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A PRESENTAÇÃO

F ABRÍCIO D REYER DE Á VILA P OZZEBON *

Ao receber o convite para fazer a Apresentação da Revista de Estudos


Criminais/ITEC, verifico tratar-se de um momento muito especial. É o ano
em que a PUCRS, ao completar 60 anos, celebra os dez anos do Mestrado
em Ciências Criminais e obtém a aprovação pela CAPES da instauração do
Doutorado em Ciências Criminais. Esta nova realidade gera duas
importantes repercussões: inscreve a condição de única Faculdade de
Direito Brasileira com dois Programas de Pós-Graduação stricto sensu
(Mestrado e Doutorado) e também nos coloca em outro patamar de
relevância no campo da pesquisa em Ciências Criminais. Na árdua
caminhada acadêmica que nos levou a tal condição, devemos não apenas
ver aonde chegamos, mas agradecer a todos aqueles que contribuíram para
isso. Tais conquistas representam os frutos do trabalho abnegado de
pessoas comprometidas com algo maior e que deixarão sua contribuição
para a posteridade naquilo que podemos ter de mais essencial que é a
Educação, com letra maiúscula mesmo, abrangendo os seus quatro pilares
segundo a UNESCO: “aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a
conviver e aprender a ser”, conforme a proposta de EDGAR MORIN,
pensador transdisciplinar contemporâneo que, muito a propósito, se
denomina um “contrabandista dos saberes”. O presente número da Revista,
portanto, não por acaso, reúne artigos de professores de direito penal e
processual penal, bem como de criminologia que, entre muitos outros,
fizeram parte dessa jornada que está apenas começando. Boa leitura.

* Diretor da Faculdade de Direito daPUC/RS.

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E DITORIAL

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESCOLA DE CIÊNCIAS


PENAIS NO RIO GRANDE DO SUL (60 ANOS DA
FACULDADE DE DIREITO DA PUCRS E 10 ANOS
DO INSTITUTOTRANSDISCIPLINAR DE ESTUDOS
CRIMINAIS)
A LEXANDRE W UNDERLICH
F ABIO R OBERTO D’A VILA
F ELIPE M OREIRA DE O LIVEIRA

É importante comemorar. Afinal, a Faculdade de Direito da PUCRS e


o Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais completaram, no ano
passado, 60 anos de existência. E, neste ano, completa o Instituto
Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC), nascido no seio dessa
Universidade, 10 anos de vida.
Nada mais justo, portanto, do que organizar uma obra com artigos
dos professores de criminologia, de direito penal e de direito processual
penal da PUCRS, que, ao longo do tempo, contribuíram e continuam
contribuindo para a história das ciências criminais no Rio Grande do Sul e
no país. Tarefa essa que foi devidamente cumprida com a publicação do
livro Política Criminal Contemporânea (WUNDERLICH, org., POA: Livraria do
Advogado, 2008). Importa, agora, por sua vez, contar um pouco de nossa
história, da história do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais, para
que fique consignada em uma de nossas mais importantes conquistas: a
Revista de Estudos Criminais.
O ITEC surgiu no âmbito do Programa de Pós-graduação em Ciências
Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), a partir do encontro de jovens investigadores, preocupados com o

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rumo da Política Criminal contemporânea e conscientes da necessidade de


criação de um fórum de debate permanente que transcendesse a academia.
Imbuído de um tal espírido, foi criado, em 1998, o Instituto Transdisciplinar
de Estudos Criminais (ITEC), com o objetivo de, assumindo-se como espaço
de diálogo e produção científica, questionar e repensar o estado das ciências
penais, a partir dos princípios humanitários consolidados ou mesmo
inaugurados pela Constituição Federal de 1988.
Hoje, em parceria com diversos institutos e associações que realizam
pesquisa sobre violência no Brasil e na América Latina – v.g. Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais, Instituto Carioca de Criminologia –, o
ITEC contribui com ações concretas para a defesa dos direitos e garantias
fundamentais, na crítica às inúmeras formas de (re)vivificação de modelos
repressivos autoritários.
Ao longo dos anos, o ITEC tem buscado, continuamente, a construção
e a afirmação de um lugar de encontro, tornando-se verdadeira identidade
de um grupo de investigadores críticos no Rio Grande do Sul. Trata-se de
um Instituto sem líderes, porque não há hierarquização; sem sede, porque
trabalhamos em contínuo contato. Nossos veículos principais são a Revista
de Estudos Criminais e o sítio www.itecrs.org, culminando anualmente com o
Congresso Transdisciplinar de Estudos Criminais.
Esses instrumentos permitem a divulgação de idéias, o contato com
demais pesquisadores e a agregação de todos aqueles que compartilham de
nossos ideais, respaldado, sempre, por sessenta profícuos anos da viva e
rica história do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da
PUCRS, que muito contribuiu cientificamente e que tantos ilustres docentes
teve nos seus quadros.
No ato de inauguração da Faculdade, em 13 de janeiro de 1947, o
então Diretor, Professor ARMANDO CÂMARA, já advertia que a Faculdade de
Direito era uma “promissora realidade cultural, uma atuante força
apostólica.” Seu corpo docente era “integrado por figuras expressivas da
cultura jurídica do Rio Grande.” “Vários de seus mestres eram já
consagrados professores da Universidade do Estado”1.
E, nesse momento festivo, é bom lançar um olhar retrospectivo pela
história e perceber a importância que o Departamento de Direito Penal e
Processual Penal teve dentro da Faculdade de Direito da PUCRS, bem como

* Professor Coordenador do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de


Direito da PUCRS.
1 FAUSTINO, João; CLEMENTE, Elvo, História da PUCRS, 2ed., v. I, POA: EDIPUCRS, 2002, p. 75-76.

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na própria sociedade gaúcha. Sem medo de errar, diríamos que o seu


contributo para o crescimento e desenvolvimento do saber penal e
criminológico, fruto de seis décadas de árduo trabalho científico, é hoje
amplamente reconhecido no Brasil. O que, sem dúvida, ao lado da presença
constante de saudosos mestres como os professores LUIZ LUISI e Paulo Pinto
de Carvalho, muito colaborou para a afirmação nacional do ITEC.
A construção do saber penalístico e criminológico dentro da
Faculdade deu-se sob o comando de eminentes professores, como aqueles
quatro mestres que estavam presentes no ato de constituição da Faculdade,
ou seja, os primeiros dois professores de direito penal e os dois de direito
judiciário penal da Casa: respectivamente, os Professores Doutores CELSO
SOARES PEREIRA e HERNANI ESTRELA e os Professores Doutores BALTAZAR
GAMA BARBOZA e JOSÉ SALGADO MARTINS2.
A PUCRS sempre teve grandes professores. Pelo Departamento de
Direito Penal e Processual Penal passaram inúmeros nomes de destaque,
figuras reconhecidas pelo saber jurídico-penal e altas autoridades da Justiça
gaúcha. Para citar apenas dois dentre tantos que mereceriam relevo nesta
apresentação, cumpre destacar o processualista emérito Professor PAULO
CLÁUDIO TOVO3, um dos ícones do judiciário gaúcho e reconhecido
doutrinador, autor de um sem número de artigos e livros. Da mesma forma,
o penalista e Professor JOSÉ SALGADO MARTINS4, emérito jurista e autor de
tantos trabalhos importantes para o crescimento do direito penal e
penitenciário no país. A justa homenagem aos Professores PAULO CLÁUDIO
TOVO e JOSÉ SALGADO MARTINS é também estendida a todos os professores
que lecionaram ou seguem a lecionar no Departamento de Direito Penal e
Processual Penal.
A verdade é que, desde o princípio, a Faculdade de Direito da
PUCRS criou um ambiente acadêmico inovador e promissor, que
possibilitou a construção de uma Escola de Direito Penal e Processual Penal
no Rio Grande do Sul. Ao longo dos anos essa Escola tomou corpo,
desenvolveu-se e ganhou respeito e notoriedade, fundamentalmente a
partir dos inúmeros debates, seminários, simpósios, congressos e escritos
científicos publicados por pofessores e alunos pesquisadores da Faculdade
de Direito.

2 FAUSTINO, João; CLEMENTE, Elvo, Ob. cit., p. 75.


3 Sobre Tovo, ver WUNDERLICH, Alexandre (org.), Escritos de direito e processo penal em
homenagem ao Prof. Paulo Cláudio Tovo, RJ: Lumen Juris, 2002.
4 FAUSTINO, João; CLEMENTE, Elvo, Ob. cit., p. 75.

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Diz o senso comum jurídico que o direito penal é a primeira paixão


dos estudantes dos Cursos de Direito. Seja pela dramaticidade do Tribunal
do Júri, seja pelos temas emergentes que ensejam calorosas discussões em
classe, pode-se atestar que o dado é mesmo verdadeiro. Na Faculdade de
Direito da PUCRS e no ITEC não é diferente. Afinal, o estudo do direito
penal como ciência importa a todos nós, acadêmicos ou não. O estudo das
ciências penais está interligado ao debate da violência, em suas múltiplas
formas. Temática que, inexoravelmente, atinge a todos. Nesse ponto, os
penalistas ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR estão com razão: “não há
sociedade na qual todos os conflitos tenham solução, nem se pode afirmar
seja indispensável produzir uma solução por via institucional em todos os
casos, especialmente se for previsível que a intervenção possa reproduzi-los
ou agravar-lhes as conseqüências. É possível, por outro lado, haver conflitos
que não tenham composição viável ou culturalmente aceitável e que, não
obstante, requeiram resposta formal”5.
Importa, então, buscar alternativas de resolução para os conflitos
diários de nossa sociedade, que viabilizem a convivência pacífica, e que, por
meio do estudo das ciências penais, sejam capazes de minimizar os efeitos
da violência que a todos atinge. Daí a importância do Departamento de
Direito Penal e Processual Penal, dentro e fora dos muros da Universidade,
discutindo a violência e pensando em soluções.
Como é cediço, no âmbito das ciências criminais alguns conflitos são
selecionados, sendo tratados como desvios de conduta. Alguns conflitos
passam a figurar como infração penal – crimes e contravenções –, nosso
objeto de estudo. Vê-se que, enquanto interlocutores da discussão sobre a
função do direito penal no âmbito da Academia, temos o desafio de, com
atenção às ciências correlatas, tentar minimizar os conflitos interindividuais
praticados por esses atores desviantes.
Foi nesse contexto que surgiu a Escola de Ciências Penais do Rio Grande
do Sul, no berço da Faculdade de Direito da PUCRS e, especialmente, a
partir da criação do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais. O
PPG em Ciências Criminais é um marco na história recente da PUCRS. Foi
inicialmente idelizado pelos Professores Doutores CEZAR ROBERTO
BITENCOURT, RUTH MARIA CHITTÓ GAUER e LENIO STRECK, a partir do Curso
de Especialização lato sensu em Ciências Penais. O mestrado, pioneiro na
área das ciências criminais no Rio Grande do Sul, possibilitou a formação de

5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro, Direito penal
brasileiro, RJ: Revan, 2003, pp. 87-88.

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vários professores da PUCRS e de outros tantos que hoje integram seus


quadros. Aqui, deve-se ressaltar, com ênfase, o abnegado trabalho que foi
desenvolvido pelo primeiro coordenador, o professor CEZAR ROBERTO
BITENCOURT, e pela atual coordenadora, a professora RUTH MARIA CHITTÓ
GAUER. Esses dois exemplos de docência, professores coordenadores do
PPGCCRIM, viabilizaram, dentro da nossa PUCRS, a realização dos sonhos
de muitos mestrandos que agora lecionam na Casa e, de outros tantos, que
estão exercendo a cátedra em diversos cantos do país.
Com a criação do Mestrado em Ciências Criminais, ampliou-se a
reivindicação da transdisciplinaridade para resolução dos conflitos sociais.
Reivindicação que se fortifica em um momento de consciência da crise do
paradigma científico e da necessidade de sua superação, preenchendo a
lacuna apresentada por meio da flexibilização e do intercâmbio entre os
pesquisadores e os saberes por eles produzidos.
Nasce uma transdisciplinaridade que é complementar à aproximação
disciplinar: “faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que
as articulam entre si; oferecendo-nos uma nova visão da natureza e da
realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias
disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as
ultrapassa”6.
O Estado depende de instrumentos de minimização, colocando a
necessidade da existência de uma concreta política criminal com potencial
prático-teórico capaz de estabelecer critérios de racionalização para aqueles
atores desviantes que não tiveram a oportunidade de receber o processo de
socialização. Quando os instrumentos informais de solução de conflitos
falham, surge o Estado punitivo – com seu poder-dever – como último
recurso de controle social.
Esse dado fundamental é observado pela PUCRS. Os estudos
revelam, muitas vezes, empiricamente, o sistema penal estatal como um
sistema injusto, repressivo, estigmatizante e seletivo7 e, a partir desse

6 É importante salientar a necessidade da construção de uma visão transdisciplinar do direito penal.


O Direito não está divorciado das demais ciências e, na busca do saber científico, é fundamental
esta compreensão. Especialmente no que tange ao estudo da participação da vítima no processo
penal, com toda a fenomenologia que isto envolve, é imperioso discutir o tema a partir deste novo
paradigma. Ver, Carta de Transdisciplinaridade (adotada no Primeiro Congresso Mundial da
Transdisciplinaridade, Convento de Arrábida, Portugal, novembro de 1994), publicada no
Informativo do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais, POA: ITEC, n° 6, jul./ago., 2000, pp.
03-04.
7 Por todos, conferir BATISTA, Nilo, Introdução crítica ao estudo do direito penal brasileiro, 3 ed., RJ:

Revan, 1996, pp. 25-26.

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reconhecimento, floresce um amplo e contínuo debate acadêmico, quer nos


quadros do Departamento de Direito Penal e Processual Penal, quer nos
quadros do PPG em Ciências Criminais.
Desse modo, as discussões realizadas no espaço de docência do
Departamento de Direito Penal e Processual Penal aproximam-se muito do
PPG em Ciências Criminais. Na última década, a história do Departamento,
em certa medida, se confunde com a história do Programa de Pós-
Graduação em Ciências Criminais stricto sensu, o que contribui, de forma
significativa, para a qualidade e comprometimento técnico-científico do
trabalho produzido.
Pode-se atestar que os estudos produzidos nesse âmbito têm rejeitado
a “pasteurização” do ensino do direito penal. Firmou-se, ao longo dos anos,
uma batalha contra a utilização de manuais de “profundidade acadêmica
epidérmica”, ensejando uma necessária e permanente revisão teórico-
prática dos conteúdos ministrados nas salas de aula.
Atualmente, sociólogos e filósofos discutem a crise da epistemologia
moderna, a crise dos paradigmas e o fim das certezas. Autores como
BAUDRILLARD, LYOTARD, MAFESSOLI e VIRILIO falam nos sintomas de uma
“sociedade pós-moderna”, da sociedade da pressa, da velocidade, do
individualialismo e da “coisificação” do homem. O mundo está em
permanente e profunda transformação. E, por essa precisa razão, o ensino
jurídico(penal) não pode restar estático, abúlico, inerte, desconhecendo até
mesmo os caminhos já trilhados pela própria modernidade. Daí não ser hoje
incomum professores do Departamento destacando autores da sociologia e
da filosofia nas classes de direito penal, direito processual penal ou
criminologia.
A Escola, denominada pelo Professor NEY FAYET JÚNIOR de Escola
Transdisciplinar de Criminologia do Rio Grande do Sul, recebe, assim, uma
marca de inquestionável valor, o reconhecimento por sua “autenticidade”,
por ser “diferente” e “resistente”. O estudo do dereito penal, do processo
penal e da criminologia dentro da PUCRS é diferenciado, autêntico e crítico,
sem, contudo, olvidar-se dos postulados tradicionais e dos autores clássicos.
O fenômeno vivido na PUCRS foi identificado por NEY FAYET JR.8:
“Neste quadrante, não se me afigura desadequado afirmar que esta
aproximação, cada vez mais efetiva, do Direito Penal e da Criminologia a
outras áreas do conhecimento científico, consolidou, sobretudo no universo
acadêmico, a idéia da transdiciplinariedade. Em pontos de intersecção de

8 A sociedade, a violência e o Direito Penal, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, prefácio.

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interesses, avulta-se a necessidade de um intercâmbio entre as disciplinas,


que permite, em toda a evidência, uma visão mais elasticizada do fenômeno
da criminalidade, contribuindo para um enfrentamento, não só mais
abrangente, como mais real do problema. Por outro lado, e assinalá-lo é
aqui dever inadiável e incontornável, mostra-se como uma importante
conquista o fato de as Universidades pretenderem retomar um papel de
vanguarda na produção de um saber que possa interagir com o meio, no
sentido da transformação das estruturas sociais. E mais importante ainda se
apresenta o fato de os setores jurídico-acadêmicos estarem buscando a
dianteira da discussão sobre o fatores da violência (objeto disciplinar
próprio de suas ciências), retomando um espaço que fora, para o ulterior
proveito dos estudos jurídicos, (devidamente) ocupado por outras ciências.
Com efeito: nas décadas passadas, a pesquisa sobre os fatores sociais da
violência estava sendo conduzida por outras áreas do conhecimento
(notadamente a sociologia e a antropologia), que, além de legarem ao
Direito Penal e à Criminologia uma contribuição de inestimável valor,
contribuíram, decisivamente, para a construção deste enfoque
transdiciplinar de interpretação da violência”.
Como se observa, não é desarrazoado dizer que hoje, aqui no Estado
do Rio Grande do Sul, dentro da PUCRS, a partir das contribuições de
grandes juristas que incentivaram e incentivam a manutenção do
pensamento penal liberal, se construiu uma verdadeira Escola de Ciências
Penais. É bom olhar para o passado e ver a construção dessa Escola. De uma
Escola que tanto deve e tanto ainda deverá aos professores do
Departamento de Direito Penal e Processual Penal dessa Casa e aos
membros do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais.

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POR QUE A CRIMINOLOGIA
(E QUAL CRIMINOLOGIA)
É IMPORTANTE NO ENSINO JURÍDICO?
V ERA R EGINA P EREIRA DE A NDRADE *

Resumo: O artigo aborda o ensino da(s) Criminologia(s) na


perspectiva de concorrer para a formação de uma
consciência jurídica crítica e responsável, ultrapassando e
transgredindo as fronteiras da Dogmática.

Palavras-Chave: Criminologia – Ciências Criminais – Ensino


Jurídico

Tendo sido responsável pela criação da disciplina Criminologia


nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina, e ministrando-as, juntamente com outros
colegas, há quase quinze anos, sinto-me à vontade para falar da
importância da disciplina nos Cursos Jurídicos brasileiros –
precisamente a importância na qual apostamos – razão deste escrito à
comunidade jurídica. Imperioso, pois, registrar que, apesar do Ensino
Jurídico brasileiro de graduação e, sobretudo, de pós-graduação, contar
com excelentes e consagradas cátedras de Criminologia, duas evidências
(empiricamente verificáveis) são ainda marcantes: uma, é a da ausência
ou do lugar residual, periférico, que a disciplina ocupa na grade
curricular, regra geral, optativa. A outra, é a de que, quando presente ,
são as Criminologia críticas que ocupam nela um lugar residual,
cabendo a centralidade à Criminologia positivista . Trabalho, portanto,

* Professora nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de


Santa Catarina. Especialista, Mestre e Doutora em Direito. Pós-Doutora em Direito Penal e
Criminologia. Pesquisadora do CNPq.

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com uma dupla hipótese: a disciplina Criminologia ocupa pouco espaço


no Ensino Jurídico e as Criminologias críticas pouco espaço na
Criminologia. O Direito Penal, a contrario sensu, ensinado à luz da
Dogmática Penal e, portanto, o Direito Penal dogmático, ocupa um lugar
central e espaçoso (I, II, III, IV, V).
Mas, qual é a relação existente entre Direito Penal (dogmático) e
Criminologia? Qual a importância da Criminologia no Ensino do
Direito? Mas, de que Criminologia estamos falando, se “a” Criminologia
no singular não existe?
Tais interrogantes, colocados aqui no início do Século XXI, soariam
familiares na Europa de finais do Século XIX e transição para o XX, entre
nomes célebres como FRANZ VON LISZT, ENRICO FERRI, ARTURO ROCCO,
pois foi precisamente o debate sobre as relações entre Direito Penal e
Criminologia e a performance que deveriam assumir no marco de um
“modelo integrado de Ciências Penais” a musa daquele tempo, e cujo
modelo, então consolidado e ainda dominante , nos ajuda a
compreender aquele estatuto “ausente-periférico” da Criminologia. É
que no modelo oficial que então se consolidou (a favor da “Gesamte
Strafrechtswissenschaf” de LISZT e contra o modelo de FERRI), e cujos
três pilares, reciprocamente interdependentes, serão o Direito Penal, a
Criminologia e a Política Criminal, haverá uma divisão metodológica,
cabendo à Criminologia desempenhar uma “função auxiliar”, tanto do
Direito Penal como da Política Criminal oficial, inteiramente abrigada no
marco da dicotomia dever-ser/ser. Com efeito, enquanto a Dogmática
do Direito Penal, definida como “Ciência” normativa, terá por objeto as
normas penais e por método o técnico-jurídico, de natureza lógico-
abstrata, interpretando e sistematizando o Direito Penal positivo
(mundo do DEVER-SER) para instrumentalizar sua aplicação com
“segurança jurídica”, a Criminologia, definida como Ciência causal-
explicativa, terá por objeto o fenômeno da criminalidade (legalmente
definido e delimitado pelo Direito Penal) investigando suas causas
segundo o método experimental (mundo do SER) e subministrando os
conhecimentos antropólogicos e sociológicos necessários para dar um
fundamento “científico” à Política Criminal, a quem caberá, a sua vez,
transformá-los em “opções” e “estratégias” concretas assimiláveis pelo

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legislador (na própria criação da lei penal) e os poderes públicos, para


prevenção e repressão do crime.
Estrutura-se, neste momento, uma Criminologia de corte
positivista, com pretensões de cientificidade, conformadora do chamado
paradigma “etiológico”, e segundo a qual a criminalidade é o atributo de
uma minoria de sujeitos perigosos na sociedade, que, seja pela
incidência de fatores individuais, físicos e/ou sociais, apresenta um
maior potencial de anti-sociabilidade e uma maior tendência a delinqüir
Identifica-se, assim, criminalidade com violência individual.
O modelo integrado caracteriza-se, portanto, por uma divisão
metodológica do trabalho, associada a uma unidade funcional, na luta,
então declara-se, cientificamente fundamentada contra a criminalidade
Neste modelo, o Direito Penal, pelo seu escopo prático e pela promessa
de segurança, recebeu a coroa e a faixa de rainha, reinando com absoluta
soberania, enquanto a Criminologia e a Política Criminal se consolariam,
e bem, com faixas de segunda e terceira princesas. E é com este título
que a Criminologia atravessa o Século XX, quando um outro concurso
vem mudar a sua historia: nele, a Criminologia não desfila nem concorre
com o Direito Penal dogmático, ela senta-se à mesa de jurados, mas com
nova roupagem, para julgar o Direito Penal, e sua própria roupagem
anterior. Refiro-me à mudança do paradigma etiológico para o
paradigma da reação social, processada desde a década de 60 do Século
XX, que deu origem a outra tradição criminológica crítica (Criminologia
da reação social, Nova Criminologia, Criminologia radical, Criminologia
crítica stricto sensu, Criminologia feminista), segundo a qual a
Criminologia não mais se define como uma ciência que investiga as
causas da criminalidade, mas as condições da criminalização, ou seja,
como o sistema penal, mecanismo de controle social formal (Legislativo
– Lei penal-Polícia-Ministério Público-Judiciário – Prisão – ciências
criminais-sistema de segurança pública, etc) constrói a criminalidade e
os criminosos em interação com o controle social informal (família-
escola-universidade-mídia-religião-moral-mercado de trabalho-
hospitais-manicômios), fucionalmente relacionados às estruturas sociais.
A criminalidade não “é” (não existe em si e per si), ela “é”
socialmente construída. Neste movimento, a Criminologia converte o

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sistema penal como um todo e, conseqüentemente, a Lei Penal e as


Ciências Criminais, (dimensões integrantes dele), em seu objeto, e
problematiza a função de controle e dominação por ele exercida.
No centro desta problematização estão os resultados sobre a
secular seletividade estigmatizante (a criminalização da pobreza e da
criminalidade de rua x imunização da riqueza e da criminalidade de
gabinete) e a violência institucional do sistema penal, sobretudo da
prisão, a inversão de suas promessas, a incapacidade de dar respostas
satisfatórias às vítimas e suas famílias, e a própria Criminologia
etiológica e o Direito Penal dogmático são denunciados em sua função
instrumentalizadora e legitimadora da seletividade, nascendo daí uma
nova problemática para a Política Criminal: quais são as alternativas à
prisão e ao sistema penal?
Com esta revolução opera-se a passagem de uma Criminologia
comportamental e da violência individual (positivista), que nos doutrina
a “ver o crime no criminoso” (FERRI), para uma Criminologia da
violência institucional, que nos ensina que não se pode compreender o
crime, a criminalidade e os criminosos sem compreender o controle
social e penal que os constrói como tais, e esta culmina numa
Criminologia da violência estrutural, que nos ensina a compreendê-los
não apenas a partir da mecânica do controle, mas funcionalmente
relacionada às estruturas sociais (o capitalismo, o patriarcado, o
racismo...). A seletividade do sistema penal é revelada, assim, como
classista, sexista e racista, que expressa e reproduz as desigualdades,
opressões e assimetrias sociais.
Desta forma, a mudança de paradigmas desloca e redefine a
Criminologia de um saber auxiliar do Direito Penal e interno ao modelo
integrado (que o cientificiza), para um saber crítico e externo sobre ele
(que o problematiza e politiza) convertido em “objeto” criminológico, ao
ponto da obra de Criminologia mais importante do Século XX, de
autoria de ALESSANDRO BARATTA, ter sido denominada “Criminologia
Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia Jurídico-
Penal”.
É a vez da Criminologia julgar o Direito Penal e sua própria
história para concluir que a perda do reinado naquele concurso jurídico

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não equivaleu, para a Criminologia etiológica, à perda do reinado na


história do controle penal moderno.
Ora, a historicidade da disciplina opera decisivamente a favor da
compreensão do estatuto ausente-periférico da Criminologia: a
auxiliaridade de ontem se reflete na residualidade pedagógica de hoje (o
mesmo se diga, e com mais razão, em relação à 2ª princesa, a Política
Criminal) de um Ensino, ademais, centrado na abstração do
normativismo tecnicista, cujo modelo reforça aquele estatuto. Por outro
lado, as Criminologias baseadas no paradigma da reação social não
apenas não obedecem a esta lógica, mas a problematiza. Vê-se, neste
rapidíssimo escorço, que as relações entre Criminologia e Direito Penal
estão sujeitas, historicamente, a (des)encontros e, dado que não existe
“a” Criminologia no singular, a resposta àqueles interrogantes depende
do paradigma e da Criminologia que orienta nossa visão e discurso. Ora,
tanto a inserção (se estudar) e o espaço (quanto estudar) da Criminologia
no Ensino do Direito, quanto a definição do seu conteúdo (o que
estudar), com que método e para que, envolve um conjunto de definições,
a um só tempo, paradigmáticas e políticas, que transferem suas marcas
ao Ensino, que têm impacto na construção de sujeitos (subjetividades),
cuja palavra e ação tem impacto, a sua vez, na vida social. Defendo, pois,
uma inclusão criminológica capaz de romper com ambas as hipóteses
aqui alinhavadas, a saber, resgatar tanto o espaço da Criminologia no
Ensino Jurídico, quanto das Criminologias críticas no Ensino da
Criminologia, superando seu estatuto periférico-ausente, sem abortar,
por outro lado, a Criminologia tradicional, resgatando, ao máximo, a
historicidade da Criminologia, sem a qual não se compreende como se
exerce o poder punitivo (como somos dominados), o discurso oficial
(com que seduções legitimadoras) e o senso comum (como somos
produzidos e produzimos o “outro”) criminais. Não basta, tampouco,
contar a história da Criminologia européia, ou norte-americana, temos
que mergulhar na Criminologia latino-americana e brasileira, em busca
de nossa identidade, sem olvidar, em derradeiro, que se a Criminologia
enquanto pretensão disciplinar e científica parece ser um invento da
modernidade ocidental, uma escavação arqueológica (FOUCAULT) nos
revela que, em busca de uma discussão sobre crime e pena, o céu é o
limite.

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A Criminologia têm, portanto, uma importância decisiva para o


Ensino do Direito, desde que não reduzida a uma rubrica excludente
que, mais do que valorizar a disciplina e auxiliar na compreensão do
poder e do controle social e penal (crime, criminalidade, pena,
criminalização, vitimação, impunidade, etc.), do poder-espaço dos
operadores jurídicos nesta mecânica ,concorra para infantilizar o
imaginário acadêmico, com a visão positivista da boa “ciência” para o
combate exitoso da criminalidade. A Criminologia, ao contrário de todas
as suas promessas, não nasceu para isso e não pode fazê-lo. Ensinar
Criminologias, nesta perspectiva, é concorrer para a formação de uma
consciência jurídica crítica e responsável, capaz de transgredir as
fronteiras, sempre generosas, do sono dogmático, da zona de conforto
do penalismo adormecido na labuta técnico-jurídica; capaz de inventar
novos caminhos para o enfrentamento das violências (individual,
institucional e estrutural) e este talvez seja o melhor tributo que possam
prestar ao Ensino e à formação profissional-cidadã.

24
DOUTRINAS FUNCIONALISTAS EM DIREITO
PENAL (RACIONALIDADE FINAL OU
RACIONALIDADE AXIOLÓGICA? ALGUNS
APONTAMENTOS SOBRE A FUNÇÃO DO
CONCEITO DE BEM JURÍDICO NO DIREITO
PENAL CONTEMPORÂNEO)
G UILHERME G OUVÊA DE F IGUEIREDO *

RESUMO: O artigo inicialmente discorre sobre as linhas


fundamentais condutoras das doutrinas funcionalistas em
direito penal para, em seguida, tratar das mais prementes
variações teóricas relacionadas ao modo funcionalista de
inteligir, nomeadamente no âmbito político-criminal. Neste
empenho, o trabalho busca perpassar pelos diferentes
enfoques conferidos, tanto dogmática quanto político-
criminalmente, ao conceito de bem jurídico-penal (ou bem
jurídico digno de tutela penal) e, com maior rigor, trazer à
discussão e dilucidar alguns pontos nevrálgicos do que se
vem debatendo em relação à concepção de bens jurídicos
supra-individuais.

Palavras-Chave: direito penal; funcionalismo; funcionalismo


sistêmico; política-criminal; bem Jurídico.

1 – I NTRODUÇÃO : A “C IÊNCIA DO D IREITO P ENAL T OTAL ”. A


C ONEXÃO E NTRE O J URÍDICO E O P OLÍTICO
Em tudo o que se pondera sobre a legitimação do direito de um
modo geral – e do direito penal especificamente –, devemos sempre

* Professor de Direito Penal e Advogado criminalista. Graduado em Direito pela UNESP


(Universidade Estadual Paulista). Mestre e pós-graduado em Ciências Jurídico-criminais pela
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

25
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renunciar a uma ordem preexistente, deificada ou idealmente concebida,


predominante nas sociedades primitivas ou pré-modernas. Na
sociedade secularizada e pluralista de hoje, “o problema passou a ser
mais de poiese – de ação – do que de contemplação”1. O direito penal
afasta-se do dado à contemplação, do preexistente, e busca sua
legitimação no criado2. E nessa mudança de rumo, operada no campo
das ciências jurídico-criminais, ganha relevo fundamental uma
disciplina antes relegada a um plano secundário: a política criminal, que
deixa de cumprir posição auxiliar e passa a assumir uma postura trans-
sistemática, apta a definir a direção e os limites da punibilidade. No
contexto de uma ciência global do direito penal, valendo-se das
investigações empreendidas pela criminologia, a política criminal
transformou-se em “padrão crítico tanto do direito constituído, como do
direito a constituir, dos seus limites e da sua legitimação”3.
1.1 Se assim são as coisas, seria uma grande falta não nos
lembrarmos da contribuição do já secular VON LISZT. Já na sua época,
VON LISZT propunha um novo estatuto para a política criminal. A partir
do que designava “ciência conjunta do Direito Penal” (gesamte
Strafrechtswissenchaft), passava (a política criminal) a constituir uma
disciplina autônoma, cujo tom serviria – de um jeito alheio ao método
então preponderante no estudo dogmático e sistemático do crime – para
legitimar e impor limites à intervenção punitiva do Estado, como um
meio de reforçar a conexão da ciência jurídica (em sentido estrito) com a
política.
Contudo, mesmo sendo as idéias de LISZT promissoras e dotadas
de uma intencionalidade e percepção pródigas para a época em que
estavam circunscritas, foram apenas um passo no caminho prosseguido

1 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. O novo Código de Processo Penal. MJ, Centro para o acesso ao Direito,
Lisboa, 1987, p. 26
2 Conforme salienta E. VOELING, “A ordem do criado contrapõe-se, assim, claramente, à ordem do

recebido, dominado por simbolizações ‘compactas’ e onde não sobra espaço para um ponto de
vista transcendente ou um distanciamento crítico”, apud ANDRADE, Manuel da Costa. Consenso e
oportunidade (reflexões a propósito da suspensão provisória do processo e do processo
sumaríssimo) in Jornadas de Direito Processual Penal. O novo Código de Processo Penal. CEJ. Coimbra:
Almedina, 1993, p.324.
3 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1999 p. 42 e ss.

26
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pela política criminal até que atingisse o estatuto que hoje possui. O que
se explica, de certo modo, pela mundividência própria daquela altura e,
em sentido mais direto, pela concepção de Estado (Estado de Direito
formal4, de entono liberal) então preponderante.
No atual estado de evolução da ciência jurídica, deveremos, pois,
“partir da tese de que um moderno sistema jurídico-penal deve estar
estruturado teleologicamente, ou seja, construído atendendo a
finalidades valorativas”5. Por lógica decorrência, como disciplina apta a
apontar quais devem ser aquelas finalidades está, incontestavelmente, a
política criminal. Se antes, por força dos pressupostos políticos e
metodológicos próprios do Estado de Direito Liberal (formal e
individualista), a política criminal ocupava apenas um lugar auxiliar e
secundário6 – noutros termos: não detinha competência para interferir na

4 Falamos assim de um Estado “subordinado a esquemas estritos de legalidade, mas alheio à


valoração das conexões de sentido, dos fundamentos axiológicos e das intenções de justiça
material inseridos nos conteúdos definidos através daqueles esquemas” (cf. FIGUEIREDO DIAS, Os
novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro. Lisboa: ROA , 1983, p.8).
5 Cf. ROXIN, Derecho Penal PG, § 7 nm. 51.
6 Em uma expressão já paradigmática e recorrente, LISZT relegava à política criminal uma posição

secundária, “o direito penal como barreira intransponível da política criminal” (Cf. ROXIN, Claus.
Derecho Penal – Parte General. Tradução: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz, § 7 nm. 68).
Proposição esta que vem sendo objeto das mais divergentes interpretações (cf. DIAS, Jorge de
Figueiredo. Questões fundamentais de Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p. 28) Queria com essa formulação responder às críticas partidas dos autores (como Karl
Binding) ainda apegados ao dogma irrestrito da legalidade e à metódica de raiz positivista (Cf.
ROXIN, Claus. Política criminal y sistema de derecho penal. Elementos del delito en base a la política
criminal. Tradução: J. Bustos y H. Hormazábal. Barcelona, 1992, p. 25). Foi essa visão das coisas
que levou Liszt, em uma outra formulação não menos emblemática, a assegurar ao Direito Penal
(em sentido estrito, como compreensão dogmática e sistemática) o papel de “’Carta magna do
delinqüente’ e baluarte do cidadão contra o ‘Leviatan do Estado’” (Cf. ROXIN, Claus. Derecho Penal
– Parte General. Tradução: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz, § 7 nm. 68). A política
criminal, apesar de dotada de muito maior relevo na concepção de Liszt, ficava restrita à função
de servir como um padrão crítico para o legislador; como um instrumento dotado de valorações
que, com o auxílio da criminologia, tinha como papel específico a reforma do direito legislado. Ou
seja, atuava apenas de jure constituendo, mantendo numa posição privilegiada (hierarquicamente
superior) a dogmática jurídico-penal. A política criminal, na clara síntese de Figueiredo Dias, “não
detinha competência para influenciar, de qualquer forma, a compreensão, a sistematização e, em
definitivo, a aplicação das normas jurídico-penais, não se encontrava titulada para agir ao nível de
jure constituto” (Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de Direito Penal revisitadas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 28). Fechadas estavam as portas, em obediência aos rígidos
quadros jurídicos-políticos e metodológicos do Estado Liberal, a uma direta interferência dos
valores político-criminais no sistema dogmático. Em termos metodológicos, não se vislumbrava
ainda qualquer chance para o “pensamento problemático”, dada a absoluta preeminência, o lugar

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aplicação das normas jurídico-penais –, agora, no contexto de um Estado


de Direito Material, aquela maneira de se compreender as relações entre
direito penal e política criminal não mais pode persistir.
Por Estado de Direito material se entende um Estado que, para
além de se resumir a um mero “Estado de legalidade”, objetiva, como
fim último e verdadeiro, a “justiça material”7. Assim, “a importância
fundamental que têm as garantias formais contidas no conceito de
Estado de direito não deve fazer esquecer o segundo elemento
fundamental do Estado de direito: o vínculo jurídico do poder estatal
com a idéia da justiça material”8. É sobretudo apegado a esta finalidade
de justiça material, a partir dela, que se vê justificado o princípio formal
de legalidade9, pois qualquer Estado, por mais autoritário ou ilegítimo
que seja, está apto a obedecer integralmente aos mandamentos formais
de legalidade.
Assumida a frutuozidade desse entendimento, a estabelecer entre
o direito penal e a política criminal uma relação mais próxima, de
autêntica “unidade funcional”, levanta-se aqui, com particular
premência, o problema metodológico (já acima referido e deixado em

cimeiro, para não dizer exclusivo, conferidos ao “pensamento sistemático”. Ora, se inegáveis (e
irrenunciáveis) são as vantagens do método sistemático (Sobre as vantagens do pensamento
sistemático, veja-se ROXIN, Derecho Penal PG, § 7 nm. 30 e ss.), são, por outro lado, perversos os
efeitos de uma tal metódica levada a cabo cegamente, sem ter em conta os fins últimos e
imanentes ao próprio sistema. Como “perigos do pensamento sistemático” ROXIN elenca o risco
de se abdicar da justiça no caso concreto quando se persegue a solução do “caso” a partir somente
de “deduções do contexto sistemático” em que está envolto. Também uma “dificuldade ulterior
da dogmática vinculada ao sistema consiste em que o ponto de partida sistemático certamente
simplifica e facilita a aplicação do direito; mas, ao mesmo tempo, reduz as possibilidades de
resolver o problema e desse modo pode impedir a visão de concepções melhores”. Para além
disso, o apego cego ao sistema pode dar lugar a “concepções sistemáticas não legitimáveis
político-criminalmente” e ao recurso a conceitos demasiadamente abstratos.
7 Cf. RUDOLPHI, Hans Joachim. Los diferentes aspectos del concepto de bien jurídico. Nuevo

Pensamiento Penal, año 4, n° 5 a 8, 1975, p. 338.


8 Cf. RUDOLPHI, idem, p .338.
9 Neste sentido também o entendimento de Figueiredo Dias, corroborando a virtualidade de um

Estado de Direito material, “de cariz social e democrático”, como “um Estado que mantém
incólume a sua ligação ao Direito, e mesmo a um esquema rígido de legalidade, bem como o seu
respeito e o seu propósito de garantia dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas; mas
que se move, dentro daquele esquema, por considerações axiológicas de justiça na promoção e
realização de todas as condições –sociais, culturais e econômicas – de livre desenvolvimento da
personalidade de cada homem” (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Os novos rumos da política criminal e o direito
penal português do futuro. Lisboa: ROA , 1983. , p. 10).

28
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suspenso10). Ou, o que é o mesmo, resta saber quais são os limites que o
pensamento sistemático, no contexto do Estado de Direito material
(social e democrático) contemporâneo, imprime ao “pensamento do
problema”. Se, por conseguinte, os valores político-criminais devem dar
fundamento ao sistema e ao modo de interpretar as categorias que o
compõem, não se corre o risco de se abandonar uma série de garantias
próprias do Estado de Direito (v. g. o princípio da legalidade jurídico-
penal) em nome dos postulados político-criminais de inocuização do
criminoso e luta desmedida contra o crime?
Em resposta a essa indagação, começa-se por afirmar que, apesar
de a “tensão entre a luta preventiva contra o crime e a salvaguarda
liberal da liberdade” constituir um problema de grande atualidade, ela
não implica, claramente, na contraposição entre política criminal e
direito penal. O próprio princípio nullum crimem sine lege constitui, ele
mesmo, uma exigência político-criminal11. Assim, não se vê razão
alguma naqueles que, da perspectiva do direito penal como um sistema
concatenado de garantias próprias do Estado de Direito (formal),
argumentam contra um sistema teleologicamente orientado.
Também poder-se-ia vislumbrar uma contraposição entre o
pensamento sistemático e o político criminal quando se considera como
objeto próprio da dogmática o Direito posto (a interpretação e aplicação
do Direito tal como é) e, por outro lado, se se tem por objeto preciso da
política criminal o Direito tal como deveria ser (como disciplina dirigida
estritamente à reforma do sistema). Mas, mesmo certeira em um certo
sentido, essa contraposição não deixa de ser exagerada12 porque o
direito, tal como é, deixa, para além de sua dimensão apriorística,
margens para uma “penetração axiológica”13.

10 Cf. supra, nota 6.


11 Cf. ROXIN, Claus. Derecho Penal PG, § 7 nm. 68. Assim também: FIGUEIREDO DIAS. Questões
fundamentais de Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 36.
12 Cf. ROXIN, Claus. Derecho Penal PG, § 7 nm. 69.
13 Cf. FIGUEIREDO DIAS. idem, p. 35. Contudo, ante o que fica dito, não é preciso muito para se

assumir – mesmo nos valendo de um método teleológico político-criminal (reconhecidamente rico


em vantagens e promissor para o futuro da dogmática) – a indispensabilidade do “pensamento
sistemático”. Assim pois, devemos concordar com ROXIN quando afirma que “o sistema é um
elemento irrenunciável de um direito penal próprio do Estado de direito”. O status privilegiado
que agora se outorga ao “pensamento problemático” não implica de forma nenhuma negligenciar

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1.2 Ora, todo esse debate acabado de referir, impulsionado pelo


ensaio programático de ROXIN Kriminalpolitk und strafrechtssystem (1970),
deu luz e consolidou – tudo leva a crer de modo definitivo – um novo
paradigma a dar vazão à afirmação de LACKNER de que “qualquer
projeto de sistema jurídico-penal só pode aspirar à legitimação se e na
medida em que se estruturar em termos teleológicos e, por isso, orientar
as suas decisões para a função do direito penal na sociedade moderna”14.
Efetivamente, são já quase inabarcáveis os estudos a reconhecer as
benesses de um sistema dogmático politico-criminalmente ancorado e a
confessar a adesão a uma nova atitude metodológica, que se
convencionou designar de racional-final ou teleológica (funcional)15 e que,
na formulação de SCHÜNEMANN, objetiva “restabelecer a conexão direta
entre as pedras do sistema penal e a respectiva função”16, ou, agora com
FIGUEIREDO DIAS, permitir à “política criminal não somente reforçar a
sua posição, já adquirida, de autonomia, mas ganhar uma posição de
domínio e mesmo de transcendência face à própria dogmática”17;
“tornando-se trans-sistemática e competente para definir os limites
últimos do punível, ao mesmo tempo que entre ela e a dogmática
jurídico-penal se estabelece uma autêntica relação de unidade funcional”18.
Tudo isso a emprestar sentido e substância à expressão de ROXIN de que
o Direito penal há de ser “a forma através da qual as proposições
político-criminais se vazam no modus da validade jurídica”.
É claro que qualquer proposta metodológica19 levada a cabo nesses
termos deve dilucidar e tornar claro o que se quer dizer com política

ou sequer minimizar o papel irrecusável pertencente ao “pensamento do sistema” (Cf. ROXIN,


Claus. Derecho Penal PG, § 7 nm. 50).
14 Apud ANDRADE, Manuel da Costa. A “dignidade penal” e a “carência de tutela penal” como

referências de uma doutrina teleológico-racional do crime. RPCC 2, Coimbra, 1992., p. 173.


15 Cf. ROXIN, Claus. Derecho Penal PG, § 7 nm. 23.
16 Apud ANDRADE, Manuel da Costa. Idem, p. 173.
17 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Questões fundamentais de Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1999, p. 40 e ss.


18 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro.

Lisboa: ROA , 1983, p. 11.


19 Lembre-se que este método teleológico – que abandona de todo a referência exclusiva aos

aspectos “ônticos”, imprimindo à dogmática uma tarefa obrigada a ter em conta a “missão do
Direito Penal” – é seguido também, de um modo peculiar, por autores como JAKOBS ou
SCHMIDHÄUSER.

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criminal – em quais proposições de fins e valores se baseia – e de que


modo o sistema se deixa “penetrar” pelo seu conteúdo teleológico20.
Freqüentemente, a política criminal moderna tem-se orientado ao
“consequencialismo”21, adotando como referência considerações
pragmáticas voltadas para a realização de uma qualquer finalidade.
Assim, por exemplo, quando se imprime ao sistema, como função única
e premente, a realização de finalidades preventivas (gerais ou especiais,
positivas ou negativas). Esse modo de ver as coisas, quando
empreendido de maneira irrestrita (sem limites), acaba por converter o
direito penal em um instrumento de “engenharia social”22 e, por isso,
não pode deixar de ser condenado. Noutros termos, essa “racionalidade
final” (Kweckrationalität) é perniciosa quando, ao excluir qualquer outra
forma de teleologia que não seja compatível com seus “fins
instrumentais de controlo”23, descuida dos valores imanentes ao
horizonte jurídico-político e social coevo24.
Portanto, os que aqui estão (devem estar!) em primeiro plano são
os valores que legitimam e dão sustentação à intervenção penal e a
racionalidade que lhes é peculiar (Wertrationalität). Não se pode
conceber um sistema dogmático jurídico-penal que se permita,
deliberadamente, orientar somente por considerações instrumentais.
Não se pode abdicar, em nome de qualquer tecnologia, dos aspectos
valorativos “nuclearmente determinantes no direito como sistema
axiológico”25. Desse modo, da contraposição entre a Wertrationalitat e a
Zweckrationalitat deve resultar um modelo teleológico, respaldado pelo

20 Cf. SILVA SÁNCHEZ. Política criminal en la dogmática: algunas cuestiones sobre su contenido y lImites in
Roxin. La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y el proceso penal. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2000, p. 99.
21 Cf. SILVA SÁNCHEZ. idem, p. 99.
22 Assim CASTANHEIRA NEVES, Estudos Ferrer Correia (1990), p. 9, apud FIGUEIREDO DIAS, Questões

fundamentais de Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 37.
23 Cf. SILVA SÁNCHEZ. idem, p. 100.
24 No Brasil, entre os autores preocupados em garantir o respeito ao princípio da exclusiva proteção

de bens jurídicos, como barreira intransponível a considerações puramente eficientistas,


encontramos os trabalhos primorosos de SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder, Bem Jurídico-Penal e
Engenharia Genética Humana, RT, 2004 e D’AVILA, Fabio Roberto, Ofensividade e Crimes Omissivos
Próprios, Studia Juridica, Coimbra Editora, 2005.
25 Cf. CASTANHEIRA NEVES, Estudos Ferrer Correia (1990), p. 9, apud ANDRADE, Manuel da Costa. A

“dignidade penal” e a “carência de tutela penal” como referências de uma doutrina teleológico-
racional do crime. RPCC 2, Coimbra, 1992, p. 181.

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paradigma penal dos tempos atuais, que se traduza numa “unidade


axiológico-funcional”26.
A conciliação entre uma racionalidade funcional e uma outra
axiológica faz-se indispensável, também, em homenagem à própria
concepção de Estado de Direito (social e democrático). Em respeito aos
valores e ao étimo jurídico-político que se cristalizam na concepção de
Estado, não pode o sistema jurídico-penal, em nome da luta
desmesurada contra o crime (e o criminoso), sobrepor-se a valores
irrenunciáveis como a liberdade e dignidade da pessoa humana.
1.3 De sorte que, em um aspecto que interessa mais à nossa
investigação, uma teleologia que se queira fazer valer “para o presente e
futuro próximo e para um Estado de Direito material, de cariz social e
democrático, deve exigir do direito penal que só intervenha com seus
meios próprios de atuação ali, onde se verifiquem lesões insuportáveis
das condições comunitárias essenciais de livre realização e
desenvolvimento da personalidade de cada homem”27. Se, por um lado,
uma dogmática orientada político-criminalmente deve estar atenta às
proposições e postulados da moderna teoria dos fins da pena (esta
mesma já limitada por considerações de valor), por outro, “não pode
desatender-se que a racionalidade funcional está aqui preordenada à
salvaguarda e proteção de bens jurídicos fundamentais”28.
Estamos diante do problema de se determinar o “que” da
punibilidade, o conteúdo (material) do comportamento criminal;
problema esse que, ao longo dos tempos e progressivamente, vem
despertando a atenção dos estudiosos a ponto de ser uma referência
constante na maioria dos manuais e trabalhos científicos sobre o direito

26 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Questões fundamentais de Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 38. É este também o caminho prosseguido por Costa Andrade quando, logo
após descrever o novo paradigma penal prevalecente, a cujos postulados fundamentais concede a
força de verdadeiros “princípios axiomáticos”, afirma que, “pelo menos nos termos do paradigma
desenhado, a indispensável racionalidade está inteiramente ‘colonizada’ pela densidade
axiológica própria da Wertrationalität” (cf. ANDRADE, Manuel da Costa. A “dignidade penal” e a
“carência de tutela penal” como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime. RPCC
2, Coimbra, 1992, p. 182).
27 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro.

Lisboa: ROA , 1983, p. 13.


28 Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. idem, p. 181

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penal. Ao fim e ao cabo, é a própria questão da função e legitimidade da


intervenção penal que está em jogo.
Em busca desse propósito e dele resultado, parece hoje
relativamente estabilizado na doutrina ser o conceito material de crime
constituído, na sua essência, pela noção de bem jurídico-penal (ou bem
jurídico dotado de dignidade penal). O bem jurídico passa então a fazer
parte do discurso jurídico-penal como um elemento fulcral, como
“contraponto valorativo à funcionalização”29 e parte inarredável daquele
empenho de trazer as proposições axiomáticas próprias da política
criminal para dentro do sistema. O que não quer significar, como se
deixará notar na exposição que segue, um encontro de opiniões quando
se fizer necessária uma maior precisão dos conceitos e do programa
político-criminal correspondente. Para esse sentido converge a polêmica
e atualíssima questão sobre a idoneidade dos bens jurídicos supra-
individuais para cumprir, satisfatoriamente, com a indispensável função
crítica que daquele conceito se exige.

2 – O D IREITO P ENAL E NTRE O F UNCIONALISMO E O


“P ENSAMENTO E UROPEU DOS P RINCÍPIOS
T RADICIONAIS ”
Conforme temos sustentado, o direito penal moderno só é idôneo
para a tutela subsidiária de bens jurídico-penais. Todavia, sendo isso
tido por certo, não menos certo é que, por traz dessa afirmação essencial,
existe um grande número de questões que têm despertado enorme
controvérsia (ou até mesmo antagonismo). Daí toda a polemica
suscitada à volta do papel a desempenhar pela política criminal na
contenção dos novos riscos oriundos do desenvolvimento tecnológico
em confronto com a função de exclusiva proteção de bens jurídicos:
urge, segundo uns, que o direito criminal abandone aquela perspectiva
liberal, que defendia a intervenção penal somente para a tutela de bens
jurídicos clássicos (como a vida ou o patrimônio), e tome como tarefa
sua a tutela de interesses vagos, difusos, verdadeiros bens jurídicos
universais, supra-individuais (entre os quais, vale mencionar, está o

29 Cf. SILVA SÁNCHEZ. Política criminal en la dogmática: algunas cuestiones sobre su contenido y lImites in
ROXIN. La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y el proceso penal. Valencia: Tirant
lo Blanch, 2000, p. 108.

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“ambiente”)30; noutro sentido, posicionam-se aqueles autores que,


apegados aos valores do direito penal clássico e à concepção liberal de
Estado à qual aquele se remete, defendem a necessidade de qualquer
programa político-criminal continuar ainda restrito ao seu âmbito
clássico de tutela quando se quer que o bem jurídico continue a cumprir
com sua função de padrão crítico e legitimador da intervenção
punitiva31.
Se as coisas se postulam nos termos atrás desenhados, resta-nos
procurar devassar as razões de uma postura rigidamente acorde com o
“pensamento europeu dos princípios tradicionais”, idêntica à que têm
sido propugnada no ambiente da Escola de Frankfurt, segundo a qual o
direito penal deve quedar-se “nuclear”, ou seja, restrito ao seu âmbito
clássico de tutela de interesses individuais, remetendo para outros
ramos extra-penais a tarefa de salvaguardar os novos valores coletivos.
Por outra banda, e opostamente, cumprir-nos-á uma maior aproximação
daquele setor da doutrina que, com base em uma racionalidade
funcional a permitir uma dogmática político-criminalmente orientada,
atribui ao direito penal a tarefa de lutar contra novos riscos sociais, tidos
por mais danosos para vida social do que a criminalidade considerada
“clássica”.
2.1 No intuito de discorrer sobre os problemas essenciais que se
fazem notar, quando da proteção jurídico-penal de interesses coletivos
se trata, o primeiro deles que de pronto nos salta aos olhos quando se
intenta uma abordagem mais pormenorizada é o de lograr saber se,
neste campo, estamos diante de autênticos bens jurídicos. Ou, dizendo de
outro modo, importa saber se estes bens constituem interesses
autônomos e dignos de proteção por si mesmos, ou seja, pelo relevo que

30 Nesse sentido, entre tantos, SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación
espiritual de la ciencia jurídico penal alemana. ADPCP, tomo XLIX, fasc. 1, 1996, p. 188 e ss.;
ROXIN, La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y el processo penal. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2000, p. 89 e ss.
31 Cf., por todos, HASSEMER, Derecho Penal Simbólico y Protección de Bienes Jurídicos, Pena y Estado

Barcelona, n.°1, 1991, passim. Para o meio ambiente, veja-se MÜLLER-TUCKFELD, Abolición del
derecho penal del medio ambiente in La insostenible situación del Derecho penal. Área de Derecho
Penal de la Universidad Pompeu Fabra, Granada: 2000, passim.

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possuem para a vida comunitária, ou se não passam de formas de


antecipação da tutela penal de bens jurídicos individuais preexistentes32.
Justo é salientar que toda a discussão aqui suscitada deve-se
ponderar, ao menos num primeiro momento, tendo por interlocutor
privilegiado a própria concepção de Estado que serve de suporte ao
sistema penal e ao programa político-criminal correspondente. De resto,
não seria desarrazoado pensar que a negação de qualquer fundamento
teórico aos interesses supra-individuais ou coletivos entra em desacordo
com a vertente social do Estado de Direito contemporâneo. Foi, pois, no
seio dessa última noção de Estado33 que se desenvolveram as teses
favoráveis ao alargamento da intervenção penal de modo a abarcar
aqueles interesses sociais, frutos dessa nova forma de se entender o
Estado em suas relações com o indivíduo.
Como é sabido, já com EB. SCHMIDT, ocorre uma delimitação
material entre crimes e contra-ordenações que não deixa de explicitar a
idoneidade da intervenção penal no âmbito sócio-econômico34. É,
portanto, com EB. SCHMIDT que aquela dimensão social do bem jurídico

32 Nesse sentido, refere, por exemplo, FIANDACA que bens coletivos como a saúde e a incolumidade
pública não são tutelados autonomamente, sendo antes uma “tutela antecipada da vida e da
integridade do singular”(Cf. FIANDACA, Giovanni. Il bene giuridico come problema teorico e
come criterio di politica criminale in RIDPP,1982, p. 72).
33 Como descreve NORBERTO BOBBIO, a evolução dos direitos humanos ao longo dos tempos pode

ser dividida em três fases: “num primeiro momento afirmaram-se os direitos da liberdade, ou
seja, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar ao indivíduo ou a
grupos particulares uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento foram
promulgados os direitos políticos, já que ao se conceber a liberdade não só negativamente como
não impedimento, mas positivamente como autonomia, houve por conseqüência a participação
cada vez mais ampla no poder político (…); e finalmente, foram proclamados os direitos sociais,
que se expressam o amadurecimento de novas exigências (bem-estar, igualdade real), que se
poderiam chamar liberdade através ou por meio do Estado” (Cf. BOBBIO, Norberto. Presente y
porvenir de los derechos humanos in Anuario de Derechos Humanos, 1981, p. 16.)
34 Com efeito, se com GOLDSCHMIDT – também já o dissemos – dá-se uma viragem na história do

Direito Penal Administrativo, traduzida na distinção entre este último e o direito penal, ainda não
se deixava notar neste Autor uma compreensão que relevasse como tarefa legítima do direito
penal (em sentido estrito, e portanto não eticamente neutro) a tutela de interesses sociais
vinculados à intervenção do Estado na vida quotidiana. Isso porque, no dizer de AMELUNG, a
doutrina de GOLDSCHMIDT mantinha-se atrelada à idéia “de que as infrações praticadas no seio de
uma sociedade separada do Estado são inquestionavelmente mais graves que as que contrariam a
intervenção do Estado na mesma sociedade” (cf. AMELUNG, Rechtsgüterschutz und Schutz der
Gesellschaft, p. 290 apud ANDRADE, Manuel da Costa. Contributo para o conceito de contra-ordenação
(A experiência alemã). RDE, Coimbra, Anos VI/VII (1980/1981), p. 89).

35
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aflora, no âmbito econômico, como “espaço dos interesses vitais


econômicos-materiais”35. Para SCHMIDT, crimes contra a economia são
“as infrações que lesam o interesse estadual na existência e manutenção
da ordenação econômica estabelecida pelo Estado, atingindo esta
ordenação no seu conjunto ou nos seus ramos particulares, como
pressuposto necessário da capacidade do Estado para realizar as suas
superiores tarefas econômicas”36. Dá-se, assim, com a doutrina de EB.
SCHMIDT, a elevação de certos interesses coletivos à categoria de bens
jurídicos, o que não deixa de ser conseqüência de uma nova
mundividência consoante com as transformações políticas e ideológicas
ocorridas no período que sucedeu os grandes conflitos mundiais. Ficava,
pois, claramente evidenciado, no domínio jurídico-penal
particularmente, o abandono do modelo liberal clássico de Estado com a
elevação de determinados interesses supra-pessoais à categoria dos bens
dignos de punição, mormente aqueles pertencentes ao “espaço dos
interesses vitais econômicos-materiais”37.
Modernamente, o autor germânico que mais atenção dispensou ao
tema da autonomização do direito penal secundário foi KLAUS
TIEDEMANN. Com as preocupações centradas no direito penal

35 Numa maior aproximação à doutrina de EB. SCHMIDT, convém descortinar os contornos em que
pretende distinguir os dois distintos “espaços de interesses” a partir dos quais se estaria,
dependendo do relevo do interesse em questão, ou perante um crime contra a economia ou uma
contra-ordenação. Desta feita, correspondiam aos crimes contra a economia o “espaço dos
interesses vitais econômico-sociais” que são “interesses do Estado na manutenção da sua
capacidade de intervenção necessária à persecução das suas tarefas e interesses, que se podem
identificar com o interesse na salvaguarda e manutenção da ordenação criada pelo Estado para a
economia em seu conjunto ou seus ramos específicos; e, em segunda linha, como interesses dos
cidadãos, individualmente considerados, numa participação, racional e adequada à sua vontade
de realização profissional e econômica”. Por seu turno, o “espaço dos interesses administrativos”,
a que corresponde o direito de mera ordenação social, surge como conseqüência das relações
entre a Administração em virtude da intervenção estadual na vida econômica (cf. ANDRADE,
Manuel da Costa.A nova lei dos crimes contra a economia (Dec. Lei n° 26/84 de 20 de janeiro) à
luz do conceito de bem jurídico, in: VV. AA., Direito Penal Econômico, Coimbra: Ciclo de Estudos,
CEJ, 1985, p. 400).
36 Apud ANDRADE, Manuel da Costa. idem, p. 400.
37 Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS: “passou o tempo em que a referência de uma norma a

interesses (como se dizia) ‘salutistas’ do Estado podia reputar-se sinal bastante da neutralidade
ética do respectivo substrato: as tarefas da Daseinsvorsorge não foram assumidas pelos Estados
contemporâneos sem a correspondente ‘eticização’ de uma boa parte das providências destinadas
a melhorar a condição social dos homens” (in Para uma dogmática do direito penal secundário.
RLJ, 116-7 (1983-4/1984/5)., p. 332).

36
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econômico, TIEDEMANN identifica esse último ramo com autênticos bens


jurídicos supra-individuais, merecedores de punição autônoma,
independentes e desconectados dos interesses jurídicos individuais38.
Entende assim, que a tutela jurídico-penal de interesses supra-
individuais como a ordem econômica ou determinados valores sociais
constituem fins em si mesmos e, portanto, desvinculados de quaisquer
referentes individuais39. Para além disso, partindo de um conceito
dualista de pessoa, que distingue entre Selbstein e o Alssein, postula uma
construção dualista do bem jurídico apta a alicerçar – tendo por base a
autonomia material entre as duas dimensões relativamente autônomas
do agir pessoal – a dualidade entre direito penal clássico (ou de justiça) e
direito penal secundário40. Dessa forma, a proteção autonomamente
dispensada à integridade de instituições ou sistemas econômicos em
nada colidiria com a referência de todo o direito à pessoa humana41.
Em Portugal, é esse o caminho trilhado por FIGUEIREDO DIAS.
Defensor de um conceito de bem jurídico constitucionalmente ancorado,
esse Autor postula que a forma em que se relacionam o ordenamento
jurídico-constitucional e a “ordem legal dos bens jurídicos dignos de
tutela penal” possibilita uma “distinção material – com
importantíssimos reflexos dogmáticos e sistemáticos – entre o direito

38 TIEDEMANN, Klaus. El concepto de delito económico y de derecho penal económico, Nuevo Pensamiento
Penal. Buenos Aires: 1975, p. 67 e ss.
39 O que se nota claramente em TIEDEMANN quando afirma que ao direito penal econômico

competem as “transgressões no campo dos chamados bens jurídicos coletivos ou supra-individuas


da vida econômica, que por necessidade conceptual transcendem os interesses jurídicos
individuais” (cf. TIEDEMANN, idem, p. 68).
40 Cf. HASSEMER, Winfried/MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al derecho penal.

Valencia: Tirant lo Blanch, 1989, p. 189. Como aprecia Santana Vega, construções dualistas como a
empreendida por Tiedmann “partem da existência de duas modalidades na titularidade dos bens
jurídico-penais: a do Estado e a do indivíduo à maneira de ‘duas colunas’ paralelas sem critério
comum superior que permita a preeminência de uma ou outra classe de bens” (cf. SANTANA
VEGA, Dulce Maria. La Protección Penal de los Bienes Jurídicos Colectivos. Madrid: Dikinson, 2000, p.
84).
41 Também no entender de Mir Puig “não cabe discutir a importância desta classe de interesses” já

que, no contexto de um Estado social, não se pode negar a legitimidade do direito penal para
responder a certas demandas de criminalização para a salvaguarda de novos valores coletivos ou
sociais(cf. MIR PUIG, MIR PUIG, Santiago. Bien jurídico y bien jurídico-penal como límites del Ius
puniendi, in Estudios Penales y Criminológicos, t. XIV, Santiago de Compostela, p. 208). Todavia,
acrescenta o mesmo Autor – e com toda razão – que o afirmado anteriormente “não basta para
decidir o importante debate atual acerca dos critérios que hão de decidir que limites devem
presidir à intervenção do direito penal neste âmbito” (idem, p. 208).

37
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penal clássico ou de justiça, e o direito penal administrativo,


extravagante, secundário, ou econômico social”42. De forma que, se os
crimes constantes do direito penal de justiça correspondem aos direitos,
liberdades e garantias das pessoas (previstos pela Constituição), “já os do
direito penal secundário (…) se relacionam primariamente com a
ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos sociais e à ordenação
econômica. Diferença que radica, por sua vez, na existência de duas zonas
relativamente autônomas na atividade tutelar do Estado: uma que visa
proteger a esfera de atuação especificamente pessoal (embora não
necessariamente ‘individual’) do homem: do homem ‘como este
homem’; a outra que visa a proteger a sua esfera de atuação social: do
homem ‘como membro da comunidade”43.
2.2 No entanto, não se deve pensar que essa postura
comprometida com a consagração de novos interesses merecedores de
tutela penal é aceita sem ressalvas. Com efeito, e de certo modo
reflexamente ao aparecimento progressivo de incriminações que têm por
fulcro novos bens de feição supra-individual, atualmente têm surgido
variados estudos críticos a questionar a validade e o fundamento teórico
das mais recentes elaborações doutrinais favoráveis a uma mais
empenhada e ativa participação do direito penal contemporâneo nos
problemas que afligem a sociedade moderna.
Nesse sentido aponta o pensamento de MICHAEL MARX e de todos
aqueles autores orientados a uma noção de bem jurídico de vocação
estritamente liberal (concepção monista-individualista ou personalista).
Segundo esse entendimento, só podem ser bens do direito penal “os
objetos que o ser humano precisa para sua livre auto-realização”, de
forma que os mesmos objetos só “se convertem em bens jurídicos à
medida que estão dotados de um conteúdo de valor para o

42 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro.
Lisboa: ROA , 1983, p 17.
43 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro. Lisboa:

ROA , 1983, p. 69. Dessa relativa autonomia entre ser-individual e ser – social, FIGUEIREDO DIAS faz
derivar outra, fundada na necessidade de modificar as exigências tradicionais do Estado de
Direito formal em matéria de limitação do poder punitivo “quando em tela estiver a salvaguarda
dos interesses que relevam da dimensão social do indivíduo” Desenvolvidamente, ver FIGUEIREDO
DIAS, Para uma dogmática do direito penal secundário. RLJ, 116-7 (1983-4/1984/5), p. 7 e ss.

38
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desenvolvimento pessoal do homem em sociedade”44. Em conformidade,


se de acordo com o entendimento de alguns existe uma autônoma
salvaguarda dos interesses cristalizados pela vertente social do Estado de
Direito, já na perspectiva aqui defendida tais interesses só merecem
acolhimento na justa medida em que forem indispensáveis à livre
realização do indivíduo singular. O direito penal só se justifica para a
proteção do indivíduo frente ao Estado, sendo ele (indivíduo) o eixo ou
núcleo axiológico ao redor do qual a ordem jurídico-penal deve
entremostrar-se.
É no indivíduo que reside o apoio normativo a todo o
desenvolvimento jurídico45. Daí que a concepção monista personalista
propugne a fundamentação de todo o direito penal com base no ser
humano, valendo este como um parâmetro irrenunciável – apoiado,
segundo alguns, no ordenamento jurídico-constitucional – para a
avaliação do merecimento de pena. Conseqüentemente, isso repercute
como um “freio” às atuais reelaborações teóricas de categorias
dogmáticas e princípios político-criminais e também às tendências de
“socialização” dos mesmos em resposta ao desenvolvimento e
transformação das estruturas sociais.
Por outro lado, escreve MARX, a auto-realização pessoal não existe
nem se perspectiva em razão unicamente do indivíduo isolado, mas sim
da “socialidade da pessoa”. Não se desconhece, ainda mais, que a
pessoa, para além de “indivíduo” singular, é sempre e conjuntamente
“uma individualidade social”46. Daí que “esta concepção só possa
resultar num conceito unitário de bem jurídico, isto é, ao mesmo tempo
individual e social”47. De resto, a passagem do Estado de direito formal
ao Estado social de Direito não compromete o reforço dos interesses
pessoais no momento na configuração do tipo: os bens jurídicos supra-
individuais podem ser construídos como autônomos objetos de tutela
desde que estes estejam sempre referidos às condições de auto-

44 Cf. SILVA SÁNCHEZ, em especial referência ao pensamento de M. Marx (SILVA SÁNCHEZ, Jesús
Maria. Aproximación al derecho penal contemporâneo. Barcelona: Bosch, 1992, p. 271).
45 Cf. HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico, Doctrina Penal,

Buenos Aires, año 12, n.° 45 a 48, 1989, p. 278.


46 Cf. KAUFMANN, Subsidiaritätsprinzip, pp. 95/6 apud SANTANA VEGA, Dulce Maria. La Protección

Penal de los Bienes Jurídicos Colectivos. Madrid: Dikinson, 2000, p. 89.


47 Cf. SANTANA VEGA, Dulce Maria, idem, p. 91.

39
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realização da pessoa48. Dizendo de outro modo, os objetos só se


convertem em bens jurídicos quando “dotados de um conteúdo de valor
para o desenvolvimento pessoal do homem em sociedade”49. Assim, por
exemplo, quando se trate de conferir proteção ao meio ambiente, não se
dispensa a comprovação, no momento da aplicação do tipo, de um
resultado que contrarie os interesses do indivíduo.
Convém notar que essa concepção guarda estreita relação com o
ideário político-filosófico que alimentou as teorizações próprias do
iluminismo penal, nomeadamente com a idéia de que o Estado só deve
intervir para salvaguardar a liberdade do cidadão e nunca para
promover valores ou “funções” que lhe causem prejuízo. Tal como o
pensamento penal iluminista, procura-se impor limites materiais ao
direito penal, elegendo a proteção do indivíduo como fim único e
legítimo. A função do Estado, compreendido nesses moldes, é de servir
ao indivíduo e salvaguardar a sua esfera de liberdade; esfera essa que
poderia ser ameaçada se o Estado interviesse em domínios cujo vínculo
com o particular é pouco apreensível, de modo que o próprio Estado,
assim, converter-se-ia num fim em si mesmo, desprendido dos
referentes individuais. Com efeito, a manutenção de status negativo do
cidadão frente ao Estado resulta benéfico na medida em que pressupõe a
existência de âmbitos de liberdade assegurados juridicamente50.
Ora, essa maneira de ver as coisas pretende dar resposta ao perigo
de se instrumentalizar a pessoa e os interesses particulares em função do

48 No dizer de HASSEMER, “um conceito pessoal de bem jurídico não rechaça a possibilidade de bens
jurídicos gerais ou estatais, mas funcionaliza esses bens a partir da pessoa: somente se podem
aceitar com a condição de que brindem a possibilidade de servir aos interesses do homem” (cf.
HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico, Doctrina Penal,
Buenos Aires, año 12, n.° 45 a 48, 1989, p. 282).
49 Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación al derecho penal contemporâneo. Barcelona: Bosch,

1992, p. 271. Assim também, Santana Vega, quando afirma que “serão inadmissíveis no âmbito de
proteção penal aqueles bens que resultem dificilmente conectáveis com o indivíduo” (SANTANA
VEGA, Dulce Maria. La Protección Penal de los Bienes Jurídicos Colectivos. Madrid: Dikinson, 2000, p.
92).
50 Assim KINDHÄUSER, afirmando que uma “política criminal racional (…) deve orientar-se (…) à

proteção das condições juridicamente garantidas da esfera de liberdade individual”


(KINDHÄUSER, Urs Konrad. Acercas de la legitimidad de los delitos de peligro abstracto en el
ámbito del derecho penal económico in: Hacia un derecho penal económico europeo, Jornadas en
honor del prof. K. Tiedemann, Madrid: 1995, p. 447).

40
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Estado51 (entendido como uma entidade que se justifica por si mesma), o


que é próprio do modo funcionalista de inteligir. Em contrapartida, o
que se pretende é exatamente o contrário: “funcionalizar os interesses
gerais e do Estado a partir do indivíduo”52. O pensamento funcionalista
não serve, segundo crêem esses autores, como um ponto de apoio apto a
oferecer limites à intervenção punitiva estadual porque corporiza uma
racionalidade meramente pragmática, voltada para o output, e, portanto,
desatenta a uma outra racionalidade axiológica (a Wertrationalität) que
deve sempre interceder. A recorrência à noção de “danosidade social”,
peculiar às teses funcionalistas mais radicais, não presta à função de um
padrão crítico político-criminal pronto a servir de limite material ao ius
puniendi. No seio dessas correntes, dado o seu caráter essencialmente
normativo e o conseqüente apagamento do mundo da vida e da pessoa, o
que resulta socialmente danoso ou disfuncional pode ser contrário à
eficácia limitadora e garantista de uma política criminal alicerçada nos
valores do Estado de Direito. Uma perspectiva exclusivamente
funcionalista arrisca-se a proteger meras imoralidades, ou a legitimar o
recurso ao direito penal pelo poder estatal para cumprir funções de
estratégia política53.
E isto, num certo sentido, deve valer também para aquele sector da
doutrina em que o pensar tecnológico é levado a menores conseqüências.
Fácil é chegar a essa conclusão quando se tem presente, como já afirmou
o próprio funcionalista ROXIN, que “a acentuação das orientações

51 Este é o modo de raciocinar próprio das teorias monistas coletivistas do bens jurídico, que
defendem que todos os interesses protegidos pelo direito penal são interesses do direito e,
portanto, sempre trans-individuais. Uma tal compreensão teve por primeiro representante KARL
BINDING, um dos pais do conceito, para quem o bem jurídico é “tudo aquilo que, aos olhos do
legislador, tem valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos”. Atualmente,
orientam-se nesta linha os autores que sustentam um conceito material de crime com base na
teoria dos sistemas sociais como AMELUNG ou JAKOBS. Para uma abordagem mais desenvolvida,
ver JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general – fundamentos y teoría de la imputación) Trad.
Joaquin Cuello Contreras, Jose Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995, p.
43 e ss. Criticamente, por todos, ROXIN, Claus. La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y
el processo penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 57 e ss.
52 Cf. HASSEMER, Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico, Doctrina Penal, Buenos Aires,

año 12, n.° 45 a 48, 1989, p. 281.


53 Ver, neste sentido, HERZOG, Felix. Algunos riesgos del Derecho penal del riesgo, Revista Penal,

Barcelona, 1999, p. 55 e ss. Também, do mesmo HERZOG: Límites al control penal de los riesgos
sociales: una perspectiva crítica ante el derecho penal en peligro, Madrid, ADPCP, 1993, p. 321 e
ss.

41
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preventivo-gerais conduz a uma extensão da penalidade a todos os


âmbitos socialmente relevantes”54. É, pois, de uma oposição ao
pensamento funcionalista, considerado em muitas das suas
manifestações, de onde partem as mencionadas críticas, mormente as
provindas da doutrina minimalista radicada em Frankfurt. Em uma
abordagem dicotômica, pode-se dizer que toda a polêmica agora
levantada traduz-se na temática, mais ampla – e à qual teremos ocasião
de voltar logo em breve –, do “direito penal entre o funcionalismo e
pensamento europeu dos princípios tradicionais”55. Por agora basta
reiterar que ao funcionalismo – seja ele na sua vertente moderada seja na
sua vertente radical56 – referem-se, portanto, os autores de Frankfurt,
como um instrumento de incorporação, aos princípios normativos do
merecimento de pena, de interesses políticos e ideológicos da mais
variada ordem. É dizer: como uma “idéia pela qual se funcionalizam os
princípios do direito penal a partir das exigências de uma política
criminal efetiva”57 e que tem por conseqüência primordial a expansão do
número de necessidades coletivas alçadas à categoria de interesses
dignos de tutela penal.
Uma outra questão que tem sido posta em evidência pela doutrina
antropocêntrica do bem jurídico é a de se saber até que ponto o direito
penal, quando protege interesses que transcendem a esfera do indivíduo
(em sentido estrito), não adota uma função propulsora ou promocional.
Se, com fundamento nas observações anteriores, atribui-se ao
pensamento funcionalista o demérito de subtrair da noção de bem
jurídico todo o conteúdo material, num momento posterior, têm-se
predicado àquela mundividência também o abandono do princípio da

54 Cf. ROXIN, La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y el processo penal. Valencia:
Tirant lo Blanch, 2000, pp. 27/8.
55 Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia

jurídico penal alemana. ADPCP, tomo XLIX, fasc. 1, 1996, p. 189.


56 Distingue o funcionalismo em moderado e radical, POVEDA PERDOMO, Alberto. Fundamentación

material del injusto: Entre el derecho penal protector de bienes jurídicos y el derecho penal
defensor de la vigencia de la norma, Actualidad Penal, n° 21, 1998, p. 407 e ss.
57 Cf. HASSEMER, Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico, Doctrina Penal, Buenos

Aires, año 12, n.° 45 a 48, 1989, p. 276. O que, no dizer de HASSEMER, dá-se “sobre a base
metodológica de uma aplicação do direito orientada para as conseqüências e de uma ponderação
dos princípios segundo os interesses do caso concreto”. Dessa forma, “flexibilizam-se as tradições
normativas e se as subtrai o poder de oposição que necessitam” (idem, p. 276).

42
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subsidiariedade58. Com efeito, para além de sua clássica função de tutela


subsidiária de bens jurídicos, o direito penal passaria a incorporar uma
“função promocional” da vida social, a implicar em uma clara
transformação de sua função59. Crê-se, assim, que a ordem jurídico-
constitucional deixaria então de servir como limite negativo à
criminalização, passando a servir como “pressuposto de uma concepção
promocional ou propulsora do direito, acrescentando à função
tradicionalmente protetora e repressiva do direito penal o papel de
instrumento que concorre na realização do modelo e dos escopos
prefigurados na Constituição”60. Ademais, e como maior objeção a uma
acentuação da função promocional do direito penal, estaria o enorme
perigo de “transformar o direito penal de instrumento jurídico de tutela
em ‘instrumento de governo’, enquanto tal não imune a uma
instrumentalização política em sentido estrito”61.

3 – T OMADA DE P OSIÇÃO : C ONCILIAÇÃO E NTRE A R AZÃO


P RAGMÁTICA E A W ERTRATIONALITÄT
Buscando clarificar e tomar partido em tudo o que ficou
considerado, temos para nós que a solução não está, com JAKOBS ou
STRATENWERTH, no abandono da noção de bem jurídico enquanto
conteúdo material (e limite) ao jus piniendi. Cremos, ainda mais, que
uma tal postura merece muitas das críticas formuladas pela Escola de
Frankfurt. Com efeito, é acertado pensar, com estes últimos, que uma

58 Assim, no juízo de BARATTA, todas estas transformações estão “conduzindo a que sejam
considerados como totalmente inadequados – enquanto caracterizam os sistemas penais -,
conceitos como os de bem jurídico e do caráter subsidiário do direito penal, que anteriormente
bem podiam constituir os critérios para uma contenção funcional e quantitativa da reação
punitiva” (cf. BARATTA, Integración-.prevención, pag. 11).
59 Cf. BARATTA, Alessandro. Integración-prevención: una “nueva” fundamentación de la pena

dentro de la teoría sistêmica. Doctrina Penal, n° 29, 1985, pag. 11. CATENACCI, Mauro. La tutela
penale dell’ambiente: Contributo all’analisi delle norme penali a struttura “sanzionatória”. Milano:
Cedam, 1996, p. 95 e ss
60 Cf. NEPPI MODONA apud FIANDACA, Giovanni. Il bene giuridico come problema teorico e come

criterio di politica criminale in RIDPP,1982. p. 67.


61 Cf. FIANDACA, idem, p. 68. À custa de dotar o sistema jurídico-penal de um instrumental

dogmático apto a responder com eficiência aos clamores de uma “sociedade do risco”, já não se
conceberia o direito penal como ultima ratio da proteção de bens jurídicos, senão como prima ratio
e parte integrante de uma “estratégia de gestão de riscos” influenciável política e
ideologicamente.

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excessiva funcionalização do sistema jurídico-penal com vistas a


combater eficazmente os novos riscos da sociedade moderna implicaria
em um desencontro pernicioso com os postulados fundamentais de uma
política criminal que se queira no compasso dos valores do Estado de
Direito. Desencontro, em primeiro lugar, com a indispensável restrição
da intervenção penal a determinados “bens ou valores que, em
determinada comunidade e em um também determinado momento
histórico, constituem o mínimo ético que não pode ser, nem mais, nem
menos, do que o núcleo duro dos valores que a comunidade assume
como seus e cuja proteção permite que ela e todos os seus membros, de
forma individual, encontrem pleno desenvolvimento em paz e tensão de
equilíbrio instável”62. Em segundo lugar, desencontro com a idéia –
também ela irrenunciável – de que essa mesma tutela só é legítima
quando impossível de se efetuar por meios menos atentatórios à
liberdade humana. Nessa linha, pensamos convictamente que um
abandono ou alargamento do “objeto” em razão do qual o direito penal
tem definidos os seus limites implica, por decorrência lógica, num
abandono ou alargamento da sua função. Em termos mais impressivos:
a recusa à limitação material do âmbito do penalmente legítimo
significaria, assim, a recusa à limitação de sua função e a conseqüente
abertura a considerações meramente funcionais e de estratégia política63.
Coisa diversa é acreditar que, para que o bem jurídico esteja em
compasso com sua função de critério legitimador e crítico da intervenção
penal, seja indispensável manter-se fiel ao seu caráter antropocêntrico
extremado. Diferentemente – e tomando por base os pilares de
sustentação da noção de Estado social de Direito –, não se vê razão
alguma naqueles contestam a existência de bens sociais e coletivos e,
enquanto tais, dignos de punição. E isso, segundo cremos, não contradiz
a afirmação de um direito penal em que a pessoa humana seja o cerne
das preocupações. A consagração de verdadeiros bens jurídicos
coletivos, supra-individuais, não interfere em nada naquela tese, que
arranca da idéia da descriminalização, segundo a qual o direito penal só

62 Cf COSTA, José de Faria. O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e
compreensão dogmáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 302.
63 HERZOG, Felix. Límites al control penal de los riesgos sociales: una perspectiva crítica ante el

derecho penal en peligro, Madrid, ADPCP, 1993, p. 321. e ss.

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pode intervir com legitimidade para a salvaguarda das condições


essenciais ao livre desenvolvimento da pessoa humana. Pelo contrário,
quando se foge daquela concepção extremamente antropocêntrica,
dando particular importância à “noção de bem jurídico como entidade
sócio-jurídica eminentemente histórica e mutável”64, nada se opõe a uma
construção dualista do conceito que continue em compasso com a função
político-criminal que lhe subjaz. Daí que essa posição se mostra
perfeitamente coesa com as finalidades prosseguidas pelo Estado
contemporâneo: garantir a cada pessoa singular as condições
indispensáveis para conduzir sua vida com liberdade e
responsabilidade, sem olvidar que o indivíduo de que se fala não se
considera apenas como um ser isolado, mas que se desenvolve e frutifica
no seio de uma comunidade65.
Por outro lado, é também nossa convicção que a elevação de
determinados bens ou valores sociais à categoria de autônomos bens
jurídicos não é (não deve ser!) produto de uma razão meramente
pragmática e indiferente à Wertrationalitat66. Como já tivemos ocasião de

64 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Sobre o papel do direito penal na protecção do ambiente. RDE, ano IV, n.º 1,
1978, p. 9.
65 Nesse sentido, apesar de tender para a adoção de uma postura mais presa ao indivíduo, ver SILVA

SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación al derecho penal contemporâneo. Barcelona: Bosch, 1992, p. 271.
Fala-nos de uma harmonização entre o Estado social e o Estado de Direito, ROXIN, Política criminal
y sistema de derecho pena ROXIN, Claus. Política criminal y sistema de derecho penal. Elementos del delito
en base a la política criminal. Tradução: J. Bustos y H. Hormazábal. Barcelona, 1992, p. 33.
66 No extremo oposto de toda esta controvérsia, encontram-se aqueles que preconizam a aceitação

de um novo direito penal absolutamente direcionado e funcionalizado para responder às


exigências preventivas de uma sociedade cada vez mais insegura e amedrontada com as
conseqüências do próprio “avanço”. Fala-se então da indispensabilidade de uma “nova
dogmática”, ou de “um direito penal do risco”, como alternativa a responder com maior eficiência
aos apelos próprios da sociedade pós-industrial. Para além das implicações dogmáticas a serem
tratadas oportunamente – entre as quais o cultuo à apoteose dos crimes de perigo abstrato não
será, certamente, a menos impressiva -, o que sobressai como elemento comum dessas concepções
é a perda de valor da noção de bem jurídico como padrão crítico e legitimador (Na linha das teses
funcionalistas mais radicais, ver MÜSSIG, Bernd. Desmaterializacion del bien jurídico y de la
política criminal: Sobre las perspectivas y los fundamentos de una teoria del bien jurídico crítica
hacia el sistem.. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Porto Alegre, v. 2, fasc. 4, 2001, p. 157 e
ss.; JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general – fundamentos y teoría de la imputación) Trad.
Joaquin Cuello Contreras, Jose Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995, p.
47 e ss.). Assim, por exemplo, o pensamento de STRATENWERTH: segundo entende este Autor, o
legislador, ao restringir a proteção penal a bens jurídicos individuais, abandona a nobre tarefa de
“assegurar o futuro com os meios do direito penal”. Nesse sentido, sendo a pena “a sanção (…)
mais dura que conhece o nosso direito”, não faria sentido uma retirada do direito penal

45
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demonstrar, da contraposição entre a Wertrationalitat e a Zweckrationalitat


deve necessariamente resultar um programa político-criminal que –
dando a devida importância à tese de que “um moderno sistema
jurídico-penal deve estar estruturado teleologicamente, ou seja,
construído atendendo a finalidades valorativas”67 – não se descortine
como um puro “consequencialismo”68. Devendo o pensamento
teleológico participar das considerações político-criminais a dar sentido
e conteúdo ao sistema dogmático e às categorias que o integram, isso
não inviabiliza a incidência de limites a um tal pensamento. Desse
modo, adotamos uma racionalidade que não persegue somente fins
instrumentais de controle, mas também e precipuamente a realização de
valores69.
Todavia, a esses valores que servem de limite ao modelo
teleológico podemos nos aproximar de várias formas que, por sua vez,
hão de influenciar de maneira decisiva o telos do sistema e, no ponto
que aqui mais interessa, a compreensão da categoria dos bens jurídicos.
Se a eles nos aproximamos de uma perspectiva assente no “pensamento
europeu dos princípios tradicionais”70 – que se concretiza como
afirmação do pensamento jurídico-penal desenvolvido a partir do
Iluminismo e sobre a afirmação da idéia de contrato social – estaríamos
diante de uma postura próxima àquela da chamada Escola de Frankfurt
e que se pode resumir numa concepção minimalista que busca resolver o
conflito entre “principialismo” e “consequencialismo” conferindo, num

“precisamente ali onde estão em jogo interesses vitais não só dos indivíduos, mas de toda a
humanidade em sua totalidade” (cf. ROXIN, Derecho Penal PG, § 2 nm. 23d.). Em conformidade,
abandonando a referência aos bens jurídicos, propõe a tutela de “contextos da vida como tais”,
que passam a proteger jurídico-penalmente “normas de conduta referidas ao futuro” e sem
“retro-referência a interesses individuais” (cf. ROXIN, Derecho Penal PG, § 2 nm. 23d.); com a
ressalva de que tal não seria uma proposta de entono unicamente funcionalista, já que estaria em
consonância com os princípios e garantias do Estado de Direito.
67 Cf. ROXIN, Derecho Penal PG, § 7 nm. 51.
68 Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Política criminal en la dogmática: algunas cuestiones sobre su

contenido y lImites in Roxin. La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y el proceso


penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 99.
69 “O modelo teleológico resultante compreenderia, pois, aspectos instrumentais e outros

‘valorativos’” (cf. SILVA SÁNCHEZ. idem, p. 100).


70 Expressão utilizada por SCHÜNEMANN, em Consideraciones críticas sobre la situación espiritual

de la ciencia jurídico penal alemana. ADPCP, tomo XLIX, fasc. 1, 1996, p. 188 e ss. Refere-se a eles
como “velhos princípios ideológicos europeus”, ROXIN, La evolucion de la política criminal, p. 56.

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certo sentido, primazia ao primeiro e restringindo a legislação penal a


um “direito penal básico” vocacionado de forma prioritária à proteção
do indivíduo71. Se, opostamente, partimos de uma perspectiva
funcionalista extremada, os valores só serão acolhidos quando parte
menor de uma lógica de auto-conservação do sistema social, de forma
que terão o conteúdo delimitado e aceite em função dessa mesma lógica.
Conforme esse entendimento, na síntese de JAKOBS, “a pena não repara
bens, mas confirma a identidade normativa da sociedade. Por isso, o
direito penal não pode reagir frente a um fato enquanto lesão de um
bem jurídico, mas somente frente a um fato enquanto transgressão à
norma”72. Daí não se poder dizer que essa última compreensão, ao
advogar uma funcionalização dos valores, consiga abandonar o
consequencialismo; “pois a Wertrationalitat aparece como função da
Zweckrationalitat consistente na manutenção do sistema social de que se
trate”73. Além do mais, importa lembrar que é exatamente dessa idéia,
tão forte em autores como JAKOBS – assente numa política-criminal
contraposta ao indivíduo e tendente à sua instrumentalização e
subjetivação em função do sistema social -, que derivam muitas das
críticas dirigidas ao funcionalismo radical. Críticas que, partidas tanto
da perspectiva da criminologia crítica74 ou das teses de Frankfurt, como
daqueles defensores de um funcionalismo moderado75, têm alertado para
o perigo que implica, v. g., o abandono do conceito de bem jurídico
como conteúdo material a conferir legitimidade à intervenção penal e
sua substituição pela “vigência das normas”.
O que defendemos como postura metodológica correta não estaria,
pois, em sintonia com um funcionalismo levado às últimas
conseqüências, e, nessa medida, concordamos com Frankfurt. Do mesmo
modo, não vemos razão para, baseados no louvável empenho de

71 Cf. ROXIN, La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y el processo penal. Valencia:
Tirant lo Blanch, 2000, p.90.
72 Cf. JAKOBS, Sociedad, norma, persona en una teoría de un derecho penal funcional. Traducción: M.

Cancio y B. Feijoo. Madrid: Civitas, 1996, p. 11.


73 Cf. SILVA SÁNCHEZ, ibidem, p. 103.
74 Cf. BARATTA, Alessandro. Integración-prevención: una “nueva” fundamentación de la pena

dentro de la teoría sistêmica. Doctrina Penal, n° 29, 1985, pag. 10 e ss.


75 Cf., por todos, ROXIN, La evolución de la Política criminal, el Derecho Penal y el processo penal.

Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p 57 e ss.; ver também SCHÜNEMANN, Situación espiritual de la
ciencia jurídico-penal alemana, p. 205 e ss.

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defender os princípios limitadores da pena próprios do Estado de


Direito, não dotar de dignidade penal determinados interesses de feição
coletiva. Tudo a permitir concluir, na esteira de SCHÜNEMANN, que “o
individualismo de Frankfurt está fadado a exprimir em demasia um
único princípio, convertendo-o assim, em vez de em um elemento
positivo, em um obstáculo; o normativismo de JAKOBS, por sua parte,
necessariamente conduz a uma capitulação incondicional ante a prática
política imperante em cada momento na atividade do legislador ou na
jurisprudência”76. Assim – e deixando de lado a discussão sobre se tais
limites são oriundos do próprio “pensamento europeu dos princípios
tradicionais” ou se, inversamente, consistem em limites ontológicos e
exteriores ao método teleológico em causa -, partimos nós da eleição de
um programa político-criminal em que os “contrapontos valorativos”
não se concebem de forma exclusivamente funcional, mas que também,
e em sentido oposto, não podem reconduzir-se ao monismo
individualista de Frankfurt. De forma que o modelo por nós
propugnado não pode ser taxado nem de normativista (ou funcionalista
extremado), nem de minimalista.
O certo é que, em termos assumidamente simples, a conciliação
entre uma racionalidade funcional e uma outra axiológica faz-se
indispensável, quanto a nós, em homenagem à própria concepção de
Estado de Direito (social e democrático). Em respeito aos valores e ao
étimo jurídico-político que se cristalizam na concepção de Estado, não
pode o sistema jurídico-penal, em nome da luta desmesurada contra o
crime (e o criminoso), passar por cima de valores irrenunciáveis como a
liberdade e dignidade da pessoa humana. Sendo assim, a eleição e
concreção de bens jurídicos supra-individuais deve fazer-se não só por
conta de considerações pragmáticas fundamentadas na eficácia para a
prevenção do crime77, devendo antes estar atenta aos valores limitadores
da punição próprios do Estado de Direito. Parece ser convergente o
pensamento de FIGUEIREDO DIAS ao asseverar que “na sua refração

76 Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia


jurídico penal alemana. ADPCP, tomo XLIX, fasc. 1, 1996, p. 189.
77 Contra uma “lógica de eficácia” para o direito penal do meio ambiente, ver COSTA, José de Faria.

O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas.


Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 313.

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jurídico-constitucional o direito penal administrativo corporiza – como


positivação jurídica da política social do Estado –, não uma
racionalidade meramente pragmática, finalista e indiferente a valores,
mas uma ordenação com relevância axiológica direta. Também no
direito penal administrativo, pois, como no de justiça, se trata do livre
desenvolvimento da personalidade do homem e, assim, de autênticos
bens jurídicos. Só que, no âmbito do direito penal administrativo, a
atuação da personalidade do homem apenas é possível como fenômeno
social, em comunidade e em dependência recíproca dela”78.
Uma maneira de compreender os bens dignos de punição penal
tributária das idéias antropocêntricas de Frankfurt peca, segundo
entendemos, por propugnar uma política criminal restritiva e garantista,
mas inadequada às transformações por que passa o mundo moderno e
que têm por conseqüência, no que aqui nos interessa, a aparição de
novas formas criminalidade. Noutros termos, falha a concepção pessoal
de bem jurídico porque “não tem em conta as dimensões das distintas
potencialidades de lesão de uma determinada sociedade em função de
seu estágio de desenvolvimento tecnológico”79.
E, contudo, não se deve pensar que aceitar a legitimidade da tutela
penal direta desses interesses queira significar um abandono do
paradigma “moralizante” que percorre a doutrina jurídico penal desde o
Iluminismo: a idéia de contrato social, como princípio de restrição, não
impõe, de nenhuma forma, a sujeição da proteção penal ao indivíduo
considerado de forma singular80. É, portanto, absolutamente coerente
com o paradigma penal que nos acompanha – que, como é sabido, deita
raízes no pensamento filosófico moderno surgido a partir do século XVII
e o ideário liberal clássico do Século XVIII e que tem por um de seus
mais impressivos valores o antropocentrismo e a conseqüente defesa do

78 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Para uma dogmática do direito penal secundário. RLJ, 116-7 (1983-
4/1984/5), p. 10 – o grifo é nosso.
79 Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia

jurídico penal alemana. ADPCP, tomo XLIX, fasc. 1, 1996, p. 193.


80 Nesse sentido, criticando tenazmente o monismo-individualista de Frankfurt, veja-se

SCHÜNEMANN, idem, p. 192 e ss. Segundo este Autor, a vinculação à idéia de contrato social não
pode, também, limitar o direito penal à tutela dos indivíduos existentes em determinado
momento, já que a noção de contrato social só é praticável “se se concebe como parte do contrato
toda a humanidade, isto é, incluindo também as gerações futuras” (idem, p. 193 – o itálico é nosso).

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indivíduo em face ao rigor punitivo do Estado – a salvaguarda pelo


direito penal de novos interesses da coletividade. A essa constatação se
chega – digamo-lo mais uma vez – quando se tem por notório que, de
par com a esfera eminentemente pessoal do agir humano, existe uma
outra, em sintonia com o mesmo “axioma onto-ontropológico” em que
se funda o direito penal moderno, que releva da dimensão coletiva do
homem como ser-com e ser-para os outros81. Aqui também, como no
direito penal “clássico”, estamos diante de bens que existem em função
do Homem e como condição para a sua existência livre e responsável. O
mesmo é dizer que, também quanto aos bens jurídicos supra-pessoais, a
pessoa humana é o referente axiológico que permite uma limitação da
intervenção punitiva, só que agora considerada como pessoa inserta e
dependente da comunidade. Portanto, não é necessária, neste último
caso, uma afetação direta do indivíduo, podendo a mesma ser indireta82.
3.1 Questão distinta é a de saber qual é o ponto ótimo dessa
afetação indireta. Já que, aqui, “surge o problema de onde fixar o limite:
em que ponto da repercussão indireta sobre o indivíduo cabe entender
que não se dão as condições para a proteção penal; pois, evidentemente,
o termo ‘indireto’ é suficientemente ambíguo para que dificilmente se
possa obter uma conclusão a partir unicamente do mesmo”83. De fato,
podemos subscrever a tese daqueles que só aceitam a validade e força
legitimadora dos bens coletivos quando dotados de um “referente
pessoal”, ou seja, quando a “moralidade da intervenção penal” esteja
condicionada à existência de uma “dimensão pessoal”, mesmo que esta
seja “alargada a uma concepção intersubjetiva e ‘comunizada’ dos
interesses a tutelar, expressão de um comunicativo ser-com-os-outros
que é característica do nosso mundo da vida (concepção pessoal-dualista

81 Assim, FIGUEIREDO DIAS, O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco” in
Estudos em Homenagem ao Doutor Rogério Soares (a publicar)., p. 23 e ss. Assim também, apesar
de sustentar uma concepção distinta – a que chama pessoal-dualista – de bem jurídico, ver DIAS,
Augusto Silva. Entre comes e bebes: debate de algumas questões polémicas no âmbito da
protecção jurídico-penal do consumidor: a propósito do acórdão da Relação de Coimbra de 10 de
julho de 1996. RPCC 4, 1998, p. 66 e ss.
82 Cf. PORTILLA CONTRERAS, Guillermo. Principio de intervención mínima y bienes jurídicos

colectivos in Cuadernos de Política Criminal, n°39, 1989, p. 745.


83 Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación al derecho penal contemporâneo. Barcelona: Bosch,

1992, p. 272.

50
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de bem jurídico)”84. Rumo diverso seria o tomado se atendêssemos aos


que defendem uma absoluta autonomização dos interesses em questão.
Assim a concepção dualista (em sentido estrito) do bem jurídico,
segundo a qual os bens jurídicos supra-individuais, para além de
autônomos, independem de qualquer referência aos interesses do
indivíduo para a sua consagração legislativa como objetos de tutela85.
Note-se, chegados a esse ponto, que a questão não fica ainda
resolvida somente com a acolhida, por princípio, dos bens jurídicos
coletivos ou supra-individuais. Ainda mais quando se tem presente que
os novos interesses de que vimos falando, por apresentarem uma
natureza distinta da dos clássicos bens individuais, são dificilmente
delimitáveis de forma a servir de critério à construção e aplicação dos
tipos penais. Por conseqüência, resulta problemática não só a tarefa de
concepção e concreção desses bens como a sua compatibilidade com os
princípios de garantia, mormente com o princípio da proteção
subsidiária de bens jurídico-penais. Uma posição a este respeito deve ser
tomada em relação a cada bem jurídico específico, caminho árduo e que,
obviamente, foge dos propósitos do presente estudo.

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84 Cf. DIAS, Augusto Silva. Entre comes e bebes: debate de algumas questões polémicas no âmbito
da protecção jurídico-penal do consumidor: a propósito do acórdão da Relação de Coimbra de 10
de julho de 1996. RPCC 4, 1998, p. 67.
85 Cf. TIEDEMANN, Klaus. El concepto de delito económico y de derecho penal económico, Nuevo

Pensamiento Penal. Buenos Aires: 1975, p. 68; também FIGUEIREDO DIAS, Para uma dogmática do
direito penal secundário. RLJ, 116-7 (1983-4/1984/5), p. 7 e ss.

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54
O CASO PIERRE RIVIÈRE REVISITADO POR
UMA CRIMINOLOGIA DA ALTERIDADE
M OYSÉS DA F. P INTO N ETO*

Resumo: O artigo procura estabelecer uma conexão entre a


ética da alteridade e a ciência criminológica, colocando
como mediador epistemológico o pensamento de Michel
Foucault, especialmente no “caso Rivière”. O objetivo é uma
revitalização da esfera “micro” na Criminologia sem
retornar ao paradigma etiológico, pois o criminoso tem a
oportunidade de falar por si mesmo, inclusive quando está
em conflito com a lei.

Palavras-Chave: Ética – Alteridade – Criminologia – Micro –


Pierre Rivière – Lei – Direito à palavra.

I – O Q UE S IGNIFICA A LTERIDADE ?
O que poderia vir a ser o significado da expressão “Criminologia
da Alteridade”, que escrevemos no título?
Primeiro, especifiquemos o sentido de alteridade. A “alteridade”,
tal como tratamos aqui, remete ao pensamento filosófico de EMMANUEL
LEVINAS (1906-1995). O filósofo franco-lituano abriu a possibilidade de
pensarmos a relação Eu-Outro enquanto uma relação eminentemente
ética, na qual o que está em jogo não é cognição, mas linguagem e
responsabilidade.
Para LEVINAS, o que sobressai quando estou face-a-face com o
Outro não é a minha idéia – ou, mais precisamente, representação – desse
Outro, mas antes de tudo o vínculo que se estabelece – a partir do olhar

* Especialista e Mestre pelo Programa de PPGCrim da Pontifícia Universidade Católica do RS.


Professor de Criminologia e Política Criminal do Departamento de Ciências Penais da UFRGS.

55
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– enquanto responsabilidade. Para isso, podemos dividir a descrição


desse vínculo em dois eixos: 1) o reconhecimento da alteridade do Outro,
ou seja, a incapacidade de subsumi-lo na idéia que nutro sobre ele, pois
ele é mais que isso (SOUZA, 2008:27); e 2) o surgimento da minha
responsabilidade por esse Outro, não-indiferença (SOUZA, 2008:28-29). A
esse eixo 1, LEVINAS costuma utilizar diversas metáforas, dentre as quais
a idéia de “Infinito” ou “exterioridade”, capaz de expressar o sentido
(traçadas, por isso, a partir da fenomenologia) que explode o rigor
tradicional com que se utiliza os conceitos, haja vista não estarmos
diante de um fenômeno epistemológico (se estivéssemos, tratar-se-ia de
tematização e, por isso, antiética). É precisamente essa condição que
LEVINAS nomeia “alteridade”, uma espécie de diferença (na linguagem
de LEVINAS: separação) absoluta, sem ponte ou atalho, diante do abismo
que está entre Eu e o Outro. É o eixo 2 que irá servir como vínculo que
preenche esse abismo. Ao contrário da tradicional “tematização” do
Outro, LEVINAS propõe um vínculo não-violento que supõe receber o
Outro na sua integral diferença e assumir a responsabilidade integral
por ele. A esse momento correspondem metáforas como a “oração”, o
“discurso”, a “linguagem”, o “não matarás”, “Deus”, “Altíssimo” e,
modo geral, toda reconstrução da subjetividade ética
(fundamentalmente em Autrement, mediante conceitos como “refém” ou
na idéia de “substituição”)1.
Para afastar-se completamente de qualquer “ontologia” (termo
próprio da filosofia de MARTIN HEIDEGGER, cujo permanente
contraponto guia LEVINAS), ou seja, de qualquer vínculo com o Outro
que seja vínculo de representação – tematização, conhecimento,
epistemologia – LEVINAS diz que está se referindo a uma relação “re-
ligiosa”, ou seja, de re-ligação entre as pessoas, sem que ela pressuponha
qualquer mediação racional. Eis, sobretudo aqui, a fissura que divide,
apesar de algumas coincidências, a “razão ética” de LEVINAS da “razão

1 O objetivo deste paper é familiarizar o leitor não acostumado com a escrita de LEVINAS com as
idéias do filósofo, tendo-se utilizado, por isso, predominantemente linguagem analítica. Ao
mesmo tempo, pretende-se fornecer chaves de leitura para a obra do próprio LEVINAS, buscando
suavizar a linguagem fenomenológica que lhe serve de pano de fundo e que certamente suscita
estranhamento ao leitor. Com isso, perde-se em “rigor”, mas se ganha em didática. Sobre o tema,
conferir SOUZA (2000) e PELIZZOLI (2002).

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prática” de KANT. Somos apenas Eu e o Outro, sem mediação de uma


idéia reguladora (LEVINAS, 1977:106).
Mas essa relação é da ordem da decisão – posso decidir entre não
aceitar a infinitude do Outro, substituindo-o por uma representação, ou
respeitar sua diferença e assumir a responsabilidade. Tenho alternativa.
Ao contrário do que ocorre com os conhecimentos próprios da ciência,
em que não tenho alternativa (não posso negar, plausivelmente, que
uma pedra cai no chão se a solto no ar), aqui estou no domínio de uma
ordem de decisão (algo próprio da filosofia de ROSENZWEIG): posso ou
não ser ético. Mas não posso ser neutro. Quando vislumbro o Rosto de
Outrem – diz a metáfora levinasiana que, contudo, pode e deve ser lida
literalmente – estou diante de sua “interpelação”, já não posso escapar
disso. Seguindo a metáfora, quando vejo Outrem, posso saudá-lo ou
não, mas, mesmo não o fazendo, já me evadi de uma relação (LEVINAS,
2005:27). Não posso escapar dessa relação – não existe álibi. É isso que
retira a ética de LEVINAS da “deontologia” para a realidade.
A “alteridade” aparece aqui como aquilo que, do Outro, excede a
minha representação2. Posso ignorá-la, do ponto de vista ético, mas essa
recusa já será uma posição. A alteridade é uma espécie de
“exterioridade”: é aquilo que transcende (e transcendência passa a ser
um conceito de LEVINAS nesse sentido) minha capacidade intelectual – é
demais para mim. Bastaria invertermos os sujeitos para verificarmos, do
ponto de vista epistemológico, a existência da alteridade: alguém,
mesmo que viva os 365 dias do ano comigo, é capaz de dar conta da
minha totalidade? É capaz de me adivinhar todos os meus desejos,
conhecer os meus sonhos, entender tudo que se passa na minha cabeça?
A resposta negativa a esse fato nos põe diante de um imperativo ético:
não posso reduzir o Outro àquilo que penso que ele é. O que penso que
ele é é só isso: “o que penso que ele é” – e nada mais. O que ele é é outra
coisa.
Ora, muito bem, o que a filosofia de LEVINAS tem a dizer à
Criminologia?

2 Portanto, é possível ver que embora a “alteridade” seja o conceito mais famoso da filosofia de
LEVINAS, suas teses dividem-se em um duplo eixo, sustentado pela própria alteridade, no eixo 1, e
por uma subjetividade responsável pelo Outro, no eixo 2.

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Basicamente, enquanto um saber que se volta a pesquisar o crime,


a Criminologia não deixa de estar envolvida com seres humanos
(criminosos, vítimas, bystanders, etc.), não podendo ignorar essa
dimensão de alteridade. A Criminologia positivista, por exemplo, foi um
constante exercício de “tematização” do Outro, o “criminoso”. Na figura
do criminoso nato, do perigoso ou do louco, LOMBROSO, FERRI e
GARÓFALO criaram um inventário de representações que pretendem se
sobrepor à alteridade daqueles efetivamente envolvidos. A noção
posteriormente desenvolvida por ERWIN GOFFMAN de estigma é o
conceito sociológico que espelha essa representação (GOFFMAN, 1988:12).
A função do pensamento de LEVINAS é, então, precisamente
escavar até as raízes do nosso pensar e descobrir onde está o momento
que se dá esse ato de representação. A partir disso, nos libertar dele
(LEVINAS, 1995:30). Essa libertação se dá no reconhecimento da relação
ética, no receber incondicional do Outro na sua alteridade, ou seja, na
sua diferença absoluta, ou, ainda mais precisamente, na sua exterioridade
a qualquer operação intelectual que se dê no interior da minha mente.

II – A V IRADA C RIMINOLÓGICA E A A LTERIDADE


Como já adiantávamos, a Criminologia etiológica – entendida
enquanto tudo que antecedeu o labelling approach – pretendia reduzir o
indivíduo envolvido na trama cognitiva criminológica enquanto
“criminoso”. Ela procurava causas para dizer: “X é delinqüente
porque....”. A Criminologia da reação social, por outro lado, procurou
enfrentar, com argumentos de base, o problema desses “é” e “porque”.
Ao expor o fato de que há uma inegável defasagem quantitativa entre a
taxa de delitos efetivamente cometidos e os punidos, abriu margem para
pensarmos em uma seleção qualitativa: apenas alguns vão punidos,
porque são mais vulneráveis ao Poder Punitivo (ANDRADE, 259:275;
ZAFFARONI et al., 2003:29). Com isso, a idéia de “estereótipo”
desmitificou a figura do “criminoso”. O que pensamos corresponder a
um “criminoso” é, na realidade, em estereótipo que corresponde aos
selecionados pelo Poder Punitivo, mas jamais a uma qualidade
intrínseca inscrita na própria pessoa. Da mesma forma, a ausência de
conteúdo “ontológico” ao delito, rechaçado a partir de um relativismo

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cultural, elimina a possibilidade de correlacionarmos, ou acoplarmos,


crime à natureza3.
Ora, é precisamente isso que dificulta, se não torna impossível, a
pergunta pela causa – uma causa oni-abrangente, precisemos – do delito.
Se o delito é cometido por uma variedade totalmente heterogênea de
pessoas, não há como identificar uma causa – biológica, psicológica ou
sociológica – que leve alguém a ser delinqüente4. O que costumávamos
fazer era “etiquetar” alguém com essa causa. Não perguntamos as
causas biológicas que levam alguém a vender um DVD pirata, roubar o
sinal da tevê a cabo do vizinho, praticar sonegação ou evasão fiscal. A
“normalidade” das pessoas não nos faz pesquisar essas “causas”. O
crime pode até não ser algo “normal”, no sentido de ser praticado na
maioria do tempo, mas é definitivamente “normal”, no sentido de que é
praticado por ampla gama de pessoas (basta pensar em injúrias, abortos,
sonegação fiscal ou violência familiar), muitas das quais sem qualquer
correspondência com os estereótipos da Criminologia etiológica. O
labelling, para fazer esse movimento, precisou quebrar um dogma:
acreditar que a totalidade dos fatos punidos (ou dos agentes envolvidos)
corresponde à totalidade dos fatos cometidos (ou dos agentes
envolvidos). Ao ver que essa defasagem é norteada não apenas pelo
óbvio critério quantitativo, mas também pelo qualitativo, o labelling
colocou em xeque todas as teorias que pretendiam encontrar a “causa do
criminoso” (LARRAURI, 2000:29). Trata-se de argumento poderoso, que
derruba um sistema-Golias como a boleadeira de Davi.
Agora, comparando com as teses de LEVINAS, é possível vermos
que avançamos eticamente com o labelling. Ao denunciar os estereótipos
e estigmas, essas novas teses suplantaram uma representação que
aprisionava o Outro envolvido, tratando-as exatamente como aquilo que

3 Sobre o tema, por exemplo: GARCIA-PABLOS DE MOLINA (2006:282-284), FIGUEIREDO DIAS e COSTA
ANDRADE (342-361), ZAFFARONI e Outros (2003:43-57), BARATTA (2002:65-67), HUDSON (1997:454) e
CARVALHO (2008:199-200).
4 “Se as condutas adjetivadas como delitos possuem diferenças significativas decorrentes dos
distintos resultados lesivos e da pluralidade dos personagens (autores e vítimas), e se das
hipóteses de determinação biológica, psicológica, sociológica ou antropológica não se aplicam ao
universo dos fenômenos definidos como crime, conseqüentemente não são estas patologias
fatores fundamentais para identificar, sob o mesmo rótulo (delitos), condutas assimétricas”
(CARVALHO, 2008:200).

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são: representações. A ausência de acoplamento entre a minha


representação do Outro e o próprio Outro, nesse caso (e talvez em todos
os demais) revelava um vinculo de violência5, que subjugava e
mortificava o Outro. Posteriormente, com a recepção marxista do
labelling, é a própria Criminologia Crítica que se enreda no imbróglio
representacional (LARRAURI, 2000:176-177).
Mas, se tomássemos apenas o discurso do labelling, poderíamos
dizer que há já aí uma “Criminologia da Alteridade”?

III – O D IREITO À P ALAVRA DO O UTRO


Visivelmente, a Criminologia Crítica nos abre a perspectiva de
olharmos para os fatores do poder – os “powerfull reactors”
(FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, 1992:346). Nosso olhar passa do
“bad actor”, do criminoso malvado diferente dos demais “cidadãos de
bem”, para as agências criminais, seu funcionamento e, principalmente,
o desvelamento dos mecanismos de seleção quantitativa e qualitativa.
Isso, no entanto, não é suficiente para uma “Criminologia da
Alteridade”. A Criminologia Crítica abriu terreno para: 1) substituir a
representação do criminoso-nato pelo criminoso-Robin Hood, na
preciosa metáfora de LARRAURI (2000:176); ou 2) simplesmente ignorar a
questão da “causa” do delito, afastando-nos de qualquer aproximação
“micro” do problema criminal.
Ora, já vimos o porquê de 2). Mas, para uma Criminologia da
Alteridade, é necessário não apenas considerar o crime, a ação criminal,
mas também ouvi-lo na sua alteridade absoluta. Trata-se, portanto, de
aproximar o discurso criminológico de uma perspectiva micro, sem
perder nada da perspectiva macro. Essa aproximação, no entanto, não
vai voltar ao discurso etiológico, mas buscar, precisamente, o
estabelecimento de uma relação que comece ética com o envolvido. Isso
significa fazer uma “arqueologia do silêncio” do criminoso. Como ele foi
e é silenciado pelos discursos criminológicos? Como ouvi-lo? Como
conciliá-lo com o método?

5 “Tudo aquilo que entendemos por violência, em todos os níveis, do mais brutal e explícito à
violência coercitiva e socialmente sancionada do direito positivo, e, inclusive, a violência auto-
infligida, repousa no fato exercido de negação de uma alteridade” (SOUZA, 2008:32).

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A distância que separa as teses de EMMANUEL LEVINAS da prática


criminológica parece ser insuplantável. Pode Levinas nos servir como
alguma ferramenta epistemológica, algo que vá implicar substanciais
mudanças metodológicas no âmbito da Criminologia? Ética, alteridade,
responsabilidade – essas palavras pesadas têm algo a dizer ao discurso
criminológico?
Cremos que uma estratégia adequada para destravar os
preconceitos dos criminólogos em relação à filosofia é aproximar os
discursos, a partir de mediações possíveis entre as fortes teses de
Levinas e o pragmatismo que tem orientado as pesquisas criminológicas,
decorrentes de uma inegável aproximação com a sociologia (basta
referirmos essa tendência nos trabalhos de alguns dos mais importantes
criminólogos: DAVID GARLAND, JOCK YOUNG, MASSIMO PAVARINI, etc.).
A perspectiva sociológica, embora necessária, está longe de esgotar a
complexidade do fenômeno criminal, podendo ser complementada por
outras modalidades de discurso.
Mas LEVINAS nos coloca em um dilema: ao estabelecer que o único
vínculo ético entre Eu e Outro é a re-ligião (ainda que em sentido não-
teológico), ele parece obscurecer toda tentativa de um saber
criminológico que procure estabelecer pontes com a ação criminal,
reduzindo, de fato, o conteúdo da Criminologia à pesquisa dos powerfull
reactors. Será?
Pretendemos provar que não. Vamos utilizar o “dossiê Rivière”,
organizado por MICHEL FOUCAULT, como exemplo disso. O trabalho de
FOUCAULT – um pensador com nítida influência no pensamento
criminológico, especialmente a partir da grande obra Vigiar e Punir –
servirá, então, como mediador epistemológico entre a noção de
alteridade de Levinas e o saber criminológico.

IV – O C ASO “P IERRE R IVIÈRE ”: U MA A NÁLISE É TICA


Podemos vislumbrar, desde o primeiro passo epistemológico, que a
relação que FOUCAULT estabelece com PIERRE RIVIÈRE é ética, no sentido
de LEVINAS. Por quê? Já na introdução, FOUCAULT adverte que decidira
não interpretar o discurso de RIVIÈRE, “nem impor qualquer comentário
psiquiátrico ou psicanalítico”, pois, ao retomar alguns desses discursos,

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“teríamos então lhe imposto esta relação de força de que queríamos


mostrar o efeito redutor e de que teríamos sido, por nosso lado, vítimas”
(FOUCAULT, 1977:XIV, grifei).
Trata-se de um exemplo em que a ética configura a epistemologia,
não lhe servindo como ferramenta, mas sim como limite auto-imposto, com
vistas a reduzir o efeito violento que as representações – científicas ou
não – operam sobre o sujeito objeto de análise (algo comum a toda obra
de FOUCAULT, que, como sustentaremos adiante, foi um pensador
oblíquo da alteridade). Ou seja, trata-se denunciar como as “verdades”
científicas operam um efeito redutor que substitui o sujeito por um
objeto, que nada mais tem a ver com aquele sujeito. Na linguagem de
LEVINAS, teríamos o Outro (sujeito, PIERRE RIVIÈRE) substituído por uma
representação (objeto psiquiátrico ou jurídico), que produz uma redução.
O pressuposto da obra de FOUCAULT, por isso, já está em
consonância com a ética da alteridade: PIERRE RIVIÈRE não é, antes de
tudo, aquilo que as representações jurídica (“Monstro”) ou psiquiátrica
(“Louco”) fazem dele. Trata-se, como vimos no item I, do eixo 1 da ética
de LEVINAS: reconhecer no Outro sua “infinitude”, sua exterioridade e,
portanto, sua alteridade. FOUCAULT não precisa justificar essa tomada de
posição ética com argumentação de LEVINAS porque seu pensamento é
original nesse sentido: trata-se de desvelar os vínculos ocultos de poder
nas relações, trazê-los à tona, a partir de uma crítica radical (FOUCAULT,
1999:30). Ora, se, como afirma LEVINAS, o “humano acontece onde não
há poder” (1995:33), FOUCAULT torna-se um pensador oblíquo da
alteridade.
Mas sigamos com RIVIÈRE. Se quiséssemos elaborar uma forma de
ouvir essa alteridade – ou seja, aquilo que de RIVIÈRE nos escapa –
precisamos, mais do que nunca, dar-lhe a palavra. A descrição de perfis
jurídicos, sociológicos, psicológicos ou de qualquer outra ordem sobre
ele não recupera a sua alteridade, à medida que esta escapa, transborda,
necessariamente, desses discursos.
É por isso que FOUCAULT e os outros colaboradores precisam
“deixar em grau zero” a carta de RIVIÈRE. Trata-se de deixá-lo falar,
ouvi-lo, deixá-lo transcender os estereótipos jurídicos e psiquiátricos.
Para deixar essa transcendência acontecer, é preciso deixá-lo falar. E

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deixá-lo falar significa colocar seu texto, sem traduzi-lo, para que seja
ouvido em sua total alteridade. A “tradução” das suas palavras para um
discurso técnico significaria, em outros termos, o encobrimento dessa
alteridade por uma relação de poder. Nem o “monstro”, nem o “louco”,
nem o “criminoso”: apenas PIERRE RIVIÈRE.
Esse “dar voz” é, a nosso ver, a lacuna ética existente na produção
criminológica atual. Embora se observe as diferentes manifestações
sociais da delinqüência, as mudanças sociais, políticas, culturais e
econômicas, o contexto em que ocorrem essas modificações, ainda há
uma lacuna que consiste em um silenciamento. O antigo “bad actor”,
tratado como objeto de um discurso causalista, foi jogado ao silêncio,
pois aparentemente – apesar de todos os esforços do labelling approach6 –
ainda existe uma parcela de dogmatismo: ainda não se pode ouvir quem
descumpre a lei. Ainda se procura justificativa. Ainda se está preso ao
esquema jurídico-legal de que quem descumpre a lei não pode falar,
senão como forma de: 1) confessar que descumpriu a lei ou 2) apresentar
as “desculpas” por esse descumprimento. Um princípio jurídico-moral7
ainda está preso no discurso criminológico: não é possível ouvirmos um
discurso que ofenda a ordem jurídica. É preciso que esse discurso se
converta em “desculpas”.
Acredito que uma das razões para a existência dessa lacuna foi
dada por GOFFMAN, quando afirma que o estigma se cola no
pesquisador (GOFFMAN, 1988:58). Abrir a possibilidade de questionar a
ordem jurídica é, para o criminólogo, um risco terrível: se o estigma cola
também no pesquisador, ele também estará, aos olhos dos
estigmatizadores, questionando o ordenamento jurídico. A higiene que
separa o pesquisador-criminólogo do pesquisado-criminoso pelo fato
cometido pelo pesquisado aqui se torna muito mais difícil de ser mantida.

6 Podemos dizer que a virada paradigmática do labelling consiste em não mais partir das decisões
legais, de um dogmatismo jurídico, para formular suas hipóteses.
7 Como anota SALO DE CARVALHO, a ciência criminal “a partir da concepção idealizada de homem
bom, não delinqüente, cria instrumentos góticos de reforma do mal que se manifesta no homem
delinqüente, seu não-igual” (2008:47). A esse quadro corresponde o impedimento – a censura – da
voz daquele que comete o delito, que viola esse código intocável da bondade, em contraste ao
estilo “trágico” (no sentido de NIETZSCHE) que o autor propõe, pois “no trágico haveria a
possibilidade de superar a identidade entre moral e ciência” (2008:52).

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Como garantir que aquele que ouve o criminoso não está compactuando
com aquilo que este diz?
É o risco inerente à alteridade que aqui estamos colocando. A
“aventura da diferença” não promete ser pacífica: encarar o Outro como
Outro não representa qualquer garantia de conciliação; podemos, ao
contrário, estar diante de um evento traumático. Mas é isso que a ética
exige. A “hospitalidade” com o Outro, expressão de JACQUES DERRIDA
(2003:25), exige que o receba incondicionalmente, sem perguntar seu
nome ou suas razões; senão é tudo, menos hospitalidade.
O artigo “O Animal, o Louco e a Morte”, presente na coletânea e
escrito por J. P. PETER e JEANNE FRAVET, é o que mais se aproxima desse
tipo de análise. Os autores tentam apresentar RIVIÈRE permanentemente
enquanto um estranho, um “ogro” que nada tem em comum com os
cidadãos franceses – permanecendo totalmente Outro em relação a eles.
Mas é precisamente esse Outro, a partir da sua carta e das análises
contextuais dos camponeses franceses, que aos poucos vai se tornando
menos “monstro” e mais “humano”, embora ainda Outro, sem que
precisemos violentá-lo por meio de uma representação.
Não seria de se estranhar que PETER e FAVRET, ao voltar-se para as
condições sociais de RIVIÈRE, transformassem-no em espécie de “vítima”
ou “oprimido” do sistema, tal como ocorreu com a Criminologia Radical
quando deu contornos marxistas ao labelling. No entanto, os autores
evitam constantemente essa interpretação. RIVIÈRE não é determinado
pela sua pobreza. Seu ato é, ao contrário, uma forma de expressão, ainda
que violenta – extremamente violenta. PETER e FAVRET tiram o “silêncio”
do ato de RIVIÈRE – silêncio que pretendem os discursos jurídico e
psiquiátrico instaurar, restabelecendo a ordem. RIVIÈRE agora fala por si
mesmo, o que os autores fizeram foi abrir um espaço de fala, e não falar
por ele. Para isso, foi preciso desestruturar a ordem, deixando a alteridade
irromper.
Já na introdução ao texto PETER e FAVRET comentam que RIVIÈRE
“se dá o direito de romper o silêncio e assim falar. De dizer a palavra
final, como alguém que volta de longe, e que há muito tempo sabia que
a vida deles todos era uma longa coabitação com o inabitável”
(FOUCAULT, 1977:188). Tratam de mostrar o conflito entre as “luzes”

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médicas que chegam às aldeias para cuidá-los e se deparam com


doenças com formas estranhas, protuberâncias arborescentes,
germinações e ligações de ossatura ou da carne, participando de um
quase-homem, que ainda é mineral, vegetal e animal (FOUCAULT,
1977:190). É nesse entrechoque entre o médico e o monstro que eles irão
descrever o grito ultraviolento de RIVIÈRE, espécie de “proto-palavra”
que o retira do silêncio absoluto, para usar a expressão de DUSSEL
(1995:19).
O que está em jogo, portanto, numa “Criminologia da Alteridade”,
portanto, não é apenas o eixo 1 da filosofia de LEVINAS – condição
necessária, mas não suficiente – é ainda preciso o eixo 2, ou seja, a “não-
indiferença”, a tentativa de dar voz ao ato conflitivo, mesmo que
manifestado mediante violência, quando se está diante de um
“silenciamento” produzido pelo poder. É preciso “dar voz” à população
que cai nas malhas do Poder Punitivo, ainda que esse discurso seja hostil
e juridicamente ilegítimo. Apenas assim a Criminologia escapa da
“ontologização” do Outro, da sua tematização, representação ou
redução.

VI – R ECONHECER A L IMITAÇÃO DA E PISTEMOLOGIA É A LGO


R UIM ?
O problema de MICHEL FOUCAULT era trazer à luz os vínculos de
poder que permaneciam escondidos numa malha discursiva
pretensamente neutra, legitimada em saberes que moldavam outros
saberes. Ao desvelar um sentido positivo no poder, seu potencial
configurador, FOUCAULT estava obliquamente abrindo um espaço de
pesquisa para uma Criminologia já comprometida com a ética da
alteridade. A produção do “normal”, enquanto uma estratégia
disciplinar, revela um aspecto de violência que, uma vez revelado, pode
ser combatido e alterado. Ao pesquisar marginais (como o louco ou o
criminoso), FOUCAULT abriu espaço para questionarmos as
representações – estigmas ou estereótipos – que preenchem nosso
imaginário social, encobrindo a alteridade daqueles que se viam
massacrados por um discurso uniformizante.

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É preciso, ainda, ressaltar um último aspecto: a alteridade


enquanto limite epistemológico. Tendemos a interpretar a limitação de
qualquer conhecimento como um pathos (LEVINAS, 1977:125-6). Não há
dúvidas que o respeito à alteridade – o reconhecimento da infinitude do
Outro diante da minha cognição – significa abalar um “sonho no
coração”8 da Criminologia: o de desvelar o “gene” da criminalidade e o
extirpar dos indivíduos9. Com a ética da alteridade, no entanto,
aprendemos a reconhecer a separação absoluta entre Eu e o Outro, sem
que a finitude do meu conhecimento seja interpretada como algo ruim.
Ela é, ao contrário, a manutenção de uma relação sadia – não-violenta –
em contraposição a todas as representações que, sabemos, exerceram
funções terríveis ao longo da história da humanidade (basta pensar na
força que desempenharam e desempenham representações como bruxas,
estrangeiros, perigosos, judeus, comunistas, muçulmanos, bárbaros,
homossexuais, etc.). É retornando ao momento “sadio” – não
correspondente a um passado “histórico”, mas a um passado
“filosófico”, ou, na expressão de LEVINAS, “tão antigo que nunca foi
presente” (1995:221) – que podemos evitar a “corrupção” das nossas
relações, no sentido de “degeneração” em violência e indiferença.
Ao mesmo tempo em que é limite, a alteridade é impulsora do
conhecimento criminológico, à medida que abre um campo para
pesquisa dos dispositivos de silenciamento da alteridade (o que já se
explora desde o labelling) e de escuta, diálogo e interpretação dessas
vozes silenciadas (território ainda fértil). O problema atual é de como
converter um permanente local de fala, de onde descreve o criminólogo
desde a matriz em que trabalha, em um local de escuta, na qual o
indivíduo envolvido tem o direito de falar de si mesmo sem ser
reduzido a estereótipos (CARVALHO, 2008:05).
A partir da mediação epistemológica de MICHEL FOUCAULT,
buscamos construir uma ponte entre a ética da alteridade e a construção
do saber criminológico, sugerindo aos criminólogos a possibilidade de

8 A expressão é de JACQUES DERRIDA (“sonho no coração da filosofia”), referida por RICHARD RORTY
(1999:123).
9 DAVID GARLAND nomeia essa pretensão criminológica como “The Lombrosian Project”. Pretendia-

se encontrar etiologicamente aquilo que distinguia criminosos de não-criminosos (GARLAND,


1997:12).

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respeito à alteridade sem que, com isso, impossibilitemos o


conhecimento do crime – afinal, todo conhecimento é “ontológico”10.
Não apenas MICHEL FOUCAULT, mas há uma série de trabalhos11 que, sob
outras matrizes epistemológicas, respeitam a alteridade. É nessa tênue
linha entre o saber e a ética que deve se movimentar o criminólogo,
evitando repetir a violência que ele próprio estuda.

O BRAS R EFERIDAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. . Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à
sociologia do Direito Penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002.
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008.
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da
Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação: crítica à ideologia de exclusão. Trad.
Georges Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de & COSTA ANDRADE, Manuel da. Criminologia: o homem
delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra editora, 1992.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22ª ed. Org. e trad. Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Graal, 2006.
_______. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1999.
_______ (coord.) Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão.
Rio de Janeiro: Graal, 1977.

10 Estamos enfrentando aqui um problema típico das investigações de LEVINAS, que preocupa a
todos os estudiosos do seu pensamento: a primazia da ética sobre a ontologia. Como articular
uma Criminologia, se ela é conhecimento e, como tal, ontologia? Se interpretássemos demasiado
literalmente e forçadamente LEVINAS, chegaríamos à conclusão da impossibilidade de um
discurso criminológico, pois a ética não é uma relação de conhecimento. No entanto, o filósofo
lituano não pretendeu a eliminação do conhecimento e a substituição pela ética, mas sim um
conhecimento investido pela ética. É essa difícil articulação que se pretendeu enfrentar.
11 Podemos arrolar como exemplo, na Criminologia brasileira, o livro co-escrito por LUIS EDUARDO

SOARES, MV BILL & CELSO ATHAÍDE, Cabeça de Porco (2005), como exemplo de abordagem não-
violenta da alteridade, que pretendemos desenvolver em outro trabalho.

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GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia: introdução a seus fundamentos


teóricos. 5ª ed. Trad. Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006.
GARLAND, David. The Development of British Criminology. In: The Oxford
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68
SOBRE MONSTROS, TORTURA
E DIREITOS HUMANOS *
C ÉSAR A UGUSTO B ALDI **

Resumo: O aparente consenso em relação à monstruosidade


e barbárie tem obscurecido o fato de que tanto tortura
quanto direitos humanos são um campo de lutas e
contestações onde competem pressupostos e visões de
mundo distintos sobre gênero, diferença, cultura e
subjetividade. Procura-se demonstrar que a tortura foi
configurada como parte de uma complexa história do
conceito secular do que é realmente humano, ao mesmo
tempo que os direitos humanos estão envoltos em focos de
turbulência entre princípios rivais, entre princípios e
práticas, entre raízes e opções e entre sagrado e profano. Daí
o desafio de buscar novas vozes de sofrimento.
Palavras-Chave: direitos humanos; sofrimento; tortura;
tratamento cruel; monstros; barbárie.

A descoberta do outro no contexto colonial europeu envolveu a


produção e reconfiguração de relações subalternas. Três foram
particularmente importantes: a) o Oriente, como espaço da alteridade: o
Ocidente não existe fora do contraste com o não-Ocidente, seja este visto
como civilização alternativa, como centro da história, como ameaça, seja
como recurso; b) a natureza, como lugar por excelência da exterioridade,
uma exterioridade que é sentida como ameaça, pela falta do conhecimento,
e como recurso, que pode e deve ser dominado e destruído; c) e, por fim, o
selvagem, como o lugar da inferioridade e, portanto, da “diferença que é

* Texto-base da intervenção no Painel “Movimentos sociais, multiculturalismo e controle social


punitivo”, dentro da programação da Jornada de Estudos Criminológicos, realizada no Auditório
da Faculdade de Direito da PUC/RS, em 20 de junho de 2007, juntamente com Emil Sobottka e
Dani Rudinick.
** Pós-graduado em Direito Político/UNISINOS, Mestre em Direito/ULBRA-RS, Doutorando em

Direito/UPO.

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incapaz de se constituir em alteridade”, ou seja, daquele que, não sendo


plenamente humano, tem a diferença construída como a ameaça do
irracional1.
Dos vários “selvagens” criados, o monstro é uma figura recorrente
para o campo da política e do direito, incluído o direito penal. Mas o que é o
monstro? O monstro é aquela criatura que “está sempre e paradoxalmente
próximo e distante do humano, que tem por função delimitar e legitimar”2.
Se o monstro medieval é uma ponte entre o humano e o divino – e a
representação de São Cristóvão com cabeça de cachorro ou do Cristo com
três cabeças são um bom exemplo –, paulatinamente ele vai se
transformando no outro deformado que busca o impossível: pertencer ao
humano do qual se percebe injustamente separado, para adquirir, no Século
XIX, uma autonomia que remete, então, à invenção do terror moderno3, do
qual Drácula e Frankenstein são os maiores expoentes.
O que se olvida, contudo, é que o monstro é sempre um ser híbrido,
simultaneamente, dentro e fora da humanidade, e, portanto, sem lugar, exceto
o de confirmar a norma, enquanto dela distante, e de questioná-la, enquanto parte
integrante dela. Esta hibridez fica evidente quando se recorda que o dragão,
por exemplo, tem olhos de coelho, crina de cavalo, patas de tigre, garras de
falcão, peito de sapo, corpo de serpente, focinho de porco, escamas de peixe,
chifres de veado e cabeça de camelo4. Ou mesmo Frankenstein, que é a
tentativa de criação de um ser humano a partir de partes desmembradas de
cadáveres, às quais Victor (o criador) restaurou movimento e vida por meio
mecânicos. Como a própria etimologia da palavra confirma, o monstro é
aquilo que tem que ser mostrado, mas não pode ser dito ou descrito, porque
inclassificável.
Neste sentido, Drácula, de BRAM STOKER, é simplesmente
paradigmático. Primeiro, porque o vampirismo remete à associação com o
sangue. E o sangue é, juntamente com o sêmen e o leite, “uma das três
substâncias sagradas que emanam do corpo” e, enquanto o sêmen expressa
o macho, e o leite, a fêmea, “o sangue transcende a diferença entre o macho
e a fêmea”5, tendo sido identificado com a vida e com a força da vida. Ser de

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. El fin de los descubrimientos imperiales. In: El milenio huérfano: ensayos
para una nueva cultura política. Madrid-Bogotá: Trotta-ILSA, p. 141-150.
2 BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Definindo o monstruoso: forma e função histórica. In: ______. Monstros,

índios e canibais; ensaios de crítica literária e cultural. Florianópolis: Insular, 2000, p. 11.
3 Ibidem, p. 14-22.

4 Agradeço a Henry Pereira Harada pela informação.


5 FROMM, Erich. Anatomia da destrutividade humana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 361

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fronteira, por excelência, portanto, o vampiro, contudo, vai levar à


“contaminação” do sangue, uma correlação, aliás, que é bem explícita, nos
dias de hoje, com a questão da soropositividade e o preconceito com
homossexuais e a luta por direitos sexuais. Segundo, porque a mulher que é
contaminada por Drácula (no caso do livro, Lucy Westenra) adquire aquela
sexualidade “exaltada que o imaginário vitoriano percebia como
incompatível com a domesticidade feminina”6 que estava sendo posta em
questão.
Mas a leitura pelo viés da sexualidade, contudo, é apenas um dos
aspectos do livro. Como ser de fronteira, Drácula deveria vir de “uma das
primitivas e menos conhecidas partes da Europa”7, e, embora seu castelo fosse
localizado nas margens do mundo civilizado, ele possui uma biblioteca que
possui “um grande número de livros ingleses, estantes inteiras repletas
deles, e volumes encadernados de revistas e periódicos”8. Informado da
vida da metrópole, deseja “caminhar no meio da multidão das avenidas
londrinas, estar no meio do tumulto e da correria dos homens”, ou seja,
alimentar-se também do sangue cultural londrino. Para tanto, não lhe basta
apenas aprender a linguagem com a ajuda de livros: “Qualquer um
reconheceria em mim um estranho, o que não é de forma nenhuma
satisfatório. Não aceitarei nada menos do que ser como todos os outros,
para que ninguém tenha sua atenção voltada a mim, e interrompa suas
palavras ao me ouvir para dizer: “Ah, um estrangeiro!”9
Apesar de sua nobreza, portanto, o conde é, também, um imigrante
indesejável, perigoso, vindo de uma nação periférica e primitiva, que busca
instruir-se e utilizar-se do instrumental da nação civilizada para ter direito
de não ser apenas um “outro cultural”. A sua destruição tem que ser levada
a cabo por cinco homens ( três ingleses,um americano e um alemão) para
evitar a tentação e fascínio que poderia exercer sobre MINA HARKER, que
tem “suavidade e luz”. Mesmo a fuga de Londres não impedia o fim da
expedição, porque “é necessário” para o próprio bem da moça e “depois
para o bem de toda a Humanidade. Este monstro já nos causou muitos
males no limitado alcance em que ainda se encontra”. Um monstro que
emigrara para “uma nova terra onde a vida humana ainda é fecunda”

6 BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Questões de geografia e fronteira II: Drácula viajante. In: ______.
Monstros, índios e canibais; ensaios de crítica literária e cultural. Florianópolis: Insular, 2000, p. 40.
7 STOKER, Bram. Drácula. Porto Alegre: L & PM, 1998, p. 36.

8 Idem, ibidem, p. 34.


9 Idem, ibidem, p. 35.

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deveria ser combatido por guardiões, “verdadeiros cavaleiros das Antigas


Cruzadas” para redimir as almas10.
Por fim, é de destacar a cena antológica, em que Jonathan Harker, na
primeira noite do castelo de Drácula, barbeando-se na frente do espelho,
sente um toque no ombro e ouve a saudação do conde, mas não vê a
imagem dele refletida no espelho, “cujo ângulo cobria toda a extensão do
quarto à retaguarda”, o que lhe causa estupefação11:
“Após retribuir a saudação, voltei a olhar para o espelho para
constatar como havia me enganado. Desta feita já não poderia
haver qualquer erro, pois o Conde estava bem perto de mim e o
via distintamente por cima de meu ombro. Mas não havia o menor
traço de sua presença refletido no espelho! Tudo o mais que existia
no meu dormitório estava nitidamente refletido. Não havia, porém,
sinal nenhum de outro homem no quarto, além de mim próprio”.
Ainda que a lenda em torno de Drácula o tenha convertido em
“morto-vivo”, sem alma, que não pode ter refletida a imagem no espelho,
aqui se está diante de um duplo jogo de espelhos. Primeiro, ao negar a
possibilidade de apresentar imagem do que existe, o espelho revela um
silêncio, uma ausência na presença, alguém que é e não é, “porque jamais se
percebe existente na imagem especular confirmadora da presença”.
Segundo, porque esta imagem não aparece porque quem olha e tem a
imagem “ocupa o lugar da imagem do outro ao mesmo tempo presente
(fora do espelho) e ausente ( no espelho)”. Ao olhar para onde o monstro
deveria estar, Jonathan vê a si próprio, porque12:
“A monstruosidade do outro está sempre mais próxima do que
se pensa porque nunca existe separadamente do humano. Ou
melhor dizendo, a caça ao monstro além das fronteiras da
civilização é sempre, em certa medida, inútil, porque o monstruoso
habita, desde sempre, o lado de cá da fronteira.”
O que a narrativa toda de BRAM STOKER revela é, pois, a construção de
um outro, estrangeiro, sexualmente distinto, comportamentalmente diverso,
e, por tudo isto, não-civilizado. Longe de ser inocente, a monstruosidade é
uma “construção regulatória da modernidade que imbrica não-só
sexualidade, mas também questões de cultura e raça”, mas também um

10 Idem, ibidem, p. 499-500.


11 Idem, ibidem, p. 43.
12 BELLEI, op. cit., p. 46.

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“implícito index de desenvolvimento civilizacional e cultural


adaptabilidade13.
Naquele que se converteu num dos libelos fundadores do direito
penal liberal (“Dos delitos e das penas”), CESARE BECCARIA tratava, em
1764, de uma “barbárie que o uso consagrou na maioria dos governos”: fazer
torturar um acusado enquanto se faz o processo. Denunciava tal prática
nestes termos14:
“Direi mais que é monstruoso e absurdo exigir que um homem
acuse-se a si mesmo, e procurar que a verdade nasça através dos
tormentos, como se a verdade estivesse nos músculos e nas fibras
do infeliz! A lei que autoriza a tortura é a que afirma: ‘Homens,
resisti à dor’”.
Não constando da Declaração de 1789, a vedação da tortura foi
expressa no art. 5º da Declaração Universal de Direitos Humanos e repetida
no art. 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966),
tendo-se tornado conceito central do “corpus” dos direitos humanos e tido,
por BOBBIO15 e pela doutrina internacionalista, como um direito com “valor
absoluto” e “inderrogável”.
Uma leitura das discussões das respectivas redações dos textos
poderia levar à conclusão de que mesmo a definição expressa constante da
“Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes” (1984)16 demonstraria um consenso para além
de qualquer subjetivismo, um verdadeiro “direito humano universal”.
Afinal, mesmo a definição de tratamento cruel, desumano ou degradante foi
tida como auto-evidente, no sentido de se evitarem as atrocidades ocorridas
na Segunda Guerra Mundial e entendidas no sentido amplo de proteção

13 PUAR, Jasbir K. & RAI, Amit S. Monster, terrorist, fag: the war of terrorism and the production of
docile patriots. Social Text (72): vol. 20, n. 3, fall 2002, p. 119
14 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1983, p. 32

15 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 37.

16 Segundo o texto, considera-se como tortura “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos,

físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma
terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha
cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou
por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou
sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções
públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará
como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou
que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”.

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contra abusos, sejam físicos ou mentais17. Uma análise mais atenta, contudo,
revela que a definição de tortura “retém um significado central com viés
cultural, que deriva sua substância da missão colonial para civilizar os
nativos”, revelando várias exclusões no seu significado18.
Primeiro, porque, na visão de BALAKRISHNAN RAJAGOPAL, é “um
conceito legal que reproduz as estruturas coloniais de poder e cultura”,
baseado na distinção “esquizofrênica” entre o sofrimento necessário e
desnecessário.
As fronteiras entre os dois são definidas pública e privadamente19:
“Sofrimento necessário tem sido, usualmente, utilizado para
incluir não somente atos de indivíduos privados contra si mesmos
ou cada um (privados), mas também a violência infligida sobre os
nativos em nome do desenvolvimento e modernidade, por
exemplo, o alistamento forçado dos nativos para a guerra ou os
massivos projetos de desenvolvimento ou de destruição de modos
de vida locais (público). ‘Sofrimento desnecessário’ inclui práticas
da comunidade local, especialmente na área da religião, em que os
indivíduos, muitas vezes, infligem danos mentais ou psíquicos a si
mesmos (privado), bem como os padrões de excesso do moderno
aparato coercitivo do Estado (público). Enquanto o aparato
colonial dava desmedida proeminência ao aspecto privado do
‘sofrimento desnecessário’, declarando-o ilegal, mantinha silêncio
em relação às violências que causavam ‘sofrimento necessário’”.
O banimento do “sofrimento desnecessário” tinha um duplo efeito20:
ao mesmo tempo em que reforçava a centralidade do Estado moderno como
“antídoto às práticas locais más”, estigmatizava as práticas locais como
“tortura”, ainda que por meio de um mecanismo complexo, que aceita o
direito costumeiro no sistema colonial, desde que não-colidente com a
“cláusula de repugnância” ( à justiça e à moralidade). Ficava absolutamente
claro que a preocupação não era com o sofrimento dos nativos, mas o que
interessava era o “desejo de impor o que eles consideravam standards

17 Vide a análise da questão em: AN-NA’IM, Abdullahi. Toward a cross-cultural approach to defining
international standards of human rights: the meaning of cruel, inhuman, or degrading treatment or
punishment. IN: AN-NA’IM, Abdullahi ( ed). Human rights in cross-cultural perspectives: a quest for
consensus. Pennsylvania: University of Pennsylvania, 1995, p. 29-32.
18 RAJAGOPAL, Balakrishnan. International law from below – development social movements and

Third World Resistance. Cambridge: Cambridge, 2003, p. 183.


19 Idem, ibidem, p. 182-3.
20 Idem, ibidem, p. 183-184.

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civilizados de justiça e humanidade para uma população sujeita- isto é, o


desejo de criar novos sujeitos humanos”, um processo de “reforma
colonial”, porque, no processo de ser “inteiramente humano”, somente
algumas formas de sofrimento eram vistas como afronta à humanidade, e
sua eliminação necessária21. Observe-se, pois, que o sofrimento “inumano”
era associado ao “comportamento bárbaro” e oposto ao sofrimento
“inevitável” e, portanto, “essencialmente gratuito e, logo, legalmente
punível”: a dor no processo de “se tornar humano”, por sua vez, era
necessária, por razões sociais e morais22.
Segundo, porque a definição tem um forte viés estatal, que deixa claro
que certas formas de violência cometidas por agentes estatais são mais
“toleráveis”: a Convenção de 1984 expressamente afirma que “não se
considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência
unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas
decorram”. E, conseqüentemente, legitimaria várias violações no chamado
“Terceiro Mundo”. Ao mesmo tempo, trabalhando com uma divisão
público-privado, acaba por excluir violências de particulares contra
particulares23 (perguntariam as feministas: a violência doméstica é uma
forma de tortura?)
Terceiro, porque os conceitos de tortura e de tratamento desumano,
cruel e degradante não se aplicam à conduta normal de guerra, ainda que
“as modernas tecnologias de guerra envolvam formas de sofrimento, em
número ou na forma, que são sem precedentes”. A Convenção de Genebra
que procura regular condutas em guerra- e se encontra contestada,
atualmente, pelos Estados Unidos- acaba, paradoxalmente, “legalizando
muitas formas de sofrimento suportados, na guerra moderna, por
combatentes e não-combatentes”24 A possibilidade de utilização de armas
químicas, nucleares e biológicas é acompanhada do fato de que o Estado
“exige de seus cidadãos não somente que eles matem e causem danos a
outros, mas também que eles sofram dores cruéis e a morte”25
Quarto, ainda quando o conceito de tortura tenha se expandido para
incluir casos de sofrimento psicológico, ficam excluídos determinados casos

21 ASAD, Talal. On torture, or cruel, inhuman, and degrating treatment. In: KLEINMAN, Arthur; DAS,
Veena & LOCK, Margaret. Social Suffering. Berkeley-Los Angeles-London: University of California,
1997, p. 293-294.
22 Idem, ibidem, p. 295.
23 RAJAGOPAL, op. cit., p. 184

24 ASAD, op. cit., p. 297


25 Idem, ibidem.

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de dores físicas calculadamente infligidas. É interessante observar como o


sadomasoquismo e, portanto, uma dor que é, simultaneamente, prazer,
vivenciada como “positiva”, não é rotulado como tortura, porque há
“consentimento das partes”, é realizado “em privado” e não punível, exceto
se não conduza à morte ou sérios danos. Mas o que pensar do ritual de
autoflagelação dos islâmicos xiitas, um rito coletivo de sofrimento religioso e
redenção, e não podendo ser equacionado a uma metáfora secular, porque a
dor é real e dramática? Como diz TALAL ASAD, “a moderna hostilidade não é
simplesmente à dor, mas à dor que não está em conformidade com uma particular
concepção de ser humano – e que é, portanto, em excesso. E “excesso” é uma
questão de medida”26.
Por fim, a linguagem das declarações reproduz a mesma linguagem
presente na oitava emenda à Constituição dos Estados Unidos (1791)27, o
que, a par de insinuar as ferramentas teóricas e as possibilidades
interpretativas, é particularmente atual com os acontecimentos de Abu
Ghraib. A divulgação de fotos com rituais de humilhação de torturas dos
prisioneiros iraquianos foi refutada, inicialmente pelo governo Bush, como
uma prática não-condizente com o “american way of life”.
A configuração da prática como um “estado de exceção” foi
construída por meio de uma específica geografia, produzida por meio de
três planos interligados28: a) a raridade de tal particular forma de violência: “ a
temporalidade da emergência como excessiva em relação à temporalidade
da regularidade”; b) a santidade do sexual e do corpo: “o local de violação
como extremo em relação aos direitos individuais de privacidade e
propriedade de seu corpo, dentro da tradição liberal”; c) a transparência do
abuso: “como um ato de matar em excesso em relação a outro tipos de
violência necropolítica de tempos de guerra [referindo-se ao direito de
matar] e como um desafio aos os padrões normativos que garantem a
universalidade do humano no discurso dos direitos humanos”.
Uma “sociologia da tortura”, por sua vez, revela a produção do corpo
islâmico como um objeto de tortura, dentro de uma visão orientalista de
“sexo perigoso e ilícito”, em que as simulações de sexo entre homens ou o
sadismo praticado por carcereiras mulheres tem o condão de reforçar
padrões de heteronormatividade e de cidadania, com a escusa da evidente
homofobia e machismo existente no ambiente das forças armadas.

26 Idem, ibidem, p. 301-304.


27 As primeiras dez emendas são conhecidas como “Bill of Rights”, e o texto encontra-se disponível
em: http://www.archives.gov/
28 PUAR, Jasbir K. On Torture: Abu Ghraib. Radical History Review, Issue 93 ( fall 2005): 14.

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A obsessão da cultura americana com a possibilidade de


“desintegração social causada pelo desejo sexual”, que deve ser contido, sob
pena de perversão, é a condição para que as sevícias, humilhações e tortura
contra os detidos sejam “uma ocasião única para exercer a perversão e
simultaneamente negá-la pela normalidade da guerra total, do racismo e do
orientalismo em que ela se insere”29. A simulação de sodomia associada ao
tabu da homossexualidade na cultura islâmica e à hiper-sexualização do
oriental ( a partir da construção da poligamia como “natural” e do Paraíso
com “setenta virgens”) tem o condão de reforçar a humilhação do
prisioneiro, ao mesmo tempo em que cria a imagem de que os Estados
Unidos são mais tolerantes com a homofobia, a misoginia e o
fundamentalismo que “os oprimidos, modestos, envergonhados com a
nudez, que habitam o Oriente Médio”, esquecendo-se que a constituição de
“culturas abertas e liberais” envolve a projeção do que é “fechado” nas
outras30.
Como bem descreve JASBIR PUAR31:
“A tortura... trabalha não somente para desintegrar
sexualidades nacionais de antinacionais- porque tais distinções (o
monstro – o terrorista – o ‘veado’) já estão em jogo- mas também,
de acordo com as fantasias nacionalistas, para reordenar o gênero
e, no processo, corroborar implícitas hierarquias raciais. A força de
feminizar, então, reside não só em remover a masculinidade, em
‘homossexualizar’ o corpo masculino, ou em roubar o feminino de
sua simbólica e reprodutiva centralidade para as sexualidades
normativo-nacionais. Antes, pelo contrário, é a fortificação de
barreiras intransponíveis entre masculino e feminino, a reinscrição
de múltiplos e fluidos gêneros performativos em petrificados
locais de masculinidade e feminilidade, e o jogo cruzado de tudo
isto com e através de raciais, imperiais e econômicas matrizes de
poder. Esta é real força da tortura”.
Uma complexa relação em que a tortura se põe como parte de um
“patriótico mandato de separar sexualidades e gêneros normativo-nacionais
e não-nacionais”. Um jogo de espelhos em que “a sexualidade normativo-
nacional põe a tortura como uma modalidade fundamental de produção de
cidadania”, ao passo que “a produção da cidadania põe a sexualidade

29 SANTOS, Boaventura de Sousa. Sociologia da Tortura. Publicado na revista Visão de 20.05.2004.


Disponível em: http://www.ces.fe.uc.pt
30 PUAR, op. cit., p. 34.
31 PUAR, op. cit., p. 28.

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normativo-nacional como uma fundamental forma de tortura”32. Antes de ser


excepcional, o abuso sexual tem sido “uma parte e uma parcela das histórias
de dominação colonial e da construção de impérios- a conquista é, por
natureza, corporal”33: não é, pois, coincidência que às intervenções
humanitárias em países não-ocidentais e às ocupações do Iraque e do
Afeganistão tenham se seguido estupro e violência contra a população
feminina.
Por fim, a situação paradoxal de destruir alguém como ser humano
para que este atue como humano tem como correspondente as técnicas de
simulacro e de teatralização da violência: não somente pela atuação de
papéis, mas pelo aparato técnico da tortura que só opera quando exibido,
mas uma exibição, porém, que é clandestina. Não só porque se opera em
porões, mas também porque “torturados e torturadores não tem nome nem
identidade”: é um teatro clandestino “em que se exibe escondendo e se esconde
exibindo” e que, portanto, possibilita que os torturados se sintam “sem
direitos”, mas que os torturadores se confessem “sem poderes”34. No caso
específico de Abu Ghraib, as fotos revelam uma profusão de espectadores,
“um processo minudente de documentação, a necessidade de evidência
visual da vergonha, os olhos estáticos do voyeur”, tudo isto associado à
disseminação das imagens na Internet, “perpetuando a humilhação ad
nauseam”35.
Se a monstruosidade revela a interseção entre raça, cultura,
sexualidade, colonialismo e humanidade, o mesmo ocorrendo com a
configuração da tortura, que é, como diz TALAL ASAD, “parte de uma mais
complexa história do moderno conceito secular do que é realmente
humano”36, o que dizer, pois, dos “direitos humanos”?
Da mesma forma que a tortura, o aparente consenso em relação aos
direitos humanos esconde, em realidade, o fato de que eles são um campo
de lutas e de contestações – também discursivas- onde “competem
pressupostos e visões de mundo distintos sobre gênero, diferença, cultura e
subjetividade”37.

32 Idem, ibidem.
33 Idem, ibidem, p. 34.
34 CHAUI, Marilena. In: ELOYSA, Branca (org). I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais. Petrópolis:

Vozes, 1987, p. 34-35.


35 PUAR, op. cit., p. 29.

36 ASAD, op. cit., p. 285.


37 KAPUR, Ratna. Revisioning the role of law in women’s human rights. In: MECKLED-GARCÍA &

ÇALI, Basak. The legalization of human right: multidisciplinary perspectives on human rights and human rights
law. London- New York: Routledge, 2006, p. 102.

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Para além de uma aberta oposição aos direitos humanos, existem


concepções que, a pretexto da defesa destes, encontram-se em função de
uma agenda claramente conservadora. Vide, por exemplo, a defesa dos
direitos das mulheres, por parte do Vaticano, a partir de pressupostos que
reforçam a centralidade da família heteronormativa. Isto não significa
reconhecer, por outro lado, que aqueles que “contestam os valores
dominantes de dentro irão querer viver da forma que os autonomeados
campeões da modernidade ( de dentro de sua sociedade ou de fora) dizem
que eles deveriam seguir”. Se é verdade que as culturas são conflituais e as
tradições estão longe de serem monolíticas, “são vários os todos que podem
ser imaginados, tolerados, desejados e trabalhados”38. Trata-se, pois, de
reconhecer a existência de concepções hegemônicas e contrahegemônicas de
direitos humanos, em processos de oposição, hibridação e conflito: dir-se-ia
“direitos humanos de baixa intensidade” ou “de conformação” e “direitos
humanos de alta intensidade” ou “de oposição”. Um processo de escavação,
como diz RATNA KAPUR, no sentido de verificar como “o discurso é
permeado por ambições imperiais, assertivas sobre superioridade moral e
civilizacional e evangelicanismo religioso”39. O futuro dos direitos humanos,
portanto, ao contrário da narrativa do progresso que caracterizou o
pensamento moderno, encontra-se absolutamente aberto e diverso: “para os
olhos do futuro, o que hoje nós denominamos direitos humanos pode ser
por nós vivido como ‘ruínas da memória”40.
Quatro focos de turbulência, de tensão e de discrepância para
configuração dos direitos humanos têm sido identificados por BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS41: a) entre princípios e práticas; b) entre princípios rivais;
c) entre raízes e opções; d) entre sagrado e profano, religioso e secular, entre
transcendência e imanência.
O primeiro foco está associado ao inconformismo ante a discrepância
da proclamação de princípios e direitos e a violação destes na prática: é o reafirmar
a defesa da democracia para defender a instauração de um golpe de estado
em governo democraticamente eleito, é invadir um país e determinar sua
ocupação a pretexto de conservar sua autodeterminação, é invocar
constantemente um princípio para o negar na prática. É o campo

38 ASAD, Talal. What do human rights do? An anthropological enquiry. Theory & Event 4: 4 (2000),
item 39.
39 KAPUR, Ratna. Human rights in the 21st century: take a walk on the dark side. Sydney Law review.

Volume 28, n. 4, december 2006. Disponível em: http://www.law.usyd.edu.au


40 BAXI, Upendra. The future of human rights. 2nd ed. New York: Oxford, 2006, p. 5

41 SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato entre globalizações rivais.

Revista Brasileira de Ciências Criminais, (64): janeiro-fevereiro 2007, p. 319 e seguintes.

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privilegiado para que as promessas sejam traídas, que muitas violações de


direitos humanos não sejam reconhecidas como tais ou que sejam
silenciadas pelos discursos e práticas dominantes de direitos humanos.
Neste caso, a fragilidade e a “baixa intensidade” podem ser ressignificadas
por diversos mecanismos.
Saliente-se, aqui, apenas um. Se a tortura se erigiu a partir da
esquizofrenia entre “sofrimento necessário e “sofrimento desnecessário”,
uma política da alta intensidade de direitos humanos deve procurar “dar
voz ao sofrimento humano, torná-lo visível e reduzi-lo”, trabalhando tanto
com a política de representação do sofrimento, mas também contestando o
poder de “nomear as vozes”, construindo modos para prevenir a “repressão
desnecessária e o sofrimento humano além de limites”, deslegitimando
“todas formas de políticas de crueldade”, sem ferir o “direito humano de
interpretar os direitos humanos”42. No período colonial, o sofrimento foi
tornado invisível porque “largas parcelas de pessoas não foram tidas como
suficiente ou potencialmente humanas”43. O “outro” encontrava-se
disponível para ser mercadoria como escravo ou ser matéria crua de
exploração de trabalho dentro e fora das colônias44. Como afirmou o escravo
liberto OTTOBAH CUGOANO, em 1787: “as nossas vidas são tidas como de
nenhum valor”45, uma expressão colonial reatualizada, nos dias de hoje,
pelo tráfico de órgãos e de pessoas. A discussão do sofrimento, tendo como
mote a tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante, que estão no
centro do “corpus” de direitos humanos, poderia ser reequacionada por
perguntas aparentemente bem simples46:
“É a pena capital em qualquer forma ou com qualquer
justificativa uma prática de crueldade? Quando a discriminação,
seja baseada no gênero, classe ou casta, assume a forma de tortura
prescrita pelos parâmetros e normas internacionais de direitos
humanos? Quando podem formas de assédio sexual no local de
trabalho ser descritas como um aspecto de cruel, desumano e

42 BAXI, op. cit., p. 6-8, 49, 77.


43 Idem, ibidem, p. 48.
44 BAXI, Upendra. Voices of suffering, fragmented universality, and the future of human rights. IN:

WESTON, Burns H. & MARKS, Stephen P. (ed). The future of International Human Rights. New York:
Transnational Publishers, 1999, p. 110.
45 Apud MIGNOLO, Walter. Epistemic desobedience and the de-colonial option: a manifesto. Edição

revisada de 22-03-2007. Disponível em: <http://waltermignolo.com>. O relato consta de:


CUGOANO, Quobna Ottobah. Thoughts and sentiments on the evil of slavery and other writings. New York:
Penguin, 1999.
46 BAXI, op. cit., p. 49. Também em “Voices of suffering”, p. 113, nota 38.

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degradante tratamento proibido nos parâmetros e normas


internacionais correntes de direitos humanos? Práticas sexuais
não-consensuais dentro da relação matrimonial constituem
estupro? Todas as formas de trabalho infantil devem ser incluídas
como práticas cruéis, no sentido de que o confisco da infância é
uma irreparável violação humana? São os projetos de mega-
irrigação que criam eco-exílios e degradação/destruição ambiental
atos de crueldade desenvolvimental? São os programas ou
medidas de ajuste estrutural um aspecto da política de imposição
de sofrimento?”.
Como diz UPENDRA BAXI, é imprescindível a tarefa de desmistificar as
fontes de sofrimento humano, pois tomar os direitos humanos realmente a sério
requer tomar o sofrimento a sério47.
O segundo foco de tensão diz respeito às discrepâncias entre princípios
rivais, universos simbólicos, princípios éticos, formas de racionalidade,
cosmologias distintas e, portanto, uma luta por justiça cognitiva, a partir da
desconstrução das hierarquias estabelecidas e pelo rompimento das
“monoculturas da mente” (na feliz expressão de VANDANA SHIVA)
instituidoras: 1) a monocultura do saber, com a produção da ignorância, em
que a ciência moderna é erigida em critério único de verdade; 2) a
monocultura do tempo linear, com a produção do resíduo, declarando
atrasado tudo que é assimétrico em relação ao declarado avançado; 3) a
monocultura da classificação social, com a produção da inferioridade, pela
naturalização das hierarquias, de forma que quem é inferior, por ser
insuperavelmente inferior, não pode ser alternativa a quem é superior; 4) a
monocultura da escala dominante, com a produção da particularidade ou
localidade, privilegiando as entidades ou realidades que alargam seu
âmbito no globo; 5) a monocultura da produtividade, com a produção da
improdutividade, que, na natureza, produz esterilidade e, no trabalho, é a
desqualificação profissional. É a produção sociológica de uma ausência, de
forma a demonstrar que o que não existe é, em realidade, ativamente produzido
como não-existente, como alternativa não-crível à realidade48.

47BAXI, Upendra. Fostering human rights cultures. In: BAXI, Upendra & MANN, Kenny ( ed). Human
rights learning: a people’s report. New York: People’s Movement for Human Rights Learning, 2006, p.
19. Disponível em: http://www.pdhre.org
48 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das

emergências. In: ______ (org). Conhecimento prudente para uma vida decente. Porto: Afrontamento, p.
743-6, 2003.

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Neste campo de lutas, a concepção hegemônica assenta na produção


da injustiça cognitiva, ao considerar que as lutas por dignidade somente
podem ser expressas nas formas clássicas de direitos humanos, esquecendo
seus pressupostos ocidentais e a discrepância entre as distintas realidades e
cosmologias, ao mesmo tempo em que cria a pretensão de universalidade.
Trata-se, aqui, de desprovincializar os direitos humanos49, reconhecendo que as
lutas por dignidade, igualdade, justiça, liberdade e solidariedade podem ser
expressas por formas distintas e com princípios distintos, não
necessariamente simétricos, ainda que, eventualmente, homeomórficos, ou
seja, desempenhando a mesma função de “dar vozes ao sofrimento” e
constituir “lutas contra política de crueldade”.
Assim, os islâmicos podem fundamentar as lutas por igualdade ou
reconhecimento ou mesmo de “gender jihad” (jihad de gênero) em
concepções de “umma” (comunidade) ou nas tensões entre ismah”
(inviolabilidade) e “âdammyyah” (humanidade)50; os “dalits” da Índia
questionarem os fundamentos do dharma51; e mesmo a cosmologia indígena
passar por fundamentos de pachakuti52. Não é demais lembrar que os
movimentos de direitos humanos da África do Sul têm insistido no conceito
de ubuntu (interdependência), que chegou a se cogitar de ser incluído de
forma expressa da Constituição pós-apartheid53. Da mesma forma, as lutas
por terra e água- em perspectiva completamente distinta das demandas
ocidentais ambientais- têm sido travadas, na Índia, com fundamento nas
noções gandianas de satyagraha (“desobediência civil”contra leis injustas),
swaraj (auto-gestão e auto-organização) e sarvodaya (inclusão), por meio dos

49 CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe; postcolonial thought and historical difference. Princeton:
Princeton University, 2000, p. 3-26
50 SENTURK, Recep. Sociology of Rights: “I am therefore I have rights”: Human rights in Islam

between Universalistic and Communalist Perspectives. In: BADERIN, Mashood; MONSHIPOURI,


Mahmood; WELCHMAN, Lynn & MOKHTARI, Shadi. Islam and Human rights: advocacy for social change in
local contexts. New Delhi: Global Media, 2006, p. 375-416; AN-NA’IM, Abdullahi. Muslim must
realize that there is nothing magical about the concept of human rights. IN: NOOR, Farish. New
voices of Islam. Netherlands: ISIM, 2002, p. 11. Disponível em : http://www.isim.nl/; BARLAS, Asma.
Islam, feminism and living as the ‘muslim women’ . Disponível em:
<http://www.muslimwakeup.com
51 SHARMA, Arvind. Hinduism and human rights- a conceptual approach. New York: Oxford University,

2004.
52 ESTERMAN , Josef. Filosofia andina.estudio intercultural de la sabidoria autóctona andina. Quito: Abya Yala,

1998.
53 TUTU, Desmond. God has a dream: a vision of hope for our time. Parktown: Random House South

Africa, 2005, p. 25-29; MOOSA, Ebrahim. Tensions in legal and religious values in the 1996 South
African Constitution. Disponível em: http://www.crvp.org

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movimentos de bija swaraj (biodiversidade e democracia de sementes), anna


swaraj (soberania alimentar) e jal swaraj ( democracia da água)54.
O grande foco de tensão tem se concentrado, fundamentalmente, nas
sociedades e povos islâmicos, porque se vêem na dilemática situação de
imitar a modernidade ocidental, aceitando-a como única, ou rejeitar
radicalmente o projeto modernista e arcar com os custos de viver “num
tempo moldado por monoculturas diversas”55.
O terceiro ponto nevrálgico diz respeito à discrepância entre raízes e
opções, à construção social de conflitos a partir do contato com a
modernidade ocidental, que “reservou para si o futuro e permitiu que com ele
coexistissem vários passados desde que todos convergissem nele, no mesmo
futuro”, distribuindo aos povos e culturas dominados “passados
neutralizados, sem capacidade de produzir futuros alternativos ao da modernidade
ocidental”56. É a eclosão, na prática hegemônica de direitos humanos, de
novos “fascismos sociais”57, pela criação de grupos expulsos do contrato
social (pós-contratualismo) e de outros que não tem ou terão a possibilidade
de nele ingressar (pré-contratualismo), a partir da criação, dentro das
mesmas cidades, Estados ou países, de “zonas civilizadas”, onde o primado
do direito, a democracia e os direitos humanos podem ser respeitados, e
“zonas incivilizadas”, em que estes princípios não são aplicados ou o são
seletivamente, ou ainda de forma a negar, na prática, sua realização58.
Reflexo destes parâmetros é a polêmica de que “direitos humanos são
privilégios de bandidos” e “direitos humanos devem ser assegurados para
humanos direitos”. Esta operação semântica, ocultando a diferença de poder
entre classes sociais, tem a seguinte conseqüência: “a expressão ‘humanos’
transforma-se de adjetivo em substantivo, enquanto ‘direitos’ transforma-se
de substantivo em adjetivo, um qualificativo que não se aplica a todos”59. Os

54 SHIVA, Vandana. Earth democracy: justice, sustainability and peace. Cambridge: South End, 2005, em
especial p. 109-143.
55 SANTOS. Os direitos humanos..., p. 323.
56 Idem, ibidem, p. 326.

57 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crise do contrato social e a emergência do fascismo social. In: A

Gramática do Tempo; para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 317-340.
58 Vide, por exemplo, a discussão, no Brasil, da utilização de algemas como comportamento indigno

ou vexatório, o que somente começou a ser tematizado, a partir do momento em que as operações
da Policia Federal concentraram seus esforços no combate ao crime organizado e aos chamados
delitos de colarinho branco.
59 RIBEIRO, Gustavo Lins. Cultura, direitos humanos e poder mais além do Império e dos humanos

direitos: por um universalismo heteroglóssico. In: GRIMSON, Alejandro. La cultura en las crisis
latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2004, p. 230. Para uma discussão pormenorizada deste
tópico, destacando, ainda, que o corpo é concebido como “locus de punição, justiça e exemplo no

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direitos humanos, que eram universais, tornam-se, assim, restritos apenas aqueles
que se auto-intitulam portadores de humanidade. Esta total inversão da
problemática já fora rechaçada de forma expressa, no contexto islâmico,
nestes termos: “O coração muçulmano não pode sangrar somente quando
vê lágrimas e sofrimentos muçulmanos. Se nós não formos movidos pelas
condições ruins e o sofrimento dos outros, (...) então não podemos
reivindicar os mesmos direitos e atribuições para nós mesmos. E tampouco
podemos dizer que a nossa é uma abordagem universal”60.
A a-historicidade dos direitos humanos tem dominado as concepções,
as práticas e os discursos dominantes dos direitos humanos e não pode
reconhecer, assim, os direitos coletivos de povos e grupos vítimas de
opressões históricas. Vide, por exemplo, a discussão sobre as políticas
afirmativas quando passaram a envolver povos indígenas e as comunidades
negras. Como bem salienta WALTER MIGNOLO, não existe modernidade sem
colonialidade, ainda quando existam livros sobre colonialismo e outros sobre
modernidade (como entidades separadas que não se imbricam, nem
interagem), ainda quando se afirme que a modernidade é uma questão
européia, e a colonialidade, algo que ocorre fora da Europa61. O processo de
guerra infinita, de luta contra o terror e da redefinição das políticas em
relação aos “imigrantes”62 são, em parte, o regresso, para as ruas, da
colonialidade que a modernidade procurou esconder e imaginou
desaparecer com o fim do colonialismo. Não é coincidência, pois, que a
França tenha utilizado duas legislações do tempo colonial para tratar de
“problemas” recentes: a do princípio da laicidade, de 1905, para
“equacionar” a polêmica da utilização do véu em escolas, e uma lei de 1955,
usada para coibir inicialmente a luta de independência da Argélia ( mas
nunca aplicada na metrópole), foi utilizada, em 2005, para conter os
distúrbios das populações dos banluies, predominantemente magrebinos de
religião islâmica63.

Brasil”, vide: CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo.
2.ed. São Paulo: 34/EDUSP, 2003, p.343-377.
60 NOOR, Farish A. What is the victory of Islam? Towards a different understanding of the Umma

and political success in the contemporary world. In: SAFI , Omid (Ed). Progressive Muslims – on
justice, gender, and pluralism. Oxford : Oneworld, 2003. p. 232.
61 MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar.

Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 82


62 Para uma discussão a respeito das migrações e cidadanias, em perspectiva pós-colonial, vide:

KAPUR, Ratna. The citizen and the migrant: postcolonial, anxieties, law, and the politics of
exclusion/inclusion. Theoretical inquiries in Law. Vol. 8, number 2, july 2007. Disponível em:
<http://www.bepress.com>.
63 Vide a informação sobre os fatos ocorridos na França em: <http://www.contee.org.br/>

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O futuro dos direitos humanos reside, ao contrário, na “contestação,


dentro de cada distinto espaço histórico-cultural-civilizacional; cada qual
estabelece um limite, bem como marca uma possibilidade para políticas
emancipatórias de direitos humanos, na teoria e na prática, que somente
adquirem significado quando repudiam a história como destino”64.
O último foco de grandes tensões é, contudo, a dimensão mais
complexa da justiça social: é a discrepância entre secular e profano. Primeiro,
porque a modernidade ocidental que transferiu o religioso para o âmbito do
espaço privado, sob o pretexto de separação do poder temporal da Igreja e
do poder temporal do Estado moderno, legitimou, por outro lado, práticas
coloniais com matizes religiosas e mesmo os direitos humanos, na versão
hegemônica, não podem esconder suas raízes não-seculares de
fundamentação. Daí que tenha invisibilizado o fato de que conceitos do
poder do Estado não eram nada mais que versões seculares de conceitos
teológicos, como, aliás, sustentou CARL SCHMITT65.
Decorrência disto é que o “espaço privado” foi sempre infenso à
“civilidade” e à discussão dos direitos humanos: “ a estabilização da
religião foi o correlato da estabilização, por via da religião, das opressões e
dos medos do espaço privado”66. Não é por outro motivo que a violência
doméstica – reduzida, pois, ao espaço privado – não era uma violação de
direitos humanos. A politização do espaço privado, por parte dos
movimentos feministas e de gays, lésbicas, transgêneros e queer vai revelar
invisibilidades de sofrimento, ao passo que a crise do Estado Social acabou
cimentando o ressurgimento do religioso como espaço de manifestação
política, de que são exemplos os fundamentalismos das três religiões
monoteístas, bem como o aparecimento da direita cristã norte-americana e
das bancadas evangélicas, aqui no Brasil. O sucesso – nas urnas – do Hamas
e do Hizbollah é a outra face do insucesso das potências ocidentais tanto em
sua política externa, quanto no gerenciamento do desmantelamento do
Estado Social, pelas redes de solidariedades internas que os referidos
grupos criaram, a partir do vácuo de atuação do Estado.

64 BAXI, The future of..., p. 146.


65 SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 35 : “Todos os conceitos concisos
da Teoria do Estado moderno são conceitos teológicos secularizados. Não somente de acordo com
o seu desenvolvimento histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à
medida que o Deus onipotente tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua estrutura
sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos.”
66 SANTOS, Os direitos humanos..., p. 331.

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Neste ponto, a prática hegemônica dos direitos humanos é fragilizada


de forma mais cruel. Primeiro, porque esta tem assentado numa
secularização acrítica e a-histórica, num “fato consumado, e não num
processo histórico, inacabado e cheio de contradições”67. Segundo, porque o
desconhecimento anterior não questiona sequer as raízes cristãs das
concepções de dignidade humana que fundamentam a defesa dos mesmos
direitos humanos. E, por fim, reduzindo ao espaço privado, dão à religião
uma forma de objeto de consumo, desconhecendo mediações opressivas ou
transgressivas.
Não reconhecendo, pois, temporalidades diversas (e, portanto,
confrontando-se com noções de tempo eterno, cósmico ou de longa
duração), a concepção hegemônica de direitos humanos fica presa à
temporalidade secular, ignorando tempos alternativos.
O surgimento do Islã como ator político é a outra face da
invisibilidade da modernidade colonial iniciada com as navegações e com o
genocídio dos índios, e que desperta, atualmente, questões interessantes
neste particular68. Primeiro, porque os questionamentos vêm de
coletividades e não somente de singularidades. Segundo, as contestações
levam para o espaço público a questão da identidade, agora de religião, com
as mesmas funções de desafio, contestação, orgulho, que já constituíram as
manifestações envolvendo raça/etnia e sexualidade: devem ser mantidas
em privado tais identidades, ou se, fazendo-se de base para movimentos
sociais, devem ser representativas e tornadas públicas? Uma identidade
que, para além de um monólito cultural como é tratada, é, em realidade,
plural, incluindo fundamentalistas, seculares, religiosos, socialistas, liberais
e mesmo defensores de uma “gender jihad” ou de uma “queer jihad”, para
não falar de um “secularismo islamicamente democrático”69. Terceiro,

67 Idem, ibidem, p. 336.


68 Para uma discussão destas questões, vide: MODOOD, Tariq. Multiculturalism. Cambridge: Polity,
2007, p. 63-71.
69 BARLAS, Asma. Globalizing equality: muslim women, theology, and feminism. IN: NOURAIE-

SIMONE, Fereshteh. On shifting ground: Midle Eastern women in the global era. New York: Feminist Press,
2005; EZZAT, Heba Raouf & ABDALA, Ahmed Mohammed. Towards an islamically democratic
secularism. IN: AMIRAUX, Valérie et allii. Faith and secularism. London: British Council, 2004;
KUGLE, Scott Siraj al-Haqq. Sexuality , diversity and ethics in agenda of progressive muslim. IN:
SAFI, Omar. Progressive muslims. Oxford: Oneworld, 2003, p. 192-193; ALI, Kecia. Sexual ethics &
Islam: feminist reflections on Qur’an, hadith, and jurisprudence. Oxford: Oneworld, 2006; KUGLE, Scott.
Queer Jihad: a view form South Africa. Disponível em: <http://www.isim.nl/>; MOOSA, Ebrahim. The
dilemma of Islamic Rights Schemes. Works and Knowledges Otherwise (WKO ), vol I, dossier 1 (Human
rights, democracy and Islamic law), number I, fall 2004, Disponível em:

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porque não seguem o padrão de centralismo hierárquico da Igreja Católica:


uma estrutura hierárquica, por exemplo, é absolutamente impensável para
os sunitas islâmicos, em especial os provindos do Sul da Ásia. Quarto,
porque no coração da discussão do secularismo ainda se encontra a
distinção do espaço público dos cidadãos e do espaço privado das crenças, o
que coloca desafios para a cidadania como “conjunto de direitos, práticas de
participação e discursos simbólicos”70. O reconhecimento de grupos
religiosos não significa, necessariamente, a promoção de líderes espirituais,
da mesma forma que as ideologias religiosas não são nem mais- nem
menos- “perigosas” que as seculares ( relembre-se que o nazismo e o
fascismo estão vincados em pressupostos seculares). E disso se segue que os
islâmicos- tal como qualquer outro grupo- devem ser livres “para apelar (ou
não) a discursos religiosos”, como “participantes de uma cidadania
multicultural”, em que outros discursos estão presentes, se engajam,
qualificam, sintetizam e se hibridizam71.
A título de provocação: se é correta a premissa de que o “uso de
símbolos religiosos não fere o princípio da laicidade do Estado”, e, com base
nisto, o Conselho Nacional de Justiça entendeu que os crucifixos afixados
nas salas de tribunais não interferiam na independência do Poder Judiciário
porque eram “símbolos da cultura brasileira”72, isto significaria a
possibilidade de incluir, junto ao crucifixo, a imagem de Xangô, orixá da
justiça, e também representativo da cultura brasileira, na famosa versão
hegemônica tripartite de uma formação européia, indígena e negra? Se o
relevante, por sua vez, é o argumento cultural, o que dizer das estátuas de
Têmis: a deusa seria grega ou brasileira? Na realidade, o que é “religioso”,
“laico” ou “secular” não pode ser definido “a priori”- e as diferenças entre
Estados Unidos, Inglaterra e França já o demonstram- e é sempre produto
de uma complexa história cultural, estando aberto a debate, passível de

<http://www.jhfc.duke.edu>.; FADL, Khaled Abou El. The great thief: wrestling Islam from the
extremists. San Francisco: Harper, 2005.
70 MODOOD, op. cit., p. 128.

71 Idem, ibidem, p. 136-137. Para uma discussão que associa secularismo, modernidade e progresso,

sustentando, por sua vez, que o fundamentalismo hinduísta tem surgido por causa – e não apesar-
da política secular da Índia moderna, vide: NANDY, Ashis. A política do secularismo e o resgate da
tolerância religiosa. In: BALDI, César Augusto. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004, p. 377-407. Para uma leitura que traça as origens do fundamentalismo
islâmico e analisa o papel central do Ocidente para o fomento de tal situação, vide: MAMDANI,
Mahmood. The secular roots of radical political Islam. Turkish Policy Quaterly, vol. 4 ( 2): Summer
2005. Disponível em: http://www.turkishpolicy.com
72 Decisão tomada, por maioria, em 6 de junho de 2007. Disponível a informação no site:

<http://www.cnj.gov.br>.

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mudanças e, portanto, absolutamente “negociável” histórica e


culturalmente73,74. O secularismo, pois, está permeado de permanentes
contradições, mediações e revisões.
Os desafios para os “direitos humanos de alta intensidade” são
imensos, porque se reconhece que, não havendo projeto inequivocamente
liberatório ou emancipatório, “nunca há um documento de cultura que não
seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”75 e, que, portanto,
“também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for
vitorioso”, e “esse inimigo não tem cessado de vencer”76 Os processos em
que sujeitos são legitimamente negados em suas proteções- e pretensões –
de direitos humanos não estão confinados a “ditaduras tirânicas” ou
“fundamentalismos opressivos”, mas antes “estão localizados no coração da
‘homeland’- no epicentro do estado democrático liberal”77: são os islâmicos
tidos como ameaça ao Ocidente cristão; os homossexuais que destroem a
civilização, a família e a fé tal como conhecemos; os trabalhadores sexuais,
com sua “agenda contaminada”; e os migrantes, que procuram “romper a
coesão social de distintos estados ocidentais.”
Do que se trata, pois, não é negar os direitos humanos como
instrumental, mas proceder a uma crítica interna, reconhecendo o lado
obscurecido com os argumentos de civilização, superioridade religiosa ou
racial ou cultura. Questionar os direitos humanos tampouco “é estar ao lado
do inumano, do anti-humano e do mal”78: nem “triunfalismo arrogante”,
nem desespero, mas sim uma reflexão que produza e articule cosmologias
que reinventem os direitos humanos tal como os conhecemos, a partir de
contra-memórias de outras genealogias, histórias, sujeitos, experiências e
modos de poder excluídos, ignorados e silenciados.

73 MODOOD, op. cit., p. 71-72


74 MODOOD, op. cit., p. 71-72
75 BENJAMIN, Walter. Tese VII. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses

“Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, fevereiro de 2005, p. 70.


76 BENJAMIN, Op. Cit, Tese VI, p 65.

77 KAPUR, Human rights in the 21st century…, p. 680.


78 Idem, ibidem, p. 683.

90
MOVIMENTOS SOCIAIS,
MULTICULTURALISMO E CONTROLE
SOCIAL PUNITIVO: O CASO DA JUSTIÇA
INDÍGENA BOLIVIANA *
D ANI R UDNICKI **

Resumo: O texto analisa a proposta do governo boliviano em


adotar direito penal indígena. Isso aconteceria por meio de
projeto de lei regulamentando a Justiça Comunitária dos
Povos Indígenas e legalizaria tribunais comunitários com
possibilidade de aplicação de penas que incluem os açoites.
A pena de morte, todavia, estaria excluída. Mas mesmo os
açoites não são aceitos pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (que considera haver incompatibilidade entre a
aplicação de penas corporais e a Convenção Americana de
Direitos Humanos, da qual a Bolívia é signatária). A solução
seria também excluir estas do rol de punição dos novos
tribunais.
Palavras-Chave: Bolívia, direitos humanos, pena, açoites.

Provavelmente fui convidado pelo SALO, a quem agradeço o convite,


que aproveito e estendo à Faculdade de Direito da PUC/RS, a fim de que eu
me referisse à questão dos movimentos sociais e do controle social punitivo,
eis que este é o tema de meu livro “AIDS e direito: função do Estado e da
Sociedade na prevenção da doença”, no qual abordo questões sobre a
aplicação de nosso ordenamento a fim de solucionar anseios dos portadores
e doentes, mas, em especial, busco perceber como o Grupo de Apoio à
Prevenção da AIDS (GAPA) produz o direito, compreendido este no

* Este texto apresenta apontamentos sobre o tema, organizados para o evento e que recebem, aqui,
um tratamento que busca preservar o estilo utilizado na exposição oral.
** Advogado, Doutor em Sociologia/UFRGS, Presidente do Movimento de Justiça e Direitos

Humanos do Rio Grande do Sul, Professor de Direito Penal do UniRitter.

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paradigma comunitário-participativo proposto pelo Professor ANTÔNIO


CARLOS WOLKMER, professor da UFSC.
Para relacionar esses elementos, reli “Criminologia e feminismo”, dos
professores ALESSANDRO BARATTA, LÊNIO STRECK, que estará neste
seminário, e VERA ANDRADE. Eu pretendia discorrer sobre a convergência
de opinião entre os movimentos sociais e a esquerda punitiva. Refletir sobre
a posição apresentada pela Professora VERA REGINA DE ANDRADE (1999:
115): conseqüentemente, a criminalização de novas condutas sexuais só
ilusoriamente (e respeitando a opinião em contrário) representa um avanço
do movimento feminista no Brasil, ou que se esteja defendendo melhor os
interesses da mulher ou a construção da sua cidadania.
E encerrar essa discussão com a posição exemplar do Professor
HULSMAN sobre isso, em breve passagem, no fundamental “Penas Perdidas:
o sistema penal em questão”, quando coloca em xeque o espírito vingativo e
despropositado desta posição punitiva.
“Entre os que se inquietam com os problemas da justiça penal e
denunciam o funcionamento do sistema atual, em seu aspecto de
degradação e aviltamento do homem, alguns, entretanto,
preconizam a persecução penal de pessoas que, nos campos
ecológico, financeiro e econômico trazem grandes prejuízos para a
coletividade. [...] Mas, a máquina penal continua sendo um mau
sistema, qualquer que seja o julgamento moral e social que se
possa ter sobre determinado comportamento” (HULSMAN, 1993:
121).
Entretanto, ao ler reportagem publicada na revista Veja, em dois de
maio deste ano, tive de mudar o enfoque. O título da reportagem é “A
justiça do açoite”, o subtítulo “Em nome da tradição, o esdrúxulo Evo
Morales quer legalizar os tribunais indígenas e suas penas bárbaras”.
No texto se explica tratar-se de um Projeto de Lei regulamentando a
Justiça Comunitária dos Povos indígenas e comunidades camponesas da
Bolívia. A reportagem relata que, de fato, tribunais comunitários já julgam
crimes, aplicando penas que variam de um pedido de desculpas, de joelhos,
até o açoite, trabalhos forçados, exílio da tribo e linchamento.
O diretor de Justiça Comunitário do Ministério da Justiça boliviano,
PETRONILO FLORES, citado na reportagem, explica: “Os açoitamentos não
podem deixar marcas, porque isso significaria violar os direitos humanos”.
É sobre isso, pois, que desejo falar. Mas antes, uma “epígrafe”, de
Anatole France (1923: 117), no livro “O Lírio Vermelho”: [...] Outro motivo

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de orgulho, ser cidadão! Isto consiste, para os pobres, em sustentar e


conservar os ricos, nas suas vantagens e inutilidades. Eles devem trabalhar
perante a majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto ao rico quanto ao
pobre dormir debaixo das pontes, mendigar nas ruas e roubar pão. [...]
Passagem magnífica, que demonstra o caráter discricionário do
direito penal francês, brasileiro, norte-americano...
Podemos percebê-la em referência ao tema, troquemos pobres por
índios, ricos por europeus, e teremos a discussão que se desenvolve hoje na
Bolívia. Embora esta possua muito mais complexidade.
Vamos aos fatos. A Bolívia é habitada por 9 milhões de pessoas, 60%
não possuem raízes européias ou africanas, são indígenas, descendentes de
quem vivia na região desde antes da chegada de Colombo e do processo
“civilizatório”. Atentem, por favor, às aspas que marcam a palavra
civilizatório.
A Bolívia é composta por 37 grupos étnicos, com diferentes línguas.
Entre os povos destacam-se os Aymara e os Quechua. Apesar disso, é
regida por leis que se baseiam no modelo proposto pela Espanha, país
colonizador.
Todavia, estes povos lutam, agora, pela descentralização do poder,
por autonomia, por respeito a suas tradições e formas de organização. O
que inclui o reconhecimento, pelo Estado, de sua forma de declarar e aplicar
a Justiça.
Ou seja, estes povos agora se organizam como movimentos sociais,
exigindo do Estado respeito às suas tradições1.
Antes de continuar, saibamos que, em 1994, uma reforma
constitucional na Bolívia, reconheceu a existência de diversidade cultural e
étnica, e assim, fazendo, [...] El Estado no ha creado una nueva forma de
control social y de resolución de conflictos sociales, sino que, por el
contrario, ha reconocido la existencia y vigencia de un paradigma
normativo preexistente al mismo reconocimiento constitucional, e incluso al
propio Estado […] (COCARICO LUCAS, 2006: 132)
Ou seja, passa a reconhecer, constitucionalmente, o direito de os
povos indígenas bolivianos aplicarem suas próprias leis.

1 Em sua intervenção no painel, com muita propriedade, o Professor EMIL SOBOTTKA, distinguia a
luta liderada por Evo Morales da de Hugo Chavez na Venezuela, ressaltando a origem popular
daquela.

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Para os povos indígenas e para os legisladores bolivianos, restam


desafios: quais os limites desta Justiça? Ela respeita os direitos humanos?
Em que medida as práticas de Justiça Comunitária devem se limitar pelos
direitos nacionais? E pelo internacional? Como conciliar as sanções
corporais com esses ordenamentos?
Em 2006, a posse de Evo Morales, líder do MAS (Movimento ao
Socialismo), primeiro indígena a ser eleito presidente da Bolívia, acelera o
ritmo das reformas na Bolívia e impõe uma nova agenda de discussões
sobre o tema.
Falando da realidade cotidiana das comunidades indígenas, deve-se
dizer que, como na França, Brasil ou Haiti, nos últimos anos, uma onda de
criminalidade tem atingido várias regiões bolivianas e muitos pregam a
aplicação, contra os criminosos, da Justiça Comunitária.
Em vários casos aconteceram linchamentos (COCARICO LUCAS, 2006:
146). Isso significa que a população reivindica e aplica a pena de morte, por
meio de linchamento. Mas a este tipo de atitude se pode denominar Justiça
Comunitária? Para COCARICO LUCAS (2006: 144), el procesamiento en la
justicia comunitaria es de carácter público y en él participa toda la
comunidad. En todo caso, determinar la responsabilidad y la aplicación de
una sanción debe ser el resultado de un consenso comunitario, no se trata
del acuerdo de una minoría. Las decisiones son puestas a conocimiento y
validación de la comunidad en su conjunto.
Já KIMBERLY INKSATER, advogada canadense que trabalha, ou
trabalhou, junto a comunidades indígenas bolivianas, explica como se
organiza a Justiça em Yaku, região da Bolívia. Ela possui vínculos com ritos
religiosos, seu controle é exercido pelos anciãos e divide as ofensas em
menores e maiores, para cada qual existe uma justiça própria. Há ainda um
“corregidor”, que coordena a ligação entre elas. Três membros do conselho
governante e da assembléia geral da comunidade (presidida pelo
“corregidor”) coordenam a justiça maior (INKSATER, 2006: 39/41).
Trago poucas informações, pois o tempo é curto, mas cabe lembrar,
com MALINOVSKI (41), que as legislações primitivas não dependem do
arbitrário, de paixões ou acidentes. Nas comunidades primitivas, como nas
nossas, existe tradição e necessidade de ordem, existem sistemas com maior
ou menor complexidade, mas certamente sistemas articulados, adequados à
realidade local. Um estudo mais aprofundado, pois, mostraria um grau de
complexidade que eu espero já tenha sido percebido.

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Vamos ao mais candente: as penas na justiça comunitária. Elas variam


de acordo com o grau da falta cometida, indo desde a sanção moral,
passando pelos trabalhos comunitários ou multa, o ressarcimento do dano,
açoites, expulsão da comunidade e pena de morte (esta acontece, por
exemplo, em caso de reiteração de crime grave, como o roubo, ou no caso de
regresso ante uma pena de expulsão, quando se aplica o linchamento)
(COCARICO LUCAS, 2006: 145).
COCARICO LUCAS (2006: 145) escreve que, nos últimos 50 anos, não se
sabe de sua aplicação, mas ele mesmo revela que houve época em que o
Direito Consuetudinário Indígena aplicou castigos corporais e pena de
morte, de forma que foi dito ser violador dos direitos humanos (COCARICO
LUCAS, 2006: 139).
Não diversas são as percepções de INKSATER (2006: 41): Existen
ejemplos de expulsiones y castigos corporales, incluyendo flagelación y la
pena de muerte. La expulsión es decidida por la asamblea comunal y parece
haber sido recientemente aplicada en los años 70 cuando un miembro de la
comunidad fue encontrado cometiendo adulterio repetidamente, pese a las
sanciones monetarias. El azote es aplicado en ofensas criminales. En estos
casos el culpable es exhibido en la plaza principal con sus manos atadas. El
número de latigazos aplicados depende de la gravedad de la ofensa. En
casos serios que amenazan el bienestar de la comunidad, las autoridades
“originarias” determinan el número de latigazos. Estas autoridades o
miembros de la comunidad son generalmente “encargados” de aplicar no
más de tres latigazos por persona. Es también permitido el insultar al
ofensor hasta que él o ella se arrepientan públicamente y ruegue por el
perdón.
E acrescenta: La pena de muerte no parece haber sido aplicada en los
últimos 20 años. Sin embargo es sabido que esta sanción es probablemente
aplicada clandestinamente, y es por ende, difícil de estudiar con precisión.
[…] (INKSATER, 2006: 42).
A canadense conclui (2006: 85): […] Puede parecer que las culturas
jurídicas indígenas castigan a los transgresores duramente, sin embargo, yo
sugeriría que el castigo es simplemente diferente que el castigo “occidental”
actual. El modo de vida comunal, ilustrado en los estudios de caso, requiere
un alto grado de cohesión entre miembros para equilibrar los intereses
comunales y de la familia. Argumenté que las sanciones corporales
aplicadas en las comunidades indígenas estudiadas no constituyen un
tratamiento degradante, porque no parecen causar intenso dolor o
humillación […]

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GILBERT (2007) informa que Flores, o diretor de Justiça Comunitário


do Ministério da Justiça boliviano, é um advogado de 35 anos, oriundo da
nação indígena kikillas, que defende o sistema. Flores ressalta: as chicotadas
são simbólicas e não podem, nunca, deixar marcas. Conclui afirmando que a
Justiça Indígena se impõe perante o fracasso da ordem jurídica ocidental na
Bolívia. Fracasso que se deve ao desprestígio dos tribunais, aos altos
honorários cobrados pelos advogados e a demora na resolução dos casos
(opinião compartilhada pelo presidente Evo Morales, para quem o Poder
Judiciário é corrupto e subordinado a interesses políticos (MAISONNAVE,
2007)). Completa Flores dizendo que esses elementos têm sido a causa de
linchamentos.
Releva lembrar desde já que a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, no caso Caesar versus Trinidad y Tobago, cuja sentença foi
prolatada em 11 de março de 2005, analisou situação em que o país
caribenho submeteu, em 5 de fevereiro de 1998, Caesar a 15 açoites, e que,
em conseqüência, mesmo que não tenha sofrido lesões físicas permanentes,
ele permaneceu dois meses na enfermaria, sem receber tratamento médico
pela flagelação, exceto analgésicos orais, continuando a padecer, sete anos
depois, de dor nos ombros.
O presidente do colégio de advogados de La Paz se opõe à idéia de
implementação desta Justiça Comunitária, que, segundo ele, desrespeita
direitos fundamentais das pessoas, como o princípio da inocência (GILBERT,
2007) (mas nada se refere, ao menos na entrevista analisada, sobre as
punições impostas).
Mesmo juízes que reconhecem as práticas ancestrais (Noticias 24,
2007) se colocam contra a idéia do governo, pois ela oferece mesma posição
para a Justiça Ordinária e a Comunitária, ou seja, não haveria uma
subordinação da Justiça Indígena à Estatal, pois aquela passaria a ser de
ordem pública e cumprimento obrigatório (MAISONNAVE, 2007). Para
Héctor Sandoval, juiz da Suprema Corte boliviana, a preocupação principal
está nos diversos casos percebidos de linchamento (MAISONNAVE, 2007).
Mas quando ela seria aplicada? Qual a competência para cada uma?
A Indígena, prevê o projeto, seria acionada quando a ação acontecesse em
povoados indígenas, comunidades campesinas, preservando-se, no caso de
um dos envolvidos ser branco, o recurso à Justiça Ordinária.
É, todavia, no que se refere às penas e aos limites de sua aplicação que
se encontra o aspecto mais polêmico do tema. Analisemos alguns casos.

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GILBERT (2007) cita situação em que, para resolver um assassinato, um


suspeito foi obrigado a passar uma noite em um cemitério. Um líder
indígena explica: Los cerros sagrados y el anima del finado lo hicieron
entrar em razón y al siguiente dia lo conto todo. Como castigo, debió ceder
a la viuda parte de sus terrenos y 10 cabezas de ganado, y comprometerse a
mantener sus hijos (GILBERT, 2007).
Se esse caso oferece estranheza no que diz respeito ao procedimento e
mesmo à pena, os seguintes são mais trágicos.
INKSATER (2006: 42) cita um, ocorrido na década de 80, em que um
acusado de uma série de roubos foi condenado pela comunidade. Antes de
sofrer a pena (de morte) acabou preso pela polícia estatal. Convocado pela
assembléia para comparecer perante a comunidade, para devolver os
objetos roubados e se arrepender, estava sendo conduzido pela polícia
estatal mas, no percurso, aproveitou-se de um precipício para suicidar-se,
evitando a aplicação da pena e a mancha na honra da família.
Em outro caso, nos mesmos anos 80, em que dois irmãos foram
condenados por roubo de gado e sentenciados, pela justiça maior, à morte, a
mãe foi responsável pela aplicação da pena, tendo de ministrar a eles
veneno.
Há de se ressaltar que, na Justiça Comunitária, os pais participam da
aplicação da pena, por haver o entendimento de terem falhado na missão de
educar os filhos (INKSATER, 2006: 42).
Mais recentemente, em 13 de julho de 2003, no departamento de La
Paz, foi solicitada a aplicação de Justiça Comunitária a dois sindicalistas,
acusados de roubo de gado, e oferecida autorização pelo prefeito local
(embora ainda não de direito, isso por vezes acontece). Eles acabaram sendo
torturados com armas brancas e chicotes e terminaram sendo linchados.
Em 15 de junho de 2004, em Ayo Ayo, o prefeito da cidade foi
seqüestrado, torturado, assassinado e incendiado. Era acusado de malversar
fundos de participação popular (a justificativa apresentada pelos populares
foi de que a lei aymara e quéchua determina: não roubar, não mentir, não
ser folgado (Cocarico Lucas, 2006: 148).
Para justificar as penalidades da Justiça Comunitária, argumenta-se
que não apenas esta justiça aplica castigos corporais e, inclusive, se compara
a pena restritiva de liberdade com um castigo corporal, acrescido de um
viés psicológico. Alegam os defensores destas Justiça (dentre os quais
COCARICO LUCAS (2006: 139)) que a restrição da locomoção, a redução do

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espaço, é um castigo corporal, somente que não qualificado com bárbaro,


embora pretendam que o seja).
INKSATER (2006: 79) argumenta: Yo sostendría que mientras la
prohibición contra la tortura es más una norma intercultural en el sentido
de prohibir el uso arbitrario y flagrante de fuerza por parte de funcionarios
del Estado, el castigo corporal en formas múltiples mantiene una
prescripción por conducta aberrante en muchas culturas y su prohibición,
como tratamiento degradante, no puede ser declarado universal.[...]
Ela apenas relativiza seu discurso quando vai se referir à pena de
morte. Daí declara não estar preparada para propor uma conclusão sobre o
ponto, destacando, porém, que a sua aplicação na Bolívia e Colômbia,
parece ser muito limitada. Alerta ainda para o uso corrupto das garantias
do Direito Indígena, a fim de justificar assassinatos de vingança (INKSATER,
2006: 93). Explicitamente, ela diz: Argumentaré que mientras las sanciones
corporales pueden parecer prima facie al violar normas de derechos
humanos, su aplicación legal por autoridades judiciales indígenas puede ser
aceptable dentro de un marco de pluralismo jurídico que privilegia la
autonomía del derecho indígena y mecanismos jurídicos interculturales.
(INKSATER, 2006: 3)
COCARICO LUCAS, defendendo a Justiça Comunitária, explica que ela
possui seus limites e que quando o ultrapassa, deixa de sê-lo, deixa de
possuir legitimidade: La furia y las pasiones desmedidas de la sociedad
frente a la creciente delincuencia, no pueden ser catalogadas como la
aplicación del Derecho Consuetudinario Indígena. [...] En definitiva, todo lo
que implique venganza desmedida no es Justicia Comunitaria […]
(COCARICO LUCAS, 2006: 148).
Interessante situação, o que é “bacana”, é Justiça Comunitária, o que
foge ao controle, não o é. E a pena de morte surge como algo ainda a ser
analisado...
Importa agora explicitar a relação entre essa Justiça e a proposta de
NORBERTO BOBBIO, com cuja opinião concordo.
Embora não se refira ao pluralismo jurídico, BOBBIO deixa claro que o
fundamento dos Direitos Humanos é a declaração de 1948 (a respeito da
qual, afirma, existe consenso geral de validade) (BOBBIO, 1992: 26/27). Logo,
a Declaração faz com que os direitos sejam universais, e positivados
(BOBBIO, 1992: 30) e resulta, por exemplo, na proibição, absoluta, da
escravidão e da tortura (BOBBIO, 1992: 42).

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Logo, não cabe ficar delirando e dizendo que as chicotadas são


poucas e sem conseqüências... São tortura e, como tal, contrárias aos direitos
humanos.
Há de se reler FOUCAULT (“Vigiar e Punir”), que escreve sobre as
formas de punir, destacando que, no direito penal do terror, típico do
direito monárquico, há um cerimonial de soberania, rituais de vingança
sobre o corpo do condenado e, com o surgimento da instituição carcerária, a
punição passa a ser uma técnica de coerção, um treinamento sobre o corpo
(FOUCAULT, 1991: 116).
Claro que toda pena infringe sofrimento, mas, por óbvio, a restritiva
de liberdade, resultado da luta dos reformadores, BECCARIA, BENTHAM,
HOWARD, implica em menos dor e mais respeito pelos direitos humanos.
Claro que contra ela se levanta FOUCAULT (e também eu), ela é
desumana, mas não se pode, por ela ser ruim, justificar o pior. Ela deveria
ser abolida, mas enquanto não se alcança tal intento, não pode servir de
justificativa para uma volta ao passado, para a permissão da punição sobre
o corpo do condenado.
Assim, o juiz SERGIO GARCÍA RAMÍREZ, na citada sentença do caso
Caesar versus Trinidad y Tobago, declara:
“La obstinada presencia de estos métodos de castigo, que
constituyen reminiscencias de antiguas prácticas opresivas,
conduce a replantear los fines de la pena que el Estado impone al
responsable de un delito. No niego el carácter retributivo que
formalmente posee la sanción penal y que en ocasiones ha
contribuido a limitar el despliegue de la violencia, ajustando la
gravedad de la pena a la gravedad de la falta. Tampoco impugno
en este momento su eficacia – más supuesta que real – como medio
de prevenir (prevención general) la comisión de delitos. Pero
conviene retener por ahora, en ausencia de mejor opción
garantista, el proyecto de readaptación, resocialización o
rehabilitación que se ha asignado a la consecuencia penal del delito
y que figura, extensamente, en numerosos instrumentos nacionales
e internacionales, particularmente aquellos que conciernen a la
pena privativa de libertad, que en la historia de las sanciones
acudió a relevar la sanción capital y las penas corporales”.
E acrescenta que, no caso, o sofrimento em decorrência dos açoites (e
na demora de sua aplicação, na falta de cuidados posteriores à sua

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aplicação), representa claro excesso no direito de punir do Estado, na


execução da pena legítima. Assim, clama peremptoriamente:
“Lo que he afirmado y aquí destaco es que la pena de azotes
resulta contraria, en sí misma, a la dignidad humana”.
O açoite excede o possível, o “civilizado”, o quase consenso. Para
tanto, cabe perceber ainda o in fine do artigo 1, 1 da Resolução 39/46, da
Assembléia Geral das Nações Unidas (10 de dezembro de 1984), Convenção
contra a Tortura:
“[...] Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos
que sejam conseqüência, inerentes ou decorrentes de sanções
legítimas”.
E isso está decidido no âmbito da América Latina. Sempre no Caso
Caesar versus Trinidad y Tobago. Nele a Corte Interamericana decidiu: […]
la tortura y las penas o tratos crueles, inhumanos o degradantes están
estrictamente prohibidos por el Derecho Internacional de los Derechos
Humanos. La prohibición de la tortura y las penas o tratos crueles,
inhumanos o degradantes es absoluta e inderogable, aun en las
circunstancias más difíciles, tales como guerra, amenaza de guerra, lucha
contra el terrorismo y cualesquiera otros delitos, estado de sitio o de
emergencia, conmoción o conflicto interior, suspensión de garantías
constitucionales, inestabilidad política interna u otras emergencias o
calamidades públicas.
Logo, a Corte declara a incompatibilidade de penas corporais com a
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa
Rica, 1969) e declara que Caesar foi submetido a tortura.
Importa ainda destacar que […] Asimismo, la Corte es consciente de
la creciente tendencia, a nivel internacional e interno, hacia el
reconocimiento del carácter no permisible de las penas corporales, debido a
su naturaleza intrínsecamente cruel, inhumana y degradante.
Consecuentemente, un Estado Parte de la Convención Americana, en
cumplimiento de sus obligaciones derivadas de los artículos 1.1, 5.1 y 5.2 de
dicha Convención, tiene una obligación erga omnes de abstenerse de
imponer penas corporales, así como de prevenir su imposición, por
constituir, en cualquier circunstancia, un trato o pena cruel, inhumano o
degradante.
E recordar que: Reconocimiento de Competencia: I. El Gobierno
Constitucional de la República, de conformidad con el artículo 59, inciso 12,
de la Constitución Política del Estado, mediante Ley 1430 de 11 de febrero,

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dispuso la aprobación y ratificación de la Convención Americana sobre


Derechos Humanos “Pacto de San José”, suscrita en San José, Costa Rica, el
22 de noviembre de 1969 y el reconocimiento de la competencia de la
Comisión y de la Corte Interamericana sobre Derechos Humanos, de
conformidad con los artículos 45 y 62 de la Convención2.
Para quase finalizar desejo citar alguns artigos da Declaração das
Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (aprovado pelo
Conselho de Direitos Humanos, em 29 de junho de 2006, esperando
aprovação da Assembléia Geral da ONU3).
O artigo 5 reza: Os povos indígenas têm direito a conservar e reforçar
suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais,
mantendo os seus direitos de participar plenamente, se o desejam, na vida
política, econômica, social e cultural do estado.
O artigo 33.2 diz: Os povos indígenas têm direito a determinar as
estruturas e a escolher a composição de suas instituições em conformidade
com seus próprios procedimentos.
Para flexibilizar essa percepção, passo a leitura de mais dois artigos.
O artigo 34 prevê: Os povos indígenas têm direito a promover, desenvolver
e manter suas estruturas institucionais e seus próprios costumes,
espiritualidade, tradições, procedimentos, práticas e, quando existam,
costumes ou sistemas jurídicos, em conformidade com as normas
internacionais de direitos humanos.
E o 46: Nada do previsto na presente Declaração se interpretará no
sentido de que se confira a um Estado, povo, grupo ou pessoa direito algum
a participar em uma atividade ou realizar um ato contrário a Carta das
Nações Unidas.
Assim, lembrando INKSATER (2006: 13): [...] Los sistemas jurídicos
indígenas han evolucionado incorporando elementos del derecho colonial y
moderno al mismo tiempo que ha retenido su particularidad. [...]
Para realmente concluir deve-se pensar a questão e reconhecer
sistemas alternativos ao estatal, sabendo-se que todos precisam se curvar
perante os direitos humanos. Todos devem se adequar, se atualizar,
respeitar esses direitos que fundam nossa ordem, jurídica e social.

2 Disponível em <http://www.oas.org/juridico/spanish/firmas/b-32.html>, acesso em 18 jul 2007.


3 No dia 14 de setembro de 2007, após a palestra ter sido proferida, a Assembléia Geral da ONU
aprovou a Declaração.

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O projeto de lei que institui a Justiça Indígena na Bolívia prevê a


proibição da pena de morte, mas não a de castigo físico (MAISONNAVE,
2007). Por quê?
Por quê? Por que não prevê a pena de morte? Por que prevê castigos
corporais?
Talvez, como explicou FLORES, decorrência do entendimento de que
as chicotadas não desrespeitam os direitos humanos e a pena de morte sim.
Mas não concordamos com INKSATER e sua perspectiva de conhecer a
cultura local, os costumes locais. Se assim fosse, também a pena de morte
seria admissível (fato que ela não tem coragem de afirmar). Lá e aqui. E por
toda parte.
Mas isso não é admissível.
Deve-se, entendo, garantir a todos os povos o uso de sua Justiça, mas
cabe exigir deles o respeito aos direitos humanos, ou, seja, necessitam eles
reconhecer novos valores, como disse Inksater, “evoluir”, abandonar penas
cruéis, penas de açoite e de morte.
De resto, penas já proibidas na Bolívia, signatária que é da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, submetida que está, por opção própria,
à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

B IBLIOGRAFIA
ANDRADE Vera Regina de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher
como sujeito da construção da cidadania. In: CAMPOS, Carmen Hein. Criminologia e
feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. pp. 105-117
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 217 p.
BORTOLOTI, Marcelo. A justiça do açoite: em nome da tradição, o esdrúxulo Evo Morales
quer legalizar os tribunais indígenas e suas penas bárbaras. Veja. São Paulo, nº 17, 02
maio 2007. p. 102.
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103
BIOÉTICA: ORIGENS E COMPLEXIDADE *
J OSÉ R OBERTO G OLDIM**

Resumo: A Bioética surge no Século XX como uma proposta


de integração do ser humano à natureza. A crescente
complexidade das intervenções científicas, especialmente na
área da saúde, provocaram que ocorresse uma reflexão
sobre estas questões. A Bioética, que antes era uma resposta
a problemas, amplia a sua abrangência ao refletir pro-
ativamente sobre novas situações, utilizando um amplo
referencial teórico para dar suporte às suas discussões.

Palavras-Chave: Bioética – Complexidade – Saúde Humana

1 – A O RIGEM DA B IOÉTICA
Em 1927, em um artigo publicado no periódico alemão Kosmos, FRITZ
JAHR utilizou pela primeira vez a palavra Bioética (Bio=Ethik). Este autor
caracterizou a Bioética como sendo o reconhecimento de obrigações éticas
não apenas com relação ao ser humano, mas para com todos os seres vivos1.
Este texto, encontrado por ROLF LÖTHER, da Universidade Humbolt, de
Berlim, e divulgado por EVE MARIE ENGEL, da Universidasde de Tübingen,
também da Alemanha2, antecipa o surgimento do termo Bioética em 47
anos. No final de seu artigo, FRITZ JAHR propõe um “imperativo bioético”:
Respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e trata-o, se
possível, como tal!

* Artigo publicado na Revista HCPA; 2006;26(2):86-92.


**Doutor em Clínica Médica, Biólogo do GPPG/HCPA, Pesquisador Responsável pelo Laboratório
de Bioética e Ética na Ciência do Centro de Pesquisas HCPA.
1 JAHR F. Bio=Ethik. Eine Umschau über die ethichen Beziehung des Menchen zu Tier und Pflanze. Kosmos

1927;24:2-4.
2 ENGEL EM. O desafio das biotécnicas para a ética e a Antropologia. Veritas 2004;50(2):205-228.

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Anteriormente, a criação do termo Bioética era atribuída a VAN


RENSSELAER POTTER, quando publicou um artigo3, em 1970, caracterizando-a
como a ciência da sobrevivência. Na primeira fase, POTTER qualificou a
Bioética como PONTE4, no sentido de estabelecer uma interface entre as
ciências e as humanidades, que garantiria a possibilidade do futuro.
A Bioética teve uma outra origem paralela em língua inglesa. No
mesmo ano de 1970, ANDRÉ HELLEGERS utilizou este termo para denominar
os novos estudos que estavam sendo propostos na área de reprodução
humana, ao criar o Instituto Kennedy de Ética, então denominado de Joseph
P. and Rose F. Kennedy Institute of Ethics.
Posteriormente, no final da década de 1980, Potter enfatizou a
característica interdisciplinar e abrangente da Bioética, denominando-a de
Global5. O seu objetivo era restabelecer o foco original da Bioética,
incluindo, mas não restringindo, as discussões e reflexões às questões da
medicina e da saúde, ampliando as mesmas aos novos desafios ambientais.
Vale lembrar que o pensamento de Potter teve como base a obra de ALDO
LEOPOLD, que criou, na década de 1930, a Ética da Terra (Land Ethics)6. A
proposta de LEOPOLD ampliou a discussão feita por JAHR ao incluir, além
das plantas e animais, o solo e demais recursos naturais como objeto de
reflexão ética.
Em 1998, POTTER, redefiniu a Bioética como sendo uma Bioética
Profunda (“Deep Bioethics”). A influência para uso desta qualificação foi a
Ecologia Profunda de ARNE NESS7. A Bioética Profunda é “a nova ciência
ética que combina humildade, responsabilidade e uma competência
interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade
A Bioética, desta forma, nasceu provocando a inclusão das plantas e
dos animais na reflexão ética, já realizada para os seres humanos.
Posteriormente, foi proposta a inclusão do solo e dos diferentes elementos
da natureza, ampliando ainda mais a discussão. A visão integradora do ser
humano com a natureza como um todo, em uma abordagem ecológica, foi a
perspectiva mais recente. Assim, a Bioética não pode ser abordada de forma
restrita ou simplificada. É importante comentar cada um dos componentes
da definição de Bioética Profunda de Potter – ética, humildade,

3 POTTER VR. Bioethics, the science of survival. Perspectives in biology and medicine 1970;14: 127-153.
4 POTTEr VR. Bioethics. Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1971:2.
5 POTTER VR. Global Bioethics – Building on the Leopold Legacy. East Lensing: Michigan State University

Press, 1988.
6 LEOPOLD , A. Sand County Almanac and sketches here and there. New York: Oxford, 1989:227-8.
7 NAESS A. The shallow and the deep, long-range ecology movements: a summary. Inquiry 1973;16:95-100.

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responsabilidade, competência interdisciplinar, competência intercultural e


senso de humanidade – para melhor entender a necessidade de uma
aproximação da Bioética com a Teoria da Complexidade.

2 – A B IOÉTICA E A É TICA
Atualmente, a Ética passou a fazer parte do discurso da população,
dos meios de comunicação, de profissionais de várias áreas, com seu
significado nem sempre utilizado de forma correta. Talvez devido ao pouco
conhecimento formal que a maioria das pessoas tem da Ética, muitas não
sabem propriamente o que é a Ética, qual a sua finalidade e como ela atua.
Muitas vezes a palavra Ética é utilizada também como adjetivo, com a
finalidade de qualificar uma pessoa ou uma instituição como sendo boa,
adequada ou correta. Este uso pode ter sido influenciado pela definição de
Ética proposta por GEORGE EDWARD MOORE, de que ela é “a investigação
geral sobre aquilo que é bom”8. O ideal é sempre utilizá-la na forma
adverbial, ou seja, ela própria merecendo ser qualificada, ou seja,
eticamente adequada ou eticamente inadequada. Mas não pressupondo que
a Ética, no seu sentido substantivo, sempre se associe ao bom, ao adequado
e ao correto.
RICARDO TIMM DE SOUZA afirmou que a maior revolução
epistemológica do pensamento ocidental foi a proposta por Emanuel
Lévinas ao postular que a Ética fosse considerada como filosofia primeira,
invertendo a subordinação tradicional à lógica e à ontologia9.
Três autores contemporâneos podem auxiliar na compreensão
adequada destas questões fundamentais. ADOLFO SANCHES VASQUES
caracterizou a Ética como sendo a busca de justificativas para verificar a
adequação ou não das ações humanas10. JOAQUIM CLOTET afirmou que a
“Ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Que o ser humano
chegue a realizar-se a si mesmo como tal, isto é, como pessoa”11.
Complementando, ROBERT VEATCH dá uma boa definição operacional de
Ética ao propor que ela é “a realização de uma reflexão disciplinada das
intuições morais e das escolhas morais que as pessoas fazem”12.

8 MOORE GE. Princípios Éticos. São Paulo: Abril Cultural, 1975:4.


9 SOUZA RT. Razões Plurais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004: 14.
10 VASQUES AS. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000:15-34

11 CLOTET J. Una Introducción al tema de la Ética. Psico 1986;12(1)84-92.


12 VEATCH R. Medical Ethics. 2ed. Boston: Jones and Bartlett, 2000.

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3 – A B IOÉTICA E A H UMILDADE
A humildade é uma virtude, ou seja, um traço adequado do caráter de
uma pessoa13. Potter definiu humildade como sendo a conseqüência
apropriada que segue a afirmação “posso estar errado” e exige
responsabilidade de aprender com as experiências e conhecimentos
disponíveis14.
Durante um longo período da história da humanidade pensou-se que
seria possível conhecer a totalidade das informações sobre um determinado
tema. Ao atingir este nível de conhecimento seria possível conhecer todo o
seu passado e também o seu futuro. A esta possibilidade foi dado o nome
de “Demônio de Laplace”, pois quem detivesse todo este conhecimento,
tudo poderia prever.
WERNER HEISEMBERG, na década de 1930, formulou o Princípio da
Incerteza, demonstrando a impossibilidade de conhecer simultaneamente a
posição e a velocidade de uma partícula. Esta impossibilidade de poder
conhecer tudo provocou, em conseqüência, o “exorcismo do demônio de
LAPLACE”15.
Atualmente é aceito que o tempo é uma variável fundamental em
todo e qualquer processo. Ele provoca mudanças, mais que isto, e
associando-o à indeterminação, os processos não só mudam, como podem
mudar a sua própria maneira de mudar.
A inclusão das noções de indeterminação e de mudanças provocadas
pelo tempo alterou definitivamente as discussões científicas. Contudo, não
houve a esperada contrapartida de humildade de grande parte dos
cientistas e de outros profissionais envolvidos com a geração e aplicação do
conhecimento. HANS JONAS, já em 1968, disse que “a humildade seria
necessária como um antídoto para a ruidosa arrogância tecnológica atual16.
Na Bioética a humildade é uma característica fundamental. Ao
assumir que a incerteza e a mudança são componentes sempre presentes,
assume-se, igualmente, que os resultados das reflexões são sempre passíveis
de discussão. A humildade permite reconhecer que não sendo definitivos
nem imutáveis.

13 COMTE-SPONVILLE A. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes: 1996.
14 POTTER VR. O Mundo da Saúde 1998;22(6):370-374.
15 PRIGOGINE I, Stengers I. Order out of chaos. Toronto: Bantam, 1984:75,222-226.
16 JONAS H. Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega Passagens, 1994:65

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4 – A B IOÉTICA E A R ESPONSABILIDADE
Os conhecimentos e discussões gerados pela Bioética e pela Ecologia
contribuíram para ampliar a noção de responsabilidade. Durante muito
tempo ela era associada apenas aos deveres existentes entre seres humanos
contemporâneos e geograficamente próximos.
PETER SINGER desencadeou no início da década de 1970 um grande
debate sobre os direitos dos animais. FRITZ JAHR, em 1927, já havia
proposto, segundo suas próprias palavras, um imperativo bioético:
“Respeita, em princípio, cada ser vivo como uma finalidade em si e trata-o
como tal, na medida do possível”17. O próprio título de seu artigo, propunha
uma visão da Bioética como sendo um “panorama sobre as relações éticas
dos seres humanos para com os animais e as plantas”. A inclusão das
plantas na discussão bioética é ainda altamente inovadora, mesmo nos dias
atuais.
Em 1948, ALDO LEOPOLD, em seu texto sobre Ética da Terra, fez outra
ampliação desta discussão, quando postulou o direito das gerações futuras
a receberem um ambiente preservado18. Nesta mesma tradição, HANS JONAS,
em 1968 propôs um outro imperativo, com a finalidade de prevenir
possíveis conseqüências das ações humanas: “Nas tuas opções presentes,
inclui a futura integridade do ser humano entre os objetos da tua
vontade”19.
A expansão desta discussão sobre direitos e deveres com a inclusão
de todos os seres vivos, tanto contemporâneos quanto ainda não existentes,
amplia a responsabilidade e a perspectiva atual da Bioética, como já haviam
antecipado FRITZ JAHR e VAN RENSSELAER POTTER.
A Ecologia Profunda, de ARNE NESS, que serviu de base para a
terceira definição de Bioética de POTTER, já havia rompido com a
perspectiva usual da relação dos seres humanos com a natureza, no sentido
de domínio sobre a mesma, de que o ambiente natural era visto apenas
como um recurso para ser desfrutado, considerando os demais seres vivos
como sendo inferiores e de centrar estas discussões políticas apenas no
âmbito nacional. A sua proposta visava gerar uma relação harmoniosa com
a natureza, reconhecendo-a como tendo valor intrínseco, buscando o
reconhecimento da igualdade entre as diferentes espécies e de que esta

17 JAHR F. Bio=Ethik. Eine Umschau über die ethichen Beziehung des Menchen zu Tier und Pflanze. Kosmos
1927;24:2-4.
18 LEOPOLD A. A Sand County Almanac, and sketches here and there. New York: Oxford, 1989:227-8.
19 JONAS H. Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega Passagens, 1994:45.

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perspectiva deveria ser discutida na abrangência de biorregiões, além de


reconhecer as tradições das minorias20.
Atualmente, discutir apenas a preservação do ambiente natural
passou a ser uma tarefa difícil e até mesmo ultrapassada. A diferenciação
entre objetos artificiais e objetos naturais, que pode parecer imediata e sem
ambigüidade, na realidade não o é. Estas diferenças não são nem imediatas
nem estritamente objetivas21, tamanho o grau da intervenção humana e das
inter-relações existentes.
A preservação apenas de ambientes naturais intocados, por si só os
tornaria artificiais, pois ao protegê-los estariam sendo impostas barreiras
artificiais de acesso e utilização. As reservas e parques naturais são
exemplos desta ambigüidade entre o natural e o artificial, entre o natural e o
naturalizado (LENOIR).
Na área da saúde esta questão também é cada vez mais presente.
Distinguir os processos de ação naturais do organismo humano dos
provocados por intervenções externas a ele pode ser difícil e, em
determinadas situações, impossível.
As intervenções, quando avaliadas desde uma perspectiva ecológica,
deixam de ter apenas uma conotação individual, passando a merecer uma
discussão com as demais pessoas direta ou indiretamente envolvidas. A
Ética da Razão Comunicativa de KARL-OTTO APEL, deu uma importante
contribuição neste sentido. Ao levar em conta as conseqüências diretas e
indiretas das ações realizadas e por utilizar o discurso argumentativo
exercido por todos os indivíduos para obter normas consensuais, torna-os
co-responsáveis por todas as ações22.
HANS JONAS, ao propor a Ética da Responsabilidade, já havia dito que
“nenhuma ética anterior tinha de levar em consideração a condição global
da vida humana e o futuro distante ou até mesmo a existência da espécie.
Com a consciência da extrema vulnerabilidade da Natureza à intervenção
tecnológica do homem surge a Ecologia“23. Ecologia que veio trazer uma
nova e complexa visão da inserção dos seres humanos no conjunto da
Natureza.

20 NAESS A. The shallow and the deep, long-range ecology movements: a summary. Inquiry 1973;16:95:100.
21 MONOD J. O acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes, 1989.
22 WEBER T. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo Kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999:104.

23 JONAS, H. Técnica e responsabilidade: reflexões sobre as novas tarefas da Ética. In: JONAS H. Ética,

medicina e técnica. Lisboa: Vega Passagens, 1994:37.

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5 – A B IOÉTICA E A C OMPETÊNCIA I NTERDISCIPLINAR


A competência interdisciplinar é das características citadas na
definição de POTTER a que mais apresenta confusão e ambigüidade. Várias
palavras são utilizadas de forma confusa como se fossem sinônimos e à
própria palavra interdisciplinaridade tem sido atribuídos diferentes
significados.
A interdisciplinaridade, segundo VALDEMARINA B. DE AZEVEDO E
SOUZA, só ocorre quando existe interação de pessoas, ela necessita da troca
de saberes e opiniões. As condições necessárias para que a
interdisciplinaridade ocorra são as seguintes: a existência de uma
linguagem comum; de objetivos comuns; do reconhecimento da
necessidade de considerar diferenças existentes; do domínio dos conteúdos
específicos de cada um dos participantes, e da elaboração de uma síntese
complementar24.
Esta síntese complementar já era prevista na dialética de Heráclito
como produto da oposição entre a tese e a antítese. A síntese é uma maneira
nova e mais complexa de abordar uma mesma questão25.
CARLOS ROBERTO CIRNE-LIMA comentou que a tese do pensamento
pós-moderno é a de que “a Razão, una e única, morreu, vivam as múltiplas
razões com seus relativismos”. A pós-modernidade ao negar a existência de
princípios ou leis universais, pode gerar uma fragmentação das diferentes
visões de mundo. Apesar destas criticas, uma vantagem deste tipo de
posicionamento é que ele gera, talvez, maior humildade e tolerância, por
dar mais atenção aos demais envolvidos26.
Uma perspectiva mais contemporânea permite reconhecer que os
pensamentos analítico e dialético não são excludentes. O pensamento
analítico traz consigo maior clareza, mas tem o risco da fragmentação, da
compartimentalização de saberes. O pensamento dialético, por outro lado,
tem a vantagem de permitir a inclusão da totalidade dos elementos
considerados, porém também pode gerar uma postura totalitária27.
A incorporação de conceitos da Teoria Geral de Sistemas como os de
sistemas fechados e abertos é fundamental para a adequada compreensão
da interdisciplinaridade necessária à Bioética. Os sistemas fechados têm

24 AZEVEDO E SOUZA VB. Participação e Interdisciplinaridade – Movimentos de Ruptura/ Construção (Org.).


Porto Alegre, EDIPUCRS, 1996.
25 CIRNE LIMA CR. Dialética para principiantes. São Leopoldo: UNISINOS, 2003:22-23.

26 CIRNE-LIMA CR. Dialética para principiantes. São Leopoldo: UNISINOS, 2003:17.


27 CIRNE-LIMA CR. Dialética para principiantes. São Leopoldo: UNISINOS, 2003:121-127.

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interação apenas entre os seus próprios elementos.Os sistemas abertos, por


sua vez, mantêm interação também com elementos externos, trocando
informações dentro e fora de seus limites28.
Durante muito tempo a relação profissional-paciente, por exemplo,
foi considerada como sendo um sistema fechado, onde apenas estes dois
elementos contavam. Com a crescente participação da família, das empresas
de seguro, de outros profissionais prestadores de serviço o sistema teve que
ser aberto para ser adequadamente entendido.
Outra grande contribuição da Teoria dos Sistemas foi o
reconhecimento da existência de relações não-lineares e da realimentação.
Um efeito pode ser determinado por mais de uma causa, caracterizando
uma relação convergente ou multicausal. Da mesma forma, uma única
causa pode gerar mais de um efeito, recebendo a denominação de relação
divergente. A possibilidade de que um efeito ou conseqüência possa alterar
a sua própria causa é a base da realimentação. Assim, a relação causa-efeito
pode ser invertida, gerando a possibilidade da ocorrência de um ciclo de
ações que podem se estimular (realimentação positiva) ou se inibir
(realimentação negativa). Este nova maneira de entender o funcionamento
dos seres vivos alterou definitivamente a visão de linearidade e da
unidirecionalidade das ações29.
Reconhecer que as interações podem ocorrer de forma múltipla e que
atuam de forma diferenciada nos processo de equilíbrio foi uma das
grandes contribuições de JEAN PIAGET. Além da realimentação, que gera a
regulação do sistema, PIAGET incorporou também a noção de operação do
sistema, baseada na pré-alimentação. Ela é uma antecipação de possíveis
situações futuras, isto é, uma pré-correção,. que ocorre em decorrência das
experiências prévias do indivíduo30. A pré-alimentação é pró-ativa. Desta
forma, o processo de controle do sistema ocorre com base na operação,
devida as pré-alimentações e na regulação, com as realimentações31.
Assumir que o indivíduo se acomoda frente ao outro, ou que o outro
assimila a ação do indivíduo, é usual. A inovação de PIAGET foi entender
dialeticamente esta interação. Nesta abordagem não é o indivíduo nem o
outro, mas sim o espaço de troca existente entre eles que possibilita a
ocorrência destas interações. Esta nova perspectiva gerou a necessidade de

28 BERTALANFFY L. Teoria Geral dos Sistemas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1975:63-66.


29 BERTALANFFY L. Teoria Geral dos Sistemas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1975:217-221.
30 PIAGET J. Los Processos de adaptación. Buenos Aires, Nueva Visión, 1977:43-50.
31 PIAGET J. Recherches sur la conteradicion. Paris: PUF, 1974:12-18.

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se entender também como ocorrem as diferentes formas de equilíbrios, de


desequilíbrios e de reequilíbrios32.
A forma mais clássica de equilíbrio biológico é a da homeostase. Ela
foi descrita por WALTER D. CANNON, como sendo um equilíbrio dinâmico
de um determinado estado, obtido a partir das interações dos diferentes
elementos envolvidos33. A este equilíbrio de estado foi acrescido o de
equilíbrio de processo, denominado de homeorrese, que é o responsável
pela manutenção, ao longo do tempo, de diferentes homeostases. A
homeorrese é o processo dinâmico e histórico que permite a preservação de
uma sucessão de diferentes eventos. A homeostase é conservadora, mantém
o seu equilíbrio anterior ao desequilíbrio imposto. Já as reequilibrações, com
a participação da homeorrese, não retornam às suas condições e equilíbrios
anteriores, senão em alguns casos. Geram, isto sim, novos e melhores
equilíbrios permitindo a auto-organização34.
As estruturas perto do equilíbrio são repetitivas e universais, sempre
tendo a perspectiva de ir da ordem à desordem. As estruturas longe do
equilíbrio, ao contrário, são específicas e únicas, permitindo ir da desordem
a uma nova ordem. Estas estruturas que geram novas ordens, novos
equilíbrios, que se auto-organizam, são chamadas de estruturas
dissipativas35.
De acordo com o Tetragrama de EDGAR MORIN36, a passagem da
ordem para o caos se dá pelo aumento do número de interações. Por outro
lado, quando um sistema está em estado caótico, pode surgir um evento ou
processo organizador que gere uma nova ordem. O maior organizador é a
informação37. Esta nova ordem, por sua vez, propiciará novas interações,
que possibilitarão esta alternância de estados de ordem e caos, em grau
crescente de complexidade. MORIN denominou esta perspectiva entre
ordem e desordem de dialógica, pois antes de se oporem de forma
excludente, estes estados geram um ao outro sucessivamente. Caso não
ocorra um evento organizador, o sistema se desintegra devido ao estado de
caos em que se encontra38.

32 PIAGET J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.


33 CANNON WD. The Wisdom of the Body. New York: Norton, 1932:32.
34 PIAGET J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
35 ILYA PRIGOGINE e ISABELLE STENGERS. Order out of chaos. Toronto: Bantam, 1984:12-14.

36 MORIN E. La méthode,1: La nature de la nature. París: Seuil, 1977.


37 BERTALANFFY L. Teoria Geral dos Sistemas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1975:219.

38 TOFFLER A. Science and change. In: Prigogine I, Stengers I. Order out of chaos. Toronto: Bantam,

1994:22-28.

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Dentro desta perspectiva, um ponto interessante a ser discutido, é a


questão de como conciliar mudança e permanência em um processo.
Demócrito já havia afirmado que tudo no universo é fruto do acaso e da
necessidade. JACQUES MONOD retomou este tema e caracterizou o acaso
como o elemento gerador das mudanças e a necessidade como sendo a
responsável pela coerência do processo39. A necessidade gera coerência no
processo e não obrigatoriamente antevisão ou antecipação de um estado
final pré-planejado.
Todos estes processos e propostas permitiram criar a possibilidade de
uma perspectiva realmente pluralista. Nesta visão, a realidade é tida como
uma, diversa e transformável, as posições contrárias são possibilidades de
novas sínteses e a mediação de conflitos é feita com participação e
negociação efetiva40.
Nesta nova perspectiva plural de encarar a realidade, novas lógicas
são possíveis de serem utilizadas, sendo a Teoria dos Jogos uma delas. A
própria Bioética pode utilizar a Teoria dos Jogos na avaliação de problemas.
Nesta Teoria as possibilidades são avaliadas através das alternativas
possíveis, das regras estabelecidas, dos fatos que já ocorreram e do dever-
ser, através das estratégias e táticas utilizadas41.
Segundo DUÍLIO DE ÁVILA BÉRNI existem várias características que
devem ser avaliadas quando um processo está sendo avaliado utilizando-se
a Teoria dos Jogos. A natureza da escolha é a primeira delas. Deve-se
avaliar se os participantes farão uma escolha sincera ou uma escolha
estratégica. O tipo de jogo, se estratégico ou baseado no acaso, ou de azar,
como se diz coloquialmente. A condição de entrada no jogo pode ser
considerada fraca, quando o participante pode optar por jogar ou não, ou
forte quando existe coerção impedindo a manifestação de sua vontade. A
quantidade de jogadores e o número de estratégias possíveis são duas
outras características. A determinação ou indeterminação na maneira de
jogar é importante de ser caracterizada. A forma de distribuir os recursos
advindos do jogo pode assumir três modos básicos: jogos de soma zero,
quando um ganha e outro perde obrigatoriamente, jogos de soma positiva,
quando existe a possibilidade de todos os participantes ganharem, e jogos
de soma negativa, quando todos podem perder. Os participantes podem ter
estilos de interação colaborativo ou não-colaborativo. As suas interações

39 MONOD J. O acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes, 1989:5,


40 MORIN E. A Cabeça Bem Feita. 5ed Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 2001.
41 CIRNE-LIMA C. A Herança de Platão. In: CIRNE-LIMA C, HELFER I, ROHDEN L. Dialética, caos e

complexidade. São Leopoldo: UNISINOS, 2004:72-73.

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podem ser estáticas ou dinâmicas. As ações desempenhadas no jogo podem


ser simétricas ou assimétricas. As movimentações podem ser ordenadas de
forma que as decisões sejam seqüenciais ou simultâneas. As informações
disponibilizadas podem ser perfeitas ou imperfeitas, nas decisões
seqüenciais ou então completas ou incompletas nas simultâneas. A condição
de equilíbrio do jogo pode basear-se em chances iguais, que é denominada
de estratégia pura, ou desiguais. Caracterizando uma estratégia mista42.
Todas estas características podem ser transpostas às questões avaliadas pela
Bioética.
Uma importante questão que não pode ser esquecida é que mesmo
havendo a avaliação analítica das características de um processo existem
dois fatores que sempre influenciam o processo de tomada de decisão, que
são o sistema de crenças e os desejos das pessoas envolvidas. Assumir estes
dois fatores amplia em muito a complexidade dos problemas, pois cada um
dos participantes pode ter crenças e desejos peculiares e concorrentes. O
chamado modelo racional para tomada de decisões, proposto por
FRANCISCO ARAÚJO SANTOS incorpora estes dois elementos que podem
provocar alterações desde a etapa de percepção das evidências que geram a
necessidade de tomar uma decisão43.
Finalizando as questões referentes a interdisciplinaridade, já estavam
presentes desde o início das discussões mais sistemáticas sobre a Bioética.
VAN RENSSELAER POTTER, no seu primeiro artigo, publicado em 1970,
afirmava que “esta nova ética (bioética) pode ser chamada de ética
interdisciplinar, definindo interdisciplinaridade de uma maneira especial
para incluir tanto a ciência como as humanidades, mas este termo é
rejeitado pois não é auto-evidente”44. Mais recentemente, ONORA O’NEALL
ressaltou ainda mais esta característica quando definiu que a “Bioética não é
uma disciplina, nem mesmo uma nova disciplina; eu duvido se ela será
mesmo uma disciplina. Ela se tornou um campo de encontro para
numerosas disciplinas, discursos e organizações envolvidas com questões
levantadas por questões éticas, legais e sociais trazidas pelos avanços da
medicina, ciência e biotecnologia”45.
Os problemas propostos para reflexão bioética ficam mais claros
quando discutidos dentro de uma perspectiva interdisciplinar. Muitas das
ferramentas apresentadas – convergência, divergência, realimentação

42 BÉRNI DA. Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso, 2004
43 SANTOS FA. A malha técnico-científica. Porto Alegre: UFRGS, 1998.
44 POTTER VR. Bioethics, the science of survival. Perspectives in biology and medicine 1970;14:127-153.
45 O’NEALL O. Autonomy and Trust in Bioethics. Cambridge: Cambridge, 2002:1.

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positiva e negativa, homeostase, homeorrese, processos de tomada de


decisão – podem facilitar a compreensão e auxiliar na busca de possíveis
soluções.

6 – A B IOÉTICA E A C OMPETÊNCIA I NTERCULTURAL


A competência intercultural poderia ter sido incluída na própria
questão da interdisciplinaridade, pois é fruto do reconhecimento da
humildade e da tolerância entre diferentes grupos e culturas. A Bioética tem
que assumir esta perspectiva intercultural de compreensão da realidade
para poder ser utilizada de forma conseqüente e abrangente.
Um dos maiores estudiosos na questão intercultural é GEERT
HOFSTEDE. Em seus estudos ele conseguiu caracterizar cinco pontos básicos
que diferenciam ou igualam as culturas nacionais: a relação com a
autoridade; a relação do próprio indivíduo com a sociedade; o conceito
individual de masculinidade e feminilidade; s formas de lidar com conflitos
e incertezas e a perspectiva de longo prazo46.
Um grande número de populações de diferentes países já foi avaliado
através destas características obtendo-se resultados bastante inovadores. Em
todos os países também existem peculiaridades culturais regionais que
também devem ser consideradas. O importante é lembrar que não existe um
só modo de encarar a realidade que seja considerado correto. A pluralidade
deve ser igualmente aqui considerada como fundamental, contudo, sem cair
num relativismo onde tudo é considerado como válido, desde que
respaldado por uma cultura local.

7 – A B IOÉTICA E O S ENSO DE H UMANIDADE


JB SCHNEEWIND descreveu que as interações entre seres humanos
migraram de um comportamento egoísta, onde o outro é utilizado por mim
para atingir aos meus objetivos, para o altruísmo, quando um indivíduo se
doa integralmente ao outro. No dizer de AUGUSTO COMTE, criador do
termo, altruísmo é “viver para outrem”. Mas existe um estágio posterior
onde não há nem o uso nem a doação, mas sim uma troca sincera entre os
participantes, quando ocorre a solidariedade47.
ANDRÉ COMTE-SPONVILLE definiu “Bioética, como se diz hoje, não é
uma parte da Biologia; é uma parte da Ética, é uma parte de nossa

46 HOFSTEDE G. Cultures and organizations. New York: McGraw-Hill, 1997:3-19.


47 SCHNEEWIND JB. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001.

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responsabilidade simplesmente humana; deveres do ser humano para com


outro ser humano, e de todos para com a humanidade”48.
Este senso de humanidade é inerente e fundamental à Bioética. Pensar
Bioética é pensar de forma solidária, é assumir uma postura íntegra frente
ao outro e, conseqüentemente, frente à sociedade e à natureza.
Com base nestas colocações a respeito da definição de POTTER para
uma Bioética Profunda, e retomando a definição inicial de JAHR, é possível
afirmar que a Bioética é uma reflexão compartilhada, complexa e
interdisciplinar sobre a adequação das ações que envolvem a vida e o viver.

48 COMTE-SPONVILLE A. Bom dia, angústia! São Paulo: Martins Fontes, 1997:61.

117
O MÉDICO E O CRIME DE VIOLAÇÃO DE
SEGREDO PROFISSIONAL: BREVE ANÁLISE
DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL
DO ART. 154 DO CÓDIGO PENAL
P AULO V INICIUS S PORLEDER DE S OUZA *
L UCIANA T RAMONTIN B ONHO **
J OÃO A LVES T EIXEIRA N ETO ***

Resumo: O artigo visa a analisar dogmaticamente o crime de


violação de segredo profissional previsto no art.154 do
Código Penal brasileiro. Ademais, são referidas algumas
decisões dos tribunais sobre o tema.
Palavras-Chave: médico; violação; segredo profissional;
crime; art.154 do CP.
Sumário: 1 – Considerações gerais; 1.1 A relação médico-
paciente.

Para abordarmos o segredo ou sigilo profissional do médico e toda a


problemática que o cerca, imperioso é definirmos a relação onde será
estabelecida a gênese deste segredo, a relação médico-paciente, pois é a
partir desta relação que surge a necessidade e o dever de manutenção do
segredo médico. Segundo CONSTANTINO, pode-se observar dois aspectos
característicos essenciais envolvidos na relação médico-paciente: “que a
relação médico/paciente se origina de uma necessidade preestabelecida;
que a relação médico/paciente determina uma função distinta a cada um de
seus figurantes”1.

* Doutor em Direito (Univ. de Coimbra/Portugal); Professor adjunto de Direito Penal (PUCRS);


Advogado.
** Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS); Especialista em Direito e Processo Penal

(ULBRA/RS); Advogada.
*** Acadêmico de Direito (PUCRS).
1 CONSTANTINO, L. Médico e Paciente: questões éticas e jurídicas. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p.57.

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Por conseguinte, esta necessidade preestabelecida deve ser entendida


como a busca do tratamento ou da cura ao mal incidente na saúde mental
ou física, ou mesmo do bem-estar biopsicossocial. A distinção na função dos
protagonistas desta relação se dá na medida em que o paciente deve receber
o tratamento, enquanto o médico deve ofertá-lo ou indicá-lo. Tal função
exercida pelo médico lhe permite dispor de certo poder perante o paciente,
detendo informações que estarão ligadas direta ou indiretamente ao mal ou
ao motivo que deu origem ao tratamento.
Para a classe médica, o segredo é algo que não se pode dissociar do
exercício da sua profissão. No dizer de GONZAGA2, pelas peculiares
condições em que exerce o seu mister, o médico tem freqüentes vezes diante
de si, abertos em leque, informes íntimos da mais variada qualidade, além
disso, precisa atender, também, ao prestígio social da sua profissão,
destinada a servir às causas da saúde coletiva. Nem sempre o diagnóstico
da moléstia ou da lesão física sofrida pelo paciente será o fato que este
deseja manter em segredo. Em alguns casos, o que se pretende manter
escondido do domínio público são as circunstâncias que ensejam o
surgimento da moléstia ou da lesão3, ou mesmo as condições gerais de
saúde do paciente4.

1.2 O Segredo/Sigilo Médico


O segredo/sigilo médico é um procedimento típico e inerente às
profissões ligadas às ciências médicas. A natureza confidencial do
relacionamento médico-paciente é aceita como da maior relevância e
exigida pela sociedade como forma de proteção5. É de interesse social que os
fatos da vida privada revelados pelos pacientes sejam resguardados,
ocultados, isto é, sejam mantidos em segredo pelo médico, pois, do
contrário, sem esse sigilo, poucas pessoas se arriscariam a procurar ajuda
desses profissionais6. Desde os primórdios da história, no mais remoto e
respeitado documento médico, o juramento de HIPÓCRATES (séc. V a.C.),

2 GONZAGA, J. Violação de segredo profissional. São Paulo: Max Limonad, 1976, p. 85-96.
3 BARROS, M. Sigilo Profissional. Reflexos da violação no âmbito das provas ilícitas. Revista dos
Tribunais 733 (1996), São Paulo: Revista dos Tribunais, p.423.
4 Para CAPELO DE SOUSA (O direito geral de personalidade, p.325, nota 819), a saúde de uma pessoa faz

parte da individualidade privada do ser humano, sendo, por isso, ilícitas “as divulgações e as
publicações de doenças de que sofrem as pessoas”.
5 FRANÇA, G. Comentários ao código de ética médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1997, p.125.
6 Similar, CAPEZ, F. Curso de direito penal: parte especial (vol.2). São Paulo: Saraiva, 2006, p.364.

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temos notícia da existência do sigilo/segredo médico, in verbis: “O que, no


exercício ou fora do exercício e no comércio da vida, eu vir ou ouvir, que
não seja necessário revelar, conservarei como segredo”7.
Por um lado, o sigilo/segredo médico é um direito que assiste ao
profissional da saúde (CF, art. 5º, XIV), quando for necessário ao exercício
profissional. Ademais, vale lembrar que o livre exercício da medicina trata-
se de um direito de liberdade por excelência (CF, art. 5º, XII). Neste sentido,
o Código penal optou por incluir o crime de violação do segredo
profissional no capítulo dos crimes contra a liberdade, entendendo a
doutrina que o art.154 do diploma penal visa tutelar um importante aspecto
da liberdade individual8.
Por outro lado, o segredo médico também é um dever que cabe aos
profissionais da medicina no sentido de resguardar a intimidade dos
pacientes. Dever – deontológico9 e legal – para o médico, e ao mesmo tempo
um direito para o paciente no que se refere à proteção da sua intimidade.
Aliás, a Carta Magna assegura o sigilo da vida íntima e privada dos
pacientes, dispondo que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas” (CF, art. 5º, X)10.
Desta forma, o segredo médico deriva do direito à intimidade, sendo
uma subespécie deste. Noutras palavras, o sigilo é uma projeção específica
ou uma manifestação particular da intimidade11. Nesta senda está COSTA
JÚNIOR, que ao falar da proteção penal do segredo profissional refere: “a
intimidade foi sem dúvida protegida, mas de forma mediata e insuficiente.
Mediata, porque o objetivo do preceito foi o resguardo do segredo ao
confidente necessário, e a intimidade, que é o todo de que é parte o segredo,

7 DINIZ, M.H. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 565.
8 PRADO, L. R. Curso de direito penal brasileiro: parte especial (vol.2). São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p.362; BITENCOURT, C. Tratado de direito penal: parte especial (vol.2). São Paulo: Saraiva, 2007,
p.444; CAPEZ, Curso de direito penal (vol.2), p.364.
9 O sigilo médico também é protegido por normas deontológicas, v. Código de Ética Médica (CFM,

Resolução 1.246/1988, arts.11, 102); CNS, Resolução 196/1996, art.IV.1, g; VII.13, c).
10 Esta tutela constitucional do direito à intimidade segue uma tendência protetiva já iniciada na

Declaração Universal dos Direitos humanos, que no seu art. 12 reza:“ninguém será objeto de
interferências arbitrárias em sua vida privada, família, domicílio ou correspondência, nem de
ataques à sua honra ou reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques”.
11 Segundo CAPELO DE SOUZA (O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Ed, 1995, p.318,

nota 808), a proteção da intimidade da vida privada abrange quer as relações vivenciais de cada
homem consigo mesmo, quer suas relações convivenciais com certas e determinadas pessoas”.

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só indiretamente vem a ser protegida”12. Na realidade, “a esfera de segredo


é o núcleo mais profundo da intimidade, que engloba a aspiração individual
de conservar intocadas a tranqüilidade de espírito, a paz interior, fatalmente
perturbadas pela publicidade ou intromissão alheia. Por outra parte,
embora o segredo se refira normalmente a fatos integrantes da área de
intimidade do indivíduo (...) pode também envolver aspectos outros alheios
à personalidade do interessado, mas que este queira manter ocultos”13.
Reconhecendo a importância dos segredos profissionais e os direitos e
deveres a ele inerentes, o ordenamento jurídico brasileiro exclui os médicos
da obrigação de depor em juízo. De acordo com o CPP, “são proibidas de
depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão,
devam guardar segredo, salvo se desobrigadas pela parte interessada,
quiserem dar o seu testemunho” (art. 207). O CC determina que “ninguém
pode ser obrigado a depor sobre fato a cujo respeito, por estado ou
profissão, deva guardar segredo (art. 229, I). No mesmo diapasão dispõe o
CPC que a parte e a testemunha não são obrigadas a depor de fatos a cujo
respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo” (art. 347, II; 406, II
respectivamente). Já em seu artigo 363, o CPC estabelece que “a parte e o
terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa: (...) IV - se a
exibição acarretar a divulgação de fatos, a cujo respeito, por estado ou
profissão, devam guardar segredo”. Enfim, e quanto à exibição de
documentos especificamente, é desobrigado o médico de exibir prontuários,
exames e outros se isto lhe representar, ou ao paciente, perigo de ação penal
(art. 363, inciso III, in fine). Portanto, tanto no processo penal quanto no
processo civil os médicos estão desobrigados de testemunhar revelando
dados confidenciais do paciente, ou seja, violando o segredo médico.
Dito isso, num sentido amplo, pode-se definir segredo ou sigilo
médico como o direito-dever de não serem revelados a terceiros fatos ou
informações confidenciais obtidas em razão de confiança na relação médico-

12 COSTA JR., P. O direito de estar só: a tutela do direito à intimidade. São Paulo: Siciliano Jurídico, 2004,
p. 109. Para este autor o direito à intimidade é: “(...) o direito de que dispõe o indivíduo de não ser
arrastado para a ribalta contra a sua vontade. De subtrair-se à publicidade e de permanecer
recolhido na sua intimidade. Diritto alla riservatezza, portanto, não é o direito de ser reservado, ou
de comportar-se com reserva, mas o direito de manter afastado dessa esfera de reserva olhos e
ouvidos indiscretos, e o direito de impedir a divulgação de palavras, escritos e atos realizados
nessa esfera de intimidade” (idem, ibidem, p.54).
13 PRADO, Curso de direito penal (vol.2), p.363.

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paciente14. Mais estritamente, entende-se por segredo médico “o silêncio que


o profissional da medicina está obrigado a manter sobre fatos de que tomou
conhecimento no exercício de seu mister, e que não seja imperativo
revelar”15.

2 - A NÁLISE D OUTRINÁRIA
O sigilo profissional do médico é um dever inerente ao desempenho
da profissão, caracterizando a sua violação, infração ética, civil16 e penal.
Dispõe o artigo 154 do Código Penal, que constitui crime de violação
de segredo profissional médico: “revelar, sem justa causa, segredo de que
tenha ciência em razão de (...) profissão, e cuja revelação possa produzir
dano a outrem”. A pena é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou
multa.

2.1 Tipo Objetivo

2.1.1 Bem jurídico


Bem jurídico-penal é todo valor digno e necessitado de tutela penal17.
O bem jurídico protegido pelo tipo em questão é sigilo (ou segredo) que foi

14 Assim, para que possa haver confidencialidade é preciso que exista confiança do paciente no
médico. Neste sentido, está o pensamento de STYFFE, referido por LOCH: “la confidencialidad implica
un presupuesto – la confianza – que un individuo tiene de que cualquier información compartida será
respetada y utilizada solamente para el propósito para el cual fue revelada. Así, una información
confidencial es tan privada como voluntariamente compartida, en una relación de confianza y de fidelidad.”
(STYFFE apud LOCH, J. La confidencialidad en la asistencia a la salud del adolescente. Porto Alegre:
Edipucrs, 2002, p. 41.
15 FRANÇA, Comentários ao código de ética médico, p.125. Para CAPELO DE SOUSA (O direito geral de

personalidade, p.331, nota 832), “o segredo profissional assenta numa relação de confiança e proíbe
ao destinatário que revele ou se aproveite daquilo que lhe é confidenciado em razão da sua
profissão”.
16 Segundo CAVALIERI FILHO, embora raros na jurisprudência os casos de responsabilidade médica

por violação de segredo profissional, nada impede uma ação com tal fundamento em busca de
indenização por dano moral. E assim é porque o médico tem o dever ético e legal de guardar
segredo sobre fatos de que tenha tomado conhecimento no exercício de sua atividade profissional.
A violação desse segredo, quando não acarreta também danos materiais, ofende o direito à
intimidade, um dos sagrados direitos da personalidade. É cabível, portanto, juridicamente, a
responsabilização civil caso haja dano material ou moral ao paciente que tiver os seus dados
clínicos tornados públicos que tenha lhe causado algum dano (CAVALIERI FILHO, S. Programa de
Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 399).
17 SPORLEDER DE SOUZA, P.V. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para a

compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 140,
nota 5. Entende-se pela expressão todo valor aqueles objetos ideais que revelados numa determinada

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informado e confiado ao agente em razão da profissão deste (sigilo/segredo


profissional). Segredo significa “todo informe que, conhecido apenas por seu
titular ou por número restrito de pessoas”, não pode ou não deve ser
revelado a outrem18.

2.1.2 Sujeito ativo e sujeito passivo


Sujeito ativo do crime de violação de segredo profissional médico é o
médico. Todavia, podem, igualmente praticar esses crimes os seus
auxiliares ou ajudantes (enfermeiros, secretárias, estagiários, estudantes,
etc.), desde que tenham conhecimento do segredo no exercício de suas
atividades. Para BITENCOURT “trata-se de uma modalidade muito peculiar
de crime próprio, uma vez que a condição especial não se encontra no
sujeito ativo, mas na natureza da atividade, que lhe possibilita ter ciência do
segredo profissional”19. Enfim, costuma-se designar os sujeitos ativos deste
crime profissional como confidentes necessários porque, em razão da natureza
de sua atividade específica, estes agentes normalmente tomam
conhecimento de confidências e informações particulares dos pacientes.
Noutras palavras, os médicos são confidentes necessários porque sua
profissão não pode ser desempenhada sem que tenham conhecimento de
certos segredos do paciente20.
Sujeito passivo é a pessoa (física) a quem pertencem os dados
confidenciais que foram informados ao agente (médico), isto é, o paciente
interessado na conservação do segredo. No entanto, como adverte PRADO, a
pessoa que transmite o segredo ao agente nem sempre é o titular do bem
jurídico protegido. É o que ocorre, por exemplo, quando o médico descobre
a doença do marido de sua paciente através desta, vindo posteriormente a
revelá-la21.

2.1.2 Conduta
O núcleo do tipo é o verbo revelar, que significa comunicar, transmitir,
contar a terceiros, sendo suficiente que a revelação seja feita a uma única

realidade sociocultural são considerados aptos a satisfazer as necessidades humanas em dado


contexto histórico (idem, ibidem, p.140).
18 PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.366.
19 BITENCOURT, Tratado de direito penal (vol.2), p.445.
20 Nesse sentido, PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.364-365.
21 PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.365.

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pessoa. No entanto, a conduta revelar tem uma abrangência mais restrita do


que a de divulgar, pois esta exige um número indeterminado de pessoas22. A
conduta típica é comissiva, podendo ser praticada de várias maneiras
executórias (oral, escrita, por gestos, fotografias, desenhos, imagens, etc.)
desde que idôneas à revelação do segredo23.

2.1.3 Objeto material


É a pessoa que tomou conhecimento do segredo que não pode ser
revelado. A revelação do segredo pode se concretizar documentalmente ou
oralmente. No entanto, é indiferente o modo como este terceiro teve
conhecimento do segredo (p.ex., pode ter lido o prontuário médico, ter
ouvido o médico falar, etc.).

2.1.4 Elementos descritivos


São dois elementos descritivos previstos no tipo: segredo24 e profissão. O
termo profissão significa “toda atividade, pública ou particular, habitual e
especializada, através da qual se prestam serviços a terceiros”25. Ademais,
“o exercício profissional normalmente está submetido ao preenchimento de
certas exigências regulamentares impostas pelo Poder Público (v.g.
obtenção de diploma, registro profissional etc.) e tem fins lucrativos”26.

2.1.5 Elementos normativos


Para o crime em questão se configurar, é indispensável que quando
da revelação do segredo profissional não tenha ocorrido justa causa. A
expressão “sem” é um elemento normativo negativo do tipo27. Se ausente
este elemento, afasta-se a tipicidade do fato delituoso. Por sua vez, o termo
“justa causa” constitui um elemento normativo jurídico e extrajurídico,
simultaneamente, pois a justa causa pode ser legal, ética, ou decorrente de
consentimento.

22 Cf. BITENCOURT, Tratado de direito penal (vol.2), p.445.


23 Cf. PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.365
24 Sobre o significado do termo segredo, vide 2.1.1.
25 PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.364.
26 Idem, ibidem.
27 A respeito dos elementos normativos negativos do tipo, v. SPORLEDER DE SOUZA, Breves reflexões

sobre os elementos normativos negativos do tipo, Revista Jurídica 339 (2006), p.73 e ss.

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a) Justa causa legal


A regra de o médico manter sigilo não é absoluta28. Da leitura do
artigo 154 do CP observa-se que há situações em que o médico está isento
de guardar o segredo profissional e que tornam a conduta atípica; são os
casos em que houver justa causa, uma elementar do tipo penal. Assim, o
segredo médico pode ser revelado desde que haja justa causa, mas a
revelação deve circunscrever-se ao limite do estritamente necessário.
Segundo BITENCOURT “as ‘justas causas’ por excelência decorrem de lei”29. A
lei determina diversas circunstâncias que afastam o dever do médico de
manter sigilo profissional, permitindo-se a eventual revelação de um fato
considerado confidencial; são os casos de justa causa impostos pelo dever
legal (justa causa legal). Por conseguinte, o dever de guardar segredo pelo
médico pode ser quebrado em situações especiais quando estiver em jogo
outro interesse relevante, como, por exemplo, salvar a vida do próprio
paciente ou de outra pessoa a ele ligada; notificar a doença infecto-
contagiosa; apurar fato delituoso; realizar perícias médico-legais e outras
requisições da justiça30.
Na lei penal, são casos de justa causa legal: a) a notificação de doença
(art. 269 do CP); b) a notificação de esterilização cirúrgica (art. 16 da Lei
9.263/1996; c) a comunicação de crime no exercício da medicina ou de outra
profissão sanitária (art.66, II do Decreto-Lei 3.688/41 (Lei de Contravenções
Penais); d) as causas excludentes de tipicidade (art. 20 e 1º do CP), de
ilicitude (art. 23, I, II e II) e de culpabilidade (arts. 21, 22, 28 do CP). Na lei
extrapenal podemos mencionar como casos de justa causa: a) o art. 169 da
CLT; b) o art. 15 da Lei 7.036/1944; c) o art. 186 da Lei 8112/1990. Todas elas
são hipóteses nas quais o médico está liberado do dever de manter sigilo
quanto aos dados e informações obtidas de seu paciente, pois, na realidade,
ele está cumprindo uma imposição legal. Por outro lado, se o médico não
atender a essas disposições legais, em alguns casos, ele poderá ser
responsabilizado penalmente pela prática de outras infrações penais
inclusive. Por fim, é importante salientar que o instituto da justa causa não

28 Para MAGALHÃES NORONHA, a justa causa funda-se na existência de estado de necessidade: é a


colisão de dois interesses, devendo um ser sacrificado em benefício do outro; no caso, a
inviolabilidade dos segredos deve ceder a outro bem interesse. Há, pois, objetividades jurídicas
que a ela preferem, donde não ser absoluto o dever do silêncio ou sigilo profissional (MAGALHÃES
NORONHA, E. Direito penal (vol.2). São Paulo: Saraiva, 1981, p.209).
29 BITENCOURT, Tratado de direito penal (vol.2), p.447.
30 CAVALIERI FILHO. op. cit., p. 399.

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deve servir para obrigar o médico a revelar fato amparado sob o sigilo
profissional. O profissional não pode ser impelido a realizar determinada
conduta sem que a lei o obrigue, do contrário estará incorrendo na prática
do crime estipulado no artigo 154 do CP.
b) Justa causa ética
Além das hipóteses legais, a justa causa também pode decorrer de
imperativos éticos31. Tais hipóteses igualmente afastam a tipicidade do
crime previsto no art. 154 do CP. Porém, o problema que daí surge é a
imprecisão do termo que possibilita uma ampla exegese. De acordo com
França, “pode-se dizer que justa causa [ética] é o interesse de ordem moral
ou social que autoriza o não cumprimento de uma norma, contanto que os
motivos apresentados sejam relevantes para justificar tal violação”32. A
doutrina tem estabelecido algumas situações em que ela estaria presente,
podendo pontuar-se quatro justificativas de revelação que estão baseadas
nos seguintes princípios éticos: a) princípio da não maleficência; b) princípio
da beneficência; c) princípio do respeito à autonomia; e d) princípio da
justiça. O médico poderá revelar informações confidencias do seu paciente
quando, por exemplo: a) “um sério dano físico a pessoa identificável e
específica tiver alta probabilidade de ocorrer, aplicando-se o princípio da
não-maleficência; b) um benefício real resultar dessa quebra de
confidencialidade, por força do princípio da beneficência; c) for o último
recurso, após ter sido utilizada a persuasão ou outras abordagens, em
virtude da prevalência do princípio da autonomia”; d) esse procedimento
for generalizável, ou seja, será ele novamente utilizado em outras situações
com características idênticas, independentemente da posição social do
paciente envolvido, diante do princípio da justiça”33.
Ademais, em algumas normas deontológicas são mencionadas outras
situações relevantes em que o médico poderá revelar o segredo, sem que

31 Em sentido contrário BITENCOURT (op. cit, p.447), para quem “o simples dever moral é insuficiente,
em tese, para constituir justa causa capaz de autorizar a revelação do segredo”. De modo crítico,
Costa Júnior relata uma tendência em ampliar-se o conceito de justa causa com base no interesse
social ou moral, porém ressalta a necessidade de limitar-se esse alargamento com base no
fundamento jurídico, sob pena de incorrer-se na ineficácia da norma que regula o dever de sigilo
(COSTA JÚNIOR, P. Código penal comentado. São Paulo: DPJ, 2005, p. 473).
32 FRANÇA, G. Segredo Médico. In: LANA, L/FIGUEIRO, A. Temas de Direito Médico. Rio de Janeiro:

Espaço Jurídico, 2004, p. 373.


33 DINIZ, O estado atual do biodireito, p. 578.

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haja infração ética e/ou penal. O Código de Ética Médica prevê em seu
artigo 11° que “o médico deve manter sigilo quanto às informações
confidenciais de que tiver conhecimento no desempenho de suas funções. O
mesmo se aplica ao trabalho em empresas, exceto nos casos em que seu silêncio
prejudique ou ponha em risco a saúde do trabalhador ou da comunidade” (grifo
nosso). Já o artigo 103 do referido diploma deontológico estabelece que o
médico pode revelar segredo profissional referente a menor de idade
quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente. No mesmo
sentido é o artigo 105, que estatui que o médico pode revelar informações
confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores se o seu
silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade. Outra
hipótese de justa causa ética para a quebra do sigilo médico é a respeitante
aos portadores do vírus da imunodeficiência humana. Conforme parágrafo
único do artigo 2° da Resolução CFM 1.359/1992: “o sigilo profissional deve
ser rigorosamente respeitado em relação aos pacientes com AIDS; isso se
aplica inclusive aos casos em que o paciente deseja que sua condição não
seja revelada sequer aos familiares, persistindo a proibição de quebra de
sigilo mesmo após a morte do paciente. Será permitida a quebra do sigilo
(...) por justa causa (proteção à vida de terceiros: comunicantes sexuais ou
membros de grupos de uso de drogas endovenosas, quando o próprio
paciente recusar-se a fornecer-lhe a informação quanto à sua condição de
infectado)”.
A nosso sentir parece claro que o fundamento ético dos casos onde é
possível e/ou obrigatória a revelação do segredo médico está baseado no
utilitarismo. A justa causa trazida no Código de Ética Médica (art.102) é a
expressão exata de uma ética utilitarista, onde, em nome de um bem maior,
vem a ser tolerada a violação de um segredo. Assim, observamos que a
regra do segredo médico ganha seus limites quando a coletividade restar
prejudicada com tal procedimento34.

34 Não é de hoje que a relação entre temas da Bioética e o utilitarismo é tratada pelos autores, como
se observa na doutrina de CLOTET: “o utilitarismo, como filosofia moral do bem-estar social, de
grande influência na história do pensamento dos Séculos XIX e XX, não pode estar ausente, e de
fato nunca esteve, como mais uma teoria ética que forma parte da construção e desenvolvimento
da Bioética”. Aduz ainda o renomado bioeticista que “o utilitarismo oferece uma razão para
dirimir a questão em caso de conflito, e o agente moral deverá decidir-se por aquela solução que
facilite a maximização do bem ou a minimização do mal” (CLOTET, J. Bioética: uma aproximação.
Porto Alegre: Edipucrs, 2003, p. 164; 166).

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c) Justa causa devido ao consentimento do ofendido


Ocorre consentimento do ofendido quando o sujeito passivo aceita
ofensa a um bem jurídico (disponível) de que seja titular. Ao lado da justa
causa legal e da justa causa ética, o consentimento do ofendido (paciente)
também constitui uma espécie de justa causa que exclui a responsabilidade
penal do agente.
Tratando-se de bem jurídico disponível (sigilo/segredo profissional),
o consentimento do ofendido exclui a adequação típica da conduta de
revelar segredo profissional-médico, afastando a tipicidade do crime em
tela. Todavia, “se vários forem os sujeitos passivos, isto é, interessados na
manutenção do segredo, subsistirá o crime em relação aos que não
consentiram”35, e “em havendo conflito de vontades quanto à conservação
do caráter sigiloso do fato reputa-se desautorizada sua revelação”36. Adita
ainda PRADO que o consentimento poderá ser “absoluto – quando autorizado
o confidente a revelar o segredo a quem quer que seja – ou relativo – se
permitida a comunicação a pessoa ou pessoas determinadas; total – quando
abarca o fato por completo, sem restrições – ou parcial – se consentida a
revelação de parte da informação sigilosa”37.
Ressalte-se, aliás, que no capítulo específico sobre o dever de sigilo, o
Código de ética médica veda ao médico: “revelar fato de que tenha
conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por (...)
autorização expressa do paciente” (grifo nosso). E a Resolução CFM 1.605/2000
prevê que “o sigilo médico é instituído em favor do paciente”,
estabelecendo que “o médico não pode, sem o consentimento do paciente,
revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica” (art. 1º). E o artigo 2º da
aludida norma reza que nos casos do art. 269 do CP, onde a comunicação de
doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a
comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do
prontuário médico do paciente. Outrossim, prevê ainda o artigo 3º que nos
casos de investigação de cometimento de crime o médico está impedido de
revelar segredo que possa expor o paciente a processo criminal. Enfim, a
mesma resolução determina que o médico deverá disponibilizar ao perito
nomeado pelo juiz o conteúdo do prontuário ou da ficha médica, nos casos
em que, durante instrução de processo criminal, for requisitada, por

35 BITENCOURT, Tratado de direito penal (vol.2), p.447-448.


36 PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.368.
37 PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.368.

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autoridade judiciária competente para que neles seja realizada perícia


restrita aos fatos em questionamento (art. 4º).

2.1.6 Consumação e tentativa


Trata-se de crime formal, consumando-se com o ato de revelar a
outrem, independentemente da concretização superveniente do dano.
Quanto ao nexo causal, DELMANTO et al. vislumbra três hipóteses: requer-
se que haja nexo causal entre o conhecimento do segredo e a especial
qualidade do agente em razão da profissão; o segredo pode ter sido
conhecido sem que o interessado o desejasse revelar ao agente, sendo
suficiente o nexo causal; a terceira pessoa que souber do segredo por lhe ter
sido este revelado não incidirá na figura, se o der a conhecer, a menos que
também exista a relação causal que obriga ao sigilo38. A tentativa é
admissível.

2.1.7 Resultado jurídico


Trata-se de crime de perigo concreto, exigindo-se que a revelação
tenha real ou concreta probabilidade de dano/lesão ao bem jurídico
sigilo/segredo profissional. A revelação do segredo “deve ser hábil a
provocar dano – material ou moral, público ou privado, pessoal ou familiar
– àquele que o transmite ao confidente ou a outra pessoa, ou seja, deve
encerrar a possibilidade de prejudicar alguém”39.

2.2 Tipo subjetivo


É o dolo (direto ou eventual) representado pela vontade e consciência
de revelar, sem justa causa, segredo que possa produzir dano a outrem. O
agente deve ter conhecimento de que o fato é secreto e que inexiste justa
causa para sua revelação40, bem como deve estar ciente de que a revelação
possa produzir dano a outrem. Inexiste elemento subjetivo especial.

2.3 Modalidade culposa


Não há previsão típica da forma culposa.

38 DELMANTO, C. et. al. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.334.
39 PRADO, Curso de direito penal brasileiro (vol.2), p.366.
40 CAPEZ, Curso de direito penal (vol.2), p.366.

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2.4 Qualificadoras e causas de aumento de pena


Não há previsão típica de qualificadoras nem de causas de aumento
de pena.

2.5 Pena e questões processuais


Comina-se pena alternativa de detenção, de três meses a um ano, ou
multa. A conciliação, a transação e a suspensão condicional são cabíveis nos
termos dos arts. 72 a 74, 76 e 89, respectivamente, da Lei 9.099/1995.
A ação penal é pública condicionada à representação do ofendido (art.
154, parágrafo único do CP).

3 - A NÁLISE J URISPRUDENCIAL
Primeiramente, a jurisprudência vem respaldando a idéia de que a
obrigatoriedade do sigilo profissional do médico não tem caráter absoluto,
mas a sua quebra para fins de requisição judicial depende das
circunstâncias e particularidades do caso concreto. A requisição judicial, por
si só, não é considerada “justa causa”, motivo pelo qual muitas vezes a
exigência de revelação do segredo médico por este meio constitui
constrangimento ilegal como se pode perceber nas seguintes decisões:
1) “Segredo profissional. Constitui constrangimento ilegal a
exigência de revelação de sigilo e participação de anotação
constante das clínicas e hospitais. Habeas Corpus concedido” (STF –
HC 39.308/SP, 1962).
2) “Segredo Profissional. A obrigatoriedade do sigilo
profissional do médico não tem caráter absoluto. A matéria, pela
sua delicadeza, reclama diversidade de tratamento diante das
particularidades de cada caso. A revelação do segredo médico em
caso de investigação de possível abortamento criminoso faz-se
necessária em termos, com ressalvas do interesse do cliente. Na
espécie o hospital pos a ficha clínica a disposição de perito médico,
que ‘não estará preso ao segredo profissional, devendo, entretanto,
guardar sigilo pericial’ (artigo 87 do código de ética médica). Por
que se exigir a requisição da ficha clinica? Nas circunstâncias do
caso o nosocômio, de modo cauteloso, procurou resguardar o
segredo profissional. Outrossim, a concessão do writ, anulando o
ato da autoridade coatora, não impede o prosseguimento regular

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da apuração da responsabilidade criminal de quem se achar em


culpa. Recurso extraordinário conhecido, em face da divergência
jurisprudencial, e provido. Decisão tomada por maioria de votos”
(STF – RE 91.218/SP, 1981).
3) “Embora a obrigatoriedade do sigilo profissional não se
apresente em caráter absoluto, admitindo exceções, também
esbarra em restrições o poder ou faculdade da autoridade em
requisitar informes ou elementos para instruir processos criminais.
Assim, não se cuidando de crimes relacionados com a prestação de
socorro médico ou de moléstia de comunicação compulsória, em
que fica o profissional desonerado do aludido sigilo, é de se ter por
subsistente cuidando-se de tratamentos particulares, seja no
tocante à espécie de enfermidade, seja quanto ao diagnóstico ou à
terapia aplicada. Em sendo, contudo, a questão sumamente
delicada, somente com a apreciação de cada caso concreto poder-
se-á concluir pela obrigatoriedade ou não de se atender à
requisição judicial ou pela legitimidade da recusa em fornecer os
dados pedidos, considerando-se em tal exame o relacionamento
direto ou não com a infração objeto do processo, a existência ou
não de um justificado estado de necessidade de informação e a
existência ou não de outros meios adequados à obtenção dos
informes’’ (TACRIM/SP – HC – JUTACRIM 38/55)41.
Por outro lado, alguns julgados entendem que o sigilo profissional do
médico sofre exceções que estão previstas no Código de Ética médica, além
do que o sigilo serviria mais para proteger o paciente do que o próprio
médico.
1) “Recurso em mandado de segurança. Administrativo e
criminal. Requisição de prontuário. Atendimento a cota
ministerial. Investigação de queda acidental. Arts. 11, 102 e 105 do
Código de Ética. Quebra de sigilo profissional. Não verificação. O
sigilo profissional não é absoluto, contém exceções, conforme
depreende-se da leitura dos respectivos dispositivos do Código de
Ética. A hipótese dos autos abrange as exceções, considerando que
a requisição do prontuário médico foi feita pelo juízo, em
atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de

41 FRANCO, A. et. al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995, p.1.858.

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crime contra a vida. Precedentes análogos. Recurso desprovido”


(STJ – RMS 11.453/SP, 2003).
2) “Administrativa. Mandado de segurança. ‘Quebra de sigilo
profissional’. Exibição judicial de ‘ficha clínica a pedido da própria
paciente. Possibilidade, uma vez que o ‘art.102 do código de ética
médica’, em sua parte final, ressalva a autorização. O sigilo é mais
para proteger o paciente do que o próprio médico. Recurso
ordinário não conhecido” (STJ – RMS 5821/SP, 1996).
Como já referido, o sigilo profissional do médico não é absoluto, e sim
relativo. Mas a regra é o sigilo ser mantido o mais rigorosamente possível,
cabendo medidas jurídicas (mandado de segurança, hábeas corpus, recurso
extraordinário) ao médico para abster-se de violar o sigilo profissional por
solicitação ou determinação de alguma autoridade administrativa ou
judiciária. Além disso, a Resolução CFM 1.605/2000 prevê em seu artigo 8º
que sempre que houver conflito no tocante à remessa ou não dos
documentos à autoridade requisitante, o médico deverá consultar o
Conselho de Medicina, onde mantém sua inscrição, quanto ao
procedimento a ser adotado.
Por fim, é importante destacar a ressalva que faz BITENCOURT quanto
ao dever de sigilo que deve ser preservado nos casos de intimação dos
médicos para “prestar informações” ou “esclarecimentos”, artimanhas
utilizadas por determinadas autoridades com o fim de burlar a proteção
legal42. Quanto a este ponto, Barros refere que o que mais tem atormentado
nossos tribunais no tocante ao sigilo médico não é propriamente o seu
depoimento testemunhal em juízo, mas sim os desentendimentos que
derivam da recusa por parte de médicos e diretores de hospitais em atender
as requisições feitas por juízes para que sejam apresentadas as fichas
clínicas de pacientes e prontuários médicos43.

42 BITENCOURT, op.cit, p. 448.


43 BARROS, op. cit., passim.

135
A CRIMINALIDADE ECONÔMICA E A
POLÍTICA CRIMINAL: DESAFIOS DA
CONTEMPORANEIDADE *
N EY F AYET J ÚNIOR **

Resumo: Percebe-se, atualmente, no contexto da


criminalidade econômica, um incremento punitivo,
capitaneado por um discurso que acentua a necessidade de
proteção (com maior carga de eficácia) desse bem jurídico
(relações econômicas), em face dos inegáveis interesses
estatais nesse setor social. Entretanto, esse discurso se
entrechoca com os modernos postulados de uma Política
Criminal democrática e racional, pondo em destaque,
portanto, a urgência de serem propostas formas de
contenção da expansão do Direito Penal, especialmente as
que se relacionarem com as diretrizes reducionistas e
minimalizantes da intervenção punitiva.
Palavras-Chave: Direito Penal. Criminalidade econômica.
Sociedade do risco. Política Criminal.

Na compreensão da sociedade globalizada, existem variados pontos


sobre os quais se deve o estudo criminológico assentar. Vou priorizar, nesse
ensaio, a análise da relação, cada vez mais visceral, entre a criminalidade
econômica e a Política Criminal, para noticiar algumas das discussões
enfrentadas pela Dogmática Jurídica, não aborrecendo (assim, ao menos,
espero) tão ilustrado auditório, com maçante abordagem de assunto muito
técnico. Por fim, protestando a minha admiração aos ilustres professores
(em especial ao meu dileto amigo SALO DE CARVALHO) que me

* O presente ensaio corresponde, essencialmente, à palestra proferida na Jornada de Estudos


Criminológicos (que se realizou na PUC/RS, em junho de 2007).
** Advogado. Doutor em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Ciências

Criminais da PUC/RS.

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acompanham, peço-lhes venia para que as minhas palavras sejam


especialmente dirigidas aos alunos.
Inicialmente, tenho de referir, e se trata de verdadeiro lugar comum,
que a criminalidade se apresenta como um estruturante social, sendo,
portanto, por via própria de conseqüência, inerente a qualquer sistema de
regulação da convivência humana. Cuida-se, nesse terreno, da busca de
níveis toleráveis de criminalidade nas sociedades modernas, a fim de se
estabelecer uma coexistência minimamente pacífica e estável.
Com efeito, a pauta de discussão (em diferentes fóruns de debate) tem
sido capitaneada pela elaboração de estratégias de reação social e legal à
criminalidade – especialmente em suas formas de maior peso e expressão.
E, nesse ponto, desde já, afirma-se o compromisso de serem propostas
estratégias vinculadas aos elementos inafastáveis de consolidação e
preservação do Estado democrático de Direito –, ainda que, eventualmente,
isso implique ineficiência, pois o fundamental é garantir a continuidade de
um modelo de convivência democrático ordenado juridicamente.
Assim, vale aqui lembrar que a criminologia, de um lado, analisa,
fundamentalmente, o fenômeno criminal e as suas diferentes formas de
aparição, mas, de outro, não menos importante, avalia a resposta social e
legal ao delito. Faz isso ponderando a qualidade da intervenção que os
diversos sistemas existentes arbitram, bem como as tendências e propostas
do controle social formal. Essa avaliação parte dos postulados
criminológicos, primordialmente aquele que visa ao controle racional do
conflito, com o menor custo social possível.
Em face disso, vou abordar um tema que encerra, sob todos os títulos,
esses pontos, pois, para além de pôr em evidência a disputa entre as
tendências e teorias criminológicas, permite à Política Criminal confrontar o
nível da qualidade da intervenção no que tange ao controle social. (E
procedo a esse recorte em obediência ao tempo de que disponho, para que,
depois, em sendo o caso, possa responder a alguma indagação que me seja
formulada.)
Trata-se de conceber a melhor “tática de contenção” a uma
modalidade específica de criminalidade, que é, pode-se dizê-lo, a
criminalidade par excellence da era globalizada: a criminalidade econômica.

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De fato, no mundo inteiro, e precípua e tardiamente na América


Latina, tem havido importantes discussões (quer no âmbito criminológico,
quer no político-criminal) relacionadas a essa temática.
Há, aproximadamente, duas décadas que as reformas penais – e as
suas correlatas políticas criminais –, no plano internacional, têm sido
influenciadas pelos problemas da criminalidade transnacional e da busca de
meios eficazes para combatê-la1, em cuja categoria criminológica se encarta
a criminalidade econômica, de onde desponta o dilema garantia versus
eficácia ou, em outras palavras, a contenção ou a expansão do Direito
Penal2.
No setor doutrinário, o embate se tem plasmado sob a forma de três
versões básicas: de um plano, a criação de um Direito de Intervenção
(Interventionsrecht); de outro, a adequação do Direito Penal para um “Direito
Penal de duas velocidades” – e variantes –; e, finalmente, o
desenvolvimento de um ‘Direito Penal invasivo ou ampliatório’. Trata-se da
(difícil) busca de uma resposta racional à criminalidade que resulta da
globalização: a nova conjuntura mundial impulsionou o desenvolvimento

1 Cf. ALBRECHT, Hans-Jörg. Criminalidad transnacional, comercio de narcóticos y lavado de dinero. Trad.
Oscar Julián Guerrero Peralta. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2001, p. 11.
GORRIZ NUÑEZ, Elena. “Posibilidades y límites del derecho penal de dos velocidades”. In:
TERRADILLOS BASOCO, Juan María; ACALE SÁNCHEZ, María (coord.). Temas de derecho penal
económico. III Encuentro Hispano-Italiano de Derecho Penal Económico. Madrid : Trotta, 2004, p.
340 descreve que, na atualidade, vários fatores determinaram que “el debate entre las opciones
‘garantía versus eficacia’ quede abierto. O en otras palabras, se nos plantea el dilema entre la
contención o la expansión del Derecho Penal.” Por sua vez, MENDOZA BUERGO, Blanca.
“Exigencias de la moderna política criminal y principios limitadores del Derecho penal”. In:
Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. t. II, 1992. Boletín Oficial del Estado, Madrid:
Ministerio de Justicia (Centro de Publicaciones), p. 279-321, 2002, p. 287, anota que “la tensión en
la que se encuentra el principio de intervención mínima y el entendimiento de la pena criminal
como ultima ratio por un lado, y las tendencias expansivas que pretenden atender a las crecientes
demandas de tutela, por otro, se resuelve claramente a favor de estas últimas.”
2 ALBRECHT, Hans-Jörg. Op. cit., p. 11-2, indica quais são os demais delitos que integram essa
definição: “el comercio de narcóticos, la criminalidad económica y ambiental, la trata de seres
humanos en sus múltiples variantes de contratación ilegal de trabajadores clandestinos,
introducción fraudulenta de inmigrantes, así como comercio de mujeres y niños; también cuentan
el fraude internacional organizado y el lavado de dinero.” Pode-se indicar, como faz SILVA
SÁNCHEZ, Jesús-María. “El derecho penal ante la globalización y la integración supranacional”. In:
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, ano 6, n.° 24, p. 65-78, out.-dez., 1998, p. 67,
que “la delincuencia de la globalización es económica, en sentido amplio, (o, en todo caso,
lucrativa, aunque se pongan en peligro otros bienes jurídicos)”.

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da criminalidade econômica3 e evidenciou que os sistemas penais,


considerados individualmente, são ineficazes para responder ao desafio
lançado por essa modalidade específica da criminalidade, reclamando, por
isso, além de tudo, a necessária unificação dos sistemas legais (pelo menos
de forma parcial).
Realmente, estamos em face de fenômenos transnacionais que devem
ser enfrentados pelos Estados nacionais4, o que implica contornos mais
complexos e significativos à questão, ou seja, não devem ser menosprezadas
as dificuldades que a harmonização5 de diferentes concepções jurídicas
positivas encerra6.

3 RODRIGUES, Anabela Miranda. “Criminalidade organizada — que política criminal?”, p. 191-208.


In: Globalização e Direito. Coimbra: Coimbra; Boletim da Faculdade de Direito: Universidade de
Coimbra, 2003, p. 199, afirma que “a criação de grandes mercados económicos e a construção de
espaços abertos entre Estados, com a livre circulação de mercadorias, de capitais e de serviços e,
naturalmente, também de pessoas, são, sem mais, condições ‘óptimas’ de desenvolvimento e
expansão de uma criminalidade cujas características principais são exactamente a organização, o
poder económico e a internacionalização”.
4 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. “El derecho penal ante la globalización y la integración

supranacional”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 70, sob esse enfoque, afirma que “El
objetivo fundamental del Derecho penal de la globalización es (…) eminentemente práctico. Se
trata de proporcionar una respuesta uniforme o, al menos, armónica a la delincuencia
transnacional, que evite la conformación de paraísos jurídico-penales”.
5 TIEDEMANN, Klaus. La armonización del derecho penal en los Estados miembros de la Unión Europea.

Traduzido por Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 7-8,
enfatiza que “Y es que el Derecho penal expresa de modo más intenso que otras materias jurídicas
la soberanía nacional, soberanía a la que sólo se renuncia con disgusto, aunque esta renuncia sea
meramente parcial, y de este modo — al menos en amplios sectores — el Derecho penal se
presenta como Derecho político, que muestra una vinculación especialmente fuerte a la tradición
y a la conciencia de determinados valores, vinculación que, sin embargo, también se refiere a
emociones y temores fundamentales.” Em reforço, KLAUS TIEDEMANN (Idem, p. 13) ainda
descreve: “Si se tiene en cuenta la multiplicidad de valores culturales y el carácter ampliamente
político del Derecho penal a los que antes se ha aludido, tales propuestas y planteamientos
parecen poco realistas, además de que en el plano institucional de las CE podrían plantearse
objeciones adicionales en atención al principio de subsidiariedad. Lo mismo cabe decir respecto
de la cuestión ulterior o auxiliar acerca de si es la Parte General o la Parte Especial la que
resultaría más adecuada para llevar a cabo una armonización.” Sobre o tema, ver ainda
CARNEVALI RODRÍGUEZ, Raúl. Derecho penal y derecho sancionador de la Unión Europea. Granada:
Comares, 2001, p. 10-20.
6 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial, Tradução e posfácio de Fauzi Hassan

Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 106-7, aponta as extraordinárias dificuldades que o
tema apresenta: “a análise comparada não se limitaria evidentemente apenas aos sistemas
ocidentais; é indispensável trazer também aportes sobre as famílias jurídicas mais distantes como
o direito chinês ou os direitos em si mesmos muito diversificados dos países islâmicos”. E
exemplifica exatamente com o direito econômico: “As convergências positivas são raras (...). É
necessário ainda sublinhar que as convergências se limitam à definição do tipo jurídico de

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Esse, portanto, é o pano de fundo que importa ter presente para que
se possa compreender, em todo o seu significado e expressão, a melhor
forma de intervenção jurídica na abordagem da delinqüência econômica na
perspectiva do Estado social e democrático de Direito.
Nesse enfoque, deve-se, de forma particularmente significativa,
avaliar a (crescente) criminalização de comportamentos relacionados a
infrações ilícito-tributárias sob a ótica da racionalidade (bem como da
proporcionalidade e da mínima intervenção do sistema penal),
considerando, ainda, os motivos pelos quais a interferência do Estado, no
cenário econômico, se acentuou nas últimas décadas, e indicar propostas
concretas de redução do poder punitivo estatal, sem se descurar da
necessidade real de o Estado funcionar como regulador das relações
socioeconômicas, notadamente de uma sociedade globalizada, na qual
grassam e se corporificam diferentes graus (tanto no plano interno como no
externo) de respeito às garantias constitucionais dos cidadãos.
A necessidade, a oportunidade e os limites da utilização do Direito
Penal no combate à moderna criminalidade econômica, em face do atual
Estado social e democrático de Direito, são os eixos centrais de uma
moderna investigação, tendo-se por norte a recomendável racionalização
dos sistemas penais, a partir da vocação restritiva do Direito Penal no
contexto da necessidade de tutela de novos bens jurídicos (em sentido
amplo) na perspectiva de uma sociedade cada vez mais complexa.
Concretamente, percebe-se que o Direito Penal que se constrói na era
globalizada tende a ser um Direito crescentemente unificado, “pero también
menos garantista, en el que se flexibilizarán las reglas de imputación y en el
que se relativizarán las garantías politico-criminales, sustantivas e
procesales”7, no dizer de SILVA SÁNCHEZ, consolidando uma tendência, cada
vez mais forte, que já se vislumbrava nas legislações nacionais, “de modo

infração, a dizer, a descrição dos comportamentos qualificados de descrição ou de contrafação, e,


como decorrência, atribuição de responsabilidade no interior da empresa (noção de
responsabilidade penal do chefe da empresa ou daquele que decide); em contrapartida, as sanções
são muito diferentes, particularmente mais pesadas na China, por exemplo, onde a pena de morte
continua a ser aplicada, malgrado as críticas de muitos acadêmicos, a certos delitos econômicos,
notadamente a corrupção. O mesmo se dá com as regras de processo, muito profundamente
enraizadas nas tradições nacionais para que não divirjam fortemente de um país ao outro”.
7 Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. “El derecho penal ante la globalización y la integración
supranacional”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 66.

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especial en las últimas leyes en materia de lucha contra la criminalidad


económica, la criminalidad organizada y a corrupción”8.
Este caso revela, de forma paradigmática, todas as hipóteses segundo
as quais se descortinam, de modo bastante acentuado, as relações viscerais
entre o Estado e a Economia, fundamentalmente no que diz respeito à
utilização de mecanismos asseguradores de políticas intervencionistas (nas
quais se inserem as ferramentas penais), tema magistralmente analisado por
VICENZO MANZINI9.

8 Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. “El derecho penal ante la globalización y la integración
supranacional”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 66.
9 MANZINI, Vicenzo. Trattato de diritto penale italiano. Torino: Unione Tipografico Editrice Torinense,

1948. v. primo, p. 23-4, anota, de modo abrangente, as relações que se produzem entre o direito
penal e os fenômenos econômicos: “Influenza del diritto penale sui fenomeni economici. — La norma
penale esplicò la sua rigorosa se non sempre efficace disciplina in ogni luogo e in ogni regime sul
fenomeno della produzione della ricchezza. Con precetti inesorabili, con pene atroci si cercò nel
passato di allontanare l’indigenza dalla fonte dei beni, di ovviare all’insufficienza dei prodotti,
alla scarsezza del risparmio; e con aggravamenti inumani si volle provvedere alla sicurezza del
capitale, del lavoro e del prodotto dove e quando la diretta sorveglianza dei privati e dello Stato
non appariva sempre possibile. E non meno crudelmente protetti furono i monopolî e gli altri
privilegi di produzione. Anche oggi il diritto penale appresta le sue sanzioni a tutela della
sicurezza e talvolta anche del modo della produzione. Nei rapporti della distribuzione, allo scopo
di imporre la buona fede nel movimento degli scambi, il diritto penale comminò e commina
sanzioni contro le frodi, aggiungendo la pena alle nullità e alla responsabilità patrimoniale nel
negozî illeciti più immorali e dannosi o pericolosi. Anche in relazione al consumo il nostro diritto
spesso interviene, o con leggi suntuarie come nel passato, ovvero, come ai dì nostri, con le norme
annonarie, con le pene contra la mendicità, con la proibizione di certe forme di consumo diretto
contrarie all’interesse pubblico, o con le sanzioni che assicurano l’attuazione dei così detti
contingentamenti. E però bene a ragione il Worms afferma che, se per la rapidità delle evoluzione
che compongono il movimento economico è permesso di paragonare questo ad un corso d’acqua
torrenziale, le disposizioni penali possono a lor volta considerarsi come le dighe di tale torrente.
Influenza delle dottrine economiche sul diritto penale. — Ma, da dominatore, il nostro diritto
diviene parzialmente dominato dall’economia, quando lo si consideri nelle sue mutazioni storiche
e nel regolamento attuale di parecchi suoi istituti. Fu giustamente osservato che l’economia
politica non nacque per insegnar l’arte di arricchire, ma ebbe origine sopra tutto da questioni
tributarie o doganali, cioè di giustizia distributiva o retributiva. È quindi naturale che i concetti
prevalenti in ciascuna epoca, in questa materia, si trovino riflessi così nei convincimenti etici come
nelle norme penali. Le pene controla importazione delle merci e gli altri ostacoli penali alla libertà
del traffico, e la esorbitante punizione degli incettatori, sono dovute, ad esempio, ai criterî del
sistema mercantile, e uno storico accurato potrebbe agevolmente indicare le mutazioni di volta in
volta apportate al diritto penale dal prevalere dei principî proprî dei sistemi fisiocratico ed
industriale. L’economia politica, influendo grandemente sulle scienze politiche, e quindi sulla
formazione del diritto pubblico generale, riflette anche per questa via i suoi principî sul diritto
penale. Un recente esempio è fornito dalla legislazione relativa alla così detta economia
corporativa, durante il regime fascista. Sotto l’aspetto formale, le normalità economiche relative
alla causalitá produttiva hanno servito a regolare l’istituto della compartecipazione criminosa. I

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A minha hipótese é a de que o poder punitivo é, em largo sentido,


seletivo, na medida em que se exerce fundamentalmente sobre segmentos
sociais desprovidos de poder econômico ou político; conseqüentemente, a
partir dessa linha de intelecção, reduzir o espectro de incidência da
intervenção punitiva é um compromisso com a racionalidade. Afigura-se-
me absurda a idéia segundo a qual se vai superar a seletividade (perversa)
do sistema penal por intermédio de sua expansão para os setores com poder
econômico e político. Corporifica-se a negação do racionalismo – norte que
inspirou, desde os iluministas, a contenção do sistema punitivo.
Entretanto, há um fenômeno crescente na sociedade moderna:
variados e determinados grupos sociais – como forma de autopreservação e,
mesmo, ampliação de direitos sociais arduamente conquistados – têm
reclamado a utilização da disciplina penal como forma de incremento
desses direitos. Assim procedem tanto os movimentos de defesa das
minorias – sexo, raça, idade –, como os relacionados à defesa do ambiente,
do consumidor, dos direitos humanos, etc. Ora, tal fenômeno vem gerando
uma demanda punitiva sem qualquer apoio nos princípios que, na
consolidação do Estado social e democrático de Direito, informam a
construção da sistemática penal: os princípios de mínima intervenção10,

progressi economici e il diritto penale. La scienza della ricchezza, inoltre, promuovendo una
sempre migliore organizzazione economica, e quindi accrescendo il benessere dei singoli e della
società e il valore della personalità e della vita, determina per la libertà dell’uomo un pregio
sempre più grande, di guisa che il limite delle pene, ritenuto necessario e sufficente, è oggi assai
più basso di quello ch’era considerato indispensabile in altre epoche. Ed ecco come l’economia
politica eserciti un’influenza riformatrice non solo sui precetti, ma altresì sulle sanzioni. Si può
affermare, insomma, che con il mutare dei principî economici si modifica in parte ache il diritto
penale obiettivo, nel senso che questo aumenta, diminuisce o muta correlativamente quei precetti
e quelle sanzioni che si riferiscono a rapporti economici. L’economia politica, infine, combattendo
una delle più feconde cause de criminalità, la indigenza, ed accrescendo i mezzi con i quali si può
provvedere ad una efficace prevenzione sociale del reato, viene a rendere meno frequente la
necessità dell’intervento della funzione repressiva”.
10 PASCHOAL, Janaina Conceição. Direito penal: parte geral. Barueri: Manole, 2003, p. 15-7, indica que

o Direito Penal mínimo é informado por alguns princípios basilares, cuja observância auxilia a
não exorbitar do recurso ao Direito Penal, sendo que, “o primeiro deles é o princípio da
subsidiariedade, segundo o qual, antes de recorrer à tutela penal, o Estado deverá lançar mão de
todos os outros meios de controle disponíveis para proteger um bem caro à sociedade. (...) Ainda
no intuito de garantir a mínima intervenção, tem-se que, além de observar o princípio da
subsidiariedade, o legislador precisará respeitar o princípio da fragmentariedade. Esse princípio
determina que, mesmo sendo um bem merecedor de proteção mediante o Direito Penal, nem
todas as lesões a esse bem poderão ensejar a incidência do Direito Penal. (...) Também o princípio
da ofensividade ou lesividade está relacionado à idéia de intervenção mínima. Trata-se de um
princípio que complementa os da subsidiariedade e fragmentariedade, na medida em que
determina que mesmo sendo um bem reputado digno de tutela penal, mesmo que toda e

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subsidiariedade, lesividade; e, igualmente, aqueles diretamente


relacionados com a punição, quais sejam, proporcionalidade,
individualidade e humanidade.
A implementação (ou ampliação) de direitos sociais não se faz
mediante o Direito Penal – que, no mais das vezes, corresponde a uma
resposta meramente simbólica –, mas, sim, por meio de políticas públicas.
Todos sabem das inúmeras e inconciliáveis tendências criminológicas
que conduziram as discussões (acadêmicas, profissionais e políticas) sobre
estes temas, bem como sobre novas propostas existentes. Vou mencionar
algumas, apenas como forma de pôr em evidência o grande leque de
variáveis que o tema ostenta, para, depois, extrair a forma mais adequada
(no contexto da legitimidade) de intervenção punitiva (no que diz respeito à
criminalidade econômica).
Nas últimas décadas, de um modo geral, no setor da Criminologia,
estabeleceu-se certo consenso em relação à idéia de que o Direito Penal se
apresenta como a forma mais drástica de intervenção estatal diante do
indivíduo – haja vista as terríveis conseqüências estigmatizadoras e os
inegáveis efeitos criminológicos que encerra —, com o que se pretendeu
limitar ao máximo sua atuação. Para além disso, a ineficácia absoluta do
efeito ressocializador, aliando-se àquela idéia anterior, fez desenvolverem-
se diversas propostas, que abrangem desde a redução do poder punitivo até
a sua abolição. Nesse quadro, podemos colocar a Criminologia Crítica, de
cuja tendência naturalmente são procedentes as vertentes do Neo-realismo
de Esquerda, do Abolicionismo Penal e do Direito Penal mínimo.
De outro rumo, apesar de todos estes aspectos que matizam o sistema
punitivo, apresentam-se outras propostas que, na contramão dessa idéia
consensual, visam à sua expansão11. Nesse plano, encontra-se,
marcadamente, a tendência do Realismo de Direita.

qualquer ação teoricamente atentatória a esse bem deva ser objeto de criminalização, a efetiva
incidência do Direito Penal fica condicionada à real existência de lesão ou de perigo concreto de
lesão ao bem jurídico tutelado. Cabe consignar que tal princípio deverá ser observado pelo
legislador, no momento da elaboração da norma penal, e pelo magistrado, quando de sua
aplicação. O princípio da insignificância, que admite a não punição de ação que teoricamente se
subsume ao tipo penal, é reflexo direto do princípio da lesividade”.
11 CRESPO, Eduardo Demetrio. “Do ‘direito penal liberal’ ao ‘direito penal do inimigo’”. In: Ciências

Penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: RT, v. 1, p.
9-37, jul.-dez. 2004, p. 13-4, percebe esse fenômeno aparentemente paradoxal, ao destacar que se
produziu o giro no debate, “até o ponto de perder de vista o marco político-criminal recente que
tinha gerado, de modo geral, na minha opinião, uma evolução positiva na humanização do direito
penal. O referido marco foi ‘pulverizado’, mediante sua redução ao absurdo, pela via de um

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Cumpre-me, agora, indicar, brevemente, as novas tendências,


encetadas no contexto de atualidade: com efeito, o desenvolvimento
tecnológico desenfreado e o processo de globalização são os principais
elementos caracterizadores do novo quadro social pós-industrial complexo,
que, desde o final do Século XX, vem se consolidando.
Essa nova realidade, denominada por BECK de “sociedade do risco”12,

crescente recrudescimento punitivo, ao sabor da demagogia política e do espetáculo de mídia”.


(...) “Segundo essa concepção, a preocupação pelas garantias, além do ‘efeito estético’ da
proclamação dos princípios nas Exposições de Motivos, aparece como fruto da ‘falta de
solidariedade’, da ‘maldade’, da ‘falta de visão’, ou, na melhor das hipóteses, da ‘ingenuidade
acadêmica’, de quem se mantém nesse discurso.” (...) “Foi substituído por um programa guiado
por uma fé inquebrantável na capacidade de intimidação das penas – foi introduzida, sem uma
menção explícita, a prisão perpétua; foram recuperadas as penas curtas privativas de liberdade
inferiores a seis meses, e a multirreincidência –, o ‘deslizamento’ em direção a um Direito Penal
do autor, e a limitação do arbítrio judicial.”
12 Considerando a influência direta que a concepção da ‘sociedade do risco’ exerce nas orientações

doutrinárias, principalmente concernente ao movimento dedicado à expansão do Direito Penal,


far-se-á uma breve exposição acerca do tópico. Essa acepção obteve enorme difusão por meio da
obra de BECK, Ulrich. “Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne”. Publicado em
1986, tradução para o espanhol: La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Traduzido
por Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borrás. Buenos Aires: Paidós, 1998, tendo o
emprego da expressão ‘sociedade do risco’ sido amplamente utilizado pela doutrina como
referência do modelo pós-industrial em que vivemos. Em verdade, BECK, Ulrich. La sociedad del
riesgo. Hacia una nueva modernidad. Traduzido por Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa
Borrás. Buenos Aires: Paidós, 1998, p. 28, traça um panorama das novas peculiaridades da
sociedade pós-industrial, caracterizada, principalmente, pelos riscos decorrentes de uma
‘sobreproducción’ industrial, que “se diferencian esencialmente de los de la Edad Media (que a
menudo se les parecen exteriormente) por la globalidad de su amenaza (seres humanos, animales,
plantas) y por sus causas modernas. Son riesgos de la modernización. Son un producto global de
la maquinaria del progreso industrial y son agudizados sistemáticamente con su desarrollo
ulterior.” Destaca, ainda, o autor (BECK, Ulrich. Op. cit., p. 35), que, nas definições dos riscos, há
um rompimento com o monopólio da racionalidade das ciências, uma vez que “la pretensión de
racionalidad de las ciencias de averiguar objetivamente el contenido de riesgo del riesgo se
debilita a sí misma permanentemente: por una parte, reposa en un castillo de naipes de
suposiciones especulativas y se mueve exclusivamente en el marco de unas afirmaciones de
probabilidad cuyas prognosis de seguridad stricto sensu ni siquiera pueden ser refutadas por
accidentes reales.” A par disso, refere BECK, Ulrich. Op. cit., p. 19, que os danos causados pelos
riscos são sistemáticos, irreversíveis e invisíveis, com caráter atemporal e transfronteiriço: “Al
contrario que los riesgos empresariales y profesionales del siglo XIX y de la primera mitad del
siglo XX, estos riesgos ya no se limitan a lugares y grupos, sino que contienen una tendencia a la
globalización que abarca la producción y la reproducción y no respeta las fronteras de los Estados
nacionales, con lo cual surgen unas amenazas globales que en este sentido son supranacionales y
no específicas de una clase y poseen una dinámica social y política nueva.” FERNANDES, Paulo
Silva. “O Direito Penal no amanhecer do século XXI: breves questões à luz do paradigma da
‘sociedade do risco’”. In: Revista Sub Judice: Justiça e Sociedade, n.° 19, p. 111-27, dez., 2001, p. 113,
acrescenta: “a ocasionação ou potenciação destes novos riscos decorre sempre de decisões
humanas, embora como algo que é independente da intenção humana.” No que tange ao âmbito

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propicia o aparecimento de novas demandas sociais, em face do sentimento


generalizado de insegurança que abarca a sociedade13, como destaca SILVA
SÁNCHEZ. Decorrente do surgimento de ‘novos riscos’, influencia de
maneira decisiva a Política Criminal, sendo causa e objeto de uma grande
atividade legislativa. Podemos dizer, portanto, que se configura, hoje, uma
específica “política criminal na sociedade do risco”, estudada, entre outros
autores, por BLANCA MENDOZA BUERGO14.

penal, BECK, Ulrich. Op. cit., p.70, assenta que, na sociedade do risco, não há mais espaço para a
culpabilidade e para a causalidade, mas para uma presunção de causalidade: “la presunción de
causalidad, contenida en los riesgos de la modernización, adquiere aquí un carácter clave. Una
presunción que es difícil si no imposible de demostrar a través de razonamientos teorético-
científicos. Aquí interesa la capacidad de control del proceso de reconocimiento de los riesgos a
través del criterio de la validez de la demostración de causalidad: cuanto más se eleven esos
criterios más se estrecha el círculo de los riesgos reconocidos y mayor es el dique de contención de
riesgos no reconocidos. Aunque también es cierto que aumentan los riesgos detrás de los diques
del reconocimiento. La insistencia sobre la elevación de la validez de los criterios es, entonces, una
construcción altamente efectiva y perfectamente legitimada para contener y canalizar la marea de
riesgos de la modernización; pero con una pantalla de ocultamiento, instalada en ella, que hace
incrementar los riesgos en proporción inversa al ‘des-reconocimiento’ de los mismos. (...) el
llamado principio de causalidad culposa como esclusa para el reconocimiento y el no
reconocimiento de los riesgos. Se sabe que los riesgos de la modernización por su estructura no
pueden ser generalmente interpretados de forma adecuada siguiendo este principio. La mayoría
de las veces no hay un causante del daño, sino precisamente sustancias contaminantes en el aire
que proceden de muchas chimeneas y que por ello se correlacionan frecuentemente con
enfermedades sin especificar, para las cuales siempre hay que considerar una cifra importante de
‘causas’.” Por fim, sobre a concepção de BECK, DIAS, Jorge de Figueiredo. “O Direito Penal entre a
‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade do risco’”, p. 39-65. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais,
São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n.° 33, jan.-mar., 2001, p. 43-4, assevera: “nas suas
implicações com a matéria penal, ele quer pôr em evidência uma transformação radical da
sociedade em que já vivemos, mas que seguramente se acentuará exponencialmente no futuro
próximo. Uma tal idéia anuncia o fim de uma sociedade industrial em que os riscos para a
existência, individual e comunitária, ou provinham de acontecimentos naturais (para tutela dos
quais o direito penal é absolutamente incompetente) ou derivavam de acções humanas próximas
e definidas, para contenção das quais era bastante a tutela dispensada a clássicos bens jurídicos
como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o patrimônio...; para contenção das quais, numa
palavra, era bastante o catálogo puramente individualista dos bens jurídicos penalmente
tutelados e, assim, o paradigma de um direito penal liberal e antropocêntrico. Aquela ideia
anuncia o fim desta sociedade e a sua substituição por uma sociedade exasperadamente
tecnológica, massificada e global, onde a acção humana, as mais das vezes anónima, se revela
susceptível de produzir riscos também eles globais ou tendendo para tal, susceptíveis de serem
produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da acção que os originou ou para eles
contribuiu e de poderem ter como conseqüência, pura e simplesmente, a extinção da vida.”
13 SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. La expansión del Derecho penal. Aspectos de la política criminal en

las sociedades postindustriales, p. 24.


14 MENDOZA BUERGO, Blanca. “Exigencias de la moderna política criminal y principios limitadores

del Derecho penal”. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. T. 2, 1992. Boletín Oficial del
Estado, Madrid: Ministerio de Justicia (Centro de Publicaciones), p. 279-321, 2002, p. 281.

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Nesse cenário, uma importante tendência político-criminal, que se


projeta para o plano legislativo, tem-se caracterizado por uma evidente
expansão do Direito Penal15 (e isto significa: do poder do Estado,
paralelamente à redução paulatina das liberdades civis16, como adverte
CORNELIUS PRITTWITZ), cujos traços primordiais são a crescente proliferação
de novos bens jurídicos (supra-individuais ou institucionais), a
preponderância no ordenamento penal dos delitos de perigo abstrato17,

Esclarece CANCIO MELIÁ, Manuel. “¿Derecho penal del enemigo?” In: JAKOBS, Günther; CANCIO
MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 62-4, que “las características
principales de la política criminal practicada en los últimos años pueden resumirse en el concepto
de la ‘expansión’ del Derecho penal. En efecto, en el momento actual puede convenirse que el
fenómeno más destacado en la evolución actual de las legislaciones penales del ‘mundo
occidental’ está en la aparición de múltiples nuevas figuras, a veces incluso de enteros nuevos
sectores de regulación, acompañada de una actividad de reforma de tipos penales ya existentes
realizada a un ritmo muy superior al de épocas anteriores. El punto de partida de cualquier
análisis del fenómeno que puede denominarse la ‘expansión’ del ordenamiento penal ha de estar,
en efecto, en una sencilla constatación: la actividad legislativa en materia penal desarrollada a lo
largo de las dos últimas décadas en los países de nuestro entorno ha colocado alrededor del
elenco nuclear de normas penales un conjunto de tipos penales que, vistos desde la perspectiva de
los bienes jurídicos clásicos, constituyen supuestos de ‘criminalización en el estadio previo’ a
lesiones de bienes jurídicos, cuyos marcos penales, además, establecen sanciones
desproporcionadamente altas. Resumiendo: en la evolución actual tanto del Derecho penal
material como del Derecho penal procesal, cabe constatar tendencias que en su conjunto hacen
aparecer en el horizonte político-criminal los rasgos de un ‘Derecho penal de la puesta en riesgo’
de características antiliberales.”
15 Fenômeno que se apresenta particularmente severo em se tratando da criminalidade econômica.

Ver, a propósito, TERRADILLOS BASOCO, Juan María. “Globalización, administrativización y


expansión del derecho penal económico”. In: TERRADILLOS BASOCO, Juan María; ACALE SÁNCHEZ,
María (coord.). Temas de derecho penal económico. III Encuentro Hispano-Italiano de Derecho Penal
Económico. Madrid: Trotta, 2004, p. 219. Para o autor (Idem, p. 222), “en el catálogo de causas
presuntamente determinantes de la creciente intervención jurídico-penal en el ámbito económico,
se destaca, como elemento multiplicador, ese nuevo marco convencionalmente denominado
globalización, en el que la represión penal de la delincuencia económica tiende, en opinión de
Silva Sáchez, a ser concebida en términos punitivistas y expansivos, como respuesta a la
extendida exigencia de afrontar más eficazmente la criminalidad.”
16 Cf. PRITTWITZ, Cornelius. “O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo:

tendências atuais em direito penal e política criminal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais,
Revista dos Tribunais, n.° 47, p. 31-45, mar.-abr., 2004, p. 32.
17 Nesse sentido pondera HASSEMER, Winfried. “Rasgos y crisis del Derecho Penal moderno”. In:

Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madrid: Centro de Publicaciones, fasc. I, p. 235-49,
enero-abril., 1992. t. XLV, p. 241-2: “Los instrumentos, de los cuales se sirve el Derecho Penal, se
utilizan para ampliar esta capacidad expansiva del Derecho Penal. Los ámbitos en los cuales se
concentra el Derecho Penal moderno tienen que ver con el individuo sólo de forma mediata. De
forma inmediata se refieren a instituciones o al Estado. El principio de protección de bienes
jurídicos deviene en el Derecho Penal moderno la protección de instituciones. A ello se
corresponde que estos bienes jurídicos, a los cuales se trata de proteger, no son individuales sino

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como pondera WINFRIED HASSEMER, a flexibilização na apreciação do nexo


causal18, fenômeno discutido por ELENA GORIZ NUÑEZ, a diminuição de
categorias como as da tentativa e da consumação, da autoria e da
participação ou do dolo19, tendência observada por PAULO SILVA
FERNANDES, o emprego de expressões e termos ambíguos e imprecisos
(sobretudo na legislação penal econômica20, para justo escândalo de RAÚL
CARNEVALI RODRÍGUEZ), a utilização massiva de leis penais em branco, etc.
Ante essa perspectiva, surge um amplo debate em torno da seguinte
problemática: o atual sistema penal é efetivamente adequado para
responder às perspectivas da realidade social contemporânea, ou se faz
necessária a sua superação e substituição?
A sociedade moderna como um todo, em diversas medidas, se
encontra plasmada por uma fase de desequilíbrio agudo, fruto da crise do
projeto de civilização, sendo que a crise do Direito Penal se insere num
contexto mais amplo, no qual se encontram, em autêntico xeque, vários
fatores supra-estruturais que visam a dar suporte hegemônico à
manutenção do projeto social da modernidade.
A própria crise do Estado-Nação (enfraquecido em conseqüência do
alargamento dos mercados no plano mundial), na dinâmica da consolidação
da sociedade globalizada, transmite bem a elasticidade e a dimensão do

colectivos. Adicionalmente, el legislador formula estos bienes jurídicos de forma especialmente


vaga y amplia (protección de la salud pública, protección de la función de subvención, etc.). (...) El
segundo instrumento del Derecho Penal moderno, el cual sirve claramente a esta ampliación de la
capacidad, es la forma delictiva de los tipos de peligro abstracto.”
18 Cf. GORRIZ NUÑEZ, Elena. “Posibilidades y límites del derecho penal de dos velocidades”. In:

TERRADILLOS BASOCO, Juan María; ACALE SÁNCHEZ, María (coord.). Temas de derecho penal
económico, p. 339.
19 Cf. FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, ‘sociedade de risco’ e o futuro do direito penal,

Coimbra: Almedina, 2001, p. 73.


20 CARNEVALI RODRÍGUEZ, Raúl. Derecho penal y derecho sancionador de la Unión Europea, p. 189-90,

explica o fenômeno: “En efecto, en el Derecho penal es posible observar, la cada vez más frecuente
utilización de preceptos redactados con términos imprecisos y ambiguos. Se ha argumentado que
esta orientación ha sido motivada por razones de adaptación a necesidades político-criminales
cambiantes, además que una taxatividad absoluta, imposibilitaría la resolución de conflictos
sociales. (…) Ahora bien, probablemente esta confrontación se presenta con mayor fuerza en la
esfera del Derecho penal económico – que es, en definitiva, en la que hoy se desenvuelve la CE –,
pues el creciente dinamismo que se aprecia en esta área – en donde los agentes económicos se
destacan por la adopción de nuevos medios delictivos no previstos por el ordenamiento – de
alguna manera ‘impone’ al legislador el empleo de expresiones con una cierto grado de
indeterminación, que autorizan una mayor flexibilidad a la hora de interpretar los mensajes
normativos.”

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problema. Em sua projeção ao campo penal, a crise apresenta-se, de um


lado, essencialmente relacionada às bases de sua legitimação ou de sua
utilidade social; e, de outro, vinculada às coordenadas básicas tradicionais
do sistema penal, expressando-se quer pela inadaptação em face do novo
modelo econômico, quer pela expansão gigantesca a que foi submetido.
Desses fatores advieram, em larga medida, os principais aspectos da crise
do Direito Penal contemporâneo.
De outro rumo, as transformações sociais e as conquistas científicas e
tecnológicas levadas a efeito na dinâmica de consolidação da globalização
econômica acarretaram modificações tanto nas relações sociais nacionais e
internacionais como no próprio mundo capitalista. Foram gerados, de um
lado, o descompasso entre as normas jurídicas existentes e a nova realidade
econômica – o que, de per si, implica a ineficácia normativa do sistema
jurídico –, e, de outro, a crescente deslegitimação do sistema capitalista.
O Direito encontra-se plasmado em uma crise sistêmica, que se
projeta, igualmente, aos domínios do Direito Penal. Em atmosfera de
descompasso entre a realidade socioeconômica e a superestrutura
normativa, viceja (e se desenvolve) a crise pela qual passa o sistema
jurídico, de um modo geral, e o sistema penal, em particular. Nesse,
especialmente, corporifica-se a idéia segundo a qual a estrutura jurídica do
Direito Penal clássico se apresenta blindada às (necessárias) inovações que
se mostram inadiáveis para o enfrentamento de uma nova criminalidade,
sendo urgente o incremento de medidas preventivas e eficientes – ainda que
haja derrogações das conquistas advindas do Estado de Direito – para a sua
contenção.
A reestruturação da sociedade contemporânea – a partir, sobretudo,
do segundo conflito mundial – implicou um novo espectro de conflitos
sociais, conducentes ao surgimento de uma criminalidade à qual a
Dogmática penal tradicional não se mostrou adequada. Diferenciada,
modernizada e transnacional, essa criminalidade emergente pode lesar
tanto os indivíduos quanto os Estados, o que nos leva a discutir se o Direito
Penal tradicional ou nuclear — concebido e desenvolvido especialmente
para a solução de casos interindividuais, com bens jurídicos tradicionais ou
específicos – poderia, sem dissociar-se de seus princípios e,
fundamentalmente, das suas garantias clássicas, responder a conceitos
sociais complexos, numa sociedade de risco, globalizada; ou se ao Direito
Penal se deveria conceder nova feição, aprimorando-o para adequá-lo a essa

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nova etapa da economia mundial, com derrogação de determinadas


garantias, oportunizando-se uma maior eficácia na luta contra essa
criminalidade, que é basicamente a delinqüência transnacional econômica
organizada.
E aqui posso empreender a formulação de uma proposta que faça
frente a essas alternativas. Segundo tal proposta, seria possível
prescindirmos, nalguns tipos penais específicos, de núcleos penais para a
abordagem de determinados comportamentos, indicando-se a melhor forma
de equação destas necessidades.
Diante da inadequação do Direito Penal clássico para responder aos
desafios lançados pela sociedade pós-industrial, avaliamos a possível
alteração de sua postura em face da criminalidade atual, traduzida na
eventualidade de se criar um direito de exceção, de cunho intervencionista,
com a exacerbação de medidas coercitivas e de intervenção vertical que
violem, se preciso, direitos fundamentais. Na realidade, parece-nos que se
intensifica mais e mais uma tendência – pelo menos no âmbito das
legislações relacionadas à criminalidade organizada e econômica –
direcionada à formulação de um Direito Penal menos garantista, tanto
material quanto processualmente. Amplia-se também essa tendência a que
se busque enfrentar mais eficazmente a criminalidade.
O quadro que se descortina permite a constatação de que, entre a
eficácia (no espectro da utilidade social) e a garantia (protetiva e limitadora
da intervenção punitiva) do Direito Penal de nossos dias, é crescente o
tensionamento.
Quanto a essa discussão, posso sustentar uma via própria, crendo que
a solução penal de determinados conflitos deve ser abandonada, na esteira
de algumas propostas que, em diferentes medidas, têm aspectos
inegavelmente assemelhados.
Não se pode perder de vista que o Direito Penal moderno – nascido
durante a Ilustração, quando da estruturação do Direito Punitivo moderno,
com a edificação dos primeiros Estados de Direito – vivenciou uma situação
de tensão permanente ou de verdadeira crise, cuja manifestação se projeta
ao Direito Penal contemporâneo, não havendo, em doutrina, uma
explicação uniforme por intermédio da qual se possa bem determinar o
fenômeno.

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O que se busca, em todos os setores vinculados ao Direito Penal


(Dogmática Penal, Política Criminal, Filosofia Penal, etc.), é um quadro de
justificação, de validade; em última análise, a demonstração de sua
legitimação, por meio da qual se possa bem compreender a sua necessidade
social.
Posta assim a questão, o grande ponto de contraste do Direito Penal
atual é inegavelmente a sua legitimação, ou seja, a sua justificação social
como fenômeno interventivo nas relações sociais, sendo que as teorias sobre
as finalidades da pena se prestam, a toda evidência, a dar suporte àquela
necessária legitimação. Daí porque se tem como certo que o principal fator,
na atualidade, de geração da crise do Direito Penal é, sem dúvida, o de sua
legitimidade. Criar um contexto de racionalidade, de compatibilidade entre
as novas exigências sociais e as (antigas) garantias públicas protetoras dos
cidadãos, conciliando-as em uma perspectiva democrática, é a tarefa da
Política Criminal racional, por meio da qual seria possível a (re)legitimação
do Direito Penal como fenômeno social, complexo e indispensável para a
construção de um Estado de Direito.
E a esse desiderato se deve lançar, principalmente, a Dogmática
Penal, núcleo a partir do qual, histórica e concretamente, toda a edificação
da ciência penal se construiu, com avanços e recuos, mas sempre norteada
pela preocupação com o “homem”, o “crime” e a “pena”.
Modernamente, a avaliação do sistema penal deve ser conduzida, sob
todos os títulos, a partir de duas dimensões básicas: a função do Direito
Penal e a finalidade da pena em face do Estado democrático e social de
Direito.
Sob a primeira dimensão, insistimos na compreensão segundo a qual
hoje, mais que nunca, a função do Direito Penal é a proteção de bens
jurídicos mediante a prevenção de delitos, sendo que a utilização das
ferramentas penais – de modo proporcional à ofensa praticada e à
culpabilidade do agente e tolerada apenas em relação aos ataques mais
graves – se deve inspirar à luz do princípio da ultima ratio e de limites
(derivados do Estado democrático e social de Direito) relacionados ao
exercício do ius puniendi, de cuja noção defluem os princípios da
subsidiariedade, da proteção exclusiva de bens jurídicos, da
fragmentariedade e da legalidade, todos, em bloco, cimentados pelo
princípio da racionalidade, e finalmente, de princípios político-criminais
que, por intermédio da formalização do controle social penal, visam a

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garantir as liberdades dos indivíduos frente ao Estado, de acordo com o


princípio de mínima intervenção e os demais princípios garantistas.
Na perspectiva da segunda dimensão, o núcleo básico em relação ao
qual o sistema todo deve ser construído é o da evitabilidade dos delitos, por
meio da prevenção geral, desde que haja limites necessários ao poder
punitivo do Estado, para preservar nessa função preventiva aquilo que ela
deve ter (no máximo possível) de justa e racional, e que esteja a serviço da
preservação da ordem democrática, com um mínimo custo à liberdade
individual.
Desse modo, todo o arsenal punitivo, no setor da criminalidade
econômica, poderia ser, simplesmente, desmantelado. E isso por várias
razões, todas de grande peso e expressão: a) em face do tipo de
delinqüentes, não há sentido em se lhes estabelecer uma punição de índole
criminal; b) a história da criminologia registra que a punição nessa tipologia
específica é meramente simbólica, havendo pouquíssimos casos de efetiva
condenação e menos ainda de prisão; c) outras medidas poderiam, de forma
mais eficaz, responder às necessidades sociais.
Com isso insistimos em assumir uma posição contrária à expansão
desnecessária (e inócua) do Direito Penal, dado que as exigências punitivas,
nesse setor, quedam absolutamente faltas de qualquer racionalidade (ou
necessidade).
A tese não conta com a simpatia da sociedade; a tese pode ser, ainda,
maculada como elitista (defende o poder econômico); mas, em verdade, ela
visa a prestar obséquio ao princípio da racionalidade da punição, o qual –
apresentado de forma mais simples – se vincula à necessidade. Qual a
necessidade de se punir criminalmente comportamentos que não
necessitam punição? Estamos em face de idéias que podem ser capazes de
desencadear novos princípios, quando não a depuração ou enriquecimento
dos já existentes, daí porque somos pela importância do tema desenvolvido
nessa investigação dentro de suas coordenadas argumentativas.
Finalmente, concebemos – à luz de uma gama significativamente
expressiva de princípios – que a utilização do arsenal punitivo, como forma
de contenção ou prevenção da criminalidade econômica (no sentido estrito),
contraria frontalmente o princípio da racionalidade (necessidade) da
intervenção penal, recomendando, sob todos os títulos, o esvaziamento do
conteúdo penal que se lhe é endereçado, com a adoção de instâncias
proibitivas e protetivas que não ostentem o qualificativo penal.

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Não se trata, obviamente, de mera alteração de etiquetas, mas, sim, de


verdadeiras transformações de fundo ou de significado.
Como vimos, ao se perfilarem uma série de fatores (tais como as
vinculações entre a economia e os interesses estatais, bem como as
finalidades do Direito Penal e da pena na perspectiva do Estado
democrático e social de Direito), torna-se fácil perceber que a punição, nesse
contexto, soa muito mais como instrumento de consecução de finalidades
do que, realmente, como os fins aos quais o sistema penal com um todo
deve obséquio. E, nesse passo, o esvaziamento do conteúdo penal desse
segmento da criminalidade em nada alteraria os reais objetivos que se
colocam à base dessa punição; antes, ao contrário, prestaria
verdadeiramente homenagem a uma série de princípios inscritos no
universo penal, os quais, modernamente, têm conjugado os melhores
esforços na busca de uma racionalização do sistema punitivo.
Inegavelmente, a temática tem assento em domínios político-
criminais, onde, como sói acontecer, muitas concepções freqüentemente têm
curso. Já se sustentou, por exemplo, a separação dos ilícitos penais em dois
grandes blocos: os delitos ‘violentos’ e os ‘astuciosos’; sendo que a esses
últimos (estelionatos, furtos, criminalidade econômica, etc.) seriam
destinadas somente (e sempre) penas alternativas, cabendo àqueloutros
(homicídios, roubos, tráfico de entorpecentes, etc.), penas privativas de
liberdade. E essas concepções se inspiram e apóiam em princípios os mais
variados encontrados no universo penal (ultima ratio, mínima intervenção,
fragmentariedade, etc.). Daí se pode extrair que existe, indiscutivelmente,
uma necessidade permanente de busca e de enfrentamento da problemática
penal.
Nesse curso, a proposta, que se constituiu no objetivo de nossa
investigação e se materializou como corolário desta última, se insere num
amplo contexto de concreção de políticas criminais capazes de racionalizar
o sistema penal. A nossa linha de investigação, portanto – no que se refere à
compreensão segundo a qual é possível “administrativizar” núcleos penais
–, aproxima-se da de HASSEMER, e dela se afasta quando sustentamos que
esse processo não se vincula à identificação de uma sociedade de risco, mas
a categorias próprias relacionadas com o modo de produção e os interesses
do Estado na economia. E se baseia, como em tantas oportunidades
indicamos, na noção de racionalização do sistema punitivo.

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De fato, não há razão em se punir criminalmente comportamentos


para os quais outros instrumentos legais podem ser mais eficazes e menos
traumáticos. Excusez du peu.

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155
O PROCESSO DE FORMAÇÃO E
ELABORAÇÃO DAS DECISÕES PELOS
JURADOS NO TRIBUNAL DO JÚRI
I ZABEL S ÄENGER N UÑEZ *

Resumo: Análise da formação da decisão pelos Jurados no


Tribunal do Júri, enquanto integrantes do conselho de
sentença, utilizando-se, para tanto, de pesquisa teórica sobre
os modelos de ciência, análise histórica desse instituto e
processo decisório dos jurados, bem como pesquisa de
campo por meio de entrevistas com os jurados.
Palavras-Chave: Tribunal do Júri. Jurados. Modelos de
ciência moderna e contemporânea. Formação do processo
decisório. Pesquisa de campo.

1 – I NTRODUÇÃO
A presente pesquisa teve como objeto estudar o Tribunal do Júri e a
validade das decisões proferidas pelo corpo de jurados. Os objetivos
específicos foram analisar: I) o papel dos jurados, como não cientistas ou
não técnicos, na realização dos julgamentos; II) a constitucionalidade e
validade democrática do referido instituto, entendida como efetiva
participação popular; e III) a forma pela qual se processam as decisões dos
juizes leigos, não cientistas ou não técnicos. A metodologia utilizada no
estudo foi: realização de I) pesquisa teórica sobre os modelos de ciência
moderna e contemporânea, análise histórica do Tribunal do Júri e processo
decisório dos jurados; e II) pesquisa de campo, por meio de entrevistas
semi-estruturadas e focalizadas, com 25 jurados, 5% (cinco por cento) do
total existente na 2ª Vara do Tribunal do Júri de Porto Alegre. Nesse sentido

* Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade do Estado do Rio Grande do Sul.

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foram apresentados questionários, durante os meses de abril e maio do


presente ano, para 58% dos jurados responderem por escrito e devolverem
na sessão seguinte; os outros 42% dos entrevistados responderam às
perguntas apresentadas pessoalmente, mediante entrevistas gravadas, cujas
respostas foram transcritas.

2 – C ONCEPÇÕES M ODERNA E P ÓS -M ODERNA DE C IÊNCIA


Em razão da concepção científica moderna, surgida durante o
Renascimento, existe, ainda, uma idéia de cega confiabilidade na ciência,
sustentada na exatidão dos resultados das teorias obtidas por um
procedimento julgado perfeito (KÖECHE, 1997, p. 57). Essa concepção de
ciência, dotada de extremo rigor e do entendimento de que o conhecimento
verdadeiro é dado somente pela exatidão matemática, acabou sendo
transportada também para as ciências humanas e sociais. Sabe-se, porém, da
enorme crise que atravessa o paradigma de ciência moderna. BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS, fazendo uma análise crítica do referido modelo científico,
afirma tratar-se de um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter
racional a todas as formas de conhecimento que não se pautam pelos seus
princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas, sendo esta a
sua característica fundamental e a que melhor demonstra a ruptura desse
modelo com aqueles que o precederam (SOUSA, 2006, p. 21). Em vista disso,
preconiza que, no modelo científico pós-moderno1, haverá uma superação
da dicotomia hoje existente entre a ciência natural e a ciência social,
preferindo-se a compreensão do mundo, em vez de sua manipulação. Nesse
paradigma, o conhecimento científico deixará de ser entendido como um
conhecimento acima dos demais, passando a valorizar o senso comum e a
visão não científica do mundo, havendo, assim, uma aproximação entre o
mundo científico e a realidade dada (SOUSA, 2006, p. 70, 77 e 83).

1 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS em Pela mão de Alice (Santos, 2006. p. 102-111) trabalha com o
paradigma emergente da pós-modernidade e seu reflexo na ciência. Ele afirma que a relação entre
o moderno e o pós-moderno é uma relação contraditória, tratando-se de uma situação de
transição em que há momentos de ruptura e momentos de continuidade. E analisa que, na pós-
modernidade, a ciência buscará: a transformação do saber científico em senso comum; o
favorecimento da proximidade entre o objeto pesquisado e o pesquisador; uma ruptura do
monopólio sobre o saber; o fim da hierarquia entre os saberes e os detentores destes; a valorização
de saberes diversos (tanto o comum, quanto o científico); e um conhecimento e aproveitamento
dos saberes locais com o fim de solucionar problemas globais. BOAVENTURA entende que quanto
mais global for o problema, mais locais e mais multiplamente locais devem ser as soluções.

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3 – D OGMÁTICA J URÍDICA E C IÊNCIA DO D IREITO


No que se refere à existência de uma ciência do Direito, deve-se
diferenciar a técnica jurídica, posto que a segunda refere-se à atividade
jurisdicional (dogmática jurídica), no sentido amplo em que acontece a
aplicação das leis por advogados, juizes, promotores e até mesmo pelos
jurados, enquanto a primeira, à organização dos modelos teóricos (analítico;
hermenêutico e empírico) com um fim maior: o do entendimento do
fenômeno da decidibilidade como questão aberta (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p.
11). Assim, resta claro a complexidade da definição do termo Ciência do
Direito. Prefere-se, por este motivo, adotar o entendimento de que a Ciência
do Direito é muito maior do que a mera aplicação da lei. A esta última é
mais justo denominar dogmática jurídica que, por meio das técnicas de
indução, dedução, analogia, complementação, explicação, argumentação e
dialética será aplicada nos casos de conflitos concretos.

4 – B REVE ANÁLISE DO T RIBUNAL DO J ÚRI COMO


I NSTRUMENTO DE P ARTICIPAÇÃO D EMOCRÁTICA :
A PONTAMENTOS H ISTÓRICOS E T EÓRICOS DO I NSTITUTO
Uma análise histórica do Tribunal do Júri, mesmo que não exaustiva,
permite-nos concluir tratar-se de um instituto democrático que garante a
participação popular na Justiça. Conforme se vê, o instituto foi mantido nas
Constituições Federais de cunho democrático (1891, 1946 e 1988) e alijado
nas Constituições menos democráticas, fosse pela outorga do rei após
violência contra a Assembléia Constituinte (1824), por medida fascista
(1937) ou em razão do golpe militar (1967 e EC01/69). Frise-se, por
exemplo, que, na Carta de 1946, reflexo da vocação democrática mundial
após os horrores da 2ª Grande Guerra e regimes totalitários, o Tribunal do
Júri foi trazido para o rol das Garantias Individuais do Cidadão, onde
permanece até hoje, com base no argumento de que a participação popular
nos julgamentos criminais seria um meio democrático de fazer justiça.
Da mesma forma, a expressão soberania dos veredictos afigura-se como
manifestação de respeito à vontade popular no restrito limite dos
julgamentos do colegiado (NASSIF, 2001, P. 33). Além disso, há aqueles que
sustentam que a instituição repousa não sobre a idéia de que os leigos em
Direito julgam melhor do que os conhecedores da técnica jurídica, mas
sobre aquela de que uma pena grave não deve ser aplicada enquanto a

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culpa não for manifesta aos olhos do senso comum (FREDERICO MARQUES,
1997, p. 56).
No que pertine a um julgamento realizado por “leigos”, PIERRE
BOURDIEU analisa a questão da violência simbólica existente dentro do
campo jurídico, o que se ressalta no Tribunal do Júri. O autor afirma que os
“sábios” (e dentro do Júri “sábios” são aqueles que detêm o capital do
conhecimento jurídico) entendem que os “profanos” seriam incapazes de
proferir uma decisão plena em razão da ausência de conhecimento técnico.
Trata-se da relação existente entre os detentores do capital científico e
aqueles que não possuem o referido conhecimento (BOURDIEU, 1989, p. 226).

5 – A P ESQUISA DE C AMPO
Conforme já explicado inicialmente, foram entrevistados 5% do total
de jurados arrolados na lista da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Porto Alegre.
Dessas 25 pessoas, 60% eram do sexo feminino (15 mulheres) e 40%, do sexo
masculino (10 homens). Quanto à idade desses jurados, 72% dos
entrevistados tinham entre 31 e 59 anos de idade. Em relação ao grau de
escolaridade, somente 16% dos entrevistados não tiveram acesso a alguma
espécie de curso superior, ou seja, enquanto a maior parte dos réus possui
baixa escolaridade, 84% dos entrevistados encontram-se em situação
abissalmente superior, eis que tiveram ou têm acesso a cursos de nível
superior. Além disso, há grande disparidade entre as realidades de réus e
jurados, 72% dos entrevistados recebem mais do que R$ 2.280,00 por mês, o
que demonstra a distância econômica que existe entre eles.
No que se refere aos questionários utilizados na pesquisa de campo,
foram apresentadas perguntas relacionadas a quatro temas-chaves,
consistentes em: 1) questões relacionadas ao tema réu; 2) questões
relacionadas ao tema vítima; 3) questões relacionadas ao tema crime; e 4)
questões relacionadas ao tema justiça.

5.1 A Questão dos Estigmas


Para demonstrar os estigmas que, durante o julgamento, são
utilizados tanto pela defesa quanto pela acusação com o fim de alcançarem
sucesso no julgamento, e aparecem nas falas de grande parte dos jurados,
utiliza-se a observação trazida pela jurada “Maria” ao fazer uma análise do
preconceito que estigmatiza os acusados, muito provavelmente relacionado

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com a grande disparidade social existente entre a realidade dos réus e dos
jurados. Veja-se.
“É aquela coisa o mal, a malandragem, ela sempre vence e eles não dão
muito ouvido pra essas coisas assim tipo, muita bola para aquela coisa
assim, larga, vai pegar um colégio, eu vejo tudo que é tipo de ângulo e
a criminalidade sempre vence porque é um modo mais fácil deles
apelarem pra vida, pra quererem as coisas pra querer um tênis bom
é, no shopping hoje se entra de três já com um bonézinho assim,
eles não estão mais deixando entrar alí no shopping, já estão sendo
discriminados ali no shopping. Então são coisas assim que vai
fazer eles ficarem mais violentos, piora, agrava, sim, vai, porque
se, ali no shopping, perto da minha casa, ali no Iguatemi, se entrou
já com três bonezinhos, até as meninas, com três bonezinhos, ou
muito assim, pode sair, hoje eles não estão mais deixando,
principalmente nos fins de semana, que realmente eles vão assim
pra fazer alguma bagunça eles não vão pra comprar, eles não vão
pra olhar, eles vão mesmo é pra levar aquele tipo de vida que eles
levam lá fora, só que é mais seletivo as coisas, né. Os adultos vão
alí pra comprar, pra se sentirem seguros, não pra ficarem olhando
e olhando a sacola né, isso aí tá tornando assim, uma coisa muito
grande, isso aí precisa muito, muito assim, eu diria assim, teria que
ser um país todo se movimentar pra isso, caras pintadas, tudo isso
aí, porque o movimento é muito grande deles. Isso é o que eu tenho a
dizer, independente de tudo, é muito grande o movimento deles” (Maria).
A fala acima transcrita ilustra um dos maiores problemas presente no
Tribunal do Júri: a questão dos estereótipos e dos julgamentos realizados
com base nessas impressões. E não se trata somente de opiniões pré-
concebidas puramente “negativas”, como aquelas relacionadas ao ladrão, ao
marginal; mas também de certas opiniões “positivas”, que remetem à figura
do “pai de família”, distinguindo-o do “marginal”, ao invocarem a figura
daquele que mata para proteger a sua família. E isso aparece com muita
freqüência na fala dos entrevistados. ROBERTO ARRIADA LOREA menciona
uma sessão do Tribunal do Júri, realizada em dezembro de 2002, em que
uma travesti acusada de matar o marido de outra travesti estava em
julgamento. No referido caso, o autor menciona o uso dos estereótipos com
o fim de legitimar as falas do Promotor e da defesa, usando-os a seu favor
sem, contudo, demonstrar uma atitude preconceituosa que possa ser mal
vista pelos jurados. Acionando-se, ainda, um grande leque de sedução. O

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autor do artigo refere que, no Tribunal do Júri, o uso adequado de


estereótipos satisfatoriamente manipulados pode ser decisivo para o
resultado do julgamento (LOREA, 2004, p. 265).
Além disso, é interessante frisar que os estereótipos interferem no
julgamento do caso, o que não é diferente, muitas vezes, no julgamento
realizado por um juiz de Direito, se considerarmos que o julgamento
sempre tem uma carga valorativa pessoal, justamente em razão dessa
impossibilidade de objetificar por completo a situação em análise.

5.2 Os Jurados e a Auto-avaliação de seu Papel na


Sociedade
Posteriormente, os jurados foram questionados sobre o papel e a
importância do trabalho realizado por eles no Tribunal do Júri para a
sociedade. Interessante observar que 12% dos entrevistados entendem
desnecessária a existência do instituto, enquanto 80% acreditam que o
jurado tem grande importância no Tribunal do Júri, tanto por representar a
sociedade, quanto por outras questões menos objetivas e mais de ordem
psicológica, que serão analisadas mais adiante. Ainda, 8% deixaram de
manifestar-se acerca da presente questão. Abaixo se transcreve depoimento
em que o jurado faz referência ao “teatro” que acontece entre o Promotor e
o Defensor, durante a sessão de julgamento. O entrevistado, de forma muito
coerente, analisa o sentimento de dever manter-se distante da disputa entre
os referidos sujeitos, para que ele possa realizar um julgamento mais justo:
“É, é importantíssimo né [o papel do jurado], na verdade é o
jurado que vai decidir a sorte né, do réu ali e o jurado ele tem que ficar,
na minha opinião, assim, meio alheio até, não é bem assim, bem,
alheio, mas não tentar entrar muito assim, no que acontece as vezes, um
certo teatro que acontece entre o promotor e o defensor, né, porque chega o
promotor e ele fala, fala, isso e aquilo e daí chega o defensor e fala contra
isso e aquilo e pô, em que tu vai acreditar? Não pode tentar entrar muito
assim na cabeça do promotor ou do defensor, tu tem que ficar atento aos
fatos né, eu acho que o que aconteceu, o que é comprovado que aconteceu
daí que tu se guia, porque as vezes eles tentam levar um pra um lado
outro pro outro e não pode tentar entrar nessa então o jurado também tem
que Ter esse discernimento assim, de tentar julgar com mais clareza e
imparcialidade possível e o jurado que vai decidir a sorte” (Mário).
Finalmente, se traslada duas “falas” que representam a descrença de
certos jurados em relação à sua função. A última delas refere justamente a

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questão do julgamento por um leigo, que desconhece a Ciência do Direito,


como se esse fato levasse a mais absolvições e essas absolvições levassem a
uma ineficácia do Tribunal do Júri.
“Tenho dúvidas, penso que são pessoas que não entendem nada de
Lei e que muitas vezes podem (e fazem) decidir de forma arbitrária,
condenando sem provas ou absolvendo com provas (Sônia).
Acredito que o próprio juiz da causa poderia decidir. O juiz conhece
melhor o processo. O jurado muitas vezes é leigo no assunto ou
despreparado para decidir (Gomes).
Acho importante a instituição do júri, mas acho também que
tem um custo muito alto e as decisões são muito atécnicas, com tendência
à absolvição, porque a investigação policial e a instrução do
processo são ruins” (João).

5.3 O “Teatro”
Houve, ainda, outra jurada, cuja fala é apresentada abaixo, que
mencionou a questão do “teatro” existente no plenário. E, nesse caso, ela
chama atenção para o fato de que muitas vezes o defensor alega coisas que
parecem inverossímeis, como é o caso das teses de negativa de autoria,
quando esta se encontra evidente.
“No júri é pra provar o porque que ele cometeu naquele
momento aquele ato e será que dependendo do defensor, ele vai
dizer, se eu não cometeria aquilo ali, claro, muitos levam pro teatro, e
é um teatro, fazem coisas mirabolantes, mas é um direito que todo
cidadão tem, imagina se ninguém tivesse direito a defesa, estava
todo mundo ferrado, os presídios estariam totalmente cheios”
(Zuleica).

5.4 Os Detentores do Capital Simbólico e os “Profanos”


PIERRE BOURDIEU, ao analisar as relações no mundo jurídico,
menciona a relação de poder existente entre os detentores do capital
científico (“sábios”) e aqueles que não possuem o referido conhecimento
(“profanos”). O que é acentuado pelo uso da linguagem jurídica – que, para
Bourdieu, consiste no uso particular de uma linguagem vulgar. Isso explica
a importância que os jurados sentem quando imbuídos da função de julgar.
Houve uma jurada que disse, inclusive, estar no mesmo “nível” do juiz, eis

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que é funcionária pública, durante o julgamento. Criticou, até, a postura dos


magistrados em certos momentos (BOURDIEU, 1989, p. 226).
Houve jurados, ainda, que se manifestaram no sentido de que seria
importante ter mais acesso aos autos, para analisar melhor os casos em
julgamento, não julgando apenas com base naquilo que é dito pelo
Promotor de Justiça e pelo Defensor, o que, como veremos adiante, causa
certa angústia aos entrevistados. Observe-se:
“Ele está fazendo o papel de juiz, julgar por aquelas 07 cabeças
de dizer se o réu é culpado ou não. Eu acho que o jurado não tem
nem um respaldo maior, fica atrelado em analisar entre a defesa e a
acusação. Ali, dentro de no máximo duas horas, quatro horas, duas pra
defesa e duas pra acusação. No máximo. Então, o jurado não tem um
conhecimento total do processo, não tem como fazer a sua opinião
máxima, ficamos entre o promotor e a defesa, eu entendo que, quando é
montado o tribunal do júri, naquele mês, os jurados deveriam ficar
realmente a disposição total da justiça, pra estudar os processos que vão
julgar, porque eles que vão julgar, acredito que, muitas vezes, não se fez
justiça, porque não se conhece o processo num todo, e aqueles sete estão
julgando se o camarada vai pra cadeia ou não vai, entendeu, então
eu acho que esse sistema de jurados hoje ele está meio arcaico,
deve se estudar uma mudança de isso aí, os jurados tem que ter
mais conhecimento do processo, eu acho que os jurados não
devem ficar expostos ao réu e a família do réu. O jurado não tem
nenhuma proteção, não deveria fica exposto ao réu e deveria conhecer
melhor o processo” (Bernardo).
Nessa mesma entrevista, os membros do conselho de sentença
manifestaram-se de modo positivo, quando indagados sobre a pertinência
de debates entre os jurados antes da prolação da sentença. Todavia, não se
desconhece que a inclusão dos debates entre os jurados pode não ser
recomendada, entre outras razões, pelo fato de que a intenção dos jurados
de “votar de modo correto” pode significar que “votar certo” é votar com a
maioria, ou, ainda, repercutir a idéia de que uma decisão correta esteja
associada àquele que, entre os jurados, melhor detém o saber e/ou a
linguagem técnico-jurídico(a).
Pode-se notar que grande parte dos jurados, em vez de julgar
conforme as suas próprias convicções, busca integrar o já referido “poder
simbólico”, utilizando expressões jurídicas que venham a denotar
entendimento dos conceitos jurídicos, utilizados pelos “sábios”. Além disso,

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muitos dos jurados são bacharéis em Direito, o que aumenta, entre eles, a
sensação de que deter o conhecimento jurídico é estar apto a julgar.
Lorea refere que a Promotora de Justiça, ao fazer menção de que os
“bacharéis presentes no júri” saberiam bem sobre que ela estava falando,
impunha ao jurado, Bacharel em Direito, um sentimento de que ele a
entenderia, fazendo com que esse jurado se sentisse valorizado e levando-o
a crer que estaria no mesmo nível dela, Promotora de Justiça, sua “superiora
hierárquica”. O poder exercido pela promotora é supostamente proveniente
do fato de ela ser uma técnica. Nesse momento, Promotor e Advogado
acabam aliados entre si, na medida em que são detentores do capital
jurídico, repartindo entre eles o trabalho de dominação simbólica sobre os
jurados, “profanos”. E é esse capital simbólico que assegura a legitimação
para ocupar um espaço reservado somente aqueles que o detém.
Outro ponto relevante, que resta claro mediante a análise das “falas”
de certos jurados, é aquilo que BOURDIEU denomina como “discordância
estrutural da linguagem”. O sentido das palavras é desviado pelo uso dos
“profanos” para “igualar-se” aos “eruditos” (BOURDIEU, 1989, p. 227). É o
caso que se verifica na “fala” do jurado, abaixo reproduzida, que se
confunde ao definir os papéis que devem ser desempenhados pelo
Ministério Público e pela defesa. Veja-se:
“(...) então Ministério Público vai esclarecer e clarear esses
pontos que podem ser, ah, positivos pra defesa e negativos pra
acusação e fazer com que essa pessoa não sofra uma injustiça,
então, é importante sim, o Ministério Público, na defesa desses acusados.
Isso é importante. (Pedro)”.
Surge, ainda, um ponto preocupante, relacionado aos jurados
incluídos na lista anual, que é a falta de alguma seleção ou informação sobre
o papel que eles irão desempenhar, ao menos no momento em que estes se
inscrevem para o exercício da função. Não se trata de uma aula de
“juridiquês”, porque isso seria contraditório à própria natureza do Tribunal
do Júri, mas informações básicas que pudessem situar o jurado em relação à
atividade a ser desempenhada.
Essa inferência é corroborada por uma experiência vivenciada
durante a realização das entrevistas. Era dia 03.05.2007, primeira sessão do
mês de maio do 2o Juizado da 1a Vara do Tribunal do Júri de Porto Alegre.
Chega um rapaz, apresentando-se, após ser intimado pela Oficial de Justiça

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dias antes, que, sequer, sabia que tipo de julgamento ele iria participar.
Note-se:
“Teve um menino aqui que veio aqui pensando que isso aqui era um
júri simulado, quarto semestre de direito. E ele não sabia que era um júri,
júri, que ele ia julgar, quando ele soube que ele iria julgar, poderia julgar
um criminoso ele entrou em pânico, então ele não estava preparado e
isso que tem emprego, é jovem, parece ser de uma boa família, faz
faculdade” (Zuleica).
Destaca-se, ainda, a importância de “oxigenação” do corpo de
jurados, o que fica claro ao se analisar o tempo pelo qual a maioria dos
jurados presta o serviço. Há quem integre o corpo há mais de 16 anos. O
fato é que os jurados acabam ficando na lista anual durante anos, sendo
excluídos desta, somente se requerirem. Isso fica evidente, quando se
contempla o depoimento abaixo transcrito, em que o jurado afirma que só a
pessoa [jurado], ou a empresa para a qual ele trabalha, pode pedir para que
o membro do conselho de sentença deixe de integrar a lista de jurados do
Tribunal do Júri.
“Então eles são importantes, só que a maioria da sociedade não
sabe que existe, e muitos que vem aqui, também, não retornam mais
porque eles não se sentem preparados para representar a sociedade neste
ato, eu tenho vários colegas que já vieram, pediram para ser
afastados, porque eles não tem, nas palavras deles, eles não tem
estômago pra julgar alguém. Realmente é muito difícil. [Se eles não
pedem para ser afastados] eles continuam. O jurado, só ele pode pedir pra
sair, o jurado ou a empresa é apresentado ao Tribunal do Júri mas só a
pessoa pode sair do Tribunal do Júri” (Astolfo).
Destarte, pode-se concluir que todo o sistema acaba por atuar de
forma que o leigo passe a agir com base na lógica jurídica, afastando ou
dificultando a decisão com visão leiga sobre a justiça, o que vai contra a
proposta de um instrumento democrático de participação popular efetiva
no sistema de justiça criminal.

6 – C ONCLUSÃO
Mediante toda análise do histórico do Tribunal do Júri, pode-se
concluir tratar-se de um dos poucos instrumentos de participação popular
na justiça, dependendo, entretanto, de novo regramento para que possa ser
efetivo. Para tanto, pode-se pensar em uma maior abertura e diversificação

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da composição do Júri, bem como a extinção da incomunicabilidade, não do


sigilo das votações, em razão da segurança daqueles que proferem a
decisão. Em que pese os jurados buscarem uma análise técnica do
julgamento, contrária ao fim para o qual foi criado o Tribunal do Júri, em
razão da dominação simbólica, pode-se pensar que a diversificação dos
jurados com uma diversificação das listas anuais poderia vir a solucionar a
questão da judicialização das decisões leigas.
Pensa-se, ainda, que a inserção de alguns mecanismos presentes no
modelo americano, tal qual a abertura e ampliação da lista de jurados, bem
como a já referida extinção da incomunicabilidade, poderia servir como
meio de sanar algumas das distorções existentes no Tribunal do Júri
atualmente. Lembre-se que o instituto foi criado com o fim de proporcionar
a participação do povo na justiça não tendo a sua finalidade cumprida. Isso
porque, o sistema judiciário brasileiro não foi capaz, em razão da adoção do
modelo francês de justiça no qual os detentores do poder ou do capital
simbólico, tanto em razão da conveniência da manutenção do poder nas
mãos de poucos quanto em razão da relação de dominação que se
estabelece naturalmente no campo jurídico, não permite a participação do
povo.

B IBLIOGRAFIA
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MAY, Tim. Pesquisa Social: Questões, métodos e processos. trad. Carlos Alberto Silveira
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________. Pela mão de Alice. 11ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.
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STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do Júri. Símbolos e Rituais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1993.

169
POSSIBILIDADES DO TRÁGICO
NA JUSTIÇA RESTAURATIVA
R AFFAELLA DA P ORCIUNCULA P ALLAMOLLA *

1 – I NTRODUÇÃO
Este trabalho pretende trazer algumas considerações iniciais acerca da
possível aproximação da perspectiva trágica pós-moderna desenvolvida por
MICHEL MAFFESOLI com a experiência da justiça restaurativa. A intenção é
iniciar um diálogo entre esta forma alternativa de enfrentar a
conflitualidade contemporânea com a volta do trágico na pós-modernidade
levantando questões sobre as possibilidades de uma perspectiva trágica na
justiça restaurativa.

2 – A LGUMAS I DÉIAS S OBRE J USTIÇA R ESTAURATIVA


Tendo em vista o panorama contemporâneo em que o crime se tornou
meio de fala banal, aliado ao crescimento de políticas punitivas, o aumento
das formas de segurança pública e privada e a intolerância ao diferente que
põem em risco a própria idéia de democracia1, é inevitável buscar
alternativas à tradicional forma de enfrentamento da conflitualidade social.
O sistema penal retribucionista, nesta perspectiva, apresenta-se apenas
como um potencializador da situação já problemática:
“A justiça criminal não funciona. Não porque seja lenta ou – em
sua ‘opção preferencial pelos pobres’ – seletiva.
Mesmo quando rápida e mais ‘abrangente’, ela não produz
‘justiça’, porque sua medida é o mal que oferece àqueles que
praticaram o mal. Esse resultado não altera a vida das vítimas. O
Estado as representa porque o paradigma moderno nos diz que o

*Mestre em Criminologia e Execução Penal pela Universidade Autônoma de Barcelona e mestranda


em Ciências Criminais pela PUCRS.
1 SCHUCH, Patrice. Direitos e Afetos: Análise Etnográfica da “Justiça Restaurativa” no Brasil. 30º

Encontro Anual da ANPOCS, 2006.

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crime é um ato contra a sociedade. Por isso, o centro das atenções é


o réu, a quem é facultativo mentir em sua defesa. A vítima não
será, de fato, conhecida e o agressor jamais será confrontado com
as conseqüências de sua ação”2.
O modelo de justiça restaurativa, inspirado no abolicionismo e
também fruto do forte movimento vitimológico iniciado nos anos 80 – que
pôs em crise a legitimidade do sistema penal3 – surgiu nos Estados Unidos
(anos 90) com BRAITHWAITE4 e em pouco tempo se difundiu pela Europa.
Esta nova proposta figurou como alternativa ao modelo abolicionista por
ser mais dialogante com o modelo de justiça penal vigente, pois
“ha aceptado que deben existir principios reguladores de la
justicia restauradora y que los jueces penales deben supervisar los
acuerdos que se alcancen, ha discutido el problema de quién y
cuándo se derivan los casos a la justicia restauradora, se ha
preocupado por los riesgos de vulneración de derechos procesales
que las conferencias pueden conllevar, y finalmente ha admitido
que puede coexistir con la justicia penal ya que ésta puede hacer
más eficaz el acuerdo que se alcance en las conferencias de justicia
restauradora”5.
Para BRAITHWAITE, as diferenças de política criminal existentes entre
justiça restaurativa e abolicionismo estão centradas no fato de que a
primeira ainda admite a utilização do cárcere para um reduzido número de
delitos e segue dando importância à conservação das garantias processuais
e penais, enquanto a segunda propõe não só uma “alternativa a la pena de
prisión, sino una alternativa a la forma actual del proceso penal”6.

2 Marcos Rolim, Justiça Restaurativa apud AZEVEDO, Rodrigo G. O paradigma emergente em seu
labirinto: notas para o aperfeiçoamento dos Juizados Especiais Criminais. In: WUNDERLICH,
Alexandre e CARVALHO, Salo de (orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2005, pp. 116-117.
3 PIJOAN, Elena Larrauri. Tendencias actuales en la justicia restauradora. In: ÁLVARES, Fernando

Pérez (ed.). SERTA In memoriam Alexandri Baratta. Salamanca: Universidad de Salamanca –


Aquilafuente, 2004, p. 441.
4 ELENA LARRAURI refere existir uma discussão acerca de se o autor seria um continuador da

perspectiva do etiquetamento ou fundador de uma nova proposta, a justiça restaurativa.


(MOLINÉ, José Cid e PIJOAN, Elena Larrauri. Teorías Criminológicas: explicación y prevención de la
delincuencia. Barcelona: Bosch, 2001, p. 223).
5 PIJOAN, Tendencias actuales…, p. 441.
6 MOLINÉ, José Cid e PIJOAN, Elena Larrauri. Teorías Criminológicas: explicación y prevención de la

delincuencia. Barcelona: Bosch, 2001, pp. 247-248.

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Já a diferença fundamental entre o modelo reparador (justiça


restaurativa) e o retribucionista (justiça penal tradicional), para ZAFFARONI7,
é que o primeiro pretende solucionar os conflitos, ampliando o número de
conflitos resolvidos e melhorando a coexistência social, enquanto o segundo
apenas busca decidir os conflitos, estendendo a margem de atos unilaterais
de poder, solucionando menos conflitos e deteriorando a coexistência.
Após duas décadas – pelo menos – do movimento restaurador, ainda
não é possível identificar um único modelo de justiça restaurativa,
existindo, na visão de ESTHER GIMENEZ-SALINAS8, três modelos distintos:
– O primeiro, inspirado no movimento abolicionista, propõe a
reparação fora do Direito Penal, transformada em uma obrigação civil de
restituição, substituindo o procedimento penal pela composição privada do
conflito. No interior deste movimento existe um setor menos radical que
propõe a reparação extrajudicial somente nos casos de delitos mais leves,
quando existe uma conciliação entre vítima e autor;
– O segundo modelo defende a reparação como um tipo de pena.
Todavia este modelo (que possui um número reduzido de defensores) põe
de lado a característica mais relevante da reparação: a voluntariedade do
ato, não possibilitando que haja conciliação entre autor e vítima.
– O terceiro, possui dentre seus representantes ROXIN e defende a
reparação como uma terceira via, como conseqüência jurídica autônoma, ao
lado das penas e medidas de segurança, em que o autor assume suas ações e
repara os interesses da vítima.
JUAN BUSTOS e ELENA LARRAURI referem que nos casos em que a
reparação ou compensação figuram como ato voluntário, é possível
vislumbrar a influência da vitimologia e a importância da reparação, no
sentido de permitir “un determinado acercamiento entre ofensor y víctima,
que lleve justamente al ofensor a buscar una solución al conflicto de modo a
satisfacer a la víctima”, representando, assim, “el primer paso para dejar el
conflicto entregado a las partes”9.

7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; Batista, Nilo; Alagia, Alejandro; Slokar, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 101.
8 GIMENEZ-SALINAS, Esther. La justicia reparadora. Prevenció. Quaderns d’estudi i documentació.
Barcelona, 1996, pp. 41-42.
9 BUSTOS, Juan y LARRAURI, Elena. Victimología: presente y futuro (hacia un sistema penal de
alternativas). Barcelona: PPU, 1993, p. 47.

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Tratando das novas tendências em matéria de penas alternativas, a


criminóloga ELENA LARRAURI aponta o crescimento do uso da justiça
restaurativa como sendo “una respuesta al delito basada en que el infractor-
a repare el daño producido a la víctima”10. Todavia alerta para o fato de que
não se deve encarar esta justiça apenas como nova modalidade de pena
alternativa. Trata-se de maneira diferente da tradicional para auferir
responsabilidade penal à pessoa, através da qual se pode chegar a diversas
respostas, desde evitar o processo penal, atenuar a pena ou eximir de pena,
ou ainda reduzir a duração da pena privativa de liberdade11.
O termo restituição é utilizado pelos defensores da justiça
restaurativa de forma muito ampla. Engloba “cualquier actividad dirigida a
reparar el daño o a restaurar a la víctima en la situación previa a la comisión
del hecho delictivo, siempre que se realice a cargo del delincuente”12.
Segundo ESTHER GIMENEZ-SALINAS13, um conceito possível de
reparação seria: “una respuesta al delito en la cual el deudor asume
voluntariamente su responsabilidad y se compromete a reparar el daño
causado directa o indirectamente y, si ello no fuera posible, a reparar en su
defecto a la comunidad (reparación simbólica)”.
A autora chama ainda a atenção para o fato de que a conciliação-
mediação-reparação não representa forma mais rápida de justiça, como se
costuma dizer, podendo ser o processo de conciliação mais trabalhoso do
que a imposição de pena. Representa a introdução no Direito Penal de uma
justiça negociada, sendo a mediação e a confrontação aspectos importantes
no processo dinâmico existente entre vítima e acusado na busca de solução
para o conflito14.
Em se tratando das formas (procedimentos) de justiça restaurativa,
podem-se identificar:

10 CID, José e LARRAURI, Elena. Penas alternativas y delincuencia violenta. In: CID, José e LARRAURI,
Elena (Coords.). La delincuencia violenta: ¿Prevenir, castigar o rehabilitar? Valencia: Tirant lo blanch,
2005, p. 34.
11 CID, e LARRAURI, Penas alternativas y delincuencia…, p. 35.
12 CARRASCO ADRIANO, Maria del Mar. La mediación del delincuente-víctima: el nuevo concepto de

justicia restauradora y la reparación (una aproximación a su funcionamiento en Estados Unidos).


Revista Jueces para la Democracia. Información y Debate, Madrid, marzo de 1999, nº 34, p. 71.
13 GIMENEZ-SALINAS, La justicia reparadora…, p.40.
14 GIMENEZ-SALINAS, La justicia reparadora…, p.40.

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– A mediação entre vítima e delinqüente, que consiste num encontro


entre a vítima e o ofensor, orientado por um mediador, em que o objetivo é
chegar a um acordo reparador;
– As conferências de família, das quais participam familiares e pessoas
que dão apoio aos infratores e vítimas, sendo comum também a
participação da polícia ou agentes de liberdade vigiada (instituto similar ao
livramento condicional brasileiro) ou trabalhadores sociais;
– Os círculos, em que participam as partes diretamente envolvidas no
conflito (vitima/infrator) e qualquer pessoa que represente a comunidade e
que tenha interesse em participar;
Pode-se mencionar, ainda, em nível da justiça municipal, experiências
e projetos utilizando princípios de justiça restaurativa, em que comissões de
vizinhos se encarregam de solucionar delitos de pequena gravidade, sem
vítimas e quando tenha atingido a qualidade de vida da comunidade15.
Além destas, existem inúmeras manifestações da justiça restaurativa.
Isso ocorre em função de não haver um consenso entre seus teóricos a
respeito do conceito de justiça restaurativa e de quais práticas a integram, o
que conduz a duas críticas pertinentes:
“El riesgo de que se devalúe lo que es la justicia restauradora al
no respetar los principios o standards característicos de la justicia
restauradora; en segundo lugar, (…)la evaluación del
funcionamiento de estos programas deviene complicada, al no
poder precisarse si por ejemplo un determinado fracaso es
consecuencia de las prácticas restauradoras o precisamente debido
a la ausencia de ellas”16.
Importa, portanto, atentar à introdução da justiça restaurativa no
Direito Penal e “a los peligros de banalizar tales prácticas o de introducir, al
socaire de la apertura de espacios de desformalización, comportamientos
esencialmente no restaurativos o que corrompan la idea”17.
Ademais, a utilização da justiça restaurativa dentro do modelo de
justiça penal não pode ser feita sem que se mesurem os possíveis riscos dela

15 PIJOAN, Tendencias actuales…, pp. 442-443.


16 PIJOAN, Tendencias actuales…, p. 443.
17 SUMALLA, Josep M. Tamarit. ¿Hasta qué punto cabe pensar victimológicamente el sistema penal?

In: SUMALLA, Josep M. Tamarit (c00rd.) Estudios de victimología. Actas del I Congreso español de
victimología. Valencia: Tirant lo blanch, 2005, p. 38.

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decorrentes, desde uma perspectiva reducionista do Direito Penal, como


aponta ELENA LARRAURI:
“a) añadir la reparación como alternativa a la pena de cárcel
puede tener un impacto mínimo si con ella se atienden los casos
que actualmente recibirían multa. b) añadir la reparación al
sistema de penas puede comportar aumentar las cargas si ésta se
limita a adicionarse a penas alternativas a la prisión ya existentes;
c) añadir la reparación al sistema actual representa permanecer en
el ámbito del derecho penal; d) admitir la mediación-reparación
conlleva meditar qué puesto asignamos y reelaborar los principios
de igualdad, proporcionalidad y oportunidad; y, finalmente,
admitir la mediación-reparación implica rediscutir que papel debe
jugar la colectividad en los delitos que afectan a bienes
individuales y colectivos, así como de que forma debe articularse
su participación”18.
A aplicação da mediação no Direito Penal, como se pode perceber,
ainda não é algo pacífico, mas, ainda assim, é possível enumerar algumas
vantagens de sua aplicação19:
– Menor custo econômico, comparado aos gastos do funcionamento
de uma prisão;
– Constatação de resultados positivos com respeito à vítima, ao
delinqüente e à comunidade, relacionados com a maior flexibilidade do
processo e de intervenção das partes, destacando estudos de campo o alto
nível de satisfação por parte da vítima e do autor do delito com a mediação
e, em geral, com a administração pública;
– Possibilidade de tratamento igualitário do autor, sendo ouvido pela
vítima.
Ademais destas características, a justiça restaurativa pretende
estreitar os vínculos entre a comunidade para evitar novos delitos. Não se
olvida que o delito causa dano, mas lembra-se que este também revela
injustiças anteriores, como um sistema econômico e/ou racialmente
injusto20.

18 PIJOAN, Elena Larrauri. La reparación. In:CID, José e LARRAURI, Elena (orgs.). Penas alternativas a
la prisión. Barcelona: Bosch, 1997, pp. 187-188.
19 CARRASCO ADRIANO, La mediación…, p. 78.
20 GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. En búsqueda de la tercera vía: la justicia restaurativa. Inter Criminis. Revista

de derecho y ciencias penales. México, n. 13, abr./jun. 2005, pp. 204-205.

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Trata-se, portanto, de uma justiça que “busca lidar com a violência


por meio de uma ética baseada no diálogo, na inclusão e na
responsabilidade social, com grande potencial transformador do conflito”21.
Todavia a utilização demasiada do modelo restaurador apresenta o
risco, conforme menciona ELENA LARRAURI22, de que haja “extensão da
rede”, em razão de uma série de fatores:
– pela prioridade concedida ao sistema penal de decidir sobre quais
casos estão aptos para passar por um processo restaurador;
– pela existência de restritos critérios de derivação, o que pode
ocasionar somente a derivação de casos de bagatela;
– pelo fato de que os acordos adotados nas conferências restaurativas
não sejam, obrigatoriamente, valorados pelo juiz no momento de fixar a
pena;
– porque não se constituam como alternativa à pena de prisão, se o
âmbito escolhido para aplicar a justiça restaurativa for o penitenciário.

3 – O D RAMA M ODERNO E O T RÁGICO P ÓS -M ODERNO


Toma-se como base para esta breve análise a respeito da justiça
restaurativa como experiência trágica, o trabalho desenvolvido por MICHEL
MAFFESOLI, inspirado em Nietzsche, sobre o retorno do trágico nas
sociedades pós-modernas.
Cabe salientar que a filosofia de NIETZSCHE questiona o pensamento
moderno assentado na crença da racionalidade do homem e na crença de
uma ciência que é responsável por dizer a verdade (através do uso da
razão) e possuir o poder para curar os males do mundo:
“Confiantes nas possibilidades advindas da utilização
industrial da ciência e da técnica, estamos certos de poder
descobrir todos os segredos do universo e construir uma sociedade
expurgada de todas as formas de opressão, violência, exploração.
Afinal, somos devotos do deus Logos, confiantes na própria
onipotência”23.

21 PENIDO, Egberto de A. A justiça restaurativa. Juízes para a Democracia. São Paulo, v. 10, n. 36,
dez./fev. 2005/2006, p. 5.
22 PIJOAN, Tendencias actuales..., p. 462.
23 GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 16.

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A visão de NIETZSCHE sobre a ciência, a moral e a verdade são


imprescindíveis para que se estabeleça uma visão crítica do processo de
racionalização do homem e sua possibilidade de através do uso da razão,
presente na ciência, chegar à verdade: “A vontade de verdade é a crença,
que funda a ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro.
Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como
verdadeiro”24.
NIETZSCHE contrapõe a perspectiva moderna à perspectiva trágica
presente na Grécia antiga (pré-socrática). Segundo ROBERTO MACHADO,
“O antagonismo entre o espírito científico e a experiência
trágica é em NIETZSCHE uma crítica da prevalência da verdade ou
da verdade como valor superior pela afirmação tanto do caráter
fundamental da aparência quanto da exigência de superação da
oposição essência-aparência, verdade-ilusão. Separar o dionisíaco
e o apolíneo é matar os dois. O herói foi morto não pelo trágico,
mas pelo lógico”25.
MICHEL MAFFESOLI segue o caminho de NIETZSCHE e questiona as
concepções da modernidade, tratando-a como uma experiência dramática.
Na obra O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas, o
autor analisa a sociedade contemporânea e identifica o ressurgimento da
perspectiva trágica, contrapondo-se à experiência dramática moderna. Estas
duas categorias, drama e tragédia, são utilizadas pelo autor para explicar as
diferentes formas de se ver (n)o mundo. Diferentes formas de sentir e
conceber o tempo, a história e a vida.
MAFFESOLI explica que o tempo do drama moderno foi marcado pela
tônica da velocidade. Dela provieram, principalmente, o desenvolvimento
científico, tecnológico ou econômico. No trágico pós-moderno a tônica do
tempo se altera, este se imobiliza ou, pelo menos, fica mais lento. No trágico
o tempo passa de “monocromático, linear, seguro, o do projeto, a um tempo
policromático, trágico por essência, presenteísta e que escapa ao utilitarismo
do cômputo burguês”26.
A desaceleração do tempo no trágico favorece o presente e lhe confere
mais valor, tornando-se a vida uma concatenação de instantes eternos, dos

24 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, 2002, 2ª ed., p. 75.
25 MACHADO, Nietzsche e a verdade..., p. 32.
26 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 9.

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quais é possível tirar o máximo de gozo. Em função deste presenteísmo se


assiste a uma alteração da concepção de mundo:
“(...) a grande mudança de paradigma que se está operando é
bem o deslizar de uma concepção de mundo ‘egocentrada’ à outra
‘locuscentrada’. No primeiro caso – a modernidade que se acaba –,
a primazia é concedida a um indivíduo racional que vive em uma
sociedade contratual; no segundo – a pós-modernidade nascente –,
o que está em jogo são grupos, ‘neotribos’ que investem em
espaços específicos e se acomodam a eles”27.
Enquanto o drama moderno caracteriza-se por sua pretensão otimista
de alcançar a totalidade do mundo, do sujeito e do Estado, num movimento
totalitário28 que reunifica o Estado e planifica a existência29, o trágico pós-
moderno preocupa-se não mais com a totalidade, mas com a interidade “que
induz à perda do pequeno eu em um Si mais vasto, e da alteridade, natural
ou social”30. Por isso MAFFESOLI afirma que o narcisismo individualista é
próprio do dramático, enquanto no trágico há a primazia do tribal.
O sentimento trágico da vida significa reconhecer uma lógica de
conjunção, e não mais uma lógica de disjunção, própria da modernidade
dramática. Assim, “onde dominava a separação, a distinção, a autonomia,
tende a reinar a reversibilidade, a mistura, a heteronomia”31.
A marca do trágico é conciliar as forças antitéticas de Apolo, o deus
da temperança, representante do lado luminoso da existência, da justa
medida, do princípio de individuação, com a de Dionísio, símbolo da
desmedida, da transgressão dos limites. Assim, “sem destruição, não há

27 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 8.


28 MAFFESOLI esclarece que o totalitarismo é a reação lógica ao processo de atomização próprio da
sociedade moderna, em que foi perdida a solidariedade orgânica existente nas comunidades
antigas e em outros tipos de civilização. Devido a esta desagregação social proveniente da
predominância do individualismo, o Estado procura (re)unificar a sociedade. Todavia esta
reunificação não provém de forma espontânea da sociedade, mas sim de um órgão centralizador
que procura racionalizar totalmente a economia e a existência, promovendo uma assepsia da vida
quotidiana, através do aumento do controle social (MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária: ensaio
de antropologia política. Porto Alegre: Sulina, 2001, pp. 224 e 243).
29 MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária: ensaio de antropologia política. Porto Alegre: Sulina, 2001,

p. 242.
30 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 8.
31 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 11.

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criação, sem trevas, não há luz, sem barbárie e crueldade, não há beleza
nem cultura”32.
Outra importante diferenciação que faz MAFFESOLI entre
modernidade (dramática) e pós-modernidade (trágica) é a concepção da
história. Na primeira, a história se desenrola, enquanto na segunda o
acontecimento advém, tendo aspecto brutal de intromissão. Neste fator
também se localiza “a diferença de tonalidade entre o drama, ou a dialética,
que postula uma solução e uma síntese possível, e o trágico, que é aporético
por construção”33.
MAFFESOLI34 explica que esta mudança na percepção da história com o
abandono da tentativa de construir a própria história, para passar apenas a
aceitar os acontecimentos, representa o amor fati de que falava NIETZSCHE
(“Aqui poderíamos viver, posto que aqui vivemos”) e acaba trazendo uma
certa serenidade que se encontra presente nas inúmeras manifestações, que
tendem à multiplicação, de generosidade, de ajuda recíproca, de
voluntariado e ações humanitárias diversas. Este sentimento de aceitação do
que é (do destino) pode trazer um desejo de participação e não mais de
dominação dos fatos, agora estes são acompanhados, eventualmente,
levados a dar o melhor de si. Dessa forma a realização de si ou do mundo
não se faz somente através de uma ação econômica, mas se desenvolve na
forma de uma interação ecológica.
Destaca, também, o autor, o ressurgimento da importância conferida
ao território como local do sentimento trágico do mundo, atribuindo
extrema importância ao entorno, ao contexto. Este é aceito como destino,
vivido, dia-a-dia, sem que se procure mais dar soluções a todos os
problemas da humanidade em busca de um mundo perfeito. Esta
perspectiva faz surgir uma solidariedade entre o corpo social, uma
generosidade que não exclui o outro, mas o respeita, sendo mais do que
uma simpatia pelo outro, mas uma empatia.
Também no trágico pós-moderno se vê a sucessão do moralismo e do
dever por uma deontologia que leva em conta as situações e
conseqüentemente atua:

32 GIACOIA JUNIOR, Nietzsche..., p. 35.


33 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 26.
34 MAFFESOLI, O instante eterno..., pp. 29 e 188-189.

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“O moralismo repousa na exigência de ser isso ou aquilo. O


indivíduo deve se curvar ao projeto decretado a priori, a sociedade
deve, igualmente, chegar a ser o que o intelectual, o político, o
expert pensou que deveria ser. Completamente outra é a
deontologia que se acomoda a uma tendência geral, que está atenta
à disposição do momento, enfim, que concorda com as
oportunidades do presente”35.
Esta outra postura implica na superação do indivíduo regido somente
pela razão, pois agora ele é entendido em sua globalidade, sem ser retirado
de seu contexto. São levados em consideração também os sentimentos, os
afetos, os humores deste indivíduo, ou seja, todas as dimensões não
racionais do mundo dado36.
MAFFESOLI chama a atenção para a necessidade de uma postura
intelectual que saiba lidar com este trágico pós-moderno, dando conta de
seu vitalismo em seu caráter holístico:
“(...) a acentuação da vida e seu aspecto ambivalente não
podem senão incitar a superar o que marcou o pensamento
ocidental em geral e a modernidade em particular; a saber, esse
dualismo fundamental que separa o verdadeiro do falso, o bem do
mal, e outras dicotomias similares”37.
Esta postura intelectual não pode se manter na visão unidimensional
da modernidade que afasta e até mesmo nega a parte de sombra da
existência que se verifica nas ações humanas irracionais irreprimíveis. Esta
negação acarreta a depuração da complexidade de cada elemento social que
é então inserido numa entidade abstrata, em que a razão, a organização, o
sistema, etc., podem dominar sem restrições. Assim, “pretender ultrapassar
a contradição é entrar rapidamente na imposição mortífera de uma norma
ou de uma ideologia, suprimir a pluralidade e o contraste da existência
quotidiana, querer a todo custo fazer predominar a unidade redutora”38.
NIETZSCHE já alertava para essa totalidade igualitária própria da
modernidade, conforme expõe OSWALDO GIACOIA: “NIETZSCHE se opõe à
supressão das diferenças, à padronização de valores, que, sob o pretexto de
universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses

35 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 30.


36 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 30.
37 MAFFESOLI, O instante eterno..., pp. 80-81.
38 MAFFESOLI, A violência totalitária..., p. 289.

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particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida


como uniformidade”39.
MAFFESOLI refere o abandono na pós-modernidade do pensamento
dicotômico, para outro que aceita a complexidade. A isto ele dá o nome de
fusão feminina, pois, segundo o autor, “a feminização é sempre sinônimo
de politeísmo, de valores plurais e antinômicos. É isso mesmo que engendra
uma tensão dinâmica”40.
O que se vive na pós-modernidade, então, seria o retorno do
reprimido, do animal no humano que a modernidade tentou domesticar a
fim de racionalizar a vida em sociedade e torná-la asséptica. Este retorno
traz a retomada do gosto pelos sabores do mundo e pelo gozo,
principalmente. É o antigo amor mundi41.
Para este mundo sensível se faz necessário um saber que lhe
corresponda. Por isso a necessidade de outra razão, a razão sensível. Ela
pressupõe o abandono da busca, característica da modernidade (busca do
verdadeiro, do belo, do justo, do bom, etc.) e confere importância ao que
está aqui, passando a uma postura que encontra. Caracteriza-se pelo
abandono dos conceitos metafísicos (essencializantes) para aceitar a
existência como o que ela é em efetivo, imperfeita, banal e cotidiana42.
Com esta perspectiva trágica é que se liga a idéia de organicidade:
“(...) em oposição a uma vida e a um pensamento sociais,
fundados sobre a simples mecanicidade e a dualidade das coisas,
que foi essencialmente a episteme moderna, existem maneiras de
ser e de pensar para as quais o mundo é concebido como uma
totalidade, como um organismo animado por uma só vida”43.
Esta idéia privilegia a relação entre os indivíduos e entre estes e o
mundo. E é somente a partir desta perspectiva orgânica vinculada à visão
trágica do mundo que se pode atingir um conhecimento orgânico e não
abstrato e sem movimento.
Finaliza o autor ressaltando que o trágico não é de forma alguma
igualitário e parte da idéia de aceitação do destino, afirmação do que é e da

39 GIACOIA JUNIOR, Nietzsche..., p. 11.


40 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 169.
41 MAFFESOLI, O instante eterno..., pp. 140-141.
42 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 141.
43 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 159.

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necessidade de se acomodar ao mundo em todos os seus aspectos,


reconhecendo, portanto, que existe uma ‘hierarquia’ na lógica interna da
vida. Não existe, nesta perspectiva, “a simples soma dos indivíduos iguais
entre si que formam o contrato social, mas a sinergia de suas diferenças em
uma solidariedade orgânica muito mais concreta e muito mais sólida”44.

4 – A LGUMAS I NTERSECÇÕES (P OSSÍVEIS ) DA P ERSPECTIVA


T RÁGICA C OM A J USTIÇA R ESTAURATIVA .
O contexto trágico pós-moderno, trabalhado por MAFFESOLI, parece
estar de acordo com a perspectiva restaurativa do conflito, uma vez que esta
se propõe abandonar o modelo de justiça penal tradicional (ou pelo menos
relativizá-lo), passando a se preocupar não mais em conferir uma decisão
(sentença) ao conflito (reduzido ao processo), mas em solucionar45 a situação
conflituosa, dando ênfase ao contexto no qual está inserida, procurando
restaurar os vínculos sociais:
“A idéia de uma justiça restaurativa aplica-se a práticas de
resolução de conflitos baseadas em valores que enfatizam a
importância de encontrar soluções para um mais ativo
envolvimento das partes no processo, a fim de decidirem a melhor
forma de abordar as conseqüências do delito, bem como as suas
repercussões futuras”46.
A idéia de restaurar o conflito está conectada com o reestabelecimento
da harmonia anterior ao comentimento do delito, voltando seus objetivos
para o futuro, e não mais para o passado, como no processo penal. O
trágico, por sua vez, apesar de colocar ênfase no presente, confere
importância à relaçao entre os indivíduos, concebendo o mundo como um
organismo, que mesmo plural e variado, é harmônico, pois equilibra as
forças de Apolo e de Dionísio. Nesse sentido, o processo restaurador parece
ser capaz de configurar perspectiva trágica, valorizando e transformando “a

44 MAFFESOLI, O instante eterno..., p. 162.


45 Utiliza-se aqui a mesma diferenciação (citada anteriormente neste texto) feita por Zaffaroni entre
decisão (própria do sistema punitivo) e solução (característica do modelo restaurador).
46 AZEVEDO, Rodrigo G. O paradigma emergente em seu labirinto: notas para o aperfeiçoamento dos

Juizados Especiais Criminais. In: WUNDERLICH, Alexandre e CARVALHO, Salo de (orgs.). Novos
diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, p. 136.

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relação tradicional entre ofensor e vítima, entre ambos e a comunidade e


entre estes três elementos e o sistema de justiça e de governo”47.
Ademais, o vitalismo de que fala MAFFESOLI e sua característica de
coincidir os opostos, ao invés de dicotomizá-los também parece estar em
consonância com o que pretende fazer a perspectiva restaurativa com a
utilização da mediação: terminar com a dicotomia vítima-ofensor,
desfazendo os mitos (estereótipos) relacionados com ambos: “ao
defrontarem-se cara a cara, vítima e infrator podem superar os mitos e
estereótipos mútuos, desde que esse encontro ocorra com a orientação de
um facilitateur. O objetivo prioritário é o restabelecimento do diálogo, o
secundário é a dissuasão”48.
Para PETERS e AERTSEN, autores de um projeto de investigação sobre
mediação na Bélgica, um dos efeitos mais importantes do processo de
mediação é a destruição dos mitos com relação à vítima e ao infrator:
Ambas partes involucradas en la experiencia de mediación ven un
tipo de “justicia” en vez de, pasivamente, recibir “justicia”. Desde este
enfoque, ambas partes se sienten más responsables y abandonan los
estereotipos tradicionales de su forma de pensar: “el delincuente intratable”
y la “víctima que se aprovecha” se convierten en “mitos” impracticables49.
Esta destruição de mitos está conectada à tentativa de superação de
conceitos metafísicos que idealizam não só a vítima (“vítima ideal”) como o
infrator (“criminoso ideal”) e que são reproduzidos pela estrutura e pela
lógica da justiça penal tradicional.
Assim, ao contrário do procedimento de justiça penal tradicional, que
respalda e reproduz os mitos sobre o delinqüente suspeito através da
seleção de informações dirigidas à acusação e à sentença, na mediação –
forma restaurativa –, o enfoque está nas informações que possam aproximar
as partes em conflito a fim de chegarem a um acordo50. Nesse sentido, a
idéia de ‘justiça negociada’ que pretende o entendimento entre as partes

47 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediaçao Penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestao do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 11-12.
48 AZEVEDO, O paradigma emergente..., p. 124.
49 PETERS, Tony e AERTSEN, Ivo. Mediación para la reparación: presentación y discusión de un

proyecto de investigación-accion. Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología San Sebastián, nº


8 Extraordinario. Diciembre 1995, p. 140.
50 PETERS e AERTSEN, Mediación para la reparación…, p. 141.

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afasta-se da tradicional busca pela verdade, tão característica do processo


penal, alterando-se também a própria concepção de justiça.
A “justiça” do modelo restaurador perde seu caráter metafísico de
busca de um ideal, passando a encontrar a saída mais adequada ao caso
concreto, sem extirpar-lhe sua complexidade, de acordo com as
necessidades dos envolvidos no conflito. Nesse sentido é que parece possuir
a justiça restaurativa caráter trágico, relacionado ao abandono dos conceitos
ideais (metafísicos) característicos da modernidade.
Ainda com relação ao potencial trágico da justiça restaurativa, cabe a
pergunta que faz JOSEFINA CASTRO:
“Se, em grade medida, o poder de sedução e o sucesso destes
novos dispositivos de justiça informal podem ser atribuídos à
fluidez e indefinição conceptual que os caracteriza e que lhes
proporciona uma natureza plástica capaz de servir diferentes e até
contraditórios objetivos, a existência de um tão amplo consenso
deve pelo menos fazer-nos pensar. Que pretendemos com a
institucionalização destes dispositivos? Realizar um ideal de justiça
comunicacional baseada no diálogo entre o ofendido e o autor da ofensa e,
portanto, uma justiça mais próxima, mais participativa e reconstrutiva,
ou responder a objectivos mais pragmáticos de simplificação e aceleração
da justiça penal?”51 (grifo meu).
O questionamento que coloca a pesquisadora reflete justamente a
preocupação da tônica que se quer dar à justiça restaurativa: uma tônica
dramática ou trágica.
Se a escolha for pela primeira, sem dúvida ocorrerá a
institucionalização do modelo restaurador de forma a ser incorporado aos
demais instrumentos (modernos) da justiça penal que simplificam o conflito
e (re)produzem respostas prontas aos conflitos emergentes da convivência
social.
Se, por outro lado, a escolha for pela tônica trágica, há que se ter em
mente as limitações do modelo restaurador. Nesse sentido, é necessário ter-
se em vista as experiências internacionais a respeito dos pontos

51 CASTRO, Josefina. O processo de mediação em processo penal: elementos de reflexão. Revista do


Ministério Público, nº 105, ano 27, jan-mar 2006, p. 153.

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fundamentais para definir e limitar os objetivos da mediação como uma


experiência restaurativa, conforme analisa JOSEFINA CASTRO52:
1. “...a mediação não é nem pode ser tomada como panacéia
universal. Nem todas as situações, mesmo quando configuram
crimes de mesma natureza, são susceptíveis de mediação, desde
logo pelas condições pessoais dos envolvidos”.
2. “necessidade da diferenciação das abordagens, e, portanto, o
evitamento da rotina e burocratização das práticas”
3. “É necessário que a avaliação [das experiências desta
natureza] vá para além do inquirir a curto prazo da satisfação dos
intervenientes, com todas as ambigüidades que um parâmetro
destes coloca, ou que contemple apenas elementos quantitativos
relativos aos resultados, descurando a qualidade dos processos.”
A observância destes três pontos são fundamentais para que o
modelo restaurador possa figurar como experiência trágica e não dramática,
na medida em que se salienta suas limitações: 1) a impossibilidade de
constituir em um sistema, ou seja, um modelo fechado, com receitas
prontas, aplicável a todos ou até mesmo a alguns tipos de delitos, em razão
de não ser possível definir-se a priori, sem que se saiba o caso concreto e as
partes envolvidas, se a prática restaurativa seria viável; 2) as soluções são
dadas caso a caso, não se podendo pensar em soluções padronizadas que
terminem burocratizando totalmente as práticas restaurativas; 3) também a
relevância da forma de avaliação destas práticas, que não pode seguir
parâmetros de quantidade, mas de qualidade, algo que, sem dúvida, não
constitui tarefa simples e não comporta simplificações.

5 – R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
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52 CASTRO, O processo de mediação..., p. 154.

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187
O JUIZ E O HISTORIADOR NA
ENCRUZILHADA DA VEROSSIMILHANÇA:
AMBIÇÃO DE VERDADE
NO PROCESSO PENAL
S ALAH H. K HALED J R . *

Resumo: O artigo propõe uma discussão sobre a questão da


verdade e os limites que devem ser colocados à sua busca
no processo penal, utilizando referenciais teóricos do
Direito, da História e da Filosofia. A intenção é
problematizar a idéia de verdade no processo penal a partir
das noções de verossimilhança, incerteza e complexidade,
questionando o mito da verdade real e esboçando uma
teoria da verdade.

Palavras–Chave: processo penal; verdade real;


verossimilhança; história; filosofia; mito

Discutir o processo penal a partir de uma perspectiva de reforma que


atenda a valores constitucionais implica problematizar a questão central que
o define: o problema da verdade. Aparentemente não há como escapar
desta questão, pois a estrutura do sistema processual penal não pode
prescindir de uma ambição de verdade, visto que ela é inerente ao seu
núcleo de saber. LUIGI FERRAJOLI considera que o juízo penal é um saber-
poder, uma combinação de conhecimento e de decisão, sendo que quando
não há limites ao exercício do poder na constituição do saber, o sistema
assume feição inquisitória1. Em concordância, Jacinto Coutinho afirma que é

* Advogado e professor, mestre em História pela UFRGS, mestrando em Ciências Criminais pela
PUC-RS, especialista em História do Brasil e licenciado em História pela FAPA, bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS.
1 FERRAJOLI é incisivo ao afirmar que “sem uma adequada teoria da verdade, da verificabilidade e
da verificação processual, toda a construção do direito penal do iluminismo [...] termina apoiada
na areia; resulta desqualificada, enquanto puramente ideológicas as funções políticas e civis a ela

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o formato e as condições de produção do saber e, portanto, da verdade, que


separam um processo penal constitucional de um Estado Democrático de
Direito de um processo penal com viés autoritário e persecutório2. Como
aponta AURY LOPES JR., o elemento central de motivação que serve ao
propósito de controle da racionalidade da decisão judicial se encontra
vinculado a um saber – histórico por natureza – que legitima o poder, uma
vez que a pena só pode ser aplicada a quem tenha sido considerado autor
do fato criminoso a ele imputado3. Logo, não resta dúvida que a discussão
sobre a verdade no processo é fundamental. Todavia, apesar da sua
importância, o tema não vem tendo a atenção necessária, como a defesa do
mito da verdade real por boa parte da doutrina tão tristemente demonstra.
A verdade vem sendo dada como certa, como missão sagrada, cuja
obtenção justifica quaisquer meios, o que, em última análise, garante a
continuidade do autoritarismo inquisitório, algo inaceitável em um Estado
Democrático de Direito. Portanto, a luta por um processo penal
constitucional é uma luta pelo controle e limitação do poder.
No entanto, a questão da verdade no processo penal não se limita à
sua dimensão mais evidente, a de opção política conservadora. A busca pela
verdade envolve um problema ignorado ou, no mínimo, subestimado pelo
dogmatismo da Inquisição e pelo cientificismo da modernidade, que é a
complexidade do objeto em questão: a ambição de verdade que move o
processo penal. Afinal, em que medida o processo é um instrumento eficaz
de reconstituição do passado? Esta eficácia – ainda mais com as exigências
em que o termo verdade implica – precisa urgentemente ser repensada a
partir de uma perspectiva de incerteza e complexidade4. Não há dúvida que
a noção de verdade e o que ela representa é enigmática por si só5. O que

associadas”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p.39.
2 Portanto, COUTINHO aponta que é necessário um verdadeiro corte epistemológico, o que implica
na coragem de romper com o sono dogmático. COUTINHO, Jacinto. Glosas ao verdade, dúvida e
certeza, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. IN: Anuário Ibero-americano de
direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. pp. 176-177.
3 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal : fundamentos da instrumentalidade
garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.254.
4 Como afirma RUTH GAUER “[...] torna-se fundamental pensar o saber em geral, como algo que
excede a determinação e a aplicação de um mero critério de verdade”. GAUER, Ruth M. Chittó.
Falar em tempo, viver o tempo! In: Tempo/história. GAUER, Ruth M. Chittó (coord.) DA SILVA,
Mozart Linhares (org). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. p.25. grifos da autora.
5 A definição do que consiste e de como pode ser obtida – ou não – a verdade trata-se do que a
filosofia costuma definir como aporia. Para Gil, “Larga parte das correntes filosóficas atuais,

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dizer, portanto, da verdade em relação ao passado, que é a verdade que o


processo pretende obter? Apesar de tais questionamentos, o fato é que a
“verdade real” permanece sendo dada como certa, apesar das várias
camadas de complexidade que envolvem a questão. Todavia, negar esta
complexidade é, ao contrário do que se imagina, afastar-se da verdade.
Portanto, de forma irônica, os defensores da “verdade real” acabam se
afastando da verdade supostamente correspondente que pretendem atingir.
Uma abordagem que se propõe a reinvestir este objeto da complexidade e
do sentido que lhe é inerente revela isto com facilidade, sendo esta a
proposta e o espírito deste artigo6.
O primeiro passo – e talvez o mais importante – para problematizar a
idéia de verdade no processo e estabelecer os limites à sua obtenção, é
discutir a natureza histórica das provas produzidas no processo penal, em
busca de um esboço de uma teoria da verdade, conforme aponta FERRAJOLI.
Esta intenção remete à Filosofia – enquanto campo apropriado para
trabalhar a categoria verdade – e à História, enquanto disciplina que, por
excelência, lida com o passado. Por conseqüência, remete à clássica relação
entre o ofício do juiz e do historiador e à tensão inerente à idéia de veritas,
de um relato que procura, em alguma medida, corresponder ao passado7.
Muito já foi dito sobre a proximidade existente entre o juiz e o
historiador8. A razão para a insistência na comparação é evidente: as provas,

mesmo quando se combatem umas às outras, fazem-no a partir de uma dúvida permanente em
relação à verdade”. O autor afirma categoricamente: “Não há uma resposta unívoca sobre a
verdade [...] numa palavra, a verdade é inteiramente problemática”. CUNHA MARTINS, Rui e GIL,
Fernando. Modos da Verdade. In: Revista de História das Idéias. Instituto de História e Teoria das
Idéias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Volume 23, 2002. pp.16-17.
6 A abordagem que caracteriza este artigo é muito bem demonstrada por uma reflexão de Ruth

Gauer: “talvez estejamos vivendo um momento no qual o analista é, antes de mais nada, um
criador de sentidos, mais do que um respondedor de perguntas”. GAUER, Op. cit., p.24.
7 Em latim, verdade se diz veritas e se refere à precisão de um relato quanto a sua fidelidade em

relação ao que aconteceu. Logo, refere-se a uma narrativa sobre fatos ocorridos no passado e a
adequação entre essa narrativa e o que aconteceu, o que seria a garantia de sua veracidade. Esta é,
sem dúvida, a concepção de verdade que mais se aproxima do que pode ser o processo penal.
Afinal, a sentença é uma narrativa, constituída a partir de um contraditório, onde através de uma
reconstrução histórica, afirma-se que os fatos ocorreram de determinada forma.
8 Ver, por exemplo, CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Campinas, v. I, Bookseller Editora

Ltda., 1999. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997. p.44. e LOPES JR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da
instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.254. Também é o caso de
GINZBURG, Carlo. Le juge et l'historien. Considérations em marge du procès Sofri. Paris: Éditions
Verdier, 1991 e RICOEUR, Paul. La memoria, la historia, el olvido. Madrid : Trotta, 2003.

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em ambos os casos, são centrais no que se refere à verificação de fatos


ocorridos no passado9. Grande parte da doutrina, independentemente da
sua posição em relação ao problema colocado pela verdade real, aponta que
a prova penal é uma reconstrução histórica. Todavia, há uma diferença
significativa: os historiadores pesquisam um recorte específico,
problematizado por eles mesmos. Os juízes não. Suas preocupações estão
ligadas a uma dada situação sobre a qual devem sentenciar10. É justamente
esta condição que faz com que os freios legais colocados diante do juiz
devam ser mais eficazes do que os limites éticos e científicos colocados ao
historiador11. Entretanto, sob a chancela da dita verdade real, o juiz assume
poderes ilimitados e ignora – propositalmente ou não – perigos dos quais o
historiador está muito consciente. O mais evidente perigo é o da
prefiguração e confirmação da própria hipótese, típico dos juízes
inquisidores, como apontado por FRANCO CORDERO12. No entanto, é
importante ressaltar que embora possa haver tal impressão, a defesa do
paradigma inquisitório está longe de ser ingênua. Ao contrário, trata-se de
uma instância de legitimação do autoritarismo bem como de negação da

9 Como diz Ginzburg “juízes e historiadores se associam pela preocupação com a definição dos
fatos, no sentido mais amplo do termo, incluindo tudo o que se inscreve, de alguma forma, na
realidade”. GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Cia. das Letras,
2002.p.62.
10 GINZBURG considera que apesar da questão da sentença, “Isto não impede que entre os dois

pontos de vista haja uma parcial sobreposição , que nos é clamorosamente recordada no momento
em que historiadores e juízes se encontram a trabalhar fisicamente em contato, na mesma
sociedade e em torno dos mesmos fenômenos. [trata-se] de um problema clássico, que podia
parecer definitivamente ultrapassado – o da relação entre a indagação histórica e a indagação
judiciária – [mas que] revela implicações teóricas e políticas inesperadas”. GINZBURG, Carlo.
Micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. p.181-182.
11 Para LOPES JR, “Relevante é a distinção entre a ‘verdade’ construída no processo e fixada pelo juiz

na sentença e a verdade científica ou histórica. A primeira tem o juiz como investigador exclusivo,
ao passo que as demais, não. A competência para investigar esse fato histórico e julgar está fixada
em lei, como exclusividade, para o juiz. Logo, uma vez alcançada essa decisão pela coisa julgada,
será em regra imutável”. LOPES JR., Aury. Op Cit. p.266.
12 CORDERO aponta que “A solidão na qual os inquisidores trabalham, jamais expostos ao

contraditório, fora dos grilhões da dialética, pode ser que ajude no trabalho policial, mas
desenvolve quadros mentais paranóicos. Chamemo-os ‘primado da hipótese sobre os fatos’: quem
investiga segue uma delas, às vezes com os olhos fechados; nada a garante mais fundada em
relação às alternativas possíveis, nem esse mister estimula, cautelarmente, a autocrítica; assim
como todas as cartas do jogo estão na sua mão e é ele que as coloca sobre a mesa, aponta na
direção da “sua” hipótese. Sabemos com quais meios persuasivos conta [...] usando-a, orienta o
êxito para onde quer.” CORDERO, Franco. Guida alla procedure penale. Torino: UTET, 1986. p.51.

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complexidade inerente ao processo13. As duas perspectivas caminham, ao


que parece, de mãos dadas.
O reconhecimento da complexidade parte de uma noção
aparentemente simples: os juízes tomam decisões com base na verificação
de fatos que ocorreram no passado e que foram protagonizados por
homens. Esta aparente simplicidade, entretanto, logo se mostra insuficiente,
pois o processo é veritas, um relato, uma reconstituição e logo, o seu objeto –
o fato – pertence a um tempo escoado. Um tempo escoado, por definição, é
um tempo que já passou, que não volta mais, que não tem como ser
reproduzido de forma alguma14. Um tempo, portanto, sobre o qual a
observação direta não é mais uma opção15. Esta noção é fundamental, pois
inviabiliza qualquer pretensão que o processo penal tenha de obter uma
verdade correspondente ao real, com caráter de aletheia16. A plena adequação
de um relato em relação ao passado é nitidamente impossível.

13 CARVALHO afirma que o saber inquisitório elaborado no período do medievo “não é ingênuo nem
aparente, mas real e coeso, fundado em pressupostos lógicos e coerentes, nos quais grande parte
dos modelos jurídicos autoritários contemporâneos, alguns ainda em vigor, busca(ra)m
inspiração”. CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p.6.
14 No sentido de uma reprodução de acontecimentos passados, de acordo com Ginzburg “se um

laboratório é um lugar onde se realizam experiências científicas, o historiador é por definição, um


investigador a quem as experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas. Reproduzir
uma revolução, um arroteamento ou um movimento religioso é impossível, não só na prática,
mas em princípio, para uma disciplina que estuda fenômenos temporalmente irreversíveis”.
GINZBURG, Carlo. Micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. p.180. Em sentido
semelhante é afirmação de Lopes Jr: “Os fatos passados não são passíveis de experiência direta,
senão verificados a partir de suas conseqüências, de seus efeitos. Trata-se de interpretar os signos
do passado, deixados no presente. O presente é experimentável. O passado tem que ser provado.
Nessa atividade, o juiz assemelha-se ao historiador, de modo que após um raciocínio indutivo
chegará a uma conclusão que tem o valor de uma hipótese provável (probabilidade)”. LOPES JR.,
Op. cit., p.266.
15 Para BLOCH “O historiador, por definição, está na impossibilidade de ele próprio constatar os

fatos que ele estuda [...] em contraste com o conhecimento do presente, o do passado será
necessariamente ‘indireto’”. BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. p.69.
Portanto, “[...] o conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles no
presente, deve ser, [...] um conhecimento através de vestígios”. Ibid., p.73.
16 Em grego, a verdade se diz aletheia, e é uma qualidade das próprias coisas. Logo, conhecer é dizer

a verdade que está na própria realidade. Trata-se da idéia de verdade como correspondência.
Sendo assim, uma frase é verdadeira quando diz que o que é, é, ou que o que não é, não é. Uma
frase é falsa quando diz que o que é não é, ou que o que não é, é. O problema dessa concepção é
determinar o que significa correspondência. É um tipo de semelhança entre o que é e o que é dito?
Mas, que tipo de semelhança pode haver entre as palavras e as coisas e de que forma pode ser
atingida essa correspondência equivalente ao real que é o caráter da aletheia?

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O reconhecimento desta inviabilidade e da natureza complexa da


reconstituição do passado leva a outras considerações. Como é possível
conhecer, em alguma medida, o que já foi e não é mais? Se a
experimentação e o testemunho direto não são possíveis, só resta ao
investigador valer-se de alguma espécie de substitutivo, para tentar fazer
jus ao passado, uma vez que este é inacessível diretamente. Sendo assim, a
ambição de verdade que move a investigação promovida pelo processo
penal e pelo historiador, se vale da noção de prova: um critério de validade
extremamente caro aos dois campos e meio pelo qual a verdade pode vir ao
processo17. A prova, entretanto, não é uma referência direta, mas sim,
indireta em relação ao fato investigado. Fato este que pertence a um tempo
escoado, inacessível ao processo diretamente. Só lhe restam meros vestígios.
Mais uma vez a complexidade do que é muitas vezes tomado como
facilmente apreensível é inegável, pois os operadores disponíveis são
insuficientes para dar conta de algo tão excessivo quanto a verdade18. O fato
foi e não é mais, restando apenas seus vestígios, que são substitutivos
insuficientes, resquícios do que um dia ocorreu, a que chamamos de provas.
O que pode significar, afinal, trabalhar a partir de provas, sem negar a
complexidade de tal operação? O recurso à prova faz com que o historiador
e o juiz sejam obrigados a conhecer o passado através de rastros. O rastro,
na definição de PAUL RICOEUR, “é aquilo que significa sem fazer aparecer”19.
Não é o passado, mas é uma marca do passado que sobrevive, que persiste,
que remete ao passado, já extinto pela flecha do tempo20. De certa forma, o
rastro é um traço do passado que permite que ele se sustente, que
permaneça existindo, ainda que de forma incompleta e imperfeita, no

17 Coutinho afirma que “o meio de fazer com que a verdade aporte no processo é a prova, forma ou
conjunto de elementos através dos quais se constitui a convicção do juiz no caso concreto, em que
pese saberem todos não ser só ela a verdadeira formadora do juízo”. COUTINHO, Op. cit, p.177.
18 MARTINS e GIL discutem que tipo de operadores poderiam ser utilizados por um imperativo como

o da verdade. CUNHA MARTINS, Rui e GIL, Fernando. Op. cit. p.16.


19 Ricoeur afirma que “[...] o rastro indica aqui, portanto no espaço, e agora, portanto no presente, a

passagem passada dos vivos: ele orienta a caça, a busca, a investigação, a pesquisa. Ora, tudo isso
é história. Dizer que ela é um conhecimento por rastros é apelar, em último recurso, para a
significância de um passado findo que, no entanto, permanece preservado em seus vestígios”.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo III. Campinas, SP: Papyrus, 1997. p.201.
20 Ao abordar a idéia de reconstruir um tempo passado no presente, LOPES JR. também toca na

questão da referência indireta: “ora, basta isso para afirmar que não existe um dado de realidade
para falar em verdade real. É o absurdo de equiparar o real ao imaginário, esquecendo que o
passado só existe no imaginário, na memória, e que por isso, jamais será real. Sem falar que a
flecha do tempo é irreversível, de modo que o que foi real, num fugaz presente, nunca mais
voltará a sê-lo”. LOPES JR., Op cit, p.262.

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presente. RICOEUR define tais rastros como conectores em relação ao


passado, pois é através deles que o historiador acessa um fato já extinto pela
passagem do tempo, através de procedimentos de conexão21. Logo, não é o
fato o objeto estudado ou investigado, mas sim, o que restou dele. O que
restou nos seus rastros, que são apenas parte de um grande todo ou nas
impressões de quem viu e que, obrigatoriamente, teve uma percepção
limitada22.
Portanto, apesar de ter a pretensão de se basear em fatos, o acesso ao
passado é constituído a partir destes rastros, que assumem a forma de
representações: é o caso evidente do testemunho oral ou do documento
escrito23. O grande problema encontra-se no fato de um testemunho, por
exemplo, ser uma representação do passado e do conhecimento sobre o
passado ser construído a partir de tais representações, que configuram uma
nova representação. Tal constatação passa pela imensa problemática que
envolve a questão da memória24. Entretanto, embora sejam operadas a partir
de representações, de rastros, as construções que o processo judicial realiza
têm a ambição de serem reconstruções mais ou menos aproximadas daquilo
que um dia foi “real”. A questão é, portanto, muito mais complexa do que a
simplicidade de uma verdade real, ou verdade correspondente ao real – já
que o termo “verdade real” sequer faz sentido – induz a crer. A
reconstrução é feita a partir de vias laterais, entrecortadas por lacunas e
deformações, que constituem um trajeto inteiramente acidentado. Este
argumento, por si só, demonstra a necessidade de um juiz garantidor de
liberdades constitucionais, colocando a responsabilidade das provas sobre
os ombros do acusador.

21 RICOEUR, Paul. Op Cit, p.174.


22 Como reflete MERLEAU-PONTY, ao dizer que faltam ao olho condições de ver o mundo e faltam ao
quadro condições de representar o mundo. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Rio de
Janeiro: Grifo, 1989.
23 RUTH GAUER aponta que “da situação de eventos passados, não restam senão traços, imagens, que

incessantemente se presentificam. A história documental permite rememorar eventos que dão


testemunho escrito de experiências vividas, por vezes, com extrema violência. Essa rememoração
se dá em um entre lugar, no interstício, já não é o autor do documento que fala, mas a
presentificação, com a utilização de experiências vividas para testar um mundo que se esconde
por trás de aparências.” GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.8
24 Utilizando uma abordagem como a de HALBWACHS, por exemplo, pode se chegar à conclusão de

que não há memória individual, mas somente memória social. Para HALBWACHS, mesmo nossas
lembranças aparentemente mais individuais não passam da memória do grupo. Evidentemente,
tal consideração aprofunda ainda mais a problemática que envolve o testemunho. HALBWACHS,
Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vertice, 1990.

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RICOEUR buscou aprofundar ainda mais a discussão sobre a natureza


do conhecimento produzido, indo além do conceito de representação. O
autor afirma que o problema é ainda mais complexo. Para ele, “[...] o
passado é o ‘face-a-face’ a que o conhecimento histórico se esforça por
corresponder de maneira apropriada” através do rastro25. Esta noção de
face-a-face, de correspondência, é o que RICOEUR utiliza para descrever a
atividade de reconstrução do passado como irrealizável em sua plenitude,
em oposição à idéia de representação, marcada pelo duplo significado de
“estar no lugar de” ou “reduplicar algo já passado”. De acordo com a
filosofia de RICOEUR, a busca pela verdade está ligada à idéia de
representância, de uma dívida com o passado, que é, em essência,
impagável, dada a impossibilidade de sua quitação26.
Se para o historiador a dívida é para com o passado que ele busca
relatar, para os juízes, esta mesma ambição de verdade deve estar ligada a
uma pretensão de justiça, pois reflete de forma direta sobre o presente. E
logo, não pode ser esquecido que o réu não é objeto do processo, mas sim, o
fato. Ao acusado se deve uma pretensão de justiça e não somente à
sociedade, como o jargão da verdade real afirma. Portanto, é necessário que
seja estabelecida a distinção entre pretensão de justiça, onde o juiz deve
chegar a conclusões com base em um contraditório onde não lhe cabe
iniciativa, e uma pretensão de ordem punitiva, que caracteriza o princípio
da verdade real. Não há problema em dizer que o juiz deseja saber a
verdade. O problema está em lhe atribuir a iniciativa do processo e não
estabelecer os limites a que esta ambição de verdade deve estar submetida
para garantir a dignidade da pessoa humana. O poder não pode e não deve
invadir o saber. Não há mais ilusão quanto a obter a verdade exata sobre o
passado a partir de uma narrativa formada através de meros rastros, que
fazia do acusado objeto colocado diante do exercício autoritário do Estado27.

25 RICOEUR, Paul. Op cit, p.242.


26 RICOEUR dá o nome de representância (ou lugar-tenência) às relações entre as construções da
história e o seu face-a-face, a saber, um passado ao mesmo tempo abolido e preservado em seus
rastros. Para ele, o sentimento de representância implica em uma dívida para com o passado, do
qual o historiador é um devedor perpetuamente insolvente. Ibidem, p.175.
27 CARVALHO diz que “é salutar que se reconheça o processo como estrutura artificial – criada pelo

homem e sujeito à sua falibilidade – que objetiva, da forma mais justa possível, compor um jogo
de interesses em questão, no qual a eleição de um posicionamento jamais pode significar a
descoberta da única e incontroversa verdade real, mas sim, a valoração das demais versões como
não-verdades, o que não as extingue”. CARVALHO, Amilton Bueno de. Garantismo Penal Aplicado.
Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003. p.187.

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Esta perspectiva é insustentável sob dois aspectos: pela incompatibilidade


com o Estado Democrático de Direito e em função do enorme
desenvolvimento científico operado nas últimas décadas, cuja maior
característica é o reconhecimento da complexidade do real28. A
representação é excessiva. O que caracteriza o conhecimento sobre o
passado é a sua representância, incompletude em relação ao que se deseja
representar, um fato que pertence a um tempo já escoado. Não reconhecer
tal complexidade e insistir na obtenção de uma dita “verdade real” é
simplesmente inadmissível.
Trabalhar a partir de uma perspectiva complexa implica admitir que
o processo é marcado por uma função de substituição, característica da
referência indireta, própria de um conhecimento por rastro, como é o caso
da investigação histórica. É importante que se observe a noção de referência
indireta, pois ela é de grande valia para o entendimento de que o
conhecimento sobre o passado deve ser situado na esfera do verossímil. Um
conhecimento por rastros é necessária e obrigatoriamente – embora
pertinente – pertencente ao campo da plausibilidade e do verossímil29. Ou
seja, a reconstituição histórica é intuída a partir de rastros do passado que
ainda persistem no presente. Se há intuição, há subjetividade e logo,
variabilidade de resultados30. Por isso o fato intuído a partir do rastro não é
o fato que passou, mas um outro... um fato narrado, mas não trazido de
volta, não reproduzido de forma equivalente31. Pode ser percebido com
facilidade que todos os mecanismos que pretendiam oferecer acesso ao real,
de forma supostamente imparcial e objetiva, constituíam-se em exercícios
de arbitrariedade que apenas precarizavam a qualidade da verdade obtida.

28 Como afirma Morin “a grande descoberta deste século é que a ciência não é o reino da certeza”.
MORIN, Edgar. Complexidade e liberdade. In: MORIN, Edgar e PRIGOGINE, Ilya (org). A sociedade em
busca de valores: para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Instituto
Piaget, 1996. p.239.
29 Ruth Gauer, ao reportar-se a Vico, afirma que “o verossímil pode ser compreendido como uma

verdade problemática, colocada entre o falso e o verdadeiro, mas desprovido de qualquer


garantia infalível de verdade”. GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.39.
30 Toda reconstituição e toda aferição de fatos passados será necessariamente produto de uma

interpretação, de um filtro, pelo qual passam valores, crenças e convicções pessoais do


observador.
31 Para Ricoeur, “[...] seguir um rastro é raciocinar por causalidade ao longo da cadeia das operações

constitutivas da ação de passar por ali; por outro lado, voltar da marca à coisa marcante é isolar,
dentre todas as cadeias causais possíveis, aquelas que, além disso, veiculam a significância
própria da relação do vestígio com a passagem”. RICOUER, Op. cit., p.202.

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Reconstituir a partir de rastros significa pensar com e sobre a


complexidade, significa reconhecer a riqueza do objeto com que lida o
processo. Como RICOEUR coloca, é necessária a síntese do heterogêneo, da
realidade contraditória, através de uma operação de inteligibilidade, que
faça com que o descontínuo, o múltiplo, o intrincado, adquira sentido e
unidade através de uma narrativa. Portanto, não basta apenas aplicar a
norma a um mero juízo de fato, como a inocência positivista afirmava32. Ao
contrário, RICOEUR enxerga a realidade como complexa e enigmática, e logo,
para compreendê-la, uma síntese de uma heterogeneidade deve ser
realizada. Para ele, as narrativas da vida são naturalmente confusas e
caracterizadas por uma espécie de concordância-discordância.33 É uma
reflexão que se aplica perfeitamente ao âmbito do contraditório que ocorre
no processo penal. A operação narrativa que reconstrói o fato é uma
operação de inteligibilidade, que deve ser conquistada, através do
esclarecimento do inextricável. Ora, quando o juiz dá uma sentença, ele
está, por definição, dizendo que as coisas ocorreram de tal forma, através de
uma narrativa que, munida de um saber adquirido sobre o passado, exerce
um poder – o poder do Estado. O melhor caminho para o esclarecimento do
inextricável, é, sem dúvida, o contraditório com a preservação da
imparcialidade do juiz. A idéia de atribuir ao juiz a iniciativa da
investigação está por si só eivada de excesso epistêmico – típico do
cientificismo oitocentista – cujo resultado, mesmo que infalível, acaba por
estar inteiramente distante da verdade, pois não é sequer verossímil34.
Portanto, um deslocamento epistemológico é necessário, pois a realidade
não é inteligível por si só ao olhar daquele que a observa, mesmo que

32 Foi sob tal ótica, que se estabeleceu como paradigma no âmbito do Direito o positivismo jurídico,
caracterizado pela pretensão à neutralidade científica e pela aplicação automática de normas,
extraídas de um ordenamento jurídico notabilizado pela sua suposta completude e infalibilidade.
Para os positivistas, pouco ou nada importava o caráter problemático da investigação sobre o
passado e as escassas possibilidades de sua reconstituição, ainda mais na plenitude equivalente às
exigências em que o termo verdade implicaria. GUSTAVO ZAGREBLESKY afirma que esta postura
efetivamente promoveu um divórcio entre a lei e a realidade. O autor defende um círculo
interpretativo, do caso ao direito e de volta ao caso, onde face à exigência de sacrifício do caso ou
da lei, é esta última que perde. ZAGREBLESKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid, Editorial Trotta,
2006.
33 RICOEUR, Paul. Arquitetura e narratividade. In: Urbanisme. Paris, nº 303, novembre-décembre 1998.

(trad. em português).
34 SALO DE CARVALHO diz que “o processo inquisitivo é infalível, visto ser o resultado previamente

determinado pelo próprio juiz”. CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003. p.21.

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diretamente, o que não é sequer o caso do processo penal e do saber por ele
produzido.
EDGAR MORIN permite acrescentar um novo elemento de sofisticação
a esta reconstituição do passado a partir de rastros, típica do conhecimento
histórico. O autor discute – a partir da sua noção de pensamento complexo –
o princípio da recursão organizacional, valendo-se de uma metáfora para
explicar seu sentido, o processo de turbilhão35. Dessa forma, MORIN rompe
com a postura de uma causalidade contínua e propõe o reconhecimento da
complexidade de um real que é moldado por uma série de fatores
profundamente relacionados e entrecortados entre si. A idéia de
causalidade não contínua é um dos elementos estruturantes da investigação
histórica através de rastros e que também vem sendo ignorada, de forma
irresponsável. Tal “certeza” deve ser substituída por uma saudável
incerteza que reconheça o complexo e o inextricável. Diante da
complexidade, se faz imperativo que o simplismo empobrecedor da
verdade real seja sepultado e substituído pelo reencantamento do mundo,
utilizando a bela expressão de ILYA PRIGOGINE36.
A aproximação que o processo inquisitório faz em relação ao seu
objeto é inteiramente violenta e negadora de sentido. O fato, por si só,
conteve existência autônoma. O que faz com que ele adquira relevância
jurídica é a conformidade com certas características que fazem com que este
fato implique na intervenção do Estado através da figura do juiz.
Entretanto, o sentido atribuído ao evento passado será sempre exterior a ele.
Daí decorre a necessidade de limites e do reconhecimento da dificuldade
que representa a investigação sobre o passado. Seja através dos
procedimentos de conexão, como denomina RICOEUR, ou dos operadores,
como coloca GIL, não há como fazer jus às exigências em que o termo
verdade implica. Não é à toa a reaproximação entre os vários campos da
ciência que haviam se separado37. Esta reaproximação busca qualificar mais

35 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p.74.
36 Prigogine reflete que “começamos a compreender que o universo é muito diferente daquela
geometria intemporal que correspondia ao ideal da ciência clássica. O mundo que começamos a
decifrar é mais parecido com um romance, com as Mil e uma Noites”. PRIGOGINE, Ilya. O
reencantamento do mundo. In: MORIN, Edgar e PRIGOGINE, Ilya (org). A sociedade em busca de
valores: para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
p.233. grifos do autor.
37 MORIN, Edgar. Complexidade e liberdade. In: MORIN, Edgar e PRIGOGINE, Ilya (org). A sociedade em

busca de valores: para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Instituto
Piaget, 1996. p.242.

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a investigação para que não se incorra mais na ilusão de obtenção da


verdade quando, de fato, o que se obtinha era a sua negação. O
conhecimento precisa ser (re)pensado de acordo com outros parâmetros.
Como diz MORIN, “o universo é um cocktail de ordem e desordem, um
cocktail muito diferente consoante os casos, as condições, os lugares, os
momentos...”38 O autor pondera que a questão “o que é o real?” que parecia
tão evidente ressurge, e o grande desafio do conhecimento assenta no fato
de uma mesma realidade ser simultaneamente contínua e descontínua39.
O cientificismo da modernidade pretendia abolir esta
descontinuidade, buscando estabelecer leis gerais e absolutas a respeito do
real40. Tal perspectiva enxergava no contraditório uma visão
contraproducente, quando é exatamente o contrário. É através do
contraditório que os rastros de uma realidade inextricável podem adquirir
sentido e tornarem-se – ou não – provas. MORIN, ao defender as bases de
um pensamento complexo, concebeu que a ordem e a desordem podem ser
compreendidas em termos dialógicos e não meramente antagônicos. Ou
seja, a princípio, “a ordem e a desordem são dois inimigos: um suprime o
outro, mas ao mesmo tempo, em certos casos, eles colaboram e produzem
organização e complexidade”41. Portanto, multiplicidade e desequilíbrio,
bem como o contraditório, não devem ser vistos sob a ótica negativa da
anomia, mas como produtores de efeitos positivos. É a partir do
contraditório e da discussão exaustiva sobre a prova – controlada por um
juiz garantidor de princípios constitucionais – que uma verdade mais
aproximada pode ser obtida e o inextricável, em certa medida, esclarecido.
É assim que evidência, constrangida e decodificada, pode ir além da
alucinação, desprendendo-se da condição da crença, para a formação da
convicção, conforme pensa GIL42. Assim se chega à verossimilhança, única
verdade – com caráter de veritas – possível de ser obtida no processo.
No Século XIX se imaginava, a partir de um paradigma colocado
pelas ciências naturais, que através da neutralidade e objetividade seria

38 Ibidem.
39 Ibid., pp.244-245.
40 Como diz PRIGOGINE, “a idéia de certeza dominou a ciência durante séculos”. PRIGOGINE, Op. cit.,

p.236.
41 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p.74.
42 CUNHA MARTINS, Rui e GIL, Fernando. Op cit.

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revelada a verdade43. Entretanto, os rastros que o juiz e o historiador devem


decodificar são uma equação mais complexa e recheada de variáveis do que
qualquer problema das chamadas ciências exatas pode oferecer44. Inclusive,
tais ciências já abandonaram a ingenuidade de pretender obter a verdade
sobre o real45. Agora se compreende que o conhecimento relevante é obtido
através da interpretação, mediante o reconhecimento da complexidade do
real. Somente assim é possível compreender e explicar, através de uma
reconstituição que, a partir de vestígios, tem ambição de verdade, com
caráter de veritas.
Parece impensável que ainda não seja reconhecido que há uma boa
parcela de análise e subjetividade envolvida na valoração da prova46. Por
mais que o positivismo supostamente neutro e imparcial possa defender o
contrário, há uma grande parcela de interpretação envolvida. Portanto, o
conhecimento baseado em tais provas deve pertencer ao âmbito de uma
verossimilhança assegurada pelo contraditório, afastando os perigos
apontados por CORDERO e permitindo que o rastro se eleve do mundo da
evidência para a condição de prova concreta. Este processo de
decomposição e recomposição do fato, através da interpretação e sob a
forma de uma narrativa – visando uma ambição de verdade – está limitado
por rastros. E uma vez que os rastros exercem a função de lugar-tenência,
isso impossibilita que a verdade plena seja de fato, atingida. O que se atinge
não é a verdade, mas sim, uma verossimilhança significativa. Em busca da
decodificação de um objeto tão rico e multifacetado, a verossimilhança é
obtida através de relações de causalidade, contexto e circunstância, bem
como de uma certa intuição e imaginação por parte do investigador.
Embora exista a ambição, ela permanece irrealizada, em estado de
proximidade, mas não de correspondência estrita, pois o rastro vale como se

43 Para o cientificismo do século XIX, a verdade científica não seria obtida através da reflexão e
ponderação filosófica, mas sim através da exclusão da interpretação, da adoção da imparcialidade
e da separação radical entre o sujeito e um objeto rigorosamente delimitado.
44 Para GIL, “uma questão sobre a verdade em matemática não faz grande sentido, visto que aí

‘objetividade’ é indiscernível de ‘verdade’ [...] em certo sentido, em matemática não pode haver
senão verdade [...] uma proposição matemática só pode ser aquilo que é”. CUNHA MARTINS, Rui e
GIL, Fernando. Op cit, p.17.
45 Einstein demonstrou que a matemática somente é certa quando abstrata, e deixa de sê-lo quando

relacionada com a realidade. EINSTEIN. Vida e pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2002. pp.66-
68.
46 Como diz GAUER, “sabe-se hoje que a subjetividade constitui-se em uma outra parte do

real[...]”.GAUER, Ruth M. Chittó. O reino da estupidez e o reino da razão. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006. p.255.

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fosse o fato passado. Portanto, sua utilização não permite segurança


absoluta, pois a verdade em que implica é apenas indicativa e não,
correspondente47. Admitir a verdade real implica negar ao passado a sua
característica mais marcante: a sua passeidade, a sua condição de algo que
já foi e não é mais. É necessário reconhecer a complexidade que caracteriza
esta ambição de verdade.
Entretanto, mesmo com tais cuidados, a verificação do tempo escoado
jamais é plenamente satisfatória: é apenas verossímil, pois a ambição de
verdade nunca é mais do que uma ambição irrealizada, em virtude da
complexidade do objeto em questão. Em sentido semelhante, CARNELUTTI
afirma que a verdade só pode estar no todo; e o todo é demais para nós48. A
frase reforça que não dispomos de meios para apreender a imensidão do
real e estamos condenados a obter apenas frações, pois apreendemos
somente partes de um grande todo. Logo, a representância de RICOEUR:
eterna insolvência em relação ao passado que se pretende reconstruir. A
afirmação de CARNELUTTI pode ser relacionada ao que MORIN define como
o terceiro e último elemento fundamental do pensamento complexo, por
natureza contrário ao reducionismo empobrecedor do real: o princípio
hologramático. A noção implica em reciprocidade entre a parte e o todo. De
acordo com uma postura hologramática, de uma forma ou de outra, sempre
que é pesquisada a parte, o todo também se faz presente. O todo sempre
incide, em níveis de diversidade infinita no que se refere ao grau de
incidência de cada uma de suas partes, sobre cada parte individualmente.
Não há como negar o problema que isso representa para a dimensão de
saber, pois é somente através da complexa relação entre todo e parte que a
verdade poderia ser atingida. A idéia de MORIN permite, dessa forma, a
percepção de que uma pretensão teórica arbitrária – a verdade real – com
fins explicativos totalizantes apenas nega a complexidade através da
simplificação49.

47 PROST afirma que mesmo quando se atinge uma quase certeza, não pode ser abolida a diferença
entre a prova factual e a científica, e que grande parte do conhecimento sobre o passado se situa
na esfera da presunção e probabilidade. PROST, Antoine. Histoire, verité, méthodes. Des structures
argumentatives de l'histoire. In: Le Débat, n.92, nov./dec., 1996, p.135.
48 COUTINHO, Jacinto. Op cit, pp. 174-175.
49 Como diz MORIN, “a consciência da complexidade nos faz compreender que jamais poderemos

escapar da incerteza e que jamais poderemos ter um saber total: a totalidade é a não verdade”.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p.69.

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Enfim, qual é a natureza da ambição de verdade no processo, dentro


de uma concepção renovada de verdade como veritas? CARNELUTTI relata
que a sua estrada, que havia começado por atribuir ao processo a busca da
verdade, deveria ter substituído a investigação da verdade pela da certeza50.
CARNELUTTI verifica que “certeza” deriva do latim cernere, que não é ver,
mas sim escolher e, logo, selecionar, recortar. E escolha depende, sem
sombra de dúvida, de interpretação. Sendo assim, a certeza implica em uma
escolha: e esse foi o passo decisivo para que ele compreendesse não só o
verdadeiro valor do seu conceito, mas também, o drama do processo. Para
CARNELUTTI, jamais se obtém a verdade, mas somente a certeza baseada em
uma escolha, ou seja, a tomada de posição com base em uma avaliação.
Justamente aquilo que vem sendo referido como verossimilhança, baseada
em uma ambição de verdade comum ao juiz e ao historiador, que deve ser
guiada, no processo, por uma prática interpretativa mediada pelo
contraditório, onde não se pode correr, atropelando garantias. A “certeza” é
obtida através da permanente incerteza. Como diz GIL, “a verdade não tem
pedra de toque. Ou, se quiser, a sua única pedra de toque é a convicção não
apressada”51. O caminho para uma “verdade” mais segura passa pelo
contraditório, pela compreensão e interpretação, que implicam em uma
tomada de posição, e isso não tem nada de passividade. Os juizes – ao
menos os que têm consciência profissional – devem julgar no sentido forte,
de escolha, de tomada de posição, com base em provas corrigidas à
exaustão a partir do contraditório e orientadas por garantias constitucionais.
No entanto, o iter, o caminho que conduz à decisão, não deixa de ser
uma representação, como diz COUTINHO. Não deixa de ser justamente pelas
escolhas, pelas decisões, sobre rastros. É por isso que CALAMANDREI
defendia a idéia de juízo de verossimilhança à coisa julgada, que
CARNELUTTI acabou por acolher52.Diz ele: “ assim o juiz, após ter examinado
as provas, após ter escutado as razões, após tê-las valoradas, continua a
encontrar-se, em realidade, de frente a aquela dúvida, que o seu
pensamento não consegue, de nenhum modo, eliminar”53. Temos aqui
novamente a semente da incerteza no pensamento do jurista. Entretanto,

50 COUTINHO, Jacinto. Op cit, p.175.


51 CUNHA MARTINS, Rui e GIL, Fernando. Op cit, p.39.
52 COUTINHO, Jacinto. Op cit, p.183.
53 Ibidem, p.185.

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CARNELUTTI foi incapaz de relacionar essa incerteza à dimensão de saber54.


Apesar de seu esforço, como COUTINHO diz, CARNELUTTI queria salvar a
verdade e, para tanto, não podia reconhecer a encruzilhada da
verossimilhança diante da qual o juiz inevitavelmente se coloca, que é, de
fato, o que caracteriza o drama do processo. Portanto, de acordo com uma
postura que não nega a complexidade e o caráter de veritas da verdade
histórica, poderia se acrescentar à reflexão de CARNELUTTI sobre a dúvida, o
seguinte: e mesmo assim ele precisa decidir, a partir de uma reconstrução de um
fato que não equivale plenamente ao que ocorreu no passado, que jamais faz jus a
representância, pois assim como o historiador, o juiz também será sempre um
devedor insolvente em relação ao passado. O caráter de verossimilhança do
conhecimento produzido está irremediavelmente ligado ao seu núcleo de
saber, devido a esta inegável condição-limite. Não há como se obter aletheia
a partir do processo. Sendo assim, não se pode pensar mais em verdade
real, mesmo que isso possa ser, em alguma medida, conveniente e
reconfortante55.
Devemos partir para uma ambição de verdade pautada pela
verossimilhança, característica do conhecimento construído a partir de
rastros, que é condição comum ao juiz e ao historiador. Deve haver um
reconhecimento da complexidade do objeto em questão e da necessidade de
uma epistemologia da incerteza que o resignifique e, simultanemente,
atenda a princípios constitucionais, superando em definitivo o
autoritarismo inquisitório. A passeidade do passado não pode ser negada
através de um recurso primário como a verdade real. Face a esta
passeidade, dizer que a História “conta os fatos exatamente como
ocorreram” e que o processo penal opera de acordo com a verdade real é
uma falácia. Não é à toa que MORIN diz que “o conhecimento não é mais do
que uma tradução, uma reconstrução. Nós não conhecemos a essência das

54 CARNELUTTI afirma que “fala-se que o juiz é também um histórico; e todos concordam com essa
definição; mas o fazer a história é somente uma parte da sua tarefa; e talvez a menos difícil; é,
certamente, a menos tormentosa”. COUTINHO, Jacinto. Op cit, p.190. Todavia, as reflexões
realizadas aqui apontam em direção contrária.
55 Como afirma GINZBURG, “A crença na possibilidade de reconstituir o passado como um todo

através de potencialidades literárias irá ser superada pela consciência de que o nosso
conhecimento do passado é um empreendimento necessariamente desconexo, cheio de lacunas e
incertezas, alicerçado em fragmentos e ruínas.” GINZBURG, Carlo. Micro-história e outros ensaios.
Rio de Janeiro: Bertrand, 1992, p.232.

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coisas exteriores”56. Tais considerações exigem a colocação de limites ao


poder e garantias ao cidadão.
Por outro lado, afirmar que as reconstruções do passado que a
historiografia e o processo penal produzem não são mais do que ficção
baseada na realidade, mera retórica, ignorando a metodologia envolvida,
também é um equívoco, pois ignora o face-a-face a que são submetidas em
função das provas, para depois se verem reorganizadas como veritas. O
reconhecimento da complexidade não deve se tornar uma via aberta para o
relativismo exacerbado57. Em Aristóteles, a retórica não é apenas um
conjunto de efeitos de sedução, mas sim, uma argumentação sustentada por
provas, o que abre espaço para a validade ou não de tais argumentos, a
partir de seus pressupostos. Validade que, no processo, somente pode
atingir o campo do verossímil. Eis aí o sentido de uma concepção renovada
de verdade processual penal a partir da noção de verossimilhança. Logo, é a
partir da tensão permanente entre uma verdade objetiva que existiu em um
dado momento – agora já escoado – e sua impossibilidade efetiva de
afirmação em uma reconstrução narrativa, que deve operar – no âmbito da
verossimilhança e de acordo com uma perspectiva de incerteza e
complexidade – o regime de verdade do processo penal.

B IBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. Retórica. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1953.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001
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COUTINHO, Jacinto. Glosas ao verdade, dúvida e certeza, de Francesco Carnelutti, para os
operadores do Direito. IN: Anuário Ibero-americano de direitos humanos. Rio de Janeiro:
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56 MORIN, Edgar. Complexidade e liberdade. In: A sociedade em busca de valores: para fugir à
alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p.252.
57 Como define PRIGOGINE, deve ser encontrada uma “[...] via estreita entre duas concepções

alienantes do universo, a determinista, que recusa ao homem a capacidade de criar, e a outra,


céptica, que diz que o universo é aleatório, estranho à razão. É entre estes dois escolhos que se
encontra a direção a seguir”. PRIGOGINE, Op. cit., p.237.

205
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ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid, Editorial Trotta, 2006.

206
A CONFIGURAÇÃO DA TIPICIDADE DO
TRÁFICO NA NOVA LEI DE DROGAS E AS
HIPÓTESES DE CONSUMO COMPARTILHADO *
S ALO DE C ARVALHO **
M ARIANA DE A SSIS B RASIL E W EIGERT ** *
C AMILE E LTZ DE L IMA *** *

Resumo: O artigo analisa a estrutura da tipicidade na nova


Lei de Drogas e as distintas hipóteses de criminalização. A
partir do direito comparado procura abrir os espaços de
interpretação para minimizar os efeitos da política
proibicionista.

Palavras-Chave: Drogas Ilícitas – Tipicidade – Consumo


Compartilhado

1 – I NTRODUÇÃO : O P ROBLEMA DA C ONFIGURAÇÃO DA


T IPICIDADE NO T RÁFICO DE E NTORPECENTES
Em face da amplificação da diferença do tratamento penal e
processual penal que a nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06) estabeleceu para
as condutas de tráfico e do porte para consumo de entorpecentes,
entendemos importante definir chaves de interpretação constitucionais que
permitam caracterizar, com o mínimo de precisão possível, tais desvios.

* O artigo é fruto das primeiras conclusões do projeto de pesquisa “Tóxicos, Toxicômanos e


Toxicomanias”, realizado no Mestrado em Ciências Criminais da PUCRS (instituição financiadora).
** Professor Titular de Direito Penal (Graduação) e Criminologia (Mestrado em Ciências Criminais)

da PUCRS. Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito. Advogado.


*** Mestre em Criminologia e Execução Penal pela Universidade Autônoma de Barcelona.

Advogada.
**** Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogada.

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A preocupação se justifica em razão da enorme vagueza na estrutura


de criminalização, da disparidade entre as quantidades de penas previstas e
da inexistência de tipos penais intermediários com graduações
proporcionais entre os dois modelos de condutas que representam o
sustentáculo do sistema proibicionista (art. 28 e 33 da Lei 11.343/06).
É que entre o mínimo (porte para consumo) e o máximo (tráfico de
entorpecentes) da resposta penal existe zona cinzenta cuja tendência, em
decorrência da expansão do senso comum punitivo, é a de projetar a
subsunção de condutas dúbias em alguma das inúmeras ações previstas nos
18 (dezoito) verbos nucleares do tipo penal do art. 33 da nova Lei de
Drogas, assim como foi a tradição incriminadora durante o longo período
de vigência da Lei 6.368/76.
A Lei 11.343/06, no que diz respeito à elaboração de tipos
intermediários, inovou apenas em relação ao sujeito que oferece,
eventualmente e sem finalidade de lucro, droga para consumo comum (art.
33, § 3º). No entanto este tipo de conduta, segundo a tradição
jurisprudencial, sempre projetou a necessidade de desclassificação do delito
para alguma das hipóteses de consumo pessoal em face da excessiva
penalidade. De igual modo as ações de entrega ou fornecimento gratuito, que
permanecem incriminadas junto às modalidades de comércio ilegal.
Percebe-se, pois, a timidez do legislador não apenas por olvidar a
necessidade de descriminalização de algumas condutas, como por deixar de
efetivamente diferenciar ações substancialmente diversas em relação à lesão
ao bem jurídico, como é o caso do consumo compartilhado de
entorpecentes, objeto do presente trabalho.

2 – O C RITÉRIO DE I DENTIFICAÇÃO DAS C ONDUTAS


P REVISTAS NOS A RTS . 28 E 33, CAPUT , DA L EI 11.343/06
Ao serem comparadas as elementares típicas do art. 28 e do art. 33 da
Lei de Drogas, assim como ocorria entre o art. 12 e 16 da Lei 6.368/76,
percebe-se que em relação aos elementos objetivos do tipo, ou seja, às
circunstâncias que permitem identificar empiricamente a conduta para que
se estabeleça a incriminação, existe espantosa similitude, quando não plena
correspondência.
Segundo o art. 33 da Lei 11.343/06, constitui crime, entre outras treze
modalidades de condutas, adquirir, ter em depósito, transportar, trazer consigo
ou guardar drogas. Ao estabelecer as hipóteses de consumo pessoal, o art. 28

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define como incurso o sujeito que “(...) adquirir, guardar, tiver em depósito,
transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar
(...).” Nota-se, pois, correlação na integralidade dos verbos do art. 28 com
hipóteses previstas no art. 33. Lembre-se que na Lei 6.368/76 havia
correlação em apenas três modalidades de condutas (adquirir, trazer consigo
ou guardar substância entorpecente), conseqüência de o art. 16 definir como
crime “adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem
autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar.”
O diferencial entre as condutas incriminadas, e que será o fator que
deflagrará radical mudança em sua forma de processualização e punição, é
exclusivamente o direcionamento do agir (dolo específico: “para consumo
pessoal”), segundo as elementares do art. 28.
Na dogmática tradicional que se debruçou sobre a antiga Lei de
Drogas, tendência refletida de forma praticamente uníssona na
jurisprudência dos Tribunais, havia nítida diferenciação entre o agir doloso
previsto no art. 12 e aquele definido no art. 16, tendência que deve
permanecer em face da identidade entre os tipos novos e os revogados.
Assim, no tipo de injusto do art. 28 da Lei 11.343/06, o dolo não apenas
pressupõe o conhecimento de que a substância adquirida, guardada,
depositada, transportada ou trazida seja droga, idônea e capaz de causar
dependência física ou psíquica, como requer vontade específica, ou seja,
particular fim de agir (uso próprio). Ao contrário, no que diz respeito ao art.
33, por não existir referência específica à intencionalidade da ação, estaria
caracterizado o delito independentemente de sua destinação ao comércio
ilícito, sendo prescindível, inclusive, a mercancia e a efetivação da entrega
(traditio) da droga segundo consolidou a jurisprudência1.
Todavia, análise dos verbos nucleares do art. 33 da Lei de
Entorpecentes possibilita visualizar a significativa diferença entre as ações
de importar, exportar, remeter, produzir, fabricar, vender e expor à venda em
relação às de adquirir, oferecer, preparar, fornecer ainda que gratuitamente, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar e entregar de qualquer forma a
consumo. Apesar da distinta lesão ao bem jurídico tutelado (saúde pública),

1 Sobre a ampla tendência jurisprudencial neste sentido, conferir FRANCO, Alberto & STOCCO, Rui.
Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: RT, 2001, pp. 3.131-3.132.

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a quantidade de pena imposta é idêntica: reclusão de 05 a 15 anos e


pagamento de 500 a 1.500 dias-multa.
Quando da vigência do antigo estatuto, notava DELMANTO que “um
dos maiores defeitos do art. 12 é estabelecer a punição de condutas que
podem ser praticadas por outras pessoas que não os verdadeiros traficantes
de drogas. A não exigência do propósito de comércio ou fim de lucro (o art.
12 pune o fornecimento ainda que gratuito) dá margem a punições que
serão injustas, se a lei não for aplicada com prudência nesse particular”2. O
diagnóstico é ainda mais trágico em decorrência da densificação da
punibilidade às figuras do art. 33, caput e § 1º da Lei 11.343/06.
O quadro proibicionista, portanto, gera situações não muito diversas
daquelas visualizadas no revogado art. 281 do Código Penal3 ou do tipo
penal do art. 290 do Código Penal Militar4, os quais fixam com a mesma
sanção a resposta penal ao tráfico de drogas e o porte para uso próprio.
Em havendo tratamento penal/punitivo paritário em situações cuja
extensão da lesão ao bem jurídico tutelado é diferenciada, imprescindível
elaborar critérios interpretativos igualmente diferenciados de forma a
respeitar a orientação constitucional da ponderação das penas baseada no
princípio da proporcionalidade.

2 Prossegue DELMANTO sustentando que “punir-se, com as mesmas graves penas tanto o traficante
profissional que ganha a vida às custas daquele comércio, como o usuário que cede ou passa a
outro, ocasionalmente, parte do tóxico que adquiriu não seria justo. Observa-se que faltou no
elenco das punições da Lei de Tóxicos, uma capitulação intermediária entre o tráfico do art. 12 e o
porte para uso do art. 16. Como é natural, a falha levou a jurisprudência à criação de forte
corrente no sentido de que a cessão ou divisão esporádica de tóxicos entre amigos ou
companheiros, enquadra-se na punição prevista pelo art. 16 (para uso próprio), não configurando
o crime mais grave do art. 12” (DELMANTO, Celso. Tóxicos. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 18).
3 Previa o caput do art. 281, redação dada pela Lei 5.726/71: “Importar ou exportar, preparar,
produzir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma, a consumo
substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou
em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 1 (um) a 6 anos e
multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País.” Contudo, o §
1º, inciso III, estabelecia penas idênticas para quem, indevidamente, “traz consigo, para uso
próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.”
4 “Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de
qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou
psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, até cinco anos” (art. 290, Código Penal
Militar).

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3 – F IXAÇÃO DE Q UANTIDADE M ÍNIMA PARA D EFINIÇÃO DE


P ORTE PARA C ONSUMO E T RÁFICO DE E NTORPECENTES
A discussão acerca da possibilidade de se estabelecer quantidades
fixas para cada tipo de droga como critério de diferenciação entre as
hipóteses de uso e comércio não ganhou destaque na literatura nacional,
apesar das orientações normativas relativas à sua importância indiciária
estarem presentes na Lei 6.368/76 e na Lei 11.343/06.
No entanto, inúmeros países da Europa Ocidental adotam o critério
objetivo quantidade, estabelecido em lei, por ato das autoridades sanitárias
ou pela jurisprudência, como elemento primeiro de definição. O intuito é
estabelecer condições de a) obstruir a incidência repressiva (atipicidade
formal ou material – princípio da insignificância), b) presumir o uso pessoal,
e/ou c) agravar sanções penais (diferenciação entre tráfico simples e tráfico
qualificado).
No direito penal espanhol, legislação que será utilizada como
referencial, a incriminação das condutas referidas no art. 368, no art. 369 e
no art. 370 do Código Penal estabelecem quatro níveis que variam entre a
atipicidade e o tráfico qualificado. Em relação à quantidade de droga, a
jurisprudência, com base em dados provenientes das autoridades sanitárias,
especificou as diretrizes gerais da parte especial do Código, cerrando as
tipificações abertas (v.g. ‘sustancias o productos que causen grave daño a la
salud’; ‘notoria importancia la cantidad de sustancias; ‘cantidad extrema de
sustancias’). Os critérios foram estabelecidos nos seguintes termos:
1) posse de quantidade mínima que induz à presunção de consumo
próprio (fato atípico);
2) posse de quantidade moderada que indicia tráfico de entorpecentes
– art. 368, Código Penal5;
3) posse de quantidade de notória importância que ocasiona punição
agravada – art. 369, 6º, Código Penal6;

5 “Los que ejecuten actos de cultivo, elaboración o tráfico, o de otro modo promuevan, favorezcan o
faciliten el consumo ilegal de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas, o las
posean con aquellos fines, serán castigados con las penas de prisión de tres a nueve años y multa
del tanto al triple del valor de la droga objeto del delito si se tratare de sustancias o productos que
causen grave daño a la salud, y de prisión de uno a tres años y multa del tanto al doble en los
demás casos”.
6 “Art. 369. Se impondrán las penas superiores en grado a las señaladas en el artículo anterior y

multa del tanto al cuádruplo cuando concurran alguna de las siguientes circunstancias: (...) 6º.

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4) posse de quantidade expressiva de droga (extrema cantidad) a qual,


agregada a outros elementos e circunstâncias, define condutas qualificadas
– art. 370, 3º, Código Penal7,8.
Segundo a doutrina, entre a conduta atípica da posse para consumo e
a forma qualificada de extrema gravidade, são estabelecidos referenciais
quantitativos que não deixam margem de dúvidas: “(...) el Tribunal
Supremo entiende que la posesión de más de 50 gramos de hachís, es
indicativo de su destino a ser difundida la droga, desde los 50 gramos hasta
1000 gramos (1 kilo), que es el nivel mínimo a partir del cual se reputa la
droga objeto del delito, como de notória importância, hay un amplio
margen que excluye cualquier zona de coincidência o dudosa”9.
Em relação ao haxixe, p. ex., as quantidades ficam determinadas da
seguinte forma: a) até 50 gramas o fato é atípico (posse para consumo
pessoal); b) entre 50 gramas e 1 kilo, considera-se posse moderada, recaindo
a figura do tráfico simples; c) de 1 kilo a 2,5 kilos, a quantidade é de notória
importância, incidindo as penas agravadas; d) acima de 2,5 kilos, a posse
passa a ser de extrema quantidade, aplicando-se as sanções do tráfico
qualificado.
As quantias de notória importância, por serem intermediárias,
balizam o sistema escalonado espanhol e variam conforme a droga, sendo o
limite para ingresso nas formas qualificadas 750 gramas para cocaína, 300
gramas para heroína e 10 kilos para maconha, segundo dados provenientes
do Instituto Nacional de Toxicología.
A definição dos critérios e dos níveis de diferenciação, sobretudo
entre consumo pessoal e comércio de drogas, ocorre conforme cálculo

Fuere de notoria importancia la cantidad de las citadas sustancias objeto de las conductas a que se
refiere el artículo anterior.”
7 “Art. 370. Se impondrá la pena superior en uno o dos grados a la señalada en el artículo 368

cuando: (...) 3º. Las conductas descritas en el artículo 368 fuesen de extrema gravedad. Se
consideran de extrema gravedad los casos en que la cantidad de las sustancias a que se refiere el
artículo 368 excediere notablemente de la considerada como de notoria importancia, o se hayan
utilizado buques o aeronaves como medio de transporte específico, o se hayan llevado a cabo las
conductas indicadas simulando operaciones de comercio internacional entre empresas, o se trate
de redes internacionales dedicadas a este tipo de actividades, o cuando concurrieren tres o más de
las circunstancias previstas en el artículo 369.1.”
8 SORIANO SORIANO, José Jamon. La Cualificación de la Notória Importancia en los Delitos de

Tráfico de Drogas. in Delitos Contra La Salud Pública y Contrabando. SORIANO SORIANO, José Ramón
(dir.). Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2000, p. 206.
9 SORIANO SORIANO, La Cualificación..., p. 206/7.

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realizado pelas agências sanitárias acerca do consumo médio diário que


necessitaria o dependente. Definida a média diária de uso de cada droga,
este valor é triplicado em razão de o consumo ser projetado para três dias.
Importante observar, ainda, que a quantidade definida abarca
qualquer conduta relacionada ao direito penal das drogas. Ou seja, em
estando a quantidade de droga definida nos níveis inferiores ao do tráfico
simples, independente do direcionamento da ação (dolo específico),
considera-se atípico o caso.
Na experiência jurisprudencial brasileira são desconhecidas decisões
deste gênero, embora a variação entre o mínimo e o máximo da pena seja
absolutamente significativa. Apenas no que tange ao porte de pequena
quantidade de droga, sem definir especificamente qual seria o quantum,
alguns Tribunais têm optado pela aplicação do princípio da insignificância.
Na esfera legislativa, em 2002 foi apresentado à Comissão de
Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e
Narcotráfico e à Comissão de Constituição e Justiça e Redação o Projeto de
Lei 5.824/01 que, ao acrescentar parágrafo ao art. 16 da Lei 6.368/76, definia
critério quantitativo de atipicidade da conduta de pequeno porte de
maconha – “não caracteriza a conduta típica prevista no caput deste artigo
adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, a substância
entorpecente denominada maconha (tetrahidrocanabinol) em quantidade
que não ultrapasse 5 (cinco) gramas.” Embora restrito ao uso da maconha e
limitado à descriminalização de quantidade ínfima, a importância do
projeto está em pautar discussão inédita no Brasil.
Importante frisar que não se está a postular, com a introdução de
critérios quantitativos de diferenciação entre uso pessoal e comércio e entre
as várias hipóteses de tráfico, a objetificação dos elementos do tipo. A
estrutura da tipicidade do art. 28 da Lei 11.343/06 é inconteste no que tange
à incorporação do dolo específico (para consumo pessoal), sendo este o critério
substancial de definição da conduta. Todos os demais elementos previstos
no § 2º do art. 28 são, inequivocamente, indiciários e informativos (natureza
e quantidade de droga, local e condições, circunstâncias sociais, pessoais e
antecedentes do agente) à convicção judicial sobre a natureza da ação.
Ocorre que a introdução de dados quantitativos forneceria a
possibilidade de, a priori, excluir a discussão (instrução cognitiva) acerca de
casos irrelevantes ou eximir os sujeitos processuais sobre eventual a
graduação e reprovabilidade do volume do comércio. O estabelecimento de

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critérios específicos individualizados relativos à quantidade das principais


drogas de consumo criaria presunção legal (ou jurisprudencial) sobre os
limites das condutas, sem excluir os elementos relativos ao dolo e as demais
circunstâncias do art. 28, § 2º da Lei de Drogas.
Se se utilizar, p. ex., o critério espanhol das 50 gramas de haxixe ou
maconha para definição do porte ou armazenamento para uso pessoal,
estaria estabelecida cláusula de barreira que implicaria duas conseqüências:
1ª) até o limite haveria presunção legal ou jurisprudencial de uso, sendo as
condutas tratadas no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, aplicados os
institutos inerentes (transação penal e suspensão do processo); 2ª) a partir
do parâmetro quantitativo, para definição da tipicidade seriam avaliados o
dolo específico (art. 28, caput, Lei 11.343/06) e as demais circunstâncias da
conduta (art. 28, § 2º, Lei 11.343/06).
Como critério de definição da quantidade, os elementos avaliados
pela jurisprudência espanhola parecem ser absolutamente relevantes: a)
média da quantidade de doses diárias utilizadas pelo dependente; e b)
projeção do seu uso por determinado período de tempo.
A vantagem da definição de cláusula de barreira é excluir, sob qualquer
hipótese, a possibilidade de usuário sofrer os sérios efeitos da imputação de
tráfico, não apenas as conseqüências penais materiais, mas inclusive as
processuais, que em determinados casos são tão danosas quanto aquelas
(v.g. prisão cautelar).

4 – C RITÉRIOS DE I MPUTAÇÃO E D ESCLASSIFICAÇÃO NOS


C ASOS DE “C ONSUMO C OMPARTILHADO ”
Recentes julgados da Sala Penal do Tribunal Supremo da Espanha
oferecem interessantes critérios de interpretação ao denominado “consumo
compartilhado” de drogas ilícitas, conceito desconhecido da doutrina e
jurisprudência nacionais e que pode perfeitamente ser incorporado ao
direito penal brasileiro.
Interessante notar que na Espanha o problema do estabelecimento de
critérios de diferenciação entre o porte para consumo e o comércio de
entorpecentes ganha proporções semelhantes aos casos previstos na Lei
11.343/06, pois os efeitos decorrentes da imputação são substancialmente
diferenciados. Na Espanha, contudo, a quantidade das penas privativas de
liberdade para o tráfico é menor e a esfera sancionatória do porte para

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consumo pessoal em locais públicos é a administrativa, sendo as penas


exclusivamente pecuniárias (multa)10 – o consumo pessoal em locais
privados não configura ilícito, sequer administrativo.
O leading case sobre a matéria do consumo compartilhado remete a
julgado proferido pelo Tribunal Supremo em 25.05.81. O entendimento
ganhou consistência em 1991 quando a Sala Penal do Tribunal retomou o
conceito “en un supuesto de consumo conjunto e inmediato de

10 Estabelece o art. 25 da Ley Orgánica 01/1992 (Ley de Seguridad Ciudadana):


“1. Constituyen infracciones graves a la seguridad ciudadana el consumo en lugares, vías,
establecimientos o transportes públicos, así como la tenencia ilícita, aunque no estuviera
destinada al tráfico de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas, siempre que no
constituya infracción penal, así como el abandono en los sitios mencionados de útiles o
instrumentos utilizados para su consumo.
2. Las sanciones impuestas por estas infracciones podrán suspenderse si el infractor se somete a
un tratamiento de deshabituación en un centro o servicio debidamente acreditado, en la forma y
por el tiempo que reglamentariamente se determine.”
Configura, igualmente, falta grave à segurança cidadã, “la tolerancia del consumo ilegal o el
tráfico de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas en locales o establecimientos
públicos o la falta de diligencia en orden a impedirlos por parte de los propietarios,
administradores o encargados de los mismos” (art. 24, i, Ley Orgánica 01/1992).
As sanções são estabelecidas no art. 28 da referida lei:
“1. Las infracciones determinadas de acuerdo con lo dispuesto en la Sección anterior podrán ser
corregidas por las autoridades competentes con una o más de las sanciones siguientes: a) Multa
de cinco millones una pesetas a cien millones de pesetas, para infracciones muy graves. De
cincuenta mil una pesetas a cinco millones de pesetas, para infracciones graves. De hasta
cincuenta mil pesetas, para infracciones leves; b) Retirada de las armas y de las licencias o
permisos correspondientes a las mismas; c) Incautación de los instrumentos o efectos utilizados
para la comisión de las infracciones, y, en especial, de las armas, de los explosivos, de las
embarcaciones de alta velocidad o de las drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias
psicotrópicas; d) Suspensión temporal de las licencias o autorizaciones o permisos desde seis
meses y un día a dos años para infracciones muy graves, y hasta seis meses para las infracciones
graves en el ámbito de las materias reguladas en el Capítulo II de esta Ley; e) Clausura de las
fábricas, locales o establecimientos, desde seis meses y un día a dos años por infracciones muy
graves y hasta seis meses por infracciones graves, en el ámbito de las materias reguladas en el
Capítulo II de esta Ley.
En casos graves de reincidencia, la suspensión y clausura a que se refieren los dos apartados
anteriores podrán ser de dos años y un día hasta seis años por infracciones muy graves y hasta
dos años por infracciones graves.
2. Las infracciones previstas en el artículo 25 podrán ser sancionadas, además, con la suspensión
del permiso de conducir vehículos de motor hasta tres meses y con la retirada del permiso o
licencia de armas, procediéndose desde luego a la incautación de las drogas tóxicas,
estupefacientes o sustancias psicotrópicas.
3. En casos de infracciones graves o muy graves, las sanciones que correspondan podrán
sustituirse por la expulsión del territorio español, cuando los infractores sean extranjeros, de
acuerdo con lo previsto en la Legislación sobre Derechos y Libertades de los Extranjeros en
España.”

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heroinómanos que habían acudido juntos a comprar la droga, y donde se


cuestionaba incluso que hubiera habido donación”11. CALDERÓN SUSÍN
afirma, inclusive, que a partir deste julgamento a postura se consolida
vertiginosamente12.
A Corte Suprema espanhola, após o câmbio no entendimento
jurisprudencial quanto à imputação de tráfico nos casos de consumo em
conjunto de drogas por grupos, solidificou entendimento no qual
determinadas condutas de aquisição e transporte de drogas, mesmo acima
do limite permitido para uso pessoal, configurariam situações de “consumo
compartido”. A conseqüência da desclassificação é nitidamente de
descriminalização judicial da conduta em face da atipicidade do porte para
consumo pessoal naquele país. Alguns casos recentemente julgados são
importantes para verificar a extensão dos argumentos.
No Recurso de Casación 184/2001 (Resolución 1585/2002), a Sala Penal
do Tribunal Supremo estabeleceu importantes critérios para definição das
hipóteses de enquadramento de condutas no consumo compartilhado.
“Crimen contra la salud pública. Requisitos para que el
‘consumo compartido’ pueda ser atípico. Análisis del art. 56 CP.
Quebrantamiento de forma por contradicciones en los
fundamentos (inexistente). Atenuante 2ª del art. 21 CP
(inexistente)” (Tribunal Supremo, Sala de lo Penal, Madrid,
Recurso de Casación 184/2001, Resolución 1585/2002, fecha de
resolución 30.09.2002).
No caso, os processados foram condenados pela Sección Primera de la
Audiencia Provincial de Burgos, a pena de três anos de prisão, inabilitação
para o exercício do direito de sufrágio passivo durante o tempo da
condenação e multa de 250.000 pesetas pela prática do delito contra a saúde
pública. Em síntese, os réus tiveram seu veículo detido pela patrulha
policial que logrou encontrar 02 porções de haxixe (cerca de 3,7 gramas) e
bolsa na qual era transportada anfetamina. A anfetamina pura (5,62 gramas)
houvera sido adulterada com cafeína, adquirindo peso total de 67 gramas.
As circunstâncias demonstraram serem os acusados consumidores

11 CALDERÓN SUSÍN, Eduardo. La Posesión de Drogas para Consumir y para Traficar: el Consumo
Compartido. in Delitos Contra La Salud Pública y Contrabando. SORIANO SORIANO, José Ramón (dir.).
Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2000, p. 41.
12 CALDERÓN SUSÍN, La Posesión..., p. 42.

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esporádicos (consumo de final de semana) de haxixe. Irresignados com a


condenação, interpuseram recurso de cassação.
Embora mantida a decisão da província de Burgos, o Tribunal
Supremo estabeleceu requisitos genéricos para definição do consumo
compartilhado. Em face de o bem jurídico nos delitos de tráfico de
entorpecentes ser a saúde pública, sua ofensa ocorreria apenas quando
houvesse efetiva possibilidade de transmissão da droga para terceiros não
pertencentes ao grupo de consumo. Segundo o julgado, apesar da
jurisprudência variar o entendimento quanto à configuração de crime nas
hipóteses de oferta ou transmissão gratuita de droga ao consumo13, os casos
de consumo compartilhado indicariam atipicidade. Em face de o consumo
pessoal não ser delito na Espanha, o uso compartilhado passou a integrar
este conceito, ou seja, tornou-se espécie do gênero atípico.
Assim, para o reconhecimento do consumo compartilhado, o Supremo
Tribunal pressupõe a exclusão de qualquer perigo para o bem jurídico
protegido. A exclusão ocorreria quando presentes, genericamente, os
seguintes requisitos: a) dependência dos consumidores na droga adquirida;
b) consumo futuro realizado em local fechado sem risco de difusão para
terceiros; c) quantidade pequena de droga que possibilite o consumo
imediato, evitando risco de armazenamento que exceda o consumo
compartilhado; d) consumo sem transcendência social; e e) identificação das
pessoas que integram o grupo de consumidores. Ausentes estas
circunstâncias, a atividade de intermediação de drogas passaria a ser
considerada punível em virtude de a conduta não excluir o risco potencial
ao bem jurídico.
A Sala Penal do Tribunal Supremo, ao julgar caso com características
não muito distintas – Recurso de Casación 81/2002 (Resolución 237/03) –,
manteve decisão da Sección Tercera da Audiencia Provincial de Valencia que,
em 14.11.01, absolveu réu denunciado pela prática de delito de tráfico de
entorpecentes. Ao apreciar o recurso da acusação, a Suprema Corte julgou a
matéria, apresentando a seguinte ementa:
“Delito contra la Salud Pública – Atipicidad del consumo
compartido – Aprehensión de 100 pastillas de MDMA
desconociendo porcentajes de pureza, destinadas a una

13 A decisão menciona, contudo, o reconhecimento pelos Tribunais da atipicidade em casos de


fornecimento altruísta de pequena quantidade de droga para auxílio de dependentes em processo
terapêutico ou para impedir os riscos da síndrome de abstinência.

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celebración de cumpleaños entre 25 personas – Cumplimiento de


los requisitos que exige la jurisprudencia para permitir tal
atipicidad – Importancia del análisis individualizado de cada caso
– Desestimación del recurso del Ministerio Fiscal” (Tribunal
Supremo. Sala de lo Penal, Madrid, Recurso de Casación 81/2002,
Resolución 237/03, fecha de resolución 17.02.03).
No relatório, a síntese do caso: o recorrido fora preso em flagrante
portando 100 pastilhas de ecstasy (MDMA), que analisadas apresentaram
peso líquido de 21,74 gramas de substância entorpecente. Segundo a prova
produzida, as pastilhas teriam sido adquiridas pelo acusado, em concurso
com inimputável (menor de idade), e eram destinadas para o consumo de
grupo de amigos por ocasião de festa de aniversário. Os participantes do
evento, de comum e prévio acordo, haviam colaborado com quantidade em
dinheiro, cerca de 2.000 pesetas por pessoa, para comprar as pastilhas e
reparti-las durante a festa. O total da aquisição foi de 50.000 pesetas. Ao não
ser comprovada a destinação de tráfico ou a obtenção de lucro patrimonial
ilícito, a versão defensiva foi adotada pelos magistrados, sendo
desclassificada a conduta de tráfico para uso pessoal, na modalidade
compartilhada, circunstância que definiu sua atipicidade. A acusação
recorreu argumentando não estarem presentes os cinco requisitos exigidos
pela jurisprudência da Sala Penal da Suprema Corte.
Acontece que o Tribunal Supremo manifestou-se favoravelmente ao
julgado da Corte de Valencia, alterando, inclusive, os pressupostos
tradicionalmente aplicados. A modificação mais evidente e substancial foi
no que tange ao requisito de que todos os membros do grupo de uso
conjunto devessem ser dependentes. Em relação à condição de toxicômanos,
a decisão aduziu que o motivo de inclusão desta circunstância
(dependência) como pressuposto da desclassificação é evitar a captação ou
integração no grupo de terceiros não consumidores. Neste quadro, a
interpretação foi no sentido de identificar nos integrantes do grupo certo
padrão de consumo, no caso as formas usuais de uso das drogas sintéticas –
v.g. ecstasy (MDMA): derivado sintético da anfetamina. Em sendo comum o
consumo de fim de semana, geralmente no contexto de festas, houve o
reconhecimento formal pela Corte da possibilidade de desclassificação do
consumo compartilhado em situações de não-dependentes14.

14 “En relación a la condición de adictos, en la medida que la razón de ser de tal requisito es evitar la
captación o integración en el grupo de quien no es consumidor, debe ser interpretado en el

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O julgado é paradigmático pois determina reformulação importante


da condição de toxicômano como requisito para aplicação do consumo
compartilhado, não devendo ser interpretado o critério como de
direcionamento exclusivo aos dependentes strictu sensu, podendo ser
ampliado aos consumidores eventuais. A relativização do requisito tem sido
constante nos julgamentos da Corte15.
Outra abordagem interessante da decisão diz respeito à exigência de
quantidade pequena de droga, capaz de ser consumida no evento, de forma
a se evitar riscos de proliferação para não consumidores através do
armazenamento (transcendência social). O julgado reafirmou a necessidade
de haver proporcionalidade entre o número de pessoas integrantes do
grupo de compartilhamento e a quantidade de droga. No caso, eram 25
pessoas, tendo sido apreendidas 100 pastilhas com pesagem de 21,74
gramas16. A quantidade foi admitida não apenas pela inexistência de dados

sentido de que las personas integrantes del grupo respondan a un patrón de consumo que por lo
que se refiere a los supuestos de consumo de drogas sintéticas, el MDMA es un derivado sintético
de la anfetamina, el patrón de consumo más habitual responde al consumidor de fin de semana,
generalmente en el marco de fiestas o celebraciones de amigos. Ello supone una matización o
modulación importante de la condición de “adicto” que no debe interpretarse como drogadicto
strictu sensu, sino como un consumidor de fin de semana como ya se ha dicho” (Tribunal
Supremo, Sala de lo Penal, Madrid, Recurso de Casación 81/2002, Resolución 237/2003, fecha de
resolución 17.02.03).
15 A título de exemplificação:

“Tráfico de Drogas. Consumo compartido, como causa excluyente de la responsabilidad criminal:


ausencia de antijuricidad material. Relatividad del concepto de adicto o drogodependiente.
Ampliación a los consumidores habituales de fin de semana” (Tribunal Supremo, Sala de lo Penal,
Madrid, Recurso de Casación 365/2003, Resolución 286/2004, fecha de resolución 08.03.04).
16 “En relación a que la cantidad de droga sea pequeña y capaz de ser consumida en el acto,

evitando el riesgo de almacenamiento, es evidente que la cantidad de droga debe disponerse en


relación con el número de personas integrantes del autoconsumo compartido. Este número se ha
dicho que era de veinticinco, existiendo quince totalmente individualizadas con sus nombres y
apellidos pues acudieron al Plenario a declarar como testigos.
La cantidad ocupada fue de cien pastillas de MDMA con un peso de 21,74 gramos. Al respecto
efectúa el Ministerio Fiscal un cálculo del número de dosis que no se puede compartir porque no
existe en autos la analítica correspondiente que determine la pureza de cada pastilla, y, en
definitiva el porcentaje de droga en sentido propio, excluyéndose los excipientes.
En efecto, al folio 48 y siguientes consta el informe de sanidad respecto de la droga ocupada de la
que exclusivamente afirma ser MDMA y que los comprimidos más los restos tenían un peso de
21,74 gramos, pero no existe una analítica de la cantidad neta de MDMA que tengan las pastillas,
y en este contexto no es admisible el cálculo que efectúa el Ministerio Fiscal en su recurso en el
que le concede a dicho peso el 100/100 de substancia alucinógena – en idéntico sentido STS
983/2000 de 30 de Mayo.
Es cierto que la dosis de MDMA se cifra entre 50 y 150 miligramos – STS de 14 de Febrero de 1996
– y que la dosis tóxica de un adicto se cifra en 480 miligramos, cantidad que se tuvo en cuenta en

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quanto à pureza de cada pastilha, mas pelo fato de estarem presentes os


demais critérios jurisprudenciais de verificação do uso.
A partir das premissas jurisprudenciais, portanto, a doutrina
espanhola conceitua o consumo compartilhado de entorpecentes como
modalidade de autoconsumo não punível, sendo “la base argumental con
que se llega a la impunidad es la de que, siendo la salud pública un bien
jurídico colectivo, no padece tal bien cuando no concurre o hay riesgo o
peligro para la salud de terceros que (en caso del consumo compartido entre
adictos) las cantidades disponibles por los copartícipes no rebasen los
límites de un consumo normal y sea inmediato, y no medie
contraprestación remuneratoria alguna por parte de los drogodependientes;
es pues un razonamiento basado en criterios de antijuricidad material”17.
A construção da tese, segundo a lição de Calderón Susín, é
direcionada essencialmente a dois grupos: a) os toxicômanos que usam
conjuntamente drogas; e b) usuários eventuais que formam fundo comum
destinado a adquirir a droga para uso compartilhado em ocasiões
específicas18.

5 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS
A recepção do conceito do consumo compartilhado ou dos critérios
de quantificação das drogas para definição das hipóteses de tráfico ou porte
para uso pessoal inegavelmente possibilitariam redução substancial do
nível de encarceramento no Brasil.
A experiência tem demonstrado a enorme quantidade de pessoas
presas em situações limítrofes, no hiato entre tráfico e porte para consumo.

el Pleno no Jurisdiccional de Sala de 19 de Octubre de 2001 para situar la aplicación del subtipo de
notoria importancia en relación al MDMA por encima de 240 gramos, pero en el presente caso no
se puede efectuar cálculo alguno de posible número de dosis de consumo o dosis de adicto pues
se carece de todo dato de la cantidad porcentual de MDMA que contuvieran las pastillas, siendo
usual que el porcentaje puede oscilar sensiblemente en relación al peso total y así ad exemplum,
STS 1486/99 de 25 de Octubre, el MDMA allí analizado tenía unas concentraciones del 28’5% y
15'7%, y en la STS 1408/2002 de 26 de Julio la concentración fue del 33'2% ó la STS 1829/2002 de
31 de Octubre que recoge 214 pastillas de MDMA que sólo contienen ‘trazas’.
Dada la carencia de la analítica expuesta, el número de pastillas y de personas integrantes del
grupo, no hay datos para afirmar que el proyectado consumo de cuatro pastillas por persona se
aleje de un consumo compartido pequeño e intranscendente (…)” (Tribunal Supremo. Sala de lo
Penal, Madrid, Recurso de Casación 81/2002, Resolución 237/03, fecha de resolución 17.02.03).
17 CALDERÓN SUSÍN, La Posesión..., pp. 42/3.
18 CALDERÓN SUSÍN, La Posesión..., pp. 42/3.

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A observação das variações jurisprudenciais no Brasil permite afirmar que


normalmente em circunstâncias de consumo compartilhado são imputadas
condutas relacionadas às hipóteses de tráfico. Mais: não invariavelmente
nestas circunstâncias, em face do número de pessoas envolvidas, a
imputação de tráfico tende a ser fixada em concurso material (art. 69, CP)
com as figuras relativas à associação.
Face à expansão do senso comum punitivo, em situações dúbias ou
sem previsão explícita, os princípios e garantias fundamentais
constitucionalmente previstos, notadamente a presunção de inocência e a
ampla defesa, acabam sendo invertidos, maximizando a incidência do
direito penal e ampliando a prisionalização.
Notório, porém, serem absolutamente desproporcionais os efeitos de
interpretações que igualizam pena em condutas com lesão absolutamente
diferenciada ao bem jurídico tutelado. Desta forma, mecanismo idôneo a
auxiliar os operadores do direito é a incorporação do direito penal e da
jurisprudência penal comparada como fonte de alteração dos rumos do
direito penal das drogas no Brasil, reduzindo os danos provocados pelo
proibicionismo.

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