a los
delitos financieros en cuanto son sujetos activos los funcionarios públicos en
un asomo por llegar a los derechos fundamentales en plenitud y que ello no
es factible sin accountability.
Por último se ingresó en los delitos económicos en un proyecto de
integración y, desde una aproximación comparada, puede concluirse en que
es indisoluble a un programa común de desarrollo, el reconocimiento y
promoción de los derechos humanos, señal caracterológica a esta época y
forjada por la evolución de tiempos precedentes, a costos elevadísimos para
la humanidad.
A propósito de resaltar una distinción, he diferenciado impacto de los
derechos – aplicado en el análisis de temas de parte general y especial – de
incidencia, por cuanto en la integración regional justamente, como espero

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haber probado, resta bastante por recorrer en la afirmación de aquellos. No


es sino hasta que ello esté lo bastante consolidado, lo que sin duda se
reflejará en el orden interno de sus miembros, que se podrá fortalecer el
Mercosur. La tarea es gradual y en este orden, nunca al prescindir de él.
Más tarde se podrá capitalizar un derecho penal para la unión, con las
variantes que podremos encontrar y que son prometedoras a una empresa
tan grande.

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50
A REFORMA DO PROCESSO PENAL
OS NOVOS TIPOS LEGAIS DE
PROCEDIMENTO (LEI 11.719
DE 20 DE JUNHO DE 2008)
A NTONIO A CIR B REDA *

Resumo: O núcleo fundamental do presente estudo são os novos


tipos legais de procedimento, introduzidos pela Lei
11.719/2008. Dá-se destaque à exigência do contraditório
prévio, como um desdobramento do princípio constitucional do
contraditório. Em outras palavras, em face da reforma do
processo penal, o verdadeiro juízo de admissibilidade da
acusação, com todos os efeitos processuais daí decorrentes, é
aquele do art. 399 do CPP. No capítulo pertinente ao direito
intertemporal, estuda-se as hipóteses de regressão do
procedimento, bem como a chamada conversão do
procedimento em várias hipóteses.

Palavras-chave: Contraditório prévio – Juízo de admissibilidade


da acusação – Direito intertemporal.

Sumário: I – Introdução; II – Juízo de admissibilidade da


acusação; III – Juízo de admissibilidade como operação
intelectual do Juiz; IV – Julgamento conforme o estado do
processo; V – Procedimento ordinário; VI – Procedimento
sumário; VII – Procedimentos especiais; VIII – Aditamento da
acusação; IX – Direito intertemporal.

I – I NTRODUÇÃO
O Código de Processo Penal, em junho de 2008, sofreu uma série de
importantes modificações, por meio das leis 11.689/2008 – que trata do
procedimento especial do júri –, 11.690/2008 – que trata da teoria da prova
– e 11.719/2008 – que regula os procedimentos ordinário e sumário (os dois

* Advogado. Professor de Direito Processual da Universidade Federal do Paraná.

53
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tipos padrão, ao lado do procedimento sumaríssimo, da competência do


Juizado Especial Criminal).
O núcleo fundamental do presente estudo são os novos tipos legais de
procedimento, introduzidos pela Lei 11.719/2008 e a concreta conformação
jurídico-constitucional desse novo devido processo legal.
Em 1993, em artigo sobre o “erro de procedimento no Processo
Penal”1, ao examinar o procedimento ordinário no código em vigor,
especialmente por se tratar de procedimento escrito, descontínuo e
fragmentado, procuramos demonstrar que era incompatível com a garantia
constitucional do contraditório, com extensão que lhe deu a Constituição
Federal de 1988, art. 5º, inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Vale referir: “(...) um dos graves defeitos do código em vigor (e
são muitos) é que ele viola o princípio do contraditório, ao permitir
a instauração do processo, sem ouvir previamente o acusado. O
direito de ser ouvido pelo tribunal também inclui a audiência
preliminar do acusado. A defesa realmente prévia é uma
decorrência indeclinável do contraditório. A sua falta no esquema
dos procedimentos padrões revela um antagonismo com essa
relevante garantia constitucional (art. 5º, LV, da CF).
A Constituição Federal de 1946 não assegurava o contraditório
em toda a sua extensão e profundidade, uma vez que garantia
apenas que a instrução criminal seria contraditória. Ora, pelo texto
atual, o contraditório é inerente à própria constituição do processo:
não se pode conceder mais que o processo se instaure, sem a
prévia audiência da pessoa acusada. A audiência preliminar é hoje
inseparável do processo penal democrático”2.
A Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, alterou vários dispositivos do
Código de Processo Penal, relativos à emendatio libelli, à mutatio libelli e,
principalmente, dando nova feição aos procedimentos ordinário e sumário.
O procedimento ordinário passa a ser o tipo legal de procedimento
para os crimes cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 04
(quatro) anos de pena privativa de liberdade (art. 394, § 1º, inciso I, do CPP).

1 Publicado na Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, nº 21, p. 117 a 127.


2 Op. cit. p. 125.

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O procedimento sumário será adotado “quando tiver por objeto crime


cuja pena máxima cominada seja inferior a 04 (quatro) anos de pena
privativa de liberdade” (art. 394, § 1º, inciso II, do CPP).
Esses dois novos tipos legais de procedimento contêm 04 (quatro)
fases: a) fase postulatória, que vai até a resposta preliminar; b) fase de
julgamento conforme o estado do processo; c) fase instrutória, com
audiência de instrução e julgamento; d) fase decisória.
Nos procedimentos ordinário e sumário, antes da reforma, não havia
o contraditório prévio, nem a fase de julgamento conforme o estado do
processo. O sumaríssimo é o procedimento padrão “nas infrações de menor
potencial ofensivo”.
Uma das mais importantes inovações da Lei 11.719/2008 é a adoção
de um contraditório prévio, desde que a denúncia ou queixa não seja rejeitada
liminarmente, nas hipóteses previstas no art. 395 do CPP.
Nesse sentido, é o magistério de GERALDO PRADO, em artigo sob o
título Sobre Procedimentos e Antinomias a ser publicado no boletim
informativo do IBCCRIM:
“Por isso, oferecida a denúncia ou queixa e se não houver
imediata rejeição, por aplicação do disposto no artigo 395 do
Código de Processo Penal, o juiz determinará a citação do acusado
para responder à acusação, por escrito, em dez dias. Somente
depois disso é que o juiz poderá receber a inicial (artigo 399), caso
não a rejeite à luz dos novos argumentos ou não absolva o acusado
com fundamento em alguma das causas previstas no artigo 397 do
mesmo estatuto.
Para esta solução há precedente da doutrina em hipótese de
incompatibilidade parcial e, também, no Brasil, da jurisprudência,
no caso paradigmático de definição do preceito dispositivo da
associação para o tráfico de drogas, em decorrência da edição da
Lei dos Crimes Hediondos.
Sob o ângulo prático esta interpretação/aplicação restitui as
coisas aos seus devidos lugares e conforma a atividade da
legislação ordinária a critérios constitucionais.”

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A defesa realmente prévia3 introduz entre nós um processo penal que


resguarda o chamado contraditório subjetivo, assegurado
constitucionalmente (art. 5º, inciso LV, da CF).
A audiência de instrução e julgamento concentra todos os atos de
aquisição de prova. Trata-se de um novo processo penal, com todos os
consectários da oralidade, inclusive a identidade física do juiz que preside a
audiência de instrução e julgamento.
Algumas considerações devem ser feitas, antes do exame da reforma
que entrou em vigor no dia 22 de agosto passado.
O fim do processo penal, modernamente, isto é, o seu objetivo, deve
levar em consideração um critério de valor (modelo axiológico) adequado à
interpretação teleológica.
Na concepção tradicional, o que se buscava, através do processo, era a
descoberta da verdade e a realização da justiça. Frequentemente, porém,
como adverte FIGUEIREDO DIAS4, a descoberta da verdade tem caráter
meramente provável, hipotético. Somente por convenção pode-se falar em
certeza com o julgamento da causa, até porque não raro as condenações e
absolvições podem ser materialmente injustas.
Diante disso, tem razão o renomado mestre da Universidade de
Coimbra, ao lecionar que o fim do processo penal obtém-se através de três
qualidades da decisão: a) ser lograda de modo processualmente admissível
e válido; b) ser justa segundo o direito e c) tornar seguro e estável o direito
declarado5.
No Estado de Direito Democrático, é condição irrenunciável à
realização da justiça um Poder Judiciário independente, um juiz imparcial e
a adoção do princípio do juiz natural.
Em relação ao processo, este deve ter uma estrutura acusatória, de
absoluto respeito ao contraditório e à ampla defesa, com rigoroso controle
jurisdicional prévio da prisão. O princípio da presunção da inocência eleva
ao máximo o respeito ao direito de liberdade da pessoa acusada.

3 A nosso ver, tal como entende o ilustre Desembargador do TJRJ, o despacho que alude o art. 396 é
de simples deferimento da denúncia ou queixa, cujo efetivo juízo de admissibilidade positivo irá
ocorrer após a resposta escrita (art. 399 do CPP).
4 Direito Processual Penal. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1974.
5 Op. cit., p. 40.

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A prisão cautelar tem sempre caráter excepcional e deve ser


informada pelos princípios da necessidade e da subsidiariedade. A sua
natureza facultativa impõe que só deve ser decretada pelo juiz em casos de
extrema necessidade.
Como a sentença deve ser lograda de forma processualmente
admissível e válida, são inadmissíveis as provas ilícitas, isto é, todos os
procedimentos que possam comprometer a dignidade física e moral da
pessoa humana, impondo-se o prévio controle jurisdicional nos casos de
busca e apreensão domiciliar ou de quebra dos sigilos telefônico, bancário e
fiscal (art. 5º, inciso II, da CF).
O ato jurisdicional deve sempre ser devidamente fundamentado (art.
93, inciso IX, da CF).
O que se busca com o processo penal é reconstruir historicamente um
fato pretérito, objeto de uma imputação.
Imputar é atribuir a alguém um fato (concreto), historicamente
individualizado no tempo e no espaço, que corresponde a uma hipótese
legal de infração6. O processo penal gira em função do fato imputado.
É importante destacar que a acusação não pode ser fruto de mera
elaboração mental, mas deve ser sempre conexa a um fato pretérito, a ser
reconstruído na instrução criminal.
O devido processo legal pressupõe uma imputação com essas
características. Não é possível imaginar-se uma acusação sem justa causa,
isto é, sem a prova material do fato e indícios da autoria. A instauração de
um processo penal sem um fato determinado a ser reconstruído, salvo as
hipóteses de erro de boa-fé, é intolerável. Essa anomalia, infelizmente,
ocorre por abuso de poder na acusação, podendo inclusive penetrar no
campo da ilicitude, através de denunciação caluniosa.

II – J UÍZO DE A DMISSIBILIDADE DA A CUSAÇÃO


O juízo de admissibilidade, a que se refere o art. 395 do CPP, com a
nova redação, é mais amplo e complexo do que faz parecer mera
interpretação literal do texto legal. Vale referir:
“A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

6 Confira DALIA, Andrea Antonio e FERRAIOLI, Marzia. Corso di Diritto Processuale Penale. CEDAM:
Padova, 1992, p. 189.

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I – for manifestamente inepta;


II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício
da ação penal; ou
III – faltar justa causa para o exercício da ação penal”.
Esse artigo contém uma série de equívocos. O legislador deveria ter
mantido o texto do art. 437, revogado pela nova lei.
O novo texto é redundante ao afirmar que a acusação será rejeitada
quando for “manifestamente inepta” ou “(...) faltar pressuposto
processual”.
A acusação regular é, a rigor, o único pressuposto processual que o
juiz deve examinar ao despachar a denúncia ou a queixa. Todos os demais
pressupostos processuais exigidos na fase postulatória de procedimento não
levam à rejeição liminar da acusação, daí porque bastaria a norma do inciso
I, sendo totalmente supérflua a primeira parte do inciso II.
Assim, a falta da capacidade específica objetiva (competência
material, territorial e funcional) determina que o juiz se abstenha de atuar
na causa, remetendo os autos à autoridade jurisdicional competente (art.
109 do CPP).
A falta da capacidade específica subjetiva (impedimento, suspeição
ou incompatibilidade), outro pressuposto de validade da relação
processual, também impõe que o juiz se abstenha, sob pena de ser recusado
pelas partes.
A originalidade da causa (ausência de litispendência e coisa julgada),
pressuposto da válida constituição da relação processual, também não leva
à rejeição liminar da acusação, até porque o problema do ne bis in idem surge
quando arguido pela defesa, em exceção ou em defesa preliminar. Trata-se
de típica objeção processual a ser declarada em qualquer fase do
procedimento, independente de arguição das partes.
Os demais pressupostos de validade (citação inicial, intervenção das
partes no curso do procedimento, capacidade postulatória, adoção do tipo

7 “Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:


I – o fato narrado evidentemente não constituir crime;
II – já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa;
III – for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da
ação penal.”

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legal de procedimento, etc.) não incidem sobre o juízo liminar de


admissibilidade da acusação.
Como se vê, há grave equívoco do legislador ao referir que a
denúncia ou queixa será rejeitada quando faltar pressuposto processual.
A toda evidência, a matéria pertinente à válida constituição do
processo e seu regular desenvolvimento é assunto para ser examinado após
a resposta escrita e antes da designação da audiência de instrução e
julgamento.
A sucessão de equívocos continua ao se mencionar que o juiz deve
rejeitar a acusação quando “faltar condição para o exercício da ação penal”
ou ”justa causa para o exercício da ação penal” (art. 395, parte final do
inciso II e inciso III, do CPP).
Ao que parece, o legislador colocou a justa causa como matéria
diversa das condições da ação. Afinal, em que consiste a justa causa? É
difícil responder porque a expressão “justa causa” tem múltiplo significado,
tanto na doutrina quanto na jurisprudência, como adverte, com sobras de
razão, MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA8: “Reafirmamos nós que a
justa causa não constitui condição da ação mas a falta de qualquer uma das
apontadas condições implica falta de justa causa: se o fato narrado na
acusação não se enquadrar no tipo legal; se a acusação não tiver sido
formulada por quem tenha legitimidade para fazê-lo e em face de quem
deva o pedido ser feito; e, finalmente, se inexistir o interesse de agir, faltará
justa causa para a ação penal. Tal ocorre, conforme já dissemos, porque a
justa causa para a ação penal corresponde, no plano jurídico, à legalidade
da acusação. E, no plano axiológico, à legitimidade da acusação.”
Na ação penal pública, em que pese o texto do art. 395, o juiz deve
rejeitar liminarmente a acusação em todos os casos em que o Ministério
Público deveria ter pedido o arquivamento do inquérito policial ou da
investigação preliminar.
O dever de agir, na falta das condições exigidas pela lei, se
transforma, para o Ministério Público, em dever de se abster. O devido
processo legal é incompatível com a indiscriminada instauração de
procedimentos criminais.
Concluída a investigação criminal, o Ministério Público deve pedir o
arquivamento se a prova adquirida demonstra que o fato não constitui

8 In: Justa Causa para a ação penal. São Paulo: RT, 2001. p. 221-222.

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crime ou que o indiciado não o cometeu. O arquivamento pode ainda


ocorrer por falta de prova material do fato e de indícios suficientes da
autoria, que parte da doutrina confunde com a chamada falta de justa causa
da acusação9.
A insuficiência de elementos de prova para o regular exercício da
ação leva em consideração uma perspectiva de resultado do processo.
Diante de um quadro probatório insuficiente ou contraditório, o
Ministério Público deve pedir o arquivamento se entender que a prova não
tem como ser integrada na instrução criminal.
O Ministério Público deve ainda pedir o arquivamento, se os
elementos adquiridos na investigação criminal não são idôneos para
sustentar a acusação em juízo10. A inidoneidade probatória pode ocorrer
pela ilicitude da prova11, o que a torna inadmissível, ou porque foi adquirida
de forma processualmente inválida.
Em outras palavras, o juiz deve rejeitar liminarmente a acusação se a
prova adquirida demonstra que o fato não constitui crime ou que o acusado
não o cometeu. Também deve rejeitá-la por falta de prova material do fato
ou de indícios da autoria. A rejeição liminar pode ainda ocorrer pela
inidoneidade probatória, quando estiver extinta a punibilidade ou por
ilegitimidade de parte.

III – J UÍZO
DE A DMISSIBILIDADE C OMO O PERAÇÃO
I NTELECTUAL DO J UIZ
Oferecida a denúncia ou queixa, na fase postulatória do
procedimento, o juízo de admissibilidade envolve inicialmente uma
operação intelectual do juiz dirigida no sentido de averiguar se a imputação
– abstratamente considerada – corresponde a uma hipótese legal de infração
e se é regularmente descrita. Em caso negativo, deve rejeitar a acusação.
Nesse mesmo instante, a autoridade jurisdicional deve examinar a sua
própria competência para conhecer a causa.

9 Em todas essas hipóteses, o MP deve pedir o arquivamento do inquérito por “falta de base para a
denúncia” (art. 18 do CPP). Mesmo inidônea a prova, se oferecer denúncia, o Juiz deve rejeitá-la.
10 Cf.: METELLO SCAPARONE, “Indagini preliminari e udienza preliminare”. In: Compendio di Procedura

Penale. Coord. GIOVANNI CONSO e VITTORIO GREVI. 2ª ed. CEDAM: 2003, p. 522 e ss.
11 Art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. Art. 157, com a redação da Lei 11.690/2008: “São

inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as


obtidas em violação às normas constitucionais ou legais.”

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Depois disso, o labor intelectual do juiz deve perquirir se a imputação


corresponde a um fato concreto, determinado no tempo e no espaço. A
acusação sem justa causa, ou seja, sem a prova do fato e indícios de autoria,
não merece um juízo de admissibilidade positivo.
A seguir, o juiz deve perquirir sobre a dignidade penal do fato
imputado, isto é, se corresponde a uma hipótese legal de infração e se há a
punibilidade concreta deste fato, daí ser absolutamente indispensável que
se delimite no tempo e no espaço o fato descrito.
O labor intelectual do juiz deve penetrar no exame da idoneidade da
prova, isto é, se foi ela colhida de forma legalmente admissível e
processualmente válida. Tome-se como exemplo a colheita de prova ilícita,
a qual serve de base para o núcleo da imputação. Como essa prova não
pode ser valorada, a acusação deve ser liminarmente rejeitada, em face do
novo sistema, por falta de justa causa.
A legitimidade para agir, no direito brasileiro, é sempre do Ministério
Público, salvo os casos de ação penal privada. Aliás, na ação penal privada
adquire importância o exame da capacidade das partes e da capacidade
postulatória.
Ainda nessa fase, entendemos que o juiz deve examinar se há
congruência entre a imputação e a qualificação da denúncia ou queixa.
Deve a autoridade jurisdicional compatibilizar a qualificação jurídica,
porque a incongruência – que é comum, principalmente pelo excesso
acusatório – pode modificar o tipo legal de procedimento, transformando
em ordinário o procedimento sumário, ou até mesmo transmudando pela
qualificação jurídica equivocada uma hipótese de procedimento
sumaríssimo em ordinário ou sumário.
A correta qualificação jurídica pode ter reflexos de natureza
processual, permitindo, por exemplo, o benefício da suspensão condicional
do processo, a concessão de liberdade provisória, mediante fiança, tirante
todas as vantagens introduzidas pela Lei 9.099/95.
A toda evidência, há outras hipóteses em que o juízo de
admissibilidade liminar deve ser negativo: quando o juiz verificar “que o
fato narrado evidentemente não constitui crime” ou “extinta a punibilidade
do agente”12.

12 Art. 397, incisos III e IV, do CPP.

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Esse juízo de admissibilidade ocorre não só na fase do art. 395 do


CPP, mas também – e principalmente – na fase de julgamento conforme o
estado do processo (art. 397 do CPP).
Aliás, o primeiro julgamento que o juiz deve fazer diz respeito à
relevância penal do fato imputado. A falta de tipicidade deve ser declarada
liminarmente pela autoridade jurisdicional, ou então, na fase de julgamento
conforme o estado do processo.
A fase do julgamento conforme o estado do processo é, porém, o
momento procedimental próprio para o exame das questões preliminares
(art. 395 do CPP) e a incongruência entre a imputação e a qualificação
jurídica, arguidas pela defesa na resposta escrita.
Abra-se um parêntese: a nova redação do art. 396 do CPP, pode-se
antecipar, irá criar várias dúvidas de interpretação. Vale referir:
“Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia
ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e
ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por
escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”
Uma interpretação literal da norma poderá levar ao equívoco de que
o juiz recebe a denúncia ou queixa, ao despachar, ordenando a citação do
acusado. Essa foi a intenção do legislador.
Nessa fase, antes do contraditório prévio, o despacho positivo é de
simples deferimento da petição inicial, proferido mediante cognição
sumária, absolutamente provisória, porque não há ainda a versão do
acusado para o projeto condenatório veiculado na acusação do Ministério
Público ou do querelante.
A natureza do despacho jurisdicional é completamente diversa, desde
que o juízo de admissibilidade seja negativo: se o juiz rejeita, de pronto, a
denúncia ou queixa porque entende que a acusação é carente de justa causa,
deve fazê-lo em decisão fundamentada.
A sequência de equívocos atinge seu ápice, quando a nova lei fala que
o juiz recebe a denúncia ou queixa, em duas ocasiões: a) antes da resposta
escrita (art. 396) e b) após a defesa preliminar (art. 399).
O verdadeiro juízo de admissibilidade positivo da acusação, inclusive
com efeitos reflexos na interrupção da prescrição, só ocorre após a audiência
do acusado e de sua defesa realmente prévia, por advogado constituído ou
nomeado, se for o caso, ex vi do disposto no art. 399: “Recebida a denúncia

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ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a


intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o
caso, do querelante e do assistente”.
Numa interpretação conforme a Constituição, não há como
compatibilizar as garantias constitucionais do contraditório e da ampla
defesa, com eventual entendimento de que o despacho a que alude o art.
396 – simples deferimento da petição inicial – tem natureza de ato
jurisdicional, capaz de produzir efeitos reflexos, inclusive na interrupção da
prescrição13 (art. 117, inciso I, do Código Penal).
Se o juízo de admissibilidade negativo da acusação pode ocorrer antes
do contraditório prévio, ou depois dele, na fase do julgamento conforme o
estado do processo, o juízo de admissibilidade positivo, com todos os
efeitos processuais daí decorrentes, é aquele do art. 399 do CPP.

IV – J ULGAMENTO C ONFORME O E STADO DO P ROCESSO


Normalmente, a autoridade jurisdicional só irá examinar a falta das
condições da ação, condições de procedibilidade e pressupostos
processuais, após a resposta escrita, se a defesa arguir a inexistência dessas
questões preliminares. O despacho proferido, antes da defesa realmente
prévia, só em casos excepcionais levará à rejeição liminar da peça
acusatória.
Citado o acusado e apresentada a resposta escrita no prazo de 10
(dez) dias, no procedimento ordinário ou sumário, passa-se à fase do
julgamento conforme o estado do processo, seja para encerrá-lo sem decisão
de mérito (art. 395 do CPP), ou para absolver o acusado sumariamente (art.
397 do CPP).
Na resposta escrita, a defesa pode postular um julgamento de
encerramento do processo sem decisão de mérito, ou um julgamento
antecipado do mérito. Nessa fase, pode a defesa ainda arguir a falta de
pressuposto processual, condição de ação, condição de procedibilidade, de
que é exemplo a representação do ofendido, nos crimes de ação penal
pública condicionada.

13 Em sentido contrário do texto, cf. MENDONÇA, Andrei Borges de. Nova Reforma do Código de
Processo Penal, Ed. Método, 2008, p. 263 e ss. e NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo
Penal Comentado, RT, 8ª ed., 2008, p. 715 e ss.

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No caso concreto, a defesa pode se reservar para discutir o mérito,


após a instrução criminal, podendo ainda arguir as exceções de suspeição,
incompetência, litispendência, ilegitimidade de parte e coisa julgada. Salvo
a exceção de suspeição, cuja não arguição induz preclusão para a defesa, as
demais são típicas objeções processuais, não se podendo falar em preclusão
pela falta de arguição, nessa fase preambular do procedimento. O juiz tem,
aliás, o dever de declarar a sua falta, mesmo no silêncio da parte.
O encerramento do processo sem decisão de mérito não obstará o
exercício da ação penal, desde que promovida por parte legítima ou
satisfeita a condição, de que é exemplo a rejeição da peça acusatória por ser
inepta.
Se a hipótese não for de encerramento do processo sem decisão de
mérito, a operação intelectual do juiz dirige-se no sentido de um julgamento
antecipado de mérito. Vale referir o disposto no art. 397:
“I – a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do
fato;
II – a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade
do agente, salvo inimputabilidade;
III – que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou
IV – extinta a punibilidade do agente”14.
Inicialmente, há grave imprecisão terminológica ao se declarar que
extinta a punibilidade do acusado, o juiz deve absolvê-lo sumariamente. A
decisão que declara extinta a punibilidade tem natureza declaratória, decide
o mérito, mas não é absolutória.
Ainda nessa fase, parece-nos que há outras hipóteses de julgamento
antecipado do mérito, a saber: “estar provada a inexistência do fato”; “não
haver prova da existência do fato”; “não constituir o fato infração penal”,
“estar provado que o réu não concorreu para a infração penal” e “não existir
prova do réu ter concorrido para a infração penal”15.
Com muita frequência, na resposta escrita, a defesa irá postular um
juízo negativo de admissibilidade da acusação por falta de prova material
do fato imputado ou indícios da autoria, que vários autores consideram
como condição da ação penal, confundindo esses dois elementos com a justa
causa da acusação.

14 Art. 397, incisos I a IV, do CPP.


15 Art. 386, I a VII, do CPP, com a nova redação da Lei nº 11.690/2008.

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Nesse caso, qual a natureza da decisão do juiz?


A nosso ver, a decisão proferida terá efeitos análogos à cláusula rebus
sic stantibus, isto é, o processo fica a aguardar a produção de melhor prova,
tal como ocorre com o arquivamento do inquérito16, por falta de prova
material ou de indícios da autoria.
Em outras palavras, se o juiz, liminarmente ou após a resposta escrita
do acusado, declarar a falta de justa causa da acusação, a decisão não pode
ser revista enquanto o material probatório permanecer o mesmo.
Antes ou depois do contraditório prévio, se o juiz reconhecer que o
fato imputado é penalmente irrelevante, ou lhe falta a punibilidade
concreta, profere típica decisão de mérito.
Se, no caso concreto, a hipótese não comportar o encerramento do
processo sem decisão de mérito, ou o julgamento antecipado da causa, deve
a autoridade jurisdicional receber a denúncia ou a queixa, designando dia e
hora para a audiência de instrução e julgamento (art. 399 do CPP).
Esse despacho envolve o exame pelo juiz do chamado devido processo
legal, isto é, se foi ele instaurado de forma processualmente válida e
legalmente admissível.

V – P ROCEDIMENTO O RDINÁRIO
Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo
máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do
ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela
defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem
como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de
pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
Na instrução, poderão ser inquiridas até oito testemunhas arroladas
pela acusação e pela defesa, em igual número. Nesse número não se
compreendem as que não prestam compromisso e as referidas.
A lei não regula os incidentes que podem ocorrer na abertura da
audiência de instrução e julgamento, decorrentes da ausência do acusado
ou de seu defensor, do ofendido, de testemunhas de acusação ou de defesa,
ou de peritos, convocados para prestar esclarecimentos.

16 Súmula 524, do STF: “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do
promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas”.

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Parece evidente que se a ausência do acusado ou a de seu defensor


ocorrerem por motivo devidamente justificado, o ato processual deve ser
adiado, sob pena de infração ao princípio constitucional da ampla defesa.
Como as provas “serão produzidas numa só audiência”, a ausência
de testemunha da acusação determina o adiamento do ato? Ou é possível a
inversão prevista no art. 400 do CPP, colhendo-se os depoimentos de todas
as testemunhas presentes, inclusive as de defesa?
Algumas considerações devem ser feitas a respeito desse incidente
que irá ocorrer com frequência.
Em primeiro lugar, a inversão será processualmente admissível,
desde que haja concordância da defesa. Nada impede que a acusação
desista do depoimento da testemunha faltante.
O art. 404 do CPP, com a nova redação, declara que “as partes
poderão desistir do depoimento de qualquer das testemunhas arroladas”,
mas o juiz, antes de deferir o pedido, deve ouvir a defesa. Como está, a
norma processual mantém incompatibilidade absoluta com o chamado
contraditório objetivo na formação da prova.
Só depois de ouvir a defesa, deve a autoridade jurisdicional deferir a
desistência. Se entender relevante o depoimento da testemunha, em face das
ponderações da defesa, deve indeferir o pedido da acusação.
Nessa hipótese, colhe-se o depoimento das testemunhas presentes,
com a ressalva de ser reexaminada a necessidade de reinquirição das
testemunhas de defesa, caso a providência se torne indispensável.
Em todo caso, se a inversão na colheita da prova testemunhal não
acarretou prejuízo para a reconstrução do fato imputado, não há que se
cogitar em nulidade absoluta da audiência de instrução e julgamento. Mas,
se houve prejuízo para a defesa, haverá nulidade relativa a ser declarada,
desde que arguida no momento das alegações finais.
Na forma do art. 402, produzidas as provas, ao final da audiência, o
Ministério Público, o querelante e o assistente e, a seguir, o acusado
poderão requerer diligências cuja necessidade se origine de circunstâncias
ou fatos apurados na instrução.
Se não houver requerimento de diligências, ou sendo indeferido,
serão oferecidas alegações finais orais por 20 (vinte) minutos,
respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10
(dez), proferindo o juiz, a seguir, sentença.

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Havendo mais de um acusado, o tempo previsto para cada defesa


será individual, e, ao assistente da acusação, se houver, após a manifestação
oral do Ministério Público, serão concedidos 10 (dez) minutos,
prorrogando-se por igual período o tempo de manifestação da defesa.
Tal como ocorre no processo civil em vigor, considerada a
complexidade do caso ou o número de réus, o juiz poderá conceder às
partes o prazo de cinco dias, sucessivamente, para apresentação de
memoriais. Nesse caso, terá o prazo de 10 (dez) dias para proferir a
sentença.
Pode ocorrer que, na audiência de instrução, o juiz ordene a
realização de diligência considerada imprescindível, ex officio ou a
requerimento das partes. Cumprida a diligência, as partes apresentarão no
prazo sucessivo de cinco dias suas alegações finais, e, no prazo de 10 (dez)
dias, o juiz proferirá a sentença.
Outra relevante inovação é que agora o CPP irá consagrar o princípio
da identidade física, em face do que dispõe o § 2º, do art. 399: “o juiz que
presidiu a instrução deverá proferir a sentença”.
Esse novo processo penal, oral e concentrado impõe o julgamento da
causa pelo juiz que presidiu a instrução, sob pena de nulidade absoluta da
sentença.
A propósito, a regra do art. 132 do Código de Processo Civil tem
inteira aplicação no âmbito do processo penal. Vale referir:
“O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a
lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer
motivo, promovido ou aposentado, caso em que passará os autos
ao seu sucessor”.
Nos processos penais com grande número de acusados, não será fácil
colher-se toda prova testemunhal, esclarecimento de perito e interrogatório
dos réus numa única audiência, até porque, quase sempre no âmbito da
Justiça Federal, a prova testemunhal é colhida mediante expedição de carta
precatória.

VI – P ROCEDIMENTO S UMÁRIO
O tipo legal de procedimento, padrão para os crimes cuja pena
privativa de liberdade cominada abstratamente seja inferior a 04 (quatro)
anos, é semelhante ao procedimento ordinário, salvo em relação a duas

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particularidades: a audiência de instrução e julgamento deverá ser realizada


no prazo máximo de 30 (trinta) dias e as partes poderão arrolar até cinco
testemunhas.
O prazo para a realização da audiência (60 dias, no procedimento
ordinário e 30 dias, no sumário) é um prazo impróprio, cujo
descumprimento não acarreta consequências de ordem processual e que
fatalmente será descumprido pela notória sobrecarga na pauta de audiência
das varas criminais, tal como ocorre hoje com a designação de audiência no
Juizado Especial Criminal.
Vários dos incidentes regulados no procedimento ordinário,
diligências ordenadas após a colheita da prova oral, oferecimento de
memoriais escritos, tendo em vista a complexidade da causa, também se
aplicam ao procedimento sumário.
Nas hipóteses do procedimento sumário, quase sempre, poderá
ocorrer a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), uma
vez que nos delitos cuja pena privativa de liberdade é inferior a 04 (quatro)
anos, via de regra, a pena mínima é igual ou inferior a 1 ano.
Aliás, esse tipo de procedimento terá escassa importância, pois há um
número limitado de infrações penais cuja pena privativa de liberdade é
superior a 02 (dois) anos e inferior a 04 (quatro) anos.

VII – P ROCEDIMENTOS E SPECIAIS


De igual relevância é a novidade introduzida pelo § 4º, do art. 394: “as
disposições dos arts. 395 a 398 deste Código, aplicam-se a todos os
procedimentos penais de 1º grau, ainda que não regulados neste Código”.
Em outras palavras, em todos os procedimentos penais, ainda que
não regulados no CPP, irá adotar-se um único tipo de procedimento na fase
postulatória, ou seja: a) denúncia ou queixa; b) juízo liminar de
admissibilidade da acusação positivo ou negativo; c) recebida como válida a
acusação, citação inicial do acusado para apresentar resposta escrita no
prazo de 10 dias; d) julgamento conforme o estado do processo, com decisão
antecipada da causa (art. 397 do CPP) ou encerramento do processo, por
falta de condição da ação, condição de procedibilidade ou pressuposto
processual (art. 395 do CPP).
Como é sabido, além dos procedimentos especiais regulados pelo
código, há uma série infindável de procedimentos regulados em leis

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especiais. A propósito do assunto, ainda há quinze anos, ao tratarmos dos


vários tipos de procedimentos na legislação em vigor, escrevemos o
seguinte:
“Essa inflação legislativa de procedimentos especiais revela
uma grave crise do direito brasileiro e só serve para dificultar a
aplicação da lei: a supressão de todos os procedimentos especiais,
regulados por leis extravagantes, em nada iria comprometer a eficiência
da jurisdição penal. Muito pelo contrário”17.
A reforma deveria ter sido mais profunda, determinando audiência
de instrução e julgamento tal como o código prevê agora para os
procedimentos ordinário e sumário, principalmente, para determinar que o
interrogatório do acusado seja realizado como último ato da instrução. O
princípio constitucional do contraditório, projetado sobre a instrução
criminal, impõe que a defesa sempre fale por último, e que, em matéria de
prova, o acusado preste depoimento depois de colhida a prova testemunhal
de acusação e defesa.
Essa regra de ouro, do chamado contraditório objetivo na instrução
da causa, que é da defesa a última palavra, infelizmente, não se realizava
até então, uma vez que o réu era interrogado na fase postulatória do
procedimento, antes de produzida a prova testemunhal da acusação.
Em alguns procedimentos especiais, o interrogatório continua
antecedendo a colheita da prova testemunhal. Impõe-se, porém, a
conversão desses procedimentos, a fim de que o interrogatório do acusado
seja o último ato da instrução da causa, antecedente dos debates orais entre
a acusação e a defesa, sob pena de incompatibilidade com a garantia do
contraditório assegurada constitucionalmente.

VIII – A DITAMENTO DA A CUSAÇÃO


Há uma série de outras novidades, como, por exemplo, na matéria
pertinente ao aditamento da acusação. Agora, não mais é possível o
aditamento pelo Ministério Público, por provocação da autoridade
jurisdicional. Vale referir o disposto no art. 384:
“Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova
definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos
autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida

17 Op. cit., p. 120.

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na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou


queixa, no prazo de 05 (cinco) dias, se em virtude desta houver
sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se
a termo o aditamento, quando feito oralmente.
§ 1º. Não procedendo o órgão do Ministério Público ao
aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código”.
Essa inovação procura resguardar por inteiro o processo estruturado
no sistema acusatório, evitando que o juiz ex officio interfira no núcleo
fundamental da acusação. Não há mais o aditamento provocado ex officio,
cabendo apenas ao juiz comunicar ao Procurador-Geral de Justiça que
examine se, no caso concreto, o fato imputado deve ser objeto de
aditamento.

IX – D IREITO I NTERTEMPORAL
No conflito entre leis de vigência sucessiva, especialmente quando a
nova lei altera profundamente a estrutura do processo penal em vigor, é
sempre recomendável um capítulo de disposições transitórias, regulando “a
transição entre o regime processual anterior, derrogado para o futuro e o
posterior sancionado”18.
O art. 2º do Código de Processo Penal estabelece que “a lei processual
penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados
sob a vigência da lei anterior”.
Nessa matéria, vigora o princípio do efeito geral imediato: “a regra é
que a lei processual se aplica imediatamente aos processos a instaurar e aos
atos a praticar nos processos pendentes; não se aplica nunca aos atos já
praticados anteriormente, cuja validade deve ser julgada de harmonia com a
lei revogada”19.
Como adverte FIGUEIREDO DIAS, no silêncio da nova lei e a
“circunstância de o processo ser constituído por uma longa e complexa
tramitação, em que os diversos atos se encadeiam uns aos outros de forma
por vezes inextricável” e especialmente porque os novos tipos legais de
procedimento têm estrutura completamente diversas dos antigos

18 MAIER, Julio B. Derecho Procesal Penal. 2ª ed. Tomo I. Buenos Aires, 2004, p. 246.
19 SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal. Vol.I. Lisboa: Ed. Verso, 2008, p. 105.

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procedimentos, o problema de direito intertemporal pode “pôr em causa o


valor de um certo ato ou situação constituído à sombra da lei antiga”20.
As três novas leis alteraram de forma significativa a legislação
processual penal, sem que o legislador se ocupasse com o grave problema
do direito intertemporal, uma vez que os novos tipos legais de
procedimento irão atingir milhares de feitos criminais em suas diversas
fases, desde a postulatória até sentença21.
I) Nos processos a instaurar, aplica-se a nova lei.
II) Oferecida e recebida a denúncia, na vigência da lei anterior, tenha
ou não sido citado o acusado, a autoridade jurisdicional deve proferir
despacho de regressão do procedimento, determinando nova citação inicial, a
fim de que o acusado apresente resposta escrita, deixando-se sem efeito a
designação de data para o interrogatório.
III) Se o acusado foi interrogado na vigência da lei derrogada, estando
a fluir o prazo para a defesa preliminar, deve o juiz determinar a intimação
do defensor constituído ou nomeado para apresentar resposta escrita, na
forma da lei nova, permitindo que se abra a fase de julgamento conforme o
estado do processo, que pode desaguar na sua absolvição sumária.
IV) Se apresentada a defesa preliminar e já designada audiência para
ouvida das testemunhas de acusação, deve ser feita a conversão do
procedimento. O ato processual deve ser transformado em audiência de
instrução e julgamento, intimando-se também as testemunhas de defesa, a
vítima e os peritos, se for o caso, novo interrogatório do réu, seguindo-se os
debates orais e o julgamento.
V) Ouvidas as testemunhas de acusação na forma da lei anterior, deve
ser designada audiência de instrução e julgamento, colhendo-se o
depoimento das testemunhas de defesa, os esclarecimentos de peritos,
dando-se oportunidade ao réu de novo interrogatório, a fim de
compatibilizar esse ato processual com o novo tipo de procedimento, em
que a última palavra da instrução é sempre do acusado, seguindo-se os
debates orais e o julgamento.

20 Direito Processual Penal. Vol. I. Coimbra: 1974, p. 111.


21 Deveria o legislador regular pela gravidade do problema o direito intertemporal, tal como
ocorreu com o art. 6º da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal: “as ações penais em que
já se tem iniciada a produção de prova testemunhal, prosseguirão, até a sentença de primeira
instância, com o rito estabelecido pela lei anterior”.

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VI) Se toda a instrução foi realizada na vigência da lei anterior e a


colheita de prova testemunhal foi adquirida de forma processualmente
válida, deve-se passar à fase de diligências (art. 402 do CPP), designando-se
para tanto audiência de instrução e julgamento. Se nada for requerido, ou
indeferidas as diligências requeridas, passa-se à fase dos debates orais e
julgamento.
Cabe aqui uma observação: nos processos criminais com grande
número de acusados, cuja qualificação jurídica envolve vários delitos em
concurso material, o princípio da razoabilidade impõe a substituição dos
debates orais por memoriais escritos, sob pena de se comprometer de forma
irreparável a garantia constitucional da ampla defesa.
A nova sistemática, introduzida pelo art. 402, irá simplificar
admiravelmente a tramitação dos feitos criminais22. Na lei anterior, a fase do
art. 499 se prestava à procrastinação dos processos, especialmente quando
as partes nada requeriam.
Agora, o requerimento de diligências será deferido ou não na própria
audiência.
VII) Ordenada pelo juiz a diligência, o ato processual será concluído
sem as alegações finais orais, as quais serão apresentadas depois sob a
forma de memorial no prazo de 05 (cinco) dias, após a realização da prova,
conforme dispõe o parágrafo único do art. 404:
“Realizada, em seguida, a diligência determinada, as partes
apresentarão, no prazo sucessivo de 05 (cinco) dias, suas alegações
finais, por memorial, e, no prazo de 10 (dez) dias, o juiz proferirá a
sentença”.
VIII) Ultrapassada a fase do art. 499, na vigência da lei anterior, deve
a autoridade jurisdicional determinar a intimação das partes para
apresentação de memoriais escritos no prazo de 05 (cinco) dias.
IX) Com maior razão, já apresentadas as alegações finais, na vigência
da lei derrogada, concluso o processo para sentença, deve a autoridade
jurisdicional julgá-lo.

22 “Produzidas as provas, ao final da audiência, o Ministério Público, o querelante e o assistente e, a


seguir, o acusado poderão requerer diligências cuja necessidade se origine de circunstâncias ou
fatos apurados na instrução”.

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Em conclusão, colhida a prova testemunhal e ultrapassada a fase do


antigo art. 499, em face da nova lei, as partes deverão apresentar memoriais,
cujo prazo é de 05 (cinco) dias23.
Em todas essas situações, já consolidada a instrução criminal, na
vigência da lei anterior, e apresentadas as alegações finais, parece evidente
que não tem aplicação o princípio da identidade física, se não foi o juiz da
sentença que presidiu a instrução.
Como, em face da lei nova, só pode julgar a causa “o juiz que presidiu
a instrução” (art. 399, § 1º, do CPP), a solução de que o juiz deve proferir
sentença, independente de ter colhido a prova testemunhal, fatalmente, será
objeto de controvérsia, a ser solucionada pelos tribunais.
Por derradeiro, o novo processo penal irá exigir um melhor preparo
intelectual dos operadores do direito, por se tratar de um processo oral e
concentrado, com toda a prova produzida numa única audiência, seguindo-
se os debates orais e o julgamento da causa.
A reforma só atingirá o seu objetivo de um julgamento mais rápido da
causa penal, desde que haja uma modificação substancial na estrutura de
nossa justiça criminal, cuja pauta de audiências é hoje incompatível com a
celeridade dos julgamentos, pela excessiva carga de trabalho.

23 Na vigência da lei anterior, em causas criminais complexas, com vários codenunciados, era
comum ampliar-se o prazo de 03 (três) dias para apresentação de alegações finais.

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A RESPONSABILIDADE PENAL DAS
PESSOAS JURÍDICAS COMO
CONSEQUÊNCIA DA TUTELA
PENAL AMBIENTAL: CONSIDERAÇÕES
À LUZ DO ORDENAMENTO ESPANHOL
B RUNO T ANUS J OB E M EIRA *

Resumo: A atividade industrial, desde as suas origens, sempre


projetou uma série de efeitos adversos contra uma importante
categoria de bens jurídicos, figurando como um dos principais
deles o próprio meio ambiente. Neste sentido, o aparato
jurídico-penal vem sendo utilizado frequentemente em diversos
países como instrumento para a contenção de tais efeitos, fato
que gerou uma série de discussões técnicas especialmente com
relação aos prováveis sujeitos ativos de tal classe delitiva, ou
seja, as pessoas jurídicas. Desta forma, partindo de
considerações legislativas, dogmáticas e processuais, será
realizada uma análise sistemática de como tal problemática se
refletiu no ordenamento jurídico espanhol, identificando e
confrontando as diversas incongruências jurídicas suscitadas
por tal questão.

Palavras – chave: Meio ambiente – Indústria – Direito Penal


espanhol – Delinquência econômica – Responsabilidade penal
das pessoas jurídicas.

I – I NTRODUÇÃO
O desenvolvimento do mercado globalizado, bem como a inovadora e
complexa concepção estrutural da indústria contemporânea ocasionaram
significativas transformações tanto em âmbito econômico, quanto jurídico.
Neste sentido, o próprio Direito Penal, instrumento de tutela
repressiva por excelência, de igual modo, vem recebendo tais reflexos,

* Doutorando em Direito Penal e Política Criminal (Universidade de Salamanca – Espanha).


Doutorando em Direito Comparado (Universidade de Trento – Itália). Advogado.

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sobretudo, quando se trata da questão referente à tutela ambiental. Esta, por


sua vez, vem desenvolvendo problemáticas de grande consideração, sendo
a principal delas a admissão de uma possível responsabilidade penal das
pessoas jurídicas.
Assim, seguirá o presente artigo com o principal escopo de ilustrar de
que forma tal enredo é tratado pelo ordenamento jurídico espanhol. Para
tal, preliminarmente será perpetrado um panorama sociológico-histórico da
relação entre o risco advindo da atividade empresarial e a conseguinte
proteção normativa do meio ambiente, efetuando-se, também, as relativas
referências acerca dos entes coletivos como principais objetos de tais
regulamentações.
Partindo de tal base estrutural, se realizará um estudo referente às
subsequentes problemáticas geradas pelas iniciais tentativas de inserção das
pessoas jurídicas no universo jurídico penal. Desta forma, também serão
materializadas as específicas características que demandam tal tema com
relação ao Direito Penal espanhol, abordando, para tal, temas como “as
atuações em lugar de outro” e suas respectivas derivações teóricas.
Ulteriormente, se realizará uma especial observação sobre o artigo 129
do Código Penal espanhol, ou seja, a aplicação das “consequências
acessórias” às pessoas jurídicas, no sentido de elucidar sua natureza
jurídica, bem como de ilustrar sua respectiva utilização pela tutela penal
ambiental, acrescentando à problemática a especial aplicação prática de tal
artigo em sede de “medida cautelar”.
Por último, serão também estudadas as respectivas questões de
âmbito processual relativas ao tema, ou seja, as dificuldades técnicas que
reclamariam um eventual modelo de responsabilidade penal da pessoa
jurídica, isto é, a necessária adequação de princípios, capacidade processual,
delimitação da relativa competência, dentre outros.

II – A I NTRÍNSECA R ELAÇÃO E NTRE A T UTELA P ENAL


A MBIENTAL E AS B ASES DA P ROBLEMÁTICA DA
R ESPONSABILIDADE P ENAL DAS P ESSOAS J URÍDICAS

1 – Os Efeitos do Desenvolvimento da Industrialização e a


Consequente Proteção Ambiental
Partindo de uma breve exposição sobre o contexto histórico do tema,
os incrementos ocorridos por meio da Revolução Industrial, à parte do
grande desenvolvimento econômico oferecido à época, também se

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manifestaram negativamente principalmente com relação às consequências


impactantes ao meio ambiente.
Preliminarmente, após as perspectivas fundamentais do Absolutismo,
época materializada pelas arbitrariedades e pela opressão, se constatou a
crescente busca pela liberdade e pelo reconhecimento dos direitos
individuais. Por outro lado, a partir da Revolução Industrial, bem como das
Primeira e Segunda Guerras Mundiais, em decorrência das amplas
desigualdades geradas, foram expandidos tais interesses também com
relação aos direitos sociais e coletivos, transformando toda a perspectiva de
valoração social com relação aos bens de interesse difuso. Tal variação,
primeiramente ocorreu com relação ao reconhecimento do direito à paz, ao
desenvolvimento, ao patrimônio da humanidade e à comunicação1, bem
como ulteriormente foi estendida com relação ao próprio meio ambiente.
Neste sentido, é importante ressaltar que a partir da Revolução
Industrial também se desenvolveram, em grande escala, diversas
necessidades econômico-sociais, sendo o progresso tecnológico utilizado
com o escopo de otimizar a satisfação de tais deficiências, implicando, de
igual modo, em consequentes efeitos negativos.
Tal arquitetura histórico-econômica, sociologicamente denominada
de forma pioneira por BECK como “sociedade do risco”2, caracterizava a
natural ampliação do catálogo de riscos existentes no meio social,
fundamento teórico que baseia grande parte da ingerência jurídica com
relação ao tema aqui tratado.
De acordo com tal premissa, a indústria se manifestaria no mundo
contemporâneo como uma significativa fonte geradora de potenciais riscos
para bens jurídicos de relevante importância. Desta forma, tal temeridade
poderia ser identificada desde o início do processo produtivo, considerando
a qualidade dos bens produzidos, bem como com relação aos respectivos
resíduos vertidos3. Assim, principalmente este último reveste-se de grande
relevância em âmbito jurídico, tendo em vista que a contaminação

1 RAPASSI MASCARENHAS PRADO, A. Projeto de lei dos crimes contra o meio ambiente: previsão da
responsabilidade penal das pessoas jurídicas. In: Revista dos mestrandos em direito econômico da
UFBA. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, nº 05, janeiro 1996/dezembro 1997. p. 278.
2 Veja-se mais amplamente em BECK, U. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Traduzido

por Jorge Navarro, Daniel Jiménez y Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 2001. p. 25 e ss.
3 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. La cuestión de la responsabilidad penal de las personas jurídicas. Un punto

y seguido. In: Revista de Derecho de la Universidad Católica del Norte. Coquimbo: Universidad
Católica del Norte, ano 11, nº 02, 2004. p. 156.

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industrial figura praticamente como a conduta central do sistema de tutela


ambiental.
Portanto, os crescentes aumentos da atividade industrial,
acompanhado das inovadoras técnicas de produção, resultaram em um
efetivo incremento das atuações degradantes, surgindo, a partir de então,
diversos marcos normativos que tinham como principal objeto a proteção
jurídica do meio ambiente.
Com o passar dos tempos, a atuação da Pública Administração em tal
tipo de tutela foi limitando-se no sentido de que os resultados da atividade
de inspeção, bem como unicamente os efeitos de uma sanção administrativa
não eram mais percebidos como suficientes para tutelar o meio ambiente
com a devida eficiência4. Surge, então, a suposta necessidade de uma
ulterior e mais enérgica modalidade repressiva para tutelar tal bem
jurídico5, ou seja, o advento do Direito Penal ambiental.
No caso espanhol, tal experiência se materializou por meio da
elaboração do delito em matéria ambiental que se incorporou ao
ordenamento jurídico por ocasião da urgente reforma realizada em 1983.
Nesta oportunidade, se introduziu no respectivo C.P. o artigo 347 bis, sendo
que, posteriormente à reforma de 1995, por meio da Lei Orgânica 10/1995
de 23 de novembro, a matéria penal ambiental se dilatou ocupando, por
fim, o Capítulo III do Título XVI do respectivo C.P. de 1995.
Partindo do novo texto legislativo responsável por tutelar o meio
ambiente utilizando energicamente o aparato jurídico-penal, iniciaram-se
também diversas problemáticas intrinsecamente relacionadas, sobretudo,
com o possível sujeito ativo de tal classe delitiva, já que, em grande parcela

4 TERRADILLOS BASOCO, J. Delitos relativos a la protección del patrimonio. In: TERRADILLOS BASOCO,
J. (Ed.). Derecho penal del medio ambiente. Madrid: Trotta, 1997. p. 42.
5 Como exemplo da experiência europeia, nos “Países Baixos”, especificamente em 1989, o meio

ambiente se tornou um dos principais objetos de atenção já que com a publicação do “Informe do
Instituto Nacional de Saúde Pública e Meio Ambiente” se constatou um panorama desastroso do
entorno meio-ambiental advindo da grande industrialização e da alta densidade demográfica.
Tais motivos imediatamente fizeram com que o Poder Público reagisse por meio da elaboração de
um “Plano Nacional de Medidas Meio-Ambientais”, que tinha como objeto central uma dinâmica
regulamentação baseada na ideia do desenvolvimento sustentável, fundamento que ulteriormente
também refletiu de maneira significativa para a elaboração da legislação penal de tutela ao meio
ambiente (WALING, C. La criminalidad medio-ambiental en el ámbito del derecho penal general.
La responsabilidad de las personas jurídicas y sus representantes: La necesidad de definir límites.
In: Cuadernos de Política Criminal. Madrid: Edersa, nº 62, 1997. p. 551).

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dos casos, reside a conseguinte responsabilidade penal relacionada com


uma pessoa jurídica.
Neste sentido, a delinquência meio ambiental carrega consigo
especiais particularidades diretamente relacionadas com os entes coletivos,
ou seja, o alto poder econômico que detêm seus autores, o caráter não
sempre “identificável” e “quantificável” dos interesses afetados, bem como
o alto custo dos meios de prevenção6, pontos que dificultam o tratamento da
questão com base nos tradicionais alicerces do Direito Penal.
Assim, confirmada a premissa de que “o marco natural de
intervenção do Direito Ambiental é a empresa industrial”7, surge como
consequência direta da criminalidade meio ambiental a polêmica questão
da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, já que, na maioria dos
casos, o sistema tutelador designado não é adequadamente projetado aos
entes coletivos.

2 – Os Reflexos da Tutela Penal Ambiental e as Bases da


Problemática da Responsabilidade Penal das Pessoas
Jurídicas
Como antes visto, a economia contemporânea baseada nas indústrias,
bem como o aumento do fator concorrência, realidades incontestáveis no
mundo empresarial, fizeram com que as formas de produção obtivessem
uma perspectiva extremamente funcional, apontadas para o aumento da
quantidade e qualidade dos produtos.
De fato, a proliferação de tais atividades ocasionou, à parte do
desenvolvimento econômico, um grande número de possibilidades de
infrações em âmbito meio-ambiental, como, por exemplo, o aumento de
resíduos tóxicos sem o devido tratamento e controle.
Assim, um dos reflexos mais consideráveis verificados com relação a
uma “Política Criminal do meio ambiente” é justamente a conseguinte
imputação de responsabilidade8, base em que se condensará toda a ulterior
problemática desenvolvida no presente artigo.

6 TERRADILLOS BASOCO, J.. Derecho penal de la empresa. Madrid: Trotta, 1995. p. 198.
7 TERRADILLOS BASOCO, J.. Derecho penal... cit. p. 199.
8 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L.. Política Criminal. Madrid: Colex, 2001. p. 261-262.

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Desta forma, “a criminalidade do bem-estar nos países pós-


industrializados”9 emerge sob a estrutura de condutas delitivas entendidas
como praticadas pela própria empresa10, sendo que, por consequência,
figuraria esta última como possível sujeito ativo no universo do Direito
Penal. Tal afirmação, que contradiria o tradicional e histórico princípio
“societas delinquere non potest”11, também ocasionaria, para sua
concretização prática, uma série de difíceis ou talvez impraticáveis
adequações técnico-jurídicas, fundamentos que formam a base do presente
estudo.

III – A T EORIA DA “A TUAÇÃO EM L UGAR DE O UTRO ” E A


I NSERÇÃO DAS P ESSOAS J URÍDICAS NO U NIVERSO
J URÍDICO -P ENAL E SPANHOL

1 – Considerações Introdutórias e Hermenêutica do


Preceito
As chamadas “atuações em nome de outro” ou “atuações em lugar de
outro” foram inseridas no ordenamento jurídico espanhol pelo legislador de
1995 por meio do artigo 31 no atual C.P., seguindo, assim, a linha de
reforma urgente do antigo diploma repressor de 1983, onde tal preceito
estava regulado através do artigo 15 bis.
Assim, leva atualmente o artigo 31 a seguinte redação:
“Art. 31.
1. O que atue como administrador de fato ou de direito de uma
pessoa jurídica, ou em nome ou representação legal ou voluntária

9 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un Modelo de Imputación de Responsabilidad Penal a las Personas
Jurídicas. 2ª ed. Navarra: Aranzadi, 2003. p. 85.
10 Denota-se importante destacar a divisão teórica realizada por SCHÜNEMANN diferenciando

claramente em terreno penal, Unternehmenskriminaliät e Betriebskriminalität. Respectivamente, tais


expressões significariam a “criminalidade de empresa” e “criminalidade na empresa”. Por meio
desta última, se pretende aludir os delitos que praticados pelos empregados de una empresa
contra o próprio estabelecimento empresarial ou contra outros empregados do mesmo, os quais
podem ser resolvidos perfeitamente e sem maiores problemas por meio das regras dogmáticas
gerais destinadas aos delitos clássicos. Por outro lado, na “criminalidade de empresa” se
vislumbram características dogmáticas, político-criminais e criminológicas mais específicas,
distintas das tradicionais, subsistindo, principalmente, grandes dificuldades técnicas no momento
de esclarecer a problemática da sua respectiva autoria (SCHÜNEMANN, B. Cuestiones básicas de
dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. In: Anuario
de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid, t. XLI, fasc. II, maio-agosto/1988. p. 529-530).
11 NÚÑEZ CASTAÑO, E. Responsabilidad Penal en la Empresa. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000. p. 28-29.

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de outro, responderá pessoalmente, ainda que não concorram nele


as condições, qualidades ou relações que a correspondente figura
de delito ou falta requeira para poder ser sujeito ativo do mesmo,
se tais circunstâncias se dão em qualidade ou pessoa em cujo nome
ou representação obre.
2. Nestes casos, se se impusesse em sentença uma pena de
multa ao autor do delito, será responsável pelo pagamento da
mesma de maneira direta e solidária a pessoa jurídica em cujo
nome ou por cuja conta atuou”.
Tal preceito se resume, em linhas gerais, no objetivo de regular a
responsabilidade penal das pessoas físicas partindo das ações realizadas por
estas tanto em nome de uma pessoa jurídica, quanto em representação legal
ou voluntária de outra pessoa física distinta12, ambicionando, em primeiro
plano, evitar a impunidade das condutas delitivas realizadas no universo de
um ente coletivo.
Neste sentido, pretende também tal artigo, por meio da respectiva
dilatação da responsabilidade penal ao representante do ente moral,
preencher uma possível lacuna que pudesse existir quando este não detenha
os requisitos específicos que reclamam determinados tipos penais especiais,
subsistindo tais exigências na implicada pessoa jurídica13.
A própria redação do apartado segundo do artigo 31, também logrou
gerar diversas problemáticas doutrinais, já que a partir da sua interpretação
se presumiria a legitimação de um ente coletivo como possível sujeito ativo
de um tipo penal.
Entretanto, resta claro que tal dispositivo refere-se como autor do
delito aqueles preceituados pelo apartado primeiro de tal artigo 31, já que
efetivamente a estes que se impõe, por meio de sentença, a pena de multa.
Com relação à pessoa jurídica, tal preceito somente refere-se às modalidades
de responsabilidade solidária e responsabilidade direta em âmbito de
responsabilidade civil derivada do delito, afastando, portanto, qualquer
possibilidade de consideração de um ente coletivo como sujeito apto para
receber uma imposição de pena14.

12 SÁNCHEZ DOMINGO, M. B. Las actuaciones en nombre de otro en derecho penal. Burgos: Servicio de
Publicaciones de la Universidad de Burgos, 2002. p. 64.
13 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 183.
14 MIR PUIG, S. Derecho penal. Parte General. 7ª ed. 2ª reimp. Barcelona: Reppertor, 2005. p. 200-201.

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2 – As Bases Jurídico-Estruturais do Artigo 31 do C.P.


Espanhol

2.1 Teoria da “representação para o cumprimento de um


dever que incumbe a outro”
Segundo tal teoria, a atuação em nome de outro se fundamentaria na
assunção da consecução dos “deveres extrapenais preexistentes” por
determinado sujeito que, não havendo a obrigação de agir, tenha atuado em
lugar do agente que preliminarmente teria tal responsabilidade, restando a
tipicidade para tais casos fundamentada na infração de um dever
acessório15.
Tal concepção, entretanto, reserva a característica de basear-se sempre
em uma relação de representação entre o agente e o “concreto sujeito
qualificado”, derivando de tal fator duas importantes e perigosas
consequências, quais sejam, a inserção do instituto técnico-jurídico da
representação na esfera do Direito Penal, bem como a necessidade da
formalização de tal estrutura jurídica na “relação interna” entre o sujeito
que figura como representante e o respectivo representado16.
Desta forma, se exigiria do agente que atuasse sob tais moldes que o
fizesse obrigatoriamente representando a outro sujeito que,
consequentemente, teria que possuir os elementos de autoria que lhes falta
ao agente no caso concreto17. Tais requisitos assim vislumbrados careceriam
de concretos elementos que comprovassem dito nexo, resultando em um
instituto de insuficiente segurança jurídica para a adequada ingerência da
tutela penal.

2.2 A responsabilidade por omissão no universo dos entes


coletivos
Diversos ordenamentos jurídicos possuem expressamente nos seus
respectivos textos legislativos um modelo de infração do dever derivado da
condição de garante dos titulares de uma empresa no caso da prática
advinda de qualquer de seus empregados.

15 GRACIA MARTÍN, L. El actuar en lugar de otro en derecho penal. Teoría general. Tomo I. Zaragoza:
Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Zaragoza, 1985. p. 320-321.
16 GRACIA MARTIN, L. El actuar...cit. p. 327.
17 GRACIA MARTIN, L. El actuar...cit. p. 327.

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Neste sentido, tal modelo se materializa no caso espanhol,


preliminarmente em âmbito administrativo por meio do artigo 130 da Lei nº
30, de 26 de novembro de 1992 (“Lei de infrações e sanções
administrativas”).
Em contrapartida, o atual C.P. espanhol não contempla na sua parte
geral nenhuma consideração de tal tipo, havendo somente a previsão da
“comissão por omissão” preceituada pelo artigo 11.
Assim, tal instituto poderia ser aplicado, em síntese, a todos os delitos
cometidos no universo dos entes coletivos desde que cumpridos
determinados requisitos, quais sejam, quando se verifique uma específica
obrigação legal ou contratual de intervir, bem como quando o omitente
tenha gerado, por meio de uma ação ou omissão precedente, uma
determinada situação de risco para o respectivo bem jurídico tutelado.
Vislumbrando a aplicação de tal preceito técnico no caso concreto,
resta importante valorar objetivamente a produção ou aumento do perigo
atribuível ao seu respectivo autor no momento anterior ao fato, bem como
mensurar o próprio conceito de perigo, que deve determinar um nexo
pessoal entre o bem jurídico protegido e seu respectivo causador no
momento do evento.
Desta forma, resta ainda importante assinalar que sobre tal
dependência pessoal deve o respectivo bem jurídico tutelado, ao qual
recairia o respectivo perigo, estar sob o “efetivo controle pessoal” do
omitente, não bastando uma genérica “possibilidade de salvação” como
fator caracterizante de tal instituto18.
Como antes dito, o C.P. espanhol não contempla na sua parte geral
nenhuma consideração expressa que contenha um modelo de infração do
dever advindo da posição de garante dos titulares de uma empresa.
Entretanto, tal diploma repressor reconhece, por meio do artigo 318, um
caso expresso de “responsabilidade por omissão” com relação aos entes
coletivos, mais especificamente referente aos delitos contra os
trabalhadores, no qual se sancionam os diretivos e responsáveis da
respectiva empresa, bem como qualquer pessoa que tivesse conhecimento
da respectiva prática delitiva.
Neste sentido, se tem interpretado que tal caso se trataria de uma
regra especial referente ao preceito de “atuar em nome de outro”, ou seja, se

18 MIR PUIG, S. Derecho penal... cit. p. 319.

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contemplaria em tal artigo uma conduta omissiva imprópria que ampliaria


de maneira excessiva a eventual responsabilidade criminal19, situação
tecnicamente inadmissível no universo do Direito Penal garantista.
Assim, de acordo com os fins político-criminais que perseguiriam a
responsabilidade do titular da pessoa jurídica, estes se fundamentariam em
instar aos gerentes, diretores e demais responsáveis pela empresa todas as
possíveis e exigíveis formas de cuidado com o objeto final de evitar a
comissão de delitos ou contravenções por seus próprios subordinados20.
Desta forma, tal estrutura resultaria juridicamente inadequada
vislumbrando-se a arquitetura organizacional da empresa contemporânea,
onde a tomada de decisões se opera de forma extremamente difusa e
vinculada, como será adiante pormenorizado.

2.3 Os inconvenientes dos modelos de responsabilidade


individual
Ante todo exposto, resta claro que a responsabilidade individual, nos
casos em que se vislumbra uma possível conduta advinda da própria
pessoa jurídica, subsiste de diversos pontos de inconformidade
principalmente em relação às garantias técnico-dogmáticas mínimas
exigíveis para uma adequada ingerência da tutela penal.
Neste sentido, partindo de embasamento para a imposição de
responsabilidade, o modelo de “imputação para baixo”, preceituado no
artigo 14 do C.P. espanhol, parte dos sujeitos que se encontram na base da
pirâmide estrutural da empresa, sendo que estes, grande parte das vezes,
somente executam ordens ditadas pelos seus superiores21.
Por outro lado, o modelo de “imputação da responsabilidade do
titular da empresa por infração do dever de garante”22 utiliza tal

19 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 187.


20 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 188.
21 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 193.
22 Com relação à cláusula de “atuar em lugar de outro” referente aos casos que envolvem as pessoas

jurídicas, esta se aplica àqueles que cumprem atividades de administração, sendo seus respectivos
destinatários os sujeitos extranei que atuem como diretores, administradores, ou titulares da
gestão empresarial. Entretanto, diversamente sucede no caso dos subordinados que, apesar de
serem os responsáveis efetivamente pela execução material dos supostos fatos antijurídicos não
executam atividades de administração, fazendo com que estes dificilmente respondam a título de
autor. Desta forma, resta importante mencionar que a possibilidade de sancionar um extraneus
como autor utilizando os pressupostos do artigo 31 do C.P. espanhol exclui os sujeitos que não
realizam atividades de administração, ou melhor, que não detém o domínio social. (MEINI, I.

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responsabilidade como base técnico-jurídica para a consecutiva


individualização de culpabilidade, fato que, devido à respectiva
distribuição e transferência de competências existente nos conglomerados
empresariais atuais, como se demonstrará adiante, torna praticamente
inviável a concreta identificação, bem como a consequente delimitação de
culpabilidade.
Neste sentido, o tratamento penal fundamentado na individualização
de responsabilidades desconhece a natureza de tais características, ou seja, o
conjunto com partes interconectadas com o escopo de um fim específico
utilizado atualmente na esfera empresarial. Desta maneira, tal situação
torna o ente coletivo uma entidade independente de seus membros, na qual
a conduta deste advinda poderia ser entendida como um “comportamento
organizacional” que, de acordo com os modelos de imputação existentes,
desenhados a partir de um injusto e uma culpabilidade designados sob os
paradigmas de uma “pessoa física dotada de vontade”23, não pode ser
tratado jurídico-penalmente.

IV – F UNDAMENTAIS P ROBLEMAS R EFERENTES A U MA


P OSSÍVEL R ESPONSABILIDADE P ENAL DAS P ESSOAS
J URÍDICAS

1 – Questões Inerentes à Contemporânea Estrutura


Organizacional Empresarial
Com efeito, importante parcela da problemática sobre a
responsabilidade penal das pessoas jurídicas também reside na própria
estrutura organizacional dos modernos conglomerados empresariais.
Neste sentido, a eventual comissão de um delito em âmbito
empresarial sopesa uma diversa gama de fatores intrínsecos à própria
arquitetura da empresa contemporânea, o que invariavelmente faz diluir-se
a respectiva responsabilidade no respectivo emaranhado sistema
organizacional.
Em síntese, por meio de um estudo pormenorizado da conduta que
pode advir das atuais organizações do tipo empresarial, conclui-se que,
devido à complexidade do modo de produção industrial e de

Responsabilidad penal del empresario por los hechos cometidos por sus subordinados. Valencia: Tirant lo
blanch, 2003. p. 532-533).
23 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 192-193.

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comercialização dos produtos, à divisão do trabalho característica de tal tipo


de setor, à distribuição e à delegação de funções (do tipo horizontal ou
vertical), à existência do dever de obediência, bem como devido ao
princípio de confiança recíproca que é operado geralmente para otimizar o
funcionamento da cadeia organizacional, resultam extremamente
fragmentadas tanto as respectivas decisões, quanto os ulteriores atos
executivos24.
Tal complexidade, em síntese, tem como característica principal a
divisão das funções em decorrência dos próprios fins que perseguem as
modernas corporações, onde se pode verificar, primordialmente em escala
organizacional horizontal de divisão de tarefas o dever de obediência dos
subordinados perante os seus superiores, a parte da existência de
subsistemas para a tomada de decisões dentro do próprio universo
empresarial.
Assim, a relação entre seus membros, o sistema de delegação de
funções, bem como a complexidade do respectivo modo de produção
industrial constituem um conglomerado básico de fatores necessário para a
atividade empresarial contemporânea, sendo que, por outro lado, também
contribuem negativamente na ulterior identificação de responsabilidades
individuais25.
Desta forma, a doutrina moderna conclui que as empresas
contemporâneas, da forma em que se encontram atualmente configuradas,
consideram a conduta do indivíduo não como um comportamento deste em
relação ao grupo, mas sim como um próprio “comportamento
organizacional”26, composto por um intercâmbio recíproco entre todas as
partes (conduta dos indivíduos) para formar um todo (conduta da
empresa).

2 – Principais Inadequações Técnico-Jurídicas


Realizada uma breve análise do espectro empresarial moderno,
preliminarmente ao ato de inserir um ente coletivo como possível sujeito
ativo no universo do Direito Penal resulta necessário sopesar todas as
implicações técnicas que exige tal labor.

24 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 192-193.


25 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 167-172.
26 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 170.

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Preliminarmente, por questões de política-criminal, a doutrina


clássica sempre teve como tendência o assentimento ao princípio “societas
deliquere potest”. Neste sentido, se vem negando a simples punição das
pessoas jurídicas por via penal com a pretensão de sanar somente as
respectivas necessidades de prevenção geral27, fundamento que, como será
adiante demonstrado, continua acobertado de razão.
Em linhas gerais, os problemas técnico-dogmáticos que se apresentam
para o tema de uma possível responsabilidade “penal” de um ente coletivo
residiriam principalmente em relação à capacidade de ação de uma
empresa, à determinação da sua respectiva culpabilidade, bem como à
consequente imposição de pena.
Neste sentido, seguirá o presente estudo com a elucidação de tais
pontos controvertidos, concretizando, assim, a base teórica que terá grande
valia para a ulterior conclusão sobre a real possibilidade ou não de punir
criminalmente um ente moral.

2.1 Capacidade de Ação


A capacidade de ação de uma pessoa jurídica pode ser vislumbrada
em diversos prismas. Em primeiro plano, sempre se pensou que a realização
de determinado ato por um ente coletivo se consistiria em um reflexo direto
da vontade de seus representantes ou comandantes. Neste sentido, a
tradicional posição doutrinal reside no fato de que as pessoas jurídicas não
possuem capacidade de ação própria, ou seja, a estas se imputam
normativamente ações derivadas dos seus dirigentes, pessoas já não
jurídicas28.
Visualizando tal problemática com maior profundidade, uma conduta
produzida por um indivíduo que pertença a um órgão de uma pessoa
jurídica, de acordo com o limite da sua competência, poderia ser lesiva para
a própria empresa, sendo que tal conduta poderia ser constitutiva de um
delito cujo próprio ente coletivo figuraria como sujeito passivo. Sob diverso

27 RUSCONI, M. A. Persona jurídica y sistema penal: ¿Hacia un nuevo modelo de imputación? In:
RUSCONI, M. A. (Ed.). Cuestiones de imputación y responsabilidad en el Derecho Penal moderno:
principio de culpabilidad. Víctima e ilícito penal. Riesgo permitido. El comportamiento alternativo conforme
a Derecho. Responsabilidad de las personas jurídicas. In dubio pro reo. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997. p.
112.
28 RUSCONI, M. A. Persona jurídica y sistema penal... cit. p.114.

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prisma, tal conduta também pode ser constitutiva de um delito que em


nada prejudique a respectiva empresa, mas ao contrário, a beneficia29.
Entretanto, partindo da perspectiva de uma conduta propriamente
advinda de uma pessoa jurídica, emerge uma diversa problemática. Neste
sentido, deve-se ponderar preliminarmente se tal comportamento poderia
ou não ser considerado como uma conduta jurídico-penal.
Assim, parte da doutrina espanhola justifica uma possível capacidade
de ação das pessoas jurídicas por meio de um nexo entre a realização ou o
respectivo impedimento de um ato e a consequente produção de um
resultado. Desta forma, se consideraria como o conceito de ação a evitação
individual da produção de um possível resultado, hipótese em que o
respectivo autor, se tivesse uma forte justificativa para impedir um
determinado ato assim o faria, procedendo, sob tal ótica, viável a
possibilidade de uma ação advir diretamente de um ente coletivo30.
Partindo de tal fundamento, se consideraria como fato penalmente
relevante o comportamento de sujeitos destinatários da norma penal, ou
seja, aos que alcançam o “mandato de valoração” e o “mandato de
determinação”31. De tal forma, se defende que não existiria qualquer
inconveniente em sustentar que os entes coletivos poderiam figurar como
sujeitos ativos aptos para praticar delitos ou mesmo capazes de executar
uma ação de caráter penal32.
Por outro lado, representando a doutrina clássica e garantista, MIR
PUIG é claro em defender que no Direito Penal “dentre todos os fatos do
mundo, só os comportamentos humanos podem constituir delitos”33. Tal
posicionamento entende, portanto, remanescerem atípicas as condutas
partidas dos demais entes jurídicos, subentendendo-se, dentre tais, as
advindas das pessoas jurídicas.
Ademais, quando se realiza uma valoração dos elementos subjetivos
de uma ação e adaptando tal conceito à teoria finalista, atualmente vigente
como orientadora na maioria dos ordenamentos jurídico-penais, somente o

29 GRACIA MARTÍN, L. Responsabilidad Penal de las empresas. In: MIR PUIG, S.; LUZÓN PEÑA, D. M.
(Coords.). Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el producto.
Barcelona: J. M. Bosh Editor, 1996. p. 42.
30 GONZÁLEZ GONZÁLEZ, E. Universitas delinquere potest. In: Anales de la Facultad de Derecho de la

Universidad de la Laguna. La Laguna, 1991. p. 43.


31 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 230.
32 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 230.
33 MIR PUIG, S. Derecho penal... cit. p. 181.

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ser humano pode dirigi-la a uma finalidade perseguida, diferenciando-se,


assim, do restante dos processos naturais que operam de modo
inconsciente34.
Assim, a capacidade de ação das pessoas jurídicas seria viável como
base de responsabilização (de uma forma especial, mas não penal) destas
mesmas, já que estas assumiriam o caráter de autoras de determinada
conduta. Entretanto, resta ainda de difícil aceitação a ingerência penal para
tal tratamento.

2.2 Culpabilidade
Sob o título de “princípio de culpabilidade” podem incluir-se
distintos níveis de limite do ius puniendi estatal. Desta forma, tal preceito
seria caracterizado pela delimitação da responsabilidade como pressuposto
para a imposição de uma sanção penal de acordo com os eventos que de
fato a legitimam35.
Neste sentido, a atuação do Direito Penal deve possuir sempre claras
delimitações, devendo atuar somente nos casos em que se pode mensurar,
de forma clara e adequada, a medida da respectiva culpabilidade,
viabilizando, assim, a ulterior imposição de uma sanção penal. Desta forma,
a doutrina espanhola se divide e busca adotar, por meio de diversas teorias,
a justificação para uma possível adequação de um princípio de
culpabilidade moldado à imputação de responsabilidade penal dos entes
coletivos.
Partindo de tal pressuposto e com base em um instituto de origem
alemã, como primeira solução se proporia que, com relação à reprovação
social em que se assentaria a responsabilidade das pessoas jurídicas
figuraria a “culpabilidade de organização” (Organizationsverschulden). Sob
tal preceito, a pessoa ideal responderia pelos fatos realizados pelos
indivíduos com base na inobservância das medidas de cuidado necessárias
para garantir uma correta e legítima atividade empresarial36.
Assim, com relação à imputação do “injusto organizacional”, ou seja,
a título de dolo ou culpa, esta se fundaria no merecimento e necessidade da
imposição de uma sanção penal como consequência de uma determinada

34 MIR PUIG, S. Derecho penal... cit. p. 185.


35 MIR PUIG, S. Derecho penal... cit. p. 132.
36 GONZÁLEZ GONZÁLEZ, E. Universitas delinquere... cit.. p. 44 apud ZAPATERO, A.; TIEDMANN, K.

Estudios de derecho penal económico. Ediciones de la Universidad de Castilla la Mancha, 1994.

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atuação evitável pela qual se resultaram atos lesivos ao bem jurídico


tutelado (dolo) ou o desconhecimento evitável da periculosidade da ação
realizada (culpa)37. Tais elementos seriam de grande valia para um Direito
Sancionador “especial” voltado aos entes coletivos, entretanto, adquirem
certa fragilidade quando são vislumbrados sob o prisma jurídico-penal.
Partindo desta premissa, se subentende que o centro das tomadas de
decisão nas empresas ou outras entidades que possuem sua estrutura
hierarquizada se concentraria, principalmente, nos titulares de cargos
gerenciais ou diretivos, cuja respectiva atuação imprudente com relação a
suas “tarefas de vigilância e controle” resultaria entendida como a
confirmação de responsabilidade.
Tal vulneração de dever de cautela, entretanto, não se acobertaria de
garantias suficientes para fundar uma consequente responsabilidade penal
individual, mas sim poderia ser considerada como a expressão de um
“defeito de organização” em relação ao não-cumprimento doloso ou
imprudente dos que possuem o concernente poder de disposição38.
Em síntese, tais elementos seriam de grande valia para um Direito
Sancionador “especial” voltado aos entes coletivos, entretanto, adquirem
certa fragilidade quando são vislumbrados sob o prisma jurídico-penal.
Outra teoria para a comprovação de uma possível culpabilidade dos
entes coletivos se fundamenta no “princípio do interesse público
preponderante”, proposição que não foi de total aceitação pela doutrina
tendo em consideração que tal princípio vulneraria a garantia do Estado de
Direito que oferece o conceito de culpabilidade frente a castigos
inadequados39. Desta forma, restaria a imputação de sanções penais sem a
respectiva culpabilidade um desnaturalizador do próprio Direito Penal, já
que este se converteria em um mero “Direito de Responsabilidade”40.
Neste sentido, a desenfreada tentativa de buscar um modelo teórico
para fundamentar uma possível culpabilidade dos entes coletivos em
âmbito penal definitivamente não subsiste como uma evolução doutrinal,
mas sim em um grande retrocesso. Assim, como será adiante

37 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 241.


38 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Bases para un... cit. p. 241-242.
39 RUSCONI, M. A. Persona jurídica y sistema penal... cit. p. 119-120.
40 RUSCONI, M. A. apud HIRSCH, H. J. La cuestión de la responsabilidad penal de las asociaciones de

personas. Traduzido por Patricia S. Ziffer, do original em alemão Die Frage der Straffähigkeit von
Personenverbänden. p. 1109.

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pormenorizado, tal presunção também refletirá seus efeitos negativos na


ulterior imputação da pena, no sentido de que se tenderia a afetar
indistintamente e indiscriminadamente tanto os sujeitos que queriam,
quanto àqueles que não almejavam a comissão da eventual ação delitiva41,
circunstância que jamais pode ser vislumbrada quando se tratam de sanções
aplicadas pelo Direito Penal.

2.3 A imputação pessoal da pena


A imputação pessoal da pena figura na problemática da
responsabilidade dos entes coletivos, à parte de todas as demais
características apresentadas, como um dos argumentos mais utilizados pela
doutrina especializada para a manutenção do tradicional princípio “societas
delinquere non potest”.
Preliminarmente, partindo de uma ótica superficial sobre o tema,
claro está que a pena representa uma forma de expressão da desaprovação
ético-social de determinado fato pela sociedade. Desta forma, tal ferramenta
somente seria aplicável às pessoas físicas, já que, em síntese, teria como
principal escopo o tratamento do delinquente. Tal argumento seria
reforçado pelo fato de que a aplicação de uma pena privativa de liberdade
também restaria totalmente inadaptável a uma pessoa jurídica42.
Sobre uma possível incongruência terminológica, parte da doutrina
espanhola entende que o adjetivo “pessoal” utilizado no próprio texto de
denominação do estudado princípio não excluiria a possibilidade de que o
responsável pela infração penal fosse uma pessoa jurídica43. Desta forma,
seria inaugurada uma ulterior discussão concernente aos respectivos
requisitos intrínsecos que comporiam tal enunciado.
Neste sentido, a problemática da imputação de pena às pessoas
jurídicas foi apresentada de forma pioneira por KARL ENGISCH em 1953, que
já se referia a uma possível violação do princípio de pessoalidade das penas.
Neste sentido, ao sancionar um ente coletivo se estaria da mesma forma

41 PRADEL, J. La responsabilidad penal de la persona jurídica. In: HURTADO POZO, J.; DEL ROSAL
BLASCO, B.; SIMONS VALLEJO, R. (Coords.). La responsabilidad criminal de las personas jurídicas: una
perspectiva comparada. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001. p. 135. apud ROUX, J. A. Rapport au Congrès
de l’Association Internationale de Droit Pénal (Bucarest, 1929). In: Revue internationale de droit
pénal, 1930. p. 69.
42 RUSCONI, M. A. Persona jurídica y sistema penal... cit. p. 123.
43 GONZÁLEZ GONZÁLEZ, E. Universitas delinquere... cit. p. 48.

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punindo pessoas físicas inocentes, ou seja, sócios que não tinham nenhuma
participação na comissão delitiva44.
Impugnando tais argumentos, parte da doutrina se manifestou no
sentido de que a imposição de uma formidável multa pela Pública
Administração, valendo-se de sua potestade sancionadora, poderia afetar,
de igual modo, a inumeráveis sócios inocentes e que possivelmente não
teriam nada a ver com o respectivo ilícito administrativo45. Entretanto, tal
suposição definitivamente não subsiste de razão, já que a atuação do Direito
Penal, como sistema repressor por excelência, sempre proporcionará a uma
pessoa física uma sanção com caráter lesivo maior que uma penalidade
administrativa, motivo pelo qual também o torna merecedor de tantos
princípios e delimitações para o seu uso prático.
Sob uma diversa perspectiva, ademais, se sustentou que a respectiva
pena imposta a um ente coletivo não recairia a um “sócio inocente”, mas
sim em um ente totalmente distinto e com personalidade jurídica
autônoma46. Tal argumento, do mesmo modo, não garante que na prática os
efeitos de uma possível condenação deixassem de afetar os eventuais não
delinquentes.
Assim, como até agora demonstrado e como será complementado
adiante, a dogmática penal atual, estrutura idealizada para a
responsabilidade de pessoa física, ou melhor, nas palavras de ZUGALDÍA
ESPINAR, “para o bípede implume”47, todavia carece definitivamente de
elementos ou mecanismos adequados para identificar concretamente as
bases para uma possível responsabilidade criminal de um ente coletivo.
Partindo de tal consideração, emerge no contexto jurídico um
particular paradoxo: ao mesmo tempo em que a própria doutrina reconhece
ser dificilmente compatível admitir a imposição de sanções penais aos entes
coletivos, de igual modo vislumbra como razoável prever determinadas
medidas que recaiam efetivamente sobre a responsabilidade das próprias
empresas. Tal suposição se justificaria tendo em vista que a estrutura
empresarial estaria sendo cada vez mais utilizada para a atividade delitiva,
demonstrando, assim, especial periculosidade48 no mundo contemporâneo.

44 RUSCONI, M. A. Persona jurídica y sistema penal... cit. p. 123.


45 GONZÁLEZ GONZÁLEZ, E. Universitas delinquere... cit. p. 48.
46 RUSCONI, M. A. Persona jurídica y sistema penal... cit. p. 123.
47 ZUGALDIA ESPINAR, J. M. Bases para una teoría de la imputación de la persona jurídica. In:

Cuadernos de Política Criminal. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, nº 81, 2003. p. 541.
48 MIR PUIG, S. Derecho penal... cit. p. 768.

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Neste sentido, tais fundamentos surtiram concretos reflexos legislativos no


caso espanhol, como será a partir das próximas linhas demonstrado.

3 – O Artigo 129 do C.P. Espanhol: As “Consequências


Acessórias”

3.1 Conceito e natureza jurídica


As denominadas “consequências acessórias” apresentam-se
preceituadas no artigo 129 do C.P. espanhol com a seguinte redação:
“Art. 129.
1. O Juiz ou Tribunal, nos casos previstos neste Código, e sem
prejuízo do estabelecido no artigo 31 do mesmo, prévia audiência
do Ministério Público e dos titulares ou dos seus representantes
legais, poderá impor, motivadamente, as seguintes consequências:
a) Clausura da empresa, seus locais ou estabelecimentos, com
caráter temporal ou definitivo. A clausura temporal não poderá
exceder de cinco anos.
b) Dissolução da sociedade, associação ou fundação.
c) Suspensão das atividades da sociedade, empresa, fundação
ou associação por um prazo que não poderá exceder de cinco anos.
d) Proibição de realizar no futuro atividades, operações
mercantis ou negócios da classe de aqueles cujo exercício se tenha
cometido, favorecido ou encoberto o delito. Esta proibição poderá
ter caráter temporal ou definitivo. Se tiver caráter temporal, o
prazo de proibição não poderá exceder de cinco anos.
2. A clausura temporal prevista no subapartado ‘a)’ e a
suspensão indicada no subapartado ‘c)’ do apartado anterior,
poderão ser acordadas pelo Juiz Instrutor também durante a
tramitação da causa.
3. As consequências acessórias previstas neste artigo estarão
orientadas a prevenir a continuidade na atividade delitiva e os
efeitos da mesma.”
Assim, tal artigo preceitua, ante a necessidade de prever dispositivos
“preventivos” com relação às pessoas jurídicas, um conjunto de medidas
que seguem muito discutidas pela doutrina com relação tanto à sua
natureza jurídica, quanto aos seus reais objetivos.

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Desta maneira, sob a denominação de “consequências acessórias”, tais


disposições não configurariam propriamente uma pena, nem uma espécie
de medida de segurança, tampouco formariam parte da responsabilidade
civil, mas sim seriam consideradas como uma nova categoria de “efeitos
predicáveis” à comissão de algumas formas delitivas49 em esfera
empresarial.
Em outras palavras, tais medidas aplicáveis às pessoas jurídicas não
teriam caráter sancionador, mas sim se considerariam como “medidas
preventivas de caráter asseguradoras” da sociedade diante do perigo da
utilização de uma pessoa jurídica ou de uma organização para a comissão
de atos delitivos praticados por pessoas físicas vinculadas a estas50.
Neste sentido, o item 03 do artigo 129 do C.P. espanhol sistematiza
expressamente que a utilização das consequências acessórias seria dirigida à
“prevenção da continuidade delitiva”, bem como dos efeitos gerados pela
mesma. Desta forma, uma vez iniciado o processo judicial e tendo em conta
a possibilidade efetiva de que a estrutura empresarial possa continuar
sendo utilizada para a prática delitiva, a articulação de tais medidas pelo
juiz confirmaria a ideia de que efetivamente tais medidas teriam como
escopo principal o de garantir que a respectiva pessoa jurídica fosse
preventivamente isolada51.
Tal efeito preventivo teria como objeto de proteção não somente o
amparo às vítimas diretas da atividade delitiva, mas também o resguardo
com relação a terceiros que, por alguma vinculação com a sociedade
empresarial, poderiam sofrer eventuais consequências diretas ou indiretas
da concernente prática delitiva52.
Partindo de tais argumentos, se afastaria do universo das
consequências acessórias o caráter de sanção penal destinada às pessoas
jurídicas o que em realidade, como será adiante demonstrado, não se
verifica quando se vislumbra o seu real alcance no caso concreto.
De acordo com tal premissa e tendo em conta a introdução das
consequências acessórias de maneira genérica no C.P. espanhol, a doutrina

49 GARCÍA VICENTE, F. et al. Responsabilidad civil, consecuencias accesorias y costas procesales. Extinción de
la responsabilidad criminal. Barcelona: Bosch, 1998. p. 349.
50 GRACIA MARTÍN, L.; BOLDOVA PASAMAR, M. A.; ALASTUEY DOBÓN, M. C. Lecciones de Consecuencias

Jurídicas del Delito. 3ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 512.


51 FUENTE HONRUBIA, F. Las consecuencias accesorias del artículo 129 del Código Penal. Valladolid: Lex

Nova, 2004. p. 100.


52 FUENTE HONRUBIA, F. Las consecuencias accesorias… cit. p. 102.

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se dividiu em duas vertentes com relação à legítima natureza jurídica de tais


medidas.
Neste sentido, enquanto uma parte sustenta que se trataria da própria
confirmação do princípio “societas delinquere non potest”, já que se estaria
sedimentando a impossibilidade de reconhecer tais medidas como penas
destinadas aos entes coletivos, a outra entende que tais medidas são
definitivamente uma forma de reconhecimento da responsabilidade penal
das pessoas jurídicas ou, pelo menos, o nascimento da mesma53.
Desta forma, tal último posicionamento denota-se como mais
plausível quando se vislumbra a concreta utilização prática de tais medidas.
Neste sentido, tal argumento é ainda reforçado partindo do pressuposto de
que atualmente tramita no Poder Legislativo espanhol o “Projeto de Lei nº
121/0001119”, de 15 de janeiro de 2007, que objetiva, a parte de outras
medidas de reforma do vigente C.P., reconhecer expressamente, por meio
do seu artigo 31 bis, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas,
transformando as atuais “consequências acessórias” no respectivo rol de
penas.

3.2 A utilização prática das consequências acessórias na


tutela penal ambiental
Como antes exposto, são diversos os tipos de consequências ou
medidas acessórias estipuladas por meio do artigo 129 do C.P. espanhol.
Desta forma, determinados tipos penais contêm inclusive uma especial
remissão que prescreve o tipo de medida a ser utilizada de acordo com os
respectivos casos.
Neste sentido, serve como exemplo em sede de tutela penal ambiental
o artigo 327 do C.P. espanhol, no qual se encontra uma expressa referência
às respectivas consequências acessórias que poderão ser estipuladas. Para
tal circunstância em específico, encontram-se prescritas a clausura da
empresa, dos seus locais ou estabelecimentos, bem como a própria
intervenção da pessoa jurídica para salvaguardar os direitos inerentes aos
trabalhadores ou respectivos credores.
Desta forma, de acordo com o estudo aqui proposto, se faz necessária
uma breve análise das referidas medidas estipuladas por tal tipo penal no

53 GUARDIOLA LAGO, Mª J. Responsabilidad penal de las personas jurídicas y alcance del art. 129 del Código
Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, colección los delitos, nº 56, 2004. p. 70-71.

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sentido de esclarecer a real natureza jurídica, bem como de demonstrar os


significativos reflexos de tais medidas no caso concreto.

3.2.1 A clausura da empresa, seus locais ou


estabelecimentos
Com relação à análise sistemática de tais medidas na legislação
espanhola, a clausura da empresa pode operar-se de maneira definitiva ou
temporal, sendo que, no caso desta última, limita-se como prazo máximo
cinco anos. Neste sentido, se interpreta por meio dos artigos em que se
menciona expressamente a imposição de tal consequência que o próprio
tribunal teria o arbítrio de eleger entre a adoção de uma ou outra
modalidade. De igual modo, mesmo que não se encontre expresso em texto
legal, se entende que a clausura definitiva somente seria utilizada para os
casos em que o ente coletivo tenha desenvolvido atividades ilícitas desde o
princípio da sua existência. Consequentemente, não seria tal modalidade
utilizada nos casos onde uma empresa tenha realizado eventual e pontual
infração penal54.
Categoricamente, o fechamento definitivo pode ser considerado como
a penalidade mais extrema que pode sofrer uma pessoa jurídica e, com isso,
recebeu da doutrina espanhola a qualificação de uma sanção equiparável à
pena de morte ou a cadeia perpétua55.
Da mesma forma, mesmo a clausura temporal de uma empresa, seja
por um largo ou exíguo período de tempo, pode considerar-se como uma
pena de nocivas dimensões, tendo em vista os incomensuráveis reflexos que
uma empresa pode sofrer em decorrência do seu afastamento do
contemporâneo e competitivo mercado globalizado.

3.2.2 A intervenção da empresa


Com especial caracterização, a intervenção da empresa considerada
como consequência acessória, ao contrário das demais, não esteve sempre
contemplada no rol de tais medidas aplicáveis às pessoas jurídicas.

54 BACIGALUPO, S. Responsabilidad penal de la empresa en los delitos contra la ordenación del


territorio y el medio ambiente. In: Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente. Madrid: RDU,
nº 195, julio – agosto, 2002. p. 189.
55 BACIGALUPO, S. Responsabilidad penal... cit. p. 189.

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Neste sentido, tal intervenção constava preliminarmente na “Proposta


de Ante-Projeto do Código Penal de 1983”, assim como no esboço do
Código Penal de 1990. Posteriormente, a sua previsão desapareceu no
“Ante-Projeto do Código Penal de 1992”, bem como no “Projeto do Código
Penal de 1992”, sendo resgatada, por último, no “Ante-Projeto do Código
Penal de 1994”56.
Desta forma, como antes dito, a possibilidade expressa de aplicação
da intervenção da empresa nos casos de delitos contra os recursos naturais e
meio ambiente vem atualmente preceituada no artigo 327, Capítulo III,
Título XVI do C.P. espanhol de 1995.
Tal medida prevê para sua adoção, além dos requisitos gerais, uma
finalidade em especial, diferente da estipulada com caráter geral no item 03
do artigo 129 do vigente diploma repressor espanhol. Neste sentido, tal
dispositivo seria somente imposto nos casos em que a sua finalidade fosse a
salvaguarda dos direitos dos trabalhadores, como já se contemplava na
“Proposta de Ante-Projeto do Código Penal de 1983” por meio do artigo
138.2, bem como nos projetos do Código Penal de 1994 e 1995.
Neste sentido, a aplicação de tal medida requer para sua
materialização no caso concreto a nomeação de um ou vários
administradores pela Autoridade Judicial, que também deve fixar os
respectivos limites de atuação57 com o escopo final de gerar uma estrutura
de gerenciamento e assistência para a realização das ulteriores atividades
administrativas.
Como última observação, importante que se faz ressaltar a
incongruência com relação à fundamentação de uma possível utilização da
intervenção da empresa. Neste sentido, esta surge em virtude do direito dos
respectivos credores, subsistindo seu conceito, portanto, dilatado de
maneira inovadora em decorrência da sua respectiva previsão na parte
destinada à tutela penal ambiental e não precisamente no Título XV do C.P.
espanhol, destinado especificamente aos direitos dos trabalhadores58.

56 BACIGALUPO, S. Responsabilidad penal... cit. p. 190.


57 BACIGALUPO, S. Responsabilidad penal... cit. p. 190.
58 BACIGALUPO, S. Responsabilidad penal... cit. p. 191.

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V – A S I NADEQUAÇÕES P ROCESSUAIS V ISLUMBRADAS NA


A PLICAÇÃO DAS “C ONSEQUÊNCIAS A CESSÓRIAS ”

1 – O Déficit de Garantias
Partindo do anteriormente explicado, resta evidente que a aplicação
das consequências acessórias são verdadeiras sanções penais destinadas às
empresas e que, ademais de tudo, carregam consigo inumeráveis
repercussões em âmbito processual penal.
Neste sentido, como o artigo 129 do C.P. espanhol não prevê que
sujeitos aos quais se destinam ditas medidas obtenham o status de parte no
processo penal, inaugura-se também toda uma série de vulnerações de
garantias judiciais diante de uma eventual condenação.
Desta maneira, a caracterização de verdadeiras sanções penais às
pessoas jurídicas camufladas como “consequências acessória” permite que o
processo penal, incluindo a atividade instrutora e probatória, siga dirigido
para a responsabilidade penal e civil direta de administradores, diretivos ou
empregados da sociedade, admitindo as pessoas jurídicas somente como
possíveis encarregadas de responsabilidade civil subsidiária59.
Ademais, a clausura temporal, bem como a suspensão da atividade
das pessoas jurídicas podem ser aplicadas sob a forma de medidas
cautelares, de acordo com o § 2º do artigo 129 do C.P. espanhol. Neste
sentido, a adoção de tal modalidade torna-se possível por uma simples
determinação judicial, sem ao menos considerar a audiência prévia com os
representantes legais prevista nos casos ordinários de aplicação das
consequências acessórias.
Assim, considerando que na prática tais consequências são
definitivamente aplicadas como severas sanções penais às pessoas jurídicas
e diante da exclusão das mesmas como parte no processo penal, resulta
óbvia a impossibilidade do alcance das respectivas garantias, bem como da
aplicação de todos os princípios informadores processuais penais para tais
casos.
Desta forma, conclui-se que, mesmo não subsistindo de razão um
possível modelo para sancionar penalmente as pessoas jurídicas, quando se
vislumbra como admissível tal estrutura, o que demonstra ter iniciado o

59 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas en el Proceso Penal: Las Consecuencias Accesorias.
Navarra: Aranzadi, 2003. p. 215-216.

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legislador penal espanhol, seria de grande valia, fundamentalmente,


adequar todo o respectivo segmento processual penal à recepção dos entes
coletivos como parte60 para, ulteriormente, regulamentar todo o relativo
catálogo de medidas sancionadoras, estendendo, de igual forma, todo o
aparato de garantias existente às pessoas físicas também às jurídicas61.

2 – As Incompatibilidades Entre os Pressupostos


Processuais e as “Consequencias Acessórias”

2.1 Problemáticas com relação aos órgãos jurisdicionais

2.1.1 Considerações sobre a Jurisdição


Primeiramente, resta assinalar que a jurisdição é considerada como
um pressuposto processual penal que deve ser examinado de ofício. Neste
sentido, preceitua o artigo 9.6 da “Lei de Organização do Poder Judicial”
espanhol (LOPJ):
“A jurisdição é improrrogável. Os órgãos judiciais apreciarão
de ofício a falta de jurisdição e resolverão sobre a mesma com
audiência das partes e do Ministério Público. Em todo caso, esta
resolução será fundada e se efetuará indicando sempre a ordem
jurisdicional que se estime competente.”
Partindo de tal premissa, trata o artigo 23, da mesma LOPJ, de
recolher critérios estabelecidos que determinem os respectivos órgãos
jurisdicionais responsáveis por conhecer determinados delitos, ou seja, de
tal prescrição se extraem os princípios de territorialidade, pessoalidade,
defesa de interesses nacionais, bem como o princípio de justiça universal62.

60 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 217.


61 Neste sentido, baseando-se na experiência francesa, as pessoas jurídicas teriam a possibilidade de
serem tratadas processualmente, na medida do possível, como são tratadas as pessoas físicas.
Desta forma, se se entende ser tal premissa adequada, também o seria a extensão aos entes
coletivos dos mesmos direitos e garantias válidas para o processo penal destinado às pessoas
físicas, tendo em vista que determinadas sanções, como a dissolução de uma sociedade mercantil
por via penal excede flagrantemente o contexto de uma mera “consequência acessória”. Neste
sentido, seria equivocada a estrutura atualmente vislumbrada no C.P. espanhol de 1995, já que
não se deveria ter incorporado a este um catalogo de sanções penais destinados às pessoas
jurídicas sem antes ter estabelecido as bases estruturais para tal tipo de imputação, como se
vislumbrou na experiência do C.P. francês (ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit.
p. 216-217).
62 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 220-223.

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Neste sentido, vale a pena ressaltar que mesmo nos diversos casos
ordinários de delinquência econômica, casos que possuem sanções de
natureza bem delimitadas e expressas como sanções penais, já se
apresentam grandes problemáticas referentes às questões de fixação do
momento delitivo, bem como com relação à identificação da consequente
competência para o ajuizamento penal63.
Desta forma, tal situação se vislumbraria agravada no caso das
consequências acessórias por não restarem estas consideradas
expressamente como penas. Assim, vislumbrando hipoteticamente a
comissão de um delito em âmbito econômico fora das fronteiras da Espanha
por uma empresa espanhola, por exemplo, não subsistiria atribuída, por si
só, a respectiva competência dos tribunais espanhóis, já que o critério
determinante para tal residiria na nacionalidade do agente criminalmente
responsável, atributo que, segundo o próprio ordenamento jurídico
espanhol, não pode ser conferida a uma pessoa jurídica64.

2.1.2 A fixação da competência


A competência, em linhas gerais, pode ser caracterizada como a
distribuição dos assuntos aos respectivos órgãos jurisdicionais, ou seja, a
atribuição, por meio de regramentos e critérios determinados, do
conhecimento de uma questão específica a um respectivo tribunal.
Neste sentido, as classes de competência usualmente utilizadas pela
doutrina espanhola são a objetiva, em razão da matéria ou da pessoa; a
funcional, em razão do cometimento de cada órgão nas distintas funções e
fases de procedimento e, por último, a competência territorial, fixada por
meio das regras de caráter jurisdicional que determinam qual Juízo ou
Tribunal devem atuar de acordo com a respectiva infração penal65.
Desta forma, resta importante realizar algumas observações
concernentes à determinação de competência com relação à aplicação das
consequências acessórias principalmente no que se refere às competências
objetiva e territorial.
Preliminarmente, para a fixação da competência objetiva se exige o
conhecimento do delito a que se refere, ou seja, que tipo penal é

63 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 220-223.


64 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 222.
65 GÓMEZ DE LIAÑO GONZÁLEZ, F. El Proceso Penal – Tratamiento Jurisprudencial. 7ª ed. Oviedo:

Forum, 2004. p. 83-87.

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considerado como o objeto de investigação e seu respectivo ajuizamento66.


Assim, no que se refere à competência objetiva para a imposição das
consequências acessórias, a mesma se relacionaria diretamente com o órgão
judicial responsável pelo ajuizamento do tipo delitivo do qual advêm tais
medidas, já que estas possuem caráter acessório ao delito e não à pena67.
Por outro lado, no que se refere à competência territorial, tal tema
gera ampla casuística levando-se em conta a jurisprudência do Supremo
Tribunal espanhol que tende em entender que o lugar de comissão do delito
é aquele em que se consuma o mesmo. Neste sentido, nos casos de
delinquência econômica, o problema giraria em torno de que as empresas,
como antes visto, possuem atualmente uma complexa estrutura, com
inúmeras filiais distribuídas por distintos territórios e que, por vezes,
operam com total autonomia da respectiva central, gerando, assim, uma
rede difusa de responsabilidades.
Desta forma, conclui-se que a aplicação de determinadas
consequências acessórias resultaria de difícil ou, talvez, de impossível
aplicação com relação às pessoas jurídicas estrangeiras, já que seria viável
somente o alcance de tais medidas com relação ao território concreto de
onde se tenham cometido as concernentes infrações penais, uma vez que
outro modo de aplicação geraria confrontos de ordem técnica que poderiam
advir do fato da respectiva aplicação de disposições do relativo Direito
alienígena68.

2.2 Problemáticas com relação às partes: capacidade para


figurar como parte e capacidade processual
Em síntese, são consideradas como partes no processo penal aqueles
que exercitam de fato algum papel dentro da demanda. Neste sentido, de
uma parte se sustenta a respectiva pretensão penal e da outra se contrapõe à
mesma69.
Assim, a capacidade para figurar como parte ou também chamada
“pessoalidade processual” é a aptitude para atuar como titular de todos os

66 MORAL GARCÍA, A. Incidencia del Nuevo Código Penal en la Competencia Objetiva. In: MARTÍNEZ
ARRIETA, A. (Dir.). Jurisdicción y Competencia Penal. Madrid: C.G.P.J., Cuadernos de Derecho
Judicial, nº VI, 1996. p. 93.
67 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 227.
68 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 229-231.
69 GIMENO SENDRA, V. Derecho Procesal Penal. 1ª ed. Madrid: Colex, 2004. p. 155.

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direitos processuais, bem como assumir os encargos e responsabilidades


inerentes a este70.
Desta forma, aproximando tais premissas fundamentais à realidade
das pessoas jurídicas no ordenamento espanhol, se reconhece a respectiva
capacidade para ser parte por meio do artigo 38 do Código Civil que
preceitua expressamente que os entes coletivos “podem exercitar ações civis
e criminais”.
Neste sentido, o fato das pessoas jurídicas estarem ou não aptas a
exercitar o seu conseguinte direito de ação não consistiria, em absoluto, o
maior e mais importante ponto de discussão doutrinal, visto que existe
legislação expressa neste sentido.
Por outro lado, entende-se como capacidade processual a aptidão
para perpetrar atos válidos no processo, ou seja, é a idoneidade para
realizar atos que tenham eficácia no universo da relação processual.
No caso das pessoas jurídicas, também não se encontrariam, em
primeiro plano, profusas dificuldades referente ao fato destas possuírem ou
não capacidade processual, visto que são representadas em juízo mediante a
presença de uma pessoa física que legalmente as representa.
Entretanto, verificam-se determinadas imprecisões principalmente
com relação ao alcance de tal representação. Neste sentido, esta careceria de
critérios objetivos que determinassem efetivamente a sua delimitação, bem
como de elementos que viabilizassem a real e completa representação das
pessoas jurídicas em uma possível atuação em juízo71, questão que de fato
torna-se relevante quando se trata da operação de uma espécie de tutela
como a penal.

3 – As Consequências Acessórias Aplicadas Como Medidas


Cautelares
Preliminarmente, é imprescindível aproximar à presente pesquisa o
tema das medidas cautelares propriamente ditas com relação ao seu aspecto
geral no ordenamento espanhol para ulteriormente enquadrar-lhes ao tema
das consequências acessórias.
Partindo de um conceito geral, as medidas cautelares no processo
penal espanhol são consideradas como atos jurisdicionais com caráter
restritivo de determinados direitos dos “presumidos responsáveis” pela

70 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 232.


71 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 233-235.

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autoria dos fatos objeto de investigação ou ajuizamento criminal com o


principal objetivo de assegurar o correto andamento dos ulteriores e
eventuais trâmites72.
Para tal, deve-se comprovar a existência de um fato delitivo, bem
como a presença de causas equivalentes ao fumus boni iuris civil,
vislumbrando, assim, ao menos um provável responsável pela prática do
tipo penal, situação materializada pelo processamento73 no caso espanhol.
Assim, caracterizado o procedimento, bem como os requisitos para a
adoção das medidas cautelares em amplo senso denota-se agora importante
evidenciar os pontos de consonância e conflito entre as consequências
acessórias e a sua particular utilização por via cautelar.
Preliminarmente, as medidas expressas pelas letras “a” e “c” do
artigo 129 do C.P. espanhol, quais sejam a clausura temporal da empresa,
bem como a suspensão de suas atividades, são consideradas por grande
parte da doutrina originariamente como medidas cautelares preventivas, já
que se podem ser acordadas durante o próprio trâmite da causa74.
Neste sentido, aproximando a problemática ao tema proposto,
principalmente a parcela doutrinal de cunho protecionista do Direito Penal
Ambiental defende, tenazmente, o emprego de tais consequências
acessórias por via cautelar75. Tal modo de utilização seria justificado por
uma suposta maximização da efetividade na operação das respectivas
medidas no caso concreto, o que seria de grande valia em sede ambiental.
Entretanto, tal afirmação subsiste de grande controvérsia tendo em
consideração a gama de inadequações técnicas que se verificam no uso
prático das supostas medidas cautelares do artigo 129 do C.P. espanhol com
relação ao conceito puro de procedimento cautelar.
Fundamentalmente, a primeira incongruência surge no sentido de
que as consequências acessórias seriam especificamente consideradas como
medidas cautelares de caráter real que, no universo do processo penal

72 MAZA MARTÍN, J. M. Las Medidas Cautelares Penales. In: COLLADO GARCÍA-LAJARA, E. (Coord.).
Manual práctico de medidas cautelares – Procesos constitucionales, ordinarios y penales. Granada:
Comares, 2000. p. 242.
73 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 246.
74 LASO MARTÍNEZ, J.L. Urbanismo y medio ambiente en el nuevo Código Penal. Madrid: Marcial Pons,

1997. p. 198.
75 Como exemplo, defende MORAL GARCÍA expressamente: “É destacável e digna de elogio a

previsão específica do apartado 2 do artigo 129 da possibilidade de adoção das citadas medidas
por via cautelar” (MORAL GARCÍA, A. Aspectos Problemáticos... cit. p. 150).

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espanhol, cumprem geralmente a função de assegurar a responsabilidade


civil provinda do delito76. Assim, tal condição geraria uma incoerência
teleológica no sentido de que tal colocação viria de encontro com finalidade
primária das consequências acessórias prescrita no artigo 129.3 do C.P.
espanhol (prevenção da continuidade da atividade delitiva e dos efeitos da
mesma). Ademais, o pressuposto para a aplicação de tais consequências é a
imposição da pena, requisito que não se vislumbra como exigível no caso da
adoção de uma medida cautelar ordinária77, fato que degeneraria qualquer
fundamento de identidade entre ambos os institutos.
Além disso, as medidas cautelares penais vêm sempre pautadas sob
um juízo de imputação, bem como são fundamentadas em uma suspeita de
participação do responsável no delito ou no risco de fuga do imputado. Por
outro lado, de acordo com o seu próprio fundamento, as consequências
acessórias ambicionariam somente a neutralização da atividade criminal78,
motivo pelo qual a utilização destas por via cautelar poderia acarretar o
adiantamento de uma possível sentença.
Da mesma forma, para a aplicação de qualquer medida cautelar penal
se exige, preliminarmente, a exigência de um fato delitivo e um possível
responsável pelo mesmo. Assim, em âmbito de criminalidade econômica,
setor que é essencialmente a área de atuação das consequências acessórias,
se consistiria de grande dificuldade o cumprimento de tais exigências de
forma antecipada79, o que obstacularizaria a adequada aplicação de tais
medidas por via cautelar.
Resta também importante assinalar que no processo penal espanhol o
procedimento preliminar, que possui função própria de instrução, é
incompatível com o ofício de julgar, própria do juízo oral, como consagra o
princípio de “quem instrui não pode julgar”80.
Desta maneira, partindo de tal premissa, a determinação das
consequências acessórias por via cautelar vulneraria tanto o íntegro
cumprimento do sistema acusatório, quanto os respectivos princípios de

76 FUENTE HONRUBIA, F. Las consecuencias accesorias… cit. p. 174 y 175.


77 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 246-247.
78 FUENTE HONRUBIA, F. Las consecuencias accesorias… cit. p. 174 y 175.
79 FUENTE HONRUBIA, F. Las consecuencias accesorias… cit. p. 175.
80 MONTERO AROCA, J. Principios del proceso penal – Una experiencia basada en la razón. Valencia: Tirant

lo Blanch, 1997. p. 86-95.

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igualdade, audiência, dupla instância e oralidade81, resultando, portanto, em


um processo anômalo desde a sua origem.
Neste sentido, segundo a orientação político-criminal razoável e
objetivando a adaptação prática de tal específico procedimento, se entende
que para a adoção de uma consequência acessória por via cautelar seria
imprescindível, preliminarmente, a identificação dos indícios racionais de
criminalidade e, fundamentalmente, a existência do real perigo advindo da
eventual subsistência da respectiva atividade delitiva82.
Mesmo assim, em decorrência dos graves prejuízos que as
consequências acessórias podem acarretar, tais medidas não deveriam ser
estabelecidas anteriormente ao relativo auto de processamento referente à
eventual pessoa física que, por meio de um ente coletivo, tenha cometido
algum ato delitivo. Neste sentido, também se deveria levar em consideração
os critérios de proporcionalidade e a excepcionalidade para a aplicação de
tais consequências83, delimitando, com isto, a ratio de necessidade e
adequação de tutela ao caso concreto.

VI – C ONCLUSÃO
Partindo da possibilidade de um modelo de responsabilidade da
própria pessoa jurídica e restringindo o tema à problemática oferecida pela
tutela penal ambiental, resta evidente que grande parte da normativa
destinada a esta última é desenhada exclusivamente aos entes coletivos, já
que, em grande parte dos casos, estes seriam os únicos possíveis sujeitos
ativos de tal classe delitiva.
Assim, de acordo com os preceitos teóricos expostos, bem como com
as demonstradas incongruências técnicas verificadas na utilização prática
das “consequências acessórias”, se podem extrair diversos pontos de
conclusão concernentes à presença das pessoas jurídicas no universo do
Direito Penal.
Preliminarmente e através de genéricas considerações vale ressaltar
que, todavia, não se acoberta de razão um possível modelo para sancionar
penalmente os entes coletivos, tendo em vista os inúmeros pontos de
inadequação técnica.

81 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas... cit. p. 218-219.


82 FUENTE HONRUBIA, F. Las consecuencias accesorias… cit. p. 176.
83 ECHARRI CASI, F. J. Sanciones a Personas Jurídicas… cit. p. 247.

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Neste sentido, seria de grande valia que o tratamento sancionador das


condutas advindas das pessoas jurídicas fosse realizado por um modelo de
Direito Sancionador autônomo, desenhado especificamente para os entes
coletivos. Desta forma, se arquitetaria um sistema composto por estruturas
similares às utilizadas pelo Direito Administrativo sancionador e Direito
Penal de uma maneira mais adequada à estrutura empresarial
contemporânea, sem violar as tradicionais composições técnico-jurídicas
desenhadas com base nas condutas praticadas pelas pessoas físicas.
Com relação às disposições contidas no artigo 129 do C.P. espanhol
resta claro que estas não são utilizadas no caso concreto meramente como
“consequências” de um precedente e comprovado fato delitivo praticado
por uma pessoa física e tampouco são aplicadas de forma “acessória” com o
objetivo de prevenção da utilização da estrutura empresarial como
instrumento para a comissão delitiva. Em realidade, tais medidas
concorrem, efetivamente, como sanções penais destinadas às pessoas
jurídicas, espectro atualmente materializado pelo “Projeto de Lei nº
121/000119” de 15 de janeiro de 2007 que, como anteriormente exposto,
propõe o reconhecimento da responsabilidade penal dos entes coletivos no
ordenamento espanhol, transformando as “consequências acessórias” no
seu respectivo rol de penas.
Partindo de tal premissa, especial temeridade se vislumbraria na
operacionalização dos dispositivos preceituados nas letras “a” e “c” de tal
artigo como “medidas cautelares”, já que dificilmente seriam utilizadas com
base na natureza excepcional que possui tal procedimento propriamente
considerado.
Assim, tendo-se em conta a real natureza penal das “consequências
acessórias”, quando da sua respectiva utilização no caso concreto, estas
deveriam ao menos dilatar às pessoas jurídicas todo o aparato de direitos e
garantias penais existentes atualmente às pessoas físicas, tarefa que
demandaria uma complexa e delicada reestruturação de toda a base teórica
que fundamenta o Direito Penal clássico.
De igual forma, seria também necessária a remodelação de todo o
respectivo aparato processual penal, destinando este de maneira justa e
adequada também aos entes coletivos, adaptação que deveria ser calculada
antes mesmo do próprio reconhecimento de possíveis penas destinadas a
estes.

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Neste sentido, a adoção de tais adequações seria justificada pelo fato


de tratar-se de uma tutela extremamente repressora e que,
proporcionalmente, reclama um amplo rol de garantias com o escopo de
alcançar um nível cabível de segurança jurídica para sua atuação,
circunstância que não se verifica até o presente momento.
Assim, com relação especificamente ao caso espanhol, seria de
imperiosa utilidade que as “consequências acessórias” fossem exatamente
assim consideradas, tanto com relação à sua classificação teórica quanto à
sua ulterior utilização prática. Deste modo, deveriam tais medidas ser
realmente utilizadas de maneira suplementar, já que ainda subsiste de
dificultosa elucidação técnica articular a pessoa jurídica como sujeito ativo
no universo do Direito Penal propriamente dito.

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109
CAPITALISMO, PUNIÇÃO E PRISÃO –
INTERFACES POSSÍVEIS SOB
A ÓPTICA FOUCAULTIANA
J OÃO C ARLOS C ARVALHO DA S ILVA *

Resumo: A prática punitiva dos Estados Absolutistas era


notadamente assentada na pena de morte e em penas cruéis. O
soberano não se vinculava a limites jurídicos e nem os súditos
possuíam garantias processuais. Esta situação levou a
mudanças no âmbito penal, havendo a preocupação de
construir uma teoria racional da punição, tarefa esta realizada
por diversos pensadores iluministas da época. Todavia, o
projeto liberal foi prontamente descartado pelas gerações
futuras, uma vez que não respondia satisfatoriamente aos
novos padrões morais da sociedade do século dezenove. Nesse
novo cenário, a prisão enquanto instrumento de punição
alocou-se no centro do repertório punitivo, consistindo no
reflexo dos valores ligados à mentalidade burguesa.

Palavras-Chave: Controle Social – Prisão – Capitalismo.

I NTRODUÇÃO
A reflexão em torno da questão punitiva, embora secular, continua a
despertar acesas discussões nos círculos acadêmicos. O resultado prático
dos embates teóricos ganha relevância quando transposto para países de
capitalismo periférico, marcados pela exclusão social e pela sistemática
violação/inefetivação de direitos.

* Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná-UENP. Servidor do


Ministério Público do Estado de São Paulo. Aluno especial no Programa de Mestrado em Ciência
Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná-UENP.

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O presente trabalho busca vislumbrar as interfaces entre o sistema


punitivo, a pena de prisão e o capitalismo como exigência de melhor
conhecer a realidade circundante na busca de possibilidades
emancipatórias. Para tanto, algumas ideias foucaultianas constituem
premissa válida na tentativa de inter-relacionar o estabelecimento da prisão
enquanto pena e o desenvolvimento da sociedade capitalista, ambos
inseridos no contexto social do século dezenove.

1 – P UNIÇÃO E R ACIONALIZAÇÃO
O Estado, no século XVI era livremente comandado pela figura do
monarca, detentor absoluto do poder político. Tal poder, assentado na
onipotência real, desconhecia quaisquer vínculos e limites e se caracterizava
por impor uma barbárie repressiva que solapava os súditos. É possível falar
em uma utilização irracional do poder político, que se fazia presente na
sociedade através de um exercício indiscriminado da punição.
Os suplícios aos criminosos se davam de maneiras muito diversas.
Não obstante, a punição voltava-se predominantemente ao corpo do
condenado, de modo a infligir-lhe dor, sofrimento e humilhação.
A prisão como pena autônoma, por sua vez, era desconhecida nesse
período, servindo tão somente para preservar o corpo do condenado até a
aplicação do castigo.
Já no fim do século XVII, a obra do monge beneditino MABILLON
exerceu grande influência no contexto das punições. Insurgia-se o monge
contra o modo que as penitências eram infligidas ao condenado, propondo
reformas quanto ao trabalho, à higiene, etc. (DOTTI, 1998, p. 08). Fruto do
anseio ilustrado por MABILLON, o iluminismo traz ideais humanizantes
acerca das punições, abandonando a fundamentação teológica da pena para
conferir-lhe um fim utilitário.
Os iluministas passaram a ter no Homem o centro das atenções,
valendo-se do jusnaturalismo para pregar direitos preexistentes e
superiores ao Estado, o que permitiu impor limites ao poder estatal, uma
vez que este perdera seu caráter absoluto.
Uma das mudanças introduzidas pelos jusfilósofos da época foi a
ideia de que o crime não devia guardar relação com a infração moral. Com
tal distinção, permitiu-se retirar do âmbito de intervenção do Estado
absolutista condutas antes punidas tão somente por constituírem faltas
morais.

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Assim, o fenômeno criminal foi associado ao dano social, e a lei penal


adquiriu a função de retribuir/reparar esse dano, bem como de impedir que
novos danos ocorressem.
Conforme FOUCAULT (2002, p. 82-83), pautados na noção de defesa da
ordem, reparação de dano, contrato social, etc., bem como diante da
necessidade de limitar o poder punitivo do Estado, procuraram os
jusfilósofos desenvolver parâmetros para a punição.
É o que se vê no capítulo XVII do Dos delitos e das penas: “quem
perturba a tranqüilidade pública, quem não obedece às leis, isto é, às
condições com as quais os homens se suportam reciprocamente e se
defendem, deve ser excluído da sociedade, ou seja, deve ser banido dela”.
Trata-se da pena de banimento.
Elegeram-se como premissas à aplicação das penas a prevenção e a
proporcionalidade. A esse respeito, afirma-se que “o fim [da pena], pois,
não é outro senão impedir o réu de causar novos danos a seus concidadãos
e de demovê-los de praticar outros iguais. As penas, portanto, e o método
de infligi-las devem ser escolhidos de modo que, guardadas as proporções,
causem a impressão mais eficaz e mais duradoura nos homens, e a menos
penosa no corpo de réu (BECCARIA, 2002, p. 72).
MELLO FREIRE (1738-1798), influenciado pelas ideias de BECCARIA,
bem como fundamentado no contratualismo, afirmava que “a pena deve
ser, tanto quanto possível, proporcional ao delito e deve ser estabelecida
segundo a sua natureza e índole. Assim, aqueles que violam a religião,
deverão ser castigados com coisas que nasçam do mesmo culto; aqueles que
depreciam os bons costumes e a honestidade de vida serão depreciados
pelos outros e reprimidos por sua desonra e sinalizados pela infâmia; os
perturbadores da ordem pública serão desterrados da cidade ou se lhes
quitará a liberdade; aos que ofendem a segurança dos cidadãos, ou que
causem dano em seu corpo, na sua felicidade ou na sua fama, serão
apenados no seu corpo, serão multados em dinheiro ou sofrerão dano na
sua boa fama (apud ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004. p. 261).
Legisladores da época foram receptivos quanto a tais ideais. A título
de exemplo, LEPELETIER DE SAINT-FARGEAU e BRISSOT apresentaram projetos
norteados por princípios semelhantes, que foram utilizados na confecção do
I Código Penal Revolucionário (FOUCAULT, 2002, p. 83).
As ideias racionalistas do século dezoito foram adotadas também por
monarcas, tais como o Grão-duque da Toscana, Pedro Leopoldo, bem como

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a Imperatriz Catarina II, da Rússia, no que constituiu o despotismo


ilustrado. Várias foram as tentativas de mudanças, embora algumas não
tenham conseguido nenhum efeito prático (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p.
201).
Tem-se, desse modo, um aparato teórico limitador apto a guiar os
rumos do exercício punitivo, inaugurando-se o iluminismo em âmbito
jurídico-penal.

2 – M UDANÇA DE P ARADIGMAS - A P RISÃO C OMO


I NSTITUIÇÃO I DEAL
Em que pese a criação deste aparato racional, o sistema de
penalidades que se seguiu foi outro, havendo um desvio sensível no projeto
apresentado pelos teóricos iluministas. O que se observa é uma enfática
utilização da pena de prisão, descartando-se as demais penalidades.
A pena de prisão, até então subutilizada, passa a ocupar lugar central
na prática penal em meados do século XIX. Tal mudança nada mais é do
que reflexo de alterações substanciais ocorridas na sociedade europeia do
século dezenove, quando passou a existir, no cenário judicial, um interesse
cada vez maior pelo indivíduo criminoso em detrimento dos fatos concretos
por ele praticados. Mencionem-se, como exemplo, as reformas da legislação
penal na França e demais países europeus entre 1825 e 1850/60, que
implementaram as circunstâncias atenuantes, permitindo ao juiz ou ao júri a
mitigação do rigor legal de acordo com o indivíduo em julgamento
(FOUCAULT, 2002, p. 84).
Parece ocorrer, durante o século dezenove, uma reaproximação do
direito com a moral, uma vez que a punição passa a ser exercida como uma
forma de controle do indivíduo, e não como meio de defesa da sociedade
contra os fatos por ele praticados. Esta tendência adentra o século XIX e se
fortalece com a passagem do tempo, interrompendo-se a tentativa
iluminista de limitar racionalizar o poder.
A causa desta mudança não se resume a poucos fatores. O paradigma
defesa social, fomentado pela crença no maniqueísmo oriundo do
positivismo, aliado a particularidades históricas deram o contorno para o
modelo de controle social. O advento do capitalismo, por exemplo, é um
dos principais fatores que influenciaram na construção desse modo de se
exercer o poder e a repressão penal.

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Esse novo modelo de direito e justiça tem, igualmente, no discurso da


paz social e da segurança, seu fundamento de ser. Contudo, há nele uma
sensível mitigação dos princípios iluministas da legalidade e utilidade,
valorizando-se, em contrapartida, a análise de periculosidade e
personalidade do indivíduo, que para diversos efeitos reputa-se
extremamente inquisitorial.
Esta tendência se faz clara na Constituição brasileira de 1891 e no
Código Penal de 1890. Tais ordenamentos criminalizavam comportamentos
de grupos sociais contrários ao governo da República, perseguindo-os.
Eram tipificados, também, como crimes a vadiagem, as sociedades secretas,
as reuniões ilícitas e as conspirações, nitidamente como um meio de exercer
o controle através da repressão1.
Aqueles considerados vadios, após serem condenados, eram
encaminhados a colônias correcionais e forçados a exercer diferentes ofícios.
Impunha-se uma rotina disciplinar assentada no trabalho com o fim de
inserir o apenado no sistema produtivo e garantir sua “regeneração”
(ALVES, 1997, p. 27).
E qual será papel da prisão nesse novo contexto social? Imbuída da
ideia de controle2, a conjuntura histórica do século XIX terá na prisão um
modelo ideal, ilustrado figura do panoptikon.
É possível, pois, traçar paralelo entre a prisão e as diversas
instituições presentes na sociedade à época. Fábricas, quartéis, hospitais e
escolas assumem a forma de panoptikon, seguindo todas, como reflexo dessa
nova sociedade de controle, um padrão comum assentado no modelo de
prisão.

3 – C APITALISMO , P UNIÇÃO E P RISÃO – I NTERFACES


P OSSÍVEIS S OB A Ó PTICA F OUCAULTIANA
A visão de MICHEL FOUCAULT permite notar que a prisão não foi uma
criação objetiva e abstrata do engenho humano, surgida como meio de

1 Art. 399 do Código Penal: Deixar de exercer profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a
vida, não possuindo meio de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência
por meio de ocupação proibida por lei e manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes:
Pena de prisão celular por quinze a trinta dias (ALVES, 1997, p. 25).
2 Não mais o controle arbitrário peculiar às monarquias absolutistas, mas um exercido o mais
veladamente possível, justificado cientificamente e até, certo ponto, limitado por garantias legais.

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punição peculiar ao século XIX, influenciadora das demais instituições.


Diferentemente, a prisão é reflexo de novos padrões presentes na sociedade
do século dezenove, o mesmo acontecendo com estas demais instituições.
O trabalho de perquirir a passagem de um modelo teórico construído
sobre fatos (iluminista) para uma prática de controle não é dos mais fáceis.
Questão igualmente complexa é saber como o novo modelo adotou a prisão
como meio de punição por excelência.
FOUCAULT reporta-se à existência, na Inglaterra de fins do século
XVIII, de associações de origem burguesa/aristocrática, de caráter
paramilitar, tais como a Infantaria Militar de Londres e a Companhia de
Artilharia, as quais teriam se formado espontaneamente no seio de grupos
sociais abastados para garantirem a ordem nos bairros e cidades
(FOUCAULT, 2002, p. 91).
No século XIX o fenômeno se repete, desta feita, perpetrado por
grupos econômicos – e não sociais – os quais, através de uma polícia
privada, realizavam a defesa de seu “patrimônio, seu estoque, suas
mercadorias, os barcos ancorados no porto de Londres, contra os
amotinadores, o banditismo, a pilhagem cotidiana, os pequenos ladrões [...].
Essas sociedades respondiam a uma necessidade demográfica ou social, à
urbanização, ao grande deslocamento de populações do campo para as
cidades; respondiam também [...] a uma transformação econômica
importante, a uma nova forma de acumulação da riqueza, na medida em
que, quando a riqueza começa a se acumular em forma de estoque, de
mercadoria armazenada, de máquinas, torna-se necessário guardar, vigiar e
garantir sua segurança” (FOUCAULT, 2002, p. 91-92).
Lançada a hipótese sobre a razão da demanda por vigilância, foi
necessário indagar como o Estado moderno de matriz burguesa deu origem
a uma sociedade baseada no controle e vigilância moral de seus membros.

3.1 Paradigma do Controle


Houve, por parte do Estado, o que se pode chamar de uma tendência
à apropriação dos mecanismos sociais de controle, através da qual se
possibilitou ao Estado o exercício sobre o indivíduo do controle de suas
ações, empenhando-se na sua correção.

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Esse movimento, que ocorreu em diversos países, é objeto de análise


por FOUCAULT tanto na Inglaterra quanto na França.

3.1.1 O caso inglês


Durante o século dezoito formaram-se na Inglaterra diversos grupos
sociais de origem burguesa, com forte apelo religioso, os quais objetivavam
garantir a ordem moral no interior da comunidade, realizando, para tanto,
um rigoroso e popularesco controle de seus membros, notadamente no seu
aspecto moral.
A manutenção da ordem moral no seio destes pequenos grupos
justificava-se como tentativa de escapar à ira punitiva do Estado que, à
época, contava com mais de 300 casos (infrações) punidos com pena de
morte.
Aos detentores do poder (aristocracia, judiciário) tornava-se
relativamente fácil exercer pressões sobre as camadas populares, sendo que,
“para escapar desse poder judiciário os indivíduos se organizavam em
sociedades de reforma moral, proibiam a embriaguez, a prostituição, o
roubo, etc., tudo o que permitisse ao poder atacar o grupo, destruí-lo...
Trata-se, portanto, mais de grupos de autodefesa contra o direito do que de
grupos de vigilância efetiva” (FOUCAULT, 2002, p. 93).
Ocorre que, no decorrer do século XVIII, o que era um instrumento
para a autodefesa contra o controle penal do Estado passou a ser um aliado
do poder político para o controle social, haja vista que esse controle difuso e
popularesco passou a ser utilizado paulatina e crescentemente pelas classes
mais ricas da sociedade inglesa – aristocracia, clero, nobreza (FOUCAULT,
2002, p. 93).
O controle moral dos membros da sociedade era algo que interessava
aos detentores do poder, porquanto preventivo. Exercendo este tipo de
controle, evitar-se-ia a ocorrência de delitos, o que se mostra mais vantajoso
do que simplesmente remediá-los, sancionando o autor de um dano já
consumado e, certamente, irreparável.
O passo seguinte a esse deslocamento vertical do controle foi conferir
a ele – o controle moral – o status de controle penal, através da criação de

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uma legislação específica3, permitindo, assim, a expansão da repressão


penal do Estado em ambientes de cunho moral.
Observa-se, assim, a apropriação do controle exercido através de
grupos e comunidades pelas classes sociais hierarquicamente superiores, de
modo a permitir a tomada deste instrumento de poder pela cúpula do
Poder Político.

3.1.2 O caso francês


A França já possuía, pelo século XVIII, um instrumento parajudiciário
de controle e repressão – a polícia –, além de grandes prisões, de cujo
exemplo clássico é a Bastilha.
Mas, como a Inglaterra, conhecia também uma forma de controle
popular, que era exercido horizontalmente pelos cidadãos através da lettre-
de-cachet4.
Embora a lettre-de-cachet fosse um mecanismo de punição utilizado
principalmente pelo poder real, permitia também ao indivíduo comum
fazer valer, na prática, uma punição para um fato cotidiano5.
A lettre-de-cachet consistia, portanto, “em uma forma de regulamentar
a moralidade cotidiana da vida social, uma maneira do grupo ou dos
grupos – familiares, religiosos, paroquiais, regionais, locais, etc. –
assegurarem seu próprio policiamento e sua própria ordem” (FOUCAULT,
2002, p. 97).
Porém, foi na greve de relojoeiros, ocorrida em 1724, que se
desvirtuou ligeiramente a utilização deste instrumento real, quando patrões
solicitaram uma lettre-de-cachet que ocasionou a prisão dos revoltosos.

3 Texto de 1804 escrito pelo Bispo Watson: “As leis são boas, mas, infelizmente, são burladas pelas
classes mais baixas. As classes mais altas, certamente, não as levam muito em consideração. Mas
esse fato não teria importância se as classes mais altas não servissem de exemplo para as mais
baixas”. “Peço-lhes que sigam essas leis que não são feitas para vocês, pois assim ao menos
haverá a possibilidade de controle e de vigilância das classes mais pobres” (FOUCAULT, 1999,
p.94).
4 Ordem do rei dirigida diretamente a uma pessoa, obrigando-a a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa.
5 Por exemplo: “maridos ultrajados por suas esposas, pais de família descontentes com seus filhos,
famílias que queriam se livrar de um indivíduo, comunidades religiosas perturbadas por alguém,
uma comuna descontente com seu cura” (FOUCAULT, 1999, p. 96).

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Através deste exemplo, é possível notar como um instrumento de


controle moral ganha nítidos contornos políticos e passa a repercutir na
esfera sócio-econômica.
Para FOUCAULT, a prisão enquanto instrumento de punição encontra
nas lettres-de-cachet seu antecedente histórico. Isso porque, segundo o autor,
quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, “esse alguém não
era enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado
na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente”
(FOUCAULT, 2002, p. 98).
A prisão se estendia até que o solicitante da lettre-de-cachet afirmasse
que o preso tinha se corrigido. Surge ai, então, a ideia de aprisionar para
corrigir que, nas palavras do autor francês, é uma “ideia paradoxal, bizarra,
sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento
humano” (FOUCAULT, 2002, p. 98).
Observa-se que, por uma via distinta, a França chegou a um modelo
de controle semelhante ao inglês, no qual a resposta punitiva do Estado está
mais relacionada ao comportamento do indivíduo do que ao fato por ele
praticado.
Em ambos os casos, esta forma de punição, modelo punitivo
hegemônico do Estado Democrático de Direito, não é resultado do projeto
jurídico iluminista, dele se distanciando na medida em que privilegia os
mecanismos de controle social.

3.2 O Sistema Econômico


Com a rápida implementação do capitalismo durante o século
dezoito, outros bens e riquezas passam a figurar no cenário econômico que
não aqueles estritamente monetários, próprios dos séculos precedentes.
Ganham importância os bens de produção, os estoques, as matérias-primas,
etc.
A forma de produção feudal passa a ser realizada com base na lei de
oferta e procura. Nessa transição, a produção deixa de ser eminentemente
agrícola e torna-se manufatureira, deslocando-se a riqueza para as mãos dos
donos dos meios de produção. Assinala ZAFFARONI (2004, p. 249) que
“durante esse processo, a população concentrada nas cidades se tornava
perigosa; como não tinha trabalho e tinha fome, desprendeu-se dos
controles sociais feudais, nada tinha a perder e estava geograficamente no
mesmo lugar em que se concentravam as riquezas. A riqueza e a miséria

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concentravam-se nas cidades. Os crimes aumentavam. Era necessário apelar


a um controle social exemplar, de contenção”.
Os indivíduos estavam agora diretamente ligados à riqueza. Por esta
razão, não bastava defender a ideia de que a pena deveria reparar o dano, já
que as classes desfavorecidas seriam incapazes de restituir à nobreza
valores econômicos. Era necessário um atuar preventivo, demandando uma
constante e efetiva vigilância dos potenciais criminosos.
Na Inglaterra, particularmente, a pilhagem dos estoques contidos nos
armazéns e navios tornou-se frequente no fim do século XVIII, fato que
passou a exigir providências6.
No caso da França, de outro lado, após a Revolução Francesa, a
divisão das grandes propriedades rurais inviabilizou o modo de
subsistência dos trabalhadores camponeses. As dificuldades exigiram que
esses camponeses desempregados procurassem na cidade novos meios de
subsistência. Assim, a propriedade a ser protegida, que no início era a rural,
com o tempo passou a ser a industrial.
Deste modo, o controle da população miserável tornou-se uma
necessidade. Em razão disso, instituições como o asilo (para albergar os
pobres que não apresentavam riscos à população) e o cárcere (para tornar
inócuos aqueles tidos por perigosos) passaram a ser amplamente utilizadas.
O desenvolvimento do capitalismo colaborou, assim, para o surgimento de
diversos meios de vigilância e controle próprios da sociedade do século
XIX.

3.3 A Prisão
O século XIX assistiu ao desenvolvimento paulatino da prisão e ao
expansionismo do modo de produção capitalista.
Nesse contexto, a prisão-pena concretizava o método adequado para
se exercer o controle do indivíduo, ao passo que o capitalismo era uma das
instâncias que reclamava esse controle.
Vê-se, nesse sentido, que não somente a prisão, mas a fábrica e
demais instituições (escola, quartéis militares, hospitais) seguiam o modelo
de controle, exercido tanto em nível moral como pedagógico, psiquiátrico,

6 O criador da polícia na Inglaterra, Colquhoun, era alguém que a princípio foi comerciante, sendo
depois encarregado por uma companhia de navegação de organizar um sistema para vigiar as
mercadorias armazenadas nas docas de Londres (FOUCAULT, 1999, p. 101).

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etc. A prisão nada mais era do que a instituição ideal para esse novo
modelo. O suprassumo da ideia do panoptikon.
Contextualizando, pois, a prisão, observa-se que ela possuía natureza
semelhante às demais instituições sociais, diferenciando-se delas na medida
em que atuava particularmente no indivíduo tido por criminoso. Seu mister
circunscrevia-se a combater a criminalidade, segregando os agentes
infratores de modo impedi-los de delinquir.
Enquanto fruto de uma sociedade classificada por FOUCAULT como
sociedade de controle, a prisão tinha seus pressupostos assentados nos
ideais presentes à época, os quais se baseavam no modelo econômico
capitalista. Tal modelo se inspirava na ideia de proteção dos bens de
produção e se impulsionava através da tensão decorrente dos conflitos entre
classes.
Aceitando-se como plausível a ideia de “conflitos entre classes”,
remetida, aqui, à ideia de conflito de interesses, nota-se que começa a se
configurar, no cenário capitalista, a imagem do sujeito que vai representar a
ideia da ameaça social. Começa a se desenvolver a figura do delinquente
que deve ser vigiado.
Tal sujeito, certamente, identificar-se-á, de alguma forma, com
aqueles que não tomaram parte privilegiadamente no novo modelo de
produção econômica.
Aí é possível observar o viés político da prisão, já que ela realiza um
projeto de punição nascido no bojo da sociedade burguesa.

C ONSIDERAÇÕES F INAIS
O movimento iluminista ocasionou grandes mudanças na formulação
teórica do direito penal, proporcionando a racionalização do poder punitivo
estatal, onde a pena só poderia ser aplicada a crimes previstos
expressamente na legislação e que atingissem algum bem social relevante.
O que se seguiu, porém, foi uma tendência do poder em voltar-se ao
controle e correção dos indivíduos que se desviassem da norma,
descartando-se a perspectiva de análise direcionada tão somente aos fatos.
O instrumental para isso foi tomado dos próprios mecanismos de controle
existentes nas camadas sociais populares.
Decorrência desse movimento foi o abandono de alguns princípios
iluministas e a simultânea valorização da prisão como forma de punição.

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Assim, para o fim do controle social exigido pela nova sociedade


capitalista do século XIX, a prisão exsurge como eixo principal do esquema
de punições dos modernos sistemas penais.

R EFERÊNCIAS
ALVES, Paulo. A verdade da repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem
republicana: 1890-1921. São Paulo: Editora Arte & Ciência/UNIP, 1997.
BECCARIA, Cesare, Marchese di. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Rio Estácio de Sá,
2002.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2001.
CARDOSO, Franciele Silva. Penas e medidas alternativas: análise da efetividade de sua
aplicação. São Paulo: Método, 2004.
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2.ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1998.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002.
SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito
positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal – São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte
geral. 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

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JUSTIÇA INVISÍVEL E/OU VERDADE VISÍVEL:
RELAÇÕES ENTRE LÓGICA E HISTÓRIA *
C HRISTIAN O TTO M UNIZ N IENOV **

Resumo: A constatação de que o mundo é a injustiça é tributária


da idolatria da visão, portanto à visibilidade da injustiça
corresponde a invisibilidade da justiça. Se a história como busca
da verdade é o desejo de perfectibilidade visual e a
hospitalidade hiperbólica como perfectibilidade invisível é a
justiça, então há incompatibilidade entre história e justiça. O
caso da mentira é exemplar: se a justiça é tão falsa quanto a
verdade injusta, a lição cética é viver com as contradições.

Palavras-Chave: Injustiça – Visibilidade – Justiça – Invisibilidade


– Verdade – História – Lógica.

1 – O mundo é injustiça. Guerras, estupros, miséria, fome, genocídio,...1


Partimos de uma constatação. Poderíamos inclusive talvez avançar a
hipótese de que a injustiça é ubíqua – mas seria provavelmente arriscado
afirmar que é onipotente, ou então que a violência e a injustiça são
sinônimas: será que toda violência é injusta e à existência da injustiça
corresponde sempre a presença da violência?2 De qualquer forma,

* Artigo elaborado e apresentado na disciplina “A fundamentação ética do agir humano 4: ética-


política: Levinas, Derrida, Agamben”, ministrada pelo Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza, junto ao
Programa de Pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS), em 2008/I.
** Doutorando do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do

Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: ottonienov@bol.com.br


1 “... a reticência, vocês sabem, é a figura de um calar-se para deixar se fazer ouvir mais do que a

eloquência” (DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade.
São Paulo: Escuta, 2003, p. 85).
2 Esta questão estabelece um diálogo de deslocamento com a oposição derridiana entre força justa,

legítima ou não violenta e violência sempre injusta. Ver DERRIDA, Jacques. Força de lei: o
fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 9.

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precisamos da convocação do testemunho para assegurar a verdade de uma


afirmação.
1.1 Ubiquidade. A primeira testemunha é P. K. FEYERABEND:
“Realmente há situações que põem em perigo a vida humana e
com as quais temos de lidar. Bactérias, vírus, animais ferozes,
doenças de todas as espécies, condições adversas, geológicas e
meteorológicas são exemplos disso. Este mundo não é um
paraíso”3.
1.2 Anterioridade. O segundo convocado é P. RICOEUR: “... o sentido da
justiça é solidário do de injustiça que, muito amiúde, o precede. É sob o
modo da reclamação que entramos no campo do injusto e do justo: ‘Isto é
injusto!’ – esta é a primeira exclamação”4.
2 – A constatação da injustiça é tributária da idolatria da visão. A injustiça
chega pela visão. Há um fascínio do olhar e um desejo de visibilidade que
ajudam a explicar por que, mesmo quando ouvimos dizer algo, que não
vimos, de alguém confiável, ainda assim a dúvida permanece5. Há uma
epistemologia da sensibilidade que permite compreender a hierarquização
dos sentidos. Padecemos de um visiologocentrismo6. Neste império da
visibilidade a injustiça é onipresente.
3 – À visibilidade da injustiça corresponde a invisibilidade da justiça. Se a
injustiça é o que se vê, então a justiça é o que não se vê. Este aspecto lógico-
sistemático é a voz do chefe, ela comanda7, mesmo que surjam dificuldades:
será que tudo o que se vê é injusto? Será que a injustiça é sempre visível?
4 – A história de Laurinha. Aqui, o fascínio do olhar e a existência da
injustiça estão unidos de maneira violenta.

3 FEYERABEND, Paul. A conquista da abundância: uma história da abstração versus a riqueza do ser. São
Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 27.
4 RICOEUR, Paul. Ética e moral. In: Leituras 1: em torno ao político. São Paulo: Loyola, 1995, p. 164-5.
5 Sobre a desconfiança em relação à audição cega e a recorrente e necessária remissão da audição à

visão como origem ou fundamento, ver nosso trabalho sobre Montaigne: NIENOV, Christian Otto
Muniz. Dos canibais, ou: sobre a invasão do bárbaro para a libertação do canibal colonizado pelo
civilizado. Revista de estudos criminais, ano VII, n. 26, jul/set 2007, p. 149-72.
6 Sobre a epistemologia da sensibilidade comandada pelo visiologocentrismo, ver nosso outro

trabalho sobre Montaigne: NIENOV, Christian Otto Muniz. Da visceralidade: sobre a primazia do olfato
(no prelo).
7 “En el sistema sólo habla el controlador, el jefe. El sistema es siempre la voz del jefe: por eso todo

sistema es totalitario...” (CIORAN, Emil Michel. Conversaciones. Barcelona: Tusquets, 2001, p. 22.)

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4.1 A família. Duas características e um fato marcam a família de


Laurinha, composta por seu pai, o narrador anônimo, sua mãe, Teresa, e seu
tio paterno, Manoel. Em primeiro lugar, a emotividade dos homens: “É uma
característica da minha família, temos o coração mole, qualquer coisa faz
nossos olhos se encherem de lágrimas, um passarinho morto, um
cachorrinho abandonado, uma criança pobre pedindo esmolas, qualquer
coisa”8. Em segundo lugar, a morte da mãe – evidentemente o choro dos
homens foi visível durante o enterro de Teresa. E, em terceiro lugar, a feiura
do tio paterno: “... ele tinha um lábio leporino que fora mal operado e o seu
rosto tinha um esgar permanente muito feio, ele sabia disso, e as garotas
fugiam dele”9.
4.2 O acontecimento. Certo dia, quando Laurinha tinha dez anos, ao
sair do colégio, não chegou em casa. Seu pai e seu tio procuraram-na, mas
não a acharam. No dia seguinte ela foi encontrada morta num terreno
baldio. O pai e o tio foram fazer a identificação:
“O senhor se prepare para algo muito chocante, disse o legista.
O estuprador espancou-a com muita violência, quebrou os dentes
e o nariz dela, depois estrangulou-a, a menina tem equimoses pelo
corpo todo.
O legista abriu uma gaveta de metal onde estava o corpo de
Laurinha. O rosto dela estava deformado devido aos golpes
violentos que sofrera. Parecia uma máscara, uma grotesca
criatura”10.
4.3 A verdade. O policial disse que sabia quem fora o autor do crime:
“Já sabemos quem fez isso, disse o tira, é um sujeito chamado Duda. Vai ser
difícil pegar esse cara. Mora no morro”11. O pai e o tio de Laurinha não
questionaram o saber da polícia, talvez porque confiaram, ainda que
inconscientemente ou por hábito, naquilo que ouviram, presumindo, no
fundo, que alguém deve ter visto – quer dizer, a testemunha ocular é a
origem da confiança na certeza do saber –, talvez ainda porque o desejo de
visibilidade é uma loucura cega às incertezas invisíveis – quer dizer, mesmo
quando não se pode ver, deve-se ver.

8 FONSECA, Rubem. Laurinha. In: Ela e outras mulheres. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 90.
A partir desta nota todas as referências a este escrito serão abreviadas por LA.
9 LA, p. 91.
10 LA, p. 91.
11 LA, p. 92.

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4.4 O descrédito. Imediatamente após saber quem fora o autor do


crime, Manoel interroga:
“Quando vocês pegarem, ele vai ficar preso?, perguntou
Manoel.
Bem, como não será flagrante, o delegado vai ter que pedir a
prisão preventiva dele ao juiz, só depois que a prisão preventiva
for decretada o Duda poderá ser preso, isso se for decretada, do
contrário ele vai ser processado em liberdade.
Interessante, disse o meu irmão”12.
O tio de Laurinha não confia na eficácia do aparato jurídico-policial,
mas acredita na visibilidade da justiça. E é justamente este desejo de justiça
visível que impulsionará os dois homens na busca pelo autor do crime.
I. Da coragem. Para que o desejo de visibilidade da justiça não fique
imobilizado devido à inércia do ineficiente aparato jurídico-policial, existe a
necessidade de coragem. A coragem, este impulso que vem do coração, não
seria simplesmente uma virtude, mas a atitude par excellence que combateria
a visibilidade da injustiça transformando a ausência da justiça em presença
visível. Desta forma, permaneceria subserviente ao fascínio do olhar.
II. Da covardia. Diante da perspectiva da perpetuação da injustiça,
devido à ineficácia do aparato jurídico-policial, o pai e o tio de Laurinha
poderiam seguir os conselhos de um contratualista:
“(...) mesmo nos casos em que as leis e as instituições são
injustas, muitas vezes é melhor que elas sejam consistentemente
aplicadas. Desse modo, aqueles submetidos a elas pelo menos
sabem o que lhes é exigido e podem se proteger adequadamente;
ao passo que existe uma injustiça ainda maior se os que já estão em
desvantagem são tratados de forma arbitrária em casos
particulares em que as regras lhes dariam alguma segurança”13.
A estratégia do contratualista é uma lição de covardia, de legalidade e
de tirania.

12 LA, p. 92.
13 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 62-3. “... even where laws
and institutions are unjust, it is often better that they should be consistently applied. In this way
those subject to them at least know what is demanded and they can try to protect themselves
accordingly; whereas there is even greater injustice if those already disadvantaged are also
arbitrarily treated in particular cases when the rules would give them some security” (RAWLS,
John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1999, p. 51.)

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4.5 A vingança. O pai e o tio de Laurinha resolvem buscar a justiça por


conta própria. Retiram todo dinheiro no banco e se dirigem ao morro, local
onde estava o criminoso. Negociam com os traficantes o valor do sujeito. E
recebem novamente a confirmação da verdade: “Foi este o cara que matou a
menina, disse o traficante, a polícia sabe e já andou por aqui atrás dele”14. De
posse de Duda, partiram então para sua casa de campo num local isolado.
4.6 A (des)razão. Na companhia do criminoso, o pai e o tio de Laurinha
tentam encontrar a razão de tanta brutalidade:
“(...) por que você fez aquilo com a menina?
Não sei, ele respondeu, foi uma loucura, quando vi ela andando
na minha frente com aquela saia curtinha do colégio me deu uma
coisa que eu não resisti. Mas estou arrependido. Muito
arrependido.
Precisava ter socado a cara e o corpo dela com tanta violência?
Não sei o que deu em mim, disse Duda. Estou muito
arrependido. Deus vai me castigar.
Deus que se foda, eu disse”15.
Estranha relação: como se o desejo de visibilidade comandasse de tal
forma os outros sentidos que a loucura de ver se expandisse
incontrolavelmente para além de seus limites visíveis. Note-se, além disso,
que a confissão não resolve o problema da visibilidade perdida: que melhor
testemunha do crime haverá do que o próprio autor, mas também de quem
se terá a maior desconfiança?
4.7 A tortura. Dada a impossibilidade do perdão – como perdoar uma
injustiça, como perdoar o imperdoável16, como perdoar uma loucura
dissimulada ou desarrazoada? –, o pai e o tio de Laurinha iniciam o
processo de tortura do criminoso. Na primeira fase, o objetivo era a
eunuquização do criminoso: “Agarrei os colhões de Duda e cortei
lentamente, ouvindo os gritos lancinantes dele. Peguei o saco escrotal com
os dois testículos e joguei na lata de lixo”17. Uma semana depois, o fracasso
da tentativa: “Eu e Manoel nos aproximamos da cama e eu disse para o
Duda, queríamos que você ficasse com a voz fininha, como se fosse uma
mulherzinha. Mas não ficou, disse Manoel, se ficasse íamos soltar você.

14 LA, p. 93.
15 LA, p. 93-4.
16 Ver DERRIDA, J. Anne..., p. 35.
17 LA, p. 94.

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Azar o seu”18. Começa então a segunda fase da tortura, a quebra de ossos até
a morte, através de uma agonia deliberada (“Ele tem que sofrer...”19) e lenta:
“Pegamos duas barras de ferro na garagem e um martelo e
voltamos para o quarto. Tiramos o lençol de cima do corpo de
Duda.
Vamos começar pelos tornozelos, disse Manoel.
Lentamente, eu disse, lentamente, o puto tem que sofrer.
Quebramos com as barras de ferro os dois tornozelos de Duda.
Esperamos um pouco e quebramos os ossos da canela, aquele osso
que quando a gente está jogando futebol e leva um chute dói pra
caralho.
Ele gritava como um louco. Mais um intervalo para ele se
recuperar, não queríamos que ele desmaiasse de dor, e então
esfacelamos seus dois joelhos.
Ele continuava gritando e agora defecava e urinava na cama.
Outro intervalo. Em seguida, com as barras de ferro, quebramos
os cotovelos, depois as costelas, depois a clavícula, sempre com um
intervalo entre uma coisa e outra. Com um martelo parti todos os
dentes dele.
Então ele começou a gritar fininho, com a voz que nós
queríamos que ele tivesse quando arrancamos os seus colhões.
Mas agora era tarde, fazia mais de três horas que estávamos
arrebentando os ossos dele.
O puto morreu coberto de merda, mijo e sangue.
Levamos a cama para o quintal dos fundos, enchemos de
gasolina e tacamos fogo”20.
5 – Vingança ou justiça: a indecidibilidade é visível, a decidibilidade é
invisível. A história de Laurinha coloca o difícil problema da definição de
justiça. Se a visibilidade da injustiça parece evidente, e a multiplicação dos
exemplos seria um deleite para o olhar, a justiça carece de visibilidade. Mas
prolifera em desejo. A morte violenta de Duda é um ato de justiça? Ou seria
um ato de vingança, portanto, uma nova injustiça? Mesmo ignorando a
dúvida que habita a visibilidade perdida (da morte de Laurinha), ainda

18 LA, p. 95.
19 LA, p. 95.
20 LA, p. 95-6.

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assim a condenação à prisão de Duda, e a consequente perda de liberdade,


seria um ato de justiça? Mas, afinal, o que é a justiça? Queremos a justiça,
mesmo que sua invisibilidade seja infinita, talvez esta seja justamente a sua
virtude, sua decidibilidade irredutível como dúvida perene do fascínio
exercido pelo olhar, que paralisa, presentifica, representa, quer dizer, como
questionamento do império da visão, uma espécie de choque de
indecidibilidade naquilo que é visível.
6 – A história como busca da verdade é o desejo de perfectibilidade visual. A
virtude magna da história é a verdade. Seu maior perigo é a ficção.
Compartilha com a imaginação o mesmo movimento de transformação do
invisível em visível. Mas existem duas diferenças básicas: a imaginação é
livre em relação ao passado e a falsidade, para ela, não é nenhum defeito.
Por isso, a história precisa afastar o risco da imaginação. Seu desejo de
visibilidade é de outro tipo. E daí a importância da testemunha, que desde
Heródoto, é aquele que viu21. A testemunha ocular é o sujeito ideal da
história, é aquele que permite com que a invisibilidade – ou a visibilidade
perdida – se torne novamente visibilidade, é aquele que transforma a
ausência numa presença, ele é o autor da representação da verdade. A
perfectibilidade visual almejada – a passagem do invisível à visibilidade –, o
desejo de ver a verdade, jamais afasta o perigo da imaginação, e esta
estrutura constitutiva aporética da história, ficção ou verdade participa do
aparato jurídico-policial. De novo a história de Laurinha: será que Duda foi
realmente o autor do crime? Queremos saber (ver) a verdade, uma tarefa
necessária, mas impossível, porque só há invisibilidade. A concepção
jurídico-policial da história que resolve o problema através da
representação fundamentada na perfectibilidade visual ignora, esquece ou
dissimula sua aporia insolúvel: ficção ou verdade?
7 – O difícil diálogo entre a lógica e a história. A lógica é pobre, e a
história rica; a lógica é visível, e a história invisível; a lógica comanda, e a
história desobedece; a lógica é a voz do chefe, do controlador, e a história é
a voz inescutável dos fracos; a lógica é totalitária, e a história fragmentária;
a lógica é o pensamento anônimo, e a história o saber das singularidades.
8 – A hospitalidade hiperbólica como perfectibilidade invisível é a justiça. Se
a hospitalidade hiperbólica, absoluta, incondicional é justa, então a
hospitalidade condicional, jurídico-política é injusta; são, entre si,

21 Ver HERÔDOTOS. História. 2 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1988; HERÓDOTO. Historiae. 3 ed.
Oxonii [Oxford]: Clarendoniano, 1927, 2 v.

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antinômicas, porque há irredutibilidade e heterogeneidade, e aporéticas, já


que de sua indissociabilidade hierárquica resultam dois movimentos
distintos e necessários, o da perfectibilidade (progresso) e o da
pervertibilidade (corrupção)22. Quando a hospitalidade é condicional,
portanto visível, torna-se injusta; quando a hospitalidade é incondicional,
logo invisível, transforma-se em justiça; assim, o desejo de visibilidade é
injusto porque há pervertibilidade, e só existe justiça na perfectibilidade,
que é o movimento de invisibilidade. Tudo o que é visível é injusto? Não há
perversidade em desejar a invisibilidade?
9 – Não há direito de mentir, mas a mentira é justa. Se não é permitido
mentir, porque, conforme a razão, o dever da verdade é um imperativo
irrevogável23, então não haverá hospitalidade hiperbólica, portanto ocorrerá
injustiça. Ao contrário, se a mentira acontecer, haverá justiça, hospitalidade
incondicional24, mas também negação da verdade. A justiça é falsa, assim
como a verdade é injusta? Note-se que a preservação da hospitalidade
hiperbólica implica a invisibilidade do hóspede, portanto da justiça, e a
existência da verdade significa a visibilidade do hóspede, ou seja, a
injustiça.
10 – Há incompatibilidade entre história e justiça. Se a história é o
trabalho de transformação da invisibilidade – o resgate do passado ausente
– em visibilidade – a representação verdadeira – e se a justiça é a
necessidade e o desejo de tornar o visível – a injustiça – invisível, então a
história é tão injusta quanto a justiça falsa. A história, querendo a verdade, é
injusta: será o desejo de visibilidade injusto? A justiça, sendo invisível, é
falsa: será que a preservação da invisibilidade é uma recusa do mundo – ou
seria um desejo de outro mundo?
11 – O perigo da perfectibilidade invisível é o encontro com a violência: a
história dos Anjos das Marquises. Quando a justiça busca a visibilidade corre o
risco de entrar no círculo da violência, quer dizer, o movimento da
invisibilidade – justiça – à visibilidade é o caminho da pervertibilidade –
injustiça. Eis o exemplo dos Anjos das Marquises.

22 Ver DERRIDA, J. Anne..., p. 23-25, 67-69-71-73-75, 117-119 e 129.


23 Ver KANT, Immanuel. Sobre um suposto direito de mentira por amor à humanidade. In: A paz
perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 173-9; KANT, Immanuel. Über ein
vermeintes Recht aus Menschenliebe zu lügen. In: Werkausgabe. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
Bd. 8, 1990, S. 635-43.
24 Ver DERRIDA, J. Anne..., p. 59-61-63.

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11.1 A solidão. Paiva era um solitário infeliz. Logo após sua


aposentadoria, perde a esposa às vésperas de uma viagem pelo mundo.
Não consegue ficar na sua cobertura devido à rotina adquirida durante o
trabalho e porque não suporta a companhia da empregada. Não tivera
filhos, nem possuía amigos. “Não sentia falta de convivência, sentia falta de
uma ocupação, ansiava por fazer alguma coisa, talvez usar o dinheiro que
possuía para ajudar os outros”25.
11.2 A solidariedade. Quando Paiva saía de casa e caminhava pelas ruas
começou a reparar no sofrimento das pessoas abandonadas:
“Sabia agora, graças ao sofrimento causado pela morte da
mulher, que seu egoísmo o impedira de ver o infortúnio dos
outros. Era como se o destino, que sempre o protegera, lhe
indicasse agora um novo caminho, convocando-o para ajudar
aqueles desgraçados a quem a sorte abandonara de maneira tão
cruel”26.
Certa ocasião, Paiva presenciou algo inusitado diante de um homem
deitado no chão sob a marquise de uma agência bancária, uma reação à
indiferença coletiva pelo sofrimento alheio:
“(...) duas pessoas, um homem e uma mulher, estavam
diligentemente curvadas sobre o corpo abandonado, como se
tentassem reanimá-lo. Paiva percebeu que o que pretendiam era
levantá-lo do chão, o que fizeram com habilidade, carregando-o
nos braços para uma pequena ambulância. Paiva, depois de olhar a
ambulância se afastar, permaneceu algum tempo no local,
pensativo. Ter presenciado aquele gesto de caridade deixara-o
animado, alguma coisa, ainda que modesta, estava sendo feita,
alguém se importava com aqueles infelizes”27.
11.3 A peregrinação. Aquele ato de solidariedade realizado pelos Anjos
das Marquises (denominação dada por Paiva àquele grupo de voluntários)
deu um objetivo à sua vida. Ele procurou incansavelmente as pessoas da
ambulância, já que agora queria ajudar a aliviar o sofrimento dos outros.
11.4 A frustração. No primeiro contato com os Anjos das Marquises,
Paiva ficou sabendo de sua filantropia anônima:

25 FONSECA, Rubem. Anjos das Marquises. In: A Confraria dos Espadas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 22. A partir desta nota todas as referências a este escrito serão abreviadas por AM.
26 AM, p. 22.
27 AM, p. 23.

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“(...) somos uma organização particular, queremos evitar que


essas pessoas morram abandonadas nas ruas.
Mas não gostamos de publicidade, disse o homem de cabelos
grisalhos, a mão direita não deve saber o que a esquerda faz.
É assim que a caridade deve ser feita, disse dona Dulce”28.
Paiva aguardou inutilmente o telefonema de dona Dulce que,
conforme o combinado, entraria em contato para acertar a sua colaboração.
11.5 A verdade. A vontade de ajudar os outros aliada à frustração do
telefonema aguardado fez com que Paiva saísse novamente às ruas em
busca dos Anjos das Marquises. No segundo encontro, José fez-lhe a
promessa do contato, que efetivamente aconteceu mediante um telefonema.
No encontro, à noite, sob a marquise, Paiva acompanhou José na
ambulância até as instalações da organização. Paiva finalmente fora aceito
no grupo, sua felicidade em poder ajudar os outros era indescritível:
“Paiva caminhou pelo corredor, agora acompanhado também
de dois enfermeiros. Ao chegarem à pequena enfermaria ficou
impressionado com a limpeza do local, como já se admirara com a
imaculada brancura do uniforme dos enfermeiros. Desde que sua
mulher morrera, aquela era a primeira vez em que se sentia
plenamente feliz. Nesse momento os dois enfermeiros o
imobilizaram e o colocaram maniatado em uma maca. Surpreso,
assustado, Paiva nem conseguiu reagir. Uma injeção foi aplicada
no seu braço. O que, ele conseguiu dizer, mas não terminou a
frase.
Tiraram toda a sua roupa e o transportaram na maca para um
banheiro. Ali seu corpo foi lavado e esterilizado. Em seguida Paiva
foi levado para uma sala de cirurgia onde o esperavam dois
homens de avental, luvas e máscaras protetoras no rosto. Foi
colocado na mesa de cirurgia e em seguida anestesiado. O sangue
retirado do seu braço foi levado apressadamente por um
enfermeiro até o laboratório ao lado.
O que dá pra aproveitar deste aqui?, perguntou um dos
mascarados, voz abafada pelo tecido que lhe cobria a boca. As
córneas com certeza, respondeu o outro, depois verificamos se o

28 AM, p. 24-5.

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fígado, os rins e os pulmões estão em bom estado, a gente nunca


sabe.
As córneas foram retiradas e colocadas num recipiente. Em
seguida retalharam o corpo de Paiva. Temos que trabalhar
depressa, disse um dos mascarados, o motorista está esperando
para levar as encomendas”29.
A. O pensamento da utopia contra a antropologia do pecado. A crença na
perfectibilidade faz parte de um pensamento utópico cujo corolário é a ideia
de progresso30, mas o movimento da história é a infâmia31, prerrogativa do
pecado original32 que nos legou a ironia33.
12 – A verdade é a injustiça. Quando a verdade aparece, império da
visibilidade, virtude magna da história, é a injustiça. Mas se a justiça
permanece invisível, quer dizer, se o desejo de movimento for da injustiça
visível à justiça invisível, então surge o desespero.
B. O silogismo da desconstrução contra a descontinuidade do fragmento. A
desconstrução, em sua exigência de demonstração, portanto não-histórica,
mostrando paradoxos lógico-formais34, constata o silogismo da justiça35: a
desconstrutibilidade do direito torna a desconstrução possível, a
indesconstrutibilidade da justiça torna também a desconstrução possível
(pressuposto: o direito não é a justiça36), logo a desconstrução ocorre no

29 AM, p. 27-8.
30 “Lo propio de la utopía es admitir que el estado de perfección es posible.” (CIORAN, E. M.
Conversaciones..., p. 122.) Ver DERRIDA, J. Força..., p. 26 (sobre o progresso histórico), 36-8 (sobre o
aumento hiperbólico na exigência de justiça como sensibilidade a uma desproporção essencial
que deve inscrever na própria justiça o excesso – perfectibilidade – e a inadequação –
pervertibilidade), 86 (sobre a perfectibilidade infinita do direito internacional) e 87-8 (sobre a
desconstrução como greve geral política – substituição: perfectibilidade – e proletária – supressão:
pervertibilidade); CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 23-4 (sobre a perfectibilidade indefinida do
homem como ideia básica da utopia).
31 “La historia es en sus tres cuartas partes la historia de las tiranías, de la esclavitud humana.”

(CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 157.) Ver CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 22-5 (sobre a


história como antídoto da utopia), 212 (sobre a história como demonstração da inumanidade do
homem), 239 (sobre a história como infâmia).
32 Sobre a antropologia do pecado original, ver CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 23-4, 95, 119-20,

124-5, 154 e 193.


33 “Todo lo que el hombre emprende se vuelve contra él” (CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 171.)

Sobre o aspecto trágico da história como sentido irônico, ver CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 47,
123, 124-5.
34 Ver DERRIDA, J. Força..., p. 40-1.
35 Sobre o que chamamos aqui o silogismo da justiça (ou da desconstrução), ver DERRIDA, J. Força...,

p. 26-8.
36 Ver DERRIDA, J. Força..., p. 30.

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intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça e a


desconstrutibilidade do direito (conclusão: a desconstrução é a justiça37).
Mas a descontinuidade do fragmento que ocorre por aforismos é a
singularidade do instante38 rebelde à sistematicidade lógica39 e adepto da
vivência com as contradições40 – e a indecidibilidade41 é um corolário seu.
13 – A lição cética é viver com as contradições. Se a justiça é invisível, mas
queremos sua visibilidade, então é o círculo da violência. Dito de outro
modo: o movimento da invisibilidade à visibilidade é a injustiça. Se a
verdade é a injustiça, mas queremos a justiça, então é a ilusão. Dito de outro
modo: o movimento da visibilidade à invisibilidade é a falsidade.
Consequências: se a visão é injusta, a cegueira uma ilusão, o que o
historiador deve fazer com a epistemologia da sensibilidade que comanda
seu trabalho? Na hierarquia dos sentidos o império da visão estabelece dois
caminhos: a busca da verdade injusta é a opção do historiador imoral, a
aceitação da ficção justa é a postura do historiador cínico. Evidentemente a
posição oficial diz que o primeiro é amoral, já que o princípio da verdade é
autônomo – aí está sua neutralidade científica –, e o segundo sério, visto que
se o passado é inapreensível visualmente, então toda representação é
ficcional. Nos dois casos a visibilidade é a regra. Não seria a oportunidade,
para o historiador, diante de tal estrutura aporética, de questionar o império
da visão e a própria ideia de hierarquia? O que seria uma história, não sem
visão, mas visceral42, quer dizer, que leva em consideração a dispersão
relacional descentralizada de todos os sentidos? Poderia, e deveria, ser
verdadeira e justa?

37 Ver DERRIDA, J. Força..., p. 27.


38 Ver CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 34 (sobre o fragmento como verdade do instante), 61-2
(sobre os aforismos como generalidades instantâneas que expressam um pensamento
descontínuo), 104 (sobre o fragmento como terapêutica), 160 (sobre o aforismo como aversão à
explicação) e 178 (sobre o fragmento como orgulho do instante).
39 Ver CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 21-2 (sobre a oposição do pensamento fragmentário, livre,

ao pensamento sistemático, totalitário) e 100-1 (sobre o fragmento como elogio da contradição e a


insuportabilidade da contradição para o sistema).
40 Ver CIORAN, E. M. Conversaciones..., p. 84 (sobre a necessidade de aceitar viver com as

contradições) e 130 (sobre a plenitude das contradições).


41 Ver, por exemplo, a aporia da assombração do indecidível (DERRIDA, J. Força..., p. 46-51).
42 Sobre o historiador visceral, ver NIENOV, C. Dos canibais...; NIENOV, C. Da visceralidade...

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“O DIREITO PENAL DO INIMIGO”
E “A CONTROVÉRSIA”
M AURÍCIO S TEGEMANN D IETER *

Sumário: 1 - Apresentação; 2 - O direito penal do inimigo; 3 - A


controvérsia; 4 - Conclusão: uma analogia possível e esclarecedora; 5 -
Bibliografia.

1 - A PRESENTAÇÃO
O ensaio tem por objetivo desenvolver uma crítica ao discurso do
Direito Penal do Inimigo – na forma particular e original em que é
apresentado por GÜNTHER JAKOBS – à luz da obra A Controvérsia, de JEAN-
CLAUDE CARRIÈRE.
O referencial teórico é a possibilidade de analogia entre os
argumentos invocados para defender o direito de oprimir e explorar os
indígenas do Novo Mundo no Século XVI e os utilizados para sustentar a
necessidade de um direito penal capaz de lidar com ameaças extremas a
partir da exceção de regras básicas do jogo democrático.
O sentido da crítica parte da constatação de MASSIMO PAVARINI de
que embora a proposta de JAKOBS se apresente como descrição, no pouco
que prescreve coloca em risco todo o Estado Democrático de Direito. Por
isso, é preciso refutar de modo contundente e sob as mais diferentes
perspectivas os argumentos que ampliam o alcance do poder punitivo ou

*
O autor é mestre e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná, especialista em Direito Penal, pesquisador-convidado do Instituto Max-Planck
(Freiburg), professor de graduação e pós-graduação de Direito Penal e Criminologia em
diferentes instituições de ensino superior e advogado criminal em Curitiba.

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retiram-lhe os freios retóricos1. Por certo, a literatura tem importante papel a


cumprir neste propósito.
Como ressalva, oportuno frisar que a análise a seguir apresentada
reduz sensivelmente a teoria de JAKOBS e a novela de CARRIÈRE aos pontos
que interessam ao propósito crítico do ensaio, isto é, mostrar que
possibilidade de reconhecer uma distinção originária entre europeus e
indígenas e cidadãos e inimigos é um exercício intelectual indigno. Não há,
portanto, pretensão de esgotar os temas aqui anunciados.
A reflexão segue o seguinte roteiro: primeiro, relata de modo geral os
aspectos centrais da proposta de JAKOBS para um Direito Penal do Inimigo;
segundo, contextualiza e destaca a linha de raciocínio de um dos principais
personagens do romance de CARRIÈRE – a saber, o filósofo Sepúvelda – em
torno de um debate sobre a natureza humana do índio; finalmente, pondera
criticamente as semelhanças entre os discursos para desvelar o que há de
comum – e perverso – entre eles.

2 - O D IREITO P ENAL DO I NIMIGO


O fundamento filosófico e político inicial do Direito Penal do Inimigo
proposto por GÜNTHER JAKOBS remete às teorias contratualistas do Estado
de ROUSSEAU e FICHTE, segundo as quais aqueles que cometem crimes estão
imediatamente excluídos dos direitos assegurados pelo pacto social, porque
seus atos vão de encontro ao próprio sentido da proteção estatal2.
Entretanto, julgando ser excessivamente abstrata e radical esta
perspectiva, atenua seu ponto de vista para considerar – agora em
referência a HOBBES – que a perda (possível) do “status” de cidadão não
acontece para todos os criminosos, mas apenas para aqueles que cometem
delitos definidos como de “alta traição”, ou seja, condutas absolutamente
incompatíveis com o sistema de poder dominante3. Para complementar esta
perspectiva – já na companhia de KANT –, JAKOBS apela para o sentimento
de insegurança que seria provocado por pessoas ou povos que vivem à
margem do discurso jurídico oficial (opondo-se ao “modo de vida comum”)

1 A reflexão foi desenvolvida no curso do Prof. MÁSSIMO PAVARINI ministrado no Curso de Altos
Estudos da CAPES/PROEX, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná no mês de agosto de 2008.
2 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.25-26.
3 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.27-28.

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como justificativa para exigir que se submetam ao ordenamento ou que se


retirem da vida em comunidade4.
Na síntese dos dois últimos pensadores, o penalista alemão conclui no
sentido de que desviantes “persistentes” – isto é, aqueles que delinquem
“por princípio” – devem perder o status de pessoa perante o Direito, porque
colocam em risco o “sentimento de segurança” de todos os cidadãos,
amálgama de toda vida social5.
O Direito Penal do Inimigo, portanto, se desenvolve em torno da
distinção entre cidadãos – definidos como pessoas racionais adequadamente
socializadas – e inimigos – descritos como indivíduos de personalidade
perigosa. Por um lado, o cidadão é titular de direitos e deveres
constitucionalmente garantidos e por isso face às pretensões punitivas do
Estado lhe socorrem todas as normas de proteção individual do Estado
Democrático de Direito. Por outro, o inimigo é destituído de plena proteção
legal e por isso estes direitos são válidos apenas na medida em que não
dificultam a eliminação do perigo que sua existência simboliza para a vida
em sociedade6. Assim, o Direito Penal do Inimigo pressupõe qualidade
especial do acusado que autoriza tratamento normativo desigual,
reformulando um já abandonado direito penal do autor.
Os inimigos são, nesta perspectiva, infiéis ao ordenamento jurídico7:
deles não se espera, ao contrário do cidadão, fidelidade normativa8. Sua
personalidade hostil não oferece “garantia cognitiva” de um
comportamento futuro conforme a norma9 e isso os torna, nas palavras do
autor, simples “fontes” ou “focos de perigo” – “não-pessoas” – que devem
ser eliminadas10.

4 Isto é, os marginalizados devem ser expulsos, confinados ou eliminados. JAKOBS, Günther. Derecho
penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.228-29.
5 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.30.
6 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.51.
7 Essa aproximação “religiosa” do inimigo também fica evidente quando JAKOBS o define como

aquele que se comporta permanentemente como um “diabo” – supondo ser o paraíso o conjunto
abstrato das expectativas normativas de comportamento. Ver JAKOBS, Günther. Sobre la
normativización de la dogmática jurídico-penal, p.54.
8 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.36-37.
9 JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.43.
10 JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.46 e 68,

JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal, p.54 e JAKOBS, Günther.


Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal, p.58.

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Evidentemente, não haveria sentido castigar estes “autores por


convicção” para reafirmar a validade de uma norma – vez que a rejeitam
“por princípio”11 – sendo o objetivo da punição apenas “neutralizá-los”12. E
se a sanção aplicada a estes indivíduos não compartilha das funções
declaradas atribuídas à pena criminal, sua cominação prescinde do exame
da culpabilidade e demais requisitos legais, para ser calculada conforme a
“perigosidade” do sujeito e acrescida do quantum necessário para
restabelecer simbolicamente plenitude da expectativa normativa violada13.
A tal ponto vai essa distinção que JAKOBS sequer a denomina “pena”14,
referindo-se a este ato de violência estatal como “custódia de segurança” 15.
O método proposto para identificar os inimigos consiste em observar
os autores de certos tipos legais que, por seu critério de criminalização,
seriam capazes de revelar a existência de personalidades perigosas. Entre
estes tipos, são exemplos os crimes sexuais e contra a ordem econômica, a
comercialização de entorpecentes, a prática de atos terroristas ou aqueles
realizados por meio de organizações criminosas16. Todavia, o perigo da
realização material de qualquer um destes crimes tornaria necessária a
antecipação da tutela penal contra estes sujeitos, adotando-se estratégias
preventivas que ignoram a presunção de inocência como única forma de
evitar mal futuro e certo17. Não por outro motivo, os crimes próprios do
inimigo estão frequentemente previsto como tipos de “perigo abstrato”18.
Logo, bastaria “planejar” um destes delitos para “voluntariamente”
renunciar à personalidade jurídica, autorizando o Estado a ignorar os
direitos fundamentais – descritos no texto como “benefícios” – para garantir
a “segurança pública” sem maiores objeções19. Somam-se à esta ampla

11 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.31.
12 As técnicas de neutralização, entretanto, são deixadas ao arbítrio do poder, aparentemente por
conveniência. JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad,
p.46.
13 JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal, p.55.
14 JAKOBS, Günther. Sobre la teoria de la pena, p.34.
15 No que se aproxima da medida de segurança, embora sua execução renuncie a qualquer fim

terapêutico. JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.31.
16 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.39 e JAKOBS, Günther.

Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.44-45.


17 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.41-42.
18 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.39-40.
19 Impossível não perceber a contradição essencial à proposta de JAKOBS; se o inimigo é aquele que

mostra disposição recalcitrante em violar a ordem jurídica, assim o fazendo por repetidas
manifestações de conduta, como poderia ser legítimo antecipar a tutela penal quando ainda não
existem manifestações concretas de condutas contrárias a um bem jurídico protegido? Isso

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antecipação da punibilidade o aumento das penas cominadas e a supressão


de diversas garantias processuais contra o acusado-inimigo20.
A proposta de JAKOBS depende, como um todo, da existência
convincente de uma ameaça capaz de colocar em risco o Estado
Democrático de Direito, a ponto de exigir a exceção de seus fundamentos
básicos como condição de sua preservação21; e o autor vai identificar esse
elemento imprescindível para legitimar suas teorizações na recente “ameaça
terrorista”, cuja realidade poderia ser comprovada pelo ataque ao “World
Trade Center” em 11 de setembro de 200122.
Vítimas do fantasma do terrorismo e das demais fontes de
insegurança da vida moderna, as sociedades contemporâneas são então
definidas como zonas de risco23 aptas a requerer de cada um de seus
membros um compromisso pessoal com a ordem normativa, do qual é
preciso dar contínuas mostras24: poucos deslizes são tolerados no contexto
de uma “guerra ao terror”.
Em última análise, é pelo argumento da guerra que se legitima toda a
violência institucional proibida pelo Estado Democrático de Direito
(convertido em “Estado de Guerra”). Não por outro motivo, em um dado
momento o autor foi obrigado a descrever o Direito Penal do Inimigo como
tentativa de “regulamentação da guerra” pelo Direito Penal e Processual
Penal, referindo-se a uma situação ambígua descrita como “guerra

evidencia – caso ainda se precise de evidência – que o inimigo não é definido conforme seu
comportamento, de forma objetiva, mas subjetivamente, sendo identificado por estereótipos e
idiossincrasias que disparam meta-regras punitivas, o que é próprio de um direito penal do autor:
não se pune o indivíduo pelo que fez (até porque, em muitos destes casos, sequer haveria
tentativa punível) mas pelo que é. Assim, o Direito Penal do Inimigo depende de meras hipóteses,
projeções, prognoses, expectativas de comporamento futuro: vive deslocado no tempo; não é
deste mundo, apesar do que sustenta o autor em JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e
derecho penal del enemigo, p.53.
20 JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.44.
21 Se bem a crítica à proposta de JAKOBS desenvolvida neste artigo cinge-se às comparações possíveis

com a novela de CARRIÈRE, não se pode deixar de fazer referência a ensaio de GIORGIO AGAMBEN
“Estado de Exceção”, que fornece elementos para uma crítica muito mais profunda ao argumento
da exceção no Estado Democrático de Direito.
22 Fato que aparece no texto de forma bastante ingênua, para dizer o mínimo, como se pode

comprovar em JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.40-41 e
46-47.
23 Nas quais as questões de segurança são debatidas diuturnamente, e cuja capacidade de resistência

contra essa indizível ameaça é “questionável”, conforme JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho
penal y la configuración normativa de la sociedad, p.42.
24 JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.43.

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contida”25. Fato é que JAKOBS demonstra genuíno interesse nesta dificuldade


de viabilizar a paradoxal supressão de elementos do ordenamento jurídico
de forma “juridicamente ordenada”, ou seja, do desafio de suspender o
ordenamento em certos casos sem destruí-lo como um todo. Mas se por um
lado insiste na necessidade de “delimitação” do Direito Penal do Inimigo
(especialmente para evitar que se misture do Direito Penal do Cidadão)26,
por outro é absolutamente incapaz de oferecer uma resposta consistente27.
Para encerrar, naquilo que interessa ao referencial teórico deste
ensaio, é suficiente ter em mente a seguinte síntese do que foi exposto: a
proposta reacionária28 de JAKOBS de um Direito Penal do Inimigo demanda a
diferenciação dos seres humanos em categorias distintas para legitimar
práticas punitivas desiguais, com o objetivo de manter a ordem jurídica
apesar de suas contradições em nome de uma ameaça indefinida. Com esta
consideração em vista, pode-se agora avançar para o tópico seguinte.

3 - A C ONTROVÉRSIA
A conquista e o início da colonização da América do Sul por
espanhóis no Século XVI é o pano de fundo do livro de JEAN-CLAUDE
CARRIÈRE, que narra com liberdade poética a famosa “controvérsia de
Valladolid”, cujo fim era determinar se a condição humana do indígena era
ou não semelhante à dos conquistadores europeus, para saber se legítimo
aos olhos de Deus sua escravização29.
O debate realizado em 1550 por ordem do rei da Espanha Carlos V
opôs o padre dominicano BARTOLOMEU DE LAS CASAS ao filósofo GINES DE
SEPÚLVEDA. O estopim do debate – ou o pretexto para discutir a “questão

25 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.41. No mesmo sentido,
JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.45-46.
26 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.46 e 64.
27 Embora o autor defina que existem limites para a reação do Direito Penal contra o inimigo,

deslocará a possibilidade de definir esse limite para um cálculo sobre a necessidade de violar este
ou aquele direito do acusado em cada caso. Mas se cabe ao próprio Estado definir quais ações são
necessárias – isto é, se cabe ao algoz definir o que lhe é permitido para vingar-se – a limitação
proposta é risível, e não pode ser considerada uma resposta. JAKOBS, Günther. Dogmática de
derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.43.
28 Para que não pareça exagerada a alcunha de “reacionária” aqui atribuída a teoria de JAKOBS

recomenda-se a leitura do excerto no qual o autor exalta valores patrióticos, familiares e religiosos
como porto-seguro das expectativas de comportamento em sociedades passadas, agora colocadas
em risco pelo pluralismo cultural que aumenta o número de inimigos potenciais (!). Assim,
JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad, p.45.
29 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.7.

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maior” – é a proibição da publicação na Espanha do trabalho “Democrates


alter, sive de justis belli causis” de SEPÚLVEDA, que legitimava o domínio
dos europeus sobre os indígenas e a exploração violenta de sua força de
trabalho a partir da lógica aristotélica30. O veto contra o livro foi dado pelos
dominicanos das universidades de Alcalá e Salamanca, que julgaram o texto
“perigoso” e contrário à tradição apostólica. SEPÚLVEDA, apoiado na
influência política e econômica dos diversos setores da sociedade que se
interessavam pelo reconhecimento oficial de suas teses, pressionou e
conseguiu a reunião de uma comissão de teólogos para decidir se o escrito
deveria ou não ser publicado. Essa disputa é de capital importância porque
“se o clero espanhol, observado pelo papado, autorizar a publicação de
Democrates, implicitamente também estará aceitando suas assustadoras
conclusões”31.
Como mediador do evento é nomeado pelo Papa o cardeal Roncieri,
investido pelo Santo Padre do poder para decidir sobre a humanidade dos
escravos. Oficialmente, às vésperas do encontro, a posição da Igreja é a
mesma sustentada desde o começo da exploração: deve-se dar sempre
preferência a um domínio sobre as almas e não sobre os corpos dos nativos,
que por seu caráter dócil32 podem (isto é, devem) ser convertidos ao
cristianismo pela força dos argumentos e exemplos, não pela espada33. Em
todo caso, o cardeal sabia que qualquer decisão sua sobre a “natureza” do

30 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.25.


31 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.26.
32 Impossível resistir neste ponto à lembrança, mutadis mutandis, da docilidade como resultado

desejável para o máximo aproveitamento das aptidões dos corpos. Índios dóceis são, assim,
candidatos perfeitos para o trabalho, restando apenas à Igreja a missão de introjetar neles os
valores cristãos que colaboram no processo disciplinar. A referência, por óbvio, segue as reflexões
de FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p.117-121.
33 De fato, já em 1492, a primeira bula papal não apenas reconhecia a soberania da Espanha sobre as

novas terras ao Oeste como também determinava que os “pacíficos” indígenas deveriam ser
levados à fé católica. Entretanto, a bula papal foi ignorada e as notícias da barbárie dos
conquistadores contra os indígenas eram cada vez mais frequentes. Em resposta, em 1512
teólogos editaram as “leis dos Burgos”, que reduziam a jornada de trabalho nas “encomiendas” e
enfatizavam a necessidade de oferecer uma educação católica os índios mais jovens. Como os
problemas continuaram, e sendo cada vez mais notória a crueldade dos espanhóis, em 1537 a bula
“Sublimis Deus” anuncia que os índios são dotados de razão e dignidade, e que por isso não
devem ser presos arbitrariamente ou privados de seus bens. Apesar desta nova e mais enfática
manifestação, nada mudou em relação à violência contra os nativos do outro lado do oceano. Em
conclusão, apesar da inequívoca posição da Igreja, suas leis, bulas e advertências eram
ridicularizadas pela prática diária da exploração colonial, o que em parte significava certa falta de
prestígio de sua autoridade no mundo além-mar. CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.12-23 e
31.

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índio determinaria graves consequências34: por um lado, seguir sustentando


a igualdade entre europeus e índios defendida desde o início enfraqueceria
ainda mais a autoridade da Igreja no Novo Mundo, por conta do rotineiro
desrespeito de suas orientações e proibições; além disso, tal posição iria de
encontro aos interesses econômicos dos reinos católicos da Espanha e de
Portugal, aliados fundamentais em época de crise35; por outro, sustentar a
inferioridade humana do índio não apenas contrariaria preceitos bíblicos
explícitos como repercutiria negativamente na imensa rede de fiéis
missionários espalhados ao redor do mundo, possivelmente precipitando
cismas adicionais fragilizando ainda mais a Igreja Católica36.
Neste conturbado contexto, tem início o debate em um antigo
monastério. Feitas as rezas e súplicas de praxe, o cardeal começa o evento
concedendo o direito da palavra para LAS CASAS.
O frei adota como estratégia inicial narrar em detalhes os horrores
praticados contra os nativos pelos espanhóis, na esperança de sensibilizar os
teólogos. Todavia, sua linha de argumentação é após algum tempo
interrompida pelo cardeal, que associa as barbáries pormenorizadas às
consequências normais de uma guerra, que excepcionalmente autorizam a
violação da ética cristã37. Entretanto, LAS CASAS refuta esta objeção,
ressaltando que a guerra contra os índios não é real, sendo invocada pelos
conquistadores exatamente porque é capaz de legitimar a violência38. Dito
isto, volta a descrever a crueldade praticada pelos espanhóis. Mas após

34 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.41.


35 Não se pode esquecer que no Século XVI a Igreja Católica enfrentava grave crise na Europa, sendo
suficiente para ilustrar este cenário o início da Reforma Protestante com Lutero e o Anglicanismo
promovido por Henrique VIII. Sem dúvida, uma (tentadora) decisão favorável à exploração do
indígena alinharia os propósitos dos países colonialistas com a ideologia do Papa e reafirmaria
seu poder na Europa.
36 Afinal, os principais críticos da violência europeia na América eram exatamente os vários monges

das mais diversas ordens eclesiásticas, peças-chave que materializavam a extensão do poder
papal nas novas terras, indicando ainda a possibilidade de expansão do catolicismo com o
potencial arrebanhamento de inúmeros novos fiéis.
37 “ – (...) a imagem de um homem matando seu semelhante – tão comum e tão bem aceita numa

guerra, ou simplesmente num saque – tem algo de terrivelmente chocante, de insuportável,


quando se trata de um culto, de um ritual qualquer; como se a guerra trouxesse, de fato, para o
indivíduo, uma mudança de estado, uma metamorfose do se em que, entre a regra e a exceção,
estabelece-se um jogo de outra natureza”. CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.87.
38 À refutação do cardeal, neste sentido, responde LAS CASAS: “ – Guerra? Que Guerra? (...) Esses

povos não estavam em guerra conosco! Chegavam até nós sorridentes, a alegria no rosto, curiosos
de nos conhecer, trazendo frutas e presentes! Nem mesmo sabiam o que é guerra! E nós lhe
trouxemos a morte! Em nome de Cristo!”. CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.46-47.

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breve intervalo é novamente interrompido, dessa vez sob pretexto de estar


se desviando do ponto central da discussão, qual seja, o de definir a
“natureza exata” e “qualidade” dos índios39. Esta objeção é de refutação
mais difícil que a anterior, porque se os índios forem considerados
“desalmados” ou “infiéis por natureza” (como os mouros), então
simplesmente todos estes horrores estarão amparados pela vontade divina,
independente da existência ou não de uma guerra. Como resposta, o monge
passa a defender que os nativos têm uma alma semelhante à nossa, como
demonstrariam sua amabilidade, ingenuidade e inteligência: ao ressaltar
seus atributos “humanos”, o objetivo de LAS CASAS é colocá-los em pé de
igualdade com os europeus e com isso, encerra sua primeira participação.
Agora é a vez de SEPÚLVEDA falar.
O filósofo começa por diminuir a importância da discussão,
retirando-lhe a gravidade: afirma que se trata apenas de discutir a
possibilidade de publicar seu livro na Espanha, nada mais. Entretanto,
desde cedo, ninguém parece disposto a subestimar o profundo significado
da eventual publicação. Neste ponto, SEPÚLVEDA mostra-se cínico40, porque
tira de si a responsabilidade pelas consequências humanas possíveis a partir
da interpretação de seu escrito41. Ele mesmo, adiante na discussão, será
obrigado a negar esta apologia tentada, para afirmar a simplicidade da
questão: ou os índios são iguais a nós, ou são de uma outra espécie – no
sentido de uma espécie inferior, por óbvio42.
A estratégia argumentativa do filósofo é relativamente simples:
invocando a convergência entre os desígnios divinos e as recentes

39 Como salienta o cardeal: “ – Não estamos aqui para falar da crueldade dos espanhóis, mas para
falar sobre a natureza e a qualidade desses indígenas. Compreende?”. CARRIÈRE, Jean-Claude. A
Controvérsia, p.53. Ver também p.89.
40 Oportuno aqui fazer referência ao cínico contra o qual DUSSEL dirige sua obra, definido como

aquele que pretende justificar uma ordem ética (e, reflexivamente, normativa) fundada na
aceitação da morte, do assassinato ou do suicídio coletivo, conforme DUSSEL, Enrique. Ética da
Libertação, p.144. Idêntica é a conclusão de LAS CASAS, em CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia,
p.171.
41 “ – Eu lembro a Vossa Eminência, e aos outros membros da assembleia, que me contento em pedir

que seja autorizada a publicação deste livro na Espanha. (...)


– Mas o senhor não negará (...) que sua obra, se for publicada, pode exercer uma influência
determinante sobre os que, justamente, tem como missão promulgar leis. (...)
– Peço apenas a publicação de um livro. “Que esse modesto estudo possa influir nos destinos de
um reino, não me cabe julgar.” CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.60-61.
42 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.150-151.

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realizações dos espanhóis43 e reafirmando a superioridade moral, cultural e


intelectual do europeu civilizado, ele recorre a Aristóteles (especialmente
em sua Política) para negar a dignidade dos índios – não, porém, sua
humanidade44 – e defender a divisão natural entre os homens: uns nascem
para mandar, outros para obedecer, por vontade própria ou pelo uso da
força45. A “fraqueza física” (diante das doenças europeias), os “vícios
morais” e a “cultura rudimentar” dos índios são apresentados como
evidência de sua natureza inferior e corrupta, que justifica sua escravidão e
extermínio: eles podem até ter aparência humana, mas não são iguais a nós:
não são povo de Deus, mas de outra espécie, nascidos para servir46. Trata-se
de excelente tática retórica, porque o argumento de autoridade47 o coloca em
uma posição de poder, habilitando-o a definir aqueles que estão abaixo de
sua condição ao mesmo tempo em que conquista a simpatia de seu
auditório – afinal, todos compartilham da mesma “posição superior”48.
Encerrada esta primeira parte do debate, o saldo final aponta para o
célebre “paradoxo da diferença”: é possível ser igual e diferente ao mesmo
tempo? Como podem eles ser iguais a nós, sendo tão diferentes? O objetivo

43 Referindo-se à recente expulsão dos mouros da Península e facilidade na conquista do Novo


Mundo.
44 Assim, Sepúlveda: “ – Eu não nego a condição humana daquela gente (...) no sentido que

Aristóteles a entende, seria um absurdo; afirmo simplesmente que eles estão no patamar mais
baixo desta condição, e que a natureza deles difere essencialmente da nossa”. CARRIÈRE, Jean-
Claude. A Controvérsia, p. 94-95.
45 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.89. Vale notar, em todo caso, que nunca esteve em

discussão o direito dos europeus de explorar as novas terras: a exploração que coloca em questão
a natureza humana dos índios é sempre “lógica”, “natural”, resultado inequívoco da vontade
divina. Logo, a questão é viabilizar a manutenção e ampliação deste sistema, e não de transformá-
lo, pois não estão em discussão as relações de produção, nem interessa compreender como se
produzem estruturalmente as vítimas de um sistema de dominação, mas apenas de racionalizar
ou tentar limitar as injustiças que ele pressupõe ou mantém.
46 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.77-78, 89-102 e 150-151. LAS CASAS não demorará em

desvendar o sentido da argumentação de seu adversário, que quer colocar Deus como co-orador
de seu discurso, para servir aos interesses e justificar os crimes dos espanhóis a partir de um lugar
que não pode ser contestado, pois absoluto. “(...) – Todo o seu discurso parece só ter um objetivo, o de
colocar Deus a seu lado, a qualquer preço, mesmo que seja à força. O senhor diz a todo instante: deus guia
meus atos, me ajuda a segurar minha espada, nada faço sem ele, pois Ele está comigo. Mas o que leio por
trás de tudo isso é bem outra coisa. Eu leio: Deus serve a meus interesses! É o que justifica meus crimes!”.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p. 60-61.
47 Uma das mais comuns e perigosas falácias da lógica e da retórica, como explica SAGAN, Carl. O

mundo assombrado pelos demônios, p.210.


48 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p. 62.

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de SEPÚLVEDA é facilitar-lhes a conclusão: não sendo iguais, então são


inferiores49.
Consciente da vantagem do filósofo, ao reiniciar as atividades LAS
CASAS sabe que não pode negar as diferenças; antes, terá que defender que
elas são insuficientes para sustentar uma desigualdade originária em termos
de natureza humana. Por isso, vai novamente insistir nas semelhanças entre
nativos e conquistadores, especialmente de modo que não seja possível
diferenciá-los como “espécie” distinta50.
SEPÚLVEDA, ao contrário, volta a sustentar que as diferenças
suprimem a igualdade. Primeiro, porque índios são “pecadores”,
“fornicadores” e “canibais”: logo, se forem iguais aos europeus, isso
significa que o cardeal e os monges presentes no debate compartilham dessa
mesma natureza depravada, o que é inaceitável. Segundo, porque sua arte e
religião, seus valores e costumes, são primitivos, um sinal evidente de que
este povo foi esquecido por Deus51. Novamente, estes argumentos são
facilmente incorporados pelos teólogos, até porque a maioria dos
responsáveis por julgar o caso nunca pôs os pés na América. Assim, as
notícias sobre os hábitos indígenas são aceitas como verdade, por ser mais
cômodo: quem decide à distância não escapa do senso comum. Além disso,
os teólogos se sentem no direito de emitir juízos de valor depreciativos da
cultura “pré-colombiana” porque, no fundo, dividem com SEPÚLVEDA a
arrogância de uma superioridade moral sobre aqueles que estão sob seu
julgamento52.
Mas LAS CASAS interrompe o raciocínio de SEPÚLVEDA e consegue, a
muito custo, deixar claro que diferenças culturais não podem ser
confundidas ou transformadas com condições naturais originárias.
Discrepâncias superficiais não podem, em suma, fixar a natureza do

49 SEPÚLVEDA é claro neste ponto: índios não são animais, são humanos, porém humanos de uma
categoria inferior. CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.157-158.
50 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.112-113 e 133-142. O frei precisa defender a “igualdade

que não suprime a diferença” porque sabe que os índios só estarão sob amparo dos mandamentos
se forem considerados semelhantes aos espanhóis, como explica em CARRIÈRE, Jean-Claude. A
Controvérsia, p.198-199.
51 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.129.
52 Assim na discussão sobre um ídolo do deus Quetzalcóatl que SEPÚLVEDA traz aos olhos dos

monges, na ficção de CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.106-111. A arte dos índios é


considerada “feia”, porque os padrões estéticos europeus não mudam para compreender outra
noção de beleza possível e tais critérios unilateralmente definidos sublinham a tese da hierarquia
natural, central para o pensamento do filósofo.

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homem53. Os teólogos e o cardeal finalmente entendem a advertência –


embora aparentemente sem compreender seu pleno alcance – e agora
passam a questionar LAS CASAS sobre características físicas, emocionais e
intelectuais dos indígenas, superiores à qualquer diferença cultural: eles
sentem frio? Medo? Saudade? Diferenciam o bem do mal? Aceitam a
possibilidade de vida eterna54? O rosário de perguntas que se desfia é
sintoma desta incapacidade – compreensível, no Século XVI – de uma
genuína experiência da diferença, isto é, de um exercício de alteridade55.
Não se pode deixar de notar que durante todo o evento os indígenas são
apenas objeto da discussão; em momento algum são consultados, pois não
são reconhecidos como interlocutores na controvérsia: não são sequer
coadjuvantes da peça que selará o próprio destino.
As atividades são encerradas após a longa discussão. Os teólogos e o
cardeal se retiram para refletir e anunciar o parecer final da Igreja, sob a
proteção de Deus.
No dia seguinte, o delegado do Papa chega à sua conclusão. Com
grande pompa – mas um pouco de insegurança – sentencia que os índios
têm espírito e alma imortal como nós e, portanto, devem ser tratados como
cristãos, sendo condenada pela Igreja toda prática cruel e desumana contra
eles e proibida sua escravização, bem como negado o direito de publicação
do livro de SEPÚLVEDA56. LAS CASAS comemora.
Nada obstante, imediatamente após a decisão e para a surpresa de
todos, arremata: por outro lado, muito distinta é a condição dos negros
africanos, indubitavelmente escravos por natureza, muito mais próximos
dos animais do que dos homens; logo, eles devem constituir a força de

53 “– Mas tudo isso não passa de um jogo de linguagem! Estamos engolindo sofismas aqui! Não
podemos decidir sobre a natureza dos índios com ardis de filósofo!”. CARRIÈRE, Jean-Claude. A
Controvérsia, p.152.
54 Neste ponto o livro narra a apresentação de três índios perante a comissão, trazidos da América a

pedido do Cardeal. Os índios são “testados”, fisicamente ameçados e expostos a uma encenação
cômica feita por bobos da corte para que sejam avaliadas suas reações. CARRIÈRE, Jean-Claude. A
Controvérsia, p.154-169 e 176-185.
55 “– Eles são sensíveis como nós, conhecem o amor e o medo, os sentimentos mais sutis, mas para

enxergá-los, para enxergá-los bem, devemos olhá-los com outros olhos que não os nossos olhos
habituais, De outra forma, jamais os veremos como são”. CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia,
p.186-187.
56 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.220.

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trabalho necessária para conquista e expansão do domínio sobre as novas


terras, para a glória da Espanha e da Igreja57.
Resolvida, nestes termos, a controvérsia: sem prejuízo para qualquer
uma das partes, o preço da conciliação dos interesses estruturais com os
dogmas cristãos será pago com a vergonhosa história de exploração dos
negros na América. Mas essa é uma outra história.

4 – C ONCLUSÃO : U MA A NALOGIA P OSSÍVEL E


E SCLARECEDORA
Tanto JAKOBS como SEPÚLVEDA sustentam a possibilidade de
classificação dos seres humanos em categorias diferentes: de um lado,
cristãos e cidadãos; de outro, índios e inimigos. Os primeiros, dotados de
atributos positivos, como alma ou razão. Os segundos, portadores de defeitos
originários, que os tornam escravos ou perigosos por natureza.
Estas diferenças pessoais justificam tratamento diferenciado. Os fiéis
estão amparados pela ética religiosa ou pelos direitos fundamentais. Já os
infiéis estão fora do reino de Deus ou não compartilham das garantias do
Estado Democrático de Direito; logo, contra eles, toda forma de opressão
está legitimada.
A analogia com o “A Controvérsia” também permite destacar o
“lugar” de onde fala JAKOBS sobre um Direito Penal do Inimigo: a distinção
entre cidadãos e inimigos aparece na doutrina penal como obra de um
professor europeu, alicerçada sobre o enorme prestígio acadêmico da
dogmática penal alemã no horizonte teórico da cultura jurídica romano-
germânica ocidental. À semelhança de SEPÚLVEDA, esse “lugar de fala” é
condição para propor uma tal distinção entre seres humanos, afinal,
“aqueles que estabelecem categorias sociais entre os homens raramente se
identificam com os degraus mais baixos da pirâmide”58. Além disso, essa
mesma qualidade pessoal do autor é suficiente para angariar a simpatia de
vários teóricos59 que se tornam cúmplices na medida em que compartilham

57 Tal conclusão, absolutamente inesperada, assusta até mesmo SEPÚLVEDA. LAS CASAS tenta reagir,
mas a sua indignação é refutada secamente pelo cardeal: “– Não, não! Está bem está bem! Frei
Bartolomeu, não vamos recomeçar! Não estamos aqui para isso!”. CARRIÈRE, Jean-Claude. A
Controvérsia, p.222-228.
58 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p.86.
59 Para a atual proposta de um Direito Penal do Inimigo, em regra “catedráulicos”, no sentido da

expressão é de LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar Direito, hoje?, p.14-20.

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deste mesmo status positivo de cidadania e das “boas intenções” da


proposta.
Mas se por um lado JAKOBS e seus colegas estão em regra protegidos
da condição inferior de inimigo, quem deve ocupar o lugar do inimigo (uma
vez que os índios não são mais adequados para protagonizar este papel)?
Para atender a essa categoria é preciso encontrar um grupo de indivíduos
incapaz de resistir a essa nomenclatura. E esse lugar foi ocupado pelas
imagens que correspondem ao estigma do “terrorista”.
As imagens, como se sabe, podem produzir efeitos reais60, e
dificilmente podem contestar o rótulo que lhes é atribuído à distância61. Se é
verdade que a maioria dos monges aos quais coube decidir sobre a
humanidade dos índios nunca esteve na América – contentando-se com a
notícia, tratando-a como verdade por ser mais cômodo – também parece ser
razoável supor que JAKOBS e seus interlocutores conhecem o terrorismo
apenas como um problema distante, aceitando aquilo que é pacífico no
senso comum como suficiente para lhes satisfazer a identificação proposta,
o que fica evidente na referência aos atentados de 11 de setembro como
prova empírica e irrefutável da ameaça terrorista global62.
Destaque-se ainda que as exceções ao Estado Democrático de Direito
e à ética cristã propostas por JAKOBS e SEPÚLVEDA compartilham de um
mesmo argumento: a existência de uma guerra – contra terroristas ou
selvagens – que tem por objetivo preservar determinado modus vivendi. O
argumento da guerra serve para intensificar as diferenças ou despertar
antagonismos latentes, e aparece no sentido de autorizar a destruição física
de indivíduos ou grupos rotulados como perigosos, sejam eles terroristas ou
selvagens. Mais: o argumento da guerra não apenas justifica o horror contra
aqueles identificados como ameaças, como também escusa a morte
acidental de inocentes63. Entretanto, ontem e hoje, essa guerra jamais
ultrapassou o umbral da ficção.
No séc. XVI, coube a LAS CASAS provar que a guerra contra os
indígenas era irreal: apesar de seu modo de vida radicalmente distinto as

60 Aqui, é claro, a referência ao teorema de Thomas, como descrito em BARATTA, Alessandro. Che
cosa è la criminologia critica?, p.63.
61 Ainda que fosse possível, não parece desejável que lhes seja concedida a palavra, pois como

alertava SEPÚLVEDA “– Desde que um povo saiba falar, sabe mentir!”. CARRIÈRE, Jean-Claude. A
Controvérsia, p. 88
62 JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo, p.40-41.
63 CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia, p. 129.

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populações nativas nunca constituíram um perigo real para nossa existência


e a descrição de cenas de combate e de crueldades praticadas pelos nativos
servia apenas para permitir o saque europeu à riqueza das colônias e
reafirmar sua superioridade moral. Nos Séculos XX e XXI tal tarefa pode ser
delegada a Noam CHOMSKY, que ridiculariza o apelo belicista: ao
demonstrar o caráter meramente retórico de uma “guerra ao terror”,
fundada na ameaça de inimigos imaginários característivos de uma técnica
gerencial do poder sustentada pela irracionalidade do medo, o autor revela a
antiga estratégia de propaganda que facilita a implementação de interesses
hegemônicos decididos a partir do centro do poder capitalista global64.
De fato, não parece razoável, após cinco séculos de experiência, voltar
a incorrer no mesmo erro de sucumbir à falácia das consequências
adversas65 implícita no argumento da guerra, para não repetir a história
como farsa, depois da tragédia.
Para encerrar, vale dizer que assim como o “Democrates...” de
SEPÚLVEDA, o Direito Penal do Inimigo de JAKOBS não é apenas um texto.
Aceitá-lo como descrição de um porvir irrefreável que deve ou pode ser
adotado pelos Estados de Direito é corroborar suas conclusões,
especialmente a de que existem indivíduos cuja natureza constitutiva nos
obriga abrir mão daquelas garantias que nos fazem cidadãos e que custaram
inúmeras vidas, sendo tal sacrifício necessário para destruir estes inimigos
terríveis antes que eles destruam nosso horizonte de valores éticos comuns.
A apologia do texto de JAKOBS feita por alguns acadêmicos, especialmente
aqueles que enfatizam seu cerne descritivo, não raro parece pactuar com
esse conteúdo, e por certo não faltarão “Sepúlvedas” para racionalizar a
vontade do poder.
LAS CASAS, à distância, convida a resistir.

64 Esta perspectiva pode ser vista em detalhe em várias obras de CHOMSKY, especialmente “Piratas e
Imperadores” e “Poder e Terrorismo”. A ameaça de inimigos que fundamenta uma técnica
gerencial do poder sustentada pela irracionalidade do medo e a possibilidade de evitar as
restrições impostas pelo ordenamento pelo argumento da exceção – no contexto de uma suposta
ameaça terrorista nos EUA pós 11/09 – foi objeto de trabalho recente no qual concluo que o uso de
tais “regras de linguagem” colocam em risco o Estado Democrático de Direito. Em detalhes,
DIETER, Maurício Stegemann. Terrorismo.
65 Novamente aqui é válida a referência a SAGAN, que ao apresentar seu “kit de detecção de

mentiras” lembra que os melhores exemplos de falácias argumentativas “podem ser encontrados
na religião e na política, porque seus profissionais são frequentemente obrigados a justificar duas
proposições contraditórias”. O argumento das consequencias adversas permite defender certas
ações ou decisões sob a ameaça de uma consequencia futura desagradável, embora improvável
em termos científicos. SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios, p.210-211.

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5 – B IBLIOGRAFIA
BARATTA, Alessandro. Che cosa è la criminologia critica? In: Dei Delitti e delle Pene, 1991,
n. 1, p.63.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A Controvérsia. Trad. André Viana e Antonio Carlos Viana. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CHOMSKY, Noam. Piratas e Imperadores, Antigos e Modernos: o terrorismo internacional no
mundo real. Trad. Milton Chaves de Almeida. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
_____. Poder e Terrorismo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record. 2005.
DIETER, Maurício Stegemann. Terrorismo: reflexões a partir da Criminologia Crítica.
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Trad.
Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M.E. Orth. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano e derecho penal del enemigo. In: JAKOBS,
Günther e MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del enemigo. Buenos Aires:
Hammurabi, 2005.
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