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AUTORITARISMO E

PROCESSO PENAL
UMA GENEALOGIA DAS IDEIAS
AUTORITÁRIAS NO PROCESSO
PENAL BRASILEIRO

Ricardo Jacobsen Gloeckner


Ricardo Jacobsen Gloeckner

Copyright© 2018 by Ricardo Jacobsen Gloeckner


Editor Responsável: Aline Gostinski
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de
Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da
Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss AUTORITARISMO E
PROCESSO PENAL:
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
UMA GENEALOGIA DAS IDEIAS AUTORITÁRIAS
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
G48a

Gloeckner, Ricardo Jacobsen


Autoritarismo e processo penal [recurso eletrônico] : uma genealogia das ideias
autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1 / Ricardo Jacobsen Gloeckner. - 1. V. 1
ed. - Florianópolis [SC] : Tirant Lo Blanch, 2018.
recurso digital ; 2 MB

Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-9477-187-2 (recurso eletrônico)

1. Direito penal - Brasil. 2. Processo penal - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

18-51089
CDU: 343.2(81)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439

12/07/2018 19/07/2018
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/
ou editoriais.
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Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

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Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Dedico este livro à Joseane,

Que por intermédio de uma espiral da mais cândida transcen-


dentalidade fosse possível expressar,
Sem os sortilégios infecundos de uma pletora de clichês,
Através de uma linguagem que fosse mais pregnante de sentido
que a própria ancestralidade,
Que se não esgotasse em motivos que mimetizam, mas não
conseguem criar...
Aquilo que para mim é ar...ar que se respira, que se vive e
que se pereniza
Ar que se articula no infinitivo do verbo amar...
Como o infinito do desejo, qual bruma a morrer em cada vez
que beija a areia,
Que só o amor e que no amor aprisiona,
Um tanto de mim, a melhor parte.
APRESENTAÇÃO

O presente texto é originário do primeiro encontro do grupo de Ex-


tensão “Curso Interdisciplinar de Processo Penal”, realizado na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul durante o ano de 2015. Este
primeiro encontro, datado de 17 de abril de 2015, foi degravado e posterior-
mente expandido. A expansão do texto também se deu em virtude de um
curso, ministrado junto à Universidade de São Paulo, chamado Autoritarismo
e Processo Penal, no ano de 2017, dividindo a fala com o grande professor Dr.
Geraldo Prado, a convite do meu grande amigo Maurício Dieter, por quem
tenho a mais sincera admiração.
Portanto, o texto pretendeu, na medida do possível, manter a forma
oral, tanto quanto necessário, com algumas reformas, no intuito de melhor
exprimir uma ideia, aclará-la ou ainda, aprofundar determinadas questões.
Igualmente, procurou-se utilizar uma linguagem mais simplificada, até
mesmo pelo fato de que em tais encontros do grupo havia a presença de
acadêmicos da graduação do curso de direito da PUCRS e de outras insti-
tuições, muitos ainda se familiarizando com o direito e especialmente, com
os limites desta pesquisa. Desta maneira, para evitar um discurso hermético
e esotérico, preferi tentar “didaticamente” explorar determinadas categorias,
em muitas oportunidades renunciando à verticalização de temas contíguos
ou aqueles que de alguma maneira, poderiam não fazer muito sentido ime-
diato aos acadêmicos.
Os encontros, que abordaram diversos temas fundamentais do processo
penal, dentre eles este que o leitor tem em mãos, chamado “Autoritarismo
Processual Penal”, se sucederam a partir de meus grupos de pesquisa “Res-
significações do Autoritarismo Processual Penal” e “Pensamento Político e
Criminológico”. Desta maneira, inevitável o caráter interdisciplinar dos es-
tudos, mormente pela confluência, além do processo penal, da criminologia,
filosofia e ciência política. Tal abordagem pode ser estranha àquele que espera
uma leitura essencialmente processual do fenômeno.
8 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER APRESENTAÇÃO 9

Esta pesquisa segue, igualmente, outras tantas que vêm ocorrendo no pelas interlocuções.
Brasil, a despeito do tema “autoritarismo”. Com efeito, pesquisadores – dos Este livro procura, como objetivo geral, cruzar, de maneira transversal,
quais sou profundamente devedor – como Geraldo Prado, Rubens Casara, aquilo que se poderia denominar como “autoritarismo processual penal” no
Diogo Malan, Juarez Tavares, Fauzi Hassan Choukr, Jacinto Coutinho, Aury Brasil, colocando em exame a categoria “instrumentalidade” do processo.
Lopes Jr, Rui Cunha Martins, Nereu Giacomolli, Maurício Dieter, Augusto Com efeito, mais do que um exame exaustivo do assunto, procuraremos
Jobim do Amaral e outros tantos que não caberiam nesta apresentação, pro- demonstrar a penetração das expressões autoritárias no ideário da categoria
moveram, através de inúmeros diálogos, o “start” necessário que configurou instrumentalidade. Como o curso, a leitura é endereçada, fundamentalmente,
esta interface entre pensamento político (fundamentalmente de onde deriva àqueles que se iniciam na pesquisa. Evidentemente, espero, também, colabo-
a categoria “autoritarismo”) e o campo processual penal, que possui relações rar, oferecendo pistas, aos pesquisadores que, na área processual penal, ainda
profundas com a ciência política (e que não deve se esgotar apenas no trata- não desistiram de um processo penal democrático.
mento doutrinário do tema “sistemas processuais”).
Porto Alegre, julho de 2018.
O curso originariamente foi idealizado como uma espécie de série de
“relatórios de pesquisa”, isto é, a divulgação de resultados que servissem
como canal de difusão da produção oriunda dos grupos de pesquisa por
mim coordenados na PUCRS. Sem dúvidas, neste ciclo, beneficiei-me de
algumas inúmeras observações, críticas e perguntas que me foram endere-
çadas e que me permitiram refletir melhor e mais profundamente sobre a
temática, de forma a aperfeiçoar o campo sobre o qual havia circunscrito
meus objetos de pesquisa.
Outrossim, não seria possível avançar sem também revelar os meus
agradecimentos ao grupo de jovens acadêmicos que participou do curso (dos
graduandos aos doutorandos e demais pesquisadores). Em especial, ao Dimy-
trius Thiago Peixoto Fagundes, Daniela Chies Portal e a Thais Oliveira, que
generosa e corajosamente, levaram a cabo a tediosa tarefa de degravar os
áudios dos encontros.
Agradeço também fortemente aos amigos e professores Yuri Felix, Felipe
Lazzari, Roberto Freire e Renzo Orlandi que me auxiliaram com o material
bibliográfico, além é claro, do serviço da biblioteca da PUCRS, que foi muito
eficiente no rastreamento de todo o material histórico. Agradeço ainda à
Tyrant lo Blanch/Empório do Direito, por viabilizar a publicação, cujos agra-
decimentos faço nas pessoas da Aline e da Fernanda e a PUCRS por garantir
a realização do trabalho, oferecendo as condições necessárias de tempo e co-
dições materiais para que a empreitada fosse levada a cabo. Por fim, agradeço
à minha família e aos amigos Marco Antonio Scapini e Jeferson Dutra.
Certamente ficam de fora muitas pessoas a quem eu deveria nominal-
mente agradecer. Agradeço de maneira muito viva aos acadêmicos da PUCRS
PREFÁCIO

Este prefácio está sendo escrito em tempos de crise da noção de demo-


cracia conforme consagrada no período posterior à Segunda Guerra Mundial.
O primado exclusivo do governo da maioria provou ser um instrumento
manejável em uma sociedade de massas, dispositivo dotado de potência capaz
de submeter as pessoas a condições de vida indigna. O governo da maioria é
necessário à consolidação da democracia, mas não é o que basta para que ela,
democracia, se realize plenamente.
O controle do exercício do poder, mesmo do poder em tese legitimado
pelo voto da maioria, revela-se imprescindível em contextos nos quais a ca-
pacidade de conformar o futuro alheio implica na possibilidade de ampliar
formas de dominação que, no extremo, pervertem o conceito de Direito,
manipulam a ideia de justo e disseminam a convicção de que a eliminação do
Outro está justificada em determinadas circunstâncias, que por evidente são
sempre aquelas circunstâncias definidas pelos que exercem o poder.
O ponto de equilíbrio entre representação popular, exercício direto do
poder e prática de controles antimajoritários orientados à tutela da dignidade
de todas as pessoas e à preservação da vida no planeta está concretamente
afetado pela tempestade autoritária que parece varrer o globo.
O Brasil não está imune à poderosa ventania do arbítrio. A brisa auto-
ritária em realidade nunca esteve ausente. Ao contrário, como as correntes
de ar de nosso litoral norte, que permanentemente não dão tréguas às terras
que por ironia serviram de inspiração ao clássico «Iracema», do conservador
José de Alencar, as práticas autoritárias jamais desapareceram do cenário do
nosso cotidiano.
O que se experimenta na atualidade, no entanto, é o ressurgimento viril
– a violência das práticas do arbítrio renascido é «machista» – preconceituoso
– o cárcere e a morte violenta são o destino preferencial de pretas e pretos,
conotando o inescondível «racismo» da nossa realidade – e classista das ações
12 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER PREFÁCIO DE GERALDO PRADO 13

e da mentalidade autoritárias. identificam em uma legislação «hipergarantista», legislação essa que nada mais
Não surpreende que em uma trágica reprodução dos discursos moralistas seria que a própria Constituição.
de Francisco Campos, proferidos nos anos 30 do século passado, com respaldo Na mesma toada e com igual intensidade, princípios e regras constitu-
em um consenso autoritário que tornou possível o Estado Novo, a ditadura cionais de limitação do poder punitivo foram despejados das práticas penais,
Vargas, a perseguição, prisão, tortura e morte por motivos políticos, sejam recuperando-se, em alguns casos literalmente, as normas jurídicas do período
ouvidas conclamações de importantes autoridades em desfavor da liberdade. mais autoritário de nossa história republicana.
As dolorosas páginas de um extraordinário trabalho de arqueologia do A prisão automática do acusado que responde a processo perante o
saber jurídico-penal brasileiro e de rastreio da genealogia do poder inscrito em tribunal do júri, abolida formalmente em 2011, mas pelo menos desde 2008
nossa vida republicana não podem iniciar sem que, no seu preâmbulo, o prefa- considerada incompatível com a Constituição pós-ditadura, foi restabelecida
ciador chame atenção para as semelhanças discursivas entre passado e presente para o condenado em moldes quase idênticos aos da época do Estado Novo
e os riscos à democracia que tais semelhanças implicitamente carregam. e do Decreto-lei nº 167, de 1938.
Aos magistrados recentemente fez-se convocação para «combater a cor- O episódio da repristinação da prisão automática do condenado pelo
rupção e os privilégios de uma minoria muito bem protegida... os corruptos... Tribunal do Júri é um exemplo das estratégias de argumentação que na obra
pessoas que são libertadas a granel de maneira que desprestigia os juízes de prefaciada identificam-se com métodos de ressignificação por meio da «eufe-
primeiro grau que enfrentam essa cultura de desigualdade que sempre pro- mização de certas categorias e usos no direito processual».
tegeu os mais ricos.»1 A soberania dos jurados que a Constituição alberga no inciso XXXVIII
Aqui não se trata somente de fustigar a liberdade – como princípio, do artigo 5º é um direito individual do imputado que se caracteriza por
como regra e como ideal. Colocado o discurso em seu contexto e analisadas as colocar o titular em uma posição jurídica favorável em face do exercício do
decisões em matéria criminal proferidas no âmbito dos tribunais superiores do poder punitivo. Sua história no Brasil remonta à reação liberal posterior às
Brasil, hoje é visível a tendência a não aplicar as garantias que a Constituição estratégias políticas autoritárias que levaram à modificação instituída no júri
da República de 1988 consagrou em nosso presumido retorno ao seio das em 1842, pela Lei nº 261. Naquela oportunidade o objetivo era assegurar o
comunidades de tradição democrática. controle político dos julgamentos dos rebeldes da insurgência denominada
A degeneração autoritária revelou-se paulatinamente pelo prestígio à «Balaiada» pelo poder central (1838-1841 – Maranhão).
figura do juiz inquisidor, representado de modo quase teatral por magistrado Na ocasião o júri, como dispositivo de punição, harmonizou-se com os
que, rebelando-se contra as vigentes regras do direito processual penal, tomou amplos poderes que o governo central havia concedido a Luís Alves de Lima
para si a tarefa de investigar, processar e punir «os corruptos», categoria esgarçada e Silva, em 1840/1841, para conter os liberais Bem-te-vi e os escravos que se
na qual cabem e descabem pessoas a critério exclusivo de quem exerce o poder. aliaram contra os desmandos conservadores dos Cabanos, desmandos que em
O princípio da separação dos poderes, caro à República, aos poucos foi alguma medida recebiam o incentivo do governo central.
convertido em desejo utópico de idealistas inconformados com os «desafios» A recuperação do júri como garantia individual e sua significação histó-
que a contemporânea criminalidade de Estado e de Mercado supostamen- rica neste preciso sentido são obra da Constituição de 1988. No entanto, neste
te impunha aos juízes, em uma nova ordem messiânica, política, jurídica e campo a tradição autoritária, como se vê, deita raízes no século XIX, escora-se
econômica, encarregando-se os neomissionários da Justiça – alguns magistra- no silêncio da Constituição do Estado Novo (1937), para ser amenizada
dos e membros do Ministério Público – de corrigir as «falhas naturais» que somente em 1973, ironicamente em benefício de um conhecido torturador.
1. AMAERJ. Barroso elogia trabalho de juízes no combate à corrupção. Data: 25 de maio de 2018. Na opinião do prefaciador, a operação recentemente levada a cabo pelo
Disponível em: http://amaerj.org.br/noticias/luis-roberto-barroso-elogia-trabalho-de-juizes-de-primei-
ro-grau-no-combate-a-corrupcao/. Consultado em 30 de maio de 2018.
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Supremo Tribunal Federal (STF),2 de conversão do júri de dispositivo de tutela “A CF/88 é insistente na proteção da liberdade não só no seu conjunto, como
da liberdade do acusado em mecanismo de instrumentalização do poder de já analisado, como nas suas partes. Já no “Preâmbulo” ela institui um Estado
Democrático de Direito, destinado a garantir a liberdade. E no capítulo dos
punir, em desfavor do titular da garantia, ilustra o acerto das teses sistematizadas
direitos e das garantias individuais inicia garantindo aos cidadãos a inviolabi-
no presente livro, pois que a mencionada operação é paradigmática do perfor- lidade do direito à liberdade para, em seguida, instituir uma série de direitos
mativo jogo de linguagem associado à pretensa neutralidade da técnica jurídica. mais específicos (liberdade de manifestação do pensamento, de consciência e
O método técnico-jurídico em voga em meados do século passado na de crença, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, de
associação para fins lícitos) e de garantias destinadas à efetivação da liberdade
Itália, via pela qual chegou ao Brasil, como elucida o autor de «Autoritarismo (recebimento de informação dos órgãos públicos, impetração de mandado
e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal de segurança ou de habeas corpus).”4
brasileiro», esbarra, porém, nas disposições constitucionais, que não apenas A hermenêutica autoritária, no entanto, volta às costas às perspectivas teóricas
conferem status normativo aos princípios como reorientam os critérios de inter- que se desenvolveram no círculo da dogmática do nosso processo penal de
pretação e aplicação das normas jurídicas em nosso ordenamento, conferindo à 1988 em diante.
liberdade a preponderância que as democracias modernas reconhecem, em oposição Reinstaura-se a dimensão pragmática no nível que colonizou o processo penal
aos valores coletivistas que inspiraram os autoritarismos do século vinte. brasileiro em seu período mais rudimentar, que remonta ao século XIX. A
instauração dessa dimensão pragmática, todavia, tem notas que absorvem
À «segurança jurídica», no contexto dessa nova tradição democrática ins-
experiências autoritárias de diversas épocas, incorporando a ideologia da
pirada nas condições político-jurídicas do processo Constituinte de 1987-1988, «instrumentalidade do processo» e as vertentes neoliberais que, no plano da
importa o elemento material. O que, afinal, se «assegura» é no mínimo tão rele- circulação das ideias processuais penais, em contexto de globalização jurídica,
vante quanto a própria condição de asseguramento. confere aura de «moderno» ao que objetivamente é atrasado.
Ao tratar do tema à luz das premissas clássicas, em obra de referência, O autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias au-
Humberto Ávila colocou em destaque a perspectiva tradicional da «segurança toritárias no processo penal brasileiro» lança luz acerca das condições de
constituição de um «saber praxista, divorciado da experiência acadêmica,
jurídica». São suas palavras: intuitivamente repetindo a fórmula dicotômica law in books e law in action».
“De outro lado, porém, pode-se defender que a segurança jurídica exige a ele- Sem dúvida que pelo ângulo funcional o «praxismo processual penal» é ex-
vada capacidade do cidadão de compreender os sentidos possíveis de um texto poente de uma «determinada governamentalidade criminal» que o autor do
normativo, a partir de núcleos de significação a serem reconstruídos por meio livro, a nosso juízo de maneira adequada, no caso brasileiro filia à perspectiva
de processos argumentativos intersubjetivamente controláveis. É nesse sentido ideológica de Francisco Campos.
que se fala em determinabilidade e certeza (relativa) do Direito. É igualmente
nessa acepção que parte da doutrina qualifica a segurança jurídica como algo Seu reaparecimento em cena, conforme o prefaciador, inscreve-se no mesmo
a ser progressivamente atingido. O mesmo Kelsen, em estudo posterior, não registro autoritário. À diferença – parcial – dos tempos do Estado Novo, a
mais utiliza o termo ‘ilusão’, porém emprega o termo ‘ficção’ para descrever um ruptura entre dogmática do processo penal sob a inspiração da Constituição
ideal que pode ser ‘aproximadamente realizável’ (annährungsweise realisierbar). de 1988 e o law in action atual, que corre dos tribunais superiores para a
É também nesse sentido que a doutrina, notadamente tributária, refere-se ao base da magistratura e do Ministério Público, mas também segue na dire-
princípio da legalidade ‘estrita’ ou tipicidade material ‘aberta’.3 ção oposta, de Curitiba para Brasília, está ancorada na chamada «circulação
simbólica de modelos».
Ao examinar o conceito de «segurança jurídica» pelo prisma material
mais uma vez é Humberto Ávila quem discorre acerca da preponderância da Ao apresentar a obra de Elisabetta Grande sobre imitação de modelos, Luís
Fernando Sgarbossa cuida de chamar atenção para o que, na nossa opinião,
proteção da liberdade. exprime uma das mais dolorosas estratégias de governo criminal em curso,
que é a manipulação conceitual e semântica de ferramentas teóricas que
2. Habeas Corpus nº 118.770/SP. Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Marco fazem parte do repertório de outras culturas jurídicas e que, a pretexto da
Aurélio. Redator do acórdão: Min. Luís Roberto Barroso. Paciente: Marcel Ferreira de Oliveira. Impe-
trante: Marcel Ferreira de Oliveira. Data de julgamento: 07 de março de 2017.
3. ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 137. 4. ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 233.
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globalização e com o objetivo de punir estamentos historicamente imuni- situar as pessoas em seus círculos políticos, conforme as ideias que professam
zados contra a persecução criminal, faz circular a «idealização» de regras, e praticam na arena pública.
institutos e teorias jurídicas estrangeiros e não as próprias regras, institu-
tos e teorias. Convém mencionar a passagem da apresentação ao «Imitação Assim, por exemplo, não se pode ignorar que o período de maior vi-
e Direito»: rulência da ditadura empresarial-militar de 1964 foi o tempo da produção
“Conforme a Professora Elisabetta Grande demonstrará neste livro [Imitação e das teorias de base do autoritarismo contemporâneo brasileiro nos campos
direito: hipóteses sobre a circulação dos modelos], a circulação de regras, institu- político, econômico, social e também jurídico.
tos ou teorias jurídicas em cada um destes âmbitos de uma cultura jurídica está
A tese de doutorado em sociologia de Sebastião André Alves de Lima
sujeita a dinâmicas próprias e é impulsionada por fatores específicos, poden-
do um sistema ser importador e exportador, simultaneamente, em diferentes Filho, sobre «O que a Escola Superior de Guerra (ESG) Ensinava», dirige os
âmbitos de sua cultura jurídica e em diferentes áreas do direito. E, talvez o olhos ao «diálogo autoritário» entre estes diferentes campos, interlocução que
aspecto mais interessante abordado nesta obra, pode a circulação dar-se apenas buscou aportar elementos teóricos ao autoritarismo da ocasião, o justificando
simbolicamente – circulação simbólica, hipótese na qual o que circula não são à luz das circunstâncias e moralidades da época. A presença de juristas na
as regras propriamente ditas, mas sua idealização, como se verá.”5
turma de 1975 é indicativa de uma pista muito relevante na esfera do corpus
O êxito contemporâneo da empreitada hermenêutica autoritária ao conceitual do processo (p. 269).
menos até o presente momento revela-se em intercâmbios semânticos e idea-
Pessoas, organizações e instituições são elementos imprescindíveis
lizações flagrantemente equivocadas, como o tomar-se a «eficácia preclusiva»
quando se trata de conhecer o sistema de justiça criminal, suas bases e as
como equivalente ao conceito de «trânsito em julgado», no contexto da presun-
tendências em disputa em determinado momento.
ção de inocência, ou aplicar as noções de «inferência da melhor explicação» em
detrimento do exigente standard de prova que o direito constitucional brasileiro Alberto Binder chama atenção para o fato de o processo penal ser um
impõe no âmbito do processo penal, em virtude da adoção entre nós do prin- «saber prático», que não pode ignorar a realidade das organizações e insti-
cípio da culpabilidade jurídica, e ainda o de expandir os poderes do Ministério tuições que compõem o denominado «Sistema Penal» de arbitramento de
Público à margem e em oposição às exigências do princípio da legalidade pro- responsabilidade.7
cessual penal, como se verifica na hipótese das interceptações telefônicas.6 Existem Poder Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados,
Parte desse sucesso é creditável à legitimação de «um discurso neoliberal, Defensoria Pública e Polícia. São organizações com história, cultura e carac-
que acaba por emprestar forma às práticas autoritárias conduzidas pelo siste- terísticas próprias. Há também governos, o Poder Legislativo e personalidades
ma de justiça criminal», recorrendo-se igualmente por empréstimo à expressão cuja atuação igualmente opera no âmbito da adjudicação de responsabilidade
empregada pelo autor de «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia penal no seio da instituição Justiça Criminal.
das ideias autoritárias no processo penal brasileiro». Os procedimentos adotados em conjunto ou separadamente obedecem
A obra prefaciada, a par de outros expressivos méritos, identificará na ao padrão de interpretação vigente em cada uma das organizações acerca do
ideia de «instrumentalidade do processo» um dos marcos de legitimação do desenho institucional que corresponde às funções que lhes são atribuídas, de
pensamento autoritário no Brasil. forma expressa ou tácita.
Também neste campo as simetrias entre passado e presente são visíveis. Tomando as coisas por este ângulo, entende-se a afirmação de Ellen Im-
Mas é ao passado que o prefaciador recorre para apontar para a necessidade de mergut, em «As regras do jogo»,8 de que «a mudança é um problema essencial
para a análise institucional». A Constituição de 1988 propôs uma mudança
5. SGARBOSSA, Luís Fernando. Nota prévia do tradutor. In: GRANDE, Elisabetta. Imitação e direito:
hipóteses sobre a circulação dos modelos. Tradução de Luíz Fernando Sgarbossa. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2009. p. 14. 7. BINDER, Alberto M. Derecho Procesal Penal. Tomo I. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2013. p. 13-29.
6. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4263/DF. Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. Rela- 8. Disponível em https://pmcspraca.files.wordpress.com/2013/01/immergut-1996-regras-do-jogo-na-pol-
tor: Min. Luís Roberto Barroso. Data de julgamento: 25 de abril de 2018. c3adtica-de-sac3bade.pdf. Consultado em 29 de julho de 2016.
18 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER PREFÁCIO DE GERALDO PRADO 19

em termos de organização e funcionamento do sistema de justiça criminal e Mas não são apenas estes «guias de leitura» a recomendar vivamente
quanto aos critérios de orientação que haveriam de vigorar dali em diante. o mergulho nesta complexa investigação de história das ideias e da cultura
Este processo de mudança não somente foi interrompido, como o que jurídico-penal brasileiras.
se experimenta na atualidade é a sua reversão. Existe um quê de encontro/reencontro com o que temos de melhor e
É inegável que dinâmicas institucionais e cadeias de decisão política de pior nas relações intersubjetivas.
extremamente complexas tenham peso no processo decisório, algo que não «Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias
é apropriável, analiticamente, pelo exame isolado da atuação e do propósito no processo penal brasileiro» percorre os desvãos de nossa alma inquisitória,
dos atores envolvidos. revelando passo a passo as estratégias pelas quais o autoritarismo de nossas
Salienta Immergut que «instituições devem ter uma espécie de capacida- práticas penais escamoteou sua real natureza.
de de permanência». As instituições que se desenvolveram no Brasil à sombra O concurso de esforços de intelectuais do direito e de fora do direito
da mentalidade autoritária exercitam agora sua extraordinária capacidade de para, ora sonegando, ora expondo claramente o viés autoritário de nossas prá-
permanência nestes termos, deixando à vista de todos o quanto estavam im- ticas penais, constituir as organizações e institutos jurídicos em conformidade
permeáveis ao projeto de democratização simbolizado pela Constituição. com a mentalidade autoritária está à vista de quem quiser ler.
Quando se cogita de um setor significativo do Estado e da sociedade, A nossa inteira responsabilidade aqui, não importa quanto de fato nos
como é o caso da Justiça Criminal, independentemente da inclinação inqui- apropriamos das estratégias igualmente autoritárias desenvolvidas em Portu-
sitória do modelo vigente e de sua recriminação por toda uma geração de gal no século XIX e na Itália no século XX, é tributária de decisões políticas
juristas com formação e profissão de fé no Estado de Direito, as forças de orientadas ao exercício da dominação.
resistência à mudança estão presentes e atuam em todos os âmbitos. Mentalidade autoritária, linguagem autoritária, expropriação e, além
Isso leva a acreditar que, se mudanças institucionais «ocorrem durante disso, apropriação de institutos autoritários de outras culturas foram objeto
períodos de tempo mais longos», como adverte Wolfgang Streeck,9 fato é que de rigorosa análise conceitual, precedida de competente e sincera pesquisa em
a tendência no sentido das transformações confronta-se com «causas contra- fontes pouco manejadas pelos juristas brasileiros.
riantes que as desaceleram». O que temos de melhor nas relações intersubjetivas aparece na obra pelo
Vivemos tempos de aparente hegemonia das «causas contrariantes» em ângulo da qualidade da análise a revelar a grandiosidade teórica deste jurista
benefício da prevalência da mentalidade autoritária. que é Ricardo Jacobsen Gloeckner.
Ainda que não fosse pela excelência da obra em si, sendo «Autorita- Desde o cuidado metodológico quanto ao exame conceitual dos «auto-
rismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo ritarismos», em suas diversas vertentes e em sua inevitável confrontação com
penal brasileiro» o resultado de uma rica, profunda e cuidadosa pesquisa das a perspectiva dicotômica «autoritarismo e totalitarismo», à decisão de não
matrizes do processo penal brasileiro, a verdade é que o conhecimento das sonegar ao leitor os múltiplos marcos teóricos que viabilizam a aproximação
«causas contrariantes» à redução do grau de autoritarismo de nosso sistema ao tema, passando pela coragem de desnudar as contradições presentes nos
de justiça criminal já estaria a justificar a leitura deste precioso livro. discursos dos juristas e políticos, especialmente os brasileiros, o livro faz muito
Claro que a história nos orienta quanto às decisões presentes e nos per- mais que suprir uma lacuna real em nossa bibliografia processual penal.
mite conhecer os dilemas enfrentados por nossos antepassados e as motivações Lendo privilegiadamente «Autoritarismo e Processo Penal: uma genea-
das soluções adotadas. logia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro» não tive como deixar
de lembrar do título do romance biográfico de um querido escritor mineiro.
9. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução de Marian Toldy e Teresa Tol-
dy. Lisboa: Conjuntura Actual Editora, 2013, p. 16-18. A obra de Ricardo Gloeckner desponta como nosso «Encontro Marcado»,
20 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

dos juristas práticos e teóricos brasileiros, com a densidade autoritária que


o processo penal expõe mesmo em tempos de democracia, praticamente a
cobrar dia a dia a coerência e sinceridade das opções pessoais de apreço ou
desapreço à democracia.
Neste teste de coerência e sinceridade relativamente à adesão aos prin- PREFÁCIO
cípios democráticos, a realidade é que, recorrendo às categorias expostas com
especial brilho pelo autor, hoje muitos juristas estão definitivamente reprovados. “Antígona: Estou em tuas mãos. Mata-me. Que mais queres?
Vitoriosos circunstanciais no exercício do poder, pois que podem ditar / Creonte: Eu? Nada. Tenho o que desejo. / Antígona:
as decisões e sentenças, dificilmente serão aprovados no teste da história. Então, o que esperas? A mim, em tuas palavras, não me
Ponto comum ao pensamento autoritário é a crença na «unidade do
agrada nada nem jamais poderá, nem há nada que te possa
povo», uma visão limitada e irreal de «comunidade». A ideia de igualdade causar prazer. Contudo, onde poderia procurar renome mais
neste caso apela apenas retoricamente ao enfrentamento à desigualdade, mas fulgente do que na ação de dar a meu irmão sepultura? Todos
na prática ela confronta mesmo é a diferença e ignora de propósito o caráter estes o aprovam, e o declarariam se o medo não lhes travasse
seletivo e estigmatizante do Sistema Penal. a língua. Mas a tirania, entre muitas outras vantagens,
tem o privilégio de fazer e dizer o que lhe apraz”.
Não se trata de reduzir a desigualdade até porque a pena criminal não
– g.n. – . (verso 505). SÓFOCLES. Antígona. Trad. de
é redutora de desigualdades. Trata-se de dominação pura e simples, exercida
Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 37.
a partir das velhas conhecidas noções de catastrofismo, cientificismo, antili-
beralismo e nacionalismo político, muito bem tratadas no livro, articuladas
entre si sob a guarda da confortável posição elitista. Este livro, “Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das
O ódio à democracia manifesta-se pela censura pública à liberdade e ideias autoritárias no processo penal brasileiro”, do Prof. Dr. Ricardo
aos defensores da liberdade. Jacobsen Gloeckner, é um monumento histórico do Direito Processual
Penal brasileiro!
«Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias
no processo penal brasileiro» era para ser – e é – uma obra prima da história Ele, o livro, será, para sempre, o arrimo de todo e qualquer acerto de
das ideias e cultura jurídico-penais brasileiras e por essa razão seu autor está contas que se deva fazer com o autoritarismo (que poderia ser chamado de
de parabéns. totalitarismo, ou mesmo tirania) do processo penal brasileiro. Eis, desde logo, a
sua importância fundamental. Sua leitura, portanto, é obrigatória.
O livro, porém, diz muito sobre o nosso presente. Que o tomemos
como lição, porque se há algo que a história nos ensinou é que o futuro está Quando o Ricardo, hoje um fraterno amigo, convidou-me para o ler
sempre em aberto. e fazer o prefácio, fiquei muito contente, porque sempre me pareceu que
as questões do autoritarismo e da genealogia das ideias autoritárias no proces-
Congratulo-me com o leitor pela oportunidade de ler um dos melhores
so penal brasileiro tinham uma importância que transcende uma avaliação
livros de processo penal de nossa literatura jurídica.
normal que dos temas se possa fazer e faz, embora, como é evidente, não se
Em 01 de junho de 2018. exaurem como objetos de pesquisas. Ao prazer de aceitar a tarefa somou-se a
Geraldo Prado preocupação com o tempo, sempre escasso para todos que vivem empenha-
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro dos na vida laborativa, assim como com a leitura do texto, um tanto grande
quanto profundo, com suas 2196 notas e suas impressionantes 839 obras
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indicadas nas Referências, aparentemente todas usadas e citadas. Um trabalho, metáfora) o Codice Rocco. Sem um referencial definido (a base legislativa
sem qualquer dúvida, incomum, com uma pesquisa excepcional e digno de usada à época – 1941 – , era o Código do Império, de 1832, deformado
todas as honras. Mas há mais, porém, para começar. pelas reformas que sofreu e, inclusive, na maneira como apareceu nas legis-
O texto é limpo e claro; embora profundo, é de fácil leitura. Articu- lações estaduais, após a Constituição republicana de 1891), estruturou-se
lado de forma coerente, empurra o leitor a seguir página por página, de um CPP à imagem e semelhança daquele italiano. Existem, porém, dife-
modo a que se tem prazer em cada uma delas e se quer mais e mais. O autor renças gritantes, dentre elas – e talvez, para este efeito, a mais significativa
parece um guia de castelo que a cada pedra, a cada porta que abre, a cada – seja a manutenção, no Brasil, do Inquérito Policial, conforme nascido na
novo salão que adentra, faz do ambiente um infinito discursivo que se não Reforma de 1871 e mais autoritário que o Juizado de Instrução europeu e
quer largar. A leitura amolda-se ao conceito lacaniano de gozo porque é im- adotado na Itália. Por isso, os institutos que haviam tão bem sido, no livro,
possível o sujeito não se implicar. É como se ele (leitor) estivesse – e de certa visitados na Itália, pela lei e princípios, voltam à baila no que dizem com
forma está – na trama narrativa metido até o pescoço, sendo envolvido a o Brasil, agora sob o influxo do que havia sido adequado. O resultado não
cada passo, sendo cobrado a cada frase e, por isso, vê-se ali, questionando-se poderia ser outro: eles vieram para ser assim e assim o são. Per faz et nefas
porque, em tantas e tantas vezes foi, de certa forma, enganado pelas imagens foram penetrando no campo processual penal nacional e se consolidando,
falsas de uma dogmática de gente consciente do que fazia e, portanto, fazia, inclusive a ponto de serem repetidos – discursivamente – , pela grande
mesmo sabendo o que estava fazendo. maioria, como democráticos, o que sempre foi uma mentira. Afinal, não
é possível, pela retórica, transformar um torturador em democrata, ainda
O livro, portanto, é um primor. A melhor coisa de processo penal que
que se possa entender a variação de sentido das duas palavras. Ora, de
li nos últimos tempos.
muitas mentiras não se faz uma Verdade, embora o oposto seja verdadeiro:
No capítulo I, trata o autor de situar o autoritarismo, e o faz desde a de muitas verdades se faz uma mentira! E isso é assim porque a Verdade é
perspectiva de alguns ideólogos brasileiros, dentre os quais se destaca Fran- o que é: um discurso vazio no qual o intérprete, como senhor do poder,
cisco Campos, justo para permitir a ligação com o processo penal fascista mesmo sem o significado devido ou aceitável, dá ao sentido a estrutura
dos italianos de Mussolini. Pensa o autor aí encontrar a genealogia das ideias – sempre ideológica – que quiser. O paralelo entre o Código italiano e o
autoritárias, o que, de certa forma, vai complementado com o passo anterior brasileiro, no livro, mostra as vísceras do problema e coloca a pensar de
necessário, ou seja, as fontes italianas. uma maneira tão impressionante que é difícil se manter equilibrado para
Por seu turno, o capítulo II vai às matrizes fascistas do Codice Rocco uma análise equidistante dos interesses que o tema envolve.
de 30 e mostra um panorama da situação dele, inclusive depois da chamada No capítulo IV, por seu turno, de certa forma para tentar entender o
Riformeta de 1955, quando, como se sabe, ter-se-ia expresso o que, depois que havia se passado no Brasil em face do disposto nos capítulos anteriores,
da Costituzione (1946), passou a ser, segundo alguns, um sistema processual parte o autor da concepção publicística do processo como espécie de “mito
penal inquisitório garantista, se é que isso pudesse dizer alguma coisa diante fundante” da instrumentalidade processual. Mas não fica ele tão só na estru-
de práticas fascistas emergentes de entranhas fascistas do código e de mentes tura discursiva e – sim – vai à epistemologia dela, examinando os fundamentos
fascistas. Isso tudo garantiu a “fascistização” do processo penal brasileiro. dos fundamentos, ou seja, toma água nas nascentes, visivelmente pelo arsenal
Eis por que o capítulo III se dedica a mostrar como os institutos que angariou ao mergulhar nas fontes que elegeu. Nas suas palavras, verifica
fascistas italianos (eles se expressavam assim, ou seja, com esse “espírito”, “como a denominada ‘instrumentalidade do processo’, um verdadeiro signi-
se fosse possível dizer para simplificar as coisas) penetraram no Brasil, ficante reitor, procedeu à amplificação dos espaços de desformalização, do
tendo uma elaboração com aquela inspiração, razão por que muito se fala esvaziamento de garantias, da ampliação de poderes judiciais em um cenário
de se ter copiado (o que não seria correto, embora usado, em geral, como em que tais poderes já eram alargados, ao ponto de se hipertrofiar a atuação do
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Supremo Tribunal Federal, responsável direto por uma regressão relativamen- “como foi – e continua sendo – possível defender e mais que isso, aplicar
te a direitos fundamentais, sem precedentes na história das parcas garantias um código de processo penal essencialmente autoritário após o advento da
constitucionais processuais penais no Brasil”. Constituição de 1988?”
Mas não é só isso. O autor vai além e, no capítulo IV, desde outra At last but not at least, a seção 5, do capítulo IV, trata de “processo
perspectiva (por demais interessante), mostra como a ideologia da segurança penal e liberalismo brasileiro: para uma crítica da razão cínica”. É, sem
nacional penetra no processo penal brasileiro pela via da instrumentalidade, embargo de sua situação topográfica, uma conclusão. Retoma o autor o
mormente no que diz com a chamada teoria geral do processo. Aqui, quem contido no texto e partindo de Sloterdijk, Zizek e outros recupera as dis-
estava lá – e de certa forma está – , consciente ou inconscientemente, vai cussões travadas nele, além de apontar para uma realidade que se vive hoje:
acabar por acertar as contas com a história, o que é inarredável. Como “Da mesma maneira, as categorias processuais penais se encontram num
disse o autor, “Não se deve atribuir aos intelectuais brasileiros, indepen- regime de hibridismo: de um lado, a velha tradição liberal brasileira; de
dentemente dos argumentos, que tais juristas simplesmente ‘não sabiam o outro, novas categorias que foram surgindo, em especial através das glo-
que faziam´. Não se trata de intelectuais que operavam alienados pelo véu balizações processuais entre distintos regimes jurídicos, especialmente a
da ideologia, como autômatos ou marionetes. Deve-se retomar a crítica penetração de categorias processuais norte-americanas, como a adoção de
ideológica para se compreender que tais juristas e intelectuais sabiam o teorias e exceções às provas ilícitas, a introdução de uma justiça negocial
que faziam mas mesmo assim o faziam! Essa mudança de rumos na valo- (do juizado especial criminal à colaboração premiada), isso sem falar na in-
ração da crítica ideológica é fundamental para que as responsabilidades trodução de teorias também norte-americanas, como a cegueira deliberada
pelas eleições dos caminhos da democracia brasileira sejam imputados a (willfull blindness), a abdução de provas, os deveres inerentes ao compliance,
todos aqueles que deram a sua parcela de contribuição na perpetração do etc.” Com isso, chega no que chama de “lógica da excepcionalização”, as
autoritarismo processual penal.” quais “se notabiliza por intermediar e custodiar um discurso de compati-
Por outro lado, as deformações que a instrumentalidade – quem sabe se bilidade destas categorias processuais, apontadas como autoritárias, e os
poderia dizer: à brasileira – ajudou a causar, geraram um processo penal visi- direitos fundamentais ou humanos. (...) Em palavras ainda mais simples se
velmente entrópico, como venho chamando. Há uma desordem generalizada, trata de perceber como a ‘lógica da excepcionalização’ é uma prática, cor-
algo que se vê quando se percebe que a lei, hoje, começando pela Constituição roborada em grande medida pela doutrina brasileira e seguida vivamente
da República, vale – ou só vale – quando interessa ao intérprete, mormente pelos tribunais pátrios, consistente em cindir os enunciados jurídicos de sua
quando tem ele poder. Daí, também, as críticas do autor ao que chamou de concretização. Ou ainda, criar tantas exceções não declaradas aos direitos e
processo penal “pós-acusatório”, ou seja, uma interpretação dele ligada à “apa- garantias fundamentais que o resultado final é exatamente o seu oposto: a
rente concretização do acusatório, pela Constituição da República, tornando exceção é justamente se obedecer um direito fundamental”.
desgastadas e descartáveis as discussões sobre a acusatoriedade ou inquisito- Com este quadro é possível lançar, ao autor, um desafio – sem pretender
riedade do sistema processual penal”, mesmo porque “Com a Constituição e ser deselegante em um espaço como este, tão especial, e que vai, tão só, pela
o modelo democrático de processo penal, já não caberia se falar em autorita- amizade de um irmão mais velho – , sobre dois temas, mesmo porque são eles
rismo, que estaria relegado ao passado político brasileiro não-democrático”. demais importantes para restarem alheios à discussão e, a mim, são, particu-
Trata-se, por evidente, de uma fraude argumentativa; e pior: muito usada; larmente, vitais ao conteúdo do livro.
principalmente por aqueles que querem que tudo se mantenha como sempre O primeiro tema do desafio diz com aquilo que foi o sustentáculo da
esteve, ou seja, um processo penal inquisitório a serviço de um direito penal construção do Code Napoleón, de 17.11.1808, depois espalhado para os
seletivo e, antes de tudo, contra os que menos têm. demais países da Europa continental, de um modo ou de outro. Em outro
Nesta altura, vale a pergunta fundamental que o autor mesmo formula: texto, Democracia e sistema inquisitório: a farsa do combate à corrupção no
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Brasil (apresentado em Puebla, México, em 09.02.18, ainda inédito), tive a Jugement e na maioria dos casos penais define o processo; pela condenação,
oportunidade de fazer um arremedo do problema que aqui interessa: naturalmente. “I verbali degli atti istruttori pesano sulla decisione: non
“Pensando assim, todos os sistemas que se conhece no mundo são esiste più una formula correspondente all’art. 365 code des délits et des
mistos, isto é, aglomeram elementos dos dois sistemas: acusatório e inqui- peines, secondo cui ‘il ne peut être lu aux jurés aucune déposition écrite
sitório. Mas tão só formalmente assim o são. E isso porque, por evidente, de témoins non présents à l’auditoire’; (...)”. (CORDERO, F. Guida... cit.,
não é possível, diante do conceito kantiano de sistema, ter-se uma divi- p. 72: “Os termos dos atos da instruction pesam sobre a decisão: não existe
são da “ideia única”. Eis, então, por que se não tem um princípio reitor mais uma fórmula correspondente ao art. 365 do code des délits et des peines,
misto, sendo certo que se trata, sempre, daquele inquisitivo (ou inquisitó- segundo o qual ‘não pode ser lido aos jurados nenhum depoimento escrito
rio) ou dispositivo (ou acusatório), respectivamente vinculados ao sistema de testemunhas não presentes no tribunal’”. Tradução livre). Continua vivo
inquisitório ou ao sistema acusatório. Há, nesta matéria, uma considerável – sem dúvida – Inocêncio III”.
discussão. Os autores mais antigos indicavam os dois sistemas, nas suas O Code Napoleón, como se sabe, era o código de um governante au-
formas primitivas, como puros, embora isso fosse mera opinião, mesmo toritário, em que pese seja despiciendo discutir sobre isso, embora seja
porque alguns elementos de um sistema sempre apareceram no outro, por possível em face das razões históricas e outras que cercam a matéria. Com
variados motivos, a começar pelo contraditório e sua extensão. A designação ele, porém, nasce esse monstro de duas cabeças, como referido por Cordero;
de um terceiro sistema (como se isso fosse possível) acontece com a formu- e se espalha, como modelo, para a Europa continental, inclusive para a
lação do Code Napoleón, de 17.11.1808 e com vigência em 01.01.1811. Itália. Assim, os códigos italianos que sucederam o código napoleônico de
Nele, por razões ideológicas, manteve-se a Instruction (fase preliminar da 1808 (salvo o atual, de 1988), foram, todos, adaptações daquele. Mutatis
persecução penal) do modelo inquisitorial adotado pelas Ordonnance Crimi- mutandis, eles fizeram com o Code Napoleón o que nós, no Brasil, fizemos
nelle, de 1670, e a ela se agregou uma segunda fase (Jugement), processual, com o Codice Rocco.
realizada conforme o modelo inglês e aplicada a partir do Decreto de 16- Desde esta perspectiva, o desafio é ir além das bases do livro e, naquilo
29.09.1791, logo ajustado pelo Code des délits et des peines, de 25.10.1795. que transborda, mergulhar, decisivamente, mas matrizes do referido Código
Com contraditório e outras características típicas do sistema acusatório, francês. Comecei a fazer isso em um singelo Curso oferecido, como professor
vem à luz como um processo misto, também conhecido como reformado convidado, em junho de 2018, a convite da estimada Profª Drª Ruth Chittó
ou napoleônico; e assim se espalhou pela Europa continental toda. Como Gauer, no Programa de Pós-graduação em Direito da PUCRS, mestrado
conclui Cordero: “E così, dalla l. 17 novembre 1808, nasce il processo co- e doutorado, intitulado As ideias por trás do code d’instruction criminelle,
siddetto misto, mostro a due teste: nei labirinti bui dell’instruction regna de 17.11.1808 (Código de Napoleão). A partir de Adhémar Esmein, Fautin
Luigi XIV; segue una scena disputata coram populo.” (CORDERO, F. Hélie, Franco Cordero, Henri Charles Lea – e outros nomes importantes – ,
Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986, p. 73: “E assim, pela l. foi possível penetrar, um pouco, no jogo das escamoteações levadas a efeito
de 17 de novembro de 1808, nasce o processo dito misto, monstro de duas pelo próprio Napoleão e seu – mais tarde – arquichanceler, Jean-Jacques-Regis
cabeças: nos labirintos escuros da instruction reina Luís XIV; segue uma cena de Cambacérès e, em face disso, perceber o porquê dos chamados modelos
disputada publicamente.” Tradução livre). No fundo, era uma farsa aquele mistos serem sempre defendidos por aqueles que têm uma visão autoritária do
arremedo de democracia processual, embora tenha sido justo isso que teria processo penal; e por que não, da vida. O curso em Porto Alegre, sem embar-
sido desejado pelo imperador e seu arquichanceler, Jean-Jacques-Régis de go do meu grande esforço e do interesse maiúsculo dos alunos e professores
Cambacérès, interessados que estavam em manter o controle político da que me horaram com suas presenças, foi só um start. A missão, quem sabe,
situação também através do processo penal. Ora, como se sabe, aquilo que pelo background conquistado na faina de construção deste livro (inclusive com
era produzido na Instruction secreta, podia ser usado – e é e segue sendo – no um curso na PUCRS e outro na USP), pode – e deve – ser encomendada ao
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caro Prof. Dr. Ricardo Gloeckner. ensinar direito processual penal, a não ser que se seja desonesto ao ponto
O segundo tema do desafio, por certo mais fácil ao ilustre professor, diz de esconder a realidade. Pior ainda, sem embargo, é o dia-a-dia da aplica-
com o futuro e, por ele, já veio uma promessa, estampada na nota nº 2181 ção das leis processuais penais, muitas vezes erroneamente substituídas por
do livro (“Futuramente, pretende-se investigar esta segunda fase do autorita- uma moral duvidosa, tanto quanto inconstitucional. E quem sofre são os
rismo brasileiro”.), a qual tenta dar conta, no texto, daquilo que se vive hoje cidadãos, que vêm escorrer, como água pelas mãos, seus direitos e garan-
no processo penal, pela influência estrangeira, mormente norte-americana: tias constitucionais. Em suma, como venho repetindo há um bom tempo,
“Tal hibridação esgarça ainda mais os limites e parâmetros para a construção o Brasil, em termos de processo penal, tem um problema muito sério para
de um processo penal democrático, pois as novas categorias aparecem e são resolver e, para tanto, todos precisam ajudar a pensar e solucionar.
direcionadas no seio deste conhecido ambiente inquisitório que é o sistema Aos grandes professores, dentre os quais o ora autor, a missão é maior
de justiça criminal brasileiro”. ainda – eis, então, o desafio – porque não basta ajudar a construir o futuro.
À importação de institutos estrangeiros, em especial do Common Não. É preciso se defrontar, diuturnamente, com os algozes da Constituição
Law norte-americano, tenho chamado de Americanização à brasileira. e da democracia; dos que ganham com o caos, com a bagunça, com a desor-
Impossível, desde logo, por razões óbvias que partem da cultura e outros dem, com a entropia do sistema, nem que seja para gozar um pouco a partir
fundamentos, aquilo que pretensiosa e arrogantemente querem alguns vi- da sua vaidade, com frequência em face de um exibicionismo desmedido. A
zinhos do norte e seus sequazes locais, quase vassalos: uma legal transplant. promessa do Prof. Dr. Ricardo Gloeckner foi devidamente anotada e, quem
Já é difícil – muito difícil – aceitar como viável a proposta mais humilde sabe, sob o comando dele, algo melhor possa ser investigado, analisado,
de Máximo Langer (LANGER, Máximo. DOS TRANSPLANTES JU- proposto e adotado.
RÍDICOS ÀS TRADUÇÕES JURÍDICAS: A GLOBALIZAÇÃO DO Faz-se ora de terminar. O livro, instigante como é, levou-me a outras
PLEA BARGAINING E A TESE DA AMERICANIZAÇÃO DO PRO- revisões e estudos (que sempre tomam tempo) e, por conta deles, havia pre-
CESSO PENAL.  DELICTAE: Revista de Estudos Interdisciplinares parado anotações de O cidadão, de Thomas Hobbes; de Diálogo entre um
sobre o Delito, [S.l.], v. 2, n. 3, p. 19, dez. 2017. ISSN 2526-5180. Dis- filósofo e um jurista, de Thomas Hobbes; de As origens do totalitarismo, de
ponível em: <http://delictae.com.br/index.php/revista/article/view/41>. Hannah Arendt; de Quel che resta di Auchwitz, de Giorgio Agamben; de
Acesso em: 04 mar. 2018. doi:  https://doi.org/10.24861/2526-5180. Ódios, de Mauro Mendes Dias; de Fuerza de ley: el fundamento místico de
v2i3.41), inclusive em texto traduzido por Ricardo Jacobsen Gloeckner la autoridad, de Jacques Derrida; assim como várias passagens de meu Direito
e Frederico C. M. Faria, ou seja, de uma legal translation. As razões, para e psicanálise: interlocuções a partir da literatura. Não as usei, mas elas, por
tanto, são simples, mas começam pelas diferenças entre os sistemas. Entre certo, não foram em vão, e me ajudaram a dialogar com o autor sobre o livro
Common Law e Civil Law há um abismo que se não pode superar como se e seu tema, que é fantástico.
fosse inexistente, embora seja justo o que se está a fazer. As tentativas de Deixo ao caro amigo Prof. Dr. Ricardo Jacobsen Gloeckner a perspec-
transplante e mesmo de tradução/adaptação, como se sabe, têm sido desas- tiva de novos estudos e grandes desafios, como se o presente livro fosse tão
trosas, seja porque se legisla mal, seja porque isso se faz propositadamente, só uma passagem. A vida é assim, sem fim para as coisas que importam. Mas
quiçá para se permitir que se possa dizer qualquer coisa naquilo que são os devo dizer – como já referi – que tenho muito orgulho de poder estar nele e,
vazios das leis, com frequência o Poder Judiciário indo além da interpre- com ele, ficar para a história.
tação e, legislando, tentando fazer – ou fazendo – , inadvertidamente, o
O trabalho que fica, porém, é daquele que mata a fome. Isso me lem-
papel do Legislativo. Por evidente que institutos assim (do Common Law
brou do inesquecível António Aleixo, o grande poeta popular português; e
enfiados no Civil Law) são estranhos e, como não poderia deixar de ser,
que segue nos ensinando a cada verso:
causam entropia. A bagunça é de tal monta que tem sido muito difícil
30 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

“Quem trabalha e mata a fome SUMÁRIO


Não come o pão de ninguém
Quem não ganha o pão que come
INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Come sempre o pão de alguém”.
(ALEIXO, António. Este livro que nos deixo... 11ª ed., CAPÍTULO I - AUTORITARISMO PROCESSUAL PENAL. . . . . . . . . . 45
1.1. Autoritarismo(s) e Processo Penal: formação discursiva do pensamento
Lisboa: Editorial Notícias, 2000, volume II, p. 23) “pós-acusatório” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
1.2. Um Breve Percurso Sobre Usos do Autoritarismo e do Totalitarismo: a
transversalidade do autoritarismo e as múltiplas tentativas de apreensão do
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho fenômeno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Professor Titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da 1.3. Linguagens Autoritárias: introdução a uma semântica política do
Universidade Federal do Paraná (aposentado). Especialista em Filosofia autoritarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Università degli Studi di 1.4. Processo Penal Autoritário na Democracia Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . 84
Roma “La Sapienza”). Presidente de Honra do Observatório da Mentali- 1.5. O Autoritarismo Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
dade Inquisitória. Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado 1.5.1. O Autoritarismo Brasileiro: Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo
Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Pro- Amaral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
jeto 156/2009-PLS 1.5.2. Francisco Campos e o Pensamento Político Autoritário: mito e massa . . . . . 117
1.5.3. Francisco Campos: democracia Formal e democracia substantiva . . . . . . . . . 124
1.5.4. Francisco CAMPOS e as Reformas Legislativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
1.6. Autoritarismo e Processo Penal no Brasil: o panorama contemporâneo 136
1.6.1. Autoritarismo Processual Penal: a necessidade de substantivação do
conceito autoritarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
1.6.2. Modos de se Pensar o Autoritarismo Processual Penal . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
INTERLÚDIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172

CAPÍTULO II - NOÇÕES FUNDAMENTAIS DO AUTORITARISMO


PROCESSUAL PENAL – DA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO PENAL
ITALIANO NO FASCISMO À ABSORÇÃO DAS CATEGORIAS
PROCESSUAIS NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
2.1. Razões do Processo Penal Fascista na Itália: o liberalismo reacionário e o
sincretismo discursivo como condicionantes epistemológicas . . . . . . . . 193
2.2. A Prolusão Sassarese de Rocco e o Tecnicismo Jurídico Como
Continuidade: permanências e involuções no pensamento processual penal
italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
2.3. Tecnicismo Contra o Fascismo? A Impropriedade da Tese do Freio e a
Participação (Indireta?) de Importantes Processualistas nas Atividades do
Regime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
2.4. A Reforma de 1955: a sobrevida do Código Rocco . . . . . . . . . . . . . . . 259
2.5. A Estrutura Legal do Código Rocco: linhas gerais . . . . . . . . . . . . . . . . 275
2.5.1. A Investigação Preliminar (Istruzione Formale e Sommaria): os poderes
excessivos do Ministério Público, o segredo instrutório e a audência de
defensor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284
2.5.2. A Compreensão do Direito à Liberdade e a Custódia Preventiva: linhas gerais291
32 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER SUMÁRIO 33

2.5.3. O Sistema das Provas: o princípio da liberdade da prova . . . . . . . . . . . . . . . 299 3.6. O Anteprojeto Novíssimo: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456
2.5.4. O “Livre Convencimento do Magistrado” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303 3.7. O Projeto Sálvio de Figueiredo Teixeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458
2.5.5. A Verdade Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 306 3.8. A Comissão Grinover . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461
2.5.6. O Contraditório Deformado do Código de 1930 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308 3.9. O Guardião da Constituição: o contributo do Supremo Tribunal Federal
2.5.7. A Expulsão da Presunção de Inocência e o Encontro com a Escola na Manutenção de Decisões Congruentes com a Estrutura Autoritária do
Positiva: um discurso híbrido a serviço da defesa social . . . . . . . . . . . . . . . . 310
Processo Penal Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 471
2.5.8. A Publicidade dos Atos e a sua Excepcionalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 316
2.5.9. A Supressão das Nulidades Absolutas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317
3.10. “Os Múltiplos Corpos” do Código de Processo Penal: é mais fácil alterar a
2.5.10. Naha Mihi Factum Dabo Tibi Jus: ou de como se pode condenar apesar de Constituição do que a estrutura autoritária de processo . . . . . . . . . . . . 481
uma acusação inidônea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320
2.5.11. O Ônus da Prova no Código Rocco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321
CAPÍTULO IV - A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO
PENAL: UM SIGNIFICANTE-REITOR NA CONSTRUÇÃO DO
2.6. Conclusões Provisórias do Capítulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323 PENSAMENTO AUTORITÁRIO BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 487
CAPÍTULO III - A CODIFICAÇÃO PROCESSUAL PENAL DE 1941 4.1. A Concepção Publicística (ou Social) de Processo Civil: uma teoria geral do
NO BRASIL: AS BASES AUTORITÁRIAS DO PROCESSO PENAL E processo autoritário? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 490
AS REFORMAS PARCIAIS POSTERIORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333 4.1.1. Uma Questão de Técnica (ou de Política?): o processo social e a crítica ao
neoprivatismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 514
3.1. O Projeto Vicente Ráo: a concepção “social” do direito e a retórica do
“justo equilíbrio” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336 4.2. A Instrumentalidade do Processo Penal: das matrizes clássicas ao giro
autoritário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525
3.2. O Código de Processo Penal Brasileiro de 1941: a “civilística processual
penal” brasileira e a construção do “processo penal social” . . . . . . . . . . 345 4.3. Uma “Fase” do Processo Brasileiro: a instrumentalidade do processo . . 540
3.2.1. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Tecnicismo “Apolítico” Brasileiro, Isenção de 4.4. A Instrumentalidade do Processo Penal Brasileiro Após a Constituição de
Responsabilidades dos Juristas e a Perenização de seus Ensinamentos: como 1988: um exame de suas facetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 546
4.4.1. Instrumentalidade e Metodologia do Processo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 547
manter viva a chama do autoritarismo em regimes democráticos . . . . . 359
4.4.2. Teoria Geral do Processo e a Perspectiva Instrumentalista: . . . . . . . . . . . . . . 552
3.2.2. Reprises do Liberalismo Reacionário no Brasil: categorias fundantes do
processo penal: relação jurídica, direito subjetivo de punir, pretensão 4.4.3. Desformalizar e Punir: jurisdição e processo penal no instrumentalismo . . . 553
punitiva e ação penal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368 4.4.4. Os Escopos da Jurisdição e a Instrumentalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 560
3.2.3. Um Código “Liberal” Para uma Tradição Liberalista: o discurso da 4.5. Jurisdição Como Poder: a penetração da doutrina da Escola Superior de
continuidade do Código de Processo Penal de 1941 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 377 Guerra no Processo Penal e a continuidade do autoritarismo no “pós-
3.3. A Estrutura do Código de Processo Penal Brasileiro: um código “liberal” acusatório” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .567
para juristas que o eram tão pouco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383 4.6. Um Processo Penal Modelado Segundo a Escola Superior de Guerra: é este
3.3.1. A Investigação Preliminar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393 o processo penal que se deseja em uma democracia? . . . . . . . . . . . . . . 583
3.3.2. Prisão Cautelar e Um Direito Mínimo à Liberdade Ou Se a Liberdade é 4.7. Abandonar a Instrumentalidade, Repensar o Processo Penal . . . . . . . . 605
Provisória, a Prisão é a Regra... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 398
3.3.3. O Princípio da Liberdade das Provas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 406 PROCESSO PENAL E LIBERALISMO BRASILEIRO: PARA UMA
3.3.4. O Livre Convencimento do Magistrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409 CRÍTICA DA RAZÃO CÍNICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 616
3.3.5. A Verdade Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 415
REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 629
3.3.6. O Contraditório Deformado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 420
3.3.7. Presunção de Inocência ou de Culpabilidade? O Tecnicismo Processual
Penal Brasileiro e a Inspiração Autoritária de Base Fascista . . . . . . . . . . . . . . 423
3.3.8. A Publicidade dos Atos Processuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 430
3.3.9. A Supressão das Nulidades Absolutas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431
3.3.10. A Emendatio Libelli e o Julgamento “Ultra Petita” no Panorama do
Processo Penal Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 433
3.3.11. O Ônus da Prova no Processo Penal Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436
3.4. O Anteprojeto Tornaghi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 442
3.5. O Projeto Frederico Marques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 447
INTRODUÇÃO

Nesta brevíssima introdução, pode-se afirmar que o presente traba-


lho tem por objetivo suprir uma lacuna. São incontáveis os estudos que se
ocupam da doutrina processual brasileira e que apresentam suas linhas gerais
sem qualquer espécie de contextualização política, por mais imprescindível
que fosse1. Ou ainda, que inscrevem períodos de exceção em uma espécie de
normalidade política, em nada afetando práticas, institutos ou leis produzidos
nos períodos de convulsão política2.
No Brasil, o atual código de processo penal, embora atingido por uma
plêiade de reformas legislativas, não teve o seu núcleo modificado. Não se
pode perder de vista que o código de processo penal brasileiro tem uma histó-
ria. E esta história, infelizmente, conecta-o à doutrina italiana predominante
nas décadas de 20 a 40 do século passado. Mas que não se esgota num mero
influxo doutrinário. O Estado Novo brasileiro, sob a tutela de Francisco
CAMPOS e outros importantes juristas, edificou uma legislação que em suas
linhas gerais está claramente inspirada no modelo italiano do Codice Rocco, “o
mais fascista dos códigos”, como o descrevia o Ministro da Justiça do governo
de MUSSOLINI, Alfredo ROCCO. Isso não é pouca coisa, apesar do pouco
interesse de nossa processualística penal na história da codificação brasileira.
Somente tal circunstância seria suficiente para se irradiarem deba-
tes, discussões e, muito para além disso, um movimento forte para a sua
revogação total. Não é o que aconteceu no Brasil. Optou-se – os motivos
serão apresentados no capítulo III, por reformas parciais. O resultado é
a sobrevivência do código estadonovista, já não mais o mesmo, eviden-
temente. Mas um código carregado de alterações, que se por um lado,

1. Como exemplo, dentre outros tantos, ao comentar as bases do Código Buzaid MITIDIERO, Daniel.
O Processualismo e a Formação do Código Buzaid. In Revista de Processo. v. 35. n. 183. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010. p. 166-194.
2. “Sinceramente, não vi problemas, na justiça civil, ligados aos militares. Sempre me preocupei muito
com as turbulências militares, mas nunca a percebi no plano do exercício da jurisdição”. DINAMAR-
CO. Entrevista. p. 21. DINAMARCO, Cândido Rangel. Cândido Rangel Dinamarco e a Instrumentali-
dade do Processo. (uma entrevista). In Cadernos Direito GV. v. 7. n. 34, 2010.
36 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER INTRODUÇÃO 37

retiraram algumas normas absolutamente infensas ao regime democrático, legislação fascista era expressão da técnica jurídica, desprovida de quais-
por outro, deixaram intacto o coração do sistema. E, nesse ponto, como quer marcas que o autoritarismo pudesse lhe empreender se deu sob dois
se poderá perceber nos capítulos II e III, se procurou traçar um parelelo argumentos fundamentais: a) o primeiro, de que o método técnico-jurídico
entre os dois códigos, de modo a deixar mais claras as linhas de conti- havia impedido uma degeneração do direito. E, nesse sentido, o fascismo
nuidade e afinidade entre um e outro modelo. Esta tarefa foi executada teria mantido todas as categorias jurídicas preexistentes no período do
a fim de que o trabalho não caísse numa espécie de mantra letárgico liberalismo (o código de processo penal anterior ao fascismo era o Codice
(muito embora correto em seu diagnóstico de advertência), de que nosso Finochiaro-Aprile, de 1913, um código “moderadamente liberal”, na justa
código é uma “cópia” do código de processo penal italiano de 1930. Não advertência de Floriana COLAO3); b) o de que a Itália não pretendeu um
se trata de uma cópia. Cuida-se de uma legislação similar em todas as novo direito, como procedeu a Alemanha, ao subverter diversos conceitos
questões centrais, o que na verdade dificulta sobremaneira uma análise e categorias dogmáticas. Tais argumentos são os principais eixos do que se
meramente estrutural entre os artigos (até mesmo pelo rito diferenciado, poderia denominar como a “teoria do freio” (explicação racionalista basea-
pela regulemantação de matérias em livros distintos, segundo uma sequên- da na circunstância de que os códigos fascistas, por terem sido elaborados
cia também não idêntica). Mesmo assumindo a diversidade dos códigos por intelectuais preocupados com a dogmática, haviam evitado o pior e
em seu estilo (o processo italiano, mantendo o assim chamado “modelo conservado a maior parte dos direitos e garantias existentes em período
misto” e o brasileiro tratando de justapor diversas categorias processuais anterior ao regime político mussoliniano). Portanto, a “teoria do freio”
sem separar-se irrevogavelmente da tradição lusitana – exemplo claro disso justifica o tecnicismo como uma barreira à politização geral do direito.
é a manutenção do inquérito policial, originário do Basil Império), o À esta constatação deve ser agregado um recurso retórico que pode ser
código de processo penal brasileiro inspirou-se claramente no trabalho de encontrado em ambos os lados do Atlântico: o de que a codificação não
MANZINI, intelectual encarregado da elaboração do projeto. rompeu definitivamente com as tradições jurídicas, tratando, apenas, de
O estudo não trata exclusivamente de apontar as simetrias entre um atualizar a legislação frente às demandas de uma sociedade mais complexa
e outro código. Trata de apresentar o cenário dogmático em que isso foi e de novas formas de criminalidade4.
possível. Este estudo não constitui um trabalho de direito comparado O Brasil, por seu turno, (após identificar-se a construção das catego-
(embora pressuponha alguma metodologia comparatística). Insere-se no rias processuais penais, sua transformação, deslocamento e recondução na
que se poderia denominar como uma “genealogia das ideias autoritárias no Itália), experimentou o seu primeiro código de processo penal republicano
processo penal brasileiro”. A fim de poder compreender a penetração destas unitário (o Brasil conheceu durante a fase republicana diversos códigos
representações, categorias, universos linguísticos, foi preciso em primeiro estaduais). Diversamente do que sucedera na Itália, não existia um código
lugar, identificar as formações discursivas na Itália, isto é, quais foram os anterior para balizar a manutenção ou não de um sistema respeitoso das
conceitos e categorias que marcaram a experiência italiana na passagem do
século XIX para o XX, investigando-se inclusive, as reformas que se suce- 3. Cf COLAO, Floriana. Características Originárias e Traços Permanentes do Processo Penal: do código
“moderadamente liberal” ao “código fascista” e ao “primeiro código da República”. In COUTINHO,
deram após a queda do fascismo (fundamentalmente a de 1955). Não se Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Men-
talidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: o sistema acusatório e a reforma do CPP no Brasil e
poderia iniciar o estudo pela doutrina brasileira. Isto porque as categorias na América Latina. v. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. Veja-se, neste ponto, as palavras de
aqui utilizadas, em sua imensa maioria, marcam o espírito da irradiação ALOISI: “os dois códigos (o autor se refere aos códigos penal e processual penal), ao mesmo tempo que
se reconectam às mais sãs tradições científicas e jurídicas do passado, constituem para o futuro aquela
do pensamento tecnicista, que da Itália aportou ao Brasil. O método téc- garantia de tranquilidade fundamental para a nossa gente, que é condição primeira de todo progresso”.
ALOISI, Ugo. Le Riforme Fasciste nel Campo del Diritto e della Procedura Penale. Relazione. In Primo
nico-jurídico, portanto, foi uma hipótese identificada como um fator que Congresso Giuridico Italiano. Roma: Sindacatto Nazionale Fascista Avvocati e Procuratori, 1932. p. 30.
4. O caso de CASATI (primeiro presidente da Corte de Cassação Italiana) é inclusive anedótico. Afirma
isentou de responsabilidade os intelectuais italianos em seu processo de que não se deveria prestar muita atenção no conteúdo das exposições de motivos das leis publicadas du-
rante o fascismo, porque de forma propagandística, se afirmava, frequentemente e sem muita seriedade,
colaboração na feitura da legislação fascista. Esta compreensão de que a que tudo o que era bom durante o período fascista era produto deste regime político. CASATI, Ettore.
Considerazioni e Proposte Sulla Riforma dei Codici Penali. In Archivio Penale. v. 1, 1945. p. 45.
38 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER INTRODUÇÃO 39

garantias liberais do processo penal. Porém, centrando-se no espaço dou- Justamente porque além da manutenção da estrutura básica do código de
trinário, percebe-se claramente como as mesmas categorias importantes e 1941, as novas leis processuais penais e também as penais) se encarregaram
caras ao tecnicismo italiano penetrariam e encontrariam no pensamento de introduzir lógicas distintas, institutos importados e criações híbridas,
processual penal brasileiro terreno fértil para se desenvolver, a ponto de capazes de provocar no sistema inquisitório originário de 1941, verdadei-
influenciarem diretamente na elaboração do código de processo penal de ras metástases. Como afirma Jacinto COUTINHO, “a situação atual, sem
1941. No capítulo III, verificou-se como diversos institutos do processo embargo da desgraça que era antes, é pior, ou seja, convive-se com uma
penal brasileiro – antes e depois da codificação – são elaborados a partir deterioração do sistema inquisitório”6.
da inspiração italiana. E cuja argumentação é mantida, de forma intacta e O capítulo IV procura enfrentar esta temática, verificando como a
anacrônica, pelo “guardião da Constituição”. denominada “instrumentalidade do processo”, um verdadeiro significante
Os capítulos II e III, portanto, conflagram a perspectiva de uma ge- reitor, procedeu à ampliação dos espaços de desformalização, do esvazia-
nealogia das ideias autoritárias no processo penal. Contudo, seria insuficiente mento de garantias, da ampliação de poderes judiciais em um cenário em
pretender identificar os regimes de enunciação destas ideias sem atentar-se que tais poderes já eram alargados, ao ponto de se hipertrofiar a atuação
para duas questões fundamentais: a primeira delas, traçada no capítulo I trata do Supremo Tribunal Federal, responsável direto por uma regressão rela-
de apresentar um panorama sobre o autoritarismo, especialmente aquele pro- tivamente a direitos fundamentais, sem precedentes na história das parcas
duto dos chamados ideólogos brasileiros. Não é possível compreender como garantias constitucionais processuais penais no Brasil. Ou ainda, para uti-
a doutrina processual penal se comporta na década de 40 sem entender como lizar a expressão de Anthony PEREIRA, compreender a sobrevivência de
na filosofia, na política e na sociologia, havia se instalado um pensamento uma “legalidade autoritária” que se expressa, cotidianamente, pelas práticas
autoritário. Aliás, para o exame de algumas categorias utilizadas por Francisco punitivas amparadas no casuísmo, e pela chancela de ilegalidades que cor-
CAMPOS não seria possível abdicar desta breve revisita. respondem ao âmago de nosso processo penal. A quintessência do processo
O capítulo derradeiro cuida de elaborar a pergunta fundamental: como penal brasileiro é o subsídio emprestado a práticas autoritárias e ilegais,
foi (e continua sendo – possível defender e mais do que isso, aplicar um homologadas por todo um imaginário coletivo que atravessa o corpus oli-
código de processo penal essencialmente autoritário (por tudo o que foi ex- gárquico e aristocrático de nosso sistema de justiça criminal.
posto nos capítulos I, II e III) após o advento da Constituição de 1988? Eis Neste capítulo IV e derradeiro foi examinada a concepção publicística
o questionamento fundamental. de processo, esta espécie de “mito fundante” da perspectiva instrumentalis-
Pode-se dizer que o estudo, ao procurar examinar o processo penal ta, a própria estrutura discursiva e as bases epistemológicas da perspectiva
brasileiro, demonstra a “continuidade de características na descontinuidade instrumentalista. Contudo, ao invés de se proceder a uma análise que se
constitucional”5. Em outras palavras, procurou-se identificar os “processos poderia inserir dentro das quadras do tecnicismo, procurou-se examinar
de ressignificação” das categorias processuais e do surgimento de novas balizas os fundamentos dos fundamentos, ou seja, quais são as fontes que edifi-
conceituais, que autorizaram que os institutos presentes tanto no Codice Rocco cam tal perspectiva. Encontrou-se aporte na doutrina da Escola Superior
quanto no atual código de processo penal brasileiro se mantivessem vivos, de Guerra, responsável direta pela elaboração da ideologia da segurança
com uma sobrevida absolutamente incompatível com os ditames extraídos nacional. E então, foi preciso identificar quais eram os seus pressupostos
da Constituição da República. e leituras-chave capazes de se esparramar para fora dos cantões políticos
e fazer penetrar, no direito, com raízes muito profundas, slogans como
O cenário, atualmente, é ainda pior do que aquele de décadas atrás.
6. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Advocacia Criminal e a Deterioração do Sistema Inquisitório
5. SBRICCOLI, Mario. Caratteri Originari e Tratti Permanenti del Sistema Penale Italiano (1860 – 1990). Atual. In ________; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade
Disponível em http://www.lex.unict.it/sites/default/files/files/Biblioteca/letture/Sbriccoli.pdf. Acesso Inquisitória e Processo Penal no Brasil: o sistema acusatório e a reforma do CPP no Brasil e na América
em 11.09.2015. p. 649. Latina. v. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 112.
40 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER INTRODUÇÃO 41

“efetividade do processo”, “instrumentalidade das formas”, etc. A questão de desconhecimento. Cuida-se sem dúvida de distorção dos acontecimen-
para se examinar era como a jurisdição, interpretada como elemento do tos políticos, de falseamento da história, ou melhor, de uma expressão
poder nacional, teria necessariamente que se valer de categorias processuais. contrafatual da história, equivalente à negação de que MUSSOLINI era
O problema do legado autoritário no processo penal não passa ex- fascista ou outras afirmações facilmente desmentíveis... Para tanto bastaria
clusivamente pelas mãos dos antigos ideólogos de Estado (na Itália se fala confrontar as afirmações do processualista com as palavras do ministro da
em hereditaridade do Codice Rocco)7, como se se tratasse de um inexplicá- justiça mussoliniano Alfredo ROCCO, que como já referido, batizou o
vel cultivo de ideias fora de seu tempo. Cuida-se também de examinar o código de processo penal como “o mais fascista dos códigos”. Dar crédito
papel da doutrina contemporânea e recente8, que deixou de proceder às à este tipo de informação (seguramente advinda de um importantíssimo
críticas necessárias, que se curvou de forma servilista ao poder, dos julga- processualista) significa fazer pouco caso das palavras proferidas justa-
dores que fazem vistas grossas para o contexto político de onde emergiu mente por um dos artífices do código de processo penal italiano. São
o código, dando de ombros para as promessas constitucionais, e sobre- atos oriundos de uma razão cínica como este narrado que torna vital
tudo daqueles que de forma canhestra e sórdida, manipularam fontes identificar os arranjos discursivos que se escondem por detrás das franjas
de informação, inclusive desvirtuando fatos políticos de conhecimento aparentemente científicas ou técnicas da processualística penal brasileira.
geral. Como exemplo deste último caso, temos ninguém menos do que A pequena atenção devida pela doutrina processual penal brasileira
o processualista ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, para quem “salvo a tais problemas, que atingem diretamente o coração de nossas práticas
meia dúzia de preceitos, perfeitamente suprimíveis sem prejuízo para a punitivas colocou em xeque a própria vida útil de nossa Constituição da
arquitetura do conjunto, o Código de 1930 não possui nada de fascista, República. Certamente, a crença de que as coisas mudariam apenas e tão
mesmo que tivesse sido gestado, promulgado e redigido sob tal regime somente por conta de uma nova ordem democrática também deita suas
político”9. Coincidentemente, o mesmo autor que adjetiva o pensamento raízes, contribuindo para o advento daquilo que se convencionou deno-
processual desenvolvido na USP como “escola processual de São Paulo”. minar como o “pós-acusatório”, conceito desenvolvido especialmente no
Evidentemente, não se pode aqui tratar da afirmação de ALCALÁ-ZA- capítulo I. A imersão numa cultura liberal-reacionária, que monopolizou a
MORA y CASTILLO como fruto de erro (sem dúvida inescusável) ou formação acadêmica brasileira também se junta a um horizonte mais amplo,
que ajuda a explicar o profundo déficit democrático na processualística
7. “Mais do que o “inconsciente inquisitório”, uma persuasiva chave de leitura para explicar a “heredita-
riedade” do Código Rocco, a necessidade de “justiça ativa” complicaria a fundação do processo demo- brasileira10. Contudo, na narrativa “oficial” de nossa doutrina, o Brasil não
crático inscrito unicamente sobre os “direitos individuais”. O sentido do processo penal como defesa
da sociedade – no mais tranquilizador léxico do legislador republicano a “tutela da coletividade” – não conheceu intelectuais que não fossem saudados como “grandes liberais”.
tinha cessado de exercitar o seu fascínio, espécie de enfrentamento de desafios dramáticos, do terroris-
mo político à máfia. A propósito das “tradições, que deixam um resíduo viscoso de hábitos mentais”, Mesmo Alfredo BUZAID, ex Ministro da Justiça que conheceu os porões
o próprio Manzini refletia sobre a longa duração de um processo não como fruto de meditações dos do DOI-CODI e elaborou um relatório negando a prática de tortura no
filósofos (...) nem tampouco como política de um determinado Estado (...), o instituto jurídico-proces-
sual permaneceu sempre idêntico em suas linhas fundamentais, na sua função, na sua razão de ser”.
COLAO, Floriana. Características Originárias e Traços Permanentes do Processo Penal: do código “mo-
Brasil no período da ditadura civil-militar é tratado como um intelectual
deradamente liberal” ao “código fascista” e ao “primeiro código da República”. In COUTINHO, Jacinto liberal, como um grande processualista Ora, não se pode desconhecer que “o
Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade
Inquisitória e Processo Penal no Brasil: o sistema acusatório e a reforma do CPP no Brasil e na América processo foi, precisamente, o espelho do qual se traduziram as deformações
Latina. v. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 79.
8. Veja-se que em entrevista, Ada Pellegrini GRINOVER, importante processualista e jurista brasileira, políticas que conduziam a uma restrição dos direitos fundamentais”11. Não
reconhecidamente uma intelectual que formou gerações de processualistas, se refere à prisão preventiva há dúvidas de que as atuações políticas e aquelas tidas como “intelectivas”
como antecipação de pena, algo sabidamente impensável em um Estado Democrático de Direito: “E não
é verdade que a prisão preventiva só tem natureza cautelar, pois quando fundada na garantia de ordem
pública (clamor público, periculosidade) é verdadeira antecipação da pena (interpretação sistemática).
GRINOVER, Ada Pellegrini. Partidos Políticos se Fortalecem no Parlamentarismo. Entrevista. In Tri- 10. “tais limites permitem que se fale em uma “concepção liberal-conservadora”, também estimulada, em
buna do Advogado. Edição novembro. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em http://www.oabrj.org.br/ parte, pela própria formação jurídica”. SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. Juristas e Ditadura: uma
materia-tribuna-do-advogado/19237-partidos-politicos-se-fortal-ecem-no-parlamentarismo-ada-pelle- leitura brasileira. In FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. História do
grini-grinover—jurista-e-processualista. Acesso em 13.2.2018. Direito em Perspectiva: do antigo regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2009. p. 423.
9. ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, Niceto. Vincenzo Manzini – Nota Bibliográfica. In MANZINI, 11. DE LA RUA, Fernando. Escuelas Procesales. Disponível em http://www.derecho.uba.ar/publicaciones/
Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. x. lye/revistas/43-45/escuelas-procesales.pdf. Acesso em 21.07.2016. p. 136.
42 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER INTRODUÇÃO 43

convergem, sem possibilidade de cisão. As defesas de uma aparente ruptura Enfim, o objeto deste ensaio é descortinar os horizontes de consti-
entre ação política e trabalhos acadêmicos é derivada daquilo que SLOTER- tuição do direito processual penal brasileiro, identificando os processos de
DIJK denomina como cinismo, ou seja, uma “falsa consciência ilustrada”12. ressignificação de importantes categorias processuais penais. Além disso,
A perspectiva instrumentalista, que serviu para o transplante da ideo- procura-se apresentar uma hipótese, que ajuda a explicar (muito embora
logia da segurança nacional ao processo penal democrático, serve-se de não dê conta de toda a multifária realidade) como o processo penal,
conceitos que são caros à doutrina processual brasileira: ação, processo, apesar da ruptura constitucional de 1988, manterá e inclusive ampliará
efetividade, instrumentalidade das formas, Estado Social de Direito13 e es- suas feições autoritárias.
pecialmente jurisdição. A roupagem é pretensamente democrática. O seu
conteúdo, como se verá, não.
O mesmo se deve dizer acerca de uma teoria geral do processo. A
aproximação entre direito processual penal e civil é revestida por diversos
movimentos, nem sempre devidamente observados pela crítica processual,
dada a sua complexidade: a) o processo civil absorveu as categorias publi-
císticas (que incorporaram conceitos privatísticos primeiramente, tratando
de dar a eles contornos públicos e inserir a nova disciplina na teoria geral
do direito); b) o processo penal absorveu categorias do processo civil, a fim
de se desvencilhar do direito penal material; c) o processo civil no regime
fascista se aproxima do processo penal, a fim de impor uma lógica autori-
tária (ou publicista como muitos defenderão); d) a teoria geral do processo
é fruto deste terceiro movimento, não sendo lícito afirmar-se que ela seja
meramente uma transposição de conceitos privados ao processo penal. A
teoria geral do processo, como movimento de sincronização de categorias
processuais, partindo-se daquelas que estruturam o processo penal e, es-
sencialmente, fruto de categorias construídas pelo movimento publicístico
tedesco que nasce no giro do século XIX para o XX, sendo incorporado na
Itália pela leitura da doutrina alemã de CHIOVENDA e radicalmente acen-
tuada no período fascista. Fala-se, hoje, no Brasil, inclusive, de uma “nova
teoria geral do processo”, a fim de dar conta da nova realidade (embora
sempre se insista no caráter “público” do processo)14.

12. SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. 4 ed. Madrid: Siruela, 2007. p. 40.
13. SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. Juristas e Ditadura: uma leitura brasileira. In FONSECA, Ri-
cardo Marcelo; SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. História do Direito em Perspectiva: do antigo
regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2009. p. 426.
14. DIDIER JR, Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, Essa Desconhecida. Salvador: JusPodium,
2012; Cf GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio Sobre a Processualidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016.
Para uma justa crítica à noção de teoria geral do processo Cf MOREIRA, Rômulo. Uma Crítica à Teoria
Geral do Processo. Porto Alegre: Lex Magister, 2013. Sobre a “neo” teoria geral do processo, tem-se os
comentários de Afrânio Silva JARDIM e Ada Pellegrini GRINOVER. Disponível em http://www.direi- Jacinto Nelson de Miranda; PILATTI, Aline Guidalli. Aury: avise para não mexerem tanto no samba. In
toprocessual.org.br/index.php?uma-polemica-sobre-a-teoria-geral-do-processo. Acesso em 12.09.2017. KHALED JÚNIOR, Salah Hassan. Sistema Penal e Poder Punitivo: estudos em homenagem ao prof.
Sobre as impropriedades de uma teoria geral do processo, velha ou nova, imprescindível COUTINHO, Aury Lopes Júnior. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 321 – 331.
CAPÍTULO I
AUTORITARISMO PROCESSUAL PENAL

O objetivo básico deste capítulo é perceber, desde a categoria “auto-


ritarismo”, como a construção do processo penal é modulada e arquitetada
segundo arranjos semânticos que reúnem diversos desdobramentos sobre as
relações existentes entre autoritarismo e processo penal.
Pensamos que a tarefa elementar será apresentar alguns usos que se
fazem (e que se fizeram do termo autoritarismo15), na expectativa de poder
desde este momento, detectar elementos que possam sugerir ou mesmo des-
velar o funcionamento autoritário do processo penal brasileiro.
À evidência, a empreitada será realizada de maneira parcial e precária,
uma vez que percorrer os “nós” pelos quais perpassa a categoria autoritaris-
mo exigiria uma nova moldagem do estudo. Não se trata de tentar produzir
uma historiografia dos distintos usos da expressão, mas apenas apresentar
um horizonte de significância que ajude o pesquisador da área processual
penal a aparar determinadas franjas discursivas por onde penetram catego-
rias desenvolvidas através de matizes antidemocráticos.
Por fim, temos aqui um capítulo teorético preparatório para se poder
bem visualizar como o significante “instrumentalidade” condiciona uma
série de reformulações sobre o “tecnicismo jurídico-penal” em sua faceta
processual. Caberá, igualmente, verificar se é ainda possível manter-se uma
instrumentalidade processual penal divorciada da semântica política auto-
ritária ou se, mesmo mantendo sua articulação constitucional, ela ainda se
torna capaz de ressignificar velhos pensamentos autoritários.

15. Há quem pense que o sistema penal sempre será autoritário, em maior ou menor sentido, pois o ele-
mento autoritário é o seu código genético: “o fundamento autoritário constitui, para o direito penal, uma
característica genética e estrutura ineliminável”. PALIERO, Carlo Enrico. Legitimazione Democratica
Versus Fondamento Autoritario: due paradigmi di diritto penale. In STILE, Alfonso Maria. Democrazia
e Autoritarismo nel Diritto Penale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2011. p. 158.
46 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 47

1.1. AUTORITARISMO(S) E PROCESSO PENAL: FORMAÇÃO provisoriamente, como autoritarismo (lato sensu). Ou seja, não basta retroa-
DISCURSIVA DO PENSAMENTO “PÓS-ACUSATÓRIO” gir a um passado (que para nós, brasileiros, não é tão remoto) e identificar
ali determinados problemas de orientação política que conformariam, a seu
O tema do autoritarismo processual penal, como não poderia deixar de
turno, superestruturas argumentativas, capazes de, per si, estabelecer uma
ser, será o objeto inicial da pesquisa, pois com ele e através dele encontraremos
diacronia (SAUSSURE). O que constrói o percurso metodológico aqui uti-
outros tantos distintos campos, que mantêm, por assim dizer, uma relação
lizado é justamente identificar como essas categorias foram retrabalhadas,
comensal. Antes, contudo, de trabalhar a noção de autoritarismo processual
como essas categorias são atuais embora ressignificadas. O elemento-chave,
penal, seriam necessários alguns recortes e problematizações sobre a catego-
portanto, para acedermos à ideia de um autoritarismo processual penal, passa,
ria autoritarismo. Fundamentalmente, como se sabe, o autoritarismo é uma
inevitavelmente, pela questão da ressignificação.
categoria que atravessa diversos campos de saber, como a filosofia, o direito
e especialmente, a ciência política. Uma questão que me parece das mais im- Não podemos olvidar que a própria categoria “ressignificação” também
portantes é ventilar como, de uns tempos para cá, este assunto reaparece como passa a sofrer o trabalho, seja da doutrina, seja da própria historia das ideias,
objeto de estudo, seja pelos processualistas, seja pelos cientistas políticos, circunstância que autoriza ela própria ser represada por outros tantos pro-
tratando de reordenar as estruturas de significação que esta categoria passa a cessos ressignificativos. Desta maneira, se a própria noção de ressignificação
ocupar. Em outras palavras, caberia identificar em que consiste este discur- não pode ser imunizada, seja relativamente ao advento de novos atores e
so (autoritário), quais seriam suas bases semânticas, investigar que diversos novas subjetividades (que necessariamente são reproduzidos pela indetermi-
regimes de enunciados partem do que se poderia, ao menos neste momento nação democrática, como acentuaria LEFORT18), tampouco configurará ela
– e por convenção-, afirmar serem próprios do autoritarismo. Inicialmente, própria uma categoria estanque do pensamento, capaz de ser utilizada como
podemos dizer que os elementos que estruturam o discurso autoritário não metodologia ou condição de desvelamento da verdade. Nem método nem
são elementos do passado e que se encontrariam como que adormecidos. hermenêutica19. A ideia de ressignificação será compreendida neste trabalho
A perspectiva aqui é a de tentar evidenciar nos discursos dos ideólogos do como um dentre vários regimes de enunciação, hábil à produção de novas
autoritarismo brasileiro determinadas categorias que acabaram sendo funda- relações, de novos deslocamentos, sem perder aquele conteúdo inicial, aquele
mentais para o desenvolvimento do processo penal. De forma mais pontual, conteúdo originário: poderíamos falar de uma retransmissão, apenas como
o objetivo da investigação sobre o autoritarismo é a identificação de como ele uma imagem metafórica, a fim de que se possa, ao menos, traduzir a sua ope-
penetra as categorias mais elementares do processo penal brasileiro16 e como racionalidade. Como destaca BUTLER20, uma ressignificação pode decorrer
especialmente a doutrina foi omissa na detecção de tais bases discursivas, “per se”, isto é, em função da própria instabilidade da linguagem. E, poderá,
permitindo não apenas a transmissão geracional acrítica destes conceitos, inclusive, assumir formas conservadoras (ou, inclusive, autoritárias).
mas, substancialmente, como novos institutos processuais penais acabam se O termo autoritarismo sofre do que se poderia denominar como polisse-
conectando, de forma mais ou menos direta, a este legado17. mia. Na ciência política, poucas expressões foram tão estudadas, com resultados
Metodologicamente, não se pretende tecer aqui uma reconstru- tão díspares entre si. Isto para não falar de sua banalização, o que compromete
ção historiográfica dos institutos que arvoram o que denominamos ainda, sensivelmente eventuais estratégias críticas sobre o feixe de elementos sobre os

16. Assiste razão à Marilena CHAUÍ quando assevera que “é aberrante, mas necessário, que a debilidade 18. LEFORT, Claude. A Invenção Democrática: os limites do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
teórica do pensamento autoritário seja solidária com sua eficácia prática”. CHAUÍ, Marilena. Manifes- 19. Sobre esta questão Cf STRECK, Lênio. Verdade e Consenso. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
tações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica: São Paulo: Editora Funda- 20. Butler diferenciará a ressignificação da “ressignificação subversiva”. A primeira, denominada de res-
ção Perseu Abramo, 2013. p. 23. significação “per se” decorre da própria linguagem. Uma ressignificação subversiva será uma forma de
17. Analogamente à ideia de ressignificação aqui articulada, podemos perceber em ZAFFARONI os movi- corporalmente ordenar normas que minam os significados tradicionalmente nelas arraigados. BUTLER,
mentos de deslocamento sígnico de determinadas categorias processuais penais. Segundo ZAFFARO- Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. London: New York: Routledge, 1990.
NI, todo discurso autoritário (e totalitário) será uma reiteração do discurso inquisitorial. ZAFFARONI, p. 129 et seq. Recomendamos, igualmente, para a compreensão da ressignificação e da performativi-
Eugenio Raúl. Origen y Evolución del Discurso Crítico en el Derecho Penal. Buenos Aires: EDIAR, dade subversiva BUTLER, Judith. Excitable Speech: the politics of performative. London: New York:
2004. p. 28. Routledge, 1997. SALIH, Sara. Judith Butler. London: New York: Routledge, 2002.
48 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 49

quais a categoria haveria de recobrir. Assim sendo, tem-se um forte componen- registros simbólicos, da psicologia social ao direito, passando pela sociologia,
te de indeterminação que paira sobre o termo, de maneira que nem sempre criminologia, filosofia e naturalmente, ciência política.
estamos a tratar do mesmo fenômeno, o que provoca o desentendimento21. Em nenhum momento será possível estabelecer uma “redução de com-
Além do mais, o conceito de autoritarismo pode ainda sofrer do que Florestan plexidade” do termo autoritarismo. Isto significa dizer que esta variância
FERNANDES denomina como “perversão lógica”, já que estaria atrelado a semântica lhe é inerente e constitutiva, considerando-se que a linguagem se
um ataque liberal aos “abusos de poder do Estado e à crítica neokantiana da dá através de “jogos”, para se utilizar a metáfora de WITTGENSTEIN26. Isso
exorbitância da autoridade”22. Para FERNANDES, o termo acabou se transfor- significará aceitar que podemos trabalhar com versões distintas de um mesmo
mando em campo corrente dentro do qual a psicologia, a sociologia, o direito fenômeno, a depender das balizas epistêmicas utilizadas. Portanto, recusa-
e a ciência política tentaram estabelecer estudos, conduzindo-se sempre através mos, de início, procurar uma definição “universalizante” de autoritarismo,
de duas linhas: a) dos aspectos “sociopáticos da autoridade constituída” e da que na esteira de uma metodologia sociológica contrafática (herdada desde
“irracionalidade do comportamento humano na época do liberalismo”23. Esta WEBER27) e personificada na estruturação de “tipos ideais”, acaba por resultar
exacerbação do uso do conceito revela, assim, a crise da sociedade burguesa na em uma perspectiva funcionalista (tomemos especialmente a sociologia de
era do capitalismo na transição para o socialismo. LUHMANN28 como paradigma). Esta metodologia (dos tipos ideais) acaba
Do ponto de vista jurídico, mais especificamente no campo do siste- por elencar tipologias que abarcariam as características que deverá possuir
ma penal, citam-se aqui duas pesquisas fundamentais no Brasil que cuidam mencionado sistema ou conceito, no escopo de confrontá-lo com a realidade.
de identificar os sentidos assumidos pela expressão autoritarismo. Para Os resultados desta forma de proceder são bem conhecidos: ou bem acabamos
MALAN24, por autoritarismo poderemos compreender três conjuntos distin- privilegiando determinada característica, que se elevaria sobre as demais (dado
tos de fenômenos, ou melhor: três distintas acepções do termo. Autoritarismo que a realidade sempre oferece campos ecléticos ou zonas cinzentas, nas quais
poderá designar: a) sistema político; b) perfil psicológico; c) ideologia política. a dificuldade teórica recorre à discricionariedade do pesquisador), ou bem
Em outro importante estudo, FRAGOSO25 imputará ao termo autoritarismo não será possível encontrar uma definição ou um sistema que satisfaça todas
quatro vertentes distintas: a) como abuso na constituição ou no exercício do as abstratas características atribuídas ao tipo ideal29, o que equivaleria ao seu
poder; b) como regime político; c) como ideologia política; d) como men- abandono intelectual, pela sua infecundidade. Dos tipos ideais se chega a
talidade autoritária (equivalente ao autoritarismo psicológico-social). Como uma encruzilhada simplista: eleição arbitrária da característica mais relevan-
se pode perceber, os distintos sentidos que emergem dos usos linguísticos do te ou condenação da categoria à esterilidade e improdutividade científicas.
termo autoritarismo não acenam para o seu confinamento em uma dimensão Tomando como exemplo característico o problema da definição dos sistemas
exclusivamente disciplinar. O autoritarismo é uma categoria política trans- processuais penais, encontramos um sem-número de articulações teóricas
versal, isto é, que percorre simultânea e indistintamente, os mais diversos que encontram o marco definitório do sistema processual em determina-
da característica (v.g. a separação de funções), tomada como predominante,
21. Utiliza-se aqui a expressão no sentido de RANCIÈRE: “por desentendimento entenderemos um tipo 26. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
determinado de situação da palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e 27. Nas palavras de Weber, sobre o caráter contrafático deste método: com os tipos ideais “não desejamos
não entende o que diz o outro. O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele forçar esquematicamente a vida histórica infinita e multifacetária, mas simplesmente criar conceitos
que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a mes- úteis para finalidades especiais e para orientação”. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janei-
ma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura. ro: Jorge Zahar, 1974. p. 345.
RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996. p. 11.
28. Luhmann tratará de explicar o funcionamento do direito através do que denomina como “expectativas
22. FERNANDES, Florestan. Apontamentos Sobre a “Teoria do Autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979, normativas”, isto é, imunes à frustração. Neste sentido, “a contribuição da expectativa normativa para o
p. 03. desenvolvimento de sistemas complexos está relacionada a sua tendência de dilatar as possibilidades de
23. FERNANDES, Florestan. Apontamentos Sobre a “Teoria do Autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979, expectativas, juntamente com a sua interação contrafática”. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito
p. 03-04. I. Brasília: Tempo Universitário, 1983. p. 76.
24. MALAN, Diogo. Ideologia Política de Francisco Campos: influência na legislação processual penal brasi- 29. Considerações análogas sobre os sistemas processuais penais, a partir de uma metodologia dos tipos
leira. In MELCHIOR, Antonio Pedro; MALAN, Diogo; SULOCKI, Victoria-Amalia de Barros Carvalho ideais podem ser encontradas em LANGER, Maximo. The Long Shadow of Adversarial and Inquisi-
Gozdawa. Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 08. torial Categories on Comparative Criminal Procedure. In DUBBER, Markus D; HOERNLE, Tatjana.
25. FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. Handbook on Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, 2014.
50 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 51

em detrimento de outras. Fundamentalmente, na doutrina brasileira (assim quais poderiam ser as contramedidas tendentes à demarcação destes limites.
como na doutrina processualística de tradição continental), o sistema acusa- Além disso, operar através de categorias universais encerraria a pesquisa
tório esgotaria sua performance na necessidade de separação entre os órgãos em um problema metodológico de recorrência aos “universais”35 como forma
acusatório e decisório30. Com efeito, trata-se de uma definição incompleta, à paradigmática de se articular quaisquer conjunções explicativas. A proposta para
medida que, se por um lado, é inaceitável ao processo acusatório a prática das o exame do autoritarismo processual penal é o de se proceder ao deslocamen-
funções acusatória e judicante por um mesmo órgão, a recíproca não é verda- to da investigação para as formações discursivas36 que amparam os institutos
deira. Ou seja: o sistema inquisitório não pode ser explicado unicamente pela processuais penais. Assim sendo, segundo FOUCAULT, e logicamente para o
separação de funções, já que as práticas punitivas jamais foram, como poderia objeto imediato de estudo, “a arqueologia analisa o grau e a forma de permea-
exigir um positivismo historiográfico rasteiro, simétricas. Prova disso são as bilidade de um discurso”37. O que está em jogo, necessariamente, não é apenas
Ordonance Criminelle de Louis XIV, edificação fundamental de signo inqui- uma investigação que permita uma análise acerca da formação enunciativa das
sitório, cuja tramitação processual se iniciava por órgão acusador diverso do categorias instrumentalizadoras do que se poderia denominar como “autorita-
julgador31. Demais disso, ao menos dois fenômenos contemporâneos que as- rismo processual penal”. Trata-se, com efeito, de se verificar como o discurso
solam os ordenamentos jurídicos em nível global ficariam fora do espectro de processual “pós-acusatório” é permeável às mesmas categorias que circulavam
abordagem metodológica dos tipos ideais: a) aquilo que SCHUNEMANN32 no discurso processual penal fascista italiano, cuja base estrutural de proces-
denomina como “aglomeração quântica de poder”, que significa em palavras so penal é muito semelhante à brasileira. Portanto, inicialmente, têm-se dois
mais simples a existência excessiva de poderes nas mãos de uma parte proces- movimentos: a) a identificação e a formação de um pensamento autoritário
sual (esta teoria autorizaria a rotulação de inquisitorial a determinado sistema brasileiro, construído especialmente através da circulação de significantes que
que concebesse um órgão acusatório com tantos poderes que provocaria a representavam determinadas posturas políticas em solo brasileiro; b) identifi-
desestabilização do sistema processual33); b) a manifestação do que se poderia car o nível de penetrabilidade das categorias processuais penais autoritárias ao
chamar de uma tendência mundial ao “ativismo judicial”, que faz com que os discurso que se poderia identificar como “pós-acusatório”.
limites entre os papeis dos atores processuais sejam incertos, recaindo, sobre o
Para efeitos metodológicos e com vistas à identificação de delimitação
juiz, um enfeixamento de poderes que torna ineficaz qualquer teoria clássica
temporal da pesquisa, utiliza-se a expressão “pós-acusatório” para designar o
do processo para designar como tais poderes processuais são distribuídos34 e
período pós-Constituição da República de 1988, que consolidou o regime
30. Trata-se, evidentemente, de um grande equívoco gerado a partir da disseminação da metodologia dos ti- democrático brasileiro após 1964. A Constituição “democrática”, como
pos ideais. Se, por um lado, para que exista um sistema acusatório se fazem necessários órgãos distintos
entre a acusação e o tomador de decisões, tal elemento é ainda insuficiente para garantir a acusatorieda- ficou conhecida, estabeleceria um conjunto de direitos fundamentais e de
de de um sistema. As ordenanças francesas de 1670 são prova de que um sistema inquisitório pode ser
garantido através da participação de órgãos distintos. Como exemplo desta interpretação, pode-se citar
GRINOVER: “sinteticamente, o que distingue o processo acusatório do inquisitório é que, no primeiro, que, no entanto, foge ao propósito deste trabalho. Seria viável imputar ao menos a dois significantes o
as três funções de acusar, defender e julgar estão atribuídas a órgãos diferentes (acusador, defensor e êxito da emergência do juiz como grande protagonista no campo do processo: o primeiro, o advento da
juiz), enquanto no processo inquisitório as funções estão reunidas e o inquisidor procede espontanea- expressão “acesso à justiça”, que introduz determinados níveis de empoderamento do magistrado, que
mente, sendo o réu mero objeto do processo e não sujeito da relação processual”. GRINOVER, Ada acaba se confundindo como a principal engrenagem da jurisdição. Aqui, portanto, temos um fenômeno
Pellegrini. Ideologias do Processo Penal na América Latina. In ________. O Processo em sua Unidade. que em paralelo percorre o imaginário jurídico e que creditará ao magistrado o papel de porta-voz da
v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. Neste sentido, indicamos a leitura de CORDERO, Franco. Guida democracia (politização do Judiciário). Cf GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas: justiça
Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. O segundo, a perda de objeto da discussão de base sobre
Novo Juiz no Processo Penal. In______. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de a jurisdição (a polêmica entre concepções unitárias e dualistas de jurisdição), conectando a jurisdição
Janeiro: Renovar, 2001. ao exercício da soberania por meio do direito, provocando, como efeito sucedâneo, a crise da teoria da
31. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal jurisdição, refém da ausência de uma renovação conceitual, porém, paradoxal e simultaneamente, órfã
Brasileiro. In Revista de Estudos Criminais. n. 1. Sapucaia do Sul, 2001. p. 28. de fundamentos mais substanciais.
32. SCHUNEMANN, Bernd. La Reforma del Proceso Penal. Madrid: Dykinson, 2005. 35. Cf FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
33. Desta arte, portanto, a investigação preliminar no processo penal italiano de 1930 confirma o excesso 36. “Uma formação discursiva não desempenha, pois, o papel de uma figura que para o tempo e o congela
de poderes nas mãos do Ministério Público, que poderia escolher o rito e decretar medidas restritivas de por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria de processos temporais; coloca o prin-
direito de forma unilateral. cípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos,
34. Devemos reconhecer o mérito de CAPPELLETTI na detecção do fenômeno como um sintoma mun- transformações, mutações e processos. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 8 ed. Rio de
dial. Cf CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: SAFE, 1993. Podemos sinalizar Janeiro: Forense Universitária, 2013.
um conjunto de repercussões na reorganização do processo penal deflagrado por este movimento e 37. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. p. 204.
52 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 53

garantias que, no caso do processo penal, foram recepcionados como ele- acusatoriedade ou inquisitoriedade do sistema processual penal. Em síntese,
mentos integrantes de um processo “acusatório”. É justamente a partir deste a Constituição tornaria refratárias as críticas ao sistema processual penal bra-
panorama que o discurso processual penal se modificará. Não evidentemente sileiro. Com a Constituição e o modelo democrático de processo penal, já
de imediato, mas através de movimentos políticos e jurídicos confluentes, não caberia se falar em autoritarismo, que estaria relegado ao passado político
que enfatizam, para efeitos de síntese, a “força normativa da Constituição”. brasileiro não-democrático.
No quadro do designado contexto “pós-acusatório”, a força performa- O uso de termo pós-acusatório pode ser analogicamente comparado à
tiva da Constituição da República, neste sentido, (em seus quase trinta anos expressão pós-ideologia, utilizada por ZIZEK. Para o filósofo esloveno, a era
de vigência), teria o condão de sepultar os resquícios inquisitórios que se pós-ideológica seria aquela do cinismo, aquela do “eles sabem o que fazem
encontrariam ainda presentes na legislação brasileira. Apesar da relevante dou- mas mesmo assim o fazem”. Nas palavras do autor, “a lição teórica a ser extraí-
trina crítica no Brasil, sediada no âmbito da academia, doutrinas tradicionais da disso é que o conceito de ideologia deve ser desvinculado da problemática
e que interagem com a jurisprudência, num círculo vicioso, acabariam por “representativista”: a ideologia nada tem a ver com a “ilusão”38. Segundo
despejar e esparramar conclusões no sentido da consolidação e concretiza- ZIZEK, a “era pós-ideológica” equivale à perda de qualquer referencialidade
ção do sistema acusatório no Brasil. Tendo como enfoque exclusivamente a do ato, que aparentemente não representa nenhum interesse específico, e, por-
Constituição da República e a miríade de direitos nela reconhecidos, a retórica tanto, “neutro”39. No mesmo sentido poderia ser referido o uso da expressão
de um sistema acusatório, no qual a separação de funções seria o elemento “pós-democracia”, interpretada por CROUCH no sentido de uma parábola
determinante, em consonância com o conjunto de princípios constitucionais entre democracia e não-democracia, e que se relaciona com as transformações
positivados, se encarregaria de definir a sorte dos debates, sepultando, por sofridas pela democracia em tempos neoliberais40.
anacrônicas, as críticas sobre as práticas e formas punitivas brasileiras. Neste De uma forma geral, a análise do discurso autoritário no processo
cenário, havendo a Constituição da República instituído de forma peremp- penal brasileiro parte de alguns pressupostos, que FOUCAULT denomi-
tória o sistema acusatório, eventuais questões a serem debatidas quanto às nou como “anarqueologia” e que consiste em uma atitude, segundo a qual
intersecções entre o sistema processual penal e o político restariam obsole- nenhum poder é um dado de fato, nenhum poder é inconteste ou inexorá-
tas. Dentre elas, evidentemente, o nível de permissividade constitucional ou vel, nenhum poder deve ser aceito de saída: “não há legitimidade intrínseca
ainda, de receptividade das normas infraconstitucionais ao modelo constitu- do poder”41. Novamente de acordo com FOUCAULT, “trata-se de uma
cional. As críticas ao inquisitorialismo estariam cingidas, então, a discussões atitude teórico-prática concernente à não-necessidade de todo poder, e ,
acadêmicas, desprovidas de concretude e incapazes de produzir “efeitos para distinguir essa posição teórico-prática da não-necessidade do poder
práticos”. A consolidação do regime democrático e as diversas alterações na
legislação processual penal brasileira se encarregariam de fazer desfalecer os 38. ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. In _______. Um Mapa da Ideologia. São Paulo: Contraponto,
1996. p. 12.
debates políticos acerca do processo penal, considerados despiciendos, fúteis 39. ZIZEK, Slavoj. O Ano Em que Sonhamos Perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 34; p. 58.
ou meramente retóricos, relegados ao “saber acadêmico”. A Constituição da 40. “Neste modelo, enquanto as eleições existem e realmente podem mudar governos, o debate público elei-
toral é um espetáculo controlado estreitamente, gerido por equipes rivais de profissionais das técnicas de
República, como que num passe de mágica, teria tornado a estrutura do persuasão, e considerando um pequeno número de questões selecionadas por aquelas equipes. A massa
dos cidadãos desempenha um papel passivo, aquiescente e mesmo apático, respondendo apenas aos
código de processo penal brasileiro adequada à realidade acusatória expressa sinais dados a eles. Por detrás do espetáculo do jogo eleitoral, a política é moldada privativamente, pela
por tribunais e pela doutrina tradicional, responsável pela manutenção de interação entre governos eleitos e as elites, que de forma opressora representam interesses econômicos.
Este modelo, assim como o seu ideal máximo, é também um exagero, mas suficientes elementos dele
métodos exegéticos como instrumento de justificação do direito processual são reconhecíveis na política contemporânea para torna-lo útil enquanto questionarmos onde a nossa
vida política se encontra entre ele e o modelo democrático máximo. CROUCH, Colin. Post-Democracy.
penal vigente. Assim, o que designamos como “período pós-acusatório”, nesta Cambridge: Polity Press, 2004. p. 04.
41. FOUCAULT, Michel. O Governo dos Vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 72. Ainda: “Dado que
pesquisa, significa a aparente concretização do acusatório, pela Constitui- nenhum poder é fundado nem em direito nem em necessidade, pois que todo poder nunca repousa em
outra coisa que não a contingência e a fragilidade de uma história, que o contrato social é um blefe e a
ção da República, tornando desgastadas e descartáveis as discussões sobre a sociedade civil uma história para criancinhas, que não há nenhum direito universal, imediato e evidente
que possa em toda parte e sempre sustentar uma relação de poder, qualquer que seja”. Ibidem.
54 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 55

como princípio de inteligibilidade do próprio saber”42. de “prosódia” das línguas políticas”45. Este processo de circulação de signifi-
Como se poderá perceber, através da anarqueologia será analisada a for- cantes corresponde ao “efeito de forma” operado pela linguagem46, “fazendo
mação de um saber processual que se deu de maneira contingente, cujas relações coincidir o discurso teórico com a própria narração”47. Assim, uma união
com o poder são produto de uma singularidade, evidenciando que o discurso entre relato e discurso é elementar para que se possa explorar a formação
processual penal brasileiro poderia-deveria ser diverso, dada a sua inessencia- das linguagens e da própria história (limitadas, em nossa abordagem, pela
lidade originária, dada a sua fragilidade intrínseca, dada a sua artificialidade perspectiva processual penal). Segundo FAYE, “o relato é a função da lin-
como resposta para compatibilização entre os mecanismos de poder (sistema guagem que relaciona o objeto e a ação e remete sem cessar o discurso à
de justiça criminal) e o saber de uma classe (juristas). Novamente, de acordo ação e ao objeto”48. Metodologicamente, se pode afirmar uma relação entre
com FOUCAULT, “o estudo de tipo anarqueológico consistiu, em vez disso, o movimento ou circulação dos significantes (ou ainda, das ideias processuais
em considerar a prática do encerramento em sua singularidade histórica, isto é, penais) na produção e na determinação efetiva da vida real (do processo penal
em sua contingência no sentido de fragilidade, de não-necessidade essencial”43. brasileiro). Também os relatos ideológicos poderão emprestar sentido à defi-
Portanto, partindo-se da premissa de que a constituição do saber pro- nição da amplitude de sua atuação – como mascaramento – na tentativa de
cessual penal brasileiro não passa de uma singularidade e considerando que narrar os processos de circulação49. Neste sentido, se pode claramente tomar
tais relações de saber e poder são contingenciais, evidentemente que toda esta em consideração um discurso declaradamente liberal, no processo penal bra-
“tradição” pode ser legitimamente questionada e denunciada pela sua atuação sileiro, que mascara, com efeito, os processos de constituição de um saber
simpática a atitudes e compromissos autoritários. Em palavras mais simples, impregnado por categorias antiliberais (no sentido jurídico da expressão).
a “tradição”, no campo do processo penal brasileiro, jamais deixou de manter Temos, então, no Brasil, uma topografia, ela própria dúctil, que permite
relações incestuosas com as manifestações de poder, especialmente nutrida intersecções e cujas relações de distanciamento e aproximação entre concei-
por mananciais autoritários, por ideologias antidemocráticas. tos podem ser transformadas50. E esta construção de intersecções, ou como
acentua FAYE, “as energias da linguagem”, pode ser lida como um “poder de
Esta atitude metodológica, portanto, ainda procurará compreender os me-
credibilidade”: “designar ou construir as linhas destas intersecções equivale a
canismos de flutuação dos significantes como elemento que permite ao discurso
traçar o plano destes estados de “energia” ou de credibilidade”51. Tais rastros
processual penal brasileiro definir os seus ajustes, as suas teias de significação,
assim como cruzar categorias de distintos níveis (heterogenia constitutiva). A
circulação de significantes, especialmente aqueles originários da formação dis- 45. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p. 11.
cursiva processual na Itália (a Escola de CHIOVENDA e a incorporação de 46. “Isto significa que é necessário entrar neste processo, no processo fundamental da “narração”, para
esclarecer o que sucede entre certa linguagem pesada da economia e certa forma ideológica do poder
conceitos tedescos na formação do pensamento processual científico italiano), o do Estado, marcado com o signo hitleriano. Entrar neste processo de linguagem não é abandonar o ter-
renos das sociedades “reais”, dos grupos sociais em conflito e das clases em luta; muito pelo contrário,
seu rearranjo e o seu aparecimento em solo brasileiro correspondem ao processo é ver como se ilumina este terreno com mil signos que indicam os seus sulcos – exatamente igual às
trajetórias luminosas da câmara de Wilson permitem explorar os movimentos materiais dos elementos.
de circulação de significantes, que não podem ser explicados unicamente desde Mais ainda: a linguagem pertence à materialidade da circulação social, sendo todo significante (social),
as bases de uma genealogia da discursividade processual penal em solo brasileiro. diziam os estoicos, corporal. A linguagem, privada da massa material, é essa emissão da emissão de
materialidade social que não deixa de produzir ações, sínteses viventes ou feridas mortais: fotossíntese
Requer, portanto, um campo mais amplo de estudo. social ou efeito laser ideológico. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de
la economía narrativa. Madrid: Taurus, 1974. p.119.
Como acentua FAYE, uma crítica da historia não é possível de ser feita 47. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p. 39.
para além de um autorrelato, que produz a si mesmo44. A missão, portanto, 48. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p. 40.
é identificar os “traslados de uma cadeia de linguagem a outra, essa espécie 49. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p. 40.
42. FOUCAULT, Michel. O Governo dos Vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 73. 50. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
43. FOUCAULT, Michel. O Governo dos Vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 73. Taurus, 1974. p. 65.
44. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid: 51. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p.09. Taurus, 1974. p. 65.
56 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 57

linguísticos permitem detectar-se as “energias ou credibilidades sociais”52. “palavras-chave”, cuja organização subterrânea é a de uma “quase-língua”57.
Perseguir a formação do pensamento processual penal brasileiro, reputado Em síntese, juntamente com as curvas enunciativas produzidas pelo
como essencialmente liberal no plano jurídico, significa submeter todo este discurso jurídico-penal oitocentista, os processos de circulação e captura de
processo ao jogo de um paradoxo. Segundo FAYE, “quanto mais fabulosos, tais linguagens serão interpretados em torno da questão do autoritarismo.
mais irreais, mais imaginários são os discursos narrativos, mais chance têm de Já inserido na questão da circulação de significantes é que se deve tentar
cair em uma análise facilmente formalizável (ou estrutural)53. identificar os processos de escamoteamento ou de penetrabilidade dos meca-
Com efeito, a tarefa a ser executada é identificar as “linguagens autori- nismos autoritários na cadeia do discurso jurídico, primeiramente na Itália,
tárias” codificadas na teoria processual penal brasileira e nas estruturas legais posteriormente no Brasil. Além disso, consoante se verificará mais adiante,
que cimentam as suas linhas limítrofes. Assim, o objetivo será identificar o se procurará analisar o pensamento político autoritário brasileiro e como
processo de circulação de significantes, determinar as posições ocupadas, o ele implica, em maior ou menor medida, abraçar uma galáxia de represen-
deslocamento de posições, a fim de se permitir o ingresso em uma econo- tações políticas, que são intercambiáveis relativamente ao discurso jurídico.
mia dos enunciados, como equiparados à produção e circulação de objetos Ou, ainda, como o pensamento político autoritário no Brasil encontrará no
mercantis54. Pode-se subdividir em dois planos a detecção dos processos de universo processual penal uma representação muito semelhante, orquestrada
circulação de significantes. O primeiro deles, segundo se pode verificar na a partir de determinados vetores. A análise da receptividade e das ressignifi-
obra de FAYE, é a definição de linguagens totalitárias (neste estudo deno- cações dadas ao processo de circulação de significantes, no Brasil, receberá
minadas autoritárias). Para FAYE, as linguagens totalitárias serão as cadeias atenção devida mais para diante.
de reflexão em que se introduzem a expressão italiana “Stato Totalitario” e
os procedimentos de tradução para o alemão do Totale Staat55. Trata-se, se 1.2. UM BREVE PERCURSO SOBRE USOS DO
poderia assim dizer, dos processos de constituição dos enunciados e de sua AUTORITARISMO E DO TOTALITARISMO: A
aceitabilidade56. O segundo consiste na detecção das operações de introdução TRANSVERSALIDADE DO AUTORITARISMO E AS
no pensamento penal e processual penal italiano, de fórmulas jurídicas que
MÚLTIPLAS TENTATIVAS DE APREENSÃO DO FENÔMENO
embora não sejam costumeiramente identificadas como oriundas de uma ex-
periência autoritária, podem ser compreendidas em uma constelação histórica A expressão autoritarismo, como seria de se esperar, ocupa simulta-
autoritária mais ampla do que o fenômeno político fascista, remetendo assim, neamente os espaços que seriam próprios da ciência política (autoritarismo
a um “stock normativo” de categorias jurídicas politicamente sequestráveis. como regime político), da filosofia (autoritarismo como ideologia), do di-
reito (autoritarismo como abuso de poder) e/ou ainda, da psicologia social
Determinadas categorias jurídicas passam a sofrer um processo de res-
(autoritarismo como mentalidade ou perfil)58. Seja como for, tais expressões
significação operado a partir de um universo de sentido – o das linguagens
acabam se articulando de distintas formas, sendo, eventualmente, todo o
autoritárias capturadas pelo regime fascista italiano e mobilizadas em um
recorte usado, meramente artificial e didático. Muitas destas noções ou usos
sentido verdadeiramente autoritário. Trata-se do processo de circulação de
da expressão acabam, inclusive, culminando por se tornarem sobrepostas. As
diferentes compreensões do termo autoritarismo não exigem do pesquisador
52. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p. 65. uma renúncia, uma eleição da expressão “mais completa” ou ainda, “mais per-
53. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p. 105.
tinente” a determinado campo. E isto tudo por que o campo da complexidade
54. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid: é justo aquele da simultaneidade, não o da diacronia, da sequencialidade, mas
Taurus, 1974. p. 132.
55. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
Taurus, 1974. p. 133. 57. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid:
56. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y de la economía narrativa. Madrid: Taurus, 1974. p. 140.
Taurus, 1974. p. 139. 58. FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
58 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 59

o da co-pertença. persegue o domínio absoluto da maioria, com a marginalização e eliminação


Contudo, seria possível estabelecer critérios mínimos para desbastar, das minorias. O termo totalitarismo indicará a violação das regras próprias
para identificar alguns núcleos mínimos de significado a serem encampa- da democracia constitucional, como a divisão dos poderes, a pluralidade de
dos pelo autoritarismo? Muitas vezes, quando movimentamos as estruturas partidos e o mecanismo de representação63. Segundo COSTA, o modelo de re-
linguísticas contíguas à expressão, trazemos à tona algumas outras que, por ferência é a ditadura, estruturada a partir dos cânones do liberalismo: a ditadura
obscuridade ou mesmo por indistinção, estão sedimentadas e cristalizadas como um desvio das normas constitucionais, como suspensão “patológica” das
no pensamento político contemporâneo. Por esta razão, seria interessante liberdades fundamentais64. Será justamente neste sentido que será adotado por
especificar quais os pontos essenciais para que a expressão autoritarismo (e MUSSOLINI: como ruptura com a democracia liberal. No que diz respeito ao
tudo aquilo que nos interessa de forma mais contundente) possa ser utiliza- seu uso, não é de surpreender que serão os juristas a lhe emprestar base própria,
da adequadamente no campo do direito processual penal. Evidentemente, a dentro de uma racionalidade legitimatória, na qual se inscreve, como exemplo,
primeira expressão que aparece e é impulsionada pelo imaginário político, a o pensamento de SCHMITT, FORSTHOFF, ROCCO, dentre outros.
partir do autoritarismo, é o totalitarismo. O Estado total, na visão de LEIBHOLZ, configura outra experiência: a
Uma estratégia interessante a fim de delimitar o uso do termo totalita- de englobar, tanto quanto possível, todos os âmbitos da existência no campo
rismo é adotada por COSTA, que analisa a juspublicística italiana (naquilo estatal, uma “politização mais ampla possível”65. Estes conceitos são compar-
que guarda relação com o período fascista) e as suas estratégias retóricas na tilhados com SCHMITT: de um lado, a ditadura democrática (plebiscitária)
construção de uma representação de Estado. Assim, o autor analisa apenas e de outro o inimigo: o parlamentarismo. Para SCHMITT, o Estado liberal
uma determinada elite intelectual – os juristas – que fizeram uso da expressão tem como característica fazer da lei o fundamento dos direitos e, consequen-
“totalitarismo” e de expressões conexas59. temente, o parlamento o guardião da Constituição66. O Estado total será,
para estes autores, a realização da democracia, que pressupõe a superação da
Segundo FORTI60, o termo já era utilizado por Giovanni AMENDO-
divisão entre Estado e sociedade, cabalmente politizada.
LA em um artigo no jornal Il Mondo, intitulado Maggioranza e Minoranza,
datado de 12 de maio de 192361. O termo totalitarismo não teria sido cunhado COSTA identifica na juspublicística um conjunto de variações semân-
pelos fascistas, mas pelos antifascistas62. O termo aparece no referido artigo ticas que ocupa o termo totalitarismo: a) a tomada de posição no confronto
escrito por AMENDOLA. Aqui, totalitarismo designa o governo fascista que entre Estado, direito e sujeitos. Assim, Estado de Direito e Estado Totalitário
configurariam uma antítese; b) Estado totalitário se converte em Estado-
59. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Quader-
-nação, que recorre a uma redefinição da ideia de representação; c) o termo
ni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 63-64. convoca, igualmente, a uma análise da adesão íntima e profunda do sujei-
60. FORTI, Simona. Il Totalitarismo. Bari: Laterza, 2001. Pode-se também citar aqui a definição de KON-
DER, para quem o “fascismo é uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo monopolista to, conectando-se, assim, ao conceito de Estado-ético; d) Estado totalitário
de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração do capital; é um
movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, também representa a fusão do Estado com o partido, de mútua imbricação;
guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os
com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvi- e) a noção de Estado totalitário também pressupõe a realização da democra-
nista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe cia, separada da atomística democracia parlamentar. Neste ponto, o Estado
condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as
bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pres-
supõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a exis-
totalitário se exprime através do Estado corporativo ou sindical; f ) o Estado
tência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do
capital financeiro”. KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular,
2009. p. 53. Outra definição importante de fascismo será aquela de NEUMANN, que o designará como 63. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
“capitalismo monopolista totalitário”. NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and Practice of Na- derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 65.
tional Socialism. 2 ed. New York: Oxford University Press, 1944. p. 261. 64. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
61. Muito embora autores como Zizek afirmem que o primeiro a se valer da expressão tenha sido de fato, derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 65.
Mussolini. ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013. p. 08. 65. LEIBHOLZ, Gerhard. La Dissoluzione della Democracia Liberale in Germania e la Forma di Stato
62. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua- Autoritaria. Milano: Giuffrè, 1996. p. 85.
derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 64. 66. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
60 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 61

totalitário também se conecta à ideia de uma hierarquização das relações so- o totalitarismo corresponde ao próprio desenvolvimento da razão esclarecida;
ciais, onde assumem importância conceitos-chave como ordem e hierarquia; já, para outros, seria a consumação de uma ameaça atribuída ao fato de não ter
g) finalmente, o Estado totalitário indica um determinado regime, baseado o esclarecimento atingido todo o seu potencial73; b) o segundo uso da expres-
na figura do chefe de Estado67. são totalitarismo identificada por ZIZEK aparece vinculada ao Holocausto
A expressão totalitarismo aparece no cenário político de forma improvi- como “crime máximo e absoluto”74, que não pode ser enfrentado nos termos
sada, a partir de um discurso de Benito Mussolini em 1925, em um Congresso de uma análise política concreta, sob pena de o banalizarmos; c) a sustentação
do Partido Fascista68. Neste momento, ainda sem grandes acabamentos, o de que qualquer tentativa de emancipação radical resultaria em um projeto
conceito iria se arraigar no cenário político a partir de Giovanni GENTILE. de controle e dominação totalitários. Neste ponto ZIZEK afirma que para
O totalitarismo constitui-se como um termo ambíguo, criticado excessivas os liberais, tanto o fascismo quanto o comunismo seriam duas expressões
vezes pela sua parca capacidade de limitação semântica. Assim, muitos au- da degeneração democrática; d) a afirmação pós-moderna de que o totalita-
tores sugerem o seu abandono. Outros, como ZIZEK69, afirmam que o uso rismo político (crítica que já apareceria em estado germinal na Dialética do
do termo totalitarismo define o ingresso no campo do espaço liberal-demo- Esclarecimento, de ADORNO e HORKHEIMER) estaria sedimentado no
crático. Afirma, assim, que a elevação de Hannah ARENDT à condição de “fechamento metafísico falologocêntrico”, isto é, naqueles autores que apos-
autoridade inquestionável sobre o tema seria o sinal da derrocada da esquerda, tam nos deslocamentos, na abertura radical e que não poderia ser produto
que haveria aceitado as coordenadas da democracia liberal (daí o surgimento de um construto ontológico; e) finalmente, usa-se a expressão para atacar os
da antítese democracia x totalitarismo). Afirma, ainda, ZIZEK70, que o termo, estudos culturais pós-modernos, afirmando-se que ali haveria sobrevivido o
longe de ser um conceito, trata-se de uma espécie de “tapa-buraco”71. último refúgio de uma lógica stalinista, de obediência ao partido, imune à
qualquer tentativa de argumentação racional75. Em síntese, afirmará ZIZEK,
Criticando a noção de totalitarismo, ZIZEK afirma que a expressão
o totalitarismo seria elevado ao status de “confusão ontológica”, sendo im-
tem aparecido, na ciência política e na filosofia, como conectado a um dos
prestável para uma crítica radical desde a esquerda política76.
seguintes usos:
Fundamentalmente, quiçá a crítica mais contundente do filósofo eslo-
O totalitarismo é apresentado como “o modernismo enviesando-se”72.
veno esteja na equiparação embutida na definição de totalitarismo, entre o
Desta maneira, segundo o autor, a expressão preencheria a lacuna aberta pela
stalinismo e o nazismo. De fato, isto implicaria em uma indevida fusão de
dissolução, na modernidade, de todos os vínculos sociais orgânicos tradicio-
distintos horizontes, tratando de produzir um campo cinzento que torna
nais. Neste sentido, a expressão seria compartilhada tanto pelos conservadores
indistinguíveis ambas as políticas.
tradicionalistas quanto pelos teóricos pós-modernos, resultando, a diferença
entre os dois usos, em uma mera questão de ótica: para determinados autores, ARENDT77 apresentará o totalitarismo como um regime político. Em
primeiro lugar, teríamos: a) um regime no qual seria possível vislumbrar a
67. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Quader-
figura de um chefe máximo de Estado, do qual brotaria toda a ordem; b) no
ni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 74-75. governo totalitário, tanto o Partido quanto o Estado poderiam ocupar todos
68. O fascismo se valeu das mais distintas linhas reacionárias, reunindo-as de forma muito eclética, através
de usos pragmáticos. Neste sentido LUKÁCS, Georg. El Asalto a la Razón: la trayectoria del irraciona-
lismo desde Schelling hasta Hitler. México D.C: Fondo de Cultura Económica, 1959. p. 17. 73. ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013. p. 09.
69. “A noção de totalitarismo não é um dos principais antioxidantes ideológicos, cuja função durante toda 74. ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013. p. 09.
a sua existência foi controlar os radicais livres e, assim, ajudar o corpo social a manter sua saúde 75. ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013 p. 10.
político-ideológica?” ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013. p. 07. 76. “O totalitarismo é concebido como um tipo de parologismo kantiano da pura razão política, uma ‘ilusão
Ainda: “No momento em que aceitamos a noção de ‘totalitarismo’, entramos firmemente no horizonte transcendental’ inevitável que ocorre quando uma ordem política positiva é diretamente identificada,
liberal-democrático”. Op. Cit. p. 08. em um curto-circuito ilegítimo, com a impossível alteridade da justiça – qualquer posicionamento que
70. ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013. p. 08. não endosse o mantra da contingência/deslocamento/finitude é considerado politicamente ‘totalitário”.
71. A excelente obra de NEUMANN, talvez a mais completa sobre o período nacional-socialista, vale-se da ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013. p. 10.
expressão totalitarismo. NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of national socialism 77. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Passim.
(1933-1944). Chicago: Ivan R. Dee, 2009. Para uma síntese do pensamento de Arendt acerca do totalitarismo indicamos a obra de FRAGOSO,
72. ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? São Paulo: Boitempo, 2013. p. 09. Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 70-73.
62 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 63

os espaços sociais, a ponto de haver uma verdadeira fusão entre Estado e essas demandas, o totalitarismo não poderia designar fenômeno similar. O
sociedade; c) a terceira característica é aquela que corresponde à importância partido fascista, portanto, não estaria acima do próprio Estado ou da nação,
do partido, que acaba assumindo uma relevância maior do que a do próprio diversamente do regime nazista, como sustenta ARENDT. Outra diferença
Estado; d) o Estado totalitário se valerá da propaganda, cuja função precípua entre ambos os fenômenos, de acordo com a filósofa, residiria na relação
seria doutrinar a massa, que encamparia tanto a visão como os objetivos do mantida com o exército. Enquanto os fascistas se valeram do exército para
partido; e) o objetivo fundamental de todo o Estado totalitário seria a re- lograr seus fins (portanto, não o reduzindo nem o destruindo), na Alemanha
dução do humano a uma máquina obediente. Grande parte do diagnóstico o exército foi subordinado ao movimento80.
herdado desta tradição consiste em afirmar que a principal das técnicas de Ainda segundo ARENDT, o objetivo do fascismo era a tomada e a
dominação empregadas pelo totalitarismo será a submissão; f ) ARENDT instalação da elite no poder. Contudo, o totalitarismo não se contentaria em
afirmará, igualmente, que o regime político totalitário lidará com a massa, governar através de meios externos. Por intermédio do Estado e de sua máqui-
isto é, o totalitário exige um governo que atue diretamente sobre o conjunto na de violência, encontraremos um dispositivo capaz de refletir a sua ideologia
indistinto do povo, concebendo-o como uma unicidade orgânica; g) pode-se popular e ao mesmo tempo, instituir esta ideologia no aparelho de coação. O
elencar, ainda, como uma característica do totalitarismo, o estabelecimento totalitarismo encontrou uma forma de subjugar e aterrorizar os seres humanos
de objetivos “universais”, abstratamente ajustados a circunstâncias políticas internamente. Elimina, portanto, a distância entre governantes e governa-
determinadas, a fim de poderem ser constantemente “renovados” e articulados dos81. Temos, portanto, no regime totalitário nazista, um governo da própria
em novas pretensões; h) por fim, o Estado totalitário necessariamente possuirá intimidade, a manifesta subordinação subjetiva da população, cujos laços
uma superestrutura policial, com a atuação de polícias secretas, que gozariam foram construídos de tal maneira estavelmente, que houve um fenômeno
de poderes inclusive superiores àqueles jurisdicionais, capazes de manter a como aquele de tornar indistinta a população do próprio Estado. Em corro-
população em estado de “terror permanente”. Como se pode observar, o con- boração à esta tese, podemos citar o polêmico livro de GOLDHAGEN82, para
junto de características que deve possuir um Estado considerado totalitário é quem a população alemã não teria sido obrigada a assistir “passivamente” ao
tão extenso que, como a própria filósofa acabou concluindo, apenas o regime horror, mas, pelo contrário, havia participado ativamente.
nazista e o stalinista se encaixariam nesta tipologia.
Em síntese, seguindo nas trilhas de pensamento de ARENDT, seria
A impermanência dos movimentos totalitários, que estariam sempre possível afirmar-se que enquanto o totalitarismo ingressará nos pontos mais
se renovando seria uma consequência da própria instabilidade da massa, co- recônditos da subjetividade e aterrorizará o sujeito fazendo-o aderir a determi-
mandada pelos seus líderes78. Segundo ARENDT79, o fascismo italiano e o nados programas, por seu turno o fascismo seria uma máquina de equalização
nazismo não seriam fenômenos equivalentes. O fascismo italiano se colocaria de pretensões, de transformação daquelas demandas não satisfeitas em deman-
como um “partido acima dos partidos”, que se apodera da máquina estatal das cooptadas pelo Estado (este ponto explica, parcialmente, a utilização do
e que tem por objetivo promover uma transformação do povo através do termo populismo e sua difícil separação, no que toca à recepção das expecta-
Estado. De certa maneira, pretende sintonizar e equalizar demandas popu- tivas sociais, do fascismo clássico).
lares com aqueles maquinários estatais, atuando, sobretudo, através de um
Esta análise de ARENDT será uma das que maiores êxitos logrará na
alinhamento, de uma promessa entre as demandas populares e aquilo que o
história da ciência política na definição do regime totalitário de governo,
Estado fascista poderia oferecer. Não raras vezes esse mesmo fascismo é atri-
sendo repetida quase à exaustão por um sem-número de autores. A afirmação
buído ao chamado populismo. Se por um lado o fascismo corresponde a esse
de que os movimentos totalitários podem se formar em qualquer lugar onde
alinhamento de demandas populares e um próprio governo do Estado sobre
80. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Passim.
78. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 356. 81. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
79. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Passim. 82. GOLDHAGEN, Daniel. Os Carrascos Voluntários de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
64 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 65

existam massas sedentas por organização política constitui uma constante no poder que a sua participação nos processos de codificação outorgou ao pro-
pensamento político contemporâneo83. Entretanto, a equalização entre dois duto legislativo. Sempre em comparação com o que ocorrera na Alemanha,
fenômenos distintos (o stalinismo e o nazismo) como os únicos fenômenos os juristas italianos negarão tivesse existido na Itália um regime de completa
autenticamente totalitários, além de se constituir como um pensamento cla- ilegalidade, o que viria a garantir o enraizamento e a naturalização de práticas
ramente conservador acaba por inserir o liberalismo como a única via a ser e discursos autoritários. Será justamente a negação de um modelo totalitário
eleita. Assim, mesmo que por vias indiretas, acaba replicando as velhas ideias que permitirá o autoritarismo naturalizar-se nas práticas punitivas e no pró-
autoritárias que justapunham liberalismo e democracia. Além disso, alguns prio discurso dogmático. Esta distinção entre autoritarismo e totalitarismo
argumentos tomados para se traçar uma distinção entre fenômenos políticos acaba percorrendo de forma frequente o campo da ciência política, reprodu-
– sabidamente irredutíveis ao nivelamento conceitual – como o stalinismo e zindo os mesmos problemas acima detectados.
o nazismo são extremamente problemáticos. Tome-se como exemplo a con- Assim é que, desde outro ponto de vista, para Boris FAUSTO, um
clusão de que a guerra entre Alemanha e URSS fora uma batalha entre dois dos traços essenciais que distingue o totalitarismo do autoritarismo é repre-
sistemas políticos iguais, enxergando na Alemanha aspectos mais “humanos” sentado pela relativa independência da sociedade em relação ao Estado, no
do que na URSS, já que a criminalização dependia de fatores raciais, não che- autoritarismo. Para o autor, algumas instituições, no autoritarismo, mante-
gando a atingir a todos indiscriminadamente84. Ou ainda, a afirmação de que riam relativa autonomia, como no caso da religião. Assim, o autoritarismo
o regime fascista italiano não constituía um fenômeno tipicamente totalitário. seria conservador, ligado às tradições do passado, à vez que o totalitarismo
A “prova” da natureza “não-totalitária” da ditadura fascista seria o número buscaria, também no passado, mitos e heróis86, sem guardar qualquer dis-
“surpreendentemente pequeno de criminosos políticos, e as sentenças relati- tância entre Estado e sociedade.
vamente suaves que lhes eram aplicadas”85. Quanto à esta segunda afirmação, Similar postura pode ser encontrada em NEUMANN, que avança em
trata-se do produto de uma equivocada compreensão da legislação italiana algumas questões87. O pensador utilizará a expressão “ditadura totalitária”, que
por parte de ARENDT. Na Itália, os elementos políticos foram devidamen- pode ser pensada a partir de cinco fatores essenciais. O primeiro deles será a
te incorporados para junto do código penal, daí tornando-se imprestável a transição de um Estado baseado no governo pelo direito para um Estado poli-
distinção baseada no modelo legal de criminoso político para dar conta do cial. No governo pelo direito, verifica-se uma presunção: em favor do cidadão
fenômeno de persecução penal aos dissidentes. contra o poder opressor do Estado. Por seu turno, no Estado totalitário, a pre-
De fato, a tensão que acaba ocupando o lugar de destaque seria, nesta sunção é invertida. O segundo fator seria a transição que se verifica no plano
leitura, aquela existente entre democracia e totalitarismo, o que é produto de do poder: difusa nos Estados liberais e se tornando concentrada no regime
alguns erros metodológicos e interpretativos. Para tanto, ARENDT traçará totalitário, podendo inclusive, admitir graus variados. No Estado totalitário,
uma distinção entre autoritarismo e totalitarismo, atribuindo ao modelo ita- inexiste espaço para horizontalização e disseminação do poder pelas mais di-
liano o termo autoritário, e limitando o uso da expressão totalitarismo aos versas instituições como o parlamento, um sistema pluripartidário, etc. De
regimes soviético e alemão. acordo com NEUMANN, estes dois primeiros elementos são comuns tanto aos
No campo do discurso jurídico-penal italiano, deve-se desde já subli- regimes totalitários quanto às monarquias absolutistas. São, portanto, elementos
nhar, a defesa dos juristas do regime se deu em torno do efeito refreador do que não definem essencialmente o regime totalitário. O primeiro elemento que
permite ao totalitarismo se distinguir (terceiro fator, portanto) seria a existência
83. Segundo VINCENT, “o ponto fraco da abordagem totalitária é não dar importância ao profundo caos, de um “partido estatal monopolista”88. Este partido único, monopolizador,
à incompetência geral e às rixas internas que, de fato, caracterizaram o fascismo”. VINCENT, Andrew.
Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 154. 86. FAUSTO, Boris. O Pensamento Nacionalista Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 08.
84. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Para uma 87. NEUMANN, Franz. Notas Sobre a Teoria da Ditadura. In ________. Estado Democrático e Estado
crítica desta leitura Cf KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo. 2 ed. São Paulo: Expressão Popu- Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 257-282.
lar, 2009. p.116-117. 88. NEUMANN, Franz. Notas Sobre a Teoria da Ditadura. In ________. Estado Democrático e Estado
85. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 358. nota. 11. Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 269.
66 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 67

requer, por seu turno, um aspecto sócio-psicológico, que pode ser incluído da sociedade, através de um partido único91.
na categoria “sociedade de massas”. Afirma NEUMANN que quase todas as Por fim, ainda de acordo com NEUMANN, vale a pena registrar que a
ditaduras totalitárias nascem dentro de regimes democráticos. Assim, o grupo usual dicotomia ditadura versus democracia é insuscetível de ser mantida desde
totalitário deve se manifestar, ao menos inicialmente, sob a aparência de um o ponto de vista histórico. Isto pelo fato de que: a) as ditaduras podem servir
movimento democrático, conservando esta aparência mesmo após a tomada do como uma espécie de meio condutor para a implementação da democracia (di-
poder: “em outras palavras, tem que cultivar os rituais democráticos, embora taduras emergenciais, como previstas no direito romano); b) as ditaduras podem
despidos de toda a sua verdadeira substância”89. Este, inegavelmente, é um ser a preparação para uma democracia (ditadura educativa) e c) as ditaduras
traço que poderá ser muito facilmente vislumbrado no discurso de escamotage também podem ser a negação da democracia, sendo portanto, regressivas92.
do processo penal brasileiro, sob a alegação, essencialmente propagandística, A distinção também pode ser encontrada no grupo de pensadores brasi-
de uma “virada constitucional”, que como um efeito hic et nunc, permitiria a leiros tidos, pela ciência política e por algum setor da história brasileira como
conversão (com a plêiade de automatismos e fórmulas mágicas) de categorias autoritários. Para AZEVEDO AMARAL, existe uma diferença gritante entre
ressignificadas no núcleo do fascismo italiano (desde a matriz liberal-reacioná- autoritarismo e totalitarismo. Para o autor, o autoritarismo será da própria
ria), para a incipiente democracia brasileira. essência da organização estatal, não podendo ser separado do exercício do
O quarto elemento da ditadura totalitária é o deslocamento do controle governo93, aparecendo como condição impostergável da ação eficiente do
social, antes pluralista, e na ditadura, centralizado. Assim, a sociedade não se Estado e se constitui como a sua ratio essendi. Assevera AZEVEDO AMARAL
torna mais indistinta do Estado, sofrendo a infiltração, em suas células mais que apenas o desconhecimento da história política poderia conduzir à con-
profundas, do poder político. De acordo com NEUMANN, o controle da clusão de que o autoritarismo foi um produto criado pelo fascismo. Todos
sociedade é realizado através da seguinte técnica: a) o princípio da liderança: os governos são autoritários, em maior ou menor escala94, assevera o autor.
a orientação se dá de cima para baixo, enquanto a responsabilização se dá no Para AZEVEDO AMARAL, o fascismo se resume ao totalitarismo,
sentido inverso; b) sincronização das organizações sociais, no escopo de con- uma vez que constitui equívoco adjetivar de totalitária a organização estatal
trolá-las bem como torná-las úteis ao Estado; c) a criação de elites graduadas, que abrange, na sua esfera de atuação, o conjunto da vida coletiva. Esta ex-
com o objetivo de controle da massa de dentro para fora, obtendo, ainda pansão da autoridade estatal é, nos dizeres do autor, cada vez mais necessária,
como efeito de mais-valia, a sua manipulação em caráter suplementar à demo- tendo em vista as condições econômicas das sociedades na contemporanei-
cracia, isto é, com a constituição de grupos de liderança particulares atuantes dade. Esta atuação do Estado também corresponderia à necessidade de
nas mais diversas camadas populares; d) atomização do indivíduo, com o condução espiritual da nação95. Desta maneira, a definição do totalitarismo
enfraquecimento das bases sociais elementares como família, cooperação e dispensaria a extensão do poder estatal, caracterizando-se a partir de sua
solidariedade no trabalho (sentido negativo) e a imposição de organizações de natureza “compressiva, absorvente, aniquiladora da personalidade humana,
massas que deixam o sujeito mais suscetível à manipulação (sentido positivo); que imprime às instituições fascistas um aspecto repelente, tornando-as
e) transformação da cultura em propaganda90. tão incompatíveis com todos que prezam a dignidade de espírito”96. Para o
O uso da violência, para NEUMANN, não configura um fator decisi-
91. NEUMANN, Franz. Notas Sobre a Teoria da Ditadura. In ________. Estado Democrático e Estado
vo na detecção de um regime totalitário (muito embora ele a pressuponha). Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 270.
92. NEUMANN, Franz. Notas Sobre a Teoria da Ditadura. In ________. Estado Democrático e Estado
O que marca profundamente o espectro totalitário (e nele se pode notar a Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 273.
diferença relativamente às monarquias absolutistas) é a completa politização 93. Neste ponto, portanto, seria correto falar-se de uma governamentalidade autoritária, na esteira de DEAN,
Mitchell. Governamentality: power and rule in modern society. London: SAGE, 1999. p. 131-148.
94. AMARAL, Antonio José de Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. São Paulo:
89. NEUMANN, Franz. Notas Sobre a Teoria da Ditadura. In ________. Estado Democrático e Estado EbooksBrasil, 2002. p. 86-87.
Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 269. 95. AMARAL, Antonio José de Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. São Paulo:
90. NEUMANN, Franz. Notas Sobre a Teoria da Ditadura. In ________. Estado Democrático e Estado EbooksBrasil, 2002. p. 89.
Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 269-270. 96. AMARAL, Antonio José de Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. São Paulo:
68 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 69

autor, não deve causar repugnância aos “indivíduos normais” a “submissão aparece como uma estratégia discursiva, capaz de, imputando ao governo
dócil” à autoridade do Estado, já que um povo, para se constituir como totalitário um regime que suprime a humanidade dos súditos, manter em
nacionalidade, necessita de uma estrutura hierárquica, cujas bases requerem níveis aceitáveis as distintas elaborações autoritárias, também elas redutoras
a autoridade, única capaz de coordenar os elementos que compõem a so- das esferas de liberdade dos sujeitos.
ciedade97. O Estado autoritário, diferentemente do totalitário, se encontra Podemos localizar outra importante acepção do vocábulo autorita-
lastreado na legitimação daquilo que a coletividade estatal tem direito de rismo quando representado pelo que a Escola de Frankfurt denominou
impor ao indivíduo, sem entretanto, suprimir-lhe a consciência. Enquanto como “personalidade” autoritária. Podemos notar o seu uso já nas palavras
o Estado totalitário de tipo fascista vê os indivíduos como meras unidades, de FROMM102, quando o autor exporá a relação entre a personalidade
despidos de iniciativa e liberdade, o Estado autoritário, instituído pelo autoritária e o fascismo. FROMM considerará o autoritarismo como um
Brasil com a Constituição de 10 de novembro (Constituição de 1937), “mecanismo de fuga”, o que significará a renúncia à independência do pró-
obriga o cidadão a se entregar à coletividade, sem jamais deixar de a ela prio ego, em prol da subjugação ao ego de outrem ou ainda, ser submisso
pertencer, mas deixando intacta a sua consciência pessoal e os seus interesses a algo103. O autor afirmará que as formas mais expressivas deste fenômeno
especiais98. Enquanto no totalitarismo haveria um regime de escravidão dos aparecerão sob a égide do desejo de submissão ou dominação (o autor pre-
indivíduos à potestade estatal, no Estado autoritário, “não há compressão ferirá falar em impulsos masoquistas e sádicos existentes, de acordo com
do indivíduo ou cerceamento das suas iniciativas e atividades, de forma a escalas variáveis, entre as pessoas normais e/ou as neuróticas)104.
submeter a coletividade nacional à ação arbitrária do poder público em con-
Entretanto, para o que nos interessa mais imediatamente, em
dições praticamente equivalentes às de um regime de escravidão”99. Assim,
FROMM, o fascismo se autorreconhecerá como autoritário justamente por
o critério de intervenção do Estado no regime autoritário100 é a promoção
conta da predominância da autoridade em todos os aspectos da vida social.
do “bem comum”, mas sem comprimir as liberdades individuais, além do
Será a autoridade quem legitimará as estruturas sociais, desde os aspectos
momento em que elas entram em conflito com o interesse coletivo101.
mais íntimos à própria esfera da linguagem, como pode ser conferido na
Como se pode perceber através da leitura do pensamento de AZE- brilhante tese de SANTNER, da paranoia como uma doença do poder105.
VEDO AMARAL, a parelha totalitarismo e autoritarismo sempre aparece O que FROMM compreende como “caráter autoritário” equivalerá à repre-
como um mecanismo de justificação e naturalização das práticas autoritárias. sentação de personalidade que constituirá as teias mais básicas das relações
A elaboração da distinção do autoritarismo referentemente ao totalitarismo humanas fundadas sob o signo do fascismo106.
EbooksBrasil, 2002. p. 89.
Outro importante trabalho que deve neste momento ser destacado é
97. AMARAL, Antonio José de Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. São Paulo: aquele desenvolvido por ADORNO107, na famosa “pesquisa de Berkeley”.
EbooksBrasil, 2002. p. 89.
98. AMARAL, Antonio José de Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. São Paulo: Em palavras gerais, tratou-se de uma pesquisa inovadora, que tentava
EbooksBrasil, 2002. p. 90. “medir” a potencialidade de uma personalidade108 em ser cooptada pela
99. AMARAL, Antonio José de Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. São Paulo:
EbooksBrasil, 2002. p. 90. propaganda fascista. Nesta pesquisa, o fundamental era obter as respostas
100. Discordando da existência de um “regime autoritário”, sustenta SANTOS que “Não existe regime ou
sistema autoritário, mas apenas o exercício autoritário do poder político”. SANTOS, Wanderley Gui- dos entrevistados de modo que estes não soubessem exatamente o objetivo
lherme dos. Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 129. Utiliza o
autor a noção de política autoritária: “a política autoritária tem por fundamento uma concepção totalitá-
ria de verdade, que se desdobra em duas proposições: a) as verdades particulares se integram para for- 102. FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 14 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
mar uma verdade total; só na medida em que o sistema de verdades é ele próprio verdadeiro é que estará 103. FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 14 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 118.
garantida a veracidade de cada uma das verdades particulares do sistema; conversamente, nenhuma das 104. FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 14 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 118.
presumidas verdades particulares pode-se revelar falsa sem falsificar todo o sistema; b) cada verdade
particular sobre um fenômeno particular contém toda a verdade, isto é, nada existe de verdadeiro sobre 105. SANTNER, Eric. A Alemanha de Schreber: uma historia secreta da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge
um fenômeno particular, além da verdade particular estabelecida. Em síntese, as verdades particulares Zahar, 1997. p. 08.
não são autônomas, mas sistemáticas, nem fragmentárias e parciais, mas completas”. Idem. p. 131. 106. FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 14 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 134.
101. AMARAL, Antonio José de Azevedo. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. São Paulo: 107. ADORNO, Theodor. Studies in the Autoritharian Personality. New York: Harper & Brothers, 1950.
EbooksBrasil, 2002. p. 90-91. 108. Personalidade que segundo ADORNO, a partir de FREUD, será tomada como organização de necessidades.
70 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 71

central da pesquisa (afinal de contas, talvez pouquíssimas pessoas respon- determinadas pessoas poderiam ser sequestradas pelas agências de propagan-
dessem honestamente a questões que pudessem ser interpretadas pelo das autoritárias, o que não escapa por igual, das críticas mais recentes das
entrevistado como reveladoras de sua personalidade autoritária). A pesquisa, teorias da comunicação, já que a Escola de Frankfurt, nesse ínterim, traba-
elaborada logo após a derrota do fascismo, não contava com a pretensão de lharia através de um movimento unilateral de captura dos indivíduos pelas
identificar fascistas declarados, mas de sintetizar um mecanismo capaz de instâncias propagandísticas de governo109.
indicar a sujeição ao sequestro propagandístico ou ainda, à suscetibilidade Devemos ainda destacar como importantes contributos no estudo da
de alguém ser cooptado pela propaganda antidemocrática. personalidade autoritária a pesquisa de Stanley MILGRAM110 e de Philip
Desta forma, ADORNO elaborou questões que poderiam estabelecer ZIMBARDO111. A pesquisa de MILGRAM pretendeu identificar como de-
um coeficiente para averiguar a estrutura autoritária da personalidade do terminadas pessoas (comuns) respondem a comandos de autoridade, mesmo
entrevistado. A partir de várias hipóteses, por meio de pesquisas qualitativas, que tais comandos acabem por violar o bom senso. Destaca-se que o objetivo
ADORNO trabalhará com a premissa e com a hipótese de que o autoritaris- inicial de MILGRAM era explicar como determinadas atrocidades pude-
mo corresponderá a um padrão, à certa coerência que terá como característica ram ser cometidas durante o nazismo. A pesquisa basicamente consistia em
fundamental determinadas crenças enraizadas profundamente na personali- fazer as pessoas que foram selecionadas para participar da pesquisa aplicar
dade de alguém e que se desenvolvem nos processos de socialização (o que choques elétricos a um pesquisador-auxiliar que se encontrava amarrado em
evitaria uma tese positivista de uma personalidade autoritária inata). Essa é a uma cadeira com eletrodos. O choque deveria ser supostamente dado toda a
hipótese central do filósofo. Afirmará ADORNO que os sujeitos suscetíveis vez que o sujeito amarrado à cadeira errasse as respostas que lhe eram feitas
a serem capturados pela propaganda fascista têm muita coisa em comum. por outro pesquisador. Aos participantes eram fornecidos controles remotos
Assim, várias estruturas de personalidade encontradas se revelariam como sobre a intensidade dos choques elétricos, em uma escala de 15 a 450 volts
uma enorme potencialidade antidemocrática. (ou seja, de choques leves a fatais). Toda a vez que o sujeito amarrado à cadeira
Como critério metodológico fundamental, ADORNO estabelecerá errava a resposta, o pesquisador auxiliar (que fazia as perguntas ao amarrado)
o que denomina como “escala F”, composta de inúmeros elementos que estimulava o participante a aplicar os choques. Cerca de 65% das pessoas
identificariam traços da personalidade autoritária. A escala F usaria como que participaram da pesquisa aplicaram o choque fatal. Todos aplicaram pelo
indicadores a avaliação sobre preconceitos etnocêntricos e sobre determinadas menos 330 volts. Recentemente o experimento foi repetido na França, através
disposições latentes dos indivíduos, que permitiram a confluência de uma de um documentário exibido pelo canal France 2, chamado Le Jeu de la Mort,
“vida fascista”. Destes elementos, novamente o termo submissão será estru- de Christophe NICK, Thomas BORNOT e Gilles AMADO. O método
turante, pois a personalidade autoritária não questionará os valores morais correspondia a um falso programa televisivo no qual os candidatos deveriam
que informam e governam determinado sistema de ideias em cujo horizonte aplicar choques elétricos cada vez mais fortes em outros candidatos. 81% dos
o portador do caráter autoritário se desloca. Em sua pesquisa, ADORNO participantes aplicaram o choque fatal. Dentre os participantes, apenas 16
concluirá que o autoritarismo será um traço da personalidade, em paralelo a pessoas se recusaram a ser “carrascos”. O percentual de 81% de pessoas que
seu colega de Frankfurt, Erich FROMM. aplicaram o choque fatal, sob a insistência e as ordens do falso apresentador do
programa correspondeu a um percentual muito superior ao do experimento
Evidentemente que esta pesquisa não seria isenta de críticas. A fim
de MILGRAM. Podemos perceber igualmente o fenômeno da obediência
de abreviá-las, bastaria pensar-se que o estabelecimento de uma “escala”
demonstraria, ab initio, uma metodologia formalmente positivista, já que 109. Com efeito, teorias recentes da comunicação e propaganda operam com as premissas de influência
estabeleceria padrões ou standards de personalidade. Contudo, não devemos recíproca: vende-se aquilo que a audiência deseja, fazendo com que ao cabo, a propaganda também seja
influída pela massa, sobre a qual pretende influir.
esquecer que a mencionada “escala F” tratava-se, de acordo com os próprios 110. MILGRAM, Stanley. Obedience to Authority: an experimental view. New York: Harper & Collins, 1983.
111. ZIMBARDO, Phillip. The Lucifer Effect: understanding how good peopel turn evil. New York: Random
objetivos da pesquisa, da tentativa de reconstrução de condições sob as quais House, 2007.
72 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 73

no experimento da prisão de Stanford, coordenado por Phillip ZIMBAR- e logicamente, em sentido conjugado: à promessa de normalização
DO. Basicamente, o projeto consistia no alistamento dos participantes para vinculada a um projeto de ressubordinação das classes subalternas.
a simulação de uma estrutura de aprisionamento, sediada no subsolo do de- Esta ressubordinação se dá, claro, através de controle social, mas, so-
bretudo também do ponto de vista da disciplina política, da exclusão
partamento de psicologia da universidade. Os participantes foram divididos
de determinadas classes populares, consistente numa profunda margi-
em grupos de carcereiros e detentos. Antes da conclusão do projeto, ele teve nalização. Temos aqui a construção de uma underclass, de uma massa
de ser abortado devido ao comportamento cada vez mais sádico dos carcerei- absolutamente impotente, sem acesso a quaisquer espécies de bens
ros, com relatos inclusive de humilhação sexual sobre os detentos. Mais tarde ou serviços públicos. Elevada à categoria de párias sociais, certamente
ZIMBARDO analisará também os abusos e torturas cometidos pelos soldados manipula-se o medo coletivo. Daí a presença clara do controle social.
norte-americanos na prisão de Abu-Ghraib, culminando por desenvolver o c. uma terceira característica desta forma estatal será o sistema de exclu-
que denominou como “efeito Lúcifer”, interessado em descobrir por que e são política de determinada categoria da população, com a economia
como pessoas “comuns ou boas” poderiam praticar ações infernais112. sendo regularizada de acordo com o projeto de transnacionalização,
sendo muito comum o objetivo de “retomada do crescimento eco-
Após uma breve análise do autoritarismo como regime político (em sua
nômico”, que no pensamento neoliberal emerge através do slogan
diferenciação a despeito do totalitarismo), assim como a brevíssima menção “back to basics”. Esse Estado tem como base a supressão da cidadania
do autoritarismo como suscetível de ser analisado pelo signo da “personali- politica, uma vez que tanto a cidadania quanto a democracia restarão
dade autoritária”, restaria enfrentar a relação entre autoritarismo e sistema comprometidas quase que em sua integralidade. Tem-se, igualmente,
ideológico. E aqui, a titulo exemplificativo, poderíamos citar o pensamento a formação de zonas de exclusão econômica, ocupada pela classe
de Guillermo O’DONNELL113. O autor traça um exame da situação politica subalterna (considerada perigosa) da população. Albergado neste
argentina entre junho de 66 e março de 73, em um período bastante con- projeto de transnacionalização, se verificará um projeto simbiótico
de (re)definição da identidade nacional. Em tal período, na América
turbado naquele país. O’DONNELL identificará que o Estado chamado de
Latina especialmente, encontraremos um fluxo de intensa imigração
“burocrático autoritário” – uma vez que a burocracia desempenhará funções e ajustes econômicos. Contudo, quanto maior o nível de imigração
elementares para o autoritarismo – seria interpretado e caracterizado através e maior a amplitude populacional de determinado Estado, eviden-
de alguns componentes essenciais: temente que se procederá, articulado a um sistema de limitações
a. o Estado burocrático autoritário é uma modalidade de Estado auto- políticas, ao desenvolvimento do mito da identidade nacional.
ritário. Contudo, ao lado do modelo autoritário, coexistirão outras Este movimento ocorrerá justo porque a identidade nacional terá cono-
facetas. O que lhe será particular é que, segundo o autor, ele só
tação importantíssima para controlar o fluxo de imigrantes que serão sempre
poderá nascer e se desenvolver em uma sociedade capitalista. Tal
Estado é caracterizado preliminarmente por uma estrutura de classes, “estrangeiros” (no sentido de estranhos à comunidade, de não-pertencentes).
subordinada a uma estrutura considerada burguesa (mais alta). Por- O tema da nação permitirá o desenvolvimento de determinadas políticas não
tanto, há aqui uma formação oligopólica, de um domínio de poucos raramente ligadas à raça. O famoso projeto de “branqueamento da sociedade
sobre muitos (as elites burguesas), que prescrevem um projeto de brasileira” está intimamente conectado a tais aspectos que envolvem a raça
transnacionalização. como dispositivo de governamentalidade. Igualmente, tais fundamentos ima-
b. a segunda característica deste Estado é a de que, enquanto instituição, ginários desta sociedade podem, inclusive, ser investigados através do recurso
o Estado burocrático autoritário tentará “normalizar a economia”. Ao do controle social à distinção basilar, que articula a criminologia positivista,
se proceder a uma análise histórica, poderemos perceber o período entre “normais” e “degenerados” (e que inclusive será profundamente inves-
de inflação e de crise econômica pelas quais passam esses Estados,
tigado por FOUCAULT, mediante o conceito de normalização)114. Separar
112. ZIMBARDO, Phillip. The Lucifer Effect: understanding how good people turn evil. New York: Random
House, 2007.
113. O’DONNELL, Guillermo. El Estado Burocratico Autoritario. 2 ed. Buenos Aires: Fundación Editorial 114. Cf CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
de Belgrano, 1996. 2007; FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
74 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 75

o joio do trigo, os bons dos maus, eis como então se prolifera nessa época será fundamental esta constatação: a irrupção da Constituição da República
a criminologia positivista, que não se resume ao pensamento italiano, mas de 1988 não apresentou uma ruptura com as práticas e os institutos de proces-
conta, também, com as matrizes francesas de características psiquiatrizantes. so penal anteriores à ordem constitucional vigente. Apenas reconfiguraram-se
A tais elementos poderíamos, ao fim, agregar outros dois desenvolvidos as práticas punitivas, naturalizando-as. Teremos, inexoravelmente, a manu-
por O’DONNELL. Este Estado se encarregará de promover uma despolitiza- tenção de um pensamento autoritário no cenário processual penal brasileiro,
ção das demandas sociais, seja por que as pretensões de reconhecimento social mesmo após o advento da Constituição (o pensamento “pós-acusatório”).
serão encaradas não sob a forma de argumentos ou de uma comunicação le- Seria possível afirmar-se a presença de novos focos do autoritarismo processual
gítima com o Estado (neste caso específico, toda reivindicação não amparada penal, a partir do momento em que há a manutenção de um significante vazio
pela palavra do perito não será digna de relevância), seja pelo fato de que o (tomamos emprestada a noção de LACLAU118), construído em determinado
próprio Estado vislumbra tais demandas como “meros ruídos”, carecedores de momento, e que sinaliza para a constituição de um eixo-gravitacional onde
legitimidade. O resultado será o fechamento dos mecanismos usuais de comu- operam, como verdadeiros satélites, diversas reproduções metásticas que tra-
nicação com o Estado, com a extinção da representação popular ou de classe. dicionalmente se acoplam ao pensamento ou sistema inquisitório.
Através da análise de algumas relações do autoritarismo pudemos É claro que a ressignificação do pensamento autoritário brasileiro passa
perceber, através de alguns autores que poderiam perfeitamente se encai- pela necessária relação de reorganização semântica na e pela dogmática pro-
xar na proposta de MALAN e STOPPINO115, para quem o autoritarismo cessual penal, além de a própria práxis processual penal (mormente pelo fato
corresponderá a um regime político (ARENDT), a um sistema ideológico de a Constituição da República ter redistribuído competências e criado um
(O’DONNEL) ou ainda, a uma mentalidade autoritária (ADORNO). novo tribunal superior – o Superior Tribunal de Justiça) tratar de polir certas
arestas deixadas em aberto pelo “senso comum jurídico-processual”. Podemos
No Brasil, são abundantes as obras historiográficas que pretendem
apontar que no Brasil, no processo penal, haverá um campo complexo que
examinar o pensamento autoritário nacional. Grande parte destas obras
permite constatar-se um direito processual penal de feição autoritária. Em
destina-se justamente à análise de um pensamento brasileiro genuinamente
primeiro lugar, pelo fato de que os conceitos-chave do processo penal são
autoritário116. Vale a pena citar aqui o pensamento de Ricardo SILVA, que
praticamente os mesmos que exerciam funções de subserviência à doutri-
trata de estabelecer uma importante premissa, que supera grande parte dos
na processualística balizada pelo Código de Processo Penal de 1941. Neste
estudos sobre o pensamento autoritário no Brasil. Especialmente por que o
ponto, exemplificativamente, podemos encontrar a relação de tutela judicial
autor, ao trabalhar com economistas como Roberto CAMPOS e Eugênio
da ação penal (remissão dos autos do inquérito policial ao Procurador Geral
GUDIN, afirmará a presença do autoritarismo no cenário político brasileiro,
de Justiça, como preconiza o art. 28 do CPP), a instituição119 da instrumen-
mesmo após a derrocada do Estado Novo117. Para a análise processual penal,
115. STOPPINO, Mario. Autoritarismo. In BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gian- de um processo legislativo de duvidosa legitimidade, de um direito que brota dos atos de vontade dos
franco. Dicionário de Política. v. 1. 11 ed. Brasília: UnB, 1998. p. 94. governantes de fato – as elites do executivo estatal – e que mal pode escamotear seu desdém aos mais
116. “O Estado moderno brasileiro seria, desta forma, um Estado nacional e um Estado autoritário, nesta or- básicos procedimentos típicos da confecção de leis em Repúblicas democráticas. A natureza altamente
dem. Era como se para chegarmos ao Estado moderno e nacional tivéssemos de, forçosamente, penetrar centralizada e avessa ao controle e participação pública, que é característica dos processos de elaboração
no Estado autoritário, lugar ideal para comprimirem-se quaisquer tipos de interesses que se colocassem, e implementação das políticas econômicas, é um exemplo eloquente de nosso déficit democrático”.
por este ou aquele motivo, fora dos limites do projeto comum, racionalizado para o conjunto do bloco SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 20.
no poder. Também a depressão econômica favorecia o autoritarismo, tanto pela necessidade de medidas 118. No momento adequado trataremos de explicar e melhor fundamentar a terminologia utilizada. Cf LA-
governamentais mais rápidas quanto como forma de prevenir distúrbios sociais. Fixavam-se, assim, de CLAU, Ernesto. La Razón Populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010.
modo embrionário, ao nível ideológico, a modernização institucional, o nacionalismo e o autoritarismo 119. Utiliza-se, neste caso específico, a expressão “instituição” no sentido de BOURDIEU: “o processo de
à matriz do pensamento político brasileiro no período que vai de 1930 a 1945. Daí, talvez, desta procura instituição, de estabelecimento, quer dizer, a objetivação e a incorporação como acumulação nas coisas
de caminhos não-institucionalizados, mas que também não deveriam trazer a ameaça de uma “revolução e nos corpos de um conjunto de conquistas históricas, que trazem a marca das suas condições de pro-
social”, a constante alusão que já se encontra na década de 20, em Oliveira Vianna, por exemplo, ao dução e que tendem a gerar as condições da sua própria reprodução (quanto mais não pelo efeito de de-
“bom tirano” e em Gilberto Freire, ambos no sugestivo elogio a Pedro II e que em Campos encontrou monstração e imposição das necessidades que um bem exerce unicamente pela sua existência), aniquila
ressonância, na década de 30, em seu apelo a César”. MEDEIROS, Jarbas. Ideologia Autoritária no continuamente possíveis laterais. À medida que a história avança, estes possíveis tornam-se cada vez
Brasil, 1930-1945. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1978. p. 17. mais improváveis, mais difíceis de realizar, porque a sua passagem à existência suporia a destruição, a
117. Vejamos o seguinte trecho que permite fazermos conclusões análogas às do autor. “Do decreto-lei às neutralização ou a reconversão de uma parte maior ou menor da herança histórica – que è também um
medidas provisórias, em todos os governos que se sucederam após os militares, continuamos à mercê capital -, e mesmo mais difíceis de pensar, porque os esquemas de pensamento e de percepção são, em
76 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 77

talidade das formas como regulador da forma processual; a possibilidade de da ordem processual penal, com a introdução de elementos alienígenas à
condenação apesar do pedido de absolvição pleiteado pelo Ministério Público, tradição continental, apontariam para uma ordenação da releitura destes
etc. Ou seja, há a manutenção de institutos anacrônicos e incompatíveis com institutos em acordo com o pensamento processual penal autoritário clás-
a reordenação política e constitucional do Estado, recepcionados de forma sico. Pode-se dizer, portanto, que encontramo-nos diante de verdadeiras
acrítica. O advento da Constituição de 1988 foi incapaz de obstaculizar a “metástases do discurso processual penal autoritário”, regidas por um saber
permanência destes institutos. A uma, pela precária formação do ensino ju- culturalmente inquisitorial e por uma concepção instrumental do processo,
rídico brasileiro, marcado por inegável roupagem tecnicista (e que em muitas subordinando-o à esfera política do poder punitivo. Mas devemos lembrar
oportunidades se cinge à preparação para concursos públicos); a duas pela que será justamente a instrumentalidade do processo penal que operará
formatação dos concursos públicos no Brasil, que selecionam candidatos que como um verdadeiro significante vazio, como aponta LACLAU. E isto
melhor conseguem reproduzir um discurso jurídico pasteurizado (técnicas de significa dizer que tal categoria operará como um verdadeiro atrator, respon-
memorização); a três, pelo esvaziamento da discussão de fundo do processo sável pela redistribuição funcional das missões do processo penal, pela nova
penal, isto é, as opções e fundamentos políticos do processo penal; a quatro roupagem assumida pelas categorias processuais penais diante do regime
pela não suscetibilidade das classes forenses em se despir das velhas fórmulas, democrático e ainda, pelo seu revestimento, composto por tessitura tecno-
automaticamente reproduzidas; a cinco, pela incapacidade do Brasil em esta- crática, a partir das velhas categorias herdadas da escola italiana.
belecer fórmulas não punitivistas de legislação, compreendendo, nesse campo, Sob o risco de antecipar algumas conclusões, pode-se dizer que o sig-
a manutenção de legislações sabidamente infensas ao regime democrático; a nificante vazio instrumentalidade foracluiu a ordenação constitucional do
seis, por novas formas de judicialidade, em especial a judicialização da política processo penal. A foraclusão é um termo introduzido por LACAN, que trata
e a transformação de seus atores em protagonistas responsáveis pela “mudança de explicar o funcionamento da psicose a partir da rejeição de um significan-
social”. Não apenas a tradicional crítica ao ativismo judicial, capitaneada por te fundamental, expelindo para fora do universo simbólico do sujeito e que
STRECK120 há muito tempo indica a impermeabilidade da magistratura (em retorna no Real, como nos casos de alucinação122. A atual compreensão da ins-
sua grande maioria) a tais apontamentos certeiros, mas também o advento de trumentalidade do processo penal brasileiro, capaz de fazer atuar através de si
uma “juristocracia”, nos termos definidos por HIRSCHL121 se encarregaria um conjunto de práticas e institutos processuais (seja pelo resgate do discurso
de reposicionar a questão em sua centralidade política. autoritário clássico, com a produção de ressignificações deste autoritarismo,
Por seu turno, a práxis processual penal, além de aceitar (em franca com operacionalidades metásticas, seja através de constantes rearranjos entre
maioria de julgados) tais institutos processuais penais, sem, contudo, ave- a instrumentalidade e novos institutos processuais, atores ou culturas jurídi-
riguar a sua inconstitucionalidade (no mínimo, parece haver um defeito de cas), opera metaforicamente como a foraclusão (da ordem constitucional) na
forma na recepção política de legislação herdada de período ditatorial), trata psicose: a Constituição aparece como alucinação, como discurso alucinado.
de expandir os poderes processuais dos magistrados, que acabam desempe- Por fim, parece válido manter-se a expressão autoritarismo – pois será
nhando papel ativo na administração da justiça brasileira. A transformação através dela que será enfrentada a questão da instrumentalidade do processo
do Ministério Público em um agente político, com inegável força no cenário -, fazendo-o a partir de duas constatações essenciais:
brasileiro, também deve ser inserida neste registro. Outrossim, a mutação
a) a diferenciação realizada entre o totalitarismo e o autoritarismo –
como inclusive aparece no discurso dos ideólogos autoritários brasileiros como
cada momento, produto das opções anteriores transformadas em coisas”. BOURDIEU, Pierre. O Poder AZEVEDO AMARAL, ALBERTO TORRES123 E OLIVEIRA VIANNA –
Simbólico. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1989. p. 101.
120. Cf STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
121. Cf HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. 122. LACAN, Jacques. De Uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose. In ____. Escri-
Cambridge: Harvard University Press, 2007. Pederzoli e Guarnieri falarão de uma “democracia judi- tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 564.
cial”. GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Parizia. Los Jueces y la Política: poder judicial y democracia. 123. O pensamento de Alberto TORRES será fundamental para o desenvolvimento do discurso autoritário
Madrid: Taurus, 1999. p. 163 et seq. brasileiro. Será justamente a partir dele que se verificará uma transição do discurso liberal à formação do
78 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 79

trata, funcionalmente, de “naturalizar o fenômeno autoritário”. Isto por duas impedindo uma reforma completa do ordenamento jurídico fascista. Nesse
razões. Em primeiro lugar, equalizar autoritarismo e totalitarismo remeteria sentido, a manutenção do termo autoritarismo é essencial para servir como
à esfera da inalcançabilidade de um regime tão interventivo e opressor como base operativa através da qual se pode verificar e diagnosticar práticas que
os fenômenos identificados por ARENDT como o nazismo e o stalinismo. não servem à democracia e oriundas de linguagens autoritárias. O discurso
Assim, descartar o totalitarismo – pela posição distópica que ele carregaria processual penal autoritário constitui-se como o discurso que nega a ruptura
hoje – equivaleria, em um só golpe, a erradicar a possibilidade autoritária, democrática e constitucional através do tecnicismo jurídico, recorrendo à
como se tudo o que estivesse aí fosse da ordem do democrático; b) em se- tradição “liberal” das categorias em questão.
gundo lugar, grande parte de relevantes escritos, especialmente encontrados Outro ponto que merece destaque antes do fechamento do presente
no fascismo italiano e por isso mesmo tão importantes para o processo penal tópico reside na incapacidade de qualquer uma das definições e/ou teorias en-
brasileiro, cuidam da espécie “totalitarismo”, o que garantiria a democratici- frentadas (e inúmeras outras aqui sequer mencionadas) em ser simplesmente
dade da experiência brasileira, pela negação implícita que a democracia traria transportadas para dentro do campo processual penal. O processo penal se
consigo relativamente ao totalitarismo. Como já visto anteriormente, NEU- articula através de significantes próprios, que não podem se submeter ou se
MANN identifica uma relação muito próxima entre a ditadura totalitária e a acomodar no cerne de elementos-chave do autoritarismo, extraídos do pen-
democracia, pelo que, com efeito, a democracia não equivale (nem poderia) samento essencialmente político de seus ideólogos. Muito embora a relação
traduzir-se como a negação do totalitário. Além disso, este processo de “na- estreita entre o processo penal e o político requeira a conjunção de ambos em
turalização”, acomodação ou ainda “eufemização” da noção de autoritarismo, um mesmo horizonte de sentido, não se pode operar com ambas as categorias
pode ser identificado claramente em algumas orientações encontradas na ciên- como se se tratassem de discursos reversíveis. A irreversibilidade do político
cia política contemporânea. O discurso de escamoteamento ou de suavização ao jurídico é marcantemente uma característica do discurso jurídico, desde os
do autoritarismo/totalitarismo pode ser encontrado, exemplificativamente mais distintos prismas. E, portanto, cabe investigar como as categorias pro-
em FRIEDRICH e BRZEZINSKI, que consideram o regime de Franco, na cessuais invocam ou personificam singulares expressões do político. Caberá,
Espanha, e Salazar, em Portugal, como “ditaduras técnicas” e “instrumentais” então, no momento adequado, estabelecer, mesmo que em linhas gerais, o
para a defesa da democracia124. Os autores afirmam que nos casos de Brasil, conteúdo através do qual o autoritarismo operaria no processo penal, personi-
Portugal e Paquistão, a título de exemplo, a ditadura foi o mecanismo ade- ficado em construtos técnicos e que esconderiam quaisquer matizes políticos.
quado para se evitar que o regime político fosse tomado por um movimento
Por hora, passemos ao exame do que se poderia convencionar como
totalitário125. Reencontra-se, assim, desde a herança romana, a ditadura para
linguagens autoritárias, a fim de poder traçar os horizontes de uma semântica
a conservação da democracia. Este pensamento marcará forte presença no
política do autoritarismo.
discurso dos pensadores autoritários brasileiros, como se verá mais adiante.
No campo do direito e do processo penal, semelhante construção semântica
poderá ser encontrada na Itália, após a queda do fascismo e no momento da 1.3. LINGUAGENS AUTORITÁRIAS: INTRODUÇÃO A
reconstrução do sistema jurídico-constitucional. A denominada “teoria do UMA SEMÂNTICA POLÍTICA DO AUTORITARISMO
freio” (os juristas do regime frearam ainda maior irracionalismo na confec- Como destacará FAYE126, em termos metodológicos, por uma “se-
ção da legislação fascista) acabará por prevalecer nas legislações posteriores, mântica política” deve-se compreender não uma “extração de conteúdos”,
mas identificar os processos de circulação dos significantes e os efeitos de
pensamento republicanista, que se consolida na República Velha. Trata-se de um autor antiliberal, que
inclusive havia sido ministro do STF. Sobre o pensamento de Alberto Torres recomendamos MARSON, forma e de estilo assumidos. FAYE apresentará, como ponto de partida me-
Adalberto. A Ideologia Nacionalista em Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
124. FRIEDRICH, Carl J; BRZEZINSKI, Zbigniev K. Totalitarian Dictatorship and Autocracy. 2 ed. Lon- todológico, a inserção da história como uma crítica da economia narrativa,
don: New York: Frederick A. Praeger Publishers, 1965. p. 08-09.
125. FRIEDRICH, Carl J; BRZEZINSKI, Zbigniev K. Totalitarian Dictatorship and Autocracy. 2 ed. Lon- 126. FAYE, Jean-Pierre. Introdução às Linguagens Totalitárias: teoria e transformação do relato. São Paulo:
don: New York: Frederick A. Praeger Publishers, 1965. p. 08. Perspectiva, 2009. p. 35.
80 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 81

concebendo o relato como uma “função da linguagem que relaciona o os efeitos de poder-saber). Procuraremos desenvolver uma topologia semânti-
objeto e a ação e remete incessantemente o discurso à ação e ao objeto”127. ca capaz de identificar o caminho percorrido pelos significantes que lastreiam
A obra de FAYE se notabilizará pela demonstração dos focos semióticos que os usos autoritários do processo penal, em última instância. Contudo, de
permitirão a constituição do nazismo, na Alemanha. Será igualmente um nada adianta realizar tal empreendimento se não passarmos pela doutrina
dos pioneiros na tentativa de compreensão do fenômeno do Estado tota- processual penal, talvez quiçá a principal responsável pelas recombinações
litário, recusando-se a definir tanto o fascismo italiano quanto o nazismo autoritárias que determinadas categorias processuais produzem.
alemão através do recurso à esta categoria. Sem dúvida que um projeto de tal envergadura não pode ser feito, com
Segundo FAYE, as linguagens totalitárias seriam cadeias reflexivas nas exaustão, em curto espaço de tempo, uma vez que as próprias categorias
quais se introduzem o epíteto italiano “totalitário” e as que irrompem no processuais penais, em alguma medida, detêm certo nível de autonomia e
correspectivo Totale Staat tedesco128. Fundamentalmente, FAYE percebe as independência. Portanto, o objeto metodológico essencial recortará apenas,
designações Stato Totalitario e Totale Staat como fios condutores a fim de se neste momento, a categoria instrumentalidade, objeto de análise específico132.
perceber como se desdobram as linguagens ideológicas sobre os contextos A forma de trabalho aqui lançada também permite identificarmos como
políticos alemão e italiano129. um sintoma que também atinge o direito processual penal, o “autoritarismo
Teremos, a partir do modelo metodológico desenvolvido por FAYE, cool” que caracterizaria o pensamento punitivista na América Latina133. Se-
uma topologia dos enunciados políticos, que podem ser compreendidos como gundo ZAFFARONI, este autoritarismo cool que se nota na América Latina
“relatos ideológicos”. Tais relatos são subjacentes aos enunciados dos atores do conserva algumas características de sua matriz norte-americana (especial-
processo histórico, através de descrições e narrativas, de circunscrições e de mente na simplicidade de suas formulações mais elementares), deixando de
contiguidades a todo discurso político130. Em síntese, seria possível afirmar-se possuir qualquer espécie de vinculação ou sustentação acadêmica – por mais
aqui a pertinência de uma semântica histórica ou interpretativa que subjaz a comezinha que fosse – orgulhando-se desta circunstância, uma vez que a
estas estruturas mais profundas, enraizadas no discurso político131. opinião técnica de juristas e criminólogos é constantemente ridicularizada
Retornando ao ponto que nos interessa, tentaremos esboçar uma topo- pelos meios de comunicação de massa, o que obriga igualmente os políticos
logia dos enunciados políticos e criminológicos que cruzam e se aproximam a assumirem postura equivalente134.
do saber processual penal. Com isso estaremos logicamente tratando de certos Esta nova modalidade de autoritarismo se diferenciaria substancial-
eixos semânticos que exercem determinadas funções conjuntivas no plano mente do autoritarismo ideológico justamente por ser amorfo, por ser
do processo penal, apresentando-os como elementos indispensáveis à admi- severamente mais pobre e despido de qualquer organização conceitual135.
nistração da justiça criminal. É preciso, portanto, resgatar as passagens que
132. Sabemos que será preciso, nos anos subsequentes, empreender uma ampliação da temática, que possa
outorgam sentido a certas construções processuais penais em determinado locus conduzir à colocação em lume de categorias como prisões cautelares, ação penal, prova, sistemas pro-
temporal, para, posteriormente, identificar o cruzamento pós-constitucional cessuais penais, etc., capazes de demonstrar a “história afetiva” de tal conceito na doutrina e prática
judiciária. Este é um projeto que será levado adiante nos próximos anos.
e pós-democrático que revitaliza tais categorias. Não se trata tão somente de 133. “É cool porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é preciso
aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e para não perder espaço publicitário”.
uma metodologia genealógica, pois não estamos aqui a analisar tão somente, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 69.
134. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 74.
as condições de surgimento de determinados enunciados (agregando-se a isto
135. “Esse autoritarismo publicitário cool apresenta uma frontalidade grosseira. Porém, como carece de ini-
migo fixo e também de mito, é desbotado, não tem o colorido do entre-guerras nem a inventividade do
biologismo racista. Seu histrionismo é bem mais patético, sua pobreza criativa é formidável, é órfão de
127. FAYE, Jean-Pierre. Introdução às Linguagens Totalitárias: teoria e transformação do relato. São Paulo: todo e qualquer brilho perverso; antes, possui uma horrível e deprimente opacidade perversa. Não há
Perspectiva, 2009. p. 38. monumentos neoclássicos, cientistas racionalizando, paradas ostentatórias; ele é pobre, funciona porque
128. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios. Madrid: Taurus, 1974. p. 133. é pouco inteligente, é elementar, não pensa e promove uma greve de pensamento ou um pensamento
nulo, porque explodiria ao menor sopro do pensamento. O exercício do poder punitivo tornou-se tão
129. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios. Madrid: Taurus, 1974. p. 135. irracional que não tolera sequer um discurso acadêmico rasteiro, ou seja, ele não tem discurso, pois se
130. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios. Madrid: Taurus, 1974. p. 134-135. reduz a uma mera publicidade. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janei-
131. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios. Madrid: Taurus, 1974. p. 135. ro: Revan, 2007. p. 77.
82 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 83

Contudo, não podemos perder de vista, todo o conjunto de elementos já revogados e alterados, mantido, em sua higidez política, como “fonte de
característicos do sistema processual penal também é ativado por esta dis- direito”. Ao menos se por fonte de direito exigirmos raízes democráticas que
cursividade histriônica, atendendo a pautas e demandas, por mais absurdas deveriam repousar na origem de determinado instituto ou legislação e, em con-
que sejam. Evidentemente que determinados significantes constituem certos sequência, a incapacidade de um instituto ou legislação concebido em período
enunciados e, o que nos interessa momentaneamente, são igualmente ca- ditatorial servir como “bom direito” ou direito válido136). Para além do CPP
pazes de mobilizar um afeto autoritário, que ao cabo repousará tanto nas de 1941, temos um conjunto de novas leis que se revelam igualmente anti-
feições eufemísticas de uma doutrina cada vez mais rasa (pragmatismo po- democráticas (quando não intensificam e agudizam ainda mais os problemas
lítico processual), aliada a tribunais que concebem o processo penal desde de legitimação do poder punitivo) e uma prática judiciária que não se sepa-
argumentos conexos à segurança pública. rou das funções autocompreendidas desde a ideologia da segurança nacional.
Desta maneira, parece-nos fundamental estabelecer esta semântica política Neste ponto, vale a pena destacar que a atuação do Judiciário brasileiro, no que
do processo penal brasileiro, no escopo de identificar quais são as chaves teóricas diz respeito ao direito e ao processo penal em sua correlação com os aparatos
capazes de autorizar a formação de um conjunto de enunciados heterogêneos ideológicos que lhe outorgam funções, não se separou – e inclusive acentuou
(dispositivos). Esta topologia semântica teria, inicialmente, que ultrapassar um – o regime de supressão de direitos fundamentais, cuja base ideológica, como
problema epistemológico fundamental, que lhe pressionaria desde uma pro- referido, se encontra vertida na ideologia da segurança nacional. Do mesmo
blematização genealógica de base. Como metodologia de trabalho, afirmamos modo, a autonomia e a independência do Ministério Público do Executivo,
que haveria um processo de deslocamento e de rearticulação sígnica de certos não apenas permitiu que florescessem (im)posturas teóricas e práticas que se
significantes (eufemismos), manipulados a partir de orientações hermenêuti- confundiam com os espectros defensivistas da ordem antidemocrática137, como
cas vinculadas a um discurso que já não mais pode ignorar a Constituição da elevou o Brasil ao status de país com enorme quantidade de presos (quarto
República. Ou seja, para que se possa falar em ressignificações do autoritaris- lugar em população mundial absoluta e trigésimo segundo em taxa de presos
mo processual penal, seria indispensável demonstrarmos que certas categorias por cem mil habitantes)138. Neste cenário, o Ministério Público se tornou um
operativas (práxis funcional perversa) do sistema criminal (e especificamente órgão ingovernável, inclusive pela inexistência, no Brasil, de um órgão que
do direito processual penal) ultrapassaram, tanto no plano doutrinário quanto possa servir como equilibrador dos poderes (tomemos a ausência, no Brasil,
no jurisprudencial, os efeitos constitutivos de uma nova ordem constitucional. do ombudsman). Ademais, ao assumir para si determinadas funções éticas, tor-
Com efeito, se a potencialidade democrática brasileira deve ser pensada a partir nou-se incapaz de orientar-se criticamente em relação às políticas criminais
da Constituição da República de 1988, o autoritarismo deveria sobreviver à introduzidas no Brasil (falamos aqui, obviamente, do Ministério Público como
sua promulgação. Não apenas no sentido de uma leitura acrítica da dogmática instituição e os discursos oficiais que pronuncia, o que engloba, evidentemente,
processual penal, mas nas novas articulações desempenhadas por atores jurí- a recente mobilização política contra a corrupção, através do “decálogo das Dez
dicos que construirão novas tessituras, novos conjuntos e arranjos capazes de Medidas Contra a Corrupção” – ainda mais autoritárias do que os dispositivos
mobilizar significantes, deslocar fontes e, sobretudo, realinhar o antigo projeto
autoritário insculpido no Código de Processo Penal Brasileiro de 1941. Em 136. Com efeito, a validade de uma norma não pode ser pensada de forma desconexa de seu momento ge-
nético. Sendo-lhe anterior, ajusta os usos que se fazem do instituto. Inconcebível que uma legislação
outras palavras, parece desacertada a proposição que atribui à inaptidão polí- autoritária possa atender tanto a finalidades antidemocráticas quanto democráticas. É justamente sobre
esta duplicidade funcional ou maleabilidade discursiva que se torna possível a ressignificação dos insti-
tica e constitucional para a tutela dos direitos fundamentais previstos em sede tutos processuais penais que atuam contemporaneamente nas práticas punitivas brasileiras.
constitucional e supraconstitucional a causa da sobrevivência do autoritarismo 137. Vale a pena conferir, igualmente, a conivência do Ministério Público para com os chamados autos de
resistência (hoje formalmente abolidos), através de pedidos de arquivamento em situações envolvendo
processual penal. Em síntese, o problema não está (somente) nas fontes jurídicas tráfico de drogas. Cf ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida: a forma jurídica da política de extermínio
de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
que foram recepcionadas pelo sistema de justiça criminal (o atual CPP jamais 138. Segundo o sítio http://www.prisonstudies.org, cuja última atualização è de 2016, o Brasil é o terceiro
país em número bruto de presos e o trigésimo em presos por cem mil habitantes. Disponível em http://
poderia ter sido, independentemente da quantidade de dispositivos processuais www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison_population_rate?field_region_taxonomy_tid=All.
Acesso em 25.02.2017.
84 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 85

processuais elencados no atual código de processo penal – e não a partir das produzido por ideias liberais, mas não por ideias democráticas. E claro, vincu-
diversas posturas ideológicas de seus membros, sempre difusas)139. lará o discurso da aristocracia francesa, que através de pensadores iluministas
A partir destas impressões metodológicas preliminares sobre o autorita- como MONTESQUIEU e VOLTAIRE, enfatizará e sustentará tais postula-
rismo processual penal (necessidade de substantivação do autoritarismo, no dos igualitários. Para SCHMITT, toda a democracia real se configura no fato
escopo de servir à análise interdiscursiva que possa identificar a recombinação de que não se trata sempre o igual de forma igual, mas também o desigual de
de significantes (ressignificação) formadores de linguagens autoritárias), o forma desigual. Na própria democracia encontramos, portanto, em primeiro
ponto de arranque para lograrmos êxito nesta empreitada consiste em anali- lugar a homogeneidade. Em segundo lugar, a destruição da heterogeneida-
sar em que medida um regime formalmente democrático, como é o caso do de143. Em suas palavras, “o poder político de uma democracia está em saber
Brasil, pode(ria) ser compatível com o autoritarismo processual penal. eliminar o estranho e o desigual que ameaça a sua homogeneidade”144. Não
há nenhuma democracia que não conheceu o conceito de estrangeiro145. A
1.4. PROCESSO PENAL AUTORITÁRIO NA DEMOCRACIA igualdade de todas as pessoas presas à esta qualidade não corresponde a uma
BRASILEIRA democracia, mas a um tipo determinado de liberalismo; não é uma forma de
Estado, mas uma espécie de moral e uma concepção de mundo individualista
Inevitável o questionamento da orientação sobre uma possível adequação
e humanitário. Nesta união de ambas as categorias está sedimentada a atual
e acerto entre, de um lado, a detecção de um “autoritarismo processual penal”
democracia de massas146. Para SCHMITT, essa democracia que foi gover-
e, de outro, o seu encaixe em uma democracia. Em síntese, necessário revelar
nada e que foi desfigurada pelo liberalismo, não seria verdadeiramente uma
se e como se torna possível verificar práticas autoritárias que aparentemente se
democracia, nem, tampouco, uma forma de Estado. Corresponderia, antes
consolidam nas democracias contemporâneas, em especial a brasileira.
de tudo, a uma moral. Portanto, enquanto moral e como determinada visão
Uma primeira impressão, que pode ser utilizada aqui, corresponde ao de mundo, este regime de governo seria individualista, isolacionista, e que se
pensamento de Carl SCHMITT, o grande teórico constitucionalista do na- poderia dizer anticomunitário. Na visão do autor, seria justamente sobre essa
zismo. O pensamento político schmittiano recomeçou a ser estudado muito ética do liberalismo que estaria assentada a democracia de massas.
por conta das recentes obras de Giorgio AGAMBEN140, especialmente sobre
Evidentemente, esta compreensão do fenômeno político não será in-
o estado de exceção. Contudo, o pensamento político de SCHMITT ultra-
gênua ou antiteleológica. Através desta análise feita por SCHMITT sobre
passa, em muito, a filosofia agambeniana, como sugere a leitura de FRANCO
conceitos como democracia, liberalismo e autoritarismo, o fascismo não se
DE SÁ141. Em um texto seminal, intitulado Sobre o Parlamentarismo, SCH-
apresentaria com as vestes comumente a ele atribuídas pela filosofia política.
MITT destacará que a democracia não teria como antítese o autoritarismo.
O fascismo, de acordo com as conclusões de SCHMITT, seria como qualquer
A fé no parlamentarismo seria própria das ideias liberais. Não é própria da
outra ditadura – antiliberal -, mas não antidemocrático. Segundo SCHMITT,
democracia. Seria preciso separar ambos os conceitos, democracia e libera-
bastaria perceber como alguns ditadores são aclamados pelo povo. O pensa-
lismo, para poder compreender a heterogênea construção que constitui a
dor tedesco afirmará a existência de formas de legitimação do poder político
moderna democracia de massas142. O sistema parlamentar será um sistema
que independem do voto popular. Seria o caso, por exemplo, das aclamações
139. Como relembra RECONDO, o mote de combate à corrupção já tinha sido usado no golpe de 1964: populares, das outorgas de determinadas cartas políticas, etc. Algumas di-
“o discurso de combate à corrupção e ao comunismo foi a bandeira que serviu para articular a retórica
comum às diversas conspirações que fermentavam no meio militar, às vésperas do golpe que derrubou taduras formariam parte da democracia, segundo o autor. Seria próprio das
João Goulart”. RECONDO, Felipe. Tanques e Togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo: Companhia
das Letras, 2018. p. 76. ideias liberais do século XIX considerar que o povo somente pode expressar
140. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2002. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
141. FRANCO DE SÁ, Alexandre. Poder, Direito e Ordem: ensaios sobre Carl Schmitt. Rio de Janeiro: 143. SCHMITT, Carl. Sobre el Parlamentarismo. Madrid: Editorial Tecnos, S.A, 1990. p. 98.
ViaVerita, 2012. FRANCO DE SÁ, Alexandre. Metamorfoses do Poder: prolegômenos schmittiano a 144. SCHMITT, Carl. Sobre el Parlamentarismo. Madrid: Editorial Tecnos, S.A, 1990. p. 98.
todo a sociedade futura. Rio de Janeiro: ViaVerita, 2012. 145. SCHMITT, Carl. Sobre el Parlamentarismo. Madrid: Editorial Tecnos, S.A, 1990. p. 99.
142. SCHMITT, Carl. Sobre el Parlamentarismo. Madrid: Editorial Tecnos, S.A, 1990. p. 97. 146. SCHMITT, Carl. Sobre el Parlamentarismo. Madrid: Editorial Tecnos, S.A, 1990. p. 100-101.
86 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 87

a sua vontade de modo que cada cidadão, por si mesmo, no mais profundo par das variações terminológicas da época, como totalitário, tirano, ditatorial,
isolamento e segredo, emita o seu voto147. Concebendo formas alternativas etc. Essa oposição esconde outra: este mesmo governo será capaz de contro-
de legitimação do poder político, seriam conciliáveis, na perspectiva de SCH- lar um mal que se denomina de vida democrática150. Entretanto, esta “vida
MITT, democracia e fascismo (ou qualquer outro fenômeno autoritário). A democrática” se coaduna com um princípio anárquico, que afirma o poder
desvinculação entre democracia e liberalismo será retomada pelos pensadores do povo. A ingerência do povo nas decisões da vida pública ou a retração
autoritários brasileiros, em especial por Francisco CAMPOS, mais adiante individual eram dois inimigos a ser combatidos. Desta maneira, a boa demo-
abordado, já permitindo certa antevisão da construção política que funda o cracia, o bom governo passa a ser aquele capaz de controlar o duplo excesso
código de processo penal brasileiro de 1941. de atividade coletiva ou de retração individual151. Como governo do duplo
Um segundo bloco de questionamentos poderia ser inaugurado na pre- excesso (excesso anárquico ou excesso monádico), teríamos, inevitavelmente,
sença do pensamento de Jacques RANCIÈRE. Segundo o autor, o chamado o advento do paradoxo-democrático. Trata-se de um controle dessa ingerência
ódio à democracia não se trataria de algo novo, afinal de contas, os próprios e simultaneamente, um controle da apatia. Ora uma mobilização, ora uma
anti-iluministas que ainda tentavam manter um regime absolutista de poder já imobilização. Mas não podemos esquecer: estes excessos são justamente aquilo
exerciam uma crítica de todo o conteúdo democrático, asseverando que a de- que coloca em xeque o próprio governo democrático, devendo ser controlados
mocracia poderia ser o pior dos governos possível. Contudo, o autor também ou inibidos por ele. E, em se levando em consideração as análises de FOU-
identificará um novo discurso de ódio à democracia. Segundo RANCIÈRE, CAULT sobre o liberalismo, a governamentalidade liberal será justamente
contemporaneamente não estaremos mais diante de um mesmo e contínuo aquela cujo propósito é “não governar em excesso”152.
discurso de “ódio à democracia”. O autor afirmará a existência de um discurso Pensar a democracia como um sistema de controles abre as portas para
duplo sobre a democracia. Não seria mais aquele ódio dos antigos aristocratas, certa horizontalização de sentido, que autorizaria a fluência de significantes,
muito embora possa ser considerado ainda mais perverso. Nestes termos, o que se deslocariam livremente entre o pensamento autoritário e o democrá-
governo democrático será mau quando for objeto de corrupção pela sociedade tico. Sendo a democracia mero represamento dos excessos, autoriza-se certo
democrática, lastreada na premissa basilar de igualdade e supressão da diferen- nível de tolerância para com posturas e práticas que se imiscuem desde a sua
ça148. A democracia será considerada boa quando conseguir mobilizar aqueles base social e política. Não é à toa que teremos, apenas como um exemplo
sujeitos apáticos para uma verdadeira guerra em defesa dos valores civiliza- bastante comezinho, o exercício autoritário (defesa de interesses narcisistas
tórios. Segundo RANCIÈRE, “o novo ódio à democracia pode ser resumido e monistas em nome próprio) justificado por premissas democráticas (como
então em uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a o direito de expressão)153. Racismo como manifestação do livre exercício do
catástrofe da civilização democrática”149. Nesse aspecto, podemos encontrar pensamento, pedidos de intervenção militar em nome da democracia (como
no catastrofismo (característica comumente atribuída ao pensamento autori- vimos nos protestos, no Brasil, desde 2014). Caracterizada a democracia
tário brasileiro) a articulação semântica de uma democracia antiliberal (como
no caso das constantes convocações, por parte de nossos pensadores, em evitar 150. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo: 2014. p. 16.
os excessos individualistas que obstaculizavam a modernização brasileira). De 151. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo: 2014. p. 17.
152. FOUCAULT, Michel. Seguridad, Territorio, Población. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económi-
acordo com RANCIÈRE, a democracia parece ter dois inimigos: o primeiro, ca, 2006. “O governo liberal não é um governo econômico limitado a reconhecer e observar as leis
o governo do arbitrário, o governo despido de limites, que é denominado, a econômicas; é um governo que tem por objetivo e por alvo o conjunto da sociedade. A política liberal
é “uma política da sociedade” que tem seu instrumento de inteligibilidade, sua medida e suas regras
de funcionamento no mercado”. LAZZARATO, Maurizio. O Governo das Desigualdades: crítica da
insegurança neoliberal. São Carlos: EdUFSCar, 2011. p. 16. Sobre a governamentalidade através do
147. SCHMITT, Carl. Sobre el Parlamentarismo. Madrid: Editorial Tecnos, S.A, 1990. P. 102. endividamento Cf LAZZARATO, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 Edi-
148. Sobre a eliminação da diferença e os perigos decorrentes recomendamos DUMONT, Louis. Sobre o ções, 2017. Sobre as transformações da governamentalidade neoliberal Cf DARDOT, Pierre; LAVAL,
Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985; Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.São Paulo: Boitempo, 2016.
GAUER, Ruth Maria Chittò. Da Diferença Perigosa ao Perigo da Igualdade: reflexões em torno do 153. Nesse sentido parece ser a orientação de DEAN acerca do que denominou como “governamentalidade
paradoxo moderno. In Civitas: Revista de Ciências Sociais. v. 5. n. 2, 2005. p. 399-413. autoritária”, como as práticas “iliberais” do liberalismo. DEAN, Mitchell. Governmentality: power and
149. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo: 2014. p. 11. rule in modern society. London: SAGE, 1999. p.132.
88 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 89

como um mero regulador do excesso154, abrem-se as portas para que a própria da sociedade. “A vontade de passar por cima de qualquer limite é
democracia possa ser assumida como portadora dos mesmos males do au- servida e ao mesmo tempo emblematizada pela invenção moderna por exce-
toritarismo, ou seja, parte constitutiva e fundamental de uma sociedade lência: a técnica”160. Sendo assim, esta democracia seria colocada em xeque
do controle155. Esta faceta da democracia como um significante dotado de justamente pelos seus pressupostos mais fundamentais.
ampla reversibilidade garante uma livre economia política dos signos. Desta Segundo RANCIÈRE, a noção de totalitarismo significava o contrário
maneira, por exemplo, torna-se aceitável a intervenção máxima do siste- de democracia. Totalitários seriam aqueles Estados que, em nome da cole-
ma punitivo como controlador do excesso populacional, ou melhor, como tividade, negavam ao mesmo tempo os direitos dos indivíduos e as formas
controle da miséria, de acordo com GIORGI156. Na mesma esteira, esta constitucionais de expressão coletiva como eleições, liberdade em suas distin-
reversibilidade garante certa flexibilidade aos aparatos de segurança que, em tas formas, etc. Estado total assimilado ao Estado que suprimia a dualidade
nome da falência do sistema público, oferecem o retorno do policiamento entre Estado e sociedade, estendendo o seu exercício às formas mais ele-
privado157 como commodity, ou melhor, o fenômeno da parapolice158. mentares de vida social161. Portanto, o nazismo não passaria de um Estado
Sabemos todos que a democracia não é em si mesma uma espécie de fundamentado na ideia de raça. Uma vez ultrapassada a dualidade Estado
filtro capaz de conduzir a uma barragem de determinados elementos a ela e sociedade, quando a sociedade e o Estado passam a ser fundidos em um
hipoteticamente avessos. Temos hoje, uma democracia que controla através amálgama, torna-se operativo, juntamente com FOUCAULT162, falar-se em
do excesso o próprio excesso que deveria ser controlado159. Esta ingovernabi- luta de raças (em substituição à luta de classes). Quando se fala em luta de
lidade própria da democracia justifica a necessidade de controle, tornando-se, raças, entra aqui a questão metodológica por excelência que é a redução do
ela mesma, incontrolável. Esta democracia contemporânea, assim, significará humano ao biológico, ao corpo, aos usos do corpo163.
colocar em risco quaisquer limites políticos, sendo substituída pela ilimitação Se por um lado, como havia sido detectado por ARENDT, o totalita-
154. Sobre a possibilidade de se pensar a democracia dentro de uma “economia generalizada”, fundamental rismo corresponderia à inserção do Estado em tudo o que de mais íntimo
a leitura da noção de “excedente” em BATAILLE, Georges. A Noção de Despesa. A Parte Maldita. Rio
de Janeiro: Imago, 1975. há na sociedade, em RANCIÈRE perceberemos que o que está em jogo é a
155. Cf DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum Sobre as Sociedades de Controle. In _____Conversações. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1992. ; GARLAND, David. A Cultura do Controle. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
própria destruição do Estado pela democracia, ou seja, a democracia cor-
156. Segundo De Giorgi “se voltarmos a olhar as tecnologias de controle que emergem no ocaso do século rompe o Estado nada mais restando. É claro que a partir dessa sociedade que
XX e anunciam a aurora do século XXI, podemos certamente falar de um segundo grande internamento.
De um internamento urbano, que tem a forma do gueto, de um internamento penal, que tem a forma do devora o Estado temos um novo discurso antidemocrático. A consequência é
cárcere, e de um internamento global, que assume a forma das inumeráveis ‘zonas de espera’, dissemi-
nadas pelos confins internos do Império. Porém, diferentemente do internamento do qual nos fala Fou- o transporte de todas as críticas que eram endereçadas ao totalitarismo para
cault, a sua reedição atual não parece cultivar nenhum utopia de tipo disciplinar. O novo internamento a democracia. Em outras palavras, acaba ocupando a democracia, o espaço
se configura mais do que qualquer outra coisa como uma alternativa de definir um espaço de contenção,
de traçar um perímetro material ou imaterial em torno das populações que são ‘excedentes’, seja a nível
global, seja a nível metropolitano, em relação ao sistema de produção vigente”. GIORGI, Rafaelle. A
dedicado a um alvo, anteriormente encontrado em conceitos-chave do pensa-
Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 28. mento da filosofia política como o totalitarismo. Desta maneira, encontramos
157. Sobre a construção neoliberal da segurança como mercadoria e os impactos extra-cárcere gerados por
uma sociedade de consumo de bens securitários Cf FELLETTI, Vanessa Maria. Vende-se Segurança: a um discurso crítico à democracia justamente por ser ela totalitária164, o que
relação entre o controle penal da força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em
mercadoria. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
160. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo: 2014. p. 19.
158. Segundo Rigakos, em excelente etnografia sobre os sistemas privados de segurança no Canadá, o pa-
rapoliciamento (conexo ao boom das empresas de segurança privadas) é organizado através do desejo 161. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo: 2014. P. 21.
fetichista de transformar a segurança em mercadoria e de gerenciar o risco. RIGAKOS, George S. The 162. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
New Parapolice: risk markets and commodified social control. Toronto: University of Toronto Press, 163. Cf SIMON, Jonathan. Punição e as Tecnologias Políticas do Corpo. In Sistema Penal & Violência. v. 5.
2002. p. 06. n. 2, 2013. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Cf. ES-
159. Bastaria pensarmos em termos de sistema criminal, que fulgura como uma promessa de reconhecimento POSITO, Roberto. Bios: biopolitics and philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.
de subjetividade. Processos legiferantes acabam sendo produzidos a partir de amálgamas de subjetivida- GIORGI, Gabriel; RODRÍGUEZ, Fermín. Ensayos Sobre Biopolítica: excesos de vida. Buenos Aires:
des, como se a necessidade de criminalizar equivalesse a uma concessão de status de sujeito de direitos. Paidós, 2009. FAHRI NETO, Leon. Biopolíticas: as formulações de Foucault. Florianópolis: Cidade
Ser objeto específico de tutela jurídico-criminal passou a ocupar, simbolicamente, o papel que sempre foi Futura, 2010. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; FRANÇA, Leandro Ayres; RIGON, Bruno Silveira.
aquele do direito civil e suas regulações sobre a personalidade e a capacidade jurídicas. A visibilização Biopolíticas: estudos sobre política, governamentalidade e violência. Curitiba: iEA Academia, 2015.
como sujeitos de direito exige dos grupos sociais certo ativismo em defesa da criminalização. Por isso 164. Tomemos como exemplo o discurso de Tavares, em que podemos encontrar, como argumento, a
a democracia não pode servir como uma espécie de filtro anti-criminalizador, especialmente quando se debilidade da democracia constitucional exercida pelas eleições: “Enfim, eleições e reeleições ple-
instalam, em seus tecidos mais profundos, a conversão do direito penal em um campo “prestacional”. biscitárias consecutivas provêm um claro e importante contributo a governos populistas totalitários
90 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 91

implica processos de reorganização simbólica do discurso democrático (leia-se consequência, teríamos a despolitização do conceito e, para o que nos interes-
alterações morfogenéticas no corpo de determinadas categorias fundamentais sa mediatamente, a reversibilidade do discurso autoritário e do democrático.
da filosofia política), que passa a se tornar oblíquo. Ao convergir para um Por fim, outra análise que merece ser destacada é aquela oriunda de DE-
duplo paradoxo do controle do excesso, encontraremos formulações elas pró- LEUZE169. O autor afirmará que não seria possível encontrar uma separação
prias ao abrigo da reversibilidade discursiva. Políticas altamente intolerantes entre aquilo que é central e aquilo que é fragmentário. Entre o central e o
(como por exemplo, o fim das cotas para estudantes negros, a proibição do fragmentário sempre existem regimes de conexão e de ligação. Portanto, entre
casamento homoafetivo, etc.) serão desencadeadas sob o argumento demo- ambas as categorias, não existiria um regime de oposição. O sistema político
crático. Eis, portanto, um retrato da desfiguração da democracia165. é global, unificado e unificante, mas sempre porque implica um conjunto de
A cristalização da parelha democracia-autoritarismo poderia ser ainda subsistemas justapostos, de modo que a análise das decisões sempre requer
examinada pelas lentes de BADIOU. Para BADIOU, a essência da política um processo parcial, sempre se prolongando indefinidamente170.
será sempre uma decisão166. O filósofo francês afirmará que “a grande pala- Isso quer dizer que todo sujeito é atravessado por duas segmentarie-
vra de consenso hoje em dia é democracia e é proibido não ser democrata”. dades: uma de nível molar, outra de nível molecular. Tudo será político,
Desta forma, a palavra democracia atuaria como um verdadeiro significante todavia, toda política será ao mesmo tempo macro e micropolítica171. Afirma
organizador do consenso, ou seja, uma espécie de socialidade na qual o DELEUZE: “as segmentariedades no social, são do tipo molar (dos grandes
conflito é expulso. Com efeito, uma democracia consensual, ditada como blocos), como os aparatos ideológicos do Estado, escola/família/polícia e, de
palavra de ordem, dificilmente poderia ser separada de expressões autoritá- outro, o molecular (nível da individualidade)” Entre o nível institucional e
rias. Se de fato, existe uma obrigação de se aceitar os postulados essenciais o nível atomístico, existem continuidades, não separações. O fragmentário
da democracia, o que de fato implicaria em uma diferença relativamente é ao mesmo tempo da ordem central. Tudo será político, em um momento
aos modelos políticos de redução da diferença? será macro, em outro será micro, e com base nisso, DELEUZE identificará
BADIOU destacará o que denominou como princípio de reversibili- a classe como um fenômeno da segmentariedade dita molar e, a massa como
dade entre a democracia e a ditadura de massas (enquanto aquela soberania uma segmentariedade do nível atomístico. Tal construção será fundamental
instantânea da reunião e da aglomeração das massas). Dirá o autor, que do na identificação do que DELEUZE entende por fascismo. O fenômeno do
ponto de vista das massas, seria impossível separar-se a democracia da dita- fascismo não será aquele dos níveis molares, por não se encontrar, como iden-
dura167. A principal crítica construída pelo autor reside na circunstância de tificou a historiografia da filosofia política, nas grandes instituições. Sendo
que a palavra democracia tem a pretensão de reunir fenômenos que jamais atomístico, o fascismo se encontrará em um nível molecular. Por isso, segun-
poderiam compartilhar de uma mesma base política. Assim, desde a derroca- do DELEUZE, o fascismo será muito mais perigoso do que o totalitarismo.
da dos países socialistas, o bem-estar dos países, as “cruzadas humanitárias”, Vejamos que a tese de DELEUZE não anda separada da própria noção de
tudo parece se justapor e se equilibrar no conceito de democracia168. Em capilaridade do poder, da microfísica de poder recorrentemente proferida por
FOUCAULT172. Através de FOUCAULT, DELEUZE desenvolverá a com-
empenhados em programas de redistribuição direta e ostensiva da renda nacional em benefício das
populações pobres ou na linha da miséria”. TAVARES, José Antônio Giusti. Democracia Totalitária. preensão do fascismo como uma microfísica que perpassa e transcorre através
Porto Alegre: Evangraf, 2015. p. 101.
165. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo: 2014. p. 23. dos corpos. Se por um lado, o fascismo inventou o Estado Totalitário, este
166. “Excepto para quem pensa que o comentário de café ou a conversa entre amigos constitui “a própria essência mesmo fascismo não está preso ao totalitarismo. O fascismo independe do
da vida política”, a discussão não é política senão na medida em que se cristaliza uma decisão. A questão de
uma possível verdade política deve então ser examinada, não do ponto de único da “discussão” – que isolada, Estado totalitário, da mesma forma que seria admissível um Estado totalitário
faz da “política” um simples comentário passivo de tudo o que acontece, uma espécie de prolongamento para
muitos das leituras de jornais – mas no processo complexo que liga a discussão à decisão, ou que recapitula
a discussão nos seus enunciados políticos em nome dos quais uma ou mais intervenções são possíveis”. BA- 169. DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: editora 34, 1996. p. 78.
DIOU, Alain. Compêndio de Metapolítica. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 27. 170. DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: editora 34, 1996. p. 78.
167. BADIOU, Alain. Compêndio de Metapolítica. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 108. 171. DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: editora 34, 1996. p. 83.
168. BADIOU, Alain. Compêndio de Metapolítica. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 95. 172. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
92 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 93

ausente o fascismo. O fascismo, apesar de ter inventado o Estado totalitário, totalitário177. Daí por que, de acordo com DELEUZE, será muito mais sim-
não pode ser definido por esta mesma categoria que ele próprio cria. Estado plificado ser “antifascista” no nível molar, sem que possamos enxergar nossas
totalitário é uma categoria macropolítica, identificada por DELEUZE como próprias potências fascistas, movimentadas através de moléculas pessoais, que
de uma “segmentariedade dura”, que opera em frequências centralizadoras e sempre podem “saltar” ao plano coletivo178. O fascismo será a micropolítica
totalizantes. O fascismo, com seu pertencimento aos conjuntos moleculares, que atua num espaço subliminar, sub ou pré-institucional, uma vez que as
permite alternância e hiância, cruzar e desdobrar fronteiras semânticas. A próprias instituições não têm vida fora dos sujeitos que as governam.
volatilidade e a permeabilidade lhe configuram este regime atomístico, frac- Atentando-se para o famoso escrito de Hannah ARENDT179, a tese
tal. Em outras palavras, DELEUZE identifica duas expressões distintas, que sobre a banalidade do mal indica claramente que o fenômeno do nazismo
não raras vezes se encontram presas em um mesmo regime de enunciados, foi possível graças à chamada teoria do dente da engrenagem, propiciada
dificultando e criando obstáculos para a filosofia política. Daí por que não pela burocracia e pela racionalidade instrumental. Este sistema correspondia
seria exagero encontrarmos o fascismo em plena democracia. E isto ocorre àquele da “demissão da capacidade de julgar”, isto é, da “desresponsabili-
como já mencionado, justamente pelo fato de o nível fascista ser molecular, zação subjetiva”. Ao movimentar uma peça da gigantesca engrenagem, o
atomístico, e não institucional (molar)173. O fascismo exigirá este regime sujeito não se sentia responsabilizado pelo seu agir. A burocracia correspon-
molecular (que não pode estar atado aos regimes molares e sua estrutura de deria a um regime de desvinculação do sujeito do resultado final. A teoria do
centralização): “fascismo rural e fascismo de cidade ou de bairro, fascismo dente da engrenagem trabalha sempre a partir de uma escusa psíquica que é
jovem e fascismo ex-combatente, fascismo de esquerda e de direita, de casal, um eufemismo: a redução da passagem ao ato ao estrato da implicação ma-
de família, de escola ou repartição: cada fascismo se define por um micro- quínica, sistêmica. Garante-se a negação da culpabilidade pelo ato. ZIZEK
buraco negro, que vale por si mesmo e se comunica com os outros, antes tomará de empréstimo algumas conclusões de ARENDT e afirmará que
de ressoar num grande buraco negro central generalizado”174. Interessante para além do dente da engrenagem, existe o que ele chama de gozo obsceno
notar que, segundo PAXTON175, o fascismo independe de uma coalização da lei, isto é, a presença de um fundo perverso pelo qual opera a lei. Haveria
molar que convoca a massa a agir. O fascismo sobreviveu à era do fim das ali um gozo mórbido do funcionário que atribui, exemplificativamente, 95
metanarrativas (LYOTARD176) e se articula sempre que seja possível qualquer anos de sanção; que afirma que a outorga de um medicamento ferirá a lei
adesão a finalidades protolegais. Ou seja, a adesão, seja em nível simbólico, orçamentária do Estado, município, etc. Goza-se no sentido psicanalítico
seja intestina ao recrutamento de atitudes intolerantes, opera como ativador daquela morte simbólica, da mesma maneira como por trás da lei exsurge
destes mobilismos catéxicos. Ora, o que parece elementar: o fascismo também a possibilidade de se gozar através de funções obscenas, canalizadas pela via
poderá ser de esquerda, ou de direita, fascismo da família ou da polícia, fas- legal, o que implica assumir o direito como violência180. Talvez a principal
cismo do alunado ou do professorado. Temos, portanto, fascismos. delas, desse gozo que nasce do fundo obsceno da lei, seja mais facilmente
Segundo DELEUZE, uma vez que o fascismo é um fenômeno de massa, visível na atuação policial, justamente neste estado de indiscernibilidade
esta característica lhe auferirá volatilidade. Nesta característica reside o seu entre a violência fundadora e a conservadora, como diria BENJAMIN181.
perigo. Aproximar-se-á muito mais do corpus canceroso do que um organismo 177. DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: editora 34, 1996. p. 85.
178. A autora definirá o autoritarismo como um empobrecimento da política, cuja radicalidade residirá no fascista.
TIBURI, Márcia. Como Conversar com um Fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. São
173. “Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (visto que a oposição de O Anti-Édipo a seus outros Paulo: Record, 2015. p. 23. “O fascismo é a forma de autoritarismo quando ele se torna radical. Há em todo
inimigos constitui antes um engajamento tático): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler Estado esta semente porque a “ordem” em si mesma, a ordem própria ao Estado, é sua essência. No cotidiano,
e Mussolini – que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas – , mas também o fascismo que o autoritarismo sobrevive nas posturas e atitudes psíquicas ou moralmente rígidas”. Ibidem. p. 27.
está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar 179. ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Compa-
do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora”. FOUCAULT, Michel. O Anti-Édipo: uma nhia das Letras, 1999.
introdução à vida não-fascista. In Cadernos de Subjetividade. v. 1. n. 1. São Paulo, 1993. p. 198. 180. DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BENJAMIN, Walter. Para Uma Crítica
174. DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: editora 34, 1996. p. 84. da Violência. In _____. Escritos Sobre Mito e Linguagem. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2011.
175. PAXTON, Robert O. The Anatomy of Fascism. New York: Alfred A Knopf, 2004. 181. BENJAMIN, Walter. Para Uma Crítica da Violência. In _____. Escritos Sobre Mito e Linguagem. São
176. LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2011.
94 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 95

Mortes injustificadas, agressões igualmente desnecessárias. Não haveria ali molecular, penetrará em todos os níveis sociais. Havendo cruzamentos e des-
a presença visível do fundo obsceno (e que, no entanto não se deveria locamentos, facilmente se produzirão conexões. Constituindo o sistema penal
exteriorizar)? Não teríamos ali, nos autos de resistência, na “Gratificação Fa- peça elementar do funcionamento do reconhecimento de subjetividades, dificil-
roeste” aplicada há algum tempo no Rio de Janeiro (abolida, pelo menos no mente grupos sociais tão díspares não encontrarão no sistema penal um ponto
nome) uma visibilização do fundo obsceno pelo qual atua o direito, através de convergência. Desta maneira, o sistema de justiça criminal atua de forma
de declarações representativas de um desiderato de mortificação do outro? centrípeta; o chamado direito penal simbólico corresponde justo à defectividade
Retomemos o argumento. DELEUZE aponta quatro erros metodo- do sistema em responder a contextos de difícil atuação, mas ao mesmo tempo,
lógicos no tratamento do fascismo. Como já sabemos, a flexibilidade é premido pela convergência das mais distintas expectativas sociais.
quiçá a característica que torna o fascismo tão perigoso. Sendo o fascismo E também, por fim, entre o fascismo institucional/molar ou atomístico/
molecular e atomístico, é no plano da segmentariedade fina, corporal que molecular, sempre haverá uma relação proporcional, uma proporcionalidade
ele operará. É justamente neste nível que ele adquire a sua plenitude. A direta ou indireta, muitas vezes inversa. Temos entre os níveis certamente
flexibilização permite o surgimento de fórmulas compromissórias que, em algumas antíteses, que eventualmente crescem em paralelo. Por isso é tão
maior ou menor tempo, acabam sendo atravessadas e permeadas pelo pensa- difícil o chamado “combate” ao fascismo, já que a sua assimetria constituti-
mento fascista. Tomemos um argumento encontrado na doutrina processual va acaba endereçando as mais distintas pulsões para práticas cotidianas, os
penal (que tem se caracterizado, no Brasil, por sempre ceder aos fascismos fascismos do dia-a-dia. Com efeito, não há um autoritarismo, um fascismo.
punitivistas). Vejamos alguns tipos de flexibilização pertinentes ao pro- Eles são constantemente ressignificados182. A desterritorialização do fascismo,
cesso penal: a admissão da possibilidade de execução provisória da pena, portanto, garante a sua permanência, sempre através de mutações e recombi-
a extração compulsória de DNA, a legítima defesa praticada por policiais nações com o seu DNA, em nível molecular183. Como destaca LENHARO,
exteriorizada pelas condições da vítima, local e horário, etc. “é constrangedor, em plena época do exercício democrático da “nova repú-
Um segundo erro metodológico é chamado por DELEUZE de erro blica”, deparar e conviver com aspectos moleculares tipicamente fascistas,
psicológico. Trata-se de um equívoco afirmar-se que o fascismo atua apenas uma demonstração de que eles permanecem, transmutam-se, remontam-se
no nível imaginário. O imaginário não produz efeitos de realidade? Não é no interior da máquina em se engendrando”184.
justamente sobre o imaginário que atuam as pesquisas sobre sensação de Esta análise, de cunho essencialmente conceitual e instrumental, pre-
insegurança (e que catapultam políticas racistas e de marginalização)? Não tende demonstrar, unicamente, como nossas atuais compreensões acerca da
estaríamos sobrecarregados de legislações que foram edificadas justamente democracia toleram, em certo nível, a presença do fascismo/autoritarismo.
a partir de políticas do imaginário punitivista? Evidentemente que sim.
182. “Não há um partido nazista; não só este evoluiu, como em cada período teve uma função diferente,
Diria mais: o sistema penal sempre recorreu ao imaginário para ganhar segundo os diversos campos nos quais interveio. A máquina SS de Himmler não era a mesma que a dos
AS, e ambas eram diferentes das organizações de massas, tal como as concebiam os irmãos Strausser.
legitimidade. Toda teoria de prevenção é uma proposta de atuação sobre (...) Não se trata aqui de uma pesquisa gratuita, mas sim de uma recusa das simplificações que nos im-
pedem de apreender a genealogia e a permanência de certas maquinarias fascistas. A Inquisição já havia
o imaginário (isto é, sobre o futuro – sempre contingente). Nas ciências instalado uma certa máquina fascista que só se efetivaria muito mais tarde com o partido jacobino, os
sociais, o teorema de Thomas identifica justamente esta extração de efeitos partidos bolcheviques, os partidos fascistas, etc. Tal análise dos componentes moleculares do fascismo
poderia, assim, concernir aos mais variados campos, tanto na escala macropolítica, quanto na escala
de realidade do imaginário: “se as pessoas definem uma situação como real, microscópica. Ela deveria propiciar-nos entender melhor como o mesmo fascismo, sob outras formas,
continua funcionando hoje, na família, na escola ou num sindicato”. GUATTARI, Felix. Revolução
ela será real nas suas consequências”. Neste ponto, a teoria criminológica Molecular: pulsações políticas do desejo. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 179-180.
183. “Ao lado do fascismo dos campos de concentração – que continuam a existir em inúmeros países -, desen-
das carreiras criminosas serve muito bem para ilustrar a importância do volvem-se novas formas de fascismo molecular: um banho-maria no familialismo, na escola, no racismo,
nos guetos de toda natureza, supre com vantagens os fornos crematórios. (...) Dever-se-ia, portanto, renun-
imaginário na constituição dos planos de atuação do fascismo. ciar definitivamente a fórmulas demasiado simplistas do gênero: ‘o fascismo, não passará’. Ele não só já
passou, como passa sem parar. Passa através da mais fina malha; ele está em constante evolução; parece vir
Em terceiro lugar, as formas não podem ser medidas apenas pelas suas de fora, mas encontra sua energia no coração do desejo de cada um de nós”. GUATTARI, Felix. Revolução
Molecular: pulsações políticas do desejo. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 188-189.
dimensões. O fascismo atravessa todo corpo social, porque é atomizado. Sendo 184. LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. Campinas: Papirus, 1986. p. 12.
96 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 97

E como em muitas oportunidades, o “combate” ao fascismo institucional caracterizadores e conformadores do autoritarismo no Brasil. Esta contex-
admite o ecoar dos microsfascismos atomísticos. Certamente poderemos falar tualização, evidentemente, não pretende traçar uma aprofundada análise do
em permanências fascistas/autoritárias. Contudo, não podemos esquecer que pensamento autoritário brasileiro, mas apenas fornecer elementos e descor-
a democracia também implica na reconstrução e rearticulação de topologias tinar semelhanças entre o modo-de-pensar autoritário, no Brasil, na década
semânticas. Significa, em outras palavras, que certas fusões e deslocamentos de 30 e o transporte de algumas categorias para o plano do direito processual
também podem ser imputados à democracia, já que não seria ela um filtro penal, difusão esta que atravessa distintos registros de saber e temporali-
capaz de imunizar a socialidade dos autoritarismos e/ou dos fascismos. dades. Para ser mais exato, a questão é identificar a permeabilidade dos
Devemos retomar, depois de superada esta exposição de caráter institutos e práticas processuais penais ao discurso autoritário, mesmo após
metodológico, algumas das ideias movidas pelos chamados ideólogos do a nova ordem constitucional de 1988. Tarefa cuja execução não prescinde
pensamento autoritário brasileiro. Certamente o objetivo não é sistematizar do exame do eixo do pensamento autoritário em suas vertentes sociológi-
o pensamento destes autores, mas tão somente identificar alguns núcleos cas e políticas. Segundo CHAUÍ186, o pensamento autoritário brasileiro se
genéticos através dos quais ganha força certa construção dogmática das valerá da trilogia “artificial”, “legal” e “estrangeiro”, elaborada em regime de
categorias processuais penais. oposição à tricotômica antítese “natural”, “real”, “nacional”. Consideravam
a si próprios como pensadores originais, muito embora possamos encontrar
quem vislumbre, especialmente no pensamento da virada do século XIX
1.5. O AUTORITARISMO BRASILEIRO185
para o XX, uma mera importação acrítica de ideias187. Para SKIDMORE,
Como visto, o significante autoritarismo poderá assumir diversas fei- a intelectualidade brasileira, nesta quadra da história, seria refém de uma
ções, de acordo com a sua veiculação aos regimes políticos, à personalidade parca capacidade intelectiva e recepcionaria, de forma muito precária, as
autoritária ou ainda, aos sistemas ideológicos. O autoritarismo, assim como ideias vindas de fora. Isso seria suficiente para explicar o descompasso entre
os fascismos, que repousam justamente na sua constituição molecular, em as ideias e suas instituições, comparadas a uma “sociedade real”, dando
sua capacidade capilar e ubíqua, possuirá determinada atração pela segmen- margem, logicamente, à famosa hipótese das “ideias fora de lugar”, tão
tariedade fina. Daí por que as denúncias endereçadas ao Estado Totalitário superficial quanto deslocada e historicamente inaceitável. Pretensamente
jamais poderiam impedir a sedimentação das práticas autoritárias, que cru- crítica, pois a interpretação conferida às “ideias fora de lugar” termina por
zariam o corpo social. Inclusive, a antítese produzida pelo discurso liberal chegar às mesmas conclusões dos pensadores tidos por autoritários. Como
conservador, trataria de fazer emergir a liberal-democracia como espécie exemplo podemos citar OLIVEIRA VIANNA, que acentua:
de espelho deformado do totalitarismo. Tudo isso enquanto acomodaria
“Já ficou registrado que o fim do Império e o início da República foi uma
as conflitualidades fascistas, denunciadas pela pesquisa de Berkeley de época caracterizada por grandes movimentos de ideias, em geral importadas
ADORNO e significativamente relatadas pela psicologia social através de da Europa. Na maioria das vezes, eram ideias mal absorvidas ou absorvidas
diversos experimentos (como os de MILGRAM e ZIMBARDO). de modo parcial e seletivo, resultando em grande confusão ideológica. Libera-
lismo, positivismo, socialismo, anarquismo misturavam-se e combinavam-se
Contudo, precisamos, para avançar, determo-nos um pouco no dis- das maneiras mais esdrúxulas na boca e na pena das pessoas mais inespe-
curso autoritário brasileiro, que envolve determinado grupo de pensadores. radas. Contudo, seria enganoso descartar as ideias da época como simples
Esta análise, ainda que superficial – à medida que este tema é exaustiva-
mente tratado por historiadores e cientistas políticos brasileiros – tem por 186. CHAUÍ, Marilena. Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica:
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. p. 26.
pretensão permitir que o leitor se depare com um conjunto de elementos 187. Exemplo deste modo de pensar a intelectualidade brasileira pode ser encontrado em SKIDMORE: “Os
brasileiros liam esses autores, em geral sem espírito crítico, e sua apreensão crescia. Caudatários da-
quela cultura e imitadores constrangidos daquele pensamento, os brasileiros de meados do século XIX,
185. Pode-se falar que o autoritarismo constitui, além de um exercício de poder, uma mentalidade. TIBURI, como os demais latino-americanos, estavam despreparados para discutir as últimas doutrinas sociais
Márcia. Como Conversar com um Fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. São Pau- que chegavam da Europa”. SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamen-
lo: Record, 2015. p. 39. to brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 31.
98 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 99

desorientação. Tudo era, sem dúvida, um pouco louco. Mas havia lógica na profundamente a obra de OLIVEIRA VIANNA194, “Populações Meridionais
loucura, como poderemos verificar no exame do problema da cidadania”188. do Brasil”). Para SODRÉ, o pensamento de OLIVEIRA VIANNA será ca-
SILVA trata de identificar, a partir da análise do núcleo do pensamento racterizado (a fim de justificar a subordinação econômica das classes menos
autoritário brasileiro (composto por autores como AZEVEDO AMARAL, favorecidas aos grandes latifundiários) por um pensamento altamente racis-
OLIVEIRA VIANNA, Alberto TORRES e Francisco CAMPOS189), a estru- ta, afirmando que esta elite possuirá atributos eugênicos superiores195. Neste
tura típica de argumentação190 deste sistema ideológico, que posteriormente, aspecto é que residiria o colonialismo de OLIVEIRA VIANNA. Segundo
já a partir da segunda metade do século XX, será restabelecido por Roberto SILVA, concentrar o foco da crítica do pensamento de OLIVEIRA VIANNA
CAMPOS e Eugênio GUDIN, a partir de métodos e objetos diversos, ligados nas características racistas seria uma estratégia inadequada. Para o autor, o
ao pensamento economicista191. Estado autoritário de OLIVEIRA VIANNA poderia muito bem sobreviver
Antes de apresentarmos as características identificadas por SILVA na sem o recurso aos elementos racistas identificados por SODRÉ196, o que pode
estruturação do discurso de legitimação do Estado autoritário, importante ser identificado no paulatino e progressivo deslocamento do elemento racial
referir que o autor enfrenta algumas polêmicas travadas com importantes para zonas secundárias do pensamento de OLIVEIRA VIANNA, especial-
historiadores do pensamento autoritário192, divergindo em inúmeros pontos. mente na época de sua atuação governamental.
Se por um lado Nelson Werneck SODRÉ193 identifica na estrutura do Para SILVA, o elemento essencial do sistema ideológico autoritário será
pensamento de OLIVEIRA VIANNA uma “ideologia colonialista”, que teria o conceito normativo de Estado. A normatividade do Estado antecipará as
se espalhado pelos mais diversos campos do pensamento brasileiro, Ricardo próprias análises sociológicas das quais partem este grupo de pensadores autori-
SILVA afirmará que tal entendimento não é o mais adequado. O núcleo do tários (devemos compreender que a sociologia, para estes autores, corresponderá
pensamento autoritário brasileiro não poderia ser sintetizado apenas ou tão a uma ciência que instrumentalizará a razão de Estado, sendo posteriormente,
somente a partir da subordinação econômica das classes menos favorecidas. substituída, no pensamento de Roberto CAMPOS e Eugênio GUDIN, pela
SODRÉ afirma que a classe interessada na dominação econômica das clas- economia). Seria assim, a sociologia, um campo subsidiário ao exercício do
ses subalternas seria a dos grandes latifundiários (após examinar extensa e poder estatal, sendo esta disciplina orientada pelo modelo normativo197.
Outra importante análise sobre o autoritarismo brasileiro aparece na
188. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: obra de Michel DEBRUN198. Para DEBRUN, existem “arquétipos políti-
Companhia das Letras, 1987. p. 42.
189. “Mormente no caso dos pensadores autoritários, o fato de pertencerem a antigas famílias dirigentes, cos-ideológicos” do pensamento brasileiro. Estes arquétipos corresponderão
beneficiando-se de todo tipo de vantagens e privilégios, inclusive de uma ampla rede de relações sociais,
decerto contribuiu de maneira decisiva para a consagração que receberam no campo intelectual”. MI- a determinadas manifestações, tanto de cunho político quanto de cariz ideo-
CELI, Sergio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920 – 1945). São Paulo: Rio de Janeiro: Difel,
1979. p. 165. Ainda: “os principais artífices do “pensamento autoritário” – Oliveira Vianna, Azevedo lógico, que configuram um elemento essencial do pensamento brasileiro, seja
Amaral, etc., – falavam em nome da elite burocrática, na crença de que a organização do poder em mãos por que são permanentes, seja por que de tempos em tempos retornam199.
do Estado viria substituir-se ao entrechoque de interesses privados, habilitando seus representantes a
auscultar os reclamos do conjunto da sociedade”. MICELI, Sergio. Intelectuais e Classe Dirigente no DEBRUN constrói alguns arquétipos, nominando o pensamento de OLI-
Brasil (1920 – 1945). São Paulo: Rio de Janeiro: Difel, 1979. p. 166.
190. “A estrutura argumentativa da ideologia do Estado autoritário, nas duas gerações de pensadores acima VEIRA VIANNA, Francisco CAMPOS, Alberto TORRES e AZEVEDO
mencionadas, atua para dotar de sentido e legitimidade uma ordem política que: a) estabelece a preemi-
nência do Estado sobre a sociedade civil, apresentando o primeiro como ente demiúrgico e dotado de AMARAL como produto de um “autoritarismo desmobilizador”.
superior racionalidade e a segunda como depositária da irracionalidade e de múltiplos particularismos
geradores de indesejáveis lutas de facções; b) no interior do Estado, estabelece a preeminência do poder Para DEBRUN, o autoritarismo desmobilizador teria compartilhado
Executivo sobre o legislativo e mesmo sobre o Judiciário; c) no seio do poder executivo, estabelece a
preeminência das elites técnicas sobre as elites políticas. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Auto-
ritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 25. 194. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Edições do Se-
nado Federal, 2005.
191. Com efeito, a releitura dos clássicos da ideologia autoritária permitirá repaginar o discurso autoritário,
mas não constituir uma nova ideologia. 195. SODRÉ, Nelson Werneck. A Ideologia do Colonialismo. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 147.
192. Uma síntese do exame feito por Silva acerca dos principais estudos no Brasil sobre o pensamento au- 196. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 77.
toritário pode ser encontrada em SOUSA JÚNIOR, Valdemar Gomes de. A Persistência da Ideologia 197. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 86.
Autoritária. In Projeto História. n. 31. São Paulo: PUCSP, dez. 2005. p. 427 – 431. 198. DEBRUN, Michel. A Conciliação e Outras Estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983.
193. SODRÉ, Nelson Werneck. A Ideologia do Colonialismo. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. 199. DEBRUN, Michel. A Conciliação e Outras Estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 121.
100 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 101

com a conciliação200 o papel de ideologia dominante na política brasileira. VIANNA. O Estado autoritário, na análise de SANTOS, seria um instrumen-
Esta forma de autoritarismo enxergaria a sociedade brasileira como necessa- to para a realização de uma finalidade. Além desta qualidade, o autoritarismo
riamente amorfa e composta por coletivos irracionais. Ao Estado incumbiria instrumental teria como principal característica a efemeridade, a temporali-
o papel de evitar a desordem201. Tal função seria tarefa, como seria lógico, das dade. Uma vez realizados os fins almejados, tais meios deveriam ser abolidos.
elites dominantes. Ao lado do governo da massa “amorfa” teríamos a gestão Deveria o Estado fixar metas, uma vez que a sociedade seria incapaz de es-
estatal a cargo dos tecnocratas202. O resultado esperado, de acordo com estes tabelecê-las por conta própria204. O autoritarismo instrumental teria como
autores, é a passividade da massa à que corresponderia o governo das elites principal objetivo a construção de uma sociedade liberal205. Na análise de
para o próprio bem dos subordinados. Será evidentemente no saber das elites SANTOS sobre o pensamento de OLIVEIRA VIANNA, o sistema político
que residirá a justificativa para a desejada passividade da massa. De acordo liberal depende de uma sociedade também liberal. Desta forma, uma vez
com SILVA, se por um lado DEBRUN identifica e fornece importantes in- que o Brasil não possuiria uma sociedade liberal (mas pelo contrário, teria
tuições sobre o funcionamento do autoritarismo – especialmente no que diz outra, clânica, autoritária, parental), um sistema político liberal seria ineficaz.
respeito à passividade e subordinação da massa -, por outro deixa escapar o Demais disso, segundo a análise do pensamento de OLIVEIRA VIANNA,
que na sua visão seria um eixo central do autoritarismo: o necessário fortale- não haveria a possibilidade de uma “evolução natural” da sociedade brasi-
cimento do Estado (decorrente de sua hipótese de trabalho – o Estado como leira rumo ao liberalismo. O modelo autoritário seria necessário para fazer
uma categoria normativa). Faltaria à análise de DEBRUN a capacidade de implodir as bases sobre as quais estaria erigida a própria sociedade, a fim de
atribuir ao Estado o papel de agente desmobilizador, e ao mesmo tempo, de propiciar o seu direcionamento rumo ao liberalismo. Em síntese, para OLI-
seu agigantamento, efeito este próprio da redução da massa a uma passiva VEIRA VIANNA, o sistema autoritário seria necessário para se construir
coletividade. Outrossim, a noção de “conciliação” utilizada por DEBRUN se uma sociedade liberal206. Destaca SANTOS que o liberalismo pretendido por
encaminha de forma parecida às clássicas teorizações do “jeitinho brasileiro”, OLIVEIRA VIANNA não seria o econômico, mas aquele de caráter político,
do “homem cordial”, que marcaram (e ainda marcam) um pretenso saber que acarretaria o governo pelos próprios cidadãos207. Isso poderia ser interpre-
crítico acerca da “identidade nacional”. tado como decorrente da própria ideia de transitoriedade do autoritarismo.
Outro estudo que merece destaque é o trabalho de Wanderley Guilherme Por seu turno, para SILVA, o caráter transitório do autoritarismo instru-
dos SANTOS, que apresentará o conceito de autoritarismo instrumental203, mental não diz respeito à temporalidade. Afirma, inclusive, que a permanência
ferramenta teórica que utiliza para identificar o pensamento de OLIVEIRA do autoritarismo pode ser (e em alguns casos é) justamente a medida mais
eficiente para o estabelecimento de certa ordem social208. Difícil crer, segundo
200. Segundo Debrun, a conciliação, no Brasil, sempre pressupõe parceiros que não se encontram em posi-
ção de igualdade, cuja finalidade seria regular as relações entre atores desiguais, permitindo a explora- o autor, que a obra de OLIVEIRA VIANNA pudesse indicar como fim do
ção dos débeis pelos dominantes. DEBRUN, Michel. A Conciliação e Outras Estratégias. São Paulo:
Brasiliense, 1983. p. 15. Sobre a ideia de conciliação política e autoritarismo Cf ABREU, Luciano Estado autoritário uma democracia política. Em nosso sentir, aproxima-se
Aronne de. Estado Novo: autoritarismo e conciliação política. Disponível em https://www.tjrs.jus.br/
export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revis- muito mais do liberalismo econômico, este sim, capaz plenamente de conviver
ta_justica_e_historia/issn_1677-065x/v7n14/Estado_Novo_autoritarismo_e_conciliacao_politica.pdf. com regimes antidemocráticos.
Acesso em 10.01.2017.
201. Note-se que a preocupação para com a ordem será um elemento fundamental do pensamento autoritá- Encerrando a análise de contributos do pensamento autoritário
rio. Segundo Stoppino: “mas o que caracteriza a ideologia autoritária, além da visão da desigualdade
entre os homens, é que a ordem ocupa todo o espectro dos valores políticos, e o ordenamento hierár-
quico que daí resulta esgota toda a técnica da organização política. Esta preocupação obsessiva pela 204. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cida-
ordem explica também por que o pensamento autoritário não pode admitir que o ordenamento hierár- des, 1978. p. 102-104.
quico seja um simples instrumento temporário para levar a uma transformação parcial ou integral da
sociedade, tal como acontece, pelo menos na interpretação ideológica, em muitos sistemas autoritários 205. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cida-
em vias de modernização e nos sistemas comunistas. STOPPINO, Mario. Autoritarismo. In BOBBIO, des, 1978. p. 93.
Norberto. MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. v. 1. 11 ed. Brasí- 206. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cida-
lia: UnB, 1998. p. 96. des, 1978. p. 93.
202. DEBRUN, Michel. A Conciliação e Outras Estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 135. 207. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cida-
203. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cida- des, 1978.
des, 1978. 208. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 107.
102 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 103

brasileiro, indispensável mencionar-se aqui o pensamento de Bolívar LA- de políticas criminais, seja como encaminhador de demandas que
MOUNIER209, que propõe o que chama de ideologia de Estado, que seria almejam reconhecer a ineficiência do sistema de justiça criminal. Po-
composta por um conjunto heterogêneo de elementos210. A noção de um demos dizer que o papel da estrutura argumentativa da emergência,
no sistema criminal, é, ou bem legitimatória (de novas demandas
pensamento autoritário no conjunto nuclear de autores examinados (dentre
autoritárias) ou bem internamente deslegitimante (pela insuficiên-
eles naturalmente OLIVEIRA VIANNA) derivaria, essencialmente, de sua cia) do sistema penal em garantir a segurança de bens, pessoas ou
natureza política e institucional. Para SILVA211, a principal contribuição do da própria estabilidade política214. ZAFFARONI afirmaria que o
pensamento de LAMOUNIER reside na identificação do pensamento au- sistema penal não precisa de uma legitimação externa, ele se move
toritário como uma ideologia de Estado, que terá como principal missão a por conta própria. Qual a razão disso? O direito penal sempre está
legitimação e a definição da autoridade estatal, que se caracterizará como o em crise. Sempre surgem novos desafios, sempre aparecem novos
princípio que disciplinará a vida em sociedade. inimigos, e toda vez que isso ocorre o arsenal legislativo é insuficien-
te para enfrentar os novos tempos. A ideia de catástrofe convoca o
Superada a problematização dos principais eixos teóricos que analisam o aparecimento da emergência. Como acentua ZAFFARONI, vivemos
núcleo do pensamento autoritário brasileiro, SILVA212 apresentará um feixe de oitocentos anos de emergência. Toda vez que ingressa o discurso da
elementos que percorrem a cadeia discursiva destes cientistas políticos. Desta emergência, estamos a falar de um discurso autoritário215.
maneira, seria possível afirmar-se que a estrutura narrativa do pensamento b. Pelo Cientificismo: os programas políticos a serem executados pelo
autoritário brasileiro, nas décadas de 20 e 30 seria composta: Estado deveriam estar em consonância com a ciência. A tecnocracia
a. Pelo catastrofismo, ou seja, por uma concepção que atribui uma deveria formular os parâmetros do governo brasileiro. Neste ponto,
crise permanente que assolaria a sociedade brasileira. Especialmen- a sociologia, de matriz positivista (com especial ênfase no sistema
te a desagregação e desorganização sociais seriam produzidas pelo comtiano) seria a responsável por garantir o suporte e a condução das
liberalismo das classes políticas. Por catastrofismo seria possível com- políticas públicas. Além disso, parece útil a constatação de FAUSTO,
preender a colocação do Brasil em uma espécie de crise iminente de que a sociologia positivista não seria empregada de forma indene,
(e permanente). A urgência de respostas e soluções não permitiria isto é, imaculada. Junto dela seriam carregados inúmeros concei-
grandes reflexões. Entramos, portanto, no campo das medidas. Re- tos-chave do pensamento sociobiológico, em especial a noção de
lativamente às medidas, elas integram, ou melhor, guardam uma raça. Exemplificativamente, a noção de raça percorre por igual o
nítida relação com a noção de segurança, como bem demonstrará pensamento de AZEVEDO AMARAL, ALBERTO TORRES E
FOUCAULT213. Vez por outra se invoca tanto a segurança quanto o OLIVEIRA VIANNA. Uma categoria em comum entre os autores
seu reflexo imediato, a emergência ou a catástrofe iminente. Podemos era a denominada “questão racial”. Em Populações Meridionais do
dizer que a emergência se constitui como uma estrutura que sempre Brasil, podemos encontrar em OLIVEIRA VIANNA216 uma tenta-
está presente nos discursos penais, seja como legitimador externo tiva de definir o Brasil a partir de uma visão psicorracial. No topo
da pirâmide estariam os arianos – brancos e de caráter superior às
demais raças; em seguida os mestiços, que evoluíram ao longo do
209. LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um Pensamento Político Autoritário na Primeira República: uma
interpretação. In FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil republicano. 3 ed. tempo por terem se “arianizado” e no último escalão da pirâmide
Rio de Janeiro: Difei, 1985. racial brasileira estariam os negros, os índios e a grande maioria
210. Segundo Lamounier, tais elementos seriam: a) predomínio do Estado sobre o mercado; b) uma visão
organicista e corporativa da sociedade; c) adoção de um objetivismo tecnocrático; d) uma visão auto- dos mestiços (aqueles que se não tinham arianizado). Mais adiante,
ritária dos conflitos sociais; e) a incapacidade de organização da sociedade; f) desmobilização política tal pensamento é reproduzido em Raça e Assimilação, obra na qual
da massa; g) adoção do elitismo e do voluntarismo como visões acerca das mudanças políticas; h) o
Estado como um Leviatã paternalista. LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um Pensamento Político
Autoritário na Primeira República: uma interpretação. In FAUSTO, Boris. História Geral da Civiliza- 214. Neste sentido imprescindível a leitura de MOCCIA, Sergio. La Perenne Emergenza: tendenze autori-
ção Brasileira: o Brasil republicano. 3 ed. Rio de Janeiro: Difei, 1985. p. 112. tarie nel sistema penale. 2 ed. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiana, 2000.
211. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 117-118. 215. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Origen y Evolución del Discurso Crítico en el Derecho Penal. Buenos
212. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. Aires: EDIAR, 2004. p. 28.
213. FOUCAULT, Michel. Seguridad, Territorio, Populación. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 216. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal,
2004. Cf AMARAL, Augusto Jobim; ROSA, Alexandre Morais. Cultura da Punição: a ostentação do 2005. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. Raça e Assimilação. 2 ed. São Paulo: Companhia Edi-
horror. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. torial Nacional, 1934.
104 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 105

OLIVEIRA VIANNA trata de justificar e explicar a pureza da raça outro representante da teoria das elites, muito embora para o propósito
ariana. Em AZEVEDO AMARAL, o argumento do “branqueamen- do estudo, basta identificar nos pensadores autoritários brasileiros, a
to” da sociedade brasileira é tomado como elemento-chave para se sua fonte de inspiração. No que diz respeito aos propósitos do presen-
compreender o destino do Brasil. te texto, acertada a conclusão de VINCENT, para quem “os autores
c. Pelo Elitismo: com efeito, caberia à minoria “esclarecida” guiar aquela da elite contribuíram não apenas para as teorias da liderança, mas
massa de sujeitos politicamente débeis. A ação política não poderia ser também para criar suspeitas, frequentes entre os fascistas, em relação
empreendida desde a base, uma vez que a imobilidade política destes à democracia parlamentar”219.
atores seria um entrave à sua consecução. Aqui residiria o argumento d. Pelo Nacionalismo Político: como corolário do ataque ao liberalismo,
da falta de preparo da população para a democracia. Desta forma, o o nacionalismo corresponderia à formulação de uma política própria,
autoritarismo seria uma adequada política à realidade do país. Neste que não se sujeitasse a padrões abstratos ou ainda, que a política fosse
ponto deveremos destacar a formação de certo ‘bacharelado’ que mais conduzida a partir de um princípio de unidade nacional220.
do que se ocupar de determinados atributos e funções próprias da e. Pelo Antiliberalismo: a refutação do liberalismo pelos ideólogos do
titulação, ocuparão os cargos políticos e a formação de uma classe autoritarismo brasileiro se expressaria através da rejeição do libera-
burocrática dirigente. Como pano de fundo orientador, pode-se en- lismo político (e não marcadamente do econômico, muito embora
contrar a influência de Gaetano MOSCA217, que escreveu o seu famoso encontremos diversas e repetidas vezes, argumentos em prol da inter-
Elementi di Scienza Politica, ao argumentar que na maioria das socieda- venção econômica do Estado, o que não retira o caráter liberalista do
des, existe uma minoria que detém o poder e uma maioria que dele está pensamento econômico221). Desta maneira, rechaça-se naturalmente
privada. Através do conceito de organização (da elite em detrimento um sujeito portador de direitos (e não aquele sujeito possuidor de
da maioria governada), MOSCA estabeleceria o critério fundamental bens), garantindo um maior raio de atuação do Estado. Aqui, na base
da distinção entre esta maioria governada e a minoria governante. desse pensamento, poderíamos detectar na obra de José Murilo de
Além disso, para o pensador italiano igualmente concorreria a heredi- CARVALHO um ponto necessário de compreensão sobre o ideário
tariedade como fator que estabeleceria a maior capacidade da minoria antidemocrático222. O discurso autoritário destes pensadores brasi-
dirigente. Nesse sentido, enquanto a classe dirigente fora denominada leiros, não obstante sua ojeriza em relação à massa provocou o que
por MOSCA como “política”, a classe governada seria etiquetada por o autor chama de “manipulação do imaginário popular”. Através da
ele como “massa”. Além da nítida inspiração em MOSCA, outro im- doutrina comtista, através de uma concepção ortodoxa do politico,
portante pensador associado à teoria das elites é Vilfredo PARETO218. utilizada a partir de um instrumental tecnocrático, tentaria garantir-
De acordo com PARETO, em todas as sociedades existiriam sujeitos se uma identidade nacional, o que pode ser muito bem observado na
com capacidade, dons e atributos maiores do que os demais. Esta multifária e complexa personagem de Tiradentes223.
minoria seria chamada de elite. A elite refletiria nada mais do que o
estado natural de desigualdade entre os homens. Em PARETO, a elite 219. VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. p. 161.
não deveria se confundir com a classe dirigente, pois em cada segmento 220. Sobre a formação da identidade brasileira Cf KHALED JR, Salah H. Ordem Progresso: a invenção do
Brasil e a gênese do autoritarismo nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 111 et seq.
da sociedade seria possível encontra-la. Assim, a elite religiosa, a elite 221. Sobre a tese da intervenção do Estado para a formação das condições ideais de livre competição reco-
atlética, a elite intelectual e assim por diante. Contudo, PARETO esta- mendamos vivamente a obra de HARCOURT, Bernard. The Illusion of Free Markets: punishment and
the myth of natural order. Cambridge: Harvard University Press, 2011.
belecerá nova distinção, ao identificar uma elite governante das demais 222. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo:
elites não governantes. PARETO será o responsável pela formulação da Companhia das Letras, 1990.
223. “A falta de uma identidade republicana e a persistente emergência de visões conflitantes ajudam tam-
noção de “circulação das elites”, onde desenvolve a explicação para os bém a compreender o êxito da figura de herói personificada na figura em Tiradentes. O herói republi-
diversos e constantes processos de sucessão de umas elites por outras. cano por excelência é ambíguo, multifacetado, esquartejado. Disputam-no várias correntes; ele serve
à direita, ao centro, à esquerda. Ele é o Cristo e o herói cívico; é o mártir e o libertador; é o símbolo da
De acordo com POPPER, PARETO seria o “pai do fascismo”. Seria pátria e o subversivo. A iconografia reflete as hesitações. Com barba ou sem barba, com túnica ou de
possível colocar aqui também o nome de Robert MICHELS como uniforme, como condenado ou como alferes, contrito ou rebelde: é a batalha por sua imagem, pela ima-
gem da República. Ele se mantém como herói republicano por conseguir absorver todas essas fraturas,
sem perder a identidade. A seu lado, apesar dos desafios que surgem nas novas correntes religiosas,
talvez seja ainda a imagem da Aparecida que melhor consiga dar um sentido de comunhão nacional a
217. MOSCA, Gaetano. Elementi di Scienza Politica. Torino: Fratelli Bocca, 1923. vastos setores da população. Um sentido que, na ausência de um civismo republicano, só poderia vir de
218. PARETO, Vilfredo. In Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1984. fora do domínio da política. Tiradentes esquartejado nos braços da Aparecida: eis o que seria a perfeita
106 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 107

f. Pelo pensamento Antidemocrático: em decorrência do “despreparo” Seu antiliberalismo, portanto, tinha como alvo todo o conjunto de teo-
da população para o exercício da democracia, seria possível falar-se no rias e premissas liberais que sustentavam a República brasileira e que acabou
“apoliticismo” da plebe. Desta forma, a democracia seria desprezada, se tornando predominante na década de 30228. Ele tomou as rédeas da crítica
pois inevitavelmente conduziria à instalação do caos e da desordem
endereçada às oligarquias, que emperravam a máquina estatal, por seu turno
(novamente deparamo-nos com o significante ordem224 a encadear
as demandas políticas. Temos, portanto, uma cristalina manifestação responsável pela garantização da “justiça social”, como destaca MARSON229.
autoritária que guiaria as ações políticas do Estado brasileiro). Segundo PÉCAUT, “Alberto TORRES seria visto como o precursor inconteste
dos pensadores autoritários de todas as tendências”230. Depois de TORRES
Guardadas estas características da narrativa autoritária no Brasil,
pode-se afirmar que todos os pensadores autoritários tratarão de “revelar a reali-
restaria definirmos o que estamos falando quando trabalhamos com o
dade, desvendar a sua coesão oculta, mostrar as solidariedades que a irrigam”231.
significante autoritarismo. De acordo com SILVA, o conceito de Estado
autoritário representa uma estrutura de dominação a um só tempo estatista, De acordo com TORRES, o sistema da democracia política seria inca-
tecnocrática e desmobilizadora225. Contudo, parece-nos ainda insuficien- paz de permitir ao Estado a criação e a consolidação da nação. O novo regime
te para efetivamente ganharmos verticalidade no campo processual penal, desenvolvido por TORRES seria aquele da “democracia social”, que teria por
objeto imediato de nosso enfoque. encargo formar o homem (e não o cidadão, ligado à titularidade dos direi-
tos políticos)232. A construção do homem, desiderato da democracia social,
1.5.1. O AUTORITARISMO BRASILEIRO: ALBERTO TORRES, somente seria possível à luz de um Estado forte, de um Estado autoritário.
OLIVEIRA VIANNA E AZEVEDO AMARAL Este paradoxo aparente cruza o discurso de todos os pensadores considerados
A primeira grande referência do autoritarismo brasileiro, em ordem autoritários, devendo ser tributada a Alberto TORRES a tentativa de con-
cronológica, consolida-se no pensamento de Alberto TORRES. Ex-ministro jugação da democracia com um Estado centralizador e forte, assim como as
do STF, ex-presidente do Rio de Janeiro e ex-ministro do interior, o pen- distintas acepções que viria a assumir a categoria democracia, como naquela
samento de Alberto TORRES pode ser enquadrado como portador de um de Francisco CAMPOS (democracia substancial). Segundo SOUZA, “socie-
antiliberalismo radical. À diferença de alguns expoentes do antiliberalismo, dade dispersa, amorfa e subordinada; Estado coordenador, autônomo e coeso:
não se voltou para uma tentativa de resgate do monarquismo, mas se ende- reside, nesta dualidade, o fundamento de seu autoritarismo”233.
reçou à construção de uma república forte, que pudesse suprir as deficiências Ademais, TORRES se mantém na linha do pensamento que procura
da República liberal226. Segundo TORRES, seria devido ao liberalismo que a estudar a identidade nacional brasileira234, cabendo ao Estado proporcionar os
política brasileira seria um elemento estranho à sociedade brasileira, pertur- meios de transformação do caráter nacional. TORRES criticará a importação
bando a ordem bem como o seu progresso227.
228. SOUZA, Ricardo Luiz de. Nacionalismo e Autoritarismo em Alberto Torres. In Sociologias. a. 7. n. 13.
pietà cívico-religiosa brasileira. A nação exibindo, aos pedaços, o corpo de seu povo que a República Porto Alegre, 2005. p. 302.
ainda não foi capaz de reconstituir. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário 229. MARSON, Adalberto. A Ideologia Nacionalista em Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979. 179.
da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 141-142. 230. PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
224. “O discurso da ordem, nesses termos, é um discurso que se constrói pela negação da alteridade e que tem p. 25.
todos os seus pressupostos referidos, portanto, ao imaginário da desordem. É se contrapondo à desordem 231. PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática,
que a ordem se define e se afirma, e é nomeando a desordem que ela se afirma necessária”. DUTRA, Elia- 1990. p. 46.
na de Freitas. O Ardil Totalitário: imaginário político no Brasil dos anos de 1930. Belo Horizonte: Editora 232. TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Brasília: Editora da UnB, 1982 p. 229.
UFMG, 2012. p. 207. Ainda: “Empresários, integralistas, parlamentares, intelectuais, religiosos estruturam 233. SOUZA, Ricardo Luiz de. Nacionalismo e Autoritarismo em Alberto Torres. In Sociologias. a. 7. n. 13.
um discurso em torno de temas e imagens portadores de uma finalidade totalitária. Ordem, família, pátria, Porto Alegre, 2005. p. 307.
moral, trabalho, propriedade, autoridade e obediência são temas que confluem para o objetivo da preser-
vação da ordem social, para o saneamento da sociedade, para reforçar os poderes da família, da Igreja, do 234. Destaca-se aqui o pensamento de CANCELLI, para quem “o projeto político que se torna hegemônico e
Estado, da polícia, dos empresários”. DUTRA, Eliana de Freitas. O Ardil Totalitário: imaginário político popularmente aceito pós-30 funda-se na busca de uma identidade nacional que impressione o homem de
no Brasil dos anos de 1930. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 24. seu tempo, conformado como espectador; na manipulação dos sentimentos, das paixões; e na aposta da
brutalidade do totalitarismo como forma de impulsão das massas e da manutenção de poder. Não existe,
225. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 56. por isso, nenhum corte temporal em 1937, com a decretação do Estado Novo ou coisa que o valha.
226. MONZANI, Roberto. Símbolos e Bandeiras. In NOVAES, Adauto. A Crise da Razão. São Paulo: Com- Existe, isto sim, um desenrolar histórico matizado por um determinado projeto político. CANCELLI,
panhia das Letras, 1999. p. 543. Elizabeth. O Mundo da Violência: repressão e Estado policial na era Vargas (1930 – 1945). Tese de
227. TORRES, Alberto. O Problema Nacional Brasileiro. São Paulo: Nacional, 1933. p. 28. Doutorado em História. São Paulo: USP, 1991. p. 18-19.
108 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 109

de “ideias exóticas”235, como o liberalismo e a democracia política, impedindo pois, as bases para a construção do problema da unidade nacional (já presente,
o crescimento do país. Será de TORRES também a formulação da dicotomia diga-se de passagem, em Alberto TORRES). Tem-se, assim, que uma das
“país legal e país real”, posteriormente renovada por OLIVEIRA VIANNA. E primeiras questões que percorre o autoritarismo brasileiro, especialmente na
será sem sombra de dúvidas Alberto TORRES quem proporcionará a emer- vertente de OLIVEIRA VIANNA é o problema da estatização241. Trata-se de
gência de um sentido “realista” que marcará profundamente esta classe de um projeto, que a partir do autor, se poderia enquadrar como uma tentativa
pensadores, baseado na irracionalidade do sistema (ou na importação das de recuperação da força do Estado.
“ideias exóticas ou “fora de lugar”) e em seu desencaixe relativamente à rea- A segunda característica do pensamento de OLIVEIRA VIANNA é o
lidade236. O realismo, segundo PÉCAUT, se constitui como uma espécie de aspecto desmobilizador da participação popular. Voltamos, de novo, à ques-
atalho para liberar-se a “inventividade ideológica”, ou ainda, “proclamar que tão de conceber a massa como um coletivo irracional e despreparado para o
o real se constrói por si mesmo e é uma maneira de respaldar a representação exercício da democracia. É um discurso que, historicamente, não raras vezes
que dele se faz com um lastro de verdade e eficácia”237. Esta maneira de repre- retorna, ou melhor, nunca saiu de cena242. Determinado discurso aristocrático,
sentar os problemas sociais brasileiros advinha da crença de que a história era vez por outra toca na democracia como o “pior dos governos”, como acaba-
governada por ideias e não por homens. Como reflexo desta postura, seriam mos de ver. Esse autoritarismo desmobilizador, segundo DEBRUN, pode ser
justamente os cientistas sociais aqueles que estariam em melhores condições sintetizado da seguinte forma no pensamento do núcleo autoritário da ciência
de guiar e conduzir o destino da nação. política brasileira: “concebem, implicitamente, a sociedade civil como incapaz
Por seu turno, o pensamento de OLIVEIRA VIANNA produz uma de auto-organização, por ser o palco de luta de inúmeros privatismos, indivi-
teoria do Estado que legitima a “revolução conservadora de cunho autori- duais, familiares ou regionais, devido à formação histórica do povo brasileiro”243.
tário”238, presa a uma determinada visão do liberalismo que se poderia dizer Ainda de acordo com DEBRUN, “o sonho desse autoritarismo desmobilizador
como “particular”. De acordo com BRESCIANI, a crítica aos elementos é a passividade dos cidadãos e a possibilidade de obrar para o bem deles”. Justo
liberais do republicanismo – assentados em uma perspectiva positivista239 uma política demagógica, aquela política na qual a elite age para o bem daqueles
– se apresentará, já na década de 1920 – como o embrião do pensamento incapazes de saltar para fora de sua alienação. OLIVEIRA VIANNA enxergava
autoritário brasileiro, ao se autoproclamar como o único capaz de realizar a no comportamento da massa sinais de regressão. Analisada a conjuntura brasi-
gigantesca tarefa de organizar a nação. É claro que o elemento-chave desta leira, nossa sociedade seria, para o pensador, agrária e clânica.
retórica é justamente a capacidade de sintetizar e amalgamar as diversas classes Será através da crítica aos institutos liberais que se tornará possível a
sociais e raças em uma nação, constituída a partir da inadequação do libera- defesa de uma “democracia autoritária”, que seria a via mais adequada para
lismo (desde o final do século XIX) para enfrentar o “Brasil real”240. A única a sociedade brasileira, desprovida dos mais elementares traços de educação
disciplina, neste contexto, capaz de oferecer uma visão objetiva da “sociedade política. Deve-se destacar, juntamente com PÉCAUT, que “não há dúvida que
real” seria a sociologia, que no Brasil, assumiu o papel de vis attrativa do pen- existe uma tradição liberal no Brasil concorrente ou complementar à tradição
samento autoritário em seu estágio inicial. Em OLIVEIRA VIANNA tem-se, autoritária”244. Já não se poderia, então, agir como se a realidade brasileira
fosse comparável àquela inglesa245. Em OLIVEIRA VIANNA este traço da
235. TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Brasília: Editora da UnB, 1982 p. 53.
236. Cf CANCELLI, Elizabeth. O Mundo da Violência: repressão e Estado policial na era Vargas (1930 – 241. OLIVEIRA VIANNA, F.J. Problemas de Política Objetiva. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1974.
1945). Tese de Doutorado em História. São Paulo: USP, 1991. p. 42. 242. Por certo podemos encontrar este “retorno” em outras formas antidemocráticas de pensamento, como
237. PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, sugere o título da obra de Rob Riemen (muito embora afastamo-nos de suas conclusões e diagnósticos
1990. p. 08. a despeito do fenômeno fascista). RIEMEN, Rob. O Eterno Retorno do Fascismo. Lisboa: Editorial
238. VIEIRA, Evaldo Amaro. Oliveira Vianna e o Estado Corporativo. São Paulo: Grijalbo, 1976. p. 144. Bizâncio, 2012.
239. Sobre a influência das ideias positivistas no Brasil Cf LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 243. DEBRUN, M. A Conciliação e Outras Estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 135.
São Paulo: Editora Nacional, 1964. Sobre o aspecto criminológico Cf FREITAS, Ricardo e Brito A. P. 244. PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
As Razões do Positivismo no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p.10.
240. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade: Oliveira Vian- 245. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade: Oliveira Vian-
na entre os intérpretes do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005. p. 161. na entre os intérpretes do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005. p. 167.
110 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 111

ausência de educação política do brasileiro é muito presente. Segundo BRES- o pensamento de VIANNA é aquele de uma sociologia positivista. Temos
CIANI ao analisar o pensamento de OLIVEIRA VIANNA, política brasileira, aqui, um positivismo que deveria conduzir as ações estatais253. Penso que não
ao sustentar a hipótese de descompasso entre sociedade e instituições políticas possa ser muito diverso, transportadas as premissas de base, em matéria de
acabaria apoiada em três conceitos: meio, história e raças246. política criminal254. Ou seja, as chamadas Leis Sociológicas para OLIVEIRA
A democracia de cunho liberal seria imprópria para o Brasil. A solução, VIANNA serão do tipo imutável. Como destaca o pensador: “as leis socio-
então, seria um governo autoritário, baseado justamente nestas singularidades lógicas são leis naturais e não podem ser violadas impunemente”255. Desta
nacionais. Tal modelo de governo, para o pensador, deveria ser centralizado247. maneira é que poderão conduzir, certamente, a uma modificação do cenário
Os objetivos do Estado brasileiro compreenderiam a estruturação da ordem social brasileiro. Toda a vez que se alterarem tais leis sociais, que “casualmente”
legal e a consolidação da unidade nacional, que acabam por se desdobrar são aquelas que descreverão uma população sendo dirigida tecnicamente por
na “organização da autoridade pública” e na “hegemonia do poder central”. uma minoria, teremos um problema irresolúvel para este positivismo tecno-
Toda a ideologia política que não estivesse baseada nestes fins seria utópica248. crático. Então, desde um discurso cientificizado, garantido desde a sociologia,
Sobre a Constituição de 1937, que instituíra o primado do Executivo sobre os OLIVEIRA VIANNA fundamenta (como procedeu Carl SCHMITT), a
demais poderes, OLIVEIRA VIANNA acentuava o seu caráter de democrati- insustentabilidade da democracia. Neste período teremos igualmente uma
cidade, já que os poderes legislativo e judiciário não haviam sido extintos249. batalha entre escolas jurídicas e a grande crítica a OLIVEIRA VIANNA será
Em suas palavras, “o que se instituiu foi a Democracia Autoritária, isto é a conduzida a partir da chamada Escola do Recife, mais exatamente aquelas
fundada na autoridade e não mais na liberdade, como princípio essencial”250. críticas endereçadas por Tobias BARRETO e por Silvio ROMERO, que eram
Contudo, como anota BRESCIANI, “Oliveira Viana estabelecia a distância os autores que à época tentavam produzir um pensamento que não incorresse
e a fundamental diferença entre o projeto político totalitário alemão e seu nos mesmos problemas do positivismo sociológico. Contudo, naturalmente,
projeto autoritário voltado para a política da unidade nacional do Brasil”251. ainda esbarravam em muitas balizas teóricas positivistas, podendo-se afirmar
Uma terceira característica desse autoritarismo, especialmente na visão que batalhavam por espaços políticos dentro de um mesmo discurso.
de OLIVEIRA VIANNA é o chamado objetivismo tecnocrático. Isso signi- Esse discurso sociológico tem duas funções. A primeira delas é produzir
fica dizer que o regime estatista deveria ser regido pela produção cientifica. um instrumental analítico para o governo, para que os governantes pudessem
Assim, dentro da própria contribuição de OLIVEIRA VIANNA, enquanto governar e também para legitimar as políticas estatais. Então, o fundamental
reformulação do aparato estatal brasileiro da década de 30 e 40 pode-se en- nessa postura autoritária de OLIVEIRA VIANNA era estabelecer uma forma
xergar bem o papel representado pelos conselhos técnicos no desenvolvimento de governo para aqueles incapazes de se autogovernar. Esta compreensão já
do Estado Brasileiro252. Se há um campo de saber no qual se movimenta foi descrita como a de um autoritarismo instrumental, isto é, um autorita-
246. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade: Oliveira Vian-
rismo como meio, como condição para se alcançar a democracia futura, um
na entre os intérpretes do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005. p. 296. autoritarismo emergencial para se garantir o futuro da massa de irracionais:
247. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. O Idealismo da Constituição. 2 ed. São Paulo: Editora Nacio-
nal, 1939. “falhada por inoperante a técnica liberal, só seria possível obter esta nova
248. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. O Idealismo da Constituição. 2 ed. São Paulo: Editora Nacio-
nal, 1939. p. 35. 253. O positivismo marcará profundamente o pensamento autoritário brasileiro. Segundo Cancelli, a despeito
249. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. O Idealismo da Constituição. 2 ed. São Paulo: Editora Nacio- do positivismo criminológico, “era importante esta assimilação formal da Escola positiva porque reafirma-
nal, 1939. Cap. III. va preceitos que estavam sendo aceitos, praticados e justificados por vários setores sociais (Polícia, juris-
250. OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de. O Idealismo da Constituição. 2 ed. São Paulo: Editora Nacio- tas, médicos) e pelo Estado. Os princípios teóricos desenvolvidos na Itália por Cesare Lombroso, Enrico
nal, 1939. p. 121. Ferri e Sergio Sergi eram bem-vindos na busca de legitimação de uma ação que pretendia atingir todos
251. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade: Oliveira Vian- os homens e toda a sociedade, sob a formulação que tinha como um de seus principais eixos a criação do
na entre os intérpretes do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005. p. 359. Homem Novo”. CANCELLI, Elizabeth. O Mundo da Violência: repressão e Estado policial na era Vargas
252. Sobre a ocupação dos intelectuais no Estado Novo, para além dos bacharéis: “O aumento considerável (1930 – 1945). Tese de Doutorado em História. São Paulo: USP, 1991. p. 160.
do número de intelectuais convocados para o serviço público provocou um processo de burocratização 254. Estruturada a partir de um marco sociológico de cunho estatístico, tão bem descrita e analisada por
e de “racionalização” das carreiras que pouco tem a ver com a concessão de postos e prebendas com DIETER, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de
que os chefes políticos oligárquicos costumavam brindar seus escribas e favoritos”. MICELI, Sergio. Janeiro: Revan, 2013.
Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920 – 1945). São Paulo: Rio de Janeiro: Difel, 1979. p. 132. 255. OLIVEIRA VIANNA, F. J. Instituições Políticas Brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 120.
112 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 113

modalidade de comportamento, ainda não objetivada nos costumes, pelos nacional. Assim como OLIVEIRA VIANNA, o endereço da crítica de AZE-
meios autoritários”256. Ou seja, seria possível se resumir este pensamento em VEDO AMARAL é o liberalismo (político). Aqui haverá o esforço para
um slogan: autoritarismo agora, democracia no futuro. a promoção de um estado de tensionamento das liberdades. Elas serão
Esta crítica ao liberalismo (a nosso juízo exclusivamente ao liberalismo po- admitidas sempre que forem subjugadas a um governo do tipo autoritário,
lítico) é uma característica que OLIVEIRA VIANNA compartilha com Azevedo como o próprio autor afirma260.
AMARAL. Tomando-se em consideração o discurso político criminal contem- Para AZEVEDO AMARAL, a liberdade, aquela de natureza “verdadeira”,
porâneo, cumpre verificar-se o campo analógico percorrido por determinados será identificada como o exercício “normal e sadio” das aptidões do indiví-
significantes, que conceberão futuramente o processo penal como instrumento duo, enquanto elemento componente do Estado, da razão nacional. O Estado
e as formas, como obstáculo à punição (leia-se garantia de impunidade). Segun- seria um organismo vivo que produziria a liberdade. Segundo AZEVEDO
do OLIVEIRA VIANNA, “esta certeza de impunidade que os nossos costumes AMARAL, não haveria liberdade sem Estado. À primeira vista, parece que es-
asseguram ao arbítrio corrompe tudo, mata no seu berço o cidadão e impede tamos a lidar com um fragmento da novilíngua orwelliana (editada em curiosos
a formação do verdadeiro espírito público. Eliminada que seja dos costumes parologismos como liberdade é escravidão). Afirmará o pensador que nenhum
essa certeza da impunidade as liberdades civis estarão asseguradas”257. Ques- indivíduo considerado “normal” poderia sentir impulsos que o levassem ao exer-
tiona-se: há quanto tempo a política criminal – desde o pensamento político cício da liberdade contra o funcionamento do organismo coletivo (sociedade). A
brasileiro (ou melhor, desde suas matrizes autoritárias) faz emergir crises que explicação oferecida pelo autor, em uma justificativa nitidamente caracterizada
acabam servindo como significantes para a legitimação do sistema penal? Em pelo positivismo sociológico é a de que o indivíduo desempenha o seu papel
outras palavras, note-se como o discurso da impunidade atravessa nosso período que é previamente definido pelas diretrizes do sentido social261.
considerado (formalmente) democrático, desde as matrizes autoritárias do pen- Interessante registrar-se que AZEVEDO AMARAL concebia a con-
samento político brasileiro, penetrando nas raízes mais profundas da “questão ciliação entre o Estado de tipo autoritário e a democracia (muito embora
criminal”, projetando cenários nos quais será possível acabar-se com a “falta de aquilo que o autor entenda por democracia seja muito distante daquilo que
punição” no país258. Esta semântica política da impunidade reunirá elementos efetivamente a constitui, ou seja, a democracia não pode se resumir a um
suficientemente fortes para mobilizar “afetos policialescos” para junto do pro- regime político em sentido formal). O autor definirá dois pensamentos polí-
cesso penal. A corruptibilidade das formas processuais penais é um fenômeno ticos ao mesmo tempo distintos e complementares: aquele dos democráticos
que é abraçado por esta espécie de afeto (o afeto autoritário), capaz de migrar do liberais e o dos democráticos autoritários. O que define a linha divisória e
pensamento político autoritário e repousar em discursos pseudodemocráticos demarcatória entre o Estado democrático autoritário brasileiro e o Estado
(uma espécie de proxenetismo constitucionalesco). totalitário, seja em sua vertente comunista ou fascista, reside na liberdade
Outro importante autor digno de menção, neste quadro do pensa- de espírito concedida aos indivíduos262.
mento autoritário brasileiro é AZEVEDO AMARAL259. Segundo este autor, Este Estado Democrático Autoritário de que trata AZEVEDO
O Estado autoritário será o único capaz de lidar com essa precária realidade AMARAL teria como deveres fundamentais a vigilância sobre a organiza-
256. OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Conselho Editorial ção social em suas finalidades mais básicas. A tarefa do poder público será
do Senado Federal, 1999. p. 448.
257. OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Conselho Editorial 260. “Como acima dissemos, no Estado totalitário não pode haver problema da liberdade. Esta cessa de
do Senado Federal, 1999. p.503. existir para o indivíduo, como consequência lógica da sua incorporação a um sistema político em que
258. “O vocábulo “impunidade” é mimético porque ele continuamente se reconstrói em cada situação, ajus- do supremo órgão do Estado procedem exclusivamente as deliberações e os atos de vontade executiva
tando-se “à conveniência, à vontade e à posição de poder de (dos) vários participantes” do drama moral que orientam o dinamismo nacional e aplicam as suas energias para as finalidades coletivas, julgadas
contido na interação dita “desviada” e tornada pública, e é polissêmico porquanto possui ele várias convenientes pelo único arbítrio da razão”. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autori-
“(des)serventias”, todas úteis à máquina infernal que é o sistema penal, porque é justamente quando tário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 143.
algo não serve “para nada, (que ele) serve profundamente para qualquer coisa”. GENELHÚ, Ricardo. 261. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil,
Do Discurso da Impunidade À Impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da 2002. p. 148.
democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 32. 262. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil,
259. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil, 2002. 2002. p. 153.
114 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 115

averiguar o surgimento de perigos que colocariam o Estado sob ameaça263. O do autoritarismo não delimitar as suas barreiras de uma maneira estanque. A
primeiro contorno assumido pela liberdade, nesta modalidade de Estado, é mesma pretensa obscenidade pode ser arte ou pode ser caso de polícia, como
aquele da sua limitação. Na democracia liberal, dirá AZEVEDO AMARAL, a sustenta o autor. Vimos anteriormente como o fascismo requer certa plasti-
liberdade aparecerá limitada pela liberdade dos demais indivíduos. Contudo, cidade. Um bom discurso autoritário não pode estabelecer limites rígidos. O
sobre tais direitos individuais emerge o bem coletivo, que não pode ser obs- bom discurso autoritário é aquele que cria as próprias fronteiras, que elege suas
taculizado por nenhum interesse individual264. Com alguma engenhosidade principais vítimas e que define – jamais peremptoriamente – seus valores.
discursiva, AZEVEDO AMARAL trata de compatibilizar – ao menos neste Não podemos finalizar nossa menção ao pensamento de AZEVEDO
nível político – as liberdades constitucionalmente previstas à realidade do AMARAL sem ao menos mencionar que em sua obra – assim como nas dos
Estado autoritário. Desta maneira, argumenta, apesar de aparentemente a demais pensadores comprometidos com esta mesma visão nacional brasileira
Constituição oferecer certo ar de precariedade aos direitos fundamentais nela – aparece algo que será fundamental para a ressignificação pelas quais passa o
previstos (chamados de liberdades), uma vez que poderiam ser compreendidos discurso processual penal: a questão emergente da segurança. Como fizemos
como dependentes dos interesses coletivos da sociedade, esta fragilidade seria referência no início deste tópico, há determinados percursos, movimentos, ou
meramente ilusória. Afirma AZEVEDO AMARAL que o Estado autoritário ainda, deslocamentos assumidos pelo processo penal brasileiro. Nenhum deles,
não restringe liberdades, mas tão somente “adapta” o exercício das atividades atualmente, é tão forte e significativo quanto o discurso da segurança. Por hora,
individuais de cada um dos indivíduos de forma que não possa comprometer basta considerar que se acaba exigindo, do processo penal, o exercício de garan-
o “funcionamento eficiente da organização nacional”265. tia da segurança pública, o que solapa, por assim dizer, qualquer possibilidade de
Exemplificativamente, o autor destaca que a liberdade de pensamento o processo penal exercer limitações ao poder punitivo. Também devemos deixar
não pode ser igual para todos. Esta liberdade teria a sua variação condicionada muito claro que o conceito de instrumentalidade do processo penal, como de-
à capacidade cultural de cada um. Nas palavras de AZEVEDO AMARAL: senvolvido genealogicamente em seus compromissos autoritários, exercerá uma
“um rabiscador de desenhos obscenos é um caso de polícia. Um grande artista potência política deveras profunda na acomodação de inúmeros significantes
no exercício das prerrogativas do espírito não pode submeter a sua inteligência arraigados, tanto no imaginário jurídico, quanto na operatividade prática do
criadora e as formas peculiares da sua estesia aos limites traçados pelas injunções sistema, que corresponde a uma gestão da criminalidade nas mesmas linhas
do pudor”266. Em termos de política criminal, sabemos todos que uma política da polícia. Afirmará AZEVEDO AMARAL que “a felicidade do indivíduo e a
autoritária não prescindirá desta seletividade inerente à toda distinção entre segurança da coletividade entrelaçam-se em sua dependência indissolúvel”267.
as ações humanas, assim como a separação estereotipada entre determinadas Através desta afirmação, encontramos dois elementos significativos para serem
classes de indivíduos. Usuário ou traficante de drogas, empresário de sucesso considerados. O primeiro deles, a relação notória entre a forma de conheci-
ou criminoso financeiro, etc. As linguagens autoritárias depositam justamente mento concebida pelas chamadas “sociedades de segurança”, parafraseando aqui
nas mãos de seus operadores os critérios definidores da atração dos sujeitos FOUCAULT268. Estamos no campo da economia política, do liberalismo, sem
para junto do sistema de justiça criminal. É perceptível e muito característico dúvida. E, como categoria conatural a este modo de pensar (que atua através
dos dispositivos de segurança e tem como alvo a população) teremos o utilita-
263. “No Estado autoritário e nacional do tipo instituído no Brasil pela nova Constituição, o problema da li-
rismo, que ao fim acaba definindo a morfologia da economia política liberal. O
berdade aparece com aspectos intensamente diferentes do que se passa no totalitarismo e no caso da de- utilitarismo criará os “modos de ser” do pensamento econômico e dará forma
mocracia liberal. O primeiro ponto a considerar-se decorre das características essenciais da concepção
ideológica de uma organização estatal da categoria do atual Estado brasileiro”. AZEVEDO AMARAL, não apenas ao sistema de justiça penal moderno, como também desaguará na
Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 145.
264. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil, punitividade biopolítica269. A categoria “segurança”, assim como a liberdade,
2002. p. 147.
265. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil, 267. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil,
2002. p. 147. 2002. p. 159.
266. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil, 268. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
2002. p. 155. 269. O’MALLEY, Pat. Justiça Biopolítica. In GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; FRANÇA, Leandro Ayres;
116 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 117

poderia ser muito bem descrita como um “mecanismo liberógeno”, isto é, que que também assina a virulenta exposição de motivos do Código de Processo
sob a premissa da mais ampla liberdade, exige controle e intervenção270. Penal. Francisco CAMPOS é o grande articulador do pensamento autoritá-
No pensamento de AZEVEDO AMARAL, a autoridade corresponde rio brasileiro, sobretudo nas operações legiferantes. Foi ministro da justiça
a uma expressão da vontade coletiva, que forçará os impulsos individuais a no período varguista e promoveu uma série de modificações legislativas, no
permanecer dentro de determinados limites. Percebemos claramente aqui Brasil. Além disso, após o golpe de 64, elabora o ato institucional nº 1. Foi
uma linha de argumentação que é tributária e fidedigna do pensamento liberal também o primeiro Ministro da Educação do Brasil, em 1931.
neoclássico, uma punitividade baseada no modo de produção capitalista271, CAMPOS é autor de diversas obras, possuindo uma vasta produção277.
que encontrará na prisão sua forma visível de expressão272. A justificativa da Talvez se possa aplicar sobre Francisco CAMPOS as mesmas considerações
pena ou, no caso de AZEVEDO AMARAL, função da autoridade, é justa- tecidas por CORDERO a despeito de MANZINI: tratava-se de um hard-
mente frear os estímulos do homem, assemelhando-se em muito à descrição worker278. Francisco CAMPOS produziu obras políticas e também discursos
de ROMAGNOSI da pena como contro spinta273 (isto é, a pena seria pensada voltados ao processo penal, que nos interessam de maneira mais imediata.
como um contra estímulo ao impulso em delinquir). O que mais nos interessa Neste vasto conjunto de produção bibliográfica, destacam-se obras polí-
no momento é a formulação de AZEVEDO AMARAL, afirmando que tais ticas, escritos, entrevistas, pequenos artigos e exposições de motivos. Não
impulsos deverão ser mantidos dentro de níveis compatíveis com a “segurança podemos afirmar que estamos diante de uma obra sistematizada dedicada
estrutural do sistema”274. Ou seja, a segurança será concebida como finalidade seja ao processo penal, seja ao direito lato sensu. Isso dificulta um pouco
última de um sistema de autoridade. Assim, a estabilidade sistêmica – para a tentativa para se encontrar os “nós” de seu pensamento, especialmente
adotar formulações mais contemporâneas e não menos autoritárias (citamos difuso nas questões concernentes ao direito processual penal. Como ponto
aqui especialmente o funcionalismo jurídico-penal275) passa a ser o objetivo de partida, começaremos como seu discurso político.
finalístico de um sistema que deverá tolerar, na medida do possível e desde
que necessário, os direitos fundamentais dos sujeitos. 1.5.2. FRANCISCO CAMPOS279 E O PENSAMENTO POLÍTICO
O último autor a ser examinado neste curto introito sobre o autorita- AUTORITÁRIO: MITO E MASSA
rismo político brasileiro, e que foi deixado em último lugar por uma questão Pode-se dizer, de acordo com Jarbas MEDEIROS, que o pensamento
estratégica, é Francisco CAMPOS. Este sujeito será literalmente, aquele que
Filosofia do Direito (Belo Horizonte, 1918), deixa claro todo seu repúdio a uma deontologia do Direito,
assina, parafraseando DERRIDA, a violência276. Obviamente este é o autor fazendo apelo tanto ao positivismo naturalístico quanto à orientação cientificista, delegando à filosofia
jurídica um papel meramente fenomenológico”. WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no
Brasil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 175.
RIGON, Bruno Silveira. Biopolíticas: estudos sobre política, governamentalidade e violência. Curitiba: 277. Segundo MEDEIROS, a obra de Francisco CAMPOS poderia ser classificada em três fases: “a) o período
iEA Academia, 2015. Sobre a guerra contemporânea e a necropolítica Cf MBEMBE, Achille. Necropo- que vai de seu discurso junto à herma de Afonso Pena, quando Campos era ainda acadêmico de direito,
lítica. São Paulo: n-1 Edições, 2018. isto é, por volta de 1914 até o seu discurso de posse como Ministro da Educação e Saúde do Governo
270. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Revolucionário Provisório, ao final de 1930; b) deste último discurso até a elaboração da Constituição de
271. Sobre a relação entre punição e sistema econômico recomendamos RUSCHE, Georg; KIRCHHEI- 1937 e da reforma dos Códigos, e que vai de 1930 a 1942; c) da entrevista que concedeu a O Jornal a 3 de
MER. Punição e Estrutura Social. Rio de Janeiro: Revan, 2004 ; Cf MELOSSI, Dario; PAVARINI, março de 1945, quando procede a uma avaliação crítica do Estado Novo que então chegava ao fim, até seu
Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário. Rio de Janeiro: Revan, 2006; FOU- último parecer, de setembro de 1968”. MEDEIROS, Jarbas. Introdução ao Estudo do Pensamento Político
CAULT, Michel. Vigiar e Punir. 20 ed. Petrópolis: Vozes, 1987. Autoritário Brasileiro 1914/1945. In Revista de Ciência Política. n. 17. v. 1. Rio de Janeiro, 1974. p. 68.
272. No Brasil, importante estudo sobre o surgimento da prisão e dos estudos penitenciários pode ser encon- 278. CORDERO, Franco. Como adverte Cordero sobre Manzini: o autor é um hardworker, da casuística à
trado em MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da Razão Punitiva: nascimento da prisão no Brasil. Rio história jurídica. Cordero considera Manzini reacionário que para desmentir a presunção de inocência
de Janeiro: Forense Universitária, 2011. cita a prisão cautelar, o que confirmaria uma ‘presunção de culpabilidade’. Assim, o processo se asse-
melharia à máquina descrita por Kafka na ‘Colônia Penal’: ainda que existam garantias, é o acusado
273. ROMAGNOSI, Giandomenico. Genesis del Derecho Penal. Bogotá: Temis, 1956. presumivelmente culpado, ‘segundo a ordem normal das coisas’, uma perigosa tutela da liberdade é
274. AZEVEDO AMARAL, Antonio José de. O Estado Autoritário e a Realidade Nacional. EbooksBrasil, pensável somente como efeito marginal; na alternativa entre conclusões falíveis, melhor que os juízes
2002. p. 155. condenem. CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p. 05.
275. No quadro de uma compreensão dos direitos fundamentais “desontologizada”, apresentando-os como 279. “Além de ser praticamente autor único da Constituição de 1937, esteve envolvido na redação dos Atos
meros desenvolvimentos do processo de diferenciação social Cf LUHMANN, Niklas. I Diritti Fonda- Institucionais 1 e 2 – consolidando o golpe de 1964 -, além de tecer importantes sugestões para a Cons-
mentali Come Instituzione. Bari: Dedalo, 2002. tituição de 1967. Frases célebres como “governar é prender” ou “o povo não precisa de governo, precisa
276. “Francisco Campos foi o protótipo do jurista que sempre colocou seu saber enciclopédico a serviço das de curatela” marcaram sua trajetória intelectual e sua vida pública, alocando seu pensamento nos qua-
forças mais retrógradas e mais autoritárias que governaram o Brasil (mentor da Constituição ditatorial dros do chamado “pensamento autoritário””. SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Francisco Campos:
de Vargas e do Ato Institucional nº 1 do golpismo militar de 1964). Em sua tese Introdução Crítica à um ideólogo para o Estado Novo. In Locus: revista de história. v. 13. n. 2. Juiz de Fora, 2007. p. 32.
118 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 119

de Francisco CAMPOS é atravessado por quatro pontos: a visão apocalípti- O mito segundo CAMPOS é impossível de se refutar, (seguindo de
ca de sua época, a compreensão da sociedade moderna como uma sociedade perto o pensamento de SOREL). Isto pelo fato de que ele desempenha um
de massas, uma concepção autoritária e antiliberal de Estado e uma apologia papel paradoxal, consistente em dois valores ao mesmo tempo contraditórios:
das elites280. Para MEDEIROS, o posicionamento político e doutrinário de o valor de verdade para aqueles que acreditam no mito e o valor de artifício,
CAMPOS envolvia tanto o conservadorismo quanto a aspiração de moder- como uma verdadeira abstração técnica, para todos aqueles que nele reconhe-
nização institucional281. cem a sua artificialidade. Desta maneira, a sofística atual teria dois critérios
Talvez o grande escrito que possa identificar a maneira como CAMPOS de verdade: a verdade que se reconhece como tal e aquela que, mesmo não
constrói o seu pensamento seja A Política e o Nosso Tempo, uma conferência sendo verdade, funcionará indefinidamente ocupando o seu posto287. Tem-se
pronunciada na Escola de Belas Artes em 1935. aí, portanto, a “duplicidade do mito soreliano”288.
Vivendo em uma época de transição – é desta forma que CAMPOS Para CAMPOS, será o irracional o instrumento de integração política
concebe aquela fase do Brasil – se viveria também em um período no qual total. O mito será a sua expressão mais adequada, mediante a utilização do
predomina a sofística moderna, eliminando a substância de qualquer valor, inconsciente coletivo para ser controlado através de ações políticas. A vida
inclusive o “valor de verdade”282. Haveria se constituído, portanto, uma “teo- política, portanto, corresponde ao campo da irracionalidade e da ininteli-
logia política”, que traria como conteúdo a afirmação de que seu dogma deve gibilidade. A integração total das massas, para CAMPOS, é insuscetível de
ser tido por verdadeiro. Será possível verificar-se, nesse escrito, grande apoio ser realizada a não ser através do apelo às forças irracionais. O Estado, nesse
intelectual de CAMPOS em SOREL283, passando ao exame de sua obra284. ínterim, configura-se como “a projeção simbólica da unidade da Nação”289,
Para SOREL, apenas a revolução é que poderia mudar as forças econômicas sendo tal unidade conquistada através do uso das forças irracionais, e não
e políticas. Para CAMPOS, a imagem da revolução, especialmente aquela de da razão. Quanto maiores as massas, maior a necessidade de se socorrer dos
linhagem marxista, reduziu a complexidade social a uma luta de classes. Ela mitos, capazes de mobilizar as forças irracionais para a agregação. Esta inte-
servia como fio condutor para se postular uma revolução. A luta de classes, gração mediante o recurso ao mito é total, transformando-se a política em
nas palavras de CAMPOS, seria dotada de forte carga emocional, capaz de teologia290. Não há espaço para integrações relativas, devendo ela ser total.
polarizar os sentimentos de luta e violência, que estariam ancorados na na- Esta teologia política é o resultado da cultura de massa, já que os processos de
tureza humana285. Entretanto, esta imagem da luta de classes não passaria de integração política somente podem resultar de instrumentos encontrados com
um mito. E, portanto, sentido algum existiria em indagar ou questionar o dominância na cultura291. E, assim, esta integração apenas pode ser obtida
“valor de verdade do mito”. O valor do mito se constitui através de seu “valor através do recurso ao mito (mobilização das forças irracionais). Entretanto,
de ação”. Este “valor de ação” depende da crença na verdade do mito, pois o não basta ser um mito qualquer: somente o mito da violência pode mobilizar
mito que se sabe falso deixa de ser mito para se constituir como uma mentira. tais paixões irracionais, posto que é justamente na violência que se deposi-
Assim, para CAMPOS, apenas quando o valor de verdade do mito é aceito tam os mais elementares estados da alma292. Quanto mais valência possuam
enquanto tal é que adquire valor de ação ou valor pragmático286. as forças irracionais, mais forte o mito. Será justamente no mito da Nação
que se encontrarão grande parte destes elementos arcaicos responsáveis pela
280. MEDEIROS, Jarbas. Introdução ao Estudo do Pensamento Político Autoritário Brasileiro 1914/1945. In possibilidade de integração política da massa.
Revista de Ciência Política. n. 17. v. 1. Rio de Janeiro, 1974. p. 86-87.
281. MEDEIROS, Jarbas. Introdução ao Estudo do Pensamento Político Autoritário Brasileiro 1914/1945. In
Revista de Ciência Política. n. 17. v. 1. Rio de Janeiro, 1974. p. 71. 287. Nesse sentido, se poderia falar de uma história das veridições, consoante lembra FOUCAULT, Michel.
282. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 14. Obrar Mal, Decir la Verdad: la función de la confesión en la justicia. Buenos Aires: Siglo Veitiuno, 2014.
283. FERNANDES, Pádua. Setenta Anos Após 1937: Francisco Campos, o Estado Novo e o Pensamento 288. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p.17.
Jurídico Autoritário. In Prisma Jurídico, n. 6. São Paulo, 2007. p. 353. 289. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 22.
284. SOREL, Georges. Reflexões Sobre a Violência. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 290. Note-se claramente a utilização da expressão schmittiana “teologia política”.
285. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 15. 291. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 24.
286. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 16. 292. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 25.
120 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 121

Segundo CAMPOS, as massas se encontram sob o fascínio da perso- pelos processos irracionais. Como consequência, ocorre a transformação
nalidade carismática. Quanto mais volumosas e ativas as massas, maior a da democracia, antes um regime liberal, em estado integral ou totalitário,
necessidade de a integração política se fazer sob o signo da ditadura da vontade deslocando, como corolário, o centro das decisões políticas da esfera inte-
pessoal: “o regime político das massas é o da ditadura”293. A única possibilida- lectual para o plano irracional ou “ditatorial” da vontade. Desta maneira,
de conferida à manifestação de vontade da massa é através do plebiscito, isto observa-se, nos regimes democráticos, o aumento da zona de expurgo das
é, do voto-aclamação, não o regime da escolha. O voto democrático consiste massas de opinião, que são cada vez maiores299.
apenas em “uma expressão relativista e cética de preferência, de simpatia, do É a partir desta passagem que CAMPOS tratará de se posicionar em
pode ser que sim, pode ser que não”294. relação à democracia e ao Estado totalitário. Afirma CAMPOS que a de-
É nesse momento que CAMPOS construirá a perspectiva de separação mocracia se viu obrigada a adotar a técnica do Estado totalitário, no escopo
entre democracia e liberalismo. Para CAMPOS, o sistema democrático-libe- de salvar as suas aparências liberais. Nesse sentido, a democracia acaba por
ral (note-se que a democracia, para o autor, se confunde com o liberalismo absorver o conteúdo totalitário, fundindo duas visões do mundo em uma
político), funda-se na circunstância de serem as decisões políticas o resultado apenas. A crise do liberalismo na democracia, de acordo com CAMPOS,
de procedimentos racionais de deliberação, como se ela consistisse em um acabou por gerar o totalitarismo e não o contrário (a crise da democracia).
produto do encontro de ideias, como um conflito forense: “haveria aqui toda O princípio básico do liberalismo era o de colocar as questões essenciais no
uma página a escrever sobre a influência da mentalidade forense e da sofística fórum do debate público. Enquanto as questões a serem deliberadas no Par-
jurídica na tentativa de dissimulação ou subutilização da substância de irracio- lamento eram de natureza simples, as novas circunstâncias da modernidade
nalidade que constitui, de modo específico, a medula do processo político”295. tornaram o sistema de deliberação pública das decisões insustentável, devido
As categorias que imantam o liberalismo criaram um universo político à tecnicidade e à complexidade destas novas questões. Assim, o Parlamento
que se assemelharia ao mundo forense, como se a decisão política fosse o re- se apresentaria, na modernidade, despido de qualquer função.
sultado de um processo exclusivamente intelectual. Este registro explicaria, Outro importante texto onde se pode analisar o pensamento político
por exemplo, a tripartição dos poderes. Entretanto, há, no processo demo- de CAMPOS é uma entrevista concedida em 1937, intitulada Diretrizes
crático, um inegável elemento de irracionalidade, que se consubstanciaria, do Estado Nacional 300. Neste texto, CAMPOS afirma que a Revolução de
em seu grau máximo, na formulação da vontade geral através do voto296. 1930 somente havia se consumado, com efetividade, em 10 de novembro de
O liberalismo tentara dissimular a irracionalidade do processo político. Na 1937 (quando promulgada a Constituição). Para CAMPOS, a Constituição
sociedade de massas, este processo de ocultação vem à tona, desmascaran- de 1934 acabou por repristinar velhos ideários que a Revolução desejara
do esta grande manobra. A fim de conservar este processo, a democracia exterminar, perdendo-se a oportunidade de uma renovação política. Assim,
recorreu ao dogma da racionalização do sistema político297. A sociedade de os mesmos problemas políticos persistiam.
massas, provocando a crise da democracia, entrou em contradição com as
O que CAMPOS definira por “retorno à normalidade” não passava de
premissas liberais, que já não mais poderia sustentar. A crescente tensão
um eufemismo, aceitando a incompatibilidade entre a realidade brasileira e
entre os métodos liberais da democracia “e as forças a que se recusa o uso
as desgastadas fórmulas jurídicas liberais, a incapacidade destes textos em se
de instrumentos democráticos”298 produz a possibilidade de as instituições
adaptar ao Brasil, a divergência insuperável entre a teoria e a situação obje-
democráticas se socorrerem dos processos de integração política conduzidos
tiva. Os velhos erros e vícios se repetiam e eram tão conhecidos que eles não
293. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 28. se resumiam ao conhecimento pela elite, mas também haviam se estendido
294. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 28.
295. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 30. 299. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 38.
296. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 31. 300. Todos os argumentos desenvolvidos neste texto são repristinados no texto Diretrizes Constitucionais do
297. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 36. Novo Estado Brasileiro. Cf CAMPOS, Francisco. Diretrizes Constitucionais do Novo Estado Brasilei-
298. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 38. ro. In Revista Forense. v. 73. Rio de janeiro: Forense, 1938. p. 13 – 30.
122 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 123

para as multidões301. A solução para ultrapassar estes obstáculos era o reforço dependentes, assim, da cultura e do grau de civilização de um povo307.
do Executivo, já que o Brasil vivia, durante mais de quarenta anos, “em um Fundamentalmente, CAMPOS observa o caráter negativo das consti-
regime constitucional teórico e em estado de inconstitucionalidade crôni- tuições. Elas consagravam unicamente os limites do governo, campo próprio
ca”302, governado por instituições caducas. das liberdades individuais. Estas constituições se limitavam a estabelecer e
Neste texto CAMPOS retoma o problema do “mito do sufrágio uni- organizar a “luta dos cidadãos contra o poder”308. O núcleo das constituições
versal”. Para o autor, as grandes questões, no passado, podiam ser debatidas era, portanto, a definição dos limites do poder, ou seja, o estabelecimento
na esfera pública (como as liberdades públicas, os direitos políticos, etc). Tais dos direitos e garantias individuais. Esta forma de democracia encontra na
questões a todos interessavam, podendo, assim, integrar a opinião pública. No história um modelo de indivíduo que se afirmava, unicamente, pela negação
mundo contemporâneo, escreve CAMPOS, tais questões restaram por supera- do Estado309. As revoluções industriais, técnicas e intelectuais alteraram o
das. Questões financeiras, econômicas, comerciárias, e, sobretudo as questões quadro meramente negativo da democracia. As liberdades negativas eram
técnicas, pela sua própria natureza, seriam incapazes de fazer eclodir no indiví- insuficientes para atender às necessidades do homem moderno. Desta forma,
duo as emoções. Mas ao mesmo tempo, são estas as questões que passaram ao o conceito de democracia se tornara anacrônico e inadequado à nova vida
primeiro escalão do governo303. O aumento da complexidade do mundo conduz social. Haveria, portanto, que se proceder a uma inversão do conceito de
à necessidade de as decisões a serem tomadas serem pautadas pela técnica. Por- democracia310. Nas palavras de CAMPOS:
tanto, são insuscetíveis de debate público e de escolha pelo povo. Este mesmo “o problema constitucional não era mais o de definir negativamente a esfera
argumento é utilizado por CAMPOS para sustentar o anacronismo do Parla- da liberdade individual, o de organizar o poder ao serviço dos novos ideais
mento. Afirma CAMPOS que “no século passado, o papel do Estado era, antes da vida. Não era mais o caso de se definir de modo puramente negativo os
de tudo, negativo: intervir o menos possível”304. O Parlamento era um órgão direitos do indivíduo, mas de atribuir aos indivíduos os direitos positivos
por força dos quais se tornassem acessíveis a eles os bens de uma civilização
exclusivamente político, despido de natureza técnica: sua função era controlar o eminentemente técnica e de uma cultura cada vez mais extensa e voltada para
governo e servir de órgão oficial da opinião pública. A legislação não se revestia o problema da melhoria material e moral do homem. Daí o novo aspecto
de grande complexidade. Em primeiro lugar, a opinião pública encontra novos de que vieram a revestir-se as novas cartas constitucionais. Elas perderam o
canais de manifestação, mais rápidos e que atingem um número muito maior caráter negativo e polêmico, assumindo, de modo eminente, caráter positi-
vo e construtivo. Na declaração de direitos, a parte negativa tende cada vez
de pessoas. Cambiaram, por igual, as funções do governo, passando a se tornar
mais a restringir-se, ao mesmo tempo que o conceito de poder ou do Estado
positivas. A legislação, de acordo com CAMPOS, “é hoje uma imensa técnica assume outra significação. O problema constitucional não é mais o de como
de controle da vida nacional, em todas as suas manifestações”305. prender e obstar o poder, mas o de criar-lhes novos deveres e aos indivíduos
Neste mesmo texto, CAMPOS se debruçará sobre o que denomina como novos direitos. O poder deixa de ser o inimigo para ser o servidor, o cidadão
deixa de ser o homem livre ou o homem em revolta contra o poder para ser
“evolução do conceito de democracia”306. A partir da conclusão de que o concei- o titular de novos direitos positivos e concretos, que lhe garantam uma justa
to de democracia é essencialmente indefinido, Francisco CAMPOS afirma que repartição dos bens da civilização e da cultura”311.
os valores implícitos em sua definição são historicamente voláteis e mutáveis,
Não sendo, portanto, mais o caso de se declarar direitos negativos, o
301. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 59. indivíduo teria a necessidade de que o Estado assegure direitos, serviços e
302. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 66.
303. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 77.
bens como o direito à atividade criadora, o direito ao trabalho, o direito à
304. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 81. qualidade de vida, o direito à segurança e o direito à educação, considerado
305. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 81-82.
306. “Para teóricos influentes como Francisco Campos (Ministro da Justiça e autor do texto da Constituição de 307. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 85.
1937), democracia significava um governo forte, um Estado profissionalizado, uma burocracia técnica, 308. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 85.
enfim, não haveria contradição entre um “governo democrático” nesta acepção e uma modernização auto-
ritária – que era o principal objetivo”. PAIXÃO, Cristiano. Direito, Política, Autoritarismo e Democracia 309. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 85.
no Brasil: da Revolução de 1930 à promulgação da Constituição da República de 1988. In Araucaria, 310. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 86.
Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades. v. 13. n. 23. Sevilla, 2011. p. 151. 311. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 86-87.
124 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 125

o mais importante de todos312. Portanto, se estes novos direitos é que con- tampouco de que o chefe do Executivo deva exercer o seu cargo por curto
figuram a essência da democracia, as instituições democráticas devem ser período de tempo317. A “máquina democrática” não teria relação com o
reformadas, a fim de poder lhes conferir efetividade. Assim, o Estado deve “ideal democrático”. Um regime não seria democrático pelo simples fato
ter um poder maior do que aquele respectivo ao modelo liberal, próprio de que existe uma organização de regras destinadas a colher ou consultar a
da democracia do século XIX. Como se pode observar, CAMPOS investirá vontade popular. O ideal democrático, para CAMPOS, reside na abolição
contra o voto secreto, contra o sistema de partidos, contra os Parlamentos, dos privilégios, na igualdade de oportunidades, na utilização, pelo povo, no
contra o Estado liberal e suas instituições313. sentido mais amplo possível, dos bens materiais e morais da civilização318. A
A seguir, passaremos à análise de outro ponto muito relevante do pen- transformação das instituições em peças dotadas de um caráter meramente
samento de CAMPOS, a sua compreensão de democracia. formal, mecanicista, são antíteses do espírito democrático. A Constituição
de 1937 é “de inspiração puramente democrática”319.
1.5.3. FRANCISCO CAMPOS: DEMOCRACIA FORMAL E Assim, seria necessário reintegrar o direito à liberdade individual na
DEMOCRACIA SUBSTANTIVA sistemática do Estado. CAMPOS, ao cuidar do liberalismo, afirmava que “a
Em uma entrevista concedida em 1938, intitulada Problemas do Brasil doutrina do Estado era uma doutrina do Estado sem Estado”320. Este Estado
e Soluções do Regime, CAMPOS se utilizará de uma distinção significativa em tinha unicamente a pretensão de defesa das liberdades individuais. Os valores
seu pensamento: a noção de democracia formal e democracia substantiva. sociais, materiais e morais da vida nacional não encontravam guarida. No
Para articular estes conceitos, torna-se vital compreender que para o autor, a Estado-Nação, por seu turno, seriam reconhecidos os direitos do povo, que
democracia é um conceito que deve se adequar aos novos tempos, não pos- limita os direitos e liberdades individuais, fazendo com que o bem público
suindo uma essência imutável. se torne pressuposto obrigatório de governo. Esta seria, assim, a “democracia
substantiva”, em regime de oposição à democracia formal. Desta maneira, o
Sugere CAMPOS que “a teoria liberal reivindica a exclusividade do
ideal democrático seria contraposto à “máquina democrática”321.
pensamento democrático”314, de maneira que se um regime político não
abraçar os princípios liberais, temos então, inevitavelmente, uma autocracia, Em defesa da Constituição de 1937 e do Estado Novo CAMPOS parti-
um ditadura. Segundo CAMPOS, isto seria falso. Do liberalismo surgiram rá para a conciliação da democracia com o autoritarismo: “o Estado brasileiro,
democracias deformadas. Assim, dá como exemplo a identificação da de- sendo democrático, é também autoritário, cabendo ao Presidente da Repú-
mocracia com o liberalismo, já que este seria, paradoxalmente, um regime blica a autoridade suprema, exercida em nome do povo e no interesse do seu
infenso aos interesses sociais, uma vez que nasceu do marxismo315. Segundo bem-estar, da sua honra, da sua independência e da sua prosperidade”322. Da
CAMPOS, “da guerra do Estado autoritário surgiu a democracia liberal, nova concepção de democracia, CAMPOS afirmará a restrição ao direito de
que deu origem ao comunismo”316. voto, visto como o “mito do sufrágio universal”323.
Para CAMPOS a essência da democracia se circunscreve ao fato Assim como AZEVEDO AMARAL, Francisco CAMPOS não enfrenta
de que o Estado é constituído pela vontade daqueles que se acham a ele a democracia e o totalitarismo/autoritarismo como fenômenos antitéticos.
submetidos. O fato de o Estado ser estruturado na vontade popular não Pelo contrário, afirmará que será justamente a crise do liberalismo que
induz à conclusão de que o sufrágio universal seja um sistema obrigatório,
317. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 115.
318. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 118.
312. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 88. 319. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 122.
313. MEDEIROS, Jarbas. Introdução ao Estudo do Pensamento Político Autoritário Brasileiro 1914/1945. In 320. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 123.
Revista de Ciência Política. n. 17. v. 1. Rio de Janeiro, 1974. p. 72-73. 321. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 123.
314. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p.114. 322. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 126.
315. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 114. 323. CIOTOLA, Marcello. O Pensamento Autoritário de Francisco Campos. In Direito, Estado e Sociedade.
316. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 115. n. 37. jul/dez, 2010. p. 93.
126 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 127

provocará o surgimento dos Estados totalitários324. Do ponto de vista de seu integralista, nem por isso deixamos de notar similar construto teórico jus-
pensamento político, o Estado totalitário seria uma derivação dos modelos tificacionista, ao referendar a separação entre autoritarismo e totalitarismo.
liberais em crise, o que, a princípio, permite verificar-se, no pensamento polí- Embora não negue que o integralismo brasileiro seria uma espécie do gênero
tico e autoritário brasileiro, uma constante reversibilidade entre autoritarismo fascismo, REALE afirma que o integralismo defendia a independência de
e democracia, marca indelével deste conjunto de pensadores aqui examinados. certas esferas de poder, que então, já não poderiam ser cooptadas e engo-
Convém questionar: por que autores como Francisco CAMPOS di- lidas pelo Estado327. Inegável, portanto, a simetria das justificativas entre
ferenciam autoritarismo do totalitarismo? Esta é uma pergunta que já fora REALE e os ideólogos autoritários como AZEVEDO AMARAL e OLI-
examinada anteriormente, e que surge como uma espécie de “naturaliza- VEIRA VIANNA. Contudo, pode-se dizer que assim como o fascismo, o
ção do autoritarismo” pela negação do totalitarismo. Segundo FAUSTO, integralismo representou um movimento que mobilizou as massas, diver-
esta dicotomização não se deu apenas em virtude de eventual influência do gindo, assim, do pensamento dos ideólogos autoritários, que operariam com
pensamento político europeu sobre autores como OLIVEIRA VIANNA ou um efeito “desmobilizador”. O movimento integralista foi, em realidade, um
AZEVEDO AMARAL, mas se impôs, igualmente, por eventos políticos325. partido, operando com milícias, utilizando-se, portanto, da mesma estratégia
Tratava-se, especialmente por contingências práticas, de justificar o governo do fascismo italiano – o squadrismo. Além disso, os ideólogos autoritários se
do então presidente-ditador Getúlio VARGAS perante movimentos extre- manifestavam contra o atual sistema partidário, que representava a permanên-
mamente aproximados ao modelo fascista, como o integralismo (Aliança cia dos vícios brasileiros que permitiam a degeneração da política no Brasil,
Integralista Brasileira), capitaneado por Plínio SALGADO326. Inegável que ou seja, a manutenção dos privilégios próprios do liberalismo, em grande
Getúlio VARGAS, para alçar-se ao poder, contou com o apoio dos integralis- medida interpretado como o sintoma da reinante oligarquia. Além disso, no
tas, com os quais guardava muitos pontos em comum. Mas, ao fim, Getúlio pensamento dos ideólogos autoritários, verifica-se certo “cientificismo”, ou
VARGAS não encarregou os integralistas de nenhuma pasta, de nenhum seja, buscavam compreender o fenômeno brasileiro a partir de determinadas
cargo ministerial. Ainda segundo FAUSTO, o governo brasileiro não defen- teorias que marcavam o espaço das ciências humanas da época. Pode-se, neste
dia abertamente os regimes políticos nazifascistas, justificando o poder e a ponto, identificar distintos autores responsáveis pela tentativa de construção
organização do Estado mediante o recurso a uma democracia que continha de um pensamento cientificista junto aos autoritaristas, como SPENCER,
dentro de si o autoritarismo. Nesse ponto, talvez o autor que maior influência LE PLAY, GOBINEAU, dentre outros.
tenha exercido – ao menos no pensamento de Francisco CAMPOS – seja Carl SANTOS detecta a presença, nos ideólogos da década de 30 no
SCHMITT. E então, se de um lado o governo getulista não se encarregava Brasil, da eclosão do “constitucionalismo antiliberal”. Segundo o autor, a
de apoiar, através de notas oficiais os governos nazista e fascista, notadamente classificação como “autoritarismo” teria contaminado o seu aparecimento,
os pensadores que deram suporte filosófico-político ao governo de Getúlio considerando o seu operar distinto daquele da Primeira República328. Se-
VARGAS, se valeram de autores que ajudaram a construir, do ponto de vista gundo SANTOS, o problema encontrado na definição de autoritarismo
filosófico-jurídico-político, tais regimes. seria o seu acento ideológico (como se houvesse um pensamento pós-ideo-
Muito embora a doutrina classifique Miguel REALE como um lógico!329). As características desta forma de pensar consistiriam em: a) uma
crítica ao direito, à política e às instituições liberais; b) uma vinculação à
324. “No fim de algum tempo, adotada pela democracia a técnica do Estado totalitário, à qual ela foi forçada a
recorrer suas aparências liberais, a democracia acabará por assimilar o conteúdo espiritual do adversário, 327. FAUSTO, Boris. O Pensamento Nacionalista Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 17. Para
fundindo-se dessa maneira em um polo único duas concepções do mundo, tão aparentemente inconciliá- um uso em larga escala de premissas integralistas, travestidas de falso discurso jurídico-democrático Cf
veis ou antitéticas. Aliás, a crise do liberalismo no seio da democracia é que suscitou os regimes totalitá- REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
rios, e não estes aquela crise”. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 39. 328. SANTOS, Rogério Dultra. Francisco Campos e os Fundamentos do Constitucionalismo Antiliberal do
325. FAUSTO, Boris. O Pensamento Nacionalista Autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 11. Brasil. In Dados, Revista de Ciências Sociais. v. 50. n. 2. Rio de Janeiro, 2007. p. 282.
326. Sobre o integralismo Cf CHASIN, José. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no ca- 329. Deve-se registrar que a ideologia do fascismo se apresentava como anti-ideológica. GENTILE, Emilio.
pitalismo hiper-tardio. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1978; especialmente TRINDADE, Hélgio. A Itália Fascista: do partido armado ao Estado totalitário. In GENTILE, Emilio; DE FELICE, Renzo. A
Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. São Paulo: DIFEL: Porto Alegre: UFRGS, 1979. Itália de Mussolini e a Origem do Fascismo. São Paulo: Ícone, 1988. p. 28.
128 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 129

soberania como decisão personificada; c) um modelo de democracia que das forças sociais permitiu o florescimento de uma nova autoridade, que geraria,
se realiza através da mobilização das massas por um César; d) uma reorga- ao menos idealmente, um perigo. A homogeneidade das massas se dissolveria
nização do Estado fundamentada na “administrativização” da legislação330. em uma infinidade de mitos, como no caso do politeísmo. O Parlamento, con-
O grande representante desta forma de pensar seria Carl SCHMITT, res- finado em sua função de discutir, seria incapaz de oferecer mais do que debates
ponsável por dar um conteúdo menos vago do que “Estado autoritário” na a despeito das tendências antiparlamentárias. Eis aí exposta toda a limitação
tentativa de definição de uma democracia jurídico-constitucional que deu do Parlamento, para SCHMITT. Como visto CAMPOS igualmente travando
suporte às ditaduras331. Seja como for, o “constitucionalismo antiliberal”, discussão com a obra de SOREL, parte da premissa da irracionalidade das
nos termos que SANTOS sustenta, não dá conta dos vínculos fortes e ne- massas, como já referido em tópico antecedente.
cessários entre democracia e regime político, o que, com efeito, especificaria Além de compartilhar o antiliberalismo político, ambos os autores
certa forma do exercício da dominação política em Estados autoritários. afirmariam a perda da legitimidade do parlamento na sociedade de massas,
O que mais interessa é justamente a aproximação entre SCHMITT decretando a falência do racionalismo próprio do sistema democrático, que
E CAMPOS. Em um primeiro momento, ambos os pensadores compar- seria derrotado pela emergência desta nova sociedade336. Mas o grande ponto
tilham diversas ideias acerca de categorias como democracia e liberalismo. que merece destaque é que em ambos os autores a nova faceta jurídica da
Para SCHMITT, o processo de despolitização e neutralização proporcionado sociedade de massas torna dispensável a formatação liberal da democracia.
pelos avanços científicos acabaria por encobrir a realidade política concreta, o De acordo com SCHMITT, toda a ditadura contém uma exceção a
que inevitavelmente equivaleria à colocação em crise das instituições liberais. uma norma, o que não equivale a dizer que se trata de uma negação causal
A política que se poderia exercer, na modernidade, seria aquela da decisão, de qualquer uma das normas. Mediante a ditadura se nega a norma cuja do-
fundada na exceção332. O direito liberal apenas conseguiria operar a partir minação deve ser assegurada na realidade político-histórica337. Desde o ponto
da normalidade, sendo que, então, a noção de soberania perderia qualquer de vista filosófico-jurídico, a essência da ditadura está na possibilidade geral
capacidade decisória. Lembremos que CAMPOS designa a Constituição de da separação das normas de direito daquelas normas que realizam o direito.
1934 como um “retorno à normalidade”, e à época de então, o primado da Assim, a ditadura é convertida na supressão da situação jurídica em geral,
sofística (incapacidade de se estabelecer e definir valores)333. porque significa a dominação de um procedimento interessado unicamente
Tanto CAMPOS como SCHMITT identificarão na figura do mito um em um resultado concreto. “A guerra contra o inimigo exterior e a repressão
aspecto fundacional em sua habilidade de reformar as instituições políticas334. a uma sublevação no interior não constituiriam estados de exceção, senão
Em um ensaio de 1923, SCHMITT analisará a figura do mito, percorrendo, o caso ideal normal no qual o direito e o Estado revelam a sua natureza fi-
assim como CAMPOS, a obra de SOREL335. SCHMITT chegará à conclusão nalista intrínseca com uma força imediata”338. A ditadura, assim, consistiria
de que o mito é a expressão mais poderosa da perda do racionalismo do Parla- na mais plena realização do direito, daí a compatibilidade, no pensamento
mento. A descoberta de alguns autores (dentre eles SOREL) da irracionalidade de SCHMITT, entre direito e ditadura. Trata-se de um preceito previsto na
330. SANTOS, Rogério Dultra. Francisco Campos e os Fundamentos do Constitucionalismo Antiliberal do
Constituição, sendo ao mesmo tempo antiliberal e antidemocrático.
Brasil. In Dados, Revista de Ciências Sociais. v. 50. n. 2. Rio de Janeiro, 2007. p. 282.
331. SANTOS, Rogério Dultra. Francisco Campos e os Fundamentos do Constitucionalismo Antiliberal do
De forma similar CAMPOS justificaria como democrática a Constituição
Brasil. In Dados, Revista de Ciências Sociais. v. 50. n. 2. Rio de Janeiro, 2007. p. 283. de 1937, baseando-se no já referido conceito de democracia substantiva. Como
332. SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 07-08.
333. SANTOS, Rogério Dultra. Francisco Campos e os Fundamentos do Constitucionalismo Antiliberal do em SCHMITT, a ditadura será constitucional, não porque a Constituição a
Brasil. In Dados, Revista de Ciências Sociais. v. 50. n. 2. Rio de Janeiro, 2007. p. 299-300. estabeleça, através de uma cláusula de excepcionalização normalizante. Mas será
334. No campo do fascismo italiano, “a massa era, para o fascismo, um material humano que podia ser
plasmado através da sugestão do mito e da força coesiva da organização”. GENTILE, Emilio. A Itália
Fascista: do partido armado ao Estado totalitário. In GENTILE, Emilio; DE FELICE, Renzo. A Itália de 336. SANTOS, Rogério Dultra. Francisco Campos e os Fundamentos do Constitucionalismo Antiliberal do
Mussolini e a Origem do Fascismo. São Paulo: Ícone, 1988. p. 31. Brasil. In Dados, Revista de Ciências Sociais. v. 50. n. 2. Rio de Janeiro, 2007. p. 306.
335. SCHMITT, Carl. La Teoría Política del Mito. In ZARKA, Yves Charles. Carl Schmitt o el Mito de lo 337. SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza, 2003. p. 26.
Político. Buenos Aires: Nueva Visión, 2013. p. 141-153. 338. SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza, 2003. p. 27.
130 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 131

a própria Constituição que se erguerá como uma verdadeira exceção sem regra. Inicialmente, CAMPOS produz um discurso em consonância com o que BA-
RATTA identificara como ideologia da defesa social. O que é defesa social? O
1.5.4. FRANCISCO CAMPOS E AS REFORMAS LEGISLATIVAS ideário da defesa social é marcado como um princípio organizador. Todavia,
De acordo com MEDEIROS, na segunda fase do pensamento de não no sentido jurídico contemporâneo que lhe é outorgado. Um princípio
CAMPOS, suas funções no campo das atividades como homem de Estado como conector de ideias que pertencem aos mais diversos movimentos cri-
podem ser sintetizadas: a) como reformador do sistema de ensino nacional; minológicos, capaz de sintetizar uma força centrípeta, na qual o direito tem
b) como responsável pelas reformas de várias legislações, como o Código de um papel a cumprir em relação à repressão da criminalidade. O princípio
Processo Penal e o Código de Processo Civil, além de instituir a Lei das Con- serve também como uma espécie de organizador do imaginário jurídico341.
travenções, a Lei dos Crimes Contra a Economia Popular, a nova Lei do Júri, Em outras palavras, quando BARATTA elenca vários princípios como ele-
a Lei Orgânica do Ministério Público Federal, a Lei das Sociedades Anônimas, mentos componentes da ideologia da defesa social, seria possível sintetizar
A Lei de Fronteiras, a nova Lei de Segurança bem como a reorganização do esta constelação através de determinado papel que o direito deve cumprir
Tribunal de Segurança, a Lei de Nacionalidades, a Lei de Extradição e Ex- na prevenção de delitos e da criminalidade. Esta compreensão parece-nos
pulsão de Estrangeiros, a Lei de Imigração, a Lei de Atividades Políticas de por demais visível no discurso de Francisco CAMPOS. Segundo o autor, ao
Estrangeiros, a Lei Orgânica dos Estados, os anteprojetos dos códigos Civil e referir-se ao “novo” Código Penal, o ideal que inspira a novel legislação é o
Comercial, além de idealizador da Constituição de 1937339. da defesa social342. Defesa social significa, para o autor, defender a sociedade
contra aqueles sujeitos perigosos que ameaçam a segurança da sociedade343.
As reformas jurídicas realizadas por CAMPOS seguem, de acordo com
Vimos que novamente o discurso da segurança reaparece no plano do pen-
MEDEIROS, as seguintes linhas: a) a ênfase nas novas funções assumidas
samento político autoritário, no Brasil, e que de fato penetrará mesmo no
pelo Estado na vida social moderna, como regulador da vida econômica e
discurso constitucional contemporâneo.
árbitro privilegiado dos conflitos sociais, sendo o único responsável pela for-
mulação de políticas nacionais. Em especial, ganhou eco a “publicização do Francisco CAMPOS também se manifestará explicitamente no campo
direito privado”, formulada a partir do inegável ranço positivista que pode do processo penal. Assim como no âmbito do direito penal, o processo penal
ser encontrado nos escritos de CAMPOS. No plano do processo, CAMPOS brasileiro também será responsável pela defesa da sociedade contra o crime.
sustentará a “concepção publicística de processo”, sendo que o Estado deverá Eis, aqui, uma importante questão que acaba sendo ignorada tanto pelos
ter um poder significativamente maior do que aquele próprio das democra- penalistas quanto pelos criminólogos brasileiros: os princípios identificados
cias liberais do século XIX, que castravam o poder estatal; b) a concepção da por BARATTA como componentes da ideologia da defesa social também
sociedade de massas encontrou no campo do processo uma nova roupagem, constituem parte do imaginário processual penal brasileiro. A forma pela
através da substituição da concepção “duelística de processo” pela “concepção qual o processo penal se torna um receptáculo desta ideologia é o conceito
“autoritária”; c) CAMPOS insistiu na semântica “popular” e “estatal” do direi- 341. Na análise de Jacinto Coutinho, o princípio será tratado como motivo conceitual: “ de qualquer sorte,
não se deve desconhecer que dizer motivo conceitual, aqui, è dizer mito, ou seja, no mínimo abri rum
to, o que deveria engendrar, naturalmente, a racionalização e a simplificação campo de discussão que não pode ser olvidado, mas que, agora, não há como desvendar, na estreiteza
de seus métodos, tomando como mote a “justiça rápida e barata”340. desta singela investigação. Não obstante, sempre se teve presente que há algo que as palavras não
expressam; não conseguem dizer, isto é, há sempre um antes do primeiro momento; um lugar que è,
mas do qual nada se sabe, a não ser depois, quando a linguagem começa a fazer sentido. Nesta parca
Francisco CAMPOS era jurista e um homem de Estado. Portanto, dos dimensão, o mito pode ser tomado como a palavra que è dita, para dar sentido, no lugar daquilo que,
em sendo, não pode ser dito. Daí o big-bang à física moderna, Deus à teologia, o pai primevo a Freud
pensadores aqui examinados, seria justamente ele que proporcionaria um e à psicanálise; a Grundnorm a KELSEN e um mundo de juristas, só para terem-se alguns exemplos”.
material mais farto para a análise do autoritarismo processual penal no Brasil. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal
Brasileiro. In Revista de Estudos Criminais. n. 1. Sapucaia do Sul, 2001. p. 27. Segundo Enrique MARÍ,
o “discurso de ordem” e o “imaginário social” convergem para o dispositivo de poder. MARÍ, Enrique.
339. MEDEIROS, Jarbas. Introdução ao Estudo do Pensamento Político Autoritário Brasileiro 1914/1945. In Racionalidad e Imaginario Social en el Discurso del Orden. In Doxa. n. 3. Alicante, 1986. p. 93.
Revista de Ciência Política. n. 17. v. 1. Rio de Janeiro, 1974. p. 79. 342. Cf PRANDO, Camila. O Saber dos Juristas e o Controle Penal: o debate doutrinário na Revista de
340. MEDEIROS, Jarbas. Introdução ao Estudo do Pensamento Político Autoritário Brasileiro 1914/1945. In Direito Penal (1933-1940). Rio de Janeiro: Revan, 2013.
Revista de Ciência Política. n. 17. v. 1. Rio de Janeiro, 1974. p. 93-94. 343. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 199.
132 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 133

de instrumentalidade do processo. Em síntese, seria possível afirmar-se que de abandono da concepção duelística de processo (fazendo menção aqui a
o processo penal seria um instrumento de defesa da sociedade contra o uma herança do direito bizantino) para a adoção de uma concepção autoritá-
crime. Esta a razão fundamental, pela qual tal arquétipo normativo de ria de processo. Segundo o autor, à concepção do processo como instrumento
instrumentalidade jamais poderia servir, simultaneamente, para a defesa de de luta entre os particulares, haveria de substituir-se a concepção do processo
direitos e garantias fundamentais. como instrumento de investigação da verdade e de distribuição de justiça”348.
Para CAMPOS, o processo penal era um imperativo da Constituição de Ele chama a proposta de um novo Código de Processo Civil (e que vale igual-
1937, como já era em 1934, mas que os legisladores não haviam conseguido mente para o plano processual penal) de concepção autoritária de processo.
finalizar. O objetivo era emprestar maior energia repressiva ao Estado. Se- Ao invés de uma luta entre duas partes, que estabelecem seus interesses, es-
gundo CAMPOS, “nossas leis vigentes do processo penal asseguram aos réus, gotando-se a prestação jurisdicional com a decisão judicial, será encontrada
ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, esta concepção autoritária, assumindo o processo o papel de instrumento
um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão terá de ser para a investigação da verdade e para a “distribuição da justiça”. Na base de
deficiente, decorrendo daí um estímulo indireto à criminalidade”344. Segundo sua concepção autoritária de processo dormitam dois elementos que jamais
o autor, seria necessário abolir o primado do interesse individual sobre o da poderiam dar vazão a procedimentos democráticos. Em primeiro plano, para
tutela social. “Não se podia continuar a transigir com direitos individuais em CAMPOS, o direito processual constitui-se como uma técnica de domina-
antagonismo ou colidência com o bem comum”345. ção política. Em segundo lugar, não se admitindo um interesse “meramente
formal” do Estado na administração de justiça, resta uma perversa fusão
CAMPOS depositará em duas categorias estruturantes esta função extra-
hegeliana: “a Justiça é o Estado, o Estado é a Justiça”349.
processual de “combate” à criminalidade exercida pelo direito processual penal:
a) nas mãos dos juízes, os poderes instrutórios (poderes instrutórios ex officio) e O processo nada mais é do que uma máquina reprodutora de fatos
b) nas mãos destes juízes, o princípio da livre apreciação da prova. Em última passados e por isso é que Francisco CAMPOS está tão preocupado com os
instância, o julgador, repetindo-se como protagonista do processo penal, poderá poderes instrutórios do magistrado. Não é à toa que CAMPOS assumirá o
produzir e interpretar, em “conformidade com a sua própria consciência”, os compromisso fundamental de elevar o juiz a determinado patamar, à deter-
elementos probatórios. Temos, portanto, uma ideia de monopólio da prova no minada posição que lhe outorgue a monopolização do processo (subtraindo
processo penal, garantindo aos magistrados uma ampla e irrestrita liberdade as partes no que se relaciona com os elementos probatórios coligidos ou sub-
no campo semântico e pragmático346. Tal concepção de processo penal se dá -rogando-se o magistrado na tarefa de legislador, ao permitir que não sejam
através de um primado do coletivo sobre o individual. Surgem no discurso conhecidos limites de sentido na interpretação do binômio prova/fatos).
de CAMPOS – como em todo o discurso autoritário – instituições sociais ou Quem exerce a concepção autoritária de processo é o juiz, (não o Ministério
públicas que passam a ser titulares de direitos subjetivos347. Público, muito menos o advogado). As partes processuais, à exceção do ma-
gistrado, são engrenagens acessórias e obstáculos morais desnecessários. Nesta
É neste sentido que Francisco CAMPOS lançará mão de uma proposta
concepção autoritária de processo basta um, reproduzindo o pensamento de
344. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 193. MANZINI de processo “à parte única”. Derivada desta função autoritária de
345. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 193.
346. “Faz por não tornar ilusória a defesa da sociedade contra o crime, e oferece os meios necessários para a processo, a prova também passa a ser disciplinada por regras e comandos que
completa apuração da verdade nos processos criminais, adotando o princípio, hoje vencedor em todas não se limitam aos problemas do princípio dispositivo. As provas “pertencem”
as democracias do mundo, da liberdade de iniciativa das provas por parte dos juízes e do livre conven-
cimento do julgador. Não quer dizer que este possa julgar sem provas, nem que os julgados possam ser
pronunciados contra as provas existentes nos autos. As provas é que podem ser apreciadas livremente,
ao juízo350. Se em um modelo acusatório a testemunha e o perito são fontes
liberto o juiz de normas preestabelecidas para determinar-lhe os meios de apreciação”. CAMPOS, Fran-
cisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 227. 348. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 261.
347. “O Código teria forçosamente de sofrer, em suas diretrizes, a influência dos novos rumos do Direito. O 349. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 267.
indivíduo não é mais, em nossos dias, o objeto capital, e quase único, da proteção da lei e do Estado, os 350. Atenção especial à linguagem utilizada por Francisco CAMPOS. O magistrado é dominus do processo
corpos sociais havendo-se tornado o principal sujeito de direitos. Esse princípio deve preponderar na (obviamente, também, da prova). “Outro característico do sistema processual consubstanciado no proje-
aplicação da lei penal”. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 233. to, e que se pode considerar como corolário da função ativa e autoritária do juiz é, seguramente, o papel
134 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 135

de prova sujeitas à iniciativa das partes, não sendo provas “do processo”, no Simplifica a marcha, racionaliza a estrutura e coloca o juiz numa posição
momento em que essas provas “pertencem ao processo”, a concepção se torna de maior facilidade no que concerne à análise da prova353. Ou seja, o uso da
autoritária, como acentua CAMPOS. Esta a razão elementar por que em um oralidade aqui é um uso autoritário e não acusatório. Esta uma questão que
processo de natureza democrática os poderes instrutórios do juiz devem ser deveria ser mais bem examinada no processo penal brasileiro. Ao que parece, a
limitadíssimos (ou melhor, extintos). oralidade, por si mesma, se acomoda tanto a um processo de matriz acusatória
O processo autoritário teria ainda mais duas importantes caracte- quanto aos procedimentos de matiz inquisitório. Exerce funções tanto em um
rísticas. A primeira delas, a relação com a forma processual. A exemplo processo concebido como um dispositivo democrático quanto autoritário.
do sistema inquisitorial, de tendência amórfica351, o processo autoritário Percebendo o processo como instrumento de dominação política e
procurará eliminar um sistema rígido de formas processuais. Tendo em sublinhando a circunstância de que autoritarismo e liberalismo serão para
MANZINI o paradigma, na construção do Código Italiano de 1930 seria Francisco CAMPOS entidades reversíveis, o processo penal autoritário não
preciso “desflorestar as nulidades”, isto é, reduzi-las ao mínimo possível. será absolutamente infenso a determinados institutos liberais, que podem
Além desta inspiração, que pode ser facilmente identificada na Exposição de estar presentes em determinado sistema processual penal (vide oralidade).
Motivos do CPP, Francisco CAMPOS afirmaria que as nulidades feririam O que de fato será um elemento-chave é a colocação do magistrado como
apenas a liturgia processual, sendo utilizada especialmente por aqueles que sujeito processual dotado de amplos poderes, cuja função será garantir a so-
não teriam argumentos substanciais352. ciedade contra os sujeitos que ameaçam a sua segurança. Devemos insistir:
De fato, esse processo autoritário concebe a forma processual como um a concepção autoritária de processo penal, como articulada por CAMPOS,
grande obstáculo a ser vencido. A forma se torna maleável, elástica. Trata-se subsume-se à noção de instrumentalidade do processo.
de uma não-forma. E, por incrível que possa parecer, tal discurso não aparece Destaca-se – e este é um elemento em comum com as técnicas fascis-
de maneira isolada relativamente a entendimentos jurisprudenciais contem- tas – que na base desta doutrina aparece a negação de qualquer espécie de
porâneos que se consolidam através da repetição atemporal deste modelo de ideologia. Com efeito, CAMPOS afirmará, a despeito do novo código penal,
processo. Tomemos como exemplo a chamada “doutrina do não-prazo”, no que o “código não se ligará com exclusividade a nenhuma escola, nem terá
que diz respeito ao excesso de prazo nas constrições cautelares. modelo estabelecido. O legislador não deve ligar-se a nenhum credo filosófico,
A última característica do chamado “processo autoritário”, segundo nem a nenhuma ortodoxia doutrinária”354. A legislação, portanto, no pensa-
Francisco CAMPOS, é a oralidade, comumente associada pelos doutrina- mento de CAMPOS, deve ter como única preocupação objetivos práticos:
dores ao processo de matriz acusatória. CAMPOS afirmará que a oralidade “deve objetivar a disciplina, de acordo com os interesses superiores do povo”,
confere ao processo o caráter de instrumento público. A oralidade substitui atentando, sobretudo, para os aspectos próprios do Brasil355.
a concepção duelística pela concepção autoritária ou pública de processo. No que guarda respeito ao processo civil, CAMPOS, na exposição de
motivos do CPC traz como tópico o “processo como instrumento de domina-
atribuído ao juiz em relação à prova. No processo dominado pelo conceito duelístico de lide judiciária,
as testemunhas e os peritos são campeões convocados pelas partes para ajuda-las na comprovação de ção política”356. Muito embora declarada na exposição de motivos do código
suas afirmativas. No processo concebido como instrumento público de distribuição da justiça, as tes-
temunhas e os peritos passam a ser testemunhas e peritos do juízo”. CAMPOS, Francisco. O Estado de processo civil, a concepção de instrumentalidade do processo será manti-
Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 273. .
351. Cf CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale: Torino: UTET, 1986; GLOECKNER, Ricardo da em sua essência, guardadas as devidas novas roupagens que lhe atribuirá
Jacobsen. Nulidades no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. a processualística protoconstitucionalista brasileira, intacta. No processo se
352. Nulidades “que sempre foram o instrumento da chicana, das dilações e dos retrocessos processuais.
Os males do processo tradicional foram agravados com um enxame de nulidades, a que os litigantes
sempre recorreram insidiosamente, quando lhes faltavam os recursos substanciais em que apoiar suas
pretensões. A nulidade tinha caráter puramente técnico ou, antes, sacramental. Era a sanção das vio- 353. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 286.
lações das regras do processo, em atenção exclusivamente ao espírito de cerimônia e de formalidade,
ainda que de tais violações não decorresse nenhum prejuízo para as partes e os atos praticados fossem 354. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 231.
absolutamente aptos à finalidade a que o processo os destinava”. CAMPOS, Francisco. O Estado 355. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 231.
Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 284. 356. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 259.
136 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 137

deverão imprimir os traços da autoridade estatal357. para serem simplesmente transportados ao plano do processo penal. Uma se-
No que diz respeito, portanto, à legislação processual – que é aquela gunda gama de problemas gira em torno da inserção do autoritarismo como
afim ao objeto de pesquisa – Francisco CAMPOS guardará inúmeras apro- um elemento arraigado ou onipresente nas relações intersubjetivas da sociedade
ximações com o jurisdicismo da Itália fascista, que deveremos abordar em brasileira, criando, por assim dizer, uma espécie de naturalização da mentalidade
momento adequado. autoritária brasileira, como traço indelével de sua constituição social359. Para
NEDER, a transformação burguesa no Brasil, especialmente pela internaciona-
1.6. AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL NO BRASIL: lização do modo de produção capitalista, se deu de forma autoritária. E assim,
o autoritarismo estaria presente hegemonicamente no processo histórico do
O PANORAMA CONTEMPORÂNEO
Brasil. Isso não implica na afirmação de que o Brasil jamais teria experimentado
Após perpassar os diversos usos do termo autoritarismo e das distintas
o liberalismo, posto que não teria encontrado abrigo na formação social brasi-
facetas assumidas, bem como identificar a sua presença na formação discursiva
leira. De acordo com a autora, tanto o liberalismo quanto o autoritarismo são
sócio-política e filosófica brasileira, resta ainda por examinar a tentativa de
manifestações que podem ocupar o mesmo espaço em decorrência da própria
emprestar à categoria alguma força performática no processo penal.
ideologia burguesa, “como duas faces da mesma moeda”360. A convivência entre
O objetivo será tratar de identificar as margens de construção do autorita- liberalismo e autoritarismo pode ser encontrada, segundo NEDER, na circuns-
rismo processual penal, pois o objetivo imediato do estudo é, ao cabo, examinar tância de que “apesar de uma prática política autoritária e repressiva diante das
as categorias processuais que de forma autônoma e independente, dão suporte massas – principalmente se considerarmos a permanência das relações sociais
à edificação de modelo de processo impregnado por linguagens que circulam, de produção escravista – a visão da classe dominante sobre a “questão servil”
se deslocam e ao fim, são transpostas à plataforma democrática brasileira. levava em conta o liberalismo”361.
Para enfrentar como se constrói o “pós-acusatório” brasileiro, há que se De fato, diversas obras importantes na historiografia brasileira tratam
procurar definir algumas bases próprias a partir das quais o regime constitu- de apresentar o pensamento político brasileiro como uma espécie de libe-
cional de 1988 recepciona o substrato de 1941. ralismo conservador. A formação de um liberalismo oligárquico362, assim,
desde um bacharelismo incipiente, a partir de um marco weberiano em-
1.6.1. AUTORITARISMO PROCESSUAL PENAL: A prestará à ideia de patrimonialismo uma longevidade considerável 363 na
NECESSIDADE DE SUBSTANTIVAÇÃO DO CONCEITO literatura sócio-política brasileira.
AUTORITARISMO
Inicialmente, a combinação do “culturalismo conservador” com o
Com efeito, parece-nos acertada uma premissa levantada por NEDER358
quando da análise do pensamento autoritário. É fundamental, segundo a autora, 359. NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil: criminalidade, justiça e constituição
di mercado de trabalho (1890-1927). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2012. p. 48.
a desconstrução de certos veios doutrinários que procuram reconstruir o auto- 360. NEDER, Gizlene. Os Compromissos Conservadores do Liberalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé,
ritarismo no Brasil, percorrendo grande parte dos estudos historiográficos. Em 1979. p. 08.
361. NEDER, Gizlene. Os Compromissos Conservadores do Liberalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé,
primeiro lugar, o autoritarismo não pode ser simplesmente enfrentado como 1979. p. 09.
opositor político ou ideológico do liberalismo. Da mesma forma, a historio- 362. Pode-se tomar emprestado de TAVARES a definição de oligarquia: “oligarquia é uma burguesia agrária,
exportadora ou não, regionalmente constituída e assentada, cujos interesses econômicos se definem não
grafia brasileira insiste na temática concernente ao autoritarismo, inserindo-o apenas setorial mas regionalmente, e no confronto inter-regional mais do que setorial com outros seg-
mentos econômico-sociais e políticos: sente sentido as oligarquias – competindo pelo controle dos qua-
em uma discussão acerca dos debates sobre descentralização ou centralização dros nacionais e centrais de poder, para os quais estão, portanto, permanentemente voltadas, e de cuja
apropriação buscam leis, decisões e cursos de ação que optimizem as posições regionais – possuem, en-
do país. Em ambos os casos temos problemas que incapacitam tais estudos tretanto, uma orientação política rigorosamente pré-nacional, pré-central, autocentrada, provincialista e
paroquialista”. TAVARES, José Antonio Giusti. A Estrutura do Autoritarismo Brasileiro. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1982. p. 106.
357. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 261. 363. ADORNO, Sergio. Os Aprendizes do Poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Ja-
358. NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil: criminalidade, justiça e constituição neiro: Paz e Terra, 1988. ; FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político
di mercado de trabalho (1890-1927). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2012. brasileiro. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008.
138 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 139

“economicismo”, segundo SOUZA os dois pilares da “inteligência brasi- cultural brasileira, evidentemente.
leira”, empobreceu o debate político no Brasil364, gerando uma espécie de Sergio Buarque de HOLANDA toma emprestada a base teórica de
hiper-historicismo, cuja maneira de proceder implica numa remissão a um FREYRE, para quem o Brasil seria um país de mestiços. E neste sentido, o
passado longínquo, como a realidade escravocrata ou o clientelismo portu- modelo da casa grande como uma espécie de recriação tropical da herança lu-
guês, de forma a invisibiliza o passado recentemente produzido365. No que sitana sofrerá um golpe fatal pela abolição da escravatura em 1888. Aliás, seus
diz respeito ao “culturalismo brasileiro”, que tem o seu nascimento desde alicerces já estariam comprometidos desde a vinda da família real para o Brasil
a versão original de Gilberto FREYRE lançada em Casa Grande & Senza- em 1808370. Se por um lado a tese de FREYRE ajudou o Estado brasileiro a
la366, e que sofre uma reformulação, agora na variante de Sergio Buarque conceber o mito da identidade nacional, constituindo, a mestiçagem, uma
de HOLANDA, a interpretação do Brasil se nutriu de duas categorias fun- qualidade positiva do “brasileiro”, HOLANDA, ao dar uma nova versão, que
damentais: personalismo e patrimonialismo, o que justificaria a existência simplesmente inverte a fórmula freyriana, tratará da mestiçagem como um fator
de uma “pré-modernidade cultural e social”367. O personalismo, explicitado que não obstante ter desencadeado uma civilização “singular”, traria como con-
através da fórmula do “jeitinho brasileiro”, expondo uma sociedade que sequência o “homem cordial”, tido como principal vício na formação do Brasil.
funcionaria através das redes de capital social constituído, seria justamente Assim, neste aspecto, HOLANDA apresentará uma série de mazelas oriundas
uma teia de relações de proteção e favor, a garantir a hierarquia social. O pa- dos problemas herdados pela defectiva colonização brasileira (sempre em com-
trimonialismo, por seu turno, parte dos pressupostos da existência de uma paração com os pilgrins norte-americanos). Em últimos termos, HOLANDA
“elite estatal”, ela igualmente pré-moderna, que parasitaria a sociedade368. apresentará a necessidade de se romper com o iberismo, desbastando todas as
A hipótese lançada por Gilberto FREYRE tem como ponto de anco- suas raízes. Dentre tais “heranças”, a obediência constitui, assim como o legado
ragem o fato de a sociedade brasileira ter se emancipado da herança ibérica, ibérico baseado na emotividade ou cordialidade371, uma constante nas críticas
especialmente devido ao português ter se tornado luso-brasileiro após um endereçadas ao “mal de civilização” brasileiro. Nas palavras de HOLANDA:
século de Brasil-colônia, cujas necessidades de adaptação se deveram ao “Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é
ambiente tropical e, para além, pela circunstância de a casa grande e o en- compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes
genho formarem uma expressão cultural nova (e não apenas uma espécie de e até exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os
reprodução das casas portuguesas), consolidando a formação patriarcal bra- indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos. As agregações e
relações pessoais, embora por vezes precárias, e, de outro lado, as lutas entre
sileira369. Antes de tudo, tratava-se aqui de uma visão otimista da formação facções, entre famílias, entre regionalismos, faziam dela um todo incoerente
e amorfo. O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma
364. SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e
Paulo: LeYa, 2015. p. 12. A mesma linha de argumentação poderá ser encontrada em SOUZA, Jessé. A
Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades orde-
365. TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. Apresentação. In TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. O Que nadoras, disciplinadoras, racionalizadoras”372.
Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 09.
366. “Segundo SOUZA, Gilberto Freyre promoverá uma “virada culturalista” que, muito embora mantenha
a questão racial como pauta do dia, muda o enfoque para a cultura. Neste ponto, SOUZA, Jessé. A Ralé 370. “A Chegada da família real e a ascensão da vida urbana nas cidades, transformadas em grandes centros
Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 36-37. decretou a perda da posição privilegiada dos senhores rurais. Essa gente carregou, para as cidades, a
367. SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São mentalidade e os preconceitos, assim como a vida que levavam distante dos centros, caracterizando um
Paulo: LeYa, 2015. p. 29. elemento constitutivo da vida social brasileira”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26
368. SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 82.
Paulo: LeYa, 2015. p. 29. 371. “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade
369. Segundo SOUZA, trata-se de uma “inversão especular”: “ele inverte o problema da identidade nacional ao – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes
inverter os termos que o compunham, mantendo, no entanto, seus elementos constitutivos. Se o compo- tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter
nente racial – povo mestiço – era o aspecto problemático e negativo que impediu a construção de um mito brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões
bem-sucedido da “brasilidade” até 1933, Freyre simplesmente o inverte. Em sua reconstrução, é precisa- de convívio humano, informandos no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes
mente o componente racial mestiço que nos singulariza positivamente. Ele é o nosso motivo de “orgulho”. possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo
Mas os termos da equação – observem – continuam os mesmos. A “raça”, ainda que ligada a uma cultura emotivo extremamente rico e transbordante”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed.
específica, é o ponto que permanece, seja na visão negativa, seja na versão positiva de nossa identidade”. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146-147.
SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 54. 372. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 61.
140 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 141

Esta “emotividade” que carregaria o homem brasileiro em suas ações no funcionamento da burocracia brasileira teríamos o reduto do arbitrário,
(relações de proteção e favorecimento) seria o sintoma que identificaria os o reino tolerado das prevaricações. Neste campo, tais poderes burocráticos,
enormes problemas da realidade nacional373. Isso propicia que se teatralize podem, em determinadas situações, ser enrijecidos de tal maneira que se torna
a oposição entre o homem cordial brasileiro374, que agiria em consonância inviável a prática de um ato. E que então, podem ser flexibilizados justamente
com a pura emoção e o outro, o protestante americano, que teria garantido para possibilitar aquilo que não poderia ser conseguido de outra forma. O
uma civilização ausente de desigualdades (igualdade de oportunidades), homem cordial reaparece na tese de FAORO, que orientou outra elevada gama
através de seu agir puramente racional (não emocional). Inclusive a profusão de estudos: a tese do patrimonialismo. Através do conceito de patrimonia-
do bacharelismo, no Brasil, não passaria de uma manifestação destes valores lismo FAORO tentaria identificar um núcleo não democrático, baseado em
ligados à personalidade375. privilégios de classe (elite) e que sempre teria marcado a vida burocrática e ad-
No Brasil, existe uma tradição sociológica que aponta em direção a uma ministrativa do Brasil. Desta forma, anacrônica e intempestivamente, FAORO
concepção de autoritarismo brasileiro, compreendido a partir de lentes preten- invoca a “herança portuguesa” na forma de condução da vida pública para
samente weberianas376. Um grande conjunto de teorias partem do chamado tematizar a forma de reprodução de poder que existia em Portugal (durante
“patrimonialismo”, ou ainda, tratarão de explicitar a origem da formação pa- cerca de 5 séculos!!!)379. O estamento patrimonial luso-brasileiro, assim, agiria
trimonialista do Brasil. Segundo SOUZA, o “golpe de mestre” de HOLANDA em consonância com uma solidariedade interna e de prestígio compartilhado,
foi a “invenção da noção de um “estamento” burocrático incrustado no Esta- remontando a tradição weberiana. A elite, portanto, se incrustaria no Estado
do”377. Sob esse enfoque poderíamos identificar o pensamento de FAORO378 no escopo de perpetuar e ampliar os seus privilégios. O que se pode perceber,
que identifica no Brasil uma sociedade burocrata, burocracia esta considerada como crítica bastante superficial, é novamente a dualidade Estado x mercado:
como sistemática e simultaneamente ocupada e cooptada por determinados de um lado, o virtuoso mercado; de outro o Estado e sua inacabável corrupção.
estamentos da elite. Será FAORO quem sistematizará a categoria de “estamen- Evidentemente, se o mal da sociedade brasileira se encontra no Estado (sendo
to burocrático”, seguindo a tradição de HOLANDA. FAORO denominará a corrupção o principal vício), nada mais justo que o mercado surja como en-
tais agências de estamentos burocráticos, ou seja, temos aqui o fenômeno do tidade essencialmente virtuosa e real alternativa a ele380.
sequestro da burocracia pela elite. Esta, na visão do autor, seria uma das ca- No mesmo sentido, posto que ligado à mesma tradição – aquela do pa-
racterísticas do patrimonialismo brasileiro. Uma segunda característica deste trimonialismo – a dominação política gerada pelo processo de transição para
sequestro da burocracia pela elite seria o despotismo burocrático. Impregnado a modernidade, tem-se o pensamento de Simon SCHWARTZMANN. De
forma muito sintética, um dos pontos que merece destaque na obra deste pen-
373. SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São sador é a cooptação das classes populares para a consecução de determinadas
Paulo: LeYa, 2015. p. 32.
374. “Buarque percebe com clareza que o “homem cordial” é o homem moldado pela família, em contrapo- finalidades políticas, o que caracterizaria uma espécie de desmobilização de
sição à esfera da política e da economia que exigem disciplina, distanciamento afetivo e racionalidade
instrumental, ou seja, tudo aquilo que o homem cordial não é. Por conta disso, o Estado entre nós seria “cima para baixo”. Segundo o autor, o autoritarismo brasileiro (e que segun-
dominado pelo “patrimonialismo”, ou seja, por uma gestão da política baseada no interesse particular
por oposição ao interesse público. A partir daí, com a construção do binômio personalismo/patrimonia- do o autor já nasce a partir da formação do Brasil como colônia portuguesa,
lismo, temos a constituição da interpretação que irá dominar tanto a academia quanto o senso comum evoluindo ao longo de sua história) não será um traço genético e inseparável
do brasileiro até nossos dias”. SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2009. p.55. da nacionalidade brasileira. Será, em sua análise, todavia, uma condicionante
375. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 157.
376. Tais categorias não são mais do que pretensamente weberianas, à medida que: a) os conceitos weberia- do pensamento político nacional381. Em linhas análogas, poderíamos destacar
nos são pensados como entidades históricas; b) via de consequência, o patrimonialismo seria impensá-
vel em uma sociedade de economia capitalista avançada. SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira: quem é e
como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 61. 379. SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
377. SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 60. Paulo: LeYa, 2015. p. 53.
378. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 4 ed. São Paulo: 380. SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Globo, 2008. Para uma análise da atuação literária e político-jurídica de Raymundo Faoro Cf CURI, Paulo: LeYa, 2015. p. 60-63.
Isadora Volpato. Juristas e o Regime Militar (1964-1985): atuação de Victor Nunes Leal no STF e 381. SCHWARTZMANN, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Publit Soluções
Raymundo Faoro na OAB. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2008. Editoriais, 2007. p. 32-33.
142 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 143

a pesquisa de Sergio ADORNO382, obra na qual enfrenta a formação do ba- profunda falta de conhecimento acerca das bases epistemológicas que foram
charelado brasileiro, especialmente na universidade de São Paulo, que foi a sendo construídas no discurso da processualística brasileira.
principal produtora de sujeitos que ocuparam posições de poder, ou posições Além disso, a própria concepção do liberalismo como uma “ideia fora
governamentais na República. Para ADORNO, a universidade de São Paulo de lugar”386387 ensejará este enraizamento do autoritarismo como componente
produziu um bacharelado resultado da síntese entre o patrimonialismo e o associado ao brasileiro388. Será sobretudo com ALBERTO TORRES e OLIVEI-
liberalismo383. Segundo o autor, seria necessária a produção de intelectuais RA VIANNA que determinada tradição analítica dos problemas do Brasil se
que trilhassem a mesma senda teórica e institucional que permitia, ao cabo, inaugurará, mesmo que apresentada sob o manto do olhar crítico. Seria possível,
a separação entre liberalismo e democracia. Desta maneira, como resultado, inclusive afirmar-se que OLIVEIRA VIANNA apresentará, ao pensamento
formou-se um bacharelado especializado em privatizar os conflitos sociais. O político brasileiro, um verdadeiro “mal de colonização”, em que os problemas
intelectual requerido e produzido, portanto, era um liberal, não um demo- das mais diversas ordens e registros serão atribuídos à herança lusitana, ou seja,
crata384. Segundo ADORNO, no Brasil o liberalismo nunca se desenvolveu migrariam através dos séculos após o seu aporte no Brasil colonial.
como um liberalismo radical. Haveria sempre a tensão entre o conservado-
A formação de uma confusa crítica, endereçada à parelha liberalismo-de-
rismo e o liberalismo. FAORO385, ao analisar a obra de Joaquim Nabuco,
mocracia, supostamente abraçada pela nossa intelectualidade conduz, como
considerado um dos pensadores brasileiros liberais (e que integrou a própria
Constituinte de 1824), constata que ele era extremamente favorável à abolição 386. Esta interpretação do pensamento de Oliveira Vianna decorre da dicotomia que permeia seus estudos,
aquela entre o “Brasil Real” e o “Brasil Legal”. HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26
da escravidão, mas também era ao mesmo tempo um conservador no que ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
dizia respeito aos direitos patrimoniais. Ou seja, FAORO identifica, como 387. Sobre a importação das ideias do liberalismo, como ideias fora de lugar, vale a pena a leitura de Roberto
Schwarz: “no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente
traço característico do intelectual brasileiro, alguém que se coloca como um os que a burguesia europeia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão; enquanto na prática, geralmente
dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos
liberal, mas um liberal conservador. Este liberal-conservador será justamente e as noções em que implica. O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia
e justiça, que embora regidas pelo clientelismo, proclamava mais formas e teorias do estado burguês
o operador da privatização dos conflitos sociais. moderno. Além dos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada
– que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas
No que diz respeito, portanto, ao tema do autoritarismo, qualquer tentati- vezes serviram de justificação, nominalmente ‘objetiva’, para o momento de arbítrio que é da natureza
do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos
va de explica-lo pela via das “teorias clássicas” (personalismo e patrimonialismo) dadas. Esta recomposição è ideal”. SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: forma literária e pro-
cesso social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2000. p. 17-18. Mais
esbarra na mais cabal puerilidade das assertivas expostas em tais construtos, que adiante: “em resumo, as ideias liberais não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis.
Foram postas numa constelação especial, uma constelação prática, a qual formou sistema e não deixaria
servem de respiradouro para o novelesco liberalismo conservador, que devido de afetá-las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acompanhar-lhes o
à inexplicável insuficiência crítica da academia sobre tais modelos explicati- movimento, de que ela, a falsidade, é parte verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergo-
nhado diante delas – as ideias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem
vos, permanece como um mantra constantemente pronunciado no sentido de do dia – e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgulho, de forma
ornamental, como prova de modernidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias quando pesa-
promover explicações tão frágeis quanto epidérmicas sobre os problemas do ram no Abolicionismo. Submetidas à influência do lugar, sem perderem as pretensões de origem, gravita-
vam segundo uma regra nova, cujas graças, desgraças, ambiguidades e ilusões eram também singulares.
Brasil. E isto a partir de uma pretensa criticidade que adviria destas denúncias. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de
fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua
Se levarmos a sério tais problemas para o campo do processo penal, seria acei- natureza. Largamente sentido como defeito, bem conhecido mas pouco pensado, este sistema de impro-
priedades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances de reflexão. Contudo
tável imputar à colonização portuguesa as mazelas que assolam o processo. O facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem completo e descansado, e compatível com
muito verbalismo”. SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: forma literária e processo social nos
que, francamente, não é apenas anacrônico. Mas também revelador da mais inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2000. p. 26.
388. Ao se debruçar sobre o pensamento de Oliveira Vianna, BRESCIANI entende necessária uma análise
que possa superar o lugar-comum ligado ao seu racismo e autoritarismo (muito embora a autora não
382. ADORNO, Sergio. Os Aprendizes do Poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: negue a presença destes elementos em seu pensamento). Segundo a autora, deve-se tratar de garantir
Paz e Terra, 1988. uma escapada para além dos confins do lugar-comum. “A figura exemplar do homem cordial, pouco
polido, emotivo e autoritário, prisioneiro da subjetividade em um mundo em que só os disciplinados e os
383. ADORNO, Sergio. Os Aprendizes do Poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: guiados por ações com vistas a fins objetivos contavam com a vitória, permaneceu a mais duradoura e a
Paz e Terra, 1988. p. 237. que mais se insinuou no foro íntimo do leitor, lá ficando a triste convicção de ser essa a causa de nossos
384. ADORNO, Sergio. Os Aprendizes do Poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: desacertos, decisões equivocadas, cidadania mal-acabada – condição de cidadãos de segunda ordem”.
Paz e Terra, 1988. p. 239-240. BRESCIANI, Maria Stella. O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade: Oliveira Vianna entre
385. FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? São Paulo: Ática, 1994. p. 135. os intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2005. p. 15.
144 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 145

já se referiu, a pontos em comum com o pensamento autoritário. Exemplo econômico. Segundo BOSI, a possibilidade de combinação do liberalismo
disso pode ser encontrado nas palavras de HOLANDA, que poderiam muito com a escravidão se justificava a partir da circunstância de que no Brasil,
bem ter sido extraídas do pensamento de OLIVEIRA VIANNA: o liberalismo assumia as seguintes feições: a) tratava-se de uma liberdade
“De todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder das econômica, consistente na livre troca comercial (venda, troca e compra de
ideias pareceu-nos a mais dignificante em nossa difícil adolescência política bens); b) liberdade política, consistente no direito à representação política;
e social. Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de c) liberdade para adquirir novas terras sob o signo da livre concorrência; d)
preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira finalmente, liberdade para poder coagir o escravo através de um sistema de
e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a
ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre coação jurídica organizada e formal393. Ainda segundo BOSI, “O que atuou
nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com eficazmente em todo esse período de construção do Brasil como Estado autô-
a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso nomo foi um ideário de fundo conservador; no caso, um complexo de normas
instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os go- jurídico-politicas capazes de garantir a propriedade fundiária e escrava até o
vernantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido.
seu limite possível”394. Neste sentido, “a antinomia tantas vezes acusada, e o
Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde
fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham travo de nonsense que dela poderia nascer (mas como é possível um liberalismo
sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas”389 escravocrata?), merecem um tratamento rigoroso que os desfaça”395.
Outra crítica comum sobre a existência de um liberalismo particular- LOSURDO396 também demonstra a convivência entre liberalismo e es-
mente brasileiro seria a convivência do liberalismo com a escravidão390. Este cravismo na França e nos Estados Unidos, responsável pelo paradoxo inerente
argumento não se dá conta de que a escravidão se constituiu (e se constitui) ao próprio liberalismo, consistente em uma imagem de limitação do poder
como uma base sólida do liberalismo econômico, que acaba sobredetermi- político, mas que ao mesmo passo apresenta um poder absoluto relativamente
nando as feições do chamado liberalismo “político” ou “jurídico”391. Não a outros homens. Esta a questão fundamental para a governamentalidade
se pode perder de vista que o liberalismo econômico e o autoritarismo são (controle sobre a população) a partir de mecanismos liberógenos397.
reversíveis e constituem “duas faces de uma mesma moeda”392. Tampouco se Estas tentativas de sistematizar o pensamento político autoritário
deve esquecer que o liberalismo e o autoritarismo, em suas diversas nuances, brasileiro, como já foi possível se verificar, acabam por serem elas próprias
não são incongruentes ou incompatíveis. As leituras que emprestam signifi- reprodutoras do pensamento autoritário que visam combater. São elas, por
cado ao autoritarismo como antítese do liberalismo são inaceitáveis à medida assim dizer, pretensamente críticas, seja pela constatação de que o Brasil
que: a) confundem liberalismo econômico e político; b) confundem libera- “não conheceu um liberalismo radical”, seja pelo fato de que o objeto de
lismo e democracia; c) tratam de alçar o liberalismo econômico a uma real demonização igualmente se constitui no Estado. Ou ainda, reproduzem um
alternativa ao autoritarismo, cujas principais intervenções sucederiam sobre pensamento que concebe a democracia como algo antinatural ao brasileiro,
o plano econômico; d) acabam por fazer tábula rasa dos fenômenos de con- em última instância reverberando a famosa frase de Francisco CAMPOS de
jugação do liberalismo a propostas fascistas, como aquela ocorrida na Itália, que “o povo não precisa de governo, mas de curatela”.
ao menos nos primeiros anos do governo de Mussolini, que implementara
O que é fundamental para o estudo do direito processual penal brasilei-
o programa de Pareto, por ninguém questionado acerca de seu liberalismo
ro é identificar que o termo “autoritarismo” é um conceito incapaz de restituir
389. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 160. a complexidade que integra o fenômeno em certa direção. Sem o processo de
390. Cf WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 6 ed. Rio de Janeiro: GEN, 2012. p. 104.
391. Cf GORENDER, Jacob. A Escravidão Reabilitada. São Paulo: Editora Ática, 1980. Cf GORENDER, 393. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 200.
Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980. Cf BLACKBURN, Robin. The Making
of New World Slavery: from the baroque to the modern (1492-1800). London: New York: Verso, 1998. 394. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 194.
Cf WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 395. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 186.
392. NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil: criminalidade, justiça e constituição 396. LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. São Paulo: Ideias & Letras, 2006.
di mercado de trabalho (1890-1927). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2012. p. 49. 397. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
146 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 147

“substantivação” do termo autoritarismo, a vagueza e a indistinção semântica exposta por SANTOS, segundo a qual, partindo-se do fato de que segundo
que operam em suas entranhas torna a própria categoria ineficaz para dar LINZ os sistemas autoritários não possuem uma ideologia definida, como
conta de certas práticas punitivas, especialmente aquelas desenhadas através distinguir democracia do totalitarismo? Tal constatação (ausência e presen-
de uma estrutura estatal como o processo penal. Como acentua NEDER398, o ça de ideologia definida) poderia servir muito bem para o sistema fascista,
autoritarismo não é apto a explicar os fenômenos autoritários em sua própria nazista ou stalinista. Contudo, não seria possível encontrar-se, especialmen-
presença, isto é, o autoritarismo é imprestável para a constituição de um siste- te nas democracias liberais, uma ideologia estabelecida, evidentemente não
ma ou modelo heurístico de identificação de práticas disformes. Ou melhor: do ponto de vista oficial, mas que se faz presente nos processos judiciários?
uma teoria geral do autoritarismo será sempre insuficiente para dar conta da SANTOS403 sugere como ideologia presente nas democracias competitivas
complexidade dos fenômenos que a integrariam, mormente pelo fato de que o “individualismo possessivo”, que estaria presente na base destas relações
a constituição de um sistema implica em zonas de margens (inevitavelmente), sociais. E, assim sendo, um dos critérios fundamentais utilizados por LINZ
garantindo, portanto, que inúmeras práticas somente possam ser integradas para estabelecer os limites tipológicos entre os regimes seria insuficiente para
ou rechaçadas a partir de construtos teóricos prévios (modelo heurístico). A dar conta do fenômeno da ideologia nas democracias contemporâneas, muito
dificuldade semiológica decorrente da adoção da expressão identifica, como embora a questão do pluripartidarismo limitado presente no autoritarismo
elemento ancilar, a polissemia da expressão, o que não afasta os sempiternos pudesse contribuir na apuração do regime em questão. Neste ponto, parece
jogos linguísticos que concorrem para estas práticas399. Desta forma, portan- acertada a conclusão de Karl LOEWENSTEIN: “se há uma contrapartida do
to, parece-nos insuficiente os modelos tipológicos desenvolvidos por LINZ, termo “democrático”, o regime deve ser chamado de autoritário”. Mas não to-
baseados na tricotomia democracia, totalitarismo e autoritarismo, bem como talitário nem “semitotalitário” – se houver algo que seja a metade do total”404.
os subtipos que compõem cada um destes esquemas interpretativos400. Com Consoante destaca PEREIRA, “uma análise recente dos regimes autoritários
efeito, na clássica distinção de LINZ, o regime autoritário aparece como um do século XX, por exemplo, não dedica nenhuma atenção à manipulação
sistema de “pluralismo partidário limitado”, já que tais sistemas sentem receio jurídica, aos processos por crimes políticos ou à relação entre a repressão e o
da participação popular. Ademais, ainda de acordo com a clássica conceitua- sistema judicial”405. Eis, então, alguns pontos cegos da teoria geral dos regimes
ção de LINZ, no sistema autoritário não haveria uma clara ideologia, da qual políticos e das formas de governo.
dependeria a sua legitimidade, como sucederia no regime totalitário. Estas Torna-se, portanto, inafastável percorrermos a expressão autoritarismo
duas características são marcantes em seu pensamento original de 1964401. desde um marco de referência substantivo, isto é, desde a contextualização
Em escritos mais recentes, LINZ ampliará a definição de Estado autoritário, de práticas que se arvoram em um determinado campo do conhecimento,
distinguindo entre os regimes burocrático-militares (pretorianos), o estatismo que no Brasil, especialmente com o advento da Constituição de 1988, são
orgânico (Estados corporativistas), os pós-democráticos mobilizacionais (fas- ressignificadas. Portanto, estamos de acordo com NEDER406 relativamente à
cistas) e os pós-totalitários, agregando-se neste último os modelos autoritários necessidade de se atribuir ao autoritarismo, como ferramenta metodológica,
pós-comunistas402. Dentre as críticas que se poderiam traçar, quiçá a mais uma substância, um corpus, a fim de que, no nosso caso específico, a conclu-
relevante, desde o ponto de vista do objeto de estudo aqui alinhavado, seja a são não seja aquela de, pessimisticamente, afirmar que o direito processual
penal não terá alternativa a não ser autoritário, o que equivaleria, malgrado o
398. NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil: criminalidade, justiça e constituição
di mercado de trabalho (1890-1927). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2012. p. 49.
399. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1996. 403. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Comentários e Respostas às Intervenções. In PINHEIRO, Paulo
400. LINZ, Juan José. Totalitarian and Authoritarian Regimes. Boulder: London: Lynne Rienner Pu- Sergio. O Estado Autoritário e Movimentos Populares. São Paulo: Paz e Terra, 1979. p. 220-221.
blisher, 2000. 404. LOEWENSTEIN, Karl. Brazil Under Vargas. New York: Russel and Russel, 1942. p.370.
401. LINZ, Juan José. Totalitarian and Authoritarian Regimes. Boulder: London: Lynne Rienner Pu- 405. PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e
blisher, 2000. na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 36.
402. LINZ, Juan José. Regimes Autoritários. In PINHEIRO, Paulo Sergio. O Estado Autoritário e Movimen- 406. NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil: criminalidade, justiça e constituição
tos Populares. São Paulo: Paz e Terra, 1979. p. 119 – 216. di mercado de trabalho (1890-1927). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2012. p. 50.
148 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 149

jogo metafórico aqui empregado, ao “fim da história do processo penal”, isto A “eufemização” de certas categorias e usos no direito processual penal
é, à permanência irresolúvel da parelha liberalismo/autoritarismo. Em síntese, é um mecanismo intrínseco às ressignificações. Basicamente, no Brasil, temos
portanto, falaremos sempre em um autoritarismo processual penal, deriva- a combinação de um discurso neoliberal, que acaba por emprestar forma às
do de determinados acoplamentos entre política, ciência, direito e saberes práticas autoritárias conduzidas pelo sistema de justiça criminal410. A legiti-
criminológicos conduzidos pelas inúmeras derivantes do que BARATTA407 mação desde o marco discursivo do direito de um processo penais de corte
identifica como ideologia da defesa social. Em se atentando exclusivamente neoliberal encontrará na instrumentalidade do processo penal contornos
para o processo penal, seria possível traçar uma analogia com a compreensão indefectíveis. Além disso, a recente introjeção de categorias norte-americanas
de autoritarismo definida por LOEWENSTEIN, para quem “autoritário se de processo penal, balizadas pelo vetor “eficiência” carregará semanticamente
refere à forma de governo, ao tipo e técnica do poder de definir políticas”408. o neoliberalismo para as estruturas internas do discurso processual penal.
Encontra-se no processo penal brasileiro uma determinada governa- Esta será uma crise importante pela qual se acaba constituindo um saber
mentalidade criminal, e o que é mais preciso, um modelo determinado de praxista, divorciado da experiência acadêmica, intuitivamente repetindo a
estabelecer políticas criminais (especialmente nos processos codificatórios fórmula dicotômica law in books e law in action. A partir da constatação de
encabeçados por Francisco CAMPOS). Além de a defesa social percorrer o uma crise da democracia parlamentar (igual identificação perpassa o dis-
saber processual penal como uma categoria transversal (corte epistemológico curso dos ideólogos autoritários brasileiros), surge o que se poderia definir
que formata e define as distintas expressões assumidas pelo processo penal), como “garantias efetuais”411. Isto é, uma mutação que se sucede em dois
após a Constituição de 1988 se ativará um processo de ressignificação das planos distintos: a) aquele da transição da preocupação linguística com o
práticas punitivas mediante operações de transformação semânticas, assim material normativo próprio da democracia parlamentar, para o signo da
como a atenuação, ou melhor, a introdução de “eufemismos” no discurso interpretação (limites interpretativos vinculados à decisão, que no Brasil se
processual penal, como tentativa de ajuste ou reequilíbrio discursivo que conduziu inexoravelmente pelo plano do ativismo judicial); b) da crítica aos
se deve efetivar sobre uma plataforma tríplice: a) a difusão da noção de ins- limites jurídico-liberais das garantias penais e processuais penais, que servem
trumentalidade do sistema processual, desde um eixo constitutivo da teoria como limite ao poder punitivo, para a utilização das próprias garantias como
geral do processo, responsável por frear o avanço em termos de garantias contra-garantias (como é o caso da razoável duração do processo, utilizada
processuais penais trazidas pela Constituição da República; b) a requalificação para justificar prisões cautelares ou negar o reconhecimento de nulidades
e o processo de “ranqueamento” da segurança pública como bem jurídico processuais, etc). Desta maneira, é possibilitada a penetração de um dis-
constitucional, ativada a partir dos usos constitucionais do direito social à curso altamente antidemocrático no seio da teoria processual penal. Temos
segurança (art. 6º da Constituição da República), fenômeno que se conecta assim, em paralelo, as práticas de eufemização e de transformação do discurso
inextricavelmente a dois pontos-chave: b1: o ativismo judicial (que engloba processual penal constitucional em mero ornamento (como exemplo basta
igualmente o Ministério Público como protagonista político) b.2 a utilização verificar a utilização, por amplo setor doutrinário do direito processual penal,
de um “garantismo positivo”, responsável por se tentar constituir um ponto da categoria “direito à ação” como calcada no art. 5º, XXXV da Constitui-
ótimo de interpretação doutrinária-constitucional, especialmente conexo ao ção da República, o que é sabidamente inexplicável sem uma boa dose de
aspecto “social” do processo penal brasileiro; e c) o fenômeno da inversão dos acriticismo e cinismo como pressupostos metodológicos).
direitos fundamentais e a elevação do Judiciário como “superego da socieda- A partir destas impressões metodológicas preliminares sobre o
de”, adotando-se aqui a expressão utilizada por MAUS409. 410. “No Brasil, o Direito tem-se caracterizado, historicamente, pela combinação de uma rebuscada, bem
formulada e fundamentada argumentação segundo os parâmetros das tendências liberais, a partir dos
407. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do modelos erigidos nas formações sociais do centro hegemônico do capitalismo, com práticas autoritárias.
direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil: criminalidade, justiça e constituição
408. LOEWENSTEIN, Karl. Brazil Under Vargas. New York: Russel and Russel, 1942. p. 370. di mercado de trabalho (1890-1927). 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2012. p.
409. MAUS, Ingeborg. O Judiciário Como Superego da Sociedade. In Revista Novos Estudos. n. 58, 2000. 411. PALLAZZO, Francesco. Legalità fra Law in the Books e Law in Action. Disponível em http://www.
p. 183-202. penalecontemporaneo.it/upload/1452614758PALAZZO_2016a.pdf. Acesso em 05.01.2017.
150 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 151

autoritarismo processual penal (necessidade de substantivação do autoritarismo, para que tudo permaneça como está”, Enfim, segundo HIRSCHMANN,
no escopo de servir à análise interdiscursiva que possa identificar a recombina- estamos diante de um argumento utilizado para que seja possível postergar-se
ção de significantes (ressignificação) formadores de linguagens autoritárias), o a mudança. Para que se possa promover a mudança, primeiro será necessário
ponto de arranque para lograrmos êxito nesta empreitada consiste em analisar assentar algo. É uma postergação ad infinitum das ações. Para se pensar em
em que medida um regime formalmente democrático, como é o caso do Brasil, democracia, primeiro será necessário um Estado autoritário, como afirmaria
pode(ria) ser compatível com o autoritarismo processual penal. OLIVEIRA VIANNA415: eis a fórmula da postergação. No caso das reformas
jurídicas italianas, antes da reforma do processo penal, seria imprescindível a
1.6.2. MODOS DE SE PENSAR O AUTORITARISMO alteração do código penal. Antes desta alteração, importante seria imprescin-
PROCESSUAL PENAL dível a elaboração da nova Constituição. E assim por diante...
Uma proposta alternativa de análise do pensamento autoritário brasilei- O terceiro e último operador será a tese do risco. Através deste ele-
ro poderia se dar através das lentes de Albert HIRSCHMANN, que descreve mento discursivo a mudança trará custos tão comprometedores que tudo
as retóricas da intransigência412. Segundo o autor, o pensamento reacionário aquilo que se possui hoje será colocado em risco, acarretando uma situação
recorreria a pelo menos três operadores discursivos. muito pior. Direitos garantidos através de gerações poderão ser extintos.
Este primeiro operador HIRSCHMANN denominará de tese da per- Este argumento acaba sendo utilizado, exemplificativamente, por Friedrich
versão. Segundo o autor, o reacionário é alguém que diante de uma mudança HAYEK e por Benjamin CONSTANT. Evidentemente que autoritarismo e
social, afirmará que ela trará enormes prejuízos, piorando a situação geral da conservadorismo não se confundem. Contudo, não se pode perder de vista
sociedade. O caso tratado pelo autor encontra exemplo na primeira Lei dos a contiguidade de ambos os fenômenos, de forma que, via de regra, ambas
pobres na Inglaterra. Esta lei, por conta de uma grave crise econômica pro- as categorias andam lado a lado.
vocada pelas guerras, acabava permitindo que as pessoas auferissem benesses
Uma terceira forma de se encarar o autoritarismo é através do pensa-
do Estado. Ou seja, aquele mínimo necessário para a garantia da sobrevi-
mento de NEDER, mediante a categoria “submissão”. Através da análise
vência. Após esta lei sofrer com inúmeras críticas acirradas, se elaborou nova
da tradição lusitana na formação do direito brasileiro, encontraremos uma
legislação. A segunda lei dos pobres substituiu a ajuda e o custeio social pelos
constituição jurídica composta pela “obediência cadavérica, pela submissão
grandes reformatórios. HIRSCHMANN traz como contraponto contem-
intelectual aos poderes instituídos”416. De acordo com NEDER417, temos
porâneo, Charles MURRAY, um pseudointelectual americano que, além de
uma intelectualidade sequestrada, submissa a determinados cânones profes-
fazer uma grande crítica ao Estado de Bem-Estar americano, acabou contri-
sados. Como destacará LEGENDRE, o Ocidente desenvolverá técnicas de
buindo para promover a ideologia da tolerância zero nos Estados Unidos413.
submissão, que se expandiram nos sistemas burocratizados418. Estas técnicas
O argumento (pífio) do autor é o de que as políticas assistenciais públicas,
de submissão e obediência, que conferem vida à ordem dogmática, operam
ao invés de reduzir a pobreza, estão produzindo-a, já que tais pessoas acabam
através da crença419, cabendo ao direito inventar “palavras tranquilizadoras”
não trabalhando e sendo sustentadas pelo Estado414.
O segundo operador seria a tese da futilidade. Ela vigora segundo a 415. HIRSCHMANN, Albert. The Rethoric of Reaction: perversity, futility, jeopardy. Cambridge: Massa-
chussets: London: The Belknapp Press of Harvard University Press, 1991. p. 168.
mesma dinâmica do clássico de LAMPEDUSA, Il Gattopardo: “para que tudo 416. NEDER, Gislene. Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão. 2 ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2007. p. 205.
mude, tudo tem que permanecer como está”. Lewis CARROL, igualmente 417. “Excessiva obediência e submissão da intelectualidade brasileira. Muito dedicada a citar os mesmos livros
reproduz esta dinâmica, quando Alice fala com o coelho, “é preciso correr “consagrados”, a repetir e reproduzir ideias e interpretações afiançadas por “cânones” professados por
“eminências” que, por sua vez, exigem a corte de seus discípulos, que, por sua vez, devem tomar cuidado
para não sombrear os mestres, estes sim, verdadeiros donos do poder/saber”. NEDER, Gislene. Iluminismo
412. HIRSCHMANN, Albert. The Rethoric of Reaction: perversity, futility, jeopardy. Cambridge: Massa- Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 205.
chussets: London: The Belknapp Press of Harvard University Press, 1991. 418. LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense
413. WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Universitária, 1983. p. 22.
414. HIRSCHMANN, Albert. The Rethoric of Reaction: perversity, futility, jeopardy. Cambridge: Massa- 419. LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense
chussets: London: The Belknapp Press of Harvard University Press, 1991. p. 29. Universitária, 1983. p. 24.
152 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 153

ou “fórmulas mágicas”420, indicar o “objeto de amor onde a política coloca Uma quarta possibilidade para se pensar o discurso autoritário no
o prestígio” e ainda, controlar as “ameaças primordiais”421. Será justamente processo penal brasileiro encontramos nos estudos de O’DONELL. Este
através da renovação do dogmatismo que o Ocidente promoverá o fortale- autoritarismo se caracterizaria pela produção de uma cidadania de baixa in-
cimento dos sistemas burocráticos, que se inspiram nos modelos militares tensidade. Em uma cidadania de baixo escalão, uma cidadania desfigurada, a
(segundo ZAFFARONI422, o Poder Judiciário, na América Latina, é incrivel- ordem sempre estará acima das regras, da lei, enfim. A ordem determina tanto
mente inspirado na hierarquia e na constituição das forças armadas. Prova da a aplicação rigorosa da lei, quanto a sua própria subversão. Nesse ponto, a
passividade do Judiciário brasileiro no período ditatorial, em conjunto com a manipulação dos desejos e anseios populares também promoverá um sistema
manutenção das instituições jurídicas daquele período que aportam em plena penal inchado, que serviria como espécie de válvula de escape para as insa-
democracia pode ser encontrada no pensamento de PEREIRA423). tisfações populares428. Desta maneira, o resultado seria o “excesso de ordem”:
Na literatura jurídica, a economia textual funciona, segundo as leis cul- “nossa justiça penal, como não poderia deixar de ser, também reproduz essa
turais, através da censura424. Sua tarefa será, segundo LEGENDRE, “adestrar mensagem no ideal de “ordem acima da lei”429. Eis aí algumas pistas para se
para o amor do Poder”425. A própria matriz racionalista do direito aposta compreender as transformações de consolidação do Estado-penal brasileiro:
em uma ordem dogmática, como lembra SUPIOT426. Tanto o adestramento “nossa justiça penal autoritária, que, mesmo com um discurso democrático,
quanto a submissão se dão sempre em regimes institucionais. São técnicas se ajusta amplamente às transformações econômicas e sociais que marcam
de “dever-ser” ou ainda, na leitura um tanto romântica de SUPIOT, o di- o nosso atual momento político”430. Com a democratização das sociedades
reito é uma “técnica de humanização da técnica”427 . Inserir a submissão e o ocidentais, será possível observar o fenômeno descrito por LEFORT431 como
adestramento como elementos essenciais da burocracia é, no sentido que nos o “esvaziamento do local de poder”. Teremos a passagem de um poder ple-
interessa (concernente ao processo penal), afirmar que as categorias-chave do namente ocupado, personificado na figura do soberano, para uma imagem
pensamento romano-canônico não podem ser demovidas sem um alto preço. do poder destituída de centro. O risco sempre presente é a constituição de
A “ordem dogmática do processo penal”, no Brasil, é representada por um uma democracia jurídica (ou judicial), como destacará GARAPON, na qual
corpus doutrinário vinculado ao saber político autoritário aqui apresentado. a repressão pela via penal acaba se tornando o primeiro remédio diante de
O dogmatismo realça a plataforma política de pensamento que, no proces- um duplo: a ideologia vitimária e a demonização do outro432. Desta ma-
so penal, implica em uma instrumentalidade autoritária ou, na dicção de neira, como sugere PASTANA, a prestação jurisdicional hegemonicamente
Francisco CAMPOS, do “processo como instrumento de dominação”. considerada democrática seria, na verdade, instrumento de dominação433. E
que não diferiria do pensamento de CAMPOS na exposição de motivos do
420. WIETHOLTER, Rudolf. Le Formule Magiche della Scienza Giuridica. Roma-Bari: Laterza, 1975.
CPC: processo como instrumento de dominação. O que destaca PASTANA
421. LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense é um fenômeno que no Brasil seria possível se nominar como democracia
Universitária, 1983. p. 24.
422. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos autoritária, “que pode ser observada em inúmeros países ocidentais, (e que)
Tribunais, 1995. permanece graças à sua capacidade de combinar e arranjar valores como
423. PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e
na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
424. “A censura, para ser lícita e a única possível, deve ser confiada a outros que tenham tomado o poder dos
pais, o direito do olhar sobre nós; confiada não mais ao abalista, porém aos doutores cuja ciência é a 428. O’DONELL, Guillermo. Teoria Democrática e Política Comparada. In Dados. v. 42. n. 4. Rio de Janei-
Lei. Canônica também por este fato: graças ao invólucro primordial da religião católica para qualquer ro, 1999. p. 31.
produto ocidental”. LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de 429. PASTANA, Débora Regina. Justiça Penal Autoritária e Consolidação do Estado Punitivo no Brasil. In
Janeiro: Forense Universitária, 1983. p. 33. Revista de Sociologia Política. v. 17. n. 32. Curitiba, 2009. p. 135.
425. LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense 430. PASTANA, Débora Regina. Justiça Penal no Brasil Contemporâneo: discurso democrático, prática
Universitária, 1983. p. 34. autoritária. São Paulo: UNESP, 2009. p. 22.
426. “Os ordenamentos jurídicos ocidentais que mais longe levaram a concepção de homem como ser racio- 431. LEFORT, Claude. Pensando o Político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janei-
nal se baseiam, por seu turno, em enunciados de caráter dogmático”. SUPIOT, Alain. Homo Juridicus: ro: Paz e Terra, 1991.
ensayo sobre la función antropológica del derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2007. p. 21. 432. GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
427. SUPIOT, Alain. Homo Juridicus: ensayo sobre la función antropológica del derecho. Buenos Aires: 433. PASTANA, Débora Regina. Justiça Penal no Brasil Contemporâneo: discurso democrático, prática
Siglo Veintiuno, 2007. p. 191. autoritária. São Paulo: UNESP, 2009. p. 23.
154 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 155

soberania popular e hierarquia social”434. esporádica e irracional daquelas aplicadas pelo soberano. Evidentemente que
Parte da capacidade de imprimir sentido aos significantes (aparente- o sistema continua seletivo, mas a justificativa agora, é a de estabilização de
mente contraditórios) reside na mera aparência de constitucionalidade de um comportamento delituoso punido homeostaticamente. Pena de prisão é
nossos regimes políticos na América Latina, chamados por OLIVEIRA de uma economia de poder nova, difusa, capilarizada. Temos, então, os elemen-
“totalitarismo neoliberal” ou seja, do primado de um antidemocracia perma- tos necessários para o nascimento da ideologia da defesa social442.
nente435, consubstanciada em uma compreensão simbólica da democracia Mesmo nas democracias serão encontradas, mediante uma presença
constitucional436, que permite formas antidemocráticas de se governar, como forte, em alguns momentos inclusive radical, determinadas posturas auto-
bem lembra BAQUERO437. ritárias. Alguns autores examinados anteriormente constatarão a presença
Do ponto de vista da criminologia, não podemos olvidar que o autorita- de uma assim chamada “democracia autoritária”. A ideia de autoritarismo,
rismo é um elemento essencial de todo o sistema penal, uma vez que: a) todo uma categoria polissêmica por excelência, pode ser interpretada a partir de
sistema penal admite a existência de sistemas penais subterrâneos438; b) todo sua permanência, como legado do pensamento político e processual penal
sistema penal opera através da “seletividade estrutural”439; c) o poder punitivo brasileiro. A permanência só é possível quando existe – no plano da ciência
em qualquer sistema penal possui as seguintes marcas: inconstitucional, ilegal politica ou da história – um operador fraco de mudança. Certamente a ideia
ou irracional440. Retomando FOUCAULT, a pena de prisão não é algo diverso de transição democrática não remete a uma noção de ruptura, que exigiria
de uma representação, que a seu tempo simboliza uma economia de poder a fratura e a reordenação de universos simbólicos distintos. A ruptura é um
que é modificada441. De uma pena maximizada, aplicada direta e despropor- operador de mudança forte, como adverte CUNHA MARTINS443. A ruptura
cionalmente pelo soberano e de forma ocasional, passa-se a uma difusão de sim é um paradigma forte, é um elemento de mudança drástica ou plena. A
penas concebidas como proporcionais, penas que podem ser distribuídas de transição não. A transição é um regime que permite a convivência do novo
uma maneira pretensamente equitativa. Penas difusas que substituem a forma com o velho, num regime de justaposição e, nesse sentido, não é errado se
falar em permanências autoritárias. O grande problema que remete a respostas
434. PASTANA, Débora Regina. Justiça Penal no Brasil Contemporâneo: discurso democrático, prática complexas sempre é o de detectar o ponto de esgarçamento de uma tensão
autoritária. São Paulo: UNESP, 2009. p. 34. que opera em um plano político – não temos dúvida disso – mas sobretudo,
435. Há, certamente, um lastro histórico para sustentar essa “exceção permanente”, uma espécie de “antide-
mocracia na América”, sobejamente conhecida para necessitar ser relembrada aqui; desde o lugar cen- no campo do processo penal, como operador e até mesmo como mediador
tral do trabalho escravo na economia e na reprodução social, passando pelo patriarcalismo da formação
social e pelo patrimonialismo prebendatário. Essas fórmulas, dos clássicos dos anos 30 – formulações estético. Até que ponto a permanência inviabiliza uma transição completa? A
que surgem, não por acaso, quando essas mesmas formas começam a perder a capacidade de processar
os conflitos de uma sociedade que ganhava em complexidade pela entrada de uma nova classe social ideia de transição é aquela de movimento, mas movimento contínuo, por isso
no centro da estrutura social, o operariado – devem ser reinterpretadas na chave da “revolução passi-
va” ou como uma modalidade subdesenvolvida da “via prussiana” ou, ainda, na sugestão de Werneck resulta problemática uma “transição” democrática. Uma ruptura democrática
Vianna, como “iberismo”. OLIVEIRA, Francisco de. Memórias do Despotismo. In Estudos Avança- implica em assumir riscos. A Democracia é sempre uma postura de assumir
dos. n. 16. v. 40. p. 60.
436. Cf VIEIRA, Oscar Vilhena. Império da Lei ou da Corte? In Revista da USP. n. 21. São Paulo:1994. riscos. Claro que, num momento de produção de determinados institutos,
437. BAQUERO, Marcello. Cultura Política Participativa e Desconsolidação da Democracia: reflexões so-
bre o Brasil contemporâneo. In São Paulo Perspectiva. n. 4. v.15, 2001. p. 98-104. sejam eles mais ou menos novos, se terá de lidar com velhos problemas, os
438. CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 128 et seq. velhos fantasmas do passado e que inevitavelmente acabam, em maior ou
439. “A seletividade estrutural do sistema penal – que só pode exercer seu poder regressivo legal em um
número insignificante das hipóteses de intervenção planificadas – é a mais elementar demonstração da menor medida, se justapondo em um horizonte. Tomemos como exemplo a
falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal. Os órgãos executivos têm
“espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra lei de identificação criminal, de 2009, e que introduz a identificação genética
quem decidem”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan,
1991. p. 27. (2012). Atualmente, ela convive com o regime processual de um fascismo
440. FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p.
128-129. 442. Sobre a atualidade dos fundamentos da defesa social no processo penal contemporâneo, Cf SULOCKI,
441. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 25 ed. Petrópolis: Vozes, 1987. Cf. MELOSSI, Dario; PAVARINI, Victoria-Amalia de Barros Carvalho Gozdawa. Museu de Novidades: discursos da ideologia da defesa
Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: social nas decisões judiciais neste início de século XXI. Rio de Janeiro: PUCRJ, 2010.
Revan, 2006. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. 2ed. Rio de Janei- 443. CUNHA MARTINS, Rui. A Hora dos Cadáveres Adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São
ro: Revan, 2004. Paulo: Atlas, 2013.
156 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 157

instrumental clássico (como pode ser identificado no pensamento de Francis- começa a demonstrar certa perda de força, será encontrado um “contramovi-
co CAMPOS na exposição de motivos do CPP). Mas que, contudo, no Brasil, mento” chamado de “tecnicismo”. A presença de um movimento tecnicista
alavanca-se em estado de intersecção com o velho autoritário (e não com o adviria, de acordo com ampla literatura, de uma famosa conferência de Arturo
novo democrático, segundo uma doutrina conciliatória). Temos, portanto, ROCCO, intitulada Il Problema e Il Metodo Della Scienza del Diritto Penale,
uma fusão do “velho” autoritário com o “novo” autoritário. A zona de tran- que ficou conhecida como Prolusione Sassarese (em alusão à Universidade de
sição, no Brasil, portanto, afigura-se como um estado de continuidade, com Sassari)445. ROCCO, fundamentalmente, sustentava a ideia de uma retomada
zonas de sombreamento entre o fascismo instrumental clássico e a incorpora- do direito pelos juristas, em substituição aos antropólogos, psiquiatras e psi-
ção de flexibilizações de caráter processual penal, que já atendem a postulados cólogos. Este movimento também teve a aderência de Vincenzo MANZINI,
de uma democracia autoritária: seria a época das metástases inquisitórias. que em última instância foi o grande elaborador intelectual da reforma. Este
O atual Código de Processo Penal Brasileiro (apesar de termos pre- código italiano possuía grande afinidade jurídico-teórica com o Código de
senciado distintas reformas) é assinado pelo Francisco CAMPOS, embora Processo Penal Brasileiro de 1941, cujas bases filosófico-políticas serão senti-
a comissão tenha sido composta por Antônio VIEIRA BRAGA (professor), das em distintos elementos nucleares de sua tessitura legal.
Narcélio de QUEIROZ (magistrado), Cândido Mendes de ALMEIDA (pro- Interessante notar-se que este movimento tecnicista encontrou em solo
fessor) e Nelson HUNGRIA (magistrado). Essa é a comissão encarregada de brasileiro incrível recepção, inclusive no pensamento do penalista Nelson
elaborar o Código de Processo Penal de 1941. Interessante notar-se que a HUNGRIA, um defensivista autoritário, considerado por larga maioria da
composição indicaria certa inclinação pelo cientificismo, caracterizador do penalística brasileira, como nosso grande pensador, o “príncipe dos pena-
pensamento autoritário brasileiro, especialmente na trilha lançada por OLI- listas”. Em um texto dedicado a Eduardo MASSARI (um famoso professor
VEIRA VIANNA. A composição é essencialmente de técnicos. O próprio de processo penal, que lutou fervorosamente contra a escola positiva e que
ALCÂNTARA MACHADO444, que participou ativamente na reforma de integrava o tecnicismo de vertente fascista), afirma HUNGRIA446, que o
1940 do Código Penal não fugiria desta característica cientificista. tecnicismo jurídico tem sido, na esfera do direito penal, algo semelhante
O que uma comissão como esta indica? Primeiro, a ausência de registros ao fascismo na esfera da política (aqui, HUNGRIA está fazendo um elogio
públicos de como trabalhou e quais foram as discussões levadas a cabo. O que claro ao fascismo..). O que o autor está afirmando é que fascismo opunha,
se pode encontrar são depoimentos dos autores encarregados de promover a naquela época, barreiras às ideias políticas “subversivas”. E assim, da mesma
reforma, em ritmo de narrativas. Mas como visto, toda narrativa se constitui maneira, o tecnicismo jurídico oporia obstáculos às teorias designadas por
como autorrelato. Se fosse possível atribuir ao código uma característica sen- LUCCHINI como os “simplistas do direito penal” (ou seja, às teorias positi-
sível, ela seria da ordem da composição entre o positivismo criminológico e vistas). A partir deste texto podemos verificar claramente a relação existente
o tecnicismo jurídico e político Especialmente o movimento tecnicista não entre o fascismo e o tecnicismo jurídico.
constitui uma exclusividade do pensamento autoritário brasileiro. Será jus- Claro, portanto, que não se pode avançar em direção a um direito e
tamente na Itália que teremos a matriz técnico-jurídica capaz de servir como a um processo penal suficientemente democráticos se também não forem
elemento fundamental para que o Código de Processo Penal de 1930 seja abandonadas as vozes autoritárias que ainda ecoam no campo jurídico. É
elaborado. Na década de 30, logo depois de o processo e o direito penal serem preciso abdicar das fórmulas de compromisso que, exemplificativamente,
sequestrados pelos positivistas, quando o “império da escola positiva italiana” tentam combinar textos de Nelson HUNGRIA com uma interpretação
constitucional do direito penal! Ou ainda, combinar citações pretensamente
444. Segundo Alcântara Machado, a Constituição de 1937 “deu nova estrutura ao Estado e novo sentido à
política nacional, tornando imperiosa a mudança das diretrizes penais. Reforçar a defesa coletiva contra
a criminalidade comum e resguardar as instituições contra a criminalidade política são imperativos a 445. ROCCO, Arturo. Il Problema e Il Metodo Della Scienza del Diritto Penale. In Rivista di Diritto e Pro-
que não pode fugir o legislador em países organizados da maneira por que atualmente se encontra o cedura Penale. v. I, 1910, p. 497 e ss.
nosso”. MACHADO, José de Alcântara. Projeto do Código Criminal Brasileiro. São Paulo: Revista dos 446. HUNGRIA, Nelson. Breve Notícia Sobre Eduardo Massari. In Revista de Direito Penal. v. VII. 1934,
Tribunais, 1938. p. 255-256.
158 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 159

técnicas de Vincenzo MANZINI com dispositivos de nossa Constituição. É desenvolvida por Arturo ROCCO, que afirma a preexistência de um direito
impossível invocar trechos de obras datadas e politicamente articuladas sem frente à violação da norma penal448. O direito violado, segundo o autor, seria
que, simultaneamente, se tenha a irrupção destas matrizes autoritárias que o direito do Estado à obediência do súdito. Deve-se registrar atenção à pe-
acabam deformando o horizonte democrático brasileiro, tendo em conta netração desta categoria: mesmo um criminólogo crítico, como é o caso de
o campo político-criminal. Sem reconduzirmos tais autores ao pensamen- Nilo BATISTA, replica a expressão (mesmo que por óbvio, jamais estivesse
to político de onde operavam, não é possível desejar-se mais do que um de acordo com o seu conteúdo). Este jus puniendi significa, em síntese, a
operador fraco de mudança, uma “transição”, combinando, de forma frag- existência de uma relação de direito material penal fora do processo. Como
mentária e aleatória, discursos fascistas com homenagens constitucionais. sabemos, a estrutura do direito subjetivo é aquela segundo a tradição do
Ou ainda, mantendo linhas de convergência epistêmica entre os fascistas e direito civil, desenvolvida entre credor e devedor. Esta estrutura exige que
os comentários ao processo penal brasileiro. ao crédito do accipiens corresponda um dever (débito) do solvens. O direito
O processo penal brasileiro conhecerá este mesmo movimento dito subjetivo é sempre bilateral, diverso, por exemplo, do direito potestativo,
tecnicista. É também neste momento que no processo penal determinados considerado unilateral. Que direito violaria o criminoso quando comete um
conceitos e elementos vão surgir, de modo a dar um tom científico ao processo crime? Seria o direito da vítima? Para esta teoria não. Viola o dever de obe-
penal. Esse é o período no qual o processo penal tratará de se “cientificizar”, diência ao Estado. O Estado, segundo esta percepção do fenômeno penal
de criar determinadas categorias (mesmo que importadas desde o processo e processual penal, teria o direito de que todos os demais lhe obedeçam,
civil). Aqui também verificaremos, com a autonomização do processo penal, o que implica, novamente, na emergência da expressão obediência como
um processo de abstração de certas categorias do processo penal em relação um elemento essencial do autoritarismo. Tem-se, como é óbvio, uma tese
ao próprio direito material. Uma vez identificada a presença do movimento incompatível com o Estado Democrático de Direito.
tecnicista, junto deste movimento de conformação do processo penal desde a A noção de relação jurídica, por mais abstrata e mais inocente que ela
base exclusivamente jurídica aparece também a formação de conceitos-chave. possa parecer, arrasta consigo toda essa tradição autoritária, correspondente
Aqui podemos identificar, juntamente com MILETTI, que o processo penal ao legado de obediência e servilismo ao Estado. Como será configurado o
fascista estava articulado em torno de dois conceitos: a) o conceito de ação sujeito que se nega a obedecer aos ditames do Estado? O dissidente, o que
penal; b) o conceito de relação jurídica447. implica em assumir a politização do criminoso (strictu sensu, já que toda cri-
Inicialmente, seria possível dizer que tanto a teoria da ação penal minalização conserva aspectos políticos). A criação do status de criminoso
quanto aquela da relação jurídica são reproduzidas acriticamente pela dou- é um fato político, não é assim? Natural que um dissidente seja perseguido
trina brasileira, em grande medida. Também não é raro identificarmos estas pelas próprias ideias e atitudes tomadas. No processo penal, portanto, se
categorias como aquelas que preponderantemente aparecem no discurso ganha uma abertura fantástica para as projeções e desenvolvimentos do
processual penal brasileiro, repetindo aqui, o quadro descrito por MILETTI. direito penal do autor, momento de acomodação de um potencial antide-
No que diz respeito à teoria da relação jurídica, devemos lembrar que mocrático que acaba por dissolver quaisquer barreiras legais a ele impostas.
ela convoca uma base de direito material, insuportável de ser assimilada em Já em um segundo momento, deve-se prestar atenção no conceito de
um processo penal democrático. Não há teoria da relação jurídica que possa ação. A ideia de ação também precisa do direito material para funcionar (a
ser sustentada, sem um direito subjetivo que reforce a conexão (mesmo de menos que operemos com uma teoria abstrata, algo por decerto inaceitável
índole processual), existente entre acusador e acusado. Nossa doutrina fala em termos de processo penal). Esta primeira “alternativa”, a opção por uma
em direito subjetivo de punir: jus puniendi. Essa é uma importante expressão teoria abstrata da ação no processo penal percorre plataformas autoritárias.
Basta lembrar que na Itália, ela acaba sendo desenvolvida por ninguém menos
447. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza del Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultura processualpe-
nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 71. 448. ROCCO, Arturo. El Objeto del Delito y de la Tutela Jurídica Penal. Buenos Aires: Editorial B de F, 2005.
160 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 161

do que Alfredo ROCCO449, oportunizando, caso aplicada ao processo penal, que concebem os sujeitos processuais em regime de igualdade (demovendo
o nascimento de um processo despido de qualquer espécie de controle preli- pressupostos essenciais como o direito de ser julgado ao menos duas vezes
minar (isto é, um processo penal em que, independentemente dos elementos por órgãos distintos e que deve cobrir a matéria “fática”455), o desenvolvi-
indiciários existentes contra o acusado – ou mesmo na falta deles – haveria mento de uma “teoria” da cautelaridade no processo penal, ligada às prisões
direito de ação, por parte do Estado, ocasionando o nascimento do processo). processuais e tratando de compatibilizá-las com a presunção de inocência,
Em decorrência disso, nenhuma possibilidade haveria de o processo servir inclusive sustentando a recepção da prisão preventiva para garantia da ordem
como um filtro contra acusações errôneas. pública456, a criação de “standards probatórios” absolutamente inconstitu-
Recorrendo à alternativa diversa, ou seja, mantendo-se a relação exis- cionais, como o “in dubio pro societate”, e que em determinados momentos
tente entre direito material e processual pela via da ação, novos problemas processuais (como na fase de recebimento da denúncia e na da decisão de
se revelariam. Em sua conexão com o direito material, novamente ressurge pronúncia) conduziria à aplicação de uma norma de juízo contra reum. Além
a ideia do direito subjetivo, ou do dever de obediência ao Estado. É claro dessas clássicas manifestações autoritárias no processo penal, herdadas do
que a ação penal (nesta expressão mais conhecida, a ação penal de natureza direito processual penal fascista (clássico), encontramos o que anteriormente
condenatória) cumprirá funções essenciais ao processo penal fascista. MILET- definimos como “metástases inquisitoriais” no processo penal, através do uso
TI450 afirma que essa doutrina fascista do processo penal italiano trabalhava e da ressignificação autoritária de dispositivos considerados novos, mas que
em coesão com esses dois termos. Um elemento de ruptura é abandonar a atuam em nítido compasso com posturas antidemocráticas. Nesta diapasão,
teoria da relação jurídica e abandonar o conceito de ação. Daí por que se falar por exemplo, podemos falar em prisões temporárias ou preventivas com a
em uma teoria da acusação, como exemplificativamente apresenta LOPES finalidade de extrair “delações” ou como preconiza a legislação, “colaborações
JÚNIOR451. Abandonar o conceito de ação452 implicará, inexoravelmente, premiadas”; a deformação da teoria da prova ilícita, com o recurso às limita-
remodelar a própria categoria de justa causa453. Um conceito de ação, coeren- tions norte-americanas, a introdução de “meios ocultos de obtenção de prova”,
temente aplicado no processo penal é insustentável, a menos que possamos elementos simplesmente importados da tradição norte-americana, com uma
aceitar, acriticamente, que determinados significantes possam ser articulados, estrutura processual e cultural completamente diversa; a criação de penas
deslocados e acabar, ao fim, atuando diretamente sobre o processo penal, administrativas para o uso do direito ao silêncio no processo penal (como
flertando com posturas fascistas acobertadas por um discurso “técnico”. penas de multa na Lei de Lavagem de Dinheiro e no Código de Trânsito), o
compartilhamento de atos processuais com “efeitos de prova”, como o trasla-
Em estreita conexão com a relação jurídica e a ação penal, encontramos
do de procedimentos administrativos para o processo penal; a introdução de
ainda o desenvolvimento das noções de pretensão punitiva (desenvolvida
provas produzidas no exterior, sem juízo de prelibação, etc.
originariamente por BINDING e, no processo fascista, levada adiante por
MANZINI454), do modelo processual “misto” (rectius, inquisitório), do aban- Como podemos perceber, há, no Brasil, práticas autoritárias que mes-
dono da forma processual, considerada um inconveniente ou ainda, uma clam um fascismo clássico com novas formas ou expressões do autoritarismo
mera excrescência iluminista anacrônica, a concepção bilateral dos recursos, contemporâneo. Restaria, como escopo ou fundamento da investigação, tratar
de perceber qual operador linguístico poderia restituir a topologia semântica
449. ROCCO, Alfredo. La Sentencia Civil. La Interpretación de las Leyes Procesales. Tribunal Superior de
Justicia de Distrito Federal, s.d. – como faz, por exemplo, FAYE, no exame da política fascista e nazista.
450. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza del Codice . Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultura processualpe- Como hipótese, partimos do pressuposto – ainda a ser verificado no corpo
nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010.
da presente investigação – de que o significante político instrumentalidade
451. LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015.
452. Para uma bela reconfiguração da acusação no processo penal, Cf BOSCHI, Marcus Vinícius. Ação,
Pretensão e Processo Penal: teoria da acusação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. 455. Cf GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Direito Fundamental ao Recurso no Processo Penal: uma crítica
453. Para a remodelagem da justa causa no processo penal imprescindível DIVAN, Gabriel. Processo Penal à concepção bilateral de impugnação. In Justiça e Sistema Criminal. v. 6. Curitiba, 2015. p. 67-76.
e Política Criminal: uma reconfiguração da justa causa. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015. 456. Cf MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janei-
454. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. ro: Lumen Juris, 2010.
162 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 163

integra tanto as “manifestações clássicas” do fascismo processual penal brasi- a égide da eficiência, serão buscados meios mais céleres para se resolver os
leiro, quanto as novas vertentes. Vamos à justificativa. problemas sociais (os conflitos de que trata o autor).
A ideia de instrumentalidade do processo quer dizer, de acordo com o Na doutrina fascista italiana, um importante pensador cujas ideias in-
sentido geral empregado pela doutrina processualista, que há uma distinção fluenciaram os debates sobre a codificação italiana de 1930, é Romano DI
entre direito material e direito processual e que o processo nada mais faz do FALCO. Este autor afirmará que a ideia de instrumentalidade do proces-
que dar vida ao direito material. O processo seria o instrumento para a reali- so é satisfazer um interesse. Neste sentido, de forma um tanto pleonástica e
zação do direito material. Essa ideia de instrumentalidade aparece de maneira tautológica, a instrumentalidade do processo se converte na capacidade de o
muito forte através da escola processual de São Paulo. Fundamentalmente, processo satisfazer um determinado interesse. Evidentemente, poderemos con-
a instrumentalidade, tal como aparece nesta escola, sugere a adoção de uma ceber diversos modos-de-ser da instrumentalidade no processo penal. LOPES
teoria geral do processo. A instrumentalidade seria do sistema processual, que JÚNIOR459, por exemplo, perceberá no processo penal uma instrumentalidade
para além de dar vida ao processo, deveria ser responsável pela barragem do constitucional. Sustenta que a instrumentalidade do processo não é somente
formalismo e pela busca de efetividade do processo. Dentro dessa tradição, aquela de pensar o processo penal como um caminho necessário para a pena,
desse saber de escola, destaca-se a obra de Cândido Rangel DINAMARCO mas também, correspectivamente, a de compreender que os direitos e garantias
em uma obra chamada “A Instrumentalidade do Processo”457. O autor sustenta fundamentais do acusado devem ser respeitados no processo. Trata-se de um
que a instrumentalidade teria duas formas, duas faces. O aspecto negativo seria preenchimento constitucional do signo instrumentalidade e que tem como
aquele concernente em coibir o exagero das formas processuais. Nesta dimensão finalidade preservar direitos e garantias do acusado: eis como apareceria esta
a instrumentalidade processual equivaleria, grosso modo, à instrumentalidade instrumentalidade constitucional460. Temos, no caso, duas propostas diversas.
das formas. A instrumentalidade das formas foi um princípio criado na transi- Aliás, diametralmente opostas. No Brasil, grande parte dos escritos sobre a
ção, tanto nas ordenanças francesas, com o nascimento do sistema inquisitório, instrumentalidade do processo permanece nessa polarização.
quanto retomado no fascismo italiano no Código de 1930458. Valeria à pena, neste momento, colocar uma questão provocativa, sem
Um segundo aspecto da instrumentalidade processual, aquele da efe- dúvida, e que anda em paralelo com esta noção positiva da instrumentalidade
tividade do processo, se desenvolveria desde a noção de acesso à justiça e processual (isto é, relativa à “efetividade do processo”). Trata-se da adoção,
passaria, necessariamente, pela criação de meios para a desburocratização pelo imaginário dos juízes brasileiros, referenciada por VIANNA como uma
do processo e para uma maior participação do magistrado na resolução de segunda ideia-força na constituição das percepções da magistratura sobre
conflitos (ativismo judicial). Devemos questionar o que significaria dar as suas funções, da posição privilegiada do juiz nas modificações da ordem
efetividade ao processo penal. Elevar as penas através de menos processo, social461. Como acentua o autor, se no cenário do autoritarismo-burocrático
como ocorre em processos de grande vulto midiático? Mais sumarização brasileiro (termo que se toma emprestado de O’DONNELL) o Judiciário foi
processual? Menor complexificação? afastado do núcleo de um sistema que desejava a transformação social (assu-
Em síntese, para este momento, temos dois aspectos: um positivo e mindo, por isso, posição secundária), por outro, o fenômeno da “transição
outro negativo, mas que acabam se tocando, fazendo parte de uma única ex- democrática” permitiria a modificação desta percepção. Contudo, verifica-se
pressão processual. Acabar com as formas automaticamente, também resulta que esta percepção dos magistrados como sujeitos operadores de mudan-
em certa medida, na promoção da eficiência (a depender do que se pense ças sociais recairia sobre a função singular do magistrado, e não como seria
acerca do significante eficiência). Reduzem-se as formas processuais e, sob
459. LOPES JÚNIOR. Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
460. Adotamos esta categoria em GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no Processo Penal: introdu-
457. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1993. ção principiológica à teoria do ato processual irregular. 2 ed. Salvador: Jus Podium, 2015.
458. Para uma análise mais aprofundada deste princípio GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no 461. VIANNA, Luis Werneck. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
Processo Penal. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 323.
164 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 165

correto presumir, sobre a estrutura do Poder Judiciário, o que propicia diver- um ato cuja enunciação produz os próprios efeitos pretendidos.
sos problemas, dentre eles, o já destacado por STRECK462 solipsismo no ato Esta analogia pode ser útil no sentido de demonstrar que afirmar que a
de julgar, como igualmente promove a imagem de juízes-heróis463. instrumentalidade do processo tenha determinado acento específico implica,
Podemos perceber, na história recente do Brasil, a evidência desta pers- inexoravelmente, que o magistrado goze da prerrogativa de poder determinar
pectiva singularizante do papel dos juízes na condução das transformações certo uso da instrumentalidade. Mas, contudo, não se consegue controlar este
sócio-políticas brasileiras. Em dois processos criminais recentes, ali se iden- uso, não pelo menos através da invocação de uma democracia constitucional,
tificou claramente uma ação política de se “combater a corrupção” (note-se sem, contudo, referenciar em que medida a democracia participativa pode ter
a linguagem beligerante e militarizada empregada tanto pelos atores do caso, acesso ao núcleo desta instrumentalidade. Como se pode perceber, o direito
como pelos meios de comunicação social). Tais processos e investigações foram não se presta a controlar tais usos e práticas, que nascem e emergem como
denominadas de “Mensalão” e de “Lava Jato”. Uma breve análise dos casos determinados níveis enunciativos (regimes de enunciação).
remete a dois principais atores nos processos: no primeiro caso, o Ministro do A instrumentalidade do processo, se acaso desejarmos mantê-la, garantin-
STF (hoje aposentado), Joaquim Barbosa; no segundo o juiz federal Sergio do-lhe ao menos uma sobrevida, não pode estar associada a determinados fins,
Moro. Não estaríamos diante de atuações que se poderiam confirmar como sob pena de ativarmos um registro simbólico teleológico e consequencialista.
próprias do discurso de Francisco CAMPOS, sobre o chamado processo penal Se, de fato, dermos razão parcial a MICHELI465, e pensarmos a jurisdição
autoritário? Ou como MANZINI, processos de parte única? De nenhuma como uma garantia em si mesma (abandonando a imparcialidade como um
forma pode se presumir que a ideia-chave da instrumentalidade possa ser assu- “princípio orientador”), se em última instância, o processo é a garantia do acu-
mida como um “operador de mudança fraco”. Ou seja, que a instrumentalidade sado, no processo penal, não há relação finalística. Se o processo é a garantia,
tenha representado um largo espectro na identificação da atuação conglobante não pode ser, logicamente, instrumental. O processo é em si, a garantia (em
de modos processuais autoritários clássicos e os “novos”, metásticos. cuja estrutura temos uma série de outras que lhe serão genéticas). Evidente-
Antes de finalizar este bloco, seria necessário tecer algumas conside- mente, não há processo em sentido estrito ausente a presunção de inocência,
rações sobre os usos políticos do vocábulo instrumentalidade. Afirmar que a ampla defesa, o contraditório, etc. Mas atenção: o processo é a garantia, que
sobre a instrumentalidade repousa uma adjetivação qualquer, seja ela “proces- mantém a conexão com diversos direitos fundamentais: dentre eles a liberdade.
sual”, “constitucional”, “eficientista”, etc., é dar-lhe um uso. Contudo, como Pensar o processo como uma mediatriz entre determinadas finalidades, sejam
é sabido, o direito não pode controlar usos desde uma sede normativa. Ora, a elas metafísicas (justiça, equidade) ou econômicas (reduzir custos, aumentar a
sentença, como a conceberão alguns filósofos analíticos, seria um ato perfor- eficiência na resolução dos conflitos sociais), será conceder-lhe uma instrumen-
mativo464. Não existiria diferença entre o ato descrito pela linguagem e a sua talidade, sempre ingovernável ou incontrolável. E a razão é bastante simples: se
entidade que opera na realidade. O ato de enunciação é-lhe constitutivo. O os direitos fundamentais consistem em mandados de proteção, eles não estão
ato performativo é aquele no qual a enunciação linguística produz o próprio sujeitos a curvas métricas de funcionalidade. Por isso, não podemos, a menos
efeito que o enunciado descreve. Se o presidente ou o organizador de um que desejemos sermos utilitários, pensar a instrumentalidade como um ótimo
evento dissesse assim: “declaro abertos os trabalhos deste congresso”, o efeito dentre dois pontos. A não ser assim, poderemos chegar às mesmas conclu-
de realidade anunciado coincide com a verbalização (é claro que falta, ainda, sões de POSNER466, para quem a tortura é válida quando interesses elevados
a legitimidade de quem proclama tais efeitos). É isso um ato performativo,
465. MICHELI, Gian Antonio. Estudios de Derecho Procesal. Buenos Aires: EJEA, s. d.
466. Segundo Posner, “apenas ou doutrinários mais libertários negam (a tortura)...se os riscos são altos, a
tortura é permitida. Ninguém que duvida deveria estar em uma posição de responsabilidade”. Segundo
462. STRECK, Lênio Luiz. O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? Porto Alegre: Livraria do Posner, deve haver uma ponderação entre os “custos e os benefícios” de meios particulares de interroga-
Advogado, 2010. tório. Para o autor, entre os custos se encontra o horror que a palavra tortura evoca. Entretanto, os bene-
463. VIANNA, Luis Werneck. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007., fícios podem ser equilibrar os custos, nos casos em que ela é o único meio de salvar a vida de milhares
p. 323. ou dezenas ou centenas de milhares de pessoas. Nestes casos extremos, a tortura deve ser admitida. E,
464. AUSTIN, J. L. How to do Things With Words. Oxford: Clarendon Press, 1962. p. 06. inclusive, em casos menos graves, como no caso de extração de informação sobre o paradeiro de uma
166 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 167

estejam em jogo. Por isso, sendo a história da instrumentalidade apresentada com o direito penal subterrâneo aplicado nas ditaduras latino-americanas)?
desde “usos” que lhe foram conferidos, o registro genealógico desta relação Não estaríamos investindo pesadamente, sobre o processo penal, em uma
(entre poder e saber, entre práticas e doutrinas que lhe configuram as bordas) época na qual as teorias da pena parecem embotar-se, identificando o ocaso
demonstra que esta categoria está ligada a uma matriz utilitária e teleológica. de suas funções declaradas? Na Itália, não teriam recaído sobre o processo
Sempre surgindo como mediadora entre dois flancos. penal determinadas funções simbólicas que levariam à condenação de milha-
Afirmar que o processo penal é instrumento para a satisfação de uma res de acusados no regime fascista (e outros tantos a partir da operação mani
pretensão, de um interesse, de preservação da liberdade ou de resolução de pullite)? Parece-nos, portanto, que a introdução do aspecto instrumental no
conflitos significa dizer pouco mais do que nada. Substancialmente, é dar-lhe processo penal, mais do que mera contingência de um período considerado
uma feição mediadora, na qual é incorporada uma adjetivação ou ainda, “pós-tecnicista”, se apresenta como uma reorganização metástica de materiais
determinado aspecto funcional. Utilitário ou funcionalista, eis como têm e discursos autoritários. Seria possível, com efeito, detectar-se uma “gover-
aparecido no processo penal determinados modos-de-ser do processo penal namentalidade criminal”, que atribuirá ao processo penal missões que serão
nas democracias contemporâneas. elas próprias investidas de “finalidades em si mesmas”.
Sendo o processo penal, então, uma garantia, não pode ser ele conside- Talvez o exemplo mais cristalino seja o uso desmedido de prisões tecni-
rado em termos de sua utilidade (mesmo que esta utilidade estivesse a serviço camente denominadas como cautelares, que cumpririam as mesmas funções
de direitos fundamentais). Como expressão máxima da jurisdição, o processo da prisão definitiva (o mesmo se poderia dizer de outras medidas chamadas
não pode, em razão desta constitutividade primária, ser objeto de relativiza- de “assecuratórias”). Tais usos se mostram infensos a uma “instrumentalidade
ção. Talvez o grande argumento crítico que possa ser lançado seja o de que qualificada” ou de “segundo grau” (como detectaria CALAMANDREI469).
o processo, então, constituiria um fim em si mesmo. Este argumento parte Este fenômeno indicaria, inclusive, a própria antecipação de efeitos, ou
de uma tradição política que, admitindo a primazia dos fins sobre os meios, melhor, a sub-rogação de institutos processuais penais nas funções (declara-
convoca o pensamento político à negativação de quaisquer valores morais das) de medidas penais. Portanto, como uma consideração preliminar, negar
como imbricados e co-constitutivos da sociedade. Não há espaço, neste tra- a instrumentalidade do processo penal (independentemente das finalidades
balho, para encaminhar uma discussão de fundo da filosofia política, ou seja, a ele atribuídas) serve, no nível discursivo – que margeia as práticas punitivas
entre utilitarismo e substancialismo. Historiograficamente, inexiste período e as diagnosticam – como uma operação de “clausura” semântica quanto aos
no qual o processo tenha constituído um “fim em si mesmo”. No coração usos que se fazem das categorias processuais penais. O processo penal não
deste equívoco está enraizada a premissa de que a instrumentalidade (isto é, pode ter associada nenhuma função social. No momento em que o processo
a relação entre meios e fins) é a única alternativa ao formalismo. Inegável o penal acaba sendo reconstituído por funções sociais, suas categorias acabam
problema epistêmico de base. Levando-se em consideração os procedimentos sendo reorganizadas e rearranjadas a partir de vetores políticos duplificados:
inquisitoriais (há quem entenda que nestes procedimentos inexistia proces- a) desde a base da filosofia política; b) desde a sua operacionalidade endógena
so467), seria possível afirmar-se que ali não teríamos o cumprimento de certas (ou melhor, desde o discurso hegemônico do campo470, no Brasil atualmente
funções políticas (como por exemplo, a perseguição aos cátaros, como de- governado desde uma manualística acrítica e reorganizadora da parasitagem
tecta CORDERO468)? Será que o processo penal não cumpriu determinadas autoritária em suas práticas discursivas, bastando, para isso, verificar quem são
funções políticas na ditadura brasileira? (incluindo-se aqui a passividade para os autores constantemente citados como “doutrina avalizada” a dar uma “esté-
tica democrática” aos contornos dos institutos processuais, em largo espectro
criança sequestrada. POSNER, Richard A. Torture, Terrorism, and Interrogation. In LEVINSON, San-
nas decisões do STF). O processo não pode ser definido a partir das funções
ford. New York: Oxford University Press, 2004. p. 291-298.
467. Cf MONTERO AROCA, Juan. El Principio Acusatorio Entendido Como Slogan Político. In Jus et 469. CALAMANDREI, Piero. Introducción al Estudio Sistemático de las Providencias Cautelares. Buenos
Veritas. n. 38. Lima, 2015. Aires: El Foro, 1996.
468. CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. 470. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1989. p. 209 et seq.
168 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 169

ou dos valores para os quais é chamado a atuar nas sociedades democráticas471. brasileiro. Por se tratar de um significante forte (que indica a ruptura), recorrer-
E diria mais: esta operação equivale ao procedimento de elasticidade e de se à democracia torna-se um expediente discursivo para, já nas primeiras linhas,
realocação das linguagens autoritárias. Em palavras bem simples, o reclamo evitar-se a diatribe. Por certo serão poucos os contraditores de um discurso que
de funções ou de valores têm provocado, no Brasil, um discurso pseudode- reúne o significante vazio “Em Nome da Democracia”474. O recurso ao “Em Nome
mocrático, em que no nível doutrinário defendem-se categorias não apenas de” orientará as chamadas por LEGENDRE “democracias patrióticas”475. Este
permeáveis, mas constituídas desde argumentos autoritários (já analisamos “Em Nome da Democracia”, contudo, se faz autocraticamente, uma vez que a
anteriormente o quão perigosa é a categoria “jus puniendi”). No momento em ninguém é autorizado falar em nome da democracia, que se constitui como um
que a instrumentalidade do processo acaba definindo determinados “modais lugar da vagueza do poder. Este anúncio, aparentemente democrático, se torna
existenciais” do processo penal, o processo ameaça tornar-se, paradoxalmen- um anúncio autoritário. O “anúncio democrático”, este verdadeiro oximoro, é
te, dispensável. Basta atentarmos para o argumento autoritário clássico do um ato performativo que emana justamente, como denunciaria ADORNO,
formalismo no processo, que seria obstruído a partir de um postulado como de uma mentalidade autoritária. Esta “democracia”, quando acaba assumindo
o da instrumentalidade das formas. Para termos a compreensão da extensão as feições do autoritarismo, acaba produzindo nada mais, nada menos do que
do fenômeno, basta atentarmos para dois eventos. um cenário de indistinção. Temos, para além do plano linguístico, um diferen-
O primeiro deles, veiculado através de uma reportagem do jornal Es- do, como aponta LYOTARD476. É desta produção discursiva autoritária que
tadão, datada do dia 29/03/2015. Temos ali um artigo escrito por Sergio se poderia punir, no Brasil, sem formas processuais. A limitação, que orienta o
MORO, juiz federal e por Antonio Cesar BOCHENEK, então presidente da possível, acaba sendo retirada ou sequestrada pelo referencial “Em Nome de”.
AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil). Qual o título desse artigo? Temos, portanto, a transformação de categorias tão díspares como “democracia”
“O problema é o processo”472. O texto dá a entender que não precisamos de e “autoritarismo” (o fundo obsceno477 que governa as operações discursivas dos
processos. Quando o processo se torna o problema, evidentemente o encami- articulistas) em enunciados assimiláveis e interpenetráveis um no outro. Por
nhamento é, paulatinamente, aquele do autoritarismo instrumental carregado outro lado, devemos perceber como a proposta de desarticulação das estruturas
de simbologia, desde a oposição “processo legal” x “processo real” em analogia elementares do processo penal acaba sendo revestida através de performances
ao pensamento de Oliveira VIANNA. Seria possível, para utilizarmos termos que lançam mão de significantes como “crise”, “emergência”, “impunidade”,
mais em voga no processo penal, falarmos em um “devido processo legal” x etc., que são elementos retóricos do autoritarismo político brasileiro clássico.
“devido processo real”, o que dá a dimensão do gap existente entre o discurso A proposta de “desmonte processual” está inicialmente embasada na
doutrinário e nossas práticas punitivas autoritárias. circunstância de ser o processo penal moroso, deficiente. Em virtude deste
Em um primeiro momento, devemos chamar a atenção para a reorga- problema, teríamos, portanto, impunidade. Novamente retornamos a argu-
nização de alguns significantes que orientam os discursos “autoritariamente mentos que podem ser facilmente encontrados em OLIVEIRA VIANNA
democráticos”. Os autores iniciam falando em um “processo verdadeiramente e em Francisco CAMPOS. Segundo os articulistas, a melhor solução seria
democrático”. Eis aí como teremos um eixo onde se depositarão os sedimentos atribuir à sentença condenatória, por causa desses crimes graves, eficácia
autoritários que mais à frente serão apresentados. Portanto, os autores, (note-se imediata, independente do cabimento de recurso. Sob o pano de fundo
que reverberam justamente o imaginário da magistratura, segundo as conclusões do autoritarismo clássico, emerge aqui a relação meio-fim: relembremos as
de VIANNA473), recorrem à democracia para se reconstruir o processo penal 474. LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1983.
471. Sob pena do sequestro da política, como advertirá GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas: 475. LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense
justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. Universitária, 1983.
472. MORO, Sergio Fernando; BOCHENEK, Antonio Cesar. O Problema é o Processo. In O Estado de São 476. LYOTARD, Jan-François. The Differend: phrases on dispute. Manchester: Manchester University
Paulo. São Paulo, 29.03.2015 . p.02. Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-mace- Press, 1989.
do/o-problema-e-o-processo. Acesso em 28.01.2016. 477. ZIZEK, Slavoj; DALY, Glyn. Arriscar o Impossível: conversas com Zizek. São Paulo: Martins Fontes,
473. VIANNA, Luis Werneck. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 323. 2006. p. 157-159.
170 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 171

orientações de POSNER sobre a tortura em casos nos quais os custos são dinheiro desviado”; j) recuperação do lucro derivado do crime.
elevados. A justificativa para a redução de recursos se encontra baseada em No sítio, encontramos juntamente com as “medidas” de combate à
uma concepção bilateral de recursos, no processo penal, anteriormente men- corrupção, um texto direcionado ao “corrupto”:
cionada como expressão do autoritarismo processual penal clássico. Sem o
“Corrupto, você terá motivos para abandonar a corrupção. E, se você insistir
duplo grau de jurisdição, não há possibilidade alguma de afastarmo-nos destas trará sobre si firme punição. Com respeito aos seus direitos fundamentais
irrupções antidemocráticas. e aos das vítimas, você acabará na cadeia. E isso não vai mais demorar para
Na defesa da desestruturação do processo penal, os articulistas usam, acontecer, porque o andamento dos processos ficará mais e mais rápido. Saiba
que as brechas na lei que permitiam criminosos escaparem serão fechadas.
como argumento de autoridade, a sua expertise como juízes. Valendo-se da Além disso, a ocultação do dinheiro levará à sua prisão durante o processo...e
retórica catastrofista, afirmam que “O Brasil vive um momento peculiar. A todo o montante ganho ilicitamente, mesmo no passado e por outros atos
crise decorrente do escândalo criminal assusta”. Temos um exemplo concreto será inevitavelmente confiscado. Com isso, você aprenderá que a sua hones-
da atuação retórica do catastrofismo iminente. tidade não tem preço e que a corrupção não compensa. Ela é daninha para
você, para sua família e para o seu círculo social. Pense bem! Corrupção será
O segundo caso, bem mais complexo, parte de uma instituição envol- um crime de alto risco!”
vida na administração do sistema de justiça criminal. O Ministério Público
Através do exame destes dois fatos, a primeira consideração a ser reali-
Federal lança uma campanha para o “combate à corrupção”, que toca em
zada é a de que o processo não pode mais estar ligado à qualquer finalidade
diversos pontos do processo penal: desde a redução da teoria da prova ilícita
ou instrumentalidade. O segundo aspecto (in)conclusivo é com relação ao
a um papel manifestamente secundário, à eliminação (prática) das nulida-
“tecnicismo mascarado”. Atualmente retoma-se o mesmo argumento, elitis-
des no processo penal, elevando o juiz ao principal ator do processo penal
ta por sinal, da experiência dos atores jurídicos (na verdade dos praxistas ou
contemporâneo. Trata-se de “dez medidas”. Evidentemente, não é objeto
dos novos simplistas, parafraseando LUCCHINI) para adequar o processo
aqui tratar de cada um destes temas478. No sítio do Ministério Público Fede-
penal aos novos tempos, não raras vezes através do recurso às fórmulas
ral479, encontramos, a fim de coletar assinaturas, um breve esquema sobre os
mágicas (WIETHOLTER480).
rumos da “corrupção”, caso tais medidas sejam aprovadas. Vejamos o conteú-
do destas “explicações” àquele que deseja se “informar” e que facilitariam a As fórmulas mágicas correspondem àquilo que dispomos para poder dar
compreensão da instituição sobre o processo penal e a democracia (antes da um fundamento àquilo que não possui, obviamente, um fundamento. Pense-
apresentação do conteúdo, consta no sítio): “o combate à corrupção pode ter mos no famoso in dubio pro societate, que é aplicado corriqueiramente pelos
um novo capítulo na história e uma nova realidade pode ser construída para nossos tribunais, mas, que, no entanto, não possui uma fonte, seja ela legal ou
quebrar o ciclo da impunidade”. Aliás, no sítio aparecem imagens e pequenos doutrinária (para além do in dubio pro repubblica de MAGGIORE). Parece
conteúdos que se encontram no título “Como vemos a História Daqui Para óbvio que esse tecnicismo mascarado não é, ao menos em alguma medida,
a Frente”: a) “criminalização de enriquecimento ilícito de agentes públicos”; inadvertidamente insipiente a ponto de desconsiderar aspectos constitucionais
b) “prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação”; ou democráticos. Veja-se no que se transformou a ideia de proporcionalidade
c) “aumento das penas e crime hediondo para a corrupção de altos valores”; no processo e no direito penal. A proporcionalidade acaba não só, por exem-
d) “responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa 2”; e) plo, deixando de evitar uma prisão cautelar, como em homenagem justamente
“reforma do sistema de prescrição penal”; f ) celeridade nas ações de improbi- à esta mesma proporcionalidade, se verifica o requisito de uma prisão cautelar.
dade administrativa; g) “eficiência dos recursos no processo penal”; h) “ajuste A proporcionalidade, cooptada por esta configuração autoritária do processo
nas nulidades penais”; i) “prisão preventiva para assegurar a devolução do penal brasileiro, resta inoperante como contenção e subserviente à fachada
retórica pseudodemocrática. O mesmo pode ser comentado a despeito do
478. Para um exame crítico de todas as propostas, cf BOLETIM DO IBCCRIM. nº. 277. Dez 2015.
479. Disponível em http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/. Acesso em 12.07.2016. 480. WIETHOLTER, Rudolf. Le Formule Magiche della Scienza Giuridica. Roma-Bari: Laterza, 1975.
172 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 173

“direito fundamental à segurança no processo penal”. Seria interessante analisar este pensamento à luz do quadro normativo
Parece-me central considerar que esses atores no cenário processual brasileiro: ou bem o Brasil possuiria um sistema inquisitório e, em decorrência
penal, sejam eles doutrinadores, juízes, promotores, advogados, etc., não disso não seria democrático, ou bem então a democracia brasileira haveria de
atuam mais em um nível molar de fascismo. Tais atores se comportam, como ter espantado os fantasmas do modelo inquisitório. O interessante é que inde-
o “dissidente secreto” em relação à democracia (à evidência, o dissidente se- pendentemente das modificações legislativas brasileiras infraconstitucionais, o
creto não pode ser dissidente…) Atuam como o oxímoro, através de práticas código de processo penal se mantém hígido em seus institutos fundamentais.
insustentáveis com o discurso. Ou seja, modificando a expressão marxiana do Por outro lado, a Constituição da República anuncia uma série de garantias
“eles não sabem o que fazem” para “eles sabem o que fazem mas assim mesmo processuais penais que deveriam constranger ou limitar o poder punitivo.
o fazem”, temos discursos aparentemente democráticos em nível institucional, O diagnóstico que se poderia tecer acerca do atual quadro brasileiro é o
e práticas autoritárias em nível atomístico. de estarmos diante de um sistema constitucional, horizontalmente protetor
Em conclusão, ao menos neste momento, pode-se afirmar que estamos dos principais direitos processuais concebidos no processo penal e, contudo,
diante de um tecnicismo mascarado com algumas categorias do direito cons- despido de uma eficácia plena ou se se preferir, de baixíssima intensidade.
titucional e da democracia, justamente na tentativa de equalizar e deslocar os Tem-se, portanto, um registro duplo: baixo nível de cognição (para utilizar
sentidos autoritários que conformaram os enunciados clássicos, recombinan- uma expressão de FERRAJOLI) no processo penal em nível infraconstitucio-
do-os com um discurso pseudodemocrático. É nesse momento que o próprio nal, sistema de implementação de um modelo cuja tendência é maximizar a
constitucionalismo se torna conservador e autoritário, por mais paradoxal cognição no plano constitucional. Unicamente o primeiro modelo (infracons-
que possa parecer. É nesse momento em que elementos da filosofia política, titucional) é plenamente adotado e reconhecido pela prática forense, salvo
caracterizados como pertinentes à democracia são utilizados e canalizados raras exceções. Portanto, diante desta consideração, seria de se investigar a
para dar vazão a pretensões antidemocráticas. Por esta razão, o processo penal penetração e a perpetuação da tradição autoritária – inquisitória – no pro-
não pode estar subordinado nem mesmo a plataformas ligadas ao neocons- cesso penal em países democráticos ou, parafraseando CAPPELLINI482, “as
titucionalismo de matriz autoritária. Negar a instrumentalidade é apostar razões do inquisitório na democracia”. É preciso identificar como, no Brasil,
em uma refundação, a fim de que possa ser compaginada no regime de um se plasmou o “garantismo inquisitório”, esta feliz expressão cunhada por Enio
poder desinstituinte e do ingovernável481. Temas que não poderão ser aqui AMODIO483. Segundo VASSALI, alguns, como AMODIO, usam esta ex-
desenvolvidos. Por hora, um processo sem instrumentalidade. Eis a proposta. pressão com ironia e sarcasmo. Contudo, “estamos diante de uma realidade
inegável: o garantismo inquisitório é aquele que se desenvolveu por mais de
30 anos, de 1955 a 1988”484, período coincidente com a promulgação do
INTERLÚDIO
novo código de processo penal italiano. No caso brasileiro, mutatis mutandis,
Antes de avançar para o próximo capítulo, se faz necessário perscrutar temos uma sobrevida do código do Estado Novo, graças à série de alterações
uma questão fundamental, capaz de reconectar algumas afirmações, pen- realizadas ao longo de mais de 70 anos de sua vigência. Assistiu-se, portanto,
samentos ou máximas tomadas como incontroversas ou insuspeitas. Com
efeito, na doutrina processual penal – ao menos aquela crítica, capaz de abor- 482. CAPPELLINI, Paolo. ‘Inconscio Inquisitorio’ e Regime Autoritari: un collegamento ‘necessario’? In
dar questões interseccionais entre o político e o processo penal, afirma-se, GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe-
nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 30. Em sentido similar é o pensamento de COLAO, para
grosso modo, a reciprocidade ou a bilateralidade entre democracia e sistema quem o “inquisitório não necessariamente se alimenta de um regime autoritário”. COLAO, Floriana.
Processo Penale e Pubblica Opinione: dall’età liberale al regime fascista. In GARLATI, Loredana. L’In-
acusatório, implicando justamente na reversibilidade a contrario sensu: sistema conscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpenalistica italiana. Milano:
Giuffrè, 2010. p. 249.
inquisitório e regimes políticos autoritários. 483. AMODIO, Ennio. Motivazione della Sentença Penale. In Enciclopedia del Diritto n. 27. Milano: Giuf-
frè, 1977. p. 182.
484. VASSALI, Giuliano. Introduzione. In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del có-
481. AGAMBEN, Giorgio. L’uso dei Corpi. Vicenza: Neri Pozza, 2014. dice Rocco nella cultura processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 16.
174 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 175

à multiplicação dos corpos do CPP de 1941, garantindo-lhe uma sobrevida emergiria como “acusatório”. A crença na transição para um sistema acu-
inimaginável. Pode-se afirmar, na esteira de PEREIRA, que a ideologia da satório permitiu que as práticas punitivas se estabilizassem como que “por
segurança nacional parasita as instituições jurídicas485. encanto”. Este “sistema acusatório” consolidado a partir da Constituição en-
Desta forma, há que se investigar como este código se mantém hígido contraria na expressão Estado de Direito um significante que serviria, como
em algumas de suas partes essenciais (como a investigação preliminar e o uma espécie de “oscilador de linguagem”, como destaca FAYE, a partir da
sistema de nulidades, impugnações, algumas disposições sobre a prova e a análise da “Revolução Conservadora” que marcara o período fascista italiano
manutenção do eixo básico da custódia cautelar, remodelado em sua fachada e o nacional-socialista alemão. Segundo FAYE, “o oscilador é, igualmente,
pela reforma das prisões cautelares). E, além disso, deve-se se perguntar como aquilo pelo qual se transforma, ou mais exatamente e em sentido algébrico,
algumas das reformas acentuaram ainda mais o regime da inquisitorialidade se transmuta a linguagem da revolução na do conservadorismo”488. O Estado
(isto para não se falar de um projeto idealizado pelo Ministério Público bra- de Direito, com a nova Constituição, se transformou justo naquilo que vinha
sileiro, sem parâmetros na história processual penal comparada relativamente sendo desde então. Cooptado pelo conservadorismo liberal dentro da dog-
ao grau de retrocesso civilizatório correspondente – retrocesso este medido mática processual penal, o Estado de Direito acabou convergindo para uma
pelas linhas do código do Estado Novo, e não pela Constituição de 1988). ferramenta que pavimentaria e legitimaria distintos modos de ser da política
Parafraseando NUVOLONE, tais medidas foram tomadas por quem tem, criminal. Contudo, evidentemente, a expressão Estado de Direito – este osci-
“no fundo o processo inquisitório no coração”486. lador linguístico – não poderia oferecer suporte para uma ruptura da política
processual penal até então imperante, de baixíssima envergadura quanto a
Para CHIODI, o código de processo penal Rocco saiu de cena há pelo
uma concepção democrática de processo.
menos vinte anos, mas a cultura inquisitória que lhe permeava anda circula,
pelo menos no nível inconsciente487. Grande parte dos problemas reside na Segundo Danilo ZOLO, o Estado de Direito consiste em “uma das
premissa – caracterizadora do que definimos por “pós-acusatório” – consisten- fórmulas mais felizes da filosofia política e da filosofia jurídica ocidentais”489,
te na suposta capacidade de a Constituição da República bloquear quaisquer o que explica claramente a sua utilização por autores tão díspares. Ainda de
inclinações de conteúdo político autoritário, isto é, tornando-se garante de um acordo com ZOLO, sendo o conteúdo da fórmula discricionário – e por isso
modelo democrático de processo penal. A mediação realizada pela doutrina nomotético – será a partir de algumas experiências concretas que se poderia
e pelos tribunais brasileiros, em torno de uma profunda constitucionalização formular uma teoria geral do Estado de Direito. Assim, o autor examina
dos procedimentos penais, impediu uma necessária reconfiguração destes a experiência alemã do Rechstaat, do rule of law da Inglaterra, do rule of
procedimentos. A baixa aderência constitucional dos processos criminais no law norte-americano e do État de Droit na França. Desta maneira, ZOLO
Brasil também divide com a doutrina – mesmo aquela considerada crítica – afirmará que o Estado de Direito consiste, basicamente, em um modelo do
parcela da responsabilidade. O “pós-acusatório” parte da consolidação de um Estado europeu, que tem como característica a função de zelar pelos direitos
sistema de garantias que bastaria por si mesmo. E isso permitiu que grande subjetivos dos indivíduos e que enxerga no poder uma tendência à expansão,
parte de todo o aparato punitivo brasileiro se autodeclarasse como assenta- atuando fora dos limites da lei490.
do em práticas constitucionais de caráter acusatório. Bastando ao sistema No campo de disputa da noção de Estado de Direito, pode-se identificar
uma separação de funções, todo o restante do ordenamento necessariamente que a filosofia individualista é a base natural de atração dos vetores que lhe
485. PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e 488. FAYE, Jean Pierre. Los Lenguajes Totalitarios: crítica de la razón y crítica de la economía narrativa.
na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 14. Madrid: Taurus, 1974. p. 122.
486. NOBILI, Massimo. Scenari e Trasformazioni del Processo Penale. In PERCHINUNNO, Vincenzo. Per- 489. ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica do Estado de Direito. In COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de
corsi di Procedura Penale: dal garantismo inquisitório all’accusatorio non garantito. Milano: Giuffrè, Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 03.
1996. p. 75-76. 490. ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica do Estado de Direito. In COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de
487. CHIODI, Giovanni. “Tornare All’Antico”: il códice di procedura penale Rocco tra storia e attualità. In Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 31. Estas mesmas impressões podem
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe- ser encontradas verbi gratia, em BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992 e
nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 305. em FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. 4 ed. Madrid: Trotta, 2004.
176 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 177

conformam491, podendo assumir, assim, a forma dos direitos subjetivos que autocoloca um freio normativo, que guia a ação pública do Estado e que visa
lhe emprestam concretude, o equivalente aos direitos naturais492. Nesta base, a conter as suas atividades, de forma que o direito dos súditos seja legitima-
portanto, se fazem presentes o “pessimismo potestativo” (tendência do poder à mente reconhecido, já aparecia em solo italiano por ocasião do pensamento
corrupção) e ao mesmo tempo e de forma paradoxal, o “otimismo normativo” de Vittorio Emanuelle ORLANDO, responsável pela introdução da escola
(confiança no direito como ferramenta apta a controlar o poder)493. histórica tedesca no campo da publicística italiana do século XIX498. E que
Segundo COSTA, os elementos essenciais à expressão “Estado de Direi- encontrava em JELLINEK o mais importante representante.
to” são os seguintes: a) o poder político; b) o direito e c) a soberania494. Neste PANUNZIO tratará de esculpir a base teórica predominante da noção de
ponto, segundo o autor, a categoria surge como um meio para se atingir um Estado de Direito que governará o período fascista na Itália, em suas duas dé-
fim: “espera-se que ele indique como intervir (através do “direito”) no “poder” cadas de vigência. Inicialmente, Sergio PANUNZIO não formulará nenhuma
com a finalidade de fortalecer a posição dos sujeitos”495. categoria nova ou demolidora da tradição conservadora da publicística italiana.
Grande parte dos problemas enfrentados na tentativa de designação Antes, manterá a fórmula, renovando o seu alcance. Este Estado de Direito
de uma teoria geral do “Estado de Direito”, expressão naturalmente polissê- valerá apenas para períodos de normalidade, não tendo aplicabilidade nos pe-
mica496, residiu no legado deixado pela ciência política e pela filosofia, que ríodos de guerra. Desta forma, a lógica das relações “contratuais” do Estado de
elegeram o termo Estado Totalitário como o seu opositor natural. Assim, Direito é incapaz de dar conta do fenômeno da excepcionalidade, devendo,
Estado de Direito e Estado Totalitário seriam duas realidades, dois fenôme- então, todo critério jurídico ser afastado. Sucede ao Estado de Direito o Estado
nos completamente antagônicos, sendo que na figura do Estado de Direito Ético499, comandado pelo herói, único capaz de atender às exigências da nação
se assentou a naturalização da negação do Estado Totalitário. Este processo e que não deve ser limitado por nenhum preceito jurídico500.
de assimilação do contrário pela sua negação trará um conjunto de proble- Entretanto, ao se tomar em consideração as relações entre Estado de
mas irresolúveis para o futuro da expressão. A criação (artificial) da parelha Direito e o fascismo italiano (relação importante devido à irradiação que
Estado de Direito/Estado Totalitário ignorou que as experiências identificadas provocou no Brasil a adoção de diversos conceitos caros à publicística italia-
como pertencentes a um modelo de Estado totalitário não desconheciam a na), o que deve ser pensado é a inexistência de uma ruptura frontal entre a
existência da legislação. No campo da experiência italiana, a utilização da publicística oitocentista e as novas categorias políticas das quais o fascismo
expressão Estado de Direito fora adotada por ninguém menos do que Sergio lançara mão. Não se encontrará na Itália um processo de completo abandono
PANUNZIO497. A fórmula do Estado de Direito como um Estado que se das ideias que em alguma medida se encontram no núcleo da expressão Estado
de Direito501. A base orlandiana estará devidamente presente na construção
491. Cf BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. do pensamento autoritário italiano, a ponto de que se possa afirmar – crité-
492. Cf VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2009. rio clássico anunciado pelo tecnicismo jurídico – a inexistência de direitos
493. ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica do Estado de Direito. In COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de pré-estatais, já que a soberania não poderia ser constrangida por princípios
Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 34.
494. COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução Histórica. In COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O
Estado de Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 96. 498. ORLANDO, Vittorio Emanuelle. Primo Trattato Completo di Diritto Amministrativo Italiano. v. I. Mi-
495. COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução Histórica. In COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O lano: Società Editrice Libraria, 1900. p. 32 et seq.
Estado de Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 96. 499. Em sentido similar, de eticidade do Estado teremos o pensamento de GENTILE, Giovanni. Los Funda-
496. “A expressão “Estado de Direito” pode significar tantas coisas distintas como o próprio termo “direito” mentos de la Teoría del Derecho. Buenos Aires: Editorial Losada, 1944. p. 133 – 153.
e ademais, tantas coisas diferentes como as organizações prenunciadas por meio do vocábulo “Estado”. 500. PANUNZIO, Sergio. Lo Stato di Diritto. Ferrara: Taddei, 1921. p. 157.
Há um Estado de Direito feudal, um estamentário, um burguês, um nacional, um social, bem como 501. “Os nexos com a tradição juspublicística oitocentista são evidentes: o Estado de Direito denota o Estado
um Estado de Direito calcado no direito natural, outro no direito racional e mais um outro de ordem que existe e se realiza através do direito, em uma perspectiva que, partindo da já longínqua filosofia
jurídico-histórica. É compreensível que propagadores e defensores do termo, oriundos das mais diver- jurídica de Stahl, encontra numerosas reformulações também na cultura jurídica italiana pré-fascista
sas origens, tenham prazer em reivindicar para si esse termo, no intuito de difamar seu opositor como e se resolve, muitas vezes, na afirmação de que o “novo constitucionalismo” deve rejeitar qualquer
inimigo do Estado de Direito. Para seu Estado de Direito e seu conceito de Direito, vale a seguinte “concepção atomista do indivíduo” e qualquer absolutização dos seus direitos, mas não pode se eximir
máxima: “Mas direito deverá, sobretudo, ser o que eu e meus amigos podemos enaltecer””. SCHMITT, de dar uma definição jurídica das relações entre o indivíduo e o Estado”. COSTA, Pietro. O Estado de
Carl. Legalidade e Legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 15. Direito: uma introdução Histórica. In COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: história,
497. PANUNZIO, Sergio. Lo Stato di Diritto. Ferrara: Taddei, 1921. teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 183.
178 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 179

externos. A estratégia, adotada era a de “desideologizar” o Estado de Direito, o fascismo e de acordo com CALAMANDREI, haveria uma legalidade de
no escopo de remover toda a carga liberal, vinculando-o a qualquer emanação fachada e ilegalidades na prática507. Este pensamento é compartilhado por
normativa do Estado502. A cultura jurídica fascista, portanto, redesenhou o PEREIRA, para quem o fascismo trabalhou com o funcionamento regular
esqueleto do Estado de Direito, atribuindo à fórmula as seguintes caracterís- do sistema de justiça criminal, contando com juízes dispostos a aplicar a le-
ticas, consideradas fundamentais: a) a obediência à lei, da qual não se poderia gislação antidemocrática508. No caso brasileiro, não se pode falar que houve
prescindir, não podendo predeterminar-se nenhum sentido ou conteúdo que cassações de juízes e demais funcionários de alto escalão do judiciário no
tais comandos normativos deveriam encerrar; b) a fórmula Estado de Direito período pós-ditadura civil-militar. Aliás, vários permaneceram num sistema
se encontra radicada na Administração e não na Constituição; c) a expressão que manteve intacta a sua estrutura orgânica, mantendo o STF, inclusive
pressupõe uma clara separação entre as relações privadas e aquelas públicas. atualmente, posições jurisprudenciais em matéria criminal sem rupturas sig-
Quanto a estas últimas, Estado e sujeitos não estarão em pé de igualdade. nificativas relativamente à década de 40. Como destaca PEREIRA,
Em grande parte, a fórmula foi utilizada como uma designação antagô- “Como ocorreu nos fascismos anteriores, em nenhum país houve uma de-
nica ao Estado Totalitário, representando, ao menos por conta da repercussão puração completa dos quadros do sistema Judiciário, que continuaram a
servir ao constitucionalismo democrático tão bem como haviam servido às
do livro de Flavio LOPES DE OÑATE, um aspecto correlato à legalidade
ditaduras militares. Não se trata apenas do não expurgo dos quadros que
e à necessidade de certeza na aplicação do direito503. O endereço das críticas serviram fielmente o autoritarismo, mas de verificar a integração do siste-
do autor é a Alemanha nacional-socialista. A certeza do direito aparece como ma Judiciário na “legalidade autoritária”, de entender como essa legalidade
uma garantia de previsibilidade das consequências jurídicas decorrentes de não cessa com a mudança do regime militar para o civil e, depois, para o
uma ação tomada por um indivíduo. Assim, o direito deve ser uma “coor- constitucional-democrático”509.
denação objetiva de ações”504. Desta maneira, em um direito dominado pela Com efeito, LOPEZ DE OÑATE procurará, a fim de superar um
arbitrariedade, LOPES DE OÑATE reivindicará o primado da lei e que even- Estado Totalitário, a articulação de um novo indivíduo que, protegido pela
tuais sanções possam ser antecipadas pelos sujeitos. Será a legalidade a revestir lei, se torne o verdadeiro antagonista desta espécie de Estado. Contudo,
integralmente o ordenamento jurídico capaz de oferecer obstáculos a um siste- como assevera COSTA, “não basta em realidade assumir o ponto de vista
ma arbitrário como o germânico. Interessante registrar que não se encontrará do indivíduo para colocar em crise o campo semântico ‘totalitário’ se não se
uma dualidade entre Estado Ético e Estado de Direito. Segundo COSTA505, a dispõe de uma visão do sujeito que permita assinalar com precisão os termos
principal dificuldade de LOPEZ DE OÑATE, na tentativa de superação do da incompatibilidade”510. A “legalidade democrática não supera ou desloca
regime fascista, se revestia da inexistência de uma linguagem diversa daquela completamente a “legalidade autoritária”511.
utilizada pelo fascismo, isto é, o Estado Ético italiano (como interpretado por
507. CALAMANDREI, Piero. Costruire la Democracia. In ________. Opere Giuridiche. v. III. Napoli: Mo-
PANUNZIO e GENTILE,) não prescindia das leis, que eram consideradas rano, 1968. p. 132.
508. PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e
um momento interno do Estado. Esta conclusão de LOPEZ DE OÑATE na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 10.
vem corroborada por CALAMANDREI, ao afirmar que o fascismo não havia 509. PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e
na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 12.
suprimido a legalidade, mas a manteve em sua fachada, operando com uma 510. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: um campo semantico nella giuspublicistica del fascismo. In Qua-
derni Fiorentini per la Storia del Diritto. n. 28. Milano: Giuffrè, 1999. p. 159.
“prática oficiosa de efetivo ilegalismo”506. Assim se poderia dizer que durante 511. “A formulação mais adequada seria apontar que a nova legalidade democrática (para não se falar de novo
estado de direito) não supera por completo a legalidade anterior. Aqui, como na Alemanha, “mesmo que
502. COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução Histórica. In COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. O tenhamos nos acostumado com o funcionamento de uma democracia fundada na lei, esta não está imune
Estado de Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 183. a recaída em atitudes autoritárias, que tomam a forma de intolerância em relação a grupos marginais,
503. LOPES DE OÑATE, Flavio. La Certezza del Diritto. Milano: Giuffrè, 1968. estrangeiros e críticos radicais”. As décadas pós-implantação da democracia nos três países do Cone Sul
são marcadas por “recaídas” nas quais as garantias do devido processo inexistem para a maioria da popu-
504. LOPES DE OÑATE, Flavio. La Certezza del Diritto. Milano: Giuffrè, 1968. p. 85. lação, em particular para os afro-latinos, os indígenas, as meninas, as crianças, os adolescentes, LGBT”.
505. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: um campo semantico nella giuspublicistica del fascismo. In Qua- PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na
derni Fiorentini per la Storia del Diritto. n. 28. Milano: Giuffrè, 1999. p. 156. Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 12-13. Seria possível ainda, na esteira de TELES e SAFATLE,
506. CALAMANDREI, Piero. Costruire la Democracia. In ________. Opere Giuridiche. v. III. Napoli: Mo- falar-se em uma redução da legalidade à aparência. TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. Apresentação.
rano, 1968. p. 132. In TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 11.
180 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 181

Na relação entre Estado de Direito e Estado Totalitário, com amplos um novo tipo de Estado: o Estado totalitário ou autoritário. MAGGIORE
reflexos no campo penal, deve-se ter muita atenção ao trabalho de MAGGIO- afirma que prefere a denominação “totalitário”, tendo em vista que a expressão
RE, em um artigo intitulado Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario512. “autoritário” pode conduzir a alguns equívocos. Um retorno ao autoritarismo,
Preliminarmente, verifica-se como a parelha legalidade ou liberalismo e to- depois de mais de um século da experiência liberal poderia fazer recair sobre
talitário ocupam um regime de oposição internamente ao discurso penal, os movimentos fascista e nacional-socialista um estigma de “marcha violenta
constituindo, claramente, uma concretização da discussão travada em mais imposta contra o deslanchar do progresso”516. Assim, a fim de evitar movi-
largo espectro, a partir do binômio Estado Totalitário e Estado de Direito. mentos de “reação, restauração” ou “contrarreforma” liberal contra o fascismo,
No plano do direito penal e da criminologia, a crise existente, segundo MAGGIORE sustenta a melhor adequação do termo “totalitário”. Além disso,
MAGGIORE, era derivada da disputa entre dois saberes: o liberalismo e a afirma o autor, o conceito de autoridade implicaria um sentido meramente
escola positiva. Entretanto, constituiria grave equívoco atribuir a expressão negativo, ou seja, o de um poder que apenas reprime toda e qualquer iniciativa
“revolução”, na história do direito penal, ao advento da escola positiva (que pessoal, represa todas as energias. De forma muito similar à já referida demo-
se contrapunha ao classicismo). O despontar da escola positiva, assim, in- cracia substancial de Francisco CAMPOS, MAGGIORE afirmará que o Estado
dicava muito mais uma crise do que um movimento revolucionário. Para Totalitário possui um conteúdo essencialmente positivo, capaz de distingui-lo
MAGGIORE, uma revolução sempre contém um fundo político, algo que de toda e qualquer forma política conhecida. Em sua base estão os valores po-
faltava aos positivistas513. sitivos como raça, povo, religião, economia e arte, que “são plenas afirmações
da vida espiritual”517. A “sua titularidade se mostra na origem, na estrutura, na
Afirma MAGGIORE que a escola positiva foi um movimento de traços
substância, na função, em seu fim”518.
exclusivamente doutrinários, ativados a partir de uma operação de mudança
metodológica: o método indutivo, fulcrado na observação, que se antepunha MAGGIORE explica que o Estado Totalitário não constitui um pos-
ao método dedutivo da “escola” clássica, de caráter lógico-abstrato. Faltaria terius, composto de um grupo de indivíduos unidos, seja por convenção,
à escola positiva, na visão do autor, uma “visão política” capaz de identificar seja por contrato. É antes, um absoluto, um prius, incapaz de reconhecer a
qual era o seu ponto de vista acerca do direito penal, e quais os pontos que dualidade entre Estado e sociedade. Para o autor, “em realidade o Estado cria
se distinguia da “escola clássica”. Ambas, segundo MAGGIORE, se encon- a sociedade, porque não há sociedade sem uma autoridade supra-individual;
travam presas ao liberalismo político514. nesta transcendência que se encontra o germe de todo o Estado”519. Em sua
substância, o Estado Totalitário é o povo e a raça, como uma só massa ho-
A falta de uma grande revolução política inviabilizaria quaisquer reformas
mogênea, a nação520. Nas palavras do autor, a “totalidade é a raça porque essa
no direito. De regra, todas as reformas jurídicas, de inspiração decimonônica,
– como hereditariedade sempre viva – vai ao passado e presente em direção
estavam limitadas pela matriz da revolução francesa. Assim é que um novo
ao futuro, representando, na continuidade das gerações, um valor eterno”.
direito não poderia deixar de proceder de uma revolução ideológica, política e
Prossegue dizendo que “o Estado Totalitário é o estado nacional porque é um
histórica e que dominava o mundo moderno: a revolução fascista515. O direito
Estado de raça”. Assevera ainda que “inexatamente se diz que o conceito de
penal, tanto o classicista quanto o positivista, seriam filhos do Iluminismo.
raça, característico do nacional-socialismo, seja estranho ao Fascismo. Desde
A revolução fascista, a que se seguiu a nacional-socialista, portanto, configura
516. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 144.
512. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 517. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 144.
513. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 518. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 140. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 144.
514. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 519. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 140-141. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 144.
515. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 520. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 142. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 144-145.
182 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 183

1919, e precedentemente, Mussolini colocou o conceito de raça – a italiani- com a nova consciência do povo e com a nova forma de organização política
dade – no centro do Estado”521. da Itália. Desta maneira, os principais problemas apresentados pela revolu-
O Estado totalitário persegue fins totalitários através de meios totali- ção política italiana e o direito penal são três: a) em relação ao método; b) o
tários, afirma MAGGIORE. Seus objetivos não são utópicos e vagos como fundamento do direito penal; c) a lei e o juiz528.
igualdade, fraternidade ou felicidade, mas sim potencializar a comunidade Relativamente ao método, MAGGIORE criticará profundamente o
(cura das doenças, educação física e moral, a formação de um homem inte- denominado método jurídico, que seria estabelecido a partir de um critério
gral)522.Em última instância, para MAGGIORE, o “Estado Totalitário é o exegético e que se desloca até a construção dogmática. Este método levaria
totalitarismo da política”523. consigo um perigo, o do formalismo, caracterizado por elevados graus de
Quando MAGGIORE se debruça sobre as relações entre direito e política, abstração, perdendo de vista a realidade histórica. O formalismo, segundo
compreende que elas são indiscerníveis e inseparáveis. Foi justamente esta sepa- o autor, ignora que o “direito é feito para a vida e não a vida para o direi-
ração, levada a cabo pelo liberalismo a causa do empobrecimento do direito524. to”529. Este método, inclusive, parte da assunção de que a política é expulsa
Seria possível, assim, distinguir os períodos jurídicos dos períodos políticos da do mundo do direito. Todavia, o método se baseia em critérios claramen-
história. A produção do direito, nestes períodos históricos, é justamente a época te políticos, ou seja, uma visão da democracia e do liberalismo530. Assim,
de legisladores e de homens de Estado. No período jurídico, trata-se apenas de MAGGIORE proporá o “método político-jurídico” como o mais adequado
organizar o que já foi feito, e de interpretar e aplicar as normas impostas pelo ao direito penal do Estado Totalitário.
poder político. Esta é a tarefa de exegetas, de juristas e de dogmáticos525. Para O segundo aspecto do direito penal do Estado Totalitário recai, para
MAGGIORE, seria necessário “mais política e menos dogmática”526. MAGGIORE, sobre o fundamento do direito de punir. Fundamentalmente,
em todo o crime a vítima é o Estado, como pessoa e autoridade, que esta-
Finalmente, neste artigo, MAGGIORE dedicará atenção ao direito
beleceu a lei. O delinquente, com a sua conduta, subestima e menospreza
penal, afirmando que a interdependência entre direito e política é ainda mais
o Estado, traindo o dever de fidelidade e obediência ao Estado. Todo delito
acentuada no campo penal, já que seria este ramo do direito o mais próximo
é, no fundo, um delito político, sustenta MAGGIORE531. O delito por ex-
da vida. Para o pensador italiano, os códigos que se seguem ao século XIX
celência, então, passa a ser o político, ao contrário de toda a tradição liberal
são produtos da ideologia iluminista, traduzida em princípios jurídicos que
que, especialmente em CARRARA, afirmava que o delito político não possuía
representam a concepção de homem exarada pelo liberalismo. Na Itália, os
conteúdo filosófico. Desta maneira, a política criminal do Estado Totalitário
códigos que exprimem tais características são o código Zanardelli de direito
estaria nas antípodas do Estado liberal.
penal, de 1889 e o Finochiaro-Aprile de direito processual penal, de 1913527.
O antigo direito penal liberal não pode mais existir, à medida que um novo Por fim, as relações entre o juiz e a lei. MAGGIORE afirmará que nem
equilíbrio político se impõe. Este velho direito penal não seria compatível mesmo um código produto de uma revolução como o italiano conseguiu se
livrar completamente das amarras iluministas, ao prescrever e estabelecer a
521. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 145. máxima nullum crimen sine lege. O autor questiona se o princípio “nenhum
522. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto crime sem lei” seria compatível com o Estado Totalitário. Para MAGGIORE,
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 145.
523. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto se o direito penal é o máximo poder que o Estado detém em suas mãos para
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 146.
524. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 528. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 146-147. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 150.
525. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 529. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 148. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 151.
526. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 530. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 148. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 151-152.
527. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto 531. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 149. Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 155.
184 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO I 185

exercitar a sua autoridade, uma vez que se trata de um “direito armado, um os contornos assumidos por algumas fórmulas jurídicas e inexoravelmente, as
verdadeiro jus gladii”, seria incompreensível que o Estado Totalitário espo- bases de um pensamento publicístico radicado em dicotomias, como Estado
liasse a si mesmo a partir de uma incompreendida relação com os direitos de Direito e Estado Totalitário, legalidade e ausência de limites da potestade
do delinquente. Um Estado Totalitário não poderá tolerar nenhum limite ao penal, etc. Este artigo consistirá em um dos mais conhecidos manifestos de
exercício de sua atividade. A lei não pode se converter em um instrumento direito penal em prol de uma modificação completa no plano do direito penal
para obstaculizar a ação estatal532. No Estado Totalitário, inclusive, os juízes material italiano no período fascista. As claras bases adotadas por MAGGIO-
estarão obrigados a punir, mesmo diante da inexistência de lei. Sobre este as- RE se reencontram com diversos postulados e conceitos fundados a partir
pecto, vale a pena transcrever integralmente o pensamento de MAGGIORE: da escola histórica, inclusive invocados pelo autor. Daí que a sua concepção
“abolido o princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege”, o juiz não colo- de Estado Totalitário não diferirá substancialmente daquelas enunciadas por
cará o seu critério pessoal, e talvez o seu capricho, acima do Estado. O juiz se PANUNZIO ou GENTILE, do Estado Ético. Em sendo assim, algumas ca-
torna órgão do Estado e intérprete e executor de sua vontade. E esta vontade tegorias próprias do pensamento político, cruzam as fronteiras da dicotomia,
ele interpreta o quanto baste, faltando uma precisa disposição legal, reprimirá percorrendo ambas simultaneamente.
aqueles fatos que atentam contra a autoridade e majestade do Estado. O juiz
não errará jamais, nem fará um uso arbitrário de sua potestade, quando, in- O que se pode identificar, muito claramente, é a existência de um mate-
terpretando a vontade, ainda que não expressa formalmente pelo Estado ou rial linguístico que esculpe, pelo menos do ponto de vista formal, as relações
pelo seu chefe, castigará o delinquente que se rebela contra o Estado. Em caso constitutivas tanto do “Estado Totalitário” quanto do “Estado de Direito”.
de incerteza do direito ele se apoiará no princípio in dubio pro repubblica, que
toma o lugar, no Estado Totalitário, do antigo in dubio pro reo. Na incerteza,
Sejam tais relações justificadas a partir de um exame legal ou diferindo-se, no
se torna fonte de direito, para a legislação alemã, o “são sentimento do povo” pós-guerra, para o plano constitucional536.
(gesundes Volksempfinden). Para nós poderia ter valor de fonte a vontade do Como um oscilador de linguagem, a expressão Estado de Direito
Duce, a qual se pode obter de suas palavras, do seu ensinamento, de sua dou-
no Brasil se deslocou para a dimensão constitucional. Por isso a locução
trina. Onde a lei seja escura, ou mesmo silencie, será fonte do direito penal
“a vontade do Chefe”, que é a lei de qualquer lei”533. ganhou mais um adjetivo: Estado Democrático de Direito. Associou-se
à nova Constituição o papel de garante do divórcio entre uma realidade
Como sugestão, MAGGIORE afirma que o primeiro artigo do código
pré-constitucional e aquela outra, considerada democrática. Com razão
penal poderia ter a seguinte construção: “é crime todo o fato expressamen-
CUNHA MARTINS adverte que a expressão Estado de Direito é, em reali-
te previsto pela lei penal e punido com uma pena estabelecida. Constitui
dade, um dispositivo, “um conjunto articulado de mecanismos e elementos
também crime qualquer fato que ofenda a autoridade do Estado e é digno de
de vária espécie, e que, para além da funcional relação de concorrência
pena segundo o espírito da Revolução fascista e a vontade do Duce, o único
e sobreposição entre si, foram incorporados no conjunto em momentos
intérprete da vontade do povo italiano. Tal fato, onde não está prevista uma
precisa norma penal, é punido com a força de uma disposição análoga”534. 536. Basta se ter notícia do congelamento da Constituição Italiana, a partir de sua compatibilidade relati-
vamente à ordem jurídica anterior. Neste caso, tome-se como exemplo a tradicional classificação das
Assim, no regime totalitário, a “certeza do direito” é a “segurança da sociedade normas constitucionais em normas preceptivas e diretivas, negando às segundas o caráter de verdadeiras
normas. AZZARITI, Gaetano. La Nuova Costituzione le Leggi Anteriori. In _______. Problemi Attuali
política de não ver anuladas as suas conquistas da revolução”535. di Diritto Costituzionali. Milano: Giuffrè 1951. p. 103. O autor foi um dos críticos da corrente que afir-
mava a inconstitucionalidade do uso dos decretos produzidos no ordenamento jurídico prévio à Cons-
A posição radical de MAGGIORE, na Itália, exprime profundamente tituição (o fascismo), alegando a continuidade do Estado. AZZARITI foi ainda Presidente do chamado
“Tribunal da Raça”, cuja finalidade era julgar uma pessoa como “não pertencente à raça hebraica mesmo
que em ausência de consonância com documentos civis”, eximindo tais pessoas da aplicação das leis ra-
532. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto ciais fascistas. A teoria será “aperfeiçoada” por Vezio CRISAFULLI, embora mantendo a distinção entre
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 158. normas jurídicas (preceptivas) e não-jurídicas (diretivas ou programáticas). Cf CRISAFULLI, Vezio.
La Costituzione e le sue Disposizioni di Principio. Milano: Giuffrè, 1952. A conhecida tripartição das
533. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto normas constitucionais em normas de eficácia plena, contida e limitada, embora assinale alguma crítica –
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 159. especialmente à distinção entre normas jurídicas e não-jurídicas – manterá este esquema cuja finalidade
534. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto era garantir unidade ao ordenamento italiano, de modo a compatibilizar a Constituição Italiana de 1948
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 160. com leis e decretos emanados na ordem fascista. Cf SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas
535. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto Constitucionais. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2012. A pergunta de fundo é: não estaria tal classificação das
Penale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1939. p. 161. normas à serviço da mantença de um ordenamento pré-constitucional fruto da ditadura civil-militar?
186 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

historicamente distintos”537. E novamente, com muita clareza e correição,


destaca que “é justamente o potencial do aparelho para ser cooptado que
precisa de ser investigado”538. Neste ponto, assiste razão a COSTA, para
CAPÍTULO II
quem o Estado de Direito tem duas limitações fundamentais: relaciona-se
apenas com o presente, sendo incapaz de guiar o movimento histórico, NOÇÕES FUNDAMENTAIS DO AUTORITARISMO
não sendo aplicável a todos os casos da vida, mas apenas à vida cotidiana. PROCESSUAL PENAL – DA CONSTRUÇÃO DO
Naturalmente a doutrina fascista se refere ao estado de exceção, que tem na PROCESSO PENAL ITALIANO NO FASCISMO À
guerra o exemplo privilegiado539. Na guerra, desaparece o Estado de Direito ABSORÇÃO DAS CATEGORIAS PROCESSUAIS
e permanece unicamente o Estado Ético. O Estado de Direito é o momento
NO BRASIL
estático do Estado, mas a sua essência reside no movimento, na sua dinâ-
mica, representada pelo Estado Ético, ou seja, a projeção sobre o futuro540. Neste segundo capítulo, o objetivo será apresentar como a consoli-
Portanto, a premissa fundamental de investigação seria destacar a per- dação do fascismo italiano, em especial a partir do legado processualista,
meabilidade do Estado de Direito às chamadas linguagens autoritárias. Neste influenciou a codificação processual penal de 1930 na Itália542. Os códigos
sentido, a questão está em saber o grau de ductilidade do Estado de Direito Rocco representam o perfeito exemplo de um sistema penal autoritário,
às práticas punitivas responsivas ao autoritarismo541. baseados na ideia de prevenção e intimidação, confiando a um sistema
No caso Brasileiro, restaria identificar como se constitui o discurso inquisitório, no campo do processo penal, a realização desta tarefa543. A
liberal-conservador no processo penal, quais as categorias processuais que codificação do fascismo corresponde a um sólido e durável refazimento dos
são compartilhadas com a matriz italiana de processo. O advento de uma códigos da Itália liberal544, com o objetivo de adequar a legislação do Reino
nova Constituição – reitere-se – não foi obstáculo para que as categorias à sua nova constituição formal e material, e naquilo que toca ao penal,
já existentes no plano processual migrassem – às vezes de forma direta, imprimir-lhe uma ideologia fascista545.
em outras oportunidades de maneira enviesada – para o campo discursivo Não obstante a crucial participação de MANZINI na redação em so-
constitucional. À evidência, tudo isso foi gestado longamente, daí por que lilóquio do Código Rocco, deve-se levar em consideração como na Itália,
não é tão simples identificar as ressignificações que determinados conceitos o movimento de reforma, desenhado a partir da queda do fascismo, gerou
sofreram ao longo do tempo, em específico para poder se acomodar no diversos debates, tendo como pano de fundo a subserviência ou não, daquele
interstício do “pós-acusatório”. diploma aos postulados políticos autoritários. O discurso sobre a reforma
542. Uma análise horizontal e formalista sobre os problemas do sistema penal italiano pode ser encontrada em
DE VABRES, Donnedieu. La Politique Criminelle des États Autoritaires. Paris: Recueil Sirey, 1937.
543. PADOVANI, Tullio. Il Nuovo Codice di Procedura Penale e la Riforma del Codice Penale. In Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale. v. 32, 1989. p. 917.
544. “Do ponto de vista da ciência criminal, o código deveria integrar algumas propostas dos positivistas na
matriz jurídica herdada do liberalismo, ultrapassando assim a polémica entre a escola dita “clássica” e a
antropologia criminal; Entre os historiadores do direito penal italiano tende a prevalecer a visão de uma
continuidade substancial entre o código penal do fascismo e o seu antecessor, típico produto do libera-
lismo tardio”. PIRES MARQUES, Tiago. O Momentum da Codificação Criminal: reflexões metodoló-
537. CUNHA MARTINS, Rui. A Hora dos Cadáveres Adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São gicas sobre a análise histórica dos códigos penais. In TAVARES DE ALMEIDA, Pedro; ________. Lei
Paulo: Atlas, 2013. p. 04. e Ordem: justiça penal, criminalidade e polícia (séculos XIX e XX). Lisboa: Horizonte, 2006. p. 19. No
mesmo sentido GHISALBERTI, Carlo. La Codificazione del Diritto In Italia 1865-1942. Bari: Laterza,
538. CUNHA MARTINS, Rui. A Hora dos Cadáveres Adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São 1985. p. 224-226. Também é a análise de SKINNER, para quem apesar de ser referido que existiu uma
Paulo: Atlas, 2013. p. 05. continuidade entre o Código penal Rocco e a legislação preexistente, não há dúvidas de que o código
539. PANUNZIO, Sergio. Lo Stato di Diritto. Ferrara: Taddei, 1921. p. 156-159. fascista refletia determinadas prioridades e preferências. SKINNER, Stephen. Crimes Against the State
540. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua- and the Intersection of Fascism and Democracy in the 1920s-30s: vilification, seditious label and the
derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 106. limits of legality. In Oxford Journal of Legal Studies. v. 36. n. 3, 2016. 488-489.
541. CUNHA MARTINS, Rui. A Hora dos Cadáveres Adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São 545. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della
Paulo: Atlas, 2013. p. 09. Giustizia. v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 981.
188 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 189

do processo penal italiano, após a Constituição de 1947, que incorporava matriz do Estado de Direito549 concebida pela concepção autoritária de Estado.
premissas democráticas estampadas nas garantias aplicáveis ao processo penal Além disso, muitas categorias pós-fascistas como “constituição material, equi-
servirá, igualmente, para medir os debates existentes em torno de um novo dade, abuso de direito etc., são parentes próximos das construções centrais do
código de processo penal. Além disso, será igualmente capaz de fazer florescer direito fascista550. Portanto, a tarefa e a dificuldade não está apenas em indicar
questões fundamentais sobre a perpetuação de certas categorias processuais, possíveis transplantes conceituais da Itália para o Brasil, mas em indicar como
que se encontrariam “despidas de conteúdo político”. certas ressignificações aparentemente despidas de quaisquer conexões com a
Segundo LEIBHOLZ, a partir da identidade entre Estado e nação, o política fascista se desenvolveram no processo penal.
liberalismo e a democracia serão os responsáveis pela dissolução atomística Como hipótese condutora, o processo penal brasileiro será organiza-
da ordem político-social, propondo um método de integração: o controle do, pelo código de 1941, em um paradigma muito semelhante aos códigos
das massas através da onipresença do Estado na sociedade. Neste sentido, italianos da década de 30: o método tecnicista. Não é demais lembrar que
não há dúvidas de que o fascismo é uma técnica de integração social, sendo existem singularidades sócio-políticas e jurídicas que não autorizam uma afir-
definido como uma ditadura plebiscitária. A discussão corrente entre Estado mação simplificada e que ecoa a partir de diretrizes críticas do processo penal
autoritário (que respeitaria as liberdades desenvolvidas no século XVIII) e no Brasil: a de que os processos de codificação, na Itália e no Brasil, seriam
Estado total546 aqui estará presente. Um Estado autoritário, para LEIBHOLZ, experiências jurídico-políticas homólogas ou ainda, que tivessem sofrido de
significará a hierarquização, a subordinação e a relação de superioridade entre uma homogenia constitutiva.
Estado e indivíduo, garantindo a submissão e a obediência, o que possibilita Não obstante os fatores de diferenciação histórica, cultural, política e
superar a lentidão e as incertezas do debate parlamentar547. Nesse mesmo sen- jurídica, que se condensam em torno de uma “narrativa processual”, podem
tido, embora com a utilização do argumento técnico, foi possível constatar a ser encontrados diversos elementos que autorizam a emergência de uma “lin-
presença de vários destes indicadores no pensamento de Francisco CAMPOS. guagem autoritária” no campo do processo penal. Esta linguagem autoritária
Outrossim, não se pode deixar de levar em conta os debates acerca da percorre vários dos institutos processuais, lembrando que no caso brasileiro,
participação de importantes pensadores na elaboração da legislação italiana, diferentemente do italiano, o código de processo penal, com várias alterações
e quais argumentos podem servir como parâmetro para o Brasil. Com efeito, de fachada, se mantém hígido, a exemplo da legislação italiana da década de
como mais adiante será possível verificar, não se pode depositar a respon- 50, responsável pelo período do “garantismo inquisitório”, expressão felicíssi-
sabilidade da consolidação do autoritarismo processual penal brasileiro nas ma cunhada por Ennio AMODIO551. Este garantismo inquisitório consistiu
mãos de Francisco CAMPOS e de sua homenagem – contida na Exposição
de Motivos – a Vincenzo MANZINI. e à ela oponível. Mas antes como direitos concedidos pelo Estado, ou seja, como direitos que decorrem,
para os indivíduos, das funções sociais que eles desempenham, das dimensões sociais do seu agir pes-
soal. Por isso, qualquer protecção que lhes seja concedida (em termos administrativos ou jurisdicionais)
Caberá examinar a estrutura de ambos os códigos – o italiano de 1930 e o é apenas legitimada pela relevância que o interesse subjectivo reveste para a coletividade, podendo
brasileiro de 1941 – mas também verificar como, no plano discursivo, algumas ser suspensa logo que surja o interesse contrastante da comunidade”. HESPANHA, Antonio Manuel.
Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social. Continuidades e Rupturas. In
categorias do processo penal foram apresentadas ou ressignificadas em solo bra- Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1288 – 1289.
549. “Se o primeiro destes aspectos permitia precisamente que a Itália fosse erigida em modelo pelos “Esta-
sileiro. Como assinala HESPANHA, diversas categorias jurídicas desenvolvidas dos de direito”, o segundo é sintomático de uma deriva autoritária generalizada nas décadas de 1920 e
1930 e permite sustentar a hipótese de que a partilha de problemas e soluções entre os Estados pós-li-
durante a vigência do período fascista são o produto de uma sociologia positivis- berais foi, pelo menos nalguns casos, muito maior do que as diferenças do regime político deixariam
supor”. PIRES MARQUES, Tiago. O Momentum da Codificação Criminal: reflexões metodológicas
ta organicista548, que subjazia na concepção fascista de sociedade, bem como na sobre a análise histórica dos códigos penais. In TAVARES DE ALMEIDA, Pedro; ________. Lei e
Ordem: justiça penal, criminalidade e polícia (séculos XIX e XX). Lisboa: Horizonte, 2006.p. 16.
550. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social.
546. LEIBHOLZ, Gerhard. La Dissoluzione della Democracia Liberale in Germania e la Forma di Stato Continuidades e Rupturas. In Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1287.
Autoritaria. Milano: Giuffrè, 1996. p. 87. 551. Segundo AMODIO, o garantismo inquisitório corresponde à oferta de tênues corretivos de fachada a
547. LEIBHOLZ, Gerhard. La Dissoluzione della Democracia Liberale in Germania e la Forma di Stato um processo inquinado pela velhas estruturas inquisitórias. AMODIO, Ennio. Motivazione della Sen-
Autoritaria. Milano: Giuffrè, 1996. p. 78-79. tenza Penale. In Enciclopedia del Diritto. v. XXVII. Milano: Giuffrè, 1977. p. 181 – 183. AMODIO,
548. “Nesta perspectiva, os direitos individuais não podem ser vistos como qualquer coisa anterior ao Estado Ennio Verso uma Storia della Giustizia Penale in Età Moderna e Contemporanea. In NEGRI, Daniele;
190 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 191

em uma expressão que designava criticamente determinado período do pro- político), se encontram presentes no corpo do deformado código de processo
cesso penal italiano, após as reformas processuais pós-fascistas e que pretendia penal brasileiro. Evidentemente que a forma como o Brasil encobre os lastros
demonstrar que a convivência de duas almas distintas não poderia atender a autoritários, através do deslocamento para o significante Constituição flagra
exigência de aperfeiçoar um código de processo penal552. a operatividade escamoteadora. Como destaca SBRICCOLI, a queda do
Mesmo após as incontáveis alterações legislativas, não se encontra no regime fascista na Itália não impediu que alguns componentes característicos
Brasil nenhuma espécie de ruptura com o modelo codicístico do Estado Novo, daquela experiência continuassem a circular, chegando até hoje, na sociedade
apesar de, como já referenciado, a reorganização da matéria tenha sido ampla, italiana554. O mesmo vale para o Brasil: aqui circulam categorias jurídicas
utilizando-se de um recurso argumentativo que impunha a necessidade de sin- desenvolvidas e articuladas em pleno Estado Novo e ressignificadas a partir
cronização do processo penal à Constituição da República. A tarefa, então, será da formal redemocratização do país, não sem antes passar por alguns ajustes
examinar como as categorias, no Brasil e na Itália, se organizaram em torno de e relegitimações inspiradas na experiência política pós-1964. Para utilizar a
determinado eixo narrativo político-jurídico, e que, substancialmente em torno metáfora de VASSALI, pode-se afirmar que o código de processo penal esta-
do código de processo penal brasileiro se aglomeraram discursos laudatórios, donivista ganhou diversas sobrevidas, perpetuando-se, inimaginavelmente,
baseados, a exemplo da Itália, na ideologia da defesa social. por mais de 70 anos e em um regime autodeclarado democrático.
Neste ponto, parece indeclinável sustentar-se que podem ser encontradas A exemplo do que sucedera na Itália, existe um grande contingente de
rupturas e permanências relativamente ao modelo de processo penal autoritário, pensadores que recorre à apoliticidade contida no discurso da técnica pro-
tal qual idealizado, originariamente, no Brasil, a partir de determinada estrutu- cessual a fim de rejeitar implicações políticas aderentes ao código de processo
ra narrativa. Com o advento da Constituição de 1988, diversas modificações penal de 1941. Além disso, a aura que encobre – em nosso caso específico
processuais trataram de reorganizar eixos temáticos e de facilitar o convívio com – processualistas, retirando-lhes a responsabilidade política pela manutenção
preceitos de natureza constitucional, muito embora, em grande parte, tais me- de categorias jurídicas, mesmo que inadvertidamente autoritárias, contribui
didas possam ser interpretadas como pertencentes ao “garantismo inquisitório”. para uma doutrina palidamente crítica. Grande parte da anemia política que
Nas palavras de HESPANHA, “muitos dos ingredientes que encontramos na impregna inclusive parte considerável da crítica processual penal brasileira
teoria jurídica do fascismo – quer no direito privado, quer no público – acabam pressupõe duas estratégias: a) a negação, no melhor estilo da concepção ra-
por ser reutilizados num momento posterior – e muitas vezes sem a necessária cionalista de processo (e aqui podemos citar TARUFFO e todo o conjunto de
memória dos seus usos anteriores – por correntes que reclamam da superação séquitos), de quaisquer influências políticas sobre as experiências processuais,
do individualismo oitocentista. Foi isto, justamente, que permitiu uma notável o que desafia não apenas conhecimentos mínimos de história do direito, da
continuidade da dogmática em muitos domínios do direito, nomeadamente ciência política e da própria história das categorias processuais e b) a indi-
naqueles menos sujeitos ao escrutínio público”553. ferença relativamente aos produtos conceituais e à economia política dos
Estes institutos jurídicos, com a sua performatividade autoritária significantes que estabelecem as relações de poder e dominação no campo
(posto que a sua ideação-realização conjuga todos os verbos do autoritarismo processual. Esta segunda opção parece ser a mais comumente encontrada
na literatura processual penal brasileira. É, também, em relação à primei-
PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incon-
tro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 340. ra opção político-ideológica555, menos refinada, embora mais honesta. Uma
552. AMODIO, Ennio Verso uma Storia della Giustizia Penale in Età Moderna e Contemporanea. In NEGRI, dificuldade adicional pode ser levada a cabo a partir da parquíssima produ-
Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: materiale
dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 340. Especialmente
através das reformas emergenciais da década de 70 e a partir do código de processo penal de 1989, que
ção intelectual brasileira, de natureza crítica, que procura apresentar, mesmo
passa a expandir os mecanismos negociais no campo processual penal, PADOVANI adotará o termo
“inquisição suave” para descrever o fenômeno das sanções premiais. PADOVANI, Tullio. La Soave 554. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
Inquisizione: osservazioni e rilievi a proposito delle nouve ipotesi di ravvedimento. In Rivista Italiana fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
di Diritto e Procedura Penale. v. 24, 1981. p. 529-545. Giuffrè, 1999. p. 817.
553. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social. 555. Toda opção, inclusive a de cunho metodológico é política. Cf FEYERABEND, Paul. Contra o Método.
Continuidades e Rupturas. In Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1290. 2 ed. São Paulo: Unesp. 2011.
192 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 193

que sob o signo da “crítica apolítica”, o fabrico de nosso diploma processual simbiótico, explicasse sic et simpliciter, o contexto atual. Dois são os resultados
penal. Desta forma, este capítulo procurará, sem a pretensão de esgotamento desta postura: a) a crítica – especialmente a acadêmica – é rotulada como “in-
– coisa por sinal pertencente ao universo do narcisismo epistêmico e de sua vencionismo”; b) a desnecessidade de reformas conceituais pela instalação das
consequência inarredável, o “epistemicídio” – apresentar as forças históricas categorias “consolidadas” no campo mais profundo – o da larga duração (long
que conduziram à tomada de determinadas escolhas jurídico-políticas no durée) – pertencente tanto ao campo operativo das práticas punitivas que de
campo processual penal italiano. Além disso, como hipótese de condução do forma pedestre parasitam o sistema de justiça criminal brasileiro, quanto ao
ensaio, temos a presença do encobrimento da responsabilidade dos juristas registro de um imaginário jurídico, que se autodefine e se autorreferencia como
na realização e perpetuação de um processo penal antidemocrático em pleno ideal e longe de uma construção autoritária.
regime de democracia (ao menos formal). Evidentemente que não há espaço É neste húmus que a responsabilidade de juristas e “saberes de escola”
aqui para traçar um diagrama dos períodos processuais penais no Brasil e na são negados, que as práticas autoritárias conseguem se naturalizar no campo
Itália, mesmo que no caso, a experiência republicana tenha produzido um da tensão entre teoria e práxis, com nítida e incontestável prevalência da
único código nacional (no caso brasileiro)556. segunda. Por fim, não menos responsável ainda é a cultura manualística, que
Finalmente, uma última advertência. O capítulo não procura traçar uma nos últimos anos foi capaz de simetrizar, em larga medida, teoria e práticas
história das instituições políticas do fascismo, tampouco de suas instituições dos tribunais, de forma que o papel da doutrina acaba sendo o de justificar
jurídicas. O que interessa é demarcar como o fascismo absorveu determinadas o decisionismo, superar as inevitáveis incongruências relativas à juristocracia
categorias jurídico-processuais, possibilitando que um sistema autoritário fosse brasileira e, por fim, proporcionar ao poder judiciário que se retroalimente do
construído desde as mais vincadas raízes liberais557. A etiqueta do tecnicismo material previamente abraçado pela doutrina, num ciclo vicioso e simplista,
jurídico também deixará suas marcas no processo penal brasileiro, na tentativa fechado e autorreprodutor, ao melhor estilo metástico.
dúplice de esconder o rastro autoritário reservado a ideias centrais do processo
penal, bem como o necessário escamoteamento destas categorias, aparentemen- 2.1. RAZÕES DO PROCESSO PENAL FASCISTA
te nascidas a partir de uma orfandade jurídica e política. Categorias processuais NA ITÁLIA: O LIBERALISMO REACIONÁRIO E O
sem pais, sem responsáveis. Tudo como se a tradição558 e a história, num registro SINCRETISMO DISCURSIVO COMO CONDICIONANTES
556. SKINNER traça de forma muito precisa a presença de mecanismos de custódia preventiva e de punição
EPISTEMOLÓGICAS
política que apareciam, simultaneamente, na Itália fascista (através do vilipêndio) e na Grã-Bretanha
democrática dos anos 20 e 30 (mediante o libelo sedicioso). SKINNER, Stephen. Reatti Contro lo Para poder situar o leitor, como estratégia de apresentação de ciclos
Stato e L’intreccio tra Fascismo e Democrazia Degli Anni Venti e Trenta del Novecento: vilipendio, históricos relativos ao processo penal, seria possível acolher a periodização do
libello sedicioso e la sospensione della legalità. In ________. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione
nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 58. Na mesma linha de orientação podem ser trazidas à
baila as palavras de HEAD, para quem “os governos totalitários são conhecidos por punir seus oposito-
processo penal republicano italiano, de acordo com ORLANDI. Esta análise
res políticos por crimes contra o Estado, mas a história demonstra que também governos considerados e proposta leva em consideração, segundo o autor, três fatores: a situação
democráticos perseguiram estes tipos de delito”. HEAD, Michael. Crimes Against State:from treason to
terrorism. London: New York: Routledge, 2011. p. 02. político-social, o estilo doutrinário e o cenário da reforma559. O primeiro
557. “Marcada por uma intensa produção legislativa nos campos penal e policial, a Itália fascista adquire
um interesse particular em virtude de dois outros factores. O primeiro diz respeito ao facto de aí se ter período seria aquela imediatamente após a queda do fascismo (1944 – 1961).
desenvolvido um Estado autoritário/totalitário em larga medida a partir do interior, e com os recursos, da O segundo, considerado por ORLANDI como o do grande desenvolvimento
tradição jurídica liberal. Por outro lado, o Estado italiano foi, então, considerado por muitos penalistas
como constituindo a vanguarda do direito e da política criminal”. PIRES MARQUES, Tiago. O Mo-
mentum da Codificação Criminal: reflexões metodológicas sobre a análise histórica dos códigos penais.
econômico italiano, seria aquele que vai de 1962 a 1989560. Por fim, o terceiro
In TAVARES DE ALMEIDA, Pedro; ________. Lei e Ordem: justiça penal, criminalidade e polícia
(séculos XIX e XX). Lisboa: Horizonte, 2006. p. 16. integridade da tradição jurídica, um fenómeno de pouco significado”. PIRES MARQUES, Tiago. O
558. Assiste razão a PIRES MARQUES quando assinala os perigos e problemas conexos ao conceito de Momentum da Codificação Criminal: reflexões metodológicas sobre a análise histórica dos códigos
tradição na pesquisa historiográfica: “a utilização do conceito de tradição jurídica em estudos históricos penais. In TAVARES DE ALMEIDA, Pedro; ________. Lei e Ordem: justiça penal, criminalidade e
onde se procura analisar o impacto do fascismo sobre a lei penal levanta, assim, alguns problemas. polícia (séculos XIX e XX). Lisboa: Horizonte, 2006. p. 21.
Na verdade, tal conceito, quando aplicado como instrumento de análise, tende a provocar um efeito 559. ORLANDI, Renzo. Diritti Individuali e Processo Penale Nell’Italia Repubblicana. In NEGRI, Daniele;
semelhante de construção de um continuum legal, desvalorizando o significado das inovações e re- PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incon-
produzindo, dos discursos dos actores históricos, o tópico de que a ordem jurídico-penal construída de tro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 54.
acordo com as novas – ou mesmo revolucionárias – orientações políticas é, perante a manutenção da 560. Embora não seja o propósito deste estudo investigar a reforma de 1962, quando o ministro GONELLA
194 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 195

período seria aquele aberto mediante o novo código de processo penal italia- de cientificidade o direito público italiano – em especial o administrativo
no, de 1989. Para os propósitos da presente pesquisa, trataremos do período – incorporando as categorias da ciência por excelência: o direito privado.
fascista e daquele imediantamente posterior à queda do regime, equivalente Segundo POESIO, cinco condições causaram a deterioração do Estado
ao primeiro eixo temporal apresentado por ORLANDI. de Direito na Itália e na Alemanha e todas elas estão ligadas à detenção
O código fascista de 1930, na Itália, não nasce unicamente da ruptu- policial italiana e a custódia preventiva na Alemanha. São elas: a) a adoção
ra de um regime político, com a ascensão de uma política autoritária. Em de medidas liberticidas legetimadas pela transformação dos códigos penais
outras palavras, o fascismo não cria categorias processuais desconhecidas dos por força de procedimentos emergenciais; b) enfraquecimento do aparato
juristas. Antes, pelo contrário, coopta juristas para que, sem radicalmente judiciário e a sua subordinação à polícia; c) indistinção entre o público e o
transmutar os conceitos – ao menos em sua aparência e em sua relação com privado, assim como a subjetivização do direito; d) a negação do princípio
outras categorias – apareça a reforma como um mero “ajuste legislativo”. Para de legalidade; d) condições de detenção extralegais563.
NEPPI MODONA, os penalistas responsáveis pela defesa do código de 1930 A “civilística administrativa” se nutriu do pensamento da escola his-
elaboraram seus argumentos em torno da ideia de continuidade, sublinhando tórica alemã564. Na Itália, o processo de incorporação dos elementos da
uma matriz liberal-garantista que percorreria ambos os códigos561 (o código escola histórica á publicística italiana se deu especialmente com o contri-
penal de 1889 – Código Zanardelli, o código de processo penal de 1913 – buto de Vittorio Emanuele ORLANDO, Oreste RANELLETTI e SANTI
Código Finochiaro-Aprile e os códicos Rocco – penal e de processo penal). ROMANO565. Sobre as bases da legalidade da Administração, a construção
A matriz de pensamento jurídico que permitiu uma transmissão sem do Estado fascista não havia experimentado uma crise que provocasse a naces-
sobressaltos na nova composição do Estado fascista residia fortemente na sidade de se despir do princípio da legalidade. Inclusive, esta uma diferença
juspublicística italiana. Com efeito, o estrangulamento do Estado de Direi- apontada, à exuastão, pela doutrina penalista italiana, no escopo de minimizar
to, especialmente se se tiver atenção à formulação de MAGGIORE, com a as interferências políticas do Estado italiano da vida do povo. A comparação
sua reconfiguração, não foi obra isolada da doutrina jurídica politicamente com a Alemanha foi sempre um salvo-conduto para justificar inúmeros irra-
engajada como MAGGIORE, GENTILE ou ainda PANUNZIO. Grande cionalismos, marcados pela pretensão de cientificidade e de obediência aos
parte do substrato sobre o qual se reorganizou o Estado fascista residia na ditames legalistas566. Evidentemente, a pretensão de cientificidade do direito
concepção publicística de direito562. Neste ponto, o denominado “libera- 563. POESIO,Camilla. Il Confino di Polizia, la “Schutzhaft” e la Progressiva Erosione dello Stato di Diritto.
In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli,
lismo reacionário” tem como suporte concepções que procuraram ditar 2015. p. 95.
564. Em realidade, tampouco a escola histórica proporcionará, exclusivamente à Itália, um ambiente fértil
para a consolidação da notável envergadura autoritária assumida pelo regime nacional-socialista. Desta
designa como presidente da comissão de reforma CARNELUTTI, recomendamos a leitura das dis- forma, BARATTA, ao analisar o período anterior ao regime assinala que o problema da involução
cussões em torno do projeto Carnelutti, que podem ser encontradas em Atti del Convegno Nazionale autoritária e irracionalista da consciência jurídica tedesca no período nacionalsocialista se traduz ime-
di Studio su Alcune delle Più Urgenti Riforme della Procedura Penale (Bellagio, 24-26 aprile 1953; diatamente naquela do nexo de continuidade que liga aquela involução às profundas transformações
Milano, 28-30 novembre 1953). Milano: Giuffrè, 1954. que o pensamento jurídico tedesco começa a realizar em torno das codificações, no decurso de um
561. NEPPI MODONA, Guido. Principio di Legalità e Giustizia Penale nel Periodo Fascista. In Quaderni século. BARATTA, Alessandro. Positivismo Giuridico e Scienza del Diritto Penale: aspetti teoreteci e
Fiorientini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 36. t. II. Firenze, 2007. p. 987. O mesmo pode ser ideologici dell sviluppo della scienza penalistica tedesca dall’inizio del secolo al 1933. Milano: Giuffrè,
dito (consoante se verá no próximo capítulo), em torno do processo civil. Tomemos as palavras de 1966. p. 38. Sobre as origens da escola histórica Cf TARELLO, Giovanni. Cultura Jurídica y Política
CAPPELLETTI: “como forma autoritária de conservação mais do que de transformação ou de revolu- del Derecho. México D.F: Fondo de Cultura Económica, 1995. p. 92-108.
ção das estruturas econômico-sociais preexistentes, o fascismo e a sua ideologia não podiam expressar 565. “O pensamento jurídico-constitucional do século XIX permitia bem uma transição doce entre o princí-
inovações profundas no campo do processo civil. O autoritarismo fascista encontrou o terreno congênito pio do Estado de Direito, formulado pela publicística alemã e italiana (nomeadamente Vittorio Emma-
de seu próprio operar na esfera do direito penal (delitos políticos, agravamento das penas, etc) e do nuel Orlando e seu discípulo Oreste Ranelleti) da segunda metade do século, e a nova concepção do
processo penal (acentuação do caráter inquisitivo), mais do que no direito ou processo civil”. O que fica Estado total não limitado pelos direitos individuais. Realmente, a publicística do fim do século combi-
sem explicação é que, como se verá, o processo civil se aproxima do processo penal (considerado pelo nara a ideia do poder absoluto e soberano do Estado com o princípio do primado do direito através da
autor como uma legislação autoritária). CAPPELLETTI, Mauro. Libertad Individual y Justicia Social ideia de que é Estado de direito aquele que “quer na forma do direito”, ou seja, que quer sob a forma de
em el Proceso Civil Italiano. In ________. Proceso, Ideologías, Sociedad. Buenos Aires: Ediciones lei. Assim, realizava o modelo de Estado de direito qualquer Estado que actuasse nos limites da lei que
Europa-América, 1974. p. 96-97. ele próprio criara”. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo
562. Como parte irrevogável da compreensão fascista do ordenamento jurídico, o fim da distinção entre direito e do Estado Social. Continuidades e Rupturas. In Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1290.
público e privado, a favor da “publicização” integral do direito era um traço indelével. STOLZI, Irene. Il 566. “O filão da construção liberal do Estado, simbolizado por V. Orlando, permaneceu sobretudo vivaz no
Fascismo Totalitario: il contributo della riflessione idealistica. In Historia et Jus. v. 2, 2012. Disponível em domínio do direito administrativo (Santi Romano e Oreste Ranelleti), onde a manutenção do princípio
http://www.historiaetius.eu/uploads/5/9/4/8/5948821/stolzi.pdf. Acesso em 25.04.2016. p. 07. da legalidade da administração permitiu continuar a considerar que o Estado fascista se conformava
196 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 197

não deixaria indene a nova roupagem assumida pelo dogmática italiana. Da para comissões de reforma dos códigos (como por exemplo Vittorio SCIALO-
escola histórica, como já referido, a publicística se nutriu, envidando esforços JA, Filippo VASSALLI, Enrico REDENTI, Francesco CARNELUTTI, Piero
na construção de um método robusto o suficiente para perdurar e orientar os CALAMANDREI, Vincenzo MANZINI e Arturo ROCCO)569. Evidente
juristas na elaboração de seu mister. que a ideologia fascista pesou de forma mais acentuada sobre as reformas do
Logo após as codificações europeias, desenvolveram-se duas correntes direito e do processo penal. Certamente o método técnico-jurídico permitiu
ou escolas jurídicas. A escola da exegese, construída a partir da interpretação uma conversão daquela tradição liberal conservadora pré-fascista sem maiores
do código civil francês e a escola histórica na Alemanha. Evidentemente, problemas. Com o fascismo, o direito penal, segundo FERRAJOLI, acentua
ambas as abordagens metodológicas eram diferentes, embora pudessem suas características autoritárias, convertendo-se na defesa social e na tutela do
ser conectadas relativamente aos objetivos perseguidos. Fundamental- próprio Estado. Importante neste sentido o deslocamento da teoria do bem
mente, ambas as escolas procuravam um isolamento epistemológico da jurídico (que se caracterizava pela proteção dos direitos das pessoas) para o
ciência jurídica, cada uma à sua maneira. Enquanto a escola da exegese “direito do Estado a ações ou omissões sob ameaça de pena”570.
agia em consonância com o escrutínio da legislação positiva, a pandec- Como já referido, o fascismo não cria novas categorias penais e proces-
tística alemão procurava reelaborar, doutrinariamente, a tradição herdada suais penais. Neste sentido, a mudança pós-codificação não traria o resultado
do direito romano. Em ambas se notava certa obsessão pela cientificidade ocorrido na Alemanha. Se por um lado, de acordo com autores como SBRIC-
do direito, da qual o método técnico-jurídico permitiria atender aos an- COLI e FERRAJOLI, isto possibilitou um “efeito de frenagem” realizado pela
seios de construção de uma dogmática jurídica forte. Além disso, o método presença de juristas nas comissões de reforma, impedindo impulsos radicais
também garantiria a autonomia epistemológica das disciplinas jurídicas, (tomando-se como paradigma a Alemanha), tal circunstância também tornou
rechaçando-se as “contaminações” oriundas das ciências sociais e humanas. mais difícil a imediata detecção de um discurso abertamente autoritário pelos
Na Itália, após a unificação, este método seria compartilhado pelos mais juristas responsáveis pelas reformas pós-fascistas. Em outras palavras, se por
diversos campos jurídicos, atingindo inclusive o direito e o processo penal um lado a legislação nazista se mostrava absolutamente incompatível com
(apesar de tais ramos jamais terem conhecidos grandes romanistas naquele qualquer regime político posterior à queda do regime, dada a incompatibili-
país), que tinha como seu legado a tradição iluminista francesa. Operou-se dade manifesta de sua legislação, o mesmo não se poderia dizer da Itália. O
uma colonização civilista das disciplinas publicistas, que pode ser observada fascismo, ao remodelar categorias já pertencentes de longa data ao cenário
no projeto de Vittorio Emanuele ORLANDO, que tentaria “recuperar o jurídico italiano, permitiu a parasitagem destas noções no seio das reformas
velho material filosófico” representado pelas “teorias do direito natural”567. que se sucederam, de 1955 a 1989571. Segundo FERRAJOLI, o método téc-
O método técnico-jurídico havia criado uma cultura antipolítica, buro- nico-jurídico teria protegido a legislação contra influências substancialistas,
crática e estatal e que podia bem conviver com o fascismo. Além disso, pode-se como as de MAGGIORE, evitando o que sucedera na Alemanha572.
afirmar que o fascismo desenvolveu uma grande habilidade em “integrar
os técnicos”: segundo FERRAJOLI, bastaria aqui pensar-se na designação de breves ensaios, estruturado por grossas contraposições, pela repetição contínua das mesmas ideias
de fundo, em um ataque dirigido ao liberalismo, à democracia e ao socialismo”. CHIODI, Giovanni.
de SANTI ROMANO para presidente do Conselho de Estado, de Alfredo Alfredo Rocco e il Fascino dello Stato Totale. Disponível em http://romatrepress.uniroma3.it/ojs/index.
php/giuristi/article/view/79/78. Acesso em 12.01.2017. p. 105.
ROCCO568 para Ministro da Justiça e a convocação de dezenas de juristas 569. FERRAJOLI, Luigi. Ensayo Sobre la Cultura Italiana del Siglo XX. México D.C: Universidad Autóno-
ma de México, 2010. p. 32.
com o princípio básico do Estado de direito, ou seja, com a limitação da actividade estadual (nomea- 570. FERRAJOLI, Luigi. Ensayo Sobre la Cultura Italiana del Siglo XX. México D.C: Universidad Autóno-
damente da actividade administrativa do Estado) pela sua própria lei”. HESPANHA, Antonio Manuel. ma de México, 2010. p. 37.
Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social. Continuidades e Rupturas. In 571. Para um panorama geral sobre as reformas republicanas do código de processo penal italiano Cf OR-
Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1292. LANDI, Renzo. La Riforma del Processo Penale fra Correzioni Strutturali e Tutela “Progressiva” dei
567. FERRAJOLI, Luigi. Norberto Bobbio y la Filosofía del Derecho Contemporánea. In Doxa. n. 28. Ali- Diritti Fondamentali. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. v. LVII. Fasc. 3. Milano: Giuf-
cante, 2005. p. 18. frè, 2014. p. 1133 – 1164.
568. Segundo CHIODI, “o itinerário político de Alfredo Rocco é produto de uma estratégia, expressa em 572. FERRAJOLI, Luigi. Ensayo Sobre la Cultura Italiana del Siglo XX. México D.C: Universidad Autóno-
escritos ágeis, marcados por um estilo sintético, claro e seco, limpo, típico de panfletos jornalísticos ou ma de México, 2010. p. 38.
198 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 199

Este argumento, concernente à comparação entre as legislações alemã matriz “sócio-biológica”576. O argumento comparatístico entre Alemanha e
(durante o nazismo) e italiana (durante o fascismo) será uma constante no Itália percorrerá praticamente todo o tecnicismo (do direito e processo penal
discurso dos tecnicistas (inclusive, nos discursos dos juristas brasileiros, re- ao direito e processo civil577), inclusive chegando ao século XXI, em obras
gularmente se verificará o “paralelo com a Alemanha”, a fim de acentuar críticas sobre o pensamento jurídico no contexto do fascismo.
a não-radicalidade das reformas brasileiras). Como derivações, a teoria do Neste ponto, vale a pena sublinhar uma questão fundamental: o método
“efeito de frenagem” (atuação dos juristas no processo codificatório fascista técnico-jurídico antecede o fascismo, e é o resultado de uma intervenção que
como limitação ao político) sustentará: a) a isenção de responsabilidade dos se coloca a meio caminho na disputa política entre duas escolas, a “clássica” e a
juristas que atuaram em comissões ou cargos públicos no período; b) a am- positivista. O método tecnicista, portanto, não é contemporâneo do fascismo:
pliação da vigência de códigos permeados por ideais antidemocráticos, cujos o antecede. Contudo, é produto de um liberalismo reacionário e conservador,
elementos políticos foram indicados em apontamentos parciais e altamente sendo, ao fim, absorvido pelo fascismo, ao permitir dois movimentos: a) a
limitados573. A construção da distinção entre os estilos de pensamento penal manutenção de um mesmo horizonte teórico no qual os juristas poderiam
entre Alemanha e Itália já era delineada por ninguém menos do que Arturo continuar trabalhando e pesquisando, sem ulteriores “crises de consciência”;
ROCCO. Ora, não parece razoável, portanto, falar-se de uma continuidade b) a consequência inexorável do achatamento político da classe, que manu-
do tecnicismo jurídico-penal, mesmo após o advento do regime democrático seava um instrumento que se encontrava ao mesmo tempo aquém e além
sem igualmente reconhecer-se que as pré-compreensões, que delimitaram do plano político. O tecnicismo, quanto ao método, se oferecia como uma
o campo semântico no qual atuaria o sistema penal italiano, (o processo antifilosofia578. MANZINI, em seu Tratado de Direito Penal (1908) afirmará
de codificação fascista afastou por completo as bases do direito comparado, que: “em nossos estudos se nos afigura de todo supérflua aquela parte estri-
posto que baseado na “italianidade”), se opunha ao modelo “nazista”574. Tal tamente filosófica que os escritores antigos costumaram fazer preceder a seus
distinção que Arturo ROCCO tomara, na década de 30, pressupunha que tratados. Buscar os fundamentos últimos...hoje não está permitido a uma
enquanto na Itália se desenvolvera uma “ciência técnica do direito penal” disciplina eminentemente prática, positiva como a nossa. Certamente, para
– afirmação cristalinamente inverídica, já que o fascismo penal e proces- o direito penal, foi muito maior o dano que o benefício ocasionado pela
sual penal utilizava em larga medida categorias herdadas do positivismo575 infecção filosófica que o invadiu, especialmente a partir do século XVII”579.
criminológico – a Alemanha construíra um direito penal regulado por uma
A transformação da ciência penal neste período pode ser bem sinalizada
573. Segundo VASSALLI, no que diz respeito à reforma do código penal, ocorreu uma divisão, na parte
pelas afortunadas expressões cunhadas por SBRICCOLI. Segundo o pensa-
especial, entre crimes políticos e “técnicos”, sendo os primeiros revogados. Contudo, manteve-se a parte dor, a Itália conheceu a sua penalística civil, correspondendo ao pensamento
geral. Segundo VASSALLI, esta parte geral do código Rocco não estari isenta da contaminação política.
VASSALLI, Giuliano. O Código Rocco. In Revista de Direito Penal. n. 27, 1979. p.54. que se desenvolve nos anos 40 e 70 do século XVIII e que consiste, fundamen-
574. As distinções são meramente retóricas. Exemplificativamente, em um escrito, DE MARSICO, sabi-
damente um tecnicista, elogiará o pensamento de DAHM, EXNER e HENKEL sobre a necessária talmente, no estabelecimento de critérios políticos para o desenvolvimento da
orientação política do processo penal. DE MARSICO, Alfredo. Dogmatica e Politica Nella Scienza
del Processo Penale. In _______. Nuovi Studi di Diritto Penale. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, cultura penal580 e a preocupação concernente ao progresso do direito penal581.
1951. p. 38-39.
575. Neste capítulo, procuraremos indicar com o termo positivismo aquele de matriz criminológica e não 576. ROCCO, Arturo. Scienza Italiana e Scienza Tedesca del Diritto Penale. In Annali di Diritto e Procedura
jurídica, muito embora o tecnicismo venha a se assumir como um método de investigação “objetiva Penale. v. 5, 1936. p. 869-879.
do direito”. BARATTA sustenta que o paradigma positivista, na Alemanha nazista, não apenas não era 577. Este argumento será utilizado, verbi gratia, por Calamandrei e Carnacini, na defesa do código de pro-
largamente adotado como inclusive, combatido. Afirmará BARATTA que no nazismo, se o positi- cesso civil italiano da década de 40.
vismo foi predominante como moral legalista e como teoria da validade do direito em franca oposição 578. Também se pode apreciar, na prolusão de Manzini na Universidade de Ferrara: “é contra a prepotência
relativamente ao relativismo ético e ao jusnaturalismo individualístico e racionalista, como teoria do absorvente da sociologia que nós defendemos o direito penal”. MANZINI, Vincenzo. La Crisi Presente
método da interpretação e da legislação, ele não esteve presente de modo significativo, mas foi sempre e del Diritto Penale. Ferrara: Tipografia Taddei, 1900. p. 02.
decisivamente combatido. BARATTA, Alessandro. Positivismo Giuridico e Scienza del Diritto Penale:
aspetti teoreteci e ideologici dell sviluppo della scienza penalistica tedesca dall’inizio del secolo al 1933. 579. MANZINI, Vincenzo. Tratatto di Diritto Penale Italiano. Torino: Fratelli Bocca, 1908. p. 03-04.
Milano: Giuffrè, 1966. p. 30-31. No mesmo sentido: “a codificação fascista não encontrará dificuldades 580. SBRICCOLI, Mario. La Penalistica Civile. In ________. Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v.
para utilizar inúmeros princípios e institutos da escola positiva – das medidas de segurança ao concurso I. Milano: Giuffrè, 2009. p. 505.
de pessoas no delito – e ao ganhar a adesão dos maiores expoentes da escola, a começar por Ferri, ao 581. LACCHÈ, Luigi. La Penalistica Costituzionale e il ‘Liberalismo Giuridico’: problemi e immagini della
regime fascista”. NEPPI MODONA, Guido. Tecnicismo e Scelte Politiche nella Riforma del Codice legalità nella riflessione de Francesco Carrara. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuri-
Penale. In Democrazia e Diritto. v. 17, 1977. p. 672. dico Moderno. v. 36. t I. Milano: Giuffrè, 2007. p. 664.
200 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 201

Neste sentido a máxima expressão da “penalística civil”, de forte matriz ilu- nasce, já na primeira década do século XX584. Estamos no paradigma da
minista, garante dos direitos e das garantias do indivíduo frente ao Estado “cientificidade” do direito e das reverberações da escola histórica, que ainda
será Francesco CARRARA. Mas mesmo neste período já se podia perceber ditava as bases para a ciência do direito privado e migrara, ao menos na Itália,
a existência de um debate doutrinário em torno de posições do liberalismo para o plano juspublicístico (temos aqui uma transferência de conceitos, que
clássico com variações autoritárias, fechamento dogmático e também algumas abastecerão o direito administrativo e constitucional), forjando uma cultura
inovações metodológicas. Apareceu também a variante da escola positiva que juspublicista conservadora e reacionária. Para FERRAJOLI, ao comentar o
se subtraiu à escolha entre autoritarismo e liberalismo, até o momento em que papel dos juristas no regime fascista, não se tratava da mera reprodução de
se tornou protagonista de um papel objetivamente conservador. No plano da uma ideologia profissional, mas de uma operação metapolítica, cuja finali-
legislação, houve uma oscilação que pendeu entre o reformismo zanardelliano dade era elevar operações políticas ao status de “científicas”, legitimadas pelo
de 1889 e o “autoritarismo liberticida” de julho de 1894 ou aquele de fevereiro trabalho dos juristas585. Esta característica autolegitimadora e autorreferencial
de 1899. Havia um poder judiciário que se submeteu ao executivo, desen- do direito penal é um traço inequívoco de seu fundamento autoritário586.
volvendo tais atividades de caráter político com lucidez e precisão, usando as Sobre este momento de transição, SBRICCOLI desenvolverá a expressão
leis no sentido mais estrito e opressivo, realizando uma série de deslizamentos “civilística penal”, que significará, a partir das metodologias desenvolvidas
hermenêuticos que conduziram alguns artigos do código penal ao papel de por ORLANDO no plano do juspublicismo e inicialmente por ROCCO,
entidades comuns à repressão anti-operária, antianarquista e antissocialista582. no campo do direito penal, uma tentativa de mortificar a ciência integrada
Ao lado da tentativa lombrosiana de ocultar em um discurso “científico” do direito penal. Não se tratará, bem verdade, de um rompimento vertical,
uma escolha de matriz conservadora, encontra-se os conservadores liberais mas de limitação do direito penal às demais disciplinas e vice-versa. SBRIC-
que exprimem, mais de uma vez, juízos severos sobre a degeneração do siste- COLI definirá como civilística penal, “o resultado da transposição para o
ma. Ao lado das meditações puramente técnicas da indefinida “terza scuola”, campo penal, dos métodos de análise, dos princípios reguladores, dos sistemas
nasce e toma forma um componente destinado a se aperfeiçoar na obra de classificatórios, das categorias exegéticas, das sintaxes e da própria lógica, de
ROCCO e MANZINI, empenhado em traçar contornos jurídicos que foram séculos, do direito privado”587.
utilizados como suporte e cobertura ideológica à repressão e à ordem583. Segundo teorias como as de IHERING, SANTI ROMANO, OR-
Segundo FERRAJOLI, o papel político exercido pela cultura jurídica LANDO e JELLINEK, existe uma gama considerável de problemas que
na construção do Estado italiano se desenvolveu através de uma operação de concernem: a) o poder soberano do Estado e de sua forma necessariamente
despolitização da classe, já na metade do século XX: a teorização da neutrali- jurídica; b) a insustentabilidade de limites externos ao Estado ou oponíveis
dade e apoliticidade do Estado e do direito, cuja resolução surgiria sob a forma à vontade do Estado; c) a fundação dos direitos subjetivos baseada exclusiva-
da “ciência avalorativa do direito” (método técnico-jurídico) Este processo mente em uma autolomitação do Estado; d) a submissão dos órgãos estatais
se incrusta em um giro do próprio liberalismo penal: se antes o iluminismo às normas jurídicas (mas não o próprio Estado); e) a admissibilidade de pre-
e toda a tradição liberal – de CARRARA a LUCHINI se preocupava com a tensões jurídicas dos indivíduos frente ao Estado588.
justificação externa do direito, o direito penal liberal, a partir da “desneces-
584. FERRAJOLI, Luigi. Ensayo Sobre la Cultura Italiana del Siglo XX. México D.C: Universidad Autóno-
sidade de justificação externa do Estado e do direito”, se preocupará apenas ma de México, 2010. p. 03.
com a construção jurídica interna de sua racionalidade. Nesse campo não é 585. FERRAJOLI, Luigi. Ensayo Sobre la Cultura Italiana del Siglo XX. México D.C: Universidad Autóno-
ma de México, 2010. p. 05.
difícil compreender o horizonte epistêmico em que o método técnico-jurídico 586. PALIERO, Carlo Enrico. Legitimazione Democratica Versus Fondamento Autoritario: due paradigmi
di diritto penale. In STILE, Alfonso Maria. Democrazia e Autoritarismo nel Diritto Penale. Napoli:
Edizioni Scientifiche Italiane, 2011. p. 160.
582. SBRICCOLI, Mario. Dissenso Politico e Diritto Penale in Italia tra Otto e Novecento. In Quaderni 587. SBRICCOLI, Mario. La Penalistica Civile. In Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v. I. Milano:
Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 2. Milano: Giuffrè, 1973. p. 610. Giuffrè, 2009. p. 582.
583. SBRICCOLI, Mario. Dissenso Politico e Diritto Penale in Italia tra Otto e Novecento. In Quaderni 588. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 2. Milano: Giuffrè, 1973. p. 612. derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 76.
202 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 203

Diante deste panorama, o Estado de Direito assumirá uma limitação O Estado fascista pôde se declarar um Estado de Direito ao sublinhar
do Estado relativamente aos direitos ou seja, tocará no ponto da limitação o seu caráter não arbitrário, regulado, com previsibilidade de suas ações go-
dos poderes do Estado. É apenas neste sentido que será possível conceber- vernamentais. A liberdade poderia ser limitada diante do interesse público,
-se uma teoria dos direitos públicos subjetivos, equivalente sempre a uma nunca ao arbítrio dos governantes, mas através da lei. Ao mesmo tempo será
autolimitação do Estado589. Neste período que assume importantíssimo um Estado totalitário, ou seja, que persegue a grandeza nacional e exige que
rol a doutrina do direito administrativo, posto que a atenção do jurista se toda a vontade seja empenhada nesse objetivo. Será antijurídico tudo que
voltará para o desenvolvimento destes limites590. Também será a partir da não se sujeitar a esta finalidade595. O Estado fascista será um Estado de Di-
doutrina administrativista e constitucional oitocentista que posteriormente reito posto que se exprime através da lei, por isso não poderia se confundir
o Estado de Direito será assumido ideologicamente como uma “moderni- com uma ditadura, dirão seus defensores596. O Estado fascista acaba sendo
dade político-constitucional”591. compreendido como Estado de Direito, ou seja, que fala a linguagem da lei,
A fórmula assumirá um compromisso de proteção do sujeito frente ao diferenciando-se dos tipos de estado despóticos e arbitrários597. GENTILE
Estado, no campo das liberdades públicas, que coincidirá com a representação apresentará o fascismo como um regime legitimado pela experiência do passa-
do regime liberal parlamentar. De outro lado, este mesmo Estado de Direito do italiano, que soube sintetizar tais forças598. ROCCO por seu turno assinala
vestirá uma roupagem que dá contornos jurídicos (legitimação) aos poderes a incompatibilidade do fascismo com o individualismo que marca tanto o
do Estado como vontade soberana e portanto, não conhece limites juridica- liberalismo quanto o socialismo. Contudo, este regime ao instaurar uma nova
mente vinculantes. Segundo COSTA, esta é a herança do pensamento liberal relação com as massas, não perde de vista a herança estadocentrista que havia
italiano do século XVII, reelaborada pelos juristas do fascismo592. caracterizado o pensamento liberal-conservador italiano599. Segundo COSTA,
o Estado de Direito é redefinido pela doutrina fascista nos seguintes termos:
Um dos elementos que garante certo eixo em torno dos plúrimos e con-
a) o Estado de Direito não é um Estado fundado em direitos ou funcional à
traditórios discursos jurídicos desenvolvidos durante o regime fascista consiste
sua tutela; é um Estado que se manifesta através da forma jurídica; b) o Estado
na crítica aos direitos. Como assinala COSTA, trata-se de um cruzamento
de Direito é uma fórmula que se preocupa diretamente com a Administração,
obrigatório da retórica fascista, que se nutre de um estereótipo que circulava
e não com a Constituição; c) o Estado de Direito pressupõe uma clara distin-
nas mais diversas facetas da cultura político-jurídica oitocentista: a acusação
ção entre liberdades públicas e privadas600. O resultado é o de que apesar de
do individualismo, atomismo ou hedonismo decorrente de uma cultura de
utilizada pela fascismo, a expressão Estado de Direito acaba perdendo toda a
direitos593. Multiplicam-se as tentativas de tornar compatíveis Estado de Direito
vitalidade que lhe conferira a doutrina publicística liberal.
com a imagem do Estado fascista, oferecendo uma nova roupagem à tese da
autolimitação do Estado bem como a teoria dos direitos públicos subjetivos594. Quanto ao método, a civilística penal procederá à exegese dos textos
legislativos, que poderão ser corrigidas através de procedimentos herme-
589. MANZINI afirmava que na ideologia fascista, ao contrário da demo-liberal, a liberdade individual não nêuticos no campo do direito penal. Então parte-se para a investigação
era preexistente ao Estado. Era uma mera concessão do Estado, no interesse da coletividade. No mesmo
sentido PAFUNDI, que afirmava que “a tutela da liberdade individual, de acordo com a concepção
fascista e ao contrário do Estado democrático-liberal, não é um direito preeminente do indivíduo, mas
uma concessão que o Estado faz ao indivíduo em relação e subordinação ao interesse social. PAFUNDI, derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 82.
D. Mandato di Accompagnamento, di Arresto, di Catture e di Comparizione. In Nuovo Digesto Italiano. 595. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
v.III. Torino: Giuffrè, 1939. p. 97. derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 85.
590. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua- 596. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 76. derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 86.
591. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua- 597. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 78. derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999.p. 86.
592. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua- 598. GENTILE, Giovanni. Fascismo e Cultura. Milano: Treves, 1929. p. 50 et seq.
derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 78. 599. ROCCO, Alfredo. La Dottrina Politica del Fascismo. In ________. Scritti e Discorsi Politici. v. III.
593. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario nello Stato Totalitario. Padova: CEDAM, 1939. p. Milano: Giuffrè, 1938. p. 1095-1099.
20 et seq. 600. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
594. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua- derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 89.
204 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 205

dogmática, que pressupõe uma descrição e uma exposição dos princípios de 1910 (que será abordada no próximo tópico). Tida como o marco do nas-
fundamentais do direito positivo, que operam a partir de sua própria lógica, cimento da orientação técnico-jurídica, antecede em pelo menos 10 anos o
sistematicamente organizada: tem-se assim um inventário de conceitos nascimento do fascismo como regime político na Itália. O que se encontrava
jurídico-penais fundamentais. Ao cabo, tem-se a crítica, amparada por em discussão na Itália era a reforma do código penal de 1889, considerado
deduções lógicas, colocando em evidência as antonomias, as desarmonias inadequado para atender às necessidades do Estado, e prenhe de problemas
eventualmente existentes entre os institutos de direito vigentes, no escopo técnicos. O discurso de Arturo ROCCO se encaixará em um cenário de claro
de abolir a sua existência ou lhe modificar os contornos601. apelo a mudanças e reformas legislativas, o que também agradava, neste aspec-
A tendência liberal, que produzira os códigos de 1889 e 1913 tinha se to, aos positivistas (não é sem razão que GAROFALO e CARELLI escreveram
reduzido a poucos juristas (como PESSINA e LUCHINI). A escola positiva um projeto de código de processo penal, em homenagem ao Ministro Zanar-
se encontrava reduzida a um pensamento involutivo, insustentável do ponto delli, em 1889, na tentativa de ver recepcionadas na legislação, as suas ideias).
de vista científico. O socialismo jurídico naufragara. O panorama era ocupa- Em realidade, o discurso de ROCCO é praticamente uma réplica do
do por um pensamento eclético, como aquele de Bernardino ALIMENA e projeto de trabalho sistematizado por ORLANDO605. A famosa prolusão de
Emanuele CARNEVALE (que sustentavam uma composição entre o velho ROCCO, em realidade, não passava de uma reconstrução, especificada, do
classicismo e o positivismo, já em franca decadência), e por liberais como pensamento de ORLANDO, defendida cerca de 20 anos antes. Em síntese,
Cesare CIVOLI e Pasquale TOZZI e por Vincenzo MANZINI602. ORLANDO defendia a separação (e não a absoluta ruptura, igualmente
ROCCO e MANZINI recuperaram o espaço de conservação expresso como ROCCO), entre o direito público e as demais ciências humanas e so-
historicamente na escola clássica, acentuando o papel de freio e de ordem com ciais. As relações entre o direito público e as demais ciências como economia,
uma dupla operação: de um lado acusando a escola clássica, especialmente os sociologia, filosofia e política eram ainda necessárias, para o direito público
seus expoentes históricos, de jusnaturalismo603, racionalismo, dependência me- poder usufruir do necessário contributo destas disciplinas. Pensava, portanto,
tafísica e falta de realismo jurídico, rompendo com o fundamento dos impulsos ORLANDO, no direito público como um verdadeiro mosaico, unindo pe-
liberais, reformistas e frequentemente antiautoritários que expressou. De outro daços de filosofia com aqueles da história, da política, etc606. Nesta prolusão
lado, limitando a ciência do direito penal ao único direito vigente e positivo, o de ORLANDO na universidade de Palermo, em 1925, o jurista afirmará que
que equivale a conduzi-lo a uma função de contemplação do direito existente, o direito público deverá ser pensado da mesma forma que o direito privado,
da glosa ao que foi escrito, da obsessão tecnicista, da fuga das grandes discussões como um complexo de princípios jurídicos sistematicamente coordenados607.
da penalística “engajada” e portanto, de refúgio na liturgia dos exercícios sobre Afirma ORLANDO que o remédio adequado não consiste em uma con-
“dogmas”, quase uma caricatura do mos dos civilistas. Neste período se passa temporização eclética, mas em reconduzir o direito público a seu verdadeiro
de uma grande penalística civil, emblematizada por CARRARA àquela espécie objetivo, através de um método que permitisse a reorganização sistêmica de
de civilística penal, empreendida por MANZINI604. seu objeto608. Da mesma forma que posteriormente ROCCO, em ORLAN-
Um exemplo serve para demonstrar como o liberalismo reacionário não 605. GUARNIERI, Carlo. L’Ordine Pubblico e la Giustizia Penale. In Storia dello Stato Italiano. Roma:
terá dificuldades em se acasalar com as políticas fascistas. Um caso significa- Donzelli, 1995. p. 385. A consequência desta adesão foi o distanciamento dos juristas das questões
políticas desenvolvidas no Estado italiano pós-unitário, precisamente a função de defesa das garantias.
tivo é a conferência de Rocco na Universidade de Sassari, em 15 de janeiro Ibidem. No mesmo sentido são as palavras de ALTAVILLA, Enrico. Arturo Rocco Scrittore e Legislato-
re nel Giudizio di un Positivista. In Studi in Memoria di Arturo Rocco. v. I. Milano: Giuffrè, 1952. p.22.
606. ORLANDO, Emanuele Vittorio. I Criteri Tecnici per la Ricostruzione Giuridica del Diritto Pubblico:
601. SBRICCOLI, Mario. La Penalistica Civile. In ________. Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v. contributo alla storia del diritto pubblico nell’ultimo quarentennio 1885-1925. Modena: Università
I. Milano: Giuffrè, 2009. p.582. degli Studi di Modena, 1925.
602. SBRICCOLI, Mario. La Penalistica Civile. In ________. Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v. 607. ORLANDO, Emanuele Vittorio. I Criteri Tecnici per la Ricostruzione Giuridica del Diritto Pubblico:
I. Milano: Giuffrè, 2009. p.576. contributo alla storia del diritto pubblico nell’ultimo quarentennio 1885-1925. Modena: Università
603. Sobre a jusnaturalística penal, Cf TARELLO, Giovanni. Storia della Cultura Giuridica Moderna: asso- degli Studi di Modena, 1925.
lutismo e codificazione del diritto. Bologna: Il Mulino, 1976. 608. ORLANDO, Vittorio. Emanuele. I Criteri Tecnici per la Ricostruzione Giuridica del Diritto Pubblico:
604. SBRICCOLI, Mario. Dissenso Politico e Diritto Penale in Italia tra Otto e Novecento. In Quaderni contributo alla storia del diritto pubblico nell’ultimo quarentennio 1885-1925. Modena: Università
Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 2. Milano: Giuffrè, 1973. p. 663. degli Studi di Modena, 1925. p. 08 – 20.
206 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 207

DO já será possível antever a “fobia antifilosófica”: “o critério histórico, social, seu efeito alienante, eram as razões políticas que por certo não se confundiam
político, mas sobretudo a filosofia, com as formas mais abstrusas da metafísica com o discurso declarado de aperfeiçoamento legislativo.
mais desenfreada, sufocam o criterio jurídico até quase matá-lo, porque onde Segundo SBRICCOLI, não existe um nexo lógico-político ou uma
a nebulosidade da abstração filosófica impedem a clara percepção dos contor- relação de filiação entre a civilística penal e a ideologia repressiva do Estado
nos, ali não há mais direito, porque o direito é precisão”609. totalitário italiano. O método tecnicista não era um problema em si mesmo.
Portanto, as razões do método técnico-jurídico se depositam nas raízes O problema estaria “no uso dos complementos daquele exercício: a avulsão do
de um liberalismo reacionário, que sem demover e debelar as categorias direito penal do contexto dos outros saberes políticos e o distanciamento dos
processuais já conhecidas dos juristas, as reposicionará, dando-lhe feições penalistas do papel, que era seu historicamente, do testemunho político e civil
políticas distintas, embora municiadas com uma aparência que se dava sob o em favor das garantias e da liberdade. Estava, então, na politicidade – de regra
signo da continuidade liberal610. Parece-nos por certo equivocado sustentar o conservadora e de ordem – do declaradamente apolítico”612. Como se poderá
método técnico-jurídico como uma mera resposta aos positivistas e como uma perceber, seria ilógico que o tecnicismo redundasse no fascismo. Entretanto,
simples retomada do poder simbólico (BOURDIEU) no campo do direito cremos, as implicações contidas no tecnicismo extrapolam o paradigma da
penal, requerendo-se a “expulsão” dos antrópologos, psicólogos e psiquiatras alienação. Em síntese, esta leitura permite o apoio à tese do “efeito de fre-
do sistema de justiça criminal. Talvez esta faceta, reproduzida aos borbotões nagem” da doutrina italiana relativamente a alguns excessos que poderiam
pela criminologia brasileira seja, inclusive, a menos importante e a mais super- ter sido cometidos pelo regime fascista, acarretando, como consequência, a
ficial. O que estava em jogo no início do século XX era a reforma do código desresponsabilização e a exculpação da classe dos juristas de quaisquer envol-
penal de 1889, com uma nova orientação metodológica, que não rompia, em vimentos políticos, inclusive por aqueles que participaram efetivamente do
nenhum caso, com o liberalismo reacionário-conservador dos positivistas. A governo, através de préstimos à elaboração legislativa.
orientação tecnicista perpassa igualmente as propostas de reforma do código Outro ponto que merece destaque, embora apartado da convencional
Finochiaro-Aprile (de 1913), o que será objeto de discussão nas propostas de análise criminológica brasileira – marcada por seus alicerces historiográficos
reforma do código de processo penal de 1930. positivistas – é a inexistência de uma ruptura entre positivismo e tecnicis-
No campo penal é induvidoso que também a presença da disputa entre mo613. FERRI foi um dos pioneiros a chamar a atenção para o processo penal.
liberais e positivistas marca a tentativa de recuperação da dominação dos As leis de procedimento, no pensamento do autor, seriam mais eficazes do que
juristas sobre o saber criminológico, expulsando o discurso naturalístico que as do direito substancial para conduzir a pena e os meios defensivos do terreno
impregnava a leitura defensivista do positivismo. A autonomia do jurídico, da ameaça legislativa ao campo prático da defesa social614. O fundamental
assim, era resgatada por ROCCO e aprofundada, em sentido radical, por era o reequilíbrio dos direitos do imputado com aqueles do Estado, contra
MANZINI611. Contudo, o que o tecnicismo escondia, quase à perfeição em os excessos individualistas. Portanto, a “retórica do equilíbrio” já era utiliza-
da pelos positivistas para postular mudanças no regime jurídico processual.
609. ORLANDO, Vittorio. Emanuele. I Criteri Tecnici per la Ricostruzione Giuridica del Diritto Pubblico:
contributo alla storia del diritto pubblico nell’ultimo quarentennio 1885-1925. Modena: Università Pode-se inclusive afirmar-se que o discurso da escola positiva é marcado, no
degli Studi di Modena, 1925. p. 15. Esta fobia à filosofia será um elemento comum entre os autores tec-
nicistas. Sobre MANZINI, afirmará CARNELUTTI que ele tinha aversão à eloquência e o seu desprezo campo jurídico, por esta retórica, que se confunde com a própria definição de
pela filosofia. CARNELUTTI, Francesco. La Mallatia del Processo Penale Italiano. In Rivista di Diritto defesa social: instrumento para colocar um limite ao indivíduo, restabelecer
Processuale. v. XVII. Padova: CEDAM, 1962. p. 02
610. Neste sentido é a conclusão de Tarello, para quem existe uma continuidade cultural, institucional e das o equilíbrio entre sociedade e indivíduo615.
pessoas entre o período giolittiano e aquele fascista. Neste texto, Tarello toma como paradigma a obra
de CHIOVENDA, responsável por permitir o ingresso, na Itália, de esquemas de organização técnico-
-política que serão recebidas no trabalho de sistematização jurídico-organizativa do regime fascista. 612. SBRICCOLI, Mario. La Penalistica Civile. In ________. Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v.
TARELLO, Giovanni. L’Opera di Giuseppe Chiovenda nel Crepuscolo dello Stato Liberale. In Mate- I. Milano: Giuffrè, 2009. p. 583.
riali per uma Storia della Cultura Giuridica. v. III. Bologna: Il Mulino, 1973. p. 123. Para uma crítica 613. Como acentua claramente LEONE, o tecnicismo jurídico, que não era uma escola, apenas uma orienta-
aguda a TARELLO sobre o autoritarismo de CHIOVENDA Cf LIEBMAN, Enrico Tullio. Storiografia ção metodológica, juridicizou os postulados da escola positiva. LEONE, Giovanni. Contro la Riforma
Giuridica “Manipolata”. In Rivista di Diritto Processuale. v. XXIX. Padova: CEDAM, 1974. del Codice Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 280.
611. FERRAJOLI, Luigi. Ensayo Sobre la Cultura Italiana del Siglo XX. México D.C: Universidad Autóno- 614. FERRI, Enrico. Giustizia Penale e Difesa Sociale. In La Scuola Positiva. n. 21, 1911. p. 41.
ma de México, 2010. p. 25. 615. “Mas como vimos que a escola clássica surgia em nome do individualismo, para reivindicar direitos
208 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 209

Evidentemente, a disputa entre as escolas “clássica” e “positivista” se GRISPIGNI, é quem pela primeira vez elabora uma teoria orgânica
deu sob os alicerces do liberalismo, com algumas pitadas do socialismo do “estado perigoso”, precedendo inclusive, a FERRI, ao contrário de afir-
ferriano. Mas nada que pudesse caracterizar uma nova economia política mações comumente encontradas na criminologia. Nas cartas trocadas com
da punição, para utilizar os termos de FOUCAULT. Sem apresentar uma MEZGER, GRISPIGNI na verdade cobra compromisso político do penalista
irreconciliável fissura, o positivismo igualmente penetra no fascismo. Seria alemão, já que o positivismo criminológico, assim como a vocação cientificista
difícil presumir que um regime autoritário pudesse simplesmente desprezar de GRISPIGNI, não poderiam conhecer os limites teóricos que o neokan-
categorias já desenvolvidas no campo dogmático e que poderiam ser coop- tismo de MEZGER poderia oferecer620, concebendo uma pena que ao fim,
tadas pelo sistema de justiça penal. Em especial, no campo das “medidas trataria de conciliar positivistas e aqueles que creem no livre arbítrio.
cautelares”, cujo código de processo penal de 1913, consentia com uma prá- GRISPIGNI possuía um trabalho em publicação chamado La Fun-
tica fixada em um regime de extralegalidade616. Como acentua DELOGU, zione Della Pena nel pensiero di Benito Mussolini, o que demonstra a sua
o primeiro compromisso de ordem geral entre o fascismo e a escola positiva aderência política ao regime621. GRISPIGNI, neste texto, consultou direta-
foi a proeminência dos direitos do Estado frente ao indivíduo617. mente il Duce. Durante a entrevista, que se dá através de diversas perguntas,
Neste ponto, o pensamento de GRISPIGNI, conhecido por seus escri- respostas de MUSSOLINI e comentários de GRISPIGNI, pode-se notar
tos de direito penal e mais especificamente, de sociologia e de antropologia claramente como o fascismo não era uma antítese do positivismo. O mais
criminais é importante. Quiçá nenhum autor do período tenha conseguido interessante é que ambos chegarão às mesmas conclusões acerca da pena,
metabolizar conceitos presentes no universo positivista e fazê-los serem acei- que serve para a defesa do Estado622.
tos pelos tecnicistas quanto GRISPIGNI. GRISPIGNI representava, como Segundo GABELLI, as reformas penais do fascismo não são a conse-
ninguém, a contradição e o sincretismo próprios do fascismo. De acordo quência das teorias positivistas, mas a sua condição de afirmação623. Assim,
com PANNAIN, ao comentar a obra de GRISPIGNI, muitos se escanda- consideradas desde o patamar da defesa social, as reformas fascistas não logra-
lizaram ao enxergar nela uma flagrante contradição, através da afirmação riam êxito sem a comunhão de premissas com os positivistas – mesmo que a
dos postulados da escola positiva e do rigoroso método técnico-jurídico618. partir de estilos diversos de construção do penal.
PANNAIN elogiará a capacidade de o autor se livrar das paixões dos posi-
SBRICCOLI contesta a afirmação de que os códigos fascistas teriam
tivistas que haviam conduzido aquela escola a desprezar o saber técnico. A
acolhido princípios reitores da escola positiva. Para o autor, nos códigos fas-
influência de seu pensamento, que penetrava tanto no discurso positivista
cistas penetraram uma enorme gama de princípios, normas e mecanismos
quanto tecnicista revela o seu poder619.
exageradamente sufocados pelo Estado no medievo, assim a escola positiva procura colocar um limi- 620. GRISPIGNI, Filippo; MEZGER, Edmund. La Reforma Penal Nacional-Socialista. Buenos Aires:
te à prevalência, uma vez soberana, deste individualismo, e tende a restabelecer o equilíbrio entre o Ediar, 2009.
elemento social e o elemento individual. FERRI, Enrico. Sociologia Criminale. 4 ed. Torino: Fratelli 621. MUÑOZ CONDE, Francisco. Comentario a la Riforma Penale Nacionalsocialista, de Filippo Grispigni y
Bocca, 1900. p. 23. Edmund Mezger. In ________. La Reforma Penal Nacional-Socialista. Buenos Aires: Ediar, 2009. p. 111.
616. LACCHÈ, Luigi. La Giustizia per i Galantuomini: ordine e libertà nella Italia liberale: il dibattito sul 622. Vejamos o trecho deste diálogo:
carcere preventivo (1865-1913). Milano: Giuffrè, 1990. “- (Mussolini): ¿Cree de verdade que lo que he dicho sobre este tema pueda constituir objeto de um
617. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 170. estudo científico?
618. PANNAIN, Remo. Il Diritto Penale nel Pensiero di Filippo Grispigni. In Archivio Penale. 1/12, 1948. - (Grispigni): No sólo creo, sino que lo considero necesario. En nuestro campo se desencadenan todavia
p. 168. Já em 1942, GRISPIGNI, em prolusão na Universidade de Roma, afirmará que o único critério las luchas entre las escuelas. Para poner fin a las mismas – al menos en lo que concierne al Derecho
que deve ser obedecido no processo penal é o método técnico-jurídico. GRISPIGNI, Filippo. La Scienza italiano – es necesario dar a conocer de una vez, de forma definitiva, cuál es su pensamiento al respec-
Processuale Penale e i Suoi Problemi Attuali. In Rivista Penale, 1943. p.151. Na realidade, neste pro- to. En el Programa del Partido Fascista Usted ha escrito que la función de la pena es la de defensa, la
lusão, GRISPIGNI trata de sistematizar quatro problemas ligados à crise do processo penal italiano: a) cual se implementa mediante la intimidación y la correción. En estas palavras está la síntesis de la más
o aspecto político (necessidade de obediência o método técnico-jurídico, indicando o autor os excessos moderna concepción penal y es también lo que yo sostengo”. GRISPIGNI, Filippo. La Función de la
ocorridos na Alemanha); b) o aspecto teleológico (crise decorrente de se conceber o processo penal Pena en el Pensamiento de Benito Mussolini. Afirmaciones del Duce de Histórica Importancia para el
como um meio para se atingir outros fins). Nesse ponto, nomina como um absurdo a supressão das Derecho Penal Italiano. In Derecho Penal y Criminología. a. 4. n. 2, 2014. p. 217. Cf também a recensão
nulidades absolutas; c) o aspecto metodológico (a ciência do processo deve ter por objeto as normas do artigo feita por MUÑOZ CONDE, Francisco. Algunas Notas Sobre Filippo Grispigni y el Derecho
processuais e não “o processo”); d) o aspecto dogmático (as discussões em torno das categorias da teoria Penal Fascista. In Derecho Penal y Criminología. a. 4. n. 2, 2014. p. 205-210.
geral do direito adquirem no processo penal uma repercussão ainda maior). Ibidem. p.151 – 160. 623. GABELLI, Aristide. Sulla “Scuola Positiva” del Diritto Penale in Italia. In Rivista Penale. n. 23. v. XII,
619. Em 1942 será professor de direito processual penal em Roma, o que revela o seu prestígio acadêmico. 1886. p. 526.
210 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 211

iliberais, que negavam garantias, fazendo do acusado um objeto de persecu- coerente e sofisticada, mas poderia ser descrito como um “totalitarismo
ção, salvaguardando o arbítrio624, a coação moral e o autoritarismo, em razão fuzzy” uma colagem, permeada por contradições629. O sincretismo fascista
“da natureza antiliberal, antidemocrática e totalitária do projeto que os ins- autoriza a pensar-se que em realidade, era impossível um isolamento teórico
piravam”625. No mesmo sentido serão as conclusões de NEPPI MODONA, destes saberes. A deriva anti-iluminista do liberalismo oitocentista havia,
que enxergava muitas relações entre a escola positiva e o tecnicismo626. O paulatinamente, subtraído da penalística liberal o seu único ponto de apoio:
sistema penal seria, com efeito, o reflexo de uma politização total e profunda a justificação externa que dava fundamento ao sistema de justiça criminal.
da vida. Para SBRICCOLI, o fato de que alguns mecanismos tivessem sido O anti-iluminismo, convergência notável entre os tecnicistas e positivistas,
elaborados pelo positivismo não significa dizer que o fascismo aderia àquela que apontavam a escola clássica como um saber baseado em um concepção
corrente criminológica. Significa, apenas, que aquelas teorias pertencem ao metafísica e universalista do crime, foi um discurso que se encontrava nesta
continuum de uma concepção que identifica certas funções a serem exercidas crítica desde dois locais distintos, endereçados aos velhos liberais. O novo
pelo sistema penal na sociedade, que haviam sido encontradas e buriladas pela Estado se apresentava como uma entidade originária, capaz de vontade630,
escola positiva. Eram assim, concepções preexistentes e que se mantinham no aderindo e se imiscuindo em entidades construídas a partir da prática jus-
tempo. O fascismo, portanto, se serviu de teorias preexistentes, contínuas, publicista italiana conservadora. Assim, uma razão de ordem externa, a
formuladas pela escola positiva627. justificar sua existência ou suas atividades, não era apenas dispensável: era
Portanto, em havendo um continuum entre o liberalismo reacionário certamente uma involução inaceitável.
que marcara o movimento tecnicista e as premissas bio-psico-sociológicas do Essa concepção do penal, no fascismo, pode ser explicada através de
positivismo, a tese da “ruptura” provocada pelo tecnicismo pertence mais à quatro pressupostos fundamentais: a) o penal deve ser separado da tradição
seara do positivismo historiográfico – que cuida de demarcar eventos e de moderna, que lhe legitimaria desde a necessidade de se garantir o convívio
constantemente rotular compreensões acerca de um determinado fenômeno social, amparado em direitos e garantias e mínima restrição possível da li-
– do que a uma leitura crítica da experiência criminológica italiana. Isto para berdade. Relativamente à este aspecto, SBRICCOLI afirma que na vigência
não se falar de uma cisão entre os discursos que jamais existiu, ao menos no do código penal de 1889, havia se organizado – ao menos do ponto de vista
nível mais profundo, aquela dos “magmas de significação” do discurso jurí- discursivo – em um “duplo nível de legalidade”. Este duplo nível de legali-
dico-penal628. Inclusive, desde outra base, o fascismo, que jamais foi capaz de dade se legitimava como traço marcante do sistema de justiça criminal do
criar uma teoria sofisticada, e isto nos mais distintos campos do conhecimen- Reino italiano, que acabou por deixar entreabertas as portas para as práticas
to, pode ajudar na detecção deste sincretismo autoritário. repressivas e ilegais no sistema de administração de justiça, operantes através
De acordo com ECO, o fascismo italiano não possuía uma teoria de políticas de ordem pública discriminatórias, além de se cristalizar em uma
ideologia conservadora, autoritária e estatal, expressão da elite burguesa631. A
624. O arbítrio era invocado como uma ferramenta importante para o Estado e, portanto, presente no có-
digo de processo penal. Neste ponto SABATINI afirma que o CPPi produziu um aumento do arbítrio 629. ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. In ________. Cinco Escritos Morais. Rio de Janeiro: Record,
judicial, uma vez que o magistrado julga um homem e deve aplicar a pena em função das tendências, 1998.
sentimentos, ideias, motivos, etc. SABATINI, Guglielmo. Direttivi Ideali del Fascismo nella Riforma
della Legislazione Penale. In La Scuola Penale Unitaria. a. V. v. V. Roma, 1931. p. 10. 630. SBRICCOLI, Mario. Caratteri Originari e Tratti Permanenti del Sistema Penale Italiano (1860 – 1990).
Disponível em http://www.lex.unict.it/sites/default/files/files/Biblioteca/letture/Sbriccoli.pdf. Acesso
625. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del em 11.09.2015. p. 520-521.
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
Giuffrè, 1999. p. 830-831. 631. Uma excelente abordagem acerca dos usos dsicriminatórios no sistema de justiça criminal, com espe-
cial ênfase na prática da prisão preventiva durante a vigência dos códigos de processo penal liberais,
626. NEPPI MODONA, Guido. Tecnicismo e Scelte Politiche nella Riforma del Codice Penale. In Democra- baseada na distinção entre “delinquentes” e “cavalheiros” pode ser encontrada em LACCHÈ, Luigi.
zia e Diritto. v. 17, 1977. p. 669. La Giustizia per i Galantuomini: ordine e libertà nell’Italia liberale: il dibattito sul carcere preventivo
627. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del (1865-1913). Milano: Giuffrè, 1990. No Brasil, uma análise com base neste conceito de SBRICCOLI
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: pode ser encontrado em SILVA, Gabriel Videira. Terrorismo e Duplo Nível de Legalidade na Cultira Ju-
Giuffrè, 1999. p. 831. Cf FLORIAN, Eugenio. Dogmatica Penale e Scuola Criminale Positiva. In La rídico-Penal Brasileira: da doutrina da segurança nacional à guerra ao terror. Dissertação de Mestrado.
Scuola Positiva. n. 1, v. 12, 1932. p. 433-456. Florianópolis: UFSC, 2014. p. 55-56. Também se verifica em HORN, Manuela Bittar. O Duplo Nível de
628. Tomamos emprestada a expressão de CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Socieda- Legalidade e os Crimes Contra a Economia Popular no Direito Penal Autoritário: Itália fascista versus
de. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 404. Estado novo brasileiro (1927-1945). Dissertação de Mestrado: UFSC, 2013. p. 41-42.
212 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 213

fragilidade na concepção – tida por PIFFERI como meramente formal632 – próprio do antifascismo organizado638. Se entre a legislação penal fascista e o
permitirá, igualmente, uma compreensão adequada do período de transição sistema penal liberal existe uma continuidade substancial, há que se examinar
entre a penalística civil à civilística penal. Durante o fascismo, seria possível os “modos” desta continuidade. Salvando a fachada do sistema, o fascismo
falar-se também de um “ilegalismo de Estado”, parafraseando FRAENKEL633, desenvolveu o “esvaziamento paralelo” das instituições liberais. Este “esvazia-
ou ainda, como referido no capítulo anterior, uma “legalidade autoritária” mento paralelo”, constitui, nas palavras de PADOVANI, em “tomar com uma
(PEREIRA). Segundo SKINNER, os atributos liberais do princípio da lega- mão o que foi dado com a outra”, criando-se uma espécie de duplo binário
lidade não existiam na parte especial do código penal, faltando definição e normativo no qual so princípios e garantias afirmadas acabam subvertidas e
clareza aos tipos penais. O resultado produziu uma legalidade vazia no quesito derrogadas por setores específicos”639.
garantia e se transformou em um princípio autoritário que reclama obediên- Neste sentido, o sistema atuava através de pretensões de ordem e pre-
cia ao direito do Estado de exigir dos súditos fidelidade634. A legalidade não venção, descurando de direitos e garantias. Valorizava-se o senso comum,
deve ser concebida como um conceito monolítico, fechado, devido às séries incrustrado em fórmulas de forte tendência positivista: periculosidade640 como
de “zonas cincentas”, onde podem ser vislumbradas medidas de exceção, fle- critério definitivo da responsabilidade penal, a noção de criminoso como
xíveis e elásticas. Esta legalidade volúvel se desenvolveu nos Estados liberais, inimigo interno, o Estado como agente repressivo da criminalidade641; b) a
caracetrizando-se pelo que LACCHÈ denominou de “paradoxo da liberda- instrumentalização do penal: a legislação, em síntese, deve ser uma arma nas
de”635, responsável por sustentar uma fachada legal, mas com operações de mãos do Estado para atacar os inimigos da sociedade. A legislação constituirá
exceção636. Segundo SKINNER, “o regime de Mussolini se expandiu sobre uma evolução de traços marcantemente estatais do positivismo, que se soma a
os elementos autoritários e flexíveis do direito liberal, a fim de dar apoio ao uma dimensão involutiva do tecnicismo jurídico, que segundo SBRICCOLI,
fascismo, mostrando assum uma continuidade ou uma infiltração jurídicas perdeu o sentido que havia inspirado Arturo ROCCO, assumindo as vestes
pré-fascistas no ordenamento jurídico do regime”637. do tecnicismo manziniano642. Além disso, ocorrerá uma “processualização do
No complexo sistema normativo emergido após as reformas de 1930- direito substancial”, algo já presente nas raízes do problema sobre a relação de
31, permaneceu este denominado “duplo nível de legalidade” herdado do instrumentalidade do processo penal relativamente ao direito substancial643;
Estado pré-fascista, assegurado pela lei de segurança pública que existia à c) neste horizonte ideológico, delinquente e inimigo se confundem; d) o que
margem do código e que estabelecia as suas próprias tipicidades, colocan- dá sentido a estas orientações políticas e ideológicas é o Estado como agente
do nas mãos da polícia a valoração dos comportamentos como “manifestar 638. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della
propósitos” ou “demonstrar intenções” a fim de cometer possíveis crimes. Giustizia. v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 989-990.
639. PADOVANI, Tullio. La Soppravivenza del Codice Rocco Nella “Età della Decodificazione”. In La
Havia ainda um “terceiro nível de legalidade”, relativo ao dissenso político, Questione Criminale. v. VII. n. 1, 1981. p. 91.
640. Em um artigo em que RANIERI faz uma recensão da obra de GRISPIGNI e tece elogios à sua concep-
ção de periculosidade, vale a pena destacar o horizonte conceitual no qual ela se desenvolveu. Eis alguns
conceitos assumidos pela noção de periculosidade: a) comissão ou tentativa de comissão de um crime
632. A fragilidade do conceito de legalidade formal permite que ela atravesse clássicos, positivistas e tec- (FERRI); b) capacidade para delinquir (ROCCO); c) tendência à delinquir novamente (FLORIAN);
nicistas. PIFFERI, Michele. Difendere i Confini, Superare le Frontiere: le ‘zone grigie’ della legalità d) temibilidade do delinquente (GAROFALO); e) probabilidade de que uma pessoa violará o direito
penale tra otto e novecento. In Quaderni Fiorentini pel la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 36. (FEUERBACH; EXNER); f) probabilidade de comissão de novos crimes (STORCH); g) natureza in-
t I. Milano: Giuffrè, 2007. p. 748-750. telectual de um indivíduo que não pode ser impedido de cometer atos delituosos pela ameaça e execu-
633. Cf FRAENKEL, Ernst. The Dual State:a contribution to the theory of dictatorship. New York: London: ção da pena ordinária (VON LISZT); h) probabilidade de cometer crimes graves (MITTERMAIER).
Oxford University Press, 1941. Saliente-se que este conceito transitará entre penalistas “clássicos”, “tecnicistas” e “positivistas”, o que
634. SKINNER, Stephen. Reatti Contro lo Stato e L’intreccio tra Fascismo e Democrazia Degli Anni Venti e novamente corrobora a tese da continuidade entre as categorias. RANIERI, Silvio. La Pericolosità Cri-
Trenta del Novecento: vilipendio, libello sedicioso e la sospensione della legalità. In LACCHÈ, Luigi. minale del Codice Penale Vigente. In La Scuola Positiva. n. 2, v. 13, 1933.p. 18-19.
Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 60. 641. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
635. Cf LACCHÈ, Luigi. La Giustizia per i Galantuomini: ordine e libertà nella Italia liberale: il dibattito sul fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
carcere preventivo (1865-1913). Milano: Giuffrè, 1990. Giuffrè, 1999. p. 820.
636. KLINKHAMMER, Lutz. Was There a Fascist Revolution? The Function of Penal Law in Fascist Italy 642. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
and in Nazi Germany. In Journal of Modern Italian Studies. v. 15, 2010. p. 401. fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
637. SKINNER, Stephen. Reatti Contro lo Stato e L’intreccio tra Fascismo e Democrazia Degli Anni Venti e Giuffrè, 1999. p. 821.
Trenta del Novecento: vilipendio, libello sedicioso e la sospensione della legalità. . In LACCHÈ, Luigi. 643. VASSALLI, Giuliano. Riforma del Codice Penale : se, como e quando. In Rivista Italiana di Diritto e
Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 74. Procedura Penale. v. 45, 2002. p. 19-21.
214 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 215

inderrogável para a realização prática do programa do partido644. jurídico como ofensa primária ao Estado. Sem descurar da tradição liberal do
Como exemplo de caso, que se apresenta sob o manto da continuidade bem jurídico, Arturo ROCCO carregará de sentido publicista esta teoria, o
da tradição liberal italiana, pode-se citar Arturo ROCCO e sua obra L’Oggetto que permitirá o esvaziamento de seu conteúdo protetivo material, posto que
del Reato e della Tutela Giuridica Penale. Contributo Alle Teorie Generali del todo crime será, inevitavelmente, uma ofensa ao Estado.
Reato e della Pena645. Nesta obra ROCCO tratará de deslocar – semântica, Além disso, como decorrência desta ressignificação da teoria do bem
política e juridicamente – o sentido de proteção da norma penal. Esta obra jurídico, ROCCO tratará de justificar esta nova concepção. Desta maneira,
será fundamental, posto que, de acordo com NUVOLONE, o problema o delito nascerá do dever dos súditos de obediência ao Estado. Desta vio-
do objeto do crime é, por assim dizer, o problema que inicia a dogmática lação ao dever de obediência ao Estado nascerá a possibilidade do exercício
penalista moderna646. E, com efeito, o autoritarismo penal italiano necessita do direito punitivo: será através da ação penal que se garantirá o direito
refundar seu objeto de estudo, a partir de uma separação – do ponto de subjetivo de punir651. Segundo ROCCO, há um direito subjetivo público
vista discursivo – relativamente ao positivismo. Contudo, guiado por certo do Estado como pretensão jurídica que este mesmo Estado tem contra o
emparelhamento no nível político. Enquanto a “escola clássica”647 utilizava o súdito (ação ou omissão em consonância com o preceito contido em uma
direito comparado no horizonte de uma reforma garantista, a escola positiva norma penal). Dever e pretensão, em seu conjunto, configuram uma relação
de FERRI edifica uma teoria processual na qual não há espaço para o direito jurídica, que para o autor italiano será uma “relação de obediência jurídico-
estrangeiro648, fórmula que será levada a cabo no processo de confecção dos -penal”652. Em que sentido, portanto, tais categorias poderiam ser explicadas
códigos Rocco. Ninguém menos do que FERRI tentará realizar uma aproxi- sob o ponto de vista de uma semântica autoritária? A questão criminal, para
mação entre as escolas, ao afirmar que ambas têm em comum a italianidade649, o fascismo, é posta unicamente em um sentido instrumental653. Portan-
que também aparecerá nos trabalhos preparatórios dos códigos Rocco, com to, ação penal, pretensão punitiva654 e relação jurídico-penal (e processual
uma característica da legislação. penal) serão carregadas de sentido instrumental. Eis as portas abertas para
A discussão, no que concerne ao direito de punir, foi exposta por Arturo a concepção juspublicística e instrumental do processo, que será objeto
ROCCO nos seguintes termos: o direito, por conta da lei penal, nasce da de análise mais adiante. Entretanto, como hipótese parcial de pesquisa, a
violação do preceito penal contra o violador (neste caso, o acusado). Para instrumentalidade ou a instrumentalização do direito e do processo penal
Arturo ROCCO, não se trata de um direito da vítima, ou seja, de um direito será uma estratégia adotada pelas práticas punitivas do fascismo italiano655.
privado. Pelo contrário, se está diante de um direito público, um direito do 651. ROCCO, Arturo. El Objecto del Delito y de la Tutela Jurídico Penal: contribución a las teorías gene-
rales del delito y de la pena. Buenos Aires: Montevideo: B de F, 2005. p. 537. Para Bettiol, o conceito
Estado. Este direito seria, ao invés de um direito de vingança, um direito de de direito subjetivo de punir é de origem liberal, fruto da transposição das categorias privadas ao campo
publicístico realizada sem a devida análise sobre a adequação ao processo penal. Este direito subjetivo
defesa social650. Neste ponto, Arturo ROCCO estabelecerá uma teoria do bem de punir pressupõe igualdade entre Estado e indivíduo. Contudo, não se pode falar de igualdade em uma
relação de subordinação. Por isso é que se deveria falar, nos termos de Bettiol, em uma potestade puni-
tiva do Estado. BETTIOL, Giuseppe. La Regola “In Dubio Pro Reo” nel Diritto e nel Processo Penale.
644. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del In Rivista Italiana di Diritto Penale. a. IX. n. XV, 1937. p. 244-245.
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
Giuffrè, 1999. p. 823. 652. ROCCO, Arturo. El Objecto del Delito y de la Tutela Jurídico Penal: contribución a las teorías gene-
rales del delito y de la pena. Buenos Aires: Montevideo: B de F, 2005. 545.
645. ROCCO, Arturo. El Objecto del Delito y de la Tutela Jurídico Penal: contribución a las teorías gene-
rales del delito y de la pena. Buenos Aires: Montevideo: B de F, 2005. Sobre uma análise mais ampla 653. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
das demais obras de Rocco Cf DI FALCO, Romano. L’Opera Scientifica di Arturo Rocco. In Annali di fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
Diritto e Procedura Penale. n. 2, v. 12, 1943. Giuffrè, 1999. p. 819.
646. NUVOLONE, Pietro. p. 387. Introduzione a un Indirizzo Critico nella Scienza del Diritto Penale. In 654. Segundo Bettiol, o conceito de pretensão punitiva assim como se adapta à noção de direito subjetivo, se
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 1949. p. 387. adapta também ao conceito de poder ou potestade punitiva como sinônimo de pretenso poder. O concei-
to de pretensão punitiva não é, então, ligado a qualquer pressuposto ideológico de caráter político: assim
647. Que jamais foi uma escola. O termo é atribuído por Ferri ao iluminismo carrariano. é porque o Estado subordinará o exercício do seu poder punitivo na presença de condições particulares
648. AMODIO, Ennio. La Procedura Penale Comparata tra Istanze di Riforma e Chiusure Ideologiche e na observância de determinadas formalidades”. BETTIOL, Giuseppe. La Regola “In Dubio Pro Reo”
(1870-1989). In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. a. XLII. n. 4, 1999. p. 1349-1350. nel Diritto e nel Processo Penale. In Rivista Italiana di Diritto Penale. a. IX. n. XV, 1937. p. 245.
649. FERRI, Enrico. Fascismo e Scuola Positiva nella Difesa Sociale Contro la Criminalità. In Scuola Posi- 655. Salientando a relação de instrumentalidade, questiona GRISPIGNI: “E na verdade, como é possível
tiva, 1926. p. 241. coordenar o direito processual ao direito substancial, ilustrar a função instrumental do primeiro relativa-
650. ROCCO, Arturo. El Objecto del Delito y de la Tutela Jurídico Penal: contribución a las teorías gene- mente ao segundo quando entre os dois códigos se revelam tais incongruências? GRISPIGNI, Filippo.
rales del delito y de la pena. Buenos Aires: Montevideo: B de F, 2005. p. 531. La Scienza Processuale Penale e i Suoi Problemi Attuali. In Rivista Penale, 1943. p. 154.
216 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 217

Na construção de Arturo ROCCO é possível identificar a reunião de a continuidade da tradição italiana com o passado, sem suprimir institutos
ao menos três categorias que se apresentam de maneira quase que uniforme já ajustados à cultura processual penal italiana661. Segundo PADOVANI, o
no pensamento jurídico-penal: a) a noção de pretensão (à punição); b) a código de 1930 manteve as linhas autoritárias do código Zanardelli, aperfei-
noção de ação penal656 (como exercício de uma garantia da realização da çoando este sistema. Neste sentido, o código de 1930 corresponderia a uma
pretensão); c) a noção de relação jurídica657. Nenhuma destas categorias foi “sublimação autoritária” daquele sistema penal liberal-conservador662. No
obra do fascismo. Pelo contrário, se tratam de clichês pandectísticos, ampla- mesmo sentido pode ser citado FIANDACA, que indica uma linha de con-
mente disseminados desde a escola histórica germânica, mas remontadas sob tinuidade entre os códigos, considerado um exemplo de rigorismo repressivo,
a dupla face de um movimento ocorrido na Itália: o juspublicismo conser- mas que tinha no código anterior bases liberais-conservadoras663.
vador de ORLANDO e a tentativa de reformulação das bases publicísticas A explicação em termos de regime político, ou ainda, em termos de
em franca equivalência e sintonia à “ciência do direito privado”. O segundo mudança jurídica metodológica, quando isolada, é insuficiente para detectar,
movimento é a inserção de elementos conservadores naqueles conceitos, em sua plenitude, os processos de construção e permanência de dispositivos
como pode ser verificado, de maneira muito simples, através da noção de processuais penais altamente refratários à democracia. O sincretismo fascista
“direito subjetivo de punir”, que nada mais é do que o preenchimento com permitiu a convivência de uma plêiade de representações sobre o sistema de
conteúdo autoritário, da teoria de JELLINEK658 dos quatro status659. justiça criminal. Por exemplo, a colocação em disputa do saber criminológico
O liberalismo conservador e reacionário italiano, no início do século, positivista ou clássico constitui-se apenas como um espectro deformado das
estabelece um campo fértil para que o fascismo, posteriormente, sem a ne- disputas políticas reais. Inegável a existência de fortes zonas de consenso664, em
cessidade de romper dramaticamente com o conjunto de ideias ali cultivadas, torno das quais se constituíram interregnos pantanosos ou cinzentos, capazes
se instale sem dificuldades. Relativamente ao código de 1930, ROCCO foi de congruir táticas ou estratégias políticas, aparentemente moduladas a partir
fortemente influenciado por MANZINI na propositura de uma reforma do de dimensões heterogêneas. Ora, o fascismo se nutriu, apenas como exem-
processo penal. O projeto era apresentado como uma mera modificação do di- plo, da categoria periculosidade para sistematizar, no campo penal, o duplo
reito vigente660. Pretendia-se, para não desagradar aos velhos liberais, assinalar binário (cumprimento de medida de segurança após o término da pena)665.
Da mesma forma, a punição por atos preparatórios, como a punição pela
656. SABATINI defenderá que o código, em homenagem ao trabalho de Alfredo ROCCO, haveria adotada
a teoria abstrata da ação. SABATINI, Guglielmo. I Caratteri Dell’Azione Penale nel Nuovo Codice. conspiração política (art. 304 do Código Rocco) estava lastreada fortemente
Riforma della Legislazione Penale. In La Scuola Penale Unitaria. a. V. v. V. Roma, 1931. p. 126. na ideia de periculosidade, o que permitia dispensar-se toda a construção
657. Uma defesa da teoria da relação jurídica, como plenamente adequada ao regime fascista poderá ser
encontrada em DE MARSICO, Alfredo. Dogmatica e Politica Nella Scienza del Processo Penale. In dogmática relativa à figura da tentativa. O código Rocco levou a cabo reco-
_______. Nuovi Studi di Diritto Penale. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 1951. p. 102.
658. Sobre o pensamento de JELLINEK, vale a pena transcrever o pensamento de COSTA: “o ponto de partida mendações oriundas da escola positiva, ao suprimir uma importante distinção
e o objetivo de Jellinek são, ao contrário, diversos; pondo-se no interior do “paradigma centrado no Esta- entre imputabilidade e inimputabilidade. Além do referido critério do duplo
do”, inaugurado por Gerber, ele visa, todavia, um objetivo que poderia parecer uma verdadeira e própria
quadratura do círculo: manter o dogma da absoluta soberania do Estado, fazer depender os direitos do
pertencimento a este, apresentando-os não como meros reflexos da ordem normativa , mas, sim, como
binário, a punição de inimputáveis com penas privativas de liberdade também
verdadeiras e próprias prerrogativas dos sujeitos. Os alicerces da solução jellinekeana coincidem, por um
lado, com a teoria da autolimitação do Estado, por outro, com a demonstração de que o Estado, mesmo
perseguindo sempre o interesse geral, alcança-o em muitos casos multiplicando precisamente os direitos 661. GARLATI, Loredana. Novità nel Segno della Continuità: revi riflessioni sulla processual penalistica
dos sujeitos, estabelecendo com eles relações jurídicas propriamente ditas. O Estado de Direito é então italiana di ieri e di oggi. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale
aquele Estado soberano que, ao se autolimitar, se põe como pessoa, como sujeito jurídico, titular de direitos nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuf-
e obrigações, devendo respeitar tanto o direito objetivo como os direitos dos sujeitos com os quais entra frè, 2010. p. 287.
em relação”. COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução Histórica. In COSTA, Pietro; ZOLO, 662. PADOVANI, Tullio. La Soppravivenza del Codice Rocco Nell’Età della Codificazione. In La Questione
Danilo. O Estado de Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 135. Criminale: il códice Rocco cinquant’anni dopo. Bologna: Il Mulino, 1981. p. 90.
659. Esta obra de Jellinek é publicada na Alemanha em 1892 e traduzida ao italiano em 1912, com prefácio 663. FIANDACA, Giovanni. Il Codice Rocco e la Continuità Istituzionali in Materia Penale. In La Questione
de Vittorio Emanuelle Orlando, o que indica, de pronto, a influência exercida pelo autor no cenário do Criminale: il códice Rocco cinquant’anni dopo. Bologna: Il Mulino, 1981. p. 71.
direito público, com forte tendência estatalista. JELLINEK, Giorgio. Sistema dei Diritti Pubblici Subiet- 664. “a justiça é o campo no qual a violência do fascismo e a legitimidade do Estado nacional encontraram
tivi. Milano: Società Editrice Libraria, 1912. formas de combinação e de conciliação capazes de gerar repressão mas também consenso”. LACCHÈ,
660. GARLATI, Loredana. Novità nel Segno della Continuità: revi riflessioni sulla processual penalistica italiana Luigi. Tra Giustizia e Repressione: i volti del regime fascista. In ________. Il Diritto del Duce: giustizia
di ieri e di oggi. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. XII.
Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 286. 665. VASSALLI, Giuliano. O Código Rocco. Revista de Direito Penal. n. 27, 1979. p.61-62.
218 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 219

era prevista. Muitas vezes, à ela recorreu-se para a punição de criminosos a subserviência da “técnica processual” a serviço da defesa social e a rigidez
políticos666. Criminosos natos, habituais, profissionais ou por tendência con- granítica de suas costuras discursivas, em prol de um efeito simbólico de
tavam com dispositivos normativos que autorizavam esta distinção: desde a desresponsabilização pelas ações políticas, equivalentes, mutatis mutandis,
aplicação da pena à definição da custódia preventiva. Por fim, na execução da ao fenômeno descrito por ARENDT como a “demissão da faculdade de
pena, o positivismo criminológico contribui cientificamente para aadoção da julgar”. Desta forma, o tecnicismo constitui-se como uma ferramenta de
liberdade vigiada mesmo após o cumprimento da pena (art. 230, nº 1º)667. alienação e de desresponsabilização que deitou seu véu sobre as práticas dos
Veja-se que a oposição entre regimes políticos ou aquela entre matrizes juristas na construção jurídica do regime.
políticas é incapaz de oferecer boas pistas para que se possa retomar o percur-
so das continuidades e permanências no discurso processual penal. Por esta 2.2. A PROLUSÃO SASSARESE DE ROCCO E O
razão, um elemento central da narrativa processual penal, portanto, será o TECNICISMO JURÍDICO COMO CONTINUIDADE:
autoritarismo. As razões genealógicas e políticas pensamos tê-las deixado às PERMANÊNCIAS E INVOLUÇÕES NO PENSAMENTO
claras no capítulo antecedente. Nesse sentido, a opção por seguir os rumos PROCESSUAL PENAL ITALIANO
de continuidades e permanências do autoritarismo no processo penal tem as
A orientação tecnicista se inicia, de acordo com a literatura, através de
suas razões de ser. Segundo SBRICCOLI, “será o autoritarismo a chave que
uma conferência de Arturo ROCCO na Universidade de Sassari, em 1910,
permite decifrar a qualidade real dos processos culturais e processos políticos
posteriormente publicada na Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale,
que parecem alterar a inspiração”668. E também é o “autoritarismo como po-
no mesmo ano670. A conferência, chamada O Problema e o Método da Ciência
tencial traço permanente da experiência política (e penal) italiana que visível
do Direito Penal foi considerada, em linhas gerais e equivocadamente pela
ou latente, ditou – e poderia tornar a ditar – escolhas de política penal lesivas
criminologia brasileira e por diversos penalistas, como um “divisor de águas”,
à liberdade ou incompatíveis com o princípio democrático”669.
como uma ruptura671 na história do pensamento penal.
O primeiro elemento que oferece as condições para que o código de
Com efeito, de uma ruptura irreconciliável com o positivismo não se
1930 seja elaborado se inicia vinte anos antes de sua promulgação. Trata-se
tratava. Além disso, a conferência deve ser situada em um período de críti-
de uma orientação metodológica que exprime, como nenhum outro discur-
cas duras ao liberalismo clássico (escola clássica), o que permite claramente
so jurídico, o liberalismo reacionário pré-fascista. Trata-se do movimento
constatar que existem pontos de convergência entre o discurso tecnicista e o
denominado como tecnicismo jurídico-penal ou método técnico-jurídico,
discurso positivista. Nas palavras de Rocco, a orientação técnica-jurídica será
que será examinado a seguir. A hipótese levantada aqui será a de com-
aquela que torna possível uma ciência (jurídica)672.
preender os seus sentidos originários e algumas mutações sofridas por esta
metodologia, que evidentemente, não se cinge a uma pré-condição de as- Arturo ROCCO parte da constatação de que o direito penal atravessa
serções válidas no campo processual penal (horizonte epistêmico). Mesmo 670. ROCCO, Arturo. Il Problema e il Metodo della Scienza del Diritto Penal. In Rivista Italiana di Diritto e
Procedura Penale. v.I. n. 1, 1910. p. 497-561. A conferência completa também pode ser encontrada em
configurada como uma “metodologia”, o sentido de alienação e apoliticida- http://www.trani-ius.it/radici/Rocco-penale-1.htm. Acesso em 18.07.2016. Todas as nossas menções se
de da classe dos juristas permite que se desdobrem, como efeitos necessários, reportarão à este última versão do artigo. A fim de deixar a leitura mais fluida, não citaremos a obra em
cada desenvolvimento. Contudo, todas as questões agora tratadas são reproduções do pensamento de
Rocco nesta conferência.
671. Deve-se registrar que para MILETTI, por exemplo, MANZINI é o sumo sacerdote do tecnicismo. Esta
666. PETRACCI, Matteo. La Follia nei Processi del Tribunal Speciale per la Difesa dello Stato. In LACCHÈ, orientação já poderia se fazer notar em uma conferência na Universidade de Ferrara, em 1899. MAN-
Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nell’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 207 et seq. ZINI, Vincenzo. La Crisi Presente del Diritto Penale. Ferrara: Taddei, 1900. MILETTI, Marco Nico-
667. VASSALLI, Giuliano. O Código Rocco. Revista de Direito Penal. n. 27, 1979. p. 61-63. la. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In GARLATI, Loredana.
668. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpenalistica italiana. Milano:
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Giuffrè, 2010. p. 67.
Giuffrè, 1999. p. 831. 672. MAGGIORE definirá o esquema de Arturo ROCCO como um “estado obsessivo de tecnicismo no
669. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del campo do direito”, cujo ostracismo da filosofia corresponderá uma “fobia antifilosófica”. MAGGIORE,
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Giusseppe. Arturo Rocco e il Metodo “Tecnico-Giuridico”. In Studi in Memoria di Arturo Rocco. v. I.
Giuffrè, 1999. p. 831. Milano: Giuffrè, 1952. p. 18.
220 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 221

uma grave crise. Esta crise não seria exclusiva do direito penal, nem sequer do coisas era o estudo exclusivo do direito. Este direito, contudo, não deve ser
direito como um todo, mas de outras ciências como as políticas, as sociais e aquele direito “supranatural”, mas o direito positivo vigente, único capaz de
aquelas morais. Entretanto, no plano das ciências jurídicas, Arturo ROCCO oferecer um objeto para a ciência jurídica. Ao mesmo tempo, se deve distin-
afirma que em nenhuma delas é possível encontrar um grau tão alto de de- guir – e não separar – o direito penal da antropologia, filosofia e sociologia,
sorganização como aquele vivido pelo direito penal. Em nome da autonomia produzindo-se um sistema de princípios de direito, como o direito privado
do direito penal relativamente às orientações sociológicas e antropológicas era fez. Assim, uma teoria jurídica e um conhecimento científico da disciplina,
preciso resgatar a sua independência. dos delitos e das penas sob o aspecto jurídico eram condições vitais para o
A doutrina penal estaria caracterizada, para Arturo ROCCO, pela inde- progresso da ciência do direito penal. Esta orientação será denominada de
terminação, a ponto de se duvidar se ela é, com efeito, uma ciência. Assim, o técnico-jurídica, como manifestação da ciência jurídico-penal.
que se tem é a incapacidade dogmática de construção de instituições jurídicas Em sua argumentação, Arturo ROCCO percebe o surgimento de uma
baseadas nos princípios jurídicos vigentes. A primeira razão encontrada por possível objeção. A efetiva distinção entre o direito penal e matérias como a
Arturo ROCCO para o atual estado de coisas foi o esquecimento da escola filosofia, psicologia, antropologia e sociologia seria impossível. Alega Arturo
histórica de direito. A escola clássica, nas palavras de Arturo ROCCO, pre- ROCCO que a objeção consiste no fato de que se reduzirá a ciência jurídi-
tendeu um direito penal universal, imutável, que não atendia ao exame do co-penal a um perigoso formalismo e ao exercício improdutivo de abstrações
direito vigente. Tal orientação naturalista foi objeto de uma vasta obra, como teóricas673. Esta não é a intenção, afirma Arturo ROCCO. O objetivo é a
a de CARRARA, mas também de autores como FEUERBACH, PESSINA,
ORTOLAN. Foi um grave erro, posto que tal aproximação fez penetrar no di- 673. O antiformalismo se constitui como uma característica dominante na formação do pensamento pré-
-nazismo, no entender de BARATTA que, comentando o pensamento de Sauer (indicado pelo autor
reito outros saberes, relativizando o jurídico. O positivismo moderno combate como característico de uma ideologia confusa e irracionalmente totalitária) acerca da emergência de
um paradigma autoritário na literatura jurídica alemã, afirma que primeiramente, sucede um aspec-
tal erro. Contudo, cai em outro, baseado na divisão do trabalho científico, to histórico-cultural, caracterizado pelo abandono definitivo das promessas liberais e burguesas e das
considerações sobre o indivíduo como um elemento da comunidade, existente apenas em função dela,
fazendo do direito penal um apêndice da sociologia. O positivismo tentava acentuando-se de maneira profunda os elementos éticos da moral e do costume do “povo”. O aspecto
científico desta característica que faz emergir a solução autoritária vem representada pela saída da deso-
destruir aquelas concepções metafísicas da escola clássica, embora acabasse por ladora alternativa entre a ingênua dogmática dos clássicos e a ingênua humanidade dos modernos. Aqui,
uma metodologioa antiformalista surge como corolário de um direito inspirado na “sã moral popular”,
destruir, igualmente, o que não deveria ser destruído. A finalidade, para esta ou seja, um complexo de valores que o intérprete, intimamente ligado ao povo conecta diretamente tais
elementos ou ainda, esvazia aqueles ligados à mera tipicidade legal. Segundo Baratta, no escrito de
corrente, deveria ser a de renovar o método da ciência penal, com o recurso Sauer verifica-se a afirmação de que a tolerância política conduzida pelo relativismo anda em favor do
à filosofia experimental e positiva, lastreada em dados oferecidos pela socio- liberalismo e do marxismo, danificando as novas formas da política nacional. A segunda circunstância
que, segundo Baratta, deve ser reconhecida, na reconstrução realizada por Sauer é a pretensão de dar
logia e antropologia. Contudo, esta finalidade foi perdida e o direito penal uma larga base ética e cultural à obra do intérprete, desvinculando-a do dogmatismo acadêmico. Neste
sentido, o que conta para a nova linha científica não são as considerações dogmáticas ou o doutos re-
se transformou no estudo dos meios postos para se atingir aquela finalidade. clamos da literatura precedente, mas inserir em um mais vasto contexto cultural aquilo que pode aspirar
ao ranking científico. Deve-se, neste caso, superar o formalismo através de uma fundação axiológi-
O resultado foi a colonização do direito penal pelos saberes alienígenas. A ca, cultural e especialmente sociológica e ético-social do direito. Outro elemento que acompanha esta
“mistificação idealista e ética do programa autoritário” é o recurso ao neokantismo e ao neo-idealismo
escola positiva se contentou com as ruínas do direito penal, não propondo da escola sul-ocidental (Wildelband, Rickert, Lask) para dar à ciência jurídica nacionalsocialista uma
fundação cultural segundo uma orientação idealista, que se complementa ao critério biológico (sangue
substitutos jurídicos, legislativos, nem científicos. O positivismo, criticando e raça). O terceiro aspecto do pensamento penalístico alemão examinado por Sauer é aquele da política
sem nada oferecer em seu lugar, limitou-se à tarefa mais simples da crítica, criminal. Segundo Baratta, aqui o significado do direito penal autoritário se insere plenamente na histó-
ria da reforma do código tedesco, que havia registrado inúmeros projetos entre 1922 a 1930. As orienta-
criando um “direito penal...sem direito”. Entre um passado destruído e um ções dos quatro projetos de reforma existentes neste período eram os de uma orientação mais moderada
ou mais radical, mas sempre dentro de uma plataforma autoritária. Havia uma tendência a superar os
presente que não ofereceu nada, o direito penal estaria à deriva, sem nem ao dados naturalísticos e criminológicos, o que significava a eticização do direito penal, a subordinação
das sanções às exigências ético-políticas de assegurar a sanidade e a coesão da comunidade nacional, a
menos um princípio firme para se socorrer. Portanto, se a escola positiva por superação do relativismo individualístico na consideração da personalidade criminal. O fim e os meios
da sanção penal foram reconduzidos ao princípio de inserção autoritária do indivíduo na comunidade,
um lado produziu obras de inegável prestígio acadêmico, por outro, acabou do seu assujeitamento espiritual à sã moral popular. Outro ponto que merece destaque nesta política
criminal autoritária foi a tendência das sanções ao máximo rigor, uma tendência que se transformará em
invalidando os critérios jurídicos existentes. terrorismo penal. Os congressos penais, entre os anos de 1932 e 1933 demonstram tais tendências, em
especial o uso de estatísticas criminais analisadas por Exner em um livro que se transformou em ele-
O remédio proposto por Arturo ROCCO, contra o atual estado de mento catalisador da reação anticientífica de uma praxe, que interpretou anticientificamente, no sentido
de um vago humanismo, as exigências requeridas pelas escolas criminológicas na Alemanha e na Itália.
222 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 223

construção da ciência do direito penal como uma ciência jurídica especial, uma revela um profundo problema de orientação técnica. Para ROCCO, a ciência
ciência que possua os meios para o estudo do direito penal como experiência, penal deve utilizar-se do mesmo caminho percorrido pelo direito privado e
o direito penal positivo. Assim, deseja-se o exame do delito e da pena exclusi- administrativo, ciências que se desenvolveram mais do que a penal. O modo
vamente desde o ponto de vista do direito vigente, deixando à antropologia, de proceder das outras ciências do direito positivo, como o direito privado
à psicologia e à sociologia o estudo das causas e consequências do crime, isto e o direito administrativo adota os meios técnicos que se expessam em três
é, os fatores e elementos estranhos ao direito. Mas a distinção não pretende o procedimentos: a) uma investigação exegética; b) uma investigação dogmática
isolamento do direito em relação às outras ciências. Quando se afirma que a e sistemática; c) uma investigação crítica do direito.
ciência jurídica estuda o delito e a pena como fenômenos sociais e a antropo- No campo da exegese, Arturo ROCCO inicia atacando o princípio da
logia estuda o crime como fenômeno natural, o que está em jogo é a fixação legalidade, ao tratar da interpretação da norma penal. Assim, afirma que não
do objeto e dos limites às ciências. A ciência do direito penal tem a tarefa de deve a ciência do direito penal se apegar a uma interpretação gramatical dos
estudar a disciplina jurídica dos fatos humanos chamados delitos e daqueles institutos, admitindo-se, com o progresso científico, a interpretação extensiva
fatos sociais e políticos que se chamam pena, isto é, o estudo das normas e modificativa. A única interpretação vedada seria, à luz do pensamento de
jurídicas que proíbem as ações humanas imputáveis, injustas e danosas, que Arturo ROCCO, a analógica. Contudo, para o autor, a exegese é incapaz de
revelam um perigo para a existência da sociedade. O objeto, assim, são direitos legitimar uma ciência penal. O comentário exegético seria apenas um produto
e deveres jurídicos subjetivos concernentes à relação jurídico-penal, que nasce literário cientificamente inferior, uma espécie de “degeneração” proporciona-
em virtude daquelas normas. Este estudo, portanto, seria necessariamente um da pelos elementos práticos do direito.
estudo técnico-jurídico, porque outros meios não existem na compreensão
Por seu turno, a investigação dogmática é aquela descritiva e expositiva
científica do direito, a não ser aqueles elaborados a partir da técnica jurídica.
dos princípios fundamentais na própria lógica e coordenação sistemáticas.
Afirma Arturo ROCCO que nada impede que algumas vezes o jurista deva
Em relação à exegese, que é a ciência das leis, a investigação dogmática seria
assumir o papel de antropólogo ou sociólogo, trabalhando com o método po-
a ciência do direito. A possibilidade e a utilidade práticas de uma construção
sitivo. A distinção não se confunde com separação e tampouco com “divórcio
dogmática e sistemática através dos princípios do direito penal positivo é
científico”. O jurista deve atender à pesquisa própria e estritamente jurídica,
evidente: ela fornecerá preciosos contributos para o cotidiano da aplicação
a fim de evitar uma intrusão de elementos filosóficos e políticos na límpida
judicial da lei vigente. Parte da crise do direito penal, para Arturo ROCCO,
lógica jurídica, o que não significa que o jurista não possa estudar os fenôme-
tem origem na irrelevância dada à investigação dogmática. Prossegue ainda o
nos históricos e políticos para, por exemplo, explicar a origem ou a razão de
autor, afirmando que uma sistematização científica, contudo, desde o ponto
ser de um determinado instituto. Para Arturo ROCCO, é tarefa e função da
de vista jurídico, não será possível sem que seja estabelecida a natureza e as
ciência do direito penal a elaboração técnico-jurídica do direito penal positivo
características das relações jurídicas que no campo do direito penal substan-
e vigente, o conhecimento científico e não simplesmente empírico do sistema
cial ocorrem entre Estado e súdito, entre Estado e réu, entre Estado e vítima
de direito penal e das leis que o governam.
e no campo do processo penal, entre partes e juiz e entre as próprias partes.
Assevera Arturo ROCCO que toda a ciência possui a sua técnica
A ciência penal requer um último desenvolvimento, que já não recai
particular. Por técnica o pensador compreende o conjunto de meios, proce-
sobre o direito penal como ele é. A análise da razão de ser dos institutos bem
dimentos lógicos, metodológicos e sistemáticos que lhe são específicos e que
como de sua necessidade ou de sua substituição por um direito diverso per-
servem para que a ciência possa atingir o seu fim. A crise da ciência penal
tence ao campo da investigação crítica. A crítica jurídica, em um primeiro
momento, se debruça sobre o direito vigente, trazendo à tona as disparidades,
Segundo Exner, a diminuição das penas para determinados tipos de crime proporcionou o aumento da
criminalidade e da reincidência. BARATTA, Alessandro. Positivismo Giuridico e Scienza del Diritto antinomias e lacunas existentes no direito vigente. Mas a crítica só é admis-
Penale: aspetti teoreteci e ideologici dell sviluppo della scienza penalistica tedesca dall’inizio del secolo
al 1933. Milano: Giuffrè, 1966. p. 50-51; 53-55. sível após percorrer-se os caminhos da exegese e da dogmática, sem os quais
224 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 225

a crítica jurídica não pode ser validamente estabelecida. a política e o direito comparado como entidades subordinadas ao campo da
Segundo Arturo ROCCO existem três meios capazes de conrtibuir ciência penal. Assim é que nascem as “ciências auxiliares” do direito e do
para o desenvolvimento da ciência penal, isto é, três induções experimentais: processo penal, como se pode constatar em diversos manuais (não limitados
a) a antropologia, a sociologia e a psiciologia; b) a história e c) o direito ao Brasil). Tais manuais, especialmente de direito penal, quando tratam do
comparado. Relativamente ao campo da antropologia, sociologia e psico- objeto e das funções do direito penal, procuram, ao delimitar as fronteiras do
logia, a ciência penal deve compreender as funções sociais de suas normas, saber dogmático, estabelecer a base de relações do direito penal com outros
que são objeto destas áreas. Para a determinação técnica, no escopo de saberes, denominados de “auxiliares”. Para além de uma hipotética e jamais
aplicação judicial do direito vigente, na determinação dos princípios gerais produzida fissura entre ciência penal e demais disciplinas, o discurso autori-
de imputabilidade e responsabilidade penal, assim como de suas causas tário italiano em matéria penal produziu saberes subservientes, verdadeiras
de exclusão ou limitação, a ciência penal pode servir-se destas áreas, que condições para que o tecnicnismo se aproveitasse do desenvolvimento do
atuarão de forma subsidiária. No que concerne à história do direito e do di- positivismo e dele tirasse benefícios, em especial convergindo na crítica ao
reito comparado, as suas repercussões na ciência penal são inegáveis, sendo já desgastado penalismo liberal-iluminista. A segunda questão que pode ser
desnecessárias maiores explicações. Arturo ROCCO cita ainda a influência encontrada no discurso de Arturo ROCCO diz respeito à constante busca
da escola histórica, que permitiu o desenvolvimento do método indutivo pela legitimação do direito penal através de uma doutrina já existente e con-
no direito como uma conquista irrefutável. solidada. Arturo ROCCO tratou de produzir uma leitura específica de clichês
pandectísticos, articulados em especial pela denominada escola histórica do
Em síntese, eis os principais pontos de sua conferência, para muitos
direito, que tinha em WINDSCHEID, SAVIGNY e PUCHTA seus maiores
tida como o discurso inaugural de ruptura com o saber criminológico posi-
expoentes. Este enquadramento dado por Arturo ROCCO às categorias de di-
tivista. A orientação tecnicista, como já se afirmou anteriormente, foi capaz
reito privado (todos estes autores aqui citados eram romanistas) se fez através
de oferecer ao fascismo um direito facilmente sequestrável pelo novo regime
do reacionário juspublicismo italiano, que tem nos escritos de ORLANDO
político, além de produzir uma classe de juristas, em sua grande maioria,
uma fonte indispensável para o seu desenvolvimento. A metodologia tecni-
alienada referentemente aos problemas políticos do direito e do processo
cista se difundiu e atravessou praticamente quase todo o século XX na Itália,
penal. O resultado se viu mais adiante, através das teses negacionistas, que
dando a sobrevida ao código de processo penal e ao código penal, ainda não
não viam na legislação penal do período fascista as marcas do regime político,
revogado, embora substancialmente modificado.
o que garantiu a sobrevida dos códigos de direito e processo penal italianos.
Segundo PADOVANI, o programa de Arturo ROCCO se parece com um Embora se possa atribuir uma relevância fundamental ao tecnicnismo
formalismo autorreferencial674, o que inevitavelmente garantiria certa blinda- de Arturo ROCCO, em especial a retromencionada conferência, o impacto
gem ideológica para os juristas do regime, que atuariam como “freios liberais” de seu discurso, no campo penalístico, foi menor do que o de MANZINI. E,
ao avanço do autoritarismo (para os negacionistas). novamente, laboram em erro aqueles que resumem o movimento tecnicista
que atuara no campo penal ao discurso inaugural de ROCCO ou ainda, em
De fato, podem ser constatadas duas questões na prolusão de Arturo
suas sucessivas produções intelectuais.
ROCCO. A primeira delas reside na circunstância de que, diferentemente
de uma espécie de mantra que percorre o discurso penal e criminológico Assiste razão à MILETTI ao definir MANZINI como o sumo sacerdote
brasileiros, não se pode falar de uma ruptura tecnicista com o positivismo. do tecnicismo jurídico. Será a partir da segunda edição de seu Tratado de Direito
A proposta de Arturo ROCCO é muito clara. Ao negar a separação entre as Penal que o autor consagrará a adoção da nova orientação (tecnicista), garan-
ciências, trata de colocar a psicologia, a antropologia, a sociologia, a história, tindo-lhe uma posição hegemônica que perdurará, quiçá, em nossos dias675.

674. PADOVANI, Tullio. Lezione Introduttiva Sul Metodo nella Scienza del Diritto Penale. In Criminalia, 675. SBRICCOLI, Mario. La Penalistica Civile. In Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v. I. Milano:
2010. p. 233. Giuffrè, 2009. p. 582-583.
226 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 227

Sua importância cresce ainda mais quando é justamente o seu pen- reducionista da ciência penal proposta por ROCCO, asseverando ainda a
samento a dar vida ao código de processo penal. Em sendo assim, torna-se necessidade de se garantir aos cidadãos o uso de armas, a fim de se proteger
necessário examinar, ainda que de forma rápida e sucinta, a constituição de dos “maus-viventes”681. Além disso, criticava a abolição da pena de morte682,
seu pensamento em termos de método. O tecnicismo jurídico, como uma lamentava o fato de que os agentes das forças policiais portavam armas mas
corrente de pensamento metodológico, evidentemente que haveria de sofrer não as usavam, sugerindo a criação de forças para-policiais, a fim de ajudar
variações com o passar do tempo. Neste sentido, pode-se ratificar as palavras a polícia na luta contra a delinquência683. Fundamentalmente, nesta confe-
de SBRICCOLI676, que afirma que o tecnicismo jurídico que informará o rência, MANZINI elabora um programa para a defesa social contra a pior
código de 1930 será o de MANZINI e não o de Arturo ROCCO677. De acordo espécie de delinquência e “má-vida”, consideradas como problemas urgentes e
com SBRICCOLI, o tecnicismo que estruturou os códigos de 1930 (penal e graves da Itália. O termo “má-vida” é desenhado por ninguém menos do que
processual penal) foram protagonistas de uma involução, tendo perdido parte Alfredo NICEFORO684 e Scipio SIGHELE, o primeiro, um criminólogo de
da inspiração que havia motivado Arturo ROCCO a defender o movimento base lombrosiana, o segundo, discípulo de Enrico FERRI.
em 1910, assumindo as vestes do pensamento de Vincenzo MANZINI678. Nesta conferência MANZINI indica meios mediatos e imediatos na
A articulação justificacionista do código, amparado em termos técnicos, luta contra a delinquência: os meios mediatos seriam a educação popular,
percorrerá as boas vindas da nova legislação. Aliás, tais ecos já eram encon- o bem-estar social, a luta contra o alcoolismo, dentre outros. Relativamente
trados nas discussões sobre a necessidade de um novo código, apesar de a sua a estas causas sociais da delinquência, MANZINI nega que o direito penal
elaboração não ter se apoiado em diálogos com outros juristas, já que MAN- possa desempenhar algum papel685. Fora do “âmbito social”, resta ao di-
ZINI era infenso às comissões. SABATINI, em 1931 afirmará que o código reito penal, considerado pelo autor como meio imediato, atacar as causas
representa a mais pura expressão do pensamento científico679. Clara alusão à da criminalidade (assim, o direito penal será uma prima ratio; o recurso ao
opção metodológica que atravessa o corpus legislativo de 1930. meio imediato caracterizará a sua conferência, do início ao fim). Afirmará
MANZINI fará uma conferência na Universidade de Turim, em 22 de MANZINI que no campo ético, cultivou-se um equívoco: a ideia de que
novembro de 1910, cerca de dez meses após a famosa prolusão de ROCCO680. seria uma vergonha andar armado. O uso da arma contra um malfeitor
Menos famosa e conhecida do que aquela de ROCCO, esta conferência, de não deveria ser tratado como uma faculdade jurídica, mas como um dever
acordo com SBRICCOLI, é que marcará os caminhos do tecnicismo jurídico social686. Para MANZINI, o dever social do agredido em se defender com
italiano nas vésperas do movimento fascista se tornar um regime de gover- armas deveria ser incorporado à política criminal. A legítima defesa seria,
no. Nesta prolusão de Torino, MANZINI tratou de tecer críticas ao caráter portanto, na construção do pensador, um meio imediato privado na luta
contra a delinquência.
676. SBRICCOLI, Mario. Caratteri Originari e Tratti Permanenti del Sistema Penale Italiano (1860 – 1990). Ao seu lado, o Estado deveria garantir meios imediatos públicos, como
Disponível em http://www.lex.unict.it/sites/default/files/files/Biblioteca/letture/Sbriccoli.pdf. Acesso
em 11.09.2015. a introdução da pena de morte e o aumento das penas. Aqui MANZINI in-
677. Esta informação pode ser contestada, posto que o código penal será claramente informado por uma pre-
tensão tecnicista em sua elaboração, em franco diálogo com a reacomodação das categorias positivistas. troduzirá a sua concepção de política criminal, que reproduzimos na íntegra:
No campo do código penal, Arturo Rocco desempenhou uma influência notável: no plano da preparação
doutrinária das categorias autoritárias, previamente ao regime e sob a égide de “ciência penal” e de outro
lado, contribuindo para a recepção destas categorias na legislação fascista. TAMBURRANO, Giuseppe. 681. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
I Principii Informatori del Vigente Codice Penale : parte prima – Il pensiero scientifico di Arturo Rocco. vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 08.
In La scuola Positiva. 3/4, v. 5, 1951. p. 412-428. 682. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
678. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 10.
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: 683. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
Giuffrè, 1999. vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 11.
679. SABATINI, Guglielmo. I Caratteri Dell’Azione Penale nel Nuovo Codice. In La Scuola Penale Unita- 684. NICEFORO, Alfredo; SIGHELE, Scipio. La Mala Vita a Roma. Torino: Roux Frasati, 1898.
ria. v. V, 1931. Fasc. II. p. 131. 685. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
680. Cf SICILIANO, Domenico. Per Una Genealogia del Diritto Alla Legittima Difesa: da Carrara al Rocco. vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 08.
In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. n. 35. t. II. Milano: Giuffrè, 2006. 686. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
p. 723-847. vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 08.
228 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 229

“o nosso sistema penal, que de resto não teve jamais uma completa atuação, corporal, que somente pode ser desdenhada a partir de preconceitos pró-
é não apenas benevolente, dadas as condições italianas, mas é também, ou- prios do ideal da revolução francesa690, negando a “italianidade”691. Este
trossim, forjado em modelos criados para povos de índole, de costumes e
idealismo seria nocivo ao bom desenvolvimento da ciência penal. O se-
de disciplina diversos dos nossos. Ele se inspira, além disso, em um critério
fundamentalmente errôneo, fatal petição de princípio sobre a qual se erige gundo meio público para o combate à criminalidade seriam os “medidas
toda a sua complexa construção. O seu espírito se adequa muito mais à psique policiais”. Segundo MANZINI,
de gente culta e honesta do que àquela dos malfeitores: acreditou-se que eles “os agentes da força pública são hoje no Estado italiano munidos de armas
sentem e sofrem moralmente do nosso modo, atribuindo, assim, à restrição por ironia, porque as portam mas não podem usá-las. O justo critério de que
da liberdade pessoal um valor, que a gente abjeta ou a gente simplesmente não se deve fazer uso das armas, sem absoluta necessidade, contra a massa, é
inculta e pobre está bem longe de se lhe atribuir. A isso se acrescente uma bem diverso daquele para o qual os guardas não devem empregar as armas,
boa dose de sentimentalismo afeminado em benefício dos piores membros de a não ser em caso extremo, contra os malfeitores que os agridem ou que se
nossa sociedade e uma valoração muito igualitária, abstrata e cega das coisas rebelam. Na prática ambos os critérios se identificam. E os malviventes sabem
conhecidas como direitos da personalidade individual”687. disso, se aproveitam e crescem em audácia”692.
MANZINI não se detém em que “condições italianas” seriam estas,
A proposta, para MANZINI, é a relativização do preceito sobre o uso
nem tampouco o que entende por “povos de índole, costumes e disciplina
das armas, não podendo mais ser interpretado como extrema ratio. A polícia
diversos”. Para atestar a urgência do problema da criminalidade e a necessi-
é uma entidade dotada de uma “faculdade natural de combater a criminali-
dade de reformas, afirma simplesmente que a justificativa para a luta contra a
dade”, limitada exteriormente pelo direito693. Finalmente, MANZINI propõe
delinquência pode ser encontrada em qualquer jornal688. Está-se, claramente,
uma última reforma para o combate à criminalidade: a criação de forças
diante de um pensamento não apenas autoritário, mas racista. A diferença
auxiliares à polícia, que têm a forma de associações privadas694. Ao se referir
entre povos e a distinta psique do criminoso identificam claramente a confor-
à “má-vida”, MANZINI pensa na criminalidade profissional, bem como nas
mação que assume o seu tecnicismo, modulado pelo pensamento positivista,
classes consideradas perigosas. Uma de suas propostas será a segregação dos
que a exemplo de Arturo ROCCO, aparece como retórica legitimadora das
malviventes e a purificação dos centros urbanos695. Para estes, MANZINI
modificações penais. E a primeira proposta de MANZINI será a restituição
sugere a adoção exlcusiva das “medidas de polícia”, sem a utilização do di-
da pena de morte. Nas palavras do autor:
reito penal, já que não podem ser motivados pela ameaça da prisão696. Tais
“A Itália se deu ao luxo, único entre os grandes países, de satisfazer uma delinquentes “não podem ser considerados como sujeitos do direito penal,
longa e generosa aspiração da sua classe culta, para quem a nobreza da raça
mas indivíduos danosos e perigosos que devem ser eliminados”697. A seleção
e a antiga civilidade criaram repugnância e sentimentos não compartilhados
com tanta intensidade pelos povos economicamente mais evoluídos e de civi- e a individualização das classes perigosas, de acordo com MANZINI, (que
lização mais recente. A abolição da pena de morte, exceto para os militares e afirma que a conferência não seria o espaço para o desenvolvimento do tema),
súditos coloniais, foi, em realidade, uma homenagem do Governo italiano à
classe culta da nação, não àquela, ao menos intencionalmente, que demonstra 690. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 11.
compartilhar da respectiva repugnância e sentimentos da primeira, a produzir 691. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
a cada ano cerca de 10.000 criminosos acusados de graves delitos violentos, vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 07.
dos quais cerca de 150 (condenados ao ergástulo ou à reclusão por trinta 692. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 11.
anos) candidatos hipotéticos ao extremo suplício”689. 693. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 11.
A segunda pena que MANZINI deseja ver reintroduzida é a pena 694. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 12.
687. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala- 695. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 08. vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 12.
688. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala- 696. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 08. vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 13.
689. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala- 697. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala-
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 10. vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 13.
230 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 231

repousaria, a princípio, na habitualidade delitiva e na reincidência como cri- eliminando as simplificações positivistas. Ainda segundo SBRICCOLI, o
térios de identificação. As “medidas de polícia” consistiriam, sobretudo, na tecnicismo foi um golpe de sorte da história, pois sem ele o fascismo en-
segregação por tempo indeterminado do suspeito, após um procedimento contraria um direito penal pródigo em sincretismos e recomposições entre
administrativo, no qual se avaliam as suas condições pessoais698. Quanto à este escolas obsoletas, desfiguradas por sociologismos e antropologismos, gerido
aspecto, o ordenamento fascista, através da detenção policial, perfectibilizará por juristas medíocres703. Além do “saneamento”, o tecnicismo teria produzi-
eficazmente as recomendações de MANZINI699. do efeitos inevitáveis: empobrecimento da cultura penal, a perda de contato
Percebe-se claramente nesta conferência, prolatada por MANZINI cerca com a política e a história, o fechamento em si mesmo, o fim do direito penal
de dez meses após aquela de Arturo ROCCO, que todo o capital jurídico em como “ciência da civilização”704.
termos de reforma da legislação é penetrado e atravessado por categorias caras Para alguns juristas, o método foi uma espécie de álibi, para manter “os
ao positivismo, o que identifica cristalinamente a inexistência de ruptura entre olhos para o céu” e não ver as coisas que o fascismo estava fazendo. Contudo,
as correntes de pensamento. afirma SBRICCOLI, não se pode imputar ao método as escolhas de política
Em realidade, nesta prolusão, MANZINI tecia severas críticas contra criminal do regime705.
o “enciclopedismo” que havia criado “delimitações artificiais e abstratas” Grande parte do sucesso que o tecnicismo atingiu no campo do di-
quanto ao direito penal700, inclusive homenageando Cesare LOMBROSO reito penal advinha da inexistência de uma “ciência processual penal”. O
no que diz respeito à possibilidade de adoção da pena de morte701. Este processo penal era absorvido e ensinado por penalistas, o que em parte
pensamento liberal-reacionário, nos dizeres de SBRICCOLI, já continha explica a pouca atenção dada por Arturo ROCCO em sua famosa prolusão,
muito de fascismo702. Repita-se: o que se pode verificar claramente é a ma- ao processo penal. O código de 1930 nasce com esta tarefa, de sistemati-
nutenção de um estilo de pensamento que comunga de inúmeros pontos de zar o conhecimento do processo penal e de estabelecer uma estrutura que
encontro com o positivismo, mesmo que o discurso assumisse as vestes do superasse o “labiríntico” procedimento do código de 1913, considerado
tecnicismo. O tecnicismo de MANZINI, aquele que ilustrará o código de obscuro e atécnico, muito embora também contasse com a participação
1930, não rompe com o positivismo. Antes o pressupõe, embutindo-o em do mesmo MANZINI na comissão que elaborara aquela reforma. Além do
uma estrutura legislativa que parte da distinção – expressa na conferência obscurecimento do processo penal em relação ao direito penal material, não
de Turim – entre homens honestos e malfeitores. se pode descurar de sua nítida falência sistêmica relativamente ao processo
Seria possível, portanto, definir o processo penal fascista pela sua ade- civil, o que levou CARNELUTTI a escrever o famoso artigo Cenenterola.
rência metodológica ao tecnicismo? Para SBRICCOLI, o método tecnicista Para a empreitada de construção de uma “ciência do processo penal”,
não produziu todos os efeitos que a ele foram atribuídos pela penalística não era possível desconhecer ou ignorar a base da própria ciência processual
do pós-guerra. Para o autor, o tecnicismo produziu o efeito de favorecer civil, isto é, os estudos de teoria geral do processo, assentadas nas premissas
um “saneamento” do direito penal, com a retomada da centralidade da lei, germânicas da pandectística. O paradigma italiano, no processo civil, viria
a ser construído justamente a partir de CHIOVENDA, com a inserção da
698. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala- matriz alemã na seara processual (A Ação no Sistema dos Direitos). Muito
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 13.
699. POESIO,Camilla. Il Confino di Polizia, la “Schutzhaft” e la Progressiva Erosione dello Stato di Diritto.
. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 703. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
2015. p. 95. fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
700. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala- Giuffrè, 1999. p. 846-847.
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 05. 704. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
701. MANZINI, Vincenzo. La Politica Criminale e il Problema della Lotta Contro la Delinquenza e la Mala- fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
vita. In Rivista Penale. n. 73. v. XXXVII, 1911. p. 10. Giuffrè, 1999. p. 847.
702. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del 705. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
Giuffrè, 1999. p. 822. Giuffrè, 1999. p. 849.
232 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 233

embora fosse necessário, para dar suporte ao código de processo penal, esta- dá referentemente à reconstituição do arquivamento do processo criminal
belecer um fundamento de legitimação doutrinário, não seria sem o recurso (presente em uma reforma de 1944713), que se torna suscetível de controle
à teoria geral do processo706. pelo juiz, não mais sendo uma mera questão interna corporis do Ministério
Neste ponto, inevitável socorrer-se de TARELLO, que acentua o caráter Público; b) a retirada da subordinação do Ministério Público das mãos do
autoritário contido na teoria geral do processo: Ministro da Justiça e, consequentemente, do Poder Executivo714.
“no que diz respeito à teoria do processo, ela tinha o objetivo de aplainar as Para o desenvolvimento deste conceito vital ao código Rocco, seria
diferenças entre o processo penal e o civil, diferenças tradicionais e radicadas preciso definir o objetivo da ação penal. E nesse período (início do século
nas precedentes organizações liberais, como eram sobretudo aquelas fundadas XX) eram três as teorias a emprestar significado à categoria: a) a teoria da
na iniciativa e nos poderes dispositivos das partes na propulsão do processo tutela jurídica (ou do direito concreto de agir), que tinha em WACH e
civil e na administração processual da prova civil: a teoria geral do processo, ou
teoria do processo em geral servia a uma concepção autoritária de processo civil BULOW os expoentes máximos. Basicamente, consistia na afirmação de
e refletia um processo de publicização do próprio direito civil substancial”707. que a ação correspondia ao direito de se obter uma sentença favorável; b)
a teoria da pretensão jurídica (igualmente proveniente dos processualistas
Segundo MILETTI708, foram duas as categorias essenciais à cons-
alemães), o que significa dizer que aquele que age requer ao Estado que
trução desta “ciência do processo penal”709, ainda inexistente na Itália. A
verifique o fundamento do pleito). No campo do processo penal, assumirá
primeira delas foi o conceito de ação penal (que inclusive é a base central
ela a feição de uma pretensão punitiva, que encontrará em BINDING seu
do código de processo penal brasileiro). A Itália, neste campo, adotará o
máximo expoente; c) a teoria do direito potestativo, que encontrará na
princípio da obrigatoriedade da ação penal como pressuposto elementar.
Itália em CHIOVENDA o seu principal defensor (e que posteriormente
Interessante registrar, neste momento, que tal categoria atravessará os mais
será transposta ao processo penal por LANZA). Assim, a ação seria nada
distintos regimes políticos: pré-fascista, fascista e pós-fascista. Considerado
mais do que o poder de ativar a jurisdição715.
por MANZINI como um “poder e um dever do Estado”710, aparece referen-
ciado pelo autor, após a Constituição Italiana de 1947, como insculpido em MANZINI claramente aderirá à segunda das teorias sobre a ação.
seu art. 112711. No mesmo sentido será a conclusão de DE MARSICO, para Definirá a ação penal como o “poder-dever jurídico que compete ao Mi-
quem o art. 112 da Constituição Italiana reafirmará o art. 74 do Código nistério Público de ativar as condições para obter do juiz a decisão sobre a
Rocco712. CHIAVARIO lançará mão de um questionamento relevante: responsabilidade da pretensão punitiva do Estado derivada de um fato que
isto significaria, portanto, que a Constituição Italiana repristinaria uma a lei prevê como delito”716. Segue dizendo que “a ação penal tem sempre
categoria fascista? Para CHIAVARIO, a resposta é negativa devido a duas por objeto uma pretensão punitiva derivada de um delito, concreta e hipo-
mudanças substanciais ocorridas após a Constituição: a) a primeira delas se teticamente realizável”717.
Desde esta concepção, que influenciará a dinâmica do processo penal
706. Sobre a construção da teoria do processo Cf PICARDI, Nicola. Do Juízo ao Processo. In _______. (muito embora seja possível encontrar dissidências doutrinárias acerca da
Jurisdição e Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.33 – 68.
707. TARELLO, Giovanni. Francesco Carnelutti. In Dizionario Biografico Degli Italiani. v. 20., 1977. Dis- natureza da ação penal na Itália neste período, como no caso de SABATINI718
ponível em http://www.treccani.it/enciclopedia/francesco-carnelutti_(Dizionario-Biografico)/. Acesso
em 29.12.2016.
708. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In 713. Há que se salientar a existência de críticas na Itália, sobre o aumento da inquisitorialidade representado
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe- pelo controle do juiz sobre os pedidos de arquivamento do Ministério Público.
nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 71. 714. CHIAVARIO, Mario. A Obrigatoriedade da Acção Penal na Constituição Italiana : o princípio e a reali-
709. Chiodi está de acordo que a ciência processual penal formulada pressupunha ambos os conceitos: o de dade. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. 3/4, v. 5, 1995. p. 331-332.
relação jurídica processual e o de ação penal. CHIODI, Giovanni. “Tornare All’Antico”: il códice di pro- 715. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In
cedura penale Rocco tra storia e attualità. In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe-
del códice Rocco nella cultura processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 316. nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 71.
710. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 285. 716. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. IV. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 143.
711. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 286. 717. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. IV. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 144.
712. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 74. 718. Sabatini compreende a posição de Manzini como atrasada, já que ação não pode ser destinada apenas à
234 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 235

ou de RANIERI719), a ação penal deveria assegurar a relação de direito mate- orientação do processo penal em direção a fins extraprocessuais, com a subor-
rial. Em outras palavras, a finalidade da ação, nos termos desenvolvidos por dinação do processo penal ao direito material. A pretensão de cientificização
MANZINI, seguindo a trilha do pensamento de BINDING, era a realização do direito processual penal, com a necessária autonomia relativamente ao
do direito material. Este fato não possui uma importância menor, à medida direito material e processual civil não lograria êxito. O processo era instru-
que será o conceito de ação (para muitos à época na Itália e para outros tantos mento do direito material720. Neste sentido, basta examinar o pensamento de
anacrônicos no Brasil (!)) o objeto do processo. A inserção da ação penal como ROMANO DI FALCO, para quem “o direito criminal processual é um meio,
objeto do processo pode ser encontrada em inúmeros dispositivos do código ainda que autônomo, para a realização do direito criminal substantivo”721. No
de processo penal brasileiro, como a) o fato de que o Ministério Público não artigo Concetto, Caratteri e Contenuto del Nuovo Diritto Processuale Penale, DI
pode “desistir da ação” (art. 42 do CPP); b) de que o habeas corpus pode ser FALCO, em defesa da autonomai da ação penal (emnbora mantendo a noção
proposto para “trancamento da ação”. de pretensão punitiva), será o responsável por uma inversão da relação entre
Através do conceito de pretensão punitiva o processo estaria a serviço direito e processo penal, demonstrando como o código de processo era a es-
de fins extraprocessuais. Este um dos pontos essenciais e que deve ser pro- trutura reguladora do sistema punitivo fascista. O direito penal é que passaria
fundamente estimado pelo leitor. Como já referido, não basta a afirmação a ter um conteúdo formal, podendo afirmar daí, ocorrer uma inversão rela-
– entoada quase como um mantra – de que o código de processo penal tivamente à acessoriedade do direito processual penal àquela substancial722.
brasileiro configura-se como uma réplica do Código Rocco. É necessário A instrumentalidade do processo em relação ao direito material teria
entender que a permanência do diploma legislativo, sem causar grandes como subsídio fundamental a noção de ação penal, interpretada como exer-
transtornos epistêmicos e/ou práticos se deve a uma dogmática amparada cício da pretensão punitiva. A acessoriedade do processo, assim, se justifica
nas categorias italianas. A noção de pretensão punitiva percorre décadas no inicialmente através: a) do pequeno desenvolvimento do processo penal em
Brasil, produzindo: a) a subordinação funcional do processo à consecução relação ao direito penal, o que pode ser facilmente comprovado pela inexis-
de objetivos extrapenais (independentemente da transformação política tra- tência de cátedras específicas de direito processual penal nas universidades
zida pela Constituição da República de 1988); b) a introdução de categorias italianas, até o final da década de 30, cujo debate em torno da autonomia
que pretendem dar conta de uma conciliação entre os dispositivos do código do direito processual penal, motivado especialmente pela orientação tecni-
de processo penal brasileiro e aqueles da Constituição da República, e que cista, durará aproximadamente um quarto de século; b) pela subordinação
são, em largo espectro, mediadas pelos conceitos tecnicistas empregados na do processo à realização do direito material, que possui larga tradição, mas
Itália e que foram utilizados na construção de uma doutrina “científica” no que se acentuou no movimento tecnicista.
Brasil, muito embora com o predomínio simbólico do pandectismo tardio Aparentemente, o movimento tecnicista haveria de consagrar a autono-
que marcaria a teoria geral do processo, que encontrou na Escola de São mia e a independência do processo penal relativamente ao direito material.
Paulo o seu principal ponto de ancoragem. Com efeito, somente a partir de 1930 – com o novo código de processo
A ação penal, concebida como imperativo de realização da pretensão penal – se poderia pensar em uma disciplina autossuficiente. Contudo, o
punitiva do Estado, ativada pelo Ministério Público, constitui-se como a predomínio do direito penal em relação ao processual não seria facilmente
pretensão punitiva, o que corresponderia à finalidade da ação como meio de fazer atuar o direito penal. 720. Igualmente pode ser encontrada em FLORIAN esta orientação: “o escopo geral imediato do processo
A ação, para SABATINI, deve ser compreendida em relação de autonomia com o direito material. E, penal se identifica com o escopo do direito penal como o direito à realização do mesmo, ou seja, a de-
assim, a ação deve ser entendida como “direito de estar em juízo”, um direito especificamente proces- fesa social, em sentido amplo, contra a delinquência”. O objetivo imediato era a “aplicação da lei penal
sual. SABATINI, Guglielmo. Nozione della Scienza del Diritto Processuale Come Disciplina Giuridica no caso em concreto”. “Na verdade, o processo penal serve essencialmente para realizar em um caso
Autonoma. In La Scuola Penale Unitaria. II, 1928. p. 84-87. particular a lei penal, a qual não possui mais do que previsões abstratas”. FLORIAN, Eugenio. Principi
di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 52.
719. Para Ranieri, a ação penal era “a atividade processual do Ministério Público, dirigida a obter do juiz que
acerte a subsistência das condições de fato e de direito, às quais a lei subordina a concessão de seu pro- 721. DI FALCO, Romano. Concetto, Caratteri e Contenuto del Nuovo Diritto Criminal Processuale. In
vimento e decida em conformidade com o acertado”. RANIERI, Silvio. Istituzioni di Diritto Processuale Rivista Italiana di Diritto Penale. v. XI. a. V. Padova: CEDAM, 1933. p. 483.
Penale. Milano: Ambrosiana, 1948. p. 84. A ação, para o processualista, não poderia ser limitada à realiza- 722. DI FALCO, Romano. Concetto, Caratteri e Contenuto del Nuovo Diritto Criminal Processuale. In Ri-
ção da pretensão punitiva do Estado da forma restritiva como a pressupõem Manzini e Rocco. Ibidem. vista Italiana di Diritto Penale. v. XI. a. V. Padova: CEDAM, 1933. p. 489.
236 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 237

esquecido, o que permitiu o desenvolvimento de uma relação entre direito ao campo penal. Talvez neste ponto, mais do que em qualquer outro, as con-
material e processual, pensada em termos de acessoriedade ou instrumenta- tradições internas do pensamento fascista (dado o seu vazio epistemológico)
lidade. A independência científica do processo penal não significa abandono sejam evidenciadas. O paroxismo de MANZINI é invejável: não obstante
da instrumentalidade. Pelo contrário, significou o reforço deste acento. O enfatizar a relação jurídica processual, descrevendo os sujeitos da relação729,
caso da ação penal é uma clara prova desta submissão do processo ao direito concebe o processo penal como “processo de uma só parte”730.
material, obrigando a disciplina processual a justificar o “direito subjetivo de Contudo, a penetração da teoria da relação jurídica no processo penal,
punir” estatal em termos de “ativação da jurisdição” ou exercício da pretensão apesar de algumas críticas731, é predominante, a ponto de GUARNERI
punitiva. A instrumentalidade do processo, em síntese, será a componente afirmar ocorrer uma “civilização do processo penal”732. De acordo com MI-
básica do tecnicismo processual penal. LETTI, e como o próprio MANZINI faz questão de proclamar, as ideias de
A segunda transmissão, para o processo penal, desde as bases pandec- relação jurídica já apareciam em seus trabalhos sobre o código de 1913, o que
tísticas é a noção de relação jurídica processual723. Segundo RENDE, a teoria lhe permitia anunciar o “acento garantístico” do novo código733.
da relação jurídica processual além de conferir organicidade ao código, “é a
bússola e o fio de Ariadne”, sem as quais as questões processuais estariam dis-
729. “Sujeitos principais da relação processual penal são as pessoas que devem intervir nessa mesma relação,
persas, como na obra dos processualistas prévios a CHIOVENDA724. Devemos ou seja, aqueles a quem a lei reconhece poderes públicos ou direitos subjetivos de disposição do conte-
údo formal do processo por um interesse de direito penal”. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho
lembrar que já em 1905 Arturo ROCCO escrevera sobre a teoria da relação Procesal Penal. t. II. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 03-04. Manzini trata da relação processual também
no volume I: “a relação jurídico processual é a particular situação recíproca, regulada pelo direito, em
jurídica penal como expressão de um direito subjetivo de punir, claramente que se encontram, como consequência do exercício de suas faculdades ou do cumprimento de suas
inspirado em BINDING. Segundo ROCCO, o direito subjetivo de punir ou o obrigações jurídicas, os sujeitos competentes ou autorizados para fazer valer a sua própria vontade no
processo penal em relação à ação penal ou à outra questão de competência do juiz penal”. MANZINI,
jus puniendi, é “a faculdade do Estado de agir em conformidade com as normas Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 112. Afirma MAN-
ZINI que o conceito de relação jurídica processual já havia sido acolhido no código de processo penal
de direito (direito penal, em sentido objetivo) que garantem o alcance de seu de 1913, sendo por ele tratado em seu manual.
730. “O processo penal, como processo próprio da justiça administrativa é, se se pode dizer, assim, um
objeto punitivo e de pretender para outros (réu) o que ele está obrigado por processo de parte única (imputado), já que o acusador apenas é parte em sentido formal (isto é, en-
quanto contraposto ao imputado na atividade processual), sendo um órgão do Estado por seu instituto
força das mesmas normas”725. Além disso, afirmará ROCCO que “o direito de imparcial, que faz valer sem dúvidas uma pretensão do próprio Estado, mas encaminhada à realização
punir aparece como um direito público subjetivo do Estado e, precisamente, do direito objetivo, por um interesse público superior, e não de parte”. MANZINI, Vincenzo. Tratado de
Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. p.116.
como um particular direito de supremacia, derivado do status subiectionis726, 731. Cf Carnelutti chama os primeiros desenvolvimentos da teoria de “imperfeitos”. Carnelutti afirma que o
processo não é uma relação, mas pressupõe uma relação entre as partes, da mesma forma que uma má-
extraído de uma geral relação de subordinação e de obediência políticas”727. quina não é uma relação, mas implica relações entre a suas partes. CARNELUTTI, Francesco. Lições
Sobre o Processo Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 2004. Cf GUARNERI, Giuseppe. Sulla Teoria
O predomínio da teoria da relação jurídica, na década que antecede ao Generale del Processo Penale. Milano: Giuffrè, 1939; GOLDSCHMIDT, James. Teoría General del
Proceso. Barcelona: Labor, 1936; GOLDSCHMIDT, James. Princípios Generales del Proceso: pro-
código Rocco, acaba por servir como “fio condutor”728 para a sua adequação blemas jurídicos y políticos del proceso penal. Buenos Aires: Europa-América, 1935. Talvez uma das
mais importantes críticas seja a de ANGIONI, Mauro. La Dottrina del Rapporto Giuridico Processuale
Civile nelle sue Applicazioni al Processo Penale. Cagliari: Meloni e Vitelli, 1913. Entretanto, ao estabe-
723. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In lecer as diferenças básicas entre processo civil e penal, ANGIONI não consegue se livrar das marcas de
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: leredità del códice Rocco nella cultura processualpena- um liberalismo reacionário, afirmando que o processo penal não é um processo de partes, como o civil;
listica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 74. que apenas o juiz penal busca a “verdade real” e distintas são as modalidades de execução (da pena, no
processo penal e dos bens, no civil)
724. RENDE, Domenico. La Concezione Política e Giuridica del Processo Penale nel Progetto Rocco. In Il
Pensiero Giuridico Penale, I, 1929. p. 255. 732. Vale a pena trazer à colação as palavras de GUARNIERI: “sobre a questão, em nosso conhecimento, não
há nada além da monografia de Angioni, a qual, surgida em 1913, é hoje praticamente esquecida. Em
725. ROCCO, Arturo. Sobre el Concepto del Derecho Subjetivo de Punir. Montevideo: Buenos Aires: B de geral os autores aceitam sem discutir este conceito, apesar de se diferenciar no modo de o compreender
F, 2003. p. 17. e em suas aplicações concretas. A razão de um tal estado de coisas pode ser explicada pelo fato de que
726. Transparece claramente a adoção da teoria dos quatro status desenvolvida por Jellinek. O status sub- ainda falta um estudo verdadeiramente completo e orgânico do argumento. Esta falta não permanece
jectionis era um primário estado do indivíduo frente ao Estado (um estado passivo e de subordinação sem efeitos prejudiciais no setor doutrinário e no prático. No primeiro, a adoção apodítica de uma teoria,
do sujeito ao Estado). Cf JELLINEK, Giorgio. Sistema dei Diritti Pubblici Subiettivi. Milano: Società cujas origens se perdem no direito civil das obrigações conduziu àquela que é justamente chamada de
Editrice Libraria, 1912. civilização do processo penal, em contraste com aquilo que se afirma e reconhece, que o direito pro-
727. ROCCO, Arturo. Sobre el Concepto del Derecho Subjetivo de Punir. Montevideo: Buenos Aires: B de cessual (também o civil) pertence ao direito público. GUARNERI, Giuseppe. Prefazione. In ________.
F, 2003. p. 20. Sulla Teoria Generale del Processo Penale. Milano: Giuffrè, 1939. p. V.
728. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In 733. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: leredità del códice Rocco nella cultura processualpena- GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: leredità del códice Rocco nella cultura processualpena-
listica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 76. listica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 78.
238 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 239

A expressão relação jurídica também aparece nos trabalhos preparatórios institutos, como a personalidade do acusado (que inclusive era um dos cri-
ao código de processo penal de 1930, desta vez através do próprio Ministro da térios de observação na declaração de uma prisão cautelar e na aplicação
Justiça Alfredo ROCCO, afirmando que uma vez que tenha sido instaurada a da pena), o que acabou não se confirmando com a entrega do código por
relação jurídica processual, o juiz assume e mantém o poder-dever de conhe- MANZINI. O argumento da preservação da nova legislação referentemente
cer e decidir734. Interessante notar-se que RENDE defende a compatibilidade aos postulados positivistas é declarada pelo próprio MANZINI, ao comentar
entre a teoria da relação jurídica e a concepção fascista do Estado, que seria o novo código penal. O autor relativiza a recepção dos princípios positivistas
um “Estado de Direito”735. Será, portanto, a ideia de relação jurídica proces- no código penal (muito embora na composição da comissão de elaboração do
sual a “pedra angular” de uma nascente doutrina geral do processo736. Segundo Código participasse ninguém menos do que Enrico FERRI), afirmando que
GUARNERI, a relação jurídica processual se torna, assim, um conceito que o código não andava muito longe de estabelecer “meros retoques” ao código
cria a ficção da “divina harmonia que reina no ordenamento jurídico”737, o penal de 1889, não falando abertamente em um novo código741: “embora
que viria a garantir a unidade das disciplinas processuais738. emerso no regime fascista, o Código de 1930 mantém fidelidade aos prin-
Segundo MILETTI, durante o quinquênio codificatório, não havia alter- cípios daquele de 1889, e possui poucas disposições inspiradas em ideias ou
nativas plausíveis ao tecnicismo de MANZINI e de Arturo ROCCO. A escola interesses fascistas”742. Trata-se, evidentemente, de um discurso que procurava
positiva, que se havia debruçado criticamente sobre o liberalismo do código de evitar uma profunda cisão com os velhos liberais, garantindo assim, certa uni-
processo penal de 1913, não dispunha de soluções unívocas para implementar dade, pelo menos do ponto de vista metodológico. Esta assepsia política foi
uma codificação, nem tampouco estas seriam tecnicamente compatíveis com geradora de consenso, não devendo ser desprezada como uma estratégia muito
o autoritarismo normativo do fascismo (uma variante do realismo, sublinhe- adequada para fazer a novel legislação penetrar nos meandros discursivos nos
-se739) que tinha se desenvolvido consideravelmente após o manifesto de Arturo quais se movia a dogmática penal e processual penal nas décadas de 20 e 30.
ROCCO no início do século, embora ambos (fascismo e positivismo), compar- Afirmar a separação entre direito e política era um corolário do método e,
tilhassem de uma visão reacionária do sistema de justiça criminal740. ao mesmo tempo, uma estratégia...política! A defesa do código penal também
Efetivamente, quando da entrada em vigor do código Rocco, o pen- foi realizada por Silvio RANIERI, que afirma que a grande inovação desta le-
samento positivista tinha a crença de que poderia trabalhar com alguns gislação é a introdução da medida de segurança. Segundo o autor, tais medidas
encontrariam razão de justificação não na mutação do ordenamento políti-
734. ROCCO, Alfredo. Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII.
Roma: Tipografia delle Mantellate, 1929. p. 103. co, mas na necessidade, existente já anteriormente ao fascismo, de apresentar
735. RENDE, Domenico. La Concezione Política e Giuridica del Processo Penale nel Progetto Rocco. In Il meios legislativos mais adequados à luta contra a delinquência, especialmente
Pensiero Giuridico Penale, I, 1929. p. 247.
736. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In no que se refere aos casos mais graves. Para RANIERI, o código penal de
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: leredità del códice Rocco nella cultura processualpena-
listica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 80. 1930 não nasce da cabeça de um chefe fascista, mas do debate científico, que
737. GUANERI, Giuseppe. Sulla Teoria Generale del Processo Penale. Milano: Giuffrè, 1939. p. 04. se iniciou na Itália ainda no século XIX743. Neste ponto parece muito clara a
738. Que já era precocentemente defendida por MASSARI, em 1906. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel
Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisito- colocação de demandas positivistas (medidas de segurança) em favor de uma
rio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 80. O
próprio Carnelutti reconhece a relevância e vanguarda de MASSARI neste ponto, ao afirmar que o autor legislação que estaria descolada também da política, não passando de uma
teria “aberto as janelas entre os diversos âmbitos do direito” através de seu “método comparativo interno”,
permitindo o fluxo de conceitos e possibilitado chegar-se a uma teoria geral. CARNELUTTI, Francesco. empresa técnica. Enrico FERRI explicava que o fascismo, apesar de se decla-
Scuola Italiana del Diritto. In Rivista di Diritto Processuale Civile. v. XIII, 1936. p. 13. rar como um movimento antipositivista, convergia com a escola positiva em
739. “O direito penal do século XIX fora, de facto, sudicientemente “realista”. A um garantismo penal “dema-
gógico”, preferira uma prática penal desenvoltamente autoritária: ideologia conservadora, autoritária,
estatalista; frequente ilegalidade da administração judiciária e penitenciária; tónica numa política de 741. ROCCO, Alfredo. La Transformazione dello Stato: dallo stato liberale allo stato fascista. Roma: La
ordem e prevenção, pouco atenta a regras e garantias”. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Voce, 1927. p. 217-218. Como se sabe, sem dúvida alguma e tratava de um novo código. Cf VINCI-
Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social. Continuidades e Rupturas. In Análise Social. GUERRA, Sergio. Um Nuovo Diritto Penale All’Alba del Novecento: il codice Zanardelli. Appunti di
v. XXXVII, 2003. p. 1293. comparazione com il codice del 1859. In ________. Il Codice Penale per il Regno d’Italia. Padova:
740. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In CEDAM, 2010. p. XVI.
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: leredità del códice Rocco nella cultura processualpena- 742. MANZINI, Vincenzo. Tratttato di Diritto Penale. v. I. Torino: UTET, 1948. p. 74.
listica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 87. 743. RANIERI, Silvio. Politica e Diritto Penale. In Critica Penale I., 1948. p. 8 – 11.
240 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 241

diversas zonas teóricas e aplicativas744. Para MILETTI, o fascismo reciclou as critérios fundamentais pelos quais foi orientado, conserva a Itália o primado
ideias positivistas, mas não as guindou a linhas estruturais do novo sistema745. milenar na ciência e na leis dos delitos e das penas750.
Neste ponto, não se pode concordar com SBRICCOLI, que afirma que apesar Como é possível se verificar, a estrutura do código de processo penal,
de alguns princípios da escola positiva terem sido acolhidos no Código de orientada pelo tecnicismo, não cessará suas relações com o positivismo, muito
1930, a partir da ideologia autoritária da legislação, foi justamente o abandono embora o método técnico-jurídico de MANZINI utilize os argumentos dos
de algumas categorias e institutos do positivismo que impediu o afastamento positivistas de forma subordinada ao direito e processo penal, dando a im-
do código de um grau mínimo de civilidade jurídica, “não permitindo que se pressão de uma filtragem normativa. Além de todos os pontos em comum
transformasse em uma barbárie”746. Além da “italianidade” que orientaria tanto entre as orientações jurídicas que podem ser colhidas na prolusão de Turim,
a escola positiva quanto o fascismo (e como visto já reivindicada por MANZI- os debates sobre a presunção de inocência751 permitem novamente encontrar
NI em sua prolusão de Turim) e que foi defendida por FERRI, deve-se prestar pontos de convergência discursiva manifestos entre o tecnicismo e o positi-
atenção aos termos utilizados no próprio projeto de código de processo penal. vismo. Ao contrário dos positivistas, MANZINI contestava a presunção de
O projeto, nas palavras do ministro da justiça, “tem característica tipicamente inocência não a partir de critérios políticos, mas através da própria lógica jurí-
italiana, não apenas por que, como já dito, se inspira em conceitos fundamen- dica. Ademais, o seu ataque à presunção de inocência não era obra singular de
tais da doutrina fascista do Estado, que é uma doutrina de pura marca italiana, seu pensamento pós-codificador, mas já estava presente como crítica ferrenha
mas também porque na sua estrutura técnico-legislativa, deliberadamente é ao código de 1913752. Assim, o tecnicismo manziniano e o positivismo crimi-
desvinculado de qualquer modelo estrangeiro”747. nológico compartilhavam do conservadorismo genético à ideologia da defesa
Sobre a penetração da influência positivista no código ROCCO, no- social, capacitando o código de processo penal para sistematizar orientações
te-se o elogio de SABATINI, ao afirmar que os códigos penais fascistas já existentes no âmbito político e doutrinário, marcados por um período em
tiveram o mérito de refletir os mais avançados e seguros progressos da ciên- que o liberalismo perdeu as marcas de uma crítica geral à economia punitiva,
cia jurídica, havendo sinais das duas escolas dominantes na Itália: a clássica transformando-se num discurso reacionário, impulsionado unicamente contra
e a positiva748. Ainda segundo SABATINI, a justificativa para a reforma do os positivistas devido a questões de ordem essencialmente metodológica.
código penal e o de processo penal vigentes estaria baseada nos distintos No campo do direito penal, DE MARSICO, ao comentar uma década
princípios encontrados nos códigos de 1889 e 1913, que se encontravam em da entrada em vigor da legislação, acentua a evolução representada pelo
franco contraste com o idealismo fascista, tornando urgente as reformas749. abandono da responsabilidade individual e pelo ecletismo teórico (tecnicis-
No plano da codificação penal, Enrico FERRI também apontará aspectos mo e positivismo) associado à inserção dos postulados da escola positiva na
positivos. Para o pensador, o Projeto Rocco, de acordo com o princípio de seara penal. Segundo o autor, “o privilégio da nova codificação, reflexo do
legalidade, acolhe e reproduz conclusões da Escola Positiva relativamente caráter essencial da nossa Revolução, foi unir a princípios da nossa tradição
ao delinquente e então, pelas condições históricas que representa, pelos clássica (como aquele supremo da responsabilidade moral) outros (de forma
744. FERRI, Enrico. Fascismo e Scuola Positiva Nella Difesa Sociale Contro la Criminalità. In La Scuola
proeminente o da periculosidade) sem os quais o direito penal se tornaria
Positiva. n. VI, 1926. p. 241. incapaz de realizar os seus fins” Continua o autor afirmando que “assim,
745. MILETTI, Marco Nicola. Giustizia Penale e Identità Nazionale. In Quaderni Fiorentini per la Storia del
Pensiero Giuridico Moderno. n. 45. Milano: Giuffrè, 2016. p. 702. introduzindo entre as espécies de delinquentes de maior periculosidade os
746. SBRICCOLI, Mario. Le Mani in Pasta e gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del fascis-
mo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Giuffrè,
1999. p. 829-830. 750. FERRI, Enrico. Sociologia Criminale. 4 ed. Torino: Fratelli Bocca, 1900. p. 814.
747. ROCCO, Alfredo. Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. 751. GAROFALO, Rafaelle; CARELLI, Luigi. Riforma della Procedura Penale in Italia: progetto di un
Roma: Tipografia delle Mantellate, 1929. 07. nuovo codice. Torino: Fratelli Bocca, 1889. FERRI, Enrico. Sociologia Criminale. 4 ed. Torino: Fratelli
748. SABATINI, Guglielmo. Direttive Ideali del Fascismo nella Riforma della Legislazione Penale. In Scuo- Bocca, 1900.
la Penale Unitaria. v. V. fasc. II, 1931. p. 10. 752. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In
749. SABATINI, Guglielmo. Direttivi Ideali del Fascismo nella Riforma della Legislazione Penale. In La GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: leredità del códice Rocco nella cultura processualpena-
Scuola Penale Unitaria. a. V. v. V. Roma, 1931. p. 05-06. listica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 91.
242 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 243

delinquentes por tendência, a nossa lei penal atingiu uma etapa avançadís- 2.3. TECNICISMO CONTRA O FASCISMO?
sima do acordo entre a antropologia e o direito”753. A IMPROPRIEDADE DA TESE DO FREIO E A
A influência da escola positiva vai muito além dos dispositivos sancio- PARTICIPAÇÃO (INDIRETA?) DE IMPORTANTES
natórios. Houve modificações em categorias como a tentativa, equiparando PROCESSUALISTAS NAS ATIVIDADES DO REGIME
todos os partícipes (mesmo aqueles que não participaram efetivamente da No período fascista, a cultura técnico-jurídica que dominara a produção
conduta); houve a supressão dos estados emocionais no cômputo da pena e científica italiana aparece caracterizada pela oscilação entre uma recepção for-
ainda, uma efetiva conexão entre uma concepção autoritária de direito penal e malista dos institutos e das garantias, em uma fatal atração, típica dos regimes
a instrumentalização dos resultados da antropologia e da sociologia criminais. autoritários e populistas, pelas derivações substancialista e antiformalistas759
Além disso, a supressão do júri, que acabou sendo substituído pelo escabi-
nato era já uma antiga demanda dos positivistas754 e dos tecnicistas755. Para Segundo SBRICCOLI, o fascismo era consciente de sua orfandade re-
ALOISI, a principal característica da reforma fascista no código de processo lativamente a valores culturais e tampouco dispunha destes recursos para
penal foi a reforma do júri756. E sobre esta “desonestidade intelectual”, de alocá-los na construção de um discurso legitimador do sistema de justiça
acordo com NEPPI MODONA, a doutrina não fez mais do que comentar criminal. Desta maneira, o fascismo se viu obrigado a resgatar valores culturais
algumas distinções entre aspectos técnicos e políticos do código757. de um passado próximo. Consequentemente, a ciência jurídica italiana man-
tinha no novo regime a continuidade de orientações e do método jurídico,
No código de processo penal de 1930 a orientação técnico-jurídica
que o fascismo não teve interesse em modificar. Isto pode ser visto no âmbito
prevalece sobre a ambição de ciência processual penal. Este processo toma
acadêmico, no qual as mesmas escolas, os mesmos professores e os mesmos
emprestado do passado recente (da escola positiva) e do passado remoto (“a
métodos se apresentavam, garantindo a permanência da tradição liberal-con-
visceral nostalgia inquisitória dos moderados”) relevantes categorias como a
servadora. O impacto foi um crescente isolamento acadêmico e jurídico da
prioridade da defesa social em detrimento das garantias individuais, a busca
Itália, o empobrecimento das discussões, a perda do espírito crítico, através de
da verdade real, o incremento dos poderes judiciais758.
discussões meramente técnicas e exegéticas760. O mundo jurídico, composto
Tais significantes, que circulavam desde a matriz liberal clássica e que pelos juristas do pré-fascismo, se manteve de certa maneira inalterado. O
seriam já ressignificados desde o interior desta corrente de pensamento mesmo não se poderia dizer de adesões e colaborações políticas761.
(especialmente a noção de ROMAGNOSI da pena como contro spinta –
O principal argumento construído em defesa dos juristas protagonis-
contra-estímulo) seriam realocados pelos positivistas e integrariam o cerne
tas do período fascista era a presença de uma doutrina jurídica de formação
essencial da obra legislativa manziniana. Há, portanto, continuidades e ra-
pré-fascista, evitando, assim, que o fascismo desconhecesse limites a suas
dicalizações na estrutura elaborada por MANZINI, que somente poderiam
pretensões autoritárias762. Quanto ao código penal, a influência autoritária
advir diante de uma metodologia que demandava o predomínio do jurídico,
subordinando os demais saberes “auxiliares”. 759. ALESSI, Giorgia. Populismo, Legalità, Riforma della Giustizia. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Mi-
chele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio
Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 349.
753. DE MARSICO, Alfredo. Il Primo Decennale del Codice Penale Fascista. In Annali di Diritto e Proce-
dura Penale, X, n. 12, 1941. p. 860-861. 760. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
754. Cf AMODIO, Ennio. La Procedura Penale Comparata tra Istanze di Riforma e Chiusure Ideologiche Giuffrè, 1999. p. 824.
(1870-1989). In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. a. XLII. n. 4, 1999. p. 1351.
761. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
755. Cf LEONE, Giovanni. I Problemi della Magistratura. In Archivio Penale. 1/12, 1948. p. 10; Cf PAN- fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
NAIN, Remo. Il Problema della Corte di Assise. In Archivio Penale. 1/12, v. 3, 1947. p. 481-486. Giuffrè, 1999. p. 825.
756. ALOISI, Ugo. Le Riforme Fasciste nel Campo del Diritto e della Procedura Penale. Relazione. In Primo 762. Segundo LEONE, a doutrina jurídica italiana precedente ao fascismo possuía as seguintes bases: a)
Congresso Giuridico Italiano. Roma: Sindacatto Nazionale Fascista Avvocati e Procuratori, 1932. p. 26-27. relação jurídica representada pelo direito de punir do Estado e do contraposto direito de liberdade do
757. NEPPI MODONA, Guido. Tecnicismo e Scelte Politiche nella Riforma del Codice Penale. In Democra- cidadão; b) irretroatividade da lei penal; c) taxatividade da lei penal; d) concepção do crime como
zia e Diritto. v. XVII, 1977. p.673. violação de um bem jurídico. Tais características teriam garantido a continuidade da doutrina penal
758. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In com os precedentes liberais pré-fascistas. LEONE, Giovanni. La Scienza Giuridica Penale Nell’Ultimo
GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: leredità del códice Rocco nella cultura processualpena- Ventennio. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 23. Da mesma maneira DELOGU sustentará, a partir do
listica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 107. ponto de vista tecnicista, que o direito penal italiano havia mantido a noção de imputabilidade e de
244 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 245

poderia ser melhor percebida na parte especial763. Haveria, especialmente totalitário fascista”766. MAGGIORE batalhará pelo enfraquecimento dos
por conta da construção da parte geral, uma rejeição aos princípios nazistas. princípios do liberalismo jurídico. As propostas deste autor podem ser sinte-
Tal moderação (relativamente à Alemanha) do direito penal fascista teria tizadas na passagem da certeza do direito, pensada como tutela dos direitos
de ser realizada por pensadores que tiveram um compromisso político com individuais e da previsibilidade das consequências jurídicas das próprias ações,
o Estado fascista. A “qualidade técnica” dos códigos, deixando-se de lado para o paradigma da segurança do Estado. MAGGIORE também refutará o
a sua inspiração política, garantiria, por si só, a moderação relativamente princípio da presunção de inocência, através da substituição do in dubio pro
ao regime nazista. Para SBRICCOLI, é justamente a qualidade técnica o reo pelo in dubio pro repubblica, na mesma linha de Carl SCHMITT. Além
vetor perverso desta finalidade política764. Ao conhecimento dogmático é disso, MAGGIORE se orientará por uma concepção racista do direito penal
que se deveu a deterioração da taxatividade, a relativização das tipificações, (algo que por decerto pode ser facilmente encontrado na prolusão turinesa
a proliferação das indeterminações no código penal, com a consequente de MANZINI). Vale a pena destacar suas palavras, in verbis:
redução dos níveis de proteção garantística no âmbito do código de processo “a totalidade é a raça porque essa, como hereditariedade sempre viva, ul-
penal. Este trabalho de esvaziamento e transmutação da substância só foi trapassa o passado e o presente em direção ao futuro, representando, na
possível demonstrando-se que a fachada legislativa do regime conservava continuidade das gerações, um valor eterno. O Estado totalitário é estado na-
uma respeitabilidade técnica765. cional porque é um Estado de raça. De forma inexata se afirma que o conceito
de raça, característico do nacional-socialismo, é estranho ao fascismo. Desde
SBRICCOLI distingue, portanto, colaboradores políticos dos juristas 1919 e precedentemente, Mussolini havia colocado o conceito de raça – a
que ativamente participaram do regime. Contudo, ao se verificar os discur- italianidade – no centro do Estado. Se a luta contra os judeus já se havia ini-
sos dos assim chamados “colaboradores do regime”, cujo nome de destaque ciado no século XVII, desde os primeiríssimos tempos da Revolução, estava
é sem dúvida alguma o de MAGGIORE, não se percebem propostas muito presente em Mussolini a pureza, a elevação e a honra da raça italiana”767.
distantes daquelas que surgem do pensamento de MANZINI ou de Alfredo MAGGIORE prefererirá o uso do termo Estado totalitário ao empre-
ROCCO. Daí a dificuldade inevitável de se separar juristas alienados pelo go da expressão Estado autoritário, porque este último implicaria um passo
método técnico-jurídico daqueles que se expressavam através de discursos para trás, uma “reação, restauração ou contrarreforma”. MAGGIORE nega
próprios do partido, como o caso de MAGGIORE. a dualidade Estado e sociedade, já que seria o Estado quem cria a sociedade.
Para CATTANEO, MAGGIORE será um “teórico do direito penal Para o autor, a revolução fascista evidenciou a inseparabilidade do direito e da
política. Desta maneira, o direito penal deveria ser conduzido por princípios
responsabilidade moral; havia mantido o princípio de legalidade (com as subsequentes irretroatividade
da lei penal e taxatividade da lei). A manutenção do princípio da liberdade, para o autor, deveria deixar igualmente políticos. Para MAGGIORE, abolido o princípio nullum crimen
perplexos todos aqueles que emitem juízos contra o caráter político do código penal Rocco. DELOGU, nulla poena sine lege, o juiz não mais tornaria pessoal o seu critério e quiçá
Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 167-174.
763. Neste ponto, a técnica de tipificação italiana não difereria substancialmente daquela verificada no decur- o seu capricho, por cima do Estado. O juiz não mais erraria, nem faria uso
so do regime nazista da Alemanha, servindo para indicar que as constantes comparações com a Alema-
nha, realizadas por diversos juristas no sentido de exculpar o direito produzido na ditadura fascista era, arbitrário de seus poderes, quando, interpretando a vontade, mesmo não for-
na verdade, frívolas, formais, esvaziadas de substância. Neste sentido, a superação da distinção entre
direito e política, entre direito e moral e intergração axiológica e ontológica das categorias jurídicas são malmente expressa, do Estado e de seu chefe, castigarria o delinquente que se
a característica predominante das teorias jurídicas que se afirmaram durante o nacionalsocialismo. A
técnica legislativa contribuía neste ponto, a fim de superar o formalismo e a metodologia do positivismo rebela contra o Estado. Para os regimes totalitários, a certeza do direito é a cer-
jurídico, recorrendo a tipicidades abertas, às cláusulas gerais, especialmente na parte mais sensível do teza da segurança política de não ver anuladas as conquistas da Revolução768.
direito – o direito penal – com o abandono do princípio da legalidade em favor do princípio de autorida-
de. Como exemplos seria possível elencar-se a introdução do princípio da retroatividade da lei penal, o
abandono da proibição de analogia e do princípio da coisa julgada. BARATTA, Alessandro. Positivismo
Giuridico e Scienza del Diritto Penale: aspetti teoreteci e ideologici dell sviluppo della scienza penalis- 766. CATTANEO, Mario. Terrorismo e Arbitrio: il problema giuridico nel totalitarismo. Padova: CEDAM,
tica tedesca dall’inizio del secolo al 1933. Milano: Giuffrè, 1966. p. 31 – 32. 1998. p. 288.
764. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del 767. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Penale, XI, 1939. p. 144-145.
Giuffrè, 1999. p. 842. 768. MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario Nello Stato Totalitario. In Rivista Italiana di Diritto
765. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del Penale, XI, 1939. p. 144-145.
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: CATTANEO, Mario. Terrorismo e Arbitrio: il problema giuridico nel totalitarismo. Padova: CEDAM,
Giuffrè, 1999. p. 843. 1998. p. 288.
246 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 247

Apesar de os juristas encarregados de elaborar os códigos negar quais- reação contra o monopólio legislativo, que caracteriza o nosso século (...) A
quer influências políticas na sua confecção, destacando apenas os aspectos ideia simples e decisiva é a de que se se confia ao juiz para formar o coman-
do penal no que diz respeito à sanção, não há motivo para não confiar a ele
meramente técnicos da legislação, o impacto da política é inegável. Veja-
também a formação do preceito771.
mos, exemplificativamente, o que afirma Dino GRANDI, ex-ministro da
Justiça de MUSSOLINI, que impede se reconheça um isolamento políti- No contexto da história legislativa CARNELUTTI inflenciou em dois
co dos códigos, mesmo que a negação provenha das palavras do próprio momentos distintos na preparação dos códigos. Em um deles, na elaboração
MANZINI. Trata GRANDI sobre a oportunidade de se proceder à reforma do código de processo civil, coincidente com a presença de Alfredo ROCCO,
naquele particular momento histórico. Segundo o autor, insistiu-se numa ainda Ministro da Justiça. Mesmo que entre Rocco e Carnelutti não existis-
pretensa separação entre direito e política, a fim de limitar a codificação a sem afinidades de formação cultural ou política, muito menos de simpatia
uma pura revisão técnica e formal dos institutos tradicionais. Não cremos, humana, CARNELUTTI se aproveitou da antipatia de ROCCO por CHIO-
afirma GRANDI, que exista uma separação entre política e direito, mas, VENDA e ROCCO, por seu turno, do fato de ser CARNELUTTI pouco
pelo contrário, entre as duas existe um nexo profundo, já que representam inclinado a uma concepção de processo que permitisse um jogo livre das
fases indissociáveis no devir de um Povo. A política é a vida do direito: partes processuais. Esta a razão essencial pela qual a Subcomissão C da Co-
este é daquela a certeza, a unidade, a força. O direito não é feito apenas de missão Real para as Reformas dos Códigos confiou a redação de um primeiro
esquemas e de categorias lógicas substancialmente imutáveis769. projeto a CARNELUTTI. Em poucos meses o trabalha estava finalizando,
tendo CARNELUTTI prontamente publicado o projeto. Tratava-se de um
Além disso, não se pode perder de vista que a distinção entre colabora-
projeto exaustivo, com regras detalhadas também no campo do processo de
dores ativos e juristas acaba por permitir a desresponsabilização dos juristas
execução (que adquiria no projeto autonomia completa). O projeto foi apre-
considerados como “não-colaboradores”. Sob o manto do tecnicismo, natu-
sentado em 1926 ao Ministro Rocco772.
ralmente se escondiam preferências políticas. Sob a fachada do tecnicismo e
da qualidade técnica dos códigos, se infiltravam finalidades perversas, sempre A intervenção de CARNELUTTI nas disciplinas penais teve um ca-
tendo como contraponto a Alemanha nazista. Obviamente, apresentar um sis- ráter essencialmente formalista e desenvolveu características solidárias à
tema “melhor” do que o nazista não tem o condão de transformá-lo em um escola técnico-jurídica, absolutamente inserida na tendência política do
ordenamento aceitável. Tomar como paradigma um sistema absolutamente an- regime fascista, que desacreditava, em proveito da política criminal fascista,
tidemocrático e responsável “pela solução final” não garante idoneidade alguma. as ciências criminológicas ligadas a métodos sociológicos e a desencorajar,
desde o ponto de vista acadêmico, todos os estudos que não fossem tecni-
Mas neste ponto é interessante notar-se como mesmo a partir de es-
cistas sobre os temas de ação e execução penal. Foi apenas com a queda do
critos técnicos o encontro com o pensamento dos “ativistas” não era difícil
fascismo que CARNELUTTI se autorizou a uma auto-interpretação, agora
de se dar. Como afirma GENTILE, MAGGIORE não foi o único jurista a
como inimigo da orientação tecnicista773.
se contrapor ao princípio de legalidade770. Tomemos o exemplo de ninguém
menos do que CARNELUTTI: No que diz respeito à teoria geral do processo e do tratamento do
processo penal sob esta ótica, a teoria geral do processo tentava relativizar
“não há razão alguma pela qual, um ato socialmente danoso, não expressa-
mente previsto pela lei não possa ser punido. Que os primeiros a bradar tal
as diferenças entre o processo penal e o civil, diferenças que vinham de larga
prejuízo tenham sido os russos é uma verdade que deve ser conhecida e da tradição e radicadas em institutos jurídicos liberais, como especialmente
qual não necessita trazer excessivas razões de desconfiança. Do ponto de vista
jurídico a revolução russa representa a ponta extrema daquele movimento de 771. CARNELUTTI, Francesco. L’Equità nel Diritto Penale. In Rivista di Diritto Processuale Civile. v. 12.
n. 1., 1935. p. 105 e 116.
772. TARELLO, Giovanni. Profili di Giuristi Italiani Contemporanei: Francesco Carnelutti ed il Progetto del
769. GRANDI, Dino. Tradizione e Rivoluzione nei Codici Mussoliniani. In Stato e Diritto. Marzo-aprile 1926. p. 504.
1940. p. 773. TARELLO, Giovanni. Profili di Giuristi Italiani Contemporanei: Francesco Carnelutti ed il Progetto del
770. GENTILE, Salverio. Le Leggi Razziali: scienza giuridica, norme, circolari. Milano: EDUcatt, 2010. p. 46. 1926. p. 506.
248 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 249

aquelas fundadas nos poderes dispositivos das partes e da administração da a legislação sobre o processo do trabalho, propor uma reforma do processo
prova no processo civil. “A teoria geral do processo em geral, servia a uma civil em sentido não apenas genericamente autoritário, mas especificamente
concepção autoritária do processo civil e refletia um processo de publiciza- inserida em uma das emergentes linhas evolutivas da ideologia fascista”777.
ção do processo civil”774. Outro fato “curioso” na vida de CARNELUTTI778, considerado um
Segundo TARELLO, merece atenção a atitude de CARNELUTTI advogado “antifascista” (e que também em outras oportunidades defendeu a
diante das tendências fascistas na reforma processual: de um lado, ele extrai tortura779, que advogou em prol da retroatividade da lei penal780, que tratou o
da legislação fascista, de forma brilhante, princípios gerais. De outro lado, processo penal como jurisdição voluntária781 e que como referido acima, não
destaca de forma generalizante a própria legislação de suas ocasiões históricas via prejuízo na abolição da proibição de analogia) é a defesa do fascista Julio
e substitui, de foma estilística e claramente política, as implicações de uma EVOLA. Em um processo criminal contra EVOLA, CARNELUTTI afirma
ciência do direito renovada, mas em relação de continuidade com a tradição. que as ideias do autor, tanto na obra Orientamenti como na Rivolta Contro
Relativamente às duas tendências do fascismo na política institucional, aquela il Mondo Moderno, o filósofo, por todos conhecido como ferrenho defensor
endereçada à renovação e aquela outra conexa à continuidade, CARNELUT- do fascismo, era na verdade, contra o regime. CARNELUTTI, ao defender
TI privilegia a segunda. Desta maneira, tempera a inclinação do autoritarismo EVOLA, afirma que o pensador poderia ter tido a crença de ser fascista. Mas
no processo com as razões, sempre antiautoritárias, da vocação profissional do percebeu o erro devido à dificuldade de conhecer a si mesmo782. Outro fato
advogado. O segundo momento em que CARNELUTTI serve como consul- “curioso” do antifascista CARNELUTTI foi o seu depoimento, juntamente
tor ao legislador, surge com a nomeação de Dino GRANDI como Ministro com CALAMANDREI, em favor de ninguém menos do que Dino GRANDI
da Justiça, assim como CALAMANDREI e REDENTI como professores
777. TARELLO, Giovanni. Profili di Giuristi Italiani Contemporanei: Francesco Carnelutti ed il Progetto del
convidados a rever o projeto Solmi de projeto civil (juntamente com o advo- 1926. p. 518.
gado geral da Cassação, Leopoldo CONFORTI775 e Tito CARNACINI776). 778. Neste sentifo, afirma TARELLO sobre CARNELUTTI: “jurista de grande estatura, coloborador do
governo – na época fascista – para a preparação de projetos do código de processo civil, advogado fa-
Desenvolvendo a tendência ao autoritarismo no processo civil (pela li- moso, ensaísta afortunado, ilustre acadêmico, ele foi um dos protagonistas da nossa cultura jurídica por
meio século”. TARELLO, Giovanni. Profili di Giuristi Italiani Contemporanei: Francesco Carnelutti ed
mitação do princípio dispositivo, pela atribuição ao juiz de poderes de direção il Progetto del 1926. p. 499.
779. CARNELUTTI afirmará que se a tortura oferecesse alguma garantia da verdade, não haveria óbices
e controle sobre o desenvolvimento e o tempo do processo, pela atribuição para ser utilizada. Além disso, em decorrência de sua concepção medicinal de processo e pena, o prin-
cípio nemo tenetur se detegere haveria de restar superado. CARNELUTTI, Francesco. Lições Sobre o
ao juiz de poderes substitutivos das atividades das partes, com a finalidade de Processo Penal. t. II. Campinas: Bookseller, 2004. p. 207-2009. Além disso, em outro texto, afirmará
CARNELUTTI, em réplica a CALAMANDREI, que no processo penal: a) não existe conflito entre
fazer atuar o direito, devido a uma concepção antiformalista da prova, através interesse da sociedade e individual; b) tanto o delinquente quanto a sociedade tem interesse na punição
do incremento dos poderes do juiz relativamente às provas, no escopo de uma do culpado; c) o próprio réu tem interesse na sua punição, que é a sua cura; d) que o réu tem o dever de
dizer a verdade no processo. CARNELUTTI, Francesco. A Proposito di Tortura. In Rivista di Diritto
imediatidade entendida como contato direto do juiz com as partes, e por isso Processuale. v.1. Padova: CEDAM, 1952. p. 236.
780. Sobre a retroatividade da lei penal, CARNELUTTI considera o princípio favor rei como um aspecto in-
como poder inquisitivo do juiz sobre as partes), que era própria da doutrina de gênuo da concepção pessimista que impregnou o pensamento antigo e continua a impregnar o atual em
torno da pena. Sendo a pena um bem, não um mal, questiona CARNELUTTI, quem não seria favorável
CHIOVENDA, CALAMANDREI já anteriormente, mas em um ensaio re- à intervenção do doente se, sendo descoberto o agente patogênico que atua em seu corpo, antes ignorado,
se descobre um medicmento novo? Além disso, comparando as retroatividades civil e penal, bem como
publicado em 1927, tinha chamado a atenção dos juristas para um novo tipo seus diversos modos de ser dos processos (julgar a propriedade no processo civil e a liberdade no penal),
de processo de tipo “não dispositivo”, semelhante ao processo penal. Ainda CARNELUTTI conclui que a certeza pode ser sacrificada em prol da justiça. CARNELUTTI, Francesco.
Retroattività Penale. In Rivista di Diritto Processuale. v. II, parte I. Padova: CEDAM, 1947. p. 96-98.
segundo TARELLO, “propor como modelo típico de processo civil o processo 781. Seria CARNELUTTI desconhecedor da transformação do processo civil alemão em uma jurisdição
voluntária? E em que medida o processo penal poderia se afastar tanto, mesmo após a sua mudança de
civil “inquisitório” significava, nos anos 1926-1928, em concomitância com orientação, relativamente ao processo civil, quando tratava de construir uma teoria geral do processo?
Sobre a noção do processo alemão como jurisdição voluntária CF CARNACINI, Tito. Tutela Giuris-
dizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p.
774. TARELLO, Giovanni. Profili di Giuristi Italiani Contemporanei: Francesco Carnelutti ed il Progetto del 766. A menção ao processo civil alemão como jurisdição voluntária também pode ser encontrada em
1926. p. 506. CALAMANDREI, Piero. Giuseppe Chiovenda. In Rivista di Diritto Processuale. v. II, parte I. Padova:
775. TARELLO, Giovanni. Profili di Giuristi Italiani Contemporanei: Francesco Carnelutti ed il Progetto del CEDAM, 1947. p. 175.
1926. p. 509. 782. Giulio EVOLA foi processado por apologia ao fascismo, sendo preso, juntamente com alguns jovens
776. Cf MONTELEONE, Girolamo. Intorno al Concetto di Verità ‘Materiale’ o Oggettiva nel Processo neofascistas, cujos fatos apontavam EVOLA como professor. CARNELUTTI, Francesco. In Difesa di
Civile. In Rivista di Diritto Processuale. v. LXIV. Padova: CEDAM, 2009. p. 07 Giulio Evola. In L’Eloquenza. n. 11-12, nov.dez. 1951. p. 9-12.
250 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 251

(apontado por CIPRIANI como talvez o número 2 do regime fascista), em um apenas ao de LEONE. Como acentua CALAMANDREI, “o meu primeiro
processo criminal movido contra o ex-ministro de justiça mussoliniano. Neste pensamento não era o da reforma dos códigos”. Para o autor, seria certamente
processo, assinala CIPRIANI783, CARNELUTTI e CALAMANDREI negaram necessário cancelar rapidamente alguns repugnantes excessos, que por razões
qualquer participação de GRANDI no regime fascista!784 Havia ali o paroxismo de decência, não poderiam ser deixados em vigor nem mesmo um dia após a
instalado: um Ministro de Justiça de Mussolini que não havia participado do queda do fascismo. Faz-se referência a todas aquelas disposições, isoladas ou
regime, defendido por dois juristas declaradamente “antifascistas”, mas que facilmente isoláveis que foram inseridas na superfície dos códigos para dar
elaboraram (junto com REDENTI), o código de processo civil italiano. uma cor ao regime e que não poderiam ser canceladas sem com isso se alterar
CALAMANDREI também foi outro importante jurista envolvido no a estrutura jurídica dos institutos787. Contudo, de maneira paradoxal, CA-
processo de elaboração de legislação no período fascista, geralmente rotula- LAMANDREI afirmará que o código, apesar daquela exposição de motivos
do como um “antifascista”785. Preliminarmente, CALAMANDREI assumirá (elaborada por ele mesmo!) não seria fascista, mas “liberal e democrático”788!
a tarefa de revisar o projeto de código de processo civil, após as tentativas No sentido de manutenção dos códigos, CALAMANDREI afirmou que:
frustradas de aprovação: primeiro pelo Ministro DE FRANCISCI, depois “Se a política consiste não em buscar as soluções teoricamente perfeitas, mas
com o Ministro Arrigo SOLMI e finalmente, assumindo o papel de prota- a menos imperfeita entre as soluções possíveis praticamente, sustento que
gonista na revisão técnica (no projeto ROCCO tal tarefa foi realizada por para a questão dos códigos, a melhor, por hora é quela de suportá-los assim
CARNELUTTI e no projeto DE FRANCISCI, por REDENTI). Segundo como estão: de modo que é necessário prolongar a sua experiência para que
possam servir sempre cada vez melhor e, uma vez que a liberdade pode servir
CIPRIANI, CALAMANDREI tratou de evitar maiores danos decorren- como reagente, pode tornar visível e fazer precipitar os elementos impuros
tes do código, cujo projeto estava praticamente consolidado nas bases do que foram dissolvidos facilitando, quando a reforma puder ser pensada se-
projeto Solmi. Contudo,será justamente CALAMANDREI que dará base riamente, a definitiva clarificação daquilo que permanece”789.
e sustentação teórica ao “novo” projeto, que praticamente não existia nos A Exposição de motivos do código de processo civil, CALAMANDREI
modelos anteriores786. Na famosa Relazione al Re, elaborada por CALA- atribuiu a paternidade científica a CHIOVENDA, sendo esta legislação salva
MANDREI (um documento político claramente fascista), a paternidade graçar à esta paternidade, através da argumentação que afirmava que a oralida-
do código fora atribuída a ninguém menos do que CHIOVENDA, muito de e a concepção publicística do processo existiam muito antes do fascismo790.
embora fosse de todo enganosa a “homenagem”. Tinha-se, portanto, um código chiovendiano, e não fascista791!
Independentemente da discussão sobre a adesão de CALAMANDREI No discurso de CALAMANDREI se constatarão os mesmos argumentos
ao regime (a imensa maioria dos historiadores nega qualquer colaboracionis- em prol da desresponsabilização dos juristas (inclusive ele próprio que havia
mo do autor), resulta incompreensível a defesa intransigente do código de servido o regime através da eleboração do código de processo civil), e nivelados
processo civil após a queda do fascismo. E nesse sentido, o seu papel no escopo com o discurso do próprio ROCCO quando Ministro da Justiça, ao afirmar
de manter a legislação produzida durante o período fascista é equiparável que os códigos não passavam de aperfeiçoamentos técnicos: “na realidade, se
em algumas zonas da legislação as ideias autoritárias e corporativas do fascismo
783. CIPRIANI, Franco. Scritti in Onore dei Patres. Milano: Giuffrè, 2006. p. 313.
784. Vejamos as palavras de Dino GRANDI sobre CALAMANDREI: “o mais fascista é o não fascista CA- 787. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze:
LAMANDREI”. CIPRIANI, Franco. Piero Calamandrei e la Procedura Civile: mitte, leggende, inter- La Nuova Italia, 1966. p. 87.
pretazioni, documenti. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. p. 112. 788. Testemunho de CALAMANDREI no processo penal contra Dino GRANDI. In CIPRIANI, Franco.
785. Cujas análises coincidirão com os juristas do Archivio Penale. Código de Processo Civil: colaboraram Piero Calamandrei e la Procedura Civile: mitte, leggende, interpretazioni, documenti. Napoli: Edizioni
Carnelutti e Calamandrei, “dois dos mais corajosos e intransigentes antifascistas e inclusive dos mais Scientifiche Italiane, 2009. p. 335.
ilustres professores”. Sem dúvida, este c´ódigo consagra o princípio anti-individualista por excelência, 789. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze:
o princípio autoritário, estatólatra, do aumento dos poderes do juiz, que se torna árbitro e dominanador La Nuova Italia, 1966. p. 89.
da sorte da lide, com uma terrível limitação dos poderes, faculdades, atividades para defensores e parte”. 790. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze:
PANNAIN, Remo. La Riforma Della Legislazione. Roma: “Arte della Stampa”, 1944. p. 07. La Nuova Italia, 1966.
786. CIPRIANI, Franco. Piero Calamandrei e la Procedura Civile: mitte, leggende, interpretazioni, docu- 791. CIPRIANI, Franco. Piero Calamandrei e la Procedura Civile: mitte, leggende, interpretazioni, docu-
menti. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. p. 121. menti. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. p. 153.
252 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 253

deixaram traços não apenas verbais, muitas partes dos novos códigos se limi- CALAMANDREI procurará afirmar que praticamente não existiram
taram a ser um melhoramente técnico da legislação precedente, sem nenhuma novas ideias trazidas pelo fascismo, bastando ao intérprete confrontar a legisla-
infiltração profunda daquelas ideiais”792. Esta aproximação é tamanha que o ção do regime fascista com aquela anterior ao regime797. Segundo o pensador,
próprio CALAMANDREI escreveu, na tentativa de aproximar o pensamento foram pouquíssimos os campos nos quais a codificação fascista teria tido êxito
de CHIOVENDA e de ROCCO: “é uma sorte que esta obra de revisão possa em implantar uma política própria: seriam elas apenas “o autoritarismo po-
ser cumprida por quem, como o atual ministro Alfredo Rocco, é autor de notá- licialesco” na legislação penal, o “estatalismo corporativo” em determinadas
veis obras de direito processual civil e é então, em nível de aperfeiçoar o Projeto áreas do código civil, especialmente no direito do trabalho e pequenas coisas
também do ponto de vista estritamente técnico, e de tornar-lo homogêneo no aqui e acolá. As leis consideradas fascistas, segundo CALAMANDREI, foram
estilo e nas premissas teóricas”793. CALAMANDREI, apresentando um papel expoentes de um sistema social e econômico precedente ao fascismo e de um
ativo dos juristas na manutenção de um Estado de legalidade durante o regime pensamento jurídico já plenamente consolidado, muito antes da revolução798.
fascista, arguirá que “o fascismo, como não pôde durante o seu vintênio impedir Em suas palavras, não se pode qualificar como fascista ou como revolucio-
as árvores de continuar a brotar folhas toda primavera, também não impediu o nária uma codificação que representou apenas uma evolução iniciada em
pensamento científico de continuar a defender, com fiel obstinação subterrânea, 1865799. Segundo CALAMANDREI, não era necessário reformar os códigos.
a continuidade entre passado e o devir”794. Nesse sentido, os “juristas, pela sua Em primeiro lugar, se deveria aguardar uma nova Constituição, que haveria
natureza insuprimível, sempre têm função de salvaguarda”795. de conformar uma nova democracia800.
Aderindo a tese do “freio”, o papel dos juristas na contenção jurídica da CALAMANDREI tampouco ficará vinculado exclusivamente ao tema
ideologia fascista seria apenas o de aperfeiçoar a legislação – sem quaisquer da reforma do código de processo civil. O autor se mantinha ao lado da-
intenções políticas – e colocando em atividade a formação de conteúdos ju- queles que entendiam que o código penal (e processual penal) deveriam
rídicos pré-fascistas, assinalando claramente a continuidade entre os regimes, receber apenas uma pequena revisão, no sentido de depurar-se os excessos,
na mesma esteira da defesa de ROCCO sobre os novos códigos: mediante leis especiais. Portanto, o tema da reforma era indesejado por CA-
“com isto não quero dizer que a codificação deva ser considerada apenas como LAMANDREI. Como destaca COLAO, a abolição do fuzilamento consentia
uma obra de pura técnica, que pôde desenvolver-se fora de qualquer influxo a sobrevivência do código de 1930, um aspecto não secundário do tema da
político. Os códigos, como todas as leis, são sempre expressão conclusiva em
“continuidade do Estado” no fascismo801.
forma de um novo epílogo de certa política: o direito é sempre o ponto de
chegada de determinadas forças sociais, que por certo período, antes de se Através deste pequeno exemplo é possível notar-se como a divisão de
tornar leis, se consolidaram como tendências políticas. Mas o fascismo, quando SBRICCOLI acerca de juristas “de regime” e juristas “alienados” pelo método
apresentou a sua codificação como expressão de uma grande revolução política, tecnicista é incapaz de dar conta da interpenetração dos discursos político e
blefou. Grande parte da legislação fascista, ainda que expressão de um “clima
revolucionário” foi a reelaboração ou apenas o revestimento de concepções técnico. Não era difícil encontrar juristas de reconhecidos contributos ao de-
políticas e de sistematizações científicas anteriores ao fascismo. O movimento senvolvimento do processo chegar a conclusões muito similares às dos juristas
de reforma que conduziu aos novos códigos já estava em curso quando adveio de regime, como testemunham as palavras de GRANDI.
o fascismo, desde muitos decênios, talvez de cinquenta anos”796.
797. Esta tese será amplamente conhecida na Itália, sendo continuada por TARUFFO, que assevera que o có-
792. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze: digo de processo civil foi chamado de fascista apenas porque o fascismo se apropriava de outras ideias.
La Nuova Italia, 1966. p. 90. TARUFFO, Michele. La Giustizia Civile in Italia dal ‘700 ad Oggi. Bologna: Il Mulino: 1980. p. 255.
793. CALAMANDREI, Piero. Note Introduttive al Progetto Carnelutti. In _______. Opere Giuridiche. v. I. 798. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze:
Napoli: Morano, 1965. p. 199. La Nuova Italia, 1966. p. 91-92.
794. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze: 799. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze:
La Nuova Italia, 1966. p. 90. La Nuova Italia, 1966. p. 95.
795. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze: 800. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze:
La Nuova Italia, 1966. p. 95. La Nuova Italia, 1966. p. 99.
796. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. ________. Scritti e Discorsi Politici. v. I. Firenze: 801. COLAO, Floriana. La Pena di Morte in Italia: dalla giustizia di Transizione alla Crisi degli Anni Settan-
La Nuova Italia, 1966. p. 91. ta. In Historia et Ius. v. 10, 2016. p. 09.
254 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 255

Para Ernesto DE CRISTOFARO802, da experiência jurídica italiana, ser o fascismo um mero parênteses na história italiana807.
os quatro códigos (civil, processual civil, penal e processual penal) transitam Contudo, a hipótese de uma continuidade histórica entre o liberalis-
culturalmente do fascismo à República e as condições desta passagem e o mo italiano, através dos códigos de 1889, 1913 e os códigos de 1930, é
modo como ela vem fixada são filtrados pelas opiniões dos juristas. incapaz de dar conta da formação da legislação fascista. Se por um lado o
A primeira conclusão provisória que se deve elaborar, neste momento, conservadorismo e o método técnico-jurídico eram predominantes na cul-
diz respeito ao signo da continuidade. É inegável que a doutrina italiana abra- tura penalística italiana no início do século XX, por outro lado, a reforma
çou o desenvolvimento do liberalismo reacionário no período fascista. Como legislativa marca profundamente o direito e o processo penal, de modo que
destaca MILETTI, o código e esta concepção autoritária emergem da “longa a noção de continuidade é inaplicável. Esta hipótese é reforçada pelo pensa-
gestação científica e jurisprudencial” existente antes mesmo do fascismo, que mento de SBRICCOLI, para quem será no plano da legislação que o fascismo
surge das ríspidas críticas ao código de 1913803. Para SBRICCOLI, esta con- provocará uma ruptura com o passado. Ocorrerá uma exasperação do caráter
tinuidade política, cultural e institucional que precede ao fascismo está fora repressivo do sistema penal através do uso de funções intimidatórias. Neste
de discussão. Ela é evidente. A continuidade estava fundada especialmente no perspectiva, seria difícil se falar de uma continuidade. O sistema penal fascista,
campo do direito público (a juspublicística oitocentista), a partir do trabalho desprovido do ideal de liberdade e colocado a serviço exclusivo da repressão
intelectual de autores tradicionais804. política, da coerção social e de uma ideologia totalitária não conheceria ante-
Assiste razão a SBRICCOLLI quando afirma – sobre a continuidade da cedentes. O conteúdo e a finalidade da legislação fascista representaram uma
tradição jurídica – que no penal, diferentemente de outros ramos jurídicos, os autêntica ruptura com o modelo penalístico precedente. As continuidades,
aspectos aparentemente técnicos são frequentemente valores. As regras meto- neste período, se limitaram aos métodos de produção científica, mas não aos
dológicas, por seu turno, não são apenas simples mecanismos garantidores do objetivos e finalidades da legislação808. Tais finalidades poderão ser encontra-
funcionamento do aparato estatal. O exemplo incontornável é o princípio da das em novos bens jurídicos tutelados: a ideia fascista de família, a religião
legalidade, que se prende à confecção das normas jurídicas e simultaneamente, do Estado, a economia corporativa, a nação, etc. O código penal é infiltrado
à interpretação do penalmente possível805. por concepções culturais, éticas e econômicas, ventiladas sob o prisma polí-
tico do partido. Aparece igualmente permeado por “funções educativas ou
Aliás, esta noção de continuidade pode ser encontrada na retórica de
pedagógicas”, destinadas à massa, sob o espectro da ameaça. O direito penal
Alfredo ROCCO, que afirma que o Estado fascista foi construído sobre as
se reduz a um componente de defesa social809, condenando-se os preceitos do
ruínas do Estado liberal e democrático806. Esta afinidade entre o pensamento
velho liberalismo ao anacronismo e à esterilidade acadêmica.
liberal-conservador de fins do século XIX e a legislação penal fascista de 1930,
assim como a presença da escola técnico-jurídica que monopolizou quase por No caso do código penal, introduzem-se novos fatos típicos que tutelam
inteiro o século XX não permite adotar-se a tese de Benedetto CROCE sobre o Chefe de Governo, a segurança do Estado, a honra da nação, a religião do
Estado, a integridade e a saúde da raça. Não chega a sacrificar os princípios de
legalidade, irretroatividade e da proibição de aplicação analógica em caso de
802. DE CRISTOFARO, Ernesto. Giuristi e Cultura Giuridica: dal fascismo alla Repubblica (1940-1948).
Disponível em https://laboratoireitalien.revues.org/637. Acesso em 12.07.2016. lacunas, como aparece no sistema penal nazista. Todavia, ao lado do sistema
803. MILETTI, Marco Nicola. Uno zelo invadente. Il Rifiuto della Pubblicità istruttoria nel codice di pro-
cedura penale di 1930. In COLAO, LACCHÈ STORTI. Processo Penale e Opinione Pubblica in Italia retributivo da pena baseado no fato, o Código Rocco admite medidas de
tra Ottocento e Novecento. Bologna: Il Mulino, 2008. p. 231.
804. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del 807. MILETTI, Marco Nicola. Giustizia Penale e Identità Nazionale. In Quaderni Fiorentini per la Storia del
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Pensiero Giuridico Moderno. n. 45. Milano: Giuffrè, 2016. p. 684.
Giuffrè, 1999. p. 828. 808. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
805. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Giuffrè, 1999. p. 832.
Giuffrè, 1999. p. 828-829. 809. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
806. ROCCO, Alfredo. La Transformazione dello Stato: dallo stato liberale allo stato fascista. Roma: La fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
Voce, 1927. p. 07. Giuffrè, 1999. p. 839.
256 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 257

segurança baseadas na periculosidade do sujeito, além de ser indeterminadas acordo com PIASENZA “o esquema interpretativo se reduzia substancial-
(manejando habilmente os institutos positivistas). Há também o suporte de mente, a isto: o código penal Rocco não é um código totalitário porque
medidas de prevenção, adotadas a partir do texto único de segurança pública formado por juristas liberais e sobre a base de exigências maturadas naquela
de 1926 e aperfeiçoado em 1931, tornando possível a punição pela mera época, caracterizada por garantias democráticas, todas, substancialmente
cogitação, ao utilizar expressões como “manifestar propósitos” ou “demons- conservadas na legislação de 1930, salvo algum instituto modificável”814.
trar intenções” (novamente a penetração das teses positivistas). O Código de Prossegue o autor afirmando que “a argumentação se apoia, como se vê,
Processo Penal, por seu turno, completa o quadro ao construir um processo sobre duas mistificações, ou melhor, sobre duas valorações largamente difu-
articulado sobre provas colhidas na fase de investigação preliminar, vedando a sas na consciência histórica política do período, entre quase todas as forças
atuação defensiva e deixando também de definir prazo máximo de encarcera- políticas: a equação entre Estado liberal e Estado democrático tout court; a
mento preventivo, decretando a sanabilidade dos atos processuais defeituosos valoração técnica (mas também política) dos institutos jurídicos da parte
em qualquer fase e estado do processo e colocando o Ministério Público geral do código não quanto à sua aplicação e quanto à sua relação com a parte
sob a égide do Ministro da Graça e da Justiça810. O abandono das garantias especial, mas aquela da edificação em forma de princípio geral e abstrato”815.
do imputado, como a presunção de inocência, a normalidade da detenção Havendo claros espaços de continuidade e rupturas entre a ordem
cautelar811 e as proibições de liberdade provisória, a inferiorização da defesa pré-fascista e aquela do regime, quatro questões podem ser apresentadas no
relativamente à acusação, em um contexto processual essencialmente inqui- intuito de identificar as narrativas autoritárias no processo penal italiano e
sitório fizeram do processo penal, mais do que o direito material, o campo eventualmente, no brasileiro. Segundo PIASENZA, “nas publicações destes
de testes por excelência para o desenvolvimento da nova política criminal812. autores, foi demonstrada, muito claramente, a presença de numerosas dispo-
Não é o momento de ingressar na apresentação da estrutura do código sições da parte especial do código, consideradas tipicamente fascistas, nascidas
de processo penal Rocco. Do ponto de vista metodológico do que aqui fora na época liberal e apenas realocadas na legilação fascista. Tal presença na
discutido, pode-se afirmar a existência de uma continuidade metodológica e legislação “democrática” não conduz Delogu, Leone e Pannain a repensar os
doutrinária entre o penalismo liberal-reacionário italiano e o regime fascista. traços “garantistas”, mas pelo contrário, a transpor mecanicamente a etiqueta
Há uma descontinuidade no plano legislativo e ideológico, acentuando-se “liberal” para idênticas disposições presentes na codificação de 1930”816.
o plano da repressão penal. Todavia, parece acertado o posicionamento de Em primeiro lugar, assista razão a COLAO, ao afirmar que a ausência
NEPPI MODONA, de que uma análise dos dois sistemas italianos, em de uma discussão crítica sobre o sentido do processo não era uma proprieda-
bloco e em termos de continuidade ou ruptura entre a ordem fascista e a de exclusiva do regime autoritário. O autoritarismo da doutrina, presa a um
pré-fascista não é produtiva. O melhor é analisar cada um dos institutos horizonte publicístico e estatalista produz o “inquisitório eterno”817. Portan-
que compõem o código Rocco, privilegiando os elementos de ruptura da to, a primeira discussão que se deve levar em consideração, no momento da
legislação penal fascista (conteúdo e fins)813, bem como detectar os espaços avaliação dos códigos italianos, consiste na subsistência de uma mentalidade
de arbitrariedade e autoritarismo contidos no processo penal italiano. De inquisitória818, o que é válido igualmente para o Brasil.

810. DE CRISTOFARO, Ernesto. Giuristi e Cultura Giuridica: dal fascismo alla Repubblica (1940-1948). 814. PIASENZA, Paolo. Tecnicismo Giuridico e Continuità dello Stato: il dibattito sulla riforma del codice
Disponível em https://laboratoireitalien.revues.org/637. Acesso em 12.07.2016. penale e della legge di pubblica sicurezza. In Politica del Diritto. a. X. n. 3, 1979. p. 270.
811. Segundo POESIO, a detenção policial e a custódia preventiva contribuiram incrivelmente para destruir 815. PIASENZA, Paolo. Tecnicismo Giuridico e Continuità dello Stato: il dibattito sulla riforma del codice
o que restava do Estado de Direito na Itália e na Alemanha. POESIO,Camilla. Il Confino di Polizia, la penale e della legge di pubblica sicurezza. In Politica del Diritto. a. X. n. 3, 1979. p. 270.
“Schutzhaft” e la Progressiva Erosione dello Stato di Diritto. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: 816. PIASENZA, Paolo. Tecnicismo Giuridico e Continuità dello Stato: il dibattito sulla riforma del codice
giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 95. penale e della legge di pubblica sicurezza. In Politica del Diritto. a. X. n. 3, 1979. p. p. 271.
812. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del 817. COLAO, Floriana. Processo Penale e Pubblica Opinione: dall’età liberale al regime fascista. In GAR-
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: LATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpenalistica
Giuffrè, 1999. p. 841. italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 264.
813. NEPPI MODONA, Guido. Principio di Legalità e Giustizia Penale nel Periodo Fascista. In Quaderni 818. Sobre o termo mentalidade inquisitória é possível o leitor consultar uma coletânea recente sobre o tema
Fiorientini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 36. t. II. Firenze, 2007. p. 988. Cf COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio
258 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 259

Em segundo lugar, a discussão acerca dos institutos que compõem o pro- fascistas, agora incompatíveis com o regime democrático822.
cesso penal parece vital para identificar a estrutura – não apenas legislativa – mas Nossa missão, por hora, será aquela de examinar os discursos sobre as
cultural, operada através de cadeias de transmissão de significantes. Portanto, reformas do sistema penal após a queda do regime. Para as pretensões de nossa
uma genealogia de institutos vitais e cervicais ao processo penal, como a pre- estudo e especialmente para fins comparatísticos com o panorama brasileiro,
sunção de inocência, oralidade, livre convencimento, apenas para ficar nestes, aqui deveremos conceder atenção privilegiada.
é indispensável. E cada uma destas categorias merece um estudo particular.
Em terceiro lugar, se por um lado a análise em termos de pré-fascismo e 2.4. A REFORMA DE 1955: A SOBREVIDA DO CÓDIGO
fascismo conta com uma bibliografia considerável, em que a discussão se cinge ROCCO
em termos de “continuidades” ou “rupturas”, parece-nos tão ou mais produ- Como reflexão importante de nosso estudo, deve-se investigar como na
tivo analisar-se a defesa da legislação fascista após a queda do regime. Serão os Itália, mesmo após a queda do regime fascista, o código de processo penal
discursos de negação das influências fascistas a alargar o espectro da vida destes ganhou sobrevida no sistema823. Melhor dizendo, trata-se de analisar como uma
códigos e, portanto, a questão deve ser posta em termos dos “códigos” pós-fas- reforma, que negava a matriz política do código e que acenava para a ausência
cistas. Com esta expressão referimo-nos às sobrevidas dadas aos códigos, como de contaminação política sobre os institutos técnicos, conduziu a uma revisão
por exemplo o código penal, na Itália, e o código de processo penal no Brasil. que manteve o código vigente, sem os “excessos” de 1930. Para PISAPIA, as
Em quarto lugar, deve-se examinar as estratégias de desfascistização reformas posteriores à Constituição haviam compensado a estrutura inquisitória
simbólica e as operações de negação de responsabilidade dos juristas. Naquilo herdada do código Rocco824. A necessidade de reformas era vista com reservas
que pode servir ao processo penal, cuida-se de identificar como legislações pela doutrina da época, especialmente pelos juristas que escreveram na revista
autoritárias penetram em um regime democrático. Nossa análise pretende Archivio Penale, em torno de figuras como LEONE, PANNAIN, DE MARSI-
cingir-se ao exame da contribuição doutrinária, muito embora o papel juris- CO e DELOGU. DE MARSICO afirmava que a reforma deveria se preocupar,
prudencial seja quiçá ainda mais relevante. Quanto a este ponto, as palavras de principalmente, com o código de processo penal, o “grande doente”. Contudo,
PIASENZA são relevantes:“existiu um outro objetivo para se realizar através na esteira de seus colegas, sustentava que uma reforma total do código seria um
da demonstração do caráter “liberal” do código: aquele da conservação dos erro. Argumento que será compartilhado pelos demais juristas acima citados e
juristas como técnicos mediadores”819. Defender o papel dos juristas como que acabará vencendo a disputa em torno da mudança legislativa825.
tentativas de reequilibrar as tendências totalitárias, mediante o recurso ao A discussão sobre a depuração da legislação fascista nasce em 28 de julho
desenvolvimento técnico do código820. de 1928, quando o Conselho de Ministros do primeiro governo BONOMI,
a pedido do Ministro da Justiça TUPINI, aprova um decreto de lei delegada
Feitas essas considerações, parece indiscutível a afirmação de VASSA-
que abole a pena de morte. Na exposição de motivos da lei, se afirma a neces-
LI , de que existiram dois “códigos Rocco” na Itália: o originário, elaborado
821
sidade de um novo código penal, que represente um retorno aos princípios
solipsisticamente por MANZINI, e aquele de 1955, cuja reforma se deveu à
liberais do código de 1889. O retorno a tais dispositivos garantiria igualmente
necessidade de “democratizar” o processo penal, mantendo as linhas básicas de
a retomada da tradição jurídica italiana, interrompida pelo código de 1930826.
sua estrutura originária (alterações de fachada) e depurando as radicais vestes
822. Em sentido contrário, negando a utilidade de se falar na sobrevivência de um código Rocco após tantas
reformas Cf PULITANÒ, Domenico. Etica e Politica del Diritto Penale ad 80 Anni dal Codice Rocco.
Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: anais do congresso internacional “Diá- In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. n. 2, v. 53, 2010. p. 486-520
logos Sobre Processo Penal Entre Brasil e Itália”. v. 1.Florianópolis: Empório do Direito, 2016. 823. Sobre a inadequação de um modelo acusatório, por conta da tradição italiana Cf RANIERI, Silvio.
819. PIASENZA, Paolo. Tecnicismo Giuridico e Continuità dello Stato: il dibattito sulla riforma del codice Ancora Sulla Riforma del Processo Penale. In La Scuola Positiva. a. XIII. n. 1, 1971. p.44.
penale e della legge di pubblica sicurezza. In Politica del Diritto. a. X. n. 3, 1979. p. 278. 824. PISAPIA, Gian Domenico. Il Nuovo Processo Penale. In Rivista di Diritto Processuale. a. XLIV. n. 1.
820. PIASENZA, Paolo. Tecnicismo Giuridico e Continuità dello Stato: il dibattito sulla riforma del codice Padova: CEDAM, 1989. p. 628.
penale e della legge di pubblica sicurezza. In Politica del Diritto. a. X. n. 3, 1979. p. p. 278-279. 825. DE MARSICO, Alfredo. Orientamenti Nella Riforma Penale In La Scuola Positiva. 3/4, v. 7, 1953. p. 411.
821. VASSALI, Giuliano. Introduzione. In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Co- 826. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi-
dice Rocco nella cultua processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 15. soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943
260 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 261

Em 1º de setembro de 1928 o Conselho de Ministros aprova o decreto era o contrário: como já referido, nenhuma legislação expressou de forma tão
de lei delegada827 quanto à reforma da legislação civil e penal, que também clara os princípios antidemocráticos e autoritários do regime como o código
autoriza o governo à revisão dos códigos, que deveriam se amoldar às tradições de processo penal. Entretanto, como se pode perceber pelo discurso oficial,
jurídicas do povo italiano, tendo como fonte de inspiração os códigos liberais. duas informações podem ser retiradas dos documentos: a) era preciso reto-
A partir do anúncio da reforma dos códigos se inicia uma longa batalha, es- mar a tradição italiana liberal. Como visto, o liberalismo reacionário italiano
pecialmente pelo fato de um grupo nem um pouco desprezível de intelectuais jamais se apresentou de forma contrária ou antitética ao espírito da legislação
desvincularem os elementos políticos do código em seus escritos. Em outras fascista. Este liberalismo, pelo contrário, aplainou o terreno para que o fascis-
palavras, iniciava-se uma defesa do código Rocco, considerado uma empresa mo pudesse instalar a sua legislação sem problemas ou sem rupturas drásticas.
puramente técnica. Contudo, é somente no período que vai de 1944 a 1955828 Portanto, o retorno ao liberalismo (conservador e autoritário) não significaria
que o tema da reforma do processo penal será levado a cabo pelos juristas. uma grande revolução a despeito da legislação fascista, nem implicaria na
Em 1944, o ministro da Justiça do governo BONOMI, Umberto reformulação profunda exigida pela nova ordem constitucional. Este argu-
TUPINI nomina duas comissões para cuidar da reforma dos códigos penal e mento será vital na condução das discussões que se seguem relativamente às
de processo penal. Segundo LACCHÈ, a comissão encarregada de examinar reformas penal e processual penal; b) o retorno à tradição italiana também
o código penal se expressa, de forma majoritária, pela mantença do código toma emprestada a noção croceana de que o fascismo foi um parênteses na
Rocco, devendo examinar, contextualmente, as disposições nele contidas, no história, quando se sabe que ela também revelava traços inegáveis de um
escopo de fazer os ajustes necessários. Por seu turno, a comissão encarregada autoritarismo presente na política italiana pré-fascista, derivada substancial-
de examinar o código de processo penal, opta por um retorno ao código de mente da matriz inquisitória napoleônica (processo “misto832”), consagrado
1913829. Em 1947 o Ministro da Justiça GRASSI deu poderes para a comissão no primeiro código da Itália unificada (o código de processo sardo833).
elaborar um novo projeto de código830. A principal dificuldade encontrada no processo de codificação subsistia
A reforma do código penal em nenhum momento consegue escapar no período de transição experimentado. Como seria possível levar a cabo o
à tradição tecnicista. As discussões principais recaem sobre o código penal, processo codificatório sem uma Constituição definida? O governo BONOMI
levando em consideração que as categorias diretamente expressivas do regime estabelece duas orientações: a) não era possível proceder à codificação sem
deposto ali se acumulavam. A reforma, necessariamente, deveria atingir pri- o retorno a um tempo de paz e de segurança; b) era necessário depurar os
meiramente o código penal, já que o código de processo era menos “central” à códigos, afastando os elementos visivelmente fascistas. Desta maneira, a
política criminal do regime fascista, na ótica dos reformadores831. Na verdade, operação se daria através da elaboração de leis especiais, que seriam instru-
mentos hábeis para “depurar os elementos fascistas”, posição que é acolhida
– 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua
processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 271. por CALAMANDREI834.
827. Segundo Carlotta Latini, a prática das leis delegadas foram uma constante na Itália. Cf LATINI, Carlot-
ta. Governare L’Emergenza. Milano: Giuffrè, 2005. Uma estratégia efetiva de revisão legislativa se operará entre 1944
828. ORLANDI, Renzo. Diritti Individuali e Processo Penale Nell’Italia Repubblicana. In NEGRI, Daniele;
PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incon-
tro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 52. 832. “o processo penal fascista se inspira no tradicional processo misto também porque a fase instrutória secreta
829. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi- e privada de garantias para o imputado, sem a presença do defensor, garantindo um peso decisivo na orien-
soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943 tação da fase de instrução judicial”. STRONATI, Monica. La Grazia e la Giustizia Durante il Fascismo. In
– 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p.
processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 276. 142. No mesmo sentido DEZZA: Código Rocco: confirma a tradição do modelo misto herdada da experi-
830. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi- ência napoleônica, acentuando características inquisitórias e especialmente a disparidade entre acusação e
soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943 defesa, em alguns casos conduzindo a defesa a um estágio pré-napoleônico.
– 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua 833. GUARNIERI, Carlo. L’Ordine Pubblico e la Giustizia Penale. In Storia dello Stato Italiano. Roma:
processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 277. Donzelli, 1995. p. 378.
831. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi- 834. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi-
soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943 soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943
– 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua – 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua
processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 277. processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 280.
262 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 263

– 1945, com o impulso de alguns doutrinadores, dentre eles PANNAIN, liberais dos códigos antecedentes (em específico o princípio da legalidade e
LEONE e DELOGU. Todos eles discípulos da geração dos fundadores do da irretroatividade da lei penal, além da proibição de analogia, bem como
método técnico-jurídico e artífices da codificação de 1930. Segundo OR- a manutenção da ideia de crime como violação a um bem jurídico). Além
LANDI, ainda nesta época predomina o método técnico-jurídico, já presente disso, a própria metodologia tecnicista teria contribuído, na visão destes au-
na época fascista e cuja origem é inclusive pré-fascista. Neste interregno tem- tores, para a proteção do código contra a ideologia fascista841, como muitas
poral, os nomes que mais exerceram influência no plano do processo penal vezes referido neste estudo.
foram os de PANNAIN, LEONE, SABATINI e DE MARSICO. Dentre estes autores, de expressiva opinião é Remo PANNAIN, que
A discussão em torno das reformas processuais penais835, após a queda afirmava que o código penal italiano, à diferença do sistema alemão (que
do regime fascista se circunscreveram a duas: a) aquela concernente em res- fazia da lei penal um mero instrumento a serviço de valores políticos), não
taurar o Código Finochiaro-Aprile de 1913 e a outra, mediante uma reforma seria incompatível com um regime democrático842. Mas deve-se perceber que
parcial do Código Rocco, no escopo de adequá-lo ao novo regime democrá- no campo prático, existia um discurso muito afinado tanto relativamente às
tico836. ORLANDI cita como o grande adversário do retorno ao Código de propostas nazistas quanto ao discurso positivista. Isto pode ser claramente
1913 Giovanni LEONE837. Vejamos as palavras de LEONE: “este escrito verificado na defesa de PANNAIN da utilização da narcoanálise para fins de
pretende demonstrar como, ao contrário das opostas aparências, o tradicional prova no processo penal. Segundo o autor, em Discurso na Sociedade Italiana de
complexo de princípios jurídico-penais, de origem liberal, foi, durante o vin- Medicina Legal, o problema deveria ser posto nos termos de direito à liberdade
tênio transcurso, enérgica e quase universalmente defendido e mantido pelos em contraposição ao interesse público843. Considerando a inspiração do código
juristas italianos”838. Em outro artigo, afirmará LEONE que “sem a pretensão Rocco, natural que a segunda opção prevalecesse. Além disso, a narcoanálise
de resolver profundamente o problema, o código de processo penal não foi poderia servir, mais do que ao interesse público, ao interesse do próprio impu-
marcado por nenhuma inspiração política particular. Em decorrência disso tado em “provar a sua inocência” (vejamos que neste ponto, apesar de negada
não se pode dizer que seja expressão de uma corrente política autoritária”839. normativamente, vigia nas práticas uma presunção de culpabilidade). PAN-
NAIN defende, inclusive, o emprego da narcoanálise para as testemunhas, no
ORLANDI também cita PANNAIN, SANTORO-PASSARELLI, CA-
escopo de garantir celeridade e eficiência ao processo penal844.
LAMANDREI e SABATINI como importantes juristas que compartilharam
da visão de LEONE sobre a intangibilidade dos princípios liberais do processo Para PANNAIN, a justificativa para a reforma era muito mais política
penal nos vinte anos de governo fascista840. do que técnica. A reforma de 1930 não era obra de altos funcionários do
Estado, mas de juristas sérios e cultos. Ela foi apresentada como um fato
Segundo NEPPI MODONA, o argumento recorrente sobre reformar
eminentemente político, mas na verdade se tratava de um fato exclusivamente
ou não o código penal de 1930 estava baseado na preservação dos princípios
jurídico, como demonstraria o longo caminho de discussões referentes à sua
835. Favorável à reforma do CPP de 1930 BELLAVISTA, Girolamo. Processo Penal e Civiltà. In Rivista di elaboração845. Nas palavras do autor, “não é possível com um golpe de pena
Diritto Processuale Penale. a. 2. V. 1. Milano: Giuffrè, 1955. p. 347-370. Também ALLORIO, Enrico.
Sulla Riforma del Processo Penale Italiano. In ________. Sulla Dottrina della Giurisdizione e del Giu- cancelar um período de vinte anos, no qual, bem ou mal, se viu, se operou,
dicato e Altri Studi. Milano: Giuffrè, 1957. p. 377-393.
836. ORLANDI, Renzo. Diritti Individuali e Processo Penale Nell’Italia Repubblicana. In NEGRI, Daniele;
se produziu, se sofreu. Não é possível destruir tudo quanto foi criado naquele
PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incon- período”846. Argumenta o autor que não se deve deixar conduzir pela paixão
tro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 55.
837. ORLANDI, Renzo. Diritti Individuali e Processo Penale Nell’Italia Repubblicana. In NEGRI, Daniele;
PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incon- 841. NEPPI MODONA, Guido. Principio di Legalità e Giustizia Penale nel Periodo Fascista. In Quaderni
tro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. Fiorientini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 36. t. II. Firenze, 2007. p. 984-985.
838. LEONE, Giovani. La Scienza Giuridica Penale Nell’ultimo Ventennio. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 23. 842. PANNAIN, Remo. Notizie e Spunti sulla Riforma dei Codici Penali. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 58.
839. LEONE, Giovanni. Problemi Contingenti di Riforma. In ________. Intorno Alla Riforma del Codice di 843. PANNAIN, Remo. Il Problema della Narcoanalisi. In Archivio Penale. 1/12, 1950.p. 310.
Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1964. p. 113. 844. PANNAIN, Remo. Il Problema della Narcoanalisi. In Archivio Penale. 1/12, 1950.p. 310-311.
840. ORLANDI, Renzo. Diritti Individuali e Processo Penale Nell’Italia Repubblicana. In NEGRI, Daniele; 845. PANNAIN, Remo. La Riforma della Legislazione. In Annali della Facoltà Giuridica degli Studi di
PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incon- Camerino. v. XVI, 1942-44. p. 17-18.
tro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 60-61. 846. PANNAIN, Remo. La Riforma Della Legislazione. Roma: “Arte della Stampa”, 1944. p. 04.
264 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 265

política, de forma a fazer prevalecer o sentimento sobre a razão, de forma a político e técnicos do código penal. A única forma de solucionar este problema
oprimir a substância em favor da forma, de esquecer o interesse público para seria isolando o elemento técnico-jurídico daquele político. E, assim sendo, seria
a satisfação de alguns847. necessário verificar se o elemento político havia ou não dominado o técnico851.
O que estava em jogo era o debate acerca do método. PANNAIN fará Mais especificamente sobre o processo penal, encontra-se o discurso de
a defesa do tecnicismo na revista fundada para tanto, o Archivio Penale. No PANNAIN, em 1944. Afirmava o autor que o código de processo penal não
editorial do primeiro volume, PANNAIN se encarregará de sustentar o tec- era tão bom quanto o penal, embora fosse melhor do que aquele de 1913.
nicismo jurídico. O jurista, segundo o autor, não poderia renunciar à técnica, A primeira grande crítica ao código de processo penal era a ilimitação da
não podendo transpor os limites do direito objetivo. Desta maneira, não custódia cautelar e a falta de um limite exíguo para apresentação do preso à
poderia bancar o político, o filósofo nem o crítico legal848. autoridade judiciária852. O importante era demonstrar as melhorias do código
A defesa do tecnicismo foi realizada através, de um lado, da intransi- Rocco relativamente ao código revogado, fazendo elogios quanto às nulidades,
gente acentuação do método, como exposto no pensamento de PANNAIN recursos, revelia. Para PANNAIN, quando se fala de princípios autoritários e
no editorial do primeiro volume da revista Archivio Penale. De outro lado, a liberais, é possível falar-se do código de processo penal, que deve contemplar
acusação contra o irracionalismo alemão na ciência penal nacional-socialista. garantias para o respeito à personalidade humana. E, nesse sentido, afirma,
Para operar com o direito positivo, não são permitidos outros instrumentos o código de 1930 supera o de 1913853. Ainda de acordo com PANNAIN,
que não aqueles estritamente técnicos: o único método é o método técnico- “devendo mudar-se a todo o custo, se arrisca de substituir o bom que se tem
-jurídico. A importância da dogmática, continua o autor, consiste no fato de pelo ruim, apenas porque é o contrário daquele e representa uma inovação”854.
ser ela uma ciência moral; defender a dogmática é defender o direito, não se Por seu turno, segundo o autor, a reforma (do codigo penal), segue as
admitindo a intromissão de outros elementos estranhos à ela849. escolhas ditadas pela legislação de 1930. No mesmo sentido será a mani-
Neste editorial PANNAIN apresentará o discurso de resistência contra festação de Arturo SANTORO855. Isso implica na desnecessidade de uma
a depuração dos elementos fascistas dos códigos (posto que inexistentes) e reforma completa856, o que explica a preferência pelas reformas “de fachada”
assegurará a continuidade destes códigos na tradição do método técnico-jurí- que se seguiram na Itália.
dico, que foi capaz de bloquear qualquer influência política sobre a legislação O discurso de BERNIERI também deve ser levado em consideração aqui.
penal durante o regime fascista. Percebe-se que PANNAIN, ao contrário de Como PANNAIN, compartilhava do entendimento de que o código de 1930
ROCCO e MANZINI, defenderá um divórcio profundo entre dogmática e era superior ao de 1913, o que poderia ser demonstrado pela intenção existente
as demais ciências, no escopo de negar interferências políticas na feitura dos de se revogá-lo, e isto muito antes do código Rocco, o que identificava as suas
códigos. Inexistentes conversões ideológicas, já não haveria mais nada a se de- limitações. O código de 1930, apesar do momento político em que entrou em
purar, salvo alguns “excessos” na parte especial do código penal. Nas palavras vigência, manteve as linhas sistemáticas do código revogado. Inclusive, haveria
do autor: “a verdade é que a reforma dos códigos foi apresentada como um proporcionado uma notável evolução. Assim, a conservação do código repre-
fato político, mas foi, em realidade, um acontecimento claramente jurídico, sentaria a manutenção da continuidade de uma tradição jurídica857.
que se conectava às tendências e aspirações formuladas antes de 1922”850.
851. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale. v. I, 1946. p. 162.
No mesmo sentido será a intervenção de DELOGU, quanto à reforma 852. PANNAIN, Remo. La Riforma della Legislazione. In Annali della Facoltà Giuridica degli Studi di
Camerino. v. XVI, 1942-44. p. 46.
dos códigos. DELOGU sustenta a existência de falsas questões envolvendo a 853. PANNAIN, Remo. Notizie e Spunti sulla Riforma dei Codici Penali. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 61.
reforma pós-fascismo. O autor considera existe uma confusão entre aspectos 854. PANNAIN, Remo. La Riforma Della Legislazione. Roma: “Arte della Stampa”, 1944. p. 33.
855. SANTORO, Arturo. Impressioni e Riserve Sulla Revisione Novellistica del Codice Penale. In La Scuo-
la Positiva. n. 3, v. 13, 1971. p. 343.
847. PANNAIN, Remo. La Riforma Della Legislazione. Roma: “Arte della Stampa”, 1944. p. 05. 856. PANNAIN, Remo. Osservazioni sul Progetto Preliminare di Codice Penale. In Archivio Penale. 1/12,
848. PANNAIN, Remo. L’Archivio Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 06. 1949. p. 320.
849. PANNAIN, Remo. L’Archivio Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 07. 857. BERNIERI, G. Per L’Aggiornamento Politico del Codice di Procedura Penale. In Archivio Penale. v. I,
850. PANNAIN, Remo. La Riforma Della Legislazione. Roma: “Arte della Stampa”, 1944. p. 14. 1945. p. 541-542.
266 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 267

Para DELOGU, foi justamente devido ao sentimento jurídico e à qua- célere, mais linear, menos subordinado à conduta das partes e então, assim,
lidade do código redigido por estudiosos formados na era pré-fascista que mais dominado pela autoridade do juiz866. Neste ponto, LEONE ratifica o
possibilitou manter “os cânones fundamentais aprendidos e ensinados por discurso de ROCCO nas suas diversas manifestações sobre a necessidade de
longos anos”, impedindo que os novos princípios políticos suprimissem os aprimorar a técnica do código. Para o autor, não deveria ser feita uma refor-
princípios jurídicos tradicionais858. Para DELOGU, os juristas não são um ma total867. Seria um erro jogar ao vento longos anos de bons resultados (?)
elemento reacionário, mas um elemento de equilíbrio e que tendem a reagir e que estiveram no centro de elaborações doutrinárias e jurisprudenciais que
e impedir o excesso, seja do absolutismo, seja da licenciosidade859. Assim, o constituem um patrimônio da cultura868.
fascismo não teria sido a causa única dos códigos, mas o resultado do estudo Ainda segundo LEONE, aquele movimento de ideias era exclusiva-
de intelectuais e de evolução da legislação860. mente técnico, reconduzindo-se a noções anteriores ao fascismo e a homens
Como se pode perceber, esta leitura da política do fascismo aparece que não se ligaram ao regime político. No sentido de indicar por que o CPP
como uma “fachada”861 na tentativa de bloquear a reforma dos códigos. Para de 1930 não seria autoritário, LEONE sustenta que no âmbito do código, o
os autores do Archivio Penale, seria possível falar-se unicamente em uma processo penal era construído como relação jurídica, logo, como um processo
“fascistização retórica” dos códigos, que haviam permanecido fieis a outras de partes, conexo aos conceitos de pretensão punitiva, de ação, de conflito
raízes (as liberais)862. A “depuração” dos códigos, portanto, aparentava ser entre uma norma de direito objetivo (norma de direito penal) e outra norma
uma tarefa fácil, já que com efeito, nada havia de fascista para ser expulso. que tutela a pessoa ou a coisa contra a qual esta atuação deveria ser realizada
Novamente de acordo com DELOGU, “as linhas fundamentais do código (norma de direito constitucional), ao de legitimação para agir, de direitos e
não são inspiradas em princípios contrastantes com um regime de liberdade, obrigações processuais, do direito de liberdade do cidadão, etc. Todos estes
já que as infiltrações políticas são relativas, mais do que qualquer outra coisa, conceitos seriam de caráter liberal869. Apenas alguns aspectos do código es-
a questões de detalhe ou figuras delitivas singulares”863. tariam, aparentemente, mais próximos do regime, como a maior autoridade
Sem dúvida alguma, absolutamente importante nesta discussão será o concedida ao juiz, a disciplina das nulidades, etc. Mas na visão de LEONE,
papel desempenhado por Giovani LEONE. Afirma LEONE que o código seriam aspectos particulares, não compartilhados pela “doutrina liberal” do
de 1930 não foi elaborado a partir de uma determinada inspiração política, código de 1930870. Segundo PANNAIN, o código se ligava aos conceitos e
muito menos foi expressão de uma determinada política autoritária864. Pelo expressões jurídicas formuladas antes de 1922, recolhia e utilizava resultados
contrário, teria uma inspiração liberal, que encontrou nos juristas italianos de estudos, pesquisas e experiências da ciência e da prática jurídica e judiciá-
pessoas com coragem e coerência e que souberam ter fé nos cânones clássicos ria871, não sendo contaminados pela política.
da ciência jurídica865. A inspiração daquele código, na leitura de LEONE, foi De acordo com LEONE, ao analisar o código penal fascista, constata
simplesmente a de imprimir ao processo penal um desenvolvimento, mais que a doutrina alemã foi servil à política, ao contrário da italiana, que se
mantinha de acordo com alguns princípios básicos do direito penal: uma
858. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 194.
859. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 194. 866. LEONE, Giovanni. Problemi Contingenti di Riforma. In ________. Intorno Alla Riforma del Codice di
860. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 168. Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1964. p. 116.
861. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi- 867. LEONE, Giovanni. I Punti Centrali della Riforma del Processo Penale. In Rivista Italiana di Diritto e
soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943 Procedura Penale. n. 1, v. 7, 1964. p. 03.
– 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua 868. LEONE, Giovanni. I Punti Centrali della Riforma del Processo Penale. In Rivista Italiana di Diritto e
processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p.290. Procedura Penale. n. 1, v. 7, 1964. p. 03.
862. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 169. 869. LEONE, Giovanni. Problemi Contingenti di Riforma. In ________. Intorno Alla Riforma del Codice di
863. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 193. Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1964. p. 114.
864. LEONE, Giovani. Sulla Riforma del Codice di Procedura Penale. In Archivio Penale. v. III, 1947. p. 870. LEONE, Giovani. Sulla Riforma del Codice di Procedura Penale. In Archivio Penale. v. III, 1947. p.
9-12. 9-12.
865. LEONE, Giovanni. Problemi Contingenti di Riforma. In ________. Intorno Alla Riforma del Codice di 871. PANNAIN, Remo. La Riforma della Legislazione. In Annali della Facoltà Giuridica degli Studi di
Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1964. p. 116. Camerino. v. XVI, 1942-44. p. 28-29.
268 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 269

relação jurídica entre cidadão e Estado, a irretroatividade da lei penal, a prazos peremptórios para a duração da prisão cautelar, a abolição da necessi-
taxatividade da lei penal, uma concepção de delito como ofensa a um bem dade de o recorrente se apresentar à prisão para ter admitido o seu recurso, a
jurídico. Assim, LEONE argumentava que “os penalistas italianos, nas duas obrigação de o juiz se manifestar quando provocado pelas partes privadas876.
décadas do fascismo, restringiram, com o espírito da mais corajosa inde- Estas eram modificações que no sentir dos juristas, seriam suficientes para
pendência, quaisquer tentativas de infiltração de elementos políticos no “desfasticizar” o código de processo penal.
tradicional sistema penal, o qual, por efeito desta atitude, permaneceu, Como justificativas para a manutenção em larga escala de um sistema
ao menos em suas grandes linhas, a salvo de toda contaminação políti- criado pelo fascismo, já foi dito por ninguém menos do que LEONE que
ca”872. Segundo o autor, o código foi elaborado por juristas, os expoentes a legislação fascista havia conservado o princípio de estrita legalidade, a
da escola técnico-jurídica (MASSARI, MANZINI, ROCCO). Tais juristas proibição de analogia, a irretroatividade, o delito como violação de bens
foram convocados na plenitude de sua maturidade científica, cuja forma- jurídicos, a relação jurídica fundada sobre o direito subjetivo de punir,
ção antecede o fascismo. DELOGU cita aqui, a obra de Arturo ROCCO, contraposto ao direito do cidadão à liberdade877.
fundamental no desenvolvimento da ciência jurídico-penal e que representa
Segundo LEONE, o código penal de 1930 não foi o primeiro a desco-
uma espécie de carta fundamental de fundação da escola técnico-jurídica,
brir a necessidade ou oportunidade de uma reforma política. A manutenção
publicada em 1910, cerca de 20 anos antes da elaboração dos trabalhos pre-
de princípios básicos do liberalismo (LEONE examina a parte geral do código
paratórios do código. Era lógico, então, que os compiladores do código não
de 1930 com aquela do código Zanardelli de 1877) era tida como um claro
poderiam deixar de lado os ensinamentos e aprendizados de sua formação
indicativo de aderência do legislador fascista aos postulados básicos do direito
jurídica, impedindo que o código fosse informado desde bases políticas873.
penal, mantendo viva a tradição italiana. A explicação de LEONE (que se
Segundo ORLANDI, no Congresso nacional jurídico-forense de pode agregar à de CASATI), era a de que o fascismo havia se apropriado de
1947, cujo objeto era a discussão sobre a reforma do código de processo muita coisa do passado. Assim, as exposições de motivos e declarações polí-
penal, LEONE destacará as linhas sobre as quais a comissão trabalhará nos ticas sobre os códigos, não deveriam ser levadas a sério. Para LEONE, esta
anos subsequentes. A orientação geral era a de salvaguardar o código Rocco, apropriação da herança do passado, apresentando-a como uma inovação seria
modificando as partes necessárias para acomodá-lo à democracia. LEONE uma característica comum das ditaduras878. Explica que o código de 1930
sugerirá mudanças que atacam a própria estrutura do processo, como a seria, com efeito, na mais completa forma de justaposição entre escola positiva
abolição da instrução sumária874, garantindo, assim, a instrução formal875 e clássica, especialmente pelo fato de ROCCO, MASSARI e MANZINI con-
para a ampla maioria dos processos, a ampliação dos casos de citação direta seguirem dar uma guinada jurídica aos postulados positivistas (denominada
em juízo e a reforma, em sentido garantista, do sistema recursal. Além disso, de metodologia técnico-jurídica)879. Os indícios de tal experimento seriam a
LEONE propõe mudanças sensíveis quanto às partes processuais, como a adoção pelo código penal de 1930 da responsabilidade moral do criminoso,
retirada dos poderes tipicamente judiciais do Ministério Público e o reforço acentuando-se algumas orientações da escola positiva como: a) medida de se-
dos poderes da defesa, assim como garantindo uma ação penal subsidiária gurança disposta a combater a periculosidade; b) adoção do sistema do duplo
da pública para o ofendido. O congresso finalizará com alterações em 45 binário; c) exame da personalidade do sujeito ativo na aplicação da pena880.
pontos do projeto: o direito do defensor de participar de todos os atos da
Contudo, estas são construções políticas e não jurídicas, como destaca
instrução formal, a repristinação das nulidades absolutas, a colocação de
876. ORLANDI, Renzo. Diritti Individuali e Processo Penale Nell’Italia Repubblicana. In NEGRI, Daniele;
872. LEONE, Giovani. La Scienza Giuridica Penale Nell’ultimo Ventennio. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 28. PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incon-
873. DELOGU, Tullio. L’Elemento Politico nel Codice Penale. In Archivio Penale, v. I, 1945. p. 194-195. tro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 61.
874. A instrução sumária era uma investigação preliminar, de caráter inquisitório, comandada pelo Ministé- 877. LEONE, Giovanni. Contro la Riforma del Codice Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 277-278.
rio Público, que possuía poderes de magistrado. 878. LEONE, Giovanni. Contro la Riforma del Codice Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 277-278.
875. A instrução formal era uma forma de investigação preliminar, de caráter inquisitório, comandado pelo 879. LEONE, Giovanni. Contro la Riforma del Codice Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 280.
juiz-investigador. 880. LEONE, Giovanni. Contro la Riforma del Codice Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 281.
270 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 271

SBRICCOLI881. A “teoria do freio”882 não é compatível com a teoria da anterior886. Todos estes discursos se acasalam muito bem com o discurso
emendabilidade dos códigos883. Ora, ao que parece, a defesa dos juristas pré- oficial de Alfredo ROCCO: o de que o Código de 1930 mantinha uma
-fascistas, tomando-se como parâmetro o que ocorrera na Alemanha, não continuidade com o código revogado, aquele de 1913. O que fazia o novo
torna o sistema penal italiano fascista algo bom. A comparação com aquilo Código era apenas “inovar” em algumas matérias887. Tome-se o pensamento
que de pior sucedera na história do direito penal não permite a diagnose de de CALAMANDREI para quem a legislação considerada fascista não havia
que os juristas do regime italiano de fato contribuíram para a manutenção alterado substancialmeente o quadro jurídico.
de um nível de civilidade nos códigos. De acordo com LACCHÈ, os juristas do Archivio Penale conseguiram
Como se pode perceber, MANZINI não foi o único a tentar separar a construir um discurso eficaz em termos de “continuidade” e de colocar freios
legislação produzida no regime fascista do próprio regime político que condu- à reforma, deixando as contradições para um segundo plano. Para tais autores,
ziu as reformas. Assim, a defesa da legislação vigente após a queda do Estado os códigos eram obra de juristas de vocação liberal que, através da força da
fascista se baseava tanto na negação da influência fascista quanto na “boa ciência, foram capazes de manter as principais conquistas da cultura jurídica
técnica” dos códigos. Por exemplo, LEONE, tracejando comparação com a italiana. Por isso, jamais abdicaram da neutralidade da ciência, bloqueando
Alemanha nazista, afirma que na Itália não se havia subvertido o sistema de o avanço do irracionalismo que havia deformado a ciência penal alemã888.
princípios da legalidade e irretroatividade nem a taxatividade exigida pela lei Para LACCHÈ, a centralidade estratégica do código penal Rocco desen-
penal como ofensa a bens jurídicos (em franca oposição ao direito penal da volve uma função hegemônica na orientação das transformações do sistema
intenção, que operaria na Alemanha). penal, através da continuidade e de um “quietismo científico distônico” em
Sob o argumento de que o código de processo penal de 1930 não havia relação à “linguagem da nova Constituição”, baseada na cultura dos direitos
provocado uma ruptura com o modelo anterior, é expressivo o pensamento de e da pessoa humana considerada precedente e superior ao Estado. A questão
FLORIAN, um pensador que transitava do liberalismo ao positivismo e que de método, para o autor, escondia, de forma indulgente, o “nó político da
aprovava o trabalho desenvolvido por MANZINI. Segundo FLORIAN, a es- responsabilidade”. Assim, a força da ciência e o prestígio técnico do código
trutura do processo não tinha mudado em relação à época liberal884. Havia aqui, de 1930 tiveram uma relevante influência cultural que acabou permeando a
uma relação estreita entre a nova codificação e o velho processo penal liberal, doutrina italiana durante muito tempo. Para LACCHÈ, a “hegemonia dos
operando tanto a doutrina quanto a jurisprudência, de maneira relevante885. moderados na política penal”, entre 1944 e 1945 marcou profundamente a
CALAMANDREI igualmente apoiará a tese moderada, argumentando história da política legislativa italiana889.
em prol de uma continuidade dos códigos fascistas com a tradição jurídica Segundo NEPPI MODONA, os principais defensores do código
italiana, ao afirmar que os códigos fascistas haviam melhorado o sistema Rocco – PANNAIN, LEONE e DELOGU – tinham uma concepção do
princípio da legalidade meramente formalista, abstrata e nominalista890.
881. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
Giuffrè, 1999. p. 843. 886. CALAMANDREI, Piero. Sulla Riforma dei Codici. In _______. Scritti e Discorsi Politici. Firenze: La
882. À esta corrente se une outra, a do “fascismo invisível”, que toma o fascismo como uma doutrina social Nuova Italia, 1966. p. 87 e ss.
como outra qualquer, partindo da premissa de que no vintênio do regime fascista os fundamentos da 887. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Procedura Pe-
cultura liberal foram integralmente respeitados. SOMMA, Alessandro. Liberali in Camicia Nera: la nale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. Roma: 1929. p. 07.
comune matrice del fascismo e del liberismo giuridico. In Boletín Mexicano de Derecho Comparado. a. 888. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi-
XXXVIII. n. 112, 2005. p. 297. soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943
883. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del – 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua
fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 291.
Giuffrè, 1999. p. 844. 889. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi-
884. FLORIAN, Eugenio. Pensieri sul Progetto si Codice di Procedura Penale. In La Scuola Positiva. v. IX, soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943
1929. p. 340. – 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua
885. COLAO, Floriana. Processo Penale e Pubblica Opinione: dall’età liberale al regime fascista. In GAR- processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 299-300.
LATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpenalistica 890. NEPPI MODONA, Guido. Principio di Legalità e Giustizia Penale nel Periodo Fascista. In Quaderni
italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 267. Fiorientini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 36. t. II. Firenze, 2007. p. 985.
272 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 273

Nominalista porque sustentavam que o código Rocco tinha mantido os pre- influências políticas do fascismo896. Evidentemente, não era fácil superar
cedentes liberais do código Zanardelli (de 1889), não aderindo à concepção um sistema elaborado nos tempos da ditadura, em um momento em que a
nazista de direito penal, que buscava no são sentimento do povo alemão democracia se anunciava. A escolha de 1944-45, no sentido de parcial e gra-
ou na vontade do Fuhrer as fontes analógicas do direito penal, sem tratar dualmente “desfascistizar” os códigos produziu um duplo efeito: de anexar
de descrever em que teria consistido a função de garantia desempenhada o discurso da reforma no campo do tecnicismo jurídico e o de afastar uma
durante o regime pelo princípio da legalidade. Além disso, a noção de lega- reforma integral, conforme se eliminavam dos códigos os elementos mais
lidade seria, na visão destes autores, uma concepção abstrata, uma vez que a visivelmente incompatíveis com o regime democrático897.
legalidade é tratada como um princípio geral, sem examinar os tipos penais A escolha de conservar o código Rocco significava deixar subsistir o
que integravam a parte especial do código de 1930. Por fim, a concepção era sistema construído em torno dele, que encontrava no Tratado de MAN-
formal, posto que os autores não trataram de esclarecer as características das ZINI a sua máxima expressão898. A doutrina não haveria de renunciar aos
leis emitidas no período fascista, que prescindia de debates parlamentares conceitos herdados da continuidade metodológica. Transmitiam-se, assim,
sobre os tipos penais, baseados na expressão da vontade do partido único891. à época republicana, também opções interpretativas, que permitiam reforçar
Evidentemente que a existência de debates, em sede parlamentar, não pode os princípios do código, imunizando-lhes de ataques externos. Desde este
ser um equivalente democrático. A democracia deve incluir os distintos ponto de vista, se reproduzia ao fundo uma dialética entre autoridade e
segmentos sociais envolvidos nos processos de criminalização, afastados, por liberdade já existente no período liberal899.
óbvio, pela “política absoluta”, como precisa PIZZORNO892. SABATINI MARINUCCI critica a ideia de continuidade, afirmando que a “des-
também acentuará algumas mudanças que foram introduzidas na legislação, fasticização” do código Rocco após a segunda guerra foi realizada pela direita,
como a obrigatoriedade da notícia-crime em caso de delito contra a perso- que contou com uma cobertura ideológica da esquerda, a partir do argumento
nalidade do Estado (transformando a omissão em crime)893, a punibilidade de que um código novo seria impossível de ser elaborado, sendo, portanto, a
da participação em crime que sequer fosse tentado, sempre que se tratasse velha ordem, a ordem italiana de sempre900, preservada.
de crime contra a personalidade do Estado894.
Certo é que o código Rocco pôde viver mais de uma vida através de
O código de processo penal de 1930 se fundava em uma hipertro- progressivos ajustes, produtos de reformas, com êxitos parciais e contro-
fia instrutória, que desequilibrava um sistema apenas verbalmente misto, vérsias. O uso da técnica, a consciência da dimensão dogmática, a clareza
deslocando o baricentro do processo para o lado da cultura inquisitória e e a modernidade da linguagem, o excelente nível de coordenação e siste-
enfraquecendo todas as garantias da liberdade pessoal do imputado. Este matização dos institutos tornavam difícil o seu abandono901. A escolha de
código acabava por garantir a política criminal do regime, recuperando uma
cultura autoritária que vinha de longe, a qual não teria sido fácil, sem a 896. GARLATI, Loredana. Novità nel Segno della Continuità: revi riflessioni sulla processual penalistica italiana
di ieri e di oggi. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia
crítica iluminista, ter prestado contas895. O discurso reformista da década de Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 292.
897. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi-
40-50, por seu turno, tratava de imunizar a classe dos juristas de quaisquer soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943
– 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua
processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 302.
891. NEPPI MODONA, Guido. Principio di Legalità e Giustizia Penale nel Periodo Fascista. In Quaderni 898. CHIODI, Giovanni. Custodia Preventiva e Garanzie della Libertà Personale nel Primo Decennio Re-
Fiorientini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 36. t. II. Firenze, 2007. p. 985-986. pubblicano: il caso della scarcerazione Automatica. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti In-
892. PIZZORNO, Alessandro. Le Radici della Politica Assoluta. Milano: Feltrinelli, 1993. dividuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13
893. SABATINI, Guglielmo. Direttivi Ideali del Fascismo nella Riforma della Legislazione Penale. In La novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 238.
Scuola Penale Unitaria. a. V. v. V. Roma, 1931. p. 06. 899. CHIODI, Giovanni. Custodia Preventiva e Garanzie della Libertà Personale nel Primo Decennio Re-
894. SABATINI, Guglielmo. Direttivi Ideali del Fascismo nella Riforma della Legislazione Penale. In La pubblicano: il caso della scarcerazione Automatica. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti In-
Scuola Penale Unitaria. a. V. v. V. Roma, 1931. p. 06. dividuali e Processo Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13
895. LACCHÈ, Luigi. “Sistemare il Terreno e Sgombrare le Macerie”: gli anni della “Costituzione Provvi- novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 238.
soria”: alle origini del discorso sulla reforma della legislazione e de códice di procedura penale (1943 900. MARINUCCI, Giorgio. L’Abbandono del Codice Rocco: tra rassegnazione e utopia. In La Questione
– 1947). In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultua Criminale: il códice Rocco cinquant’anni dopo. Bologna: Il Mulino, 1981. p. 297-299.
processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. 301. 901. LACCHÈ, Luigi. I Diritti della Storia e la Storia dei Diritti: riflettendo sul processo penale nell’Italia
274 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 275

1944-45 de avalizar a parcial reforma das leis penais fascistas produziu Existirão rupturas introduzidas pelo código Rocco, que segundo
um efeito duplo: o de vincular o discurso sobre a reforma no campo do SBRICCOLI, se dariam no campo ideológico. A nosso juízo, uma ideologi-
tecnicismo jurídico e o de afastar, tanto mais profundamente quanto se cal turn é incapaz de, por si mesma, constituir um fundo cultural permeável
expulsavam do código os elementos claramente fascistas, a perspectiva de ao espírito fascista. O lberalismo reacionário do código de 1913 não pode
uma completa reforma legislativa, de conteúdo político-constitucional902. ser ignorado. Entretanto, tal continuidade não permitiu a mudança. A Itália
A dificuldade política de se estabelecer uma reforma profunda pode ser produziu uma série de reformas em torno do código Rocco, mas o que de fato
encontrada nas palavras de CORDERO, que afirma que as máquinas repres- deve ser assinalado é a orientação que foi atribuída a institutos tradicionais
sivas são dificilmente reformáveis, uma vez que tocam em um metabolismo do pensamento processual penal.
social profundo. Em síntese, as operações de camuflagem do novo arsenal conceitual
Como hipótese condutora, existem dois elementos que ficam expostos fascista adentravam na nova legislação desde as bases liberais e eram operadas
no desenvolvimento do processo penal italiano e de sua cultura jurídica. A através de uma reformulação teleológica. O acobertamento da responsabi-
noção de continuidade com a tradição liberal – embora reacionária – foi o lidade dos juristas – por maiores que fossem – autorizou a manutenção de
argumento exposto pelos autores do Archivio Penale, que desejavam uma conceitos que foram empregados pela doutrina e práticas fascistas. No Brasil
reforma “menor”, já que seria inevitável que alguns dispositivos do código não será diverso. A seguir será tratada a estrutura do código Rocco, o que
fossem alterados. Este compromisso manteve o código de processo penal ajudará a compreender os processos de permanências e rupturas do processo
Rocco senão hígido, ao menos vivo por mais de três décadas. O argumento penal relativamente à Constituição da República.
da continuidade, portanto, escamoteou as alterações políticas e teleológicas
introduzidas no código Rocco, absolvendo juristas como MANZINI, que 2.5. A ESTRUTURA LEGAL DO CÓDIGO ROCCO: LINHAS
seriam apenas “técnicos” que evitaram o pior: a redução do direito italiano GERAIS
ao sistema nazista. A mudança da legislação italiana decorre da necessidade de se rees-
Os argumentos em torno da reforma são deveras importantes, pelo fato truturar as instituições penais, a fim de que pudessem responder melhor às
de que, a exemplo do Brasil, também a Itália manteve durante largo período finalidades exigidas pelo novo regime. Entretanto, como acentua SBRIC-
de tempo um código absolutamente autoritário – embora reformado – em COLI, não é possível afirmar-se que houve uma doutrina penal tipicamente
paralelo a uma nova ordem constitucional, republicana e democrática. Assim, fascista904 (até mesmo pelo fato de o fascismo não dispor de um corpus teórico
assiste razão a SKINNER quando afirma que “a queda do regime fascista na unitário nem possuir uma cultura própria905).
Itália não conduziu a um fim radical da experiência jurídica”903. No Brasil, A legislação e o seu conteúdo são outorgados pela política. Entretanto,
por seu turno, devemos insistir, uma reforma completa ainda não foi reali- serão os juristas a legitimar tais ideias, dando-lhe concretude e significa-
zada justamente pela presença deste liberalismo reacionário e conservador, ção jurídicas906. A codificação, então, será depositada nas mãos de juristas
que grassa tanto a doutrina quanto as práticas judiciárias, impedindo que a
democracia possa atingir o cenário processual penal. 904. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni del fas-
cismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano: Giu-
ffrè, 1999. p. 825. Interessante notar-se que Sbriccoli exclui, a nosso juízo arbitrariamente, isto é, sem
oferecer uma resposta mais aprofundada, as exposições de motivos, discursos, declarações políticas,
Repubblicana. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia etc. que se deram em torno da codificação, sob o argumento de que tais documentos não são doutrina
Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. jurídica. SBRICCOLI, Mario. Le Mani nella Pasta e Gli Occhi al Cielo: la penalistica italiana negli anni
p. 93-84. del fascismo. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. II. Milano:
902. LACCHÈ, Luigi. I Diritti della Storia e la Storia dei Diritti: riflettendo sul processo penale nell’Italia Re- Giuffrè, 1999. p. 825.
pubblicana. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale nell’Italia Re- 905. BOBBIO, Norberto. Dal Fascismo Alla Democrazia. Milano: Baldini & Castoldi, 1997. p. 61.
pubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuffrè, 2010. p. 94. 906. Segundo SKINNER, o discurso de ROCCO incorporou três manifestações principais da violência: a
903. SKINNER, Stephen. Reatti Contro lo Stato e L’intreccio tra Fascismo e Democrazia Degli Anni Venti e significância da guerra; repressão e punição e a rejeição de valores democráticos na forma do individu-
Trenta del Novecento: vilipendio, libello sedicioso e la sospensione della legalità. In LACCHÈ, Luigi. alismo liberal. SKINNER, Stephen. Violence in Fascist Criminal Law Discourse: war, repression and
Il Diritto del Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 75. anti-democracy. In International Journal for the Semiotics of Law. n. 26, 2013. p. 441 .
276 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 277

liberais-conservadores, uma espécie de liberalismo sui generis que não terá comparada914 (ao menos do ponto de vista do discurso declarado). Luigi
dificuldades em se abraçar ao fascismo907. Graças a um rito opressivo, às prá- LUCHINI lutou praticamente sozinho contra a manipulação discursiva en-
ticas policiais e aos estilos judiciários, o fascismo elaborou um código penal gendrada por ROCCO, que comparava o processo de delegação com aquele
que lhe representava juridicamente908. Nas palavras de SBRICCOLI, “o sofrido pela elaboração do Código Zanardelli de 1889.
fascismo deu a si mesmo um processo penal à sua própria imagem, testemu- Segundo CORDERO, Alfredo ROCCO era um ministro de “tendên-
nha e medida das condições nas quais constrangia a sociedade italiana”909. cia nacionalista e jurista muito hábil, que cultivava intelectualmente uma
O código de 1930 nasce quando em 1925 Alfredo ROCCO apresenta filosofia política simples, com fundo paranoico e era o artífice legal da inci-
ao Parlamento uma lei delegada, cujo objetivo era “emendar o código penal, piente ditadura”915. Segundo MILETTI, um dos argumentos utilizados por
o código de processo penal e as leis de organização judiciária e de aportar Alfredo ROCCO no Senado foi o de que o código era desprovido de caráter
novas modificações e incrementos ao código civil”. Tratava-se de uma lei político. Possuía apenas uma finalidade técnica916. A necessidade de garantir
delegada em branco910. O argumento era o de que tais reformas consisti- ao Estado mecanismos mais ágeis no combate à criminalidade impulsio-
riam em uma mera “reforma técnica”, capaz de combater a criminalidade e nou o projeto. Enorme suporte foi oferecido por Alessandro STOPPATO,
a delinquência habitual (veja-se que este argumento já era encontrado em considerado por CORDERO como “coautor do código moribundo e re-
MANZINI em sua prolusão turinesa). No fundo, como destaca LACCHÈ, lator no senado do projeto ministerial”917.Este discurso sustentado por
ROCCO sabia muito bem da importância do sistema de justiça para o STOPPATO no senado e redigido sob a forma de código por MANZINI,
processo de transformação do Estado911. sob a supervisão de Alfredo ROCCO não era isolado. Compartilhando da
A comissão encarregada de redigir os novos códigos era composta por visão reacionária seria possível citar-se aqui CONTI918, CARNEVALE919,
Eduardo MASSARI, além de Enrico FERRI (este último convidado para MASSARI920, FLORIAN921. O discurso encarnado por ROCCO era o de
compor a comissão como uma espécie de homenagem)912. Os trabalhos um retorno ao passado, mais seguro do que o presente922.
preparatórios se desenvolveram sob o regime da celeridade, sob a égide da O Codice Rocco foi produto de um homem só, um “codex unius autho-
orientação técnico-jurídica913. Além disso, não houve aportes de legislação ris” . É o próprio MANZINI a afirmar que a legislação foi por ele redigida
923

907. Segundo Ferrajoli, o liberalismo da cultura pré-fascista será um liberalismo conservador, autoritário, 914. VASSALLI, Giuliano. Experiencia Italiana en la Reforma del Derecho Penal. In Anuario de Derecho
estatal e patriótico, que não atende a reclamos do fascismo, mas permanece tão somente fiel a si mesmo. Penal y Ciencias Penales. n. 1, v. 34, 1981. p. 202.
FERRAJOLI, Luigi. Ensayo Sobre la Cultura Italiana del Siglo XX. México D.C: Universidad Autóno-
ma de México, 2010. 915. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. t. I. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000. p. 75.
908. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e della 916. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In
Giustizia: scritti editi e inediti (1937 – 2007). v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 181. GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe-
nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 59.
909. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della
Giustizia. v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 991. 917. CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p.99.
910. Segundo Lucchini, Rocco afirmava que o sistema de delegação ao governo, para a elaboração da nova 918. Que defendia a necessidade de limitar a descarcerização automática da prisão cautelar do código ante-
legislação, era sempre o mesmo (delegação ao legislativo pelo povo ou deste ao executivo), não haven- rior. CONTI, Ugo. La Libertà Individuale ne Processo Penale. In Rassegna Penale. v. 1, 1929. p. 740.
do que se falar em alteração no processo de codificação relativamente ao período liberal-democrático. 919. Que sustentava que a liberdade e os direitos do acusado deveriam ser comprimidos na tarefa de buscar
LUCCHINI, Luigi. Codice Penale e Codice di Procedura Penale nella Relazione del Ministro. In Rivista a verdade no processo penal. Os direitos do acusado eram, portanto, absorvidos no interesse superior do
Penale. v. CII. Roma, 1925. p. 271. Estado. CARNEVALE, Emanuele. L’investigazione Obiettiva nel Processo Penale. Città di Castello:
911. LACCHÈ, Luigi. Tra Giustizia e Repressione: i volti del regime fascista. In ________. Il Diritto del Unione Arti Grafiche, 1928. p. 53.
Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. XIII. Rocco dedicará pelo 920. Para Massari o direito a uma sentença favorável deve ser subordinado ao interesse geral à sentença
menos dois capítulos na coletânea de seus escritos à questão da repressão e da justiça penal (leis de defe- justa”. MASSARI, Eduardo. La Probità Processuale Come Dovere Giuridico. In Annali di Diritto e
sa e reforma dos códigos), conectando-as à reforma constitucional (com poderes enormes do executivo, Procedura Penale. v. 1, 1932. p. 237.
a cargo do Chefe de governo) e às reformas sociais (como aquela das relações coletivas de trabalho e 921. Para quem a liberdade era um interesse público (reproduzindo a concepção de Rocco). FLORIAN,
a forma assumida pelo Estado corporativo). ZUNINO, Pier Giorgio. L’Ideologia del Fascismo: miti, Eugenio. Pensieri sul Progetto si Codice di Procedura Penale. In La Scuola Positiva. v. IX, 1929. p. 340.
credenze, valori. Bologna: Il Mulino, 2013. 922. CHIODI, Giovanni. “Tornare All’Antico”: il códice di procedura penale Rocco tra storia e attualità. In
912. Interessante notar que FERRI ao elogiar MUSSOLINI, afirma que mesmo sem fazer uma radiografia, GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe-
era de se supor que Mussolini tivesse uma “tireoide excepcional”. FERRI, Enrico. Il Fascismo in Italia nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 307.
e L’Opera di Benito Mussolini. In Mussolinia. a. VI. n. 31. Mantova: Paladino, 1927. p. 12. 923. MILETTI, Marco Nicola. La Scienza nel Codice. Il Diritto Processuale Penale Nell’Italia Fascista. In
913. VASSALLI, Giuliano. Experiencia Italiana en la Reforma del Derecho Penal. In Anuario de Derecho GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe-
Penal y Ciencias Penales. n. 1, v. 34, 1981. p. 202. nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 63.
278 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 279

após receber o encargo de Alfredo ROCCO em 1926 e trabalhar praticamente MANZINI desenvolveram, em lógica quadrada, o assunto criptoinquisitó-
sozinho (MANZINI se declarava avesso às comissões)924. A única revisão rio do velho texto, vigiando impiedosamente aquele semigarantismo: não
realizada foi através das observações feitas pelo próprio Alfredo ROCCO, falta uma rude moralidade na operação: eis o que significa ‘processo misto”,
em 1929925, Em apenas três meses MANZINI realizou a primeira escrita926. para ser coerente”934. CORDERO se refere aqui ao código de 1913, que já
O Ministro ROCCO examinou atentamente, mandando-a para a revisão. O contava com várias críticas antes mesmo da mudança de regime político.
projeto, corrigido e publicado, recebeu pareceres das faculdades de direito, Segundo esta estrutura – política e ideológica – “o debate em contraditório
da ordem dos advogados e dos tribunais, inclusive da comissão consultiva e o garantismo eram bestas selvagens, que deviam ser destruídas sem pena”;
presidida por Mariano D’AMELIO (presidente da Corte de Cassação)927, com “na prosa ministerial, volta a aparecer frequentemente o epíteto “aberrante”,
retoques elaborados pelo próprio MANZINI e ROCCO na elaboração do que corresponde à toda a instituição que possui vínculos com o “absurdo
texto definitivo928, contando ainda com a participação relevante de Alessandro democratismo”, com o mau gosto da disputa, com o inorgânico individua-
STOPPATO na defesa do projeto no Senado. lismo liberal iluminista, etc. Segundo CORDERO, perde o humor aquele
Nas palavras de CORDERO, apenas duas mãos trabalham na ela- que lê os trabalhos preparatórios”935.
boração do texto, esculpido a “golpes de machadinha” por MANZINI, O discurso de um retorno ao antigo – podendo ser claramente iden-
“homem de ordem, raivosamente partidário da tradição inquisitorial italia- tificado o discurso proveniente de um liberalismo reacionário, já reiteradas
na”929. Ainda sobre MANZINI: “penalista de mão pesada, informadíssimo vezes neste trabalho citado – pressupõe a restituição da autoridade, o que
sobre minúcias, nostálgico dos métodos inquisitórios, homem de ordem”930. equivalerá a uma ampliação desmedida dos poderes do Ministério Público,
Para SPIRITO, MANZINI era um antifilósofo931, o “sumo sacerdote da compreendido como “uma parte imparcial” ou ainda, “uma parte em senti-
orientação técnico-jurídica”932. do meramente formal”. O Ministério Público – da mesma forma que o juiz
O argumento “técnico” de MANZINI era o de redigir um “processo instrutor – será o senhor da prova e da liberdade do acusado936. Com efeito,
de tipo misto”933. Segundo CORDERO, “Alfredo ROCCO e Vincenzo esta característica da imparcialidade foi utilizada, com notável eficiência, na
justificativa de barrar o defensor de atuar na fase instrutória: qual seria a jus-
924. “Recordo que, junto com Carlo Saltelli, no verão de 1930, para a formação do texto definitivo do tificativa para a presença de um defensor, se quem comanda a investigação
código, organizamos os pareceres dos órgãos aos quais foram remetidos o projeto, o Ministro visitava
frequentemente ou nós andávamos até ele (que estava sempre presente e visível) e discutia conosco, in- é imparcial? questiona MANZINI. A limitação de atuação do defensor já
dicando as soluções das questões que se apresentavam, com rápida e equilibrada adudeza, com admirá-
vel senso prático e político. Compreende-se que o Ministro queria uma reforma conforme ao espírito do poderia ser encontrada em um artigo de 1906 de MANZINI que, sob a base
Estado fascista”. MANZINI, Vincenzo. Um Decennio di Applicazione del Codice di Procedura Penale do liberalismo reacionário italiano (encontro da pandectística civilista com o
Rocco. In Annali di Diritto e Procedura Penale. Torino: Unione Editrice Torinese, 1942. p. 02.
925. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. I. Torino: juspublicismo conservador), àquela época (cerca de 25 anos antes do código
Torinese, 1952. p. 96.
926. NEPPI MODONA, Guido. Tecnicismo e Scelte Politiche nella Riforma del Codice Penale. In Democra- de 1930), justificava o afastamento da defesa com base na teoria dos direitos
zia e Diritto. v. 17, 1977. p. 779.
927. MENICONI, Antonella. La Magistratura e la Politica della Giustizia Durante il Fascismo Attraverso le
subjetivos, exatamente reportando-se à teoria de JELLINEK. De acordo com
Strutture del Ministero della Giustizia. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione MANZINI, admitir neste momento o critério da publicidade equivaleria a
nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 85.
928. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della “lesar o direito subjetivo da potência pública a uma eficaz persecução da de-
Giustizia. v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 987.
929. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. t. I. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000. p. 76.
linquência”937. A partir das considerações da escola histórica que penetraram
930. CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p. 99.
931. CALVI, Alessandro Alberto. Ugo Spirito Criminalista (riflessioni sulla terza edizioni della “Storia del Penale. In Criminalia, 2010, 2011. p. 208.
Diritto Penale Italiano”. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 3-4. t. II, 1974- 934. CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p. 100.
1975. p. 824. 935. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. t. I. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000. p. 76.
932. CALVI, Alessandro Alberto. Ugo Spirito Criminalista (riflessioni sulla terza edizioni della “Storia del 936. CHIODI, Giovanni. “Tornare All’Antico”: il códice di procedura penale Rocco tra storia e attualità. In
Diritto Penale Italiano”. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico. v. 3-4. t. II, 1974- GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del códice Rocco nella cultura processualpe-
1975. p. 823. nalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 309.
933. Como se sabe, é método técnico-jurídico a ressignificar a experiência codificatória italiana e a sua de- 937. MANZINI, Vincenzo. Dei Limiti Dell’Intervento della Difesa nella Istruttoria Penale Secondo la Teo-
fesa, já na metade dos anos 40. ORLANDI, Renzo. La Prolusione di Rocco e le Dottrine del Processo ria dei Diritti Pubblici Subiettivi. Milano: Bellinzaghi, 1906. p. 06 – 07.
280 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 281

na publicística italiana, MANZINI desenvolverá argumentos para limitar a revogado. Trata-se de “uma contrarreforma segundo uma regra de arte; dele
assistência da defesa durante a fase de investigação938. teriam se agradado os partidários das Ordenanças de 1670”943. De acordo com
Na Relazione al Progetto Preliminare, Alfredo ROCCO sintetiza muito SBRICCOLI, a ruptura entre os modelos processuais (o de 1913 e o de 1930)
bem a finalidade do novo código: era ideológica, mas não técnica944 (do ponto de vista da metodologia empre-
“obter a máxima celeridade939 dos procedimentos, de forma compatível com gada, não da qualidade do texto). No mesmo sentido sustenta CORDERO
as exigências da justiça; eliminar todas as superfluidades; combater as causas e que o código de 1930 ativava temas “criptoinquisitórios” e “semigarantistas”
as manifestações de capciosidade; opor-se à degeneração acadêmica ou teatral do código de 1913, que graças a MANZINI haviam obtido uma “torsão
das discussões; acrescer o prestígio e a seriedade à defesa; punir as fraudes autoritária”945. Para FERRUA, o Código de 1913, por ser uma legislação
e as temeridades processuais; impedir as impugnações infundadas; elevar a
liberal, seria incompatível com a ideologia do fascismo, ou seja, haveria, nas
autoridade do juiz; restituir ao Ministério Público as funções que lhe são
próprias; fazer com que a justiça substancial seja sempre precedente sobre a palavras do autor, “um salto ideológico abissal”946. Este código será uma justa
justiça meramente formal”940 expressão de seu regime político947, garantido pelo paradigma tecnicista, que
Segundo NEPPI MODONA e PELISSERO, além da omissão de se apresentara como instrumento teórico neutro e apolítico, e que garantia
quaisquer notícias sobre a adoção de um sistema inquisitorial ou acusatório a justificação e legitimação do direito público italiano (mas não só ele) do
(tais palavras foram deliberadamente omitidas nos discursos sobre o código), período pré-fascista à recodificação de 1955.
tem-se aí um discurso genérico e amorfo, que poderia ser aplicado a qualquer Se as normas do direito substancial tinham por finalidade indicar a au-
período histórico. Na realidade, trata-se de um discurso propriamente adap- toridade do Estado, o processo penal desenvolvia abertamente a sua matriz
tado ao clima político italiano da época (sincretismo), o que não afasta suas inquisitória, com uma instrutória (preliminar, sumária e formal) dilatada
tendências inquisitórias e autoritárias941. ao extremo, na qual em nenhuma de suas fases autorizava a participação do
Além disso, o novo código, nas palavras de ROCCO, era louvável por: defensor, além de afastar as garantias do acusado: as provas obtidas eram
“ ter terminado com alguns não laudatórios hábitos forenses, ter desflorestado apresentadas na instrução judicial, acabando por lhe condicionar; a ação
a selva de nulidades (profícua delícia dos caçadores de ardis) e dissecado a penal dependia de um funcionário subordinado ao Ministro da Justiça948.
fonte dos gravames formais; ter tolhido o meio para fáceis causas de anulação A magistratura também estava subordinada949, através de práticas que dis-
a que se prestava o instituto das notificações, ter cortado as asas da logorreia pensavam um reajuste completo, como as portarias e circulares950. Segundo
torturante frequente na fase de instrução, e ter introduzido outras similares
reformas não será certamente agradável àqueles habituados a se beneficiar 943. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. t. I. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000. p. 76.
e também a abusar das fragilidades do vigente ordenamento processual”942. 944. SBRICCOLI, Mario. Caratteri Originari e Tratti Permanenti del Sistema Penale Italiano (1860 – 1990).
Disponível em http://www.lex.unict.it/sites/default/files/files/Biblioteca/letture/Sbriccoli.pdf. Acesso
Segundo CORDERO, o novo código é tecnicamente superior ao an- em 11.09.2015. p. 528. No mesmo sentido GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’im-
pianto inquisitório del sistema delle prove nel c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p.182.
terior (o de 1913). Os livros foram aumentados de quatro para cinco. Nele 945. CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p. 99.
fica claro o espírito reacionário e possui uma coerência que faltava ao código 946. FERRUA, Paolo. Dal Codice di Rito del 1913 al Codice del 1930. In VINCIGUERRA, Sergio. Il Codi-
ce Penale per il Regno d’Italia. Padova: CEDAM, 2010. p. 240.
947. Cf SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e della
938. MANZINI, Vincenzo. Dei Limiti Dell’Intervento della Difesa nella Istruttoria Penale Secondo la Teo- Giustizia: scritti editi e inediti (1972-2007). Milano: Giuffrè, 2009. p. 991.
ria dei Diritti Pubblici Subiettivi. Milano: Bellinzaghi, 1906. 948. GARLATI, Loredana. Novità nel Segno della Continuità: revi riflessioni sulla processual penalistica
939. Veja-se que novamente este mote se encontra presente no projeto Garofalo e Carelli de 1889: “tornar mais italiana di ieri e di oggi. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale
célere e ao mesmo tempo mais seguro o juízo, – circundar de garantias o imputado e não deixar sem prote- nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuf-
ção as vítimas dos delitos, este os fins que tentamos alcançar”. GAROFALO, Rafaelle; CARELLI, Luigi. frè, 2010. p. 290.
Riforma della Procedura Penale in Italia: progetto di un nuovo codice. Torino: Fratelli Bocca, 1889. 949. Nesse ponto, são representativas as palavras de MANZINI: “Não urgia e não urge, contudo, uma reforma
940. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Procedura essencial do nosso ordenamento judiciário, nem pode ser entendido como tarefa de um governo qualquer,
Penale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. Roma: mesmo que surgido de uma revolução, aquela de proceder a reformas a qualquer custo, mesmo quando
1929. p. 07. elas não servem”. MANZINI, Vincenzo. Giustizia e Politica Sotto il Governo Fascista. In Rassegna Italia-
941. NEPPI MODONA, Guido; PELISSERO, Marco. La Politica Criminale Durante il Fascismo. In Storia na. Roma: Poligrafico Editoriale Romano, 1924. p. 08. Sobre a magistratura durante o fascismo recomen-
d’Italia. Annali 12. Torino: Einaudi, 1997. p. 808. da-se MENICONI, Antonella. Storia della Magistratura Italiana. Bologna: Il Mulino, 2012.
942. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Procedura Pe- 950. MENICONI, Antonella. La Magistratura e la Politica della Giustizia Durante il Fascismo Attraverso le
nale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. Roma: 1929. p. 07. Strutture del Ministero della Giustizia. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione
282 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 283

MENICONI, se deve analisar a relação entre magistratura e política, no pe- porque todas as nulidades eram declaradas sanáveis957.
ríodo fascista, analisando-se as conexões com o regime liberal pré-fascista, e Os poderes do Ministério Público são agigantados, o arquivamento
também através da análise que recaía sobre as novas relações implicadas com se torna um ato administrativo simples, desaparecem limites aos poderes
o Estado novo951. Graças à “viscosidade” do sistema judiciário e também instrutórios (equiparando-se o Ministério Público ao juiz), os defensores
do administrativo, se tornaram possíveis as persistências do modelo liberal são expulsos da fase de instrução preliminar, já que ela é dispensável diante
naquele fascista952. A ação de ROCCO e do novo governo cria uma “forte do trabalho honesto de autoridades imparciais e oniscientes (a defesa se
torsão autoritária” no corpo judiciário, expressando uma visão fascista953. justifica baseada na desconfiança relativamente à autoridade), os prazos
Não é à toa que em 1929 Rocco afirmara que o “espírito do fascismo” peremptórios da prisão cautelar são eliminados, rotulados como “aberrantes
penetrou na magistratura “mais rapidamente do que em quaisquer outras e insidiosos”, retomam-se prisões automáticas sobre “presumidos culpados”,
categorias de funcionários e profissionais”954. desaparecem as nulidades absolutas, admitem-se, de forma indiscriminada,
Como restará claro, o código de processo penal tinha atributos as leituras na fase de instrução judicial, o escabinato substitui o júri, regras
marcados e fortemente orientados, que acabavam por erigir um código taxativas impõem restrições aos recursos, negando o direito de recorrer do
substancialmente inquisitório, prenhe de elementos caracteristicamente au- acusado considerado “evadido”: “é uma temível engenhoca inquisitória. Tra-
toritários. Apesar de se afirmar tivesse o código construído um sistema misto balharam muito bem ROCCO e MANZINI, iluminados por oito séculos
típico da tradição italiana, o processo penal do fascismo foi construído de de ininterrupta e gloriosa produção científica e legislativa”958.
modo a tornar decisivos e irreversíveis os elementos coligidos durante a in- Neste quadro, o processo penal do código Rocco demonstra a sub-
vestigação, orientando a instrução judicial de forma imodificável. As provas missão do juiz ao Ministério Público, o que pode ser concluído tanto da
eram obtidas durante a instrutória, sendo que das três formas previstas (a estrutura procedimental in totum quanto de algumas previsões normativas
preliminar, realizada pela polícia, a sumária, realizada pelo Ministério Públi- como: o juiz não pode decidir sem ouvir o Ministério Público (art. 76 do
co e a formal, realizada pelo juiz), nenhuma delas previa a possibilidade de CPPi); antes de ordenar a emissão ou a revogação do mandado de captura
a defesa atuar955. A prisão preventiva era a regra956 e eventuais violações das o juiz instrutor deve escutar o Ministério Público (art. 262, § 1º do CPPi).
disposições legais, ainda que graves, não acarretavam nulidades absolutas Tais medidas tornavam o Ministério Público uma espécie de “consultor
nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 84. Sobre a prática das circulares, a medida mais efetiva
privilegiado”, alterando a estrutura do contraditório. Além disso, segundo
que o regime fascista tomou no sentido de constranger a magistratura, recomendamos a imprescindível o art. 370 do Código Rocco, o juiz tinha a obrigação de cumprir todos os
obra de COLAO, Floriana; LACCHÈ, Luigi; STORTI, Claudia; VALSECCHI, Clara. Perpetue Appen-
dici e Codicilli Alle Leggi Italiane: le circolari ministeriali, il potere regolamentare e la politica del dirit- atos de instrução requeridos pelo Ministério Público959, o que não ocorria
to in Italia tra Ottocento e Novecento. Macerata: Università di Macerata, 2011. Ainda sobre as circulares
Cf NEPPI MODONA, Guido. Quali Giudici per Quale Giustizia nel Ventennio Fascista. In GARLATI, quando tais requerimentos fossem pleiteados pela defesa.
Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del Codice Rocco nella cultura processualpenalistica ita-
liana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 209-224. Segundo BEAULIEU, o regime desconfiava dos magistrados O rito previsto no código Rocco poderia ser descrito como “misto com
por serem expressão do liberalismo que se queria deixar para trás. BEAULIEU, Yannick. Toghe Nere:
potere politico e magistratura durante il fascismo. In Zarpruder. Storie in Movimento, 2009. p. 125. prevalências inquisitórias”960. A primeira fase do procedimento era a chamada
951. MENICONI, Antonella. La Magistratura e la Politica della Giustizia Durante il Fascismo Attraverso le
Strutture del Ministero della Giustizia. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione fase preliminar, destinada a obter os elementos que por seu turno susten-
nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 80.
952. MENICONI, Antonella. La Magistratura e la Politica della Giustizia Durante il Fascismo Attraverso le
tariam a formulação da ação penal. A investigação preliminar em sentido
Strutture del Ministero della Giustizia. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione estrito se dividia em instrução formal e sumária. Aqui, o objeto era valorar os
nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 81.
953. MENICONI, Antonella. La Magistratura e la Politica della Giustizia Durante il Fascismo Attraverso le
Strutture del Ministero della Giustizia. In LACCHÈ, Luigi. Il Diritto del Duce: giustizia e repressione 957. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della
nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. 81. Giustizia. v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 991.
954. ROCCO, Alfredo. Atti Parlamentari. Camera dei Deputati. Leg. XXVIII. Roma, 1929. p.311. 958. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. t. I. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000. p. 77.
955. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della 959. TRANCHINA, Giovanni. I Rapporti tra Giudice Istruttore e Pubblico Ministero Nell’Impianto Originario
Giustizia. v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 990. del Codice Rocco. In Rivista di Diritto Processuale. a. XXXVII. N. 3. Padova: CEDAM, 1982. p. 430.
956. SBRICCOLI, Mario. Codificazione Civile e Penale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della 960. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel
Giustizia. v. II. Milano: Giuffrè, 2009. p. 990. c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p. 191.
284 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 285

elementos encontrados a fim de pronunciar ou não o acusado, submetendo-o judiciária fosse “evidente”. De acordo com o art. 389 do código Rocco, ca-
ao processo. Caso o Ministério Público entendesse não haver provas contra beria a instrução sumária quando o imputado fosse preso em flagrante, ou
o investigado, poderia propor diretamente o arquivamento, sem qualquer quando cometesse crime enquanto era detido, preso ou internado por medida
espécie de controle pela autoridade judicial (art. 74, § 3º do CPPi). Após a de segurança. Ainda, caberia a instrução sumária quando o imputado confes-
pronúncia tinha lugar a instrução processual (dibattimento), onde se discu- sasse e o acusador entendesse não serem necessários novos elementos para ser
tiam as provas e ao fim, se prolatava a sentença. recolhidos. Por fim, esta modalidade também teria lugar no procedimento
da corte d’assise (escabinato – órgão misto composto por juízes togados e ju-
2.5.1. A INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR (ISTRUZIONE FORMALE rados), responsável pelo julgamento de crimes considerados graves ou ainda,
E SOMMARIA): OS PODERES EXCESSIVOS DO MINISTÉRIO na competência de outros tribunais quando a prova fosse evidente. O que
PÚBLICO, O SEGREDO INSTRUTÓRIO E A AUDÊNCIA DE pode ser facilmente verificado é a ampla liberdade conferida ao Ministério
DEFENSOR Público, que diante de um quadro normativo tão maleável, se torna detentor
O coração do processo penal do código Rocco é o procedimento da fase da escolha sobre o rito da investigação preliminar.
instrutória, pré-judicial (investigação preliminar). O fundamento político da Neste ponto, se verifica a ausência de uma clara separação de funções.
investigação pode ser encontrado em um notável processualista deste período, Tanto o Ministério Público, que se tornava um julgador, quanto o juiz, que
afeiçoado ao programa autoritário do código Rocco. DE MARSICO sustenta se tornava um acusador, são marcas de uma “promiscuidade funcional”, tra-
que os motivos principais para uma fase de instrução são: a) a necessidade de tando de gerir, secretamente962, a prova, garantindo uma celeridade que não
se recolher as provas do crime com celeridade, que nem sempre se concilia se adequava muito bem à formalidade que o rito deveria possuir963.
com as formas solenes da fase judicial; b) a necessidade de escolher dentre as DE MARSICO afirmará que “um antigo apotegma, enunciado es-
hipóteses contrastantes, aquela mais firme de acordo com os elementos de pecialmente pela doutrina francesa, fala de um Ministério Público ‘uno e
informação obtidos; c) a importância do interesse individual, que posterior- indivisível’. Estas duas características são claramente desmentidas pela reali-
mente se transforma em interesse social, de evitar o processamento de alguém dade”964. A razão residiria no fato de que o Ministério Público é informado
sem os mínimos indícios; d) a necessidade de se obter as provas através de um por outros dois princípios: a) o da dependência hierárquica (do Ministro da
procedimento menos formal e mais rápido do que a instrução judicial; e) tais Justiça); b) o da especificação da competência965.
medidas, naturalmente, exigem o sacrifício do contraditório e a utilização do Antes da instrução, o Ministério Público tinha funções de polícia
segredo como técnicas procedimentais. DE MARSICO observa que não con- judiciária, pois tinha competência para executar atos de conservação e de
corda com esta limitação, muito embora considere a análise crítica um tema investigação, e de acordo com o art. 232 do código Rocco966, acabava gerando
de política legislativa, matéria estranha, portanto, ao seu mister961 (seguindo uma hipertrofia da função ministerial bem como a degeneração da própria
as recomendações de Arturo ROCCO em sua famosa conferência de 1910). instrução, por conta da função jurisdicional assumida pelo Ministério Público
A investigação preliminar se dividia, como referido, em instrução formal na instrução sumária. A justificativa para tanto era a fórmula vazia da “parte
e instrução sumária. Ao contrário do que poderia induzir a etimologia, ins- imparcial” e que foram formidavelmente criticada por CARNELUTTI967,
trução “formal” e “sumária” não se distinguiam por uma maior ou menor
962. DEZZA, Ettore. Lezioni di Storia del Processo Penale. Pavia: Pavia University Press, 2013. p. 140.
celeridade processual. Mas apenas a partir do sujeito que as conduzia: na 963. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel
c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p. 192.
instrução formal, a competência para a condução do procedimento era do 964. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 71.
juiz; na sumária, era do Ministério Público. O Ministério Público poderia 965. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 71.
proceder através da instrução sumária quando a prova recolhida pela polícia 966. Art. 232 CPPi: “o acusador antes de requerer a instrução formal ou antes de iniciar a instrução sumária
pode proceder a atos de polícia judiciária diretamente ou por meio dos oficiais de polícia judiciária”.
967. Cf CARNELUTTI, Francesco. Mettere il Pubblico Ministero al suo Posto. In Rivista di Diritto Proces-
961. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 160. suale. v. VIII. Padova: CEDAM, 1953. p.257-264.
286 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 287

mas que era realçada pelo tecnicismo-jurídico autoritário e transparecia dos use então na instrução judicial, em vestes de parte, as provas que produziu na
diversos institutos processuais do Código Rocco. Um retorno à DE MAR- instrução pré-processual, como se fosse um juiz. Eis a instrução sumária, cuja
vantagem sobre a forma consiste, segundo uma definição involuntariamente
SICO parece fundamental, no escopo de orientar o sentido assumido pela humorística, em empenhar o trabalho de apenas um magistrado ao invés de
noção de “parte imparcial”. dois. Por que não atribuir ao Ministério Público também o poder de decidir?
Para o processualista, nada obstaria que fosse estendido ao Ministério A economia de tempo e trabalho processuais seriam ainda maiores”971
Público o conceito de parte em sentido material, sempre dentro dos limites CORDERO afirma que em um sistema que atribuía autoridade ao
da indisponibilidade da ação penal. O Ministério Público, diferentemente juiz como valor preponderante, para o qual concorria a cultura oficial,
do acusado, não postularia em nome próprio, mas em nome do Estado que teorizando sobre o Estado ético, parece óbvio que tais influências seriam
ele representa. No código atual, afirma DE MARSICO, o Ministério Pú- sentidas no processo penal, espelho das orientações políticas e da estrutura
blico é parte pública. Assim, não deve ser o concreto e empírico princípio constitucional972. A prática do contraditório é infensa aos regimes autori-
da parcialidade ou “partianigerìa”, mas o conteúdo propriamente jurídico tários, cujo clima prefere a mística ao processo dialético, que tem como
que resulta da titularidade de direitos próprios sobre o conteúdo material vantagem causar menos fadiga intelectual973.
ou formal do processo que deve ser analisado. O Ministério Público, nestes Além de ausentes o contraditório e o defensor na investigação pre-
termos, é manifestação de uma dupla função estatal: aquela de promover a liminar, quer a instrução formal, quer a sumária, havia ainda o segredo.
persecução do réu, através da opinio delicti, e aquela de julgar. Tanto o juiz Interessante era o argumento em torno do segredo durante a investigação
como o Ministério Público fazem atuar o direito objetivo, mas com atribui- preliminar. Afirmava-se que o segredo tinha uma função de “garantia”, pois
ções diversas968. Desta forma, como conclusão, DE MARSICO afirma que regulava o andamento processual e mantinha a independência funcional,
“imputado e Ministério Público são partes no processo penal; parte é aquele além de zelar pelo “bom nome dos cidadãos”974. Seria possível afirmar-se, de
que, nos limites fixados pela indisponibilidade da ação penal, tem poderes acordo com FERRAJOLI, que havia aqui uma “meia publicidade”, assegurada
de disposição sobre o objeto da ação ou sobre qualquer aspecto desta e, em pelo “processo misto”: este hibridismo processual comportava para o acusado,
correlação a tais poderes, sobre o seu conteúdo formal”969. todas as desvantagens do segredo e da publicidade. O rumor sobre o processo,
Enfim, como parte sui generis (MANZINI970), em sentido formal (posto em uma relação entre a imprensa e a atividade investigativa era inversamente
que atuava para a satisfação de um interesse alheio), pública, e que tinha a proporcional ao conhecimento do acusado sobre os elementos constantes nos
função de buscar a verdade, já que agia em nome do Estado, o Ministério autos. Esta “meia publicidade” do processo misto comportava a publicidade
Público era investido de enormes poderes, capazes de criar uma desigualdade das acusações (incriminação, privação de liberdade) mas não a defesa975.
estruturante na fase da investigação preliminar. De acordo com MELE, o código de 1930, em seu art. 304 se limitava a
exigir a indicação, pelo investigado, do nome do defensor de confiança. Este
Neste ponto, a crítica de CORDERO parece insuperável:
defensor não possuía conhecimento do processo, limitando-se a apresentar
“suponhamos agora que o juiz instrutor seja tolhido de meios e que os seus
requerimentos e memoriais (que em contrapartida não obrigavam o julgador).
poderes sejam fagocitados pelo Ministério Público; que a tríade então se
reduza a uma díade na qual, o Ministério Público, que é uma parte, aja como Contudo, tais faculdades não quebravam o segredo instrutório durante a
se fosse também um juiz; que ele busque e produza as provas em absoluta investigação, ficando o advogado refém de sua intuição pessoal, da confiança
solidão e depois requeira ao juiz instrutor para pronunciar o imputado ou ao do cliente e de “conversas de corredor”976.
juiz da instrução judicial para lhe citar (requerimento, este imperativo); e que
971. CORDERO, Franco. Ideologie del Processo Penale. Milano: Giufrè, 1966. p. 05.
968. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 972. CORDERO, Franco. Ideologie del Processo Penale. Milano: Giufrè, 1966. p. 06.
32-34. 973. CORDERO, Franco. Ideologie del Processo Penale. Milano: Giufrè, 1966. p. 06.
969. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 34. 974. ALOISI, Ugo. Manuale Pratico di Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1943.
970. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. II. Torino: 975. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. 6 ed Madrid: Trotta, 2004. p. 618.
Torinese, 1952. p.228. 976. MELE, Vittorio. Il Segreto Istruttorio. Napoli: Eugenio Jovene, 1959. p. 114.
288 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 289

Como se pode perceber, a “garantia” do segredo também exigia o sacrifí- 468 do Código Rocco, a defesa não poderia retomar o seu discurso em caso
cio do direito de ser assistido materialmente por um defensor. O pensamento de fracionamento de audiências983. O código Rocco, além disso, no mesmo
processualista dominante na Itália à época distinguia entre defesa e defensor: dispositivo, assegurava a palavra ao defensor por último, apenas em caso de
admitia-se a defesa, não o defensor. Um dos argumentos mais interessantes requerimento da parte interessada984. Tudo no escopo de se garantir celeridade
para justificar a ausência do defensor – além da diferença “técnica” entre as ao procedimento. Neste sentido, pode-se citar GRISPIGNI, ao elogiar a es-
duas figuras – repousava na circunstância de que, durante o código de 1913, trutura do Código (novamente demonstrando os estreitos laços da concepção
ser assistido por um defensor resultava em um privilégio que poucos gozavam, processual entre tecnicistas e positivistas)985, que havia abolido os escandalosos
já que a maioria da população não tinha condições econômicas de contratar excessos que causavam vergonha ao juízo processual penal italiano.
um profissional. Assim, na realidade, a previsão de um defensor era mera letra O advogado era considerado um auxiliar e colaborador da justiça, re-
morta977, que concernia a apenas uma elite. comendando-se que não assumisse a defesa de indivíduos inequivocamente
O código Rocco avançou tanto no campo da defenestração do direito culpados de um crime repugnante ou perigoso para a ordem social e política986.
de defesa que um autor como GRISPIGNI, (um positivista com lampejos No campo da estrutura processual, a presença do defensor estava excluí-
tecnicistas e que compreende perfeitamente conciliável a sua doutrina com da da fase preliminar, aparecendo unicamente na fase de instrução (judicial).
a política fascista) afirmará que o código, no intuito de reagir aos supostos Contudo, era justamente na fase preliminar onde eram produzidas as provas
excessos de garantismo do código de 1913, acabava por cair justamente no por excelência, já que havia a previsão de uma extensa lista de hipóteses de
polo oposto, o de relativizar os direitos de defesa978. A relativização dos direitos leituras na fase instrutória987.
de defesa também atingia a fase judicial, que autorizava o juiz a conceder o
Em síntese, a investigação preliminar era o coração do processo penal.
tempo de fala ao defensor pelo período que entendesse adequado – e se isto
Absolutamente inquisitória, pois contava com atuação de ofício dos órgãos
fosse adequado! A justificativa para tanto residia, como pode ser constatado
(seja o juiz, seja o Ministério Público), não era admitido o defensor, para
no projeto definitivo do código, em “estabelecer freios à incontinência orató-
além de uma formal e vazia atuação. Além disso, a investigação preliminar,
ria” dos advogados979. Sobre a necessidade de se reduzir a “oratória forense”,
secreta, praticamente inviabilizava a defesa, já que os elementos de convicção
vale a pena reproduzir o pensamento de MANZINI, que sustentava que
seriam ali produzidos. A automatização das prisões cautelares terminava por
ela não passava de “passatempo para intelectualoides pequeno-burgueses, na
dar o tom da investigação. Sob o argumento do sistema misto, de inspiração
verdade tediosíssimos, de todo inócuos para os interesses públicos e também
napoleônica e autoritária, o inquisitório era recepcionado pelo fascismo e
para os privados que têm o bom gosto e a prudência de evitar-lhes”980.
justificado pela “tradição italiana”.
Na estrutura do código, o tempo da defesa (oral) a ser realizada pelo
Por seu turno a instrução judicial (dibattimento) estava baseada na
defensor poderia ser limitado de acordo com o entendimento do juiz (baseado
na desigualdade existente entre Ministério Público e defensor981). Ultrapassar ou pelo pretor. Se o defensor prolonga o seu discurso além do prazo, o presidente ou o pretor o convida
o tempo destinado pelo juiz equivalia à perda da palavra982. Além disso, no art. a concluir, e em caso de persistência, se lhe tolhe a faculdade de falar.
983. Art. 468 CPPI “(...) um discurso não pode ser jamais continuado em uma audiência sucessiva e nenhum
defensor, convidado pelo presidente ou pelo pretor, pode se recusar a falar quando faltam duas horas
977. ALOISI, Ugo. Manuale Pratico di Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1943. p. 288-290. para o fim da audiência, segundo o horário normal. Em tal caso, a audiência é prolongada para o tempo
978. Afirma GRISPIGNI que Foi-se muito além em retirar as garantias de defesa do impiutado, através do necessário para terminar o discurso, observando-se sempre as disposições do parágrafo precedente.
sistema de nulidades. Esquece-se que a absolvição de um inocente também constitui um interesse do 984. Art. 468 CPPI: (...) o imputado e o defensor, sob pena de nulidade, devem ter a última palavra, se a
Estado. GRISPIGNI, Filippo. Diritto Processuale Penale. Roma: Unione Tipografica, 1942. p. 08. demandam; mas apenas para breves declarações relativas exclusivamente ao objeto da defesa.
979. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Definitivo. In Lavori Preparatori al Codice 985. GRISPIGNI, Filippo. Sul Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Procedura Penale. In Scuola
Penale e del Codice di Procedura Penale. v. X. Roma, 1929. p. 07. Positiva, 1930. p. 2.
980. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. II. Torino: 986. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel
Torinese, 1952. p. 473. c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. MILETTI, Marco Nicola. Le Ali Ripiegate. Il Modello di
981. LONGHI, Silvio. La Difesa nel Nuovo Codice Penale. In Rivista Penale, 1931. p. 225-232. Para o autor, Avvocato Fascista nel Codice di Procedura Penale Italiano. In Acta Histriae. n. 16, 2008.
a igualdade se realizava tratando diversamente os desiguais: no caso, Ministério Público e defensor. 987. FERRUA, Paolo. Dal Codice di Rito del 1913 al Codice del 1930. In VINCIGUERRA, Sergio. Il Codi-
982. Art. 468 CPPI: (...) nenhum defensor pode falar por um tempo superior àquele fixado pelo presidente ce Penale per il Regno d’Italia. Padova: CEDAM, 2010. p. 246.
290 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 291

oralidade, já que o juiz decidia apenas com o recurso às provas produzidas ele então, poderia indicar as provas em seu favor993.
diante dele, em juízo. Contudo, era admitida a consulta e a leitura do fascí- Segundo VASSALI, se tratava de um modelo tipicamente inquisitório,
culo da instrução (formal ou sumária, bem como do fascículo consultivo da posto que a prova – recolhida em segredo na instrução, contaminava todo o
polícia judiciária). A oralidade era entendida (como continua sendo com- processo994. Como demonstrou de forma irretorquível COUTINHO, este
preendida no Brasil), como imediação. Isto significa dizer que a oralidade sistema “misto” é na verdade, um sistema inquisitório.
vinha garantida mediante a mera leitura dos atos da instrução formal ou
sumária. Assim, a fase judicial se tornava o “meio através do qual se oralizam 2.5.2. A COMPREENSÃO DO DIREITO À LIBERDADE E A
os atos escritos”988. Como acentua FERRUA, havia ali o comprometimento CUSTÓDIA PREVENTIVA: LINHAS GERAIS995
de qualquer pretensão acusatória, confirmando o espírito autoritário que O Código Rocco partia da concepção de que o direito à liberdade era
havia conduzido a reforma do código Rocco989. um direito concedido pelo Estado. Portanto, passível de ser reduzido ou
Evidentemente que então a centralidade da fase judicial era deslocada relativizado. Os direitos individuais, então, eram subordinados aos interesses
para a da investigação preliminar, repristinando os velhos cânones do Code da defesa social, já que o Estado fascista, diferenciando-se do Estado demo-
de 1808. A relação entre investigação preliminar e instrução judicial se torna crático-liberal, não respeitava direitos pré-adquiridos, mas eles eram apenas
um quebra-cabeças: se se considerasse juridicamente irrelevante a atividade uma concessão do Estado, acordada no interesse da coletividade996.
instrutória da investigação, o meio se tornaria exorbitante relativamente à sua Segundo Alfredo ROCCO, em sintonia com o referido por MANZINI, o
finalidade; admitindo-se a relevância da investigação na instrução judicial, fascismo havia substituído o dogma liberal da “sociedade para o indivíduo” pela
ela acaba se transformando em um torneio oratório sobre os resultados da máxima do “indivíduo para a sociedade”. Para Alfredo ROCCO, o indivíduo
fase anterior990. “Este é o preço da tentativa de uma impossível conciliação não era assimilado pela sociedade: apenas lhe era subordinado997. Neste tom,
de opostos: a ideia de um processo em dois tempos – inquisitório o primeiro não seria difícil enxergar o papel reservado às cautelares no processo penal de
e acusatório o segundo – repugna a razão”991. 1930. O código, na parte II do livro II, que cuida da investigação preliminar,
A possibilidade de leitura dos fascículos adquiridos na fase pré-judicial tratar de dispor sobre a “liberdade pessoal do imputado”. Era fundamental para
acabava por contaminar a formação da prova (e é claro, a plenitude do sentido o código definir o status do imputado, desde a fase investigatória.
relativo à oralidade). O resultado era a indistinção entre as fases de investiga- Nos trabalhos preparatórios ao código de processo penal, afirma-se que
ção preliminar e aquela judicial, “forjando uma ideia de unidade de todo o a matéria concernente à liberdade pessoal do imputado foi regulada na parte
procedimento”992. O contraditório era reinterpretado por MANZINI, um
993. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. I. Torino:
mestre na torsão autoritária das categorias processuais. Para o autor, o con- Torinese, 1952. p. 200.
traditório não requereria a necessidade de um debate direto entre acusação e 994. VASSALI, Giuliano. Introduzione. In GARLATI, Loredana. L’Inconscio Inquisitorio: l’eredità del có-
dice Rocco nella cultura processualpenalistica italiana. Milano: Giuffrè, 2010. p. 14.
defesa, mas apenas a contraposição de elementos de acusação e de exculpação, 995. O tema da prisão preventiva, além de ser fascinante, constitui-se, em nosso sentir, em capítulo dema-
siado importante para uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal. Neste subtópico, não
que se verificava na prática do interrogatório, diante de um juiz instrutor será aprofundado o sistema do Código Rocco nem a circulação de significantes vitais à construção de
garantidor da imparcialidade na produção das provas. Era justamente no seu sistema. Basta, para este estudo inicial e geral, trazer à tona as linhas gerais. O objetivo é no futuro
escrever um estudo específico sobre a prisão cautelar, pelo que não vemos razão para ampliar ainda mais
interrogatório que se apresentavam as provas contra o imputado e quando a discussão neste momento.
996. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. I. Torino:
Torinese, 1952. p. 183.
988. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. IV. Torino: 997. ROCCO, Alfredo. La Dottrina del Fascismo ed il suo Posto nella Storia del Pensiero Politico. Milano:
Torinese, 1952. p. 346. La Periodica Lombarda, 1925. p. 12-13. Disponível em https://fedoradev.cab.unipd.it/fedora/get/o:55376/
989. FERRUA, Paolo. Oralità del Giudizio e Letture de Deposizioni Testimoniali. Milano, 1981. p. 264-265. bdef:Book/view#page/16/mode/2up. Acesso em 29.01.2017. Ainda, de acordo com Rocco, o fascismo crê
que devam concorrer as condições para o livre desenvolvimento das faculdades do indivíduo: mas isso
990. CORDERO, Franco. Ideologie del Processo Penale. Milano: Giuffrè, 1966. p. 154. não significa que o Estado fascista reconheça um direito à liberdade, mas que o desenvolvimento da perso-
991. CORDERO, Franco. Ideologie del Processo Penale. Milano: Giuffrè, 1966. p. 155. nalidade humana é interesse do Estado. ROCCO, Alfredo. La Dottrina del Fascismo ed il suo Posto nella
992. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel Storia del Pensiero Politico. Milano: La Periodica Lombarda, 1925. Disponível em https://fedoradev.cab.
c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p. 195. unipd.it/fedora/get/o:55376/bdef:Book/view#page/16/mode/2up. Acesso em 29.01.2017.
292 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 293

II do título relativo aos atos preliminares da investigação (diferentemente do Quanto ao regime da liberdade provisória, MANZINI define como
código de 1913998), porque tal criterio atende não apenas ao aspecto cronoló- um “benefício”, reconhecido pela lei, e aplicado discricionariamente pelo
gico dos atos, mas especialmente ao critério substancial, que exige que desde juiz dentro destes limites. Trata-se, continua MANZINI, de uma renúncia
o princípio seja definida a condição jurídica do imputado relativamente à ao poder do Estado de manter a custódia preventiva, que atuaria por meio
sua liberdade pessoal. Na continuidade dos trabalhos preparatórios se afirma: de seu órgão jurisdicional1003.
“na delicadíssima matéria da prisão, como em geral em toda aquela concernente Interessante notar-se que MANZINI utiliza a fórmula da acessoriedade
à liberdade pessoal do imputado, a reforma é inspirada em dois princípios ti- ao processo penal (que CALAMANDREI designará como instrumentali-
picamente fascistas: aquele da mais inflexível severidade para aqueles que não
dade) para designar a “coerção pessoal”. Segundo MANZINI, o interesse
merecem quaisquer considerações, e aquele de uma iluminada humanidade
para aqueles os quais, por particulares condições pessoais ou pelas circunstân- geral na aplicação destas medidas é assegurar a presença do acusado nos
cias do fato, a equidade aconselha um tratamento mais benevolente”999. atos processuais e garantir a sua disponibilidade para execução da conde-
Novamente é possível se encontrar os traços do positivismo criminológi- nação1004. Estas medidas de coação pessoal recebem o nome de mandados
co, que faz penetrar no sistema, organizando-o, a diferença entre “criminosos (de comparecimento, de acompanhamento, de prisão ou de captura), que
habituais ou profissionais” e criminosos ocasionais, o que marca claramente podem ser decretados pelo juiz ou pelo Ministério Público. A prisão sem
as bases das cautelares. mandado apenas seria possível nos casos expressos pela lei. A detenção
depende da iniciativa da polícia. Para MANZINI – um grande alquimista
Segundo CORDERO, nas antípodas da filosofia inquisitória, no sistema
semântico, no melhor estilo orwelliano (“liberdade é escravidão) – o código
adversarial inglês, uma custódia legal do imputado é acidental. Neste modelo,
de 1930 tratava de atenuar a coerção sobre o imputado, tutelando a liber-
ao detido compete um right to bail (liberdade provisória) independentemente
dade pessoal do acusado de forma mais eficaz1005. Três seriam as expressões
do crime1000. Desde 1913, Vincenzo MANZINI, exemplo da cultura pena-
da coação pessoal do acusado no código de 1930: a) os mandados judiciais
lística e reacionária, ironiza a “ideia paradoxal” de que qualquer um possa ser
e as ordenações do Ministério Público contra o imputado; b) a prisão sem
presumido inocente até o momento em que um homem de toga o interrogue.
mandado e a detenção da polícia judiciária; c) a custódia preventiva.
A influência do juspublicismo italiano do século XIX é manifesta no
A disciplina dos mandados judiciais e das ordenações do Minis-
discurso de MANZINI. Segundo o autor, a custódia preventiva não possui
tério Público se regia de acordo com os seguintes termos, sucintamente
natureza jurisdicional, mas administrativa-processual, assim como as medidas
apresentados1006:
de segurança previstas na lei penal1001. Continua MANZINI afirmando que
o código de processo penal de 1913 acolheu um sistema no qual, se a inves- O pressuposto para a decretação de um mandado ou ordenação é a
tigação se prolongava para além de determinado prazo, o acusado deveria ser necessidade de demonstração da suficiência de indícios contra o imputado.
solto. Entretanto, este sistema “aconselhou o legislador de 1930” (o próprio Este juízo é produto de uma valoração fática, que pode ser provada através de
MANZINI, que redigiu o código) a aboli-lo. Assim, substituiu-se dito sistema depoimentos testemunhais, confissão, documentos, e também por elementos
por outras garantias, consistentes no poder de vigilância sobre as investigações “mais díspares” como informações da autoridade, por declarações circunstan-
e a eventual aplicação de sanções disciplinares ao investigador moroso1002. ciais do ofendido ou por nexos de verossimilhança1007. Ainda de acordo com
MANZINI, “alguns se atrevem a sustentar que o imputado, ou seja, aquele
998. O que já indica a relevância assumida por esta figura na disciplina do código Rocco.
999. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Pro- 1003. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p.
cedura Penale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. 1004. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 554.
Roma: 1929. p. 1005. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 556.
1000. CORDERO, Franco. Guida Alla procedura Penale. Torino: UTET, 1986. p. 256-257. 1006. Toda a apresentação descritiva segue aquela de MANZINI. Para evitar frequentes citações, todos os
1001. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 629- argumentos podem ser encontrados em MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t.
630. 661-662. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 566 – 584.
1002. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 642. 1007. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 559.
294 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 295

contra quem concorrem indícios de delinquência, se deve presumir inocen- facultativo); f ) pelo juiz instrutor, quando reconheça peritos, testemunhas ou
te”1008. As formas dos mandados são quatro: mandados de comparecimento, intérpretes falsos ou reticentes; g) pelo presidente ou pelo pretor que dirige a
de acompanhamento, de prisão e de captura. O mandado de comparecimento instrução judicial quando verifica peritos, testemunhas ou intérpretes falsos
equivale a um mandado de citação, ordenando que o acusado se apresente vo- ou reticentes; h) pelo presidente ou pelo pretor quando se comete um delito
luntariamente em dia e hora designados pela autoridade judicial. Esta ordem em audiência (que deverá decretar a prisão em flagrante, ordenando a remis-
é sancionada através de um mandado de acompanhamento (uma espécie de são dos autos ao Ministério Público); i) pelo pretor, quando do debate em
condução coercitiva), desde que não ofereça o acusado uma justificativa pela audiência resultem indícios de prática de outros delitos pelo acusado.
não apresentação diante da autoridade judiciária. A finalidade do mandado Por fim, temos o mandado de captura, que é uma ordem judicial ou do
de comparecimento é o interrogatório do imputado ou outros atos instrutó- Ministério Público endereçada aos oficiais da força pública para prender o
rios. O mandado de acompanhamento consiste em uma ordem judicial ou imputado, viando a atender a finalidades processuais ou ainda, para assegurar
do Ministério Público endereçado aos oficiais de polícia ou da força pública a execução da pena. O mandado de captura é, na esteira do código de 1930,
para que conduzam à sua presença o imputado mediante o emprego de força. um “ato normalmente necessário para que uma pessoa possa ser presa para
Durante a investigação, o mandado de comparecimento pode ser utilizado: fins de processo penal”1009. O mandado pode ser ordenado na fase de investi-
a) como primeiro ato para apresentação do imputado; b) como posterior ao gação, na fase preliminar à instrução ou ainda, na própria instrução judicial.
mandado de comparecimento (falta de justificativa do imputado sobre a sua O mandado é obrigatório em uma lista de crimes (como por exemplo, crimes
não apresentação); c) em substituição ao mandado de captura; d) durante a contra a personalidade do Estado; homicídio doloso, consumado ou tentado;
fase judicial, pelo presidente ou pretor, para proceder em casos de reconheci- delito que a lei preveja reclusão entre 5 e 10 anos ou pena mais grave; quando
mento ou acareação. O terceiro caso é o mandado de prisão, consistente em o acusado for acusado de crime doloso ou preterintencional e ele foi: decla-
uma ordem judicial endereçada à autoridade executiva que deve prender o rado “delinquente habitual, profissional ou por tendência; quando ele está
imputado para fins do processo penal. Este mandado, em comparação com o atualmente em uma colônia agrícola ou casa de trabalho ou finalmente, está
mandado de captura, tem o caráter de provisoriedade (preparatório ao de cap- submetido à liberdade vigiada). O mandado é obrigatório ainda quando o
tura). Trata-se de casos em que, apesar de o mandado de captura ser legítimo, imputado tentou fugir (em casos de crimes em que o mandado seria facultati-
falta competência ao juiz ou ao promotor de justiça ou ainda, pelo fato de não vo); quando o imputado, logrado solto, descumpre as condições impostas no
terem se perfectibilizado ainda as condições para o mandado de captura ou regime da liberdade provisória; quando a legislação especial determine como
para garantir que o imputado não fuja à justiça. Os casos em que ele é cabível obrigatório o mandado. O mandado será facultativo quando a lei reconhece
são: a) quando o juiz declara a sua incompetência em razão da matéria (se o expressamente ao magistrado o poder de emiti-lo. O art. 254 do CPPi dispõe
imputado não está detido o juiz é obrigado a ordenar a detenção – art. 253) que o juiz deverá levar em conta as condições morais e sociais da pessoa e as
podendo também decretá-lo nos casos de mandado de prisão facultativa (art. circunstâncias do fato. A emissão do mandado é ainda facultativa nos casos: a)
254); b) quando declara a incompetência em razão de competência especial de crime doloso ou preterintencional, em que a lei fixa a pena entre 1 a 3 anos
(o magistrado então tem a obrigação de ordenar a detenção do imputado de reclusão; b) de crime doloso ou preterintencional em que a lei fixe a pena
se ele estiver solto); c) em caso de incompetência em razão do território (o de reclusão em pelo menos 15 dias contra o imputado nos casos: em que ele
juiz tem a obrigação de decretá-lo em caso de soltura do imputado); d) pelo foi mais de duas vezes condenado por crime não culposo; condenado nova-
pretor, quando recebe notícia-crime em casos que fogem à sua competência mente por crime de “mesma índole”; não possua residência fixa no território
(neste caso há facultatividade); e) pelo juiz instrutor, quando cumpre atos fora do Estado; tenha fugido ou esteja na iminência de fugir; c) de delito culposo
da própria competência sem a intervenção do Ministério Público (mandado que a lei estabeleça pena entre 2 a 5 anos; d) de contravenção em que a lei

1008. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 559. 1009. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 577.
296 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 297

preveja pena de detenção quando o imputado foi declarado delinquente pro- O sistema de coação pessoal também é constituído pela prisão em
fissional, habitual ou por tendência ou contraventor habitual ou profissional; flagrante, que autoriza a polícia a efetuar a prisão sem mandado. Fora da
e) de delitos previstos em lei especial, que admitem o mandado de captura. flagrância ou da quase-flagrância, a prisão é autorizada apenas no caso da
Relativamente à valoração moral e pessoal, que cuida do mandado de “detenção”1011. O flagrante é definido no art. 235 do código Rocco: “os
captura, segundo MANZINI, se trata de uma “humaníssima disposição”, já oficiais e os agentes da polícia judiciária e da força pública devem prender
que o “magistrado moderno não deve se conduzir por criterios policialescos, qualquer um que seja pego em flagrante por um delito contra a persona-
precisamente por que é magistrado. Esta matéria deve ser conduzida pelo lidade do Estado, punível com pena detentiva ou mais grave, ou de um
critério da necessidade”. Vejamos as palavras de MANZINI para justificar outro delito para o qual a lei estabelece a pena de reclusão superior a um
as balizas do mandado de captura, no que disciplina as “qualidades morais e ano ou mais grave. Devem outrossim proceder à prisão de quem foi decla-
sociais” do imputado. Na Relazione Sul Progetto Definitivo, MANZINI critica rado delinquente habitual, profissional ou por tendência, ou se encontra
a“aversão” de parte da doutrina ao uso das “qualidades sociais” do acusado submetido à medida de segurança pessoal, dos ociosos e dos mendigos,
como fundamento da custódia preventiva: daqueles que não têm residência fixa no território do Estado e daqueles que
“esta aversão provém um pouco do espírito do malentendido igualitarismo, já foram condenados à pena de reclusão ou a uma pena mais grave, quando
de quem nem sempre alguém consegue se desembaraçar: um pouco também são pegos em flagrante por quaisquer delitos puníveis com pena detentiva
devido ao falso pressuposto de que, ao mencionar as qualidades sociais, o ou pena mais grave”. O flagrante, de acordo com o art. 236, será facultativo
projeto se referisse à riqueza, à nobreza ou a outras condições análogas. O nos casos de crimes cuja penas não sejam superiores a 6 meses, de iniciativa
projeto alude, pelo contrário, às qualidades das quais se possa inferir que a
custódia preventiva (justificada exclusivamente pelo critério da necessidade)
de ação penal privada ou pela prática de contravenção.
não é necessária no caso concreto. E por que não haveriam de ser dignas de O sistema de determinação da prisão em flagrante é especificado no
consideração estas qualidades sociais, que constituem uma conquista do pen- art 337 do CPPi: “está em flagrante o crime que se está cometendo. O crime
samento e do trabalho individual, que mostram a utilidade social da pessoa,
que representam uma ascensão devida ao mérito pessoal e que podem con-
permanente está em flagrante até que seja cessada a sua permanência. Está
siderar-se frequentemente como as mais seguras garantias para a submissão em estado de flagrância quem é capturado ao cometer o crime. Considera-
de uma pessoa às exigências do procedimento penal? Não se compreende, se, também em estado de flagrância quem imediatamente, após o crime,
em verdade, por que em homenagem ao fetiche de um mecânico igualitaris- é perseguido pela força pública, pelo ofendido ou por outra pessoa, ou é
mo se deveria considerar ao possuidor de tais qualidades sociais no mesmo
surpreendido com coisas ou vestígios que façam presumir que ele acabou
plano que um inútil qualquer, que um parasita, uma pessoa malvivente, seja
rico ou pobre, nobre ou plebeu. Quem conquistou uma qualidade social de cometer o crime”. Vejamos, por seu turno, a definição de flagrante no
que implica não apenas mérito individual, mas também utilidade coletiva, atual código de processo penal brasileiro, em seu art 302: “considera-se em
é justo que seja tratado com certa consideração quando não tenha necessi- flagrante quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la;
dade de prover de outro modo, seja pela natureza do crime cometido, seja III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido, ou por qual-
por outras circunstâncias. Deste modo se tutela, juntamente com o interesse
individual, merecedor de consideração, o interesse público, relativo ao qual quer pessoa, em situação que faça presumir ser ele autor da infração; IV – é
não se convém dissimular o prestígio de funções ou profissões públicas ou encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papeis que
de honras públicas relativas à pessoa investida, mediante atos coercitivos façam presumir ser ele autor da infração”. Este artigo é ainda complementado
anteriores à declaração de certeza de sua culpabilidade e que se considerem pelo art. 303: “nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante
desnecessários no caso concreto. Ademais, a menção às qualidades sociais não
é uma particularidade do projeto de código de processo penal. Com efeito, delito enquanto não cessar a permanência”. Como se vê, a similitude entre
elas também são consideradas no projeto de código penal (art. 137, § 1º, n.
4; art. 133, § 4º), para julgar a capacidade para delinquuir”1010. Penale e del Codice di Procedura Penale. v. X. Roma, 1929. p. 41.
1011. Novamente neste caso utilizaremos o expediente de não se fazer citações repetidas vezes. Todos os ar-
gumentos e descrições poderão ser encontrados em MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal
1010. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Definitivo. In Lavori Preparatori al Codice Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 603 et seq.
298 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 299

os dispositivos processuais é cristalina. utilizada constantemente por Alfredo ROCCO e especialmente por MAN-
A detenção pela polícia tem por finalidade impedir a fuga de pessoas ZINI, a fim de não desagradar tanto os velhos liberais.
gravemente indiciadas por um delito no qual é obrigatório um mandado de
2.5.3. O SISTEMA DAS PROVAS: O PRINCÍPIO DA
captura e quando já transcorreu o período de flagrância do crime. Também tem
LIBERDADE DA PROVA1015
por finalidade garantir que a polícia recolha os elementos do delito. A medida
O Código Rocco não tratou de regular as provas no processo penal.
é apresentada como uma garantia, retórica peculiar ao discurso de MANZINI
Seria possível encontrar algum tipo de exame acerca das provas no II Livro,
e Alfredo ROCCO. Vejamos o teor da Relazione al Re, naquilo que concerne à
que cuida da instrução formal. Neste livro, a investigação preliminar (que
detenção: “este código acolhe e disciplina a detenção, não para criar um novo
não se confunde com a instrução processual) prevê algumas medidas que têm
instituto, mas para rodear de garantias um instituto que desde tempo imemorial
como destinatário a polícia judiciária (dentre elas assegurar o corpo de delito,
tinha sido acolhido pela prática como uma necessidade indiscutível e que não
a formação das informações sumárias, o sequestro de cartas sigilosas, a prisão
oferecia garantias suficientes para a liberdade pessoal. Não se pode admitir que
em flagrante do imputado, o interrogatório do flagrado, inspeções judiciais,
a matéria da detenção seja estranha ao processo penal, sendo mais oportuno
perícias, busca e apreensão, sequestro, oitiva de testemunhas, reconhecimen-
que o código se ocupe dela a fim de legalizá-la e impedir as arbitrariedades”1012.
tos e acareações, interrogatório do acusado). Tanto no que guarda relação
O sistema de coação pessoal do Código Rocco, como se pode facil- com as medidas de polícia judiciária quanto àquelas concernentes à instru-
mente perceber, está permeado pelo discurso positivista, num sincretismo ção formal (procedimento de competência do juiz, que de ofício investiga e
próprio do fascismo1013. A classificação de tipos de delinquentes percorre produz provas em sentido estrito) e à instrução sumária (de competência do
os institutos. A regra é a prisão, considerando a ampla gama de casos nos Ministério Público, nos casos determinados pela legislação, que de maneira
quais ela aparece de forma obrigatória ou facultativa. A menção às condições similar ao juiz, poderá instruir – leia-se produzir provas de ofício e deliberar
sociais trata de garantir a regra da criminalização seletiva, reproduzindo as sobre o estado de liberdade do acusado).
convergências do liberalismo reacionário com o positivismo criminológico.
É imperioso notar-se que apesar de o código registrar número determi-
Aliás, a distinção entre “malfeitores” e “cavalheiros” já estava presente na
nado de meios probatórios expressamente previstos, a discussão doutrinária
doutrina e práticas que datam da passagem do século XIX ao XX na Itália,
caminhava (a exemplo da brasileira), no sentido de se admitir qualquer
como destaca LACCHÉ1014.
espécie de meio probatório. Bastaria que a prova não fosse proibida pela lei.
Apesar de certa contiguidade discursiva com o liberalismo reacionário Assim, afirma-se o princípio da “liberdade da prova”. Vale a pena trazer à
que marcou a passagem ao código Finochiaro-Aprile (1913) e as suas críticas colação o pensamento de FLORIAN, ao tratar do tema. Em seu Principi di
posteriores, o código Rocco inova profundamente no sentido de ampliar a Diritto Processuale Penale, o processualista afirmará que o princípio da liber-
repressão através do sistema das prisões de natureza cautelar. Talvez a grande dade da prova deve ser entendido em um duplo sentido: “a) no sentido do
marca de um regime autoritário de processo penal possa ser mais facilmen- objeto; b) no sentido dos meios”1016. Segundo FLORIAN, qualquer objeto
te identificada a partir dos usos atribuídos às prisões cautelares. O código pode ser trazido ao processo e através de qualquer meio, desde que não seja
Rocco radicaliza o semi-inquisitorialismo do código de 1913, produzindo vedado pela lei ou em relação à ela não se oponha. Este princípio, assim,
um imperativo de aprisionamento “cautelar”. Inclusive, sob o argumento de encontrará seu fundamento no “soberano princípio da busca da verdade
garantia ao acusado, o que se sabe, constitui-se como uma estratégia discursiva histórica e efetiva, que no processo impera”1017.
1012. ROCCO, Alfredo. Relazione al Re. In Gazzetta Ufficiale. Roma, 26 ottobre 1930 – VIII, n. 251. p.96. 1015. Para uma análise mais ampla e contemporânea do princípio da liberdade da prova Cf AMODIO, Ennio.
1013. BETTIOL, Giuseppe. Sulla “Nuova Difesa Sociale” Considerata da un Punto di Vista Cattolico. In Libertà e Legalità della Prova nella Disciplina della Testimonianza. In Rivista di Diritto e Procedura
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. a. VII. Fasc. 3. Giuffrè: Milano: 1964. p.673. Penale, 1973. p. 310-339.
1014. LACCHÈ, Luigi. La Giustizia per i Galantuomini: ordine e libertà nell’Italia liberale: il dibattito sul 1016. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 335.
carcere preventivo (1865-1913). Milano: Giuffrè, 1990. 1017. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 335.
300 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 301

Em homenagem à busca da verdade, o código Rocco ampliou os meios limitado determinados tipos de perícia. Especialmente aquelas psicológicas, an-
sobre os quais poderiam ser produzidas provas, assim como o seu objeto. tropológicas ou psiquiátricas, com o nítido sentido de que o processo penal não
Seriam proibições absolutas de prova (isto é, que de nenhuma forma po- fosse transformando em um local de debate das “ciências auxiliares” do direito
deriam ser feitas): a) boatos públicos; b) as presunções jure et de jure; c) a penal, que outrora simbolizavam a submissão do direito a outros sabres1022.
sentença emanada de juiz civil que julgou o mesmo tema. Por seu turno, A ausência de outro perito que não aquele indicado pelo juiz, somado ao
seriam proibições relativas de prova (que dependem do caso): a) prova de princípio do livre convencimento do magistrado, transformava-o em peritus
notificação de atos processuais penais (necessidade de certidão do oficial peritorum, o “perito dos peritos”1023. De acordo com FLORIAN, a liberdade
de justiça); b) provas documentais relativas ao estado da pessoa (devem ser do juiz se estende à perícia, assumindo dois aspectos. O primeiro significa
provadas através de documentos civis); c) prova de antecedentes criminais que o juiz, na amplitude de seu convencimento moral, não há obrigação de
(necessidade de certificação cartorária)1018. recorrer ao perito. Deverá recorrer à ele quando se tratar de prova técnica. Não
Quanto ao ônus da prova, o código Rocco não o disciplinava expressa- há dúvidas, afirma FLORIAN, de que este princípio é uma ilação do princípio
mente. De acordo com BETTIOL, não deveria haver distribuição de cargas do livre convencimento do juiz. Ao lado deste princípio, outro se encontra
probatórias no processo penal1019. Para o autor, caberia ao Ministério Público em estreita conexão lógica: a independência e liberdade do juiz na valoração
apresentar tanto os elementos de fato sobre os quais repousava a acusação, quanto da perícia, afirmando-se, genericamente, que o juiz é o perito dos peritos1024.
a inexistência de elementos obstativos à acusação, como as exculpantes1020. No que diz respeito à prova testemunhal, importante regra afirmava que
Além disso, consolidando a doutrina da época, o código de processo as pessoas próximas do acusado (ascendente, descendente, esposa, marido,
penal italiano de 1930 tratava da admissão das “provas indiciárias” (na ver- tios e sobrinhos) não estavam obrigadas a prestar o testemunho. A menos
dade, epistemologicamente, trata-se de um oxímoro). Além disso, no que que eles tenham sido os querelantes, partes civis ou noticiantes do crime ou
concerne às provas em espécie, existem algumas similitudes entre o código ainda, quando o crime tenha sido cometido contra outro parente próximo do
Rocco e o atual código de processo penal brasileiro. No que diz respeito à acusado e não seja possível obter a prova do crime de outro modo (Art. 350 do
perícia, o código Rocco suprimiu a figura do perito privado, que possuía CPPi). Assegura o artigo, ainda, que o juiz tem o dever de advertir as pessoas
previsão no código italiano de 1913, sob o argumento de que este trabalha- destacadas no artigo de sua faculdade de não depor. Além disso, como seria
ria para as partes, não podendo perfazer as funções públicas exigidas pela possível deduzir da estrutura avessa ao contraditório do código Rocco, não era
função (acertamento da verdade). proibida a utilização de declarações extrajudiciais dos parentes próximos do
Como visto, o enfeixamento de poderes do Ministério Público, na ins- imputado feitas a terceiros ou à própria polícia judiciária. Ingressava, assim,
trução formal ou sumária, fazia do procedimento uma zona de desigualdade. a prova de “ouvir dizer” (testemunha de auditu).
Natural que a perícia se concentrasse nesta fase. Na fase judicial, a regra era A testemunha de “ouvir dizer” não encontrava, na doutrina proces-
a inexistência de perícias, uma vez que se utilizavam os resultados daquelas sualística do período, grandes dificuldades de aceitação. Nas palavras de
obtidas no momento precedente. Admitia-se, portanto, a mera leitura das pe- CARNELUTTI, um “testemunho do testemunho” seria um ato jurídico per-
rícias realizadas na fase de instrução sumária ou formal, podendo ser os peritos feitamente válido”1025, já que não existem grandes diferenças entre prova direta
convocados para esclarecimento de dúvidas em juízo1021. O código Rocco havia
1022. MILETTI, Marco Nicola. La Follia nel Processo. Alienisti e Procedura Penale nell’Italia Postunitaria.
1018. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 337-338. In Acta Histriae. v. 15. n. 1, 2007. p. 329.
1019. BETTIOL, Giuseppe. La Regola In Dubio pro Reo nel Diritto e nel Processo Penal. In Rivista Italiana 1023. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. III. Torino:
di Diritto Penale, IX. 1937. p. 315. Torinese, 1952. p. 316. No mesmo sentido é o entendimento de Delogu. Cf DELOGU, Tullio. Potere
1020. BETTIOL, Giuseppe. La Regola In Dubio pro Reo nel Diritto e nel Processo Penal. In Rivista Italiana Discrezionale del Giudice Penale e Certeza del Diritto. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Pena-
di Diritto Penale, IX. 1937. p. 315. le. n. 2, v. 19, 1976. p. 390.
1021. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel 1024. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 408.
c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p. 212. 1025. CARNELUTTI, Francesco. Lições Sobre o Processo Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 2004. p. 280-284.
302 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 303

e indireta1026. O código atinha-se ao princípio exarado por CARNELUTTI, toleram, de regra, a exclusão de nenhum meio de prova da verdade real”1034.
para quem “a testemunha rende muito mais no gabinete do juiz instrutor do O código de 1930 aboliu as limitações probatórias conhecidas do código
que na sala de audiência pública”1027. de 1913. No art. 308 do código Rocco, a temática das provas foi disciplinada
Note-se que o mesmo valia para as declarações prestadas perante a polícia da seguinte forma: “as limitações que as leis civis estabelecem relativamente
judiciária, juiz instrutor (na instrução formal) ou Ministério Público (na ins- à prova não se observam no processo penal, excetuadas aquelas que concer-
trução sumária). Era suficiente que uma fonte de prova proibida aparecesse em nem ao estado das pessoas”. A justificativa, contida na Relazione Preliminare
juízo para que pudesse constituir-se como objeto da livre valoração judicial1028. al Codice di Procedura Penale cuida de diferenciar o processo civil do penal,
O interrogatório do acusado poderia se dar perante a polícia judiciária, com toda a repercussão que comumente a doutrina processual penal brasileira
durante a instrução e também na fase judicial. Largo setor doutrinário advertia contemporânea, de forma acrítica, alimenta1035.
que o acusado não poderia mentir, inclusive CARNELUTTI, ao considerar O princípio da “liberdade das provas” consistiu em uma importante
que a pena era uma expiação, que não lograva êxito caso o acusado insistisse ferramenta a serviço da estrutura arbitrária do código Rocco, que depositava
em mentir ou negar o fato. Para CARNELUTTI, o acusado era considerado enormes poderes nas mãos de juiz e do Ministério Público. A relação entre
“o princípe das provas”1029. O interrogatório do imputado equivalia, para o “verdade real” e “liberdade das provas” se estreita através de outro cânone: o
autor, ao testemunho de si mesmo. A tortura, para o processualista, deveria princípio do livre convencimento do magistrado”.
ser vista não apenas como um objeto para se atingir a verdade, mas como
uma verdadeira penitência1030. “Esta faceta espiritual de CARNELUTTI, em 2.5.4. O “LIVRE CONVENCIMENTO DO MAGISTRADO”1036
parte, explica suas oscilações entre um processo acusatório e inquisitório, o De acordo com FLORIAN, o princípio do livre convencimento
que permite, inclusive, entender por que a sua nominação para presidir a atravessa todo o código de processo penal de 1930. A liberdade da prova
reforma do código de processo penal foi um equívoco, o que acabou por encarnaria o “fetiche da verdade material”, pouco importando a legalidade
travar o andamento da reforma nos anos 601031. CARNELUTTI não estava
sozinho. A asseverar que o acusado não possuía o direito de mentir durante 1034. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p.214.
o seu interrogatório podem ser citados ALOISI1032 e FOSCHINI. 1035. “Dada a essencial diversidade de fins que perseguem o processo penal e o processo civil, não há razão
em subordinar o acertamento penal da verdade às limitações probatórias civis, fora dos casos em que é
De uma maneira geral, a noção de liberdade dos meios de prova é orientada isto aconselhável, por razões de interesse público. A estes casos dedica-se a disposição, que prescreve ao
juiz penal de deferir ao juiz cível a resolução de questões civis prejudiciais ao juízo penal concernentes
pela busca da verdade real. A legislação italiana, ao não expressar determinan- ao estado das pessoas. Mas quando se trata de interesses meramente privados, se a lei civil entende
oportuno, para os seus fins patrimoniais, de limitar a prova, o mesmo motivo não possui a lei penal rela-
temente quais seriam os meios de prova admissíveis, corresponderia a uma tivamente ao acertamento do delito. Com relação ao art. 201 do código de processo penal de 1913, a ju-
risprudência sempre procurou, com engenhosas interpretações restritivas, diminuir os inconvenientes da
evolução relativamente ao período em que predominavam as chamadas provas disposição irracional. No mesmo sistema de 1913, de resto, se encontra o desconhecimento do princípio
geral, cujo citado artigo 201 não é mais do que uma aplicação particular. Admitindo-se, em realidade,
legais1033. Para MANZINI, “os princípios fundamentais do processo penal não a punibilidade e a perseguibilidade do perjúrio (art. 221 do código penal de 1889), e consequentemente
a ação civil indenizatória, se reconhece necessariamente que isso que se acertou na relação civil, pode
ser livremente discutido e valorado nas relações penais. Foi portanto suprimida a disposição do art.
1026. CARNELUTTI, Francesco. Lições Sobre o Processo Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 2004. p. 280-284. 201, declarando, pelo contrário, porque não há mais dúvidas de que as limitações probatórias civis não
1027. CARNELUTTI, Francesco. Lições Sobre o Processo Penal. v. 4. Campinas: Bookseller, 2004. p. 40. se observam no processo penal, exceção feita àquela relativa ao estado das pessoas. Isso não significa
1028. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel incoerência com a disposição que consente o envio ao juiz civil das questões prejudiciais civis, porque
c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p. 217. no caso em exame o juiz penal deverá sempre decidir por si mesmo a questão de que se trata, seja pre-
1029. CARNELUTTI, Francesco. Lições Sobre o Processo Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 2004. p. 280- judicial ou não prejudicial”. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un
284. p. 311. Nuovo Codice di Procedura Penale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura
Penale. v. VIII. Roma: 1929. p. 60.
1030. CARNELUTTI, Francesco. Lições Sobre o Processo Penal. v. II. Campinas: Bookseller, 2004. p. 280-
284. p. 313. 1036. Tampouco neste ponto aprofundaremos o estudo do regime decisório do magistrado, que deverá ser
objeto de pesquisa que analise o objeto com a verticalidade requerida, o que novamente extrapola a
1031. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel ambição do presente estudo. A literatura brasileira de estampa crítica tem aprofundado o tema. Reco-
c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p. 220. mendamos STRECK, Lênio Luiz. O Que é Isto: Decido Conforme a Minha Consciência? Porto Alegre:
1032. O direito de mentir, para Aloisi, não passava de um produto do individualismo que constitui hoje, apenas Livraria do Advogado, 2010; STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen
um ciclo histórico completamente superado. Se o silêncio é tolerado, a mentira é punida. ALOISI, Ugo. Juris, 2009. Para uma ampla análise histórica do live convencimento, dentre inúmeros estudos recomen-
Manuale Pratico di Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1943. p. 21-22. damos DE LUCA, Giuseppe. Profilo Storico del Libero Convincimento del Giudice. In Quaderni del
1033. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p.208. ConsiglioSuperiore della Magistratura. Roma, 1990.
304 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 305

de sua aquisição. A ampliação dos meios probatórios “comportava a meta- e do uso do livre convencimento para justificar a superação de quaisquer
morfose da regra do livre convencimento em uma arbitrária interpretação limites à admissão das provas. Na experiência italiana do código Rocco,
das regras sobre o procedimento probatório”1037. Os excessos eram flagran- este princípio, estabelecido pelo iluminismo para racionalizar o juízo, se
temente praticados e conhecidos pela doutrina. Será o próprio GRISPIGNI transformou em um veículo funcional para a subtrair o acertamento do
quem advertirá do perigo da fórmula, autorizadora de uma soberania do fato penal de qualquer espécie de controle1044.
juízo1038. Na tentativa de determinar o sentido da fórmula presente na dou- No mesmo sentido é a crítica de CORDERO, para quem o “livre con-
trina, DE MARSICO afirma que o livre convencimento significa “livre no vencimento” é uma fórmula muitas vezes abusada, como se “livre” aludisse
sentido de que o juiz não tenha outro limite, na valoração das provas, que a misteriosos canais intuitivos ou à escolha gratuita das fontes”1045, mesmo
a consciência da responsabilidade de sua função, soma infinita de deveres que ilicitamente obtidas. O livre convencimento e a correlata obrigação de
intelectuais, éticos e sociais”1039. A diferença, para o autor, entre liberdade motivar o julgado já eram conhecidos de um monumento inquisitório, a
e arbítrio é a obrigação de motivar a sentença1040. legislação francesa de 1790. Para CORDERO, a fórmula consiste em um
Segundo MANZINI, o princípio do livre convencimento significa dizer estereótipo, o “julgamento motivado”1046. Trata-se, na verdade, de um “ga-
que o juiz penal é completamente livre relativamente à sua convicção em tudo rantismo econômico”1047.
o que respeita às condições que legitimam, excluem ou modificam a pretensão O fascismo não criou o axioma. Já presente nos códigos anteriores
punitiva do Estado1041. Isto não significa desvinculação das provas do proces- e velho conhecido do sistema inquisitório, adaptou-se plenamente a um
so. O livre convencimento deve derivar dos fatos examinados. Por isto deve o sistema autoritário, no qual as provas eram livres e o juiz deveria proceder
juiz motivar a sentença. Ainda segundo MANZINI, este princípio substituiu à busca da verdade real: “o eufemismo ‘motivação livre’ significa ‘escolha
aquele das provas legais, por “uma mais exata visão da finalidade e interesses soberana’, nem mais nem menos”1048.
do processo penal”1042. O único limite ao princípio do livre convencimento,
Afirmar que a obrigação de motivar consiste em um novo sistema
que corresponde ao limite ao princípio da liberdade da prova, está contido
não é adequado – quer se chame livre convencimento motivado, quer se
no art. 308 e no art. 461 (que por seu turno remete ao art. 308 do CPP),
lhe denomine persuasão racional. Induvidoso que o código Rocco enxer-
e que diz respeito à prova sobre o estado das pessoas. O princípio do livre
gou neste sistema disciplinador das decisões, oportunidade e conveniência
convecimento, ademais, acaba por excluir do processo penal as presunções,
em sua manutenção. Isto significa dizer que a obrigatoriedade de motivação
as ficções e as preclusões probatórias1043.
jamais correspondeu a uma mudança de regime político da decisão judicial.
O livre convencimento parte de uma “teoria romântica da prova Evidentemente que a movimentação do instituto de uma fase pré-fascista
moral”, com a consequente obrigação de motivar o fato que deu lugar a fe- para o fascismo requer mecanismos adaptativos. Tal tarefa foi realizada pela
nômenos negativos na cultura processual europeia, como o impedimento da doutrina, no intuito de “domesticar politicamente” o instituto da motivação
criação de um direito das provas penais. Além disso, deu origem a um fenô- das decisões. Para DELOGU: a motivação das decisões consistia, na esteira
meno degenerativo que tornou possível uma cultura inquisitória circundada do velho juspublicismo reacionário italiano, em uma garantia do próprio
em torno da figura do juiz como senhor da prova na busca da verdade real
1044. AMODIO, Ennio. Libero Convincimento e Tassatività dei Mezzi di Prova: um approccio comparativo.
In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. a. XLII, n. 1, 1999. p. 05.
1037. GARLATI, Loredana. “Contro il Sentimentalismo”: l’impianto inquisitório del sistema delle prove nel
c.p.p del 1930. In Criminalia. n. 1, 2012. p. 224. 1045. CORDERO, Franco. Stilus Curiae (Analisi della Sentenza Penale). In Rivista Italiana di Diritto e Pro-
cedura Penale. a. XXIX, 1986. p. 26.
1038. GRISPIGNI, Filippo. Diritto Processuale Penale. Roma: Unione Tipografica, 1942. p. 27.
1046. CORDERO, Franco. Stilus Curiae (Analisi della Sentenza Penale). In Rivista Italiana di Diritto e Pro-
1039. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 174. cedura Penale. a. XXIX, 1986. p. 28.
1040. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 174. 1047. CORDERO, Franco. Stilus Curiae (Analisi della Sentenza Penale). In Rivista Italiana di Diritto e Pro-
1041. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 263. cedura Penale. a. XXIX, 1986. p. 29.
1042. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 266. 1048. CORDERO, Franco. Stilus Curiae (Analisi della Sentenza Penale). In Rivista Italiana di Diritto e Pro-
1043. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 271. cedura Penale. a. XXIX, 1986. p. 30.
306 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 307

Estado1049. Tal entendimento será compartilhado por MANZINI, que afirma informa todo o código de processo penal de 1930. O que se deve assinalar,
que a motivação além de uma garantia do indivíduo, corresponde a uma com efeito, é a relação dúplice coordenada pela noção de verdade real: a) a li-
garantia para o Estado, tendo como fundamento o interesse de que a sua berdade da prova; b) o livre convencimento. Cuidam-se de elementos que são
vontade superior seja aplicada e a justiça seja administrada corretamente1050. organizados conceitualmente por este significante estruturador. Nas palavras
Trata-se, novamente, de uma postura autoritária, que MANZINI reproduz de MANZINI, para não deixar dúvidas sobre a existência desta relação: “no
em seu Tratatto, mesmo após o advento da Constituição, inclusive citando processo penal, portanto, a mais ampla, a mais ilimitada e normal superfície
textualmente o art. 111 da Constituição Italiana, o que sinaliza, por sinal, de penetração está de regra reservada à verdade material, de maneira que o
que a modificação da ordem constitucional não atingiu o campo da doutrina juiz tem o poder e o dever de se convencer livremente, ou seja, de tratar de
processual e seu método tecnicista. conseguir o conhecimento do fato que melhor responda à realidade deste
Pode-se dizer que o axioma do livre convencimento é uma fórmula mesmo fato”1057. Mas não é só. Este “princípio” acaba por organizar igual-
mágica1051, que passa tanto por positivistas quanto pelo fascismo1052, o que está mente os poderes das partes, sendo a pedra angular de um sistema autoritário
a indicar que a sua base está incrustrada em uma arbitrariedade dissimulada, de extensos poderes judiciais. Este “princípio” exigirá um juiz preocupado em
outogando aos juízes poderes de decidir da forma como melhor lhes convier. encontrar elementos para se “convencer”. Novamente esclarece MANZINI
Politicamente, a sua manutenção também pode ser associada à circunstância que “não está obrigado a fundar a sua decisão no que apresentam o Minis-
de tal postulado ter se tornado uma bandeira da magistratura para a afirma- tério Público e o imputado; tem a faculdade e o dever de ordenar e cumprir
ção de sua absoluta independência, acabando por minimizar a sua função de por própria iniciativa, “de ofício”, as buscas ulteriores que estime úteis para
garantia1053, tal qual pensada pelos iluministas. descobrir a verdade real”1058. Prossegue o autor afirmando que “a este mesmo
fim se orienta o princípio da imediata coleta das provas pelo juiz competente,
2.5.5. A VERDADE REAL princípio que domina todo o processo penal”1059. Além do princípio da verda-
Como acentua FERRUA, a busca da verdade real era considerada a de real determinar o do livre convencimento, assevera MANZINI que acaba
espinha dorsal do código Rocco1054. Rios de tinta já foram escritos sobre este também por fazer derivar o do contraditório1060. Segundo DE MARSICO,
princípio. Desta forma, se está diante de uma categoria por demais conhecida “desta forma, no campo da justiça, ela não culmina na verdade formal, mas
da doutrina, o que dispensa avançar nos comentários relativos à este ponto1055. como foi repetido muitas vezes, na verdade real, e não há necessidade de ser
A questão da verdade real aparece oficialmente no discurso fascista. De demonstrado que diminuir a atividade dos sujeitos em disputa consiste em
acordo com MANZINI, “a declaração da certeza processual relativa à preten- atentar contra a descoberta da própria verdade real”1061.
são punitiva do Estado se faz em virtude do princípio da busca da verdade Para traçarmos uma pequena síntese dos aspectos mais salientes deste
real”1056. Como se pode perceber, se trata de um elemento ou “princípio” que significante estruturador da prova no processo penal, deve-se registrar: a) a
1049. DELOGU, Tullio. Potere Discrezionale del Giudice Penale e Certeza del Diritto. In Rivista Italiana di noção de “liberdade dos meios de prova” apenas pode se edificar, sem in-
Diritto e Procedura Penale. n. 2, v. 19, 1976. p. 394. congruências, em um sistema no qual a verdade real seja o leitmotiv para a
1050. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. IV. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 489.
1051. NOBILI, Massimo. Storie D’una Illustre Formula: il “libero convencimento” negli ultimi trent’anni. In aquisição probatória. Desta forma, os limites ao alcance das provas restam,
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. a. XLVI.n. 1-2, 2003. p. 72.
1052. NOBILI, Massimo. Storie D’una Illustre Formula: il “libero convencimento” negli ultimi trent’anni. In
pois, relativizados ou minimizados. Algo que já fora referido anteriormente;
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. a. XLVI.n. 1-2, 2003. p. 74-75.
1053. NUVOLONE, Pietro. Processo Penale: legalità, giustizia e difesa sociale. In Bolletino Dell’Istituto di
Diritto e Procedura Penale. Pavia, 1962-63; 1963-64. p. 12. 1057. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 261-262.
1054. FERRUA, Paolo. Oralità del Giudizio e Letture de Deposizioni Testimoniali. Milano: Giuffrè, 1981. p. 252. 1058. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 262.
1055. Recomendamos, para análise da questão referente à verdade no processo penal, sob distintos enfoques 1059. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 262.
KHALED JR, Salah. A Busca da Verdade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2013; AMARAL, 1060. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. I. Torino:
Augusto Jobim do. Política da Prova e Cultura Punitiva: a governabilidade inquisitiva do processo Torinese, 1952. p.
penal brasileiro contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2014. 1061. DE MARSICO, Alfredo. Dogmatica e Politica Nella Scienza del Processo Penale. In _______. Nuovi
1056. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 259. Studi di Diritto Penale. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 1951. p. 81.
308 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 309

b) o livre convencimento – se torna um mecanismo de exteriorização da exceções ao contraditório seriam as aparentes e as reais. As aparantes seriam
verdade real. Sem compromisso com fontes probatórias, dispostas no proces- o afastamento do acusado da audiência e a negativa de comparecimento do
so para ser “livremente valoradas pelo magistrado”, a linha de contiguidade imputado. Por seu turno, as exceções reais seriam a condenação do acusado
entre a forma de “aquisição” e de “valoração” permite, assim, a passagem a por decreto e o processo à revelia1066.
um sistema “customizado” de provas: o juiz é livre para determinar-lhes de O grande elemento que demonstra como o contraditório é mutilado – se
ofício; é também livre para avaliar sobre a sua conveniência ou não, dispen- é que é possível falar-se neste princípio no código de processo penal italiano
sando aquelas que entender inúteis ou determinando aquelas que faltem ao de 1930 – é representado pela introdução do material coletado na fase de
processo; por fim, é livre para lhes emprestar valor e significância, podendo investigação preliminar na fase judicial. A leitura de peças, a inquirição de teste-
modular o seu sentido, alcance e profundidade, consistindo, assim, num munhas, da vítima e do acusado com base naquele material prévio, tratando-se
sistema subjetivista, cujo “ônus” consiste apenas em expor, retoricamente, as de criar embaraços, contradições ou meras ratificações de depoimentos interfere
razões do convencimento (por que determinadas provas foram utilizadas para na construção epistêmica do contraditório. Nas palavras de CORDERO, ao
a formação do convencimento e não outras, como foram superadas determi- retratar o panorama vivenciado a partir da experiência do Código Rocco, “hoje
nadas incongruências verificadas nas correlações entre os meios probatórios, é triste constatar como o processo penal é menos oral do que o civil”1067.
etc.). É, como expressa CORDERO, um sistema de garantismo a bon marché,
A garantia da entrada do conteúdo recolhido na fase de investigação
cujo elemento político inafastável é o aumento dos poderes judiciais e a de-
preliminar, acabava por destruir qulquer pretensão ao contraditório efeti-
pendência das partes à inclinação política do magistrado.
vo. Pode-se dizer, ainda segundo CORDERO, que uma coisa é contestar
a testemunha com aquilo que foi produzido na fase anterior, outra admitir
2.5.6. O CONTRADITÓRIO DEFORMADO DO CÓDIGO DE
no fascículo um conjunto de escritos que podem determinar o conteúdo da
19301062
decisão1068. Ora, assim sendo, o livre convencimento significa dizer que o juiz
Segundo a “regra geral” descrita por MANZINI, o juiz penal, a fim de
escolhe as primeiras declarações e depois, com o material “em contraditório”,
comprovar a verdade real, deve ouvir tanto a acusação quanto a defesa1063.
constroi a decisão, já que vale o princípio do livre convencimento1069. Eis um
Como se pode perceber pela apresentação da “regra geral”, o contraditório se
belo exemplo de como este princípio atua como “antigarantia”. Recorrendo-se
encontra a serviço da verdade real. Para o autor, o contraditório não significa
a ele, se afasta o contraditório.
que o imputado esteja no mesmo patamar que a acusação, devendo o juiz se
limitar a escutar o debate. Desta forma, o contraditório não inibe as medidas Esta a herança tardia do “sistema misto” ou do modelo napoleônico:
probatórias tomadas pelo juiz de ofício. O contraditório, segundo MAN- esta fase preambular acaba por determinar a sorte do acusado, de forma que a
ZINI, não se encontra em consonância com a fase de investigação, por isso fase judicial, “em contraditório” pode, muitas e muitas vezes, consistir em um
resulta dela afastado1064. A defesa requerida para o exercício do contraditório mero apêndice, resto anacrônico de um intelectualismo iluminista frustrado.
se perfectibilizaria apenas com a presença do acusado, sem a necessidade de Economicamente injustificável, no esteio deste pensamento, o processo penal
intervenção do defensor. Além disso, o contraditório, na visão de MANZINI, rende muito mais quando se colocam balizas a ele.
não requer a necessidade de um debate direto entre acusação e defesa, mas a Parte significativa destes problemas também pode ser creditada a uma
simples possibilidade de se contrapor os elementos justificadores aos elemen- herança embebida na tradição principialista. O contraditório não apenas não
tos de acusação, idôneos para garantir ao juiz o acesso à verdade real1065. As 1066. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 283.
1067. CORDERO, Franco. La Riforma Della Istruzione Penale. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura
1062. Novamente não é possível ingressar na produnda importância deste postulado, objeto de futura análise Penale. a. VI, fasc. 3, 1963. p. 723.
específica, em trabalho futuro. 1068. CORDERO, Franco. La Riforma Della Istruzione Penale. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura
1063. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 280. Penale. a. VI, fasc. 3, 1963. p. 723.
1064. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 281. 1069. CORDERO, Franco. La Riforma Della Istruzione Penale. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura
1065. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 281. Penale. a. VI, fasc. 3, 1963. p. 723.
310 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 311

é um princípio, como as suas funções não podem ser creditadas à espécie se justificava baseada em múltiplas versões semióticas, destinadas a imprimir
normativa. O contraditório é uma técnica de colheita probatória afeita aos maior repressão, na lógica da defesa social1073.
ritos acusatórios. Além disso, também consiste em um pressuposto acusatório A presunção de inocência não passava de um sentimento aberrante, que
à toda decisão judicial (o que não significa que nos casos de tutela de emer- havia enfraquecido a repressão ao crime e favorecido o aumento da criminali-
gência não possa ser sacrificado temporariamente e desde que seja imantado dade1074. Interessante notar-se que a mesma noção de “justo equilíbrio” entre
pela reversibilidade). Parte dos mesmos problemas continuarão aparecendo garantias e repressão poderá ser encontrada na Introdução ao Projeto de Código
tanto na legislação quanto na doutrina processual penal brasileira, com a de Processo Penal, de Garofalo e Carelli, de 1889, o que demonstra a penetra-
contribuição das abordagens principiologistas. ção do discurso da escola positiva no Código de Processo Penal fascista1075. A
mesma noção de “equilíbrio” reaparecerá também no discurso de Francisco
2.5.7. A EXPULSÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O CAMPOS na Exposição de Motivos do código de processo penal brasileiro.
ENCONTRO COM A ESCOLA POSITIVA: UM DISCURSO
A acusação de a presunção de inocência ser o produto de um “sentimen-
HÍBRIDO A SERVIÇO DA DEFESA SOCIAL
talismo” da escola clássica já aparecia nos discursos dos positivistas e ganhava
Para o ministro de justiça italiano Alfredo ROCCO, na Relazione al corpo agora, no tecnicismo1076. Em parte, o liberalismo reacionário italiano
Progetto Preliminare, “todos os institutos processuais são plenamente infor- que marcou a passagem do século XIX ao XX trabalhava com o esgotamento
mados pelos princípios fixados pela Revolução espiritual que criou o presente da “função histórica” atribuída à presunção de inocência1077. Segundo GARO-
regime político”1070. Assim, “as aplicações processuais das doutrinas demo- FALO, “àqueles que repetem a vazia e absurda frase da presunção de inocência
liberais, para as quais o indivíduo é posto contra o Estado e a autoridade é até a sentença definitiva, respondo que muitas vezes o juízo é antecipado, e
considerada como insidiosa e prepotente pelo indivíduo e o imputado, e a condenação pronunciada pelo tribunal da opinião pública”1078.Prossegue
mesmo quando preso em flagrante, é presumido inocente, foram totalmente ainda o autor argumentando “Mas antes que intervenha o magistrado, o
eliminadas”. Assim como foi eliminada “aquela tendência favorável aos de- juízo é pronunciado pela consciência pública. Não deveria ter algum valor
linquentes, fruto de um sentimentalismo aberrante e obsessivo, que tanto este da notoriedade?”1079 À evidência existir uma continuidade muito clara
enfraqueceu a repressão e favoreceu a expansão da criminalidade”. Segundo entre o discurso positivista e o tecnicista (como pode ser percebido pela
Alfredo ROCCO, o Código tratou de firmar um “justo equilíbrio” entre as
garantias processuais destinadas a salvaguardar o interesse do Estado na sua 1073. “Com a chegada do fascismo, ao entrar abertamente em crise a presunção de inocência, já não houve
freios para o uso e o abuso da prisão preventiva e a sua aberta legitimação, sem jogos pudicos de pala-
função repressiva e aquelas relativas ao imputado1071. Para SERMONTI, “o vras, como “medida de segurança processual”, “necessária para a defesa social” e indispensável sempre
que o delito tenha causado um “grave alarme público”. Assim, se o código de processo penal de 1865
princípio da presunção de inocência do imputado – resíduo da concepção previa como regra o caráter facultativo da ordem de captura, e o código de 1913 introduzia o livramento
liberal-democrática – foi claramente repudiado”, já que sua finalidade se des- obrigatório pelo transcurso dos prazoa máximos de prisão, o código Rocco ampliou enormemente as
hipóteses de captura obrigatória e automática, suprimiu os prazos máximos e com eles o instituto do
tinava a obstaculizar a realização dos fins do processo, articulado em torno livramento pelo transcurso dos prazos e condicionou à valoração das “qualidades morais e sociais da
pessoa” tanto a emissão quanto a suspensão da ordem de captura facultativa”. FERRAJOLI, Luigi.
do acertamento da verdade real1072. O afastamento da presunção de inocência Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. 6 ed Madrid: Trotta, 2004. p. 553.
1074. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Procedura
Penale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. Roma:
1070. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Procedura 1929. p. 07. Este discurso também é apresentado por GAROFALO, Rafaelle. Criminology. Boston:
Penale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. Roma: Little, Brown, and Company, 1914. p. 349.
1929. p. 07. Cf FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. 6 ed Madrid: Trotta,
2004. p. 551. 1075. GAROFALO, Rafaelle; CARELLI, Luigi. Riforma della Procedura Penale in Italia: progetto di un
nuovo codice. Torino: Fratelli Bocca, 1889. p. I – XXII.
1071. ROCCO, Alfredo. Relazione del Guardasigili al Progetto Preliminare di un Nuovo Codice di Procedura
Penale. In Lavori Preparatori del Codice Penale e del Codice di Procedura Penale. v. VIII. Roma: 1076. Sobre esta questão que se desenvolve a partir da discussão da intervenção da defesa na fase de inves-
1929. p. 07. No mesmo sentido é o discurso de SABATINI: o código teria conciliado a exigência de tigação Cf MILETTI, Marco Nicola. Ombre D’Inquisizione: l’intervento della difesa nell’instruttoria
proteção do direito de liberdade do cidadão com a do próprio Estado mediante a punição. SABATINI, penale italiana (1865 – 1913). In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v.
Guglielmo. Direttivi Ideali del Fascismo nella Riforma della Legislazione Penale. In La Scuola Penale 36. T II. Milano: Giuffrè, 2007. p. 901 – 955.
Unitaria. a. V. v. V. Roma, 1931. p. 08. 1077. Neste sentido GUARNERI, Giuseppe. Le Parti nel Processo Penale. Milano: Fratelli Bocca, 1949.
1072. SERMONTI, Alfonso. Principii Generali Dell’Ordinamento Giuridico Fascista. Milano: Giuffrè, 1078. GAROFALO, Rafaelle. La Detenzione Preventiva. In Scuola Positiva. v. II, 1892. p. 199.
1943. p. 322-323. 1079. GAROFALO, Rafaelle. La Detenzione Preventiva. In Scuola Positiva. v. II, 1892. p. 200.
312 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 313

atuação de alguns juristas como ALOISI e LONGHI), além da identidade Para bem compreender como o pensamento tecnicista de MANZINI e
entre objetivos declarados por positivistas e juristas a serviço do regime, es- o da escola positiva se encontram alinhados neste campo – o do desterro da
pecialmente MANZINI1080. presunção de inocência – basta levarmos em consideração o que afirmam os
O código, de acordo com o seu idealizador, não era um instrumento positivistas. Segundo GAROFALO, a presunção de inocência não passa de
para discussões acadêmicas. O seu objetivo fundamental era o de realizar a uma fórmula vazia e absurda, reduzindo o espectro da prisão preventiva1086.
pretensão punitiva do Estado contra o acusado. Desta maneira, não havia a Segundo FERRI, a escola positiva parte do pressuposto de reequilibrar os
menor intenção de se declarar a inocência do acusado, fruto de declamações direitos envolvidos no processo penal (garantia dos direitos dos indivíduos e
demagógicas contra o processo inquisitório, baseadas na pseudodemocracia, da sociedade). A escola clássica havia excessivamente preconizado a igualdade
superficial, paradoxal e confusionista1081. entre os homens, sem distinguir entre “a criminalidade atávica e a evoluída”,
permitindo alguns injustificados excessos na proteção de direitos e garan-
Na esteira de seu pensamento autoritário tecnicista, afirma MANZI-
tias individuais1087. Como exemplo deste igualitarismo infecundo, realmente
NI que o processo deve ter uma finalidade prática e objetiva, devendo ser
excessivo, FERRI cita a presunção de inocência, e mais especificamente, a
a presunção de inocência expulsa (por paradoxal, “irracional”1082 e “incon-
fórmula in dubio pro reo. FERRI não nega a importância da fórmula, que
gruente”1083). A presunção de inocência, para MANZINI, contrastava com
pode ser verdadeira considerando que a maioria da população não é crimino-
a própria razão de existência do processo, questionando “se se deve presumir
sa, devendo ser todo cidadão considerado honesto até a prova em contrário.
a inocência do acusado, como exige o bom senso, então por que se procede
Contudo, afirma FERRI, quando se trata de prova confessional ou ainda, de
contra ele”?1084 A presunção de inocência, no pensamento de MANZINI, não
prisão em flagrante, a presunção de inocência perde força e lógica jurídicas1088.
podia ser garantida através do processo, porque tal fato acabaria por equivaler
Da mesma forma, a presunção não pode operar em se tratando de criminoso
à conclusão de que o Ministério Público agiria destituído de fundamento,
reincidente ou ainda, quando se tratar de delinquente nato ou louco. Partindo
sendo, além disso, via de consequência, inadmissível qualquer espécie de
desta distinção, segundo FERRI, a presunção de inocência é ilógica se tomada
prisão cautelar. Sobre a presunção de inocência e outros princípios iluminis-
em sentido absoluto, sem distinção. Será um mero “aforisma jurídico que se
tas, afirma MANZINI que são “ideias antiquadas, falaciosas e injustas, que
distancia da realidade que a originava, em um processo de mumificação e
mais ou menos conscientemente provêm daquele modo de pensar que, se
degeneração da regulae juris”1089. Além disso, a manutenção da presunção de
podia ser justificado nos regimes absolutistas e sob o domínio estrangeiro, no
inocência após a condenação em primeiro grau é “perigosa e escandalosa”1090.
nosso Estado livre não é apenas errôneo, mas sim insensato e maligno”1085.
O desterro da presunção de inocência vem registrado por GABRIELI,
Como pode ser observado, não assiste razão alguma a SBRICCOLI
que afirma que o código de 1930 abandonou a presunção de inocência, prin-
quando afirma o caráter constritivo do pensamento tecnicista de MANZINI
cípio presente no código de 1913 e inspirado em postulados liberais1091. Da
relativamente aos positivistas. Pelo contrário, MANZINI imprime justamen-
fusão sincretista entre o positivismo criminológico e o tecnicismo jurídico, o
te a cartilha positivista no repúdio aos ideais da escola clássica. MANZINI
código Rocco abortou a presunção de inocência.
defenderá a superação de ideários “antiquados e vetustos” dos precursores,
incapazes de compreender o fenômeno da criminalidade. Tomando-se em consideração o projeto de código de processo penal,
escrito por GAROFALO e CARELLI, encontraremos parte da fórmula usada
1080. MILETTI, Marco Nicola. Ritorno All’Inquisizione: scuola positiva e pulsioni autoritarie nel processo
penale italiano. In Diritto Penale XXI Secolo. v. X, n. 02, 2011. p. 483-490.
1081. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. I. Torino: 1086. GAROFALO, Rafaelle. La Detenzione Preventiva. In Scuola Positiva. v. II, 1892. p. 199.
Torinese, 1952. p. 178. 1087. FERRI, Enrico. Sociologia Criminale. 4 ed. Torino: Fratelli Bocca, 1900. p. 728-729.
1082. MANZINI, Vincenzo. Trattato di Diritto Processuale Penale Secondo il Nuovo Codice. v. I. Torino: 1088. FERRI, Enrico. Sociologia Criminale. 4 ed. Torino: Fratelli Bocca, 1900. p. 729-730.
Torinese, 1952. p. 180. 1089. FERRI, Enrico. Sociologia Criminale. 4 ed. Torino: Fratelli Bocca, 1900. p. 730.
1083. MANZINI, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale. Padova: CEDAM, 1954. p. 57. 1090. FERRI, Enrico. Sociologia Criminale. 4 ed. Torino: Fratelli Bocca, 1900. p. 731.
1084. MANZINI, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale. Padova: CEDAM, 1954. P. 57. 1091. GABRIELI, Francesco Pantaleo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale con le Recenti Modificazioni
1085. MANZINI, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale. Padova: CEDAM, 1954. p. 56. Legislative. Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1946.
314 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 315

pelo tecnicismo para lhe infirmar. Afirmarão os autores que no processo penal, a presunção de inocência significa apenas que não se deve tratar o acusado
a prisão cautelar deverá ser decretada baseada na gravidade do crime, nas ten- como culpado, embora tampouco se deva declará-lo inocente. A sobrevivência
dências dos criminosos, na presunção razoável de culpabilidade do acusado e da obra de MANZINI, mesmo após a sua morte (a sexta edição atualizada é
também nas necessidades da instrução criminal1092. Tais argumentos já podiam de 1967) é um símbolo da continuidade inclusive material do ordenamen-
ser encontrados nos escritos de MANZINI, na primeira década do século XX. to jurídico: representa a aceitação de um método científico caracterizado
Muito embora os positivistas tivessem oportunizado a crítica à presun- pela falsa neutralidade do tecnicismo1100. De forma muito similar quanto
ção de inocência, sem dúvida foi o discurso tecnicista que procedeu ao ataque ao método tecnicista (embora se afastando político-criminalmente), pode-se
mais grave. Através de um discurso que se dizia movimentar através da zona citar o pensamento de BETTIOL, que também a negava:“uma presunção de
da área jurídica, tratava de esconder as suas opções políticas1093. Segundo inocência em virtude da qual o juiz deva em caso de dúvida sobre a interpre-
MANZINI, a “pseudodemocracia francesa, superficial, tagarela e de todo tação ou valoração da prova absolver o imputado não existe: não existe como
confusionista, aqui também cometeu o erro de nublar os conceitos, afirmando praesumptio hominis porque a experiência ensina que o maior número dos
que a finalidade do processo é principalmente tutelar a inocência”1094. imputados resulta em culpados no decorrer do processo, e não inocentes. Não
Segundo MANZINI, o fato de não ser reconhecido como culpado não existe como presunção legal porque não há no nosso ordenamento jurídico
equivale a ser declarado inocente. Seria antes um conceito mais amplo e uma norma que obrigue o juiz a absolver o imputado em caso de dúvida sobre
genérico. A declaração de certeza da inocência, por seu turno, ocorreria em os resultados da prova realizada”1101. Segundo BETTIOL, a regra in dubio pro
apenas alguns casos1095. Bastaria pensar-se nos casos de prisão preventiva, reo se resolveria unicamente na disciplina do ônus da prova, que conserva a sua
no segredo da investigação e no próprio fato da imputação. Tais elementos importância mesmo em um processo governado pelo princípio da oficialidade
deveriam garantir uma “presunção de culpabilidade”1096. O elemento da e da busca da verdade real, embora não se possa falar em um ônus formal
retórica “técnica” utilizado por MANZINI reside na redução da presunção da prova no processo penal. Desta forma, para Bettiol, o in dubio pro reo diz
de inocência a uma norma probatória, já que ela seria, para o autor, uma respeito ao modo como se deve provar um fato processualmente relevante1102,
prova indireta. Desta forma, enquanto há um procedimento em curso, não convergindo na direção de MANZINI sobre a natureza jurídica do in dubio
há inocente ou culpado: apenas imputado. No mesmo sentido serão as pro reo como regra probatória.
palavras de GAROFALO1097 e ALOISI1098. Neste campo, a linha de continuidade autoritária seguirá os passos de
O grande desafio do autoritarismo processual penal não foi o de ali- LEONE, que criará a fórmula da “presunção de não-culpabilidade” como
nhavar uma estrutura política e ideológica junto da experiência fascista, mas conceito diverso da presunção de inocência, sendo ela, nas palavras do
manter a linha de continuidade após a mudança de regime político. A Cons- autor, uma categoria proveniente de uma exigência concreta e não de um
tituição Italiana de 1948 disporá em seu art. 27 que “o imputado não é apelo romântico1103.
considerado culpado senão depois da sentença definitiva”. MANZINI não Como assevera ILLUMINATI, esta foi considerada a “interpretação
mudará significativamente o seu Trattato no que diz respeito à presunção autêntica da Constituição”1104. A fórmula adotada não superou os problemas
de inocência, mesmo após a ruptura política1099. Afirmará tão somente que existentes na doutrina, sujeitando-se às mais diversas interpretações, inclusive
1092. GAROFALO, Rafaelle; CARELLI, Luigi. Riforma della Procedura Penale in Italia: progetto di un aquelas que acabaram por propor novamente um substancial ardil, segundo a
nuovo codice. Torino: Fratelli Bocca, 1889. p. CLXXIII – CLXXIV.
1093. ILLUMINATI, Giulio. La Presunzione D’Innocenza Dell’Imputato. Bologna: Zanicheli, 1979. p. 18. 1100. ILLUMINATI, Giulio. La Presunzione D’Innocenza Dell’Imputato. Bologna: Zanicheli, 1979. p. 22.
1094. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 252 – 253. 1101. BETTIOL, Giuseppe. La Regola “In Dubio Pro Reo” nel Diritto e nel Processo Penale. In Rivista Italia-
1095. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 253. na di Diritto Penale. a. IX. n. XV, 1937. p. 249.
1096. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. I. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 254. 1102. BETTIOL, Giuseppe. La Regola “In Dubio Pro Reo” nel Diritto e nel Processo Penale. In Rivista Italia-
1097. GAROFALO, Rafaelle. La Detenzione Preventiva. In Scuola Positiva. v. II, 1892. p. 200. na di Diritto Penale. a. IX. n. XV, 1937. p. 250.
1098. ALOISI, Ugo. Manuale Pratico di Procedura Penale. Milano: Giuffrè, 1943. p. 163. 1103. LEONE, Giovanni. Manuale di Diritto Processuale Penale. 9 ed. Napoli:Eugenio Jovene, 1975. p. 207.
1099. ILLUMINATI, Giulio. La Presunzione D’Innocenza Dell’Imputato. Bologna: Zanicheli, 1979. p. 22. 1104. ILLUMINATI, Giulio. La Presunzione D’Innocenza Dell’Imputato. Bologna: Zanicheli, 1979. p. 21.
316 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 317

teoria filtrada pela escola técnico-jurídica da ditadura fascista1105. inquisitórias em plena fase considerada “acusatória”. Garantir ao juiz a pos-
Não foi apenas a redução da presunção de inocência a uma norma de sibilidade de controlar a publicidade dos atos judiciais significava, além de
caráter probatório, como pode ser encontrada na leitura manziniana que a incrementar os poderes dos magistrados, inviabilizar o controles destes atos,
achata, transformando-a em uma “prova indireta”. O ataque à presunção de com a retomada do sigilo (externo) dos atos processuais. Trata-se de medida
inocência como norma de tratamento também partiu do constitucionalismo que acentuaria mais um poder de polícia nas mãos do magistrado, indo jus-
que, mantendo a base política autoritária, desenvolveu a teoria da bipartição tamente ao encontro das famosas concepções “publicísticas de processo”, que
das normas constitucionais em auto-aplicáveis e programáticas. Trata-se de paradoxalmente, ao confiar inúmeros poderes processuais nas mãos do juiz,
uma “interpretação ab-rogativa”do princípio inscrito na Constituição Italia- não sujeitos a controles efetivos, acaba por garantir o sigilo do processo,
na, como bem observa ILLUMINATI1106. Novamente, é preciso atentar-se quando conveniente para o Estado.
para os giros “técnicos” dados pela doutrina italiana para a expulsão da pre- Entretanto, além deste dispositivo cuja eficácia se destinava a dispor
sunção de inocência do processo penal1107. Técnicas e fórmulas discursivas sobre regimes de publicidade durante a instrução judicial, não se deve es-
que serão igualmente aplicadas no Brasil. quecer que a principal componente do sistema processual Rocco residia na
hipertrofia da investigação. E lá, ao fabricar provas e pré-constituir a culpa-
2.5.8. A PUBLICIDADE DOS ATOS E A SUA bilidade do acusado, se procedia em sigilo. Portanto, a publicidade existia
EXCEPCIONALIZAÇÃO apenas numa fase já não tão importante para a estrutura sistêmica do modelo
O código Rocco dispõe em seu art. 423, que trata da fase judicial que processual e, mesmo assim, sujeita a controles e limitações, que devem ser
“o presidente ou o pretor pode dispor, ainda que de ofício, ordenando que lidas no sentido de que na verdade, a publicidade era uma exceção.
a instrução ou outros atos processuais sejam realizados a portas fechadas,
quando a publicidade, por conta da natureza do fato, ou da qualidade da 2.5.9. A SUPRESSÃO DAS NULIDADES ABSOLUTAS1109
pessoa, possa violar a segurança do Estado, a ordem pública ou a moral ou O Código de Processo Penal Italiano de 1930 inicia a regulação da
pode excitar reprovável curiosidade, ou quando venham do público manifes- disciplina das nulidades em seu art. 184, que estabelece que “a inobser-
tações que possam turbar a serenidade da instrução”. Trata-se de uma regra vância das formas prescritas para os atos processuais é causa de nulidade
que encontra similitude naquela contida no art. 792, § 1º do CPP brasileiro: somente nos casos em que esta é prevista expressamente em lei”. Todas as
“se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar nulidades podem ser sanadas nos modos estabelecidos pela lei (grifo nosso).
escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou Este Código eliminou as chamadas nulidades absolutas, ou seja, aquelas
o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício, ou a requerimento da parte incapazes de serem sanadas. Como será possível verificar-se no decurso do
ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fecha- presente trabalho, mesmo que a legislação brasileira não possua um disposi-
das, limitando o número de pessoas que possam estar presentes”. O discurso tivo similar à parte final do artigo, a orientação doutrinária e jurisprudencial
sobre a restrição da publicidade, soava como uma garantia ao acusado1108. do Supremo Tribunal Federal (bem como do Superior Tribunal de Justiça
As causas de supressão da publicidade desempenhavam importan- e de outros tantos tribunais de piso) exige, mesmo no caso de nulidades
te papel na redução da esfera de garantia das partes, retomando partículas absolutas, a demonstração do prejuízo, transformado – pela autoritária ju-
risprudência (que aplica critério extralegal amparado em legislação fascista)
1105. ILLUMINATI, Giulio. La Presunzione D’Innocenza Dell’Imputato. Bologna: Zanicheli, 1979. p. 21. e pela acrítica doutrina (que se contenta em reproduzir brocardos anacrôni-
1106. ILLUMINATI, Giulio. La Presunzione D’Innocenza Dell’Imputato. Bologna: Zanicheli, 1979. p. 22-23.
1107. Cf GHIARA, Aldo. Presunzione di Innocenza, Presunzione di ‘Non Colpevolezza’ e Formula Dubi- cos e trazer as decisões dos tribunais up to date em seus epistemologicamente
tativa, Anche Alla Luce Degli Interventi Della Corte Costituzionale. In Rivista Italiana di Diritto e
Procedura Penale. n. 1, v. 17, 1974. p. 78-82. 1109. Uma ampla investigação sobre as nulidades no processo penal não será aqui realizada. Para tanto, enca-
1108. CARNELUTTI, Francesco. La Pubblicità del Processo Penale. In Rivista di Diritto Processuale. v. X, minhamos o leitor a GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no Processo Penal. 3 ed. São Paulo:
parte I. Padova: CEDAM, 1955. p. 08. Saraiva, 2017.
318 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 319

pobres manuais sem se importar com o conteúdo de tais julgados – salvo processuais (fraudes, nas palavras de Rocco). Como afirmará Alfredo ROCCO
raríssimas exceções) – em sanatória geral1110. na Relazione al Re1114, “os princípios em matéria de nulidade podem ser assim
O segundo dispositivo concernente ao tema das nulidades, no Código resumidos: a) não existem nulidades absolutas, isto é (art. 136 Cod. Proc.
de Processo Penal Italiano de 1930 é o art. 187, que dispõe, na parte final: Pen. De 1931), não sanáveis de algum modo, deduzíveis em qualquer estado
“o Ministério Público e as outras partes não podem arguir as nulidades as e grau do procedimento e declaráveis de ofício”. Todas as nulidades, especí-
quais deram ou concorreram para lhe dar causa ou relativas a disposições cuja ficas ou gerais, podem ser sanadas nos modos estabelecidos pela lei (...); b) a
observância não tem interesse”. Segue o mesmo artigo 187: “a nulidade de inobservância da forma prescrita para os atos processuais é causa de nulidade
um ato é sanada se não obstante a irregularidade o ato igualmente atingiu o exclusivamente quando a nulidade é expressamente (isto é, especificamente,
seu escopo em relação a todos os interessados. A nulidade também é sanada para um caso determinado, ou genericamente) prescrita pela lei (art. 184,
se o interessado tacitamente aceitou os efeitos do ato”. parte primeira); c) a nulidade não pode ser arguida pela parte que lhe deu
Nos trabalhos preparatórios do Código de 1930, afirma o Ministro causa ou concorreu para lhe dar causa (art. 187, § 1º); d) a nulidade não pode
da Justiça Alfredo ROCCO: “quando, ao estabelecer as garantias formais, ser oposta pela parte que não tenha interesse na observância da disposição
se perda de vista o verdadeiro escopo de assegurar importantes interesses à qual a nulidade se refere; e) a nulidade é sanada se não obstante a irregu-
legítimos e se dê valor, invés, às formas por si mesmas, em vez da razão que laridade, o ato igualmente atingiu a sua finalidade relativamente a todos os
pode justifica-las, se cai em um pedantesco e danoso formalismo curial, que interessados (art. 187, § 2º); f ) a nulidade é sanada se o interessado, mesmo
encontra sua maior e pior explicação na multiplicidade e na insanabilidade que tacitamente, tenha aceitado os efeitos do ato (art. 187, § 2º); g) o juiz
das nulidades processuais”1111. que reconhece uma causa de nulidade, a elimina, se possível (...)”.
Alfredo ROCCO, ao falar sobre as nulidades absolutas afirma que Tal pensamento vem ao encontro daquele de Vincenzo MANZINI, que
ao comentar uma década de vigência do Código de Processo Penal italiano
“estas nulidades, hoje, podem ser declaradas em qualquer grau e estágio
do procedimento e podem ser arguidas mesmo por aquele que não possui expressa: “Deve-se reconhecer que o código de processo penal, agilizando as
interesse ou lhe deu causa. Tudo isto é manifestamente excessivo e dá razão formas processuais, reforçando o princípio de autoridade, eliminando formali-
de anulação a procedimentos às vezes complicados e pesados, já em último dades desnecessárias, introduzindo disposições novas dirigidas a fazer prevalecer
estágio, mesmo quando ninguém tivesse anteriormente percebido a nulidade a substância sobre a forma (muitas das quais serviram de exemplo ao novo
ou tivesse lhe dado importância, e mesmo sem que seja demonstrada a efetiva
código de processo civil) conseguiram plenamente o objetivo da reforma”1115.
lesão de qualquer interesse legítimo. O sistema se presta também a fraudes
processuais, já que através dele resulta possível determinar ou ao menos fingir O sistema de nulidades, mesmo que suprimisse qualquer espécie de
ignorar as condições que produzem nulidade absoluta, para então servir-se a controle sobre a validade dos atos, recebeu aplausos de juristas ainda ligados
seu tempo, se conveniente”1112.
ao período da reforma, como PANNAIN, que afirmava que“não se pode
A principal reforma introduzida pelo Código Rocco foi acabar com negar que o sistema seguido em matéria de nulidades pelo código de 1930
as nulidades absolutas1113, consideradas como mecanismo para manobras seja melhor do que aquele do código de 1913, o mesmo valendo para as
1110. Para se ter notícia desta pobreza epistêmica basta analisar determinados manuais, que trazem apenas impugnações”1116. Ou ainda, no pensamento de BOSCHI, que desejava a
ementas dos acórdãos, deixando de analisar o conteúdo da decisão. Trata-se, sobretudo, de uma forma
pseudocientífica de enfrentar as decisões em seu núcleo. reintrodução da sanabilidade geral após a reforma de 551117.
1111. Lavori Preparatori del Codice penale e del Codice di Procedura Penale. v VIII. Roma: Tipografia della
Camera dei Deputati, 1930. p. 40. 1114. ROCCO, Alfredo. Relazione al Re. In Gazzetta Ufficiale, 26 ottobre 1930 – VIII -., n. 251. n. 77.
1112. Lavori Preparatori del Codice penale e del Codice di Procedura Penale. v VIII. Roma: Tipografia della 1115. MANZINI, Vincenzo. Um Decennio di Applicazione del Codice di Procedura Penale Rocco. In Annali
Camera dei Deputati, 1930. p. 40. di Diritto e Procedura Penale. Torino: Unione Editrice Torinese, 1942. p. 01.
1113. Sobre a supressão das nulidades absolutas afirma Marques que “No processo penal condenatório, a 1116. PANNAIN, Remo. La Riforma Della Legislazione. Roma: “Arte della Stampa”, 1944. p. 32. Embora
supressão das nulidades absolutas representa extremo perigo. Atos existem em que a forma constitui pudessem ser encontadas vozes, mesmo na revista Archivio Penale, salientando o excesso que era su-
seu terreno essencial (forma dat esse rei), em virtude, sobretudo, do caráter excepcional que o ato repre- primir as nulidades absolutas. Cf BERNIERI, G. Per L’Aggiornamento Politico del Codice di Procedura
senta como elemento de coação contra a pessoa do réu ou do indiciado”. MARQUES, José Frederico. Penale. In Archivio Penale. v. I, 1945. p. 547.
Elementos de Direito Processual Penal. v II.Rio de Janeiro: Forense, 1962. p. 397-398. 1117. BOSCHI, M. La Lesività Delle Nullità Assolute. In Temi, 1964, III. p. 236.
320 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 321

A estrutura de um código de processo penal deve ser pensada sobre o de que “se deve presumir” que o imputado esteja preparado para se defender do
controle dos atos processuais. A ausência destes controles significa depositar fato que lhe é atribuído, o qual, ou permanece inalterado ou resulta modificado
unicamente nas mãos do magistrado o destino do processo. Tem-se, assim, em seu favor. Além disso, o dispositivo está fundado na premissa de que não é
um sistema “amórfico” correspondente à estrutura flexível organizada pelos de competência do acusado nem do acusador classificar juridicamente o fato1120.
procedimentos inquisitórios, que foram muito bem recepcionados pelos re- Novamente, neste ponto, verifica-se que o objeto do processo é volátil. Como
gimes políticos autoritários. Um código despido de formas rígidas configura seria possível fazer deslocar do acusador para o juiz a determinação do objeto
arbítrio. Nesse sentido, o código Rocco é um exemplo, ao acabar com qual- do processo, ou seja, a imputação?. A imputação consiste na determinação não
quer possibilidade de controle sobre a forma dos atos processuais. apenas fática, mas normativa, jurídica daquele evento ontológico.
MANZINI, como destaca CARNELUTTI, não dedicará uma expo-
2.5.10. NAHA MIHI FACTUM DABO TIBI JUS: OU DE COMO SE
sição considerável acerca dos problemas relativos à imputação, o mesmo se
PODE CONDENAR APESAR DE UMA ACUSAÇÃO INIDÔNEA
podendo dizer dos processualistas contemporâneos1121. Como será percebido
No código Rocco, no art. 477, há disposição sobre a famosa emendatio na construção da doutrina brasileira, também serão oferecidas justificativas
libelli, nos seguintes termos: “na sentença, o juiz pode dar ao fato uma definição para a manutenção desta categoria, em bases muito similares.
jurídica diversa daquela enunciada na sentença de admissibilidade da acusação,
no requerimento ou decreto de citação, aplicar as penas correspondentes, ainda 2.5.11. O ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO ROCCO
que mais graves, e aplicar as medidas de segurança, desde que a cognição do
Outro ponto que merece destaque na estrutura do código Rocco é a
crime não pertença à competência de um juiz superior ou especial”. Esta dispo-
temática do ônus da prova, estreitamente conexo à retirada da presunção de
sição é inclusive similar ao art. 383 do código de processo penal brasileiro, que
inocência do código (bem como do horizonte doutrinário e jurisprudencial).
em sua redação original dispunha: “o juiz poderá dar ao fato definição jurídica
diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em consequência, Preliminarmente, toda a estrutura acerca da figura do ônus, como uma
tenha de aplicar pena mais grave”. A redação original foi alterada, passando o regra de direito processual e também material, resta prejudicada por uma sin-
atual art. 383 do CPP a dizer: “o juiz, sem modificar a descrição do fato contida gular disposição normativa. O art. 305 do código de processo penal italiano
na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, dispunha que o juiz não teria a obrigação de atender aos pedidos requeridos
em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”1118. pela defesa, o que prejudicava de forma irreversível, os mecanismos de contra-
prestação jurisdicional1122. Esta inexistência de um dever do juiz em atender
De acordo com MANZINI, se o fato resulta essencialmente idêntico
aos pedidos formulados pela defesa possuía uma doutrina a lhe emprestar
àquele imputado na denúncia, ou ainda, diminuído em qualquer elemento
sustentação. Segundo CORBI, o juiz não precisava atender aos pleitos defen-
ou circunstância, o juiz poderá definir-lhe juridicamente de modo diverso.
sivos com base em três princípios: a) o princípio da reserva da prova ao juiz;
Isso significa dar uma nova classificação jurídica diversa da sentença de enca-
b) o princípio da falta de autonomia sobre a decisão de admissão da prova; c)
minhamento ao juízo (segundo o procedimento italiano de 1930). Poderá,
princípio da subsidiariedade da intervenção das partes1123.
inclusive, aplicar penas mais graves e medidas de segurança, sempre que a
competência para o seu julgamento não seja aquele de um juiz que exerce Além disso, a vasta maioria da doutrina processualista italiana
jurisdição superior ou especial1119.
1120. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. IV. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 370.
O fundamento para esta faculdade judicial reside, segundo MANZINI, 1121. Carnelutti afirmará que Manzini não se trata de um autos dos mais informados e diligentes. CARNELU-
TTI, Francesco. Cenni Sull’Imputazione Penale. In Rivista di Diritto Processuale. v. III. parte I. Padova:
no fato de que a norma prevista no art. 477 do CPP estaria fundada no critério CEDAM, 1948. p. 203.
1122. TRANCHINA, Giovanni. I Rapporti tra Giudice Istruttore e Pubblico Ministero Nell’Impianto Originario
1118. Evidentemente a “alteração” promovida na reforma de 2008 é pífia, uma vez que unicamente veda o del Codice Rocco. In Rivista di Diritto Processuale. a. XXXVII. N. 3. Padova: CEDAM, 1982. p. 429.
aditamento da acusação pelo juiz, o que é evidentemente, desnecessário, de tão pleonástico. 1123. CORBI, Fabrizio. La Disciplina Dell’Amissione della Prova nel Processo Penale. Milano: Giuffrè,
1119. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. IV. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 369-370. 1975. p. 238.
322 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 323

contemporânea do código de 1930, excogitava a possibilidade de aplicação do o sistema processual penal italiano de 1930, já que o juiz estaria invstido de
ônus da prova ao processo penal1124. Fundamentalmente, segundo MANZINI, uma função probatória supletiva autônoma1130. Esta obrigação pode ser en-
o ônus da prova pressupõe um “juiz inativo”, não sendo compatível com os contrada no art. 299 do CPPi, que obriga o juiz instrutor à prática de todos
poderes instrutórios do magistrado na busca pela verdade real. A afirmação os atos destinados ao acertamento da verdade. Tal fórmula se repetirá no
de que quem acusa deve provar, segundo MANZINI, não passa de uma regra interrogatório do imputado (art. 368 do CPPi). Portanto, para FLORIAN,
lógica, uma mera afirmação de senso comum, mas não uma regra jurídica1125. não existe ônus da prova no processo penal1131. Interessante assinalar que, para
Não significa que a acusação deve ser rechaçada quando o acusador não consiga FLORIAN, o juiz tem poderes supletivos decorrentes da inércia do Ministério
trazer aos autos uma prova plena nem mesmo que a prova deve ser oferecida Público em termos de prova, podendo, mesmo antes de concluir a instrução
por aquele que oferece a acusação1126. No processo penal, no polo da acusação, judicial, determinar provas de ofício para atender a questões duvidosas1132.
sempre haverá interesse público. E, por conta deste interesse, não se deve con- Neste ponto, o juiz “pode intervir para ampliar as provas produzidas ou de-
siderá-lo como responsável pela introdução das provas. O juiz penal da fase terminar outras por si mesmo, no interesse superior da justiça. Aqui o nosso
judicial, não pode ficar restrito à habilidade ou diligência de outros (prisioneiro processo penal parece um retorno ao passado inquisitório da Igreja, mais do
do princípio juxta allegata et probata). Deve o juiz, tanto quanto o Ministério que um eco distante do processo acusatório romano”1133.
Público, tutelar o interesse repressivo do Estado, podendo “convencer-se livre- Novamente, aparece a relação entre a produção de prova de ofício pelo
mente”, seja valorando as provas já produzidas pela acusação, seja diligenciando magistrado e o princípio do livre convencimento do magistrado, ligado, como
no sentido de encontrá-las, de ofício1127. já mencionado, à busca da verdade real. Aliás, sobre este ponto, DE MARSI-
As presunções relativas admitidas no processo penal não invertem o CO apresenta como antítese do sistema de processo civil da prova “allegata et
ônus da prova, já que no processo penal não existem partes em sentido estrito. probata”, nada menos do que o princípio do livre convencimento1134.
Havendo dúvida sobre a presunção, deve o órgão estatal (Ministério Público) Ademais, a posição processual atribuída ao Ministério Público pela dou-
ou o juiz comprovar de ofício a circunstância, já que a eles corresponde o trina também servia à concepção de inaplicabilidade do ônus da prova no
exercício da ação penal e a decisão sobre o caso1128. Em sentido similar ao processo penal, já que ele seria um “órgão da justiça” e não propriamente uma
de MANZINI, CARNELUTTI afirma que os poderes instrutórios do juiz parte, agindo por dever e não por interesse1135. Segundo QUAGLIERINI, o
excluiam a existência de poderes dispositivos das partes1129. motivo que se parece o mais idôneo para que tivesse sido afastada a existência
De acordo com FLORIAN, no processo civil vigiria a regra actore non de um ônus da prova no processo penal era a inexistência de um direito à
probante reus absolvitur. Contudo, no processo penal, o ônus da prova não prova1136 como “direito de se defender provando”1137.
existe, não ao menos como no processo civil. No processo penal, a busca
fundamental é a da verdade objetiva, material. No processo penal, como atua 2.6. CONCLUSÕES PROVISÓRIAS DO CAPÍTULO
um interesse claramente público, esta busca seria mutilada e insuficiente se Pretendeu-se demontrar, através de um longo percurso, os elementos
fosse deixada apenas às partes. O ônus da prova desaparece como instituto de continuidade e de ruptura da cultura penal e processual penal italiana, na
processual quando o próprio juiz pode suprir a falta da prova pela sua própria
1130. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 344-345.
iniciativa. Assim, o ônus da prova, para FLORIAN, seria incompatível com 1131. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 345.
1132. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 345.
1124. QUAGLIERINI, Corrado. In Tema di Onere della Prova nel Processo Penale. In Rivista Italiana di 1133. FLORIAN, Eugenio. Principi di Diritto Processuale Penale. 2 ed. Torino: Giapichelli, 1932. p. 346.
Diritto e Procedura Penale. a. XLI. Fasc. 4. Milano: Giuffrè, 1998. p. 1260. 1134. DE MARSICO, Alfredo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 3 ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1952. p. 174.
1125. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 201. 1135. CARNELUTTI, Francesco. Prove Civili e Prove Penale. In Rivista di Diritto Processuale Civile. v. II.
1126. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 201. parte I. Padova: La Litotipo, 1925. p. 11-12.
1127. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 201-202. 1136. QUAGLIERINI, Corrado. In Tema di Onere della Prova nel Processo Penale. In Rivista Italiana di
1128. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. t. III. Buenos Aires: El Foro, 1996. p. 202. Diritto e Procedura Penale. a. XLI. Fasc. 4. Milano: Giuffrè, 1998. p. 1261.
1129. CARNELUTTI, Francesco. Prove Civili e Prove Penale. In Rivista di Diritto Processuale Civile. v. II. 1137. VASSALLI, Giuliano. Il Diritto Alla Prova nel Processo Penale. In Rivista Italiana di Diritto e Proce-
parte I. Padova: La Litotipo, 1925. p. 11-12. dura Penale. n. 1, v. 11, 1968. p. 12.
324 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 325

passagem do século XIX para o século XX, acentuando aspectos essenciais que delineavam a tessitura do Estado totalitário, articulando-se em leis
do processo penal fascista. de defesa e em leis de reforma constitucional1141. Foi apenas em 1932 que
Foi no plano teórico que o nacionalismo, articulado através do pen- ROCCO deixou o governo: seja por que cumpriu a sua missão, seja devido
samento jurídico-político de Alfredo ROCCO conseguiu uma tríplice à mutação do regime fascista ou pela quantidade de conflitos pequenos e
negação: do liberalismo, da democracia e do socialismo. Já em 1914 Al- grandes tidos com numerosos expoentes do regime, não excluído Mussoli-
fredo ROCCO havia desenvolvido teoricamente um projeto de Estado ni1142. Como assevera GENTILE, “de 1925 a 1932 a biografia política de
“novo”, de característica autoritária, que deveria se erguer sobre a base do Rocco coincide com a história do fascismo e com o período que assinalou
decadente liberalismo1138. As massas seriam integradas através dos sindi- o fim do Estado liberal e a formação do regime fascista”1143.
catos de Estado1139. Segundo GARLATI, não foi ROCCO que acedeu, de improviso, ao
De acordo com CHIODI, eis os dois principais elementos da retó- canto da sereia do fascismo. Antes, foi o fascismo a se nutrir dos princípios
rica de ROCCO1140: 1) Todos os partidos estão em crise: o partido liberal, teorizados de um ideólogo do seu nível. A pretensa “conversão” de ROCCO
o partido radical, o partido católico, o socialismo. A crise se manifesta ao fascismo é, na verdade uma elaboração, uma parábola1144. Como sustenta
no sufrágio universal, mas as raízes são mais profundas: crise do liberalis- FERRAJOLI, antes dos vinte anos do fascismo, é possível descrever Rocco
mo e da democracia; 2) há uma linha vermelha que conecta liberalismo e como um jurista liberal, muito embora “um conservador e autoritário, es-
socialismo. A tese de Rocco é a de que o individualismo se afirma primei- tatalista e patriótico, que não tinha dificuldades em se encontrar com o
ramente como liberalismo político, se desenvolve depois como liberalismo fascismo, sem, nem por isso, se tornar fascistas, mas simplesmente perma-
econômico e se torna, ao fim socialismo, isto é, que o Estado se torne o necendo fiel a si mesmo”1145.
garantidor do bem-estar econômico do indivíduo, através da socialização Para GARLATI, quando ROCCO se define como herdeiro e conti-
dos instrumentos de produção. Assim, o socialismo não passaria de uma nuador da tradição jurídica italiana a sua afirmação contém um fundo de
variante do individualismo. verdade. A ideia de exemplaridade da pena, que atuaria como prevenção e
repressão, da pena de morte como instrumento de sanção admitido uni-
Como afirma SBRICCOLI, no papel de Ministro da Justiça Rocco
camente contra os inimigos da ordem estatal são conceitos presentes em
foi protagonista – ou autor – da radical transfiguração em sentido autori-
alguma medida no pensamento iluminista, mas que recebem de ROCCO
tário das instituições do Reino e da construção de uma robusta estrutura
uma anacrônica reproposição1146.
jurídica a serviço da defesa da ditadura. De forma lúcida e consciente
individualizou os diversos canais de penetração nas largas malhas do sis- O estilo de pensamento de ROCCO pode ser resumido em uma
tema estatutário e construiu, com uma série coordenada de calculadas interpretação da história europeia dividida entre liberalismo e socialis-
intervenções legislativas, um corpúsculo normativo que cancelava liber- mo, exaltando um novo nacionalismo. A linha vermelha que conecta
dades e garantias, edificando um a um os institutos políticos, econômicos o liberalismo ao socialismo é o seu principal esquema argumentativo.
e jurídicos do regime fascista. No curso de dois anos, de 1925 ao fim de 1141. SBRICCOLI, Mario. Rocco Alfredo. In ________. Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v. II.
Milano: Giuffrè, 2009. p. 996-997.
1926, ingressaram no ordenamento as leis chamadas de “fascistíssimas”, 1142. SBRICCOLI, Mario. Rocco Alfredo. In ________. Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. v. II.
Milano: Giuffrè, 2009. p. 1000.
1143. GENTILE, Emilio. Il Mito dello Stato Nuovo: dal radicalismo nazionale al fascismo. Roma: Bari: La-
1138. Nas palavras de CHIODI, “segundo Gentile, nenhuma conciliação com o liberalismo foi possível após terza, 2002. p. 201.
a intervenção de Rocco no congresso nacionalista de Milão, em maio de 1914”. CHIODI, Giovanni. 1144. GARLATI, Loredana. Arturo Rocco, Inconsapevole Antesignano del Fascismo nell’italia Liberale. In
Alfredo Rocco e il Fascino dello Stato Totale. Disponível em http://romatrepress.uniroma3.it/ojs/index. BIROCCHI, Italo; LOSCHIAVO, Luca. I Giuristi e il Fascino del Regime (1918 – 1925). Roma: Roma
php/giuristi/article/view/79/78. Acesso em 12.01.2017. p. 106. Tre Press, 2015. p.192.
1139. GENTILE, Emilio. A Itália Fascista: do partido armado ao Estado totalitário. In GENTILE, Emilio; DE 1145. FERRAJOLI, Luigi. La Cultura Giuridica nell’Italia del Novecento. Roma, 1999. p. 36.
FELICE, Renzo. A Itália de Mussolini e a Origem do Fascismo. São Paulo: Ícone, 1988. p. 19. 1146. GARLATI, Loredana. Arturo Rocco, Inconsapevole Antesignano del Fascismo nell’italia Liberale. In
1140. CHIODI, Giovanni. Alfredo Rocco e il Fascino dell Stato Totale. In BIROCCHI, Italo; LOSCHIAVO, BIROCCHI, Italo; LOSCHIAVO, Luca. I Giuristi e il Fascino del Regime (1918 – 1925). Roma: Roma
Luca. I Giuristi e il Fascino del Regime (1918 – 1925). Roma: Roma Tre Press, 2015. p. 108. Tre Press, 2015. p. 193.
326 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 327

Para tanto, afirma que primeiramente o individualismo se afirma como linguísticos proporcionados pelas linguagens autoritárias, ROCCO procurou
liberalismo político, se desenvolve como liberalismo econômico e se identificar a revolução fascista com o próprio regime que de forma paradoxal,
transforma em socialismo. O socialismo, nesta ordem de ideias, não conservava os bens da revolução, daí sendo de todo cabível a famosa expressão
passa de um modo do individualismo1147. Segundo LACCHÈ, os ini- da “revolução conservadora”. Conserva-se justamente os bens da revolução.
migos do fascismo são o individualismo, que seriam a base comum do Conserva-se o patrimônio político e jurídico simultaneamente criados pela
liberalismo, da democracia e do socialismo. O “novo” seria o Estado revolução, devendo ser compreendidos, num movimento mais global, dentro
nacional, autoritário, um Estado de Direito erguido sobre a base da do que ROCCO definia como “princípio de ordem”, categoria tão tautológica
juspublicística de matriz germânica, que restringe o espaço da sobera- como a de “revolução conservadora”: um princípío de ordem que servia para
nia popular e concede autonomia aos indivíduos apenas se e enquanto evitar as forças difusas da desordem1153.
funcionais a uma concepção organicista da sociedade1148. O nacionalismo desempenhou o papel de ideologia autoritária mo-
O nacionalismo, assim, trata de restaurar as razões da raça italiana dernizante, arquitetando o material ideológico para o fascismo1154. Como
contra o excesso de individualismo, através da defesa da nação, conside- assinale HESPANHA, “é daqui que surge o direito penal fascista da refor-
rada entidade perpétua1149. É notória a similitude de argumentos entre ma de Alfredo Rocco (1925 – 1930), cujo mote político-ideológico é o de
ROCCO, SCHMITT E CAMPOS. Para se ter notícia de como se tratam romper com o “fetichismo em relação ao dogma da liberdade individual,
de discursos paralelos, basta analisar-se como ROCCO pensa a demo- mal-entendido nos seus exageros demagógicos que parecia dever legitimar
cracia: trata-se da “ manifestação extrema do individualismo no campo qualquer actividade do cidadão, ainda que em contraste aberto com os
político” 1150. Novamente de acordo com as palavras de ROCCO: “A interesses do Estado”1155. Grande parte do sincretismo discursivo e sua cor-
mesma lógica do liberalismo conduz então à democracia. A democracia respectiva pobreza epistêmica podem ser creditados à circunstância de que
contém o liberalismo, mas o supera, tranasformando em positiva a ação o fascismo correspondeu a uma técnica para se tomar o poder, constiuindo
do Estado, proclamando a igualdade de todos os cidadãos e o dogma a sua doutrina ideológica, uma realidade ex post facto1156. Segundo COLAO,
da soberania popular. A democracia é então, também, necessariamente, “muito da orientação autoritária e estatalista do positivismo transitava na
republicana, mesmo quando, por razões de oportunidade contingente, eclética cultura fascista: Alfredo Rocco e Mussolini entendiam a justiça
se adapta provisoriamente à monarquia”1151. O desenvolvimento carac- como instrumento de repressão e ao mesmo tempo de construção de con-
terístico do liberalismo conduziria à democracia, e o desenvolvimento senso em torna da nova imagem do poder”1157.
desta ao socialismo: “é verdadeiro que por longos anos o socialismo foi Pôde-se constatar a presença de uma continuidade entre as ideologias
considerado um sistema econômico-político antitético ao liberalismo: liberais-autoritárias do século XIX e XX, em suas representações do positi-
e, em certo sentido, com razão. Mas a antítese é puramente relativa”1152. vismo e do tardo-liberalismo penal pós-carrariano, que preparou o terreno
Como abordado no capítulo antecedente, operando-se com os giros para que o fascismo encontrasse “prontas” as categorias penais a serem
“ressignificadas”. O tecnicismo jurídico em nenhum momento representou
1147. CHIODI, Giovanni. Alfredo Rocco e il Fascino dello Stato Totale. Disponível em http://romatrepress.
uniroma3.it/ojs/index.php/giuristi/article/view/79/78. Acesso em 12.01.2017. p. 108. 1153. . PIRES MARQUES, Tiago. O Momentum da Codificação Criminal: reflexões metodológicas sobre
1148. LACCHÈ, Luigi. Tra Giustizia e Repressione: i volti del regime fascista. In ________. Il Diritto del a análise histórica dos códigos penais. In TAVARES DE ALMEIDA, Pedro; ________. Lei e Ordem:
Duce: giustizia e repressione nall’Italia fascista. Roma: Donzelli, 2015. p. XI. justiça penal, criminalidade e polícia (séculos XIX e XX). Lisboa: Horizonte, 2006. p. 18.
1149. CHIODI, Giovanni. Alfredo Rocco e il Fascino dello Stato Totale. Disponível em http://romatrepress. 1154. GENTILE, Emilio. A Itália Fascista: do partido armado ao Estado totalitário. In GENTILE, Emilio; DE
uniroma3.it/ojs/index.php/giuristi/article/view/79/78. Acesso em 12.01.2017. p. 109. FELICE, Renzo. A Itália de Mussolini e a Origem do Fascismo. São Paulo: Ícone, 1988. p. 19.
1150. ROCCO, Alfredo. Che Cosa è il Nazionalismo e Che Cosa Vogliono i Nazionalisti. Roma: Associazione 1155. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social.
Nazionalista, 1914. p. 15. Continuidades e Rupturas. In Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1293-1294.
1151. ROCCO, Alfredo. La Dottrina Politica del Fascismo. In________. La Formazione Dello Stato Fascista 1156. VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 147.
(1925-1934). v. III. Milano: Giuffrè, 1938. p. 1097. 1157. COLAO, Floriana. Enrico Ferri: dal socialismo all’”acordo pratico”: tra fascismo e scuola positiva. In
1152. ROCCO, Alfredo. La Dottrina Politica del Fascismo. In________. La Formazione Dello Stato Fascista BIROCCHI, Italo; LOSCHIAVO, Luca. I Giuristi e il Fascino del Regime (1918 – 1925). Roma: Roma
(1925-1934). v. III. Milano: Giuffrè, 1938. p.1098. Tre Press, 2015. p.
328 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 329

qualquer forma de endurecimento das bases liberais (clássicas) do direito e que os penalistas se auto-absolveram nos anos quarenta e cinquenta, sendo
do processo penal relativamente à nova legislação que se foi configurando. que somente a partir dos anos setenta se começou um trabalho de revisão
Neste sentido, assiste razão a DE CRISTOFARO, para quem as semelhan- histórica, que, em consoância com a orientação constitucional, conduziu a
ças ideológicas entre fascismo e nazismo produziram um análogo apelo uma abordagem mais crítica1163.
ao direito penal e aos seus instrumentos de controle social1158. Tais influ- No que diz respeito ao código civil, para tomar mais outro exemplo,
xos ideológicos não se restringiram ao direito e ao processo penal, muito CAPPELINI destaca as seguintes conclusões: a) provavelmente o grau de
embora – como não seria de se esperar de outra forma – ali ganhassem força fascistização do código foi mais geral e profundo do que aquilo que se está
máxima. “Tanto o código penal como o de processo penal transcrevem disposto a admitir; b) a tese contrária foi o resultado de uma escolha po-
fielmente as matrizes culturais autoritárias das quais provêm”1159. lítico-jurídica, que ao fim do regime, tratava de relegitimar os códigos; c)
O mesmo discurso de continuidade com a tradição italiana, exarado a polêmica sobre os códigos foi um momento de “choque simbólico”; d) a
pelos juristas pós-regime poderia ser encontrado em outros campos. Com escolha por uma desfasticização limitada significou a renúncia da doutrina
efeito, a defesa das legislações fascistas, monumentos técnicos mas não po- civilista ao seu papel central no pós-guerra 1164. Tratando do código civil ita-
líticos, percorreu diversos terrenos jurídicos. Assim, podemos tomar como liano e da negativa dos juristas reconhecerem-no como um diploma fascista,
ponto de comparação o que sucedera no processo civil. Apesar do regime HESPANHA afirma que a resposta dos juristas foi quase que unanimemen-
autoritário existente no momento em que foram concluídas as reformas te negativa, desvelando uma tendência da cultura jurídica estabelecida em
dos códigos civilistas, nenhuma radical subversão existiu relativamente à reconhecer a vinculação do direito ao imaginário político-ideológico1165.
legislação precedente1160 afirma CARNACINI. Além disso, como recurso Para HESPANHA, “esta neutralidade política não apenas vacinaria o direito
constante na defesa das legislações produzidas durante o regime fascista, contra os entusiasmos ou irracionalidades políticos. Este último ponto de
recorre-se novamente à comparação com a Alemanha1161. E, neste sentido, vista – que constitui lugar-comum da autoconsciência dos juristas ainda
os processualistas italianos teriam evitado o pior. Veja-se que a “teoria do hoje – não deixou de ser expressamente invocado a favor dos juristas no
freio” não era um privilégio de penalistas, mas de juristas motivados e am- contexto da desfascização italiana”1166.
bientados pelo espírito do tecnicismo. Com efeito, o tecnicismo, paradigma A situação não foi alterada – no signo da continuidade – com a Cons-
da cientificidade e neutralidade do saber jurídico consentirá a ROCCO se tituição Italiana de 1947 – nem com as reformas processuais posteriores,
tornar o legislador penal que todos conhecemos e ao seu código, outorgará especialmente aquela de 1955. Diversos autores de renome emprestaram
uma sobrevivência às mudanças políticas. O seu método acabou por anes- simbolicamente sua força para arregimentar um movimento de contra-ofen-
tesiar o impacto autoritário do direito penal, considerando a qualidade siva às reformas. Para tanto, era necessário “desfasticizar” a legislação penal,
técnica do trabalho e garantindo a imunidade da legislação à influência mas cum granus salis. O discurso, especialmente dos escritores da revista
política fascista, o que lhe acabou permitindo funcionar em plena demo- Archivio Penale oferece uma clara operação de reconstrução semântica de
cracia constitucional1162. De acordo com DONINI, foi devido à tal postura categorias que atravessaram o discurso fascista. Nomes como o de LEONE,
1158. DE CRISTOFARO, Ernesto. Legalitá e Pericolosità: la penalitica nazifascista e la dialettica tra retribu-
zione e difesa dello Stato. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. n. 36. Tre Press, 2015. p. 208.
t II. Milano: Giuffrè, 2007. p. 1043. 1163. DONINI, Massimo. El Problema del Método Penal: de Arturo Rocco al Europeismo Judicial. In Nuevo
1159. DE CRISTOFARO, Ernesto. Giuristi e Cultura Giuridica: dal fascismo alla Repubblica (1940-1948). Foro Penal. v. 7. n. 76. Medellín, 2011. p. 54.
Disponível em https://laboratoireitalien.revues.org/637. Acesso em 12.07.2016. 1164. CAPPELLINI, Paolo. Il Fascismo Invisibile: una ipotesi di sperimento storiografico sui rapporti tra
1160. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. codificazione civile e regime. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v.
v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 765. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 280-282.
1161. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. 1165. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social.
v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 766. Continuidades e Rupturas. In Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1285.
1162. GARLATI, Loredana. Arturo Rocco, Inconsapevole Antesignano del Fascismo nell’italia Liberale. In 1166. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social.
BIROCCHI, Italo; LOSCHIAVO, Luca. I Giuristi e il Fascino del Regime (1918 – 1925). Roma: Roma Continuidades e Rupturas. In Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1285-1286.
330 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO II 331

PANNAIN, CALAMANDREI autorizaram a manutenção de códigos auto- juristas de renome, alguns mantendo inclusive relação direta com o regime
ritários, tendo como o recurso mais frequente, a comparação – teratológica político autoritário brasileiro e outros, que sob as vestes do “tecnicismo”,
e fraudulenta – com a Alemanha, impedindo uma real e efetiva reforma teriam contribuído para racionalizar o sistema1169. Como acentua NEPPI
dos códigos. A própria nomeação de CARNELUTTI (um pensador com MODONA, a sobreposição entre autoritarismo e tencicismo constitui a
os pés muito fincados nas bases liberais autoritárias que constituíram o melhor prova da continuidade substancial da legislação (italiana) entre o
processo penal italiano do século XX, com pitadas de uma rançosa nostal- pré-fascismo, o fascismo e a ordem jurídica republicana, demonstrando,
gia inquisitória1167) para a reforma do código de processo penal, na década portanto, o papel essencial do tecnicismo em regular os dabates sobre os
de 60, representa simbolicamente um pouco das “reformas conservadoras” componentes políticos e sociais do direito penal1170.
que acabaram por evitar uma completa e profunda revisão democrática do Ora, o processo de “racionalização” de um sistema autoritário signifi-
processo penal italiano. ca, invariavelmente, acobertamento, escamoteamento, fraude ou cinismo.
O que deve ser bem compreendido, para que o objetivo do capítulo Todas estas características contribuem para o processo de invisibilização
possa fazer sentido, é que determinadas categorias do processo penal, dada a dos dispositivos autoritários, como foi possível constatar-se no período de
sua fragilidade e alto nível de abstração, puderam ser cooptadas para exercer reformas na década de 50 na Itália. Nas palavras de HESPANHA, “aquilo
uma função perversa no sistema de justiça criminal italiano. Tais categorias que a cultura jurídica corrente crê é que, sendo a “ciência jurídica” um
perpassaram as reformas parciais pós-fascismo, ingressando no cerne da de- labor de racionalização, esta nunca poderia aceitar o irracionalismo, a
mocracia e dali não sendo mais retiradas. Não se pode dizer que um simples emotividade e a desmedida. Justamente traços que teriam caracterizado
repúdio às velhas vestes processuais de Alfredo ROCCO e os reclamos a a ideologia fascista”1171.
princípios constitucionais possam por si mesmos, significar uma adesão ao Resta-nos saber como se deu a construção das fórmulas que acabaram
sistema acusatório1168. Neste ponto específico, as zonas de contato com o por estruturar o atual código de processo penal brasileiro, verificando em que
Brasil aumentam em grau considerável. medida elas resistem, como elas foram reorganizadas a partir do advento da
Todo o capítulo foi apresentado na tentativa de demonstração de como Constituição e sobretudo, identificar os regimes de incompatibilidade com
o autoritarismo processual penal pode ser ressignificado e, para além, como um processo penal democrático.
o advento simbólico de uma Constituição democrática é insuficiente para
conter as permanências herdadas do inquisitorialismo cultural italiano. O
paralelo com a Itália é válido justamente pelas semelhanças legislativas e dou-
trinárias existentes, que ultrapassam – e muito! – a simplória afirmação de que
o Brasil teria “copiado” o código Rocco, o que é uma inverdade.
Como na Itália, existe um fundo técnico e uma tendência a absolver

1167. A concepção de processo inquisitorial definida por SBRICCOLI se aproxima (e muito) daquela orien-
tação carneluttiana de processo, senão vejamos: o processo inquisitorial é estruturado do mesmo modo
que o processo penal público: a mesma ação, as mesmas regras da inquisitio, as mesmas práticas e
cautelas observadas pelos interrogadores, as mesmas regras sobre a tortura, os mesmos critérios para a
valoração da prova e indiícios, o mesmo arbítrio concedido ao magistrado quanto à dosimetria da pena,
emergindo múltiplas figuras simbólicas como a pena medicinal, penitencial ou verdadeiramente penal 1169. Segundo GUARNIERI, os códigos Rocco racionalizaram as tradições do processo penal italiano, man-
que os inquisidores aplicam aos casos. SBRICCOLI, Mario. L’Inquisizione Come Apparato Giuridico tendo a estrtutura mista e bifásica. GUARNIERI, Carlo. L’Ordine Pubblico e la Giustizia Penale. In
Nella Storia della Giustizia Criminale. In ________. Storia del Diritto Penale e Della Giustizia. Milano: Storia dello Stato Italiano. Roma: Donzelli, 1995.p. 390.
Giuffrè, 2009. p. 134. 1170. NEPPI MODONA, Guido. Tecnicismo e Scelte Politiche nella Riforma del Codice Penale. In Democra-
1168. AMODIO, Ennio. Affermazione e Sconfitte della Cultura dei Giuristi nella Elaborazione del Nuovo Co- zia e Diritto. v. 17, 1977. p. 674.
dice di Procedura Penale. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. a. XXXIX. Fasc. 4. Milano: 1171. HESPANHA, Antonio Manuel. Os Modelos Jurídicos do Liberalismo, do Fascismo e do Estado Social.
Giuffrè, 1996. p. 907. Continuidades e Rupturas. In Análise Social. v. XXXVII, 2003. p. 1286.
CAPÍTULO III
A CODIFICAÇÃO PROCESSUAL PENAL DE 1941
NO BRASIL: AS BASES AUTORITÁRIAS DO
PROCESSO PENAL E AS REFORMAS PARCIAIS
POSTERIORES
No capítulo anterior tratou-se de apresentar o processo codificatório
ocorrido na Itália assim como as estratégias e discursos utilizados no sentido
de se garantir a permanência, por longo período, de um código politicamente
erigido como a principal engrenagem repressiva do Estado fascista. O exemplo
italiano serviu para demonstrar como o campo do direito e do processo penal
são suscetíveis de arraigar, em torno de si, manifestações políticas.
Deve-se, portanto, retornar ao campo processual penal brasileiro no
escopo de encontrar, assim como no discurso processual penal italiano, as
rupturas e/ou permanências, legislativas e doutrinárias, relativamente às
bases políticas que edificaram o código processual penal de 1941. O ponto
de partida é a constatação de que o advento da Constituição da República
Federativa Brasileira de 1988 foi insuscetível para gerar o sentimento, tanto
político quanto jurídico, da necessidade de uma reforma completa que ra-
caísse sobre o processo penal (o que se chamou de “pós-acusatório”). Além
disso, a mutação da ordem constitucional tampouco desempenhou, no
plano das práticas punitivas brasileiras, uma alteração de quadro significa-
tiva, senão que, pelo contrário, os últimos anos no Brasil revelam a explosão
de uma máquina de encarceramento em massa1172. Contudo, não se pode
creditar, como faz algum setor criminológico, tão somente à Lei 11.343/06
este cenário. E isto por razão deveras simples. Categorias vitais como a prova
(seja aquelas em sentido estrito, como no caso da perícia, seja em sentido
lato, como no exemplo de depoimento de policiais, suficiência da prova
ou ainda, inversões do onus probandi ou quantidade de droga encontrada

1172. “Para além do texto legal, que sofreu ao longo dos anos alterações pontuais incapazes de propiciar mu-
danças na estrutura do processo penal brasileiro, há uma tradição autoritária que encontra na legislação
processual penal instrumentos (poder-se-ia falar de “brechas”) para se exteriorizar em atos autoritários,
mesmo que em períodos democráticos”. CASARA, Rubens R. R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria
do Processo Penal Brasileiro. v. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 19.
334 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 335

em posse do acusado) pertencem ao universo do processo penal. E, como de processo penal, em seu art. 212, ainda mantém o sistema presidencial de
tal, parcela da responsabilidade pelo encarceramento em massa deve ser inquirição de testemunhas (que deve ser conjugado com a degeneração da
compartilhada com as engrenagens processuais penais. teoria das nulidades) demonstram que existem camadas de autoritarismo no
Se as reformas na Itália, na década de 1955 tiveram por escopo expulsar processo penal brasileiro, nem sempre visíveis prima facie. Desta maneira, a
da legislação os elementos mais visivelmente fascistas1173 (com a correspectiva responsabilidade não pode ser depositada exclusivamente nas mãos do então
ocultação de outros tantos), gerando o período do “garantismo inquisitório”, ministro de justiça do governo VARGAS, Francisco CAMPOS, contexto que
o mesmo não se pode dizer do Brasil, que acabou por acumular microrrefor- deflagraria os dois processos de codificação processual: civil e penal.
mas (modificação de alguns poucos artigos) e reformas parciais (tentativas de O percurso a ser realizado neste capítulo será aquele de resgatar a estrutura
sistematização de um número maior de artigos). Em algumas oportunida- originária do código de processo penal brasileiro e analisar como as reformas
des, inclusive, tais alterações legislativas acabaram por acentuar características processuais penais não apenas foram insuscetíveis de redimensionar a sua estru-
inquisitórias e autoritárias de um sistema antidemocráitco, como o caso da tura, a fim de torná-lo mais compatível com a Constituição da República, mas
autorização para o juiz determinar de ofício, mesmo que antes do ajuiza- pelo contrário, aprofundaram ainda mais o autoritarismo nas práticas punitivas.
mento da acusação, a cautelar de produção antecipada de provas (art. 156, O mote das reformas parciais e microrreformas processuais penais, a exemplo
I do CPP). Pode-se dizer que o sistema autoritário do Código de 1941 não do que ocorrera na Itália, contribuiu para encobrir dispositivos abertamente
foi suficientemente alterado para que seus elementos inquisitoriais de base autoritários, produzindo o “inquisitório eterno” em terras brasileiras1174.
fossem completamente expulsos do quadro normativo processual penal bra- Uma ideologia tecnicista também encontrou largo espaço para se de-
sileiro. Seria possível dizer que nessa quadra, com a incessante produção de senvolver no Brasil, o que garantiu, de acordo com consistente paradigma
reformassem cascata, aquelede autoritarismo se agravou. A inconsistência, a do pensamento tecnicista, a “universalidade” dos institutos somada à “auto-
precariedade técnica, a ausência de solidez nas propostas de reforma e, o que declarada imunidade política” a despeito de quaisquer orientações extra ou
é mais grave, a destruição de qualquer tentativa de organização sistemática metaprocessuais. Mas, entretanto, se há algum aspecto para se destacar em
(seja através das reformas parciais ou ainda, das microrreformas que alteram relação à Itália, este ponto deve ser atribuído ao Supremo Tribunal Federal.
o código de processo desde a topologia da legislação especial) desfiguraram O autoritarismo brasileiro sobrevive graças à manutenção da continuidade
o processo penal brasileiro, mantendo-lhe as feições autoritárias: algumas dos “entendimentos” da corte, que foram sustentados, se aprimoraram ou
já existentes na década de 40, outras acentuadas mediante a incorporação ainda, foram criados em pleno regime ditatorial e que se perpetuam após
de dispositivos antidemocráticos. O resultado se poderia denominar como o advento da Constituição da República. O autoritarismo processual penal
“metástases das práticas autoritárias no campo processual penal”. brasileiro passa necessariamente pelo autoritarismo da corte constitucional, e
O panorama é ainda menos animador quando se percebe que a doutrina que não deve se confundir com episódicas manifestações liberais que podem
de baixa aderência constitucional e avessa a discussões verticais e aprofundadas ser encontradas eventualmente em decisões de seus membros, cuja regra é a
dos institutos processuais, responsáveis por alimentar toda uma engrenagem falta de sistematicidade. Neste ponto, evidentemente, toma-se como objeto
econômica, política e cultural em torno dos famosos “concursos públicos”, de análise unicamente os julgados exarados pelo Supremo Tribunal Federal
acaba por oferecer suporte para práticas que ignoram preceitos constitucionais em termos de exercício da função jurisdicional como corte de cassação (o
e legais. Os exemplos da deformação da teoria das nulidades (toda nulida- que, para efeitos do sistema de impugnação no processo penal brasileiro,
de requer um prejuízo, o que em última instância quer dizer que existem 1174. Inclusive, um processualista do quilate de José Frederico MARQUES acentuará que o processo de cien-
apenas nulidades “relativas”) e da doutrinária argumentação de que o código tificização da doutrina processual penal na Itália se deu com Vincenzo MANZINI e Arturo ROCCO, e
mais tarde com os trabalhos de MASSARI, FLORIAN, DE MARSICO, LEONE e GRISPIGNI. Todos
eles tecnicistas ou positivistas. Frederico MARQUES não aponta nenhum aspecto político da atuação
destes pensadores no período fascista ou pós-fascista, mantendo-se fiel aos postulados do tecnicismo,
1173. Exemplificativamente, esta é a postura de RUBBIANI, Guglielmo. Nuovi Orientamenti della Giustizia de separação entre direito e política. MARQUES, José Frederico. O Direito Processual em São Paulo.
Penale. In Archivio Penale. v. 1, 1945. p. 149. São Paulo: Saraiva, 1977. p.130.
336 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 337

comporta, inexoravelmente, dada a sua precária organização sistêmica, os de construção dos diplomas legislativos até mesmo às suas bases ideológicas
mandados de segurança, habeas corpus e seus recursos). Diferentemente da e jurídicas não permite um tratamento unívoco. E, como dito, cujo alcance
Corte de Cassação Italiana, em que são notórios os sobressaltos – evoluções extrapolaria, sem qualquer dúvida, os limites deste empreendimento.
e involuções – o Supremo Tribunal Brasileiro registra uma história de per- Portanto, a Constituição de 1934, em seu art. 5º, inciso XIX, “a”, havia
manência de conceitos processuais penais herdados da tradição autoritária, estabelecido a competência da União para legislar em matéria processual
seja do liberalismo reacionário e conservador, seja do desenvolvimento dos penal, exigindo a produção de um novo regime processual penal unificado.
próprios preceitos fascistas que encontram recepção em sua jurisprudência. A Constituição de 1934, no art. 11 de suas Disposições Transitórias esta-
Será necessário, portanto, reencontrar a tradição brasileira de processo beleceu que: “o Governo, uma vez promulgada esta Constituição, nomeará
penal para depois partirmos para a definição de sua estrutura assim como das uma comissão de três juristas, sendo dois ministros da Corte Suprema e um
reformas construídas nos seus muitos anos de vida. Esta a tarefa que se inicia. advogado, para, ouvidas as Congregações das Faculdades de Direito, as Cortes
de Apelações dos Estados e os Institutos dos Advogados, organizar dentro de
3.1. O PROJETO VICENTE RÁO: A CONCEPÇÃO “SOCIAL” três meses um projeto de Código de Processo Civil e Comercial, e outra para
DO DIREITO E A RETÓRICA DO “JUSTO EQUILÍBRIO” elaborar um projeto de Código de Processo Penal”.
Antes de se passar à análise do processo de codificação brasileiro que deu A comissão, no intuito de perfectibilizar o estatuído na Constituição,
origem ao Código de Processo Penal de 1941, torna-se necessário identificar resolver adotar as seguintes providências, de acordo com a Exposição de Mo-
algumas questões laterais, como as bases jurídicas existentes à época. Parece- tivos do Projeto: “tomar conhecimento das instruções baixadas pelo Ministro
-nos curial acentuar, muito brevemente, que o Código de Processo Penal de da Justiça, seu presidente; b) convidar, como colaboradores, alguns juristas e
1941 não foi a primeira obra ou tentativa consistente em dotar o Brasil de professores de direito; c) requisitar dos Interventores Federais nos Estados a
uma estrutura orgânica legislativa, para viger em território nacional. remessa de exemplares dos códigos ou leis processuais penais ali vigentes; d)
Metodologicamente, não se procurará traçar uma “evolução histórica” solicitar sugestões aos presidentes das Côrtes de Apelação, às congregações
dos institutos processuais penais brasileiros, que se estenderiam pelo exame das Faculdades de Direito e aos Presidentes dos Institutos dos Advogados; e)
das Ordenações, pelas disposições construídas no período imperial e além tomar por base, para início dos trabalhos o Projeto de Código de Processo
disso, o que acarretaria um esforço que atrairia para si a independência e au- Criminal de Comissão Legislativa, criada pelo então Govêrno Provisório”.
tonomia investigativas, os códigos de processo penal dos Estados. Recaindo o O impulso para que uma legislação processual penal unificada fosse
enfoque sobre o processo de construção de um código republicano e unitário construída estava dado. A constitucionalmente referida comissão foi com-
para o Brasil, a análise recairá exclusivamente sobre os diplomas processuais posta por Antonio Bento de FARIA1176, Plínio CASADO1177 e Luiz Barbosa
penais que foram objeto de tentativas de reformas. da Gama CERQUEIRA1178, além do ministro Vicente RÁO1179. O projeto
A primeira tentativa de se construir um sistema processual penal uni- 1176. Bento de FARIA era Ministro do STF. Cf Projeto do Código do Processo Penal da República dos Esta-
dos Unidos do Brasil. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 34. n.3. São
tário para o Brasil adveio do denominado “Projeto Vicente Ráo”1175. Até a Paulo, 1938. p. 07. Bento de FARIA foi nomeado pelo presidente Arthur da Silva Bernardes em 1925,
sendo formado pela faculdade de direito da Universidade do Rio de Janeiro. Exerceu a juridição no
Constituição de 1934, quando entra em vigor uma nova ordem constitucio- tribunal até 1945, quando se aposentou. As informações sobre Bento de FARIA podem ser consultadas
nal, os Estados da Federação tinham autonomia para proceder à elaboração de em http://www.stf.jus.br/portal/ministro/presidente.asp?periodo=stf&id=222. Acesso em 22.09.2016..
1177. Plínio CASADO também era ministro do STF. Cf Projeto do Código do Processo Penal da República
seus próprios códigos de processo penal. Desta maneira, vigia, portanto, um dos Estados Unidos do Brasil. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v.
34. n.3. São Paulo, 1938. p. 07. Plínio CASADO formou-se em direito pela Faculdade de Direito da
sistema processual penal pluralista, cujas idiossincrasias, desde os processos Universidade de São Paulo. Foi nomeado ministro do STF em 1931, se aposentando em 1938. http://
www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=120. Acesso em 22.09.2016.
1175. De acordo com RECONDO, Vicente RÁO foi, na década de 30, o que fora Carlos MEDEIROS para 1178. Gama CERQUEIRA à época, era professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cf
a ditadura, ou seja, um consultor permanente para a criação de medidas jurídicas autoritárias, sendo Projeto do Código do Processo Penal da República dos Estados Unidos do Brasil. In Revista da Facul-
inclusive, o responsável pela redação da minuta do Ato Institucional nº 2. RECONDO, Felipe. Tanques dade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 34. n.3. São Paulo, 1938. p. 07.
e Togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 111-112. 1179. Vicente RÁO também foi professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cf Projeto
338 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 339

foi apresentado em 1935, com uma exposição de motivos apresentada por explica, parcialmente, o insucesso nas tentativas de se construir um regime
Vicente RÁO, então ministro da justiça e negócios interiores. substancialmente acusatório no Brasil. Este discurso da “compatibilidade”
Foram convidados os seguintes juristas para compor o trabalho: Antô- pode ser verificado novamente na Exposição de Motivos do Projeto Vicente
nio Eugenio MAGARINOS TORRES, José Miranda VALVERDE, Mário Ráo: “há de se visar, pelo direito, disciplinando-o, a ligação harmônica do
Bulhões PEDREIRA, Haroldo VALADÃO, Astolpho REZENDE, Melcíades interêsse individual com o interêsse coletivo, a bem da coexistência e do
Mário de SÁ FREIRE, Cândido de OLIVEIRA FILHO e Carlos Maximi- aperfeiçoamento da sociedade e do indivíduo”. Este período, na década de 30
liano dos SANTOS. do século XX possuiria as seguintes características, de acordo com Astolpho
O projeto foi desenhado segundo a mesma inspiração que poderia ser REZENDE: a) restrições progressivas à competência do júri; b) extinção do
posteriormente encontrada no código de processo penal de 1941: tratava-se inquérito policial; c) equilíbrio entre os direitos da sociedade e do acusado1180.
de um projeto em que era possível identificar a presença de uma “concepção Além disso, o diploma legislativo teria o condão de unificar a legislação
social” de direito. O Projeto Vicente Ráo será porta-voz de uma intensa crítica processual penal do país, considerada um problema grave a ser resolvido. De
ao individualismo, algo sem sombra de dúvidas contextual no campo político acordo com a exposição de motivos do Projeto Vicente Ráo
brasileiro, e cuja retórica será a de um “equilíbrio” entre direitos individuais e “bem andou o legislador constituinte em adotar o princípio da unidade
sociais. Esta, por sinal, uma constante no discurso penalístico e processualístico de nossas leis formais. Na verdade, por seu caráter social, eminentemente
social, em sua origem, em sua essência, em sua finalidade, é que o direito se
brasileiro. Tais princípios, de acordo com a Exposição de Motivos do Projeto:
caracteriza. Nasce como uma necessidade social, para através de suas normas,
“obedecem a critérios novos em nosso sistema processual penal, embora co- permitir a própria existência da sociedade, acompanhando-lhe os passos, em
nhecidos e praticados em outros países. Desde logo e antes de maior exame, todos os graus de sua evolução, para disciplinar, uma a uma, tôdas as suas
permito-me invocar o princípio básico que levou os eminentes juristas au- manifestações exteriores. Não se compreende, pois, a valia do direito na letra
tores dêste trabalho a adotar as principais inovações contidas no Projeto: morta da doutrina, considerada isoladamente em si mesma, senão através da
– o caráter social do direito domina, hoje, a consciência jurídica universal, realidade viva dos textos legais, que na doutrina buscam a solução melhor,
encaminhando-a para novos rumos construtores”. vivificando-a. Ora, os textos não disciplinam sempre a vida social pela inér-
Esta “concepção social de direito”, significante que cruzará décadas, cia, ou seja, pelo respeito voluntário, espontâneo, de suas disposições. Mais
palpitante aparece a vida no direito justamente quando, viciado, provoca a
inclusive se materializando na “concepção instrumental” de processo penal, intervenção do poder coercitivo do Estado. Daí as leis processuais, consagra-
tinha como ponto de partida a crítica a alguns preceitos considerados “indi- doras das normas a que está sujeita a reação social, tendente a restabelecer o
vidualistas”. Neste sentido, o Projeto estabelecia que: direito ferido. Por isso, não se compreende como, em um mesmo país, possa
“material ou formal, não mais se conceitua, o direito, pelo prisma do indivi- o amparo do direito obedecer a ritos e formas diferentes. Não é a teoria, nem
dualismo romano, reincarnado na obra legislativa que a revolução francesa a leitura dos textos legais o que incute à massa o sentimento do direito, e
nos legou, sobretudo aos países latinos, nem tão pouco pelo socialismo extre- sim, precipuamente, a manifestação externa de sua força obrigatória, da pro-
mista, concretizado em certos ensaios políticos e sociais de nossos dias. É que, teção-coação que em todo o direito se encerra, como um de seus elementos
dêstes últimos, o primeiro princípio sobrepõe o interêsse individual ao geral, formadores. Exatamente essa forma de exteriorização por ser a mais incisiva,
o menos ao mais, a parte ao todo, enquanto que o segundo destrói a parte no a que mais fundo penetra no espírito do povo, não deve ser multiforme em
pressuposto ilusório de dar vida ao todo, elimina o valor social do elemento um mesmo país, variando de canto a canto, sob pena de não se criar jamais
componente na crença de vivificar, como corpo diverso, o composto social”. uma consciência jurídica verdadeiramente nacional e, com ela, um espírito
comum de nacionalidade. Dizer unidade do direito é dizer uniformidade na
Portanto, será na base do Projeto Ráo que encontra espaço para se maneira de definir, aplicar e defender os interesses legítimos; é dizer que os
agasalhar a noção de “equilíbrio”, que possuirá uma significativa performati- mesmos atos não provocam soluções nem fórmulas jurídicas diferentes em
vidade no campo dos “ajustes” políticos e jurídicos do processo penal, o que um mesmo território; é dizer, finalmente, que se assim mantém o direito sua
própria natureza e realiza a finalidade, que lhe é inerente, de acompanhar a
do Código do Processo Penal da República dos Estados Unidos do Brasil. In Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. v. 34. n.3. São Paulo, 1938. p. 07. 1180. REZENDE, Astolpho. Nos Domínios da Criminologia. v. II. Rio de Janeiro: Cia Brasil, 1939. p. 609-610.
340 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 341

par e passo com suas normas obrigatórias tôdas as manifestações externas da Esta, ao envez de se limitar às funções de investigação e de manutenção
atividade social incidentes em sua esfera de ação. Considera-se, por fim, que da ordem, forma o conteúdo do processo e, antecipando-se às autoridades
o intercâmbio de pessoas e bens e interêsses reclama, dia a dia, mesmo nas judiciárias, pratica atos inequivocamente processuais, tais, por exemplo, as
relações internacionais, uma uniformidade crescente das normas jurídicas”. declarações do acusado e o depoimento das testemunhas, que toma por escri-
O Projeto aponta a existência de três principais inovações no corpo to. É o que se chama “inquérito” ou seja, a peça donde o Ministério Público,
raramente colaborador de sua feitura, extrai os elementos para a denúncia,
legislativo: a) a supressão do inquérito policial, que acabou sendo substituí-
escolhe a dedo o rol das testemunhas da acusação e colhe a indicação das
do pelo juizado de instrução; b) a regulagem da produção probatória, em demais provas, inicialmente constituídas, todas elas, pelo espírito obliterado,
contraditório, perante o juiz, assegurando-se, com isso a ampla defesa e o que a prática do ofício determina, da autoridade policial respectiva”.
contraditório; c) simplificação da ação penal. Estes os principais elementos Na Exposição de Motivos do Projeto, ainda, é narrado o problema da
que, segundo o então ministro da justiça, foram incorporados ao novel inadmissibilidade da produção de provas para a defesa, não sujeita ao regime
processo penal brasileiro. do contraditório. E isso seria assim, uma vez que não se trata o instrumento
Tais reformas, especialmente a introdução do juizado de instrução, não do inquérito de uma peça apta a produzir a verdade, mas tão somente iden-
pode ser bem entendida sem antes delimitar-se a compreensão dos sistemas tificar a culpa do investigado.
processuais penais. Na tradição do pensamento brasileiro na transição do século
A adoção, portanto, do inquérito, produziria, na visão do Projeto Ráo,
XIX para o século XX, o processo penal brasileiro era considerado como um
duas espécies de prejuízos: a) o primeiro resultante da falta de proteção da socie-
“sistema misto”. Era esta a principal noção a autorizar a supressão do inquérito
dade, já que o processo penal possuiria determinadas falhas, que não obstariam
policial pelo juizado de instrução. Sobre o sistema misto, podemos encontrar a
a impunidade de um “delinquente” defendido por habilidoso advogado:
seguinte passagem na Exposição de Motivos do Projeto Vicente Ráo:
“Pondere-se bem no seguinte: – as declarações e depoimentos produzidos
“mas o sistema mixto, que, com o correr do tempo, humanizou os métodos perante a polícia, em princípio, não teem o valor legal de prova. Pois bem,
inquisitoriais adotados, como todo sistema eclético, não ostenta linhas es- quando o acusado e as testemunhas são ouvidas de novo em juízo, longo
truturais rígidas. Dentro de suas paredes mestras, ao contrário, amoldam-se tempo já decorreu da prática do crime, longo tempo que sempre produz uma
as variantes mais incisivas, segundo demonstra a legislação dos povos cultos. alteração da verdade, ora obtida pelos interessados, ora provocada, em boa
De mais a mais, essa multiplicidade de sub-tipos plenamente se justifica pela fé, pelo próprio tempo ou pela interpretação que no ânimo da testemunha
razão básica, a que acenei, segundo a qual deve o direito, ao realizar seus fins se forma, sob a influência do noticiário, dos comentários, da imaginação,
acompanhar, respeitando-as, as peculiaridades e as condições específicas do enfim, do feitio psíquico de cada qual – o que tudo torna a repetição das
meio-ambiente em que opera. Eis por que o Projeto não visou transplantar provas, inclusive o novo exame dos vestígios do crime desaconselhável, sob
para nosso país, pura e simplesmente, qualquer construção legal erguida qualquer aspecto que seja.”
alhures, nem tão pouco se obrigou sem condições à sombra desta ou aquela
sub-espécie do sistema mixto, que, todavia, sob um aspecto mais amplo, é o Evidentemente que, sob a retórica do “equilíbrio”, o Projeto assinalava a
sistema que lhe confere classificação científica”. sua função de combater a impunidade: “estabelece normas mais severas, mais
A Exposição de Motivos do projeto tratava de algumas dificuldades seguras, para evitar a impunidade do crime, mas também faculta ao crimino-
ou defeitos encontrados no sistema processual penal de então. A mais grave so, ou a quem é reputado tal, meios honestos, cercados de igual segurança,
delas, no entender do ministro da justiça, residia na manutenção do inquérito para a produção de sua defesa”. A principal característica deste anteprojeto
policial, que descaracterizava por completo as funções da polícia, bem como era a criação de um juizado de instrução, surpimindo-se o inquérito policial.
importava em grave afronta aos direitos do acusado. Esta função anômala que Isso não significava a retirada da polícia da investigação, mas a sua atuação
na prática era desepenhada (e que continua sendo, diga-se en pasant) pelo em companhia do juiz instrutor1181. Afirmou-se como objetivos primordiais
inquérito policial era tratada como inadmissível:
1181. Cf PIERANGELI, José Henrique. Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Pau-
“Diga-se a verdade por inteiro e com coragem: – à apuração da responsabi- lo: IOB Thomson, 2004. p. 155. Cf AMARAL, Augusto Jobim do. Política da Prova e Cultura Puni-
tiva: a governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo. Coimbra: Almedina,
lidade criminal não se procede, hoje, ainda, em juízo, mas perante a polícia. 2014. p. 150-151.
342 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 343

do projeto a “simplificação da ação penal” e a necessidade de se estabelecer casos de justificação da prisão em flagrante: a) no momento do
“maiores garantias à defesa”. crime, quando existentes testemunhas do fato ou ainda, teste-
munhas da prisão, com subsequente confissão da prática pelo
Como referido, o principal ponto de ruptura com a tradição brasileira
flagrado; b) em caso de perseguição ou em situação que faça
era a extinção do inquérito policial, que seria substituído pela juizado de ins- presumir a autoria, desde que ofendido ou autoridade pública
trução1182. Neste sentido, dispunha a Exposição de Motivos que “retira-se à indiquem a autoria; c) quando for encontrado, logo após, com
Polícia, por essa forma, a função, que não é sua, de interrogar o acusado, tomar armas ou objetos procedentes do crime. Neste ponto, percebe-se
o depoimento de testemunhas, enfim, colher provas sem valor legal; conserva- que há maiores limitações à configuração do flagrante relativa-
lhe porém, a função investigatória, que lhe é inerente, posta em harmonia e mente ao Código de Processo Penal de 1941;
legalizada pela participação do juiz, sem o que o resultado das diligências não c. A prisão preventiva poderia ser decretada: a) para garantia da
podem, nem devem ter valor probatório. Não emperra, por isso o aparelha- ordem pública; b) por conveniência da instrução criminal; c) “nos
casos de alcance para com a Fazenda Pública”; d) para assegurar
mento defensivo da sociedade, eis que qualquer autoridade, presente em lugar
a aplicação da pena. Assim, não havia a modalidade da prisão
onde ocorra o fato que reclame providências imediatas, deverá intervir para preventia para garantia da ordem econômica, introduzida apenas
ordená-las, até o comparecimento da que for competente (art. 134)”. em 1994, pela Lei 8.884/94;
Conjugado à extinção do inquérito policial, o juizado de instrução ga- d. Instituição da “detenção provisória”, prevista no art 50, com prazo
rantiria o princípio elementar de que a “apuração da verdade” obedeceria a dois máximo de 10 dias, a pedido do Ministério Público ou através de
cânones: o do livre convencimento do juiz e o do contraditório. O Projeto ainda representação da autoridade policial, sempre que “necessário aos
trataria da incomunicabilidade do acusado preso (art. 125), norma que haveria interêsses da justiça ou conveniente à investigação”;
de ser mantida, com adequações, no código de processo penal de 1941. e. O sistema de competência é muito similar ao Código de Proces-
so Penal de 1941, com regras praticamente equivalentes, como a
Além das principais inovações apresentadas na Exposição de Motivos, definição da competência em razão do lugar e dos critérios para
uma análise geral do Projeto autoriza a conclusão de que fundamentalmente, resolução de problemas como limites incertos entre comarcas, o
o Código de Processo Penal de 1941 manteria uma série de normas já existen- domicílio alternativo em caso de ação penal privada, a noção de
tes no Projeto Vicente Ráo, inovando em outros pontos. Percebe-se, embora prevenção, continência e conexão bem como os casos de determi-
não se possa encontrar tal afirmação de forma expressa, que o Código de nação da competência entre casos continentes/conexos;
Processo Penal de 1941 utilizou-se, em boa medida, de dispositivos existentes f. a instrução criminal teria como função primordial verificar a exis-
no Projeto Vicente Ráo, chegando alguns artigos, a reproduzir exatamente ex- tência de crimes ou contravenções, bem como recolher a prova da
pressões utilizadas pelos artigos do Projeto Ráo. Em alguns pontos, o Projeto infração (art. 98), podendo ser iniciada por requerimento do Minis-
tério Público, a pedido da parte ofendida, mediante representação
Vicente Ráo era mais liberal e progressista do que o atual CPP. Em outros, era de qualquer pessoa do povo,ou ainda, de ofício (art. 99)
ainda mais conservador. A competência do júri não seria modificada, uma vez
g. o interrogatório, nesta fase de instrução, não vinha acobertado pelo
que o projeto delegava aos Estados a determinação da competência em razão direito ao silêncio. Apesar de o art. 120 do Projeto afirmar que o
da matéria (art. 83). Mas vejamos alguns pontos do Projeto: juiz não poderia constranger o acusado a responder as perguntas,
a. O Projeto Ráo proibia o uso de algemas, salvo resistência do preso deveria consignar aquelas que o réu não quis responder;
ou em tentativa de empreender fuga (art. 32). Não há dispositivo h. em caso de arquivamento da instrução, o juiz deveria recorrer de
semelhante no Código de Processo Penal de 1941. ofício de sua decisão (art. 139).
b. A prisão em flagrante era regulada pelo art. 40 e estabelecia os i. na disciplina da prova, o art. 205 praticamente decreve o sistema
1182. A ideia de extinção do inquérito policial sobreviveu ao diploma, como acentua LAZZARINI, que enten- de rapartição de “ônus probatórios”, incorporado futuramente ao
de o inquérito policial como “uma peça meramente informativa”, “de duvidoso valor jurídico LAZZA- Código de Processo Penal de 1941, ao afirmar que “incumbe a
RINI, Álvaro. Juizado de Instrução. In Revista de Informação Legislativa. a. 26. n. 101, 1989. p. 199.
344 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 345

prova a quem alega o fato ou o direito, em acusação ou em defesa”; invalidade (art. 548, parágrafo único) ou quando apenas beneficie
j. O art. 206 do Projeto afirma que “tôdas as provas devem ser pro- a parte contrária (art. 548, caput).
duzidas no processo perante o respectivo Juiz”; Com estas menções, pensamos que a estrutura do código de processo
k. O art. 208 do Projeto disciplina os meios de prova admitidos, estan- penal inscrito no Projeto Ráo pode ser bem compreendida. Há aspectos mais
do em franca dissonância com a tutela do “princípio da liberdade liberais e outros mais conservadores em uma comparação com o Código
da prova”, regime adotado pelo Código de Processo Penal de 1941; de Processo Penal de 1941. Além disso, parte considerável de dispositivos
l. No que diz respeito ao exame pericial (art. 220), o exame de corpo foram incorporados ao sistema processual penal articulado por Francisco
de delito será considerado essencial nos “crimes que deixam vestí- CAMPOS, o que indica a sua utilização nos trabalhos da comissão, con-
gios”, utilizando-se aqui a mesma terminologia e centralidade da
firmando que o CPP de 1941 não criou um novo sistema processual, com
perícia nos crimes de resultado;
regras inexistentes no passado brasileiro.
m. O art. 241 do Projeto afirmava que “o silêncio do acusado não
importa confissão”. O mesmo texto será reproduzido no art. 198 A Exposição de Motivos do Projeto Ráo é datada de agosto de 1935
do Código de Processo Penal de 1941, acrescido de um dispositivo, e o projeto não se transformou em lei. Fundamentalmente, como sustenta
segundo o qual “mas poderá constituir elemento para a formação Frederico MARQUES1183, o advento da Constituição de 1937 impediu a sua
do convencimento do juiz”; tramitação, já que o Congresso haveria de ser dissolvido por Getúlio VARGAS.
n. O art. 294 do projeto consagra a obrigação de o juiz fundamentar a Caberá, a partir de então, proceder-se ao exame do Código de Pro-
decisão, segundo um modelo normativo de fundamentação: “é nula
a sentença não fundamentada e assim se considera a que se reporte
cesso Penal de 1941. A opção por enfrentá-lo se dá no intento de oferecer
unicamente às alegações das partes ou a opiniões doutrinárias ou ao leitor uma compreensão cronológica da legislação processual penal bra-
se refira a outra decisão não constante dos autos”. Este dispositivo sileira. Seria possível, do ponto de vista metodológico, inclusive, examinar
não encontrará similar no CPP de 1941; antecipadamente as demais tentativas de reforma do código de processo
o. Já havia a presença do instituto da emendatio libelli no art. 296, penal brasileiro, deixando para exame a legislação atualmente em vigor.
redigido de forma ainda mais imprecisa do que o futuro art. 383 do Contudo, seguiremos na trilha diacrônica, sem que isso implique opção
CPP de 1941: “o Juiz, na sentença, pode conceituar diversamente por uma história positivista do saber processual.
o fato que motivar a acusação, para alterar-lhe a classificação, desde
que daí não resulte o reconhecimento de delito de natureza diversa”; Partimos, portanto, ao diploma processual penal brasileiro.
p. Assim como o CPP de 1941, o Projeto Ráo (art. 391) previa várias
hipóteses de recurso de ofício (todos elas em situações em que o 3.2. O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO DE
poder punitivo do Estado pudesse restar comprometido): a) no caso 1941: A “CIVILÍSTICA PROCESSUAL PENAL” BRASILEIRA
de arquivamento da instrução criminal; b) em caso de decisão que E A CONSTRUÇÃO DO “PROCESSO PENAL SOCIAL”
reconheça a incompetência; c) rejeição liminar do pedido ou repre- O exame do Projeto Vicente Ráo de processo penal acenava com a
sentação para instauração de procedimento criminal; d) decisão que
linha geral que informaria a instituição de um código de processo para todo
acolha a prescrição; e) reconhecimento de circunstância justificativa
ou dirimente da responsabilidade criminal do réu; o território nacional: um “direito social”, capaz de reequilibrar direitos da
sociedade e dos indivíduos. Esta orientação não foi abandonada com a pro-
q. Previsão da noção de prejuízo (art. 545, IV; art. 548) para as
nulidades, em um sistema muito parecido com o do Código de mulgação da Constituição de 1937. O significante “social” foi incorporado
1941, pois havia a previsão de um rol legal (art. 546), sempre às mais diversas legislações produzidas no regime do Estado Novo varguis-
subordinado à ideia matriz do prejuízo. No sistema de nulida- ta, bem como o seu transplante, para além da Constituição de 1988 será,
des também se previu o “princípio” do interesse, segundo o qual
1183. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense,
a nulidade não poderá ser arguida por aquele que deu causa à 1965. p. 104.
346 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 347

inequivocamente, a precipitação de performances autoritárias: a “concepção BRESCIANI, o antiliberalismo foi generalizado, não sendo, portanto, uma
social do processo penal” permanecerá intacta por muitas décadas. Como ideologia defendida exclusivamente pelos ideólogos autoritários1190. A partir
exemplo, podemos citar aqui o pensamento de Pedro Batista MARTINS, que deste significante abstrato, a “socialização” foi capaz de mobilizar diversos
inclusive participará da comissão de trabalhos do Código de Processo Civil: juristas pertencentes a distintas orientações1191.
“tôdas as reformas legislativas do presidente VARGAS teem obedecido a um A base discursiva do código de processo civil de 1940 é equivalente
só sistema e objetivado o mesmo fim, que é a socialização do direito”1184. No à do processo penal, uma concepção, nos dizeres de Francisco CAMPOS,
mesmo sentido será a manifestação de José DUARTE, ao comentar a reforma “autoritária”. Esta “concepção autoritária de processo” é equivalente à cha-
do código penal, para quem “a nova concepção objetivista do Estado Novo mada “concepção juspublicística de processo”, e cuidou, no Brasil, de agregar
e Forte, a socialização intensa da vida jurídica, estavam a ditar essa reforma, um discurso científico de molde a esconder suas inclinações políticas1192. A
a indicar a adequação da nossa lei penal aos anseios da nova sociedade”1185. denominada concepção publicística de processo, que possuía antecedentes
A sociologia que, como visto no primeiro capítulo, instruía o pensamento na Áustria, Hungria, Alemanha e Portugal e que transparece no ensaio de
dos ideólogos autoritários brasileiros, aparecia com uma feição nacionalista. CHIOVENDA A Ação no Sistema de Direitos – outorga a aura científica ao
O código de processo penal era interpretado como uma “obra nacional”1186. discurso de CAMPOS na exposição de motivos do Código de Processo Civil
Neste ponto, havia quem inclusive, negasse a influência italiana para susten- de 1940. Segundo SANTOS, com acerto, na exposição de motivos do Código
tar a manutenção da “tradição brasileira”, como o caso de AZEVEDO. Algo de 1940, concepção publicística e autoritária são expressões equivalentes1193.
sabidamente uma ficção indesmentível1187.
A “concepção autoritária de processo”1194, empregada por Francisco
Este processo de “socialização” do direito atingirá diretamente o campo CAMPOS para designar a publicização do direito processual civil (largamente
processual. Segundo SILVEIRA, a reorganização do direito com VARGAS, comentada na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil) e já refe-
a partir de 1930, fora muito bem recebida pelos juristas. “O sucesso dessa renciada no primeiro capítulo deste trabalho, trata de expressar a “concepção
articulação entre governo e juristas deve ser entendido à luz do fato de que publicística de processo”. Com efeito, a expressão adquire sentido quando
os institutos de fazer do direito uma ciência do social e de garantir que o transposta para o processo civil, uma vez que evidentemente, não se poderia
saber “técnico” fosse empregado na escrita das leis estiveram longe de ser conceber um processo penal de cunho privado. Como exemplo da fusão entre
um projeto isolado de Campos”1188. A “socialização do direito”, portan- as expressões “concepção autoritária de processo” e “socialização do direito”,
to, corresponderia à penetração da ciência privilegiada pelos ideólogos do podemos encontrar as palavras de GUIMARÃES, ao comentar o recente
pensamento autoritário no direito, ou seja, a sociologia1189. Como destaca
de. Princípios Informativos do Código de Processo Penal. In Revista Forense. a. XL. V. XCVI. Rio de
1184. MARTINS, Pedro Batista. Getúlio Vargas e a Renovação do Direito Nacional. In Revista Forense. v. Janeiro, 1943. p. 13.
LXXXIV. n. 449. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 260. 1190. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da Ciência e a Sedução da Objetividade: Oliveira Vian-
1185. DUARTE, José. O Novo Código Penal. In Revista Forense. v. 38.n. 87. Rio de Janeiro, 1941. p. 309. na entre os intérpretes do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005. p. 298.
1186. “Os textos que ajudamos a plasmar e redigir, com a graça de Deus, com a sábia assistência do preclaro 1191. “No âmbito da teoria jurídica, uma preocupação abstrata com “o social” buscou trazer respostas a esses
professor FRANCISCO CAMPOS, então Ministro da Justiça, e sob a supervisão do eminente Sr. GE- desafios, sendo capaz de congregar e mobilizar bachareis em direito de orientações diversas. Procuran-
TÚLIO VARGAS, Presidente da República, não constituem um conjunto de disposições arbitrárias, do, a um só tempo, apontar alternativas ao liberalismo clássico e evitar as transformações profundas
formuladas ao acaso. Elas mergulham as suas raízes profundamente na consciência jurídica da nacio- pleiteadas à esquerda do espectro político, muitos juristas se puseram a reivindicar uma “concepção
nalidade”. ABREU, Florêncio de. Princípios Informativos do Código de Processo Penal. In Revista social do direito”. Embora tenha comportado variações importantes, alguns dos conteúdos atribuídos a
Forense. a. XL. V. XCVI. Rio de Janeiro, 1943. p. 13. esse projeto foram a defesa da prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais, a busca por um
1187. Neste ponto, segundo Philadelpho de AZEVEDO: “vale dizer que o nosso código de processo penal se maior intervencionismo estatal, propostas sobre a relativização de direitos antes tidos como absolutos
afastou, nêsse passo, do Código Rocco, da era “fascista”, para se manter fiel à tradição do nosso direito”. (em especial, a liberdade de contratar e a propriedade), a crítica à “importação” de modelos estrangeiros,
AZEVEDO, Philadelpho de. A Dsiciplina das Nulidades no Código de Processo Penal. In Julgados do a busca por uma correlação entre lei e realidade social e o intuito de promover reformas sociais por meio
Tribunal de Alçada de São Paulo. v. II. São Paulo: Lex, 1967. p. XI. das leis”. SILVEIRA, Mariana de Moraes. Direito, Ciência do Social: o lugar dos juristas nos debates do
1188. SILVEIRA, Mariana de Moraes. Direito, Ciência do Social: o lugar dos juristas nos debates do Brasil Brasil nos anos 1930 e 1940. In Estudos Históricos. v. 29. n. 58. Rio de Janeiro, 2016. p. 453.
nos anos 1930 e 1940. In Estudos Históricos. v. 29. n. 58. Rio de Janeiro, 2016. p. 443. 1192. SANTOS, Moacyr Amaral dos. Contra o Processo Penal Autoritário. In Revista da Faculdade de Direi-
1189. Vejamos como Florêncio de Abreu, um dos juristas que participou da comissão justificava a lei: “com- to da Universidade de São Paulo. v. 54. n. 2, 1959. p. 214.
preende-se hoje a lei como um fenômeno social, cientificamente explicável, dependente menos de 1193. SANTOS, Moacyr Amaral dos. Contra o Processo Penal Autoritário. In Revista da Faculdade de Direi-
volições individuais do que de ações sociológicas do meio sôbre as inteligências e da reação das inte- to da Universidade de São Paulo. v. 54. n. 2, 1959. p. 216.
ligências sôbre o ambiente – estável na aparência, móvel, alterável na realidade”. ABREU, Florêncio 1194. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. EbooksBrasil, 2002. p. 261
348 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 349

código de processo civil estadonovista: “revela a concepção autoritária de Com reuniões quase diárias, a comissão entregou o projeto ao Ministro
processo um simples aspecto da atual tendência à socialização do direito”1195. Francisco CAMPOS em abril de 19381202. Afirma QUEIROZ que o ministro
Portanto, seria possível afirmar-se que o traslado de postulados publicísticos Francisco CAMPOS estava presente durante todo o tempo de realização dos tra-
ao processo civil deriva da aplicação de significantes preexistententes no es- balhos, a fim de dirimir dúvidas, sugerir mudanças de rumo e dando diretrizes
pectro do processo penal, fenômeno similar àquele sucedido na Itália. a serem seguidas. Como acentua QUEIROZ, “pudemos, assim, bem conhecer
O Estado Novo, com a promulgação da Constituição de 1937 impediu os altos critérios de sua exemplar técnica de legislador e de estadista”1203.
a aprovação do Código Vicente Ráo. Contudo, manteve a ideia de unidade da O Código de Processo Penal foi promulgado apenas após o Código
legislação processual em território nacional, nas mesmas linhas da Constitui- Penal, por sugestão do Ministro Francisco CAMPOS, o que fora acatado pelo
ção de 1934. No art. 16, XVI da Constituição de 1937, assegurou à União a então presidente da Repúbica Getúlio VARGAS1204. A razão para isto era har-
competência privativa para legislar sobre direito civil, comercial, direito aéreo, monizar o código de processo penal ao próprio código penal, especialmente
operário, além do direito penal e processual penal. para a sua adequação às medidas de segurança previstas no diploma de direito
Afirma PIERANGELI, que antes mesmo da elaboração do Projeto do material1205. Portanto, o ingresso do positivismo criminológico se dava pelas
Código de Processo Penal de 1941, uma comissão composta por Narcélio de portas do direito penal e deste ao processo penal. De forma muito similar ao
QUEIROZ, Cândido Mendes de ALMEIDA, VIEIRA BRAGA, Roberto ocorrido na Itália, o argumento de que primeiramente a reforma deveria tocar
LYRA e Nelson HUNGRIA havia elaborado um projeto sobre a reforma do no plano do direito material para só então avançar sobre o processo penal é
júri, que acabou por se transformar no Decreto-Lei nº 167, de 1938, que foi recorrente nos discursos reformistas brasileiros1206. E aqui podemos verificar
o primeiro documento legislativo com validade para todo o território nacional concretamente a necessidade de se promulgar, preliminarmente, o código
após a Constituição de 1937. Parte da comissão elaboradora do código de penal para então reformar o processo penal, o que identifica, suficientemente,
processo penal de 1941, portanto, já havia operado em conjunto, garantindo- os indícios políticos da concepção instrumental do processo penal, sempre
-se a harmonia na identificação de questões sensíveis e de linhas de trabalho. a reboque do direito material. Interpretado como uma meio de realização
A comissão reformadora foi composta por Antonio VIEIRA BRAGA1196
1202. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. V. 475,
(de Minas Gerais), Nelson HUNGRIA1197 (Minas Gerais), Narcelio de QUEI- 1943. p. 11.
ROZ1198 (Ceará) e Cândido Mendes de ALMEIDA (Distrito Federal)1199. 1203. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. V. 475,
1943. p. 11.
Na segunda fase, nos trabalhos de revisão, juntaram-se à comissão Roberto 1204. O Código Penal de 1940 fora elaborado a cargo de ALCÂNTARA MACHADO, adaptando o Código
Penal Rocco ao Brasil. Para não se ter dúvidas das influências, vale a pena transcrever as suas palavras:
LYRA1200 (Pernambuco) e Florêncio de ABREU1201 (Rio Grande do Sul). “Naturalíssima a influência exercida em meu espírito pela vigente codificção italiana. Obra longamente
meditada de alguns dentre os maiores cultores da especialidade, numa terra que os sabedores consideram
com justiça a pátria do direito criminal, o último código penal da Itália é tido por Cuello Calón, da Uni-
1195. GUIMARÃES, Luiz Machado. Processo Autoritário e Regime Liberal. In Revista Forense. v. 37.n 82. versidade de Barcelona (Il Progetto Rocco nel pensiero giuridico contemporaneo, p. 402) como constru-
Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 243. ção técnica de perfeição tamanha, que constitue modelo impécável. Tem, além disso, o mérito de não se
1196. Antonio VIEIRA BRAGA formou-se pela Faculdade Livre de Direito, no Rio de Janeiro. Foi também enfeudar em nenhuma escola!”. ALCÂNTARA MACHADO, Antônio de. O Projeto do Código Criminal
juiz de direito e desembargador doTribunal de Justiça do Distrito Federal. Também atuou como juiz no Perante a Crítica. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 35. n. 1, 1939. p.
Tribunal Superior Eleitoral. 47. Ainda: “Além disso, as afinidades políticas, que se manifestam pelo reforço da autoridade do Estado na
presente organização constitucional de ambos os paizes, e pelo cuidado especial que ambos consagram a
1197. Nelson HUNGRIA Guimarães Hoffbauer formou-se pela Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. Foi certos institutos e bens, como sejam a saúde da estirpe, a família, a economia popular, o crédito público, a
professor de direito penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Faculdade Nacional de Direito. probidade na execução dos contratos, imperfeitamente resguardados por outras legislações. E, por último,
Tomou posse como ministro do STF em 1951, nomeado por Getúlio VARGAS. Aposentou-se em 1961. e acima de tudo, a excelência dos resultados da aplicação do código Rocco, resultados que se traduzem
1198. Narcelio de QUEIROZ formou-se pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Era também desembar- pela diminuição quantitativa e pela atenuação qualitativa da criminalidade peninsular”. Ibidem.
gador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 1205. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. V. 475, 1943.
1199. Cândido Mendes de ALMEIDA FILHO formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo e foi p. 11.
também promotor de justiça. Lecionou na Faculdade do Rio de Janeiro e na Faculdade de Direito da 1206. Existe o cultivo de ideias semelhantes entre os discursos de CAMPOS e ROCCO. Contudo, a diferença
Universidade Brasil. residirá no tom usado por CAMPOS, muito mais feroz. Além disso, no Brasil, diferentemente da Itália,
1200. Roberto LYRA formou-se pela Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. Foi promotor de justiça e o Parlamento foi dissolvido, o que não trouxe grandes diferenças na construção de uma legislação
professor de direito. autoritária. SONTAG, Ricardo. Código e Técnica: a reforma penal brasileira de 1940, tecnicização da
1201. Florêncio de ABREU e Silva formou-se pela Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. Foi desem- legislação e atitude técnica diante da lei em Nelson Hungria. Dissertação de Mestrado. Florianópolis:
bargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. UFSC, 2009. p. 37.
350 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 351

do direito material, o processo penal, nesta versão instrumental e “social”, reunião estava condicionada à esta exigência1211. O processo legislativo, por-
caracterizava-se pela sua faceta “autoritária”, que havia sido emprestada ao tanto, era retirado da esfera pública do Parlamento, muito embora houvesse
campo do processo civil. previsão constitucional para a sua convocação. Enquanto na Itália houve
Durante o Estado Novo, serão colocados avante todos os preconceitos uma transferência pontual de competência do legislativo para o executivo,
contra a democracia parlamentar que compunham o pensamento de Fran- no Brasil, tal deslocamento se tornou a regra geral1212. A imprestabilidade do
cisco CAMPOS. Desta forma, as legislações, a serem fabricadas por técnicos congresso em atender as exigências técnicas da lei processual penal brasileira
ou especialistas, subtraídas as discussões do escrutínio público, permitiram poderia ser descrita como um dos motivos pelos quais o regime procedeu
o florescimento não apenas de um corpo jurídico reflexo do governo, mas através de comissões de notáveis, em larga medida amparada no pensamento
o próprio procedimento legislativo ganhava nova roupagem. A primeira ca- de Francisco CAMPOS1213.
racterística, portanto, do processo legislativo será a substituição dos debates Embora o mecanismo legislativo procedimental pudesse contar com
parlamentares por laboratórios ou fabricos legislativos1207, com a predominân- contornos diversos, a inspiração que marcou a confecção dos códigos penal
cia – pressuposta – de grandes mudanças no sentido de uma melhoria técnica e processual penal brasileiros será sem sombra de dúvidas a italiana. Dois
do processo legislativo1208. Esta experiência vem narrada por Roberto LYRA, motivos fundamentais autorizam a conclusão: o primeiro deles reside na
que descreve a sistemática do funcionamento dos trabalhos: quantidade significativa de citações e referências a penalistas e processualistas
“Na história das codificações penais, a contribuição brasileira de 1940 figurará italianos, além das constantes menções a Alfredo ROCCO. Nas discussões
como a primeira a consumar-se num gabinete-oficina, com os operários em sobre o processo penal, praticamente impossível encontrar-se artigo que, tra-
camisa. No lugar da tribuna, a mesa. A marcha da elaboração não foi registrada. tando de alguma matéria concernente ao novo código, não deixasse de invocar
Nem podia ser, dadas as circunstâncias de trabalho de equipe com reconside- os ensinamentos de Arturo ROCCO e especialmente MANZINI (além é
rações e correções até a última hora. Nenhum de nós teve a preocupação de
perpetuar rastros no cruzamento dos passos de todos, sob a regência de auto- claro de figurar diversas citações de MASSARI e GRISPIGNI). Exemplo desta
crítica e da boa fé, nas contrações frustradas de cada idéia, na ânsia torturada influência pode ser encontrada em Astolpho REZENDE, que, ao comentar o
de perfeição, na plenitude da boa vontade sempre modesta e insatisfeita”1209. código penal brasileiro, afirma que “nós gravitamos sempre neste assunto, na
A Constituição de 1937 modificou o processo legislativo brasileiro, já órbita da Itália, como ainda agora prova o novo Código. Do Código italiano
que a iniciativa para oferecer um projeto de lei passou a ser competência do tomamos os princípios basilares, as ideias orientadoras, tanto para a confecção
presidente da República, o que vinha em consonância com muitas das críticas do código de 1890, como para o novo Código de 1940”1214. A informação não
trazidas por Francisco CAMPOS no que concerne ao debate parlamentar1210. é de menor valia para o processo penal, à medida que o código de processo
apenas foi elaborado após o término dos trabalhos do código penal, garantin-
O Parlamento jamais foi convocado pelo presidente, já que a sua
do certa homogenia no tratamento dos institutos. Como exemplo manifesto,
1207. “Transformaram-se, pois, ditas câmaras legislativas, em verdadeiros laboratórios de manufatura legal, basta a atenção redobrada em torno do conceito de ação penal, que continha
onde, além de se escolher, cuidadosamente, todos os elementos substanciais, para a composição da lei,
se empregava o máximo cuidado, no estudo apurado do efeito que as leis, assim feitas, iriam produzir, 1211. NUNES, Diego. Processo Legislativo Para Além do Parlamento em Estados Autoritários: uma análise
não só no corpo material da nacionalidade, mas, sobretudo, no espírito legal da nova época”. DUARTE, comparada entre os códigos penais italiano de 1930 e brasileiro de 1940. In Revista Sequência. n. 74.
Gil. A Paisagem Legal do Estado Novo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941. p. 40. Florianópolis, 2016. p. 165.
1208. “Foi uma inversão completa de conceitos e métodos, onde se trocou a causa, pelo efeito: a técnica da 1212. NUNES, Diego. Processo Legislativo Para Além do Parlamento em Estados Autoritários: uma análise
teoria, pela teoria da técnica; o método indutivo, pelo dedutivo; a lógica da razão, pel razão da lógica”. comparada entre os códigos penais italiano de 1930 e brasileiro de 1940. In Revista Sequência. n. 74.
DUARTE, Gil. A Paisagem Legal do Estado Novo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941. p. 41. Florianópolis, 2016. p. 156.
1209. LYRA, Roberto. Código Penal de 1940 e Outros Diplomas. In __________. Direito Penal Normativo. 1213. “Não só em outros países a legislação direta pelo Parlamento se mostrou impraticável. Entre nós, os
2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 47. seus defeitos estão patentes a todas as vistas. O processo de crivar de emendas, muitas vezes de caráter
1210. “A Constituição de 10 de novembro, reconhecendo-lhe o mal, deu-lhe o remédio. A iniciativa da le- pessoal, um projeto de lei, é um processo corrente na forma parlamentar de legislação. Os grandes
gislação cabe, em princípio, ao governo. A nenhum membro do Parlamento é lícito tomar iniciativa projetos, em que a unidade de princípio e de técnica é qualidade capital, não podiam sair desse processo
individual de legislação. A delegação de poderes não só foi permitida, como se tornou a regra, pois a senão deformados, mutilados e imprestáveis”. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo:
Constituição prescreve que os projetos de iniciativa do Parlamento devem cingir-se a regular a matéria EbooksBrasil, 2002. p. 55.
de modo geral, ou nos seus princípios, deixando ao governo a tarefa de desenvolver esses princípios, e 1214. REZENDE, Astolpho. O Novo Código Penal. In Revista Forense. v. 38. n.87. Rio de Janeiro: Forense,
regular os detalhes. CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 55-56. 1941. p. 321.
352 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 353

na redação original do código penal diversos diplomas sobre a categoria e que A estrutura e a forma dadas ao projeto de código de processo penal de
foram mantidos após a reforma da parte geral de 1984. 1941, em conjunto com o procedimento legislativo “de gabinete” era justi-
A orientação do código de processo penal de 1941 atendia às críticas fer- ficado pelo “clima autoritário”, consoante se pode extrair do depoimento de
renhas ao liberalismo, não se opondo de forma contundente ao que já havia se Roberto LYRA:“trabalhamos sob clima autoritário, mas nossa obra corres-
instalado na comissão coordenada por Vicente RÁO. Portanto, neste campo pondeu às exigências do liberalismo superveniente, sempre que este respeitou
específico, não apenas o código de processo penal não se distancia do Projeto os limites do interesse social, soma e base da conveniências individuais”1218.
Ráo como radicaliza os postulados objetivistas da sociologia que alcançaria aos Vale à pena destacar, ainda que de forma muito perfunctória, que as
reformadores, tanto subsídios criminológicos inspirados na matriz positivista, linhas de trabalho do código de processo civil de 1940 tratam: a) do processo
quanto o verniz eticizante capaz de fundar uma determinada maneira de com- como instrumento de dominação política1219, que pugnará pela repulsão a um
preender o processo penal brasileiro. À evidência, portanto, que o liberalismo processo que se deve superar, caracterizado pela marca privatista (processo
alçado à condição de inimigo a ser combatido provocaria discursos radicais, como instrumento de classes privilegiadas, de caráter “bizantino e formalis-
e o processo penal seria uma plena expressão do Estado forte varguista1215. A ta”1220); b) a substituição de uma “concepção duelística de processo” por uma
democracia parlamentar, fulminada com o advento da Constituição de 1937, “concepção autoritária”1221; c) um sentido “popular” do novo sistema1222; d)
ao lado do liberalismo, reunia em torno de si inimigos declarados, como é o a restauração da autoridade e do caráter popular do Estado através do pro-
caso de José DUARTE, além de outros tantos. O paradigma liberal-demo- cesso, em que “a Justiça é o Estado e o Estado é a Justiça”1223; e) a outorga da
crático, segundo o autor, seria incompatível com o novo regime político. Por direção do processo ao juiz1224; f ) uma concepção publicística de processo,
isto, a necessidade de um novo código penal1216. amparada, no pensamento de Chiovenda1225. De acordo com esta visão, a
A codificação penal, assim como a processual penal havia sido implemen- finalidade do processo é a “atuação da vontade da lei”, o que por si só geraria
tada em um contexto doutrinário anti-democrático e anti-liberal. Este processo o contorno publicístico. Mas se assim são as coisas, natural que assuma relevo
codificatório, a exemplo do italiano examinado no capítulo anterior, nasceu e a figura do magistrado, como essencial figura de “administração da justiça”.
foi conduzido sob o signo do processo legiferante nacionalista Desta maneira, Para CAMPOS, o interesse do Estado e do povo é encarnado e personificado
o código penal, que antecedeu historicamente ao de processo penal, seria a 1218. LYRA, Roberto. Código Penal de 1940 e Outros Diplomas. In __________. Direito Penal Normativo.
2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 56.
expressão de sensível trabalho “nacional”, isto é, um trabalho originalmente bra- 1219. E que se repetirá, mutatis mutantis, na versão “instrumental” repaginada a partir da obra de DINAMARCO.
sileiro. Nas palavars de Roberto LYRA, ao comentar as palavras de CAMPOS, 1220. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O
Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 260.
“os codificadores de 1940 “fizeram obra exclusivamente brasileira (Francisco 1221. “À concepção duelística do processo haveria de substituir-se a concepção autoritária do processo. À
concepção do processo como instrumento de luta entre particulares, haveria de substituir-se a concep-
Campos)”. Vários traços nacionalistas honram o elenco de crimes”1217. ção do processo como instrumento de investigação da verdade e de distribuição da justiça”. CAMPOS,
Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O Estado
Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 261.
1215. “Surgira o Estado Novo, reforçado nos seus princípios de unidade e centralização, servido por novos 1222. “O novo processo é eminentemente popular. Pondo a verdade processual não mais apenas a cargo das
fins éticos, reagindo contra o liberalismo decadente e apoiando-se na corporação, humus fecundante de partes, mas confiando, numa certa medida, ao juiz a liberdade de indagar dela, rompendo com o for-
uma nova política econômica e de socialização dos serviços públicos. O próprio direito público sofria, malismo, as ficções e presunções que o chamando “princípio dispositivo”, de “controvérsia” ou “con-
assim, uma radical alteração. O Estado, o órgão político-jurídico, o fulcro da soberania, o detentor do tradição”, introduzira no processo, o novo Código procura restituir ao público a confiança na Justiça e
poder social, a fôrça, o comando, o equilíbrio, a unidade, teria, pois, de determinar o ajustamento das restaurar um dos valores primordiais da ordem jurídica, que é a segurança nas relações sociais reguladas
suas leis aos seus novos postulados, aos seus ideais”. DUARTE, José. O Novo Código Penal. In Revista pela lei”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In
Forense. v. 38.n. 87. Rio de Janeiro, 1941. p. 310. ________. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 262-263.
1216. “Um Código de regime liberal, que abusara de suas credenciais democráticas, exaltadas ao extremo da 1223. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O
demagogia insensata, e embebido do tóxico do individualismo ferrenho que nada tolera além do interês- Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 267.
se do homem, não poderia merecer as graças de um novo regime, que, servindo à mesma unidade étnica, 1224. “A direção do processo deve caber ao juiz; a este não compete apenas o papel de zelar pela observância
estaria ao serviço de diversa unidade étnica. O direito penal, parte integrante do direito público, ramo do formal das regras processuais por parte dos litigantes, mas o de intervir no processo de maneira que
direito que busca a segurança, a paz, a tranquilidade, o equilíbrio social, teria de comportar indeclinável este atinja, pelos meios adequados, o objetivo de investigação dos fatos e descoberta da verdade. Daí a
refundição”. DUARTE, José. O Novo Código Penal. In Revista Forense. v. 38. n. 87. Rio de Janeiro, largueza com que lhe são conferidos poderes”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto
1941. p. 311. do Código de Processo Civil. In ________. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 267.
1217. LYRA, Roberto. Código Penal de 1940 e Outros Diplomas. In __________. Direito Penal Normativo. 1225. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O
2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 49-50. Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 268.
354 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 355

na figura do juiz1226; g) o papel do juiz na produção da prova1227; h) redução “tradição liberal brasileira”1235. Em torno do código de processo penal de
das ações a uma forma única1228; i) quanto aos recursos: abolição dos recursos 1941 se construíram duas espécies de discursos: o que se apresenta coeta-
contra despachos interlocutórios, fundados em matéria “unicamente pro- neamente ao regime estadonovista, com a política declarada de aversão ao
cessual”1229; j) redução das nulidades1230; k) adoção de um sistema baseado liberalismo e o segundo, a atitude conciliatória, justificadora do código,
na oralidade1231, concentração1232 e identidade do juiz1233. Por fim, deve-se que atribui ao diploma legislativo a façanha de em pleno regime ditatorial,
ainda mencionar que para CAMPOS, a reforma do processo era condição garantir determinados direitos liberais.
de unidade política do país1234. A retórica varguista de tentar uma conciliação entre posturas que agra-
Importante aspecto que deve ser registrado reside nas justificativas davam as elites e simultaneamente, à parcela mais vulnerável da população
que infirmavam os contornos visíveis das normas de processo penal ali pode ser sentida, igualmente, nas justificativas dadas ao diploma legislativo,
contidas, visceralmente antidemocráticas e anti-liberais. Entretanto, isso como aquela oferecida por Roberto LYRA, ao comentar que o novo código
não impediu a tentativa de construir-se, em torno da legislação e de sua de processo penal havia tratado de reduzir as diferenças sociais: “o Código de
perpetuação através das décadas, um discurso de continuidade com a Processo Penal contém disposições que visam a atenuar desigualdades sociais:
em relação à proteção judicial ao pobre (arts 32, 68, 806, §§ 1º e 2º), à sua
1226. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O
Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 268. defesa (art. 263, § único), à fiança (art. 350)”1236.
1227. “Outro característico do sistema processual consubstanciado no projeto, e que se pode considerar como
corolário da função ativa e autoritária do juiz é, seguramente, o papel atribuído ao juiz em relação à O fenômeno é muito similar àquele encontrado na Itália após a queda
prova. No processo dominado pelo conceito duelístico da lide judiciária, as testemunhas e os peritos
são campeões convocados pelas partes para ajuda-las na comprovação de suas afirmativas. No processo do regime de MUSSOLINI. A necessidade de uma reforma completa do
concebido como instrumento público de distribuição da justiça, as testemunhas e os peritos passam a
ser testemunhas e peritos do juízo. O seu dever é dizer e investigar a verdade, sem as restrições que hoje código de processo penal foi enterrada em meio a um discurso que acenava
incidem sobre elas”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo que tais normas tinham se mantido fieis à tradição liberal italiana, que o corpo
Civil. In ________. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 273.
1228. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O normativo foi construído a partir exclusivamente de vetores técnicos e, conse-
Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 277.
1229. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O quentemente, independentes da política e, por fim, plenamente compatíveis
Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 279.
1230. “O terceiro ponto, finalmente, é o relativo às nulidades, que sempre foram o instrumento da chicana,
com o novel regime democrático inataurado com a Constituição Italiana
das dilações e dos retrocessos processuais. Os males do processo tradicional foram agravados com um de 1947. O mesmo ocorreu no Brasil, através dos mais distintos recursos
enxame de nulidades, a que os litigantes sempre recorreram insidiosamente, quando lhes faltavam os
recursos substanciais em que apoiar as suas pretensões. A nulidade tinha caráter puramente técnico ou, discursivos, percorrendo o lastro deixado pela retórica autoritária no campo
antes sacramental. Era a sanção das violações das regras do processo, em atenção exclusivamente ao
espírito de cerimônia e de formalidade, ainda que de tais violações não decorresse nenhum prejuízo para processual penal, mesmo após o advento da Constituição de 1988.
as partes e os atos praticados fossem absolutamente aptos à finalidade a que o processo os destinava”.
CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O Na doutrina processual penal brasileira encontraremos diversos ins-
Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 284.
1231. Devemos advertir que a oralidade, tomada como um “princípio” fundamentalmente acusatório, é mero titutos e categorias que foram movimentados em direção autoritária pela
elemento acessório, podendo servir a quaisquer dos dois sistemas clássicos, o que vem corroborado pelas
palavras de CAMPOS: “o processo oral atende a todas as exigências acima mencionadas: confere ao processualística italiana fascista. Este movimento, segundo SBRICCOLI,
processo o caráter de instrumento público; substitui a concepção duelística pela concepção autoritária ou corresponde à transição da penalística civil1237, que circulava em torno dos
pública do processo; simplifica a sua marcha, racionaliza a sua estrutura e, sobretudo, organiza-o no senti-
do de tornar mais adequada e eficiente a formação da prova, colocando o juiz em relação a esta na mesma
situação em que deve colocar-se qualquer observador que tenha por objeto conhecer os fatos e formular
sobre eles apreciações adequadas ou justas”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do 1235. Tomemos como exemplo as palavras de Basileu GARCIA: “afortunadamente, de longa data desfruta-
Código de Processo Civil. In ________. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 286. mos neste país um regime de franquias constitucionais, sem qualquer necessidade de providências de
1232. O princípio da concentração dos atos do processo é um dos postulados do sistema oral”. CAMPOS, exceção”. GARCIA, Basileu. Panorama da Prisão Provisória ou Processual no Brasil. Disponível em
Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O Estado http://www.revistajustitia.com.br/revistas/8b1az6.pdf. Acesso em 12.01.2017. p. 67.
Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 287. 1236. LYRA, Roberto. Introdução ao Estudo do Direito Penal Adjetivo. In Revista do Ministério Público do
1233. “O juiz que dirige a instrução do processo há de ser o juiz que decida o litígio. Nem de outra maneira Estado do Rio de Janeiro. v. 1. n. 1, 1995. p. 1544.
poderia ser, pois, o processo, visando a investigação da verdade, somente o juiz que tomou as provas 1237. “Na dialética ordem-liberdade típica do Estado liberal, esses juristas da penalística civil destacam-se na
está realmente habilitado a apreciá-las do ponto de vista de seu valor ou da sua eficácia em relação aos defesa da liberdade e das garantias e da criação de um espaço de justiça na vida social. Foram juristas atu-
pontos debatidos”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo antes, militantes, seja no âmbito da produção acadêmica, seja ocupando papeis institucionais; estavam em-
Civil. In ________. O Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 289. penhados na reforma legislativa e convictos de que o direito penal estava ligado ao processo de conquista
1234. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Projeto do Código de Processo Civil. In ________. O das liberdades públicas”. DIAS, Rebeca Fernandes. Pensamento Criminológico na Primeira República: o
Estado Nacional. São Paulo: EbooksBrasil, 2002. p. 294. Brasil em defesa da sociedade. Tese de Doutorado: Universidade Federal do Paraná, 2015. p. 63.
356 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 357

debates entre os liberais como CARRARA e LUCHINI e os positivistas, substantivos”1242. Outro elemento que permanecerá de forma muito visível
para a civilística penal, agenciada pelo método técnico-jurídico, despido de nos discursos sobre as reformas é o “sistema processual misto”, que inclusive
críticas desde um horizonte metaprocessual. O resultado foi a fácil coop- na Itália era o preferido pelos tecnicistas que organizaram a codificação de
tação dos juristas pelo regime fascista italiano, desde as frágeis bases éticas 1930, como MANZINI.
e filosóficas destes juristas alienados pelo discurso tecnicista. No Brasil, a Contudo, segundo MARQUES, a “renovação doutrinária do processo
presença de conceitos como jus puniendi, que emergem desde a juspublicís- penal brasileiro” apenas se daria com a publicação da obra A Relação Proces-
tica ancorada em uma teoria geral do direito civil – pandectística – instrui sual Penal, “nos mesmos moldes em que se operara no Direito continental
as raízes de nosso processo penal. Exemplificativamente – os casos poderiam europeu”1243. Salientará MARQUES que “tal como sucedeu com o processo
ser citados ad infinitum – a menção ou referência a um pseudo jus puniendi civil, São Paulo não comandou o início da revolução doutrinária do proces-
estatal, que justificaria o “direito subjetivo de punir” pode ser encontra- so penal brasileiro. Esse comando coube, conforme salientamos, ao Prof.
do em TOURINHO FILHO1238, em MAGALHÃES NORONHA1239 ou HÉLIO TORNAGHI, eminente catedrático de Direito Judiciário Penal, na
ainda, em Frederico MARQUES1240. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro”1244.
Neste sentido, pode ser encontrado em solo brasileiro a presença de Evidentemente que tais categorias que sustentaram o período do li-
conceitos herdados pela doutrina penal italiana (da juspublicística conser- beral-conservadorismo italiano, posteriormente cooptados para servir de
vadora), como o referido jus puniendi. Da mesma forma como a publicística base ou justificação teórica para o fascismo italiano, são imprestáveis para
italiana e, secundariamente, Arturo ROCCO, será oferecida uma adaptação qualquer espécie de contornos democráticos a sustentar o sistema de justiça
em sentido conservador-reacionário para explicar o nascimento do “direito criminal, com reflexos significativos na determinação das funções do direito
de punir” do Estado. Neste ponto, é possível trazer à colação o pensamento penal, bem como especialmente, em nosso caso, na ação penal. Não obstan-
de Frederico MARQUES, que citando textualmente JELLINEK1241, partirá te esta óbvia conclusão, a doutrina brasileira, de forma tardia e anacrônica,
para uma fundamentação dos direitos existentes no processo penal, desde as segue repetindo ensinamentos não apenas ultrapassados – já que fundar o
categorias baseadas em um “status”. Exemplo desta configuração também direito penal e o processual penal em conceitos pandectísticos não parece
pode ser encontrado em Roberto LYRA, para quem “no direito brasileiro, ser a melhor forma de organizar um sistema de justiça criminal em franca
o chamado jus puniendi e o jus actionis constituem direitos subjetivos e consonância com uma teoria dos direitos fundamentais e suas articulações
1238. Porque os bens tutelados pelas normas penais são eminentemente públicos, eminentemente sociais, o com os tratados internacionais de direitos humanos – mas completamente
jus puniendi, o direito de punir os infratores, o direito de poder impor a sanctio juris àqueles que des- em desalinho com premissas democráticas de processo penal.
cumprirem o mandamento proibitivo que se contém na lei penal, corresponde à sociedade. Ninguém
desconhece que a prática de infrações penais transtorna a ordem pública, e a sociedade é a principal víti-
ma e, por isso mesmo, tem o direito de prevenir e reprimir aqueles atos que são lesivos à sua existência Para tratar das coisas às claras, existem dois movimentos muito claros
e conservação. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p.10.
1239. “É o Estado o titular do direito de punir. O crime lesa não apenas direitos individuais, mas sociais
no campo do processo penal, que muitas vezes são colocados em um regime
também, pois perturba as condições de harmonia e estabilidade, sem as quais não é possível a vida co- de antítese. Como os fenômenos sociais e culturais ocorrem de maneira mais
munitária. Mas imcumbe ao Estado – que é um meio e não um fim – a consecução do bem comum, que
não conseguiria alcançar se não estivesse investido do jus puniendi, do direito de punir o crime, que é o complexa, ambos os movimentos indicados ocorrem, sem dúvidas, em tempos
fato mais grave que o empece na consecução daquela finalidade”. NORONHA, E Magalhães. Curso de
Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 03. Segue o autor: “a ação punitiva estatal e períodos distintos. Contudo, ocorrem simultaneamente e de forma dúplice.
atinge o status libertatis do indivíduo”. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal.
2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 03. “Consequentemente, deve o Estado, além do jus puniendi, dispor O primeiro destes movimentos ou fenômenos é a “chamada civilização do
de outro direito que vai realizar aquele: é o jus persequendi ou jus persecutionis (direito de ação), que,
por assim dizer, realiza o jus puniendi. Trata-se como o outro, de um direito subjetivo”. NORONHA, E processo penal”. Por este fenômeno seria possível compreender-se a tentativa da
Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 03-04.
1240. “E como o jus puniendi é manifestação do poder do império do Estado, pois êste punindo exercita sua
soberania, filia-se o direito de punir à classe dos direitos públicos subjetivos emanados do status subjec-
tionis. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: 1242. LYRA, Roberto. Introdução ao Estudo do Direito Penal Adjetivo. In Revista do Ministério Público do
Forense, 1965. p. 10. Estado do Rio de Janeiro. v. 1. n. 1, 1995. p. 1547.
1241. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1243. MARQUES, José Frederico. O Direito Processual em São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 149.
1965. p. 11. 1244. MARQUES, José Frederico. O Direito Processual em São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 149-150.
358 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 359

construção de um sistema de processo penal similar às bases civilistas. Ganha Finochiaro-Aprile de 1913 e anexá-las aos discursos fascistas, assume a forma
corpo aqui o transporte dos conceitos pandectistas e a conformação da escola do tecnicismo manziniano.
histórica de direito, para o setor publicista e, em decorrência disto, ao direito Segundo SBRICCOLI, portanto, os regimes autoritários ralizaram re-
penal e apenas posteriormente ao processo penal. O exemplo claro aqui é a formas de caráter penal e processual penal através de um corpo de juristas,
doutrina que se desenvolve nos albores do século XX, tendo como principal na concretização de uma metodologia, a técnico-jurídica. Temos, portanto,
expoente Arturo ROCCO (que prescreve para o campo do direito penal projeto tanto no Brasil, quanto na Itália, um fenômeno de juristas-legisladores, o que
similar ao desenvolvido por ORLANDO na área do direito público). acabou de certa maneira provocando uma comistão de funções1246.
Entretanto, será na década de 30, talvez mesmo antes, que se iniciará um O tecniscismo jurídico-penal incorporado a regimes autoritários de-
processo de “publicização do processo civil”, que adquire feições mais tangí- sencadeará o fenômeno da “civilística penal”, que funde procedimentos
veis a partir do que se denominará de “socialzação do direito”. Este fenômeno legislativos de gabinete com o necessário alheamento entre doutrina e política,
consiste em diminuir as expressões do “princípio dispositivo” no processo civil, que somente foi possível graças à elaboração do método “técnico-jurídico” e
coincidindo com o que Francisco CAMPOS denominará como “concepção de sua aceitação acrítica pela doutrina. No Brasil, assim como na Itália, foi
autoritária de processo civil”, reforçando-se os poderes do juiz no processo, graças a uma doutrina liberal-reacionária que grande parte dos dispositivos
retirando-se das partes determinados direitos e a disponibilidade de certos con- processuais foi mantido hígido, graças à sua “falta de compromisso” com a
teúdos no processo. No processo penal, por seu turno, tais concepções já eram política iliberal do regime estadonovista. A crença – por alienação ou por jus-
preexistentes, bastando perceber-se a influência exercida pela noção de “verdade tificativa póstuma, destinada a desprender-se de quaisquer responsabilidades
real”1245. O caminho percorrido é a primeira recepção das formas privadas pela pela construção do sistema – na indenidade política do código, possível desde
juspublicística do século XIX, a tentativa de formulação de preceitos universais, a metodologia empregada, torna compreensível a permanência de determina-
a sua chegada ao plano do direito penal e subsequentemente, ao do processo das categorias processuais penais. Embora não as possa justificar.
penal, retornando ao processo civil. O Código de Processo Civil Italiano de
1940 e o brasileiro de 1939 são exemplos que permitem verificar-se uma cons-
3.2.1. O TECNICISMO “APOLÍTICO” BRASILEIRO,
trução distante dos “preceitos bizantinos” que erigiram, a partir da revolução
ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADES DOS JURISTAS E
burguesa, a concepção individualista de processo civil.
A PERENIZAÇÃO DE SEUS ENSINAMENTOS: COMO
A concretização de tais categorias e o alavancamento de legislações nestes
MANTER VIVA A CHAMA DO AUTORITARISMO EM
termos foram conduzidas em regimes autoritários – tanto na Itália como no
REGIMES DEMOCRÁTICOS
Brasil – em termos metodologicamente sincretistas (ausência de univocida-
de de fundamentos e a claudicante inspiração em preceitos aparentemente Assim como na Itália e na Alemanha1247, o tecnicismo jurídico impreg-
antitéticos, como demonstra a penetração dos dispositivos positivistas no nou a cultura jurídica no período de codificação penal e processual penal.
coração dos códigos penal e de processo penal). Entretanto, tal construção se A “civilística processual penal”, no Brasil, apesar das diferenças existentes
fez a partir do denominado “método técnico-jurídico, cujo autor que aparece entre os membros da comissão de reforma processual penal, encaminhava
como inafastável símbolo de sua realização é Arturo ROCCO. Mas que, como
1246. NUNES, Diego. Processo Legislativo Para Além do Parlamento em Estados Autoritários: uma análise
visto, no processo codificatório italiano e nas bases processuais penais, capazes comparada entre os códigos penais italiano de 1930 e brasileiro de 1940. In Revista Sequência. n. 74.
Florianópolis, 2016. p. 155.
de articular o liberalismo reacionário presente nas discussões sobre o Código 1247. “O método técnico-jurídico (ou escola técnico-jurídica) constitui hoje a intuição penal dominante. As-
sim, na Alemanha, VON HIPPEL, MEZGER, BELING e numerosos outros; na França, modernamente
1245. Em suma, o Código de Processo Penal brasileiro vigente nasce autoritário e sobrevive inquisitório até DONNEDIEU DE VABRES; na Itália, cêrca de 90% de seus penalistas; na Argentina, o maior de
os dias atuais, na medida em que segue orientado pela lógica da descoberta da verdade real como um seus escritores de Direito Penal: SEBASTIAN SOLER; no Brasil, NELSON HUNGRIA, BASILEU
dever de ofício do magistrado”. SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A Cultura Inquisitória Vigente e a GARCIA, GALDINO SIQUEIRA, OSCAR STEVENSON, MADUREIRA DE PINHO e outros mais.
Origem Autoritária do Código de Processo Penal Brasileiro. In Revista da EMERJ. v. 18. N. 67. Rio de VIANA, Lourival Vilela. O Sistema Penitenciário no Direito Brasleiro. In Revista da Faculdade de
Janeiro, 2015. p. 273. Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. v. 5. Belo Horizonte, 1953. p. 186.
360 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 361

o direcionamento no mesmo sentido que o processo codificatório italiano: do período ditatorial, como fontes “apolíticas” ou como “nomes indefectíveis”
construir um diploma técnico, que permitiria a eficácia do direito repressivo. do direito e do processo penal brasileiros pereniza ou entroniza as práticas au-
Sem sombra de dúvidas, considerando que a legislação que tratou dos crimes toritárias pós-democráticas. É nesse sentido que a hipótese de que a operação
políticos restou à margem do processo de tipificação na parte especial do dos juristas como legisladores nos regimes autoritários serviria como “freio” ou
código penal – estes crimes foram estabelecidos em legislação especial – res- “contrapeso” ao poder parece servir para uma “absolvição” destes juristas no
taria ao código de processo penal, desde a leitura instrumentalista já existente, tribunal da história. Fiquemos com um exemplo. Consideremos um julgado
implementar tais medidas repressivas concretamente1248. Numa primeira no qual, exemplificativamente, como fundamentação da decisão, o Tribunal, a
acepção, pode-se concordar com SONTAG que “o tecnicismo é que articu- fim de afastar a alegação de nulidade, cita textualmente Francisco CAMPOS,
lará a noção de código como objeto técnico com um auditório imaginado alegando a “atualidade de suas lições”. Imaginemos por um segundo que isto
juridicamente tecnicizado, isto é, em que os destinatários do texto legislativo se dê após a Constituição de 1988. Como explicar esta espécie de homena-
seriam especialistas em sentido exclusivamente “jurídico””1249. Entretanto, a gem ao patrono do autoritarismo processual penal brasileiro a não ser que
alienação do corpo de juristas, com a perda dos referenciais metaéticos, além portanto, o código de processo penal seja uma obra apolítica?1250
da crise do classicismo penal, vinculará a experiência autoritária com o tec- Enfim, o tecnicismo jurídico foi um movimento que, como já frisamos
nicismo, o que não pode ser pensado como mero acidente histórico. Nos três
países ventilados – Alemanha, Itália e Brasil – teremos alterações profundas 1250. APELAÇÃO CRIME. Imputação: art. 12, caput da Lei nº 6.368/76. 01. PRELIMINARES: DESACO-
nas legislações, proliferando-se normas antiliberais, restando a democracia LHIDAS – O Defensor constituído foi intimado para a audiência de instrução e julgamento e compa-
receu ao ato. Nesta audiência, além do interrogatório, foi colhido o depoimento da testemunha R.C.S.,
parlamentar catalogada como representativa dos excessos do liberalismo. arrolada pela acusação. As demais testemunhas arroladas na peça vestibular seriam ouvidas por precató-
ria, sendo que a Defesa teve ciência inequívoca da expedição da carta, ou seja, quando da realização da
Existe uma forte conotação política no movimento tecnicista, capturado audiência mencionada. – Por outro lado, desnecessária era a intimação da data aprazada no Juízo depre-
cado, conforme argüiu a Defesa . Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Súmula 273 do mesmo
pelos governos autoritários que, se valendo dos juristas como especialistas, Sodalício. – No que tange a alegada a nulidade da intimação da sentença, observa-se que o Defensor
constituído – embora intimado por meio de nota de expediente publicada no órgão oficial – interpôs
enfraqueciam o distanciamento necessário relativamente à função de crítica o recurso dentro do qüinqüídio, apresentando desde logo suas razões, onde ataca os fundamentos da
r. sentença e rebela-se contra o apenamento. – Não se vê, assim, como acolher a preliminar suscitada.
da legislação. Tome-se como paradigma os escritos de Arturo ROCCO, que Com efeito, a combativa Defesa, muito embora o alegue que não foi intimada de ‘’... todo o conteúdo
da sentença...’’, interpôs apelação, a qual veio acompanhada de razões, sem necessidade de fazer uso do
imprimiam à crítica apenas a opção valorativa de lege ferenda. Como também prazo conferido pelo art. 600 do CPP. Ataca, conforme anteriormente referido, a condenação e o apena-
mento. Resulta, daí, que não se vê qualquer prejuízo. É importante, sempre que formos falar sobre
já deixamos claro no capítulo anterior, uma tese fraca da civilística penal, nulidades processuais, lembrar das lições de Francisco Campos, contida na Exposição de Motivos
como encontrada em SBRICCOLI, é insuficiente para dar conta das res- do Diploma Processual Penal vigente, que ainda continuam atuais (grifo nosso). 02. MÉRITO. – A
materialidade do delito encontra-se comprovada. – A prisão do apelante, é de ser ressaltado, não se deu
ponsabilidades destes juristas na formação do direito autoritário brasileiro no por acaso. Ao contrário, se originou de informação contida em denúncia anônima, bem como foi fruto
de investigações. Some-se a isso os testemunhos dos policiais. A eficácia probatória do testemunho dos
regime estadonovista. E, além disso, a sobrevivência destes autores, para além policiais não pode ser desconsiderada. – A versão apresentada pelo réu em Juízo não se apresenta veros-
símil. Tratando-se de retratação, não devemos olvidar, que ‘’deve o acusado fundamentá-la em forma a
convencer o julgador de ter sido fantasista a confissão.’’, conforme alertou o ilustre processualista Edu-
ardo Espínola Filho (Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Editora Rio, tomo I, edição histórica
1248. A retórica do confronto com a Alemanha (a menção à supressão da legalidade) se encontrava por igual – Volume III, pág.49). – Além disso, o ônus da prova, quanto a alegação de que a confissão foi motivada
presente no Brasil, assim como ocorrera na Itália. Pode-se afirmar se tratar de um lugar-comum no dis- pelo advogado que assistiu o acusado, cumpria a defesa. – No que tange a caracterização do delito, deve
curso autoritário brasileiro. “A Constituição do Brasil, numa visão panorâmica, relativamente ao Direito ser ressaltado que as ‘’... figuras, v.g., de transportar, trazer consigo, guardar ou, ainda, de adquirir não
Penal, não foi grandemente inovadora. Isso é sintomático, servindo de roteiro seguro para minuciosa exigem, para a adequação típica qualquer elemento subjetivo adicional tal como o fim de traficar ou
análise da Revolução de 1964, visto a legislação por ela elaborada ser a cristalização da filosofia da- comercializar’’. (HC 23801/SP, Relator Ministro Felix Fischer, j. em 17/06/2003, 5ª Turma do Superior
quêle movimento. Outras áreas receberam incluência mais viva, como o terreno tributário, e o sistema Tribunal de Justiça). Temos no mesmo relatoria do eminente Ministro Felix Fischer, j. em 12/11/2002,
federativo, que sofreu indisfarçável atrofiamento. Estas alegações autorizam extrair a ilação de que a da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. – O sistema trifásico restou observado de forma explici-
Carta Magna não se preocupou em destruir os princípios antes conquistados da garantia do direito de tada na r. sentença hostilizada. Assim, nada a modificar quanto ao ponto. – A pena-base foi fixada em
liberdade do cidadão. Ao contrário, conservou-os, respeitando o nullum crimen nulla poena sine lege. 04 anos de reclusão (e assim tornada definitiva), ou seja, próximo ao mínimo legal. Considerando as
Não se apressou, de outro lado, em consagrar a analogia em direito penal, como é comum acontecer nos circunstâncias apontadas, a pena não deveria, como não foi, ser fixada no mínimo legal. – ART. 12 DA
regimes políticos que sucedem a um movimento militar e que culminam com interrupção da normalida- LEI 6.368/76. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA: INICIAL FECHADO. VOTO VENCIDO.
de constitucional. Em particular, se a confrontarmos com os Atos Institucionais – legislação excepcional ‘’DECIDE A CÂMARA: À UNANIMIDADE, DESACOLHER AS PREFACIAIS; POR MAIORIA,
que, na medida do possível, a Constituição procurou não absorver”. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. O PROVER PARCIALMENTE O APELO PARA, MANTIDA A CONDENAÇÃO E APENAMENTOS,
Direito Penal na Constituição de 1967. In Revista de Informação Legislativa. v. 6. n. 21. p. 33. FIXAR O REGIME INICIAL FECHADO PARA O CUMPRIMENTO DA PENA CARCERÁRIA
1249. SONTAG, Ricardo. Código e Técnica: a reforma penal brasileira de 1940, tecnicização da legislação e APLICADA, VENCIDO O DES. RELATOR QUE MANTINHA O REGIME DA SENTENÇA.’’
atitude técnica diante da lei em Nelson Hungria. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2009. (Apelação Crime Nº 70011581568, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
p.71. Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em 23/03/2006)
362 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 363

no capítulo anterior, não rompeu com o positivismo, apenas o incorporou em ser endereçada para modificação ou supressão de institutos do direito vigente
um discurso pretensamente jurídico. E, no mesmo sentido, foi utilizado como ou ainda, na tentativa de fazer incorporar na legislação institutos alienígenas
uma espécie de cenário ideal para que os juristas assumissem o trabalho de (direito comparado)1253. Como se pode perceber claramente, parece-nos in-
legislação autoritária, sob a aparência da técnica (tome-se MANZINI na Itália, discutível a opção da comissão, ao pensar o diploma processual penal como
MEZGER na Alemanha, HUNGRIA no Brasil). Apesar das enormes diferenças uma ferramenta eminentemente técnica, que vem igualmente corroborada
que tais autores guardam entre si relativamente às concepções de base teórica, pelos “procedimentos legislativos de gabinete”. Novamente trazendo à colação
todos eles contribuíram decisivamente para a construção de um sistema crimi- a perspectiva de Narcelio de QUEIROZ, a presença dos autores tecnicistas,
nal altamente refratário a quaisquer valores democráticos. Portanto, não resta como suporte de autoridade para as escolhas aserem feitas no procedimento
dúvidas de que suas obras, não obstante certos mea culpa realizados a posteriori, de codificação aparece de maneira muito clara: “entretanto como pondera
são imprestáveis para fundamentar um processo penal que se pretenda minima- ainda ROCCO, as críticas mais frequentes que se fazem às leis não teem
mente democrático. Foram obras produzidas por homens ligados a governos por base os princípios do direito vigente, mas obedecem a considerações de
autoritários e que, mutatis mutandis, restavam impregnados de concepções po- ordem social ou política”. Assim, segue o autor, “essa crítica não cabe numa
líticas, nesta quadra da história, inaceitáveis e inescusáveis. atividade puramente jurídica, pois é função da filosofia do direito penal e da
Além de todo este problema que reside na conexão entre política e pro- política criminal”1254. Desta forma, a valoração crítica acerca da legislação
cesso penal, o tecnicismo submetia a interdisciplinaridade constitutiva dos processual penal estaria fora das funções a serem exigidas do juristas, o que
saberes criminais a uma distribuição de quinhões científicos, como inúmeras parece bastante conveniente a um regime autoritário.
obras registram: objeto do direito ou do processo penal de um lado; ciên- No campo do direito penal, podemos citar o pensmento de
cias auxiliares de outro1251. Vejamos como a questão técnica está presente na DUARTE, para quem
comissão que redige o código de processo penal a partir da narrativa de um “a Comissão assentara, com MANZINI, que há um princípio idealístico do
membro, Narcelio de QUEIROZ: “sem se distanciar de uma rigorosa técni- direito, sem o que não se poderia buscar um sistema e tentar uma síntese
ca jurídica, procurando estar em íntimo contacto com a moderna doutrina conceitual superior. A dogmática jurídica é que inspira o plano. A con-
cepção técnico-jurídica considera o direito penal um sistema de preceitos
processualística, o Cód. se manteve fiel à nossa nomenclatura tradicional, e sanções que se forma e vive necessariamente no organismo político do
só a abandonando num ou noutro ponto, já demasiadamente antiquados, Estado (MANZINI)”1255.
ou aberrantemente distanciados da atual sistemática”1252. No que diz respei- Assiste razão, portanto, a SONTAG1256 e a ANDRADE, quando enfa-
to à interpretação, prossegue QUEIROZ em sua procissão metodológica, tizam que o tecnicismo que inspirou os juristas brasileiros foi o italiano, em
afirmando que ela (interpretação) deve pender para fazer atuar a vontade especial o de Arturo ROCCO e Vincenzo MANZINI1257.
da lei, levando em consideração o seu sentido prático (neste ponto o autor
Contudo, o método técnico-jurídico não restou preso a um deter-
recorre a ninguém menos do que MANZINI). No sentido de se evitar uma
minado momento temporal. Suas marcas foram tão profundas nas bases
atitude crítica perante a lei – como referido, a atitude crítica constitui um
doutrinárias brasileiras que é possível facilmente encontrar duas caracterís-
movimento reflexivo de lege ferenda – “a atitude do juiz não pode ser uma
ticas comuns às obras deste tipo de abordagem: a tendência à supressão das
atitude crítica” (agora citando GRISPIGNI). A crítica só teria sentido em
uma ciência do direito penal por se constituir, isto é, futura, preparatória 1253. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943.
p. 14.
à eventual atividade legislativa. A crítica, prossegue QUEIROZ – citando 1254. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943.
p. 15.
Arturo ROCCO em sua famosa conferência sobre o método – apenas pode 1255. DUARTE, José. O Novo Código Penal. In Revista Forense. v. 38.n. 87. Rio de Janeiro, 1941. p. 313.
1256. SONTAG, Ricardo. Código e Técnica: a reforma penal brasileira de 1940, tecnicização da legislação e
1251. Cf TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p. 31. atitude técnica diante da lei em Nelson Hungria. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2009.
1252. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943. 1257. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Construção e Identidade da Dogmática Penal: do garantismo pro-
p. 14. metido ao garantismo prisioneiro. In Revista Sequência. n. 57, 2008. p. 237-260.
364 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 365

questões jusfilosóficas e históricas; b) a organização entre o objeto de deter- equivalente à de MANZINI na Itália. Evidentemente que a comparação re-
minado campo e as suas ciências auxiliares. O tecnicismo na Itália, dominou ferida é meramente retórica, já que de fato, se tratam de juristas distintos em
praticamente a integralidade do século XX. No Brasil, pode-se afirmar que contextos distintos. Mas o seu papel na atuação do regime autoritário não
este método ainda se encontra presente em grande parte dos autores de pro- pode ser menosprezada.
cesso penal (e provavelmente de direito penal), com algumas suavizações que, Preliminarmente, HUNGRIA compartilha de algumas das bases metodo-
quando muito, flertam com o constitucionalismo. lógicas e de determinados pressuspostos justificadores do direito penal fascista,
Importante personagem do direito processual penal, Frederico MAR- se aproximando incrivelmente de MAGGIORE, ao sustentar uma posição na
QUES será igualmente influenciado pelo método tecnicista, o que talvez qual os direitos são interpretados como certas concessões estatais: “o Estado
explique alguns posicionamentos contraditórios assumidos diante do código Novo brasileiro não obedece a místicas, a ideologias artificiais, a concepções
de processo penal de 1941. Segundo MARQUES, ao comentar o método do iluminísticas. Não acredita em direitos fora do Estado”1260. Igualmente, HUN-
direito processual penal, afirma:“o seu método é o técnico-jurídico, que con- GRIA rejeitava o liberalismo (inclusive o penal, baseado em excessos), como
siste em tornar possível a pronta realizibilidade do direito, com a simplificação no exagero da tensão existente entre indivíduo e Estado, fruto de divagações
quantitativa e qualitativa dos preceitos em vigor, para que, em síntese con- metafísicas do iluminismo (o que reafirma a hipótese italiana da juspublicís-
centrada, ordenada e rigorosa, possa ser dominado todo o material do direito tica fascista, dos direitos como concessões do Estado)1261. Desta maneira, a
positivo”1258. A mesma orientação metodológica poderá ser encontrada em principal tarefa assumida pelo direito penal no Estado Novo seria a proteção
Romeu Pires de Campos BARROS1259. Mesmo no campo do processo civil, dos interesses do Estado, “que são os interesses do todo social e os do próprio
tal orientação persistirá por grande tempo, como demonstra o pensamento indivíduo em função do todo social”1262. Segue HUNGRIA afirmando que
de Alfredo BUZAID, que na Exposição de Motivos do CPC afirma: “um “mas o direito penal no Estado Novo não propugna somente o princípio da
Código de Processo é uma instituição eminentemente técnica. E a técnica não autoridade, o reforço do poder estatal, mas também a afirmação do instinto co-
é apanágio de um povo, senão uma conquista de valor universal”. letivo à subordinação racional do indivíduo ao interêsse geral”1263. Nos escritos
A presença constante de MANZINI nas justificativas legislativas ou de HUNGRIA, mesmo naqueles destinados ao “método técnico-jurídico”, as
doutrinárias é um elemento que não pode ser desconsiderado, uma vez que premissas positivistas se encontravam presentes, sendo reativadas sempre que
é justamente a partir de sua orientação teórica que o tecnicismo assume uma necessárias à sustentação de uma política criminal autoritária1264.
postura autoritária, radicalizando certas premissas já existentes no liberalis-
mo-reacionário de Arturo ROCCO. No campo do direito penal, Nelson 1260. HUNGRIA, Nelson. O Direito Penal no Estado Novo. In Revista Forense. v. 84. Rio de Janeiro: Foren-
se, 1941. p. 265.
HUNGRIA ocupará posição especial. Seria possível inclusive afirmar-se que, 1261. “A concepção filosófica dos direitos do homem, interpretada pela ortodoxia do demo-liberalismo, re-
dada a sua posição assumida como Ministro do STF e pela credibilidade e dundava numa permanente hostilidade do indivíduo contra o Estado. O Estado era o mal necessário, que
devia ser contido dentro das mais estreitas lindes. E o Estado, de renúncia em renúncia, de concessão
centralidade de sua obra, que a sua influência no Brasil, poderia ter sido em concessão à liberdade individual, acabara por perder a sua própria autoridade, a sua indispensável
eficiência para alcançar os seus supremos fins específicos”HUNGRIA, Nelson. O Direito Penal no
1258. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, Estado Novo. In Revista Forense. v. 84. Rio de Janeiro: Forense, 1941. p. 266.
1965. p. 18. 1262. HUNGRIA, Nelson. O Direito Penal no Estado Novo. In Revista Forense. v. 84. Rio de Janeiro: Foren-
1259. “Tratando-se de uma ciência normativa, o método atrás exposto é técnico-jurídico, consistindo na fiel se, 1941. p. 268.
representação da realidade jurídica objetiva, tal como ela é, e não como pretenderia o intérprete que ela 1263. HUNGRIA, Nelson. O Direito Penal no Estado Novo. In Revista Forense. v. 84. Rio de Janeiro: Foren-
fôsse. Êsse método se desenvolve pela construção do sistema dos vários institutos jurídicos, coligando se, 1941. p. 268.
as normas que o regulam através de duas fases, seguidas de uma terceira que se denomina o momento 1264. “Com o seu desvairado objectivo de retorno ao primitivo pre-estatal e os seus apostolos arrebanhados
essencial: a primeira, exegética, destinada a simples interpretação da norma jurídica processual penal; a no seio da mais feroz delinquencia, assassinando, incendiando, dynamitando, o anarchismo se torna um
segunda fase, a dogmática, procedendo por síntese e abstração sempre genérica, demonstrando aspectos alarmante phenomeno da pathologia social, que precisava ser conjurado por honra mesmo da Humani-
não notados na norma, reconstruindo o material legislativo, mediante um sistema científico. As duas dade e da Civilização. Praticamente, todos os processos de reacção contra elle, por mais aberrantes das
primeiras têm caráter ontológico, uma vez que mostram o direito que é, enquanto que a terceira fase, normas penaes communs, eram justificados. O que se colimava, com as medidas penaes de excepcção,
consistente na crítica, tem caráter deontológico, demonstrando a deficiência do direito processual cons- a que, entre nós, accudiu o pressuroso dec. 4269, de 1921, era prevenir o attentado anarchista, espantosa
tituído e vigente, sugerindo as reformas que assegurem a constante adequação do direito aos fenômenos forma de criminalidade, em que se desafogava, sob o disfarce de uma ideologia anti-historica e absurda,
que deva regular”. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro. v. I. São a furia sanguinaria e destruidora de revenants do homem primario”. HUNGRIA, Nelson. A Lei de Se-
Paulo: Sugestões Literárias, 1969. p. 42. gurança. In Revista dos Tribunaes. a. XXIV. v. XCVII, 1935. p. 312.
366 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 367

Em última instância, o direito penal atenderia a finalidades exclusiva- regime fascista, como no caso da citação de STEVENSON de MAGGIORE
mente políticas, não jurídicas1265. Uma retórica baseada na ordem, mitigada em artigo voltado para o método técnico-jurídico1270.
pela noção de “equilíbrio” era um recurso constantentemente utilizado pelos Em resumo, em ambas as codificações – penal e processual penal – o
tecnicistas1266 e que se encontra claramente na Exposição de Motivos do Código tecnicismo estava presente, tratando de assegurar a “apoliticidade” dos ins-
de Processo Penal de 1941. Esta “retórica do compromisso”1267 sobreviverá, in- titutos ali consagrados. Segundo NUNES, “o paradigma tecnicista acabou
clusive, à ruptura constitucional de 1988. A apoliticidade dos códigos1268 ou a por predominar no perfil dos juristas escolhidos porque ele dialogava e se
subsequência de reformas instruirá uma doutrina domesticada respectivamente fundava com um tipo específico de prática”1271. Assim, pode-se afirmar que a
às contradições existentes entre as legislações criminais do Estado Novo e a preocupação dos juristas tecnicistas estava na aplicação da lei penal1272. Esta
promessa de mudança com o advento da democracia formal no Brasil. perspectiva será fundamental, pois será justamente na relação entre eficiência
Necessário compreender, por esta razão, que o tecnicismo brasileiro ou eficácia repressiva do sistema de justiça criminal que o processo penal
não era um movimento politicamente neutro, mas permitiu que as legis- ocupará um lugar de destaque. E, nesse sentido, a única possibilidade teórica
lações autoritárias fossem levadas a cabo e permanecessem como meras de o processo penal ser investido nestas funções de garantia de eficácia da lei
obras apolíticas. Como acentua NUNES, “os regimes de força brasileiro penal será através da relação de instrumentalidade com o direito penal.
e italiano souberam empregar isso a seu favor, utilizando a maleabilidade A afirmação de que o processo não consiste em um fim em si mesmo
do tecnicismo para dar conta da demonstração de forças do autoritarismo já era conhecida dos processualistas do fascismo. Neste sentido corresponde
como reformas penais”1269. O método estava prenhe de uma política crimi- o pensamento de MANZINI1273 e VANNINI. Para VANNINI, o processo
nal autoritária, pois não raras vezes o próprio discurso dos tecnicistas vinha penal teria natureza acessória e por conta dela, instrumental e formal1274.
repleto de homenagens e referências a juristas sabidamente atuantes no
No Brasil, esta relação de instrumentalidade será tratada no próximo
capítulo. Contudo, será na base do processo penal que aparecerão, de forma
1265. HUNGRIA, Nelson. O Direito Penal no Estado Novo. In Revista Forense. v. 84. Rio de Janeiro: Foren-
se, 1941. p. 267. muito cristalina, os aportes da doutrina italiana. Como exemplo, pode-se
1266. “A lei de processo penal é resultante da composição entre a segurança e a justiça. É preciso manter a or-
dem a qualquer custo; mas convém que isso ocorra com o máximo respeito pela justiça”. TORNAGHI, tomar a afirmação de Frederico MARQUES, para quem não sendo o “jus
Helio. Compêndio de Processo Penal. t. I. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 15. puniendi” auto-executável, o processo penal será um meio de coerção in-
1267. “A retórica do compromisso – central, inclusive, na auto-representação do Estado Novo – não pode ob-
nubilar essas inflexões impostas ao ordenamento penal brasileiro. O caráter compromissório das soluções direta1275, repetindo os ensinamentos de MANZINI, que acarretarão uma
adotadas deve ser levado em consideração, por outro lado, ao colocar lado a lado a experiência brasileira
com outras reformas penais contemporâneas, como a soviética. O discurso de vários penalistas e de in- adequação do processo penal às necessidades do direito penal, comportanto
telectuais do regime era, muitas vezes, gradualista: a diferença entre a ordem penal do Estado Novo e a
soviética, entre o código penal brasileiro e o fascista, seria de ordem quantitativa, isto é, de maior ou menor
distância tomada em relação ao liberalismo penal. Mas todos, de uma forma ou de outra, estariam envolvi- 1270. “Nesta época atormentada de dores, em que a Pátria cumpre a sua vocação da liberdade, regando com o
dos na batalha contra o “excesso de garantias para os criminosos” em nome da defesa social’”. SONTAG, sangue de seus filhos os ideais de democracia, cabe aos estudiosos da ciência jurídica precaver-se cada
Ricardo. Código e Técnica: a reforma penal brasileira de 1940, tecnicização da legislação e atitude técnica vez mais das teorias utilitárias que foram a nutriz dos imperialismos. Na filosofia perene estão as forças
diante da lei em Nelson Hungria. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2009. p. 122. espirituais que darão ao mundo de amanhã mais beleza, mais bondade, mais justiça, o direito a serviço
1268. Para um comentário que permite a conclusão desta adaptabilidade da legislação estadonovista à qual- do bem”. STEVENSON, Oscar. O Método Jurídico na Ciência Penal. In Revista Forense. v. 40. n. 85.
quer regime político tomemos por exemplo as palavras de ALBUQUERQUE: “Nossa estrutura pro- Rio de Janeiro: Forense, 1943. p. 266.
cessual, nos três caminhos – do Processo Civil, do Processo Penal e do Processo Trabalhista -, foi 1271. NUNES, Diego. Processo Legislativo Para Além do Parlamento em Estados Autoritários: uma análise
modulada sob a inspiração autoritária de uma Carta Constitucional outorgada. Sobreviveu a ela e, sem comparada entre os códigos penais italiano de 1930 e brasileiro de 1940. In Revista Sequência. n. 74.
contradições nem conflitos, senão na escala mínima de minguados pormenores, agasalhou-se à sombra Florianópolis, 2016. p. 173.
de uma Constituição de marcadas notas liberais que, do ponto de vista democrático representativo, foi
exemplarmente elaborada; e outra vez lhe sobreviveu, para convolar terceiras núpcias com um nôvo 1272. “Para Hungria, o jurista haveria que se comprometer também, e antes de mais nada, com a plena eficácia
estatuto, situado a extrema distância do primeiro dêsses três, que, se não comporta a qualificação de do código em sede judiciária. Código compreendido, certamente, em sua articulação com a repressão
liberal, também não pode ser apontado como um instrumento tipicamente autoritário. E conviverá com penal, como “direito repressivo”. Como artefato destinado aos juristas, o código demandaria uma atitude
êle, sem tropeços nem dificuldades, enquanto não sobrevierem as reformas, de resto anunciadas há mais específica ante o seu texto, a fim de garantir-lhe o bom uso”. SONTAG, Ricardo. Código e Técnica: a
de um lustro, que a adaptarão menos às exigências políticas do que às solicitações sugeridas à técnica reforma penal brasileira de 1940, tecnicização da legislação e atitude técnica diante da lei em Nelson
pela ciência. ALBUQUERQUE, Francisco Manoel Xavier de. O Direito Processual na Constituição de Hungria. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2009. p. 74.
1967. In Revista de Informação Legislativa. v. 6. n. 22, 1969. p.05. 1273. VANNINI, Ottorino. Manuale di Diritto Processuale Penale Italiano. Milano: Giuffrè, 1953. p. 05.
1269. NUNES, Diego. Processo Legislativo Para Além do Parlamento em Estados Autoritários: uma análise 1274. VANNINI, Ottorino. Manuale di Diritto Processuale Penale Italiano. Milano: Giuffrè, 1953. p. 05.
comparada entre os códigos penais italiano de 1930 e brasileiro de 1940. In Revista Sequência. n. 74. 1275. FREDERICO MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de
Florianópolis, 2016. p. 175. Janeiro: Forense, 1965. p. 12.
368 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 369

assim, o papel de concretização do direito penal. A mesma doutrina é profes- com o direito penal. À reboque das discussões travadas no cenário do direito
sada por TORNAGHI, que concebe o processo penal como um mecanismo material, o primeiro conceito afetado pelo coroamento das categorias juspu-
de coação indireta1276. Seria possível anexar, por conta do papel altamente blicísticas foi o de ação penal, tratado como um estado dinâmico do direito
subsidiário conferido ao processo penal em sua relação com o direito penal, material. A importância significativa da categoria ação no processo penal brasi-
a afirmativa de que a natureza do processo penal seria administrativa1277, leiro se justifica pela presença dos sentidos liberais-conservadores oferecidos, em
enfraquecendo ainda mais as relações estabelecidas entre poder punitivo e a síntese muito apertada, pelo tecnicismo. A ação penal representará claramente
compreensão (demasiadamente fraca e ingênua) do direito à liberdade. a passagem dos conceitos da escola histórica à juspublicística italiana (através
Esta instrumentalidade (relação entre direito penal e processo penal) dos escritos de ORLANDO, que se inspira fortemente em JELLINEK). Com
estará presente, em um nível muito mais profundo de enraizamento cultural o objeto do delito reconstruído (por Arturo ROCCO) e justificada a existência
do que se poderia imaginar. Contudo, como dito, não é o momento de se de um direito subjetivo de punir – jus puniendi – a ação seria compreendida
enfrentar tal questão. Passaremos, então ao exame de duas categorias fun- como um mecanismo de atuação do direito material, fornecendo, novamente,
damentais à construção do processo penal no Brasil, e que não destoaram os pressupostos para que o processo penal fosse comprendido e construído
da configuração do liberalismo-reacionário da juspublicística italiana, que segundo as mesmas diretrizes – instrumentalidade do processo penal. Para não
acabou por adequar os institutos da escola histórica ao paradigma (servilista) deixar dúvidas de que a relação jurídica chegara ao Brasil pelas lentes italianas,
do processo penal relativamente ao direito penal. Frederico MARQUES concederá a Arturo ROCCO o papel de pioneiro em
seu desenvolvimento na Itália, muito embora o seu desenvolvimento tenha sido
3.2.2. REPRISES DO LIBERALISMO REACIONÁRIO NO dado, anteriormente, por MANZINI1278.
BRASIL: CATEGORIAS FUNDANTES DO PROCESSO PENAL: A doutrina processual penal brasileira, em primeiro lugar, incorporou
RELAÇÃO JURÍDICA, DIREITO SUBJETIVO DE PUNIR, de maneira alargadíssima estas noções. Chama a atenção a presença destes
PRETENSÃO PUNITIVA E AÇÃO PENAL conceitos oitocentescos na processualística penal brasileira contemporânea,
Na linha do que até o presente momento foi exposto, algumas categorias que ainda compreende o processo penal como um jogo entre Estado e indi-
fundamentais do processo penal estão inspiradas na passagem de conceitos víduo, cujo ‘playground” é construído a partir de limites de sentidos dado
desde a escola histórica para a juspublicística oitocentesca. Posteriormente, tais por categorias anacrônicas, como é o caso do “direito subjetivo de punir”.
categorias são reinterpretadas desde os pressupostos de direito material penal A moldagem destes institutos é garantida por uma meta-teoria, por
e transplantados ao processo penal. Duas conclusões emergem daqui: a pri- um construto que epistemologicamente serve para acomodar estes feixes de
meira delas representa a manutenção de um pensamento liberal-conservador relações: a noção de relação jurídica-processual. A noção de relação jurídica
ou liberal reacionário, que possibilitou a formação da civilística penal, com o processual é um velho clichê pandectístico (novamente movemo-nos nos
predomínio dos métodos tecnicistas, que procuravam oferecer uma síntese às marcos da escola histórica tedesca), cuja função foi a de sistematizar um
antíteses postas desde a discussão entre liberais clássicos e positivistas. A opção, conjunto de saberes de natureza processual, especialmente criando um novo
como já demonstrado no capítulo anterior, foi pelo sincretismo manziniano, campo de estudo, o direito processual1279.
o que permitiu a filtragem de algumas categorias positivistas e a ressignificação Algumas feições assumidas pelo código de processo penal brasileiro
de outras tantas a partir de sua “tecnicização”. A segunda conclusão remete de 1941 são tributáveis diretamente à concepção do processo como rela-
inexoravelmente para a construção que se deu, sobretudo pelo movimento ção jurídica processual. A primeira delas repousa na centralidade assumida
anteriormente descrito, do processo penal e sua relação de instrumentalidade
1278. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense,
1965. p. 390-391.
1276. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. I. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 09. 1279. Não será objeto do presente estudo examinar a teoria da relação jurídica, mas tão somente indicar a sua
1277. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Ação Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938. p. 20. influência na construção do processo penal brasileiro. Esta tarefa será executada em futura obra específica.
370 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 371

pelo juiz, responsável, em última instância, pela harmonização de direitos lei”1285. Embora não expressamente, no pensamento de BARROS poderemos
e deveres existentes na relação de direito processual. Exemplo desta feição encontrar a mesma lógica que fora recebida pelos doutrinadores que recon-
pode ser apanhada em BARROS para quem o juiz, seria o “mais eminente figuraram ou ressignificaram (embora mantendo intactos vários conceitos
sujeito da relação processual”1280. herdados do reacionário liberalismo italiano das duas primeiras décadas na
Para chegar à esta conclusão, BARROS seguirá de perto o pensamento Itália) as categorias processuais penais, além das próprias bases do direito
de MANZINI (apesar de toda a já apontada contradição em seus escritos constitucional: a noção de que os direitos fundamentais são concessões es-
referentemente à esta temática). A mais importante obra dedicada ao estudo tatais. A afirmação de que o direito à liberdade nasce do exercício do direito
da relação jurídica processual penal escrito no Brasil será aquele de Helio subjetivo à punição representa claramente esta conformação, muito embora
TORNAGHI1281, o que demonstra a permanência destes conceitos, imutá- não encontremos, neste ponto, menção do autor ao pensamento italiano de
veis, segundo o próprio autor na apresentação do livro, cuja edição remonta forma referenciada: “a atuação da pretensão punitiva ou preventiva, poderá ser
1945. Destacamos aqui a menção de Frederico MARQUES a TORNAGHI, a própria causa do nascimento da pretensão de liberdade, visto que o Estado
no livro citado, A Relação Processual Penal, que “trouxe para a esfera e setor está obrigado a respeitar o jus libertatis daquele contra quem vai exercer o jus
do processo penal brasileiro a teoria da relação processual, de tão fecundos puniendi”1286. Podemos usar, para demonstrar que a noção dos direitos fun-
efeitos no setor do processo civil, como base de estruturação sistemática damentais não era uma corrente unânime, o sustentado por TORNAGHI,
e doutrinária de tôda a cieência do processo”1282. Sem sombra de dúvidas que poderia ser sintetizado em uma espécie de “jusnaturalismo reacionário”,
há aqui uma referência que se pode atribuir como a mais importante obra ao se preocupar relativamente à justificação das liberdades como pertencentes
escrita sobre a relação jurídica processual no Brasil. O que implica, igual- ao homem, e não concedidas pelo Estado1287. Para o autor, “a solução está em
mente, reconhecer-se que ela não apenas era muito conhecida da doutrina colocar a autoridade a serviço da liberdade legítima, do bom uso da liberdade.
processual penal brasileira, mas também tinha importantes intersecções na O que realmente se contrapõe à liberdade é o abuso, a licença, o crime”1288.
construção do código de processo penal brasileiro. A doutrina brasileira, portanto, conhecia os conceitos operados em solo
Além da categoria relação jurídica processual penal, outro conceito, especialmente italiano (e igualmente no alemão), reconhecendo a autonomia
que assim como na Itália fora incorporado desde a juspublicística foi o de da pena relativamente à prática do delito e o nascimento do processo. Nestes
direito subjetivo, que tem em JELLINEK sua mais relevante figura. Através termos, portanto, afirma ALMEIDA, “consequência do crime não é a pena,
desta categoria, o processo penal poderia ser interpretado como uma espécie mas o direito subjetivo de punir”1289. Este sim, por seu turno, deflagrará o
de conflito entre dois direitos: o direito à liberdade do indivíduo ou “status processo penal quando exercido. O direito subjetivo de punir, como escreve
libertatis”1283 e o direito do Estado a punir o violador da norma1284. Segundo Arturo ROCCO, estava baseado em um direito de obediência do súdito ao
BARROS, “a ordem jurídica, assim criada, atribui ao Estado o direito subje- Estado (caracterizando traço inequívoco do pensamento juspublicista italiano
tivo de punir, ou impor medidas preventivas, aos possíveis transgressores da e alemão do século XIX). No Brasil, estes traços poderiam ser também en-
lei penal, fazendo imperar, por tal forma, a obediência e o respeito à mesma contrados na justificação do direito de punir. Assim, tomemos como exemplo
o pensamento de SABINO JÚNIOR, que explica: “ao lado dêsse dever de
1280. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro. v. I. São Paulo: Sugestões
Literárias, 1969. p. 208. 1285. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro v. II. São Paulo: Sugestões
1281. TORNAGHI, Helio. A Relação Jurídica Processual. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1987. Também pode ser Literárias, 1971. p. 403.
encontrado o desenvolvimento da teoria, muito embora não com tanta profundidade em TORNAGHI, 1286. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro v. II. São Paulo: Sugestões
Helio. Compêndio de Processo Penal. t. II. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p.437-447. Literárias, 1971. p. 404.
1282. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1287. TORNAGHI, Hélio. Prisão e Liberdade Provisória. In Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios
1965. p. 126-127. Interiores. a. XX. n. 81, 1962. p. 32.
1283. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro. v. I. São Paulo: Sugestões 1288. TORNAGHI, Hélio. Prisão e Liberdade Provisória. In Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios
Literárias, 1969. p. 174. Interiores. a. XX. n. 81, 1962. p. 35.
1284. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro. v. I. São Paulo: Sugestões 1289. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. Processo Penal, Ação e Jurisdição. São Paulo: Revista dos Tri-
Literárias, 1969. p. 173. bunais, 1975. p. 123.
372 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 373

obediência e subordinação, imposto aos indivíduos, porque o Estado é cons- Estados autoritários). Para a justificação desta conclusão, SIQUEIRA se valerá
tituído e organizado como o supremo regulador da atividade individual, deve do pensamento de MAGGIORE, cuja produção em termos de justificação do
êle cuidar também da segurança e do bem-estar dos cidadãos”1290. No mesmo fascismo italiano não era apenas conhecida do autor, mas por ele foi utilizada.
sentido de que o direito subjetivo de punir requer um dever de obediência, Para não deixar dúvidas, citamos novamente SIQUEIRA “assim, se o Estado,
transcrevem-se as palavras de ROMEIRO: no punir, exercita um poder soberano, não pode ser limitado, em tal função,
“prevendo ações e omissões contrárias à ordem jurídica, a lei penal delineia por nenhum ordenamento, e muito menos estabelecido por si mesmo, tanto
os crimes e as contravenções, fixando-lhes as penas e institutos afins, criando, mais quanto é êle mesmo êsse ordenamento (MAGGIORE, op e loc cit.)”1294.
assim, o direito objetivo. Este atribui ao Estado o direito subjetivo de punir os
A fim de demonstrar como tais conceitos se desdobram no tempo,
possíveis transgressores da lei penal, impondo, por essa forma, a obediência,
o respeito à mesma lei. Com a violação desta, porém, aquele direito subjetivo permanecendo vívidos na doutrina processual penal, a noção de direito sub-
de punir, que, indistinta, abstratamente, visa aos possíveis infratores da lei jetivo de punir é ressignificada, a partir de bases constitucionais e também
penal, se modifica em relação ao real infrator dela, transformando-se num socorrendo-se da instrumentalidade do processo, como no pensamento de
direito concreto, atual, efetivo, de punir”1291. GRINOVER1295. Criticando em algum sentido a base oitocentesca (e com
A noção de direito subjetivo de punir sofria críticas desde o ponto de razão), a autora afasta a tese de BINDING de uma “exigência punitiva”.
vista técnico. Porém, não se vislumbrava qualquer espécie de crítica relati- Porém, dá-lhe uma nova roupagem – de cariz constitucional – sem contudo
vamente a um fundamento republicano do poder de punir. O fundamento afastar os apoios pandectísticos-autoritários da relação jurídica e o questiona-
outorgado por SIQUEIRA reflete exatemente esta construção do poder estatal mento que persegue toda a construção a partir do direito subjetivo de punir:
não conhecedor de limites, para quem “aquilo que impropriamente se diz o que viola aquele que infringe uma norma penal? O dever de obediência ao
direito subjetivo de punir não é outra coisa senão o supremo poder que o Estado? Lembramos que todo direito subjetivo parece residir na bilateralidade
Estado tem de infligir a pena (op e loc cit). No mesmo sentido, incisivamente, entre dever e direito, o que torna a remodelagem, muito embora progressista
MANZINI (Trattato di diritto penale, 1938, I, nº 47, pág. 83 e nota 2)”1292. relativamente às anteriores, uma reacomodação de velhos conceitos.
O pensamento de SIQUEIRA critica a concepção do direito subjetivo, uma Outra categoria que merece atenção é a de “pretensão punitiva” ou
vez que assentado nas bases civilistas clássicas, como um direito que poderia “pretensão preventiva” (minoritariamente)1296. A noção de pretensão punitiva
ou não ser exercitado. No teor do pensamento de SIQUEIRA, será possí- será fundamental à conformação do direito de ação (especialmente porque
vel encontrar-se plenamente as bases do pensamento liberal juspublicístico a pretensão configura justamente a exigibilidade do direito, que no processo
oitocentesco, no qual o poder punitivo não passa de uma manifestação de penal apenas admite a forma processual). A pretensão punitiva, configurada a
soberania, não sujeita, desde a sua essência”, a limites. “Certamente o Estado partir da noção de BINDING de “exigência punitiva”1297, alicerça, novamen-
tem o jus puniendi, mas não como facultas agendi, que caracteriza o direi- te, a ideia de instrumentalidade do processo (exigibilidade incondicionada
to subjetivo, e sim como jus gladii, e nesse sentido inseparável da essência do processo penal para satisfação do direito subjetivo de punir). Conhecida
mesmo do Estado, constituindo um poder soberano, uma prerrogativa in- de autores da época, a pretensão punitiva era também construída a partir
separável do imperium, e não um direito concedido e garantido pela ordem
jurídica”1293. Este poder de punir, portanto, seria ilimitado (tão ao gosto dos 1294. SIQUEIRA, Galdino. Ação Penal. In Revista Forense. a. XLII. v. CIII. Rio de Janeiro: Forense, 1945. p. 24.
1295. “Com isso não se nega o poder inquisitório, ou, antes, investigatório do juiz penal, consequência não da
‘exigência punitiva’, mas dos postulados nulla poena sine lege e nulla poena sine juditio; a consequên-
cia do crime não é a pena, mas o direito subjetivo de punir, o qual só pode ser concretizado dentro do
1290. SABINO JÚNIOR, Vicente. O Habeas Corpus e a Liberdade Pessoal. São Paulo: Revista dos Tribu- processo; e assim, o direito de punir apresenta-se, desde logo, como um direito judicial, porque tende
nais, 1964. p. 08. imediatamente a uma realização processual”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Pro-
1291. ROMEIRO, Jorge Alberto. Da Ação Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 03. cesso Penal: as interceptações telefônicas. 2 ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 55.
1292. SIQUEIRA, Galdino. Ação Penal. In Revista Forense. a. XLII. v. CIII. Rio de Janeiro: Forense, 1945. 1296. ROMEIRO, Jorge Alberto. Da Ação Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 11.
p. 233. 1297. Diversas observações sobre o objeto do processo penal podem ser encontrados em GLOECKNER,
1293. SIQUEIRA, Galdino. Ação Penal. In Revista Forense. a. XLII. v. CIII. Rio de Janeiro: Forense, 1945. Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado.
p. 24. 2 ed. Salvador: JusPodium, 2015.
374 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 375

da intersecção entre a doutrina alemã e italiana, como em SILVA, que a controvertido de direito, ou numa indagação ethica para reprovação ou
apresentava desde as bases de MASSARI, MANZINI e ROCCO1298. Os pro- aprovação da conducta moral de um indivíduo”1303. O processo penal será
cessualistas italianos que atuaram no processo de solidificação dos elementos nada mais do que uma resposta da defesa social perante a prática de um
estruturais do processo penal fascista, não recusarão, de regra, esta expressão, crime, uma “resposta repressiva”, instrumental ao direito penal. De acordo
o que novamente remete ao problema da subserviência dos conceitos a de- com SIQUEIRA, “o ramo jurídico sistematiza a defesa social preventiva ou
terminados influxos políticos. Houve uma progressiva autonomização do remota (substitutivos penais) e diréta ou próxima (polícia de segurânça),
conceito de pretensão punitiva relativamente à noção de direito subjetivo de bem como a defesa repressiva (direito e processo penal, técnica carcerária e
punir, passando a significar exigibilidade1299. institutos post-carcerários)1304.
No momento1300, basta compreender que a autonomização da pretensão Dos quatro conceitos sucintamente apresentados (direito subjetivo de
punitiva será elemento fundamental para que o conceito de ação penal seja punir, relação jurídica processual, pretensão punitiva e ação penal), todos
estruturado no processo penal. A ação penal fará atuar a pretensão punitiva, eles continuam presentes na doutrina processual penal brasileira, de formas
nos dizeres de ROMEIRO. Ação penal será, portanto, um meio. Da mesma mais ou menos intensa ou mais ou menos matizada. Contudo, alguns deles
forma que o processo penal. Isto equivalerá, do ponto de vista do autor, à acabam sendo ressignificados, permitindo que a discussão política por exce-
mesma formulação lançada por MANZINI, de que a ação penal será um lência no processo penal – sobre os sistemas acusatório e inquisitório – possa
poder jurídico, capaz de “promover as condições destinadas a obter do juiz ser reduzida, minimizada, relativizada.
uma decisão sobre a realizabilidade da pretensão punitiva do Estado, derivante Uma semiótica das relações de poder no processo penal evidenciaria os
de um fato que a lei prevê como crime”1301. constantes usos e retornos da “autoridade” no processo penal. O tensiona-
O pragmatismo repressivo que instruiu a comissão responsável pela mento entre autoridade e liberdade aparecia à época, como nos trabalhos de
elaboração do código de processo penal de 1941 também era alimentado TORNAGHI, que fundamentará a prisão provisória nos excessos ou abusos
por uma preocupação em dar eficácia ao direito penal, como restou con- da liberdade – uma retórica comum a concepções autoritárias de processo
signado no tópico antecedente. A ação penal, objeto de construção desde penal1305. Mas também aparece em trabalhos mais recentes, como no caso
as premissas pandectistas, não restaria indene à esta forma de se conceber o de GRINOVER, que assevera que “o equilíbrio entre a autoridade e a liber-
processo penal. A consolidação do pensamento de MANZINI, neste ponto, dade se faz pela prevenção e pela repressão dos abusos de parte a parte”1306.
sobressai. De um lado, o processo penal será avesso a disputas filosóficas. A potencialização dos poderes do magistrado (que jamais foi no Brasil
A teoria será relegada a um saber ultrapassado. Será o processo penal, “um suprimida, desde o “processo penal autoritário” e sua concepção publicís-
produto da necessidade”1302. No mesmo sentido a ação penal será o iter tica de processo, passando à contemporânea juristocracia), foi construída
necessário para a abertura do procedimento formal, que tem por objetivo não apenas desde um código, desde uma legislação. Vinha desde as raízes
a verdade real. A influência de MANZINI pode ser novamente encontrada doutrinárias, e lá permanece. Um juiz “automático” e não “alomático”, per-
em SILVA, para quem “como doutrina Manzini, o processo penal não pode mitia desconstruir as partes no processo penal, para reconduzi-las a meros
consistir numa polemica academica, para abstractamente resolver um ponto
1303. SILVA, Florêncio de Abreu e. Novos Commentarios ao Codigo do Processo Penal do Estado do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Globo, s.d. p. 125-126.
1298. SILVA, Adhemar Raymundo da. Estudos de Direito Processual Penal. Salvador: Aguiar & Souza 1304. SIQUEIRA, Galdino. Objéto da Ciência Penal – Fórmas de Govêrno – A Nova Democracia. In Revista
LTDA, 1957. p. 92-94. Forense. A. XXXV. V. 415. Rio de Janeiro, 1938. p.251.
1299. Sobre a confusão entre direito subjetivo de punir e pretensão Cf BELING, Ernst von. Esquema de De- 1305. “A autoridade se garante contra os abusos da liberdade: criando um sistema de providências cautelares
recho Penal. Teoría del Tipo. Buenos Aires: Depalma, 1944. Uma bela análise do desenvolvimento do tendentes a prevenir as lesões da ordem e dos direitos alheios, como, por exemplo, exigência de licença
conceito pode ser encontrada em KAUFMAN, Hilde. Pretensión Penal y Derecho a la Acción Penal: la para determinadas atividades, de cauções, de submissão à censura prévia, etc., ou então, cominando
delimitación entre el derecho penal material y el formal. Madrid: Ramón Areces, 2009. sanções para os casos de mal uso da liberdade”. TORNAGHI, Hélio. Prisão e Liberdade Provisória. In
1300. A noção de pretensão punitiva e a de ação será objeto de futuro estudo particularizado. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. a. XX. n. 81, 1962. p. 35.
1301. ROMEIRO, Jorge Alberto. Da Ação Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 03-04. 1306. TORNAGHI, Hélio. Prisão e Liberdade Provisória. In Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios
1302. ROSA, Inocêncio Borges da. Processo Penal Brasileiro. v. 1. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1942. p. 50. Interiores. a. XX. n. 81, 1962. p. 35.
376 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 377

“partícipes”1307. Mas esta é a herança do “liberalismo” processual penal bra- de seus defensores.
sileiro e dos reflexos que as concepções alargadas do liberalismo-reacionário O tópico teve a pretensão de demontrar que categorias trabalhadas,
italiano e alemão nos outorgaram. A comissão de 1941 não surge ex nihilo, desenvolvidas e presentes na literatura italiana, mormente aqueles que reper-
como algo “fora de seu tempo”. É a manifestação e rearticulação de categorias cutiram no período fascista eram conhecidas da doutrina processual penal
já presentes, muitas vezes herdadas desde tempos históricos longínquos. brasileira e foram utilizadas como sustentáculos que justificaram determi-
O arraigamento de certas categorias em nossa doutrina é um traço que nadas concepções de processo penal, não esgotadas ou fulminadas com o
pode ser facilmente registrado. Retornando ao exemplo da relação jurídica, advento da Constituição da República de 1988. Pelo contrário, a partir de
a sua defesa chega ao extremo de professar que tal conceito havia sido supri- determinadas ressignificações, se encontram imantadas por aparentes recur-
mido nos regimes autoritários alemães e italianos. Tal afirmativa não merece sos retóricos que, em sua grande maioria, de forma flagrantemente pedestre,
ser levada a sério. A uma, porque qualquer análise historiográfica, por mais ignoram suas idiossincrasias históricas e políticas. Categorias que serviram1310
perfunctória que seja, vislumbraria a sua presença em diversos autores que ao regime fascista italiano estão na base de nosso processo penal.
trabalharam durante o fascismo italiano: MANZINI, MASSARI, SABATINI, Resta-nos analisar, de forma muito breve, se de fato o código de pro-
ALOISI, todos eles sem exceção, adotaram a referida teorização. De acordo cesso penal de 1941 representou um sistema de enquadramento normativo
com GRINOVER, na tentativa de desconectar a noção de relação jurídica de representações absolutamente incompatíveis com o que se discutia dou-
dos regimes políticos autoritários: trinariamente ou, se pelo contrário, ele representa algo de novo que brotou
“Afirmar – como o fizeram Goldschmidt e Sauer – que o conceito de relação no regime estadonovista, permanecendo à mercê de um contexto de exceção.
jurídica processual é desprovido de qualquer valor é alarmante, jurídica e poli-
ticamente. Como demonstra Bettiol, a negação da relação processual justifica e
3.2.3. UM CÓDIGO “LIBERAL” PARA UMA TRADIÇÃO
explica o duro ataque nacional-socialista, que negou a equação processo-relação
jurídica processual justamente porque seria de origem iluminista, ligada à divi- LIBERALISTA: O DISCURSO DA CONTINUIDADE DO CÓDIGO
são de poderes e ao reconhecimento de uma esfera autônoma de liberdade do DE PROCESSO PENAL DE 1941
acusado e de impostergáveis deveres do juiz para com o réu”1308. Importante argumento que percorreu a doutrina processual penal bra-
Preferimos, neste ponto, a tese de GIACOMOLLI, para quem “poten- sileira reside na ideia de continuidade liberal do código de processo penal
cializaram-se os danos com a persistência da adequação da teoria da relação brasileiro de 1941. O discurso justificador do código de processo penal bra-
jurídica ao processo penal”1309. Evidentemente, por tudo o que temos susten- sileiro de 1941 se autodeclarava liberal, erigido em regime de continuidade
tado, a relação jurídica, obviamente, ingressaria naquele rol de conceitos que, relativamente à tradição processualística brasileira.
desde a escola histórica penetraria na juspublicística italiana e seria traspassada O significante que ocupou enorme espaço neste discurso foi aquele de
ao processo penal, inclusive permanecendo no cerne da doutrina processual “conciliação” da eficácia repressiva com o de respeito a “garantias” do acusa-
penal italiana durante o período fascista, sem grandes “crises de consciência” do. Neste sentido, podemos citar o pensamento de Narcelio de QUEIROZ,
membro da comissão redatora do código de processo penal. Para o autor,
1307. “A não ser que se exclua o processo penal do âmbito da ciência processual penal judiciária, é preciso o código de processo penal teria estabelecido justas garantias aos acusados
reconhecer que, secularmente, o juiz penal, de regra, foi e é automático (e não alomático, como foi e é,
de regra, o juiz cível), liberto de travas estabelecíveis por obras das partes. Mesmo no chamado processo relativamente ao código penal, que havia aberto espaço à arbitrariedade dos
acusatório, o contraditório penal – entre acusação e defesa – carece de disponibilidade (embora o re-
cente anteprojeto JOSÉ FREDERICO MARQUES se incline a lhe dar certa disponibilidade). Aliás, no juízes1311. Reaparece a retórica do justo equilíbrio, que havia fundido os hori-
processo penal, é preferível, por isso, falar de partícipes, a falar de partes”. ALMEIDA, Joaquim Canuto
Mendes. Processo Penal, Ação e Jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 10. zontes entre positivistas e tecnicistas na Itália. Para QUEIROZ, a “socialização
1308. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: as interceptações telefônicas. 2
ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 55. 1310. Não se está a afirmar que o fascismo criou tais categorias, mas que delas se serviu, dada a sua docilidade
1309. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e epistêmica e sua tendência ao amorfismo ideológico.
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre, 1311. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943.
2015. p. 147. p. 12.
378 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 379

do direito”, que ameaça os interesses individuais e presente no código penal, officio, que só permaneceu para o processo de contravenções; restringiu ainda
deveria ser compensada com meios para se fazer justiça à necessidade de rea- mais a competência do júri e procurou imprimir a todos os processos um ca-
ráter nitidamente acusatório. O processo penal em vigor muito se assemelha
lizar as indispensáveis restrições aos direitos de liberdade dos indivíduos1312.
ao processo acusatório do direito italiano intermédio. É assim, um processo
Nesta faceta, o código de processo penal apareceria como uma espécie de partes, de estrutura civilística, plenamente contraditório, com paridade
de “baliza” aos espaços de discricionariedade encontrados no código penal. O de direitos entre as partes”.
código de processo, portanto, estaria inscrito na continuidade liberal brasileira Devemos continuar com a análise de Frederico MARQUES a despeito
(esta mesma examinada no tópico anterior, que operava com conceitos como da legislação de 1941, pois é ela fonte importante acerca de uma concepção
direito subjetivo de punir, pretensão punitiva, relação jurídica e ação penal que encontra no atual código de processo penal brasileiro, inúmeras virtudes.
e que flertava sem discrições com alguns dos postulados fundamentais para Prossegue MARQUES afirmando que “ao juiz foi outorgada maior amplitude
a construção do processo penal na Itália na década de 30). Nas palavras de na instrução do processo, mas, por outro lado, não se limitam os direitos do réu
QUEIROZ, “a estrutura do novo processo penal brasileiro evidencia que não durante a instrução sob pretêxto de que ainda se está apurando tão somente se
nos apartamos de nossas tradições liberais”1313. êle pode ser acusado. O juízo da acusação, com seus resquícios inquisitoriais,
A hipótese da continuidade liberal observada no código de processo foi completamente abolido”1317. Para o autor, “multiplicaram-se assim as ga-
penal brasileiro aparece como uma “constante histórica” e que apenas mais rantias de defesa, e se procurou, por outro lado, não prejudicar a defesa social
recentemente foi (e continua sendo) discutida por um setor minoritário de e repressiva contra a criminalidade e os delinquentes”1318. Mas, de todo o seu
nossa processualística penal1314. Para SOARES, o código de processo penal discurso, devemos destacar a seguinte passagem, que demonstra à claridade, a
não teria se afastado da tradição legislativa brasileira1315, muito embora, como compreensão acusatória e liberal do código por Frederico MARQUES: “é de
visto anteriormente, a Constituição de 1937 tivesse dissolvido o Congresso estranhar-se que um código promulgado em pleno regime de arbítrio e sob a
e restringido enormemente a sua atuação. Encontraremos este argumento inspiração de um governo fortemente autoritário, tenha tão acentuados traços
novamente em Frederico MARQUES1316, que afirma: de liberalismo e acusatoriedade, como o de 1941”1319. A justificativa, afirma o
“O novo código não se afastou de nossas tradições legislativas. Manteve o
autor, era a de que os crimes políticos seriam julgados pelo tribunal de seguran-
inquérito policial, configurando-o tal como o herdamos do Império através ça. Estava aqui consolidado o mito da acusatoriedade e do liberalismo do código
da reforma de 1871; em obediência a um mandamento constitucional, es- de processo penal, que percorrerá o imaginário jurídico durante largo tempo.
tabeleceu a instrução plenamente contraditória e separou de vez as funções
O principal argumento trazido pelos autores, para efeitos de compa-
acusatória e julgadora, eliminando quase por completo o procedimento ex
ração, era relativamente às características do código de processo penal do
1312. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943. Império. Desta maneira, segundo QUEIROZ, “não rompeu êle, de maneira
p. 12.
1313. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943. nenhuma, com as linhas essenciais de nossa legislação tradicional. Nele há
p. 12.
1314. Para se ter notícia de como tal ideia continua sendo propagada, tome-se o pensamento de GRINOVER: muito do Cód. Crim. Do Império, da lei de 3 de dezembro e de muitos
“o Código unitário de 1941 – ainda em vigor, apesar de sucessivas reformas -, conquanto promulgado
entre a crise das ideologias liberais e as escolhas autoritárias, manteve-se fiel aos postulados jurídico- dos códigos estaduais”1320. Novamente devemos trazer à tona o pensamento
-processuais do liberalismo e ao modelo acusatório, preservando instituições como o habeas corpus e de QUEIROZ, em intransigente defesa do liberalismo do código de pro-
o júri popular”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Lineamentos Gerais do Novo Processo Penal na América
Latina; Argentina, Brasil e Código-Modelo para Ibero-América. In ________. O Processo em Evolu- cesso penal de 1941: “uma análise imparcial da nova legislação de processo
ção. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 204. Ainda: “o Código de Processo Penal unitário
de 1941 – conquanto promulgado entre a crise das ideologias liberais e as escolhas autoritárias – man-
teve-se fiel ao modelo acusatório, com a nítida separação de funções de acusar, defender e julgar e com 1317. MARQUES, José Frederico. Evolução Histórica do Processo Penal Brasileiro. In Investigações. n. 07,
a supressão dos juizados de instrução secretos, preservando as instituições do habeas corpus e do júri 1949. p. 124.
popular”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Influência do Código-Modelo de Processo Penal para Ibero- 1318. MARQUES, José Frederico. Evolução Histórica do Processo Penal Brasileiro. In Investigações. n. 07,
-América na Legislação Latino-Americana. Convergências e Dissonâncias com os Sistemas Italiano e 1949. p. 124.
Brasileiro. In ________. O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 219. 1319. MARQUES, José Frederico. Evolução Histórica do Processo Penal Brasileiro. In Investigações. n. 07,
1315. SOARES, Orlando. Curso de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 94. 1949. p. 124.
1316. MARQUES, José Frederico. Evolução Histórica do Processo Penal Brasileiro. In Investigações. n. 07, 1320. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943.
1949. p. 124. p. 12.
380 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 381

demonstrará que não se trata de uma insinceridade, ou de uma manobra para texto francês de 1808 – o modelo napoleônico – cuja fase preliminar sempre
mascarar uma realidade diferente, a afirmação de que não nos apartámos de dirigia os resultados da segunda (pelas sobrelimitações aos direitos do acu-
nossas tradições liberais, ao redigir o projeto do Código de Processo Penal”1321. sado). De toda forma, em MARQUES aparece a vinculação do código de
Tais asservitas serão corroboradas – como já referido – por ninguém processo penal brasileiro de 1941 a um selo “acusatório”, o que para efeitos
menos do que Frederico MARQUES (não obstante suas constantes críticas do que aqui pretendemos tratar, se mantém, logicamente, dentro de uma
quanto à técnica processual empregada na confecção do diploma legislati- compreensão liberal da história processual penal brasileira. Somente uma
vo). Novamente o recurso à expressão “tradições legislativas” aparecerá como inegável deturpação ideológica dos signos do modelo napoleônico poderia
sucedâneo de um efeito legitimador de sua confecção em gabinetes, alheio à sugerir uma tal acusatoriedade ao código sardo e para além, o que inclusive
discussão pública possibilitada pelos debates parlamentares. Nada obstante não poderia explicar (mesmo que correta a análise do jurista) a origem “acu-
a Constituição de 1937, bem como a ausência de democracia nos procedi- satória” do código de processo penal brasileiro. Novamente em defesa do
mentos deliberativos, o código de 1941 estaria no quadro de “nossa tradição código de processo penal brasileiro e da ausência de elementos autoritários
legislativa”1322. O discurso legitimatório do código de processo penal de deste corpus legislativo, QUEIROZ afirmará o que segue:
1941 receberá, ainda, o verniz de sua adequação ao “sistema acusatório”1323. “Se alguém pretender enxergar traços de autoritarismo em certos dispositi-
Segundo MARQUES, “o processo penal em vigor muito se assemelha ao vos do Cód., deverá primeiro submetê-los a um exame demorado, evitando
as afirmações simplistas e categóricas. Talvez a disciplina do ‘flagrante delito’
processo acusatório do direito italiano intermédio. É assim, um processo
esteja destinada a criar alguns equívocos. Entretanto, a maior amplitude
de partes, de estrutura civilística, plenamente contraditório, com paridade do conceito de ‘flagrância’, para que já tendiam alguns códigos estaduais,
de direitos entre as partes”1324. Uma análise rigorosa desta afirmação im- foi trasladado para a nova lei brasileira do Cód. de Instrução Criminal da
pediria fosse ela levada a sério1325, já que o primeiro “código” de processo França, de 1808”1326.
penal na Itália era o código sardo (codice sabaudo de 1839 e posteriormente O que causa espécie não é a tentativa de salvaguardar um código fabri-
republicado em 1859 e que fora sendo aplicado nos distintos territórios cado nas condições ideológicas do período estadonovista. Mas a concepção
italianos, exceção feita à Toscana). O texto definitivo aparece apenas em de que o código napoleônico pudesse, de alguma maneira, ser acusatório! A
1865. Posteriormente, em 1913, já sob a Itália unitária, tem-se o código inovação trazida neste código, de acordo com QUEIROZ, seria apenas no
Finochiaro-Aprile de 1913. Ambos constituem-se como reformulações do sentido de tornar mais eficiente a repressão e disciplinar alguns institutos
do código penal1327. Em síntese, portanto, sob a ótica da continuidade libe-
1321. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. V. 475, 1943.
p. 13. ral, o código de processo penal brasileiro seguiria sendo uma manifestação
1322. MARQUES, José Frederico. Evolução Histórica do Processo Penal Brasileiro. In Investigações. n. 07, plena dos ideários acusatórios, não havendo nele a presença ou a inserção de
1949. p 123-124.
1323. No mesmo sentido são as palavras de ZILLI, para quem o código de processo penal, a princípio, seria dispositivos autoritários. Acusatoriedade germinada, de acordo com MAR-
acusatório, apesar da situação política do país. Embora acentue criticamente que o sistema não era ple-
namente acusatório (pela possibilidade de o juiz nas contravenções, iniciar o processo de ofício), o autor QUES (código sardo) e QUEIROZ (código napoleônico), nas entranhas
entende que a base ideológica era acusatória: “ademais, o discurso acusatório inicial acabou, na prática, genealógicas da tradição napoleônica.
cedendo espaço aos “influxos autoritários do Estado Novo”, em um nítido exemplo de que as intenções
volatizam-se em meio às ações humanas”. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A Iniciativa Instrutória
do Juiz no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 174. No mesmo sentido GRINO- A fim de demonstrar o alcance da hipótese da continuidade liberal,
VER: “Além disso o Brasil, que já possuía um processo de estrutura acusatória, adotou flagrantemente o
modelo com a entrada em vigor da Constituição da República”. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Defesa podemos citar GRINOVER, que chegará às mesmas conclusões de Frede-
Penal e sua Relação com a Atividade Probatória : a vítima e o princípio da oportunidade, relações entre rico MARQUES, acerca da manutenção, pelo código de processo penal de
juiz e ministério público, seus limites. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 40, v. 10. São
Paulo, 2002. p. 95. Cf GRINOVER, Ada Pellegrini. A Instrução Processual Penal em Ibero-América. In
Criminalia. n. 1, v. 70, 2004. p. 237.
1941, das linhas básicas de um sistema acusatório, exceção feita às formas
1324. MARQUES, José Frederico. Evolução Histórica do Processo Penal Brasileiro. In Investigações. n. 07,
1949. P. 123-124 1326. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. V. 475, 1943.
1325. Cf LACCHÈ, Luigi. La Giustizia per i Galantuomini: ordine e libertà nell’Italia liberale: il dibattito sul p. 14.
carcere preventivo (1865-1913). Milano: Giuffrè, 1990. Cf AMATO, Giuliano. Individuo e Autorità 1327. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. V. 475, 1943.
nella Disciplina della Libertà Personale. Milano: Giuffrè, 1967. p. 12.
382 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 383

processuais, tidas como mero formalismo1328. impossibilidade de mudança completa da legislação, defendida com muito
Do ponto de vista da transmissão desta herança cultural é que o código esmero por TORNAGHI, que afirma: “assim como a natureza não age aos
de processo penal ganhou alicerces doutrinários para se manter vigente, saltos, também as mudanças legislativas não devem ser feitas de repente”1332.
mesmo após décadas. O argumento da herança cultural e da continuida- Reduzida a um epifenômeno naturalístico, o Brasil deveria se conten-
de liberal – verso e reverso da mesma moeda – implicará em argumentos tar com uma mudança que deveria acontecer no momento oportuno. Mais
similares àqueles encontrados na Itália, acerca da depuração da legislação de setenta anos se passaram da vigência do código, sem que o tão esperado
fascista1329. A continuidade cultural equivaleria à afirmação de que as catego- momento tenha chegado, justamente como a espera por Godot, na obra
riais processuais equivaleriam a grandes obras humanas, alheias a quaisquer de Samuel Beckett.
interferências políticas. Se na Itália os juristas do Archivio Penale trabalharam
com a teoria do freio e com a apoliticidade do Codice de 1930, no Brasil, a 3.3. A ESTRUTURA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
lógica reformista obstaculizaria a substituição completa de um complexo nor- BRASILEIRO: UM CÓDIGO “LIBERAL” PARA JURISTAS
mativo por outro. Assim, enquanto um código novo na Itália seria impossível QUE O ERAM TÃO POUCO
até o advento da Constituição ou ainda, enquanto um código penal novo não
fosse elaborado, no Brasil, a tese da continuidade liberal ou a feição acusató- Uma análise da estrutura do código de processo penal de 1941 teria,
ria do código não requereria uma modificação completa da legislação. Para inevitavelmente, de, em alguma medida, resgatar o discurso que cuidava de
TORNAGHI, exemplificativamente, “o Código de Processo Penal, como aliás lhe apresentar aos olhos da comunidade científica. A exposição de motivos
qualquer texto legal é um tesouro acumulado durante muitos séculos e não do código de processo penal, elaborada pelo Ministro da Justiça Francisco
me parece prudente abandonar de uma hora para outra tudo aquilo quanto CAMPOS, representa a melhor, mais bem elaborada e franca expressão das
já foi cristalizado numa lei”1330. Ainda sobre a questão da reforma processual bases ideológicas, políticas e filosóficas que governariam o diploma proces-
penal, TORNAGHI se manifestará contrariamente a mudanças “repentinas”, sual. Assim como poucas vezes na história se encontra um texto tão cristalino
como pode ser extraído do seguinte excerto: na identificação e exposição de suas bases jurídico-políticas, não se poderia
continuar o trabalho sem ignorar tais palavras. Embora isso possa significar, à
“em matéria de direito substantivo uma reforma total talvez ainda seja acei-
tável, mas um código de processo é algo que está sendo aplicado, vivido, não
primeira vista, um resgate das ideias de CAMPOS, já expostas anteriormente,
apenas pelo juiz, pelo promotor, pelo delegado, que são técnicos, mas também o seu retorno, neste momento, torna-se imprescindível a fim de poder avaliar
pelo oficial de justiça, que não tem grandes conhecimentos, pelos escreventes, a linhagem política que aderiu o Código. Não há dúvidas, na esteira do afir-
etc., e não me parece que se deva de uma hora para outra mudar tudo”1331. mado por GRINOVER, estarmos diante de um código marcado por linhas
A recusa a uma reforma completa, portanto, encontra parcialmente a autoritárias1333. Logo na abertura da Exposição de Motivos, CAMPOS1334
sua explicação na apoliticidade do código de processo penal de 1941, através oportuniza a verificação destas linhas autoritárias, como se pode ver a seguir:
de manifestações dos juristas brasileiros em linhas muito similares ao sucedido “De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo
na Itália, embora em um contexto cultural muito diverso. Agregada à tese da penal num Código único para todo o Brasil, impunhase o seu ajustamento ao
continuidade liberal do código de processo penal brasileiro, temos aquela da 1332. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 56.
1333. GRINOVER, Ada Pellegrini. Interrogatório do réu e direito ao silêncio. In Ciência Penal. n. 1, v. 3,
1976. p. 26.
1328. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: as interceptações telefônicas. 2
ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 48, nota 148. 1334. De forma muito similar, afirmará ALOISI que: “o fetichismo pelo dogma da liberdade individual, mal-
-compreendida em seus exageros demagógicos, parecia autorizar quaisquer atividades do cidadão, mes-
1329. Sobre o julgamentos dos facistas, Cf PALMER, Roy. Processo ai Fascisti:1943-1948: storia d’uma mo quando em franco contraste com tais interesses do Estado. O novo código deveria refletir princípios
epurazione che non c’è stata. Milano: Rizzoli, 1996. Sobre a depuração da magistratura, Cf CARDIA, completamente opostos, como é completamente oposta a concepção fascista do Estado relativamente
Mariarosa. L’Epurazione della Magistratura alla Caduta del Fascismo: il consiglio di Stato. Cagliari, àquela demoliberal, que dominou a nossa vida política e em consequência, também a nossa legislação
Aipsa, 2009. até o advento do fascismo”. ALOISI, Ugo. Le Riforme Fasciste nel Campo del Diritto e della Procedura
1330. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 55. Penale. Relazione. In Primo Congresso Giuridico Italiano. Roma: Sindacatto Nazionale Fascista Avvo-
1331. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 56. cati e Procuratori, 1932. p. 02-03.
384 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 385

objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os de provas, prisões cautelares, recursos, etc., altamente refratário à posição do
que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, indivíduo no que concerne às relações de poder entabuladas entre juiz, Mi-
ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas,
nistério Público e acusado. A prisão preventiva era elevada a uma obrigação
um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, ne-
cessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo do juiz; a prisão em flagrante era ampliada, praticamente repetindo a mesma
à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia norma existente no Codice Rocco. Os prazos processuais foram ampliados,
do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a com a manutenção da prisão do acusado. O princípio da correlação entre
contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. acusação e sentença, com a consequente proibição de julgamento ultra petita
O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina
jurídicopenal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado,
era abolida através da regra do art. 383 do CPP (emendatio libelli)1336. Todas
outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o estas propostas tinham os olhos voltados para o código italiano de 1930.
exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Tanto assim é que na Exposição de Motivos Francisco CAMPOS recorrerá aos
Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No escritos do ministro de justiça italiano, a fim de afiançar a sua obra legislativa:
seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um malavisado
favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos exces- “Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco,
sos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o referindose a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no pro-
influxo de um malcompreendido individualismo ou de um sentimentalismo jeto preliminar, advertia que elas certamente iriam provocar o desagrado
mais ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e daqueles que estavam acostumados a aproveitar e mesmo abusar das invete-
expedita aplicação da justiça penal”. radas deficiências e fraquezas da processualística penal até então vigente. A
mesma previsão é de ser feita em relação ao presente projeto, mas são também
Desde essa doutrina, portanto, o objetivo do código de processo penal de repetirse as palavras de Rocco: “Já se foi o tempo em que a alvoroçada
era conceder maior energia repressiva ao Estado, com a supressão de determi- coligação de alguns poucos interessados podia frustrar as mais acertadas e
nados direitos e garantias, que tornavam a resposta estatal morosa ou ineficaz. urgentes reformas legislativas”.
Até mesmo a expressão “sentimentalismo mais ou menos equívoco” será ins- As modificações que tanto desagradariam os liberais na Itália (a crítica de
pirada em ROCCO, (que utiliza a frase “sentimentalismo aberrante”). A ROCCO é enderelada a eles) seriam aqui repetidas1337 (muito embora nossos
supremacia do Estado sobre o indivíduo, concepção esta francamente susten- “liberais” tivessem dado o devido suporte à construção do projeto, tornando
tada por Alfredo ROCCO na Itália, consoante se pode consultar na Relazione difícil encontrarmos os inimigos das reformas, mormente quando elas foram
al Re, era repetida no Brasil, através de um discurso ainda mais radical. Não tomadas fora da arena pública). O processo penal italiano, como comprovam
se tratava de mera falácia: com efeito, nas palavras de CAMPOS, o critério as constantes referências de nossos juristas a MANZINI, MASSARI, ROCCO,
de submissão dos direitos ao interesse social norteou o código. À evidência,
1336. Segue a exposição de motivos do CPP: “As nulidades processuais, reduzidas ao mínimo, deixam de ser o
tal arranjo jurídico-político haveria de repousar concretamente sobre deter- que têm sido até agora, isto é, um meandro técnico por onde se escoa a substância do processo e se perdem
o tempo e a gravidade da justiça. É coibido o êxito das fraudes, subterfúgios e alicantinas. É restringida a
minados institutos. As nulidades – todas elas – foram reduzidas, submetidas aplicação do in dubio pro reo. É ampliada a noção do flagrante delito, para o efeito da prisão provisória.
a um princípio organizador: o da instrumentalidade das formas, cujo critério A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade, para ser um dever
imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornarse medida plenamente assecuratória da efe-
da demonstração do prejuízo conduzirá, de forma protagonista, à construção tivação da justiça penal. Tratandose de crime inafiançável, a falta de exibição do mandato não obstará à
prisão, desde que o preso seja imediatamente apresentado ao juiz que fez expedir o mandato. É revogado
do regime das invalidades processuais. Na Itália, o código Rocco, como já o formalismo complexo da extradição interestadual de criminosos. O prazo da formação da culpa é am-
pliado, para evitar o atropelo dos processos ou a intercorrente e prejudicial solução de continuidade da
demonstrado anteriormente, havia suprimido as nulidades absolutas1335. Além detenção provisória dos réus. Não é consagrada a irrestrita proibição do julgamento ultra petitum. Todo
um capítulo é dedicado às medidas preventivas assecuratórias da reparação do dano ex delicto”
disso, como ocorreu no código italiano de 1930, a presunção de inocência 1337. “O ministro da Justiça cita que, da última reforma do processo penal na Itália, o ministro Rocco, refe-
era abolida. A retirada do código do “mais liberal dos princípios”, na esteira rindo-se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto preliminar, advertia que
elas, certamente, iriam provocar o desagrado daqueles que estavam acostumados a aproveitar e mesmo
do pensamento de CARRARA, significava o estabelecimento de um regime abusar das inveteradas deficiências e fraquezas da processualística penal até então vigente. A mesma
previsão é de ser feita em relação ao presente projeto, mas são também de repetir-se as palavras do mi-
nistro italiano Rocco: ‘já se foi o tempo em que a alvoroçada coligação de alguns poucos interessados
1335. Para uma análise mais aprofundada das nulidades no processo penal, Cf GLOECKNER, Ricardo Jaco- podia frustrar as mais acertadas e urgentes reformas legislativas”. ROSA, Inocêncio Borges da. Comen-
bsen. Nulidades no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. tários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 34-35.
386 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 387

etc, influenciou não apenas a comissão reformadora, mas o próprio imaginário mim, bastava havermos chegado, ou melhor, voltado à unidade processual, para
dos processualistas da época. Tomemos o pensamento de AZEVEDO, para que não lhe regateasse aplausos, como não tenho regateado”1343.
quem a “Itália de Mussolini”, promulgara os Código Penal e Processual Penal, Seria o “justo equilíbrio”1344 entre direitos da defesa e da acusação a marca
considerados “verdadeiros monumentos do saber jurídico”1338. do código, para a maior parte dos juristas brasileiros1345, inclusive aqueles que
Na introdução da Exposição de Motivos, não poderia deixar de aparecer trabalharam na comissão1346. Novamente, a fim de ilustrar a “fórmula do equi-
a fórmula compromissória, que tanto marcou a justificativa dos trabalhos da líbrio”, deixamos a palavra com Francisco CAMPOS na Exposição de Motivos:
comissão: a de que o código também teria como função a proteção dos direitos “Do que vem de ser ressaltado, e de vários outros critérios adotados pelo
da defesa1339 e que, portanto, não se teria afastado das tradições brasileiras1340. projeto, se evidencia que este se norteou no sentido de obter equilíbrio entre
o interesse social e o da defesa individual, entre o direito do Estado à punição
Este último argumento encontra em MAGALHÃES NORONHA um
dos criminosos e o direito do indivíduo às garantias e seguranças de sua liber-
defensor, ao afirmar que o código não traz grandes inovações. A instrução seria dade. Se ele não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não
contraditória, haveria separação entre as atividades de acusar e julgar, deter- o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado
minação da competência do júri e “um ou outro ponto são as inovações ou ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais”.
modificações de maior vulto”1341. Como já apontado na análise do Projeto Outro ponto que deve ser considerado, de forma introdutória ao
Vicente Ráo, o código de processo penal de 1941 aproveitou muito do que ali exame das principais engrenagens do processo penal brasileiro, diz respeito
fora estabelecido, avançando em alguns pontos, regredindo em outros. Parte dos à transformação da figura do juiz, condizente com a concepção publicística
juristas concebia o novo diploma como uma verdadeira melhoria no sistema de de processo e em claro paralelo com o regime político brasileiro. Segundo
justiça criminal, especialmente porque este código permitiria a unificação do SALGADO, teríamos, com o novo código, um “juiz dinâmico”, que não
processo penal brasileiro, superando-se o sistema de códigos de processo penal será mais um espectador passivo. A proatividade do magistrado poderia ser
estaduais1342. Neste sentido são as palavras de FRANCO: “o Código de Processo encontrada em diversas normas presentificadas no código de processo penal:
Penal melhorou de muito o que tínhamos em matéria de processo penal, e, para recursos de ofício, determinação da produção de provas de ofício, amplia-
1338. AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de Direito Judiciário Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, ção do poder inquisitivo do magistrado por conta do interrogatório do réu,
1958. p. 101. que combinaria, no melhor estilo “fórmula de compromisso”, as vantagens
1339. “E se, por um lado, os dispositivos do projeto tendem a fortalecer e prestigiar a atividade do Estado
na sua função repressiva, é certo, por outro lado, que asseguram, com muito mais eficiência do que a do sistema acusatório e inquisitório1347. No mesmo diapasão encontraremos
legislação atual, a defesa dos acusados. Ao invés de uma simples faculdade outorgada a estes e sob a
condição de sua presença em juízo, a defesa passa a ser, em qualquer caso, uma indeclinável injunção
legal, antes, durante e depois da instrução criminal. Nenhum réu, ainda que ausente do distrito da culpa, 1343. FRANCO, Ari Azevedo. A Constituição de 10 de Novembro e o Código de Processo Penal. In Revista
foragido ou oculto, poderá ser processado sem a intervenção e assistência de um defensor. A pena de Forense. v. 40.n. 93. Rio de Janeiro: Forense, 1943. p. 25.
revelia não exclui a garantia constitucional da contrariedade do processo. Ao contrário das leis proces- 1344. REBELLO, Heribaldo. Breves Lições de Direito Judiciário Penal. v. 1. Rio de Janeiro: José Konfino,
suais em vigor, o projeto não pactua, em caso algum, com a insídia de uma acusação sem o correlativo s.d. p. 20.
da defesa”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, 1940. 1345. “O ideal em matéria de processo penal será um Código que mantenha o quanto possível, um equilíbrio
1340. “À parte as inovações necessárias à aplicação do novo Código Penal e as orientadas no sentido da entre o direito-dever do Estado de reprimir as transgressões da lei penal, perseguir e punir o crime, – e de
melhor adaptação das normas processuais à sua própria finalidade, o projeto não altera o direito atual, outra parte, proporcionar o máximo de garantias para o acusado”. AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente
senão para corrigir imperfeições apontadas pela experiência, dirimir incertezas da jurisprudência ou de. Curso de Direito Judiciário Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1958. p. 43.
evitar ensejo à versatilidade dos exegetas. Tanto quanto o permitiu a orientação do projeto, foi aprovei- 1346. “Invocavam-se a cada passo, perante a justiça, à guisa de slogan, “os sagrados direitos de defesa”. De
tado o material da legislação atual. Muito se respigou em vários dos códigos de processo penal esta- acôrdo: os sagrados direitos de defesa do réu; mas também os “sagrados direitos da defesa social, o que
duais, e tevese também em conta não só o projeto elaborado pela Comissão Legislativa nomeada pelo não significa ser necessário erigir o Estado em ídolo, reduzir o indivíduo a autômato, olvidar que a so-
Governo Provisório em 1931, como o projeto de 1936, este já norteado pelo objetivo de unificação do ciedade não estaria convenientemente salvaguardada sem que o estejam os direitos dos seus membros.
direito processual penal. A respeito de algumas das inovações introduzidas e da fidelidade do projeto É mister, sobretudo, respeitar a dignidade da pessoa humana. Daí, a consagração do equilíbrio entre o
a certas práticas e critérios tradicionais, é feita, a seguir, breve explanação”. CAMPOS, Francisco. interêsse social e o individual, equilíbrio que, como frisámos, traduz um dos princípios fundamentais do
Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, 1940. novo processo e, portanto, orientador seguro do exegeta na aplicação prática dos textos da lei”. SILVA,
1341. MAGALHÃES, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 11. Florêncio de Abreu e. Princípios Informativos do Código de Processo Penal. In Revista Forense. a. XL.
1342. Criticando o Código de Processo Penal de São Paulo, vale a pena transcrever o pensamento de AZE- V. XCVI. Rio de Janeiro, 1943. p. 14.
VEDO: “realmente: havia-se rompido aquêle equilíbrio entre os direitos individuais e a necessidade 1347. “Dentro de breve tempo, não mais existirá, nos quadros do processo criminal, a figura solene do juiz es-
de tutela da coletividade. Mas, partira-se em benefício do delinquente, em prejuízo da justiça. Astolfo tático. Diz-se, e com razão, que o juiz é funcionalmente estático, pois só age quando provocado. Vamos
Rezende, notável professor e jurista, focalizou êste aspecto de nossa vida jurídico-social numa confe- agora conhecer o juiz dinâmico. Ele não será mais, diz a Exposição de Motivos, um ‘espectador inerte
rência de larga repercussão, intitulado: “Sua Excelência o réu”. AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente da produção das provas’, mas descerá, também, à arena trepidante onde se digladiam as partes, para
de. Curso de Direito Judiciário Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1958. p. 44-45. acompanhar a contenda e nela intervir, se necessário. É o que estabelece o novo Código, ao conferir ao
388 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 389

a expressão de Roberto LYRA, reproduzindo o pensamento de Francisco que afirmava: “elaborado, embora, em pleno regime ditatorial, se não é um
CAMPOS “O juiz é plenipotenciário no processo penal, sem preclusão como Código liberal, também não se pode dizer que denuncie um regime de fôrça.
instrutor até a sentença (arts 407, 497, nº XI). Corrige a chicana, a cavilação, Em suas linhas gerais, pode-se considerá-lo como um diploma conservador,
a alicantina, o sofisma, o verbalismo protelatório. Dispõe de sanções proces- talvez excessivamente conservador”1351. Portanto, a impressão do autor era
suais, inclusive prisão”1348. a de um código “conservador”, mas não autoritário. Podemos incluir nesta
Este juiz, não mais “mero espectador”, seria o correlato das exigências vertente aquela posição dos juristas que percebiam o código de processo
do processo penal contemporâneo. Um juiz que se preocupe com a busca da penal como um diploma que albergava o sistema misto, como o caso de
verdade real. Este um princípio que organizará e disciplinará não apenas as ALMEIDA, que concebia um sistema acusatório e de partes apesar de sua
relações de poder entre as partes e o juiz, mas a própria configuração de ao condução por um “princípio inquisitório”1352. Em sentido similar pode
menos três elementos conexos: a noção de verdade real, o princípio da liber- ser compreendido o pensamento de TORNAGHI, para quem o código
dade das provas e o princípio de livre convencimento1349. de processo penal brasileiro havia instituído o sistema misto: apuração do
fato e da autoria em sede de inquérito policial, cabendo à fase judicial a
Apesar desta configuração, o processo penal foi tratado como um dis-
instrução e o julgamento.
positivo de caráter acusatório, consoante a hipótese da continuidade liberal
do código de processo penal de 1941. Segundo MARQUES, o código de Para MARQUES, por seu turno, o código de processo penal, apesar de
1941 não havia se afastado das tradições jurídicas brasileiras. Manteve o ter mantido grande fidelidade aos postulados exigidos pelo sistema acusatório,
inquérito policial, estabeleceu a instrução processual em contraditório e não teria permanecido indene às influências autoritárias do Estado Novo. Cita
separou as funções de acusar e julgar e “plasmou tôdas as formas procedi- como exemplos o esquecimento do papel primordial das formas processuais, sob
mentais sob fiel observância do sistema acusatório”1350. Esta reflexão sobre o argumento de acabar com os expedientes forenses, além de ter estruturado “as
o código de processo penal não era compartilhada pelos juristas da época, nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acu-
que pulverizavam concepções sobre a legislação, cuja definição flutuava sado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de
em torno das noções sobre a acusatoriedade ou ainda, sobre a encarnação técnica”1353. O pensamento de Frederico MARQUES é bastante contraditório a
de um sistema misto de procedimento. Contudo, a influência política do despeito do código de processo penal. Ao mesmo tempo em que o considerava
regime estadonovista era percebida por alguns juristas, que ora tratavam como um dispositivo que, apesar das influências políticas, havia agasalhado um
de acusar o código de processo como sendo um diploma autoritário, ora sistema acusatório, ao mesmo passo, apresentava inúmeros problemas técnicos,
cuidavam de contemporizar suas feições menos republicanas. Na tentativa sendo uma obra atrasada e desprovida de sistematização1354. Parte considerável
de minimizar o grau de adesão do código de processo penal ao regime po- 1351. AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de Direito Judiciário Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva,
lítico varguista, podemos trazer à colação o pensamento de AZEVEDO, 1958. p. 43.
1352. “A grande virtude desse projeto estava na precisa definição dos fenómenos contraditório e inquisitório
na instrução: se, por um lado, extinguia de vez o estranho monopólio do denunciante ou queixoso,
juiz a faculdade de ordenar, de ofício, a produção de qualquer prova além das apresentadas pelos li- criado pela doutrina e jurisprudência pátrias, reafirmava, por outro lado, as prerrogativas inquisitoriais
tigantes. No interrogatório, segundo os novos moldes, amplia-se o poder inquisitivo do juiz. O nosso do juiz. Praticamente, tornava a realizar a conciliação, inscrita no sistema de nosso Código de Proces-
processo criminal vigente é, conforme todos sabem, um processo misto dos sistemas inquisitório e so Criminal de 1832, aventada, aliás, por Francesco Carnelutti: ‘O princípio inquisitório não exclui a
acusatório. E misto continua a ser o novo Código ou digamos melhor, eclético”. SALGADO, Cesar. atividade das partes; permite, apenas, ao juiz, suprir-lhe as faltas; não confere, também, um monopólio
O Regime da Prova no Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. 39. N. 90. Rio de Janeiro: ao juiz, mas tolhe, somente, o monopólio das partes”. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. Processo
Forense, 1942. p. 346. Penal: ação e jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 183-184.
1348. LYRA, Roberto. Código de Processo Penal de 1941. In __________. Direito Penal Normativo. 2 ed. 1353. FREDERICO MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de
Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 64. Janeiro: Forense, 1965. p. 106.
1349. “O processo penal contemporâneo, que reconhece o poder inquisitivo do juiz, afim de que êle não se 1354. “A promulgação do Cód. de Proc. Penal foi uma decepção. Esperava-se, depois de sancionados o Cód.
converta em espectador impassível da luta judiciária, mas antes se integre na pesquisa da verdade, não de Proc. Civil e o Cód. Penal, que constituíam diplomas de todo propícios a incentivarem uma profunda
poderia satisfazer-se com uma verdade fictícia, ôca e formal, coligida secundum allegata et probata, renovação cultural e científica – que do mesmo teor fôsse o conteúdo do estatuto de processo penal. Eis
mas em oposição à verdade real, substancial, que é a única verdade”. GARCIA, Basileu. Comentários senão quando vem à luz um código ronceiro, atrasado, sem nenhuma sistematização, e que não passava
ao Código de Processo Penal. v. III. Rio de Janeiro: Forense, 1945. p. 481. de nova edição de obsoletos códigos locais até então em vigor. Verifica-se melancòlicamente, que em
1350. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, muitos institutos retrogravávamos, ao invés de progredir, pois que o nôvo Código, além de sua anciani-
1965. p. 105. dade cultural coeva do direito intermédio, vinha reformar para pior muito do que existia nas legislações
390 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 391

das críticas mais ferrenhas de Frederico MARQUES era endereçada ao fato de Segundo a crítica de LEÃO, o código de processo penal era “produto
o código de processo penal ser eminentemente escrito e não oral1355. No sen- de um sistema de cunho fascista, não poderiam seus elaboradores dispor de
tido de uma crítica “técnica” do código de processo penal, menos preocupada grandes possibilidades para asseguramento do contraditório e da plenitude
com vetores políticos assumidos pela legislação podemos citar o pensamento da defesa”1359. Assim sendo, a fórmula do “justo equilíbrio” apresentada na
de MAGALHÃES NORONHA, que afirma não se tratar de um código mo- Exposição de Motivos não passava de um embuste.
derno, sendo o responsável, pela morosidade de seus procedimentos, causa dos Segundo GIACOMOLLI, algumas características inquisitoriais, tendo
inchaços das varas criminais de São Paulo1356. como núcleo fundante a centralidade do julgador no processo penal podem
Na mesma linha da acusatoriedade do código de processo penal de 1941 ser facilmente encontradas no código de processo penal brasileiro de 1941.
é o relato de Roberto LYRA. A legislação brasileira seria essencialmente acu- Podem ser destacadas no Código de Processo Penal de 1941: a) a busca pela
satória, comportando uma única exceção consubstanciada no procedimento verdade material, autorizando o juiz a agir de ofício na requisição à autori-
ex officio para as contravenções penais, embora tal circunstância não tivesse dade policial para abertura do inquérito (art. 5º, II CPP), na determinação
o condão de afetar o contraditório e a publicidade do processo1357. de provas (art. 156 CPP), na inquirição de testemunhas (art. 209 CPP), na
O código de processo penal brasileiro, na linha da noção de instrumentali- faculdade de decretar a prisão preventiva (art. 311 CPP), na faculdade de con-
dade, deveria ser uma ferramenta a serviço da repressão. A Exposição de Motivos denar o acusado mesmo quando o acusador postula a absolvição do réu (art.
parece não deixar espaço para dúvidas neste sentido. A construção política do 385 CPP). Além disso, o código ainda autoriza o juiz a “salvar a acusação”,
código, ao contrário da valoração tecnicista de Frederico MARQUES, era bem dando ao fato definição jurídica diversa daquela que consta na denúncia (art.
organizada, articulando diversos dispositivos normativos, capazes de criar, não 383 CPP). Poderá, enfim, “recorrer de ofício” quando a acusação não tenha
obstante a afirmação de um compromisso com os direitos de defesa, um espaço interposto recurso (art. 574 e 746 CPP)1360.
de efetivação do poder punitivo. Neste sentido, de que o código de processo Uma segunda característica geral que pode ser vislumbrada no código,
penal deveria seguir os embalos de um direito penal repressivo, são conclusivas ainda de acordo com GIACOMOLLI, é a supremacia do interesse público,
as palavras de QUEIROZ: por um lado, afirma o autor, o código penal havia representado pela potestade punitiva referentemente ao acusado e ao seu
dado ao juiz “amplo arbítrio”, especialmente na fixação da pena. Todo este direito de liberdade. Em sua redação original, o réu seria interrogado mesmo
código foi orientado no sentido de conceder ao juiz “maior responsabilidade sem a presença do defensor, situação que somente foi alterada em 2003,
na repressão”. Assim, o “Cód. de Processo não podia fugir a êsse critério”. No através da Lei 10.792/03. Ainda em sua redação original, o acusado poderia
campo do interrogatório, a ampla liberdade do juiz na formulação de pergun- ser processado mesmo sem a juntada de sua defesa prévia (equivalente à atual
tas encontrava, na nova legislação, sua razão de ser: ninguém melhor do que o resposta à acusação), situação que sobreviveu até 2008, com a promulgação
acusado para “fornecer os elementos necessários à formação do convencimento da Lei 11.719/08. Deve-se registrar, outrossim, a possibilidade de o recurso
do juiz quanto às circunstâncias essenciais do processo”1358. do acusado ser recebido e enviado ao tribunal de segunda instância, nos
casos de apelação, desprovido de razões recursais ou contrarrazões ao recurso
estaduais”. FREDERICO MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 interposto pelo órgão de acusação, consoante os artigos 589 e 601 do CPP.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965. p. 126.
1355. FREDERICO MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Especificamente neste ponto, o código se mantém em sua integralidade.
Janeiro: Forense, 1965. p. 106.
1356. NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 12. A terceira característica apontada por GIACOMOLLI diz respeito à
1357. “O sistema processual penal brasileiro é acusatório. Perdura, porém, exceção: a iniciativa da ação pelo inexistência de previsão da presunção de inocência no corpo dos artigos do
juiz, embora circunscrita ao processo sumário para contravenção e logo restituída ao Ministério Público
e com a garantia do contraditório ab initio e à luz da publicidade”. LYRA, Roberto. Introdução ao Estu-
do do Direito Penal Adjetivo. In Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. v. 1. n. 1, 1359. LEÃO, Nilzardo Carneiro. Princípios do Processo Penal. Recife: Imprensa Universitária, 1960. p. 92.
1995. p. 1547. 1360. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
1358. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943. a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
p. 12. 2015. p. 148.
392 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 393

código1361. Neste sistema, o que é possível se constatar é a presença do in membros da comissão, não deixa margens para dúvidas.
dubio pro reo, previsto na disciplina da sentença absolutória, no art. 386 do Se por um lado o código de processo penal não instituiu, a exemplo da
CPP. Entretanto, como já foi enfatizado no capítulo anterior, o in dubio pro Itália, dispositivos que não estavam presentes no imaginário jurídico da época,
reo não se confunde com a presunção de inocência. A disposição contida no por certo que o código de 1941 os articulou em um sentido autoritário, infenso
código é o que se pode identificar como regra de juízo, isto é, uma diretriz ou ao discurso dos “pseudodireitos”. A responsabilidade por este código, refratário
orientação de julgamento. Entretanto, a ausência das regras probatória (esta- à democracia e ao republicanismo, não é apenas da comissão, mas da doutrina
belecimento do ônus da prova no processo penal) e de tratamento (inserida em geral, que de forma acrítica, se mantinha alienada das discussões de foco
a partir da Constituição) desfiguravam por completo o sistema de garantias, político. Situação que não melhorará com a ruptura constitucional de 1988.
a ponto de ele ser, logicamente, ineficaz. Desta maneira, sem a previsão de
Vamos a uma análise breve dos principais institutos que podem ser
uma regra de tratamento, a prisão preventiva do acusado seria parte integrante
encontrados no atual código de processo penal. Apenas uma última adver-
do funcionamento normal do sistema, com uma espécie de “presunção de
tência deve restar esclarecida. O objeto de análise é apenas a constatação da
culpabilidade” do preso em flagrante.
presença destes dispositivos e simultaneamente, o aparecimento de discur-
A quarta característica identificada por GIACOMOLLI na estrutura sos justificadores. Assim, não teremos a pretensão de examinar com maior
inquisitória do código de processo penal brasileiro de 1941 é o estabeleci- profundidade cada um dos itens1365.
mento do magistrado como o protagonista do sistema, o que viria a assegurar
tantos poderes instrutórios ou de condução do processo de ofício1362. A quinta 3.3.1. A INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR
característica inquisitória passível de ser encontrada no corpo do sistema
O código de processo penal não criou o inquérito policial. Ele já estava
processual penal brasileiro diz respeito à posição ocupada pelo acusado1363.
presente desde a legislação do império. O Projeto Ráo, como visto, havia
Inferiorizado no conjunto de direitos e garantias relativamente à acusação,
suprimido o instituto, substituindo-o pelo juizado de instrução. A comissão
ele ocupa o espaço de um objeto de prova (e não como seria de se esperar, em
que elaborou o código de processo penal de 1941 manteve o instituto. A
um sistema acusatório, o de um sujeito de direitos).
manutenção do inquérito policial foi justificada na Exposição de Motivos, em
Deve-se registrar, por fim, que a ideologia do código de 1941 não se
franca comparação com o juizado de instrução, que aparecia como inovação
presentifica exclusivamente em artigos legais. Contamina a doutrina, a juris-
do Projeto Vicente Ráo. Novamente, parece-nos tal circunstância indicar
prudência, a política criminal, além é claro, da conduta dos representantes
claramente que os trabalhos da comissão levaram em consideração o anterior
do Estado. O ensino jurídico segue a mesma toada, reproduzindo discursos
projeto não aprovado, de maneira que a estrutura processual não partiu de um
anacrônicos e acríticos1364. Mesmo que a doutrina processual penal brasileira
“grau zero” de significação, sendo construída a partir da experiência legislativa
tenha tentado suavizar ou ainda, de eufemismo em eufemismo, acentuar
anterior, fracassada com o advento da Constituição de 1937. O principal ar-
determinadas características “acusatórias” do código de 1941, as diretrizes
gumento para a manutenção do inquérito policial era a extensão territorial do
políticas, expressas em sua Exposição de Motivos ou ainda, na narrativa de
Brasil1366. Assim, as grandes distâncias entre as comarcas e a necessidade de se
1361. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre, 1365. Alguns deles serão objeto de análise pormenorizada, em futuros trabalhos.
2015. p. 148.
1362. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
1366. “Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal, guardadas
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
as suas características atuais. O ponderado exame da realidade brasileira, que não é apenas a dos cen-
2015. p. 148.
tros urbanos, senão também a dos remotos distritos das comarcas do interior, desaconselha o repúdio
do sistema vigente. O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade
1363. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticá-
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre, vel sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente
2015. p. 149. superáveis. Para atuar proficuamente em comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese
1364. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e de criação de juizados de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre, o dom da ubiquidade. De outro modo, não se compreende como poderia presidir a todos os processos
2015. p. 149. nos pontos diversos da sua zona de jurisdição, a grande distância uns dos outros e da sede da comarca,
394 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 395

estabelecer uma pluralidade de juízes instrutores recomendariam a manuten- relevantes, de regra em torno das chamadas funções não declaradas.
ção da forma já usual de investigação preliminar no processo penal brasileiro. Minoritariamente, parte da doutrina recusava atribuir ao inquérito
Outro aspecto salientado pela comissão seria o de que a adoção do juizado de policial qualquer espécie de elemento valorativo na formação do convenci-
instrução seria incompatível com a “unidade da lei processual”, argumento mento judicial. Como exemplo, podemos trazer à colação o pensamento de
não explicitado na Exposição de Motivos por Francisco CAMPOS. BARROS, para quem “o inquérito policial somente poderá ter uma função
Além disso, seguindo a “fórmula do equilíbrio”, a adoção do inquérito informativa, não representando os elementos probatórios nêle coligidos fonte
policial representaria uma forma de “garantia” contra incriminações decor- segura para a formação do convencimento do juiz mesmo diante do princípio
rentes de fatos turbulentos. Desta forma, poderia evitar um juízo sumário e da livre apreciação da prova”1369. O desafio imposto pelo sistema residia – e
precipitado, apresentando-se como uma garantia que o inquérito policial po- reside – em um elemento organizador do sistema de decisão judicial: a livre
deria oferecer e que o juizado de instrução correria o risco de não atender1367. convicção. Enquanto residir no processo penal argumentos em torno deste
O inquérito policial, portanto, ofereceria ao investigado uma “justiça menos significante que organiza as relações entre prova e decisão, o inquérito po-
aleatória, mais prudente e serena”1368. licial estará a produzir tais funções não declaradas, produzindo um dúplice
Em sua grande maioria, os juristas brasileiros, tanto no período de efeito: o primeiro deles é “auxiliar” o magistrado na construção da decisão
elaboração do código de processo penal quanto já na sua consolidação, sa- judicial. Enquanto o inquérito policial acompanhar a acusação, duas situa-
lientavam vantagens do modelo adotado no Brasil. A sua natureza jurídica, ções resultam inexoráveis: a produção do contraditório judicial em torno das
propalda como uma irrevogável verdade, consistia na afirmação de que o narrativas já recolhidas em sede de investigação preliminar, produzindo um
inquérito policial consistia em um instrumento cuja finalidade precípua era a contraditório degenerado, um contraditório de efeitos ratificadores, ao invés
formação da opinio delicti, isto é, permitir que o Ministério Público oferecesse de construtivos do convencimento judicial. O segundo aspecto que acompa-
a denúncia. No plano das funções declaradas, realmente o inquérito policial, nha de forma perene o inquérito policial é a sua operatividade, que autoriza
sendo um instrumento para apuração do fato criminoso, de sua autoria e o magistrado a formular juízos em torno dos elementos informativos. Mas
materialidade, sempre em nível indiciário, não ofereceria maiores problemas. este problema – de natureza veementemente epistêmica – é o resultado de
Contudo, o escopo do inquérito jamais se restringiria a tais funções declara- um modelo napoleônico de processo penal, aquele chamado por CORDERO
das. A estrutura do código de processo penal brasileiro de 1941 foi construída como “monstro de duas cabeças”, o “sistema misto”. Neste regime – chame-
em cima de significantes capazes de retirar do inquérito finalidades mais mos de sistema misto para ficar com a terminologia recorrente no campo
processual penal brasileiro da década de 40 – ultrapassar a primeira fase, com
demandando, muitas vezes, com os morosos meios de condução ainda praticados na maior parte do
a manutenção dos elementos probatórios ali recolhidos, gera problemas vários
nosso hinterland, vários dias de viagem, seria imprescindível, na prática, a quebra do sistema: nas para a presunção de inocência. Neste ponto residiam os principais argumentos
capitais e nas sedes de comarca em geral, a imediata intervenção do juiz instrutor, ou a instrução úni-
ca; nos distritos longínquos, a continuação do sistema atual. Não cabe, aqui, discutir as proclamadas dos tecnicistas que atuaram em prol do regime fascista. A existência de indí-
vantagens do juízo de instrução”.
1367. “Preliminarmente, a sua adoção entre nós, na atualidade, seria incompatível com o critério de unidade cios não autorizaria a presunção de inocência. Tanto assim é que aparecerão
da lei processual. Mesmo, porém, abstraída essa consideração, há em favor do inquérito policial, como
instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: “fórmulas” de tribunais responsáveis por “inversões” do ônus da prova. Sobre
é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação a natureza jurídica do inquérito policial e – apesar dela – a possibilidade de
moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas
circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspecta, a autoridade que dirige a se levar em consideração os elementos encontrados na investigação prelimi-
investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou
falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do nar, pode-se referir as palavras de ESPÍNOLA FILHO, para quem “embora
Código de Processo Penal, 1940.
1368. “Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até seja o inquérito – policial, militar ou administrativo – uma peça destinada,
então despercebido. Por que, então, abolirse o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondose
a justiça criminal aos azares do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e precípuamente, a instruir a denúncia, ou a queixa, o juiz não o despreza, na
única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com
o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena”. CAMPOS, 1369. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro. v. I. São Paulo: Sugestões
Francisco. Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, 1940. Literárias, 1969. p. 302.
396 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 397

apreciação da prova, ao proferir a sentença”1370. O “conjunto de garantias” anunciado na Exposição de Motivos perde-
Esta utilização do inquérito policial – uma função não declarada – na ria toda e qualquer eficácia – real ou simbólica – quando o que determina a
valoração dos elementos probatórios para a emissão de uma decisão, é produto sorte do investigado (futuro acusado) é o resultado da atividade invstigativa
de uma doutrina que autorizava a condenação pelo conjunto de indícios. da polícia. Seguindo na trilha do “sistema misto” – o que autoriza a prática
Ou seja, o conjunto de pequenos elementos que individualmente são insig- de tortura no intuito de se obter a confissão – é justamente a relevância dada
nificantes para atestar a culpabilidade de um sujeito, poderiam resultar na a tais declarações. Os “efeitos probatórios” extraídos dos atos praticados
sua condenação. O “conjunto dos elementos” poderia afastar (a já abalada em sede de investigação preliminar correspondem, portanto, à antecipa-
presunção de inocência), tornando mais simples a fundamentação “global” ção das conclusões que apenas deveriam decorrer do contraditório. Esta
dos elementos encontrados em detrimento do acusado, e garantindo um a razão fundamental pela qual a manutenção de elementos do inquérito
efeito de apreciação ampla de todas as circunstâncias relatadas no processo. policial no processo produz abalos indestrutíveis à presunção de inocência.
Segundo AZEVEDO, reproduzindo este discurso, “os depoimentos contidos Tomemos novamente como exemplo a doutrina da época. Nas palavras de
no inquérito oferecem valor relativo. (...) o que deve servir de base para a AZEVEDO, a fim de não deixar qualquer espécie de dúvida quanto aos
convicção do juiz é o conjunto de provas, o entrosamento, de tal modo que usos probatórios do inquérito policial:
umas confirmem e completem as outras”1371. Outro vetor sempre presente “Se o ladrão confessou o furto na polícia, relatando como o praticou, se
no diálogo entre a utilização dos elementos colhidos em sede de inquérito indicou onde se encontravam os objetos; se os objetos foram apreendidos,
policial é uma categoria responsável por oferecer certa “descarga probatória”, se a vítima reconhece as utilidades, que lhe foram até restituídas, – se depois
produzindo efeitos justificadores de quaisquer atividades relacionadas à prova: desta caudal de provas, o réu vai a juízo e nega a confissão, evidentemente
essa negativa não tem valor algum, não tem base nos autos. O que mere fé
o “princípio” da verdade real. Em nome da verdade real e contanto que o é a confissão policial”1373.
ponto em discussão seja, mediata ou imediatamente a prova, tudo é possível.
Desta maneira, o código se encarregou de construir um sistema que
A verdade real opera como uma válvula de escape do sistema, servindo como
imunizaria o contraditório futuro. Os elementos decisivos estariam sendo
standard justificatório: das ilimitações das atividades judiciais às validações ex
post de elementos coletados em desobediência flagrante a dispositivos legais, produzidos em plena investigação preliminar, cuja função declarada seria
tudo se torna da ordem do aceitável. O efeito de convalescência ou de “pur- aquela de oferecer indícios para possibilitar o embasamento da denúncia.
gação da ilicitude” de ações, fatos, atividades ou elementos conexos à prova é Mas que na sua operatividade concreta, no que concerne às suas funções não
o resultado de uma categoria genérica, suficientemente ampla para dar conta declaradas, estaria a garantir determinados “usos probatórios”, que podem ser
da atuação plena de outro “princípio”: o da liberdade das provas. Este signi- interpretados como “dações de sentido ou empréstimos de valor probatório
ficante, que funciona como uma “verdade verdadeira” pressupõe a atenção àquilo que, em não sendo efetivamente prova, passa a valer enquanto tal”.
do julgador aos elementos do inquérito. Como acentua ESPÍNOLA FILHO, Por fim, a regra do sigilo durante as investigações era pensada como uma
“nesse trabalho de coordenação, não somente, mas de formação, também forma de se evitar que o delinquente pudesse reagir durante o trâmite da fase
da prova, o juiz, preocupado exclusivamente em apreender a realidade dos preliminar ao juízo. Assim, o sigilo seria essencial à investigação preliminar,
fatos, como correspondente à verdade mais verdadeira, não poderá deixar de porque do contrário, se estaria fornecendo “armas e recursos ao delinquen-
dar atenção a todos os elementos, que a autoridade policial conseguiu obter te”1374. Um procedimento sigiloso e que – embora não devesse – produz atos
e apresentar, reunidos, no inquérito”1372.
com efeitos de prova. Não se estaria diante do “sistema misto”, tão ao gosto
1370. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. v I. 5 ed. Rio de Janeiro: da tradição napoleônica (esta mesma compreendida como representativa de
Borsoi, 1960. p. 253.
1371. AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de Direito Judiciário Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva,
1958. p. 143. 1373. AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de Direito Judiciário Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva,
1372. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. v I. 5 ed. Rio de Janeiro: 1958. p. 143.
Borsoi, 1960. P. 257. 1374. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 28.
398 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 399

um “modelo acusatório”)? “consiste numa limitação mais ou menos intensa da liberdade individual de uma
A fim de continuar o exame da estrutura do código de processo penal pessoa para satisfação do escopo processual penal””1376. Ainda segundo o autor,
brasileiro, passemos à análise do fenômeno da prisão cautelar e de como a a prisão preventiva era um instrumento que oportunizaria o contraditório ao
liberdade era compreendida pelos juristas no exame do processo penal. acusado, já que detido, participaria obrigatoriamente do processo1377. Para o
autor, a prisão, assim como a revelia, seriam na verdade meios para se garantir
3.3.2. PRISÃO CAUTELAR E UM DIREITO MÍNIMO À a efetividade da defesa (!)1378. A diferença residiria no fato de que enquanto a
LIBERDADE OU SE A LIBERDADE É PROVISÓRIA, A PRISÃO É revelia seria uma coação moral que obrigaria o réu a participar do processo, a
A REGRA... prisão seria uma espécie de coação física, compartilhando a mesma finalidade
(e veja-se que a inversão dos direitos humanos ou fundamentais parece uma
A comissão de reforma do código de processo penal estabeleceu inicial-
constante na retórica da processualística penal brasileira)1379.
mente duas grandes modalidades de prisão cautelar: a prisão em flagrante e
a prisão preventiva. Originariamente, a prisão em flagrante produziria, sem Segundo DELMANTO JÚNIOR, a natureza da prisão em flagrante, na
a necessidade de concorrência de outro título, a prisão do acusado. Desta estrutura original do código de processo penal era a de uma “punição anteci-
maneira, ambas as prisões produziriam efeitos que poderiam transcorrer du- pada”, levando-se em consideração, como visto alhures, a estreita limitação
rante toda a instrução, até a conversão desta espécie de prisão provisória em dos casos de cabimento da liberdade provisória1380. Portanto, a ampliação
definitiva. A redação do art. 321 do CPP previa que o réu seria livrado solto da prisão em flagrante, na estrutura do código de processo penal de 1941
em caso de cometimento de infração penal em que não fosse aplicável a pena era consentânea com a mesma expansão vislumbrada na Itália e justificada
de prisão (isolada, cumulada ou alternativamente); quando o máximo da pena na Exposição de Motivos por Francisco CAMPOS1381. Podemos encontrar
não ultrapassasse três meses. Aqui estariam os casos de liberdade provisória afirmações neste sentido como em MAGALHÃES NORONHA, acentuando
sem fiança. Por seu turno o art. 322 do código de processo penal, em sua a semelhança com o código de processo penal italiano, em seu art. 237 e em
redação original, assegurava que não seria concedida fiança (e portanto liber- TOURINHO FILHO1382, afirmando que a disciplina era tecnicamente su-
dade provisória) aos casos de crimes punidos com pena de reclusão (a imensa perior no código de processo penal italiano de 1930, O incremento da prisão
maioria dos crimes previstos no código penal1375). A fiança seria aplicável 1376. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Constitucionais da Coação Pessoal. In Revista
em determinados casos de crimes ou contravenções, desde que: a) quando o Forense. n. 84. Rio de Janeiro, 1940. p. 576.
1377. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Constitucionais da Coação Processual. In Revista
acusado de crime apenado com reclusão fosse maior de setenta ou menos de da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 35. n. 3. São Paulo, 1940. p. 658.
1378. “Nos casos mais graves, porém, só a prisão ou, ao menos ,a fiança garante a contrariedade, para o réu
vinte e um anos, desde que a pena não ultrapassasse dois anos; b) nas contra- não temer menos a própria ausência do que a pena. O réu é seguro, por meio delas, para participar da
atividade processual, a fim de que não tolha, pela ausência ou pela fuga, o curso da causa”. ALMEIDA,
venções previstas nos arts. 50, 51 e § 1º, 52 e seu § único, art. 53 e § único, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Constitucionais da Coação Processual. In Revista da Faculdade
art. 54 e § único, arts. 58, 59 e 60 da Lei de Contravenções; c) em caso de de Direito da Universidade de São Paulo. v. 35. n. 3. São Paulo, 1940. p. 658.
1379. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Constitucionais da Coação Processual. In Revista
crime ou contravenção punidos com pena privativa de liberdade, se o réu já da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 35. n. 3. São Paulo, 1940. p. 658.
1380. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração. 2 ed.
tiver sido condenado por crime da mesma natureza, em sentença irrecorrível; Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 133.
d) havendo provas, no processo, de ser o réu vadio. 1381. “A prisão em flagrante e a prisão preventiva são definidas com mais latitude do que na legislação em
vigor. O clamor público deixa de ser condição necessária para que se equipare ao estado de flagrância
o caso em que o criminoso, após a prática do crime, está a fugir. Basta que, vindo de cometer o crime,
A doutrina processual penal brasileira era, desde suas bases “liberais”, o fugitivo seja perseguido “pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que
largamente inspirada na retórica manziniana, como pode ser destacado do pen- faça presumir ser autor da infração”: preso em tais condições, entendese preso em flagrante delito.
Considerase, igualmente, em estado de flagrância o indivíduo que, logo em seguida à perpetração do
samento “liberal” de ALMEIDA, para quem “interessa-nos, nesta lição, bordar crime, é encontrado “com o instrumento, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser autor da
infração”. O interesse da administração da justiça não pode continuar a ser sacrificado por obsoletos
comentários exclusivamente acêrca da coação pessoal, que, no dizer de Manzini, escrúpulos formalísticos, que redundam em assegurar, com prejuízo da futura ação penal, a afrontosa
intangibilidade de criminosos surpreendidos na atualidade ainda palpitante do crime e em circunstân-
cias que evidenciam sua relação com este”. ”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Código
1375. Poderia ser concedida a liberdade provisória em caso de réu maior de setenta anos e menor de vinte e de Processo Penal, 1940.
um, desde que o crime não ultrapassasse 2 anos de reclusão. 1382. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 2, 2008. p. 466.
400 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 401

em flagrante, na elaboração do código de processo penal, significava, de forma O regime da prisão cautelar, no Brasil, é insucetível de ser verificado in-
muito cristalina, a expansão de casos de réus presos antes do trânsito em jul- dependentemente do regime da liberdade provisória1385. O código não apenas
gado, situação esta jamais remediada na história do processo penal brasileiro. ampliou os casos de cabimento das prisões – preventiva e em flagrante – como
O elemento que reputamos mais importante na definição da retórica encurtou as hipóteses de concessão da liberdade provisória, erigindo um sis-
sobre a prisão em flagrante é a sua interpretação que a define de forma tema em que tudo conduzia o acusado a ter a sua prisão decretada, tendo a
a lhe posicionar junto das cautelares propriamente ditas, servindo como sua liberdade restringida durante o curso do processo.
mecanismo de colheita probatória. Neste sentido pode-se citar TOURI- Elaborado um mapeamento do instituto da prisão cautelar no código
NHO FILHO, para quem “a prisão em flagrante justifica-se como salutar de processo penal, resta analisar, rapidamente, como a doutrina enxergava o
providência acautelatória da prova da materialidade do fato e da respectiva instituto. Em grande parte da doutrina processual (sem que se tenha produ-
autoria”1383. Neste ponto, o flagrante delito, como mecanismo de deflagra- zido grandes mudanças na doutrina contemporânea), prevalecia a conceção
ção da investigação preliminar, encontrará ponto de apoio na estrutura da manziniana de que a restrição à liberdade deve ser subjugada a determinadas
verdade real, do “princípio da liberdade da prova”, no “princípio do livre finalidades. Neste sentido, a fim de justificar a prisão como uma restrição à
convencimento do magistrado”. Os mesmos problemas encontrados na liberdade, MAGALHÃES NORONHA recorrerá às lições de MANZINI,
penetrabilidade do inquérito policial na fase judicial, constrangendo con- que a descreve como uma limitação destinada a satisfazer uma finalidade
traditório e debilitando irreversivelmente a presunção de inocência fazem processual penal1386. O principal argumento, novamente repristinando os
parte do coro teórico do tecnicismo sincretista brasileiro. ensinamentos do processualista italiano, seria a generalíssima “necessidade”.
O espectro de ampliação do cabimento da prisão se estenderia, como seria Este argumento da necessidade pode ser encontrado tanto no pensamento
de se esperar, às hipóteses de prisão preventiva. O objetivo descrito na Exposição de MANZINI, quanto na doutrina processual penal brasileira. Citemos Ba-
de Motivos era “desprender” esta modalidade de prisão dos limites “estreitos” sileu GARCIA, que afirma que “só se concebe, realmente, o encarceramento
que ela conhecia. Na redação original, o art. 313 não disciplinava a possibilidade preventivo como providência de exceção, ditada pela necessidade”1387, po-
de prisão preventiva para “garantia da ordem econômica”, que foi introduzida dendo ser também encontrado em juristas mais contemporâneos, como no
apenas em 1994. Mas previa a sua aplicação obrigatória para crimes cuja pena
dos atos processuais dentro dos respectivos prazos; mas estes são razoavelmente dilatados. Vários
era igual ou superior a 10 anos de reclusão, inspirando-se claramente no modelo são os dispositivos do projeto que cuidam de prover à maior praticabilidade da captura de criminosos
que já se acham sob decreto de prisão. Assim, a falta de exibição do mandado, como já foi, de início,
italiano do código Rocco. A redação original do código ainda previa o alcance acentuado, não obstará a prisão, ressalvada a condição de ser o preso conduzido imediatamente à pre-
da prisão preventiva para crimes inafiançáveis, quando, em tais delitos, o acu- sença da autoridade que decretou a prisão”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Código
de Processo Penal, 1940.
sado não fornecia elementos para aferir a sua identidade ou quando fosse vadio; 1385. A Exposição de Motivos trata tecnicamente do instituto, sem maiores recursos a uma idelogia auto-
ritária: “Abolida a pluralidade do direito formal, já não subsiste razão para que a liberdade provisória
caberia ainda, nos crimes afiançáveis, quando o réu tivesse sido condenado por mediante fiança, que é matéria tipicamente de caráter processual, continue a ser regulada pela lei penal
substantiva. O novo Código Penal não cogitou do instituto da fiança, precisamente para que o futuro
infração penal da mesma natureza. Pode-se facilmente perceber que a regra Código de Processo Penal reivindicasse a regulamentação de assunto que lhe é pertinente. Inovando na
legislação atual, o presente projeto cuidou de imprimir à fiança um cunho menos rígido. O quantum da
era a tratar da prisão ora como uma faculdade concedida ao juiz – de decretar fiança continuará subordinado a uma tabela graduada, mas as regras para a sua fixação tornam possível
a prisão preventiva – ora tornando-a obrigatória. A exceção residia nos casos sua justa correspondência aos casos concretos. É declarado que, “para determinar o valor da fiança, a au-
toridade terá em conta a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acu-
de afiançabilidade, mesmo assim, restringidos por algumas circunstâncias1384. sado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas
do processo, até final julgamento”. Ainda mais: o juiz não estará inexoravelmente adstrito a tarifa legal,
podendo aumentar até o triplo a fiança, quando “reconhecer que, em virtude da situação econômica do
1383. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 2, 2008. p. 450. réu, não assegurara a ação da justiça, embora fixada no máximo. Não é admitida a fiança fidejussória,
1384. “A prisão preventiva, por sua vez, desprendese dos limites estreitos até agora traçados à sua admissi- mas o projeto contém o seguinte dispositivo, que virá conjurar uma iniquidade frequente no regime legal
bilidade. Pressuposta a existência de suficientes indícios para imputação da autoria do crime, a prisão atual, relativamente aos réus desprovidos de recursos pecuniários: “Nos casos em que couber fiança, o
preventiva poderá ser decretada toda vez que o reclame o interesse da ordem pública, ou da instrução juiz, verificando ser impossível ao réu prestála, por motivo de pobreza, poderá concederlhe a liberdade
criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal. Tratandose de crime a que seja cominada pena de re- provisória....Os casos de inafiançabilidade são taxativamente previstos, corrigindose certas anomalias
clusão por tempo, no máximo, igual ou superior a 10 (dez) anos, a decretação da prisão preventiva da lei vigente”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, 1940.
será obrigatória, dispensando outro requisito além da prova indiciária contra o acusado. A duração da 1386. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 194.
prisão provisória continua a ser condicionada, até o encerramento da instrução criminal, à efetividade 1387. GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal. v. III. Rio de Janeiro: Forense, 1945. p. 145.
402 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 403

caso de TOURINHO FILHO: “a prisão provisória, qualquer que seja, só flagrante, é visto passear pelas ruas, é interpretada, através do senso comum do
se justifica se for necessária”1388. homem do povo, como um menoscabo ao direito”1392. Referindo-se à impor-
Parte da doutrina considerava, na esteira do pensamento de MANZINI, tância da prisão em flagrante, TORNAGHI afirmará que a sua finalidade é a
que a prisão cautelar produziria uma inversão do ônus da prova, fazendo recair de servir como advertência aos “maus” (exemplaridade da prisão em flagrante);
sobre o réu a presunção de culpabilidade. O fundamento que a concebe é exa- de oferecer uma satisfação, restituindo a tranquilidade dos “bons”, e ainda, a
tamente o mesmo do pensamento fascista italiano: a necessidade, pois faz pesar de prestígio, restaurando a confiança na ordem, na lei e na justiça abalados pelo
contra ele a presunção da prática do crime1389. A necessidade decorre desta crime1393. Ainda no sentido de se fundamentar a prisão desde o ponto de vista
inversão do ônus da prova, desta operação de desconstituição da presunção moral, Basileu GARCIA afirmará sobre a prisão preventiva:
da inocência1390. Roberto LYRA negava de forma taxativa qualquer inspiração “os crimes graves abalam o meio social. O pensamento acolhido no texto é
doutrinária no pensamento fascista italiano, afirmando que “o antigo art. 312 também o de que, em tais casos, a prisão preventiva do delinquente satisfaz
à opinião pública, antecipando, em benefício do prestígio da lei violada, a
(prisão preventiva obrigatória) foi apresentado como facista. Não pode ser fas-
ulterior restauração da ordem jurídica, de que se incumbe a pena. Mais de
cista o que mereceu meu apoio”1391. Através de uma fórmula tautológica “não uma vez os tribunais do país admitiram como oportuna a prisão preventiva
é fascista porque teve meu apoio” ou “teve meu apoio porque não é fascista”, em face da grande repercussão do crime, tendo em apreço o sentimento po-
Roberto LYRA é incapaz de oferecer qualquer argumento jurídico – por mais pular, violentado na emoção originada pelo acontecimento terrível. Dir-se-á
comezinho que fosse – em torno da eventual diferença entre este dispositivo e que não haveria, só por esse motivo, estrita necessidade da medida. Nem por
isso é contestável o fato de que tal fundamento sempre tem preocupado a
aquele existente no código Rocco. Era incapaz de oferecer argumentos porque consciência dos magistrados, que o revelam explícita ou implicitamente”1394.
foi exatamente o mesmo processo encontrado na Itália: estabelecimento de
custódia cautelar obrigatória. Assim, o argumento encontrado no autor cor- A doutrina processual, portanto, para além da considerável ilimitação
responde a uma petição de princípio, voluntarista e narcísica, apelando à sua concedida aos institutos, aceita outros tantos baseados exclusivamente em
“subjetividade não fascista”. Contudo, exatamente como na Itália, a comissão sentido moral, o que implica, inexoravelmente, na precária concepção do
introduziu esta espécie de prisão preventiva obrigatória, sem falar do alarga- princípio da legalidade processual, o que afasta tais autores do cenário do
mento do espectro de seu cabimento e a redução da liberdade provisória. A liberalismo processual penal, aproximando-os do tecnicismo italiano.
infeliz afirmação de Roberto LYRA, portanto, modelada em uma petição de A natureza jurídica da prisão preventiva, na esteira do tecnicismo
princípios, é incapaz de retirar o código de processo penal brasileiro, neste manziniano, assumia um tríplice aspecto: “como medida de segurança, para
ponto, das mesmas coordenadas assumidas pelo Codice Rocco. evitar que o acusado torne a delinquir e assegurá-lo de possíveis vinditas
Na justificativa da prisão em flagrante, aparecem novamente contornos do ofendido ou de seus parentes”1395. A prisão preventiva, portanto, não
muito similares aos desenvolvidos na Itália, que a concebiam como um instituto se resumia – e com efeito não consegue se subsumir ou se acomodar – a
que deveria restaurar a autoridade da lei. Tomemos exemplificativamente a jus- uma categoria exclusivamente processual. A sua relação com o pensamento
tificativa oferecida por Basileu GARCIA para a prisão em flagrante, baseado em positivista é mais do que evidente, o que pode ser certificado na relevância
argumentos essencialmente morais: “a liberdade de quem, por exemplo, matou assumida pela vida pregressa ou pelo estado de perigosidade que recaía
injustamente o seu semelhante e logo em seguida, por não ter sido preso em sobre o acusado. A vadiagem, na elaboração da prisão preventiva brasileira,
era uma preocupação que autorizava a utilização do instituto constritivo,
1388. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p. 64.
1389. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 194.
1390. Quem tiver dúvidas sobre o déficit de presunção de inocência em casos de decretação de prisões cau- 1392. GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal. v. III. Rio de Janeiro: Forense, 1945. p. 158.
telares consulte o artigo: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Prisões Cautelares, Confirmation Bias e o 1393. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 1179.
Direito Fundamental à Devida Cognição no Processo Penal. In Revista Brasileira de Ciências Crimi- 1394. GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal. v. III. Rio de Janeiro: Forense, 1945.
nais. n. 117. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 158.
1391. LYRA, Roberto. Código de Processo Penal de 1941. In __________. Direito Penal Normativo. 2 ed. 1395. REBELLO, Heribaldo. Breves Lições de Direito Judiciário Penal. v. 1. Rio de Janeiro: José Konfino,
Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 68 s.d. p. 250.
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o que a aproximava das medidas de polícia sustentadas por MANZINI em No primeiro caso, o juiz deveria decretar a prisão uma vez presentes os
sua famosa prolusão de Turim. A doutrina também não ignorava o “perigo” indícios suficientes do crime: “presentes êles, não há margem para julgar-se
representado pela vadiagem e se estabeleciam criterios para aferi-la, como da conveniência ou necessidade dessa providência, que é, então compulsó-
a “falta do exercício da profissão”, que segundo Bento de FARIA, poderia ria”1399. Na redação original do código de processo penal brasileiro, ela era
corresponder a um “estado permanente de vadiagem”1396. obrigatória quando o crime possuía pena igual ou superior a 10 anos. Os
MAGALHÃES NORONHA, após tecer uma breve exposição do pen- casos de prisão preventiva facultativa eram disciplinados pelo art. 313, que
samento de CARRARA sobre a prisão preventiva, afirma que “no regime das previa a possibilidade de sua decretação para garantia da ordem pública,
liberdades individuais, seria de rejeitar-se a privação da liberdade de quem por conveniência instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei
ainda não foi julgado”. Contudo, prossegue criticando o liberalismo penal penal nos casos: a) de crimes inafiançáveis; b) de crimes afiançáveis, quando
justificando a prisão cautelar a partir de um tríplice fundmento: a) a prisão comprovado que o acusado é vadio, ou quando não se puder identificá-lo;
prevetiva é uma providência de segurança (vejamos como a noção de medidas c) de crimes dolosos, quando o acusado tiver sido condenado por crime da
policiais como justificadoras de sua utilização contra as classes perigosas, de mesma natureza, com sentença transitada em julgado.
cariz manziniano havia chegado ao Brasil; b) além disso, a prisão preventiva O tecnicismo brasileiro, quando trata da prisão preventiva, expõe mais
se constituiria como uma garantia de execução da pena; e c) finalmente, as- do que nunca o mesmo sincretismo consolidado na doutrina italiana, que
seguraria a “boa prova processual”1397. se valia das teorias positivistas, dando-lhes uma nova roupagem. A afirma-
Sobre a primeira faceta, de constituir-se como “segurança”, a sua função ção de que a prisão preventiva poderia assumir as feições de uma medida
seria a de evitar que o acusado continuasse perpetrando crimes e também de de segurança expõe a nu esta dimensão, o que afasta – ao menos neste
que pudesse ser vítima da vingança popular, do próprio ofendido ou de sua ponto, para ser otimista – o tecnicismo brasileiro de uma orientação liberal,
família. Percebe-se, neste ponto, novamente a inversão valorativa comum à nada obstante diversas homenagens a “maestros do liberalismo processual
retórica de MANZINI e ROCCO: uma prisão para se “proteger o imputado”. penal”, mas que no fundo estavam impregnados pelas doutrinas autoritárias
O segundo caso seria uma garantia contra a fuga do acusado. Por fim, na produzidas no período mussoliniano italiano. De forma muito explícita
terceira hipótese, trata-se de uma garantia da instrução processual, que teria Basileu GARCIA reconhece que a prisão preventiva não fugiria do caráter
por finalidade evitar o desaparecimento de provas, com o suborno de teste- de medida de segurança: “não tivesse a expressão medida de segurança um
munhas, ocultação de vestígios, etc: “ela é, assim, providência de segurança, significado técnico inconfundível no moderno direito penal, poder-se-ia
garantia de execução da pena e meio de instrução”1398. sem reservas adotar a síntese, frequentemente exposta, de que a custódia
preventiva, com ser um meio de instrução e uma garantia da execução do
Discorrendo sobre os pressupostos da prisão, MAGALHÃES NORO-
julgamento, é medida de segurança”1400.
NHA buscará inspiração no código de processo penal italiano, que disciplia
a custódia preventiva, que já foi objeto de análise no capítulo anterior, Outros argumentos poderiam ainda ser encontrados na retórica legi-
que exigia, em seu art. 252, “indícios suficientes de culpabilidade”. Assim timatória da prisão preventiva, como: evitar a impunidade, a dificultação
como no código de processo penal italiano, a prisão preventiva se dividia da colheita probatória, etc1401, o que em última instância, equivaleria a uma
no código de processo penal brasileiro em prisão obrigatória ou facultativa. espécie de colocação em risco do próprio sistema de justiça criminal1402. O
1399. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 222.
1396. FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. v. I. Rio de Janeiro: Record, 1960. p. 53. Procurando 1400. GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal. v. III. Rio de Janeiro: Forense, 1945. p. 147.
delimitar a “falta de emprego”, o autor afirma: “Não é, portanto, o do indivíduo que procura o trabalho 1401. “Muitas vezes, o autor de delitos, especialmente aqueles apenados com maior rigor, procuraria buscar
e não o encontra; do operário que se acha reduzido a inatividade por motivo de um acidente; do velho a impunidade com a fuga; outras vezes, solto, procuraria burlar a ação da justiça, obstaculizando a co-
ou do enfermo, cuja idade ou a saúde lhe impede a atividade”. FARIA, Bento de. Código de Processo lheita de provas; em outras, tal prisão ainda é uma necessidade para que a ordem pública não seja posta
Penal. v. I. Rio de Janeiro: Record, 1960. p. 53. em risco, não corra perigo com a prática de outros delitos”TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.
1397. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 221. Processo Penal. 30 ed. v. 2, 2008. p. 506-507.
1398. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 221. 1402. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 2, 2008. p. 513.
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código de processo penal previa ainda a prisão administrativa, que era uma que se sucedera na Itália, significaria a ultrapassagem do sistema da “certeza
modalidade de custódia cautelar que tinha a finalidade de obrigar o acusado legal”, como uma disciplina rigorosa das fontes e dos meios de prova.
a cumprir determinada obrigação, que não possuía claramente uma cautela- Pelo “princípio” da liberdade das provas, pode-se compreender a afir-
ridade processual penal e, portanto, não nos interessa diretamente. mação de que “no juízo penal, não há restrições à prova”1405. Com supedâneo
Contudo, o que marca profundamente a experiência brasileira era a “no interesse social” que norteava a estrutura do código, seria possível chegar-
argumentação em torno da prisão cautelar como suscetível de resguardar di- se rapidamente às afirmações de VANNINI, importante processualista do
reitos. Neste sentido, pode-se citar o pensamento de ALMEIDA, para quem regime mussoliniano, de que “no direito processual penal, não há limitação
a prisão cautelar poderia ser considerada como expressão do princípio do dos meios de prova. Nesse particular impera a autonomia: não contém êle
contraditório: “como a revelia, é um meio de garantir a efetividade da defesa. as restrições das leis civis ou do direito privado”1406. A plena submissão do
Contudo, difere da revelia em que esta coage moralmente o réu a participar processo penal ao interesse social, portanto, não poderia permitir o reconhe-
da atividade processual; ao passo que a prisão coage fisicamente”1403. cimento de limites à atividade investigadora do juiz. Na redação original do
Como foi possível perceber, a discussão e torno da prisão cautelar, no código de processo penal brasileiro, o art. 155 do CPP, a exemplo do código
Brasil, estava amplamente irrigada pelos preceitos oriundos do sincretismo de processo penal italiano de 1930, disciplinava que apenas quanto ao estado
tecnicista italiano. A sua recepção e acomodação, por uma “doutrina liberal”, das pessoas seriam observadas as restrições impostas pela lei civil.
revela os mesmos problemas encontrados quando da tentativa de afirmar-se A doutrina processual penal brasileira, de uma maneira geral, não se
a acusatoriedade do “sistema misto” de matriz napoleônica. insurge quanto à aludida sistemática. A finalidade social da prova, tal qual
pensada por TORNAGHI, inviabilizaria qualquer tipo de restrição ao seu
3.3.3. O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DAS PROVAS uso, o que viria corroborado, nas palavras do autor, pelo art. 155 do código de
Um terceiro elemento que pode ser identificado na construção do processo penal1407. Convergente com a ampliação dos poderes instrutórios do
código de processo penal brasileiro reside na adoção de regras probatórias que juiz, não mais um mero juiz espectador1408, o magistrado poderia se valer de
outorgassem a mais ampla liberdade em sua coleta. Reprisando o que já fora sua imediata observação dos fatos1409. Note-se aqui a sinonímia entre liberda-
referido no capítulo anterior, a noção de “liberdade das provas” é impensável de dos meios probatórios e livre convencimento, como acentua ACOSTA1410.
sem a sua estreita conexão com o “princípio” da verdade real e aquele do livre Esta construção acabava por introduzir um novo elemento de debi-
convencimento. A coleta das provas, portanto, não estaria sujeita a nenhum litação da presunção de inocência, em sua expressão de regra de juízo: o in
resquício de limitação, podendo o juiz, para formar o seu convencimento, dubio pro reo não deveria ser pronunciado enquanto o juiz não esgotasse os
produzi-las de ofício se necessário1404. Este sistema, a exemplo da discussão meios probatórios1411. Assim, novamente temos um instituto que cumpre
1403. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Constitucionais da Coação Pessoal. In Revista
Forense. n. 84. Rio de Janeiro, 1940. p. 577. de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não
estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver
1404. “O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado da certeza legal. Atribui ao juiz a faculdade de uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet”.
iniciativa de provas complementares ou supletivas, quer no curso da instrução criminal, quer a final, CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, 1940.
antes de proferir a sentença. Não serão atendíveis as restrições à prova estabelecidas pela lei civil, salvo
quanto ao estado das pessoas; nem é prefixada uma hierarquia de provas: na livre apreciação destas, o 1405. SOARES, Orlando. Curso de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 243.
juiz formará, honesta e lealmente, a sua convicção. A própria confissão do acusado não constitui, fatal- 1406. VANNINI, Ottorino. Manuale di Diritto Processuale Penale Italiano. Milano: Giuffrè, 1953. p. 119.
mente, prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, 1407. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. II. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 681.
valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas 1408. “Outra inovação é no que respeita à autoridade do juiz. Antigamente o juiz ficava como espectador dian-
constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apu- te das provas. Pelo código vigente o juiz não é simplesmente espectador. Preside a prova”. REBELLO,
rar, através delas, a verdade material. O juiz criminal é, assim, restituído a sua própria consciência. Nunca Heribaldo. Breves Lições de Direito Judiciário Penal. v. 1. Rio de Janeiro: José Konfino, s.d. p. 18.
é demais, porém, advertir que livre convencimento não quer dizer puro capricho de opinião ou mero
arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas 1409. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. v II. 5 ed. Rio de Janeiro:
não pode abstrairse ou alhearse ao seu conteúdo. Não estará ele dispensado de motivar a sua sentença. E Borsoi, 1960. p. 439.
precisamente nisto reside a suficiente garantia do direito das partes e do interesse social. Por outro lado, o 1410. ACOSTA, Walter P. O Processo Penal. 13 ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1978. p. 222.
juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual 1411. “Ademais, o juiz não é mero ‘espectador’ da prova: a lei lhe faculta mandar fazer outras provas, êle deve
é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, esgotar todos os meios de prova, quer da acusação, quer da defesa e não deverá pronunciar o ‘in dubio
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funções latentes ou não declaradas, enfraquecendo os direitos do acusado. Vejamos agora o segundo ponto da tríade verdade real – livre convenci-
Sob o pretexto de se encontrar a verdade real, e sem conhecer limites nesta mento – liberdades das provas. Vamos ao “princípio” da livre convição.
persecução, o juiz ainda poderia valorar a prova através de um enorme espec-
tro de discricionariedade. O desvio do juiz deste caminho importaria no seu 3.3.4. O LIVRE CONVENCIMENTO DO MAGISTRADO1414
afastamento da tutela dos interesses do Estado, como assevera TOURINHO Além do “princípio” da liberdade das provas, o código de processo
FILHO1412. Esta verdade real deveria ser perseguida tanto na fase de instrução penal incorporava, na lógica do incremento dos poderes dos juízes, o “sis-
judicial como na de investigação preliminar, o que explica porque o código tema” do livre convencimento1415. Como já relatado, e seguindo de perto
de processo penal possui tantos artigos que autorizam a intervenção judicial a doutrina italiana1416, a base do processo penal residiria em um juiz que
em plena fase de investigação preliminar1413. pudesse decidir de maneira não adstrita ou vinculada às provas coletadas
Em um processo constituído desta maneira, pouco espaço havia para no processo, nem tampouco à necessidade de obedecer a determinadas
que a presunção de inocência encontrasse recepção. Além disso, as mais regras valorativas1417. A noção de livre convicção, ainda, estava entrelaçada
distintas e abusivas formas de introdução de meios probatórios seriam auto- à ideia de verdade real, garantindo, desta forma, um conjunto tríplice de
rizadas, tudo graças ao dever de persecução da verdade real e seu congênito mecanismos que liberavam o juiz de quaisquer cânones interpretativos ou
princípio, o da liberdade das provas, responsável pela superação do “inqui- valorativos no momento de proceder à decisão, e que autorizavam o magis-
sitório” sistema das provas legais. trado a conduzir o processo na tentativa de capturar provas faltantes, que
Deve-se grafar que tal questão remete à questão anterior, já debatida, por seu turno teriam o condão de tamponar lacunas probatórias.
sobre a gestão da prova e os sistemas processuais penais. Algum setor doutri- No Brasil, o “princípio do livre convencimento” percorrera um ca-
nário e jurisprudencial, de baixa densidade constitucional e de precaríssimo minho, para dizer o mínimo, curioso. Consoante depoimento da época, a
conhecimento sobre a história do processo penal, revela, sic et simpliciter, jurisdição do tribunal de segurança nacional teria notadamente influenciado
que quando o juiz determina a produção da prova, não poderia prever em
benefício de qual parte ela seria produzida. Tal recurso retórico, quando 1414. Embora não seja escopo deste trabalho, recomenda-se, para uma análise das repreentações judiciais
sobre o princípio do livre convencimento a tese de FONSECA, Regina Lúcia Teixeira Mendes da.
utilizado, destrói qualquer laço com a presunção de inocência, seja como Dilemas da Decisão Judicial: as representações de juízes brasileiros sobre o princípio do livre conven-
cimento motivado. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 2008.
norma probatória, seja como norma de juízo. Consoante CAMPOS afirma 1415. “Como corolário do sistema de livre convicção do juiz, é rejeitado o velho brocardo testis unus testis
na exposição de motivos, a justificativa desta regulação é fazer o juiz evitar nullus. Não se compreende a prevenção legal contra a voix d’un, quando, tal seja o seu mérito, pode
bastar à elucidação da verdade e à certeza moral do juiz. Na atualidade, aliás, a exigência da lei, como
pronunciar o in dubio pro reo. Portanto, a crítica ferrenha aos elementos se sabe, é contornada por uma simulação prejudicial ao próprio decoro ou gravidade da justiça, qual a
consistente em suprirse o mínimo legal de testemunhas com pessoas cuja inocência acerca do objeto
dispositivos, no processo penal, interferem diretamente na projeção da pre- do processo é previamente conhecida, e que somente vão a juízo para declarar que nada sabem. Outra
inovação, em matéria de prova, diz respeito ao interrogatório do acusado. Embora mantido o princípio
sunção de inocência, e só adquirem sentido quando ela – a presunção de de que nemo tenetur se detegere (não estando o acusado na estrita obrigação de responder o que se lhe
pergunta), já não será esse termo do processo, como atualmente, uma série de perguntas predetermi-
inocência – seja enfraquecida em um emaranhado de normas destinadas a nadas, sacramentais, a que o acusado dá as respostas de antemão estudadas, para não comprometerse,
mas uma franca oportunidade de obtenção de prova. É facultado ao juiz formular ao acusado quaisquer
tornar mais eficiente a repressão. perguntas que julgue necessárias à pesquisa da verdade, e se é certo que o silêncio do réu não importará
confissão, poderá, entretanto, servir, em face de outros indícios, a formação do convencimento do
juiz”. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, 1940.
pro reo’ ou o ‘non liquet’”. REBELLO, Heribaldo. Breves Lições de Direito Judiciário Penal. v. 1. Rio 1416. Sobre a influência da doutrina italiana (além da francesa), QUEIROZ afirma que “a influência da dou-
de Janeiro: José Konfino, s.d. p. 170. Em pertinente crítica, afirma MALAN que “assim, da limitação trina estrangeira, principalmente francesa e italiana, tôda orientada no sentido do livre convencimento,
ao brocardo in dubio pro reo defendida por Campos resulta que o estado de dúvida do Magistrado sobre muito concorreu para que se fôsse infiltrando nos nossos métodos de julgamento o critério do sistema
ponto relevante para a adjudicação do caso penal não enseja a absolvição, e sim atuação judicial inqui- probatório só agora expressamente consagrado pela lei”. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de
sitiva”. MALAN, Diogo. Ideologia Política de Francisco Campos: influência na legislação processual Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943. p. 16.
penal brasileira (1937-1941). In PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Autoritarismo e Processo Penal 1417. Segundo Florêncio de Abreu, o sistema do livre convencimento atuaria, no campo do novo processo,
Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 55. “substituindo-se o antigo sistema da prova legal pelo da prova moral; id. est: a impressão produzida
1412. “Vigorando no processo penal o princípio da verdade real, é lógico não deva haver qualquer limitação no espírito dos magistrados pelos resultados da instrução. Êsse sistema, coordenado com o do relativo
à prova, sob pena de ser desvirtuado aquele interesse do Estado na justa atuação da lei”. TOURINHO arbítrio do juiz na aplicação da pena, no intuito de individuá-la, impõe ao magistrado o dever indecli-
FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 2, 2008. p. 219. nável de motivar a sua sentença”. SILVA, Florêncio de Abreu e. Princípios Informativos do Código de
1413. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 2, 2008. p. 220-221. Processo Penal. In Revista Forense. a. XL. V. XCVI. Rio de Janeiro, 1943. p. 15.
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o código de processo penal brasileiro, especialmente no quesito “livre convic- correlato à negação de um modelo no qual as provas teriam peso pré-deter-
ção”. Como se sabe, o Tribunal de Segurança Nacional fora criado pela Lei nº minado pelo legislador, a partir de um rol taxativo, a liberdade das provas e
244, de 1936, bem antes do projeto de reforma do código de processo penal a livre convicção autorizariam à conclusão de que todas as provas possuiriam
brasileiro iniciar os seus trabalhos. Consoante as palavras de Raul MACHA- valor relativo. O “peso” concedido a cada um dos elementos probatórios reco-
DO, “ o ‘julgamento por livre convicção’, já saiu da esfera da Justiça Especial, lhidos seria subjetivamente calculado pelo juiz, nada impedindo que a palavra
para invadir, igualmente com bom êxito, a da Justiça Comum, transformado de uma testemunha fosse considerada mais substancial do que a palavra de
em faculdade de decidir por ‘livre conhecimento das provas’”1418. duas testemunhas, que o interrogatório do acusado tivesse um peso maior
A relação entre verdade real e livre convicção do magistrado é flagrante do que a perícia, e assim por diante. Nesse ponto, ilustrativas as palavras de
no discurso da doutrina processualista brasileira1419. A lógica do sistema era TOURINHO FILHO, para quem “o juiz, em face das provas existentes no
descolar o julgamento do juiz da doutrina “secundum allegata et probata”, autos, tem inteira liberdade na sua apreciação. Pode desprezar o depoimento
o que significa conceder ao magistrado a possibilidade de decidir segundo de quatro testemunhas, por exemplo, e respaldar sua decisão num único
intuições ou mesmo os seus aparatos sensoriais. Assim, a prova poderia depoimento. Este é o princípio do livre convencimento”1423. Eis uma clara de-
ser “apreciada livremente”1420. Tal apreciação, por seu turno, somente seria monstração do alto decisionismo presente no sistema de “livre apreciação da
garantida pela ampla liberdade concedida ao magistrado, seja no campo prova”, autorizando que o juiz opte por uma hipótese e a ela adira, podendo
investigativo, seja no campo do decisionismo incrustrado em tal modo de decidir mesmo contra a maioria das provas coletadas, já que as provas teriam
comprender as funções judicantes e aquelas afeitas à introdução de provas “peso relativo” e portanto, a sua convicção seria formada “livremente”, isto
no processo penal. Neste sentido, nada obstaria, por exemplo, que o juiz é, sem qualquer espécie de controle epistêmico. O que equivale a dizer que a
formasse a sua convicção tomando por base elementos fora dos autos do formação do material cognitivo recolhido desconhece limites de validade de
processo, como atesta BORGES DA ROSA1421. Pode-se citar ainda Raul produção do conhecimento judicial. Inclusive alimentando uma metafísica
MACHADO (à época juiz do Ttribunal Segurança Nacional em 1938). cultura solipsístiva do “eu penso, logo decido”1424.
“a lei quis, apenas, conferir ao juiz a faculdade de decidir, conforme o seu A contrariedade às provas legais e a retirada de qualquer gravame
conhecimento, alicerçado em ‘qualquer das provas’”1422. sobre o modo de valoração das provas consistia no procedimento trazido
O efeito imediato, consoante a doutrina, era dúplice: em primeiro lugar, pelo código de processo penal, considerado pela doutrina como uma “ino-
vação” do código de 19411425. Para TORNAGHI, se trata de um sistema do
1418. MACHADO, Raul. Delitos Contra a Ordem Política e Social. São Paulo: s.e, 1944. p. 158. mesmo gênero daquele da íntima convição, diferenciando-se do sistema das
1419. “Do princípio da verdade real deflue, também, o princípio da livre convicção do julgador. O julgador
não pode ficar preso a regras legais de avaliação dos meios de prova, senão a regras naturais, psicológi- provas legais. Aparece como remédio para o sistema das provas legais, “sem
cas, de convencimento, ante os elementos demonstrativos da realidade criminal”. ALMEIDA, Joaquim
Canuto Mendes de. Diretrizes do Processo no Código Penal. In Revista Forense. v. 94. n. 478-480. Rio
de Janeiro:Forense, 1943. p. 23. 1423. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p. 44.
1420. “Já se tem dito, e não é novidade, que, dentre as inovações mais salientes do novo Código de Processo, 1424. Não se pode deixar-se de reconhecer o mérito de Lênio Streck, que há muito tempo chama a atenção
no tocante à avaliação das provas” está “a faculdade conferida ao juiz de apreciá-las livremente”. SAL- para o fenômeno do decisionismo brasileiro. Dentre centenas de artigos e muitos outros livros Cf STRE-
GADO, Cesar. O Regime da Prova no Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. 39. N. 90. Rio CK, Lênio. Verdade e Consenso. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. Cf STRECK, Lênio Luiz. O
de Janeiro: Forense, 1942. p. 342. que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
1421. “O novo Código de Processo brasileiro já adotou, em toda a sua plenitude, o critério da livre convicção. 1425. “O princípio da livre convicção do juiz às vezes dá lugar a confusão ou mal entendido, mas é uma das
(...) julgar por livre convicção é julgar de consciência, mas não é ir arbitrariamente contra a prova; é mais salutares de todas as reformas introduzidas pelo código. Veio quebrar a ficção da chamada prova
examinar esta livremente e extrair dela a convicção, sem limitação de quaisquer preceitos legais. Julgar legal, ou da decisão alegado e provado, que poderia parecer mais lógica, mas não é verdadeira, nem
por convicção é julgar pela convicção livremente formada, com elementos de dentro ou de fora dos favorecia, e às vezes sequer permitia, que se fizesse justiça. (...) isto significa que o julgador, qualquer
autos, e dando-lhes o valor que merecerem, sem normas nem regras outras senão as de buscar a verdade, que seja, juiz ou tribunal, não está sujeito a nenhum tabu probatório, a nenhuma prova formal, mas,
onde quer que se possa encontrá-la”. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo além de poder determinar a verdade, também pode e deve dar aos elementos de prova existente na
Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 270. ocasião da sentença o valor que eles realmente tiverem, uns em face de outros e de acordo com a
1422. MACHADO, Raul. Julgamento por Livre Convicção. In Revista Forense. v. 82. n. 442. Rio de Janeiro: verdade. Quer dizer apenas que a prova está sujeita à sua livre apreciação, não havendo nenhum ele-
Forense, 1940.p. 338. Sobre a íntima convicção no julgamento de crimes políticos pelo TSN Cf NUNES, mento, documental, pericial, ou testemunhal, que lhe possa ser imposto como verdade absoluta. Ao
Diego. O Tribunal de Segurança Nacional e o Valor da Prova Testemunhal: o debate sobre o princípio da contrário, todos os elementos de prova têm valor relativo, de uns para com outros, e ainda para com
livre convicção do juiz a partir do julgamento do processo nº 1.335. In Direito e Política. v.8. n.2, 2013. a verdade”. GOMES NETO, F. A. Teoria e Prática do Código de Processo Penal Com Formulários.
Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica – ISSN 1980-7791.Acesso em 14.03.2017. p. 844-870. v. 2. Rio de Janeiro: José Konfino, 1958. p. 07.
412 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 413

os inconvenientes da íntima convição”1426. Ou seja, seria um mecanismo leis modernas voltam a dar ao juiz a mais ampla liberdade na apreciação
intermediário entre ambos os sistemas, pois mesmo as provas consideradas da prova. Nenhum padrão lhe é impôsto, nenhuma regra o vincula; não se
mais importantes pelo código (tome-se o exemplo da perícia, prevista no lhe diz antecipadamente qual o valor de cada prova. Mas exige-se-lhe que
art. 158 do CPP), poderia receber do juiz, um tratamento discricionário, fundamente a sua decisão nos elementos contidos nos autos1431”.
como no caso do julgamento contra a prova técnica1427. A atuação “livre” do juiz estava garantida pelo objetivo ou finalidade
Grande parte da discussão travava-se na delimitação semântica do do processo penal: a descoberta da verdade. A distinção entre verdade formal
“livre convencimento” e nas limitações que o juiz estaria adstrito. Segun- (processo civil) e a material (processo penal) fazia parte do coro dos juristas
do BARROS, o livre convencimento do magistrado estaria limitado “pela na justificação do sistema da livre convicção1432. Segundo QUEIROZ, “a
consciência do juiz na responsabilidade de sua função”1428, demonstran- prova do processo não tem outra finalidade senão propiciar a descoberta da
do como as “travas” do sistema da decisão judicial eram frouxas (rectius: verdade. Por ela é que o juiz forma a sua convicção sôbre a existência de um
ainda são). A tese que saiu vitoriosa da disputa pelos contornos a serem fato, ou sôbre circunstâncias capazes de excluir a criminalidade”1433. Para
dados ao livre convencimento surgiu como uma espécie de conquista de MAGALHÃES NORONHA, dois seriam os sistemas relativos à coleta da
caráter evolutivo relativamente ao “sistema” da íntima convicção. A ne- prova: o da verdade legal e o da verdade real. O primeiro ocorreria quando
cessidade de fundamentação da decisão surge como um dever imposto ao a lei disciplina o valor das provas. No segundo, o juiz não restaria adstrito
juiz, capaz de garantir, na concepção dos autores da época, a correição da a critérios de valoração predeterminados, sendo livre: “assim, v.g., pode êle
decisão, ao submeter o julgado ao controle pelos tribunais superiores, evi- aceitar o testemunho de um homem de bem contra o de dois de má fama,
tando “excessos”1429. Assim, o livre convencimento teria sido recebido, de de vida escusa e condenável”1434.
acordo com MAGALHÃES NORONHA, no art. 157 do CPP, obrigando Teremos alguns reflexos imediatos na adoção de um sistema ausente de
o juiz a motivar a sua decisão. Cita, para justificar esta afirmação, ninguém controles sobre a produção da prova e sobre a liberdade do juiz em decidir
menos do que MANZINI1430, o que permite se verificar, novamente, a de acordo com a sua consciência (ou de acordo com o seu “dever ético”). O
aproximação entre o tecnicismo jurídico brasileiro e o italiano, bem como primeiro deles é a ausência de limites à produção probatória, o que explica a
a presença de uma doutrina que retirava determinados freios da atuação dos dificuldade, no Brasil, em se compreender a prova ilícita, mesmo após a sua
magistrados. Para TORNAGHI, portanto, o dever do juiz se esgotaria na proibição pela Constituição de 1988. Nas palavras de Nelson HUNGRIA,
fundamentação que levasse em conta os elementos dos autos processuais:“as “um dos corolários do livre convencimento (também chamado de ‘verdade
1426. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. II. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 694. material’ ou ‘da certeza moral’), nítida e definitivamente adotado pela nossa
1427. “O Cód. dispõe no art. 157 que ‘o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova’. Como
corolário dêsse princípio, o Cód. desliga o juiz até mesmo de acatar incondicionalmente o juízo técnico
vigente legislação processual penal, é a livre admissão dos meios de prova”1435.
dos peritos. De fato estabelece o art. 182 que ‘o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou O resultado é um sistema que desconhece qualquer espécie de critério quanto
rejeitá-lo, no todo ou em parte’”. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista
Forense. V. XCIII. V. 475, 1943. p. 18. à juridicidade de um meio probatório, o que implica afirmar-se, de antemão,
1428. “O juiz penal, em matéria de avaliação de prova, atenderá, como um dos princípios essenciais, o seu
livre convencimento, consoante princípio enunciado no art. 157, do Código de Processo Penal, não es- a incompatibilidade deste regime (do livre convencimento) com um sistema
tando sujeito, nessa apreciação, a qualquer limitação legal. Livre, porém, não quer dizer arbitrário; livre
no sentido da moderna doutrina, impregnado de sentimento jurídico: livre no sentido de que o juiz não
tem outro limite na avaliação da prova, que a consciência da responsabilidade da sua função, informada
sempre de deveres intelectuais, éticos e sociais”. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processu- 1431. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. II. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 694.
al Penal Brasileiro v. II. São Paulo: Sugestões Literárias, 1971. p. 699. 1432. “Para a formação de seu livre convencimento, o juiz liberta-se de qualquer artifício de prevenção dialé-
1429. “A sentença deve ser motivada. Com o sistema do relativo arbítrio judicial na aplicação da pena, con- tica. O que deve preocupá-lo, como árbitro do prélio travado entre a acusação e a defesa, é a verdade
sagrado pelo novo Código Penal, e o do livre convencimento do juiz, adotado pelo presente projeto, é material ou real, e não a verdade formal”. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de
a motivação da sentença que oferece garantia contra os excessos, os erros de apreciação, as falhas de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 270.
raciocínio ou de lógica ou os demais vícios de julgamento. No caso de absolvição, a parte dispositiva 1433. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943.
da sentença deve conter, de modo preciso, a razão específica pela qual é o réu absolvido. É minudente p. 15.
o projeto, ao regular a motivação e o dispositivo da sentença”. CAMPOS, Francisco. Exposição de 1434. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 121.
Motivos do Código de Processo Penal, 1940. 1435. HUNGRIA, Nelson. A Liberdade dos Meios de Prova. In Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios
1430. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 121. Interiores. n. 63. a. XV, 1957. p. 15.
414 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 415

de controles sobre a produção de provas (dentre elas a prova ilícita). convencimento, se os elementos do inquérito policial podem (desde que não
Um segundo reflexo derivado da adoção deste sistema de decisão ju- exclusivamente) subsidiar a decisão do juiz, tem-se na realidade, a estrutura
dicial é a sua incompatibilidade intrínseca com o princípio de correlação de um “sistema misto”, um código no qual aquilo que realmente importa é
entre acusação e sentença. A “livre” valoração da “prova” estende-se aos fatos construído na fase preliminar, sendo a fase judicial, mero procedimento ra-
externalizados por ela, assim como as normas aplicáveis. Se o juiz pode, fun- tificatório do primeiro. O contraditório, torna-se secundário ou acessório. A
damentadamente, escolher provas, fatos e normas que incidiriam sobre o caso busca pela prova, informada pela necessidade de se encontrar a verdade histó-
penal, evidentemente que a sentença poderia julgar para além dos limites da rica era o combustível que moldava este sistema. Como assevera QUEIROZ,
acusação. Segundo Roberto LYRA, “o juiz aprecia, livremente, as provas e as “pela prova é que o juiz chega àquela verdade histórica, que é, de um ponto
definições jurídicas. Pode condenar ultra e extra petitum, proporcionar outros de vista subjetivo, a certeza que se requer para o julgamento”1438. Bastava a
enquadramentos, condenar, apesar do pedido de absolvição, e aplicar pena certeza, que nada mais era do que um conjunto de elementos psicológicos,
mais grave do que a postulada (artigos 383 a 385)”1436. Como se pode ver, um uma “verdade subjetiva ou moral”1439.
sistema assim estruturado não conhece os limites jurídicos entre imputação e É sobre este elemento – a verdade – que traçaremos a seguir algu-
decisão judicial. Segue, portanto, nos mesmos trilhos do processo penal ita- mas linhas.
liano de 1930, que autorizava o juiz a julgar o caso em seus próprios termos,
sem a necessidade de se obedecer àquilo que é proposto pela acusação como 3.3.5. A VERDADE REAL
o objeto do processo (a imputação). Como referido ao longo deste capítulo, o código de processo penal
Um terceiro reflexo da adoção deste sistema reside na possibilidade de 1941 estabeleceu uma tríade composta pelos “princípios” da liberdade
presente de o juiz decidir tomando-se como elemento central de sua decisão de prova e da livre convicção, a que se deveria somar o da verdade real.
os fatos trazidos pelo inquérito policial. Com efeito, a ausência de limites Todavia, era justamente este último o significante reitor na organização do
quanto ao objeto de conhecimento e valoração, pelo juiz, autorizava (como sistema. Trata-se de um significante capaz de estabelecer além da liberdade
ainda autoriza, tendo em vista doutrina sobejamente referendada pelas prá- na coleta de provas, retirando filtros da estrutura do código em se tratando
ticas dos tribunais brasileiros), a hipótese de o juiz firmar a sua convicção de admissão probatória, a “liberdade” na aferição dos elementos coligidos
tomando-se como norte depoimentos e outros elementos indiciários presentes ao processo, agregando-se um “dever de impulso” processual. A verdade real
na investigação preliminar, com o inequívoco sacrifício do contraditório. Se- é o motivo simbólico que, diferenciando processo civil do penal (verdade
gundo Frederico MARQUES, questionando acerca da possibilidade de o juiz formal e verdade real), assegura ao juiz o papel de protagonista. Os poderes
utilizar-se do inquérito policial para decidir, afirma: “tudo depende das cir- instrutórios ou simplesmente poderes ex officio, portanto, amparados em uma
cunstâncias do caso, como, aliás, sempre acontece, quando se focaliza a ‘livre concepção juspublicística de processo, exigiria do magistrado certa postura
convicção’. Se os indícios e elementos circunstanciais do factum probandum de insatisfação relativamente ao material probatório oferecido pelas partes.
forem tais que gerem a convicção de que a instrução provisória realizada na Obviamente, muitas críticas certeiras já foram endereçadas ao princípio1440,
polícia espelha e reflete a verdade dos acontecimentos, pode o juiz invocar
um outro dêsses elementos, para fundamentar, complementarmente, a sua 1438. QUEIROZ, Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. V. XCIII. V. 475, 1943.
p. 15.
decisão”1437. A burla de etiquetas no que concerne ao contraditório estava 1439. “É sempre um estado de consciência individual, é a configuração subjetiva da verdade, e, portanto, emi-
nentemente relativa, dadas as diferenças de condições psicológicas em que cada homem exerce a ativida-
garantida: se tudo depende do caso, e isto é inerente ao sistema do livre de de crítica da prova. A convicção não é, pois, senão a representação da verdade, que logramos formular
em nosso espírito. O cuidado na colheita da prova, e o critério e o equilíbrio crítico do juiz são os ele-
mentos indispensáveis para que essa representação se aproxime o mais possível da verdade”. QUEIROZ,
1436. LYRA, Roberto. Código de Processo Penal de 1941. In __________. Direito Penal Normativo. 2 ed. Narcelio de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. V. 475, 1943. p. 16.
Rio de Janeiro: José Konfino, 1977. p. 64-65. 1440. Sobretudo KHALED JUNIOR, Salah Hassan. A Busca da Verdade no Processo Penal: para além da
1437. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. Cf BAPTISTA, Francisco das Neves. O Mito da Verdade
1965. p. 160. Real na Dogmática do Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
416 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 417

de maneira que o recorte aqui traçado diz respeito apenas à manifestação da realização da justiça criminal”1446. A “socialização do processo penal” brasilei-
retórica processual penal em relação ao aludido “princípio”. A verdade real, ro, com predomínio do interesse público sobre o privado – embora a retórica
contraposta à verdade formal, seria um elemento que garantiria a justiça da do equilíbrio fosse explicitamente aduzida na Exposição de Motivos – instava
decisão. Inaceitável seria a adoção da verdade formal no processo penal. Como o processo a assumir feições inquisitórias. E a característica da inquisitoriali-
acentua ALMEIDA, “no crime, se a verdade formal predominasse, assim dade não era vista como uma faceta negativa. Pelo contrário, ela imantava as
formalizada pelas partes, importaria na negação mesma do direito penal”1441. concepções de verdade que produziriam um estado de vigilantismo judicial a
Na doutrina processual penal brasileira, comumente se afirma que a despeito das faculdades probatórias das partes. Isto é, o princípio de instância
função do processo penal é a descoberta da verdade (material)1442. Em outras de parte seria suplementado pelo dever de o juiz não se contentar com o ma-
palavras, a finalidade do processo era a de obter a certeza positiva ou nega- terial aportado pelas partes. Em última instância, seria justamente o in dubio
tiva da autoria do crime1443. Esta definição da finalidade do processo penal pro reo sacrificado por esta compreensão de processo penal, já que o dever de
acabaria por até mesmo por deixar reflexos na definição de processo penal, esgotar os meios e fontes de prova impulsionaria o magistrado a evitar a ab-
como pode ser encontrado em BORGES DA ROSA, que o concebe como solvição baseada em tal critério. Consoante já referido quando do tratamento
uma série de atos destinados a descobrir a verdade1444 do “princípio” da liberdade das provas, a Exposição de Motivos não deixa dú-
vidas: “enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e
A discussão estabelecida pelos juristas, no Brasil, era a de retirar
houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar
quaisquer limites do juiz no processo de conhecimento, que não se deveria
o in dubio pro reo ou o non liquet”. Neste sentido, se encontram as palavras de
contentar com os argumentos e provas trazidos pelas partes, já que a confor-
ALMEIDA: “o princípio inquisitivo é, porém, garantia da justiça criminal,
mação do processo penal seria diversa daquela do processo civil. A menção e
porquanto obriga o magistrado a estar preso à realidade criminal, de maneira
o reconhecimento do referido “princípio”, com efeito, não era uma inovação
que não confie tão só no comportamento das partes, mas, vá espontânea e
do código de processo penal de 1941, mas já era conhecida de nossos autores,
diretamente – é a expressão positiva do princípio inquisitivo – em busca da
seja por influência direta da doutrina estrangeira, seja pelo fato de que a sua
realidade através dos meios capazes de prová-la”1447. Para ALMEIDA1448 nem
existência estava já presente em nossa tradição (“liberal”)1445.
mesmo a diferença no regime de iniciativa da ação penal seria capaz de obstar
Portanto, em uma primeira acepção, extraída da “concepção publicís- esta positiva característica do processo penal brasileiro. Mesmo a ação penal
tica” de processo, a tarefa de introduzir as provas no processo penal deixava de iniciativa privada estaria impregnada de inquisitorialismo.
de ser uma faculdade “exclusiva” das partes, passando a ser um desiderato
A inspiração no sistema “misto”, a exemplo do pensamento manziniano,
judicial: “a produção das provas não é uma faculdade outorgada às partes,
também encontrava espaço no Brasil, a ponto de a verdade real nele estar
no processo penal, de modo tal que estas sejam capazes de impedir ao juiz a
baseada. Em um modelo sui generis de processo, se pensava poder garantir
a iniciativa probatória do juiz sem com isso retirar a faculdade de produção
1441. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Diretrizes do Processo no Código Penal. In Revista Forense.
v. 94. n. 478-480. Rio de Janeiro:Forense, 1943. p. 23. probatória das partes. O sistema “misto” seria responsável, nas linhas tecidas
1442. “A atividade processual-penal tem por escopo essencial a colheita de provas para elucidação da verdade por ALMEIDA, por garantir o “justo equilíbrio” entre acusação e defesa,
ou obtenção da certeza em tôrno à materialidade do crime de que se trata e ao arguido ou suposto nexo de
causalidade física e psíquica que o liga ao réu”. HUNGRIA, Nelson. A Prova no Anteprojeto de Código do
Processo Penal. In Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. a. XXIII. n. 93, 1965. p. 13.
1443. ROSA, Inocêncio Borges da. Processo Penal Brasileiro. v. 1. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1942. p. 52. 1446. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Diretrizes do Processo no Código Penal. In Revista Forense.
1444. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos v. 94. n. 478-480. Rio de Janeiro:Forense, 1943. p. 24.
Tribunais, 1982. p. 22. 1447. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Diretrizes do Processo no Código Penal. In Revista Forense.
1445. “O princípio da verdade real, dominante em matéria-crime, assim chamado pelos autores estrangeiros, v. 94. n. 478-480. Rio de Janeiro:Forense, 1943. p. 24.
teve sempre validade no direito brasileiro, no direito português tradicional, visto como nossos proces- 1448. “Nosso juízo criminal é inquisitório até nas ações exclusivamente privadas. Podemos ainda afirmar
sos sempre se prenderam ao corpo de delito”. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Diretrizes do que, então, mais benéfica é a inquisitoriedade, talvez mais necessária do que nos casos de ação pública,
Processo no Código Penal. In Revista Forense. v. 94. n. 478-480. Rio de Janeiro:Forense, 1943. p. 23. porque, ao invés da obra imparcial do promotor público, o magistrado nelas vigia e tutela a verdade
Também em ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. O Princípio da Verdade Real. In Revista da Fa- objetiva contra os interesses secundários do particular ofendido”. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes.
culdade de Direito de São Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p. 133. Processo Penal: ação e jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 194.
418 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 419

na esteira do discurso de “socialização do direito” que estava presente na melhor maneira possível com dados colhidos da realidade aparece no discurso
Exposição de Motivos do código de processo penal de 1941 e também em de GUSMÃO, para quem “as disposições do código, desde as relativas ao
nível doutrinário1449. O sistema “misto” se confundiria com a necessidade inquérito policial até as que ora examinamos constituem sistema de absoluta
de “civilizar” a justiça penal, não podendo submeter às partes a verdade1450. segurança, quanto à formação da prova”1453.
A adoção do princípio da verdade real como mola propulsora da ati- O terceiro reflexo de se adotar a verdade real como um príncípio-reitor
vidade probatória no processo penal brasileiro produz um complexo de consistirá em dois pontos contíguos: o dever de o juiz sanar suas dúvidas atra-
situações jurídicas e consequências derivadas da construção deste modelo. vés de atividades ou diligências instrutórias, o que terminaria por culminar
A primeira delas corresponde justamente à elaboração de mecanismos que, com a hiperatividade instrutória do magistrado – o que por sinal era uma
mesmo diante de estrutura heterogênea, se afeiçoariam a um sistema do tipo característica da ideologia da concepção publicística de processo – e, por outro
misto. È nesse sentido que aos elementos probatórios encontrados em sede lado, fulminaria com a aplicação do in dubio pro reo no processo penal bra-
de inquérito policial se atribuirá a finalidade de apuração da verdade, o que sileiro. Esta norma, derivada da presunção de inocência, seria cabível apenas
os coloca em nível semelhante ao da prova. Nesse sentido, as palavras de e tão somente em um processo no qual, adotando-se determinado standard
Bento de FARIA deixam muito clara esta expressão assumida pelo inquérito probatório, ao juiz caiba decidir em situação de esgotamento das atividades
policial: “o seu objetivo único, como resulta dos textos, não é a procura probatórias das partes. Entretanto, as recomendações que permeiam o código
e acumulação de indícios e provas com o intuito exclusivo de promover a de processo penal – da Exposição de Motivos à disciplina da prova – demons-
acusação, mas de apurar a verdade”1451. tram um sistema que não se contenta com o produzido pelas partes: deve o
Um segundo reflexo da sistematização do processo penal brasileiro em juiz lançar-se em busca da “verdade”, evitando-se pronunciar o in dubio pro
torno do significante verdade real se verifica no repúdio a qualquer sistema reo, como declinado na Exposição de Motivos. Nas palavras de ALMEIDA,
de controle sobre os meios probatórios. Corolário da liberdade dos meios “excepcionalmente o juiz penal se curva à verdade formal, não dispondo de
de prova, a verdade real garantiria a justificativa necessária para que o rol de meios para assegurar o império da verdade”1454.
provas estabelecido no código de processo penal surgisse como um sistema Desta maneira, os argumentos trazidos pelas partes serão valorados
exemplificativo, um catálogo de meios de prova que poderia ser comple- apenas quando se confundirem com a verdade real. Decorrente do “poder-
mentado. O correspectivo da verdade real seria a livre admissão de quaisquer -dever inquisitivo” atribuído ao juiz, o juiz poderá decidir de acordo com os
elementos aptos a servir para a convicção judicial, estivessem eles previstos ou argumentos trazidos pelas partes, sempre que eles sejam expressão da verdade
não em lei1452. Esse otimismo na elaboração de um código altamente capaci- real; quando elas não se confundam, deverá o juiz garantir as provas adequa-
tado para garantir ao juiz a formação de um convencimento aparelhado da das para que a verdade real apareça1455.
Não obstante a verdade real surgir como um elemento discursivo
1449. “Aliás, o que o código de processo fez foi disciplinar o exercício da ação, resguardando os direitos do
acusado, sem desprezar as garantias da sociedade, para não levar ao desprestígio a magistratura e ao
descrédito a justiça”. AZEVEDO, Philadelpho de. A Dsiciplina das Nulidades no Código de Processo 1453. GUSMÃO, Sady Cardoso. Código de Processo Penal (breves anotações). Rio de Janeiro: Livraria Ja-
Penal. In Julgados do Tribunal de Alçada de São Paulo. v. II. São Paulo: Lex, 1967. p. XIII. cintho, 1942. p. 67.
1450. “No regime misto, adotado pelos países civilizados, o poder inquisitivo do juiz não suprime a contra- 1454. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p. 37.
riedade; conjuga-se com ela, regendo-a, quanto à postulação, mediante as exigências da verdade real, 1455. “Em suma, acham-se as partes, no processo penal, vinculadas por tal forma à verdade real, que ao juiz,
delimitativas do litígio, e, quanto à probação, mediante a complementação das provas incompletas e a e não a elas, é quem incumbe definir, segundo sua convicção, os têrmos da questão, como deveriam
correção das provas viciosas. Acautelam-se, pois, no regime misto, tanto os interêsses da verdade real, postular-se, e os meios de prova, como haveriam de produzir-se. Essa incumbência reflete o poder-de-
com o exercício do poder inquisitivo do juiz, quanto os interêsses da plenitude da defesa, com a rigorosa ver inquisitivo de o juiz decidir: a) segundo as alegações das partes, apenas e tão só quando o que elas
aplicação prática das regras do contraditório”.ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. O Princípio da postulam se revela conforme a verdade real, ou quando pôsto por êle de conformidade com a verdade
Verdade Real. In Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p.118. real; b) e com fundamento nas provas produzidas pelas partes, apenas e tão só quando conformes às
1451. FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. v. I. Rio de Janeiro: Record, 1960. p. 108. exigências de demonstração dessa mesma verdade real, ou quando postas por êle de conformidade com
1452. “Desde que que se atribua ao processo penal a descoberta da verdade material e se admita liberdade de tais exigências. A doutrina dá o nome de princípio da verdade real à regra em razão da qual o juiz vela
convicção do juiz, seria um ilogismo que êste ficasse adstrito a critérios prefixos na admissibilidade de pela conformidade da postulação das partes com a verdade real, a êle revelada pelos resultados da ins-
modos ou instrumentos de prova. A enumeração legal é apenas exemplificativa”. QUEIROZ, Narcelio trução criminal”. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. O Princípio da Verdade Real. In Revista da
de. O Novo Código de Processo Penal. In Revista Forense. v. XCIII. n. 475, 1943. Faculdade de Direito de São Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p. 121.
420 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 421

organizador do código e largamente compartilhado pela doutrina processual em um nível não declarado, transforma o processo penal brasileiro em uma
penal brasileira, não se pode imputar a sua “criação” ou a sua “invenção” espécie sui generis de sistema misto. A funcionalidade do inquérito policial
ao pensamento do tecnicismo jurídico brasileiro do século XX. De acordo não pode ser medida ou sopesada a partir de suas funções declaradas, mas
com ALMEIDA, a noção de verdade real consiste em uma tradição jurídica evidentemente, através de suas funções reais. O inquérito policial – não se
brasileira1456. Desta maneira, é possível afirmar-se que a doutrina processual pode desprezar tal circunstância – é mantido, seguindo orientação que vinha
penal brasileira acabou por recepcionar o referido princípio, inserindo-o em desde o período imperial, como um instituto que trazia consigo a finalida-
um profundo estado de amoldagem e primazia relativamente a possíveis cons- de de asseguração e produção probatórias, por mais que tais funções não
truções ou concepções alternativas de processo penal. A verdade real aparece fossem unanimemente acolhidas pela doutrina processual penal brasileira.
em diversos dispositivos do código de processo penal brasileiro, como no art. Não há dúvidas de que provas podem emergir e ser produzidas nesta fase
1841457, no art. 187, II1458; no art. 2031459; no art. 2111460; art. 2171461; no (em caráter excepcional). Neste sentido, exemplificativamente, pode-se citar
art. 497, XI1462; art. 5661463, etc. Produto de um liberalismo conservador, a o pensamento de MAGALHÃES NORONHA, para quem o inquérito po-
verdade real foi recepcionada pelo código de processo penal brasileiro, confi- licial possuiria valor probatório, já que “o inquérito contém peças de valor
gurando o elemento metafísico que justifica a estrutura processual e funciona probatório, quando regularmente realizadas, tais quais o auto de prisão em
como uma espécie de salvo-conduto para que as mais diversas decisões, muitas flagrante, os exames de corpo de delito, etc”1464.
delas estranhas às regras legais, sejam “fundamentadas”. A mantença do inquérito policial não constituía uma disciplina que
A seguir será examinada outra estrutura relevante à funcionalidade do servia para homenagear a tradição processual penal brasileira. As suas funções
código de processo penal de 1941: trata-se do que se pode denominar como reais permitiam a formação do convencimento judicial nestes elementos co-
contraditório deformado. lhidos em uma fase preparatória à ação penal, distante, portanto, dos olhos da
autoridade judiciária e dos sujeitos processuais. Assim sendo, evidentemente
3.3.6. O CONTRADITÓRIO DEFORMADO que ausente o contraditório.
Como já antevisto, o inquérito policial constitui a viga mestra que Mas o grande destaque que merece ser realçado neste tópico é que a
sistemática garantiria um contraditório judicial “deformado” ou “degene-
1456. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. O Princípio da Verdade Real. In Revista da Faculdade de
Direito de São Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p. 133. rado”. Isto pelo fato de que dentre as funções latentes ou reais do inquérito
1457. Art. 184.  Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policial negará a perícia policial, está aquela de subverter qualquer estrutura contraditória, marcada
requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.
1458. Art. 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos pelas características da adversarialidade. O ingresso do inquérito policial na
(...)I – não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a
pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes fase judicial, autoriza duas consequências, ambas problemáticas desde uma
da prática da infração ou depois dela;      
1459. Art. 203.  A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe
concepção acusatória de processo: a) em primeiro lugar, como corolário in-
for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar defectível da livre convicção, ao magistrado era facultado julgar tomando-se
onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com
qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias por base os elementos do inquérito policial. Disso não cabem muitas dúvi-
pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.
1460. Art. 211.  Se o juiz, ao pronunciar sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez afirmação das, à medida que tal malabarismo semântico permitiu, inclusive, que nas
falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à autoridade policial para a instauração
de inquérito. reformas de 2008, tal circunstância fosse justificada e legalizada, sob a apa-
1461. Art. 217.  Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério cons- rência de uma “evolução” no sentido de proteção das garantias do acusado.
trangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a
inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do O famoso “cotejo” do inquérito policial com os autos processuais permite,
réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor
1462. Art. 497.  São atribuições do juiz presidente do Tribunal do Júri, além de outras expressamente referidas assim, uma condenação baseada no inquérito e que pode ser devidamente
neste Código: (...)XI – determinar, de ofício ou a requerimento das partes ou de qualquer jurado, as “maquiada” através da adoção, na fundamentação, de trechos, recortes ou
diligências destinadas a sanar nulidade ou a suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade.
1463. Art. 566.  Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da
verdade substancial ou na decisão da causa. 1464. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 29.
422 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 423

quaisquer técnicas de bricolagem na decisão. Conquanto a decisão não tentativa de contraditório quando a oralidade é limitada desde o exterior,
esteja exclusivamente amparada na investigação preliminar, a livre convic- através de narrativas prestadas em outras sedes equivale a uma defraudação da
ção autoriza que o processo de formação do convencimento esteja apoiado imediatidade intrínseca ao contraditório. O inquérito, portanto, neste ponto,
substancialmente naquele dispositivo. Segue MAGALHÃES NORONHA funciona como um “contrator da verdade”, presumidamente encontrada na
afirmando, a respeito dos elementos informativos do inquérito, que “êles fase preliminar, à espera de uma formal ratificação em juízo.
concorrem para o conjunto probatório sôbre o qual se firmará a livre con- O fato de a doutrina processual penal tratar o contraditório como um
vicção do juiz. Se um ladrão habitual confessa haver cometido furto, se o “princípio” contribui decisivamente para que as suas funções declaradas se
objeto dêste é encontrado em sua casa e se uma pessoa viu o transporte para esgotem num universo retórico e simbólico. O contraditório não é príncípio,
esta, como se negar valor à sua confissão policial, somente porque em Juízo mas “técnica de coleta probatória”. Portanto, a oralidade consiste em seu
êle negou a prática do crime, sem, contudo, explicar o transporte e a posse núcleo fundamental. Os depoimentos contidos na fase policial servem como
do objeto?”1465 O argumento que dará uma feição aparentemente jurídica elementos para ditar limitações à oralidade e à imediatidade da prova. Sendo
à decisão baseada no inquérito policial decorrerá de um efeito conexo ao o contraditório um método, tal método é falho quando elementos escritos
princípio da livre convicção. Se este sistema autoriza que o juiz não mais servem para transformar oralidade e imediatidade em testemunhos ratifica-
obedeça a um padrão rígido e pré-determinado de provas, ditadas a partir de tórios, o que consiste na transformação da fase judicial em uma pantomima,
um conjunto de regras, o livre convencimento também modificará o regime em uma teatralização dos elementos previamente recolhidos ou, como afirma
das provas. E, assim sendo, todas as provas passam a ter um peso relativo. CORDERO, em um campeonato de oratória.
Ilustrativo, neste ponto, são as palavras de MAGALHÃES NORONHA,
Desde o cenário de um contraditório deformado ainda concorre outra
acerca da confissão extrajudicial. Para o autor, ela (a confissão) valerá desde
sistemática pertencente à codificação de 1941. Quando se atribui valor proba-
que em confronto com as demais provas do processo, já que “nenhuma
tório ao inquérito policial, naturalmente se procede a uma “inversão do ônus
prova valerá por si”1466. É justamente neste cruzamento entre verdade real,
da prova”, em termos muito similares àqueles defendidos por MANZINI na
livre convicção e liberdade das provas que o inquérito policial, com efeito,
Itália. Desta maneira, cabendo ao inquérito policial a função não declarada de
“produzirá provas”, escapando de sua finalidade jurídica declarada (a de
produzir prova, o que era garantido pelo conjunto de disposições elencadas no
servir como mero elemento para a formação da opinio delicti)
código de processo penal de 1941, que passaremos ao exame da característica
Contudo, resta ainda a segunda consequência referida como negati- que mais flagrantemente denota um regime autoritário de processo penal: a
va: b) a introdução do inquérito policial no núcleo processual enfraquecerá expulsão da presunção de inocência.
ou mesmo inviabilizará o exercício do contraditório. E isto por uma razão
deveras elementar, compartilhada pelo espírito autoritário de MANZINI: 3.3.7. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA OU DE CULPABILIDADE?
quando se admite que os depoimentos em juízo sejam confrontados com O TECNICISMO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO E A
aqueles prestados perante a polícia, a leitura de trechos dos depoimentos, INSPIRAÇÃO AUTORITÁRIA DE BASE FASCISTA
serve para “refrescar a memória” do depoente, o que significa: reordenar a
Talvez a característica mais importante trazida pelo código de processo
narrativa, a fim de que ela volte para a história já documentada desde a fase
penal brasileiro de 1941 tenha sido a aversão à presunção de inocência. No
policial; ou ainda, constranger a testemunha a fim de que ela apenas ratifi-
processo codificatório, a exemplo do que ocorrera na Itália, a presunção de
que os elementos integrados à investigação preliminar. Portanto, qualquer
inocência foi combatida veementemente pelos positivistas. O tecnicismo ita-
liano, portanto, aproveitou-se da fragilização do preceito e o fulminou através
1465. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p.
29-30. HUNGRIA, Nelson. A Liberdade dos Meios de Prova. In Arquivos do Ministério da Justiça e de dois ataques: o primeiro deles, derivado do próprio processo legislativo,
Negócios Interiores. n. 63. a. XV, 1957. p. 15.
1466. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 146. que acabara por lhe desterrar. O segundo, ainda mais impactante, foi obra dos
424 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 425

juristas. O ataque à presunção de inocência transcorreu em dois segmentos: o Nas palavras de BARROS, exemplificativamente, “a absolvição, nesta hi-
primeiro deles, a crítica tecnicista, que desde um discurso esotérico, promoveu pótese, não resulta de um preceito jurídico, senão de um preceito lógico,
uma espécie de incompatibilidade lógica entre a presunção de inocência e o metaprocessual, que há de colocar-se em jôgo com o princípio de política
processo penal. O segundo núcleo dos ataques se deu desde a política crimi- criminal in dubio pro reu”1467. Eis a primeira linha de simetria com as críticas
nal, por se tratar a presunção de inocência de um princípio cultivado pelos do tecnicismo italiano, que vislumbrava a presunção de inocência como
anacrônicos liberais como CARRARA e LUCCHINI. um injustificado anacronismo metafísico. Mas não era só. A presunção
Não há dúvidas de que o processo de fragilização da presunção de de inocência vinha atacada a partir de uma “teoria das presunções”, de
inocência transcorreu de forma muito similar no Brasil. Contudo, já não modo que uma torção semântica em sentido autoritário estava prestes a se
haveria aqui uma “escola clássica” a batalhar pelos ideais liberais. O código consolidar. De forma muito similar a MANZINI, TOURINHO FILHO
de processo penal brasileiro de 1941 não consagra nenhum dispositivo ju- afirmará que “a expressão presunção de inocência não deve ter o seu conteú-
rídico à presunção de inocência. Nem, tampouco, ao in dubio pro reo. Na do semântico interpretado literalmente – caso contrário ninguém poderia
Exposição de Motivos, tampouco o ministro Francisco CAMPOS falará, ser processado”1468. Neste ponto, é absolutamente idêntico o pensamento
expressamente, em presunção de inocência. Neste texto, aparece por duas entre os autores, que convergem no sentido de que a presunção de inocência
vezes a expressão in dubio pro reo. Na primeira delas, no item “A Reforma é qualquer coisa, menos uma regra jurídica, semanticamente delimitada.
do Processo Penal Vigente”, CAMPOS lhe dedica a seguinte oração: “é res- O tecnicismo processual penal brasileiro também se ocupará da pre-
tringida a aplicação do in dubio pro reo”, compreendida como um excesso sunção de inocência, amoldando-a ao contexto jurídico no qual estavam
de “pseudodireitos” que a tradição brasileira consagrava e que necessitava de muito presentes as orientações da escola histórica tedesca e do juspublicis-
remodelação diante do Estado Novo. Na segunda vez que a expressão surge, mo reacionário italiano que manteve firme as estruturas estatais, deixando-as
Francisco CAMPOS a utiliza na tentativa de explicar a figura do juiz no aptas a receberem a virada fascista. Mesmo neste quadrante, a presunção de
novo processo penal brasileiro. O in dubio pro reo também seria relativizado inocência, na esteira do pensamento de TORNAGHI, não era o caminho ade-
a partir dos poderes instrutórios do magistrado: quado para se proteger o acusado. A proteção decorreria da simples imersão
“Por outro lado, o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de do acusado no complexo de direitos e deveres imanentes à noção de relação
provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para jurídica1469. Neste sentido, a simples existência de institutos processuais – há
dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de novamente convergência com o tecnicismo de cariz manziniano – acarretaria
ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a a incompatibilidade do sistema do código com a presunção de inocência. Nas
indagação desta, não estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averigua-
da a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não palavras de TORNAGHI, “admitida a presunção de inocência, ficariam sem
explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet” explicação e seriam até incoerentes as providências coercitivas, quer contra a
pessoa do réu (busca pessoal, prisão), quer contra as coisas a êle pertencentes
Do ponto de vista doutrinário, a presunção de inocência era tratada
(sequestro, arresto, apreensão, etc)”1470. Como se vê, a presunção de inocência
pelo tecnicismo jurídico brasileiro como inadequada. Desde o aspecto da
é afastada como uma consequência do código, mesmo que se pudesse intuir,
crítica orientada por um padrão “técnico”, a presunção de inocência resta-
va interpretada na mesma lógica do pensamento de MANZINI, invocado
1467. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro v. II. São Paulo: Sugestões
inúmeras vezes para emprestar suporte de autoridade às conclusões dos Literárias, 1971. p. 695.
juristas brasileiros. Assim como os positivistas cultivaram uma crítica ao li- 1468. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p. 62.
1469. “Para resguardar o réu contra a prepotência ou o rigor demasiado, o caminho certo não é o de presu-
beralismo clássico que operava com preceitos metafísicos, parte da doutrina mir-se a inocência em todos os casos, sempre, haja o que houver; mas o de considerá-lo sujeito de uma
relação jurídica, com direitos subjetivos que lhe permitam defender-se amplamente e exigir do Estado
brasileira negava o caráter jurídico da presunção de inocência (neste ponto, o devido tratamento”. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. III. Rio de Janeiro: José
Konfino, 1967. p. 1084.
seguindo de perto o tecnicismo italiano, que refinava as críticas positivistas). 1470. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 1084.
426 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 427

como seria de se esperar, que a presunção de inocência fosse uma regra ante- aqui as suas premissas racistas, sectárias e irracionais de seu discurso. Outrossim,
cedente à codificação e própria do processo penal. a formulação de um pensamento anticognitivista no campo processual penal,
Dois elementos eram constantemente invocados na tentativa de de- assim como no caso do tecnicismo de corte manziniano, pressuporá determi-
monstrar a incompatibilidade da presunção de inocência com o processo nados influxos positivísticos, transformados em axiomas.
penal conduzido pela inflexão autoritária do estadonovismo. O primeiro deles Para GUSMÃO, a presunção, no processo penal, é a de culpabilidade.
era a justificação para o afastamento da ampla defesa consistente no “ônus da A presunção de inocência apenas poderia decorrer de uma sentença absolu-
prova do acusado” em invocar as excludentes de ilicitude1471 ou outras causas tória1476. No mesmo sentido será o pensamento de TORNAGHI, para quem
que garantiriam a sua absolvição1472. Portanto, que o acusado arcasse com “portanto, a norma in dubio pro reo não acarreta a presunção de inocência
o ônus de provar determinadas teses invocadas em seu proveito decorreria, durante o processo, mas sómente a partir da sentença absolutória por falta
logicamente, do afastamento da presunção de inocência. de prova suficiente para a condenação”1477. As categorias positivistas esta-
Um segundo elemento era a tentativa de se desconstituir a presunção vam presentes no discurso tecnicista brasileiro, de forma que a presunção de
de inocência a partir da “natureza das coisas”, o que também não deixava de inocência dependeria fundamentalmente do acusado. Assim, teríamos acu-
proporcionar o retorno dos argumentos tecnicistas que na Itália tinham ful- sados que poderiam gozar deste princípio (quando de bons antecedentes) e
minado o princípio. Desta forma, pode-se citar Borges da ROSA, repetindo outros a quem seria vedada a sua aplicação. Para TORNAGHI, inspirado
ipsis literis o pensamento de MANZINI, afirmando que “o indiciado não em Enrico FERRI, seria ingênua a adoção da presunção de inocência para
deve ser presumido inocente nem culpado; ele é o que é”1473. Ou ainda, de acusados presos em flagrante ou ainda, para um homicida que já fora con-
acordo com as lições de TORNAGHI, “a verdade nessa matéria é que só o denado por crime anterior1478. TORNAGHI citará constantemente Enrico
confronto com o que, no passado, normalmente aconteceu pode levar a uma FERRI e Ludovico MORTARA na defesa de sua posição. Enquanto FERRI
presunção, pró ou contra”1474. foi talvez o grande expoente do positivismo italiano, responsável por con-
tribuir para o enfraquecimento do liberalismo na Itália, sendo convocado
Muito embora se pudesse perceber claramente um discurso que procurava
para fazer parte da comissão elaboradora do Código ROCCO, MORTARA
tecnicamente afastar a presunção de inocência do processo penal, a corrente
foi ministro de justiça durante a elaboração do código de processo penal de
vencedora e que mais danos provocou para uma concepção acusatória de pro-
1913, sendo também responsável pelo enfraquecimento do princípio, recor-
cesso foi aquela diante da qual, no processo penal, haveria uma presunção de
rendo a diversos argumentos positivistas. Este positivismo refinado por uma
culpabilidade1475. Aqui penetrará de forma incisiva o legado do positivismo,
construção aparentemente técnica teve em MANZINI o seu expoente. E tais
incapaz de ser escondido mesmo pelo discurso de base os tecnicista, revelando
manifestações de pensamento, em contrário da presunção de inocência, se
acasalarão bem ao contexto político brasileiro. Novamente de acordo com
1471. “Adotada a presunção de inocência do réu não encontraria justificação o ônus que lhe incumbe de pro-
var os fatos excludentes da pena (quer por via subjetiva, como o êrro, a coação; quer por via objetiva, TORNAGHI, “o natural e o razoável é que, em certas circunstâncias, se pre-
como o estado de necessidade, a legítima defesa). O acusador teria de provar tais causas e, até que o
fizesse, o réu seria tido como inocente (por exemplo, poderia dizer-se: o acusado matou, mas bem po- sumam a responsabilidade, o dolo, a negligência, pois presumir é aceitar um
deria tê-lo feito em legítima defesa e, até prova em contrário, permanece a presunção de inocência!)”.
TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 1084. 1476. “De fato, para o processo penal, ou em via formal, a presunção é de culpabilidade, do contrário seriam
1472. “Agora, pelo novo Código, – e eis a importante inovação – o interrogatório deixa de ser simples peça de inadmissíveis as medidas de coerção real ou pessoal; para aplicação da pena, ou em via material, a
defesa e se transforma, também em meio de apuração da responsabilidade criminal, isto é, em meio de presunção é de inocência, porque não poderá haver condenação sem prova. Esta presunção, porém, é
prova. O juiz, além das perguntas do formulário, acima transcritas, deve inquirir os motivos determinan- relativa e somente decorre do pronunciamento final”. GUSMÃO, Sady Cardoso. Código de Processo
tes do crime, das circunstâncias que o rodearam, dos antecedentes do réu e, se éste negar a imputação, Penal (breves anotações). Rio de Janeiro: Livraria Jacintho, 1942. p. 67.
quais as provas da sua inocência”. SALGADO, Cesar. O Regime da Prova no Código de Processo 1477. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 2086.
Penal. In Revista Forense. v. 39. N. 90. Rio de Janeiro: Forense, 1942. p. 345-346.
1478. “Neste sentido é que me parecem verdadeiras as palavras de Ferri, em discurso proferido na Câmara
1473. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos (e que aparecem em nota, um pouco adiante) e segundo as quais a presunção de inocência deve valer
Tribunais, 1982. p. 419. muito para os acusados de bons antecedentes e pouco para os outros, pois ‘seria ingênuo colocar como
1474. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. I. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 1083. fundamento do processo penal a presunção de inocência de um ladrão habitual colhido em flagrante
1475. REBELLO, Heribaldo. Breves Lições de Direito Judiciário Penal. v. 1. Rio de Janeiro: José Konfino, ou de um homicida já condenado por crimes de sangue”. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo
s.d. p. 171. Penal. t. III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 1084.
428 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 429

fato como verdadeiro tendo em conta aquilo que geralmente acontece. Ora, também, como razoável, a presunção de inocência dos já acusados”1481. Porém,
de um acusado useiro e vezeiro em furtar, o mais curial é presumir-se que o ataque mais radical contra a presunção de inocência se manifestará através
furtou”1479. TORNAGHI faz uma longa citação dos debates em torno da obra de Borges da ROSA, que baseado em MANZINI, oferecerá uma visão ple-
de Pompeo PEZZATINI, para afirmar do erro que é conceber-se a presunção namente adequada do processo penal brasileiro e de como não havia espaço
de inocência. Para tanto, “abrindo mão de seu estilo de não dedicar espaço para a presunção de inocência:
à demonstração de teorias equivocadas”, trata de trazer inúmeras citações de “Diz muito bem Manzini que errado e incoerente é o critério segundo o
MANZINI no escopo de demonstrar que a Constituição Italiana de 1947 qual as normas processuais penais são essencialmente destinadas à tutela
não trouxe à tona o princípio da presunção de inocência1480. da inocência. Seria o mesmo que dizer que os diagnósticos médicos são
diretamente direcionados a descobrir a inexistência das doenças. Importa-
Eis aqui um elemento fundamental. TORNAGHI era conhecedor do ria isso em afirmar aquilo que na prática é absolutamente falso e na teoria
contexto político experimentado pela Itália e, para além, fez questão de, a exem- absurdo: que, em regra, sejam destituídas de fundamento e arbitrárias as
plo dos juristas da Revista Archivio Penale, negar qualquer impacto jurídico presunções de culpabilidade que levante, contra os indivíduos indiciados
com o advento de uma nova Constituição. A negação da presunção de inocên- em crime, o Ministério Público. Este, rigorosamente falando, não pode
ser considerado “parte” no processo penal, pois, a sua função, instituída
cia, mesmo com uma Constituição nova e democrática como a italiana após em prol dos interesses sociais, é desinteressada, objetiva e inspirada uni-
o regime fascista, era tratada justamente pelas lentes de uma concepção que camente nos critérios da verdade e da justiça. São ideias falazes e injustas,
enxergava nos juristas profissionais meramente técnicos, que não foram respon- que, mais ou menos conscientemente, provêm daquele modo de pensar,
sáveis pelo regime político da época mussoliniana. E de fato era o tecnicismo segundo o qual o Ministério Público representa a acusação sistemática e
a distinguir entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade, insidiosa, atentando sempre contra os interesses individuais. Este modo
de pensar, que teria razão de ser nos regimes absolutos ou sob o domínio
especialmente pela forma com que fora redigido o princípio na Constituição estrangeiro, no nosso livre Estado constitucional é, não só errôneo, mas
Italiana (o imputado não é considerado culpado até a condenação definitiva). também insensato e maligno. Do que fica dito, resulta a improcedência da
A negação da presunção de inocência pressupunha uma distinção técnica (entre pretendida presunção de inocência que, segundo vários autores, milita, no
presunção de inocência e de não culpabilidade), que escondia a tentativa de se processo penal, em favor do indivíduo imputado”1482.
manter o espírito autoritário que governava as relações entre partes processuais A doutrina “liberal” brasileira (pois vários autores aqui mencionados,
e magistrados no processo penal italiano. não obstante suas claras manifestações iliberais são reputados ou alocados
Portanto, a defesa de uma presunção de culpabilidade, como sucedera como componentes do bloco “democrático” do processo penal brasileiro),
no Brasil, era produto de uma concepção técnica de processo penal, muito alimentou a defesa de um código de processo penal em que a presunção de
embora o tecnicismo brasileiro, como já referido, fosse buscar na matriz inocência fora afastada, oferecendo as razões suficientes para que se pudesse,
italiana a sua fonte constante de inpiração. Neste sentido, de acordo com inclusive, falar-se de uma presunção de culpabilidade. Corretas neste sentido
ALMEIDA, ”tais tópicos do grande mestre italiano (Massari) demonstram as palavras de MORAES, para quem “muito mais do que afirmar que não há
que, não só no Brasil, mas também na Itália, a admissibilidade de qualquer presunção de inocência no código de processo penal, elaborado em 1940 e
acusação criminal não deflui da pretensa presunção de culpabilidade, mas ao ainda hoje vigente, o que se deve ter em mente, devido àquela clara e direta
contrário, gera, do ponto de vista técnico processual, a referida presunção de influência positivista italiana, é que o atual código rejeita em sua estrutura
culpabilidade, exatamente porque, lá e aqui, uma vez que não se admitem toda a dimensão juspolítica da presunção de inocência”1483.
acusações senão por fatos existentes e por autoria indubitável, não se aceita
1481. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. O Princípio da Verdade Real. In Revista da Faculdade de
Direito de São Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p. 136.
1482. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos
1479. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. Tribunais, 1982. p. 24-25.
1480. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 1088 1483. MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência: análise de sua estrutura normativa para a ela-
– 1090. boração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 159. Ainda: “aqueles
430 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 431

Esta “tradição” não se esgotará com a Constituição de 1988, pois como ordem pública, moralidade, dignidade da justiça eram presentificados
sobrevivem doutrinadores e jurisprudência a infirmar a presunção de ino- através da adoção de expedientes que reinstalassem o sigilo. Na base desta es-
cência, a partir do “in dubio pro societate”, equivalente semântico do “in trutura, naturalmente, estava o poder de polícia dos juízes, fonte inesgotável de
dubio pro repubblica” de MAGGIORE. arbítrio. Evidentemente, não temos a pretensão (muito menos o espaço adequa-
A seguir, passa-se ao exame de mais um ponto de contato com o Codice do para tratar deste instituto que não tem recebido o cuidado devido no Brasil).
Rocco: trata-se do tratamento da publicidade dos atos processuais. A seguir, outro ponto relevante da arquitetônica do código de
processo penal brasileiro deve ser tematizado: trata-se da supressão das
3.3.8. A PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS nulidades absolutas.
Questão menor mas que não poderia ser desprezada neste momento
é aquela concernente à publicidade dos atos processuais. No capítulo pre- 3.3.9. A SUPRESSÃO DAS NULIDADES ABSOLUTAS
cedente fizemos uma comparação entre os sistemas brasileiro e o italiano Tanto na codificação italiana de 1930 quanto no código de processo
acerca das excepcionalizações ao princípio de publicidade. A publicidade penal brasileiro, a preocupação da novel legislação era em desformalizar os
era tratada como um princípio suscetível de restrições, considerando-se que procedimentos. Enquanto na Itália ocorreu a supressão completa das nuli-
em determinados casos, a sua manutenção poderia gerar violações à ordem dades absolutas, no Brasil, de forma mais discreta, subordinou-se todas as
e à moralidade públicas1484. nulidades ao regime do prejuízo, o que em outras palavras significará igual-
O que está na base desta construção são os fundamentos que auto- mente a supressão das nulidades absolutas. Na Exposição de Motivos do
rizam o magistrado a decretar a exceção à publicidade. De acordo com Código de Processo Penal, o Ministro Francisco CAMPOS trata de apresentar
MAGALHÃES NORONHA, para garantir-se a dignidade da justiça, o juiz o sistema de nulidades, acentuando a sua estrutura avessa ao formalismo:
terá o poder de polícia, podendo restringir a publicidade ou determinar que “Como já foi dito de início, o projeto é infenso ao excessivo rigorismo formal,
alguém saia da audiência ou sessão1485. É justamente com base no poder de que dá ensejo, atualmente, à infindável série das nulidades processuais. Se-
gundo a justa advertência de ilustre processualista italiano, um bom direito
polícia que aparecem determinados poderes judiciais, abordados no Brasil
processual penal deve limitar as sanções de nulidade àquele estrito mínimo que
de forma absolutamente insuficiente1486, que ampliam indefinidamente os não pode ser abstraído sem lesar legítimos e graves interesses do Estado e dos
mecanismos de amplificação de poder. cidadãos”. O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se
O essencial, neste ponto, até pelo fato de a comparação com o código compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhu-
ma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa. Não será
Rocco já ter sido realizada anteriormente, é demonstrar que a publicidade, declarada a nulidade de nenhum ato processual, quando este não haja influído
devido aos poderes de polícia do juiz, poderia ser relativizada. Fundamentos concretamente na decisão da causa ou na apuração da verdade substancial.
Somente em casos excepcionais é declarada insanável a nulidade. Fora desses
influxos ideológicos que forjaram o atual Código, a despeito das poucas e insuficientes mudanças le- casos, ninguém pode invocar direito à irredutível subsistência da nulidade”.
gais, ainda existem. Tanto que, mesmo após a promulgação da atual Constituição Federal, com regu-
laridade se fundamentam prisões provisórias apenas na gravidade da infração investigada/imputada
ou na presunção de culpa forjada em ideias positivistas do delinquente atávico, conquanto ainda não Num primeiro momento, portanto, o sistema de nulidades passa a ser
“descoberto”. Mesmo no campo legislativo infraconstitucional pós-Constituinte essa deletéria cultura
deixou raízes. Em 1990, ao se editar a denominada Lei dos Crimes Hediondos (Lei. Nº 8.072/90, foi, subordinado à demonstração do prejuízo, viga mestra de todo o sistema de
novamente em âmbito legal, determinado que a gravidade da infração, por si só, determinaria a impos- formas processuais penais. Mas não só isso. Determinados preceitos, tratados
sibilidade de se conceder liberdade provisória para os cautelarmente presos”. Ibidem. p. 164.
1484. “Por exceção a lei admite a publicidade restrita: por motivos extraordinários a lei prevê uma publicidade como “princípios” em matéria de nulidades e que estruturam a chamada
limitada às partes e a portas fechadas ou admitindo determinado número de pessoas que possam estar
presentes. A matéria está regulada pelo art. 792 do Código de Processo Penal e seu § 1º”. AZEVEDO, “instrumentalidade das formas”1487 (conexa diretamente à noção de instru-
Vicente de Paula Vicente. de. Direito Judiciário Penal. Direito Judiciário Penal. In Revista Justitia.
Disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revistas/yz64w2.pdf. Acesso em 23.01.2017. p. 157. 1487. De acordo com BEDAQUE, a instrumentalidade das formas estará indissociavelmente ligada à obten-
1485. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 667. ção da paz social, um dos escopos da jurisdição (conceito no próximo capítulo analisado): “A noção
1486. Para uma análise do dispositivo policial recomendamos a obra de CAMPESI, Giuseppe. Genealogia della de ‘instrumentalidade das formas’ como mecanismo destinado a conferir validade a atos processuais
Pubblica Sicurezza: teoria e storia del moderno dispositivo poliziesco. Verona: Ombre Corte, 2009. viciados – o que implica valorizar o fim em detrimento da tipificação legal – pode ser comparada à
432 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 433

mentalidade do processo) também foram articulados pelo código de processo socorrendo-se do famoso pensamento de MANZINI de que o processo não
penal de 19411488. O sistema é claramente inspirado no código de processo é um mero exercício acadêmico e de que as formalidades processuais não são
italiano de 1930. Inclusive, Francisco CAMPOS homenageia – embora não um fim em si mesmas1493. Na mesma esteira se pode tratar o pensamento de
mencionando o nome – Vincenzo MANZINI. Segundo ABREU, o “princí- Roberto LYRA, que afirma:“nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo.
pio informativo” que acompanhava o processo de tratamento das nulidades Não será declarada a nulidade de nenhum ato processual, quando êste não
era o da “economia do juízo”, cuja finalidade era “aliviar o processo dos haja influído concretamente da decisão da causa ou na apuração da verdade
excessos do formalismo e, em consequência, reduzir ao mínimo as nulidades substancial”1494. Portanto, apenas para não deixar passar em branco esta im-
processuais”1489. E, no entendimento da comissão, sabia-se muito claramente portante característica do autoritarismo processual penal (relativização das
da repercussão da alteração, uma vez que, consoante ABREU, “depois da nulidades e supressão de nulidades absolutas), pode-se afirmar que a doutrina
prova é a matéria de nulidade a mais importante do processo”1490. se manifestava em favor do regime político da forma processual, justificando
O sistema de subordinar toda e qualquer declaração de nulidade (ab- um sistema de máximo aproveitamento dos atos processuais e de diminuta
soluta ou relativa) à demonstração de prejuízo foi a maneira mais sutil de importância concedida à forma processual. Este modelo era flagrantemente
se tentar abolir as nulidades no processo penal brasileiro1491. Apenas para a conhecido do Brasil, tanto em nível doutrinário quanto legislativo, o que
finalidade imediata deste trabalho, que é demonstrar a presença de justifica- acentua ainda mais a responsabilidade do tecnicismo jurídico na configuração
tivas doutrinárias que marcam os institutos processuais penais, destacamos de bases teóricas, legislativas e jurisprudenciais que impulsionaram os princí-
o pensamento de MAGALHÃES NORONHA: “não existe nulidade, desde pios políticos do Estado Novo. E isto com custos percebidos até mesmo após
que da preterição legal não haja resultado prejuízo para uma das partes” a transição democrática, com a manutenção deste antiformalismo declarado.
(...) Não é êle, em regra, presumível: demonstra-se”1492. Este autor inclusive A seguir passamos ao exame do instituto da emendatio libelli e da cons-
defenderá o regime das nulidades no código de processo penal brasileiro, tituição de um processo penal que autorizará o magistrado a reposicionar os
limites da acusação, isto é, que permitirá um julgamento capaz de reconfi-
interessante ideia filosófica da permuta civilizatória, segundo a qual o progresso e os ganhos objetivos
decorrentes do bem-estar podem representar perda subjetiva da felicidade, mas constituem opção da gurar o objeto do processo penal, com o sacrifício da ideia de correlação ou
sociedade. Também em direito processual, entre dois valores – forma do ato processual e objetivo a ser
alcançado -, adota-se este último sem qualquer hesitação”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efeti- congruência entre acusação e sentença.
vidade do Processo e Técnica Processual. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 59. Ainda: se tivermos
de optar entre esses dois valores (forma x resultado), sem sombra de dúvidas devemos preferir o último,
pois ele incorpora a natureza instrumental do processo. Ibidem. p. 60. A eleição do valor, portanto, é
política: escolhe-se aquele que representa uma concepção processual. Apenas isso. 3.3.10. A EMENDATIO LIBELLI E O JULGAMENTO “ULTRA
1488. “Sempre que o juiz deparar com uma causa de nulidade, deve prover imediatamente à sua eliminação, PETITA” NO PANORAMA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
renovando ou retificando o ato irregular, se possível; mas, ainda que o não faça, a nulidade considerase
sanada: a) pelo silêncio das partes; b) pela efetiva consecução do escopo visado pelo ato não obstante
sua irregularidade; c) pela aceitação, ainda que tácita, dos efeitos do ato irregular. Se a parte interessada Da mesma forma que o código de processo penal italiano de 1930, a
não argui a irregularidade ou com esta implicitamente se conforma, aceitandolhe os efeitos, nada mais codificação processual penal de 1941 recepcionou a figura da emendatio libelli,
natural que se entenda haver renunciado ao direito de arguila. Se toda formalidade processual visa um
determinado fim, e este fim é alcançado, apesar de sua irregularidade, evidentemente carece esta de o que garantiria um julgamento não adstrito aos termos da imputação. Sendo
importância. Decidir de outro modo será incidir no despropósito de considerarse a formalidade um
fim em si mesma. É igualmente firmado o princípio de que não pode arguir a nulidade quem lhe tenha o objeto do processo penal a imputação, a sua alteração, em consonância com
dado causa ou não tenha interesse na sua declaração. Não se compreende que alguém provoque a irre-
gularidade e seja admitido em seguida, a especular com ela; nem tampouco que, no silêncio da parte a interpretação jurídica diversa protagonizada pelo magistrado, permitiria a
prejudicada, se permita à outra parte investirse no direito de pleitear a nulidade”. CAMPOS, Francisco.
Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, 1940. alteração do “fato processual”1495. Em última instância, a emendatio libelli
1489. SILVA, Florêncio de Abreu e. Princípios Informativos do Código de Processo Penal. In Revista Forense. servia aos propósitos de autorizar o magistrado a decidir para além dos confins
a. XL. V. XCVI. Rio de Janeiro, 1943. p. 16.
1490. SILVA, Florêncio de Abreu e. Princípios Informativos do Código de Processo Penal. In Revista Forense.
a. XL. V. XCVI. Rio de Janeiro, 1943. p. 16.
1491. Este tema foi examinado de maneira muito mais vertical em outro estudo, de forma que recomendamos 1493. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 446.
ao leitor a consulta à este trabalho, já realizado, de análise da legislação processual penal brasileira e do 1494. LYRA, Roberto. Introdução ao Estudo do Direito Penal Adjetivo. In Revista do Ministério Público do
necessário confronto com as garantias constitucionais. Cf GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades Estado do Rio de Janeiro. v. 1. n. 1, 1995. p. 1546.
no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 1495. Esta categoria é utilizada com muita propriedade por BADARÓ, Gustavo. Correlação Entre Acusação
1492. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 445. e Sentença. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
434 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 435

delimitados pelo âmbito da imputação, podendo, portanto o magistrado, classificou erradamente; ou o fato apurado ocorreu em circunstâncias diversas
redefinir ou reclassificar juridicamente a acusação. A emendatio libelli restou não contidas explícita ou implicitamente na peça inicial do processo, e estas
deslocam a classificação. E os dois casos são assim resolvidos: no primeiro, é
consagrada nos termos do art. 383 do CPP, sendo o produto de dois impulsos conferida ao juiz a faculdade de alterar a classificação, ainda que para aplicar
que lhe ofereciam fundamentos. O primeiro deles é a (tardia) persistência de pena mais grave; no segundo, se a circunstância apurada não estava contida,
categorias da velha escola histórica germânica, cujo efeito, ao final, foi o de explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa, mas não acarreta a nova
transportar as bases do direito privado ao direito público, o que veio a ocorrer classificação pena mais grave, deverá o juiz conceder ao acusado o prazo de
8 (oito) dias para alegação e provas, e se importa classificação que acarrete
através de uma plataforma liberal conservadora e reacionária no caso italiano.
pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público
Portanto, de um lado, a expressão juris novit curia1496 abrigava este conjunto adite a denúncia ou a queixa e, em seguida, marcará novos prazos sucessivos
principiológico que, desde o romanismo, projetava as suas interferências no à defesa, para alegações e prova. Vêse que o projeto, ao dirimir a questão,
plano do direito público e, logicamente, naquele do processo civil e conse- atendeu à necessidade de assegurar à defesa e, ao mesmo tempo, impedir que
quentemente, do processo penal. Ao lado deste “fundamento” aparecia a se repudie um processo realizado com todas as formalidades legais”.
justificativa baseada no velho brocardo romanístico, narra mihi factum dabo Como se pode visualizar no discurso de Francisco CAMPOS, o regime
tibi jus”1497, que vigoraria no processo penal. Culturalmente, assim, havia uma da emendatio libelli estaria em sintonia com: a) a superação de um instituto do
forte influência da teoria geral do direito tedesca e italiana a emprestar signi- direito privado; b) o interesse da defesa social; c) a inexistência de um direito
ficados à transfusão conceitual do regime civilístico à plataforma processual a uma pena determinada; d) o prejuízo ao bem social.
penal. Contudo, será na Exposição de Motivos do código de processo penal No primeiro caso, Francisco CAMPOS propõe a superação de um pro-
de 1941 onde mais facilmente os aspectos autoritários emergirão. O discurso blema próprio do direito privado com a importação de um mecanismo cuja
agora opera no plano político e as razões da adoção deste dispositivo se en- base também é privada, como acima demonstrado. Neste ponto evidenciam-se
contram na tentativa de se evitar os excessos individualistas do liberalismo: claramente os defeitos retóricos do autoritarismo processual penal brasileiro,
“O projeto, generalizando um princípio já consagrado pela atual Lei do Júri, em cuja base se identifica cristalinamente que as premissas orientadoras eram
repudia a proibição de sentença condenatória ultra petitum ou a desclassifica- com toda a clareza, políticas e não jurídicas. No segundo ponto, o dispositivo
ção in pejus do crime imputado. Constituía um dos exageros do liberalismo processual penal era pensado como um mecanismo de defesa social, na estei-
o transplante dessa proibição, que é própria do direito privado, para a esfera ra do defensivismo italiano. O processo penal, portanto, era pensado como
de direito processual penal, que é um ramo do direito público. O interesse
da defesa social não pode ser superado pelo unilateralíssimo interesse pessoal um dispositivo capaz de garantir a sociedade contra a prática de crimes, algo
dos criminosos. Não se pode reconhecer ao réu, em prejuízo do bem social, que por decerto não se alterou com o advento da Constituição de 1988 (ao
estranho direito adquirido a um quantum de pena injustificadamente dimi- menosno nível das práticas punitivas). Contudo, a sua justificativa, não do
nuta, só porque o Ministério Público, ainda que por equívoco, não tenha ponto de vista técnico, mas sim desde a orientação política e criminológica do
pleiteado maior pena. Em razão do antigo sistema, ocorria, frequentemen-
te, a seguinte inconveniência: não podendo retificar a classificação feita na
código representa muito. A orientação política de se garantir o máximo êxito
denúncia, para impor ao réu sanção mais grave, o juiz era obrigado a julgar na condenação dos criminosos assume contornos essenciais deste dispositivo.
nulo o processo ou improcedente a ação penal, conforme o caso, devendo o O terceiro elemento encontrado na justificativa de CAMPOS é a ausência
Ministério Público apresentar nova denúncia, se é que já não estivesse extinta de um direito do criminoso – tratado como “unilateralíssimo” – a uma pena
a punibilidade pela prescrição. Se o réu estava preso, era posto em liberda-
determinada, a um quantum estabelecido de pena, que aparece de modo a
de, e o êxito do segundo processo tornavase, as mais das vezes, impossível,
dado o intercorrente desaparecimento dos elementos de prova. Inteiramente sufragar o instituto da emendatio. Portanto, o juiz não poderia estar limitado
diversa é a solução dada pelo projeto, que distingue duas hipóteses: o fato à imputação oferecida pelo Ministério Público, devendo ser “livre” também
apurado no sumário é idêntico ao descrito na denúncia ou queixa, mas esta o para qualificar o fato jurídico, mesmo que com isso aplique pena maior. Por
fim, na Exposição de Motivos aparece também a menção de que o interesse
1496. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 4. Sâo Paulo: Saraiva, 2008. p. 267.
1497. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 4. Sâo Paulo: Saraiva, 2008. p. 267. maior, o “bem social” seria contraposto àquele “individual” do acusado. E isto
436 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 437

significa dizer que enquanto o interesse condenatório é público, o interesse culpabilidade permitiu o tratamento deste instituto, em sua maioria despreza-
defensivo é exclusivamente privado, o que legitima, em diversos institutos do doutrinariamente, considerando as iniciativas instrutórias do magistrado.
processuais, a supremacia do interesse público sobre o privado. O ônus da prova consistia em mais uma das transposições herdadas
O caráter “privado” que eventual proibição à emendatio libelli apresen- pelo liberalismo conservador brasileiro, tendo por sustentáculo premissas
taria é também compartilhado pela doutrina, como no caso de REBELLO, oriundas da escola histórica transpostas ao juspublicismo. A perspectiva ci-
que afirma: “importante inovação encontramos, ainda, no que respeita ao vilista, mas com roupagens publicistas, implicava na assunção de que à cada
abandono da proibição da sentença condenatória ultra petita ou da desclassi- uma das partes competiria a prova de certos elementos. Assim como no
ficação in pejus, própria do direito privado”1498. Em termos mais específicos, caso do direito e do processo civil competiria ao réu provar os elementos
a adoção da emendatio libelli equivale a um julgamento que rompe com os extintivos ou modificativos do direito do autor, no processo penal, pensado a
limites dados pela acusação. Desta maneira, se poderia afirmar que o princípio partir desta mesma estrutura e desta ordem de ideias, as causas excludentes da
de correlação entre acusação e sentença seria um dispositivo exclusivamente antijuridicidade e da culpabilidade seriam simétricas àquelas causas (modifi-
privado, carente de significação no processo penal. Segundo Borges da ROSA, cativas e extintivas) do processo civil, que em síntese autorizariam a formação
“não é consagrada a irrestrita proibição do julgamento ultra-petitum”1499. de um sistema distributivo de ônus. Tais ideias já apareciam na transição do
A autonomia e o espaço de liberdade concedidos ao magistrado na con- século XIX para o XX no pensamento processual penal brasileiro, consoante
fecção do código de processo penal brasileiro orientam-se na mesma linha da se pode constatar em Galdino SIQUEIRA: “a acusação cabe o onus da prova,
concepção publicística de processo, segundo a qual o juiz assumiria múltiplas porque a lei presume a innocencia e a boa fé nas acções humanas”1500. Mais
funções no desenvolver do procedimento, não podendo contentar-se com as adiante continua o autor: “si, entretanto, o réo, em defesa, allegar factos a seu
atividades produzidas unicamente pelas partes processuais. A adoção deste favor, fica-lhe competido o onus da prova”1501. No mesmo sentido é a posição
princípio equivale, naturalmente, à rejeição de um princípio de correlação de MAGALHÃES NORONHA, que afirma, ao se referir ao acusado:“êste
entre acusação e sentença. Se o juiz pode alterar a qualificação normativa de também tem a seu cargo o onus probandi. Com efeito, se êle invoca uma
um fato, com efeito, já não se encontra limitado pelos termos da imputação, excludente da antijuridicidade (legítima defesa p. ex. ou da culpabilidade
passando a julgar fora dos limites trazidos pela acusação. (v.g êrro de fato), incumbe-lhe prová-la. Não apenas isso: a êle cabe ainda
o ônus se alega não estar provada a existência do fato”1502. Portanto, fica
A seguir passaremos à análise de outra questão deveras importante na
claro que este período de transição entre o século XIX e o XX no Brasil, é
construção do diploma processual de 1941: o ônus da prova no processo penal.
marcadamente influenciado pela ambição de se construir uma teoria geral
3.3.11. O ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO do direito, fenômeno que consistiria na transposição para o direito público
A última característica a ser examinada neste momento será o ônus da das principais categorias do direito privado, porém ativadas a partir da torsão
prova. Evidentemente, o ônus da prova no processo penal está intimamente autoritária que marcaria a “conceção publicística de processo”.
associado à presunção de inocência, a ponto de se poder falar que, no processo Esta orientação juspublicística, como já foi referenciado neste capítulo,
penal, não seria aplicável ao processo penal tal categoria. haveria de penetrar na codificação de 1941, a ponto não apenas de ser recep-
Mas como visto quando do exame da presunção de inocência, a ausência cionada. A exclusão da presunção de inocência e inclusive, a sua inversão,
de qualquer espécie de menção à este instituto no corpo do código de processo gerando a presunção de culpabilidade ficam evidenciadas quando se analisa o
penal, bem como a manifestação doutrinária em prol de uma presunção de
1500. SIQUEIRA, Galdino. Curso de Processo Criminal. 2ed. São Paulo: Livraria e Officinas Magalhães,
1498. REBELLO, Heribaldo. Breves Lições de Direito Judiciário Penal. v. 1. Rio de Janeiro: José Konfino, 1917. p. 457.
s.d. p. 18. 1501. SIQUEIRA, Galdino. Curso de Processo Criminal. 2ed. São Paulo: Livraria e Officinas Magalhães,
1499. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos 1917. p.458.
Tribunais, 1982. p. 34. 1502. . NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 119.
438 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 439

discurso em torno do ônus da prova. Relativamente à esta temática, pode-se ROSA afirmará que a regra do ônus da prova passa a ter uma importância
tranquilamente afirmar a sua sobrevivência não apenas no seio da legislação menor, reduzida. Tudo devido aos elásticos poderes de ofício do magistrado:
brasileira, mas também, efetivamente, no cerne da doutrina. A distribuição “agora, com o dito Código, inspirado na tradição juspublicística do processo
do ônus da prova, no processo penal, conecta-se diretamente à tradição liberal e, portanto, em que cabe ao juiz a direção da causa e o poder de ordenar,
conservadora brasileira, ganhando um novo ingrediante na codificação de ex officio, as diligências que entender necessárias à instrução do processo,
1941. Tomemos como exemplo o pensamento de TOURINHO FILHO: colhendo as provas onde elas devem ser encontradas, já não é tão grande
“se, por acaso, a defesa arguir em seu prol uma causa excludente de ilicitude, e decisiva a mencionada matéria”1507. Na mesma linha serão as palavras de
é claro que, nessa hipótese, as posições se invertem, tendo inteira aplicação BARROS, cujas palavras indicam claramente o problema enfrentado pelos
a máxima actori incumbit probatio et reus in excipiendo fit actor”...Diga-se juristas com a construção daquela regra:
o mesmo se a defesa alegar a extinção de punibilidade”1503. Como é fácil “Embora determine a lei que a parte prove suas alegações (art. 156, do Cód.
perceber, existe uma continuidade entre o liberalismo processual penal da de Proc. Penal), faz ela expressamente referência ao poder inquisitivo do
transição do século XIX ao XX que não será erradicado pelo tecnicismo jurídi- juiz, no que tange à pesquisa da verdade, permitindo-lhe tôdas as diligên-
co processual penal da década de 40. Antes, servirá ao modelo projetado, pois cias necessárias para dirimir dúvidas sôbre ponto relevante, predominando
como princípio fundamental aquêle da verdade objetiva ou material. Ora, a
auxiliará no processo de defenestração da presunção de inocência, pois caberá descoberta do fato como realmente aconteceu, impõe indagação mais ampla,
ao acusado a prova do alegado em sua defesa, de acordo com a dicção do art. incomportável no âmbito estreito da vontade das partes, atuando no processo
156, em essência ainda vigente: “A prova da alegação incumbirá a quem a penal um interêsse eminente e diretamente publicístico. Tal indagação ficaria
fizer (...)”. De acordo com MAGALHÃES NORONHA, “a prova da alegação mutilada e seria insuficiente se ficasse entregue apenas às partes. Devido à
relevância dos interêsses discutidos no processo, é imprescindível que o juiz
incumbe a quem a fizer, é o princípio dominante em nosso código”1504. Em
possa suprir a inércia das partes e combater a astúcia delas. Incompatível se
síntese, a codificação processual penal de 1941 abraça os princípios “liberais” torna a entrega do ônus da prova às partes num sistema processual onde o
herdados da escola histórica e os insere na estrutura do procedimento, dialo- juiz é investido da faculdade instrutória supletiva e autônoma. Embora possa
gando com inúmeros dispositivos aqui analisados. a parte introduzir um meio de prova no processo, indicar um fato, requerer
a juntada de um documento, arrolar testemunhas etc., tais meios de prova
Entretanto, este processo de recepção da regra que regula a distribui- ou elementos apresentados e apontados, desde que recebidos e avaliados no
ção do ônus da prova não esgotará o assunto. Isto pelo fato de que o ônus da processo se desvinculam de quem os produziu. Portanto, não se pode falar,
prova sofrerá um processo de ressignificação em dois tempos. No primeiro precisamente, num ônus da prova para as partes e seria mais adequado dizer-
deles, será preciso inserir esta categoria na concepção publicística e social de -se que elas exercem uma faculdade quando as produzem 1508.
processo penal, que organizava semanticamente as fundações e as funções Portanto, as funções não apenas diretivas, mas interventoras do juiz no
a serem cumpridas pelo processo penal. Os largos poderes concedidos ao campo probatório tornariam obsoletas as regras acerca da distribuição do ônus
juiz, que teria o dever de pesquisar a verdade antes de aplicar o standard do da prova? A resposta à esta pergunta deve ser negativa. O segundo momento
in dubio pro reo era o primeiro dos desafios1505. Desta maneira, com acerto no qual o ônus da prova era lembrado estava diretamente relacionado com a
ESPÍNOLA FILHO afirmará que a iniciativa do juiz enfraquece a regra presunção de culpabilidade existente no discurso processual penal tecnicista.
do ônus da prova1506. De uma forma ainda mais contundente, Borges da Será neste plano que serão retomados os argumentos de MANZINI acerca
das presunções no processo penal, fundamentais para, desde uma concepção
1503. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 2, 2008. p. 245. “técnica” de processo penal, fossem balizados um conjunto de dispositivos,
1504. NORONHA, E Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 119.
1505. “Em casos excepcionais, quando a dúvida assaltar o espírito do julgador, poderá este procurar dirimi-la,
determinando a realização de diligências com tal objetivo”. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. 1507. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Processo Penal. 30 ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 246. Tribunais, 1982. p. 258. m
1506. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. v II. 5 ed. Rio de Janeiro: 1508. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro v. II. São Paulo: Sugestões
Borsoi, 1960. P. 454-455. Literárias, 1971. p. 695.
440 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 441

institutos e categorias, mobilizadas no aspecto de maximização da defesa equilíbrio entre direitos e garantias, negando inclusive a natureza autoritária
social. Havendo uma presunção de culpabilidade, natural que as hipóteses do código de processo penal, quando como visto, na Exposição de Motivos
justificadoras ou simplesmente negativistas do acusado no sentido de rechaçar do Código de Processo Civil, não hesitou em chamá-la de “concepção auto-
a acusação, acarretariam que a carga da prova recaísse sobre o imputado. A ritária de processo”. Assim, podemos verificar na Exposição de Motivos que:
regra do art. 156 do CPP deve ser lida com o auxílio prestado pela doutrina “Do que vem de ser ressaltado, e de vários outros critérios adotados pelo
da época. E se como visto se apresentava uma presunção de culpabilidade projeto, se evidencia que este se norteou no sentido de obter equilíbrio entre
no processo penal, cuja doutrina se assentava, de forma expressa, cristalina e o interesse social e o da defesa individual, entre o direito do Estado à punição
incontornável no tecnicismo italiano de corte manziniano, o ônus da prova dos criminosos e o direito do indivíduo às garantias e seguranças de sua liber-
dade. Se ele não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não
seria da defesa. As palavras de TORNAGHI poderão aqui ser levadas em o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado
consideração para explicar o fenômeno: “para bem entender o art. 156, é pre- ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais”.
ciso, ainda, não esquecer que as presunções invertem o ônus da prova. Quando
Diversos significantes utilizados para oferecer justificativas para os
alguém mata outrem, o que se presume é que o fêz injustamente, porque
institutos processuais penais continuam sendo mobilizados no Brasil con-
isso é o que geralmente acontece e as presunções se baseiam em id quod pe-
temporâneo. Além evidentemente da retórica do equilíbrio e da concepção
lumque accidit. Êsse, aliás, é o sentido de certas presunções, como, por ex., a
publicística de processo, que dão contornos às mais diversas categorias pro-
presunção de dolo, a presunção de culpa (s.s). Qual é o sentido da máxima
cessuais, poderemos verificar que, no caso brasileiro, as diversas reformas
‘facta lesione praesumitur dolo donec probetur contrarium?”1509. Neste ponto,
pontuais não lograram êxito em afastar os dispositivos que possuíam sime-
TORNAGHI recorreu à teoria manziniana das presunções, demonstrando
tria com o código Rocco.
aderência à escola italiana. Mas prossegue: “há certos crimes em que o comum
é o dolo e o raro, o excepcional, é a culpa; enquanto que outros geralmente Por diversas oportunidades o Brasil deixou de proceder a uma reforma
são culposos e excpecionalmente dolosos”1510. Novamente, de acordo com completa em seu processo penal. Não é possível encontrar uma resposta uní-
TORNAGHI, pode-se perceber o funcionamento da regra que disciplina o voca para compreender quais os motivos que conduziram ao fracasso destes
ônus da prova:“portanto, o sentido do art. 156 deve ser êste: ressalvadas as investimentos na alteração da legislação processual penal brasileira. Porém, o
presunções, que invertem o ônus da prova, as alegações relativas ao fato objeto conjunto de insucessos nas reformas é flagrante, despertando outra reflexão:
da pretensão punitiva têm de ser provadas pelo acusador e as referentes a fatos como um código cujos dispositivos e cujo discurso legitimatório flagrante-
impeditivos ou extintivos devem ser provadas pelo réu. Na verdade o ônus da mente autoritário sobreviveu às diversas mudanças políticas brasileiras? Por
prova compete àquele a quem o fato aproveita. Essa, aliás, é a orientação do que no Brasil é mais fácil modificar-se uma constituição do que um códi-
Código de Processo Civil (§§ 1º e 2º do art. 209)”1511. go?1512 Talvez esta a pergunta central.

O ônus da prova deve ser lido em conjunto com tudo o que a doutrina Não obstante a influência política do pensamento processualista italiano
pensava em termos de presunção de inocência. O primado de postulados na elaboração das razões expostas por Francisco CAMPOS, que legitimavam o
positivistas em nenhum momento poderia ser aqui descartado. As justifica- processo codificatório – e diga-se de passagem, não foi qualquer pensamento
ções baseadas na “experiência”, como podemos encontrar no pensamento de jurídico italiano, mas substancialmente o positivista e o tecnicista em sua
TORNAGHI, conduzem o processo penal brasileiro a incorporar elementos versão mais radical – como se deu o processo de manutenção destas categorias
teóricos muito parecidos com aqueles italianos do período fascista. Evidente-
1512. “Nosso Código de Processo Penal já resiste a três Constituições e suas muitas emendas e outros tantos
mente, a retórica de Francisco CAMPOS vinha cercada daquela pretensão de atos institucionais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), que já é tão antiga, pois edi-
tada em 1948, interferiu e deu novos rumos ao direito processual penal brasileiro, enfatizando a regra
de que ninguém pode ser considerado culpado antes da condenação. Mas, por outro lado, também o
1509. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. II. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 707. AI-5, que em 1968 suspendeu a utilização do habeas corpus para crimes políticos, prevaleceu, em seu
1510. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. II. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 707. momento, ao que estabeleciam a Constituição (na época vigia a de 1967) e o estatuto processual penal”.
1511. TORNAGHI, Helio. Compêndio de Processo Penal. t. II. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. p. 708. BAJER, Paula. Processo Penal e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 43.
442 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 443

inspiradas no Codice Rocco? Mais do que se falar em êxitos e fracassos na entre ambos os diplomas, de maneira que não será difícil encontrarmos inú-
tentativa de se construir um processo codificatório em consonância com a meros pontos de contato. Nas palavras de TORNAGHI, portanto, “tendo
Constituição da República, devemos perquirir: como determinadas categorias eu sido encarregado pelo governo, em 1962, de fazer um anteprojeto, pro-
doutrinárias e certos dispositivos processuais se mantiveram indenes ao longos curei tomar por base o código vigente e introduzir nele aquilo que, segundo
de mais de sete décadas de vigência do código de 1941? me parecia, devia ser mudado”1514. Esta proposta de reforma, baseada em
A permanência destas categorias implica um jogo de dois aparentes algum sentido na manutenção de alguns institutos processuais penais do
opostos: o regime da mudança e o regime da permanência. É nesta dinâmica código de 1941 era percebida pela crítica. Com efeito, inclusive, parte das
que os processos de ressignificação serão fundamentais. Contudo, antes de críticas endereladas ao Anteprojeto Tornaghi consistiam justamente na falta
investigar tais pontos de fuga, devemos atentar para os processos de tentativa de coragem do processualista em procurar estabelecer um código realmente
de alteração da legislação processual penal. diverso do então vigente. De acordo com RIBEIRO, “entre aproveitar a
experiência do atual diploma processual penal brasileiro, que ‘bem ou mal
Assim, tentaremos analisar, ainda que de forma muito breve, os diversos
está funcionando’, ou ignorá-lo e ‘partir da estaca zero’, o autor, como expôs
impulsos reformistas que cuidaram de elaborar um código processual penal
nos debates travados no I Congresso Latino-Americano de Criminologia,
completamente novo. A primeira destas tentativas foi chamada de Antepro-
optou pela primeira solução, como disse êle, visando ‘a melhorar o que já
jeto Tornaghi. Este será o próximo tópico.
existia’1515. Continua o autor afirmando que “estamos diante de uma preten-
são reformista acanhada, mais ou menos como a encetada por alguém que,
3.4. O ANTEPROJETO TORNAGHI
pretendendo dar um jeito na casa, limita-se a uma simples caiação e a uma
Uma ideia de reforma geral do código de processo penal surgiu no
nova arrumação nos móveis...”1516. A timidez da reforma levou inclusive RI-
governo Jânio QUADROS, através de seu ministro de Justiça, Pedroso
BEIRO a afirmar que o código de processo penal de 1941 era mais arrojado,
HORTA. Encomendou-se um anteprojeto ao famoso processualista Helio
considerada a profunda mudança que provocara, ao retirar dos Estados da
Bastos TORNAGHI, que acabou sendo encaminhado ao governo em 1963,
Federação a autonomia e independência para a elaboração de seus próprios
em um sistema composto de 806 artigos.
corpos legislativos. Assim, leciona o autor que “o legislador do Estado Nôvo,
O projeto logicamente, não foi aprovado, considerando a situação po- que é de 1942, foi, ao seu tempo, mais corajoso e incisivo. Ao fazer a coorde-
lítica do país, com a renúncia de Jânio QUADROS e o golpe de 1964, com nação ‘sistemática das regras do processo penal num código único para todo
a deposição de João GOULART. Deve-se salientar, como leciona PIERAN- o Brasil’, deu um largo passo, operou, de fato, uma evolução, que é o que
GELI, que o projeto TORNAGHI serviu como base para a construção de deve ocorrer quando se quer ou precisa reformar”1517. Assim, o Anteprojeto
outro projeto, desta vez elaborado por Frederico MARQUES1513. Assim, a Tornaghi era um “misto de conservadorismo e espírito renovador, mostran-
experiência deste código foi compartilhada por Frederico MARQUES, em do-se temeroso e ousado, ao mesmo tempo”1518.
um movimento curioso e ao mesmo tempo presente em diversas tentativas de
reforma: o cuidado no aproveitamento de atividades e a cautela adotada em 1514. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 56.
termos de apresentação de uma legislação completamente nova. 1515. RIBEIRO, Gilberto Quintanilha. A Reforma do Código de Processo Penal e Alguns Aspectos do An-
teprojeto do Professor Hélio Tornaghi. In Revista dos Tribunais. a. 54. v. 362. Rio de Janeiro: Forense,
1965. p. 61.
Esta “cautela”adotada pelos reformadores já está presente no próprio 1516. RIBEIRO, Gilberto Quintanilha. A Reforma do Código de Processo Penal e Alguns Aspectos do An-
discurso de TORNAGHI, que afirma que o seu Anteprojeto de Código de teprojeto do Professor Hélio Tornaghi. In Revista dos Tribunais. a. 54. v. 362. Rio de Janeiro: Forense,
1965. p. 61.
Processo Penal não procurou romper definitivamente com o modelo pro- 1517. RIBEIRO, Gilberto Quintanilha. A Reforma do Código de Processo Penal e Alguns Aspectos do An-
teprojeto do Professor Hélio Tornaghi. In Revista dos Tribunais. a. 54. v. 362. Rio de Janeiro: Forense,
cessual da codificação de 1941. Portanto, haverá uma linha de continuidade 1965. p. 61.
1518. RIBEIRO, Gilberto Quintanilha. A Reforma do Código de Processo Penal e Alguns Aspectos do An-
1513. PIERANGELI, José Henrique. Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Paulo: teprojeto do Professor Hélio Tornaghi. In Revista dos Tribunais. a. 54. v. 362. Rio de Janeiro: Forense,
Thomson, 2004. p. 159. 1965. p. 62.
444 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 445

As críticas direcionadas contra o Anteprojeto Tornaghi não se limitavam, de regra, às restrições impostas no juízo cível”1522. Neste ponto, portanto, a
evidentemente, à linha de continuidade relativamente ao código de processo orientação do código de 1941 seria mantida. E, a partir desta estrutura tríptica
penal de 1941. A primeira delas se referia à linguagem adotada pelo anteprojeto, (uma vez que a livre convicção conclama o significante-reitor “verdade real”
considerado como de uma significativa impropriedade vocabular. Nas palavras e o “princípio da liberdade das provas”, o modelo probatório não romperia
de RIBEIRO, “desmancha-se em extenso palavrório perfeitamente evitável”1519. com o que já se encontrava posto na legislação do Estado Novo. A liberdade
Demais disso, no que se relaciona com a técnica de redação, o anteprojeto era das provas aparecia inclusive no art. 244 do Anteprojeto, sendo admissível
extremamente prolixo, contendo diversas definições e conceitos, o que de certa qualquer prova que não atentasse contra a moral.
forma, tornava-lhe um código técnico, com um zelo na precisão das definições Quanto ao ônus da prova, o Anteprojeto Tornaghi seguiria orientação
que tornava inegável a sua elaboração por um jurista1520. ainda mais próxima daquela do direito processual civil, o que também acaba-
O Anteprojeto Tornaghi permanecia influenciado pelos conceitos her- ria por afastar a presunção de inocência. Segundo Nelson HUNGRIA, “a tese
dados da pandectística, a ponto de dedicar um livro do código à “Relação adotada pelo artigo 246 foi trazida para doutrina do direito judiciário penal
Processual”, inserida no Título I do Livro IV, que cuidava “Do Processo em por inspiração de uma teoria processualística civil, que, a propósito do onus
Geral”1521. Assim, tendo como norte a concepção de relação jurídica proces- probandi, distingue entre fatos constitutivos e fatos extintivos ou impeditivos
sual, o velho clichê pandectístico penetraria no projeto, de forma que seria da demanda”1523. Segundo o Anteprojeto Tornaghi, em seu art. 246, “a prova
pouco crível um código com este modelo, que pudesse afastar-se da tradição dos fatos constitutivos cabe a quem os alega; a dos fatos extintivos ou impe-
do liberalismo conservador juspublicista do século XIX. ditivos àquele a quem beneficiam”. Assim, manteve-se a mesma estrutura já
Relativamente à configuração da estrutura do Anteprojeto Tornaghi, o consagrada no código de processo penal de 1941.
instituto do inquérito policial seria mantido, de forma a corroborar a tradição No art. 78 do Anteprojeto, estabalece-se uma nova figura, a do “quase-a-
da investigação preliminar no Brasil, cujas funções não declaradas, como já re- cusado”, a fim de diferenciar os sujeitos que sofrem alguma medida de coação
ferido neste capítulo, vão para muito além de sua suposta função de informar antes do advento do processo. Assim, define o art. 78 que “considera-se acu-
a opinio delicti, esparramando-se para o plano judicial, mantendo a estrutura sado aquêle a quem é imputada a prática de uma infração penal em denúncia
deformada de contraditório. ou queixa aceitas. Parágrafo único – Equipara-se ao acusado o sujeito contra
o qual é exercido qualquer ato de coerção, real ou pessoal, antes da denúncia
Quanto à decisão judicial, o contraditório deformado viria corroborado
ou queixa. O quase-acusado gozará de garantias concedidas ao acusado apenas
pela manutenção da “livre convicção do magistrado”. Como asseverou Nelson
para a defesa dos bens jurídicos atingidos pelo ato coercitivo”.
HUNGRIA, “o sistema probatório do anteprojeto TORNAGHI é, como o
do vigente Código processual-penal, o da certeza moral ou do livre convenci- O Anteprojeto Tornaghi ampliou a ação penal subsidiária da pública
mento do juiz na pesquisa da verdade material e exame das provas (art. 246). para cuidar de casos em que o inquérito policial fora arquivado por determi-
É assegurada a liberdade de prova no juízo penal, não estando êste sujeito, nação expressa da autoridade judiciária. Também aboliu o recurso ex officio
e extinguiu o recolhimento obrigatório à prisão para apelar. Além disso, o
anteprojeto suprimiu o recurso dos embargos infringentes1524.
1519. RIBEIRO, Gilberto Quintanilha. A Reforma do Código de Processo Penal e Alguns Aspectos do An-
teprojeto do Professor Hélio Tornaghi. In Revista dos Tribunais. a. 54. v. 362. Rio de Janeiro: Forense,
1965. p. 62. Outro traço característico do anteprojeto é a exclusividade do juiz para
1520. “Não bastassem êsses inconvenientes, vê-se que o anteprojeto usa e abusa das definições (o que é ‘acu- proceder ao interrogatório do acusado, proibindo-se inclusive as reperguntas
sado’, o que sejam ‘despachos’ e ‘sentenças’ etc) delicia-se com o emprêgo de expressões em latim, e,
revelando-se um tanto rebuscado, esquecido que é feito para viger na plena era atômica, dá acolhida a
expressões fora de moda a inteiramente inadequadas para um texto de lei”. RIBEIRO, Gilberto Quin- 1522. HUNGRIA, Nelson. A Prova no Anteprojeto de Código do Processo Penal. In Arquivos do Ministério
tanilha. A Reforma do Código de Processo Penal e Alguns Aspectos do Anteprojeto do Professor Hélio da Justiça e Negócios Interiores. a. XXIII. N. 93, 1965. p. 16.
Tornaghi. In Revista dos Tribunais. a. 54. v. 362. Rio de Janeiro: Forense, 1965. p. 62. 1523. HUNGRIA, Nelson. A Prova no Anteprojeto de Código do Processo Penal. In Arquivos do Ministério
1521. Art. 43. O processo é relação jurídica entre cada uma das partes e o Estado, por seu órgão judiciário. da Justiça e Negócios Interiores. a. XXIII. N. 93, 1965. p. 16.
Dentro dêle e por meio dêle o autor exerce o direito de ação; o acusado, o de defesa, e o Estado, o poder 1524. NEVES, Serrano. Anotações Sobre o Ante-Projeto Tornaghi. In Revista Brasileira de Criminologia e
de jurisdição”. Direito Penal. a. II. n. 6, 1964. p. 152.
446 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 447

pelas partes1525. O direito ao silêncio era concedido ao acusado, embora pu- O Anteprojeto Tornaghi, de uma maneira muito geral, mantinha-se
desse ser interpretado em seu desfavor, reproduzindo a lógica inquisitória do fiel à ideologia autoritária do código de processo penal de 1941, reprodu-
código de processo penal de 1941 em seu art. 251. De acordo com NEVES, zindo categorias oriundas da doutrina, como a inserção da relação jurídica
“ a expressão rabilonga ‘seu silêncio’ poderá ser interpretado em prejuízo de no plano legislativo. A estrutura de provas se manteve intacta, bem como o
sua defesa’ é, em nosso entendimento, sobremaneira perigosa, e, a rigor, está regime de nulidades. O inquérito policial estava presente, garantindo que as
em conflito com o postulado constitucional que assegura ao réu plena defesa, principais estruturas do código estadonovista se apresentassem novamente.
com todos os meios e recursos essenciais a ela”1526. Todavia, desta vez com ares de “algo novo”.
Além disso, o projeto, em seu art. 565, tratava da possibilidade de a ação Isso não impede que se reconheçam alguns avanços, como a revogação
penal ex officio ser ampliada: “nos casos de infração não punida, ainda que do recurso ex offcio, a proibição da prisão para conhecer da apelação, além
alternativamente, com pena de reclusão, se não houver prisão em flagrante, o é claro, da principal delas, que consistiu no estabelecimento de um prazo
processo será iniciado mediante a portaria da autoridade policial ou do juiz, peremptório para a prisão cautelar. Mais conservador do que inovador, o seu
de ofício ou a requerimento do Ministério Público”1527. mentor era o produto do pensamento tecnicista brasileiro, cuja redação do
Por fim, uma última questão digna de nota no anteprojeto Tornaghi era código de processo penal não deixa dúvidas. Porém, o legado autoritário deste
a previsão de prazo peremptório para a duração da prisão preventiva. Em seu tecnicismo transparecia em inúmeros dispositivos.
art. 460, o anteprojeto afirmava: “a prisão provisória não poderá ultrapassar, Tendo em vista que o anteprojeto sequer foi encaminhado para aprecia-
em caso algum, o prazo de oito meses nos casos de procedimento ordinário ou ção do Parlamento, não há razões maiores para nos mantermos em sua análise.
especial, de cinco meses nas hipóteses de procedimento sumário e de dez dias Até mesmo pelo fato de que ele será a base constitutiva do Projeto Frederico
nas de procedimento sumaríssimo”. Este dispositivo não foi isento de críticas. Marques, que será analisado a seguir.
Basileu GARCIA afirmava que “quero crer que este dispositivo foi escrito
pensando-se apenas na prisão em flagrante e na prisão provisória. Deve então 3.5. O PROJETO FREDERICO MARQUES
ser solto o homicida que permanece oito meses aguardando o julgamento ou A história do projeto de código de processo penal conhecido como
a renovação deste em consequência de protesto por novo júri ou apelação? “Projeto Frederico Marques” nasce a partir do Decreto 61.239, de 1967. Ali
Não há conveniência em preceituá-lo. Seria preferível que o art. 460 excluísse havia sido criada uma “Comissão de Coordenação e Revisão dos Códigos
expressamente a prisão resultante da pronúncia e da condenação recorrível, vigentes”. O objetivo era a revisão dos códigos brasileiros, cujo período de-
às quais – para completar o sistema – conviria fazer alguma referência nessa veria findar em três anos. Os códigos processuais (civil e penal) ficaram ao
seção relativa à disciplina traçada em outros lugares do anteprojeto”1528. encargo de José Frederico MARQUES. O Anteprojeto Frederico Marques
1525. “no art. 249, ao tratar da judicialidade do interrogatório do acusado, o projeto houve-se muito mal. Foi
foi encaminhado ao Ministro da Justiça Alfredo BUZAID em 19701529.
injusto com o juiz e com o Ministério Público, ao afirmar que o interrogatório não poderá, ‘sob pretexto Participaram da comissão revisora José Carlos Moreira ALVES, Benja-
algum’ , ser realizado por qualquer outro órgão ou pessoa”. RIBEIRO, Gilberto Quintanilha. A Reforma
do Código de Processo Penal e Alguns Aspectos do Anteprojeto do Professor Hélio Tornaghi. In Revista min MORAES FILHO e José Salgado MARTINS1530. Este último acabou
dos Tribunais. a. 54. v. 362. Rio de Janeiro: Forense, 1965. p. 63.
1526. NEVES, Serrano. Anotações Sobre o Ante-Projeto Tornaghi. In Revista Brasileira de Criminologia e sendo substituído, em virtude de seu falecimento, por Helio TORNAGHI.
Direito Penal. a. II. n. 6, 1964. p. 151. Esta comissão seria composta ainda, pelo próprio Frederico MARQUES,
1527. Cf LEITE, Luciano Marques. O Sistema Acusatório e o Anteprojeto de Código de Processo Penal,
de Autoria do Prof. José Frederico Marques. Disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revistas/
wybwx6.pdf. Acesso em 14.02.2017. p. 239. QUES: “num país de direito escrito – V. Exas. me perdoem – o júri é a negação do estado de direito, por-
1528. GARCIA, Basileu. Preservação da Liberdade no Anteprojeto de Código de Processo Penal. In Revista que é arbítrio”. MARQUES, José Frederico. O Novo Código de Processo Penal. Disponível em http://
Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Instituto de Criminologia da Universidade do Estado da www.amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1279047241.pdf. Acesso em 13.02.2017. p. 76.
Guanabara. a. II. n. 09, 1965. p. 36. Na esteira do pensamento tecnicista (convergente com o positivismo 1529. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
criminológico), Basileu Garcia afirmará que “em nosso país, é muito frouxa a repressão ao homicídio, a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
porque está entregue ao júri. Seria bom que ao escândalo frequente da impunidade não se adicionasse 2015. p. 150.
a franquia da liberdade do homicida no decurso da ação penal, o que é verdadeiramente chocante, para 1530. PIERANGELI, José Henrique. Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Paulo:
a sensibilidade pública. Ainda sob o prisma da necessidade de afastamento do júri, Frederico MAR- Thomson, 2004. p.
448 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 449

presidente da subcomissão revisora do anteprojeto do código de processo comissão, ficou com o encargo de examinar o projeto. Como muitas sugestões
penal. O Ministério da Justiça determinou novamente a publicação do foram feitas ao projeto apresentado, fora designada uma comissão revisora,
anteprojeto no Diário Oficial da União, em 1969, no escopo de receber com a coordenação de Francisco de Assis TOLEDO, e da qual participavam
sugestões e uma nova revisão. Em 1974 publicou-se uma nova versão do o ministro Jorge Alberto ROMEIRO, além dos professores José Frederico
anteprojeto, revista pelos membros da subcomissão. O Projeto era composto MARQUES e Rogério Lauria TUCCI. Este trabalho acabou se transforman-
por 960 artigos, sendo encaminhado ao Congresso Nacional, convertido, do em um novo projeto apresentado ao Congresso Nacional em 19831535.
então, no Projeto de Lei nº 633/75. O Ministro da Justiça de então, Ar- Em suas linhas gerais, o projeto assentou-se nos trabalhos elaborados
mando FALCÃO, assinava a Exposição de Motivos1531. no Anteprojeto Tornaghi, pretendendo desenvolver conceitos de forma simi-
O presidente Ernesto GEISEL encaminhou ao Congresso Nacional o lar ao processo civil (teoria geral do processo), nos moldes da Escola de São
anteprojeto Frederico MARQUES (Mensagem 159/1975), que se converteu Paulo1536. A defesa do projeto, realizada por Frederico MARQUES, partia
no Projeto de Lei 633/1975. O projeto, na Câmara, foi emendado (rece- da crítica ao código de processo penal de 1941, afirmando o autor: “não
beu 784 emendas) e foi publicado parecer do deputado Geraldo FREIRE, vejo motivo para se ter grande amor ao Código vigente. Ele é defeituoso,
relator-geral do projeto, no diário oficial em 19771532. Em 1978 o projeto por todos os motivos. É um código sem sistema”1537. Ao criticar o código
foi enviado ao Senado, tendo sido prontamente retirado de pauta (Mensa- de processo penal de 1941, aparentemente Frederico MARQUES esquece o
gem 179/1978), justificado pela retirada do Código Penal de 1969, mesmo que havia escrito a despeito da legislação. Em 1949, MARQUES questionava
sequer tendo entrado em vigor. A inegável aproximação entre o projeto como um código de processo penal, redigido em pleno regime autoritário,
Frederico MARQUES e o código penal de 1969 justificava o seu abandono. poderia ser tão amplamente acusatório. Como visto, em 1949, MARQUES
Outras causas que podem ser elencadas para explicar o insucesso da emprei- sustentava expressamente o liberalismo e a acusatoriedade do novo código.
tada foram: o desenvolvimento expressivo da sociedade brasileira na década Nem mesmo ad argumentandum tantum se poderia admitir que aquele escrito
de 70, o que já tornava o anteprojeto Frederico MARQUES insuscetível pudesse se dar sob a perspectiva de um código ainda recente. Pelo contrário,
de atingir todos os objetivos esperados (inclusive pelo aproveitamento do naquela oportunidade, o código já possuía sete anos de vigência. Agora, em
Anteprojeto Tornaghi como base) o excessivo número de emendas aprova- conferência na Câmara dos Deputados, em defesa de seu projeto, MARQUES
das na Câmara dos Deputados, além da publicação da Lei 6.416/77, que afirma:“além disso, trata-se de um Código imposto ao tempo do Estado Novo
modificava o sistema das penas no Brasil1533. e repleto de defeitos do totalitarismo então vigente. É o Código da prisão
Então o deputado Sergio MURILO apresentou na Câmara dos Federal preventiva obrigatória, que a legislação posterior revogou. É o Código em
um novo projeto de Lei (nº 1268/79), que consistia fundamentalmente, no que, à revelia, é considerado em forma contrária ao réu, o que não existe em
Projeto 633/75, novamente restando inexitosa a votação1534. Uma comissão, nenhum Código do mundo”. Como um código de amplitude contraditória,
composta pelos deputados Adriano VALENTE, Claudino SALES, Geraldo que havia expurgado os resquícios inquisitoriais e que em pleno regime auto-
FREIRE, Ibrahim ABI-ACKEL, Ivahir GARCIA, José BONIFÁCIO NETO, ritário erigia um sistema acusatório, agora era produto do totalitarismo, um
Lidovino FANTON, PEIXOTO FILHO e Sergio MURILO, presidente da modelo que não se encontrava em lugar nenhum do mundo? (na verdade,
1531. PIERANGELI, José Henrique. Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Paulo: 1535. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
Thomson, 2004. p. 159. a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
1532. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e 2015. p. 150.
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre, 1536. “É de se augurar que, numa reforma do processo penal brasileiro que venha a tornar-se realidade, per-
2015. p. 150. maneça essa orientação do anteprojeto, que, atendendo à existência de uma teoria geral do processo, a
1533. ABI-ACKEL, Ibrahim. Exposição de Motivos Nº 212 de 9 de Maio de 1983. Disponível em http:// ditar entre outras coisas a unidade de método e de terminologia, há de facilitar em muito o trabalho de
www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-exposicao- intérpretes e profissionais”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moder-
demotivos-149193-pe.html. Acesso em 13.08.2016. no. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 111.
1534. PIERANGELI, José Henrique. Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Paulo: 1537. MARQUES, José Frederico. O Novo Código de Processo Penal. Disponível em http://www.amprs.org.
Thomson, 2004. p. 159. br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1279047241.pdf. Acesso em 13.02.2017. p. 63.
450 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 451

existia o italiano, cujo discurso fora apropriado pelos juristas brasileiros). no Projeto 633 como relação jurídica1542, importando problemas conceituais
Novamente, vamos transcrever as palavras de Frederico MARQUES sobre o e uma tradição conservadora que já foram devidamente registradas, nos dois
código de processo penal de 1941, no escopo de sensibilizar o auditório para últimos capítulos. Segundo o próprio Frederico MARQUES, o projeto de
a necessidade de aprovação de seu projeto: Código de Processo Penal fora uma tentativa de se renovar o processo penal,
“Logo depois da Constituição de 1934, o Ministro da Justiça, Professor “sob inspiração dos princípios da Escola Processual de São Paulo”1543. Na Ex-
Vicente Ráo, organizou uma Comissão para elaborar o Projeto de Código posição de Motivos, afirma-se que um dos objetivos do projeto era “suprimir
Penal, composta pelos ministros Bento de Faria, Plínio Casado e pelo Pro- definitivamente os resquícios de inquisitorialismo” já que tal postura não se
fessor Gama Cerqueira, da Faculdade de Direito de São Paulo. O projeto correlacionaria com “a pureza acusatória no procedimento que adota”. Na
estava no Congresso Nacional quando foi dado o golpe de 10 de novembro
de 1937. E, quando menos se esperava, surgiu o Código de Processo Penal Exposição de Motivos, ao menos, esta orientação seria tomada:
em vigor. Tinha sido aprovado e discutido a portas fechadas. Eu bem me “Se o procedimento ex officio e a participação contínua do juiz em atos e
recordo. Era Juiz Criminal em Ribeirão Preto. O Código Penal já estava em práticas que refogem às funções jurisdicionais não são condizentes com a
vigor e todos aguardavam a promulgação do Código de Processo Penal. Ele processualização da Justiça Criminal e com a configuração do processo penal
apareceu do dia para a noite, sem publicidade do projeto acaso existente na como actus trium personarum (autor, réu e juiz), com maior razão devem ser
Comissão. Assim pergunto: por que este amor por um Código imposto, que repudiados esses resquícios de inquisitorialismo penal em sistemas judiciários
não foi votado pelos representantes do povo?1538” como o nosso, em que, nas instâncias inferiores, atua juiz singular. Nota-se
que, nas diversas legislações penais, poderes inquisitivos se concedem ao juiz
De se perguntar se tais características do procedimento legislativo não
da instrução, nunca, porém, ao juiz da sentença (...) votem um Código de
eram conhecidas do autor, em 1949, que o fizeram glorificar tanto o diploma Processo Penal para o Brasil que substitua esse Código que nos foi imposto
legislativo de 1941. pelo totalitarismo do Estado Novo”.
Do ponto de vista da técnica processual empregada, interessante que Além deste ponto, destacam-se outros dois no discurso introdutório
críticas similares àquelas que recaíram sobre o Anteprojeto Tornaghi agora ao projeto: a) o fortalecimento do Ministério Público; b) a ampla tutela do
incidiriam sobre o Projeto Frederico Marques, articuladas pelo próprio direito de defesa. Sobre o tratamento dispensado ao Ministério Público, o
Hélio TORNAGHI, acusando o código de importar demasiadamente ele- anteprojeto fora apelidado de “código do ministério”1544. MARQUES, então,
mentos do processo civil ao penal. Neste sentido, TORNAGHI acusava o trata de explicar por que o anteprojeto havia recebido este nome:
projeto de “civilizar o processo penal, adaptando o código de processo penal “Se o projeto deu tanta ênfase e segurança ao direito de defesa, não poderia,
ao civil1539. Crítica esta que fora repetida diversas vezes1540. Assim como o por outro lado, debilitar a ação repressiva do Estado. Do contrário, não
Anteprojeto Tornaghi, o Projeto Frederico Marques era acusado de ser uma estaríamos fazendo um código de processo penal e sim um estatuto legal de
legislação que se aproximava muito de uma doutrina, apresentando por esta “S. Exa., o réu”, expressão do grande mestre Astolfo de Rezende. Daí por
que o projeto reforçou a posição e a atuação do Ministério Público na fase
razão, defeitos no processo de redação1541. de preparação da ação penal, e o colocou como dominus litis da pretensão
Da mesma forma que o Anteprojeto Tornaghi, o processo era concebido punitiva e da ação penal pública”1545.
Ainda na dimensão da Exposição de Motivos, a retórica do equilíbrio
1538. MARQUES, José Frederico. O Novo Código de Processo Penal. Disponível em http://www.amprs.org.
br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1279047241.pdf. Acesso em 13.02.2017. p. 64. entre direitos de defesa e acusação persistia: “por outro lado, procurou-se
1539. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu-
nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 06-07.
ordenar a tramitação procedimental com absoluto equilíbrio entre acusação
1540. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 58.
1542. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu-
1541. “Um código não é um livro de doutrina; eu compreendo que quem escreve um tratado procure trazer nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 08.
tudo quanto há de mais moderno. (Estou falando aqui com muito receio porque não quero de qualquer
maneira magoar ninguém e muito menos o meu querido e fraterno amigo José Frederico Marques, a 1543. MARQUES, José Frederico. O Direito Processual em São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 151.
quem rendo todas as homenagens; de modo que estou muito cuidadoso no que estou dizendo). Mas o 1544. MARQUES, José Frederico. O Novo Código de Processo Penal. Disponível em http://www.amprs.org.
fato é que o código não é um livro de doutrina e nós não podemos estar introduzindo nele tudo o que br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1279047241.pdf. Acesso em 13.02.2017. p. 69.
está certo”. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1545. MARQUES, José Frederico. O Novo Código de Processo Penal. Disponível em http://www.amprs.org.
1975. p. 57. br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1279047241.pdf. Acesso em 13.02.2017. p. 69.
452 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 453

e defesa, depois de instaurada a relação processual penal”1546. Além disso, o de uma revisão especial para casos de citação editalícia, etc.
código não estava isento de influências positivistas1547. Nestes pontos, o dis- O projeto tratava de modificar bruscamente a emendatio libelli, ao de-
curso mantinha afinidade com a ideologia existente na Exposição de Motivos terminar, no art. 417, parágrafo único, que a imputação contida na denúncia
de Francisco CAMPOS. ou queixa apenas poderia ser alterada em favor do acusado, gerando, em
Da mesma forma que o Anteprojeto Tornaghi, o Projeto Frederico Mar- contrapartida, fortes críticas como aquela de TORNAGHI:
ques acabou por suprimir o procedimento ex officio nos casos de contravenção, “modifica a regra do art. 383 do Código de 1942. Esse dispositivo, teorica-
o que segundo a dicção de TORNAGHI, representava a supressão do inquisi- mente certo, permite ao juiz dar ao fato descrito na peça acusatória definição
torialismo ainda presente na codificação de 19411548. A mesma interpretação jurídica diversa da apontada pelo acusador. Note-se: o que se possibilita ao
juiz não é condenar por fato diferente do indicado na denúncia ou na queixa
será adotada por CORREA, que considera o art 6º do Anteprojeto Marques mas, apenas, classificá-lo diferentemente. O réu é acusado de determinado
a adoção de uma “filosofia preconizada pelo sistema acusatório”1549. Neste fato; dele se defende e por ele pode ser condenado. Mas o juiz, se discorda
dispositivo, o projeto Marques afirmava: “não se admite processo criminal do enquadramento dado ao fato, pode colocá-lo dentro da moldura legal
ex officio. A relação processual penal, para constituir-se, depende sempre de que lhe parece adequada, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena
mais grave do que a cominada no artigo previamente indicado. Não há con-
acusação do Ministério Público nos casos de ação penal pública, ou do ofen- denação ultra petitum, uma vez que o acusador, desde o princípio, pede a
dido, quando se tratar de ação penal privada”. condenação do réu pelo mesmo fato”1551.
Sobre o direito a uma defesa ampla, o código estabeleceu: a) uma defesa Foi estabelecida expressamente a justa causa, no art. 8º do projeto: “não
efetivamente prévia, ou seja, antes do recebimento da denúncia1550; b) promo- será admitida ação penal pública ou privada sem justa causa. Parágrafo único.
veu o “julgamento conforme o estado do processo”, que prevê: i) a absolvição A acusação que não tiver fundamento razoável nem revelar legítimo interesse,
sumária (art. 290, I); ii) a declaratória de extinção da punibilidade (art. 290, será rejeitada de plano por ausência de justa causa”. Neste ponto, a inovação
II), iii) a absolvição do réu inimputável e a aplicação da medida de segurança representava, sem sombra de dúvidas, importante evolução relativamente ao
(art. 151); c) o respeito à correlação entre acusação e sentença, dispondo o modelo da codificação de 1941. O projeto inovava ao endereçar à polícia
art. 141 que: “é defeso ao juiz condenar o réu por fatos estranhos à acusação mandamento em seu art. 105 ao estabelecer que “a autoridade policial deverá
contida na queixa ou na denúncia, ou no seu aditamento”. Além disso, al- respeitar a dignidade da pessoa humana do indiciado”.
terava o art. 383 do CPP de 1941. No projeto, em seu art. 415, dispunha:
Além disso, o Projeto Frederico Marques inovava em diversos aspectos:
“o juiz não poderá dar ao fato definição diversa da que constar do despacho
acolhimento do princípio da identidade física do juiz; definição dos atos de
saneador, salvo: I) se beneficiar o réu; II) se tiver havido aditamento da acusa-
competência do juiz; judicialidade estrita do interrogatório; estabelecimento
ção”; d) O projeto ainda revogava o dispositivo que estabelecia a necessidade
do procedimento sumaríssimo; retirada da eficácia probatória do inquérito
de recolhimento do réu para recorrer da sentença condenatória; e) previsão
policial (art. 242: “O inquérito policial tem por objeto a apuração do fato
1546. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu- que configure infração penal e respectiva autoria, para servir de base à ação
nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 16.
1547. “Agora, o que é o crime, para a ciência penal de hoje? É um sintoma. Há a oportunidade ali, portanto, de penal ou às providências cautelares”); estabelecimento sistemático das causas
se apanhar um indivíduo perigoso. Não se pode impor medida de segurança; não se pode impor determi- modificadoras da competência; melhoria nos institutos do arresto e sequestro
nadas providências de ordem criminológica, sem haver o fato delituoso”. MARQUES, José Frederico.
O Novo Código de Processo Penal. Disponível em http://www.amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/ e busca e apreensão. O procedimento comum foi dividido em quatro fases:
arquivo_1279047241.pdf. Acesso em 13.02.2017. p. 73.
1548. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tri- postulatória, pós-postulatória, instrutória e decisória. Além disso, os recursos
bunal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 09. Cf LEITE, Luciano Marques. O Sistema
Acusatório e o Anteprojeto de Código de Processo Penal, de Autoria do Prof. José Frederico Marques. foram repensados e aperfeiçoados enquanto sistema1552. O código prevê uma
Disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revistas/wybwx6.pdf. Acesso em 14.02.2017. p. 239.
1549. CORREA, Plínio de Oliveira. O “Habeas Corpus” de Ofício no Futuro Código de Processo Penal. In 1551. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu-
Revista de Informação Legislativa. v. 15. n. 59, 1978. p. 158. nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 13.
1550. “Art. 272: O réu, assim citado, oferecerá defesa prévia, no prazo de 10 dias, podendo ali levantar preli- 1552. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu-
minares e invocar tudo o que interessa à sua defesa, bem como requerer a produção de provas” nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 26-29.
454 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 455

“denúncia aditiva” nos casos de ação penal privada quando se descobrir crime Apesar de inovar em muitos aspectos a legislação processual penal brasileira, a
de ação penal pública e uma “denúncia substitutiva”, quando o Ministério praposta contida no projeto também oferecia regressões, estimulando posturas
Público perceber que dos autos da ação penal privada este delito se encontra inquisitórias1557. Novamente segundo TORNAGHI, o projeto “dá poderes
absorvido por outro, sujeito à ação penal pública, mais grave. O código dis- ao juiz para promover atos probatórios, para transformar o processo oral em
ciplina a perpetuatio jurisdictionis; a criação do instituto da perempção para os escrito, aceitando memoriais, para mudar o tipo de procedimento, de sumário
crimes de ação penal pública; a disciplina do arquivamento diretamente pelo em ordinário ou de sumaríssimo em sumário. Para dirigir o processo, o an-
Ministério Público; além disso, define os limites da coisa julgada penal1553 e teprojeto obriga o juiz a fundamentar a sentença, o que é típico do processo
abole o libelo no procedimento do tribunal do júri. Como se pode constatar, inquisitório, e manda julgar pela prova dos autos, enquanto que no processo
o leque de mudanças instituído pelo projeto era significativo, melhorando acusatório puro, o sistema adotado para a valoração da prova não era o da
consideravelmente a estrutura processual penal brasileira. livre convicção e sim o da íntima convicção”1558. Na linha de continuidade
Segundo CORREA, o anteprojeto (assim como o Anteprojeto Tor- com o código de processo penal de 1941, o art. 73 do anteprojeto atribuía
naghi) era omisso quanto ao habeas corpus de ofício1554. ao magistrado poderes investigativos: “caberá ao juiz, de ofício, ou a reque-
No que diz respeito às prisões cautelares, segundo a Exposição de Moti- rimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo,
vos do projeto: “para que não fique entregue à discrição da polícia judiciária indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”.
a detenção provisória, preferiu o anteprojeto dar o poder de decretá-la ao Segundo TORNAGHI, o ideal a estruturar um novo código de processo
Ministério Público”. Esta postura do código era criticada por TORNAGHI, penal seria o sistema misto, pois “na verdade, o procedimento moderno – e
que recorria aos argumentos expendidos por Alfredo ROCCO na Itália, a fim não só o procedimento, mas o processo moderno – é misto. Ele reúne todas
de justificar o fermo como uma medida garantidora da liberdade: as vantagens do acusatório e do inquisitório e elimina os inconvenientes tanto
“Quando, na Itália, se elaborava o vigente Código de Processo Penal, surgiu de um quanto de outro”1559, visto que o procedimento inquisitório teria sido
o mesmo problema. E na Relazione al progeto (sic) preliminare se lêem estas construído para corrigir as deficiências do processo acusatório1560. Assim, os
considerações: ‘pensei também em admitir o chamado fermo (detenção) de problemas conexos ao sistema acusatório1561, na visão do autor, foram sendo
Polícia, instituto o qual, sem nenhuma lei que o previsse, mas até em oposição
complementados com certas características consideradas inquisitórias1562.
a algumas normas legislativas, vinha se formando como praxe determinada
por evidentes e imprescindíveis necessidades de Polícia’. E na Relazione al Re: nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 21.
‘Este Código acolhe e disciplina o fermo, não para criar um instituto novo, 1557. Neste sentido as palavras de LEITE: “o Anteprojeto, apesar do proclamado reforço do sistema acusa-
mas para cercar de garantias um instituto que, desde tempos imemoriais, fora tório, continua estruturando o processo como de tipo misto, ou se quiser, acusatório-inquisitório, e esta
característica não pode ser esquecida”. LEITE, Luciano Marques. O Sistema Acusatório e o Anteprojeto
acolhido pela prática como inelutável necessidade e não oferecia suficientes de Código de Processo Penal, de Autoria do Prof. José Frederico Marques. Disponível em http://www.
garantias para a liberdade das pessoas. Não se pode aceitar que o assunto revistajustitia.com.br/revistas/wybwx6.pdf. Acesso em 14.02.2017. p. 239.
1558. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 60.
seja estranho ao processo penal e, ao contrário, convém que o Código dele
1559. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu-
se ocupe a fim de legalizá-lo e impedir as arbitrariedades’”1555. nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 08.
1560. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 58.
Desta maneira, entendia TORNAGHI pela necessidade de o código 1561. “Da contextura do processo acusatório resultava muitas vezes, a impunidade dos criminosos, a faci-
admitir a prisão decretada pela polícia, dada a sua necessidade, a impossibili- lidade da denunciação caluniosa, o desamparo dos fracos. Hoje em dia isso já não seria tão viável,
mas nas sociedades antigas, organizadas em classes ou até em castas, os fracos, os oprimidos, jamais
dade de se evitá-la e a conveniência em discipliná-la, para evitar os abusos1556. teriam garantias dentro do processo acusatório, contra os opressores; a deturpação da verdade era muito
frequente, e nós vemos o que acontece no processo anglo-americano em que as próprias partes fazem
a instrução do processo. Então a verdade chega muitas vezes deturpada”. TORNAGHI, Hélio. Do Pro-
cesso Penal Brasileiro. In Arquivos da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 59.
1553. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu-
nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 31-28. 1562. “Certas características que foram formando o processo inquisitório: obrigação do juiz fundamentar a
sentença, encargo do juiz de dirigir o processo, de colher a prova. Ao lado do ônus das partes, havia
1554. CORREA, Plínio de Oliveira. O “Habeas Corpus” de Ofício no Futuro Código de Processo Penal. In também o dever do juiz de apurar a verdade e daí adveio a exigência da acusação escrita para evitar, ou
Revista de Informação Legislativa. v. 15. n. 59, 1978. p. 157. pelo menos para diminuir os casos de denunciação caluniosa. E o processo inquisitório foi se formando
1555. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu- e não teríamos motivo nenhum para hoje voltar à pureza do processo acusatório. Isso seria retrocesso
nal de Justiça do Estado do Pará. a. 21. v. 14, 1977. p. 20-21. e não progresso. Na realidade o que precisamos ter e o que temos, e o que existe no mundo inteiro,
1556. TORNAGHI, Hélio. Considerações Sobre o Projeto de Código de Processo Penal. In Revista do Tribu- não é o processo acusatório, mas um processo misto, um processo que aproveita todas as vantagens do
456 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 457

No que diz respeito às nulidades, nenhuma mudança significativa era De acordo com a Exposição de Motivos, firmada por Ibrahim ABI-
estabelecida em relação ao código de processo penal de 1941. Mas vale à penas -ACKEL, o anteprojeto, muito embora tivesse recebido um enorme número
trazer aqui as palavras de Frederico MARQUES, cujo projeto afasta um rol de propostas de emendas, manteve, na essência, o projeto Frederico Mar-
determinado de nulidades, cabendo ao juiz operar com a noção de prejuízo: ques. Dentre as principais características que o projeto instituía, destaca
“No curso do processo, diante de alguma nulidade que não foi alegada o Ministro da Justiça: a) simplificação dos procedimentos, especialmente
oportunamente, o juiz a pronunciará, se verificar que esta nulidade causou aqueles recursais, com a instituição, igualmente, de um procedimento su-
prejuízo substancial do direito de defesa. Agora, fazer um rol dessas nulida- maríssimo para as infrações penais consideradas de menor relevância, bem
des substanciais, a meu ver, não é aconselhável. O que não se pode é afastar como para as infrações de trânsito; b) utilização de gravação sonora ou
o formalismo no processo, como quis fazer o código vigente, como fez o
Código de Processo Penal Italiano, que acabou com as nulidades porque as equivalente das audiências de instrução e julgamento; c) possibilidade de o
formalidades do processo penal em grande número são justamente garantias juiz aplicar penas alternativas à prisão; d) criação de um órgão colegiado em
de defesa do réu. Não se faz uma discriminação dessas nulidades, porque primeiro grau, para o julgamento, em nível recursal, das infrações de menor
em função do prejuízo do direito de defesa é que o Juiz vai examinar qual gravidade e dos delitos de trânsito, no escopo de “desafogar os tribunais”;
foi o reflexo, qual foi o resultado dessa desobediência a atos processuais ou
e) simplificação do procedimento do tribunal do júri, com especial ênfase
à tramitação processual”1563
na descomplexificação da quesitação aos jurados; f ) atribuição do juízo das
Ora, é exatamente o mesmo sistema do código de processo penal de execuções para a realização dos exames criminológicos, não sendo mais tal
1941, sem o rol do art. 564 ! Tudo subordinado ao alvedrio do julgador, ou medida realizada no processo de conhecimento; g) recrusdescimento do
seja, à fantasmática categoria do prejuízo. instituto da prisão preventiva para o acusado considerado “perigoso” nos
crimes de “roubo, latrocínio, extorsão, seqüestro, estupro, atentado violento
3.6. O ANTEPROJETO NOVÍSSIMO: ao pudor, rapto não consensual que determine dependência física ou psí-
Um novo anteprojeto de código de processo penal fora publicado em quica, com o propósito de melhor aparelhar a Justiça Penal para o combate
1981, a pedido do ministro de Justiça Ibrahim ABI-ACKEL, resultado de uma a estas modalidades mais graves de delinqüência”1566.
comissão de juristas constituída através de duas portarias: a de nº 359/80 e a de Quanto às formas de processo, o Projeto não regulamentou a Execução
nº 839/801564. Os membros da comissão eram Francisco de Assis TOLEDO, da Pena, deixando-a para ser tutelada através de legislação especial. Foi ainda
coordenador da comissão, Rogério Lauria TUCCI e Hélio FONSECA. Além matido o sistema de aplicação imediata da lei processual penal, que não se
deles, alguns juristas colaboraram com o projeto: Manoel Pedro PIMENTEL, confundiria com os princípios reguladores da lei penal material (neste ponto,
Miguel REALE JÚNIOR, Ricardo Antunes ANDREUCCI e Sérgio Marcos de a Exposição de Motivos recorre a MANZINI)1567. Os tradicionais cânones
Moraes PITOMBO. Este projeto foi verdadeiramente uma revisão do Antepro- interpretativos (analogia, interpretação extensiva e os princípios gerais do
jeto Frederico Marques, a quem competiu uma reordenação técnico-jurídica, direito) foram mantidos, de acordo com a tradição de integração das lacunas.
contando ainda, com a revisão linguística de Aires da Mata MACHADO1565. Quanto à ação penal, o projeto atribui exclusivamente ao Ministério
Público a iniciativa, excluindo quaisquer procedimentos instaurados de ofício.
acusatório e do inquisitório. E o próprio anteprojeto, apesar da pretensão do seu ilustre autor, está cheio
de institutos do processo inquisitório”. TORNAGHI, Hélio. Do Processo Penal Brasileiro. In Arquivos Estabeleceu ainda, o legítimo interesse e o fundamento razoável como ele-
da Polícia Civil. v. XXVI, 1975. p. 59. mentos integrantes da justa causa.
1563. MARQUES, José Frederico. O Novo Código de Processo Penal. Disponível em http://www.amprs.org.
br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1279047241.pdf. Acesso em 13.02.2017. p. 97-98.
1564. ABI-ACKEL, Ibrahim. Exposição de Motivos Nº 212 de 9 de Maio de 1983. Disponível em http:// 1566. ABI-ACKEL, Ibrahim. Exposição de Motivos Nº 212 de 9 de Maio de 1983. Disponível em http://
www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-exposicao- www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-exposicao-
demotivos-149193-pe.html. Acesso em 13.08.2016. demotivos-149193-pe.html. Acesso em 13.08.2016.
1565. ABI-ACKEL, Ibrahim. Exposição de Motivos Nº 212 de 9 de Maio de 1983. Disponível em http:// 1567. ABI-ACKEL, Ibrahim. Exposição de Motivos Nº 212 de 9 de Maio de 1983. Disponível em http://
www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-exposicao- www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-exposicao-
demotivos-149193-pe.html. Acesso em 13.08.2016. demotivos-149193-pe.html. Acesso em 13.08.2016.
458 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 459

Ponto importante que merece destaque é a continuidade da centralida- de setembro de 1992, com o objetivo geral da reforma sendo o de simplificar
de do juiz no campo do processo penal, que admite a “iniciativa do juiz” na procedimentos e dotar de maior eficácia o sistema. O segundo encontro se deu
“perquirição da verdade”, o que “não acabaria por afetar o sistema acusatório”, em 1993, na cidade de São Paulo, em 16 de abril. Ali se distribuíram as tarefas,
em tese adotado pelo projeto. A polícia judiciária é mantida em sua posição de de acordo com os livros do código e sobre os pontos passíveis de alteração1570. A
colher os elementos informativos através do inquérito policial, a fim de servir terceira reunião ocorrera em Goiânia, nos dias 15 e 16 de maio de 1993. Além
de base para a acusação. A disciplina das formas processuais segue o coman- dos membros da comissão, participaram dos trabalhos magistrados, promotores
do da “instrumentalidade das formas”, que organiza o sistema de nulidades de justiça, advogados. Foi nesta reunião que foram aprovados os anteprojetos
processuais. Contudo, avança no sentido de estabelecer nulidades absolutas. que tratarariam de regular distintos pontos do processo penal: a) o procedimen-
Como se pode perceber, o projeto avançava em algumas questões relati- to para os crimes dolosos contra a vida, a serem julgados pelo tribunal do júri;
vamente ao código de processo penal de 1941, e, apesar de tramitar durante b) a estrutura do procedimento sumário; c) a intimação dos defensores pelos
sete anos no Congresso, foi retirado de pauta em 1989. órgãos de imprensa; d) a configuração dos recursos de apelação e recurso em
sentido estrito; e) a eliminação do recurso chamado “protesto por novo júri”; f)
3.7. O PROJETO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA as medidas cautelares restritivas de liberdade e de outros direitos; g) a ampliação
No ano de 1992, cerca de três anos após a retirada do projeto “no- do espectro da prisão preventiva; h) a estrutura da polícia judiciária; i) a con-
víssimo”, o ministro da Justiça, Célio BORJA encarregou o presidente da figuração normativa do direito ao silêncio; j) a disciplina da citação por edital;
Escola Nacional da Magistratura, o ministro Sálvio de Figueiredo TEI- k) a estrutura da defesa dativa; l) a disciplina do exame de corpo de delito e das
XEIRA de presidir uma nova comissão, no escopo de reformar os processos demais perícias; m) o laudo complementar de corpo de delito; n) a disciplina da
no Brasil. Assim, o desiderato era proceder a uma revisão do código de revelia no processo; o) a configuração da suspensão condicional do processo. Os
processo civil e de processo penal. Além do ministro, compunham a co- trabalhos cessaram com a entrega do projeto de reforma, com a sua publicação
missão: o ministro Luiz Vicente CERNICCHIARO, Sidney de Agostinho em 30 de junho de 1993, no Diário Oficial da União1571.
BENETI, Antonio Carlos de Araújo CINTRA, Antonio Carlos Nabor Encerrada esta primeira fase, nova comissão para a revisão dos trabalhos
de Areias BULHÕES, Francisco de ASSIS TOLEDO, Inocêncio Mártires fora designada pela Portaria 349, de 1993, promulgada pelo ministro da justiça
COELHO, o ministro do STJ Luiz Carlos Fontes de ALENCAR, Miguel Maurício CORRÊA. Os membros da comissão eram: Ada Pellegrini GRI-
REALE JÚNIOR, Paulo José da COSTA JÚNIOR, René Ariel DOTTI, NOVER, Antonio Magalhães GOMES FILHO, Antonio Nabor BULHÕES,
Rogério Lauria TUCCI e Sergio Marcos de Moraes PITOMBO 1568. A Aristides Junqueira de ALVARENGA, Cid Flaquer SCARTEZZINI, Edson
orientação para a reforma seria a simplificação e agilização processuais, de Freire O’DWYER, José Barcellos de SOUZA, a então desembargadora Fátima
modo a se garantir a aceleração do processo penal brasileiro1569. Nancy ANDRIGHI, Luiz Carlos Fontes de ALENCAR, ministro Luiz Vicente
Interessante anotar-se que a partir das várias tentativas inexitosas de CERNICCHIARO, Marco Aurelio Costa Moreira de OLIVEIRA, Miguel
implementação das reformas do processo penal, procurou-se, nesta comissão, REALE JÚNIOR, René Ariel DOTTI, Rogério Lauria TUCCI, ministro
“reformar o código com o mínimo possível de alterações”. Segundo DOTTI, Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA e Weber Martins BAPTISTA, além de Luis
a primeira reunião da comissão se deu em Ribeirão Preto-SP, nos dias 25 e 26 Flávio GOMES, representante do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais1572.

1568. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e 1570. DOTTI, René Ariel. Um Novo e Democrático Tribunal do Júri (I). Disponível em http://www.tribunapr.
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre, com.br/noticias/um-novo-e-democratico-tribunal-do-juri-i/. Acesso em 22.07.2016.
2015. p. 152. 1571. DOTTI, René Ariel. Um Novo e Democrático Tribunal do Júri (I). Disponível em http://www.tribunapr.
1569. “O Senhor Ministro da Justiça, Dr. Maurício Correia, constitui comissão de juristas, pela portaria nº 145 com.br/noticias/um-novo-e-democratico-tribunal-do-juri-i/. Acesso em 22.07.2016.
de 1992, presidida pelo senhor Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, a fim de que apresentasse pro- 1572. DOTTI, René Ariel. Um Novo e Democrático Tribunal do Júri (I). Disponível em http://www.tribunapr.
postas de reforma ao CPP, no intuito de buscar a simplificação e agilização do processo penal, visando à com.br/noticias/um-novo-e-democratico-tribunal-do-juri-i/. Acesso em 22.07.2016. Ainda, nas palavras
aceleração da prestação jurisdicional”. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Reforma do Código de Processo de GRINOVER: “o Instituto dos Advogados do Brasil, por seu Presidente, doutor Rubens Approbato
Penal. In ________. O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 303. Machado, e o Instituto Brasileiro de Direito Processual, por seu Presidente, Professor Celso Neves,
460 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 461

Novamente, os trabalhos foram divididos, de acordo com o teor da condicional do processo; l) facultatividade do inquérito policial nos casos de
reforma. Uma comissão de sistematização fora incumbida de analisar os infração penal de menor potencial ofensivo; m) alterações na Lei 7960/89
processos de integração das reformas, composto por Antonio Magalhães (prisão temporária); n) alterações no instituto da fiança; o) separação obri-
GOMES FILHO, Luis Flávio GOMES e Rogério Lauria TUCCI. Após gatória de presos definitivos e provisórios; p) previsão de medidas cautelares
nova reunião em São Paulo, com a participação de magistrados e promo- não privativas de liberdade, como por exemplo a suspensão temporária do
tores de justiça, os textos das reuniões foram publicados no Diário Oficial agente público em determinados delitos; q) previsão de manifestação fun-
de 25 de novembro de 19941573. damentada do magistrado em caso de prisão cautelar, quando pronunciado
De acordo com GIACOMOLLI, os anteprojetos encerrariam as se- o acusado; r) normatização das perícias e da prova ilícita1574.
guintes modificações no sistema processual penal brasileiro: a) a introdução Neste anteprojeto, constata-se a manutenção da “retórica do equilíbrio”,
de um contraditório prévio ao recebimento da acusação no procedimento logicamente, com a preponderância do vetor eficiência sobre qualquer outro.
ordinário, com o respeito aos princípios da oralidade, imediação, concen- A “desburocratização” ou “desformalização do processo”1575 eram os vetores
tração dos atos processuais e da identidade física do juiz; b) por seu turno, a ser alcançados mediante a reforma, mesmo que o discurso delcarado se
nos procedimentos sumário e sumaríssimo, a ideia era a de introduzir uma manifestasse em prol de um “garantismo” (escravizado pelo eficientismo)1576.
audiência única, que acumulasse os atos instrutórios e o interrogatório do De todos estes objetos de reforma, seis projetos acabaram sendo envia-
acusado em apenas uma solenidade; c) a supressão do libelo-crime, a pre- dos pelo ministro da justiça ao então presidente, Itamar FRANCO. Inúmeros
visão de uma fase de saneamento do processo, alterações nos mecanismos projetos foram devolvidos ao ministro da justiça (Nelson JOBIM), mesmo
de seleção e convocação dos jurados, bem como na pauta de audiências, após a aprovação da Câmara de Constituição e Justiça, o que acabou provo-
alterações sobre o instituto do desaforamento, com a inserção da previsão cando a renúncia do ministro Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA.
para a ausência de julgamento por excesso de serviço, o julgamento pelo
plenário do júri, mesmo diante da ausência do acusado, a extensão do di- 3.8. A COMISSÃO GRINOVER
reito ao silêncio e a supressão do protesto por novo júri nos procedimentos Diante do insucesso da última tentativa de se reformar o código de
aplicados aos crimes dolosos contra a vida; d) a definição jurídica de crime
de infração penal de menor potencial ofensivo; e) proteção da vítima, com 1574. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro
e a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Ale-
a fixação de um quantum indenizatório na sentença penal condenatória; f ) gre, 2015. p. 153-154. Segundo GRINOVER, relativamente às propostas finais: “as propostas foram
agrupadas em seis projetos, que abrangem as nove originárias da comissão do IASP, ficando a matéria
regulamentação do procedimento de intimação a advogados e defensores em assim dividida: a) Primeiro conjunto: a.1) Do Inquérito policial; a.2) Do procedimento ordinário; a.3)
geral; g) previsão do recurso de agravo retido e de instrumento; h) unifor- Dos procedimentos sumário e sumaríssimo; a.4) Da suspensão condicional do processo. b) Segundo
conjunto: b.1) Da prova ilícita; b.2) Da prova pericial; b.3) Da prova testemunhal; b.4) da defesa efetiva.
mização dos prazos de embargos de declaração e infringentes relativamente C) Terceiro conjunto: c.1) Da citação edital e da suspensão do processo; c.2) da intimação; d) Quarto
conjunto: d.1) Da prisão e outras medidas restritivas; d.2) Da fiança; d.3) Da prisão temporária; e)
àqueles previstos na lei processual civil; i) suspensão da prescrição em casos Quinto conjunto: e.1) do agravo; e.2) Dos embargos. F) Projeto isolado: do júri”. GRINOVER, Ada
Pellegrini. A Reforma do Código de Processo Penal. In ________. O Processo em Evolução. Rio de
de ausência do acusado ou de constituição de defensor; j) prosseguimento Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 305.
1575. Naturalmente conexa à perspectiva instrumentalista: “sem descurar do cientificismo do processo, os
do processo em caso de ausência do acusado, quando intimado pessoal- novos processualistas brasileiros deslocaram o eixo de suas preocupações para outros enfoques e postu-
mente ou deixasse de oferecer o novo endereço; k) previsão da suspensão ras, rumo ao instrumentalismo substancial do processo e à efetividade da justiça, quando todo o sistema
processual passa a ser visto como instrumento para atingir os escopos jurídicos, sociais e políticos da
jurisdição e a técnica processual, como meio para obtenção de cada um deles”. GRINOVER, Ada Pel-
houveram por bem nomear comissões para procederem ao exame e oferecer sugestões aos anteprojetos legrini. Desformalização do Processo e Desformalização das Controvérsias. In Revista de Processo. v.
de lei. As duas comissões dos institutos foram coordenadas por mim, sendo a primeira (do IASP) cons- 46. n. 60. São Paulo, 1987. p. 62.
tituída pelo desembargador Álvaro Lazzarini e pelo advogado Luiz Flávio Borges D’Urso, enquanto a 1576. “Os dois valores fundantes do processo penal: a eficiência e o garantismo. Eficiência, como efetividade
segunda (IBDP) foi integrada pelos professores e procuradores da justiça Antônio Magalhães Gomes do processo enquanto instrumento de persecução penal e também meio de aferição da inocência do
Filho e Antônio Scarance Fernandes, contando, ainda, com as colaborações do mestrando Fauzi Hassan acusado, a demandar vias processuais mais simples, acessíveis, racionais, descomplicadas e céleres;
Choukr”. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Reforma do Código de Processo Penal. In ________. O Pro- garantismo, como observância rigorosa dos direitos das partes e sobretudo da defesa, para que a função
cesso em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 304 jurisdicional se legitime por intermédio de um processo cercado por todas as garantias do due process of
1573. DOTTI, René Ariel. Um Novo e Democrático Tribunal do Júri (I). Disponível em http://www.tribunapr. law”. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Reforma do Código de Processo Penal. In ________. O Processo
com.br/noticias/um-novo-e-democratico-tribunal-do-juri-i/. Acesso em 22.07.2016. em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 305.
462 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 463

processo penal, em janeiro de 2000 fora instituída nova comissão para reforma tratava da prova ilícita se transformou na Lei 11.690/08, regulando a prova
do diploma legislativo. Através da Portaria 61, o ministro da justiça designou ilícita e sua excepcionalização. O Projeto de Lei 4.206/01 tratava de revisões
a professora Ada Pellegrini GRINOVER como presidenta, contando ainda na disciplina dos recursos e ações impugnativas. O Projeto fora enviado ao
com a participação dos seguintes componentes: Antonio Magalhães GOMES Senado em 2009 e segue em trâmite. O Projeto de Lei 4.207, que tratava
FILHO, Antonio Scarance FERNANDES, Luis Flávio GOMES, Miguel Reale dos procedimentos, de institutos como a mutatio libelli e a emendatio libel-
JÚNIOR, Nilzardo Carneiro LEÃO, René Ariel DOTTI (posteriormente subs- li, além da suspensão condicional do processo acabou se convertendo na
tituído por Rui STOCO), Rogério Lauria TUCCI e Sidnei BENETI1577. Lei 11.719/08 (com alguns vetos). O Projeto de Lei 4.208/01, que tinha
Seguindo o exemplo da comissão Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA, a por objeto as medidas cautelares alternativas à prisão se transformou na
opção política era a de uma reforma parcial, no escopo de que mais facil- Lei 12.403/11. O Projeto de Lei 4.209/01 tem como tema a investigação
mente se pudesse aprovar os temas suscetíveis de ser reformados1578. Esta preliminar, e foi enviado ao Senado Federal em 2008, estando ainda em
comissão aproveitou muito do trabalho já desenvolvido pela comissão Sálvio tramitação. O Projeto de Lei 4.210/01, que regulava a prisão especial, se
de Figueiredo TEIXEIRA. Os temas foram divididos da seguinte forma: a) converteu na Lei 10.258/01. De todos os projetos, apenas aqueles que
o tema das provas ilícitas fora encarregado a Ada Pellegrini GRINOVER; b) tratam dos recursos e ações impugnativas, do interrogatório e do direito à
a investigação preliminar ficara ao encargo de Antônio Magalhães GOMES defesa efetiva, e da investigação preliminar não foram convertidos em lei1580.
FILHO; c) Antônio Scarance FERNANDES e Nilzardo Carneiro LEÃO Apesar das constantes reformas pelas quais têm sofrido o processo penal
ficaram encarregados de tratar do tema da prisão preventiva; d) Luis Flávio brasileiro, cujo “pacote” de mais largo espectro foi aquele produzido pela co-
GOMES fora designado para cuidar do tema do interrogatório; e) a Petrônio missão GRINOVER, duas questões saltam aos olhos: a comissão jamais atacou
CALMON FILHO fora atribuído o tema procedimentos. Por fim, Sidnei pontos nevrálgicos do sistema processual penal, mantendo firmes as bases au-
BENETI fora incumbido de zelar pela parte dos recursos. toritárias de inspiração manziniana1581. Inclusive, em alguns pontos, trouxe
Seguindo a mesma tramitação do anteprojeto anterior, as reformas novas inflexões autoritárias, aumentando o índice de contrações garantísticas,
foram condensadas em distintos projetos de lei, perfazendo oito ao total. O como o caso de dotar o juiz de poderes instrutórios ex officio, mesmo antes de
Projeto de Lei 4.203/01 modificava o procedimento para os crimes dolosos ajuizada a ação penal (medida cautelar de produção antecipada de provas de
contra a vida, tendo sido, posteriormente, transformado na Lei 11.689/08. ofício – introduzida pela Lei 11.690/08). Alguns excessos foram extirpados, no
Como principais alterações podemos citar: 1) abolição do libelo-crime; 2) mesmo diapasão da reforma italiana de 1955, mantendo-se indene e hígido o
extinção do recurso de protesto por novo júri; 3) a simplificação da quesi- núcleo autoritário, que concebe o processo como mecanismo de higienização
tação aos jurados. O segundo Projeto de Lei era o 4.204/01, que tratava do social – hiperatividade das funções (ao nível declarado!) de defesa social a serem
instituto do interrogatório e do direito à defesa efetiva, que ainda segue em cumpridas pelo sistema de justiça criminal. Um dos grandes problemas, exata-
tramitação na Câmara dos Deputados1579. O Projeto de Lei 4.205/01, que mente na mesma linha ocorrida no modelo italiano, é o da invisibilização de
aspectos altamente refratários aos princípios constitucionais, com a já referida
1577. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e manutenção de institutos fundamentais, à época, do fascismo italiano.
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
2015. p. 155. Segundo GIACOMOLLI1582, a ideologia que serviu de inspiração à
1578. “A reforma total teria a seu favor a completa harmonia do novo sistema. Mas seria inexequível ope-
racionalmente. A morosidade própria da tramitação legislativa dos códigos, a dificuldade prática de o
Congresso Nacional aprovar um estatuto inteiramente novo, os obstáculos à atividade legislativa do Par- cao?idProposicao=26554. Acesso em 22.04.2016.
lamento, tudo milita contra a ideia de uma reforma global do código de Processo Penal”. GRINOVER, 1580. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
Ada Pellegrini. A Reforma do Código de Processo Penal. In ________. O Processo: estudos e pareceres. a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
São Paulo: Perfil, 2005. p. 279. (278- 289). 2015. p. 155-156.
1579. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e 1581. No mesmo sentido GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre, Penal Brasileiro e a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n.
2015. p. 155. O projeto se encontra parado desde 2014, consoante movimentação recolhida do sítio 1. Porto Alegre, 2015. p. 159.
da Câmara dos Deputados. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramita- 1582. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
464 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 465

codificação de 1940 se manteve intacta, o que pode ser observado: a) na qual elas desempenham fundamental articulação do poder punitivo num
autorização para o magistrado de ofício determinar a produção da prova, cenário de antecipação das punições, mas sem dúvida os problemas foram
acarretando, inclusive, a sua ampliação, de acordo com a nova redação do art. ampliados. E isto se justifica a partir de duas constatações elementares: as me-
156 do CPP; b) houve o incremento dos efeitos “probatórios” trazidos aos didas cautelares diversas da prisão sufocaram a dimensão da liberdade plena
autos pela admissibilidade de o inquérito policial poder ser utilizado como no processo penal, de modo que quando as prisões cautelares não poderiam
elemento de “convicção judicial”, mesmo que não isoladamente, na esteira ser decretadas no regime anterior, após o advento da lei, estas pessoas que
do atual art. 155 do CPP; c) a regulação da prova ilícita, no atual art. 157 do responderiam o processo sem qualquer gravame de natureza pessoal agora
CPP e seus parágrafos tratou de imprimir normatividade infra-constitucional têm contra si o peso da “fiança”, “retenção de passaporte” ou institutos simi-
à norma do art. 5º, LIV da Constituição da República, abrindo espaços para lares. Como se sabe desde a criminologia crítica, o espaço dos substitutivos
a admissão de exceções ou limitações às regras de exclusão probatórias. Ou penais alcança o regime de liberdade, não ocupando o espaço da prisão,
seja, ampliou-se a possibilidade de o juiz admitir o ingresso de provas ilícitas que se mantém com toda a sua força. As consequências eram previsíveis: as
e de valorá-las. De forma inconsequente, houve a importação de doutrinas prisões cautelares, de uma maneira geral, no Brasil, não foram reduzidas,
oriundas de precedentes norte-americanos em nível legislativo, com a ten- mantendo-se elevadíssimas1584. Além disso, o quadro da prisão preventiva
tativa – sem dúvida o mais mal-escrito artigo da história do processo penal foi ampliado, com a expansão das hipóteses de cabimento, como nos casos
brasileiro! – de se definir fonte independente no § 2º do art. 157 do CPP. De da prisão preventiva por descumprimento de medida protetiva, considerada
toda sorte, não há distinção sobre a prova ilícita quando endereçada ao juiz autônoma pelos tribunais superiores (isto é, não devendo ser analisada em
e quando endereçada ao júri, criando a aberração de um mesmo sistema de consonância com a baliza normativa do art. 313 do CPP).
provas ilícitas vigente em procedimentos que possuem dois sistemas diversos A tríade “liberdade das provas, livre convencimento judicial e verda-
de avaliação de prova (íntima convicção e livre convencimento)1583. de real” continua sendo adotada em nível doutrinário e jurisprudencial. As
O segundo aspecto, para além do efeito invisibilizador e pseudo-de- reformas não alteraram pontos significativos relativamente a tais questões,
mocratizante das alterações promovidas pela comissão e que teve êxito onde mantendo-se exatamente o mesmo núcleo do código de 1941. Em decorrên-
nenhuma outra havia tido, diz respeito à própria concepção de processo penal cia da intromissão de elementos elaborados na fase de investigação na fase
que é reflexo de orientações dogmáticas e jurisprudenciais acríticas ou decla- judicial, autorizada a leitura e o confronto com as testemunhas em juízo,
radamente autoritárias. tem-se a manutenção de um contraditório deformado. O nível de recha-
Levando-se em consideração o quadro dos institutos e categorias simila- ço ao contraditório pode ser visualizado inclusive nas diversas relativizações
res no processo penal italiano e brasileiro, percebemos o quanto segue: a) não sustentadas pelos tribunais à plena aplicação do sistema de exame cruzado,
houve severas mudanças relativamente ao inquérito policial, que continuou a que, quando desrespeitado, se tornou uma modalidade de “nulidade relativa”.
ser utilizado no processo de formação de convicção do juiz, com um quadro A presunção de inocência não foi introduzida nas reformas. O que
acentuado: legitimado desde a base legislativa, desde que a condenação não mais se aproximou disso foi a introdução do inciso VII no art. 386, que
seja amparada “unicamente” em seus termos; b) a reforma das cautelares, cuida da sentença absolutória. Assim, se garantiu a absolvição por falta de
mesmo com o advento da Lei 12.403/11, não apenas manteve o quadro no prova para a condenação. Sabe-se – pelo menos há três décadas antes da
reforma – que a presunção de inocência não se esgota nem se confunde
a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
2015. p. 159-160. com o in dubio pro reo. Quanto à presunção de inocência, pode-se inclusive
1583. Significativamente a comissão usou muitas dos dispositivos existentes no projeto Frederico Marques,
como a ideia do procedimento sumaríssimo (embora muito distinto por conta da Lei 9099/95) e da
previsão de assistentes técnicos (art. 368 do Projeto). Cf TÔRRES, Francisco Bueno; LEITE, Luciano 1584. Os relatórios divulgados pelo Infopen contribuem para a conclusão. Em 2012, o relatório apontava para
Marques; FREITAS, Oscar Xavier. Comunicação Sôbre o Anteprojeto do Código de Processo Penal 548.00 presos, sendo destes, 195.036 presos provisórios (35,39%). Por seu turno, o relatório de 2017,
da Autoria do Prof. José Frederico Marques. Disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revis- apontou 726.726 presos, sendo destes 292.450 provisórios (40,2%), o que assinala não apenas o acrés-
tas/918y9b.pdf. Acesso em 12.04.2017. cimo bruto da população carcerária cautelar, mas a sua ampliação quantitativa.
466 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 467

afirmar-se que ela claramente padece de eficácia, no processo penal brasi- rito do júri, podemos encontrar diversas manifestações parlamentares que
leiro, devido sobretudo ao autoritarismo dos tribunais superiores, que lhe permitem concluir-se que as alterações não tinham como preocupação uma
reduziram ainda mais o espectro de atuação. aproximação do código de processo penal à Constituição da República. O
Não houve alterações quanto ao poder de polícia do magistrado, que pode deputado Flávio DINO, em sua manifestação no dia 15 de maio de 2008,
decretar a suspensão da publicidade do processo. Além disso, o regime de nuli- opinou no sentido de que o projeto teria três virtudes1585. A partir da invoca-
dades mantém-se hígido, sem quaisquer espécies de modificações introduzidas ção do homicídio de Dorothy STANG, a primeira proposta era a eliminação
pelas reformas. A emendatio libelli sofreu alterações de fachada, consistentes em do recurso chamado “protesto por novo júri”, que autorizava a repetição do
um mero retoque artificial em seu enunciado. Entretanto, a sua funcionalidade júri quando a pena ultrapassava vinte anos de reclusão. Nas palavras do de-
continua a mesma: legitimar e salvaguardar acusações que não se acomodam putado, “esse recurso é anacrônico, leva a julgamentos contraditórios, retarda
na correta definição dos fatos, e, correspectivamente, cabendo ao juiz alterar os o funcionamento da Justiça, e o estamos extinguindo para este caso exem-
limites da acusação – alteração da imputação, objeto do processo. plar e outros tantos que possam aqui ser referidos”1586. A segunda “virtude”
do projeto se consolidaria, a partir da invocação do homicídio da “menina
Além disso, a regra sobre a distribuição do ônus da prova no processo
Isabella”, na cidade de São Paulo, que estaria relacionado com o novo rito a
penal continua em pé, não sendo alterada no que disciplina a “quem compete
ser adotado, de concentração de audiência1587. A preocupação fundamental
a prova”. Das reformas brotaram ainda reforços dos poderes judiciais, como
era relativamente à “modernização do procedimento do júri”, garantindo
a autorização, no art. 156, I do CPP, para o juiz proceder à coleta de provas
celeridade e atendendo ao reclamo pela segurança pública1588.
cautelares de ofício, mesmo antes de proposta a acusação, o que consolida um
reforço autoritário sobre a já autoritária legislação de 1941. De resto, as refor- Por seu turno, o deputado Antonio Carlos BISCAIA acentuará a ne-
mas alteraram os procedimentos, otimizaram o processo perante o tribunal do cessidade de mudança, considerando a antiguidade do código. Apesar de
júri, com algumas importantes alterações (como a proibição do uso de algema, reconhecer no código de processo penal uma legislação da década de 40, a
a impossibilidade de se utilizar da decisão de pronúncia como argumento de necessidade de alteração da legislação do júri deveria ocorrer para se evitar a
autoridade para convecer os jurados, a simplificação da quesitação). Ao mesmo impunidade e a prescrição1589. Desta forma, a reforma do júri, na leitura do
tempo, tais reformas reforçaram o princípio de liberdade das provas, já que deputado, teria como foco a celeridade. Em seu discurso ficará muito clara
mesmo prevendo o instituto da prova ilícita, trouxe à tona exceções à sua apli- a concepção instrumental de processo1590, pensado como ferramenta para se
cação, numa desastrosa e catastrófica redação do art. 157, § 2º, que sem sombra
1585. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.844.
de dúvidas concorreria ao prêmio de dispositivo legal mais mal escrito da his- 1586. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.844.
tória do processo penal brasileiro. Avanços foram poucos. Algumas regressões 1587. “Teremos a partir de agora, uma vez que se trata de norma processual com efeito imediato, um novo
rito substantivamente diferente do rito existente. Hoje, temos que fazer 3 audiências para interroga-
se deram no curso das reformas (regressão a um patamar mais iliberal do que a tórios, oitivas de testemunhas, depois vem diligências, alegações finais, há a sentença de pronúncia,
produz-se nova acusação, nova defesa, e aí o processo vai à sessão de julgamento com uma série de
estrutura original do código de processo de 1941, diga-se de passagem). Mas o formalidades, tais como a leitura integral do processo perante os jurados, fazendo com que o rito do
Tribunal do Júri se transforme numa via-crúcis a ser percorrida, o que impede a prestação jurisdicional
que marca profundamente tais reformas é a manutenção, sem nenhuma alte- no tempo adequado”. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 5 de maio de 2008. Brasília,
2008. p. 20.844.
ração, na estrutura autoritária do código de processo penal brasileiro, estrutura 1588. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.844.
esta compaginada com o modelo do Código Rocco italiano. 1589. “Essa alteração, sem dúvida alguma, vai dar maior agilidade a esses procedimentos, que têm hoje na
legislação processual penal vigente, que é de 1941, um tratamento que leva à prescrição e à impunida-
Vale a pena, antes de finalizar o tópico, analisar, muito sucintamente, de nos crimes dolosos contra a vida, que essencialmente atingem o bem mais precioso do ser humano,
que é a vida”. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008.
qual o entendimento do Parlamento a despeito das alterações propostas pela p. 20.845.
1590. Mais adiante o mesmo deputado se manifestará novamente no sentido de instrumentalidade do pro-
Comissão Grinover. cesso penal como mecanismo para se afastar a impunidade: “Considero, na mesma linha do eminente
Deputado João Campos, que o aprimoramento do processo penal é essencial para que ocorra o enfren-
No que diz respeito às mudanças relativas ao júri, na discussão do pro- tamento da violência e da criminalidade. As questões da impunidade estão relacionadas com o proces-
so penal. O projeto aprimora a matéria relacionada com a prova e afasta as provas de natureza ilícita”.
jeto de Lei 4.203-E, de 2001, convertida em Lei 11.689/08 e que alterou o Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.917.
468 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 469

acabar com a “impunidade” no Brasil: à utilização do inquérito policial como fundamento da decisão judicial. A
“Todos nós sabemos – e tenho defendido isto – que as questões mais sérias proposta, que sairá vencedora, é a de utilização não exclusiva do inquérito
que envolvem impunidade em nosso País não são aquelas do Direito Penal policial, como se pode analisar em seu discurso: “é possível, sim, ao juiz
material. Temos centenas de projetos aqui que pretendem aumento de pena e utilizar as provas colhidas no inquérito, mas não de modo exclusivo. Ou
agravamento de situações. Poucos tratam do procedimento. O grande proble-
seja, é necessário que, além das provas colhidas no inquérito, outras provas
ma nosso é processual, instrumental. Temos que corrigir os instrumentos para
uma aplicação eficaz e adequada da lei penal, da sanção penal. Não é apenas arrecadadas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa sejam utilizadas
em si o aumento da pena que vai fazer desaparecer a sensação de impunidade, pela sentença condenatória”1594. Tal manifestação será apoiada pelo deputado
já que ela não será aplicada. Neste caso, iremos aprimorar o procedimento Miro TEIXEIRA, que se manterá de acordo com a possibilidade de utilização
do Tribunal do Júri e corrigir esses intoleráveis índices de impunidade”1591. do inquérito policial, desde que “não exclusivamente”1595.
No campo das modificações trazidas à prova no processo penal, a
Preocupação geral dos discursos parlamentares, a possibilidade de reforma
Câmara dos Deputados apreciou o projeto de lei nº 4.205-D, de 2001. Tal
do código de processo penal aparece como uma forma de se “combater a im-
projeto tinha por pretensão a reforma da prova no processo penal, com a
punidade”, agilizando o processo. Na dicção do deputado Maurício RANDS,
alteração dos artigos 155 e 157 do código de processo penal. As alterações
as reformas se dariam justamente neste sentido, como se poderá verificar em
foram aprovadas através da promulgação da Lei 11.690/08.
seu discurso, no confronto entre processo penal (mecanismo de agilização da
Os discursos parlamentares em torno do objeto de reforma são contra- resposta estatal) e o incremento das penas (matéria atinente ao direito material):
ditórios. Inicialmente, sustentou o deputado Antonio Carlos BISCAIA que
“Muitas vezes ficamos, às vezes até involuntariamente, no jogo de cena,
a alteração no art. 155 do código de processo penal traria modificações que apenas aumentando pena. Este projeto dá um disciplinamento moderno,
recairiam sobre o princípio do livre convencimento do magistrado. A vedação ágil, equilibrado, respeita os princípios do direito para a prova, algo, como
da utilização do inquérito policial daria condições de implementação ao con- disse o Deputado João Campos, fundamental para termos um processo
traditório, já que a decisão judicial deveria estar baseada em prova e não nos penal rápido. Está aí o exemplo de uma proposição que, aparentemente
muito técnica, garante ao cidadão brasileiro que o criminoso seja punido
elementos indiciários do inquérito policial. Portanto, o escopo de alteração da
muito mais rapidamente do que no processo penal de hoje. Refiro‑me
norma era outorgar o contraditório e a ampla defesa aos acusados, adequando também ao tratamento que se dá à prova ilícita, às testemunhas. Há agili-
a legislação infraconstitucional à Constituição da República, assinalando que zação na aplicação da lei penal”1596.
“é o que faz o presente projeto: consolida a prova como essencial para funda- O projeto de lei 4.207-D cuidava da alteração dos procedimentos
mentar uma decisão no campo penal e, da mesma maneira, envereda por não no processo penal, bem como a suspensão do processo, emendatio e mu-
admitir provas obtidas com violação de normas constitucionais ou legais”1592. tatio libelli. Na votação do projeto, o deputado Flávio DINO enfatizou a
Quanto à este ponto, à necessidade de alteração do código de processo
penal, o deputado demonstra conhecer o regime político de sua elaboração, 1594. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.896.

assim como a estrutura processual que lhe serviu de base: “decretado em 1941, 1595. “O Deputado Flávio Dino rejeitou uma emenda, e o fez muito bem, que retirava a palavra “exclusiva-

o Código de Processo Penal tem como base a legislação processual penal da mente” do art. 155 do CPP. Ficaria assim o mencionado artigo: “Art. 155. O juiz formará a sua convic-
ção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar
Itália da época de Mussolini. Sofreu ele algumas modificações episódicas, mas sua decisão nos elementos informativos colhidos na investigação”. O inquérito seria jogado fora. O juiz só
poderia formar a sua convicção pelo que se passasse em juízo, no contraditório judicial. Aprovado no
não teve alterada sua essência”1593. Senado, o Deputado Flávio Dino aqui rejeita isso. Então, está mantida a palavra “exclusivamente”.
Agora, vamos analisar com a palavra “exclusivamente”. “Art. 155. O juiz formará a sua convicção
Por seu turno, o deputado Flávio DINO, em sua manifestação acerca pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua
decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Aí somos 2. Sabem
dos vetos exercidos pelo Senado ao projeto de lei, retoma a questão referente V.Exas., Srs. Deputados, quando o juiz vai formar a convicção com base no que diz esse dispositivo?
Nunca. O juiz tem a liberdade de formar a sua convicção por diversos meios de informação, claro que
todos pertinentes aos autos. Isso não tem remédio, não, e vai ficar assim. Felizmente, vai ficar o termo
1591. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.845. “exclusivamente”, porque é um mal menor”. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de
1592. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.895. maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.896.
1593. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.895. 1596. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 070. 15 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 20.920.
470 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 471

celeridade dos procedimentos penais após as alterações do código de pro- igualmente, como já visto, na Itália, no período pós-fascista, em que se optou
cesso penal1597. Segundo o deputado Antonio BISCAIA, as virtudes das por “desfasticizar” o código de processo penal. No Brasil, a estrutura proces-
reformas estariam em transmitir oralidade ao procedimento, com audiências sual emparelhada com o Codice Rocco foi mantida, apesar das reformas, que
concentradas e obediência ao princípio da identidade física do juiz. A possi- inclusive agravaram o quadro autoritário.
bilidade de defesa antes do recebimento da denúncia também foi elencada
pelo deputado como uma vantagem1598. Não foram registrados maiores 3.9. O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO: O CONTRIBUTO
debates acerca desta votação em específico. DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA MANUTENÇÃO
Nos debates acerca da reforma das cautelares, mesmo que a alteração DE DECISÕES CONGRUENTES COM A ESTRUTURA
se desse em um sentido de implementação das garantias constitucionais, a AUTORITÁRIA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
técnica italiana de relativização da presunção de inocência aparecia no dis-
A estrutura autoritária do código de processo penal cruzou diversas
curso parlamentar, como no caso do deputado Fabio TRAD, que afirma “daí
Constituições (1937, 1946, 1967 e 1988), sem que o Supremo Tribunal Fe-
por que, no encaminhamento, a palavra para os meus correligionários é no
deral, órgão responsável pelo controle de constitucionalidade, tivesse tomado
sentido de votar a favor das medidas alternativas à prisão preventiva, porque
medidas que restabelecessem um padrão acusatório e democrático de processo
legitima o princípio da presunção de não culpabilidade”1599.
penal1602. Além disso, como o leitor poderá constatar, existe uma linha de
Novamente, o discurso a partir de uma legislação que acabaria com a continuidade entre as categorias processuais utilizadas previamente à Cons-
impunidade aparece nas palavras do deputado João CAMPOS, que afirma, tituição de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal, e aquelas que continuaram
“o projeto é excepcional, trabalha contra a impunidade, é a favor da socie- a aparecer em julgados posteriores à nova ordem política democrática.
dade brasileira”1600. Para finalizar esta breve análise de quais os significantes
Através da omissão genética do Supremo Tribunal Federal no enfrenta-
que apareciam na condução dos trabalhos parlamentares, deve-se levar em
mento de questões as mais elementares possíveis, em torno de um processo
consideração uma última informação. As diversas alterações foram cindidas
penal de feições democráticas, a linha de pensamento estabelecida pela co-
em distintos projetos de lei, como subterfúgio para não se levar à votação um
missão de elaboração do código de processo penal de 1941 continua ainda a
código de processo penal integralmente novo. Isso pode ser constatado no
produzir reflexos práticos. Justo porque as diversas alquimias semânticas uti-
discurso do deputado João CAMPOS:
lizadas durante décadas pelo Supremo Tribunal Federal, que sistemicamente
“Este projeto faz parte de um conjunto de projetos encaminhados a esta Casa se omitiu no enfretamento desta primordial questão, empurrou um código
em 2001 pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso, que compreen-
dia a reforma processual penal completa. Na legislatura anterior, esta Casa e o
de processo penal absolutamete infenso à democracia, para servir como me-
Senado aprovaram parte desses projetos, implementando metade da reforma canismo de solução de conflitos penais, em um regime político que lhe é
do Código de Processo Penal. Aprovamos o projeto que tratava das novas completamente estranho1603. As diversas alterações do texto do código de
regras para o Tribunal do Júri; aprovamos o projeto que tratava do instituto processo penal, apesar de lhe desfigurar desde o ponto de vista dos
da prova, com significativos avanços; aprovamos o projeto que trata dos pro-
cedimentos. Todos esses projetos se converteram em lei, já com significativas 1602. São válidas, ainda que se refira ao período ditatorial, as palavras de LIMA: “pelo menos na memória
histórica brasileira, nunca se soube de enfrentamento, por parte do poder judiciário, em relação aos
consequências na política de enfrentamento da impunidade no País”1601 movimentos autoritários que, sem maiores dificuldades riscaram a validade de constituições das quais
o poder judiciário funcionava como guardião, como é o caso da outorga da Constituição de 10 de no-
A estratégia de não se adotar um código de processo penal novo apareceu, vembro de 1937 ou mesmo do golpe militar de 31 de março de 1964. LIMA, Martonio Mont’Alverne
Barreto Lima. Jurisdição Constitucional: um problema da teoria da democracia política. In BERCOVI-
CI, Gilberto, et ali. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional.
1597. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 080. 30 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 24.154. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 238.
1598. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXIII. n. 080. 30 de maio de 2008. Brasília, 2008. p. 24.154. 1603. E a própria história do STF, que durante a ditadura procurou se preservar, evitando conflitos com os
militares, indica a permanência de um legado de fracassos institucionais e de pouca adesão constitu-
1599. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXVI. n. 057. 08 de abril de 2011. Brasília, 2008. p. 16.471. cional, como se pode constatar do grande número de ex-ministros pertencentes a tradições e quadros
1600. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXVI. n. 057. 08 de abril de 2011. Brasília, 2008. p. 16.472. autoritários. Cf RECONDO, Felipe. Tanques e Togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo: Companhia
1601. Diário da Câmara dos Deputados. a. LXVI. n. 057. 08 de abril de 2011. Brasília, 2008. p. 16.493. das Letras, 2018.
472 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 473

procedimentos, somente atingiram a fachada do código. Jamais o seu núcleo, processo penal, como será observado, nunca passou de uma propagan-
muito parecido com o código de processo penal italiano de 1930. da ou um inadequado marketing político. Se observado o período entre
A expressão “guarda” da Constituição se deveu ao clássico debate 1964 e 1988, se perceberá que os juristas exerceram papel fundamental no
entre Hans KELSEN1604 e Carl SCHMITT1605, sendo aplicado ao Supre- golpe de 1964, já que o direito “servira de insrtumento dos militares até
mo Tribunal Federal por conta do exercício do controle concentrado de mesmo como mecanismo de controle social e meio propício para concessões
constitucionalidade pelos tribunais constitucionais, modelo de organização políticas, sobretudo no momento de esgotamento do regime”1609. Além
de justiça que se difundiu na Europa. disso, analisando os julgados do período acima referido, SANTOS chegará
à conclusão de que “o regime militar ditatorial brasileiro acabou por gerar
A imagem que o Supremo Tribunal Federal logrou encontrar no ima-
reflexos negativos no próprio pensamento jurídico do país e que na medida
ginário dos juristas, como “defensor da Constituição”, pode ser reconduzida
em que no aspecto prático-decisório o órgão máximo do Judiciário do país,
ao pensamento de Rui BARBOSA, que através de uma conceptualização
o Supremo Tribunal Federal, em muitas oportunidades, se rendeu aos de-
liberal, acabou por permitir o desenvolvimento de uma “identidade de su-
sígnios dos militares golpistas, havendo reflexos nas próprias decisões dos
jeito constitucional”1606, em consonância com as aspirações liberais. Com
Ministros”1610. Em larga medida, observa-se uma prática quase-mística de
o advento da Constituição de 1988, que traz um excelente catálogo de
crença no Supremo Tribunal Federal, como uma espécie de “superego cons-
direitos e garantias fundamentais, este sentido – hegemônico desde então –
titucional, portador da tradição”1611. O resultado, de acordo com MAUS, é
foi amplificado. Neste ponto, o termo “guarda” resulta equívoco, pois gera
a transformação da corte constitucional em menos um guardião da Consti-
certa confusão na percepção entre o papel de “guarda” da Constituição no
tuição do que um garantidor da história jurisprudencial autorreferente1612.
sentido do controle concentrado (como corte constitucional) e a proteção
de direitos fundamentais, fenômeno reforçado especialmente pela transição Evidentemente que podemos encontrar, no curso da história do Su-
democrática brasileira. E isto provocou um “efeito de confiança” no Su- premo Tribunal Federal, decisões compatíveis com a Constituição de 1988,
premo Tribunal Federal, especialmente a partir do imaginário jurídico1607, bem como decisões que afastam procedimentos normativamente irregulares,
como um órgão menos conservador do que tinha sido até então. Como se a em alguns momentos podendo servir como obstaculizador do exercício do
democracia, por si mesma, teria o condão de modificar profundamente um poder punitivo. Contudo, não devemos confundir tais atuações, muitas vezes
órgão que, dentre outras coisas, foi complacente com os abusos e violações a exaradas por pareceres isolados de ministros, com a atuação do Supremo
direitos (inclusive aqueles previstos nas Constituições brasileiras), no perío- Tribunal Federal no que diz respeito à omissão, de longa data, em coibir os
do ditatorial de 1964 em diante1608. Este otimismo e confiança no Supremo excessos e as incompatibilidades democráticas do código de processo penal
Tribunal Federal como um garante efetivo dos direitos fundamentais, no de 1941. Sendo assim, restaria demonstrar como as categorias processuais
penais estruturantes do código de processo penal de 1941 poderiam ser en-
1604. KELSEN, Hans. Quem Deve Ser o Guardião da Constituição? In _______. Jurisdição Constitucional.
São Paulo: Martins Fontes, 2003. contradas em decisórios oriundos do Supremo Tribunal Federal, para que
1605. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: del Rey, 2007. portanto, duas conclusões possam ser oferecidas: a) a utilização de categorias
1606. REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Quem Deve Ser o Guardião da Constituição? Belo Horizonte:
Mandamentos, 2008. p. 70. “Com sua impecável capacidade de sistematização teórica, foi o próprio fecundas ao discurso autoritário que orientou a doutrina processualística e o
Rui que, entre outros juristas de sua época, garantiu ao STF o papel institucional que lhe cabia, ao dar o
termo “político” o sentido de defensor dos direitos e garantias individuais. A capacidade de construir um
discurso capaz de garantir esse papel institucional, permitiu que a legitimidade do órgão fosse compre- 1609. SANTOS, Marcelo Paiva dos. A História Não Contada do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre:
endida dentro dos parâmetros modernos do ideal republicano dos feios e contrapesos”. Ibidem. p.72. SAFE, 2009. p. 401.
1607. Tomam-se aqui emprestadas as lições de Enrique MARÍ, para quem “assim como o imaginário social 1610. SANTOS, Marcelo Paiva dos. A História Não Contada do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre:
é condição de reprodução do discurso de ordem no dispositivo de poder, o dispositivo de poder, focado SAFE, 2009. p. 401.
no seu modelo político-jurídico, é condição de reprodução das formas de produção”. MARÍ, Enrique. 1611. MAUS, Ingeborg. O Judiciário Como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na
Racionalidad e Imaginario Social en el Discurso del Orden. In Doxa. n. 3. Alicante, 1986. p. 105. sociedade orfã. MAUS, Ingeborg. O Judiciário Como Superego da Sociedade: o papel da atividade
1608. “O estudo de um período ditatorial da história brasileira que teve forte repercussão nas instituições esta- jurisprudencial na sociedade orfã. In Novos Estudos. n. 58. São Paulo, 1999. p. 192.
tais e na sociedade como um todo, leva à reflexão de que a simples existência de uma Carta de direitos e 1612. MAUS, Ingeborg. O Judiciário Como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na
o reconhecimento teórico dos mesmos pouco representam à sociedade”. SANTOS, Marcelo Paiva dos. sociedade orfã. MAUS, Ingeborg. O Judiciário Como Superego da Sociedade: o papel da atividade
A História Não Contada do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: SAFE, 2009. p. 24. jurisprudencial na sociedade orfã. In Novos Estudos. n. 58. São Paulo, 1999. p. 192.
474 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 475

processo de codificação de 1941, mesmo após o advento da Constituição de cabendo ao acusado “provar a sua inocência” em segundo grau e via de conse-
1941 constitui uma permanência discursiva, capaz, portanto, de amesquinhar quência, nos tribunais superiores (cuja matéria fática restaria impedida de ser
direitos e garantias trazidas pela atual Constituição da República. Tem-se, conhecida no recurso de cassação). Não é difícil perceber-se o grau de relati-
assim, um processo de adaptação das garantias constitucionais à linguagem vização da presunção de inocência, que acaba produzindo efeitos tão somente
processual presente no discurso tecnicista brasileiro; b) este processo adap- no que diz respeito à prova, como conjectura o relator, em análise que recorre
tativo da Constituição às categorias processuais penais herdadas da “tradição a precedente da própria corte (HC 84.078, de relatoria do ministro Eros
liberal” brasileira configura um processo de ressignificação: das categorias GRAU). O ponto aqui em discussão não é apresentar acertos ou equívocos
processuais penais e das próprias garantias. teóricos na decisão. Mas apenas demonstrar a continuidade – ressignificada
Portanto, este tópico constitui apenas e tão somente um articulado – da mesma presunção de culpabilidade reinante na doutrina brasileira que
que visa a comprovar como mesmo após a Constituição de 1988 um discur- justificava uma plêiade de inversões da presunção. Com efeito, já não seria a
so processual penal legado do tecnicismo jurídico processual penal ainda se ação penal, que de per si autorizaria a inversão do ônus da prova, como apre-
mantém presente na corte. Ademais, não há aqui a menor intenção de traçar sentavam alguns juristas. Mas, considerando que a matéria tinha se esgotado
uma genealogia das categorias investigadas1613, já que isto requer um trabalho na jurisdição inferior, somado ao fato de que o tribunal não pode revolver
aprofundado, capaz de dar conta do fenômeno de maneira individualizada, matéria fática, o argumento pretende inverter a presunção de inocência. Es-
o que foge às intenções do trabalho. Em síntese, basta aqui identificar que tá-se diante de uma renovação epistêmica do mesmo discurso manziniano, de
existem elementos discursivos, utilIzados pelo Supremo Tribunal Federal, que que determinados eventos podem produzir uma inversão no ônus da prova.
rearticulam as garantias processuais penais de acordo com a visão limitada A condenação em segundo grau ou a confirmação da condenação oriunda
dos direitos fundamentais, própria da “civilística processual penal brasileira”. do primeiro grau corresponderá a uma presunção de culpabilidade, diante da
Assim, bastaria identificar como o Supremo Tribunal Federal enfrentou a qual caberia ao acusado comprovar a sua inocência. Neste sentido, o Supremo
constitucionalidade de diversos institutos processuais penais originários da Tribunal Federal oferece uma versão menos radical do que aquela encontrada
codificação de 1941, e que possuíam conexão política com a estrutura do no discurso tecnicista, muito embora conexo por bases ideológicas e políticas.
código de processo penal italiano de 1930. No processo de ressignificação que sofre a presunção de inocência, a norma de
tratamento é flagrantemente reinventada, já que a própria Constituição trata
Comecemos pela análise de recente e não menos famoso caso, no qual
do trânsito em julgado. Portanto, este tipo de decisão oferece uma amostra de
o Supremo Tribunal Federal autorizou a execução provisória da pena1614. No
como ocorre um processo de ressignificação da presunção de inocência, que
voto do relator, e que orientou a admissibilidade da execução provisória da
aparece menos radical do que aquele de cunho positivista, e aparentemente
pena, reaparecem argumentos como a presunção de culpabilidade, como
reflexo de técnicas constitucionais de interpretação. A utilização destas téc-
transcreve-se abaixo:
nicas permite que determinadas garantias sejam restabelecidas a um grau de
“A eventual condenação representa, por certo, um juízo de culpabilidade, que
eficácia pequeno. O discurso limitador dos direitos e garantias fundamentais,
deve decorrer da logicidade extraída dos elementos de prova produzidos em
regime de contraditório no curso da ação penal. Para o sentenciante de primeiro no processo penal, não aparece mais de maneira assentada claramente em
grau, fica superada a presunção de inocência por um juízo de culpa – pressu- influxos ideológicos autoritários, mas se vale de “técnicas interpretativas”,
posto inafastável para condenação – , embora não definitivo, já que sujeito, se que sob o argumento do “equilíbrio entre direitos da defesa e da sociedade”,
houver recurso, à revisão por Tribunal de hierarquia imediatamente superior”. reconduz conquistas a patamar semelhante ao da codificação de 1941.
De acordo com este entendimento, a presunção de inocência deixaria Além da manifesta redução garantística da presunção de inocência, po-
de operar tão logo brotasse uma sentença condenatória de primeiro grau, demos encontrar no Supremo Tribunal Federal a defesa da tríplice base que
1613. Tal tarefa será executada de forma apartada, uma a uma no futuro. organiza poderes instrutórios do magistrado e livre convicção, mediada pelo
1614. HC nº126.292/HC, de relatoria do Ministro Teori Zavascki e julgado em 17.02.2016.
476 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 477

princípio-reitor da verdade real. absolutas” (HC 85.155/SP, Rel. Min. Ellen Gracie)”.
Relativamente à adoção de um princípio de liberdade das provas no A interpretação antiformalista do Supremo Tribunal Federal relativa ao
processo penal, em consonância com a verdade real, podemos citar este pre- tema das nulidades é uma constante1617. Além de reproduzir o discurso contido
cedente, datado de 1992, em que praticamente se repetem os argumentos na Exposição de Motivos, o Supremo Tribunal Federal vai além da legislação de
da Exposição de Motivos do código de processo penal: “visando o processo 1941, ao disciplinar que mesmo as nulidades absolutas necessitam da demons-
penal o interesse público ou social de repressão ao crime, qualquer limitação tração de prejuízo. Invalidando o que a doutrina processual costuma explicar
à prova prejudica a obtenção da verdade real e, portanto, a justa aplicação da – que uma das características distintivas entre nulidades absolutas e relativas
lei. A investigação deve ser a mais ampla possível, já que tem como objetivo reside na demonstração do prejuízo – o Supremo Tribunal Federal desenvolveu
alcançar a verdade do fato, da autoria e das circunstâncias”1615. Aqui temos uma ideologia absolutamente infensa às formas, como se pode notar do julgado
a manifestação inequívoca de que a verdade é o objetivo último do processo trazido à colação. Como se sabe, as nulidades absolutas foram abolidas pelo
penal, assim como os limites à obtenção da prova representam injustificadas Codice Rocco e, ao se exigir prejuízo das absolutas, o que se tem é a abolição
barreiras. Já que a verdade real determina e configura as atividades das partes e tácita desta categoria. Portanto, o Brasil mantém um sistema no qual toda nu-
as finalidades a serem extraídas do processo, à luz do Supremo Tribunal Fede- lidade, para ser declarada, deverá vir precedida de demonstração de prejuízo.
ral, portanto, limitar a prova equivale a limitar os fins do processo. Em suma, Na prática, o mesmo sistema adotado na Itália fascista, com a diferença de que
aparece aqui claramente o “princípio da liberdade das provas” comandada a na Itália havia regra informando que as nulidades absolutas não mais existiam.
partir do recurso fantasmático à apuração da verdade real. Nada diferente do Mas não é só. Aplica ao sistema de nulidades o art. 156 do CPP, ao prescre-
que era discutido no processo de codificação, sustentado pelo tecnicismo e ver que a “prova do prejuízo incumbe a quem arguir a nulidade”. Portanto,
que ideologicamente, corresponde à concepção publicística de processo. tampouco haveria aqui qualquer repercussão da presunção de inocência. Se o
Quanto ao tema das nulidades, o Supremo Tribunal Federal julga duas acusado alega a nulidade, deve provar o prejuízo. Para além de todas as críticas
questões em um único momento: a) relativiza as nulidades, ao exigir, mesmo cabíveis à categoria, o Supremo Tribunal Federal aplica exatamente a regra sobre
das absolutas, a demonstração de prejuízo; b) requer, da defesa, a demonstra- distribuição do ônus da prova, consoante a estrutura originária (e não afastada
ção do prejuízo, pois sobre ela recairia um “ônus” (que somente poderia ser pelas reformas) do código de processo penal de 1941.
de natureza probatória). No recurso ordinário em habeas corpus 122.467, No que diz respeito ao tema da emendatio libelli, podemos citar o jul-
de relatoria do ministro Ricardo LEWANDOWSKI1616, decidiu-se, na esteira gamento do recurso ordinário constitucional em habeas corpus 115.654/BA,
dos princípios do código de processo penal de 1941 que: de relatoria da ministra Rosa WEBER1618, que afirma:
“De outra banda, tenho que, no caso sob exame, a defesa não se desincumbiu “nessa linha, para assegurar a congruência entre o decisum e os fatos im-
do ônus de demonstrar o prejuízo resultante da suposta adoção do sistema putados ao réu, ou seja, a escorreita aplicação da lei penal, o Código de
presidencialista e da inversão da ordem de inquirição das testemunhas, limi- Processo Penal prevê as figuras da emendatio libelli e da mutatio libelli.
tando-se a alegar ofensa aos princípios constitucionais do devido processo Dá-se a emendatio libelli quando o juiz, sem modificar a descrição da
legal, do contraditório e da ampla defesa. Como se sabe, o entendimento dinâmica fática contida na exordial acusatória, a ela atribui definição ju-
desta Corte é o de que, para o reconhecimento de eventual nulidade, ainda rídica diversa, ainda que tal procedimento resulte na fixação de pena mais
que absoluta, faz-se necessária a demonstração do prejuízo. Nessa esteira, grave (CPP, art. 383). Em outras palavras, o magistrado apenas procede à
o Supremo Tribunal vem assentando que a demonstração de prejuízo, de escorreita classificação jurídica do fato.
acordo com o art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela Quanto à este tema, o Supremo Tribunal Federal jamais procedeu
relativa ou absoluta, eis que “(...) o âmbito normativo do dogma fundamental a uma revisão do instituto, aceitando-o acriticamente. Jamais procedeu a
da disciplina das nulidades pas de nullité sans grief compreende as nulidades
1617. Demonstramos esta constância em GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no Processo Penal. 3
1615. HC n. 69.204-4/SP, de relatoria do ministro. Carlos Velloso, julgado em 04/09/1992. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
1616. Julgado em 03 de junho de 2014. 1618. Julgado em 05 de novembro de 2013.
478 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 479

uma análise que tivesse, por exemplo, o caso Drassich, julgado pelo Tri- suficiente para a instauração do processo penal. Se não for, poderá a prova ser
bunal Europeu de Direitos Humanos e que fundamentalmente, expressa a produzida e complementada durante a instrução processual, caminhando-se
na busca da verdade real, princípio orientador do processo penal”.
necessidade do contraditório sobre as questões de direito, inclusive sobre
a qualificação jurídica. Neste ponto, tem-se julgado que aceita, de forma Como se pode perceber, o “princípio” da verdade real é o “princípio
acrítica, a estrutura do processo penal de 1941, sem passar por nenhuma orientador” do processo penal brasileiro, o que explica parcialmente por que
espécie de controle ou filtragem constitucional. Apesar da reforma de 2008, tantas violações a direitos fundamentais foram (e são) toleradas pela corte
o art. 383 foi reescrito, mantendo-se claramente a mesma base doutrinária, suprema. A ideologia de que o processo constitui um instrumento para se
ideológica e política, ao autorizar que o juiz ou tribunal julgue para além alcançar à verdade é inerente ao discurso autoritário, pois os limites à acusação
dos limites do objeto do processo (a imputação). passam a ser vistos como óbices, como empecilhos. Não à toa que o código de
Podemos encontrar novamente uma posição do Supremo Tribunal Fe- processo penal de 1941 era repleto de menções “à verdade”. E, neste ponto,
deral, em sincronia com o discurso que orientou o procedimento codificatório ao que parece, o Supremo Tribunal Federal está preso discursivamente nas
de 1941, assim como a base doutrinária tecnicista na questão do livre con- trilhas políticas e ideológicas do regime processual penal estadonovista, que
vencimento. Assim, no habeas corpus 123.779/MG, de relatoria da ministra neste ponto acolheu o tecnicismo sincretista italiano.
Rosa WEBER1619, decidiu-se que: Ainda no que diz respeito à similitude de tratamento entre o discurso
Vigora no Direito brasileiro e no Direito contemporâneo em geral o princí- autoritário tecnicista brasileiro e a estrutura do código de processo penal
pio do livre convencimento motivado, ou da persuasão racional ou da livre de 1941, pode-se encontrar novo julgado, capaz de servir como elemen-
convicção, sistema esse surgido em oposição ao sistema de provas tarifadas to interpretativo da atuação do Supremo Tribunal Federal. O contraditório
que prevaleceu até fins do século XVIII. Descabe, portanto, estabelecer regras deformado a que se fez menção neste capítulo (assim como no capítulo pre-
probatórias a priori ou inflexíveis para reconhecimento de fatos específicos.
cedente), pode ser confirmado no julgamento do habeas corpus 119.315/PE,
Como se pode perceber, o discurso de superação das provas legais é de relatoria da ministra Carmen LÚCIA1621, que afirmou:
uma constante no discurso tecnicista italiano e brasileiro. O livre convenci-
“A jurisprudência deste Supremo Tribunal é firme no sentido de que “os
mento, portanto, seria uma “evolução” relativamente ao sistema das provas elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento
tarifadas, cabendo unicamente, exigir-se a fundamentação do magistrado. do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e
Em sintonia com o “princípio” da liberdade das provas e impulsionado pelo provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo” (RE 425.734- AgR,
princípío-reitor da verdade real, no processo penal a livre convicção tem Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ 28.10.2005)”.
contornos dados pelo Supremo Tribunal Federal, que autorizam o juiz a O que estava em jogo no processo analisado era a utilização do in-
se desvincular de limites probatórios. Não existem, de acordo com o STF, quérito policial para a formação da cognição judicial. Neste ponto, todos
limites à cognição judicial, o que configura uma base ideológica muito pró- os problemas apresentados anteriormente se confirmam, fazendo do con-
xima daquela existente tanto na Itália fascista, quando no discurso tecnicista traditório uma dialética processual tíbia, incapaz de ser exercitada em sua
exarado pelos juristas do Estado Novo. natureza de técnica de coleta contraditória.
Sobre a verdade real, o Supremo Tribunal Federal também tem reconhe- Mas não apenas na repetição dos argumentos autoritários do discurso
cido se tratar de um pilar importante do processo penal. Em decisão relativa tecnicista e da legislação processual penal de 1941 o Supremo Tribunal Fe-
ao Inquérito nº 4.023/AP1620, a relatora afirmou que: deral se destaca. Há, em determinados temas penais, a repristinação (melhor
“O Ministério Público é o titular da ação penal, detentor da opinio delicti e seria dizer que jamais saíram de cena) de discursos legados do positivismo cri-
a quem compete avaliar se o acervo probatório produzido, até o momento, é minológico, utilizados em conjunto com o discurso tecnicista. O cruzamento
1619. Julgado em 03 de março de 2015.
1620. Julgado em 26 de agosto de 2016. 1621. Julgado em 04 de novembro de 2011.
480 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 481

destes dois campos (tecnicismo e positivismo) é o que configurou o tecnicis- STF em discussões sobre o controle concentrado de constitucionalidade1625,
mo italiano de corte manziniano, diga-se de passagem. No recurso ordinário apesar das décadas que separam o autor das discussões constitucionais con-
em habeas corpus 118.640/SP1622, de relatoria do ministro Celso de MELLO, temporâneas e de seu declarado antiparlamentarismo.
o Supremo Tribunal Federal, a fim de afastar a continuidade delitiva, valeu-se Não há tempo para se retomar as conclusões alavancadas no primeiro
do conceito positivista de “delinquente habitual”: capítulo, onde foi possível examinar os elementos presentes de um autorita-
“Com efeito, o Ministério Público Federal, ao analisar o fundo da presente rismo também legitimado pelo Judiciário.
impetração, salientou , com absoluta correção, que os elementos constantes É momento de encerra o capítulo, resgatando algumas ideias já avan-
dos autos informam que o paciente è delinquente habitual, verdadeiro pro-
fissional do crime, motivo pelo qual não se pode reconhecer em seu favor o
çadas anteriormente.
benefício da continuidade delitiva”.
Nesta lógica, então, um instituto de direito material resta aplicado ou 3.10. “OS MÚLTIPLOS CORPOS” DO CÓDIGO DE PROCESSO
não em função da “categoria” (posotivista) de criminoso. Como analisado, PENAL: É MAIS FÁCIL ALTERAR A CONSTITUIÇÃO DO QUE
esta categoria serviria, de acordo com alguns juristas brasileiros, seguindo de A ESTRUTURA AUTORITÁRIA DE PROCESSO
perto o positivismo e a variante manziniana do tecnicismo, para aplicar ou Como bem demonstra a história brasileira, foi mais fácil ao Brasil alterar
não a presunção de inocência. No caso julgado, a continuidade delitiva foi suas constituições do que efetivamente aprovar um código de processo penal
afastada pela categoria “delinquente habitual”. O teor do julgamento não é novo. A explicação para tanto não reside apenas na epidérmica afirmação de
novo, podendo ser encontrado em decisão do habeas corpus nº 72.765-4/ que consensos parlamentares não são fáceis de ser obtidos e que um processo
SP1623, de relatoria do ministro Maurício CORREA. Em caso similar, utili- codificatório resulta intransponível na atual conjuntura política. O Brasil
zou-se das categorias “delinquente habitual” e “delinquente ocasional” para recentemente aprovou dois novos códigos (o de processo civil e o civil).
indeferir a continuidade delitiva. Assim: Pode-se concluir que a longa e inesperada sobrevida do código de pro-
“os autos revelam, sobretudo as peças acostadas às informações prestadas pela cesso penal tenha sido garantida pelas constantes reformas processuais penais
presidência do órgão apontado como coator, que o impetrante e paciente pontuais, o que apesar de ser correto, tampouco permite seja este o único
praticou, com emprego de arma de fogo e em concurso de pessoas, mais de elemento a lhe garantir esta deambulação perene. Sem sombra de dúvidas,
uma dezena de crimes contra o patrimônio, inclusive um latrocínio, em razão o liberalismo processual penal brasileiro tem uma imagem de si mesmo que
dos quais está definitivamente condenado, mostrando-se um criminoso habi-
tual, que faz do crime o seu meio de vida, e não um delinquente ocasional”. além de ser autorreferente, é incapaz – daí seus inúmeros pontos cegos – de
observar nas práticas punitivas um correlato de suas empreitadas teóricas. A
Estas não são as únicas categorias positivistas utilizadas. Poderíamos
imagem construída desde as fronteiras internas, permite reunir autores que,
citar aqui as milhares de decisões baseadas na “periculosidade” do agente
desde as mais distintas orientações ideológicas e políticas, são considerados
ou ainda, do grau de “temibilidade social” que podem ser encontradas em
como precursores ou expoentes do liberalismo processual penal brasileiro.
diversas decisões exaradas pelo STF1624. Desta maneira, não é de se estranhar
E o encerramento de uma tradição contínua, cujas fronteiras se expandem
que Francisco CAMPOS apareça em 12º lugar como o autor mais citado pelo
em um processo de assimilação da diferença, sob o signo de uma retórica
1622. Julgado em 22 de outubro de 2013 conformista e anti-oposicionista, garante um sincretismo teórico incomum.
1623. Julgado em 24 de outubro de 1995.
1624. Em consulta ao sítio do Supremo Tribunal Federal, o termo de busca “temibilidade” oferece 18 acórdãos, Correlato a isso, este procedimento de autorreferência identitária parte de
todos conexos ao processo penal. O primeiro deles, datado de 1977 e o último datada do ano de 2013,
revelando a mantença desta categoria no seio do discurso do STF. Disponível em http://www.stf.jus.br/ uma construção que, em oposição aos modelos autoritários clássicos (Itália e
portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28TEMIBILIDADE%29&pagina=1&base=base- Alemanha), sustenta que o nosso código de processo penal não continha os
Acordaos&url=http://tinyurl.com/ml69jxz. Acesso em 22.04.2017. A busca envolvendo as expressões
“periculosidade” e “processo penal” devolvem 1092 acórdãos, demonstrando o extenso uso que dela
faz a corte. O primeiro acórdão encontrado data de 1984, enquanto o último, de 2017. http://www.stf. 1625. LORENZETTO, Bruno Meneses; KENICKE, Pedro Henrique Gallotti. José Afonso da Silva é o Dou-
jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28PERICULOSIDADE+PROCESSO+PE- trinador Mais Citado pelo STF. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-jul-06/jose-afonso-sil-
NAL%29&pagina=97&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/kczxuey. Acesso em 22.04.2017. va-doutrinador-citado-supremo-adis. Acesso em 21.04.2017.
482 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 483

excessos daqueles diplomas. garante, portanto, que se verifique um esvaziamento político das categorias
Entretanto, na construção da identidade processual penal brasilei- processuais penais. O reflexo desta prática é uma aparente invariância política
ra existe um nível altíssimo de abstração quanto à formação discursiva dos das referências que constam do background filosófico e científico dos discur-
conceitos clássicos, que aparecem aqui completamente desconexos de sua his- sos processuais penais. E isto a partir do desligamento político das referências
toricidade. Em outras palavras, mesmo levando-se em consideração os textos bibliográficas – qualquer fonte se torna admissível, já que o que importa é a
constantes de anteprojetos, e mesmo que eles representem alguns avanços, “técnica”. Pode-se admitir que no Brasil, ocorre ainda o predomínio de um
determinadas categorias formadoras do pensamento processual penal brasi- tecnicismo reprodutor da fórmula compromissória do “equilíbrio”. O artifício
leiro lá se encontram sedimentadas. Existe uma clara recusa, por parte dos retórico, agora, ressignifica-se para assumir o status de discurso constitucional,
processualistas brasileiros, em proceder ao desligamento do processo penal re- com o significante “ponderação de interesses” exercendo o papel de mediatriz
lativamente ao processo civil, usando, por isso, categorias emprestadas. Assim entre dois lados de uma moeda: defesa social e direitos individuais.
como existe uma segunda recusa, que repousa sobre a vis attrativa da tradição, Ao lado deste quadro, existiu (e ainda existe) certo otimismo nas prá-
que empurra estas categorias para o centro da formação discursiva. Desta ma- ticas punitivas, que teriam sido “redemocratizadas” a partir da Constituição
neira, em torno delas é que as reformas acabam orbitando, impedindo uma de 1988. Otimismo que fora depositado no Supremo Tribunal Federal, cujas
real reconstrução do processo penal como a ocorrida no Chile ou na Itália. declarações de inconstitucionalidade de leis penais e processuais penais ante-
Esta incapacidade de abdicação da tradição, autorreferencialmente construída riores à ordem democrática, podem ser contadas nos dedos de uma mão. O
como “liberal”, impede consequentemente, novas maneiras de se conceber Supremo Tribunal Federal, ao longo de sua história, jamais exerceu o papel
o processo penal. Não é à toa que em pleno século XXI haja uma disputa que se esperava dele no que disciplina as conformações das práticas punitivas
política ferrenha em torno dos significantes acusatório e inquisitório que –
com o sistema de direitos e garantias. O papel de defesa dos direitos indi-
longe de serem categorias imprestáveis – acabam por dinamizar estruturas de
viduais não é confirmado pela história. Antes, pelo contrário, nos períodos
pensamento, de gerir colisões entre posições de juristas ou ainda, em definir
ditatoriais experimentados pelo Brasil, sua atuação era conformista e legi-
influxos políticos na construção de modelos alternativos de processo penal.
timadora dos aparatos repressivos do Estado. A mudança para um regime
Para demonstrar muito brevemente como a formação discursiva em democrático não apresentou significativas mudanças no comportamento do
torno do processo penal brasileiro desconecta a historicidade dos argumentos, STF no controle concentrado de dispositivos legais pré-democráticos. Mas
reputando-os como imediatamente ligados a um pensamento liberal, basta este papel não poderia ser exercido de maneira isolada.
verificar-se a discussão em torno da “natureza do direito processual penal” no
O tecnicismo jurídico-penal, alavancado ao status de tecnicismo ju-
Brasil. Para a civilística processual penal brasileira, o processo penal é um meio
rídico-penal constitucional, tratou de remodelar funções, objetivos, limites
de coação indireta1626 ou ainda, um meio “indireto de aplicação do direito
semânticos e pragmáticos do processo penal, investindo-os de esqueleto
penal1627. Inclusive, diga-se de passagem, sem muitos constrangimentos, a
constitucional e “democrático”. As categorias processuais penais foram res-
civilística processual penal brasileira, no escopo de “tecnicamente” enfrentar
significadas através de um esquema de adequação constitucional. Tem-se
uma determinada questão, não enxergará grandes problemas em definir a
portanto, a construção ressignificada das funções discursivas destas cate-
questão, recorrendo-se a argumentos de autoridade, mesmo provenientes de
gorias, que como demonstrado neste capítulo, não foram abolidas pelas
juristas do fascismo, como o caso de se recorrer a MANZINI, por exemplo.
reformas processuais penais. Inclusive, em alguns casos, os traços autori-
A acomodação ou melhor, a alienação dos processualistas no Brasil tários destas categorias foram realçados, ativando novas relações de poder,
1626. “Assim, o jus puniendi (direito ou poder de punir) pertence ao Estado, não é auto-executável dada a sua como é o caso da juristocracia. Contudo, tais categorias permaneceram
característica de direito de coação indireta, que só se efetiva ou concretiza mediante prévio pronunciamento operando em sintonia com as velhas práticas punitivas de fundo autoritário.
jurisdicional”. BARBOSA, Marcelo Fortes. Ensaio Sobre a Ação Penal. In Justitia. v. 38. n. 92, 1934. p. 97.
1627. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos E isto em pleno regime democrático.
Tribunais, 1982. p. 04.
484 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO III 485

O advento da Constituição da República de 1988, portanto, repre- relação esteja presente no julgamento do agravo regimental nos embargos de
sentou a obrigatoriedade de reformulação de um discurso legitimatório divergência nº 279.889/AL1630, pelo Superior Tribunal de Justiça, de relatoria
das práticas processuais penais, dos institutos do processo penal, de seus do então ministro Humberto BARROS, que afirmou:
agentes, do Ministério Público e da defesa. Tudo isso se deu no plano “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro
das funções declaradas extraídas da Constituição. Mas esta ressignificação do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição.
manteve, como não poderia deixar de ser, intactas as funções reais de fun- O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como
cionamento dos dispositivos processuais penais. O discurso processual penal orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina
de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha
pós-1988 repetiu, em larga medida, o discurso otimista dos processualistas consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este
com o advento da Constituição de 1946. Vejamos neste sentido as palavras Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs.
de GOMES NETO, crendo na mudança de regime, mas ao mesmo tempo ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem
desconfiado em relação à manutenção de certos institutos: assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus
integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior
“com o advento da Constituição Federal liberal e democrática de 1946, fruto Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental ex-
do heroísmo e do sacrifício de milhões de seres humanos, grande número de pressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de
artigos e de parágrafos dispersos da legislação da fase histórica anterior está ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a de-
revogado. Mas teimam alguns estranhamente em sobreviver, embora seja da claração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição
competência e da obrigação do aplicador da lei, dar-lhe interpretação compa- Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para
tível com os nossos preceitos máximos, ou, se necessário, aplicar diretamente efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja”
a Constituição, que é auto-aplicável em tudo que diz respeito à salvaguarda
dos direitos individuais e à organização do governo”1628. O contexto, portanto, que justifica, a sobrevivência de um corpo legislati-
vo refratário à democracia encontra explicação (ainda que parcial), no conjunto
Este mesmo otimismo relativamente às mudanças constitucionais poderá
de fenômenos neste capítulo abordados. Sem dúvida, a imunização política
ser encontrado em LEÃO1629. Este otimismo, incapaz de perceber as funções
das categorias processuais1631 e o processo de ressignificação por elas sofrido
reais exercidas pelos dispositivos processuais penais, provoca ainda maior tensão
autoriza que se investigue mais de perto o fenômeno. CASARA detectará na
entre law in books e law in action, o que contribui ainda mais para: a) a incom-
figura do mito (e das mitologias processuais penais) o processo de naturalização
patibilidade entre teoria do direito e prática jurisprudencial, reforçando os níveis
– compreendido como violência simbólica – do autoritarismo, conduzindo à
de decisionismo; b) produz um “efeito de domesticação doutrinária”, pois es-
aceitação dos modos como atua o processo penal no Brasil1632. O autor elenca
pecialmente os manuais de processo penal (evidentemente não só eles) acabam
diversos mitemas que estruturam e arvoram o processo penal brasileiro (alguns
por ser configurados como uma síntese de julgados, com algumas explicações
aventados neste trabalho), como o mito da neutralidade do julgador, o da im-
adicionais, na expectativa de oferecer racionalidade a um sistema caótico de
parcialidade do Ministério Público, o da verdade real, o do livre convencimento,
decisões judiciais; c) compreender a doutrina como um corpo dispensável de
o do consenso no processo penal, além daquele de conceber o processo penal
produção jurídica, já que ela (falando aqui de obras que não apenas reprodu-
como instrumento de pacificação social ou de segurança pública1633.
zem julgados das cortes) não tem importância para as decisões, a não ser para
autorreferenciamento (O STF é pródigo em citar autores que em seus manuais A elevação de construtos semiológicos ao patamar de verdadeiros proces-
não questionam demasiadamente as suas decisões e cuja “doutrina” é amigável sos de sublimação autoritária, conduziu à multiplicação do corpus legislativo
relativamente a tais entendimentos – embora existam exceções e portanto, não
1630. Julgado em 28 de outubro de 2003.
se podendo generalizar tal afirmação). Talvez o caso mais significativo desta 1631. “Nosso sistema jurídico-processual é, portanto, relativamente imune à transformações políticas do Estado
e lhes cabe amoldar e condicionar as incidências”. ALBUQUERQUE, Francisco Manoel Xavier de. O
1628. GOMES NETO, F. A. Teoria e Prática do Código de Processo Penal. v. I. Rio de Janeiro: José Konfino, Direito Processual na Constituição de 1967. In Revista de Informação Legislativa. v. 6. n. 22, 1969. p. 05.
1957. p. 05. 1632. CASARA, Rubens. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 142.
1629. LEÃO, Nilzardo Carneiro. Princípios do Processo Penal. Recife: Imprensa Universitária, 1960. p. 92. 1633. CASARA, Rubens. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 144 – 217.
486 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

oriundo da tradição política de CAMPOS. A crença deliberada no STF como


uma entidade capaz de barrar as categorias autoritárias foi um arranjo que se
deu após o advento da Constituição de 1988, como que pervertendo uma
CAPÍTULO IV
história de auxílio à produção da legalidade autoritária que marcaria sua
presença na história brasileira. A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO PENAL:
Entretanto, não obstante todo o quadro até o presente momento identifi- UM SIGNIFICANTE-REITOR NA CONSTRUÇÃO
cado, resta avançar sobre o que se poderia considerar como o “significante-reitor” DO PENSAMENTO AUTORITÁRIO BRASILEIRO
do autoritarismo processual penal brasileiro, capaz de fazer convergir para junto
de si, em uma verdadeira função de atrator, as diversas categorias aqui examina- Após passarmos por três capítulos que versaram sobre a inscrição do
das, fazendo-as passar indenes pelo advento de uma Constituição democrática. autoritarismo na cultura processual brasileira e italiana, e especialmente,
Trata-se do conceito de instrumentalidade do processo, cujas premissas teóricas identificadas as razões pelas quais tal cultura jurídico-processual fez brotar
conduziram à grave crise que o processo penal brasileiro vive. uma legislação mantenedora de categorias processuais que conservam certo
Tal conceito, inexplicavelmente, jamais foi objeto de uma crítica franca gosto pela antidemocracia, tem-se como objetivo do presente capítulo estu-
a partir de seus alicerces políticos. Aparentemente, se insere em um pensa- dar como, mesmo com o advento da Constituição da República de 1988,
mento anti-tecnicista. Contudo, em se analisando os seus arranjos para além a mesma cultura processualista permaneceu quase intocada. Isto é, como,
do discurso declarado, o que se tem é uma faceta (aparentemente em con- mesmo com o advento de um novo regime jurídico-político, o processo penal
sonância com o constitucionalismo) do tecnicismo, com a diferença de que brasileiro não sofreu profundas reformulações, sendo inclusive, agravado o
este tencnicismo não renegará suas relações políticas1634. O instrumentalismo quadro de práticas punitivas irracionais.
como paradigma de processo, muito embora voltado contra o formalismo Para tanto, torna-se necessário investigar três situações, cada qual a seu
jurídico, vez por outra traz à tona novamente elementos arraigados no tecni- tempo, responsável pelo aprofundamento e enraizamento do cenário auto-
cismo, o que indica claramente que o tecnicismo jurídico não fulminou com ritário. Num primeiro momento, tem-se por oportuno discutir a base da
as relações entre política e direito. Apenas as “varreu para baixo do tapete”. codificação processual civil italiana, com a defesa de uma concepção publi-
Isto fica claro inclusive no discurso de uma das porta-vozes da perspectiva cística ou social de processo. Esta compreensão do fenômeno processual, que
instrumentalista: “No Brasil, a Nova Escola Processual de São Paulo concilia se encontra radicada na base do discurso instrumentalista, tem sua razão de
e funde as duas tendências (técnico científica e sociológica). E aglutinando ser, mesmo que o objeto do estudo esteja centrado no processo penal. Como
processualistas civis e penais, a partir de uma teoria geral, praticamente cons- a perspectiva instrumentalista se estrutura nesta visão sobre o fenômeno pro-
truída nesta Casa, debruça-se sobre os problemas atuais do processo, que cessual (civil), devemos conceder espaço para a sua discussão. Ademais, uma
analisa levando em conta suas conquistas científicas”1635. vez identificado que a noção de instrumentalidade, com a particularidade as-
É sobre uma anáise crítica do instrumentalismo e de sua pseudo-ade- sumida na processualística brasileira, se constitui como a narrativa dominante
rência constitucional ao processo penal o objeto do próximo capítulo. no campo do processo no Brasil (com efeito, a perspectiva instrumentalista
não é apenas um reflexo das propostas metodológicas da Escola Processual de
São Paulo, mas são difundidas e compartilhadas por um grande número de
1634. “E consagraram-se eles Professores Titulares com dois trabalhos primorosos: o primeiro, sobre a Instru-
mentalidade do processo, verdadeira obra de síntese de um processualista, Prof. Cândido Dinamarco, intelectuais), trataremos de desentranhar o seu núcleo ideológico.
que, a partir da visão técnico-científica, construístes um sistema aderente à realidade sócio-jurídica
e a esta instrumental”. GRINOVER, Ada Pellegrini. A “Nova Escola Processual de São Paulo”. In Esta a grande operação de análise de discurso levada a cabo neste capí-
________. Novas Tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p.
446. (p. 443-449). tulo. Por um lado, após identificar como se encontra constituída a perspectiva
1635. GRINOVER, Ada Pellegrini. A “Nova Escola Processual de São Paulo”. In ________. Novas Tendên-
cias do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 446. P. 449. instrumentalista, deve-se analisar como o seu tecido constitutivo esteve (e
488 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 489

está) conectado à ideologia da segurança nacional. Esta a tarefa que será rea- pela criminologia não passem de uma opération sublime…
lizada de forma analítica neste capítulo. Este capítulo procura seguir identificando como foi possível a instalação
Grande parte das críticas sobre as denúncias sistemáticas que repou- de um pensamento dominante no campo processual, não obstante os indícios
saram sobre os juristas que trabalharam durante o regime fascista italiano de sua enervação pela ideologia da segurança nacional no caso brasileiro. A
avançaram a partir do pressuposto de que atribuir o caráter autoritário a narrativa oficial, também contribui para um silêncio inquestionável relativa-
determinadas concepções de processo impede o diálogo e não contribui mente ao contributo de seus intelectuais em períodos ditatoriais, a exemplo
para o desenvolvimento de uma ciência processual1636. As críticas ao deno- do ocorrido no Brasil. Além disso, esta “história seletiva”, cuida de cindir a
minado “revisionismo” se dão, em grande parte, a partir de determinados atividade política de determinados pensadores de suas atividades intelectivas,
axiomas, considerados como inexpugnáveis (tome-se como exemplo o texto como se realmente a dogmática processual estivesse imunizada de quaisquer
de CARNACINI, que será mais adiante examinado). A fim de sustentar elementos políticos. Como destaca SEELANDER, “o silêncio sobre a cola-
a apoliticidade de legislações que deram apoio a regimes políticos antide- boração com as ditaduras tende a se acentuar no meio jurídico, no qual a
mocráticos, a figura pessoalizada de determinados intelectuais, suas virtudes ascensão a posições de destaque e mesmo êxito na advocacia tendem a ser
republicanas, e, em especial, um exame meramente técnico dos institutos mais difíceis para quem sabe manter canais abertos, não provocar “antipatias”,
encontrados nestas legislações formam cadeias de enunciados que pretendem impedir vetos informais e evitar a fama de “criador de caso””1638.
salvaguardar tais corpos legislativos. Isentando, via de consequência, tanto os Portanto, o objetivo primordial do capítulo é sinalizar como se cons-
seus autores intelectuais como, principalmente, as categorias processuais ali titui uma doutrina que atualmente é ensinada em universidades, valorada
encontradas. Com efeito, nada è mais espantoso do que a tentativa de resgatar jurisprudencialmente e compartilhada por uma comunidade interpretativa,
certas categorias processuais de suas raízes políticas ou ainda, dos préstimos como se tais trabalhos fossem o produto exclusivo de afazeres científicos,
que tais institutos proporcionaram aos governos antidemocráticos. não contaminados por percepções políticas. Novamente nas palavras de
Para PICÓ I JUNOY, o relevante no debate processual não é procurar SEELANDER, “a análise da trajetória e do pensamento dos juristas pró-di-
a origem histórica de um instituto, em que regime político teria surgido, mas tadura é tanto mais necessária, por ser imprescindível para a compreensão
apenas verificar se tal instituto é ou não válido para realizar justiça sem sacri- da base ideológica de boa parte da literatura jurídica ainda utilizada no
fícios de garantias pocessuais. Ou ainda, como assevera o autor, se institutos ensino e no foro”1639.
de origem presumidamente fascista vulneram alguma garantia processual1637. Como se poderá notar, existem relações inexploradas entre a pers-
Esta postura pode ser adequada para toda aquela cultura que dá de ombros pectiva instrumentalista e a ideologia da segurança nacional. A análise da
para a história, que repetindo a metodologia tecnicista, vislumbra a histó- instrumentalidade do processo – e toda a sorte de profundas alterações no
ria como uma “ciência auxiliar”. São posturas como estas que permitem ao campo processual penal – constitui acervo indecomponível de uma análi-
pensamento antidemocrático cruzar as fronteiras temporais de um regime se sobre os processos de ressignificação das categorias processuais penais.
político, se instalando no coração da dogmática processual nas democracias Ela dará nova formatação a velhos institutos, mantendo-se em linha de
ocidentais, inviabilizando saídas e alternativas à crise do sistema de justiça. continuidade com velhas expressões autoritárias, renovando epistemologi-
A menos que tudo esteja bem, que o processo penal realmente seja, tanto no camente o discurso processualista e, sem dúvidas, garantindo determinada
Brasil como em outros países ocidentais, uma ferramenta libertária a serviço aproximação ao campo constitucional.
de uma democracia plena. E que, enfim, todos os problemas identificados
1638. SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. Juristas e Ditadura: uma leitura brasileira. In FONSECA, Ri-
cardo Marcelo; SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. História do Direito em Perspectiva: do antigo
1636. Cf PICÓ I JUNOY, Juan. El Derecho Procesal Entre el Garantismo y La Eficacia: un debate mal planteado. regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2009. p. 416.
In MONTERO AROCA, Juan. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 109-127. 1639. SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. Juristas e Ditadura: uma leitura brasileira. In FONSECA, Ri-
1637. PICÓ I JUNOY, Juan. El Derecho Procesal Entre el Garantismo y La Eficacia: un debate mal planteado. cardo Marcelo; SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. História do Direito em Perspectiva: do antigo
In MONTERO AROCA, Juan. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 127. regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2009. p. 420.
490 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 491

4.1. A CONCEPÇÃO PUBLICÍSTICA (OU SOCIAL) DE processo decorrente da denominada cientificização do processo (civil), atribuída
PROCESSO CIVIL: UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO à escola de CHIOVENDA. A concepção publicística de processo diz respeito
AUTORITÁRIO?1640 ao movimento de preenchimento das categorias processuais, construídas si-
milarmente àquelas do direito civil, com conteúdo público. O processo civil,
Discutir sobre a natureza “publicística” do processo penal consiste em
portanto, foi operado de forma consistente com a construção da publicística
um trabalho de Sísifo. Inútil por excelência, óbvio em demasia para merecer
italiana, capitaneada por Vittorio Emanuele ORLANDO. A tentativa de se im-
um tratamento destacado. Sob o manto da noção de concepção publicística
plementar um código com estas características somente logrou êxito em 1940,
de processo deve-se atentar para a aproximação do processo civil ao penal. Se
após diversas tentativas frustradas de se erigir um corpus legislativo. Grande
o processo penal jamais teve categorias próprias (já que as tomou emprestado
parte deste processo frustrado reside justamente na deficiência do processo
do processo civil – que por seu turno, através da publicística decimonônica
civil em reunir categorias políticas que pudessem servir ao regime. Coisa que
italiana, deu um conteúdo público aos conceitos herdados do direito civil), o
o processo penal não necessitava, pois as suas categorias foram reunidas sob
processo civil jamais conseguiu elaborar uma ideologia política. Em síntese,
o signo da continuidade com o “liberalismo” italiano, ganhando uma torsão
se poderia resumir esta relação da seguinte forma: se ao processo penal fal-
autoritária com o código Rocco e sob a atenta tutela de MANZINI. Portanto,
tava um corpo (as categorias processuais), ao processo civil faltava o espírito
a concepção publicísitca de processo se refere justamente à construção de uma
(uma determinada política). A aproximação do processo civil ao processo
teoria do processo que se inicia com o pensamento de CHIOVENDA, através
penal correspondeu a um segundo movimento, que operou no sentido de
da inserção do germanismo de WACH e KLEIN, dentre outros, além da ins-
inscrever a técnica processual em uma constelação de significantes políticos.
piração no código de processo civil austríaco1641.
A difícil elaboração de um código de processo civil na Itália fascista, que pre-
cisou passar por três projetos distintos, com três ministros da justiça diversos Três significantes devem ser reunidos para se poder oferecer um trata-
explica, em parte, o vazio político do processo civil. Foi necessário buscar no mento adequado da matéria. Para efeitos de confecção do presente e derradeiro
processo penal pontos de inspiração. A denominada “concepção publicística capítulo, a noção de “concepção publicística de processo”, “concepção auto-
de processo” corresponde ao êxito logrado no processo de preenchimento ritária de processo” e ainda, “concepção social de processo”, correspondem
ideológico das categorias pertinentes ao processo civil. Prenhe de elaborações a uma unidade ideológica que não pode ser fraturada. Grande parte da dis-
técnicas e de um justo desenvolvimento maximizado da disciplina, o processo cussão crítica em torno desta orientação reside especialmente no campo do
civil jamais conseguiu, como o processo penal, mobilizar uma catexia coletiva processo civil (já se advertiu sobre a imprecação de se imiscuir no estudo de
e pulsões catárticas como o processo penal. uma “publicística processual penal”).
Há que se ter presente os seguintes fenômenos, no escopo de se poder Uma semântica política da história como metodologia de base, na tenta-
perceber o quanto significa esta concepção publicística. Em primeiro lugar, a tiva de orientar as movimentações dos significantes estruturadores do processo
concepção publicística não se confunde com o caráter público do processo civil, penal, não pode prescindir de uma análise um pouco mais aprofundada sobre
articulado em torno da separação e da autonomia do processo civil relativamen- a construção jurídico-política destas categorias. E isto implica retomar uma
te ao direito material. A natureza publicística do processo civil se deu como um conclusão já apresentada nos capítulos I, II e III deste ensaio. Seria simplista
em demasia afirmar que a construção das categorias que habitam o processo
1640. Há que se ressaltar que sequer existe consenso sobre as categorias de atuação do código de processo
civil italiano. Majoritariamente, defende-se que houve uma publicização de todas as categorias. Por 1641. Sobre o equívoco da análise sobre o código austríaco e sobre a concepção de publicismo Cf CIPRIANI,
outro lado, sustenta CAPPELLETTI que “o código de processo civil vigente, não obstante a sua origi- Franco. En el Centenario del Reglamento de Klein. Disponível em https://campus.academiadederecho.
nariamente proclamada inspiração autoritária, acolheu, com efeito, a concepção acentuadamente pri- org/upload/webs/sistemasproc/Links/ordenanzaautriaca.htm. Acesso em 15.-2.2017. Sobre a concep-
vatística e individualística de direito civil que foi própria do século passado e de sua ideologia “libe- ção publicística de processo Cf CARNELUTTI, Francesco. Carattere del Nuovo Processo Civile Italia-
ral”; concepção que comporta um poder “monopolístico” do indivíduo na disposição de seus direitos no. In Rivista di Diritto Processuale Civile. v. I. n. 3, Padova, 1941; Sobre a publicização do processo
econômico-patrimoniais, com todas as repercussões que de tal concepção derivam no plano do direito no Brasil Cf AMENDOEIRA JÚNIOR, Sidnei. Poderes do Juiz e Tutela Jurisdicional: a utilização
processual”. CAPPELLETTI, Mauro. Libertad Individual y Justicia Social em el Proceso Civil Italiano. racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva.
In ________. Proceso, Ideologías, Sociedad. Buenos Aires: Ediciones Europa-América, 1974. p. 100. São Paulo: Atlas, 2006.
492 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 493

penal seria o resultado de uma ampla e abstrata teoria geral do processo, ou um código de processo civil na Itália se deve, em grande medida, à dificul-
de que o direito privado e o processo civil, de forma pura e simples, teriam dade de esta disciplina envolver aspectos políticos. Portanto, o processo de
lhe outorgado a forma com a qual se apresenta atualmente. legiferação fascista foi, já ao final da década de 30, a de um corpo perfeito de
Com efeito, é preciso resgatar a hipótese traçada anteriormente, de que princípios e categorias bem formatadas em busca de uma alma. Taltava uma
a juspublicística italiana e a escola processual científica italiana, construída ideologia política a dar sustentação ao código de processo civil. Algo que por
em torno da figura de CHIOVENDA, herdou a tentativa de sistematização seu turno, não foi um problema do processo penal. Portanto, a propalada
do direito público em torno das figuras do direito privado. Neste primeiro “concepção publicística de processo”, tomada por alguns intelectuais como
momento, portanto, os traços essenciais da teoria do processo (e também a direção a ser dada ao campo processual, no Brasil, não vem acompanhada
como demonstrado através da análise do pensamento de Arturo ROCCO, dos fundamentos pelos quais se haveria erigido similar construto na Itália.
relativo ao direito penal), gravitariam em torno da reconstrução juspublicista Durante o período do regime fascista, esta especial relação entre processo
organizada em torno de conceitos privatistas. As relações entre processo civil civil e processo penal, desde um ponto de vista eminentemente técnico aparece
e penal são relações a três tempos. Portanto, as denúncias críticas em torno da de forma muito clara no pensamento de Piero CALAMANDREI. Segundo o
“privatização” do processo penal, por meio de uma teoria geral do processo, autor, haveria uma nova forma de processo civil nascendo, orientada por câno-
em que pese serem corretas, deixam a desejar no campo dos fundamentos de nes outrora reitores exclusivamente do campo processual penal. Tal orientação
tal aproximação. Também não oferece maiores pistas para se entender como ficará marcada em torno do princípio inquisitivo no processo civil1642.
tal fenômeno se encadearia. Como referido diversas vezes, o processo civil Esta relação entre processo civil e penal, a partir da “concepção
e sua “escola sistemática” são o reflexo do pensamento da escola histórica publicística” fica muito evidente. Encontra-se também esta sugestão no pen-
tedesca, que seria a responsável pelo processo de autonomização do direito samento de DE MARSICO, que, em conferência na Universidade de Roma,
processual relativamente ao direito material. A transformação do processo em 1941, afirma: “o início do renascimento despontou no próprio âmbito
civil em uma disciplina “pública” respondia, justamente, ao processo de edi- da ciência do processo civil com aquela elevação em direção à concepção
ficação de uma teoria geral do direito. Sua importação ao campo do processo
1642. Segundo CALAMANDREI, existiria uma afirmação geral, feita pelos penalistas, de que ambos os pro-
civil italiano, portanto, já traria consigo a substância publicística que fora cessos (civil e penal) consistiriam em dois aspectos de um mesmo fenômeno. A consequência deste
tratamento residiria na identificação da diversidade de objetivos e de estruturas nos dois processos,
aplicada sobre as bases do direito privado. O grande clichê pandectístico da ocasionando, então, a conclusão de que não haveria a possibilidade de um tratamento científico comum.
relação jurídica (claramente um conceito de direito privado) e de seu trans- Segundo CALAMANDREI, o problema de tal modo de pensar estaria na contraposição entre processo
penal e civil através da iniciativa das partes e da possibilidade de iniciativa judicial. Tal forma de se
porte ao processo permite visualizar o fenômeno. O processo civil já nasce conceber o processo civil colocaria no centro o “princípio dispositivo”. Entretanto, nesta forma de se
conceber o o processo civil, não se atentaria devidamente para o “processo civil inquisitório”, muito
em meio à metamorfose das categorias privadas, que resultaria no direito parecido ao processo penal. Assim sendo, ao invés de um abismo entre processo civil e penal, have-
ria uma continuidade, uma forma intermediária, através da qual a conexão entre ambos os campos se
público do século XIX e XX. O processo penal se valeu desta construção. manteria. CALAMANDREI, Piero. Linee Fondamentali del Processo Civile Inquisitorio. In _______.
Opere Giuridiche. v. I. Napoli: Morano, 1965. p. 145-146. Continua afirmando CALAMANDREI que
Anteriormente colado no direito material (tanto que em diversos tratados, a distinção entre processo civil e penal não pode estar baseada no critério da disponibilidade do direito
material (p.149). Tanto no processo civil inquisitório como no processo penal, haveria a busca pela
como o de CARRARA, o procedimento penal era tratado no último livro), o verdade real (p. 169), apesar de no caso do processo civil, o princípio dispositivo não ser completa-
processo penal se beneficiou da construção processual-civilística. Foi a partir mente abolido, como no caso do processo penal (p. 171). Conclui CALAMANDREI afirmando que a
diferença essencial entre o proesso civil inquisitório e o processo penal reside na circunstância de que no
desta orientação que se desgarrou do direito material. processo penal, a pretensão punitiva não pode ser satisfeita sem o prévio acertamento jurisdicional, ex-
cluindo uma punição administrativa, acarretando o afastamento do princípio da oportunidade, já que o
processo penal não tutela interesses exclusivamente individuais. O processo civil inquisitório, por outro
As codificações de 1913 e especialmente, a de 1930, garantiram a au- lado, teria como interesse fundamental evitar que o acertamento do fato se dê em condições de ausência
dos pressupostos, devendo o interesse ser tutelado pelo Estado, mesmo quando provocado pelas partes.
tonomia do processo penal na Itália. Expressão máxima do regime fascista, Desta forma, o proceso civil inquisitório seria uma forma de verificação da legitimidade do pedido das
considerado o “mais fascista dos códigos”, nas palavras do Ministro da Justiça partes. Ibidem. p. 176. No mesm sentido é a visão de SCHONKE, para quem “a acentuação progressiva
do aspecto público do processo civil, o aproxima cada vez mais ao processo penal. Chegou-se a afirmar
de MUSSOLINI, Alfredo ROCCO, esta legislação consegiu cristalizar, em uma “penalização” do processo civil, mas quiçá deva exprimir este fenômeno de uma forma melhor a
acentuação dos interesses da comunidade. Esta evolução esfuma os limites entre processo civil e penal
normas jurídicas, a viva face do regime político. A dificuldade de se elaborar e oferece mais ambiente, a cada dia, a uma teoria processual comum”. SCHONKE, Adolf. Derecho
Procesal Civil. 5 ed. Barcelona: Bosch, 1950 p. 16.
494 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 495

publicística do processo que conduz a considerar daqui em diante toda a nos termos de Francisco CAMPOS, “autoritária”, estava instalada1647, sendo
jurisdição civil, jurisdição de mero direito objetivo e, avizinhando-se não reconhecida na própria Exposição de Motivos do corpus legislativo.
mais o processo penal ao processo civil, mas este em direção àquele, inverte, O Código de Processo Civil Italiano colaborará fortemente para dar um
talvez, também a rota do trabalho científico”1643. acento marcadamente autoritário a muitas categorias que foram construídas
É justamente sobre esta base que a teoria geral do processo, no Brasil, pelo processo civil. Neste sentido, pode-se afirmar que uma concepção publi-
se desenvolverá. Uma teoria geral do processo no qual o corpo de institu- cística de processo corresponde àquela “que submete as partes e seus direitos
tos reacionários do velho publicismo decimonônico encontra o espírito substanciais e processuais à proeminência do Estado e, portanto, da supremacia
politicamente autoritário do fascismo. E isto equivale a dizer que em seu do juiz”1648. A concepção “privatista” de processo civil (aquela necessariamente
nascimento, a teoria geral do processo já aparece com as vestes do direito anterior à entrada em vigência do novo regime político italiano), portanto,
processual civil mussoliniano (um processo civil ideologicamente orienta- haveria de ser substituída por outra, denominada “publicística”. Tal orientação
do pelo processo penal). A “teoria geral do processo” quando começa a ser não é nova, sendo conhecida dos juristas brasileiros que escreviam no Brasil
empregada pelos intelectuais do período, assume as vestes da concepção na década de 30 e 40. Neste aspecto, portanto, pode-se citar o pensamento
publicística de processo, impondo todo o fundo político que marcou o de SILVA, para quem “a concepção privatista do processo cedeu lugar à con-
seu nascimento. Aqui, tal orientação não assumirá a estrutura e o vigor cepção publicística. Efetivamente, seria ilógico e incoerente que, abertas novas
liberal desde as feições chiovendianas, mas sobretudo, a de seus discípulos, categorias no tronco do direito, ruída a sua estrutura individualista, o Estado
que radicalizaram o seu pensamento, a ponto de se descolar do caposcuola. continuasse a se desinteressar pelo instrumento de realização do direito que
Quando LIEBMAN chega ao Brasil, na década de 19401644, e em torno dele procura prodigalizar a todos que vivem em comunhão”1649.
se constroi a Escola Processual de São Paulo, e que corresponderá ao período O Código de Processo Civil Italiano de 1940, também conhecido como
considerado como o de cientificização do direito processual brasileiro1645, Codice Grandi-Calamandrei, orientava-se claramente nesta linha de direção,
será este o paradigma que governará as concepções de processo, acadêmicas e acentuando o seu caráter “instrumental”. Esta natureza é reconhecida pelo
legislativas1646. Deve-se registrar que no caso brasileiro, o código de processo próprio Enrico Tullio LIEBMAN, que ao comentar o processo e a discussão
civil de 1939 antecipava (ao menos na promulgação), o italiano de 1940, em torno de um novo código na Itália (o Projeto Solmi, que apenas renovou
muito embora se aproximasse radicalmente daquele, seja na ideologia, seja o projeto De Francisci, e que posteriormente se transformou no Código de
em algumas categorias vitais. A concepção publicística de processo – ou Processo Civil, mantendo a mesma orientação) afirmava que “o caráter prin-
1643. DE MARSICO, Alfredo. Dogmatica e Politica Nella Scienza del Processo Penale. In _______. Nuovi
cipal da reforma consiste na sua orientação nitidamente publicística e isso
Studi di Diritto Penale. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 1951. p. 71. permanece no projeto definitivo”1650. O Código de Processo Civil Brasileiro
1644. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil. In Revista da Faculda-
de de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 98.
1645. “O espírito generoso e criativo do Mestre foi capaz de compreender em toda sua plenitude as circuns- 1647. “O momento da chegada de Liebman era o mais oportuno possível para o desenvolvimento da ciência
tâncias favoráveis. E à sua atividade acadêmica, ele somou uma outra, que produziu resultados perma- processual. O novo Código trazia algumas inovações inspiradas pelos ordenamentos europeus mais
nentes. Reunindo os jovens discípulos nas tardes de sábado na modesta residência da Alameda Rocha avançados: o procedimento oral com seus postulados fundamentais; o despacho saneador do sistema
Azevedo, discutia os seus estudos, aprofundava as discussões e se prodigalizava em inigualáveis lições português; o aumento dos poderes do juiz na direção e valoração da prova e, sobretudo, o cunho publi-
utilizando o método científico até aquele momento desconhecido do processualista brasileiro. GRINO- cista do processo, como instrumento estatal destinado à administração da justiça”. GRINOVER, Ada
VER, Ada Pellegrini. O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil. In Revista da Faculdade de Pellegrini. O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil. In Revista da Faculdade de Direito da
Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 99. No mesmo sentido Alfredo BU- Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 99.
ZAID: “a presença de Liebman entre nós significa a alvorada do direito processual civil como sistema 1648. MONTELEONE, Girolamo. El Actual Debate Sobre las “Orientaciones Publicísticas del Proceso Civil.
científico”. BUZAID, Alfredo. Grandes Processualistas. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 09. Ainda: “A Disponível em http://www.academiadederecho.org/upload/biblio/contenidos/DPC__El_DP__El_AD_
vida de Enrico Tullio Liebman, conquanto tivesse sido curta a sua permanência entre nós, incorpora-se sobre_las_OP_del_PC__Girolamo_Monteleone.pdf. Acesso em 01.02.2017. p. 223.
definitivamente na história do direito processual civil brasileiro como um marco fundamental, como 1649. SILVA, Carlos Medeiros. Notas à Margem da Reforma Processual. In Revista Forense. v. 37.n. 82. Rio
um apostolado da ciência, como um templo do saber. Antes dele houve grandes processualistas, mas de Janeiro: Forense, 1940. p. 21.
não houve escola; depois dele houve escola, no seio da qual floresceram grandes processualistas. Ele 1650. LIEBMAN, Enrico Tullio. Os Trabalhos Para Reforma do Processo Civil na Itália. In Revista Forense.
foi um divisor que, pondo remate a certo estilo de atividade processual, inaugurou entre nós o método a. 37. v. 81. n. 439. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 78. CALAMANDREI criticará o Projeto Solmi
científico, que os seus discípulos abraçaram apaixonadamente”. Ibidem. p. 14. (do qual fez parte como revisor). O que é interessante destacar, neste ponto, é a constatação, por CA-
1646. “A influência das ideias de Liebman há de ser considerada no plano dos conceitos e no plano da política LAMANDREI, de que o Projeto não estaria em sintonia com o direito material. Ao adotar um tipo de
legislativa”. BUZAID, Alfredo. Grandes Processualistas. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 20. processo único, o Projeto Solmi, com ampla mas não com absoluta prevalência da iniciativa oficial,
496 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 497

de 1939 também se sintonizava com este sentido “publicista”, como seria de que de forma talvez inconsciente, estaria em sintonia com o que se passava nas
se esperar dado o seu período histórico, algo que pode ser vislumbrado na sua diversas legislações mundo afora, que, ao aproximar o processo civil do penal,
Exposição de Motivos, firmada por Francisco CAMPOS1651. recebeu a designação, na Alemanha, de Poenalisierung ou Kriminalisierung des
O elemento essencial da concepção publicista de processo reside no Zivilprozesses – ou na Itália, o impenalimento del processo civile1655.
reforço dos poderes dos juízes, que se transformariam em protagonistas da A concepção publicística de processo, portanto, será refratária aos postu-
disputa judicial. O conflito – mesmo o aparentemente privado – seria re- lados egoístas representados pelo individualismo, o que se diga de passagem,
paginado, assumindo notável feição pública1652. Novamente nas palavras de seria de se esperar dos novos regimes italiano e brasileiro1656. Contudo, o
LIEBMAN pode-se compreender o que representa, em termos de estrutura que marca profundamente o discurso em torno desta concepção é a sua ten-
processual, esta orientação publicística: “o projeto Solmi aumenta notavelmen- tativa de reduzi-lo ao sintoma de uma nova dimensão técnica e dogmática
te os poderes do juiz, seja no desenvolvimento exterior do processo, que está do processo, aparentemente desvinculada de quaisquer influências políticas
sujeito a seu controle e direção, seja na valorização da decisão, e em especial, ou éticas, emprestando a uma pretensa ideia de continuidade relativamente
na direção e avaliação das provas. O princípio dispositivo cede passo, em à tradição chiovendiana1657 (a paternidade do código de 1940 foi atribuída
parte, ao princípio inquisitório, e a posição do juiz é notavelmente asseme- unilateralmente por CALAMANDREI a CHIOVENDA1658), o argumento
lhada à do juiz no processo penal”1653. As mesmas conclusões serão tecidas suficiente para livrá-la de influxos metajurídicos. Esta orientação, de acordo
por CALAMANDREI, ao afirmar que a tendência publicística é o reflexo com o discurso de inúmeros juristas que se dedicaram ao seu exame, corres-
projetado sobre o processo civil de um fenômeno mais amplo, que atingiu ponderia a uma “evolução” científica, sem como referido, deixar-se conduzir
diversos ordenamentos jurídicos do mundo: a prevalência do coletivo sobre por influências políticas. Na base do tecnicismo jurídico, se garantiria a
o individual. Um sistema processual não mais poderia se basear no princípio “imunidade” da concepção publicística de processo às mudanças políticas.
dispositivo, representante do individualismo liberal. Pelo contrário, ocorreria O reforço do papel do juiz, nesse ponto, corresponderia a uma nova técnica
um fenômeno de substituição do liberalismo e de seu princípio dispositivo pelo de instrumentalidade do processo, a fim de servir à tutela do direito material.
autoritarismo e seu correlato, o princípio inquisitivo1654. Desta forma, come- Esta “indenidade” dos poderes instrutórios do juiz relativamente às orienta-
çavam a ruir as barreiras que, devido a velhas tradições, tornavam insuperáveis ções de cunho político garantiria que a substituição do princípio dispositivo
as distinções entre processo civil e penal. A teoria geral do processo, reuniria, pelo inquisitivo correspondesse a um ditame de mero aperfeiçoamento téc-
assim, o estudo de diversos problemas concernentes ao processo civil e penal, nico. Portanto, não deixaria de vir à tona, independentemente do regime

se contentou com um sistema que, para a controvérsia entre relações de direito público, seria “pouco 1655. CALAMANDREI, Piero. Sul Progetto Preliminare Solmi. In _______. Opere Giuridiche. v. I. Napoli:
inquisitório” e assim, “atrasado relativamente às exigências publicísticas do direito substancial”. CA- Morano, 1965. p. 306. Em escrito crítico a uma proposta do alemão BAUMBACH, que propunha a
LAMANDREI, Piero. Il Processo Inquisitorio e il Diritto Civile. In _______. Opere Giuridiche. v. I. abolição do processo civil e a sua substituição pela jurisdição voluntária, CALAMANDREI, tecerá uma
Napoli: Morano, 1965. p. p. 426. crítica à publicização radical do processo civil, o que equivaleria à sua abolição, assim como a do Estado
1651. De acordo com a narrativa oficial (que sintoniza a legislação brasileira em um quadro de continuidade de Direito ou do próprio direito. CALAMANDREI, Piero. Abolizione del Processo Civile. In _______.
liberal), o Códido de 1939-40 foi produto do pensamento de CHIOVENDA: “E, sobretudo, o Código Opere Giuridiche. v. I. Napoli: Morano, 1965. p. 389-390.
foi eco do brilhante trabalho de Chiovenda em prol do princípio da oralidade. A adoção deste princípio 1656. “É evidente que seria desprovida de senso uma reforma processual que, em pleno regime fascista, con-
no Brasil foi, sem dúvida, mais nítida do que a do próprio Código italiano de alguns anos depois”. DI- sagrasse os velhos princípios individualistas do processo puramente dispositivo. Mas não seria difícil
NAMARCO, Cândido Rangel. Sobre o Desenvolvimento da Doutrina Brasileira no Processo Civil. In prognosticar que, ainda sem o advento do fascismo, as aludidas razões de ordem técnica e prática,
Revista de Processo. v. 27. São Paulo, 1982. p. 28. postas em plena luz por CHIOVENDA e pela doutrina posterior quase unânime, haveriam fatalmente
1652. “A concepção publicística de processo, isto é, de que nele tem o Estado o interesse fundamental de resta- de conseguir a consagração legislativa”. GUIMARÃES, Luiz Machado. Processo Autoritário e Regime
belecer a ordem jurídica violada, reflete-se favoravelmente em todas as fases da demanda. O juiz passa a Liberal. In Revista Forense. v. 37.n 82. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 246.
dirigir o processo, a inteirar-se de todo o seu curso e imprimir-lhe a celeridade conveniente. O princípio 1657. “O Novo Código de Processo Civil quer ser um decidido retorno – realizado conscientemente pelo
dispositivo cede lugar ao inquisitório e uma vez instaurada a lide, fica o juiz autorizado a ordenar as di- trabalho de seleção histórica levado a cabo nos últimos cinquenta anos pela doutrina – às melhores tra-
ligências que lhe parecerem necessárias à formação de sua convicção”. SILVA, Carlos Medeiros. Notas dições pátrias”. CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. v. 1. 2 ed. Campinas:
à Margem da Reforma Processual. In Revista Forense. v. 37.n. 82. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 21. Bookseller, 2003. p. 78.
1653. LIEBMAN, Enrico Tullio. Os Trabalhos Para Reforma do Processo Civil na Itália. In Revista Forense. 1658. CALAMANDREI inclusive afirmará que a ideia de oralidade, herdada de CHIOVENDA, estaria pre-
a. 37. v. 81. n. 439. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 78. sente na reformulação do código de processo civil italiano (neste ponto CALAMANDREI se refere
1654. CALAMANDREI, Piero. Sul Progetto Preliminare Solmi. In _______. Opere Giuridiche. v. I. Napoli: ao Projeto Solmi). CALAMANDREI, Piero. Oralità nel Processo. In _______. Opere Giuridiche. v. I.
Morano, 1965. p. 305 Napoli: Morano, 1965. p. 451.
498 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 499

político brasileiro, como assevera ALBUQUERQUE: eleição política desta orientação.Trata-se, com efeito, de um processo de esca-
“O reforçamento dos podêres do juíz, como idéia menor, e o autoritarismo moteamento das operações que conduziram à reforma autoritária na Itália, e
judiciário, como idéia maior, representaram na elaboração do nosso Código de que é assumida pela maior parte dos processualistas brasileiros.
Processo Civil as ênfases que o deveriam situar no contexto político do Estado
Nôvo. Mas a contribuição trazida pela crítica, que não se fez de rogada e veio
Assim, seguindo com o pensamento de ALCALÁ ZAMORA y CASTIL-
de muitos lados, ao anteprojeto do saudoso Pedro Martins Batista serviu para LO, a caracterização de um ordenamento processual como liberal ou autoritário
escoimá-lo daqueles excessos que confortavam a dita idéia maior, do autoritaris- deveria efetuar-se unicamente através do critério jurídico1661. O autor toma
mo judiciário, enquanto permitiu que prosperasse o trânsito do juiz espectador como exemplo o código de processo civil italiano de 1940, que não possuiria
para o juiz personagem, do juíz passivo para o juíz ativo, do juíz escravizado
nada de fascista, se se retirar dele algumas frases da exposição de motivos. Aliás,
pelo poder dispositivo das partes para o juíz liberto pelo seu próprio poder
diretivo do processo. Mas era precisamente essa a terapêutica que convinha às para o autor, se deveria fazer uma distinção entre código “mussoliniano” e “fas-
mazelas do processo brasileiro; e a idéia menor, a do reforçamento dos poderes cista”, já que os códigos processuais de 30 e 40 não possuíam nada da ideologia
do juíz, acolheu-a o nosso Código na medida em que constituía um postulado política de MUSSOLINI, uma vez que o principal autor do código de processo
científico, derivado da concepção publicística do processo e relacionado com civil de 1940 foi ninguém menos do que CALAMANDREI, um “notório
a própria funcionalidade do princípio da oralidade, em si mesmo e nos seus
consectários. Desta sorte, na Ditadura ou fora dela, com inspirações políti- antifascista”1662. Para ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, o critério “históri-
cas autênticas ou fingidas, o Processo brasileiro elaborado naquele momento co-político não serve, por conta de seus vaivéns”, para caracterizar como liberal
histórico seria sempre, sob êsse aspecto, mais ou menos o que veio a ser”1659. ou autoritário um código1663. Desta maneira, utilizando-se exclusivamente de
A tentativa de imunizar o processo de todas as influências externas é um critério jurídico (ou interno), a pesquisa deve abdicar de qualquer recorte
uma velha conhecida da história do processualismo. Como exemplo, pode- externo, ou seja, à margem do clima político do período examinado.
mos aproveitar o pensamemento de ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, para A conclusão do autor, após descartar determinadas características que
quem não se pode confundir processo liberal com processo democrático. Para possibilitariam distinguir um processo liberal de um autoritário e aquela que
ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, nada mais antiliberal que o veredito mais nos interessa no momento, seria a de que, desde o seu ponto de vista (uni-
arbitrário dos jurados (note-se que a abolição do júri foi uma das principais camente a partir do “critério interno”) não haveria incompatibilidade alguma
“conquistas” da legislação fascista). Assim, segundo o autor, o critério his- entre liberalismo e autoritarismo no processo. Liberdade e autoridade, de modo
tórico-político seria imprestável para definir um processo como liberal ou algum seriam termos antitéticos1664. Temos, pois, aqui, uma vez mais, o sincre-
autoritário. A caracterização de liberal ou autoritário deveria ser buscada não tismo que caracteriza o pensamento tecnicista, que justapõe opostos e que tenta
desde fora, senão internamente, a partir dos traços fundamentais e os princí- de todas as formas salvaguardar o direito de influências externas.
pios que informam o seu funcionamento, devendo se diferenciar das regras Além disso, o mito desenvolvido por CALAMANDREI, que de forma
técnicas1660. Note-se que um dos principais argumentos utilizados por aqueles muito habilidosa havia atribuído ao menos chiovendiano dos códigos a sua
que não enxergam nas legislações fascistas problemas de ordem política será, paternidade científica, garantiria a continuidade da tradição italiana através
efetivamente, o recurso a uma plêiade de “regras técnicas”, que orientariam, à
margem de impulsos políticos, o processo. A afirmação de que por exemplo, 1661. ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, Niceto. Liberalismo y Autoritarismo en el Proceso. Disponível
os poderes instrutórios do juiz obedecem apenas a uma orientação técnica do em https://revistas.juridicas.unam.mx/index.php/derecho-comparado/article/view/572/832. Acesso em
12.03.2015. p. 573.
processo é, quiçá, uma das principais operações retóricas levadas a cabo pelos 1662. ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, Niceto. Liberalismo y Autoritarismo en el Proceso. Disponível
em https://revistas.juridicas.unam.mx/index.php/derecho-comparado/article/view/572/832. Acesso em
tecnicistas. E, assim, retirar a soberania do juiz em um processo dos fatores de 12.03.2015. p. 569, nota 36.
1663. ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, Niceto. Liberalismo y Autoritarismo en el Proceso. Disponível
1659. ALBUQUERQUE, Francisco Manoel Xavier de. O Direito Processual na Constituição de 1967. In em https://revistas.juridicas.unam.mx/index.php/derecho-comparado/article/view/572/832. Acesso em
Revista de Informação Legislativa. v. 6. n. 22, 1969. p. 05. 12.03.2015. p. 572.
1660. ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, Niceto. Liberalismo y Autoritarismo en el Proceso. Disponível 1664. ALCALÁ-ZAMORA y CASTILLO, Niceto. Liberalismo y Autoritarismo en el Proceso. Disponível
em https://revistas.juridicas.unam.mx/index.php/derecho-comparado/article/view/572/832. Acesso em em https://revistas.juridicas.unam.mx/index.php/derecho-comparado/article/view/572/832. Acesso em
12.03.2015. p. 572. 12.03.2015. p. 598.
500 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 501

de seu “apostolado”1665. Discurso muito similar ao ocorrido no campo do das premissas individualísticas que formavam a base do Estado liberal, o
processo penal, como já visto. CALAMANDREI chegará a afirmar, sem meias Código de 1940 quer ser, de um modo decididamente consciente, a expressão
histórica do atual Estado italiano. O fortalecimento do princípio de auto-
palavras, que o Projeto Grandi, “longe de abrir espaço para tendências cen-
ridade no Estado se projeta e se traduz, necessariamente, no processo, em
trífugas e dissolventes de um direito livre, quis premeditadamente ser uma um fortalecimento da autoridade do juiz: fortalecimento, todavia, que não
enérgica reafirmação do sistema da legalidade, e assim, um solene reconheci- se reduz a um simples aumento dos poderes de um órgão do Estado, nem
mento da utilidade da técnica jurídica”1666. a uma extensão da ingerência deste nas relações da vida privada e na esfera
dos direitos individuais do cidadão, mas que é expressão de um diferente
Entretanto, nem todos os juristas compartilhavam desta visão “neutra” conceito de apreciação dos interesses tutelados e garantidos pelo direito”1669.
do princípio inquisitivo e da visão publicista do processo. Vale a pena trazer
As linhas autoritárias do código de processo civil italiano não foram
à colação o pensamento de SILVA, para demonstrar que o que se passou, em
construídas por CALAMANDREI. Com efeito, já estavam presentes quando
realidade, foi uma tentativa de escamoteamento do fundamento político do
do projeto de código elaborado por REDENTI, sob a presidência do Ministro
princípio de autoridade no processo: “investindo o juiz que é o órgão do Estado,
DE FRANCISCI, que substituíra Alfredo ROCCO em 19321670. Este projeto
na função ativa de dirigente do processo, o novo sistema traz consigo vantagens
de código de processo civil apresentado por REDENTI tinha como base a
de ordem política, como a restauração do princípio da autoridade, dentro do
“concepção juspublicística da jurisdição”, nos seguintes termos:
processo”1667. Este pensamento serve de orientação para colocar as afirmações
“a reforma no nosso velhíssimo e superado Código de processo civil, inspi-
– mais ou menos simplórias – de que o juiz deve ser o principal ator do proces-
rando-se na concepção publicística da função jurisdicional e na ideia que a
so e que tal tarefa corresponde exclusivamente a uma orientação técnica, sob atividade processual não deve ser um livre jogo do egoísmo dos litigantes, mas
fortes dúvidas. Para não deixar em branco como esta concepção publicista de cooperação entre todos os sujeitos na afirmação e atuação do direito objetivo,
processo se conecta fortemente à política, CALAMANDREI acentua que “ao atribuirá ao juiz uma mais ampla iniciativa, tenderá a desenvolver uma maior
enumerar os princípios que informaram a redação de seu Projeto, o Ministro simplificação e concentração, mirará o constrangimento das partes a uma
discussão franca e aberta eliminando as escaramuças dilatórias, as emboscadas
Solmi juntou a estas razões, que podemos chamar de técnicas, uma outra razão,
insidiosas, as táticas fadigantes”1671.
de ordem política, que consiste na ‘restauração do princípio da autoridade’ nos
domínios do processo”1668. CALAMANDREI, ao apresentar as razões históricas A cosntrução de um publicismo no processo civil era qualquer coisa
do código de processo civil italiano, cita diretamente a Exposição de Motivos de artificial, ligada à reelaboração de todas as leis segundo a visão de mundo
do Ministro da Justiça GRANDI (na verdade por ele escrita): fascista. A concepção juspublicista de processo, portanto, descenderia daquela
mesma juspublicística reacionária italiana identificada nos capítulos prece-
“Mas o fator decisivo que tornou possível a ação da reforma preparada
dentes, responsável por pavimentar o caminho para o fascismo. Com efeito,
pela ciência foi, sem dúvida, o fator político. Se o Código de 1865 foi, por
razões históricas, talvez nem sequer observadas por seus autores, expressão retomemos por um instante o pensamento de LIEBMAN, que reconhece os
antecedentes pré-fascistas neste modelo de processo: “essa orientação não é
1665. CALAMANDREI, Piero. Gli Studi di Diritto Processuale in Italia Nell’Ultimo Trentannio. In _______.
Opere Giuridiche. v. I. Napoli: Morano, 1965. p. 523. nova. E já há alguns decênios, a doutrina havia preparado o terreno renovando
1666. CALAMANDREI, Piero. Il Nuovo Processo Civile e la Scienza Giuridica. In _______. Opere Giuridi-
che. v. I. Napoli: Morano, 1965. p. 468-469. 1669. CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. v. 1. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2003.
1667. SILVA, Carlos Medeiros. Notas à Margem da Reforma Processual. In Revista Forense. v. 37.n. 82. Rio 1670. Sequencialmente a Itália fascista tentou produzir uma primeira codificação, redigida por CARNELUTTI
de Janeiro: Forense, 1940. p. 23. sob a presidência do Ministro de Justiça ROCCO (em 1926); posteriormente, em 1934, a redação do pro-
1668. LIEBMAN, Enrico Tullio. Os Trabalhos Para Reforma do Processo Civil na Itália. In Revista Forense. jeto de código de processo civil ficou ao encargo de Enrico REDENTI, sob a presidência do Ministro da
a. 37. v. 81. n. 439. Rio de Janeiro: Forense, 1940. O recurso à autoridade do Estado aparecerá diversas Justiça Pietro DE FRANCISCI. Entre 1937 e 1939, foram elaborados dois projetos (um preliminar e outro
vezes no pensamento de processualistas ligados ao instrumentalismo: “sendo o processo instrumento da definitivo), sob a presidência do Ministro da Justiça Arrigo SOLMI, sem grande participação da doutrina,
jurisdição, deve ser entendido em função desta, ou seja, como o instrumento de atuação da lei no caso con- salvo no processo de revisão. Por fim, o código de processo civil italiano de 1940, que foi aprovado quando
creto, como o instrumento de garantia do ordenamento jurídico, da autoridade do Estado”. BEDAQUE, o Ministro da Justiça era Dino GRANDI, com a redação de Piero CALAMANDREI e as participações
José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 52. No de Leopoldo CONFORTI, Enrico REDENTI, Francesco CARNELUTTI e Tito CARNACINI (que tam-
mesmo sentido prossegue: “o processo, entendido como relação processual mais procedimento, ou como bém participou da codificação civil). CALAMANDREI, Piero. Gli Studi di Diritto Processuale in Italia
procedimento realizado em contraditório, tem sempre a mesma finalidade a ser atingida: a manutenção do Nell’Ultimo Trentannio. In _______. Opere Giuridiche. v. I. Napoli: Morano, 1965. p. 535.
ordenamento jurídico, do que advém a afirmação da autoridade do Estado e a paz social”. BEDAQUE, 1671. DE FRANCISCI, Pietro. Intervento al Senato in 5 gennaio 1934. In Atti PArlamentari. Camera dei
José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 53. Deputati. XXVIII Legislatura, 1934. p. 6953.
502 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 503

inteiramente o conceito de jurisdição, como função do Estado e restituindo com a ascendência de DE FRANCISCI ao poder, permitindo que a política
o juiz, no processo moderno, à posição central de órgão público e interes- fascista voltasse os olhos para o processo civil, aplicando suas ideias autoritárias.
sado em fazer justiça do melhor modo e o mais rapidamente possível”1672. A concepção publicística de processo propugnada por DE FRANCISCI não
Para CIPRIANI, ao falar do processo civil, o autoritarismo não consistiria guardava relação com aquela outra, oriunda de CHIOVENDA e WACH1676,
apenas em inundar o processo com multas de responsabilidade das partes, muito embora, como já referido, ninguém menos do que CALAMANDREI
mas também, na ampliação de poderes do juiz relativamente às garantias das o tenha dito. CALAMANDREI, ao comentar o projeto de código de processo
partes, da certeza do direito e da paridade de armas1673. civil apresentado pelo Ministro de Justiça Arrigo SOLMI, acentuará o princí-
Assim como no campo penal, o processo civil foi impregnado pelo tecni- pio de autoridade, assegurando que a concepção publicística de processo cujo
cismo, o que garantiu, por seu turno, a prevalência de um constitucionalismo objetivo era o reforço dos poderes judiciais estava em sintonia com a doutrina
estatalista, que produziu uma cultura jurídica na qual o constitucionalismo e o italiana, especialmente a de MORTARA e CHIOVENDA1677. CALAMAN-
espaço destinado às garantias eram produtos de uma autolimitação do Estado, DREI, ao comentar o projeto Solmi (predecessor ao projeto cuja revisão se
ou seja, de uma manifestação de sua própria vontade, articulada no interesse encarregará e muito pouco mudará), afirmará o seguinte
da sociedade. Em síntese, a consequência foi o enfraquecimento das garantias “a tendência publicística que encontra no atual Projeto uma assim enérgica
em favor dos poderes discricionários da administração, através da adoção do atuação, não é outra coisa que um aspecto, projetado sobre o campo estreito
método científico em todos os setores do discurso jurídico, que generalizava do processo civil, de um mais amplo fenômeno que está se desenvolvendo de
diversas formas nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo, e que tem como
o uso de categorias e conceitos abstratos, pretensamente livres de contamina- diretiva comum a prevalência do interesse social sobre o individual. Diante
ção política e sem conotações sociológicas. Neste ponto, pode-se apontar a do sistema baseado no princípio denominado como dispositivo, que se pode
dogmática pandectística, a escola orlandiana de direito público, a orientação considerar, em certo sentido, como a expressão no processo do individualismo
técnico-jurídica no direito penal; a circulação de um espírito orgânico, no qual liberal, o princípio inquisitório se afirma como expressão do autoritarismo”1678.
os entes coletivos além de ser dotados de posições preponderantes relativamente Afirma CALAMANDREI que entre os códigos fascistas e mussolinia-
ao indivíduo, desempenhavam um papel central na divisão sistemática dos bens nos figurou um código – o de processo civil – que se se devesse aplicar uma
e interesses jurídicos tutelados pelo direito penal (como administração públi- etiqueta política, deveria ser aquela de “antitotalitário”. O motivo residiria nas
ca, saúde pública, segurança nacional, etc); esta estrutura organicista dependia revisões feitas por juristas “de fora do regime” e também por se caracterizar
do conceito de função, no sentido de que o indivíduo recebia a concessão de como uma reação à transformação, que ocorrera na Alemanha, do processo
direitos do Estado de acordo com certa relação social. O seu exercício, neste civil em jurisdição voluntária1679. A legislação italiana de processo civil seria,
caso, levava à análise da finalidade social; esta visão organicista atingia um grau nas palavras de CALAMANDREI, uma tentativa de obstar a transformação
de unidade que se configurava na soberania do Estado1674. Segundo MONTE- da legislação italiana em uma cópia da tedesca1680.
LEONE, nunca foi comprovada cientificamente a existência deste distinto e
No campo do processo civil, a comissão elaboradora, composta por
concreto interesse público e social no processo civil1675. Portanto, a explicação
REDENTI (abertamente fascista), CARNELUTTI1681 (que se autodeclarava
para que o processo civil tenha se tornado o novo alvo do regime de MUSSO-
LINI se explica, ao menos em parte, de acordo com as palavras de CIPRIANI, 1676. CIPRIANI, Franco. Piero Calamandrei e la Procedura Civile: mitte, leggende, interpretazioni, docu-
menti. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. p. 96.
1672. LIEBMAN, Enrico Tullio. Os Trabalhos Para Reforma do Processo Civil na Itália. In Revista Forense. 1677. CIPRIANI, Franco. Piero Calamandrei e la Procedura Civile: mitte, leggende, interpretazioni, docu-
a. 37. v. 81. n. 439. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 78. menti. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. p. 99.
1673. CIPRIANI, Franco. El Autoritarismo Procesal (y las pruebas documentales). In Revista Ius et Praxis. n. 1678. CALAMANDREI, Piero. Sul Progetto Preliminare Solmi. In________. Opere Giuridiche. v. I. Napoli:
2, a. 15. p. 51-52. Morano, 1965. p. 305.
1674. BIROCCHI, Italo. Il Giurista Intellettuale e il Regime. In BIROCCHI, Italo; LOSCHIAVO, Luca. I 1679. CALAMANDREI, Piero. Giuseppe Chiovenda. In Rivista di Diritto Processuale. v. II, parte I. Padova:
Giuristi e il Fascino del Regime (1918 – 1925). Roma: Roma Tre Press, 2015. p. 50-51. CEDAM, 1947. p. 175.
1675. MONTELEONE, Girolamo. El Actual Debate Sobre las “Orientaciones Publicísticas del Proceso Civil. 1680. CALAMANDREI, Piero. Giuseppe Chiovenda. In Rivista di Diritto Processuale. v. II, parte I. Padova:
Disponível em http://www.academiadederecho.org/upload/biblio/contenidos/DPC__El_DP__El_AD_ CEDAM, 1947. p. 176.
sobre_las_OP_del_PC__Girolamo_Monteleone.pdf. Acesso em 01.02.2017. p. 231. 1681. Segundo Tarello, “a intervenção de Carnelutti nas disciplinas penais tinha um caráter claramente forma-
504 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 505

antifascista) e CALAMANDREI (historicamente classificado como um anti- verdadeira perspectiva sob a que devemos considerar a cena judiciária em que
fascista), também se ocupou de temas que, segundo CIPRIANI, pertencem avulta a figura do julgador. O juiz é o Estado administrando a justiça; não
é um registo passivo e mecânico de fatos, em relação aos quais não o anima
à esfera da opressão fascista. Muito embora sobre os dois primeiros não haja
nenhum interesse de natureza vital. Não lhe pode ser indiferente o interesse
grandes discussões acerca de sua colaboração com o regime, a posição de da justiça. Este é o interesse da comunidade, do povo, do Estado, e é no juiz
CALAMANDREI seria mais difícil de se detectar1682. que um tal interesse se representa e personifica”.
Na Itália travou-se uma polêmica forte, no sentido de se verificar, no pro- Quiçá o ponto que possa causar algum tipo de paradoxo, espanto ou
cesso civil, a presença de elementos autoritários e corporativos na legislação de mesmo de estupefação no leitor, é o parâmetro de colocação de CAMPOS E
1940, cuja paternidade é atribuída a CALAMANDREI. É importante ressaltar CALAMANDREI em um mesmo eixo de pensamento processual, baseado na
que CALAMANDREI, na Carta al Re, atribui a influência a CHIOVENDA, concepção publicística de processo1685, assim como na ideia de oralidade1686.
o que por seu turno gerou na Itália, a compreensão do afastamento do Código De fato, como demonstrado de forma muito verticalizada por CIPRIANI,
de Processo Civil das influências fascistas1683. Entretanto – o registro não é e abundantemente baseada em documentos raros, cartas e escritos de cará-
apenas uma coincidência -, Francisco CAMPOS, se não atribui exclusivamente ter geral, CALAMANDREI contribui de maneira decisiva para a redação do
a CHIOVENDA os conceitos que atravessam o corpus normativo, conclama o Código de Processo Civil fascista, muito embora existam escritos nos quais
processualista italiano como elemento de justificação do espectro publicístico CALAMANDREI trata de atacar o regime fracassado1687. A tese de CIPRIANI
do processo civil. Neste ponto, vale à pena citar as palavras de CAMPOS1684: é a de que CALAMANDREI tratou de reduzir os danos daquele dispositivo
“Prevaleceu-se o Código, nesse ponto, dos benefícios que trouxe ao moder- processual – recaindo em uma hipótese histórica, geralmente tratada como
no direito processual a chamada concepção publicística do processo. Foi o “tese do freio”1688. Além disso, CALAMANDREI teria sido constrangido a
mérito dessa doutrina, a propósito da qual deve ser lembrado o nome de
Giuseppe Chiovenda, o ter destacado com nitidez a finalidade do processo, 1685. Sobre a necessidade de o Brasil adequar-se aos novos rumos processuais, sob os ventos da concepção
publicística: “esta orientação publicística do processo, vitoriosa em toda a doutrina, já consagrada na
que é a atuação da vontade da lei num caso determinado. Tal concepção legislação de muitos povos, adotada nos projetos de reforma dos Códigos processuais de alguns outros
nos dá, a um tempo, não só o caráter público do direito processual, como a e reclamada com insistência por todos como uma necessidade imperiosa, não teve, entretanto, entre
nós na época das proliferações dos códigos estaduais, a não ser no Código Baiano, organizado pelo
eminente jurisconsulto Eduardo Espínola, o menor eco, apesar de muitos deles terem sido elaborados
por juristas de alta estirpe intelectual, conhecedores do movimento doutrinário e legislativo que se
lista, e desenvolveu uma função solidária àquela da escola “técnico-jurídica”, absolutamente inserida na elaborava em todos os países cultos em torno do assunto. Esse fato mostra a força, em nosso mundo
tendência de desacreditar, para o benefício de uma política criminal de concepção autoritária, as ciências forense, do espírito conservador. Afeitos, desde séculos, ao princípio dispositivo do processo, não
criminológicas não formais de método sociológico e a desencorajar, sob o perfil acadêmico, estudos cedíamos a um palmo sequer do conceito individualístico que dele tínhamos por herança. A iniciativa
não técnico-jurídicos sobre a sanção penal. TARELLO, Giovanni. Francesco Carnelutti. In Dizionario de Eduardo Espínola ficou sem seguidores. Para todos os códigos estaduais, com a única exceção
Biografico Degli Italiani. v. 20., 1977. Disponível em http://www.treccani.it/enciclopedia/francesco- apontada, o processo continuou a ser uma luta entre os litigantes a que o juiz assistia impassível até
-carnelutti_(Dizionario-Biografico)/. Acesso em 29.12.2016. o momento de proferir a sentença. As partes articulavam o que queriam; produziam as provas que
1682. A tese mais ampla sobre CALAMANDREI é de Franco CIPRIANI, que afirma que o código de pro- queriam produzir; deixavam paralisado o processo o tempo que desejassem. A tudo o juiz assistia
cesso civil è portador de inúmeras disposições de caráter autoritário como: atribuição de poderes ao juiz inerte e impassível, aceitava o processo tal como lho ofereciam, sem poder intervir e eficazmente na
para determinar a prisão imediata da testemunha mendaz, para realizar inspeções corporais, designa preparação e andamento da causa. Se uma das partes juntava aos autos um documento não legalizado,
poderes ao Ministério Público para introduzir provas não requeridas pelas partes, estabelece limites e o juiz tinha de admiti-lo sem poder advertir a parte da falta existente e determinar a sua regularização;
preclusões processuais acentuadas, etc. CIPRIANI, Franco. Piero Calamandrei e la Procedura Civile: e na sentença, desprezaria tal documento por sua ineficiência.” ANDRADE, Odilon de. Os poderes do
mitte, leggende, interpretazioni, documenti. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. juiz no processo civil. In Revista Forense. n. 85. v. 37. Rio de Janeiro: Forense, 1940. p. 04.
1683. CALAMANDREI sustentará que a noção publicística de processo se deve a CHIOVENDA, que foi o res- 1686. Necessárias aqui as palavras de Salvatore SATTA, que afirma que a oralidade encontrada no novo códi-
ponsável pela sua introdução na Itália. Afirma CALAMANDREI: “partindo de uma legislação na qual o go de processo civil italiano (referindo-se àquele de 1940) é sinônimo de aumento dos poderes judiciais,
processo civil estava baseado, quase como um apêndice do direito privado, sob premissas individualistas, que prevalece sobre aqueles das partes e do impulso, inclusive de “violência oficial relativamente ao
Giuseppe CHIOVENDA soube construir sobre ela um sistema claramente orientado em direção daquela processo”, que em nenhum momento se conformava com a oralidade chiovendiana. SATTA, Salvatore.
concepção publicística da justiça que hoje, há mais de quarenta anos, é tomada como a única conciliável Gli Orientamenti della Scienza del Processo. In Rivista di Diritto Processuale Civile. v. XIV, 1937. p.
com a autoridade reforçada do Estado: em seu conceito de ação compreendida como direito potstativo já 32-49. Crítico em relação a SATTA, ALLORIO, Enrico. Significato della Storia nello Studio del Diritto
estava afirmada sobre os princípios de equilíbrio e cooperação e em um certo sentido de identificação entre Processuale. In ________. La Vita e la Scienza del Diritto in Italia e in Europa e Altri Studi. Milano:
o ínteresse público e o privado, que segundo alguns estaria na base do ordenamento corporativo. Assim, o Giuffrè, 1957. p. 115-131. Especialmente em ALLORIO, Enrico. Pensiero Storico e Scienza Proces-
Ministro da Justiça GRANDI, na sua Exposição de Motivos ao novo código de processo civil pode exata- suale. In ________. La Vita e la Scienza del Diritto in Italia e in Europa e Altri Studi. Milano: Giuffrè,
mente notar que tudo isto já encontrava na obra antecedente de Giuseppe CHIOVENDA o “seu comentário 1957. p. 133-149.
antecipado”. CALAMANDREI, Piero. Gli Studi di Diritto Processuale in Italia Nell’Ultimo Trentannio. In 1687. Cf CALAMANDREI, Piero. La Crisi Della Giustizia. In _______. Opere Giuridiche. v. I. Napoli: Mo-
_______. Opere Giuridiche. v. I. Napoli: Morano, 1965. p. 525. rano, 1965. p. 587-588.
1684. CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos do Código de Processo Civil. Disponível em http://www2. 1688. Em defesa de CALAMANDREI, que havia preservado o princípio de legalidade na elaboração do
camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1608-18-setembro-1939-411638-norma-pe.html. código de processo civil. CAPPELLETTI, Mauro. La “Politica del Diritto” di Calamandrei: coerenza e
Acesso em 14.06.2016. attualità di un magistero. In Rivista di Dirito Processuale. v. 03. Padova: CEDAM, 1986. p. 07 – 08.
506 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 507

participar do projeto, mesmo tendo se declarado antifascista. Contudo, o Entretanto, existem teses historiográficas que colocam CALAMANDREI
que não se encontra nesta justificativa é a defesa intransigente do código de como colaboracionista do regime ou pelo menos, como alguém ambíguo re-
processo civil mesmo após a queda do regime fascista. Afirma Franco CI- lativamente ao regime político, levantando suspeitas sobre suas convicções
PRIANI, a despeito do Código de Processo Civil e da tentativa de declará-lo pessoais e culturais, assim como os papeis institucionais que desempenhou1696.
“chiovendiano”1689 e portanto, em consonância com a tradição liberal italiana, Além disso, a ênfase dada ao princípio de autoridade da lei, como expressão da
que no processo criminal contra o ex-Ministro da Justiça Dino GRANDI, autoridade do Estado1697, que se consolidou na redação de um código iliberal
uma testemunha assegurou, sob juramento, que o código era liberal e demo- e autoritário, “construído sobre uma “mal-compreendida concepção “publi-
crático. A testemunha se chamava Piero CALAMANDREI1690. Além disso, cística” de processo civil (na realidade paternalística, autoritária e iliberal)”1698,
outro ponto detectado por CIANFEROTTI1691 reside na circunstância de que além de ter escrito uma Exposição de Motivos ministerial, “inequivocamente
CALAMANDREI era um pensador que havia se deslocado ao lugar-comum fascista”1699, permitiriam uma leitura crítica de CALAMANDREI, o que não
do antiparlamentarismo que marcara o fim do século XIX, afirmando estar pode ser desprezado para a análise do processo brasileiro.
profundamente desencantado com “os métodos de cinquenta anos de governo
No caso brasileiro, de acordo com SANTOS1700, Francisco CAMPOS
parlamentar”1692. CIANFEROTTI entende possível sustentar-se que o pres-
se inspirara claramente no projeto de código de processo civil italiano, en-
suposto político da reflexão de CALAMANDREI, naquele período, e que
cabeçado pelo ministro da justiça Arrigo SOLMI (projeto revisado por uma
acabou por resultar na aceitação da tarefa de elaboração do código de processo
comissão de juristas e que não foi aprovado). Neste modelo processual, como
civil fascista, no escopo de “dar aos italianos um código melhor”1693, é o seu
pode ser consultado na Exposição de Motivos, a noção de processo autoritário
antigermanismo, a defesa e a proteção dos princípios do Estado de Direito
é a de um processo no qual predomina o princípio de autoridade. Esta mesma
italiano e das garantias processuais neste Estado autoritário, em nome da tra-
identificação poderá ser verificada na Carta al Re (texto similar à nossa expo-
dição, da identidade histórica e da independência jurídica nacional contra as
sição de motivos), subscrita por CALAMANDREI ao projeto GRANDI1701,
agressões que vinham desde a Alemanha1694. Novamente, eis aqui mais uma
onde se pode constatar que se o processo autoritário corresponde ao reforço
perspectiva que trata da participação de juristas no regime político italiano a
do Estado por meio do processo, e sendo o juiz o encarregado de representar
partir da relação comparatística com o que estava sucendendo na Alemanha1695.
o Estado, em síntese, o que se tem é um sistema de reforço dos poderes do
1689. “Dessa forma, os dogmas da escola sistemática, a qual afirmava o caráter público do processo civil e juiz. Ainda segundo SANTOS, “o juiz brasileiro, portanto, na consonância
proclamava a necessidade de se reforçar a autoridade do juiz, encontraram plena correspondência no
clima do Estado autoritário, em que a observância da lei é considerada como respeito ao mandado do da orientação do Estado instituído e da doutrina que preconizava para o pro-
Estado; e a coordenação do interesse privado com o interesse público, que era um dos cânones da reno-
vada ciência do processo”. CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. v. 1. 2 ed. cesso civil, deveria ser um juiz autoritário. Essa era a natureza do juiz alemão,
Campinas: Bookseller, 2003. p. 82.
1690. CIPRIANI, Franco. El Proceso Civil Italiano Entre Revisionistas y Negacionistas. In MONTERO
naquelas conturbadas e angustiosas horas da história da humanidade”1702.
AROCA, Juan. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 54.
1691. CIANFEROTTI, Giulio. Ufficio del Giurista Nello Stato Autoritario ed Ermeneutica della Reticenza: 25 Luglio. In ________. Quarant’anni Dopo. Bologna: Il Mulino, 1983. p. 195 -196.
Mario Bracci e Piero Calamandrei: dalle giurisdizioni d’equità della grande guerra al codice di procedu-
ra civile de 1940. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 37. Milano: 1696. TARELLO, Giovanni. Quattro Buoni Giusristi per uma Cattiva Azione. In Materiali per una Storia
Giuffrè, 2008. p. 266. della Cultura Giuridica. v. VII, 1977. p. 158.
1692. CALAMANDREI, Piero. Governo e Magistratura. In ________. Opere Giuridiche. v. II. Napoli: Mo- 1697. TARELLO, Giovanni. Quattro Buoni Giusristi per uma Cattiva Azione. In Materiali per una Storia
rano, 1965. della Cultura Giuridica. v. VII, 1977. p. 162.
1693. Anotação do diário de CALAMANDREI na data de 14 de março de 1940. CIPRIANI, Franco. Pie- 1698. CIPRIANI, Franco. Il Codice di Procedura Civile tra Gerarchi e Procesualisti: la procedura civile nel
ro Calamandrei e la Procedura Civile: mitte, leggende, interpretazioni, documenti. Napoli: Edizioni Regno d’Italia (1866-1936). Milano: Giuffrè, 1991. p. 104.
Scientifiche Italiane, 2009. 1699. CIPRIANI, Franco. Il Codice di Procedura Civile tra Gerarchi e Procesualisti: la procedura civile nel
1694. CIANFEROTTI, Giulio. Ufficio del Giurista Nello Stato Autoritario ed Ermeneutica della Reticenza: Regno d’Italia (1866-1936). Milano: Giuffrè, 1991. p. 49-51.
Mario Bracci e Piero Calamandrei: dalle giurisdizioni d’equità della grande guerra al codice di procedu- 1700. SANTOS, Moacyr Amaral dos. Contra o Processo Penal Autoritário. In Revista da Faculdade de Direi-
ra civile de 1940. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 37. Milano: to da Universidade de São Paulo. v. 54. n. 2, 1959. p. 217.
Giuffrè, 2008. p. 284. 1701. Além de CIPRIANI, Alessandro Galante GARRONE afirma que foi de fato CALAMANDREI quem
1695. O ex-ministro de justiça, Dino GRANDI, ao partir para Portugal e Espanha, deixou uma carta a CALA- redigiu a Carta al Re. Cf GARRONE, Alessandro Galante.Calamandrei: il profilo biografico, intellet-
MANDREI a fim de que este pudesse proceder à “defesa do nosso Código de processo civil que é em tuale e morale di um grande protagonista di mostra storia. Milano: Garzanti, 1987.
máxima parte obra sua. Não se trata de um código fascista, mas dos italianos. Eu o defendi contra os 1702. SANTOS, Moacyr Amaral dos. Contra o Processo Penal Autoritário. In Revista da Faculdade de Direi-
nazi-fascistas, agora te peço que o defenda contra aqueles que desejam destruir-lhe”. GRANDI, Dino. to da Universidade de São Paulo. v. 54. n. 2, 1959. p. 217.
508 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 509

É possível encontrar similaridade também relativamente ao pensamento o seu desdenho relativamente à ciência política e à história, afirma que “no
de Giuseppe MARANINI, que afirmava que a dimensão ética do Estado, ou debate processual o verdadeiramente relevante não é buscar a origem histó-
seja, o verdadeiro Estado, se encontra refletida, inexoravelmente, na lei pro- rica de uma determinada instituição, isto é, o regime político em que surgiu,
cessual1703. O código de processo civil italiano deve ser visto cum granus salis senão analisar se dita instituição é ou não válida para lograr a melhor justiça
em relação às suas soluções técnicas, que se explicam através do autoritarismo sem sacrificar garantia processual. Ou se se quiser, examinar se as institui-
do fascismo e não certamente recorrendo-se ao inocente CHIOVENDA1704. ções presumidamente autoritárias ou de origem fascista vulneram alguma
Os defensores do processo autoritário e do processo social pressupõem que as garantia processual”1707. Portanto, a solução apresentada pelo autor, a fim
partes têm a disponibilidade de sua posição jurídica, mas acabam por lançar de averiguar se uma concepção ou se algum instituto herdado do fascismo
mão da ideia de processo como serviço oferecido pelo Estado, que acaba por vulnera alguma garantia, é o recurso a uma metodologia interna, própria
ser reduzido a um instrumento de pacificação social1705. do tecnicismo jurídico (compartilhando, nesse ponto, o método de ALCA-
Será justamente sobre o caráter “social” que de forma simplista alguns au- LÁ-ZAMORA y CASTILLO). Aliás, diga-se de passagem que tal forma
de proceder desembocaria em uma “anemia política constitutiva” de todas
tores tentarão desvincular a concepção publicista de seu legado autoritário. Mais
as categorias processuais, atemporalizando os institutos e autorizando-os a
especificamente, ocorrerá uma burla de etiquetas, passando a locução “social”,
permanecer em pleno regime democrático. São exemplares as palavras de
utilizada na definição da ideologia processual fascista (que aproximava o pro-
MONTERO AROCA neste ponto, ao afirmar que qualquer pessoa razoável
cesso civil do penal) a ser equivalente àquela expressão encontrada no Estado
e com experiência chegaria, sem sequer questionar-se, à conclusão de que um
“Social” de Direito. A permanência ou sobrevivência da concepção publicista,
código promulgado na Itália e em 1940 deve ter uma base ideológica fascista
autoritária ou social de processo será abraçada pelo advento do constituciona-
e que ele não pode ter uma base liberal e garantista de tutela dos direitos dos
lismo pós-guerra e alçada à instância de princípio democrático e estatal. Como
cidadãos, mas a preponderância do público sobre os interesses privados1708.
exemplo deste procedimento de deslocamento ou ressignificação da ideologia
A tendência “social” do código de processo civil nominava um diploma legal
autoritária no processo civil, pode-se citar PICÓ I JUNOY, para quem, tecendo
indiscutivelmente infenso a direitos e garantias individuais, consoante se pode
comentários sobre o “caráter social” do processo, afirmará que a atribuição de
verificar inclusive do pensamento do presidente da Corte de Cassação Ita-
certas iniciativas materiais do julgador tem o seu fundamento constitucional no
liana da época, Mariano D’AMELIO1709. A expressão “social”, seria tomada,
“caráter social do Estado de Direito”, assim como o dever do juiz de zelar pela
portanto, consoante descreve o Procurador Geral Substituto da Cassação,
efetividade dos interesses discutidos no processo, a fim de garantir a justiça1706.
Leopoldo CONFORTI, que também participou na elaboração do Código
Evidentemente, tal solução é tão acertada quanto afirmar-se que o na- de Processo Civil Calamandrei-Grandi “como uma relação de direito público
cional-socialismo, pelo uso do vocábulo “socialismo”, se constituiu como e uma verdadeira tarefa do Estado” e que pressupõe ultrapassar o antiquado
um movimento político de esquerda. É claro que uma concepção “social”, hábito de indiferença relativamente ao resultado da demanda, colaborando
“publicística” ou “autoritária” de processo somente pode ser “adaptada” a ativamente o juiz na solução do caso1710.
um contexto democrático fazendo tábula rasa de seu contexto sócio-político
e histórico. Novamente, de acordo com PICÓ I JUNOY, que não esconde 1707. PICÓ I JUNOY, Joan. El Derecho Procesal Entre el Garantismo y la Eficacia: un debate mal planteado.
In MONTERO AROCA, Juan. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 127.
1703. MARANINI, Giuseppe. Il Progetto Preliminare del Codice di Procedura Civile. Perugia: Università di Trata-se de um pensamento que vai ao encontro do de Ettore CASATI, que afirmava, sobre o código de
Perugia, 1937. Sobre a atuação de MARANINI em diversos aspectos do regime fascista, imprescindível processo civil, que ele correspondeu a um notável avanço relativamente ao código precedente, sendo
a leitura de PALANO, Damiano. Geometria del Potere: materiali per la storia della scienza politica fruto da inteligência de grandes juristas, de “provada fé liberal”. CASATI, Ettore. Considerazioni e
italiana. Milano: Vita e Pensiero, 2005. Proposte Sulla Riforma dei Codici Penali. In Archivio Penale. v. 1, 1945. p. 45.
1704. CIPRIANI, Franco. El Proceso Civil Italiano Entre Revisionistas y Negacionistas. In MONTERO 1708. MONTERO AROCA, Juan. El Proceso Civil Llamado “Social” Como Instrumento de Justicia Autori-
AROCA, Juan. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 59. taria. In ________. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 135.
1705. VERDE, Giovanni. Las Ideologías del Proceso en un Reciente Ensayo. In MONTERO AROCA, Juan. 1709. D’AMELIO, Mariano. Le Tendenze Sociali del Nuovo Codice di procedura Civile. In Rivista di Diritto
Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 72. Processuale Civile. v. XVIII, 1941. p. 11.
1706. PICÓ I JUNOY, Joan. El Derecho Procesal Entre el Garantismo y la Eficacia: un debate mal planteado. 1710. CONFORTI, Leopoldo. Codice Rivoluzionario. In Rivista di Diritto Processuale Civile. v. XVIII, 1948.
In MONTERO AROCA, Juan. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 123. p. 18; 23-24.
510 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 511

Segundo MONTERO AROCA, há um fato inegável: todos os códi- Na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil Italiano, o artifício para
gos ou leis elaborados no século XX e que aumentaram os poderes judiciais albergar a continuidade liberal não consiste apenas na menção a CHIOVEN-
foram ditados (não por mera casualidade), por regimes políticos autoritários DA, mas na utilização da noção de instrumentalidade do processo1714.
ou totalitários, regimes em que se limitou ou se suprimiu a independência Como se pode perceber, o direito processual civil foi direcionado às
judicial1711. Existe, no entendimento do autor, um mito de que o processo é mesmas bases autoritárias já presentes no discurso processual penal. Se o
um instrumento de “justiça” (e que segundo o autor sempre se usa a expres- caráter público e autoritário do processo penal era indiscutível, o seu trans-
são entre aspas) através do fortalecimento dos poderes judiciais. Contudo, plante ao processo civil colaborou para colocar praticamente todo o direito
este mito requer cultivo e desenvolvimento científicos: um caldo cultural em sob o pálio da “publicidade”, da “socialidade” ou da “autoridade”. No Brasil, a
que o mito pode ser acreditado ou ainda, um mito incapaz de desestabilizar construção do autoritarismo processual penal se valeu claramente da “concep-
o sistema de crenças místicas. Este caldo cultural foi o autoritarismo, com ção publicística”, que ensejaria respostas rápidas e prontas no enfrentamento
as suas referências à dignidade e à autoridade do Estado e de seus órgãos. das justificativas comumente atribuídas aos modos de existência do processo
Neste campo, o aumento dos poderes do juiz surge como uma “conquista da penal. Citemos como exemplo ALMEIDA, para quem “o poder inquisitó-
civilização”, como a distinção entre juiz espectador e interventor (e não dita- rio do juiz criminal é sempre uma consequência do caráter público da ação
dor, expressão mais adequada para defini-lo). Apenas com a crença de que o penal, quer do promotor público, quer de qualquer ato do povo, quer do
aumento dos poderes do Estado sobre a sociedade signifique progresso social ofendido”1715. No mesmo sentido as palavras de AZEVEDO, que acentua:
pode-se chegar à conclusão de que o aumento dos poderes do juiz também “da natureza eminentemente publicística do direito e do processo penal, isto
sirva à melhoria da “justiça”1712. No corpo teórico do processo civil italiano é, do fato de pertencerem ambos ao direito público e serem ambos exercidos
de 1940, algumas soluções “técnicas” foram dadas no escopo de se garantir o pelo Estado, como função soberana, se deduzem princípios que dominavam o
aumento dos poderes do juiz: a) pretendeu-se dar contornos técnicos àquilo processo penal, e devem ser considerados como princípios fundamentais”1716.
que é uma nítida questão política; b) dentro do plano dos princípios se pre-
A noção de concepção publicista de processo também poderá ser encon-
tendeu buscar o fundamento do monopólio das partes na iniciativa probatória
trada nos diversos escritos de Ada Pellegrini GRINOVER. Inicialmente, há que
e não na imparcialidade. Neste ponto, sobre a distinção entre direito material
se reconhecer que a autora se afasta da concepção publicista fascista1717. Por con-
e técnica processual, a fim de legitimar o incremento dos poderes instrutórios
cepção publicista compreende a autora, que a condução do processo nas mãos
judiciais, trataremos do trabalho de Tito CARNACINI.
Há que se registrar que o recurso de CALAMANDREI a CHIOVENDA, 1714. “O novo processo civil é o instrumento criado especialmente, com feliz coincidência de tempos, para
uma nova legislação substancial: por mais diversos que sejam os códigos, o espírito animador que per-
na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil Italiano de 1940, permi- corre a todos é um só”. GRANDI, Dino. Relazione al Re. p. XVI. Para não deixar dúvidas da relação
da instrumentalidade com a ordem social fascista, vale à pena transcrever novamente as palavras de
tia que emergisse, com um importante sinal de continuidade com o liberalismo, CALAMANDREI: “O Estado fascista não nega os interesses privados mas aliás reconhece a sua im-
portância como propulsores da iniciativa privada, e portanto, validamente os tutela; e não há verdadeira
o argumento de uma ampliação da proteção do direito material. Assim, acentua tutela de interesses que não se reflita em um equilibrado sistema processual. Mas esta tutela não é um
PROTO PISANI que o Código de CALAMANDREI “alargara ao máximo a fim em si mesma, já que não existe, no nosso ordenamento, interesse que não seja tutelado em função
de sua feição social, e então, definitivamente, dos interesses superiores da Nação. Portanto, no Estado
tutela jurisdicional dos direitos, a instrumentalidade do processo relativamente fascista o processo não é apenas luta de interesses, mas é insrtumento de sua fecunda composição, e
sobretudo é instrumento para assegurar não apenas um ordenado sistema de vida social, inspirado nos
ao direito substancial e às suas necessidades de tutela: os pressupostos publicís- supremos fins do Estado, mas também para assegurar, através da aplicação das normas jurídicas que
disciplinam a vida da Nação, a realização nas relações privadas dos supremos interesses daquela. E
ticos conduzem, assim, a uma ampliação da tutela dos direitos privados”1713. sobretudo é instrumento para realizar aquilo que nas palavras do Duce indicou como meta da Revolução
fascista: uma mais alta justiça social”. GRANDI, Dino. Relazione al Re. p. XI-XII.
1715. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. Processo Penal, Ação e Jurisdição. São Paulo: Revista dos Tri-
1711. MONTERO AROCA, Juan. El Proceso Civil Llamado “Social” Como Instrumento de Justicia Autori- bunais, 1975. p.122.
taria. In ________. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 141. 1716. AZEVEDO, Vicente de Paula Vicente de. Direito Judiciário Penal. Direito Judiciário Penal. In Revista Justi-
1712. MONTERO AROCA, Juan. El Proceso Civil Llamado “Social” Como Instrumento de Justicia Autori- tia. Disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revistas/yz64w2.pdf. Acesso em 23.01.2017. p. 154.
taria. In ________. Proceso Civil y Ideología. Valencia: Tyrant lo Blanch, 2006. p. 149. 1717. Afirma GRINOVER que “o slogan da doutrina publicista do período fascista era “O Estado defende a si
1713. PROTO PISANI. Il Codice di procedura Civile del 1940. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pen- mesmo”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal. 2 ed. São Paulo: Revista
siero Giuridico Moderno. n. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 722-723. dos Tribunais, 1982. p. 46.
512 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 513

do juiz reside em uma escolha política, que se relaciona à concepção publicista inserir a figura do juiz no cerne do processo, produzindo naturalmente uma
de processo e à sua função social1718. Nesta linha de argumentação, o direito figura em regime de “aglomeração quântica de poderes”, como sinaliza SCHU-
processual seria regido por um conjunto de princípios conectados entre si pela NEMANN1724. Desta forma, o epíteto “social”, “público” ou “autoritário”
sua publicidade. Tais princípios, caracterizadores de uma verdadeira finalidade, recomendará órgãos que façam atuar a função jurisdicional através de um órgão
se confundiriam com os próprios objetivos do Estado, presididos pela categoria centralizador, em caráter de antagonismo politicamente endereçado ao indivi-
jurisdição (função do Estado). Portanto, seria o processo instrumento da juris- dualismo (fazendo repercutir novamente a confusão entre democracia formal
dição, e nesse movimento, tais objetivos jurisdicionais seriam obrigatoriamente e liberalismo político). Novamente, recorrendo às palavras de GRINOVER,
lidos a partir das funções estatais e dos propósitos do Estado1719. pode-se encontrar: “a visão do Estado social não admite a posição passiva e
Inegável que a “concepção publicista de processo” se encontra ligada de conformista do juiz, pautada por princípios essencialmente individualistas”1725.
forma muito estreita à instrumentalidade do processo. Vale à pena trazer neste O processo de aproximação do processo civil ao penal garantiu uma es-
ponto as palavras de GRINOVER, para quem “quanto mais o provimento ju- pécie de unificação conceitual amalgamada pela base autoritária, implicando
risdicional se aproximar da vontade do direito substancial, mais perto se estará nos dois campos do processo: a) o esmagamento do indivíduo e de suas garan-
da verdadeira paz social”1720. Portanto, está-se aqui diante de uma politização tias; b) elevando-se a autoridade do Estado a princípio reitor do processo. A
completa do processo – e mais especificamente -, do processo penal. A função compressão de garantias, os direitos como simples reflexos da concessão estatal
jurisdicional se encontra subordinada aos fins do Estado e o processo é o ins- correspondem claramente a este processo de “parametrização autoritária da
trumento para realização destes fins, fazendo penetrar, na lógica do processo, categorias processuais”. Em síntese, a concepção autoritária de processo civil
uma constelação infinita de orientações políticas, capazes de transformar o contribuiu para que as categorias processuais, em geral, fossem expropriadas
processo penal em instrumento de política criminal, em última instância1721. de todos os vestígios individualístico-liberais, formulando, pelas linhas de
Novamente recorre-se às palavras de GRINOVER para identificar esta espécie uma teoria geral do processo (publicista e autoritária), um tecnicismo pro-
de subordinação do processo aos fins do Estado: “se o objetivo da atividade cessual que sempre soube muito bem esconder suas preferências políticas.
jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico, para Não se pode concordar, portanto, com orientações como as de PICÓ
o atingimento da paz social, o juiz deve desenvolver todos os esforços para I JUNOY, que à míngua de quaisquer elementos políticos, históricos ou so-
alcançá-lo. Somente assim a jurisdição atingirá seu escopo social”1722. ciais, estabeleça uma crença na “neutralidade axiológica” do direito. A solução
Decorre que uma concepção nomeada como publicista, nesta ordem de encontrada, em buscar nos “mecanismos processualmente internos” critérios
ideias, se torna conatural à transformação de vários institutos processuais em para a identificação de um processo autoritári acaba por tornar infecundas
um enfeixamento de princípios e objetivos estatais: “o papel do juiz, num pro- todas as análises que procuram observar um “política do processo”. E, com
cesso publicista, coerente com sua função social, é necessariamente ativo”1723. efeito, o resultado é sabido de antemão: se nem mesmo um código proces-
Como se pode perceber, a concepção publicista não encontrará problemas em sual inspirado claramente no regime antidemocrático fascista è capaz de ser
considerado como autoritário, evidentemente, então, o método empregado
1718. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha se revela imprestável, pois despreza justamente o elemento fundante da legis-
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 79.
1719. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha lação, as políticas de Estado. Evidentemente, o que se costumou chamar de
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 79.
1720. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha
teoria geral do processo não se constitui como uma simples transposição de
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 80.
1721. Aproximando-se, portanto, da tese de FERNANDES, Fernando. O Processo Penal Como Instrumento 1724. SCHUNEMANN, Bernd. La Reforma del Proceso Penal. Madrid: Dykinson, 2005. p. 30.
de Política Criminal. Coimbra: Almedina, 2001. 1725. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha
1722. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 81. Quase em tom tautológico BEDAQUE
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 80. afirmará que “a visão do ‘Estado-social’ não admite essa posição passiva, conformista, pautada por
1723. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha princípios essencialmente individualistas”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 80. do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 73.
514 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 515

elementos privatísticos ao cerne do processo penal. Ou ainda, uma mera abs- processo ganham corpo a partir do dimensionamento de teorias denominadas
tração em nível científico de categorias processuais, no escopo destas melhor como “neoprivatistas”. Ou seja, aquelas teorias cuja preocupação fundamental
se ajustarem a uma análise jurídica. è se ocupar do processo como campo para tutela de direitos (como aquelas
A teoria geral do processo constitui-se como um complexo iterativo e de críticas endereçadas a CIPRIANI ou MONTELEONE). No próprio nas-
mobilizações políticas em torno da construção de um húmus teórico, capaz cedouro da concepção publicística de processo, apontou-se para a defesa de
de dar conta do Estado autoritário nos diversos níveis do direito. São desloca- leituras anteriores à escola chiovendiana (especialmente daqueles herdeiros
mentos contínuos e em espiral: a) da publicização das categorias privatísticas do pensamento de MATTIROLO, PESCATORE e SCIALOJA) como “pri-
à sua justaposição ao processo penal (que tomava tais categorias emprestadas vatistas”1726, incluindo o próprio Salvatore SATTA.
do processo civil, dada a sua precariedade científica). Aqui temos, pois, a Provavelmente Salvatore SATTA tenha escrito o primeiro manifesto
“cientificização do processo penal” através do recurso às categorias privadas mais sistemático contra esta orientação publicística, como ele mesmo reco-
publicizadas; b) do vazio político do processo civil à busca de elementos se- nhece em uma nota à sua prolusão na universidade de Padova de 19371727,
diados no processo penal (processo de preenchimento autoritário do processo afirmando que ela “constitui a primeira tentativa de crítica às posições tra-
civil); c) do quadro de uma separação funcional do processo civil e do processo dicionais assumidas depois da grande sistemática de Chiovenda. Por que
penal e a sua colocação no quadro de uma teoria geral do processo, última tais concepções se movem a partir de postulados publicísticos, sempre mais
instância no processo de construção tecnicista processual, capaz de esconder exasperados do que aqueles do fundador da escola, a minha crítica deveria
os elementos políticos que construíram as fórmulas mais espessas da dogmá- necessariamente opor postulados privatísticos, que apareceriam como um re-
tica inerente à processualística. Como se pode perceber, temos diversos jogos torno a concepções superadas. À esta concepção não era estranha, mesmo que
de transposição e interpenetrabilidade entre ambos os campos, formulando não confessada, a influência do clima político do momento, o mesmo do qual
diversas pontes de interseção, cuja consequência é obliterar o fundo político saiu o atual código de processo vigente: e isto explica a concepção privatística
destes processos de ressignificação. da minha atitude”1728. Este texto de SATTA foi fundamental para colocar
em tensão conceitos intocáveis à época, tanto que CARNELUTTI sugeriu a
4.1.1. UMA QUESTÃO DE TÉCNICA (OU DE POLÍTICA?): O CHIOVENDA vetar a publicação do artigo na Rivista di Diritto Processuale
PROCESSO SOCIAL E A CRÍTICA AO NEOPRIVATISMO Civile, com o que não concordou CHIOVENDA, acabando por gerar, como
Em meio à análise que instaura as bases da concepção publicística de réplica, uma recensão furiosa de CARNELUTTI à obra L’Esecuzione Forzata
processo e, naturalmente, da perspectiva instrumentalista, não se pode deixar de SATTA, bem como a futura inimizade entre ambos1729.
de notar que para poder discursivamente fundar uma “nova base”, outra cor- Retomando ao tema, a concepção publicística de processo, renegando
rente deveria ser “fundada retroativamente”, a fim de atuar como antítese. posturas “privatistas” ou “neoprivatistas”, sustenta basicamente a necessi-
Com efeito, trata-se de um recurso retórico muitas e muitas vezes utilizado dade de adequação do processo aos fins esperados de um Estado “social”,
ao longo da história, de forma consciente ou inconsciente, pouco importa. em que a técnica estaria a serviço da tutela do direito material1730. E, nesta
FERRI “fundou” a “escola clássica” ao retronominar todo o pensamento li-
1726. Para uma análise dos discursos em torno da pré-codificação de 1940 Cf CIPRIANI, Franco. Il Codice
beral antecedente à antropologia e sociologia criminais. Um saber de escola di Procedura Civile tra Gerarchi e Procesualisti: la procedura civile nel Regno d’Italia (1866-1936).
Milano: Giuffrè, 1991.
necessita de arquétipos a serem superados. O modelo inquisitório de processo 1727. SATTA, Salvatore. Gli Orientamenti Pubblicistici Della Scienza del Processo. In Rivista di Diritto Pro-
penal apenas subsiste em franca tensão com o sistema acusatório. Um direito cessuale Civile, v. I, 1937.
1728. SATTA, Salvatore. Soliloqui e Colloqui di un Giurista. Nuoro: Ilisso, 2005. p.185-186.
penal mínimo, como se pode perceber nas lições de FERRAJOLI, apenas 1729. SATTA, Salvatore. Introduzione. In Soliloqui e Colloqui di un Giurista. Nuoro: Ilisso, 2005. p. 32-34.
existe em confronto com o direito penal máximo e assim sucessivamente. Sobre a vida de SATTA incluindo a polêmica com CARNELUTTI recomenda-se STACCHINI, Vanna
Gazzola. Come un Giudizio: vita di Salvatore Satta. Donzelli: Roma, 2002.
As defesas insistentes na democraticidade da postura publicística de 1730. “A natureza instrumental do direito processual impõe sejam seus institutos concebidos em conformida-
de com as necessidades do direito substancial. Isto é, a eficácia do sistema processual será medida em
516 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 517

senda, deverá atender a finalidades e expectativas metajurídicas, o que oca- “social”, enxergará no processo um meio de “pacificação social”1735. Segun-
siona, sem sombra de dúvidas, não apenas a politização do processo, mas do Adolf SCHONKE, existiriam duas concepções de processo: a primeira
o esvaziamento ou deslocamento das garantias processuais como eixo de delas, assentada na ideia de pretensão de tutela jurídica dirigida contra o
sincronização do funcionamento do “instrumento”. Surge então, o processo Estado (WACH), sendo o resultado da demanda alheio aos interesses do
como um “meio de transformação social”1731. Estado. Por seu turno a segunda corrente será aquela que concebe o pro-
Dentre os diversos aspectos que edificam as linhas mestras da concepção cesso civil como uma instituição cuja finalidade é garantir o bem comum.
publicística de processo, ganha contornos de dogma ou apotegma o trabalho Desta forma, o Estado deve interferir no procedimento, influenciando na
de Tito CARNACINI intitulado Tutela Giurisdizionale e Tecnica de Processo. sua marcha, já que o conflito social é considerado um mal para a sociedade
Especialmente quando toma corpo a discussão em torno dos poderes judiciais e deve ser prontamente resolvido. Afirmará SCHONKE que todo processo
e mormente a elaboração de questões concernentes ao princípio dispositivo civil afeta também à comunidade, especialmente porque exige energias que
ou inquisitivo, invoca-se tal trabalho que se sustentaria por si, impassível de devem ser tomadas da sociedade, devendo ela (a sociedade) influenciar no
críticas, corretíssimo em sua inteireza. Tem-se nesta obra, um discurso repe- andamento do processo através do juiz. O processo civil seria, na visão do
tido quase que à exaustão1732. autor, um “remédio pacífico encaminhado para restabelecer a paz entre os
particulares, e com isso manter a paz da comunidade”1736. Portanto, na visão
Tal trabalho constitui o avanço de um estudo anterior do autor, man-
do autor, incabível um direito público subjetivo dirigido contra o Estado,
tendo-se fiel a várias conclusões já desenvolvidas no estudo denominado
que exerce uma função geral de tutela jurídica, não havendo um direito
Volontà Finale e Tecnica Della Parte nel Processo Civile1733. Segundo LEMOS,
especial previsto para cada indivíduo isoladamente1737.
as ideias do processualista teriam contribuído significativamente para o de-
senvolvimento de uma teoria que alçaria o juiz ao papel de um agente de Esta função do processo como instituição de “pacificação social”, base
transformação social, especialmente pela revisão de algumas categorias pro- do conceito de jurisdição para a perspectiva funcionalista, portanto, estaria
cessuais que circunscreviam o papel a ser exercido pelas partes1734. assentada desde as décadas de 20 e 30, em propostas que se coadunavam com
os novos movimentos políticos autoritários que estavam nascendo no século
O pressuposto de base (e que se irradia por toda a obra de CARNA-
XX. Ou seja, o avanço dos “interesses comunitários” que determinariam a
CINI) é de que “o processo serve às partes assim como as partes servem ao
marcha processual1738 e que ensejariam uma nova forma de processo. Não
processo” (uma espécie de composição entre a perspectiva liberal de que
há muitas dúvidas de que a concepção publicística e a instrumentalidade do
o processo está a serviço do indivíduo na busca pela satisfação de direitos
processo germinarão conceitos que se poderiam descrever como siameses1739.
e a dimensão “social”, ou seja, de que o processo deve também atender ao
interesse da “administração da justiça”). Para a concepção liberal, o processo
1735. Elevado a conceito estruturante da perspectiva instrumentalista. Cf WATANABE, Kazuo. Cultura da
estaria a serviço das partes (entrega da prestação jurisdicional). A variante Sentença e Cultura da Pacificação. In YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide de. Es-
tudos em Homenagem à Professore Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005.
1736. SCHONKE, Adolf. Derecho Procesal Civil. 5 ed. Barcelona: Bosch, 1950 p. 15.
função de sua utilidade para o ordenamento jurídico material e para a pacificação social. BEDAQUE, 1737. SCHONKE, Adolf. Derecho Procesal Civil. 5 ed. Barcelona: Bosch, 1950 p. 16
José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 4 ed. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 16. Adiante: “pretende-se demonstrar que todos os fenômenos inerentes ao 1738. O uso de Adolf SCHONKE, que compartilha da finalidade da jurisdição e do processo como instrumen-
processo devem ser concebidos em função do direito material. A técnica adequando-se ao objeto, com to de “pacificação social”, a fim de ilustrar tais compromissos políticos não é gratuito. SCHONKE tam-
vistas ao resultado”. Ibidem. p. 19. Ainda: “se o direito processual não se flexibilizar em função do bém atuou no campo do direito penal nazista (circunstância que parecer ser desconhecida de inúmeros
direito material, teremos um instrumento absolutamente ineficaz”. Ibidem. p. 57. processualistas civis). Por exemplo, SCHONKE ao comentar o código penal de 1935, mais especifica-
mente o seu § 2º, explicava que “o são sentimento do povo alemão significa o sentimento natural pelo
1731. Cf NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático: uma análise crítica das reformas direito de todos os concidadãos justos e honestos”. GORDLEY, James; von MEHREN, Arthur Taylor.
processuais. Curitiba: Juruá, 2008. An Introduction to the Comparative Study of Private Law: reading, cases, materials. New York: Cam-
1732. Uma bela análise da obra de CARNACINI no processo penal pode ser encontrada em BRONZO, Pas- bridge University Press, 2006. p. 479. Para não deixar dúvidas: “Adolf Schonke foi um dos principais
quale. Fascicolo per il Dibattimento: poteri delle parti e ruolo del giudice. Padova: CEDAM, 2017. penalistas durante o regime nazista e não perdeu o seu cargo na Universidade de Freiburg em momento
1733. CARNACINI, Tito. Volontà Finale e Tecnica Della Parte nel Processo Civile. Bologna: Tipografia algum”. STEINKE, Ronen. The Politics of International Criminal Justice: german perspectives from
Parma, 1941. Nuremberg to Hague. Oxford: Hart Publishing, 2012. p. 52.
1734. Cf LEMOS, Jonathan Iovane de. A Organização do Processo Civil: uma análise cultural da estruturação 1739. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti.
do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 57 et seq. v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 700-701.
518 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 519

Retomando, nesse aspecto, conclusões do texto Volontà Finale e Tecnica Della entre princípio inquisitivo e princípio dispositivo (no significado restrito
Parte nel Processo Civile, CARNACINI apresentará as suas ideias básicas e que, que o autor adota) se resolveria, portanto, na diferença que decorre da
como já referido, configuram noções inatacáveis e de pouca discussão para aceitação da participação do juiz como condição sine qua non ou aceitá-lo
os defensores da concepção publicística de processo. Ali se verificam ideias de forma contingencial. Mas em um e outro caso, a natureza do fenômeno
como as de que o processo é um instituto de direito público, que não deve não mudaria, por se tratar sempre de uma atividade que é desenvolvida no
ser exclusivamente posto à tutela do interesse das partes. Assim, a proposta âmbito do processo, não incidindo a diferença (entre princípio inquisitivo e
da qual parte CARNACINI, é a de tentar uma conciliação entre as duas dispositivo) sobre o regime de tutela dos interesses materiais em jogo, uma
correntes (individualista ou privatista e a publicista), de forma que a parte vez que o que muda diante de um princípio de oportunidade organizativa
processual se apresentaria segundo um aspecto duplo: diante do processo não é o sistema de tal tutela, mas apenas o desfrutamento da atividade do
civil, a fim de realizar um direito material e contribuindo, ao mesmo tempo, juiz (ou do Ministério Público) ou unicamente da parte em um determi-
para o nascimento do processo (que então preencheria funções públicas)1740. nado aspecto ou momento do processo. Desta maneira, a participação ou
Desta maneira, sustenta o autor que o interesse público não se confunde, não do juiz na produção da prova se torna sempre um critério interno ao
assim, com aquele das partes, emergindo o juiz como o grande protagonista, instrumento (processo)1745. Com isso também se separam as questões re-
que deve proceder à busca da verdade material. O princípio dispositivo, assim, ferentes ao direito material daquelas referentes à técnica processual eleita.
se circunscreve ao momento da propositura da ação, conecta-se ao direito Tais conclusões, que em muitas oportunidades alargarão ou restringi-
material, precedendo a instauração do processo. Por outro lado, as normas rão o uso dos conceitos (mas que para efeitos do trabalho aqui desenvolvido
processuais teriam outro objeto, atribuindo ao juiz poderes maiores para não tocam nas questões de fundo) serão repetidas ad nauseam pela proces-
conduzir o processo, introduzindo as provas de ofício que entender cabíveis sualística civil (e também por inúmeros processualistas penais), mesmo
para dirimir o caso. Tais poderes, portanto, não se relacionariam com o prin- naquelas perspectivas contemporâneas, onde se revitalizam velhos postula-
cípio dispositivo nem com os direitos subjetivos das partes. Trata-se apenas dos autoritários através de uma redefinição das funções a ser exercidas pelas
– o eufemismo é do autor -, de uma técnica processual, e as partes devem se categorias processuais. Neste ponto, pode-se citar TARUFFO, para quem “a
adequar à ela (o processo serve às partes e elas ao processo)1741. determinação das provas pertence à dimensão epistêmica do procedimento,
Seguramente, ao diferenciar o princípio dispositivo daquele de ini- ou seja, à temática do processo, e não ao princípio dispositivo em sentido
ciativa de parte, CARNACINI reduz inúmeros aspectos e problemas que próprio”1746. Assim, sendo, a intervenção judicial é reconduzida à mera téc-
afligem o processo e as ideologias que o sustentam1742 a uma mera questão nica processual de acertamento dos fatos. A bem da verdade, grande parte
técnica, que deveria emergir como algo natural diante do método em- das questões referentes ao incremento dos poderes judiciais se sustenta nos
pregado1743. A antítese entre princípio dispositivo e inquisitivo concerne problemas de legitimação para o uso destas prerrogativas. Sem desconhecer
unicamente ao aspecto interno do processo1744. Segundo o autor, a antítese tais fundamentais questões, deve-se insistir que a concepção publicística de
processo introjetou o aumento de poderes judiciais, que representam muito
1740. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. mais do que poderes instrutórios1747, se esparramando para diversas zonas do
v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 705.
1741. CARNACINI, Tito. Volontà Finale e Tecnica della Parte nel Processo Civile. Bologna: Luigi Parma, processo: liberdade criativa dos juízes (uma espécie de metástase das ideias
1941. Para uma crítica destas ideias Cf MONTELEONE, Girolamo. Intorno al Concetto di Verità ‘Ma-
teriale’ o Oggettiva nel Processo Civile. In Rivista di Diritto Processuale. v. LXIV. Padova: CEDAM, carneluttianas da função criativa do direito), adoção de procedimentos ad
2009. p. 06-07.
1742. Sobre a ideologia individualista (identificada pela common law) Cf PEKELIS, Alexander Haim. Legal
Techniques and Political Ideologies: a comparative study. In Michigan Law Review. v. 41. n. 4, 1943. p. 1745. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti.
665-692. v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 760.
1743. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. 1746. TARUFFO, Michelle. Uma Simples Verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos. São Paulo: Marcial Pons,
v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 759. 2013. p. 204.
1744. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. 1747. Como fenômeno mundial Cf TATE, Neal C; VALLINDER, Tornbjorn. The Global Expansion of Judi-
v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 760. cial Power. New York: New York University Press, 1997.
520 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 521

hoc, desprezo ou desapego pela forma ou legalidade são alguns exemplos participou da comissão responsável pela elaboração da legislação processual
desta atitude, e longe de figurar em uma lista fechada. civil durante o fascismo1753.
Evidentemente, o juiz como agente de transformação social, nesta con- A defesa das conclusões de CARNACINI aparece muitas vezes embalada
cepção publicística de processo, não poderá se contentar com o material por aparentes confirmações históricas. De acordo com TARUFFO, países como
produzido pelas partes1748. Portanto, através da “técnica processual” que in- os Estados Unidos, a Alemanha e a França não se transformaram em países
veste o juiz em poderes de condução do processo, os objetivos da jurisdição autoritários por conta da concessão de poderes instrutórios aos juízes. Prosse-
(sempre metajurídicos), poderiam ser alcançados1749. gue TARUFFO afirmando que, além disso, a presença de poderes instrutórios
Todavia, a transposição das conclusões de CARNACINI ao processo não incide sobre o princípio dispositivo, mas apenas sobre o direito à prova
penal é inadequada. Para dizer o menos: é impensável. Quando trata de ou sobre o direito ao contraditório. Desta forma, entraria em conflito apenas
processo penal, CARNACINI o faz a partir de autores nem um pouco afei- com a exclusividade das partes na produção de provas1754. Esta interpretação
tos à democracia. Nas poucas vezes que faz menção ao processo penal em se alinha àquela de ALMEIDA: “na verdade, o caráter inquisitivo do processo
seu ensaio, CARNACINI1750 citará quase com exclusividade, GRISPIGNI, penal há de consistir – e, sem dúvida, consiste – não em que necessariamente a
que em um estudo sobre a unificação do processo civil e penal, afirmará autoridade monopolize poderes, mas em que as partes não os monopolizem”1755.
que o poder dispositivo relativamente às provas deve possuir limites, porque Interpretado o processo penal como um instrumento de defesa social, natural
não corresponde à natureza soberana da função judiciária o dever de o juiz que se pense em poderes instrutórios e que se proteja o próprio procedimento
permanecer inerte na busca das provas, muitas vezes cúmplice, devido ao de eventual inércia das partes1756. Aliás, um sistema inquisitorial1757 não dispensa
engessamento legal, de colusões entre as partes para se servir do processo um juiz ativo na produção de provas. Contudo, como visto, a percepção da
no escopo de fraudar a lei1751. Além de comungar da já referida posição de necessidade de se aumentar o poder dos juízes (dentre eles os instrutórios) parte
SCHONKE sobre a “função pacificadora do processo” (encarnada no ar- da redefinição de suas funções, além do uso de uma retórica sedutora, de que
gumento de que o processo também se serve da parte), CARNACINI trata se trataria, no fundo, de uma tendência universal1758.
de isentar o código de processo civil de influências políticas, remetendo ao Tomando-se as categorias de CARNACINI, seria possível distinguir
já exaustivo argumento da continuidade liberal do código de 19401752. Pro- entre disponibilidade ou indisponibilidade (do exercício do direito material)
vavelmente, em defesa de suas próprias ideias, uma vez que CARNACINI e duas distintas técnicas processuais baseadas no princípio dispositivo ou

1748. “Um processo que visa garantir a autoridade estatal, mediante a manutenção do ordenamento jurídico 1753. MONTELEONE, Girolamo. Intorno al Concetto di Verità ‘Materiale’ o Oggettiva nel Processo Civile.
objetivo, não pode restar de braços cruzados aos mandos e desmandos dos litigantes, de acordo com In Rivista di Diritto Processuale. v. LXIV. Padova: CEDAM, 2009. p. 06.
seus interesses, parecendo coerente a concessão de novos poderes e funções ao magistrado, a fim de 1754. TARUFFO, Michelle. Uma Simples Verdade: o juiz e a reconstrução dos fatos. São Paulo: Marcial Pons,
resguardar a correta tutela jurisdicional dos direitos, já que a sua decisão projeta reflexos a toda a co- 2013. p. 207. Na realidade o argumento original e anterior é de CARNELUTTI.
letividade”. LEMOS, Jonathan Iovane de. A Organização do Processo Civil: uma análise cultural da 1755. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. O direito de Defesa no Inquérito Policial. In Revista da Fa-
estruturação do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 80. culdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p. 81.
1749. “Todo o sistema processual passa assim a ser considerado como instrumento indispensável para atingir 1756. “A necessidade ou a conveniência de atribuir poder inquisitivo à autoridade não colide, pois, como é
os escopos políticos, sociais e jurídicos da jurisdição; e a técnica processual como meio para a obtenção óbvio, com a necessidade ou a conveniência de atribuir também poderes- deveres processuais às partes,
de cada um destes objetivos”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Modernidade do Direito Processual Brasi- com maior ou menor intensidade, ou processuais e funcionais ao Ministério Público, consoante razões
leiro. In ________. O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 09. de justiça penal ou de justiça processual penal aceitas como tais pelo legislador de cada país. Assim é
1750. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. que, no Brasil, o juiz criminal nunca perde seu poder inquisitivo, perante os poderes-deveres proces-
v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 763. suais do acusador e do defensor, no processo da ação penal”. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de.
1751. GRISPIGNI, Filippo. Verso L’unificazione Legislativa Della Procedura Civile e Penale. In La Scuola O direito de Defesa no Inquérito Policial. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Positiva. 3/4, v. 5, 1951. Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p. 82.
1752. CARNACINI, Tito. Tutela Giurisdizionale e Tecnica del Processo. In Studi in Onore di Enrico Redenti. 1757. Como o próprio ALMEIDA reconhece ser o processo brasileiro: “o processo inquisitivo, quer do tipo
v. II. Milano: Giuffrè, 1951. p. 765. Repristinando tal assertiva: “verifica-se que o fascismo, tecnicamen- canônico, quer do tipo atual, exprime, manifestamente, penetração do princípio de legalidade no com-
te, não traz nada de novo à formação do CPC italiano, adotando os princípios amplamente consagrados portamento do outrora juiz eclesiástico, e dos atuais juízes e tribunais criminais”. ALMEIDA, Joaquim
e difusos no direito da época. Tratou-se, portanto, muito mais da corporificação do natural desenvolvi- Canuto Mendes de. O direito de Defesa no Inquérito Policial. In Revista da Faculdade de Direito da
mento da ciência jurídica processual do que da incorporação e da construção de procedimentos embebi- Universidade de São Paulo. v. 52. São Paulo, 1957. p.88.
dos de uma ideologia autoritária”. LEMOS, Jonathan Iovane de. A Organização do Processo Civil: uma 1758. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Responsabilidade do Juiz Brasileiro. In ________. Estudos em Home-
análise cultural da estruturação do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 89. nagem a José Frederico Marques. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 17.
522 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 523

inquisitivo. Desta maneira, torna-se possível, de acordo com uma metodolo- efeito, de um construto legitimador da permanência de um modelo que con-
gia heurística, agrupar-se disponibilidade e indisponibilidade no exercício da tinua centralizado na figura do julgador e de seu protagonismo processual1760.
ação com as técnicas processuais, formando quatro casos. Como se percebe- Tem-se, então, no juiz, o “único titular da função jurisdicional, que se serve
rá, será muito fácil verificar que não se tratam de categorias que possam ser do processo como instrumento para garantir a efetividade desta função”1761.
tomadas como simétricas. Poderíamos ter, abstratamente, processos que se Os problemas no traslado das conclusões de CARNACINI ao proces-
iniciam de ofício (e seriam regidos pelas ações das partes ou pela intervenção so penal são ainda maiores quando se verifica: a) a asuência de tratamento,
judicial) e processos que se iniciam por força das partes (também regidos pelas pelo autor, dos sistemas processuais; b) a inexistência de um direito material
ações das partes ou pela intervenção judicial). que possa ser exercido fora do processo penal (princípio da necessidade); c)
No primeiro caso, inconcebível um processo instaurado de ofício e dele- as bases liberais-reacionárias que instrumentalizaram o direito penal mate-
gado ao princípio dispositivo como técnica processual. Sobrariam apenas três rial, numa relação de supremacia do Estado em relação ao indivíduo. Essa
possibilidades: um processo integralmente inquisitório (iniciado pelo Estado lacuna, por si só, já seria de se desautorizar o acrítico transplante dos argu-
e adotando o princípio inquisitivo), um processo integralmente acusatório mentos que inscrevem os poderes judiciais nos dispositivos intraprocessuais
(iniciado pelas partes sob o pálio do princípio dispositivo como técnica pro- ou como quer CARNACINI, nas técnicas.
cessual) e finalmente, o modelo adotado pelo código de processo civil italiano: O argumento da isenção política da legislação fascista, como mencionado
um modelo cuja iniciativa para a propositura da ação é das partes, regulado no capítulo II, não há como ser levado a sério. Como assevera MONTERO
pela técnica processual do princípio inquisitivo. AROCA, “uma lei ou um código, qualquer que seja a matéria que regula, é
Se se levar em consideração a mutação jurídico-política levada a cabo sempre expressão da concepção ideológica da sociedade em que vem elaborada
nos últimos tempos, se perceberá claramente que diante da inexistência de e, frequentemente, aquela própria dos responsáveis políticos que a elaboram”1762.
modelos puros (completamente inquisitórios ou completamente acusatórios, Com efeito, se por um lado existem países que adotaram os poderes instrutó-
como com correição acentuará COUTINHO1759), o que resta são os modelos rios judiciais como “técnicas intraprocessuais”, e tal circunstância não autoriza
processuais baseados no intervencionismo judicial. O argumento exposto a se identificar tais países como antidemocráticos (como afirma TARUFFO),
por CARNACINI e por todos aqueles que nele se apoiam indica a sobre- a história também indica que não se conheceu ao longo da história ditaduras
vivência do sistema inquisitório, nas sociedades democráticas ocidentais, a assentadas na diminuição dos poderes judiciais. Sobre este argumento TARUF-
partir da atuação judicial intraprocessual. Portanto, a redução do princípio FO nada refere. Uma análise que opere com tipos ideais – como o trabalho de
dispositivo à mera técnica processual esconde, na realidade, a perpetuação do CARNACINI – e dali toda a tradição em se lidar com argumentos racionalis-
estilo inquisitório após as grandes codificações, especialmente pelo abandono tas do processo (poderes judiciais e sua relação com a descoberta da verdade)
de modelos jurisdicionais de processo civil baseados em modelo distinto da não poderia deixar de fazer notar esta lacuna. Não se tem notícia histórica de
inércia da jurisdição. Se, com efeito, no campo processual civil a atuação de qualquer modelo autoritário de Estado que contasse com o princípio disposi-
ofício do Estado na solução de demandas privadas é atualmente inconcebível, tivo como “técnica intraprocessual”. Pelo contrário, as convulsões políticas do
por se revelar como um meio de o Estado se imiscuir em afazeres e interesses
exclusivamente privados, a manutenção de um estilo inquisitório permanece 1760. “Noções como busca e acertamento da verdade material, oralidade-imediatidade-concentração, poderes
diretivos e probatórios que devem ser atribuídos copiosamente ao juiz, colaboração entre as partes,
relegado à atuação judicial intraprocessual, o que representa uma mutação advogados e juiz, não são estranhas a um amplo setor da nossa doutrina processual, que há tempos
assinala-os como fatores indispensáveis para um processo civil rápido e eficaz, tanto que influenciou
inquisitória que sobrevive nas democracias contemporâneas ocidentais. A significativamente não apenas a cultura acadêmica mas também a legislação em vigor”. MONTELEO-
NE, Girolamo. Intorno al Concetto di Verità ‘Materiale’ o Oggettiva nel Processo Civile. In Rivista di
relegação dos poderes judiciais a “técnicas internas do processo” trata-se, com Diritto Processuale. v. LXIV. Padova: CEDAM, 2009. p. 05.
1761. PICÓ I JUNOY, Joan. El Derecho Procesal Entre el Garantismo y la Eficacia: um debate mal planteado.
In MONTERO AROCA, Juan. Proceso Civil y Ideología. Lima: Turant lo Blanch, 2009. p. 122.
1759. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. Crítica à Teoria 1762. MONTERO AROCA, Juan. Il Processo Civile “Sociale” come Strumento di Giustizia Autoritaria. In
Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. Rivista di Diritto Processuale. v. LIX. Padova: CEDAM, 2004. p. 557.
524 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 525

século XX consolidaram um paradigma de incremento dos poderes judiciais. comum, o tom de incremento da autoridade do Estado. Como se pode veri-
Vejamos o que afirma FENECH: “enquanto que o juiz no Estado de separação ficar, a origem deste discurso de reforço dos poderes judiciais não surgiu com
de poderes deveria se limitar a uma atividade estritamente julgadora, teremos a Constituição da República, com a promulgação de direitos sociais, difusos,
que conceder-lhe faculdades mais amplas no Estado totalitário”1763. Na Espa- com novos sujeitos de direitos etc, como sugerem alguns mais desaviados. É
nha, FENECH afirma que as modificações na legislação espanhola, se tratam, anterior. Nasce em clima político e em regime de governo antidemocráticos.
“no fundo, de um ataque ao princípio dispositivo, ataque que recentemente E que segue sendo sistematicamente reproduzido. Concepção publicística de
em nossa pátria encontrou sua expressão clara no valioso trabalho do professor processo e reforço dos poderes judiciais são mecanismos de aproximação do
Jaime Guasp”1764. Na realidade, na obra Juez y Hecho en el Processo Civil (sua processo civil ao processo penal. Que o processo penal fosse qualquer coisa
tese de doutorado), Jaime GUASP DELGADO propõe a abolição do princípio menos democrático, na Itália, durante o regime de MUSSOLINI, dispensa-se
dispositivo relativamente aos fatos, devendo-se substitui-lo pelo princípio da maiores comentários. O que a publicística civil não explica foi a necessidade
investigação oficial1765 (a aproximação entre processo civil e penal), “transfor- de se construir tais pontes e conexões.
mado em tendência mundial” pela retórica instrumentalista. Passemos agora a mais um ponto, agora recaindo diretamente sobre o
Retornando ao código de processo civil italiano de 1940, ocorre que objeto mais específico do estudo: a instrumentalidade do processo.
esta “tradição liberal”, que aumentou exponencialmente os poderes judi-
ciais, se apresentava como uma nova “fase processual”, a de um processo 4.2. A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO PENAL:
regulado pelo princípio de colaboração entre as partes (inclusive e principal- DAS MATRIZES CLÁSSICAS AO GIRO AUTORITÁRIO
mente dirigido pelo juiz). Segundo MONTELEONE, este sistema, que se A ideia de que o direito material depende do processo para lhe em-
anunciava como capaz de realizar a justiça e a verdade (valores por ninguém prestar a dinâmica que lhe falta não é nova. Tem-se aqui, naturalmente, uma
desprezados em um regime democrático de governo), confiava o processo a relação que se poderia denominar como “ontológica”, tal a dependência entre
um juiz onipotente, reproduzindo a sistemática inquisitorial, incapaz de ser ambos os campos. O dogma da instrumentalidade do processo, portanto,
imparcial, já que deveria agir de acordo com as inúmeras diretivas políticas surge como uma espécie de lugar-comum doutrinário. Apontar para a relação
exteriores. Tal processo, na visão de MONTELEONE, seria a expressão de existente entre direito e processo penal estaria a indicar dois postos a ser ocu-
um Estado autoritário ou de polícia1766. O próprio argumento de aproxima- pados por duas dimensões de um mesmo fenômeno: um plano abstrato ou
ção do processo civil ao penal não permitira abrir espaço para conclusões estático (o do direito penal) e outro concreto ou dinâmico (o processual)1768.
muito diversas (como já se referiu diversas vezes). Na processualística brasileira, a relação de instrumentalidade entre processo
Este discurso em torno do aumento dos poderes judiciais, das críticas ao penal e direito material é celebrada de forma a não se verificar grandes disso-
princípio dispositivo e ao liberalismo da legislação anterior pode ser encon- nâncias. Como exemplos, podemos citar AZEVEDO, para quem “o direito
trado na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil de 1939-1940, totalitário, ou como sistema democrático de garantia de direitos individuais. É que, sendo o juiz, como
seja nas palavras de FRANCISCO CAMPOS, seja no pensamento de Alfredo órgão do Estado, parte integrante da relação processual, pode o Código conferir-lhe atribuições tais, que
importem em sacrificar o princípio dispositivo. Que o juiz seja dominus processi, cabendo-lhe o contro-
BUZAID, outro grande artífice do pensamento autoritário brasileiro1767. Em le, até de ofício, dos pressupostos processuais e das condições de admissibilidade da ação, parece ponto
pacífico na legislação e na doutrina dos países democráticos. O processo é uma instituição de direito
público destinada à administração da justiça. Ele não pode ser utilizado para fins contrários ao direito, à
1763. FENECH, Miguel. La Posición del Juez en el Nuevo Estado: ensayo de sistematización de las directri- ética e à justiça. A concepção publicística, que se funda na autoridade do Estado como parte integrante
ces actuales. Madrid: Espasa-Calpe, 1941. p. 147. da relação jurídica processual, justifica a ampliação dos poderes do juiz. Mas o mérito do legislador está
em estabelecer uma real harmonia entre o princípio dispositivo e o fortalecimento da autoridade judicial.
1764. FENECH, Miguel. La Posición del Juez en el Nuevo Estado: ensayo de sistematización de las directri- Liebman fez a tal respeito ponderações judiciosas, procurando conciliar as duas tendências antagôni-
ces actuales. Madrid: Espasa-Calpe, 1941. p. 147-148. cas”. BUZAID, Alfredo. Grandes Processualistas. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 37.
1765. GUASP DELGADO, Jaime. Juez y Hechos en el Proceso Civil. Madrid: Bosch, 1943. 1768. “A solução do conflito entre a pretensão punitiva e o direito do acusado só pode se dar mediante o pro-
1766. MONTELEONE, Girolamo. Intorno al Concetto di Verità ‘Materiale’ o Oggettiva nel Processo Civile. cesso. O ius puniendi do Estado permanece em abstrato, enquanto a lei não é, ao menos aparentemente,
In Rivista di Diritto Processuale. v. LXIV. Padova: CEDAM, 2009. p. 05. violada. Com a prática da infração, o direito de punir sai do plano abstrato para o concreto”. GRINO-
1767. “O estudo dos poderes do juiz e a determinação de seus limites, sobre ser um dos temas fundamentais VER, Ada Pellegrini. As Condições da Ação Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 69, v.
do direito processual civil, serve também para apreciar a tendência política do Estado, ou como regime 15, 2007.p. 195.
526 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 527

processual é instrumental, é o instrumento do direito substancial, do direito FILHO, que recorrerá a LEONE para descrever o objeto desta instrumentali-
material”1769. Segue o autor afirmando que “o direito processual penal é um dade. Nas lições do autor, uma série considerável de consequências decorreria
ramo autônomo do direito, embora tenha o caráter instrumental, como já desta relação: a) desde o aspecto lógico, o direito processual estaria regulado
ficou dito”1770. Nas palavras de BARROS, “para fazer atuar o direito material, por uma reconstrução histórica, não como fim em si mesmo, mas como meio,
indispensável se torna a existência de um processo ou de um conjunto de como instrumento, como um fim preexistente e que o transcende. Neste
normas que regulem essa atividade jurisdicional. Êsse conjunto de normas sentido, o direito material necessitaria de instrumentos processuais para se
constitui o Direito Processual, e disso resulta a classificação de tais normas realizar; b) desde o aspecto jurídico: novamente TOURINHO FILHO citará
como instrumentais, visto não terem elas um fim em si mesmas, mas sim o LEONE, que distingue entre admissibilidade da demanda e fundamento da
objetivo de fazer atuar o direito material”1771. O processo penal, considera- demanda (ou seja, entre admissibilidade da denúncia e mérito processual)1775.
do em um sentido instrumental, concebe o processo como um meio para Em síntese, a partir deste exemplo fica clara a redução do processo ao papel
a satisfação de um direito ou interesse preexistente. Daí por que é quase de concretização de funções metaprocessuais, em especial: a) a busca pela
impossível não encontrar o contra-argumento lógico, na defesa de tal con- verdade; b) como instrumento de ativação da jurisdição e de resolução do
cepção, de que o processo não é um fim em si mesmo1772 (que dá sustentação conflito (estabelecer a coisa julgada).
e fundamentação ao postulado da instrumentalidade das formas em matéria A complexidade das funções a que o processo é chamado a intervir
de nulidades, por exemplo). Desde um ponto de vista técnico, o processo se não se esgota nesta face mais purista da relação entre direito material e pro-
constituiria em um instrumento para a satisfação de inúmeras questões: “o cesso. Na linha da instrumentalidade também se encontrarão uma série de
processo penal é instrumento para comprovação: a) da pretensão punitiva; b) posturas ideológicas, que reconectam claramente o processo – e a reboque
do direito de liberdade; c) da reabilitação; d) de uma causa extintiva da puni- a jurisdição – a funções políticas declaradas, como o interesse na aplicação
bilidade; e) ou, ainda, meio para resolução de um incidente da execução”1773. da pena, base de um pensamento defensivista, herdado tanto do liberalismo
Neste sentido instrumental, como exemplo, podemos encontrar as palavras de reacionário italiano quanto de sua matriz positivista criminológica. Neste
TOURINHO FILHO, para quem “não se pode negar o caráter instrumen- sentido podemos citar aqui as palavras de BORGES DA ROSA, para quem “o
tal do Direito Processual, porquanto constitui ele um meio, o instrumento interesse fundamental que determina o processo penal é o de aplicar a pena ao
para fazer atuar o Direito material”1774. Preliminarmente, pode-se dizer, a delinquente”1776. Tem-se aqui, no processo penal, uma expressão cristalina dos
instrumentalidade concebe o processo como um meio, subordinando-se, cla- pressupostos da defesa social: o processo como instrumento de aplicação da
ramente, às funções que serão outorgadas a: a) ação; b) jurisdição; c) prova; pena. Ainda no sentido de uma instrumentalidade amparada exclusivamente
d) forma dos atos; e) sentença. Exemplo cristalino deste modo de conceber o no cenário metapolítico, TOURINHO FILHO recorrerá a ninguém menos
processo desde a instrumentalidade pode ser encontrado em TOURINHO do que MANZINI, no sentido de afirmar que a finalidade do processo penal
é garantir a “paz social”1777. Outro doutrinador que pode ser citado aqui, no
1769. AZEVEDO, Vicente de Paula Vicente de. Direito Judiciário Penal. Direito Judiciário Penal. In Re-
vista Justitia. Disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revistas/yz64w2.pdf. Acesso em sentido de legitimar a instrumentalidade do processo penal é VANNINI, que
23.01.2017. p. 152.
1770. AZEVEDO, Vicente de Paula Vicente de. Direito Judiciário Penal. Direito Judiciário Penal. In Revista
concebe as normas de direito processual como instrumentais1778.
Justitia. Disponível em http://www.revistajustitia.com.br/revistas/yz64w2.pdf. Acesso em 23.01.2017.
p. 153. A característica de instrumentalidade do processo não é apenas encon-
1771. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual Penal Brasileiro. v. I. São Paulo: Sugestões trada no interior da processualística penal. Podem ser encontradas similares
Literárias, 1969. p.33.
1772. “A circunstância de ser o Direito Processual Penal um meio de reconstrução da ordem jurídica, e não
um fim em si mesmo, pressupondo uma ordem jurídica determinada por outro ramo do direito, neste
sentido é patente o seu caráter de acessório”. BARROS, Romeu Pires de Campos. Direito Processual 1775. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p 28.
Penal Brasileiro. v. I. São Paulo: Sugestões Literárias, 1969. p. 33. 1776. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos
1773. SILVA, Adhemar Raymundo da. Estudos de Direito Processual Penal. Salvador: Aguiar & Souza Tribunais, 1982. p. 24.
LTDA, 1957. p. 91. 1777. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p. 28.
1774. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30 ed. v. 1, 2008. p. 27. 1778. VANNINI, Ottorino. Manuale di Diritto Processuale Penale Italiano. Milano: Giuffrè, 1965. p. 04.
528 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 529

orientações no campo do processo civil (de onde realmente a categoria não trata de meramente reconstruir as relações entre processo e direito material,
provém), como em PROTO PISANI, que destaca que o direito processual que podem ser operadas a partir de combinações políticas, jurídicas e filosóficas.
civil é um conjunto de normas que disciplina os mecanismos (processos) No campo do processo penal e mais especificamente, desde o interior
que garantem a norma substancial e que atua a partir da ausência da coo- dos processos de ressignificação encontrados na genealogia do processo penal
peração espontânea daquele que deveria agir. A primeira característica do brasileiro, a noção de instrumentalidade ganhará uma versão mais atualizada,
direito processual civil é o seu caráter instrumental, ou seja, intervém apenas responsável por tentar justificar o processo penal e a sua instrumentalidade
quando a norma substancial não seja espontaneamente atendida1779. Ou desde um novo cenário processual, considerado “crítico” e que se desenvol-
ainda, nas palavras de CAPELLETTI, que outorga à noção de instrumen- verá significativamente com o advento da Constituição de 1988. A relação
talidade a função de garantir a efetividade ou a observância do direito de instrumentalidade do processo e do direito penal, neste ponto, se daria
substancial e para os casos de inobservância, a reintegração1780. Outro exem- a partir do respeito aos direitos e garantias fundamentais: “o processo penal
plo importante é o de LIEBMAN, que acentua o caráter instrumental e não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu.
substitutivo da ação1781 1782. Em defesa do código de processo civil de 1940, O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do
ONDEI sustentará que a maior parte do mau funcionamento do processo acusado”1785. Ainda: “a partir do princípio nulla poena sine iudicio, com a sub-
se justifica a partir de concepções que consideram o processo como um fim sequente proibição de autotutela e de autocomposição, o processo criminal se
em si mesmo, ou seja, desconsiderando que as normas processuais possuem constitui no único instrumento permitido para a solução da lide penal”1786.
um caráter exclusiva ou meramente instrumental. Tal relação, segundo o
Esta noção de instrumentalidade do processo, apesar de não ter nascido
autor, significa que a forma não deve matar a substância, que o escopo a ser
durante o regime fascista1787, foi por ele levada às últimas consequências, a
obtido deve prevalecer sobre a perfeição formal dos atos e que para atingir
exemplo de inúmeras categorias processuais penais sequestradas e colocadas
tal escopo o direito processual deve permitir, em nível máximo, a utilização
pelo regime no intuito de orquestrar o “mais fascista dos códigos”, como
da analogia – aquilo que a lei processual não veda deve ser plenamente ad-
era conhecido o Codice Rocco. Especialmente após a queda do regime fas-
mitido1783. Segundo ONDEI, o processo seria, sobretudo, um instrumento
cista italiano, a partir da década de 50, tanto na doutrina quanto no debate
para a composição da luta entre interesses privados, sendo de interesse pú-
sobre a reforma do processo penal prevaleceram estruturas de pensamento e
blico que esta luta termine com justiça. O interesse público não seria objeto
orientações metodológicas de caráter dogmático e formal, com a ampla in-
imediato da atividade processual, mas seria uma finalidade consequencial da
fluência, no campo do processo, do método técnico-jurídico de ROCCO1788.
justa atuação dos interesses privados. Pública seria a estrutura do processo e
Na reforma italiana de 1955 é aberto espaço para garantias processuais e
privadas as matérias e as razões que normalmente circulam no processo1784.
direitos fundamentais que se coordenaram em um tronco autoritário, sendo
O quadro acima retrata bem o polimorfismo da categoria instrumenta-
1785. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: as interceptações telefônicas. 2
lidade. Se, por um lado, ela garante a uniformidade na concepção da relação ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 20.
entre direito material e processual, por outro, permite um investimento político 1786. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: as interceptações telefônicas. 2 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 20. “É, pois, o processo penal, instrumento, através do qual
sobre o processo sem grandes dificuldades. Entretanto, a tarefa aqui proposta se tutela a liberdade jurídica dos réus, e não apenas instrumento pelo qual o Estado exerce sua pretensão
punitiva”. Ibidem. p. 22.
1787. PROTO PISANI sustenta que a noção de instrumentalidade do processo é aumentada a partir dos traba-
lhos de CHIOVENDA, que acentua o caráter público do direito de ação e da jurisdição. Em decorrên-
1779. Cf PROTO PISANI, Andrea. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Napoli: Eugenio Jovene, 1996. cia da publicidade de tais categorias decorreria o “princípio da máxima instrumentalidade possível do
1780. CAPPELLETTI, Mauro. Processo e Ideologie. Bologna: Il Mulino, 1969. p. 05. processo relativamente ao direito substancial, princípio por seu turno traduzido nas célebres máximas
segundo as quais o processo deve dar tudo aquilo que é praticamente possível a quem tem um direito”.
1781. LIEBMAN, Enrico Tullio. Lezioni di Diritto Processuale Civile. v. I. Milano: Giuffrè, 1951. p. 41. PROTO PISANI. Il Codice di procedura Civile del 1940. In Quaderni Fiorentini per la Storia del Pen-
1782. LIEBMAN, Enrico Tullio. Problemi del Processo Civile. Napoli: Morano Editore, 1962. p. 47. siero Giuridico Moderno. n. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 723.
1783. ONDEI, Emilio. Liberalismo o Autoritarismo Processuale? In Rivista di Diritto Processuale. v.7. n. 1. 1788. RAFARACI, Tommaso. “Vis Modica” e Altri Espedienti: la polemica sugli interrogatori duri al processo
Padova: CEDAM, 1952. p. 181. per la morte di Annarella Bracci. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo
1784. ONDEI, Emilio. Liberalismo o Autoritarismo Processuale? In Rivista di Diritto Processuale. v.7. n. 1. penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Mila-
Padova: CEDAM, 1952. p. 181. no: Giuffrè, 2010. p. 126.
530 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 531

claramente marginais. Neste período, dominava a noção do processo penal em relação ao direito material1793.
como um percurso que servia meramente para a função repressiva do Estado, A instrumentalidade do processo se encaixou perfeitamente à concepção
da mesma forma que uma análise autônoma do fenômeno processual era tecnicista que orientava a doutrina tanto no período pré quanto pós-fas-
movida a partir da dominante situação jurídica, pública e conexa ao direito cista. A reforma processual penal italiana, que se deu em 1955, acentuava
penal – a pretensão punitiva, o que acabava por exercitar a sua configuração claramente tal orientação. Aliás, não poderia se esperar coisa diversa: a instru-
sistemática1789. A predominância da concepção instrumental de processo na mentalidade do processo assentava-se nas premissas do tecnicismo jurídico,
Itália era visível. Tome-se aqui o pensamento de DI FALCO, que afirma: relegando a independência conceitual e política do processo penal às funções
“o objetivo do direito criminal processual é a atuação do direito criminal do direito penal material. Neste sentido, basta tomar-se em consideração di-
substantivo. O direito criminal processual é um meio, embora autônomo, versas passagens do manifesto de ROCCO na famosa prolusão de Sassari. A
para a atuação do direito criminal substantivo. Sendo esta a função do direito orientação instrumental do processo penal, na reforma pós-fascista de 1955
criminal processual, do ponto de vista legislativo deveria necessariamente vir era cristalina. Neste sentido, as palavras de BELLAVISTA são lapidares: “os
a ser mais extensa a matéria regulada pelo novo código de processo penal, objetivos da reforma processual realizada em 1955 deveriam ter sido aqueles
correlativamente à extensão do novo direito criminal”1790. de tornar sempre mais idôneo o processo para servir à função instrumental
Os efeitos desta construção poderiam ser sentidos na indisponibilida- que lhe é própria: de ser um meio através do qual devem parecer sempre
de da pretensão punitiva, traduzida a partir do cânone “indisponibilidade menos vãs, sempre mais sacras as palavras abundantemente utilizadas pela
da ação penal”, com o corolário da verdade material, fenômeno que aca- retórica forense: a verdade e a justiça”1794.
bara por nutrir instituições não afeitas ao reconhecimento de um processo O problema da instrumentalidade e subalternidade do processo penal
de partes, com a ainda predominante atividade ex officio do juiz1791. Como em relação ao direito material tem origens antigas, desde a separação das dis-
exemplo desta atividade – já iniciada no regime fascista – de completa ciplinas jurídicas. A centralidade assumida pelo direito penal inexoravelmente
subordinação do processo a fins metajurídicos e que acabou inclusive conduz à instrumentalidade do processo em relação ao direito material1795.
orientando as reformas pós-fascistas, pode-se citar a submissão da reforma Para o iluminismo, que parte de um dogma, o comportamento penal antecede
processual penal àquela do direito material. Ettore CASATI sustentava o processo. Assim, o processo é um mero mecanismo para acertar a violação da
que uma reforma profunda no processo penal deveria apresentar íntimas norma. Esta relação aparece claramente na doutrina processualística italiana
conexões com aquelas do direito material e não poderia portanto, advir pré e pós unificação, sendo, assim, assimilada pela processualística penal como
sem uma reelaboração de toda a legislação penal1792. Tal orientação poderia um relação obrigatória e inexorável. A instrumentalidade acendia todo um
passar despercebida, à medida que CASATI era um dos tantos defensores conjunto de categorias autoritárias que serviram para o tecnicismo processual
da sequencialidade de reformas: primeiro a penal, depois a processual. penal sedimentar um universo fechado e hermético de conceitos, organizados
Contudo, esta postura revela a subalternidade do processo penal relativa- a partir de pseudo-finalidades orientadas de forma a transcender o cenário ju-
mente ao direito material e a consequente instrumentalidade do processo rídico. A noção de instrumentalidade, portanto, não apenas autorizava como
1789. RAFARACI, Tommaso. “Vis Modica” e Altri Espedienti: la polemica sugli interrogatori duri al processo reconectava o processo penal a conceitos como o direito subjetivo de punir
ler la morte di Annarella Bracci. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo
Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Mila-
no: Giuffrè, 2010. p. 126. 1793. GARLATI, Loredana. Novità nel Segno della Continuità: revi riflessioni sulla processual penalistica
1790. DI FALCO, Romano. Concetto, Caratteri e Contenuto del Nuovo Diritto Criminale Processuale. In italiana di ieri e di oggi. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale
Rivista Italiana di Diritto Penale. v. XI. a. V. Padova: CEDAM, 1933. p. 484-485. nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuf-
1791. RAFARACI, Tommaso. “Vis Modica” e Altri Espedienti: la polemica sugli interrogatori duri al processo frè, 2010. p. 297.
ler la morte di Annarella Bracci. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo 1794. BELLAVISTA, Girolamo. Lezioni di Diritto Processuale Penale. 4 ed. Milano: Giuffrè, 1973. p. 18.
Penale nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Mila- 1795. GARLATI, Loredana. Novità nel Segno della Continuità: revi riflessioni sulla processual penalistica
no: Giuffrè, 2010. p. 126. italiana di ieri e di oggi. In NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michele. Diritti Individuali e Processo Penale
1792. CASATI, Ettore. Considerazioni e Proposte Sulla Riforma dei Codici Penali. In Archivio Penale. v. 1, nell’Italia Repubblicana: material dall’incontro di studio Ferrara, 12-13 novembre 2010. Milano: Giuf-
1945. p. 52. frè, 2010. p. 297.
532 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 533

ou a pretensão punitiva. Se as reformas eram feitas no campo legislativo, a ético-política da verdade real, marco que como visto, configurou o modelo
doutrina dava, sob o signo da instrumentalidade, as necessárias tintas de italiano de 1930 numa base tricotômica: princípio da liberdade das provas,
continuidade com a tradição processualística liberal1796. verdade real1801 e livre convencimento judicial1802. Neste sentido, novamente de
A concepção “dogmática” e “técnico-jurídica” do processo penal apre- acordo com GRINOVER, “até as regras processuais sobre a preclusão, que se
sentava o processo como instrumento “neutro” de aplicação da lei penal. destinam apenas ao regular desenvolvimento do processo, não podem obstar ao
Relativamente ao “conteúdo”, o processo como instrumento designa uma poder-dever do juiz de esclarecer os fatos, aproximando-se do maior grau possí-
continuidade com as experiências legislativas pós-unitárias, além de reafirmar vel de certeza, pois sua missão é pacificar com justiça”1803. Do exposto, pode-se
o caráter subordinado das regras processuais ao direito substancial, sendo perceber claramente o esforço de se tentar combinar as premissas ideológicas
mera atividade desenvolvida para o acertamento do fato que segue, através da que governam a matriz inquisitória do código de processo penal brasileiro e
aplicação dos tipos penais, a eventual irrogação de uma sanção criminal1797. a nova ordem constitucional. O significante “social” atribuído ao processo,
Desta maneira, segundo RICCIO, a ideia de instrumentalidade muda de portanto, preencherá com verniz aparentemente acusatório, as funções éticas
natureza consoante se utiliza a expressão processo e procedimento1798. e políticas a ser executadas pelo processo (em especial o penal). Daí por que a
natureza pública do processo – apanágio do epíteto “social”, “autoritário” ou
No Brasil, a noção de instrumentalidade é conexa à de concepção
“publicístico” – será o bastião onde se abrigarão as mutações de toda ordem,
publicista de processo. Até mesmo pelo fato de ambas as noções terem se
claramente salvaguardando o atual código de processo penal de influências
desenvolvido a partir de um tronco comum, a Escola Processual de São Paulo.
políticas antidemocráticas. Para além, esta concepção publicística de processo
Diversas consequências serão extraídas desta matriz, como por exemplo, a
daria vazão, então a um “princípio investigatório”1804. Nesta ordem de coisas,
defesa da ampliação de poderes judiciais e das faculdades instrutórias do
já não há espaço para direitos privados em uma ordem proveniente do Estado
juiz, que podem ser facilmente identificáveis na Relazione al Re do Código
Social de Direito. Lugar-comum no discurso do regime italiano de 1930, a
de Processo Civil Italiano de 19401799.
publicização de todas as esferas sociais articularia um processo civil nos mesmos
Segundo GRINOVER, existe uma distinção entre adversarial e inquisi- moldes do processo penal1805. A construção do argumento da publicização do
torial system e sistema acusatório e inquisitório. O adversarial seria um modelo direito nada mais é do que um discurso corretivo e encobridor, mantendo a
de processo com predominância das partes na condução do processo, enquan- base autoritária latente dos dispositivos processuais. Como exemplo de como
to no inquisitorial, a condução do processo e das provas recairia sobre o juiz. o argumento da “socialização” e “publicização” do processo caminham juntos,
Para a autora, um sistema acusatório poderia adotar tanto o adversarial quanto
o inquisitorial system1800. Neste sentido, “ninguém melhor do que o juiz, a 1801. Sob o manto de um reformismo crítico do conceito, redimensionamento da verdade real, à luz da legalida-
de, não como obtenção de uma verdade ontológica, mas “apenas para uma investigação completa, subtra-
quem o julgamento está afeto, para decidir se as provas trazidas pelas partes ída à influência das partes”. GRINOVER, Ada Pellegrini. A função de garantia das regras probatórias : o
exame de corpo de delito. In Boletim do Instituto Manoel Pedro Pimentel. n. 19, v. 5, 2002. p. 10.
são suficientes para a formação de seu convencimento”. Esta orientação, de 1802. Mas não é só: a exemplo do pensamento de CALAMANDREI que considerava possível um processo
que o acusatório comporta tanto um sistema em que as provas são conduzidas civil inquisitório que não acabasse completamente com o princípio dispositivo, o sistema acusatório, na
visão da autora, seria também compatível com a atividade do juiz.
pelas partes quanto pelo juiz, está impregnada pela fundamentação de base 1803. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 80.
1804. “A decantada natureza pública do processo (penal ou civil) em nada se opõe a um sistema acusatório,
1796. Cf BETTIOL, Giuseppe. Noções Sôbre o Processo Penal Italiano. In Revista do Instituto de Pesquisas que é expressão de uma concepção personalista do direito e de uma concepção democrática do Esta-
e Estudos Jurídico-Econômico-Sociais. n. 3, 1967. p.120-121. do. Nem por isso a tônica social do Estado perderá ressonância na concepção do processo penal: ela
conduzirá a que o sistema acusatório seja agora integrado por um princípio que será equívoco chamar
1797. RICCIO, Giuseppe. La Procedura Penale: tra storia e politica. Napoli: Editoriale Scientifica, 2010. p. 103. “inquisitório”, e que preferimos denominar “investigatório”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades
1798. RICCIO, Giuseppe. La Procedura Penale: tra storia e politica. Napoli: Editoriale Scientifica, 2010. p. Públicas e Processo Penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 52.
19-30. 1805. “Um dos sintomas mais plenamente reveladores dos processos institucionais e das tendências ideais em
1799. Cf BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. 2 ed. São Paulo: Revista dos direção à mutação da organização jurídica liberal é constituído pelo avizinhamento do processo civil
Tribunais, 1994; Cf ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo ao penal e do fazer pouco caso da distinção entre esses, seja ao nível das estruturas institucionais seja
Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. ao nível das representações ideológicas”. TARELLO, Giovanni. L’Opera di Giuseppe Chiovenda nel
1800. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha Crepuscolo dello Stato Liberale. In Materiali per una Storia della Cultura Giuridica. v. III. Bologna: Il
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 78. Mulino, 1973. p. 785.
534 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 535

cita-se GRINOVER, para quem “até mesmo a clássica distinção entre direito missas basilares do liberalismo autoritário brasileiro se renova, desta vez com
público e direito privado esbate-se e quase se desvanece na própria realidade do ares ou requintes de constitucionalismo1809.
Estado Social de Direito, onde todo o ius se publiciza, reduzido a duas categorias Evidentemente, a noção de instrumentalidade traz inúmeros proble-
fundamentais: o “ser” e o haver”, os direitos da personalidade e os direitos pa- mas. O primeiro deles inscreve-se no âmbito da impossível continuidade
trimoniais”1806. Ora, como já foi possível perceber-se, o processo de indistinção entre regimes políticos autoritários e democráticos. Determinadas categorias
entre público e privado era o leitmotiv de todas as reformas legislativas levadas não podem simplesmante atravessar distintos regimes políticos sem que pelo
a cabo na Itália. E também como referido, sob o manto da tecnicidade e da menos um destes fenômenos ocorra: a) ou bem a categoria é constituída por
cientificidade – que secundarizam a discussão sobre a politicidade do direito – um vazio de significado e portanto, é imprestável, já que pode servir a regimes
a “socialização do direito” surge como mera evolução técnica, quando muito políticos tão distintos entre si; ou b) a categoria passa por um processo de
endereçada políticamente pela Constituição. ressignificação, capaz de produzir um conjunto de enunciados, aparentemente
É preciso assinalar que algumas justificativas para o reforço dos poderes em consonância com a nova ordem política mas que, ao fim e ao cabo, servem
judiciais mudarão de escala e orientação. Ou seja, o tecnicismo processual como mera roupagem, produzindo uma mobilização de conceitos e categorias
estará atento à mudança dos ventos políticos, a partir da redemocratização que permitem ao processo penal seguir sendo um instituto de repressão. Em
de diversos países ocidentais. No essencial, esta vertente do tecnicismo con- outras palavras, a instrumentalidade do processo se constitui através do fenô-
temporâneo encontrará algumas explicações e justificativas processuais que meno ressignificativo operado sobre uma forma autoritária de processo penal.
sedimentam a instrumentalidade do processo, à primeira vista, no aspecto Ela mobiliza diversas outras categorias (todas aquelas previamente examinadas
de valoração dos direitos fundamentais. Esta orientação marca a instrumen- ao longo dos capítulos anteriores), de modo a chancelar práticas punitivas em
talidade do processo pós-1988. Todavia, como novamente se pode perceber absoluta consonância com os influxos políticos que permearam a estrutura do
em GRINOVER, mesmo assim, não se está longe daquela instrumentalidade código de processo penal (italiano de 1930 e brasileiro de 1940). Afirmar-se
que aparecia como orientadora do Codice Rocco: “o reforço dos poderes ins- que existe uma relação instrumental entre direito penal material e processo
trutórios do juiz desponta, nesse panorama, como instrumento para atingir penal consistirá em construir pontes que conectam estruturas teóricas ineren-
a igualdade real entre as partes”1807. Independentemente de como se justifica tes ao código de processo penal brasileiro de 1940 e transportá-las para a nova
a verdade no processo, ela orientou o Código de Processo Italiano de 1930 ordem constitucional, mascarando eventual rompimento político necessário
(sendo dele uma estrutura fundante) e orientaria, pelo teor do pensamento da a partir da Constituição de 1988. Exemplo deste processo de ressignificação,
autora, as bases do processo brasileiro, mesmo após o advento da Constituição que transportou a categoria instrumentalidade para o plano democrático e
da República de 1988, desta vez sob o manto da “igualdade entre as partes”. constitucional, funcionando como se fosse uma categoria ou “fase” crítica do
Naturalmente, se balizarão alguns limites judiciais à produção de provas, processo pode ser encontrado em GRINOVER, consoante se pode identifi-
sem que contudo, como referido, se verifique uma modificação completa do car: “para o desencadeamento desse novo método, crítico por excelência, foi
modelo de processo1808. A retórica do equilíbrio, que se encontrava nas pre- de muita relevância o florescer do estudo das grandes matrizes constitucionais
do processo. O direito processual constitucional, como método supra-legal
1806. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Processo em sua Unidade. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 03. 1809. “E nem mesmo a regra constitucional da presunção da inocência será causa impeditiva das iniciativas
1807. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha instrutórias do julgador, Ora, não se nega incumbir o ônus probatório no processo penal de conhecimen-
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 81. to de natureza condenatória, precipuamente, à parte que alega, ou seja: aquela responsável pela fornali-
1808. “Não se confunda o que se disse quanto aos poderes do juiz no processo e à sua iniciativa probatória com zação da acusação. Nada mais lógico, portanto, que ao falhar nesta tarefa, o resultado seja o absolutório.
a atribuição de poderes para buscar elementos probatórios durante a fase de investigação prévia. Esta Mas, como observado, o processo penal não comporta soluções puramente matemáticas, ainda que estas
não pode ser confiada ao juiz, sob pena de se retornar ao juiz-inquisidor do modelo antigo. Durante a forneçam critérios mais cômodos de balanceamento dos interesses em conflito. A relevância, tanto do
investigação, o juiz do processo acusatório tem a função de determinar providências cautelares. Por isso, poder punitivo, quanto da liberdade jurídica, exige constante busca por equilíbrio, que nem sempre é
é oportuno que o juiz da investigação prévia (a cargo do Ministério Público e/ou da polícia judiciária) fácil de ser obtido. É por isso que incertezas sobre relevantes aspectos fáticos passíveis de superação
seja diverso do juiz do processo. É neste, e somente neste, que deve ser estimulada a iniciativa oficial”. podem e devem ser objeto de esclarecimento por intermédio da iniciativa instrutória do juiz”. ZILLI,
GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa do Juiz no Processo Penal Acusatório. In _______. A Marcha Marcos Alexandre Coelho. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal. São Paulo: Revista dos
do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 82. Tribunais, 2003. p. 275.
536 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 537

de exame dos institutos do processo, significou sua análise a partir de dado representação do liberalismo penal1816. Como pontua PULITANÒ, “no ho-
externo, qual seja, o sistema constitucional, que nada mais é do que a resul- rizonte do Estado de Direito, o processo tem funções que não se identificam,
tante jurídica das forças político-sociais existentes na nação”1810. não podem se identificar sic et simpliciter com a aplicação da lei repressiva”1817.
Pelo até aqui exposto, uma crítica da instrumentalidade do processo Tem-se, portanto, na relação de instrumentalidade, a transformação – pa-
não é apenas possível, como necessária. E, neste ponto, vale à pena reproduzir rasitária – do processo em “servo mudo” do direito penal. Neste sentido, a
as críticas de FOSCHINI, para quem “então, o progresso consiste antes de crítica de PADOVANI é impiedosa e irrebatível: “em termos metafóricos, o
tudo na refutação de três dogmas: aquele da identificação do direito com a lei, dogma da instrumentalidade delineia o papel do processo como aquele de um
aquele do juiz como mero “servus legis” e aquele da natureza instrumental do “servo mudo” indefinida e ilimitadamente disponível para agir como ‘aparato
processo. Tratam-se de três dogmas de valor apenas político, que deformam de transmissão’ e a satisfazer as exigências de um sistema de valores dado a
a realidade e tendem, substancialmente, a reduzir o juiz a um burocrata, e priori”1818. A redução do processo penal a um escravo do direito material, nos
a função jurisdicional penal a uma função de polícia, com uma discriciona- últimos tempos, com as sucessivas transformações do processo penal (marca-
riedade meramente administrativa”1811. FOSCHINI acerta em cheio em sua das claramente pela subordinação do processo aos fins da política criminal),
crítica. Evidentemente, a redução do papel do processo a um mecanismo tem produzido, inclusive, uma espécie de instrumentalidade invertida, ainda
de instrumentalização do direito material deformará as estruturas que po- mais perversa. O ciclo da produção jurídica acabou por atribuir ao processo
deriam, de alguma forma, contribuir para o avanço e a construção de um penal o papel de “sócio tirano” do direito penal, numa instrumentalidade
processo penal democrático. Ainda segundo FOSCHINI, a instrumentali- inversa1819. Na mesma direção seguem as palavras de BARGI, para quem a
dade do processo corresponde à própria negativa de sua jurisdicionalidade. evolução da experiência jurídica indica não apenas o enfraquecimento do
Jurisdicionalidade corresponde, segundo o autor, à autonomia do campo axioma da instrumentalidade, mas também uma relação completamente di-
processual, que não guarda relação com o direito material, considerado uma versa, transformando o processo no sócio tirano do direito substancial, muitas
grande abstração quando ausente a sua colocação através da res judicanda1812. vezes atuando por intermédio de interpretações substancialistas de alguns
institutos processuais, frequentemente centradas em argumentos consequen-
O processo existe como demanda do direito penal: este é o núcleo essen-
cialistas1820. Em ambas as noções de instrumentalidade (aquela clássica e a
cial da ideia de instrumentalidade do processo penal relativamente ao direito
invertida), o processo penal é preenchido com finalidades transcendentes ao
material1813. Do ponto de vista do direito penal substancial, a necessidade de
seu mister, com a consequente deformação da atividade jurisdicional.
um instrumento funda uma pretensão de instrumentalidade do processo1814.
A ideia de que a inobservância (ou seja, o fato penalmente relevante) pree- Em termos de um processo penal despido de quaisquer formalida-
xista, fenomenicamente, à ativação do processo, e o argumento de que este des, a categoria da instrumentalidade serviu claramente aos propósitos do
último esteja destinado a acertar o que aconteceu e trazer as consequências regime fascista. Tal conceito, construído de forma assimétrica, acabou por
jurídicas a fim de determinar um enquadramento das relações entre direito
1816. PIFFERI, Michele. Generalia Delictorum: il tractatus criminalis di Tiberio Deciani e la “parte generale”
penal e processo representa o dogma da instrumentalidade1815 como uma di diritto penal. Milano: Giuffrè, 2006. p.143.
1817. PULITANÒ, Domenico. Sui Rapporti fra Diritto Penale Sostanziale e Processo. In Rivista Italiana di
Diritto e Procedura Penale. n. 48. v.3, 2005. p. 953.
1810. GRINOVER, Ada Pellegrini. Modernidade do Direito Processual Brasileiro. In Revista da Faculdade 1818. PADOVANI, Tullio. Il Crepuscolo Della Legalità nel Processo Penale: riflessioni antistoriche sulle di-
de Direito da Universidade de São Paulo. v. 88, 1993. p. 278. mensioni processual della legalità penale. In L’Indice Penale. v. 2. n. 2, 1999. p. 529.
1811. FOSCHINI, Gaetano. Tornare Alla Giurisdizione. Milano: Giuffrè, 1971. p. 06. 1819. PADOVANI, Tullio. Il Crepuscolo Della Legalità nel Processo Penale: riflessioni antistoriche sulle di-
mensioni processual della legalità penale. In L’Indice Penale. v. 2. n. 2, 1999. p. 529.
1812. FOSCHINI, Gaetano. Tornare Alla Giurisdizione. Milano: Giuffrè, 1971. p. 07.
1820. BARGI, Alfredo. Cultura del Processo e Concezione della Prova. In GAITO, Alfredo. La Prova Penale.
1813. PULITANÒ, Domenico. Sui Rapporti fra Diritto Penale Sostanziale e Processo. In Rivista Italiana di v. 1: il sistema della prova. Torino: UTET, 2010. p. 22. Luigi MENGONI adverte, tratando do direito
Diritto e Procedura Penale. n. 48. v.3, 2005. p. 952. constitucional, de que a fórmula de ponderação (no Brasil excessivamente utilizada como “pau para
1814. PULITANÒ, Domenico. Sui Rapporti fra Diritto Penale Sostanziale e Processo. In Rivista Italiana di toda obra”) não pode ser aplicada exclusivamente a partir do critério das consequências da decisão.
Diritto e Procedura Penale. n. 48. v.3, 2005. p. 952-953. MENGONI, Luigi. Il Diritto Costituzionale Come Diritto Per Principi. L’Argumentazione Orientata
1815. PADOVANI, Tullio. Il Crepuscolo Della Legalità nel Processo Penale: riflessioni antistoriche sulle di- Alle Conseguenze. In Rivista Trimestrale di Diritto Processuale Civile, 1994. De forma mais aprofun-
mensioni processual della legalità penale. In L’Indice Penale. v. 2. n. 2, 1999. p.528-529. dada Cf MENGONI, Luigi. Ermeneutica e Dogmatica Giuridica: saggi. Milano: Giuffrè, 1996.
538 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 539

tornar o processo penal refém da política criminal de MUSSOLINI. No Evidentemente, a conexão entre direito penal e processual, se por um
Brasil tal forma de se conceber o processo encontrou eco na doutrina. Neste lado é mais do que evidente, deve ser repensada. A relação entre direito
ponto, as palavras de BORGES DA ROSA são esclarecedoras: “pode-se, material e processual não se dá no plano de uma conexão naturalística ou
como diz Manzini, conceber um direito penal que se aplique sem a garan- ontológica, como a da instrumentalidade. A correlação com o direito penal
tia das formalidades processuais. Mas, não se pode conceber um direito se faz através do princípio da legalidade. E é justamente através da limi-
processual penal que seja objeto e fim de si próprio e que se possa aplicar, tação a quaisquer formas antidemocráticas e autoritárias de punição, que
faltando aquele direito, escrito ou consuetudinário”1821. O processo penal se pode estabelecer as necessárias pontes de contato entre processo penal
seria, nesta linha, um meio sempre subordinado à satisfação de um interesse e direito material. Desta maneira, seguindo de perto os ensinamentos de
material. Jamais seria possível se justificar o processo como um fim em si PULITANÒ, pode-se afirmar que a conexão entre processo e direito penal
mesmo, garantindo-lhe uma configiração assimétrica: não existem direitos se faz mediante o princípio de legalidade1824, e não através de metafunções
processuais que independam de qualquer balizamento político ou de um depositadas no campo da política criminal, das quais não se pode esperar
“balanceamento” relativamente a outras finalidades metajurídicas. Segundo um processo penal minimamente democrático.
BARGI, ao passo que no passado as ideologias fundamentadoras do direi- A relação de instrumentalidade entre processo e direito material nasce
to substancial e de seus institutos encontravam na instrumentalidade do no campo da processualística civil. Ali, a instrumentalidade significa expo-
direito processual o caminho principal para penetrar no processo, hoje a nenciar as formas de satisfação de um interesse ou de um direito. Na lógica
contaminação substancialista dos institutos processuais aparece de forma chiovendiana de importação da doutrina tedesca, a instrumentalidade, tra-
mais sofisticada no princípio da defesa ou da segurança social, correspectivos balhando com a relação entre processo e direito material na lógica de um
de um formalismo interpretativo1822. Sobre a íntima relação entre processo princípio de transmissão, procura maximizar o direito à obtenção de um
penal e regime político, intermediada pela noção de instrumentalidade, provimento jurisdicional. Contudo, esta relação é absolutamente inapro-
pode-se tomar em consideração o pensamento de BETTIOL: priada ao processo penal. Justo pelo fato de que a função do processo não
“Se é inegável no terreno do direito penal material a transformação das é garantir, imediatamente, uma punição. Mas servir como anteparo a uma
relações entre o Estado e o indivíduo, entretanto se deve examinar em re- punição injusta. As relações entre direito material e processual, no campo
lação ao direito processual penal. A nova legislação processual penal reflete
civil e penal, nem de longe podem ser comparadas1825. Daí por que a noção
o alterado clima político cujas normas processuais penais são consideradas
principalmente como normas instrumentais para a realização da pretensão de instrumentalidade carregaria consigo um problema epistêmico irresolúvel.
punitiva do Estado em confronto com o réu. É a íntima estrutura do processo Entretanto, os problemas seriam significativamente menores não fosse a
penal que muda gradualmente em direção a formas de características sempre vis attrativa exercida pela categoria referentemente à coordenação, simbólica
mais inquisitórias, onde a posição do imputado em relação aos aumentados
poderes do juiz acaba perdendo parte daquelas garantias que o liberalismo e política, das diversas categorias processuais ativadas por esta noção. Espe-
havia reconhecido. Da mesma forma, a própria transposição dos esquemas cialmente no Brasil, esta categoria, ressignificada, outorga sistematicidade a
do processo civil ao penal deve se fazer com grande cautela, considerando a este conjunto de institutos processuais, fazendo penetrar diferentes dimensões
diversa estrutura, a diversidade de interesses e a diversa posição que assumem de ideologias autoritárias no processo penal pós-Constituição da República.
os sujeitos no âmbito dos dois processos: no civil, a igualdade entre as partes
conduz a uma igualdade dos meios de ação e de defesa, enquanto que no A instrumentalidade do processo, no Brasil, tem se apresentado muito
processo penal, o equilíbrio é rompido em favor do órgão da acusação”1823. para além de uma mera relação entre processo e direito material. Afirma-se

1821. ROSA, Inocêncio Borges da. Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos na di Diritto Penale. v. XV. Padova: CEDAM, 1937. p. 243.
Tribunais, 1982. p. 02. 1824. PULITANÒ, Domenico. Sui Rapporti fra Diritto Penale Sostanziale e Processo. In Rivista Italiana di
1822. BARGI, Alfredo. Cultura del Processo e Concezione della Prova. In GAITO, Alfredo. La Prova Penale. Diritto e Procedura Penale. n. 48. v.3, 2005. p. 960-961.
v. 1: il sistema della prova. Torino: UTET, p. 22. 1825. De forma mais exaustiva remetemos para GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal:
1823. BETTIOL, Giuseppe. La Regola “In Dubio Pro Reo” nel Diritto e ne Processo Penale. In Rivista Italia- uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. 2 ed. Salvador: JusPodium, 2015.
540 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 541

que ela corresponderia a uma fase “crítica” do saber processual1826. O próximo brasileiro coincidiria com a formação da posteriormente denominada Escola
passo é identificar como ela se constitui. de São Paulo1831, desenvolvendo-se através de jovens mestres (destacando-se
inicialmente Alfredo BUZAID e José Frederico MARQUES1832) nos anos 40
4.3. UMA “FASE” DO PROCESSO BRASILEIRO: A e se transformando em um “verdadeiro pensamento processual brasileiro”1833.
INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO Segundo GRINOVER, “pode-se dizer, pois, que aquela que foi chamada Escola
processual de São Paulo, por Alcala-Zamora, se transformou depois na Escola
Para se poder examinar com acuidade a constituição de uma fase pro-
brasileira, cuja unidade metodológica e cuja doutrina remontam seguramente
cessual denominada “instrumentalista” do processo, primeiramente, há que
ao espírito criador e aglutinador de Enrico Tullio Liebman: de Liebman à escola
se remontar o discurso que cuida do fenômeno de cientificização do processo
processual de São Paulo e desta à moderna processualística brasileira, em uma
brasileiro1827. A processualística brasileira não encontra dificuldades em atribuir
continuidade de pensamento hoje reconhecida em toda parte, e mais que nunca
o nascimento da fase científica no Brasil à vinda de Enrico Tullio LIEBMAN1828,
na Itália”1834. Seria a partir da formação da Escola de São Paulo, portanto, que
que se estabelecera na Universidade de São Paulo1829, com a contribuição inesti-
teriam espaço as “grandes construções científicas”1835.
mável de Francisco CAMPOS1830. Portanto, a fase científica do saber processual

1826. “A fase insrtumentalista, ora em curso, é eminentemente crítica. O processualista moderno sabe que, da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 106. Ainda, assevera o autor, que para alguns
pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, brasileiros, LIEBMAN teria sido interpretado como um “esquerdista”: “Liebman viera da Itália proscrito
mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preci- por ter alguns antepassados israelitas. Apesar de, nessa ocasião, ser o Governo brasileiro, por oportunismo,
so deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo simpatizante do fascismo e, até, discreto perseguidor de judeus, Liebman foi aqui recebido de braços aber-
nos seus resultados práticos”. CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINA- tos. Era natural, como exilado político, que fosse antifascista. Apesar de suave e tolerante, Liebman não
MARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 49. escondia essa posição. Muitos, por isso, julgavam-no adepto de regimes socialistas. Se, na verdade, não o
1827. Também conexa ao processo de intercâmbio entre processualistas brasileiros e italianos. Cf ALMEIDA, era, compreende-se que os brasileiros, com o esquematismo próprio de povos imaturos, o classificassem
Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e as reformas como esquerdista”. VIDIGAL, Luis Eulálio Bueno. Enrico Tullio Liebman e a Processualística Brasileira.
da justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 147. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 107.
1828. “Enrico Tulio Liebman, processualista da Escola de Chiovenda, realizou, sob o ponto de vista didático, 1831. CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teo-
um trabalho mais profundo, inclusive no desenvolvimento de sólidos estudos processuais em São Paulo, ria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 135. No mesmo sentido PAULA, Jônatas
contribuindo de forma bastante ponderável para o que tem sido chamado “A Escola Paulista de Direito Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro: das origens lusas à Escola Crítica do Pro-
Processual”. VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2 ed. São Paulo: Perspec- cesso. São Paulo: Barueri, 2002. p. 354.
tiva, 1982. p. 311. Igualmente, para José Frederico MARQUES, a vinda de LIEBMAN teria propor- 1832. PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro: das origens lusas à Escola
cionado ao pensamento processual brasileiro fugir do “autodidatismo”. Porém, MARQUES acentuará Crítica do Processo. São Paulo: Barueri, 2002. p. 356. Obviamente, tais relações vão se prolongando
uma tradição da Faculdade de Direito de São Paulo, baseada na continuidade: “não surgiu do nada e ex no tempo, como acentual ALMEIDA: “São exemplos as relações que vinculam Liebman a Alfredo
improviso a Escola Processual de São Paulo e sim de uma tradição inimterrompida de brilhantes mes- Buzaid e Luís Eulálio Bueno de Vidigal, seus alunos no curso de extensão que promoveu em seus pri-
tres e cultores do Direito Processual Civil, desde RAMALHO até os atuais professores”. MARQUES, meiros anos em São Paulo, ou Buzaid a Cândido Rangel Dinamarco, seu assessor quando Ministro da
José Frederico. O Direito Processual em São Paulo. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 03-04. Justiça; no segundo caso, são exemplos as relações existentes entre Vidigal e Ada Pellegrini Grinover
1829. Não há espaço aqui para desenvolver uma crítica política da formação da Universidade de Sâo Paulo. e entre esta e Antonio Magalhães Gomes Filho e Maurício Zanoide de Moraes, ou entre Dinamarco e
Neste ponto, basta citar-se aqui as palavras de PÉCAUT: “A criação da Universidade de São Paulo, em Antonio Carlos Marcato, e Flávio Luiz Yarshell”. ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e Reforma do
1934, dois anos após a derrota sofrida pelos paulistas em sua revolta armada contra o novo regime, faz Judiciário: os especialistas em direito processual e as reformas da justiça no Brasil. In Revista Brasilei-
parte do programa de transformação política mediante a constituição de novas elites”. PÉCAUT, Da- ra de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 150. Depoimento semelhante pode ser encontrado em
niel. Os Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990. p. 30. Sobre GRINOVER: “constituíram esta escola os discípulos de Liebman, que privaram de sua companhia nos
a Faculdade de Direito de São Paulo, SCHWARCZ traça duras críticas: “A academia não só tendeu encontros dos sábados à tarde: Alfredo Buzaid, José Frederico Marques, Luis Eulálio de Bueno Vidigal,
a legitimar a vigência de um Estado autoritário e claramente manipulador, como procurou na teoria Bruno Affonso de André, os quais souberam elevar a ciência processual a níveis científicos antes ini-
evolucionista a certeza de sua origem e de um futuro certo”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo magináveis entre nós”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Modernidade do Direito Processual Brasileiro. In
das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 88, 1993. p. 276.
Letras, 1993. p. 182. 1833. DINAMARCO, Cândido Rangel. Discurso de Posse do Professor Cândido Rangel Dinamarco. In Re-
1830. “Os Professores Tulio Ascarelli e Enrico Liebman ambos tiveram a permanência assegurada no Brasil vista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 279.
graças aos esforços do Ministro Francisco Campos, e após passagem rápida pelo Rio de Janeiro fixa- 1834. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil. In Revista da Faculdade
ram-se em São Paulo”. VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2 ed. São Paulo: de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 100. Tal infromação também pode ser
Perspectiva, 1982. p. 311. Segundo o depoimento de Luis Eulálio Bueno VIDIGAL “Creio ter sido eu o encontrada em GRINOVER, Ada Pellegrini. Modernidade do Direito Processual Brasileiro. In Revista da
primeiro estudioso de Direito Processual Civil a conhecer Liebman e freqüentar sua casa em São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 88, 1993. p. 277. A denominação do grupo, e sua
afora Sebastião Soares de Faria, então Diretor da Faculdade de Direito. Liebman estivera na Argentina e no identificação como tal, inclusive com a declinação dos nomes de seus componentes, parece ter ocorrido,
Uruguai e deplorava a ancianidade dos respectivos códigos de processo civil, à luz dos quais não se sentia pela primeira vez, em artigo do também processualista Niceto Alcala-Zamora y Castillo (1958) – ele mes-
motivado para trabalhos doutrinários. Ansiava mudar-se para o Brasil, onde começara a vigorar o Código mo um europeu exilado, inicialmente na Argentina, e posteriormente no México, país o qual atribui a ele
de Processo Civil de 1940 que, segundo Projeto de Pedro Baptista Martins, Francisco Campos, Ministro importância semelhante à de Liebman para o desenvolvimento do direito processual local”. ALMEIDA,
da Justiça de Getúlio Vargas, convertera em lei. Convidado por Campos, deteve-se rapidamente no Rio de Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e as reformas da
Janeiro, onde fez conferências e conheceu Machado Guimarães, autor de “ A instância e a relação proces- justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 146.
sual”, o único trabalho brasileiro da época à altura da ciência processual italiana e alemã”. VIDIGAL, Luis 1835. GRINOVER, Ada Pellegrini. Modernidade do Direito Processual Brasileiro. In Revista da Faculdade
Eulálio Bueno. Enrico Tullio Liebman e a Processualística Brasileira. In Revista da Faculdade de Direito de Direito da Universidade de São Paulo. v. 88, 1993. 278.
542 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 543

Como todo processo de fundação de um saber de escola, era preciso deste espaço ampliado de atuação, através da ramificação de seus pressupostos
forjar as bases de definição do grupo1836. Desta maneira, a Escola de Sâo metodológicos, que chegariam facilmente a outras universidades, o Instituto
Paulo não deixa de tentar formular alicerces que a conectem também à tra- Brasileiro de Direito Processual haveria de ser incorporado à disciplina de Di-
dição processual brasileira, apesar de não considerá-la científica1837. Trata-se reito Judiciário Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
de um processo, portanto, de busca por uma identidade (especialmente a garantindo-lhe um enraizamento profundo no seio da academia brasileira1840.
partir da ruptura com a tradição coimbrã e assumindo um status de ruptura Diante desta circunstância, percebe-se que a Escola de São Paulo conta
modernizadora e cientificizadora do direito pocessual). Portanto, seja sob o com alianças entre especialistas que possuem carreiras substancialmente aca-
signo da continuidade (com a tradição ibérica brasileira), seja sob o manto dêmicas e os demias juristas, com uma formação e atuação mais práticas.
da ruptura (crítica à ausência de uma metodologia rigorosamente científica Segundo ALMEIDA, esta aliança corresponderia ao principal mecanismo
do pensamento prévio à vinda de LIEBMAN ao Brasil), a formação de uma de legitimação do grupo, “contrário a discursos puramente teóricos, de que
identidade e de um saber de escola se dá sobre as bases de uma postura crítica “quem entende do funcionamento da justiça é quem trabalha com ela”, em-
e não radical do saber processualista brasileiro1838. A chegada e permanência de pregado especialmente por juízes e advogados de “nível-de-rua””1841.
LIEBMAN (e sua vinculação ao processo civil) é tão profunda que GRINO-
O pensamento desta escola será voltado sobre a “perspectiva instru-
VER acentuará as dificuldades na construção de um pensamento processual
mentalista do processo”, como “meio de participação política e de satisfação
penal, dada a ausência de alguém que como o processualista italiano ocupasse,
de fins sociais do próprio Estado”1842. Desta forma, esta perspectiva acerca
no campo processual penal, a sua proeminência aglutinadora 1839.
do processo considera algumas questões já levantadas no tópico precedente
A vinda de LIEBMAN para o Brasil, portanto, corresponde ao momen- acerca da instrumentalidade do processo: o processo já não é um fim em si
to simbólico de fundação da Escola Processual de São Paulo. Contudo, parece mesmo, mas “instrumento do Estado para a realização de objetivos preestabe-
acertada a assertiva de ALMEIDA, para quem a institucionalização do grupo lecidos”1843. Como acentua PAULA, esta tendência instrumental se caracteriza
somente se concretizará a partir da fundação do Instituto Brasileiro de Direito pela tentativa de reformulação do processo à luz de escopos “políticos, sociais e
Processual Civil (IBDP), no ano de 1958. Desta maneira, a Escola Processual jurídicos”, encontrando em Cândido Rangel DINAMARCO e Ada Pellegrini
de São Paulo conseguiria ampliar ainda mais a sua área de influência, não GRINOVER grandes nomes1844.
mais se cingindo ao plano exclusivo da Universidade de São Paulo, alçando-
A justificativa encontrada no redirecionamento do sentido e da com-
se na captação de capital humano em outras universidades e regiões. Além
preensão sobre o processo repousa em um “instrumentalismo substancial”,
tomando a efetividade da justiça1845 como um norte a ser perseguido. Desta
1836. Assim como na Itália a escola chiovendiana seria responsável por um processo de “sistematização do
direito processual”, a Escola de São Paulo teria então, “cientificizado” o direito processual brasileiro.
1840. ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e
1837. “Mas a doutrina brasileira de então ressentia-se profundamente de uma grande desatualização metodo- as reformas da justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 148.
lógica. Nossos estudiosos, habituados à leitura dos clássicos portugueses (Correia Telles, Pereira e Sou-
za, Lobão) e dos exegetas italianos (Mattirolo, Pescatore e mesmo Mortara), não se haviam alinhado ao 1841. ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e
movimento que a partir da metade do século passado se instalara na Europa”. CINTRA, Antonio Carlos as reformas da justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 153.
Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 1842. DINAMARCO, Cândido Rangel. Discurso de Posse do Professor Cândido Rangel Dinamarco. In Re-
ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 134. No mesmo sentido GRINOVER: “a renovação científica do di- vista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 279.
reito processual, que se iniciara na Alemanha a partir da metade do século passado, tardou a penetrar no 1843. DINAMARCO, Cândido Rangel. Discurso de Posse do Professor Cândido Rangel Dinamarco. In Re-
Brasil, onde os antigos processualistas continuavam ligados à velha escola procedimentalista, estudando vista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 279.
o processo na dinâmica dos atos do procedimento e não a partir da conceituação de seus institutos”. 1844. PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro: das origens lusas à Escola
GRINOVER, Ada Pellegrini. Oração de Posse. In ________. O Processo em sua Unidade. v. II. Rio de Crítica do Processo. São Paulo: Barueri, 2002. p. 356. BEDAQUE ciriticará os escopos políticos e
Janeiro: Forense, 1984. p. XI. sociais do processo: “colocar a participação e a educação como escopo político e social da jurisdição
1838. ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e significa superdimensioná-la, em detrimento das funções legislativa e executiva, a quem compete real-
as reformas da justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 147. mente tais atribuições”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo:
1839. “É nessas circunstâncias que ascendo à cátedra de processo penal e o faço consciente da necessidade Revista dos Tribunais, 1994. p. 22.
imperiosa da formação de uma escola. Os grandes nomes, nós os temos. Falta, sem dúvida, uma figura 1845. “O tema da efetividade do processo foi retomado por Cândido Rangel Dinamarco, na tese de cátedra
humana e um homem de ciência como Enrico tullio Liebman para promover e facilitar a aglutinação”. publicada em 1987 (Dinamarco, A Instrumentalidade do Processo, cit., os. 451-453), em que o autor
GRINOVER, Ada Pellegrini. Oração de Posse. In ________. O Processo em sua Unidade. v. II. Rio de assim resume os aspectos fundamentais da problemática da efetividade: a) acesso à justiça; b) modo de
Janeiro: Forense, 1984. p. XIV. ser do processo; c) critérios de julgamento (ou “justiça nas decisões”) e d) a efetivação dos direitos (ou
544 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 545

maneira, o processo se caracteriza como um instrumento inarredável para que tentativas de reforma do processo penal brasileiro, pode-se afirmar tranquila-
tais objetivos “políticos, sociais e jurídicos da jurisdição” possam ser alcança- mente que especialistas em direito processual da Escola de São Paulo sempre
dos, sendo a técnica processual um meio para a sua obtenção1846. estiveram nas comissões encarregadas de estudos, pareceres e formulações de
A Escola de São Paulo, nos dizeres de seus próprios integrantes, conso- reformas, exercendo relevantes cargos na condução destes processos. Desde
lidou-se a partir do compartilhamento de “certos pressupostos metodológicos o Anteprojeto Frederico Marques à última reforma substancial do processo
fundamentais”, como a noção de “relação jurídica processual”, a “autonomia da penal brasileiro (Comissão Grinover), não há dúvidas de que o papel exercido
ação”, a “instrumentalidade do direito processual”1847, a “inaptidão do processo por tais professores era (e é) relevantíssimo na formulação de propostas de
para criar direitos” e a crença na existência de uma “teoria geral do processo”1848. reforma da legislação processual brasileira1850.
Um exame da Escola Processual de São Paulo, muito embora esteja Portanto, se do ponto de vista da dogmática a Escola Processual de São
distante do objeto imediato da presente investigação, não pode ser comple- Paulo se caracteriza pela perspectiva instrumentalista, atribuindo-se inclusive
tamente deixado de lado, especialmente se considerarmos as suas influências ser a representante de um “pensamento processual brasileiro”, não há dúvidas
decisivas na consolidação dos procedimentos legislativos de reforma do direito de que os reflexos de sua produção acadêmica e de sua interferência política se
processual brasileiro1849. Como já transpareceu quando do exame das diversas esparramam para além dos confins da discussão eminentemente técnica, pro-
duzindo notabilíssima performance política na condução dos procedimentos
“utilidade das decisões”)”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Modernidade do Direito Processual Brasileiro.
In ________. O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 11. Ainda segun- de reforma da legislação processual. Nesta ordem de ideias, pode-se afirmar
do GRINOVER, relativamente à efetividade: “efetividade, na visão instrumental do sistema processual, que ela possui, através de seus representantes, um decisivo capital simbólico
posto a serviço dos escopos jurídicos, sociais e políticos da jurisdição, que são o de atuação da vontade
concreta da lei penal, de pacificação com justiça e de abertura à participação, dentro do processo e pelo na consecução de projetos políticos no país, que nem sempre se confundem
processo” GRINOVER, Ada Pellegrini. A Reforma do Código de Processo Penal. In ________. O Pro-
cesso: estudos e pareceres. São Paulo: Perfil, 2005. p. 279. com a dinâmica meramente interna do espaço acadêmico1851.
1846. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil. In Revista da Faculda-
de de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 101. Diante deste quadro, além do próprio “capital simbólico” ostentado
1847. “Mais que de São Paulo, passou a identificar-se uma Escola Processual Brasileira. E, agora, novo alento
aqui vem bater, novos rumos toma a Escola Paulista. É o pensamento moderno aqui instalado e desenvol- por este grupo, através de arranjos sociais baseados no prestígio acadêmico
vido, voltado à perspectiva instrumentalista do processo como meio de participação política e de satisfação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a constante partici-
dos fins sociais do próprio Estado”. (...) Na Escola Processual de São Paulo, vamos vigorosamente afir-
mando que os conceitos que temos já são mais do que suficientes para o que deles queremos: que o proces- pação deste grupo nos procedimentos legislativos de confecção da legislação
so não é um fim em si mesmo, mas instrumento do Estado para a realização dos objetivos preestabelecidos.
Desenvolvemos a ideia de que tudo há de ser feito, neste quadrante metodológico da ciência processual,
para tornar efetiva a utilidade desse instrumento e para que a promessa de justiça não seja mera promessa programa de pós-graduação do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Uni-
mal cumprida e para que a Justiça seja realmente aberta a todos e a todas as suas causas, qualquer que seja versidade de São Paulo (FDUSP), da atuação no Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e dos
a sua natureza e por menor que seja sua dimensão econômica. Essa é a nova Escola Processual de São percursos acadêmicos e profissionais de seus próprios membros principais”. ALMEIDA, Frederico de.
Paulo, da qual participo orgulhosamente, compartilhando com Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e as reformas da justiça no
desses ideais instrumentalistas que constituem os novos ventos da moderna ciência do direito processual”. Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 128.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Discurso de Posse do Professor Cândido Rangel Dinamarco. In Revista 1850. “no primeiro caso, de projetos vitoriosos, é possível citar o próprio Código de Processo Civil, de autoria
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 81. São Paulo, 1986. p. 279. de Alfredo Buzaid, com participação de José Frederico Marques; o Código de Defesa do Consumidor,
1848. “A Escola Processual de São Paulo caracterizou-se pela aglutinação dos seus integrantes em torno de cuja elaboração contou com a participação de Kazuo Watanabe e Ada Pellegrini Grinover; e a Lei dos
certos pressupostos metodológicos fundamentais, como a relação jurídica processual (distinta e inde- Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com colaboração de Antonio Magalhães Gomes Filho”. ALMEI-
pendente da relação substancial, ou res in judicanda deducta), autonomia da ação, instrumentalidade do DA, Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e as refor-
direito processual, inaptidão do processo a criar direitos e, ultimamente em certa medida, a existência mas da justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 155. Ainda:
de uma teoria geral do processo”. CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DI- “Grinover cita 21 leis que reformaram pontualmente o Código de Processo Civil de 1973, promulgadas
NAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 136. entre 1992 e 2002, todas elas originárias do IBDP; já no sítio eletrônico do Instituto (Instituto Brasileiro
1849. “Dados de minha pesquisa sugerem que um mesmo grupo de especialistas em processo, concentra- de Direito Processual), é possível identificar diversas propostas legislativas de direito processual civil e
dos no Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo penal apresentadas por seus representantes, várias delas já transformadas em lei – incluindo o antepro-
(FDUSP), tem participação privilegiada nas comissões responsáveis pelos anteprojetos das reformas jeto de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, este ainda em tramitação”. Ibidem.
processuais centrais do período da redemocratização – o principal caminho escolhido na história da 1851. Segundo ALMEIDA, “a posição de poder desse grupo passa pelas estratégias de seus membros nas re-
justiça brasileira recente para sua reforma e modernização, que ocorreu por meio de inovações legisla- lações com as demais posições de poder do campo jurídico, relativizando sua autonomia acadêmica por
tivas, como a Lei dos Juizados de Pequenas Causas, a Lei da Ação Civil Pública, o Código de Defesa meio da relação com os “práticos” do direito, especialmente as carreiras jurídicas de Estado, a grande
do Consumidor, as reformas do Código de Processo Civil na década de 1990 e o pacote de reforma advocacia e os tribunais de cúpula do Judiciário. Além disso, para se compreender a posição de poder
infraconstitucional do Poder Judiciário, lançado pelo Ministério da Justiça em 2003 no seu esforço conquistada pela Escola Processual Paulista na política da administração da justiça no Brasil, é preciso
pela Reforma do Judiciário. Esse grupo, cujo núcleo intelectual é em geral identificado como Escola compreender também a gênese simbólica e as estratégias de reprodução interna do grupo e as próprias
Processual Paulista, relaciona-se com processualistas italianos, de outras regiões e escolas do Brasil e representações que seus membros fazem de seu pertencimento a ele”. ALMEIDA, Frederico de. Intelec-
com especialistas tanto em processo civil como em processo criminal, por meio de redes que passam tuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e as reformas da justiça no Brasil.
pelos intercâmbios culturais entre escolas diferentes, do trânsito de acadêmicos de outras escolas pelo In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 128.
546 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 547

brasileira confere a tais especialistas um novo capital simbólico, “científico- BEDAQUE1856, GRINOVER (como já referido), etc. Desta forma, cremos
institucional”, consequência do capital acumulado através “dos meios de que esta obra constitui uma clara demonstração de um saber de escola, pelo
produção científica e de desenvolvimento de carreiras acadêmicas”1852. que o diálogo travado a partir deste livro permite, simultaneamente, dialogar
Não há dúvidas, portanto, de que a Escola Processual de São Paulo deve com os diversos autores que se enquadram nesta proposta instrumentalista.
ser considerada um núcleo ideológico e histórico, que interferiu e interfere Para se poder analisar criticamente a instrumentalidade do processo em seus
direta e imediatamente sobre os rumos do processo brasileiro, atuando, para aspectos mais essenciais, torna-se necessário, preliminarmente, apresentar o
além do plano acadêmico, de forma determinante sobre a condução das po- que ela é. Como já referido, o termo instrumentalidade tradicionalmente
líticas de reformas processuais1853. se refere às relações entre direito processual e direito material. No Brasil,
esta relação foi traduzida também como uma nova fase (crítica) do direito
processual. O instrumentalismo consistiria, inicialmente, em uma espécie de
4.4. A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO PENAL
“abertura” do processo à concepção publicista de processo, assim como ao
BRASILEIRO APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM
solidarismo que adviriam da sociologia jurídica e da política1857. São diversos
EXAME DE SUAS FACETAS os núcleos sobre os quais se arvora esta perspectiva. O primeiro deles é o
Quiçá a mais bem acabada tentativa de ilustrar a estrutura assumida aspecto metodológico, que a seguir se passará a examinar.
pela noção de instrumentalidade do processo, no Brasil, seja a obra A Ins-
trumentalidade do Processo, de Cândido Rangel DINAMARCO1854. Dois são 4.4.1. INSTRUMENTALIDADE E METODOLOGIA DO
os motivos pelos quais podemos tomar a sua obra como a mais importante PROCESSO
elaboração intelectual acerca do tema. Em primeiro lugar, foi o primeiro em- A primeira parte da obra de DINAMARCO dedica-se à apresenta-
preendimento intelectual que procurou analisar, sistematicamente, as feições ção das propostas metodológicas que ilustrariam as transformações sobre
assumidas pelo “instrumentalismo processual”. A segunda razão é que, além o processo deflagradas a partir da adoção de uma postura instrumentalis-
da robusta proposta (que não encontra parâmetros no Brasil), ela se incorpora ta. Neste ponto, a noção de instrumentalidade será arquitetada de forma
no pensamento da Escola Processual de São Paulo, acima identificado, atra-
vessando transversalmente o pensamento de autores como WATANABE1855, -, sempre com a preocupação de fazer com que o processo tenha plena e total aderência à realidade
sócio-jurídica a que se destina, cumprindo a sua primordial vocação que é a de servir de instrumento À
efetiva realização dos direitos. É a tendência ao instrumentalismo que se denominaria substancial em
contraposição ao instrumentalismo meramente nominal ou formal. WATANABE, Kazuo. Da Cognição
1852. ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e as no Processo Civil. 3 ed. São Paulo: Perfil, 2005. p. 22 A noção de instrumentalidade de fato não aparece
reformas da justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 155-156. no cerne do trabalho de WATANABE, afora as menções na introdução e conclusão do trabalho, o que
1853. ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e Reforma do Judiciário: os especialistas em direito processual e se deve em parte à ausência da publicação da obra de DINAMARCO antes da elaboração de WATA-
as reformas da justiça no Brasil. In Revista Brasileira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 157. NABE. Contudo, alerta o autor, a noção de instrumentalidade já estaria presente em algumas obras de
1854. “Por fim, há de ser analisada a monografia que, com toda a certeza, no que tange à superação do pro- DINAMARCO que foram citadas na sua tese. Ibidem. nota. 01.
cessualismo, foi o ponto alto da doutrina brasileira. Trata-se do livro de Cândido Rangel Dinamarco, 1856. “Qualquer estudo sobre direito processual não pode prescindir de algumas premissas básicas: trata-se
originado de sua tese de cátedra, intitulado “A Instrumentalidade do Processo”, lançado em 1987, às de rmo autônomo do direito, regido por princípios publicistas. Daí decorre que os institutos processuais
vésperas da promulgação da atual Constituição brasileira”. LEMOS, Jonathan Iovane de. A Organiza- não devem ser contaminados pelas regras que regulam a relação jurídica de direito substancial, que vem
ção do Processo Civil: uma análise cultural da estruturação do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, a ser o objeto do processo. Isso porque, sendo autônomo, este tem fins distintos de seu conteúdo; fins
2013. p. 115. Além disso, o próprio autor reconhece a repercussão da “perspectiva instrumentalista”: esses que se confundem com os objetivos do próprio Estado, na medida em que a jurisdição é uma das
“Quando se passa às manifestações em sede de ideologias do processo, vê-se que parte da doutrina bra- funções com que ele procura cumprir seu papel, qual seja, o de assegurar o bem-estar da sociedade. A
sileira assimilou em grande escala as colocações sugeridas pelos pioneiros da escola instrumentalista, conclusão de que os princípios da relação jurídico-substancial não devem repercutir no processo, ao
com grande engajamento a esta e às chamadas ondas renovatórias. A bibliografia brasileira atual exibe contrário do que possa parecer, não nega o caráter instrumental deste último. Apenas coloca a ‘instru-
um número significativo de obras voltadas aos grandes temas do instrumentalismo, como o acesso à mentalidade do processo’ não em função da parte, de seus interesses e de seu eventual direiyto subjetivo,
justiça e a inafastabilidade do controle jurisdicional, o direito processual constitucional em suas variadas mas do Estado e de seus objetivos”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do
manifestações, os escopos sociais e políticos do processo e a efetividade deste, os poderes de iniciativa Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 10-11. Da instrumentalidade do processo que o au-
probatória do juiz, a tutela coletiva etc. – além da instrumentalidade do processo em si mesma, como tor asseverará a existência dos poderes instrutórios judiciais: “estabelecido que a instrumentalidade do
núcleo central de todas essas preocupações”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito processo deve ser concebida em função do ordenamento jurídico-substancial criado pelo Estado, e cuja
Processual Civil. v. I. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 196. preservação encontra nele o maior interessado, impossível aceitar a intransigente defesa que a maioria
1855. WATANABE denominará de “instrumentalismo substancial” tal perspectiva: “o que se pretende é fazer da doutrina brasileira faz da inércia judicial no tocante à investigação probatória, postura muito comum
dessas conquistas doutrinárias e de seus melhores resultados um sólido patamar para, com uma visão principalmente quando os direitos em questão são disponíveis”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos.
crítica e mais ampla da utilidade do processo, proceder ao melhor estudo dos institutos processuais – Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 12.
prestigiando ou adaptando ou reformulando os institutos tradicionais, ou concebendo institutos novos 1857. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 11.
548 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 549

ressignificada, nos exatos termos em que insistimos ao longo dos capítulos ao método empregado, a instrumentalidade do processo equivale à submissão
anteriores. Através da alteração do panorama político – democracia e o mo- do processo a finalidades que lhe seriam ditadas desde outras instâncias1863.
vimento neoconstitucionalista – as bases do processo seriam alteradas (muito Juntamente com esta questão, surge o compromisso ético do processo, ou seja,
embora se aproximem em muito, no que toca ao processo civil, das locuções a sua conotação deontológica, que pode ser lida como a necessária depen-
da processualística italiana da década de 40). dência do processo relativamente a valores ou ainda, ao “dever-ser”. Não há
Como corolário da instrumentalidade do processo, na vertente meto- dúvidas, portanto, de que a instrumentalidade se caracterizará, inicialmente,
dológica, o autor propõe uma nova fase, capaz de ultrapassar o privatismo pelo condicionamento do processo a fins ulteriores, que brotariam do meio
conexo ao período sincretista, no qual direito material e processo não se dis- social em que é chamado a atuar1864.
tinguiam. Como reflexo político da adoção de um novo modelo, as críticas De uma maneira geral, a instrumentalidade do processo corresponderia às
do autor, que já existiam no período da codificação processual civil italiana, funções de aprimoramento do sistema processual, de acesso à justiça, da redução
remontam as críticas endereçadas ao liberalismo processual, em específico, das desigualdades que se revelariam no campo processual, da efetividade do pro-
tendo como destinatário o princípio dispositivo1858, reproduzindo, em grande cesso, de controle jurisdicional, do incremento da participação dos magistrados
medida e de forma acrítica, as conclusões já apresentadas cerca de quarenta bem como do aumento da liberdade de apreciação das provas, etc1865. A fase
anos antes por Tito CARNACINI, e examinadas no tópico precedente. Uma instrumental, nessa senda, refletiria o nível de penetração no campo processual
segunda crítica é endereçada pelo autor ao segundo período da história do das “pressões axiológicas exteriores”1866, evitando assim, uma autorregulação do
processo, o período cientificista. Se por um lado, a técnica processual foi o processo a partir de sua própria racionalidade. Alguns aspectos evidenciariam a
instrumental indispensável para se evitar as confusões conceituais, termino- suscetibilidade do processo a tais orientações exteriores:
lógicas e epistêmicas relativamente ao direito material (privado), o período a. A relação entre processo e ordem constitucional1867: neste ponto, o autor
científico se caracterizou por profundas e largas discussões que se constituiam
em um avançado nível abstrato, dificultando a eficácia do direito proces- todavia, preocupa-me a responsabilidade social do juiz, os seus compromissos perante e a sociedade.
Mais do que atuar o direito concreto, mais do que dar apoio ao ordenamento jurídico do país e ao próprio
sual. Era preciso, pois, reconectá-lo à realidade que precisava ser alcançada Estado, cumpre ao juiz ser fiel ao seu compromisso com a Justiça”. DINAMARCO, Cândido Rangel.
Promessa (para prefaciar). In _______. Fundamentos do Processo Civil Moderno. São Paulo: Revista
pelo processo. A tarefa, portanto, de alterar a realidade social sem abdicar da dos Tribunais, 1986. p. xiii.
1863. Evidentemente, submeter o processo a fins intrínsecos não justifica nenhuma alteração que pudesse ultra-
técnica é denominada de fase instrumental1859, compreendida como “tercei- passar as discussões de fundo metafísico apresentadas pelo autor. Tome-se esta passaagem, que diz muito
ro momento metodológico do direito processual”1860. Em síntese, esta fase da relação entre juiz e norma: “Uma primeira promessa fiz e creio que já a venho cumprindo. Quando
assumi o meu cargo no Primeiro Tribunal de Alçada Civil e me fiz juiz, prometi humildemente uma visão
metodológica exigiria a renúncia a discussões que se dariam em níveis ex- instrumentalista do processo e da jurisdição, que então passei a exercer. Essa promessa foi muito impor-
tante para mim, naquele momento da minha vida profissional. Professor de direito processual, a partir da
clusivamente metafísicos1861, devendo tais discussões ser reconduzidas a um investidura preocupei-me em ver nele apenas um instrumento; instrumento autônomo, nobre instrumento
a serviço do direito material e não valor em si mesmo. Tenho hoje a alegria e justa vaidade de proclamar
patamar teleológico1862. Portanto, como síntese deste primeiro aspecto relativo que não me fora difícil cumprir essa promessa. Fora com os formalismos, fora com o sufocar dos direitos
subjetivos entre as sobras de um sistema processual mal compreendido! A promessa que hoje faço pode
ser uma continuação da primeira. Não quero ser apenas um juiz que faz cumprir a lei de seu país. Quero,
1858. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 18. muito mais do que isso, ser sempre e cada vez mais apto a compreender os valores sociais que jazem sob o
1859. Nesse sentido GRINOVER: “e o processo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico, texto das leis, os valores que não estão na lei escrita e que só a sensibilidade para a justiça e para a vida nos
para transformar-se em instrumento ético e político de atuação da justiça e de garantia da liberdade”. podem revelar”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Promessa (para prefaciar). In _______. Fundamentos
GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Processo nas Ações Coletivas. In Revista do Processo Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. xiv – xv.
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 82. São Paulo, 1987. p. 181-182. 1864. “A negação da natureza e objetivo puramente técnicos do sistema processual é ao mesmo tempo a afir-
1860. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. mação de sua permeabilidade aos valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material
p. 21. (os quais buscam efetividade através dele) e reconhecimento de sua inserção no universo axiológico da
1861. “Iniciou-se assim, nestas últimas décadas, a fase do denominado “instrumentalismo” do processo, em sociedade a que se destina”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed.
que a instrumentalidade, antes afirmada apenas de modo nominal e formal, dentro do próprio sistema, se São Paulo: Malheiros, 1990. p. 22.
transforma em ponto nodal, extravasando para outros enfoques e novas posturas. E todo o sistema pro- 1865. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
cessual passa a ser visto como instrumento para atingir os escopos jurídicos, sociais e políticos a que se p. 23.
destina”. GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Processo nas Ações Coletivas. 1866. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 82. São Paulo, 1987. p. 181. p. 24.
1862. Veja-se o que pensa o autor a despeito da “função política do Poder Judiciário”. “A função política do 1867. Note-se claramente a transposição das funções exteriores para o paradigma do Estado Democrático de
Poder Judiciário é essencial à própria sobrevivência do direito e do Estado mesmo. Acima de tudo isso, Direito, circunstância elencada no capítulo I e tratada como o período “pós-acusatório”.
550 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 551

destacará o papel do processo em sua relação com o Estado Demo- c. O Processo Como Instrumento de Mutações na Ordem Constitucional e
crático de Direito, enfatizando que o processo seria o seu próprio Legal: neste ponto, o autor enfatizará sobretudo o papel da interpretação
microcosmos1868. O processo, assim, seria um meio, não apenas para e da jurisprudência na definição dos contornos político-institucionais
se chegar ao julgamento, mas para se atingir fins remotos como a do direito. Alicerçará o autor, incrível crença de que a ampliação dos
“segurança constitucional dos direitos e da execução das leis”1869; poderes dos juízes1875 – naquilo que concerne à hermenêutica – favo-
b. O processo e as mutações da ordem constitucional: segundo o autor, receria um quadro de superação do descompasso entre a democracia
o processo acompanha as alterações que se dão de acordo com as e algumas práticas judiciais. As mutações constitucionais e legais, se-
decisões políticas tomadas. Desta forma, argumenta-se que o pro- gundo o autor, não se dariam em virtude do próprio Estado, mas em
cesso não pode se constituir e permanecer isolado de seu ambiente virtude de “imposições do próprio sentimento nacional”1876.
sócio-político, de forma tal que mesmo os princípios outrora con- d. Uma Perspectiva Publicista de Processo: neste ponto, pouca coisa deve-
siderados elementares são suscetíveis de transformação1870. Desta mos acrescer à tudo aquilo que já fora dito anteriormente. Contudo,
maneira, o processo deve ser reinterpretado à luz do Estado De- devemos destacar que o autor realça a posição (também já referida)
mocrático de Direito. O principal fator que comprometeria essa da teoria geral do processo na formulação de um panorama unívoco
evolução do processo relativamente ao ambiente sócio-político re- que assegure a publicidade do processo1877. Novamente vinculado aos
sidiria na sua concepção estritamente técnica e ainda, na valoração pressupostos de um Estado “social e intervencionista”, o conteúdo
do direito processual como uma ciência neutra. Segundo o autor, público do processo seria acentuado. Naturalmente, a retórica do
a “neutralidade axiológica” seria uma espécie de invisibilização de equilíbrio entre interesses governa o dicurso em torno da publici-
percepções conservadoras do processo (liberais), garantindo com zação do processo1878. A natureza instrumental do processo, neste
isso, “níveis intoleráveis de prevalência do princípio dispositivo, em ponto, implica toda a sua reorganização funcional1879, que deve seguir
pleno Estado intervencionista”1871. Com o recurso ao significante a conformação de “instrumento do Estado” e que deve perseguir
“social”, que fora elaborado pela processualística italiana da década determinados fins (objetivos sociais, políticos e jurídicos). Desde o
de 30-40, os poderes judiciais haveriam de ser reforçados1872 através “plano ético”, o juiz seria o responsável por reequilibrar as atividades
da assertiva de que o juiz não poderia ser indiferente ao resultado das partes, quando se verifique a desigualdade entre elas, corrigindo
da demanda, já que o juiz precisaria “estar iluminado pela visão dos os rumos da atividade processual. Isso seria assim porque o interesse
resultados sócio-econômicos e políticos a que a sua decisão poderá público no exercício da jurisdição é maior do que os interesses indi-
conduzir”1873. Evidentemente, então, como já se poderia concluir viduais em jogo1880. Ainda, segundo o autor, “a consciência dos juízes
a partir da concepção instrumentalista do autor, o processo não
poderia ser conduzido exclusivamente a partir de seu escopo jurí- a estabilidade das instituições”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3
ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 37. Nota 17.
dico. Não como um instrumento meramente jurídico, mas capaz 1875. “Imbuído dos valores dominantes, o juiz é um intérprete qualificado e legitimado a buscar cada um
de realizar a mística e teológica missão de pacificar com justiça1874. deles, a descobrir-lhe o significado e a julgar os casos concretos na conformidade dos resultados dessa
busca e interpretação”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São
Paulo: Malheiros, 1990. p. 42.
1868. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 1876. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 25. p. 42.
1869. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 1877. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 27. p. 52-53.
1870. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 1878. “É preciso, de um lado, reprimir a inquisitoriedade que dominou o processo penal autoritário, e de outro,
p. 30. abandonar o comportamento desinteressado do juiz civil tradicionalmente conformado com as defici-
1871. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. ências instrutórias deixadas pelas partes no processo. Tal é o sentido mais amplo possível (conquanto
p. 36-37. inevitavelmente vago), a fórmula da publicização do processo no tempo presente. DINAMARCO, Cân-
1872. “O erro consiste em esquecer que o juiz é membro da sociedade em que vive e participa de seu acervo dido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 54.
cultural e dos problemas que a envolvem, advindo daí as escolhas que, através dele, a própria sociedade 1879. O autor trata da jurisdição sob uma perspectiva funcional. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instru-
vem a fazer no processo”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São mentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 22.
Paulo: Malheiros, 1990. p. 36. 1880. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p.
1873. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 55. No mesmo sentido BEDAQUE: “o interesse público na correta atuação da lei deve prevalecer sobre
p. 36. o interesse particular das partes em ver reconhecido seus direitos”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos.
1874. “Ele é um instrumento sim, mas não a serviço exclusivamente do direito substancial; sua missão mais Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 52. O autor seguirá afirmando que
elevada é a que tem perante a sociedade, para a pacificação segundo critérios vigentes de justiça e para a supremacia do interesse público decorre especialmente da perspectiva instrumentalista: “esse modo de
552 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 553

vai-se amoldando a essa tendência publicista e instrumentaal”, que estruturam a teoria geral do processo, seria possível perceber-se que sintetizam
tem como paradigma a “grande dose de liberdade investigatória pra- os objetivos de todo o sistema processual1886.
ticada pelo juiz penal”1881. Ademais, a necessidade de maior controle
sobre os atos jurisdicionais de primeiro grau e a indisponibilidade O objetivo da teoria geral do processo, além da síntese de finalidades
dos interesses em questão justificaria, por exemplo, o recurso de e de categorias comuns a todos os campos processuais é a produção de uma
ofício1882. A publicização do processo traz, como efeito correlato, a metodologia unitária. Através da indução, a teoria geral do processo teria con-
indisponibilidade dos direitos, e a sua inquisitividade (nos termos do sagrado a instrumentalidade do processo como elemento básico do sistema1887.
processo civil inquisitório de CALAMANDREI). A justificativa é a
Muito não há a acrescer neste momento. Isto pelo fato de que como já
transcendência dos interesses públicos sobre os privados. A publici-
zação, assim, se constituiria como “forte tendência metodológica da
foi referido anteriormente, a teoria geral do processo não consistiu apenas em
atualidade, alimentada pelo constitucionalismo que se implantou a uma unificação conceitual. A teoria geral do processo seria responsável pela
fundo entre os processualistas contemporâneos”1883, sendo então, o solidificação de uma base publicizada (não no sentido chivendiano, mas já
processo um instrumento cuja finalidade é dar concretude aos valores preenchido politicamente por uma mentalidade autoritária), através da qual
tutelados pela ordem constitucional. se procurou aproximar o processo civil do processo penal. Como já por tantas
A seguir, passaremos ao exame do segundo ponto de apoio da noção de vezes referido neste ensaio, dois são os movimentos: no primeiro, surge o pro-
instrumentalidade: a teoria geral do processo. cesso civil, emprestando categorias e robustez científica ao precário corpus
doutrinário processual penal (não se podendo esquecer que o nascimento das
4.4.2. TEORIA GERAL DO PROCESSO E A PERSPECTIVA categorias processuais se deve, primeiramente, ao preenchimento e construção
INSTRUMENTALISTA: das categorias públicas – dentre elas o processo civil – nos mesmos moldes do
De acordo com a proposta instrumentalista de DINAMARCO, à direito privado1888). O segundo, a aproximação do processo civil ao penal, ao
teoria geral do processo estaria reservado um papel essencial. A relação entre tomar motivações e um corpo político (ideológico) capaz de fazer ingressar no
a teoria geral do processo e a instrumentalidade consistiria em uma relação processo civil um conteúdo transcendente aos direitos individuais, a fim de que
metodológica1884. Nesta relação, não se deixa de evidenciar a preocupação pudesse abraçar uma publicização plena do campo, não mais refém das noções
que norteia o pensamento instrumentalista: a de que a teoria processual de disponibilidade e do princípio dispositivo. Amparando-se o processo civil
deve atender aos influxos axiológicos, correspondentes à perspectiva teleo- em um discurso típico do processo penal, teríamos presentes a elevação dos
lógica que governaria o modelo processual. interesses superiores (do Estado) e a constituição de “stock discursivo” capaz de
Os pontos de apoio da teoria geral do processo, segundo DINAMAR- lhe creditar tarefas superiores às quais ele de fato estaria autorizado a promover.
CO, seriam quatro: jurisdição, ação, defesa e processo1885. Em tais figuras que
4.4.3. DESFORMALIZAR E PUNIR: JURISDIÇÃO E PROCESSO
analisar o fenômeno processual sobrepõe o interesse público do correto exercício da jurisdição ao interesse
individual. Trata-se de uma visão essencialmente instrumentalista”. Ibidem. p. 73.
PENAL NO INSTRUMENTALISMO
1881. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 55.
1882. Além de o autor não apresentar uma justificativa razoável para a sua manutenção no processo penal
Um terceiro aspecto do desenvolvimento da perspectiva instrumen-
brasileiro (que trata de casos exclusivamente decididos em favor do imputado e que, portanto, exigem talista reside no deslocamento do conceito de ação1889 para o de jurisdição.
revisão por parte do tribunal), a prevalecer tal entendimento, o único interesse indisponível no processo
penal seria relativamente à soltura de réu preso, da sentença concessiva de reabilitação e à época, a
absolvição sumária, bem como o arquivamento ou absolvição em crime contra a economia popular. 1886. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
1883. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 62.
p. 57. 1887. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
1884. Segundo o autor, “teoria geral do processo é, nessa perspectiva, um sistema de conceitos e princípios p. 75.
elevados ao grau máximo de generalização útil e condensados indutivamente a partir do confronto dos 1888. Este fenômeno foi examinado quando se examinou o pensamento de Vittorio Emanuelle ORLANDO no
diversos ramos do direito processual”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Pro- capítulo II.
cesso. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 59. 1889. “Por ser individualista e restrita ao processo civil, desmerece apoio a tendência a colocar a ação ao
1885. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. centro da constelação dos institutos de direito processual”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instru-
p. 61. mentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 79.
554 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 555

DINAMARCO, inicialmente, afirmará que a análise do sistema processual, a Todavia, na questão atinente à jurisdição, o eixo central desta pers-
partir do conceito de ação constitui-se como um velho hábito individualista, pectiva instrumentalista estará centrado na questão do poder, construindo
incompatível com a concepção publicista de processo1890. assim, uma ponte para a análise da relação entre processo e política (con-
Portanto, a aproximação do processo civil junto a categorias como poder e cebe o autor a política como o “processo de escolhas axiológicas e fixação
liberdade, permitiu que o papel do juiz fosse exponenciado através do construto dos destinos do Estado”1895). Portanto, a jurisdição, analisada dentro do
jurídico-político da teoria geral do processo. Assevera o autor que nem mesmo quadro das relações entre poder e processo e mais especificamente, entre
o processo poderia ser colocado no centro do sistema, já que este sistema é processo (direito) e política, sustenta que a sua abordagem recairá desde
ele propriamente instrumental e funcionando em alinhamento com objetivos uma perspectiva formal (relações entre Estado e indivíduo), limitando-se
que lhe são exteriores. O processo, em si mesmo, traria uma marca profunda ao exame do poder político “e especificamente à chamada ‘expressão po-
de formalismo, coisa que o autor pretende evitar1891. A passagem da jurisdição lítica do poder nacional’”1896. Neste ponto, concebe a expressão do poder
ao centro do sistema, ao mesmo tempo, implica em duas considerações: a) ela nacional nos exatos termos da Escola Superior de Guerra, que o divide em
destaca o perfil instrumentalista do sistema, ao pretender realizar objetivos exte- quatro campos: a) político; b) psicossocial1897; c) econômico e d) militar.
riores ao universo jurídico; b) ela se insere como marca inapagável da concepção Para o autor, a nação, que se trata de uma realidade nacional, excutará os
publicista de processo como instrumento do Estado Social1892. seus objetivos que podem ser sintetizados na ideia de “bem comum”1898.
Desta maneira, o já referenciado deslocamento da jurisdição para o Agregada à noção de jurisdição e poder, surge outro elemento im-
centro do processo opera um efeito indelével: aquele de transformar a ordem portante no desenvolvimento da perspectiva instrumentalista. Cuida-se da
processual em um “sistema aberto ou dependente”, conexo à ordem jurídi- categoria decisão1899. Para o autor, “o poder político é, realmente, a capaci-
ca vigente em um determinado país. Tal ligação se faz através da categoria dade de decidir imperativamente e impor decisões”1900. O autor reconhece a
instrumentalidade. E, neste sentido, a justificativa encontrada para a ordem imperatividade da decisão no contexto não apenas processual, mas também
processual é a de garantir ao Estado meios para a realização de seus próprios político, espelhando-se de forma incontroversa nas perspectivas decisionistas
fins1893. Em síntese, reaparecem os condicionamentos externos da ordem pro- que marcam o fundo doutrinário da Escola Superior de Guerra1901. Todos os
cessual aos próprios objetivos do Estado1894. objetivos do Estado, nos mais diversos ramos de suas atividades, necessitam
para implementar os seus programas, da decisão. Sem ela, careceria de fundo
1890. “Como se vê, da visão publicista da ordem processual, a partir de seus objetivos e inserção no sistema
político-jurídico da nação, deflui com muita naturalidade a jurisdição ao centro”. DINAMARCO, Cân- 1895. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
dido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 78. p. 83-84.
1891. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 1896. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 79. p. 87. Segundo COMBLIN, “o processo da Nação inteira pode ser representado com a ajuda do esque-
ma meio-fim: a Nação é uma vontade que emprega meios em vista de um fim. É o Poder Nacional”.
1892. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
p. 81. Tal noção de transformação do Estado está na base do pensamento da Escola Superior de Guerra: Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 58.
“o Estado de Direito, preocupado mais com a organização jurídica, transforma-se em um Estado de
Justiça, voltado para o Bem Comum”. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São 1897. Para PESSOA o Poder Judiciário produzirá variados efeitos psicossociais: “sob a égide do Poder Ju-
Paulo: GRD: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 237. Aparecerá também em BEDAQUE: “o objetivo diciário, organizado e funcionável, tem-se a justiça retributiva, de poderosos reflexos psico-sociais”.
do Estado é o bem comum. Para alcançá-lo ele desenvolve várias atividades, todas voltadas para esse PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 155.
fim. Cada uma delas tem, todavia, um objetivo mais próximo. Com a atividade jurisdicional, o Estado 1898. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
busca, imediatamente, manter a ordem jurídica intacta. As demais funções estatais têm também seus p. 88.
objetivos imediatos. Se cada uma cumprir fielmente sua missão, o Estado atingirá seu objetivo final: o 1899. Saliente-se que Bulow é, de acordo com LEAL, equivocadamente apontado como o fundador da mo-
bem-comum”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista derna ciência processual. Segundo o autor, ele inaugura uma “vertente tecnológica da jurisdição como
dos Tribunais, 1994. p. 22. atividade do juiz”. LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte:
1893. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. Mandamentos, 2008. p. 65. Naturalmente, ela é plenamente compatível com as posturas decisionistas
p. 82. de etiqueta tanto política quanto jurídica.
1894. “O significado político do processo como sistema aberto, voltado à preservação dos valores postos pela 1900. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
sociedade e afirmados pelo Estado, exige que ele seja examinado também a partir de uma perspectiva p. 89.
externa; exige uma tomada de consciência desse universo axiológico a tutelar e da maneira como o 1901. “A Política assume uma feição especial da atividade humana, que envolve uma decisão. A essência da
próprio Estado define a sua função e atitude perante tais valores”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A política é, pois, uma tomada de decisão”. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed.
Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 83. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 39.
556 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 557

teleológico todo e qualquer investimento1902. teleológica insere-a no contexto do poder e da política1909. Nesse sentido,
Desde já deve-se compreender que a perspectiva instrumentalista é, “a jurisdição deve ser vista como uma das expressões do poder estatal, que
nas palavras do próprio autor, uma concepção funcionalista1903. Estando a é uno”1910, novamente remetendo tacitamente às noções desenvolvidas pela
jurisdição ao centro do sistema processual e, dada a imprescindibilidade do Escola Superior de Guerra. A diferença entre jurisdição, administração e le-
elemento decisão (que além de reconectar o sistema processual a premissas gislação não seria de caráter ontológico, mas residiria no fato de que o Estado
políticas autoritárias1904), natural que se justifique, como mais adiante se verá, exerce diversas funções e que se manifestam de maneira diversa nos distintos
os poderes judiciais. Concebe o autor que a sentença representa não apenas campos de atividades. Assim, a unidade do poder remete à pluralidade de
o ato mais próprio da função jurisdicional, como de praxe asseveram os mais funções, permitindo o desenvolvimento de formas e características distintas
diversos processualistas. Mas vai além, afirmando que a sentença corresponde de acordo com cada uma destas manifestações do poder1911. Segundo DINA-
a uma manifestação – quiçá inconsciente – de como deveria ser organiza- MARCO, “em essência jurisdição é exercício do poder como todas as demais
da a sociedade (citando aqui Luis Fernando BELLINETTI1905), tratando, atividades do Estado, diferenciando-se delas pela natureza do serviço prestado,
portanto, a sentença como ato político1906. Afirmará DINAMARCO que a ou seja, da função exercida”1912. A partir desta constatação, o autor crê ser
sentença é uma “positivação do poder”, o que em última instância remete ao possível desvencilhar-se de uma série de questões que atormentam a disciplina
decisionismo (o direito vale por força da decisão)1907. processual, sendo despicienda a discussão em torno da natureza jurisdicional
(ou não) do juiz em determinados campos, como no processo penal. Para o
Esta perspectiva funcionalista da jurisdição, de acordo com DINA-
autor, mais importante do que afirmar ou negar a natureza jurisdicional desta
MARCO, lhe permitiria distinguir-se dos usuais enfoques metodológicos1908.
atividade seria ter presente que sempre se trata de exercício de poder e que se
A vinculação da jurisdição a finalidades exteriores e, portanto, uma concepção
desenvolve através de nítida presença do publicismo e se elevando por sobre
1902. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. os interesses meramente individuais1913. Desta forma, natural que a unidade
p. 90.
1903. O que vem ilustrado pela profusão de citações de sociólogos ligados à tal tradição como LUHMANN, do poder possa acarretar a unidade da jurisdição1914.
KAPLAN, LASSWELL, DEUTSCH, dentre outros.
1904. Basta pensar-se em Carl SCHMITT como seu mais ilustre representante (e no Brasil, em Miguel REA- Como corolário desta concepção funcionalista de jurisdição, algu-
LE).
1905. BELLINETTI, Luiz Fernando. Sentença Civil: perspectivas conceituais no ordenamento jurídico brasi-
mas questões se fazem notar sem dificuldade alguma. Em primeiro lugar,
leiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 99. esta forma de jurisdição que é tão somente manifestação da unidade do
1906. Tal postura vai ao encontro daquela representada pela Escola Superior de Guerra, segundo a qual o
poder político seria composto de quatro partes principais: o poder executivo, o legislativo, o judiciário e poder, conceberá um processo avesso ao formalismo1915, concendendo ao
o dos partidos. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América
Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 60.
1907. Embora o autor acredite que a noção de poder poderia ser um elemento de correção da noção decisio- 1909. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros,
nista de direito apresentada quando do exame da sentença. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instru- 1990. p. 114.
mentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 98. 1910. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
1908. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 115. Em sentido semelhante PESSOA: “A estrutura desse Poder é indivisível e integrada: compõe-se
p. 114. A perspectiva funcionalista caracteriza claramente o quadro dos autores (preferencialmente ame- de elementos, de variada natureza, que se interligam, interdependem, interrelacionam e reciprocamente
ricanos) utilizados pela Escola Superior de Guerra: “A literatura divulgada pela ESG, ainda que restri- se condicionam”. PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: Bi-
tamente, mantém certa coerência teórica, apoiando-se na teoria sistêmica, dando peso maior ou menor blioteca do Exército: Revista dos Tribunais, 1971. p. 85.
a cada assunto, variando de acordo com as oscilações das conjunturas interna e externa. O Manual 1911. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
Básico da Escola é um exemplo que ilustra a contento a postura assumida, visível não só através da p. 115. No mesmo sentido BEDAQUE afirma: “para atingir a finalidade a que se propôs, o Estado im-
organização de sua forma de trabalho, mas também pela utilização de conceitos e autores, preponderan- põe sua vontade sobre as pessoas. Nesse sentido, desenvolve três atividades fundamentais, distintas e
temente funcionalistas norte-americanos”. MIYAMOTO, Shiguenoli. Escola Superior de Guerra: mito harmônicas entre si, já que voltadas para o mesmo fim último: legislativa, executiva ou administrativa e
e realidade. In Revista de Ciências Sociais. v. 2. n.1. Porto Alegre, 1988. p. 80. A mesma consideração jurisdicional. O poder do Estado, que é uno, manifesta-se, portanto, mediante essas três funções por ele
vem referendada por LIMA FILHO: “A Doutrina da Segurança Nacional foi formulada a partir da pro- exercidas”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos
dução bibliográfica estrangeira. A influência dos manuais norte-americanos na definição da Doutrina Tribunais, 1994. p. 17-18.
ESG foi marcante, principalmente através dos conceitos “expressão política”, “expressão econômica”, 1912. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 118.
“expressão psicossocial” e “expressão militar” da Segurança Nacional. Tais expressões foram sugeridas
à ESG por Oficiais da Missão Militar Americana. Na obra intitulada “Economics of National Security”, 1913. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
de George A. Lincoln, “traduzida para uso exclusivo da ESG”, de acordo com nota, encontramos as re- p. 119.
feridas expressões que orientariam as formulações da ESG acerca do desenvolvimento durante décadas, 1914. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
sem alteração. LIMA FILHO, Sebastião André Alves de. O Que a Escola Superior de Guerra (ESG) p. 119.
Ensinava. Tese de Doutorado em Sociologia. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2011. p. 94. 1915. “Não é enrijecendo as exigências formais, num fetichismo à forma, que se asseguram direitos; ao con-
558 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 559

juiz poderes criativos1916 e o concebendo como um agente político1917. No Os problemas não param por aí. O autor, ao analisar a questão da
plano das nulidades, eleva-se ainda mais o âmbito de atuação da instrumen- legitimidade da jurisdição, a partir de um ponto de vista “sociológico” (in-
talidade das formas1918 e o alcance da categoria prejuízo no processo, a ponto formado exclusivamente por vetores funcionalistas e portanto, reducionista),
de poder o juiz ajustar o processo de acordo com o caso em concreto1919; afirmará que o processo se afirmará legitimamente quanto maior a sua aceita-
deseja-se um juiz ativista1920, que seja o verdadeiro protagonista processual. ção social1922. Afirma DINAMARCO que a contemporaneidade se defronta
Eis uma síntese de como a jurisdição poderia servir aos escopos do poder com problemas derivados da crise de autoridade1923, o que acaba por deflagrar
nacional. Grande parte destas expressões vai exatamente ao encontro dos problemas relativos às estruturas de poder, dentre elas a esfera jurisdicional.
pressupostos do código italiano de 1930 e do nosso atual código de pro- A perda da credibilidade da justiça, então, teria como explicação o formalis-
cesso penal: verbi gratia a) a extinção das nulidades (ampliar o espaço da mo, a morosidade dos processos, a falta de acesso à justiça, e a “impunidade
instrumentalidade das formas e do prejuízo, no processo penal, significa consentida pelos tribunais netes tempos de verdadeira neurose em face da
abolir as nulidades1921); b) o aumento exponencial dos poderes do juiz; violência urbana”1924. Portanto, se estes são problemas verificados, a sua antí-
c) constituição de um juiz ativista e agente político. Não é preciso forçar tese corresponderia: a) na ampliação do acesso à justiça; b) na desformalização
qualquer tipo de conclusão. Tudo aponta para uma renovação conceitual do do processo1925 (no processo penal posto em marcha desde o código de pro-
velho autoritarismo processual, agora sob as vestes teleológicas e funcionais cesso penal de 1941); c) a evitação da impunidade, o que a contrario sensu,
da jurisdição como manifestação de poder nacional. representa uma manifestação do processo penal como instância repressiva.
A sublinhar o aspecto da função repressiva do sistema de justiça criminal,
trário, o formalismo obcecado e irracional é fator de empobrecimento do processo e cegueira para acentua o autor que “a falência do sistema repressivo, com a liberalização nos
os seus fins”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo:
Malheiros, 1990. p. 128. juízos penais até mesmo em função da insuficiência dos presídios, tem concor-
1916. Embora a referência seja aos juizados especiais, percebe-se que tal direção da atividade do juiz deveria
ser a regra: “O juiz criará modos de tratar a prova, de colher a instrução ou de sentir as pretensões das rido em muito para a generalizada impressão de uma grande impunidade dos
partes;interrogá-las-á livremente, dialogará com elas e permitirá o diálogo entre elas ou delas com as teste-
munhas; visitará o local dos fatos, ou examinará as coisas trazidas com sinais de vestígios de interesse para delinquentes mais perigosos”1926. Como o leitor poderá perceber, ao processo
a instrução; permitirá que argumentem a qualquer tempo e lhes dirigirá perguntas ainda quando declarada
finda a instrução – e tudo sem as formas sacramentais do processo tradicional”. DINAMARCO, Cândido penal corresponderia, na análise feita pelo autor sobre a noção de jurisdição,
Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 129. uma inegável função defensivista, nada oferecendo de realmente inovador que
1917. “O juiz, investido por critérios estabelecidos na ordem constitucional e mediante as formas que a lei
institui, é também um agente político do Estado (...) Inexiste razão para enclausurá-lo em cubículos não pudesse ser encontrado no pensamento autoritário italiano da década de
formais do procedimento, sem liberdade de movimentos e com pouquíssima liberdade criativa”. DINA-
MARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 129. 30. Além do mais, claramente a instrumentalidade do processo penal, neste
1918. “Daí a grande elasticidade a ser conferida ao princípio da instrumentalidade das formas, que no tra-
dicional processo legalista assume o papel de válvula do sistema, destinada a atenuar e racionalizar sentido, deveria ampliar a punitividade do sistema brasileiro e diminuir as
os rigores das exigências formais; no processo marcado pela liberdade das formas, o princípio da ins- formas processuais, algo que reside na estrutura ancilar do processo penal
trumentalidade tem a importância de parâmetro da própria liberdade e serve para amparar o respeito
às garantias fundamentais, como penhor da obtenção dos resultados e, portanto, da validade do ato”. brasileiro de 1940. Por isso, de nada adianta traçar os contornos de um Estado
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 130. Em entrevista, comentando a diferença entre instrumentalidade das formas e instrumentalidade
do processo: “Não, ninguém pensa em pô-las em confronto; são duas ideias diferentes. Quando penso 1922. “Em linhas gerais, pode-se dizer que legítimo é o sistema processual na medida em que conquista maio-
em instrumentalidade do processo, penso na produção de certos resultados, em fazer justiça etc. Já a res garus de aceitação social a partir da observância desses três princípios” (o autor se refere ao devido
instrumentalidade das formas se volta para arredondar os defeitos dos atos e dizer: ‘só vou anular se processo, ao contraditório e à igualdade). DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do
for preciso’”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Cândido Rangel Dinamarco e a Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 140.
Processo. (uma entrevista). In Cadernos Direito GV. v. 7. n. 34, 2010. p. 35-36. 1923. Que se diga de passagem já era ventilada pelos ideólogos autoritários e inclusive, objeto da Exposição
1919. “O ‘prejuízo’, sem o qual nulidade alguma se pronuncia, é apenas o dano causado aos objetivos da par- de Motivos do Código de Processo Civil de 1940.
ticipação contraditória; onde o procedimento ficar maculado mas ilesa saia a garantia de participação, 1924. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
cerceamento algum houve à ‘defesa’ da parte. Cabe ao juiz até, ao contrário, amoldar os procedimentos p. 141.
segundo as conveniências do caso”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Proces- 1925. A postura de desformalização do processo pode-se dizer vinculada à noção de instrumentalidade das
so. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 136. formas, que já era pedra angular do discurso da Escola de São Paulo: “evitar o culto das formas, como
1920. “E falar em participação significa, no direito processual moderno, falar também no ativismo judicial, se constituíssem fim em si mesmo, e ater-se a critérios racionais nas exigências legais das formas, re-
que é a expressão da postura participativa do juiz – seja através da iniciativa probatória, seja do diálogo presenta manifestação do princípio da instrumentalidade das formas”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Do
a que o juiz tradicional se recusa etc”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Pro- Juizado de Pequenas Causas: aspectos constitucionais (II). In ________. O Processo em sua Unidade.
cesso. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 132. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 144.
1921. Já abordado em GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: 1926. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
Saraiva, 2017. p. 143.
560 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 561

Democrático de Direito, que deveria manifestar os seus objetivos através do empregada pelo autor leva, então, à necessidade de se indicar quais os escopos
processo quando, na seara processual, o processo deve atender a “graus de processuais, as finalidades que conduzem o processo em sua missão. Portanto,
aceitação social”, a fim de incrementar a sua legitimidade. Portanto, tem-se existe uma conexão entre a perspectiva instrumentalista – teleológica – e os
a formulação de um processo majoritário e intuitivo (quando se deve pen- objetivos que devem ser realizados pelo processo.
sá-lo como contramajoritário e contraintuitivo). O recurso a determinados Sendo uma expressão do poder, a jurisdição realizaria os próprios fins
direitos e garantias processuais penais, neste contexto, não passa da invocação do Estado. Segundo DINAMARCO, a doutrina tradicional, imantada pelos
de um discurso neoconstitucionalista (leia-se temporizador), quando a base vetores do privatismo, interpretaria o sistema processual em função dos di-
defensivista se encontra já programada nas cadeias genéticas do autoritarismo reitos a serem satisfeitos pelo ordenamento processual. Portanto, nesta visão,
processual penal, manifestadas através de diversas categorias e institutos do o processo seria um instrumento de realização ou satisfação de direitos1932.
processo penal. Desformalizar e punir: eis o slogan que poderia ser tributa-
Entretanto, não se trata, na visão do autor, de uma perspectiva acei-
do à jurisdição como manifestação de poder quando aplicada ao processo
tável nesta quadra da história. Sendo a jurisdição uma expressão do poder
penal. Além disso, tenta o autor inclusive isentar os atores processuais de sua
do Estado, natural que através dela perpassem todos os objetivos estatais1933,
responsabilidade histórica durante os períodos ditatoriais. Segundo o autor,
podendo, inclusive, ser o processo expressão da jurisdição, interpretada como
“a recente história política brasileira é exemplo bastante animador dessa ca-
uma função da soberania do Estado1934. Então, ainda segundo a perspectiva do
pacidade de resistência aos desvios autoritários, mantendo o processo a sua
autor, a jurisdição não poderia ser subsumida a uma finalidade exclusivamente
dignidade em nível satisfatório e mantendo-se os magistrados em sua posição
jurídica, devendo levar-se em consideração o cenário sócio-político.
esperada pela nação”1927. De que recente história política estaria a falar o
autor? Certamente não aquela de 1937 ou 1964, períodos em que o processo O primeiro aspecto que deveria ser levado em consideração, como uma
foi dominado pela “legalidade autoritária”, como ensina PEREIRA1928. ideia que permite sintetizar o “escopo metajurídico da jurisdição” seria a paz
social1935, que serviria, inclusive, como citério de legitimação do processo na so-
O autor também apresentará algumas características da jurisdição como
ciedade. Neste sentido, a tarefa da jurisdição não poderia ser realizada por juízes
a imunização (estabilidade)1929 e a imperatividade (status de sujeição do indi-
espectadores ou conformados: como agente estatal, deverá o juiz resguardar as
víduo ao Estado)1930, que dentro deste contexto geral, são de menor relevância.
próprias funções estatais1936 sintetizadas na noção de “bem comum”. “Como
A seguir passaremos ao eame dos escopos da jurisdição, onde a teleologia
instrumentalista aparecerá ainda mais forte. como se interagem, constitui peça importantíssima no quadro instrumentalista do processo”. DINA-
MARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 149.
1932. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 151.
4.4.4. OS ESCOPOS DA JURISDIÇÃO E A INSTRUMENTALIDADE 1933. O autor, sobre a jurisdição afirma que “sendo ela uma expressão do poder estatal, tem implicações com
a estrutura política do Estado. Ela reflete, na conjuntura em que se insere, a fórmula das relações entre o
Segundo DINAMARCO, trata-se de uma afirmação genérica e abstrata Estado e sua população, além de servir de instrumento para a imposição das diretrizes estatais. Inserindo
a jurisdição no contexto do poder e com isso saindo da sua tradicional conceituação como um poder,
aquela que considera o processo como um instrumento. Faltaria, na visão do percebe-se que a sua institucionalização é vital e indispensável para a própria subsistência do Estado e
sua imposição imperativa sobre as pessoas”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do
autor, indicar quais seriam os objetivos que poderiam ser alcançados através Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 153. Segundo COMBLIN, “a generalidade e a universa-
lidade desses Objetivos são espantosas. Eles cobrem quase todos os campos de valores possíveis numa
do processo. Logo, todo meio implica um fim. A metodologia teleológica1931 sociedade humana. Alguns deles parecem tão óbvios que não se imagina, à primeira vista, como recorrer
a uma estratégia para obtê-los: a fidelidade ao cristianismo, por exemplo, ou então a paz social ou a paz
e a justiça”. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América
1927. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 52.
p. 144. 1934. “O processo é um instrumento ativado pelo Estado para o exercício de sua específica função soberana,
1928. Já tratamos desta categoria no capítulo I. Cf PEREIRA, Anthony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo que é a jurisdição”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. São
e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 03.
1929. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 1935. “Nesse quadro é que avulta a grande valia social do processo como elemento de pacificação. O escopo
p. 91-94. de pacificar pessoas mediante a eliminação de conflitos com justiça é, em última instância, a razão mais
1930. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. profunda pela qual o processo existe e se legitima na sociedade”. DINAMARCO, Cândido Rangel.
p. 96. Instituições de Direito Processual Civil. v. I. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 147.
1931. “A tomada de consciência teleológica, incluindo especificação de todos os objetivos visados e do modo 1936. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 155.
562 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 563

escopo-síntese da jurisdição no plano social, pode-se então indicar a justiça, que reconhecimento da autoridade. A interiorização do Estado, sacrifício de todo
é afinal expressão do próprio bem comum”1937. Neste ponto, uma tendência particularismo e o desenvolvimento de uma potência soberana governada
identificada pelo autor é a de abandonar “as fórmulas exclusivamente jurídicas” pela finalidade ético-histórica são aspectos complementares de uma mesma
para se definir as finalidades da jurisdição e do processo1938. realidade1945. Toda a fundamentação de uma interiorização do Estado será
Dentro do primeiro quadrante dos escopos da jurisdição, tem-se aquelas encontrada em GENTILE1946.
“sociais”. Sob este prisma, tanto a jurisdição quanto a legislação estariam liga- Em texto mais recente (relativamente à obra A Instrumentalidade do
das à ideia de paz social (pacificação)1939, conectada umbilicamente à noção Processo), DINAMARCO chega a questionar se, ao lado deste escopo pa-
de decisão1940. Ainda dentro do aspecto “social”, uma tarefa exercida pelo cificador da jurisdição, não estaria também o fator educativo1947. Nesse
processo seria a de educação1941, ou seja, “conscientizar os membros desta para aspecto, radicalizando o pensamento de DINAMARCO quanto às fun-
direitos e obrigações”1942. Segundo DINAMARCO, existiria a possibilidade ções educativas do processo, RULLI JÚNIOR afirmará que inicialmente, o
de se educar a população através de um adequado exercício jurisdicional1943. “escopo do processo é permitir a universalidade da tutela jurisdicional”1948.
Não é muito difícil encontrar no discurso autoritário a tarefa de o Estado Entretanto, a relevância da “universalidade da jurisdição se encontraria no
Ético educar os súditos. Segundo COSTA, no discurso fascista de GENTI- “reconhecimento da formação da consciência jurídica de cada um viver
LE, “educação significa a passagem da exterioridade à interioridade, como honestamente”1949. Então, segundo este autor, a relação entre os escopos de
descoberta da vontade profunda, que coincide com a vida espiritual, que sig- pacificação e educação se encontrariam inclusive invertidos, à medida que
nifica luta contra os particularismo e egoísmos”1944. Nesse sentido, eticidade e a paz social somente se efetivaria através da consciência jurídica de se viver
potência do Estado são instrumentos de um ininterrupto processo educativo honestamente, o que garantiria, em sua visão, uma paz permanente. Esta
que induz o sujeito a descobrir a superação do individualismo, através do “ética da convivência”, segundo o autor, seria inclusive anterior ao direito,
o que acarretaria, inexoravelmente, que a jurisdição se voltasse fundamen-
1937. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. talmente ao aspecto ético, como forma de se atingir o “bem comum”1950.
p. 156.
1938. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
Aliás, o processo e a jurisdição se convertem em instrumentos de satisfação
p. 157. deste imperativo ético de se “viver honestamente”1951.
1939. Ideia-matriz compartilhada por diversos professores: “A pacificação é o escopo magno da jurisdição e,
por consequência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a discipli- O segundo quadrante dos escopos metajurídicos do processo e da
na jurídica da jurisdição e seu exercício). É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado
do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade
pessoal de cada um”. CINTRA, Antonio Carlos; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 30. 1945. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua-
1940. “No estudo da jurisdição, será explicado que esta é uma das expressões do poder estatal, caracterizan- derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 105.
do-se este como a capacidade, que o Estado tem, de decidir imperativamente e impor decisões. O que 1946. GENTILE, Giovanni. Los Fundamentos de la Filosofía del Derecho. Buenos Aires: Editorial Losada,
distingue a jurisdição das demais funções do Estado (legislação, administração) é precisamente, em 1944.
primeiro plano, a finalidade pacificadora com que o Estado a exerce”. CINTRA, Antonio Carlos; GRI- 1947. DINAMARCO, Cândido Rangel. Prefácio. In RULLI JÚNIOR, Antônio. A Universalidade da Jurisdi-
NOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: ção. São Paulo: Oliveira Mendes, 2008. p. x.
Revista dos Tribunais, 2006. p. 30. 1948. RULLI JÚNIOR, Antônio. A Universalidade da Jurisdição. São Paulo: Oliveira Mendes, 2008. p. 130.
1941. “Esses maus vezos, de fundo cultural ou psicossocial, comportam combate pela via da educação, que 1949. RULLI JÚNIOR, Antônio. A Universalidade da Jurisdição. São Paulo: Oliveira Mendes, 2008. p. 134.
pode vir da instrução escolar básica, de campanhas publicitárias de variada ordem e, como dito, do 1950. RULLI JÚNIOR, Antônio. A Universalidade da Jurisdição. São Paulo: Oliveira Mendes, 2008. p. 134.
exemplo ofertado pelos bons resultados do processo”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de
Direito Processual Civil. v. I. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 148. 1951. “A legitimação e o procedimento não tem outra razão, senão permitir, através do poder do império e da
justiça social, o entendimento de que a aplicação da lei ao caso concreto exige o viver honestamente.
1942. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. Em caso contrário, cairíamos no cinismo de uma nação sem consciência jurídica, com indivíduos que
p. 162. apenas se aglutinariam para fazer valer seus próprios interesses em detrimento dos demais e porque
1943. “A educação através do adequado exercício da jurisdição é assim, portanto, um escopo instrumental não do próprio país. A universalidade da jurisdição existe com essa finalidade, ou seja, evitando uma
do processo, ou seja, um objetivo a ser conseguido com a finalidade de chamar a própria população a distorção cavilosa das relações sociais, criando a consciência de se viver honestamente, diante da lesão
trazer as suas insatisfações a serem remediadas em juízo. O escopo último continua sendo a pacificação ou ameaça a direito”. RULLI JÚNIOR, Antônio. A Universalidade da Jurisdição. São Paulo: Oliveira
social, que, na medida em que obtidos bons níveis de confiança no seio da população, torna-se mais fácil Mendes, 2008. p. 134. Prossegue o autor: “a universalidade da jurisdição e o seu instrumental de uni-
de ser também levada a níveis satisfatórios”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do versalização nada mais são do que um padrão ético mínimo que apenas serve para evitar uma nação
Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 163. sem a consciência jurídica do dever ser e, consequentemente, uma pátria sem patriotas, impedindo que
1944. COSTA, Pietro. Lo Stato Totalitario: un campo semantico nella giuspubblicistica del fascismo. In Qua- os indivíduos se aglutinem, tão somente, para satisfazer sesu próprios interesses, em detrimentos dos
derni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno. v. 28. t. I. Milano: Giuffrè, 1999. p. 103. demais e do próprio país”. Idem. p. 143.
564 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 565

jurisdição corresponde aos escopos políticos. De acordo com DINAMARCO, condutas das partes, o questionamento sobre a suficiência do direito subs-
seriam três: a) a afirmação da capacidade de o Estado decidir de maneira impera- tancial, uma análise crítica da atuação sobre a vontade concreta do direito).
tiva (poder); b) valorizar a liberdade; c) garantir a participação dos cidadãos1952. DINAMARCO também examinará os escopos do processo e a técnica
Contudo, na concepção da Escola Superior de Guerra, apesar de a nova de- processual1957, investigando as exigências conflitantes no processo, a certeza,
mocracia prometer a participação dos cidadãos, ela consiste unicamente na probabilidade e risco no direito processual, examinando as diversas espécies
integração dos cidadãos às tarefas definidas pelo Estado. Assim, como bem des- de processos.
taca COMBLIN, “participar é obedecer”1953. Novamente, tem-se a justificação
Por fim, ao encerrar o livro, colocará em tema novamente a instru-
de que a jurisdição deve satisfazer finalidades extrajurídicas, inclusive a partir de
mentalidade do processo, acentuando o seu duplo sentido. Novamente o
premissas sustentadas a partir da “retórica do equilíbrio”, anteriormente referi-
autor ressaltará a metodologia teleológica empregada, sublinhando a “ins-
da, e que ao cabo, serve a perspectivas de reforço da autoridade do Estado1954.
trumentalidade do sistema processual”1958. O autor faz questão de ressaltar
Desta forma, acentua DINAMARCO, que o direito possui um “fim político”,
que a instrumentalidade em questão não é aquela comumente tratada pela
servindo o processo para a satisfação desses fins1955.
doutrina, desde um ponto de vista intra-sistemático, consistente em exami-
O terceiro quadrante seria aquele dos escopos jurídicos. Então, ques- nar a relação entre processo e direitos materiais. O exame recai, assim, sobre
tionar-se os escopos jurídicos da jurisdição equivaleria, portanto, a enfrentar a instrumentalidade do próprio sistema processual, desde uma perspectiva
os modos de operação e a posição do sistema processual no ordenamento exterior, desde as relações do sistema processual com o direito, o político e
jurídico. Afastando a concepção de que o processo serve à tutela de direitos, o o social1959. Nas palavras do autor “aqui, não só se pretende ligar o processo
autor analisará as teorias unitária e dualista da jurisdição, como um momento (instituto de direito processual) ao poder estatal, que é exercido sob a forma
reflexivo necessário1956. Neste ponto, o autor examinará distintos pontos do de jurisdição, mas não apenas sob a forma de jurisdição; mas pretende-se,
sistema jurídico-processual, os quais não se reputarão como relevantes para o ainda, como no texto está e ao longo de todo o trabalho, pôr em destaque a
desenvolvimento das conclusões do tópico (na análise dos escopos jurídicos relação de instrumentalidade do sistema processual com o direito material e
o autor analisará as relações entre juiz e processo, os ônus processuais e as com os valores sociais e políticos da nação”1960.
1952. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. A síntese, portanto, desta instrumentalidade do sistema processual apa-
168. A noção de participação também será importante na doutrina da Escola Superior de Guerra: “a Parti- recerá sob uma forma negativa, como uma espécie de incentivo e ampliação
cipação é a contrapartida da apatia popular, das maiorias silenciosas. Pois participar não é apenas voto, mas
voz que se manifesta nas assembleias, nas iniciativas comunitárias, ligadas ao Desenvolvimento e à Segu-
rança da Nação”. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto
de um princípio interno ao processo, a instrumentalidade das formas1961. Sob
Nacional do Livro, 1983. p. 289. Além disso, a participação dos cidadãos nos processos estatais pode ser esta ótica, parte-se da ideia de que o “processo não é um fim em si mesmo”1962.
lida como uma estratégia de sustentação do capitalismo. Segundo BICUDO, “essa questão da modificação
dos regimes militares para os regimes civis é importante ainda para a política dos países industrializados
que se situam no hemisfério norte (daí se falar de política norte-sul), ela é importante para a estabilidade
desse sistema capitalista, porque é preferível que se tenha uma maior distribuição de renda, ainda que não 1957. Temos que este capítulo também não é determinante para as hipóteses aqui desenvolvidas, centradas na
seja expressiva, que se tenha “paz social” nesses países, pelo menos um mínimo de participação do povo, definição da jurisdição.
para que não se verifiquem explosões que possam comprometer essa política”. BICUDO, Hélio. Lei de 1958. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
Segurança Nacional: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas, 1986. p. 28. p. 265.
1953. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de 1959. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 74-75. p. 265-266.
1954. “Impossível a convivência social em um Estado fraco, sem capacidade de impor a sua vontade. O ne- 1960. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
cessário equilíbrio entre a autoridade do Estado e os direitos do cidadão é perfeitamente alcançado com p. 265-266. nota 1.
a plena participação destes no destino daquele. No plano processual, essa participação se consegue me- 1961. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
diante o respeito ao princípio do contraditório. Assim, desde que o legislador assegure às partes o direito p. 266-267.
de participar da formação do provimento jurisdicional, influindo no seu conteúdo, nenhum mal há em 1962. “O lado negativo da instrumentalidade do processo é já uma conquista metodológica da atualidade, uma
reforçar a autoridade do juiz no processo”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios tomada de consciência de que ele não é um fim em si mesmo e portanto as suas regras não têm valor
do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 60. absoluto que sobrepuje as do direito substancial e as exigências sociais de pacificação de conflitos e
1955. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. conflitantes. O significativo valor metodológico da instrumentalidade, vista assim como fator limitativo
p. 169. do valor do próprio sistema processual, constitui porém apenas um dos aspectos ou desdobramentos
1956. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. que ele é capaz de assumir ou proporcionar”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do
p. 178. Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 266.
566 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 567

Assim, este aspecto da instrumentalidade do sistema processual caminha em Passemos, agora, a um exame crítico mais detido de alguns pontos
direção à desformalização dos procedimentos, e na tentativa de evitação do deste pensamento.
formalismo, assegurando que as formas processuais sejam apenas meios postos
na condução de um melhor procedimento, mas não fins em si mesmas1963. 4.5. JURISDIÇÃO COMO PODER: A PENETRAÇÃO
O prisma negativo da instrumentalidade se conecta, indissocialvelmente, à DA DOUTRINA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
instrumentalidade das formas, sob a justificativa de um exame do processo NO PROCESSO PENAL E A CONTINUIDADE DO
desde um ângulo externo1964. Portanto, esta visão teleológica do processo
AUTORITARISMO NO “PÓS-ACUSATÓRIO”
é consentânea com o princípio da instrumentalidade das formas1965, “seja
porque desenvolve a consciência instrumentalista em si mesma, seja porque Como foi demonstrado no capítulo primeiro, nem mesmo a existência
amplia e conduz a minimizar os desvios formais sempre que, atingido ou não de uma nova Constituição da República foi circunstância suficiente para que
o objetivo particular do ato viciado ou omitido, os resultados considerados as práticas punitivistas (e suas doutrinas colaboracionistas) fossem denuncia-
garantia do contraditório estejam alcançados”1966. das ou mesmo enfrentadas como um problema efetivo de uma democracia a
ser instalada no Brasil. O advento da Constituição da República, que trouxe
Mas não é só. A instrumentalidade refletiria ainda, outro aspecto,
certo otimismo e permitiu que se arrefecessem as lutas políticas pela garantia
o positivo, consistente na efetividade do processo, que o autor sintetiza
dos direitos fundamentais, trouxe à tona um período que se poderia deno-
desta maneira: “o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a
minar como “pós-acusatório”. Por este termo entendemos o advento de um
sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda a plenitude todos
cenário em que o sistema acusatório teria se consolidado como fato per se:
os seus escopos institucionais”1967. Em tal entendimento, DINAMARCO
simplesmente através de uma nova Constituição da República, as práticas pu-
considerará a efetividade uma espécie de característica responsável pela eli-
nitivas autoritárias estariam como que banidas do panorama processual penal
minação das insatisfações sociais (projetadas através dos conflitos), servindo
e o sistema acusatório, como que num passe de mágica, restaria implementa-
o processo, além disso, como meio para a educação geral (exercício de
do1970. Com efeito, não foi o que aconteceu. O discurso constitucionalista foi
direitos e também como meio de participação)1968. Neste aspecto positivo,
sabidamente ineficiente para construir uma nova realidade que operasse como
o autor indica quatro aspectos fundamentais para a investigação científica:
constritor de tais práticas, gerando, assim, um quadro no qual a declaração de
a) a “admissão em juízo”; b) o “modo-de-ser do processo”; c) a “justiça das
direitos seria suficiente para alterar a genética do processo penal.
decisões”; d) a “utilidade das decisões”1969.
A dinâmica ocorrida no período “pós-acusatório” foi a de transferir ou
trasladar as categorias processuais penais autoritárias, esculpidas pelo liberalis-
1963. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 268. mo reacionário brasileiro, que fora construído a partir de uma auto-imagem
1964. “Sob esse aspecto, a instrumentalidade do sistema processual constitui projeção a maior da instrumen-
talidade das formas e suporte metodológico para a sustentação desta e seu melhor entendimento. No próxima àquela do tecnicismo jurídico italiano, para junto da ordem de-
exame do processo a partir de um ângulo exterior, diz-se que todo o sistema não vale por si, mas pelos mocrática. Como hipótese de trabalho, examinou-se o sentido instrumental
objetivos que é chamado a cultuar; e depois, em perspectiva interna, examinam-se os atos do processo e
deles diz-se o mesmo. Cada um deles tem uma função perante o processo e este tem funções perante o do processo penal como porta-voz da tradição autoritária em pleno regime
direito substancial, a sociedade e o Estado”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do
Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 269. político democrático. Transformar a linguagem bélica do tecnicismo auto-
1965. Para uma crítica deste princípio Cf GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no Processo Penal. 3
ed. São Paulo: Saraiva, 2017. ritário manziniano em um discurso palatável e assimilável pela nova ordem
1966. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 269.
constitucioal era necessário. A instrumentalidade do processo corresponde a
1967. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 270. 1970. “E a resposta foi dada pela palavra mágica “instrumentalidade”, a que se casaram outras palavras mági-
1968. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. cas – “celeridade”, “efetividade”, “deformalização”, etc. E assim, de palavra mágica em palavra mágica,
p. 271. ingressamos num processo de produção do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitação”.
1969. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. CALMON DE PASSOS, J. J. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. In ________.
p. 271. Ensaios e Artigos. v. I. Salvador: JusPodium, 2014. p. 41-42.
568 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 569

um significante-reitor, capaz de reunir para junto de si todas aquelas categorias Cândido Rangel DINAMARCO, como já anteriormente demonstrado, não
processuais examinadas nos capítulos I e II, componentes do discurso tecni- cuida unicamente da interconexão entre direito material e processo, embora
cista italiano. Sequestradas do liberalismo reacionário italiano e colocadas em pressuponha tal relação. Ela trata de submeter o sistema processual a funções
funcionamento através dos golpes linguísticos manzinianos, tais categorias externas – nomeadamente políticas, econômicas e sociais – que condicio-
puderam orbitar em torno da instrumentalidade do processo. nariam as razões de existência do processo. Sob esta perspectiva, então, a
Se, com razão, como destacaria LACAN, o campo da linguagem é o instrumentalidade especificamente brasileira (tomando-se como norte a sua
campo do engodo, de forma mais ou menos consciente, a instrumentalidade disseminação no discurso processual brasileiro) conecta o sistema processual
do processo se revela como uma espécie de filtro corretivo ou de ponte entre a perspectivas essencialmente políticas, concebendo o processo como uma das
o campo político e o processo penal, autorizando o traslado destas categorias manifestações do poder estatal.
processuais para o plano do processo penal nos regimes democráticos. No caso De forma muito simples, a subordinação do processo a finalidades
brasileiro, inclusive, a instrumentalidade do processo penal é praticamente uma metajurídicas e mais especificamente políticas por si só já ofereceria moti-
categoria pacificada graças à inércia crítica da doutrina, salvo raras exceções. vos suficientes para ser rechaçada em um modelo democrático de processo.
O instrumentalismo possui debilidades endêmicas, que já foram ante- Porém, a situação é ainda mais grave, pois faz penetrar no discurso sobre o
riormente expostas. Contudo, além de tais fragilidades epistêmicas e de todas sistema processual, a ideologia da segurança nacional, otimizando-a no seio da
as suas conexões com o tecnicismo processual penal italiano, há mais um mudança de regime político brasileiro. Para ser mais preciso, o que se pode ve-
elemento que particularmente no Brasil, deve-se ter a máxima atenção. Uma rificar é um processo de escamoteamento da ideologia da segurança nacional,
instrumentalidade nos moldes como aqueles propostos por DINAMARCO fazendo-a penetrar no regime democrático como uma proposta coincidente
não atendem – em hipótese alguma – às diretrizes constitucionais1971. Contu- com o “modo-de-ser” do processo nas democracias contemporâneas1972. Por-
do, para que assim se possa avaliar o sentido do instrumentalismo processual tanto, de acordo com o que foi debatido no capítulo I deste trabalho, tem-se
penal, qualquer análise que fique retida no seio do nível declarado de discurso um processo de ressignificação, a ponto de a idelogia da segurança nacional
é manifestamente insuficiente. É preciso e forçoso, portanto, também tomar o associar-se, ao menos no nível declarado, ao discurso neoconstitucionalista.
rumo do nível discursivo não declarado. Esta perspectiva sobre a instrumen- Este processo de invisibilização dos pontos mais energicamente antidemo-
talidade processual enfraquece substancialmente qualquer compromisso do cráticos da ideologia da segurança nacional foram relegados a uma discussão
processo penal com o Estado Democrático de Direito, não obstante tal teoria de menor centralidade no campo das propostas instrumentalistas. Contudo,
se encaixar num discurso aparentemente sedimentado sobre as novas bases a sua menor veiculação no plano do nível oficial do discurso não a torna
constitucionais (neoconstitucionalismo declarado ou constitucionalismo subalterna ou de menor intensidade na estrutura fundacional da segurança
como método processual). Esta forma de instrumentalidade abre inúmeros nacional e de seus efeitos correlatos nas práticas punitivas brasileiras.
pontos de conexão com a ideologia da segurança nacional, representada pela Primeiramente, esta proposta instrumentalista procura apresentar uma
formação discursiva herdada da Escola Superior de Guerra e repaginada após “nova” visão da categoria jurisdição1973. A perspectiva instrumentalista cor-
o advento da Constituição da República de 1988.
1972. Nesse sentido, são irrebatíveis as críticas de Rosemiro Pereira LEAL: “Nesses perfis banalizadores
do Estado Democrático de Direito, que bem definem os instrumentalistas da velha escola bulowiana
Portanto, algumas questões devem ser precisadas antes mesmo de se de triangulação equilátera da relação jurídico-processual com o juiz no ápice do saber, a justiça das
avançar. A perspectiva instrumentalista derivada do pensamento da Escola decisões é encontrada por um hermético “modo-de-ser do processo” em que, embebido de uma inqui-
sitividade (envolvida em eufemismos de liberdade investigatória do juiz, liberdade das formas, poder
de São Paulo, tendo por trabalho-síntese de seus pressupostos a obra de ex-officio itinerante), o julgador exerce uma conduta interdital de adequação da decisão às mutações
sociais e a uma realidade axiológica sensibilizada por sua inteligência clínica e perscrutante”. LEAL,
Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 110.
1971. Segundo LEAL, “a novidade, portanto, oferecida por Cândido Rangel Dinamarco (1996) não está tanto 1973. LEAL demonstra que a hipertrofia do momento decisional na categoria jurisdição é tradição herdada de
em que o processo seja instrumento de uma jurisdição (atividade do juiz) criadora do direito, mas na BULOW. Neste ponto, sustenta que “assim, como Bulow não se alinhara à concepção do processo como
enunciação de seus escopos metajurídicos, quais sejam o econômico, o social e o político. LEAL, André meio de controle da atividade dos juízes, mas como um instrumento de viabilização de um movimento
Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p. 60. hipoteticamente emancipatório pela atividade criadora do direito pela magistratura nacional alemã, o
570 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 571

responderia a uma nova fase metodológica do processo, após a superação dos sintetizados na ideia de bem comum1976. Isto por que, segundo o enten-
períodos sincretista e científico. O ponto nevrálgico do instrumentalismo dimento da Escola Superior de Guerra, “Estado é a Nação politicamente
consiste no deslocamento do conceito de ação para o de jurisdição, como organizada”1977. E, logicamente, também para a Escola Superior de Guerra
centro gravitacional do sistema processual. Argumentativamente, dois são a jurisdição será manifestação do poder do Estado1978.
os pilares utilizados por DINAMARCO para se demonstrar esta passagem: Sendo a jurisdição uma destas manifestações do poder, deve analisar-se
a) inicialmente, o conceito de ação pertenceria a um universo simbólico como é possível compreender-se o poder, e quais as implicações para o campo
subjacente a um Estado liberal-individualista, representando neste ponto, do processo. De acordo com o pensamento da Escola Superior de Guerra,
a jurisdição, um mero mecanismo de satisfação de direitos individuais; b) o “do ponto de vista jurídico, o Poder é a base de toda a organização política
desenvolvimento de um “Estado social” exigiria um direito reativo às trans- e, nesse sentido, prende-se ao conceito de Estado — poder organizado para
formações das relações sociais sob a égide deste novo modelo de Estado, o que dirigir politicamente a Nação”1979. Na lógica instrumentalista defendida por
acarretaria, por conseguinte, a justificativa para o deslocamento da ação para a DINAMARCO, o processo consistirá na dimensão dinâmica do poder. Em
jurisdição e a importância assumida pela decisão (cuja noção de legitimidade suas palavras, “o aspecto dinâmico do poder, portanto, para o processualista
se confunde com aceitação social1974), como ferramenta de transformação não é o poder mesmo (jurisdição), mas o meio de seu exercício (processo)”1980.
social, que conduz o processo a fazer brotar os resultados que a nação dele Existem alguns nexos entre as duas formas de se interpretar o fenômeno do
espera (consequencialismo eficientista). poder que podem ser aqui abordadas: a) o poder é o elemento principal
Portanto, a jurisdição, como categoria central do sistema processual, que reside em qualquer concepção política, sendo, portanto, inevitável. No
tampouco poderia ser representada pela discussão exclusivamente jurídi- campo do processo, tomado como uma dimensão dinâmica da expressão do
ca acerca das teorias unitárias e dualistas. Seria necessário, no seio deste poder, a jurisdição, naturalmente, assumiria o locus – por ser manifestação
Estado social, proceder a uma nova compreensão da jurisdição. A proposta de poder – privilegiado da ciência processual. O deslocamento da ação para
de DINAMARCO é conceber a jurisdição como uma expressão do poder o plano da jurisdição, nesta visão, é correspectiva de uma percepção do orde-
nacional. Segundo a Escola Superior de Guerra, o poder nacional seria namento jurídico, na qual se substitui o primado dos direitos pela assunção
subdividido em quatro campos: a) político; b) psicossocial; c) econômico de um mecanismo inevitável de subordinação: o poder (jurisdicional). A
e d) militar. Seria a nação, interpretada como uma realidade nacional1975, jurisdição, portanto, é expressão do poder estatal que é uno1981. Desta ma-
a responsável pela execução dos objetivos estatais, servindo também como neira, não consistiria em um problema digno para o processualista, procurar
instância de avaliação da função (serviço) e de sua legitimação. Todos estabelecer a diferença entre jurisdição, administração e legislação. A diferença
os objetivos do Estado (e via de consequência, da nação, poderiam ser entre tais conceitos não residiria em um substrato ontológico, mas em uma
1976. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
aproveitamento de sua teoria restou prejudicado em paradigmas que não se alinhassem ao do Estado p. 88.
Social, em cujas bases o Direito Livre se justificava”. Cf LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do
Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p. 63. 1977. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 34.
1974. “A legitimidade da decisão para os instrumentalistas não decorre do devido processo, que é apenas, para 1978. “A Nação, ao organizar-se politicamente, escolhe um modo de aglutinar, expressar e aplicar o seu Poder
eles, um meio (modo, método) relacional de produzir justiça em escopos magistrais, mas advém de uma de maneira mais eficaz, mediante a criação de uma macroinstituição especial – o Estado – a quem de-
“carga de valores” que pode ou não ser adotada pelas decisões, porque afirmam que “a legitimidade em lega a faculdade de instituir e pôr em execução o processo político-jurídico, a coordenação da vontade
si é fato social e não jurídico (não se confunde com a mera legalidade”. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria coletiva e a aplicação judiciosa de parte substancial de seu Poder”. Escola Superior de Guerra. Manual
Processual da Decisão Jurídica. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 110. Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 33. 34.
1975. Para a Escola Superior de Guerra, a nação consiste em “grupo complexo, constituído por grupos so- 1979. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 51.
ciais distintos que, em princípio, ocupando, um mesmo Espaço Territorial, compartilham da mesma Ainda, de acordo com PESSOA, “O Poder Nacional, na conceituação da ESG, é a expressão integrada
evolução histórico-cultural e dos mesmos valores, movidos pela vontade de comungar um mesmo des- dos meios de tôda a ordem de que dispõe efetivamente a Nação, numa época considerada”. PESSOA,
tino”. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: Biblioteca do Exército: Revista
p. 17. Vejamos como o conceito de nação para DINAMARCO é muito parecido: “nação, conceito dos Tribunais, 1971. p. 85.
cultural e não jurídico, é o conjunto de pessoas espontaneamente agrupadas, vivendo em comum e em 1980. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
torno de valores comuns, falando a mesma língua, dando curso às mesmas tradições, professando a p. 113.
mesma religião”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: 1981. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
Malheiros, 1990. p. 159. nota 9. p. 115.
572 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 573

mera diferenciação funcional do poder, que é uno1982. Esta mesma forma uma certa natureza, não pode jamais ser considerada isoladamente”1987. Como
de pensar o poder pode ser encontrada na Escola Superior de Guerra, que pode ser facilmente constatado, a unidade do poder nacional é que justificará,
nomeia a integralidade como uma característica do poder nacional: “o cará- desde o ponto de vista político, a unidade da jurisdição: não como uma dis-
ter de Integralidade do Poder Nacional resulta da relação sistêmica dos seus cussão interna ao processo, mas desde uma concepção metajurídica e finalista,
componentes. Esse resultado é mais do que a simples soma dos componentes: que insere a jurisdição e o processo num quadro de servilismo funcional aos
é a resultante do efeito sinérgico, em que todos eles se intercondicionam, se objetivos nacionais. Esta questão não é de menor relevância. Sob o imperativo
interligam e se completam; gerando, no processo, uma nova dimensão que de uma subordinação axiológica do processo aos fins da política, a jurisdição
não está nos indivíduos nem nos grupos, mas desponta no todo”1983. Também se transforma um local privilegiado para se colocar em cena as políticas de
para a Escola Superior de Guerra haveria um poder integral (uno), que se Estado. Levando-se em consideração unicamente o campo processual penal,
manifestaria de distintas maneiras (de acordo com as diversas funções que em uma perspectiva funcional e teleológica de processo, que o subordine aos
devem ser exercidas pelo Estado). fins da política, é inimaginável que ele possa exercer qualquer função contra-
Para DINAMARCO, o poder, apesar de suas distintas manifestações, é majoritária. O processo penal, assim, no nível de suas funções declaradas, se
sempre o mesmo1984. Este entendimento acerca da unidade/ integralidade – do transforma em instrumento de dominação.
poder é sustentada igualmente pela Escola Superior de Guerra, acarretando Além do referido, há que se destacar mais um ponto de contato entre
em mais um elemento que aproxima ambos os discursos1985. Tanto para o pen- o discurso instrumentalista e o da Escola Superior de Guerra. Ao tratar das
samento da Escola Superior de Guerra quanto para DINAMARCO, resulta características da jurisdição, DINAMARCO ressaltará a marca da imperati-
de fácil visualização que a noção de unidade da jurisdição será decorrência vidade das suas decisões. A imperatividade das decisões estatais decorre, de
inexorável da unidade do poder: “a enérgica afirmação da unidade do poder acordo com o autor, da própria supremacia do Estado1988. Supremacia rela-
que através das diversas atividades do Estado se manifesta conduz também tivamente a quem? Sem sombra de dúvidas, analisando o quadro discursivo
ao entendimento da unidade da jurisdição”1986. Vejamos o discurso da Escola em que se movimenta a sua concepção de Estado (social) e o conjunto de
Superior de Guerra em torno da unidade do poder nacional: “considerando significantes que reivindica para dar sustentáculo à concepção instrumental
a unidade do Poder Nacional, é necessário ressaltar que cada Expressão, ao de processo (sendo a obra em referência pródiga em críticas ao liberalismo
mesmo tempo em que se caracteriza pela produção de efeitos prevalentes de e à necessidade de sua superação), há inequívoca supremacia do Estado re-
lativamente ao indivíduo1989. O discurso da Escola Superior de Guerra não
1982. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. produzirá efeitos diversos. A imperatividade das decisões estatais constitui,
p. 115.
1983. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 36. para a Escola Superior de Guerra, um mecanismo de coercibilidade do poder:
1984. “Em essência, jurisdição é exercício do poder como todas as demais atividades do Estado, dife- “a formação do Estado coincide justamente com o monopólio do uso do
renciando-se delas pela natureza do serviço prestado, ou seja, na função exercida. O poder que ele
exerce é sempre o mesmo, na sua essência, no seu fundamento, e na sua legitimidade – sendo estéril
e metodologicamente mal endereçada a obsessão pela busca de distinções muito significativas entre
Poder e da autoridade, porque ele passa a dispor da coercibilidade, isto é,
a jurisdição e a legislação, ou entre ela e a administração. Muito mais relevante sistematicamente é a da capacidade de se fazer obedecer, por meio de uma instrumentação jurídi-
preocupação pelo entendimento mais profundo do próprio poder como substrato comum ao cumpri-
mento imperativo de todas essas funções, especialmente quando traduzida na tentativa de depuração ca”1990. Portanto, pode-se dizer que a perspectiva da jurisdição fundada pela
dos conceitos da ciência política a partir da experiência e conhecimentos específicos que o proces-
sualista é portador”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São
Paulo: Malheiros, 1990. p. 118. 1987. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: método para o planejamento estratégico. v. II. Rio de Janei-
1985. “As organizações se definem pelo conjunto de suas funções que são decorrências do quadro institucio- ro, 2014. p. 42.
nal em que os órgãos se inserem. No plano estatal, são funções básicas da Expressão Política: – a função 1988. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
normativa, que institui e atualiza a ordem jurídica; – a função administrativa, que provê o atendimento p. 95.
dos interesses coletivos, gerindo os bens públicos e coordenando ações com vista ao atendimento das 1989. Há aqui uma interpretação que vincula liberalismo ao individualismo, o que também aparecerá no discurso
aspirações gerais; e a função jurisdicional, que resolve os litígios provocados por interesses conflitantes, da Escola Superior de Guerra: “o que se propunha para a Nova Escola era algo contrário a um dos traços
aplicando a normatividade constante da ordem jurídica estabelecida”. Escola Superior de Guerra. Ma- peculiares do Caráter Nacional brasileiro, e dos mais arraigados – o individualismo”. ARRUDA, Antônio
nual Básico: método para o planejamento estratégico. v. II. Rio de Janeiro, 2014. p. 27. de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. XXIII.
1986. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 1990. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: método para o planejamento estratégico. v. II. Rio de Janei-
p. 119. ro, 2014. p. 51.
574 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 575

vertente instrumentalista corresponde a uma manifestação de poder estata- Demais disso, a ênfase dada à jurisdição, nos mesmos moldes de uma
lista ou estatocêntrica, avessa à jurisdição como mecanismo de satisfação de teoria política decisionista1993, tão cara aos movimentos autoritários, se faz
direitos. A supremacia do Estado (ou a imperatividade das decisões judiciais) presente de maneira clara, ao se destacar demasiadamente o papel da jurisdi-
torna a jurisdição um centro de irradiação de poder que não conhece limites ção quanto à produção de decisões. Assim, “ao Poder Judiciário compete o
na linguagem dos direitos. Aliás, não conhecendo limites, bem se poderia exercício da função jurisdicional, isto é, cabe-lhe, aplicando o Direito vigente,
concluir que para esta concepção, os direitos (mesmo os fundamentais), não impor decisão final e definitiva aos litígios decorrentes de interesses confli-
passariam de concessões do Estado, retroalimentando um discurso juspu- tantes que ocorrem no meio social”1994. No discurso da Escola Superior de
blicístico muito semelhante àquele europeu que se manifestou no final do Guerra, a função jurisdicional é uma das funções básicas da expressão política
século XIX e início do século XX1991. A diferença se dá apenas na dimensão (do poder nacional). Assim, ao lado da expressão normativa (que institui a
mais epidérmica, ou seja, aquela das categorias empregadas para se chegar ordem jurídica), da expressão administrativa (que atende aos interesses coleti-
a tais conclusões e perspectivas; no caso em tela, o neoconstitucionalismo. vos e gere os bens públicos), se encontra a expressão jurisdicional (responsável
Para DINAMARCO, o poder estatal se expressará através de sua inevitabi- pelo cumprimento das normas, “resolvendo, de modo definitivo, os conflitos
lidade (e obviamente, de sua supremacia em relação ao indivíduo) e como de interesses que possam ocorrer”)1995. O prisma decisionista que marca a
expressão da soberania1992. DINAMARCO explicará o processo a partir de concepção instrumentalista indica, novamente, o uso de categorias que foram
categorias caras ao juspublicismo do século XIX, que marcaram profunda- fornecidas pela ciência política e pela doutrina jurídica do século XIX e XX,
mente as concepções liberais reacionárias que entraram em cena no período repristinando velhos cacoetes autoritários, espelhando processo e soberania
pré-fascista italiano, como já mencionado no primeiro capítulo. A noção de como espaços de império da decisão e via de consequência, ilimitados. A
inevitabilidade, imperatividade e supremacia pertencem a este quadro dis- proposta de ativismo judicial que o autor declara como uma mudança exigida
cursivo, anacronicamente transportado pelo autor para explicar o processo pela transformação do Estado (do liberal ao social) retrata devidamente como
em um regime democrático. O resultado, no campo do processo penal é a o espaço do processo é tornado simétrico ao da soberania, flagrantemente
chancela do autoritarismo antiparlamentar que fundou as bases do processo esculpida em termos decisionistas. Além disso, DINAMARCO acentuará
penal brasileiro. Em um quadro no qual o poder é exercido exclusivamente a marca de “relatividade social e política”1996 dos escopos da jurisdição, que
pelo Estado através da jurisdição, pouco ou nenhum espaço existe para que se condensarão na noção de bem comum. O juiz, transformado em agente
os direitos se constituam em ambiente não dominado pelos objetivos estatais. político cujo objetivo é garantir a consecução dos objetivos estatais, adqui-
Pensar o contrário seria teratológico neste quadro. Novamente, encontramos re poderes exponenciais. A reorganização discursiva que gira em torno da
o suplemento justificador para a manutenção do processo penal como uma centralização dos poderes nas mãos dos juízes dá pistas inequívocas de que a
espécie de mecanismo de coerção indireta, como expressão concreta do volun- projeção dos fantasmas autoritários que nutriram o discurso sobre o publicis-
tarismo estatal. E, assim sendo, percebe-se claramente a continuidade de um mo do processo não foi exorcizada pelo imaginário jurídico. A confiança na
pensamento racionalista autoritário, em termos muito semelhantes – embora ampliação dos poderes judiciais – sob o panorama da mudança da natureza
ressignificados – herdados da tradição tecnicista italiana. 1993. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 89.
1994. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: método para o planejamento estratégico. v. II. Rio de Janei-
1991. Vejamos como Escola Superior de Guerra interpreta a questão dos direitos fundamentais. Segundo ro, 2014. p. 30.
PESSOA, “os direitos fundamentais não são pré-sociais nem meta-sociais: êles se geram com o Estado”. 1995. Escola Superior de Guerra. Fundamentos Doutrinários. Rio de Janeiro, 1995. p. 35.
Em sentido semelhante. PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: 1996. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p.
Biblioteca do Exército: Revista dos Tribunais, 1971. p. 191. 155. A noção de relatividade aparecerá igualmente no discurso da Escola Superior de Guerra, como uma
1992. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. das características do poder nacional: ): “É necessário levar em conta que há um aspecto de relatividade
p. 97. Para a Escola Superior de Guerra, a soberania: “consiste na supremacia da ordem jurídica estatal entre o Poder Nacional e os óbices antepostos ao seu emprego, alguns dos quais, se atuando direcionados
sobre um dado território”. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: método para o planejamento es- por um interesse contrário, podem assumir características de verdadeiro contrapoder, entendendo-se por
tratégico. v. II. Rio de Janeiro, 2014. p. 15. No mesmo sentido serão as palavras de PESSOA, para quem contrapoder componentes que se opõem (intencionalmente ou não) à busca do Bem Comum. Assim, seu
“a Soberania é forma específica do fenômeno genérico do Poder. E por isso Poder é também. PESSOA, valor é sempre relativo e a avaliação de sua capacidade exige uma análise racional, abrangente e cuidado-
Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 77. sa”. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 36.
576 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 577

do Estado – é um velho conhecido. Todavia, o discurso se sofistica e tenta se maneira, a jurisdição e o processo não passam de epifenômenos do poder
imunizar das críticas ao recorrer à Constituição da República como entidade nacional, ou melhor, da política nacional. A inserção da jurisdição no seio
capaz de lhe conferir legitimação (simbólica e discursiva). da política não parece incomodar DINAMARCO. Aliás, a jurisdição passa
O bem comum, portanto, surge como horizonte de designação meta- a ser elemento componente da política, nas palavras do próprio autor2005.
fórica dos objetivos do Estado1997. Novamente neste ponto, as aproximações A jurisdição, assim, corresponde a um mecanismo de implementação de
entre a perspectiva instrumentalista e a Escola Superior de Guerra são evi- políticas estatais, que se deve impor por sobre as pessoas2006.
dentes. Para a Escola Superior de Guerra, o bem comum corresponde a um A justificativa de DINAMARCO para a mudança de orientação acerca
objetivo-síntese, que concretiza todos os demais: “por isso o Bem Comum da jurisdição mescla duas questões: a) a necessidade de um ponto de vista
tornou-se um objetivo-síntese em torno do qual outros referenciais signifi- externo2007 e; b) o emprego de um método teleológico. Ambos, externalidade
cativos estão articulados”1998. Tal proposta é não apenas de conhecimento de do ponto de vista e a metodologia teleológica são indecomponíveis. Assim, “a
DINAMARCO, mas inclusive o próprio autor faz questão de referenciar: “o organização do sistema processual a partir de uma perspectiva exterior, teleo-
bem-comum é o objetivo nacional síntese, na doutrina da Escola Superior lógica como proposta, conduz a um enfoque metodologicamente diferente da
de Guerra”1999. Elegendo o bem comum como objetivo-síntese, a concepção jurisdição”2008. Contudo, a justificativa para uma mudança de enfoque sobre
instrumental e funcional de jurisdição, nesta senda, possui a sua missão a jurisdição também se relaciona, desde o ponto de vista da Escola Superior
medida pelo grau de atendimento ao bem comum: “a nação, como realida- de Guerra, com a justificativa do poder nacional. Para a Escola Superior de
de social, dispõe de meios integrados para a consecução de seus objetivos, Guerra, o poder nacional conjuga a vontade como elemento do poder e a
sintetizados no bem comum”2000. A fim de tentar dar ao processo contornos finalidade (teleologia): “o Poder Nacional se apresenta como uma conjugação,
minimamente diferenciados do objetivo-síntese do Estado, afirmará DI- interdependente de vontades e meios, voltada para o alcance de uma finali-
NAMARCO que a função do processo, então, seria a de buscar justiça2001, dade”2009. Novamente, se para DINAMARCO a jurisdição somente pode ser
muito embora não seja, de fato, mais do que a expressão do objetivo-sín- analisada desde a sua teleologia, e para além disso, consistindo ela em uma das
tese2002. No pensamento da Escola Superior de Guerra, o bem comum não manifestações do poder nacional, há inequívoca unidade metodológica entre
passa de uma direção a ser tomada, ao empregar o poder nacional por inter- o ponto de vista instrumentalista do processo e a análise do poder nacional
médio da política nacional2003, na busca pelos objetivos do Estado2004. Desta decorrente do discurso da Escola Superior de Guerra. Os pontos de contato
entre as abordagens são tão evidentes que a própria legitimidade da jurisdição
1997. Em sentido semelhante é o pensamento de BUZAID: “para realizar o bem comum, democracia precisa
tecnicizar as funções do Estado”. BUZAID, Alfredo. Democracia y Proceso. In Revista de la Facultad não pode ser descolada da legitimidade do poder, ou seja: a jurisdição como
de Derecho de México. t. XX. n. 877-878. México D.C: Universidad Autónoma de México, 1979. p. 30.
1998. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p.11. cristalizam na consciência nacional”. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos funda-
1999. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. mentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 22.
p. 155. Nota 1. 2005. “Quem ascender na escala de generalizações, chegando a perceber que a Justiça é parte integrante da
2000. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 88. Política, levará a problematização da ciência processual até a esse nível e compreenderá a legitimidade
2001. “Mas é certo que, não obstante esses descontos, tem-se como missão permanente do Estado a busca do da proposta que aqui é avançada”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo.
bem comum e, como dever inalienável a ser cumprido através do exercício do poder, a prática da jus- 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 99.
tiça”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. “Sendo ela uma expressão do poder estatal, tem implicações com a estrutura política do Estado. Ela
1990. p. 156. Neste sentido podemos trascrever as palavras de PESSOA, que influenciado pela Escola reflete, na conjuntura em que se insere, a fórmula das relações entre o Estado e sua população, além
Superior de Guerra, concluirá que o fim do Estado é a justiça, chegando a conclusões muito próximas de servir de instrumento para a imposição das diretrizes estatais. Inserindo a jurisdição no contexto do
das de DINAMARCO. PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: poder e com isso saindo da sua tradicional conceituação como um poder, percebe-se que a sua institu-
Biblioteca do Exército: Revista dos Tribunais, 1971. p. 09. cionalização é vital e indispensável para a própria subsistência do Estado e sua imposição imperativa
2002. “Como síntese-escopo da jurisdição no plano social, pode-se então indicar a justiça, que é afinal expres- sobre as pessoas”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo:
são do próprio bem comum”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. Malheiros, 1990. p. 152-153.
São Paulo: Malheiros, 1990. p. 156. 2007. “Todo estudo teleológico da jurisdição e do sistema processual há de extrapolar os lindes do direito e da
2003. “A Política Nacional se manifesta quando se busca aplicar racionalmente o Poder Nacional, orientan- sua vida, projetando-se para fora”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo.
do-o para o Bem Comum, por meio do alcance e manutenção dos Objetivos Fundamentais”. Escola 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 153.
Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 52. 2008. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
2004. “Os Objetivos Fundamentais (OF) não são estabelecidos nem fixados. Derivam do processo histó- p. 114.
rico-cultural e emergem, naturalmente, à medida que as necessidades e interesses da comunidade se 2009. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 32.
578 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 579

manifestação do poder, autorizaria uma justificativa baseada na própria ma- para os direitos)2017. A função educativa, para a Escola Superior de Guerra,
nutenção do poder nacional, como preceitua a Escola Superior de Guerra2010. consiste em uma das funções da expressão psicossocial do poder nacional2018,
A adoção da perspectiva metodológica teleológica conduz DINA- revelando mais uma inegável aproximação entre a visão instrumental do
MARCO a asseverar que a jurisdição deve atender a finalidades diversas processo e a axiologia da Escola Superior de Guerra. Que se trata de uma
(escopos). Da correlação entre processo, jurisdição e política não seria per- visão autoritária não há a menor dúvida. No processo penal, tal função
mitido verificar-se um único fim da jurisdição, não sendo exclusividade da “educativa” seria realizada, como seria possível intuir-se, a partir da “pe-
doutrina processual determinar que fins seriam esses2011. Ressalte-se que dagogia do castigo”, de sanções pedagógicas e disciplinares, sanções que
a jurisdição estaria a executar fins exclusivamente estatais, muito embora permitam à sociedade compreender o grau de injusto contido no delito
variáveis no tempo e no espaço2012. cometido. Neste sentido, segundo GIACOMOLLI, “o Estado, na con-
cepção totalitária, exerce uma importante função pedagógica e educa. Isso
O primeiro escopo que DINAMARCO oferece para a jurisdição é o de
foi transferido ao sistema criminal, na perspectiva de que o sujeito deve
pacificação social. Ou ainda, “pacificar com justiça”2013. Desde este ponto de
ser punido exemplarmente, para que se recupere e sirva de exemplo aos
vista, sequer seria possível oferecer uma distinção cristalina entre legislação
demais”2019. No campo dos escopos sociais da jurisdição, como expressões
e jurisdição. Aliás, para o autor, ambas estariam ligadas pela busca de um
concretas da realização de tais finalidades extraprocessuais, encontraremos
mesmo objetivo fundamental: a paz social2014. A noção de paz social nova-
uma série de justificativas para o ativismo judicial, especialmente quanto à
mente aproxima a perspectiva instrumentalista do discurso da Escola Superior
discussão em torno dos problemas acerca da imparcialidade do magistrado,
de Guerra, já que ela (a paz social) aparece elencada como um dos objetivos
negando haver qualquer empecilho em se admitir um juiz ativo2020.
fundamentais2015 traçados pela Escola Superior de Guerra2016.
Além dos escopos sociais, DINAMARCO projetará os escopos políticos
Um segundo escopo social da jurisdição, na leitura de DINAMARCO
da jurisdição. O autor considerará que o direito possui uma finalidade cla-
seria a função educativa (educar através do processo, educar a população
ramente política. Desta maneira, o processo serviria para a realização destes
2010. “Pensa-se na legitimidade da jurisdição, como mera projeção ou aspecto da problemática da legitimi-
dade do poder”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo:
objetivos políticos que se escondem por detrás das normas2021. O processo se
Malheiros, 1990. p. 114. p. 139. assemelha, como já ficou demonstrado anteriormente, ao campo da soberania:
2011. “Eis como e por que o correto enquadramento político do processo conduz à insuficiência da determi-
nação de um escopo da jurisdição e mostra a inadequação de todas as posturas só jurídicas, que a todo
custo buscam a resposta ao problema nos quadrantes do direito, sem descortinar o panorama sócio-polí- 2017. “A educação através do adequado exercício da jurisdição é assim, portanto, um escopo fundamental
tico em que inserida a própria função deste”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do do processo, ou seja, um objetivo a ser conseguido com a finalidade de chamar a própria população a
Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 114. p. 153. trazer as suas insatisfações a serem remediadas em juízo. O escopo último continua sendo a pacificação
2012. “Expressão do poder, a jurisdição é canalizada à realização dos fins do próprio Estado e, em face das social, que, na medida em que obtidos bons níveis de confiança no seio da população, torna-se mais fácil
cambiantes diretrizes políticas que a História exibe, os objetivos que a animam consideram-se também de ser também levada a níveis satisfatórios”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do
sujeitos a essas mesmas variações, no tempo e no espaço”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instru- Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 114. p. 163. Segundo a Escola Superior de Guerra, a
mentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 114. p. 150. educação será o fator psicossocial de maior relevância para o aprimoramento do sistema democrático,
2013. No mesmo sentido BEDAQUE: “na medida em que a lei representa a vontade social, atuada ela no caso de forma a educar os grupos sociais para o exercício do direito à liberdade. Escola Superior de Guerra.
concreto haverá pacificação com justiça. Estará afirmada a autoridade do Estado”. BEDAQUE, José Fundamentos Teóricos. Rio de Janeiro: ESG, 1983. p. 156.
Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 22. 2018. Escola Superior de Guerra: fundamentos doutrinários. Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra, 1995. p. 61.
2014. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 2019. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas Marcas Inquisitoriais do Código de Processo Penal Brasileiro e
p. 114. p. 159. a Resistência às Reformas. In Revista Brasileira de Direito Processual Penal. v.1. n. 1. Porto Alegre,
2015. “Objetivos Fundamentais (OF) – são Objetivos Nacionais (ON) que, voltados para o atingimento dos 2015. p. 147.
mais elevados interesses da Nação e preservação de sua identidade, subsistem por longo tempo”. Escola 2020. “Aos temores quanto ao comprometimento do juiz, poder-se-ia responder que a formação profissional
Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 23. Salien- o põe, com razoável teor de segurança, a salvo dos possíveis deslizes; resta por demonstrar que o juiz
te-se que Cândido Ragnel DINAMARCO é egresso da Escola Superior de Guerra, turma de 1975. recrutado por modo idôneo, cercado de garantias e integrante de um Poder Judiciário bem estruturado
Disponível em http://www.esg.br/index.php/en/2014-02-19-17-51-50/diplomados#1975. Acesso em seja assim tão suscetível a tantas fraquezas. O princípio da demanda e o dispositivo têm o seu inegável
22.05.2018. valor, mas não são suficientes, em si mesmos, para infirmar as tendências que advêm da ligação do siste-
2016. “A Paz Social reflete um valor de vida, não imposto, mas decorrente do consenso, em busca de uma so- ma processual aos fins do Estado”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo.
ciedade caracterizada pela conciliação e harmonia entre pessoas e grupos, principalmente entre o capital 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 114. p. 165.
e o trabalho, e por um sentido de justiça social que garanta a satisfação das necessidades mínimas de 2021. “O próprio direito tem inegavelmente um “fim político”, ou fins políticos, e é imprescindível encarar o
cada cidadão, valorizando as potencialidades da vida em comum, beneficiando a cada um, bem como processo, que é instrumento estatal, como algo de que o Estado se serve para a consecução dos objetivos
a totalidade da sociedade”. ”. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. políticos que se situam por detrás da própria lei”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade
Rio de Janeiro, 2014. p. 25. do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 114. p. 169.
580 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 581

o processo acaba se tornando em um local privilegiado para a colocação em de efeitos. Por isso, muito mais que a preocupação com o poder sobre, o
movimento de políticas estatais e realizando seus fins próprios2022 através do que se tem em vista é o poder para”2027. O conceito de poder, para a Escola
investimento em sua autoridade. Superior de Guerra, põe ênfase em sua instrumentalidade2028. É muito visível
Resta, por fim, mais uma questão a ser examinada desde o ponto de que ambas as propostas compartilham de um mesmo quadro metodológico
vista crítico. Cuida-se da própria descrição do objeto metodológico de DINA- e conceitual: enquanto a perspectiva instrumentalista afirma que o processo
MARCO: a concepção instrumental de processo. Para o autor, a tradicional não é um fim em si mesmo e está subordinado a finalidades exteriores (me-
afirmação de que o processo é um meio para o exercício ou satisfação do di- tajurídicas), a fundamentação do poder nacional, pela Escola Superior de
reito material é insuficiente. O instrumento está preso a uma finalidade. Daí Guerra também se dá em sentido instrumental2029, afirmando que o poder
por que a jurisdição, na visão de DINAMARCO, estará associada a funções, não consiste em um fim em si mesmo e deve, portanto, servir como um meio
escopos ou finalidades que conectarão diretamente o processo aos objetivos do para se alcançar objetivos estatais. Desta maneira, de acordo com a Escola
Estado2023. Nas palavras do autor, “a perspectiva instrumentalista do processo Superior de Guerra, “entende-se que o Poder Nacional é o instrumento
é teleológica por definição e o método teleológico conduz invariavelmente à de que dispõe a Nação para conquistar e manter seus objetivos”2030. Não
visão do processo como instrumento predisposto à realização dos objetivos causa estranheza, pois, ser a instrumentalidade do processo uma acomoda-
eleitos”2024. Esta instrumentalidade seria ainda influenciada pela análise dos ção dos valores e ideologias que também encontram eco na Escola Superior
resultados que a nação espera do processo2025. de Guerra, subordinando indefectivelmente o processo a fins políticos. No
Entretanto, esta perspectiva instrumental consiste em mais uma das campo do processo penal, significa uma subordinação do processo penal à
séries de coincidências entre a perspectiva instrumentalista e a doutrina da defesa social, ou ainda, nas palavras de DINAMARCO, “a instrumentalidade
Escola Superior de Guerra2026. De acordo com o discurso desta, a instru- é a porta-mestra para o ingresso de valores no sistema processual”2031. Que
mentalidade corresponde a uma das características do poder nacional. E, valores seriam estes? Aquelas defendidos pela Escola Superior de Guerra, ou
da mesma forma que DINAMARCO, este discurso afirma o sentido de melhor: aqueles cristalizados pela ideologia da segurança nacional.
instrumentalidade do poder nacional, assegurando que o poder não é um O que se pode afirmar, com clareza, é que a jurisdição, consistindo em
fim em si mesmo e que ele possui finalidades, é um meio para alguma coisa. uma manifestação do poder nacional, deverá perseguir o bem comum. A pro-
Vejamos: “o Sentido Instrumental do Poder Nacional destaca o erro de en- ximidade entre o discurso de DINAMARCO e o da Escola Superior de Guerra
tendê-lo como um fim em si mesmo. O Poder é um meio para a produção salta aos olhos. As próprias características do poder nacional que aparecem nos
fundamentos teóricos da Escola Superior de Guerra são utilizadas pelo autor
2022. “Decidindo e impondo decisões (não necessariamente em sede jurisdicional), o Estado afirma o seu
próprio poder e a autoridade de que instrumentalmente investidos os seus agentes, na busca de fins para explicar a jurisdição (relatividade, integralidade e instrumentalidade).
predeterminados”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo:
Malheiros, 1990. p. 114. p. 170. Além destas proximidades entre o pensamento de DINAMARCO e
2023. “É vaga e pouco acrescenta ao conhecimento do processo a usual afirmação de que ele é um instrumen-
to, enquanto não acompanhada da indicação dos objetivos a serem alcançados mediante o seu emprego. a defesa dos valores da Escola Superior de Guerra, pode-se encontrar ainda
Todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se desti-
na. O raciocínio teleológico há de incluir, então, necessariamente, a fixação dos escopos do processo, ou outras pistas que ajudam a indicar a proposta autoritária do instrumentalismo
seja, dos propósitos norteadores da sua instituição e das condutas dos agentes estatais que o utilizam”.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. processual. Em um artigo intitulado “Processo de Conhecimento e Liberdade”, tais
p. 114. p.149.
2024. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
p. 114. p. 150. 2027. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. 35.
2025. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990. 2028. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do
p. 114. p. 151. Livro, 1983. p. 25.
2026. Vejamos como PESSOA analisa a segurança nacional: “A essência da Segurança Nacional esguiana está 2029. “O sentido instrumental é que confere ao Poder a capacidade para utilizar-se dos meios disponíveis e de dar
na conquista ou manutenção e na consecução dos objetivos nacionais. Tais propósitos encontram-se na à Nação o peso específico que a torna capaz de cumprir o destino por ela própria escolhido”. ARRUDA,
definição do Estado bem como na de Segurança Nacional. Existe, nesse tocante, uma perfeita identidade Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 25.
de fins. Eis aí o aspecto afirmativo da Segurança Nacional. Positiva-se a função instrumental do Estado 2030. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: elementos fundamentais. v I. Rio de Janeiro, 2014. p. p. 35
para atingir aqueles resultados”. PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: 2031. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
São Paulo: Biblioteca do Exército: Revista dos Tribunais, 1971. p. 122. p. 114. p. 219.
582 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 583

semelhanças novamente aparecerão2032. A fim de fundamentar a relação entre manifestações do poder, a conclusão lógica é a de que, portanto, a unidade
Estado e poder, DINAMARCO recorrerá novamente às noções da Escola Su- da jurisdição consiste numa unidade entre direito e política. Além disso, se
perior de Guerra2033. Como se pode perceber, de acordo com o próprio autor, a o processo realiza os objetivos estatais, fica muito claro que as expressões do
definição de bem comum tomada de emprestado da Escola Superior de Guerra poder nacional também trafegam através do processo e da jurisdição.
já conteria insitamente a própria “inovadora” proposta teleológica deslocada Basta pensar-se aqui nos objetivos econômicos do processo, nas fina-
para o campo do processo penal, caracterizando-se, o instrumentalismo, pelo lidades políticas (falar-se em finalidades políticas do processo, à esta altura,
traslado da ideologia da segurança nacional para o campo do processo, mediante corresponderia a uma tautologia, dada a indissociabilidade entre direito e po-
a proposta teleológica. Além de ressaltar novamente a unidade (integralidade) lítica), nos objetivos psicossociais (como claramente evidenciada pela “função
do poder2034, DINAMARCO destacará as funções instrumentais a ser exercidas educativa do processo”). Todavia, como se deve ter intensa atenção ao nível
pelo Estado. Afirmará o autor, que uma das funções instrumentais exercidas do não-declarado, se todas estas expressões do poder nacional, em alguma
pelo Estado é a de “traçar diretrizes da vida e do próprio Estado”, a que corres- medida interferem diretamente no processo e na jurisdição, sem dúvidas
ponderá a necessidade de se definir objetivos que serão realizados a partir do interferirá também a expressão militar do poder nacional.
exercício do poder. Desta maneira, DINAMARCO propõe:
É justo neste ponto afirmar que a perspectiva instrumentalista é inequi-
“tais diretrizes estão expressas fundamentalmente na Carta Política e consti- vocamente autoritária2037, pois convoca a jurisdição ao exercício de objetivos
tuem o arcabouço central de toda a atividade estatal. Definem-se, mediante
elas, as instituições políticas e o seu modo de ser e o modo como se har- igualmente militares. E é ali por onde a doutrina da segurança nacional encontra
monizam; traçam-se metas econômicas e estabelecem-se critérios para a amparo na perspectiva instrumentalista. Segundo ABBOUD e OLIVEIRA, ao
coordenação da nação; opta-se por certos estilos de vida e de cultura, no comentar a instrumentalidade do processo, “aqui fica evidente a ideia autoritária
planejamento psicossocial das instituições familiares, educacionais, religio- de se conferir o monopólio do poder ao Estado perante o qual os cidadãos estão
sas; e finalmente, estabelecem-se os critérios para a segurança, mediante as apenas na condição de sujeitos”2038. O ativismo judicial será a máxima expressão
diretrizes relacionadas à expressão militar do poder”2035.
processual dos postulados finalistas da noção de instrumentalidade. Aqui, ainda
Tais diretrizes estatais, na visão de DINAMARCO, são exatamente ex- se está no campo do discurso oficial ou declarado2039. Entretanto, há problemas
pressões do poder nacional. Segundo a Escola Superior de Guerra, “no estudo ainda maiores quando se analisa o discurso instrumentalista a partir de suas
do poder nacional é conveniente distinguir cinco expressões: “- política; – eco- intersecções com a doutrina da segurança nacional.
nômica; – psicossocial; – militar; – científica e tecnológica”2036. Aqui,deve-se
Trata-se do objetivo a ser examinado no próximo item.
ter a máxima atenção. Se o poder é uno e a jurisdição consiste em uma das
2032. DINAMARCO, Cândido Rangel. Processo de Conhecimento e Liberdade. In Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. v. 80. São Paulo, 1985.
4.6. UM PROCESSO PENAL MODELADO SEGUNDO A
2033. “Na Escola Superior de Guerra, ele é apresentado como “meios de toda ordem, de que dispõe a nação ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA: É ESTE O PROCESSO
para a busca do bem comum” (aqui já está presente uma alusão teleológica ao bem-comum da nação
e tem-se em vista o poder nacional). É a “capacidade de mandar e ser obedecido”. Estando a nação PENAL QUE SE DESEJA EM UMA DEMOCRACIA?
organizada em Estado, boa parte do seu poder é exercida por este, falando-se então em poder estatal. A
noção de Estado, aliás, está intimamente ligada à do poder, mesmo porque sem este inexiste aquele”. Como constatado no tópico precedente, há semelhanças inconfundíveis
DINAMARCO, Cândido Rangel. Processo de Conhecimento e Liberdade. In Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. v. 80. São Paulo, 1985. p. 251.
2034. “O Estado não dispõe de poderes, ou “Poderes”, mas do poder. A sua capacidade de decidir e impor a de- 2037. Autoritarismo detectado por ABBOUD, Georges; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O Dito e o Não Dito
cisão é uma só, ainda que aplicada no cumprimento de diversas funções e mediante formas diferentes”. Sobre a Instrumentalidade do Processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da
DINAMARCO, Cândido Rangel. Processo de Conhecimento e Liberdade. In Revista da Faculdade de teoria processual. In Revista de Processo. v. 166. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 38.
Direito da Universidade de São Paulo. v. 80. São Paulo, 1985. p. 252. Claramente dois pontos que já 2038. ABBOUD, Georges; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O Dito e o Não Dito Sobre a Instrumentalidade do
foram examinados anteriormente são enfocados: a integralidade do poder (o poder é um só) e a pers- Processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual. In Revista
pectiva decisionista, que enfatiza a decisão no campo da jurisdição (interpretada a partir de conceitos e de Processo. v. 166. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 39.
critérios próprios da soberania). 2039. “Para os instrumentalistas, a percepção do valor justiça será fruto de uma apreciação subjetiva do jul-
2035. DINAMARCO, Cândido Rangel. Processo de Conhecimento e Liberdade. In Revista da Faculdade de gador. A aposta, sem dúvidas, é no solipsismo”. ABBOUD, Georges; LUNELLI, Guilherme. Ativismo
Direito da Universidade de São Paulo. v. 80. São Paulo, 1985. p. 253. Judicial e Instrumentalidade do Processo. In Revista de Processo. v. 242. São Paulo: Revista dos Tribu-
2036. Escola Superior de Guerra. Fundamentos Teóricos. Rio de Janeiro: ESG, 1995. p. 26. nais, 2015. p. 29.
584 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 585

entre o discurso da instrumentalidade do processo e aquele em torno das para oficiais, estendendo a participação aos civis2043. Evidentemente, para
categorias que organizam e sedimentam o discurso da Escola Superior de que tal projeto fosse sustentado, garantindo a participação civil, os concei-
Guerra. A narrativa em torno da construção da Escola Superior de Guerra é tos fechados oriundos do planejamento militar para a defesa do Estado já
objeto de incontáveis estudos, desde aqueles oficiais aos considerados críticos. evidenciariam estar sendo superados. Para FAORO, a péssima performance
De acordo com a legislação brasileira, a Escola Superior de Guerra é do Brasil na Segunda Guerra Mundial, aliada à circunstância de o país não
uma instituição militar, consoante o Decreto 8.978/2017, que inclui a insti- acabar figurando no Conselho de Segurança da ONU (o que significa não
tuição no Ministério de Estado da Defesa (art. 51). O comandante da Escola ingressar no circuito das potências mundiais) deu azo ao surgimento de uma
Superior de Guerra deverá ser ocupado por oficial general da ativa de último ideologia, que fora alimentada pelos oficiais decepcionados com a atuação
posto (art. 65, I). Este decreto é complementado pelo Decreto 5.874/06, brasileira na Itália2044. Para STEPAN, a participação do Brasil na Segunda
que estabelece o regulamento interno da Escola Superior de Guerra, defi- Guerra Mundial foi decisiva para o emergir da Escola Superior de Guerra.
nida como um centro de altos estudos, que está subordinado ao Ministério Com efeito, o Brasil havia enviado uma divisão, a Força Expedicionária Bra-
de Estado da Defesa, cuja missão é desenvolver e produzir conhecimentos sileira (FEB) para combater na Itália. A frágil coordenação entre as distintas
necessários para o planejamento da segurança nacional2040. forças bem como a precária estratégia nacional entre setores como o militar,
industrial e burocrático forçou a criação, após a Segunda Guerra, de um
A emergência da Escola Superior de Guerra se dá no contexto da Guerra
Estado Maior Geral de Serviços e um Conselho Nacional de Segurança. Os
Fria, quando a União Soviética rompe com o Ocidente e então, aparece nos
membros organizadores da FEB (como o General César OBINO e o general
Estados Unidos, a doutrina Truman como estratégia geopolítica de contenção
Cordeiro FARIAS) acabaram por desenvolver a ideia da construção de uma
do avanço do comunismo. Segundo STEPAN, as forças armadas brasileiras
escola especializada, cujo propósito era difundir novos modelos e estratégias
não acreditavam possuir legitimidade para assumir o governo, o que explicaria
de desenvolvimento e segurança nacional2045. Tendo em vista que os Estados
que a sua intervenção em 1945, 1954 e 1955, fosse provisória, devolvendo
Unidos já possuíam esta escola, e considerando que a FEB foi integrada no
após a resolução da crise o poder às mãos dos civis2041.
combate na Itália com o exército norte-americano, os brasileiros requereram
A estrutura da Escola Superior de Guerra, no Brasil, baseou-se no a cooperação dos Estados Unidos na constituição da escola2046. O general
modelo do National War College norte-americano. De acordo com ARRUDA, Cordeiro de FARIAS foi o mentor do projeto de escola, que sustentava que
a ideia de criação da Escola Superior de Guerra partiu de militares que, visi- um país em desenvolvimento como o Brasil não podia deixar de unir à manu-
tando os Estados Unidos, desejaram criar no Brasil uma estrutura de ensino tenção de forças armadas poderosas, o desenvolvimento da Nação. Nasciam aí
similar, contando, a partir da manifestação do interesse brasileiro, com o demandas educacionais, industriais e agropecuárias. Desta maneira, procurou
auxílio dos americanos2042. Inicialmente, uma escola de altos estudos seria combinar em uma mesma instituição, a Escola Industrial das Forças Armadas
destinada à formação do alto escalão militar. Entretanto, a Lei 785, de 20 e a Escola Nacional de Guerra dos Estados Unidos, acentuando a necessidade
de agosto de 1949, ampliou o alcance do projeto originário, de uma Escola de privilegiar o desenvolvimento e segurança internos2047.
2040. Segundo COMBLIN, “A Escola Superior de Guerra é uma instituição sui generis. Depende exclusi- De acordo com a narrativa oficial, os Estados Unidos apenas colabo-
vamente do Estado-Maior das Forças Armadas. Goza de uma grande independência em relação ao
Exército, à Marinha e à Aeronáutica. Além do mais, destina-se a formar civis e militares: uma classe de raram com o projeto brasileiro, que foi quem de fato tomou a iniciativa de
dirigentes. Depois de 1964, os mais altos postos da administração serão ocupados por ex-alunos da Es-
cola Superior de Guerra”. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar
na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 155. 2043. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do
Livro, 1983. p. XXIV.
2041. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 203.
2044. FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? São Paulo: Ática, 1994. p. 108.
2042. “Foi a viagem que, em 1948, o General CÉSAR OBINO, então chefe do Estado-Maior Geral (depois
EMFA), fez aos Estados Unidos. Diz a tradição oral da Escola que, visitando o National War College, 2045. Para a Escola Superior de Guerra, a segurança nacional não podia ser limitada à proteção de fronteiras.
o General OBINO dissera que, no Brasil, se estava também implantando uma Escola semelhante. E os Compreendia a maximização da produção econômica e a minimização das causas de divisão e desunião
americanos gentilmente ofereceram uma Missão Militar para apoiar a implantação da nossa Escola, o dentro do país. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 211.
que foi aceito”. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto 2046. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 206.
Nacional do Livro, 1983. p.XXI. 2047. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 207.
586 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 587

aproximação entre os modelos de ensino militar e civil. Esta narrativa, portan- ações e políticas públicas, além de organizar distintos registros discursivos e
to, excluiria qualquer interferência do governo norte-americano na projeção fundamentalmente, atuará sempre no nível não declarado. Inclusive, enquan-
da doutrina Truman no Brasil via Escola Superior de Guerra, garantindo, to a doutrina da segurança nacional se preocupará com a ideologia de forma
assim, certa independência do Brasil na consecução de políticas internas, negativa, identificando-a como uma perspectiva marxista e comunista, que
avalizando um mito da Escola Superior de Guerra como construto absoluta- deveria ser, portanto, combatida, a ideologia da segurança nacional, ao se
mente nacional, projetado para um simples aperfeiçoamento das elites. Uma declarar não-ideológica, perfomará o nível mais ideológico possível do pensa-
diferença importante entre o modelo norte-americano e o brasileiro residia mento, ou melhor, atuará em um regime “pós-ideológico”. Com acerto LIMA
em que no Brasil, foi autorizada a participação de civis, enquanto a escola FILHO quando detecta na Escola Superior de Guerra um aparelho ideoló-
norte-americana contava apenas com a participação castrense. Como houve gico, que funciona como um instituto repressivo2049. A Escola Superior de
a conjunção de elementos estratégicos não propriamente militares (especifi- Guerra – disso não há dúvidas – se constitui como uma parte de um aparelho
camente a questão do desenvolvimento), a participação de civis era tida como repressivo (as Forças Armadas). Mas, ainda, se apresenta como uma “escola”,
relevante2048, o que acabara confirmado pela recente história brasileira. cujos objetivos ideológicos, políticos e sociais são direcionadas à formação dos
Evidentemente, a narrativa oficial não merece guarida. Em primeiro militares brasileiros (como o Curso de Estado-Maior, o Comando das Forças
lugar, atentando-se para as constantes intervenções dos Estados Unidos na Armadas) bem como militares e civis (no caso específico, o Curso Superior de
América Latina e as constantes convulsões políticas mobilizadas pelos nor- Guerra), em igualdade de tratamento, ligados, de forma mediata e imediata, à
te-americanos na parte sul do continente, de pouca dúvida a utilidade de segurança nacional e desenvolvimento. Portanto, pode-se dizer que apesar da
um espaço para formação de militares e civis que compartilhassem de visões vinculação estreita a um aparelho repressivo, o desenvolvimento de funções
semelhantes a despeito dos rumos do país e dos problemas nacionais (especial- ideológicas permeia de forma clara o corte epistemológico que governa a sua
mente o comunismo). A Escola Superior de Guerra preparará o terreno para produção científica. Seja pelo treinamento e preparação dos militares para as
que dois fenômenos possam ocorrer: a) a formação/importação de conceitos questões concernentes à segurança nacional e desenvolvimento, seja pela arti-
que consolidarão um corpus doutrinário denominado de “segurança nacio- culação, em acordo com as elites civis (mormente as empresariais), de nichos
nal”, daí por que a Escola Superior de Guerra construirá uma “doutrina da ideológicos que acabam por difundir a doutrina da segurança nacional2050.
segurança nacional”; b) a doutrina da segurança nacional executará suas ações Enquanto a formatação da doutrina da segurança nacional se desenvol-
performáticas de acordo com o papel destinado à ideologia. Portanto, diversas via através da incorporação de determinadas categorias ao discurso oficial da
ações, discursos, estratégias e planificações, regulações, orientações, informa- Escola, a ideologia da segurança nacional se manifestava em diversos pontos
rão o que se poderia denominar como “ideologia da segurança nacional”. que, aparentemente, não se tratavam de questões eminentemente securitárias.
Se em um nível declarado e oficial a doutrina da segurança nacional Mas a mudança de enfoque da geopolítica – ainda vinculada à noção de defesa
estará preocupada com a construção de conceitos e de um determinado re- nacional – para a segurança nacional (e posteriormente, segurança nacional e
gistro epistêmico que responderá pela alocação dos recursos humanos e o seu desenvolvimento2051), permitiu um efeito de irradiação, que avançava sobre
emprego na elaboração de atores políticos mais conscientes de suas tarefas, de questões consideradas fundamentais a partir da lógica da defesa nacional. A
outro, a ideologia da segurança nacional será mais ampla, atuando de forma noção de segurança nacional já contava com evidente desenvolvimento nos
mais sutil e imperceptível. A ideologia da segurança nacional atravessará os Estados Unidos, de forma que segundo COMBLIN, “é incontestável que essa
mais distintos campos e disciplinas, as mais aparentemente irreconciliáveis
2049. LIMA FILHO, Sebastião André Alves de. O Que a Escola Superior de Guerra (ESG) Ensinava. Tese de
Doutorado em Sociologia. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2011. p. 16.
2048. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 207. Ainda de 2050. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969). Petrópo-
acordo com STEPAN, os cursos da Escola Superior de Guerra, nos anos 50 contabilizaram apenas 16 lis: Vozes, 1979. p. 25.
dos 62 graduados como civis. Todavia, entre 1950-1967, 646 eram civis. STEPAN, Alfred. Brasil: los 2051. Cf ROCHA, Maria Selma de Moraes. A Evolução dos Conceitos da Doutrina da Escola Superior de
militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 208. Guerra nos Anos 70. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996.
588 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 589

doutrina vem diretamente dos Estados Unidos”2052. transformação da noção de guerra, duas situações poderiam ser verificadas:
A Escola Superior de Guerra teve papel ativo na preparação para o regime a) as elites deveriam estabelecer programas de preparo da nação para eventual
militar brasileiro. Fundada em 1949 e tendo como fundamento o National War inserção em conflito violento, e tal preparação não poderia depender de uma
College, sediado em Washington, pode-se facilmente concluir que no Brasil, declaração formal de guerra. A formação do material humano necessitaria de
a construção do pensamento desta instituição esteve agregado a concepções um constante aperfeiçoamento, mesmo em tempos de paz; b) a ideia de defesa
sócio-políticas norte-americanas. Portanto, não se cuidou de uma iniciativa nacional, portanto, estaria em descompasso relativamente à esta nova realida-
exclusivamente nacional, modelada em um pensamento autoritário tipica- de. Contudo, no Brasil, mais do que a preparação contínua para a guerra, a
mente brasileiro2053. Aliás, deve-se registrar que o sincretismo será uma das tarefa executada pela Escola Superior de Guerra foi o desenvolvimento e aper-
constantes nas formulações discursivas esguianas, ao incorporar parte do cabe- feiçoamento das classes dirigentes, que deveriam conduzir as soluções para
dal epistemológico já existente na década de 30 às diversas facetas próprias de problemas nacionais em tempos de paz. Torna-se claro aqui o emprego do
um sociologismo de tipo funcionalista norte-americano, tendo como norte a velho autoritarismo desmobilizador, que encontraria em Alberto TORRES,
ameaça representada pela dispersão do comunismo nas sociedades ocidentais. OLIVEIRA VIANNA e Francisco CAMPOS notáveis expoentes2057. Segundo
MACEDO, “a função das elites, na doutrina da ESG, de levar ao povo os
O enfrentamento ao comunismo (a partir de uma lógica da bipolarida-
objetivos nacionais e ao mesmo passo criá-los em íntima consonância com
de que foi produzida durante o período da Guerra Fria segundo a doutrina
seus anseios e aspirações, vem de Oliveira Vianna”2058.
Truman2054) necessitou de uma reelaboração que recaiu sobre a própria noção
de guerra. A partir da Segunda Guerra Mundial, seria necessário, para respon- Logo em seus primeiros anos de atividade, a Escola Superior de Guerra
der a uma ameaça tão séria e expansiva como aquela deflagrada pelos nazistas apareceria dotada dos mais elementares conceitos oriundos da doutrina nor-
alemães, a uma remodelação das noções mais elementares sobre a defesa dos te-americana. Fundamentalmente, o traslado de conceitos do pensamento
Estados. Passava-se, então, a um novo conceito, o de “guerra total”, que já norte-americano ao Brasil ocorreria a partir da definição dos “objetivos na-
não mais poderia ser tratado a partir da estatística e da razão de Estado2055. cionais”, da ênfase posta sobre o “poder nacional”, da passagem da “defesa
Ou seja, a medição da força de um Estado já não mais seria suscetível de ser nacional” para a “segurança nacional”, além das diversas ramificações do
averiguada a partir da quantidade de homens envolvidos nas Forças Armadas pensamento estratégico. Tais categorias seriam suficientes para recobrir inte-
ou ainda, mediante a análise dos recursos tecnológicos disponíveis para em- gralmente a realidade nacional2059. Segundo VIEIRA, a formação discursiva
prego pelo Estado em caso de conflito armado2056. Então, como resultado da da Escola Superior de Guerra “não apresenta um conteúdo autoritário me-
ramente importado. Pelo contrário, esse traço ideológico de autoritarismo
2052. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de se articula devido às próprias condições de como se efetivam socialmente
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 14.
2053. “A preparação direta para o novo regime militar brasileiro foi a Escola Superior de Guerra, fundada em
1949. Porém os homens que fundaram a Escola Superior de Guerra para imitar o National War College 1918 ficara na mente dos estudiosos como possível de ocorrer, realizou-se a partir de 1939, colhendo os
de Washington e introduzir suas doutrinas no Brasil não partiram do nada”. COMBLIN, Pe Joseph. A estadistas menos avisados, surpresos e perplexos, em plena improvisação das medidas político-adminis-
Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Bra- trativas, com vistas a responder, com a totalidade dos recursos nacionais, a um engajamento que lhes era
sileira, 1978. p. 151. imposto de forma também total. Ultrapassava-se, desta forma, antigo conceito de que a preparação de
2054. Segundo SKIDMORE, “No Brasil, a ESG já era um centro altamente influente de estudos políticos atra- uma Nação para a guerra se limitava ao aprestamento de suas Forças Armadas e à previsão dos recursos
vés de seus cursos de um ano de duração frequentados por igual número de civis e militares destacados necessários para mantê-las enquanto durasse o conflito”. ROCHA, José Ferraz. O Brasil e a Escola
em suas áreas de atividade. Da doutrina ali ensinada constava a teoria da ‘guerra interna’ introduzida Superior de Guerra. In A Defesa Nacional. n. 688. Rio de Janeiro, 1980. p. 20.
pelos militares no Brasil por influência da Revolução Cubana. Segundo essa teoria, a principal ameaça 2057. “No Brasil, porém, mais do que a preparação para a guerra, a tarefa prioritária seria a de formar elites
vinha não da invasão externa, mas dos sindicatos trabalhistas de esquerda, dos intelectuais, das orga- para a solução dos problemas do País em tempo de paz”. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de
nizações de trabalhadores rurais, do clero e dos estudantes e professores universitários. Todas essas Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. XXII. “A atual doutrina da Escola
categorias representavam séria ameaça para o país e por isso teriam de ser todas elas neutralizadas ou Superior de Guerra representa a evolução do nacionalismo de Alberto Torres e o pensamento de Oliveira
extirpadas através de ações decisivas”. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 7 ed. Rio Vianna”. MACEDO, Ubiratan Borges de. A Escola Superior de Guerra: sua ideologia e trânsito para a
de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 22. democracia. In Política e Estratégia. v. VI. n. 02, 1988.p. 216.
2055. Seguimos, neste ponto, as ideias de FOUCAULT, Michel. Estado, Seguridad, Población. Buenos Aires: 2058. MACEDO, Ubiratan Borges de. A Escola Superior de Guerra: sua ideologia e trânsito para a democra-
Fondo de Cultura Económica, 2006. cia. In Política e Estratégia. v. VI. n. 02, 1988.p. 216-217.
2056. “O fenômeno fundamental, por preocupar de perto as elites dirigentes, particularmente o segmento mi- 2059. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
litar dessa elite, foi a Segunda Grande Guerra que inaugurou o conceito de guerra total. Aquilo que em Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 155-156.
590 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 591

as relações materiais no Brasil”2060. Desta maneira, ao lado das categorias tomada como objetivo-síntese: a noção de bem comum2065. Nestes termos,
funcionalistas e reacionárias importadas do pensamento sociológico norte- define o Manual da Escola Superior de Guerra: “os referenciais da política são
-americano, teríamos ainda um leque de influências que se incorporaria ao a justiça e a ética, sem os quais a ordem social é destruída e a própria nação
sincretismo esguiano: assim, seria possível vislumbrar claramente a influência se desagrega”2066. O sincretismo do pensamento esguiano deve ser lido como
do positivismo (uma constante no pensamento autoritário brasileiro), com uma estratégia de ação no contexto geral da geopolítica.
a sua crença no progresso, na ciência e na indústria; o nacionalismo, que já A democracia, como contrafator natural ao comunismo, se encontrava
reverberava desde o pensamento autoritário da década de 30. Aliada a tais presente no discurso da Escola Superior de Guerra, muito embora de forma
pensamentos, seria possível constatar-se a permanência das críticas concentra- bastante limitada2067, através da noção de “participação”2068. Além disso, a
das no sistema da democracia representativista (concebida como liberalismo própria noção de segurança acabava assumindo as vestes desta perspecti-
político). Por seu turno, como elemento que conectava tais discursos à ação va, como se pode verificar de acordo com o Manual da Escola Superior de
política (que culminou com o golpe de 19642061), estava novamente presen- Guerra: “no que concerne ao Bem Comum, a Segurança é um elemento
te – se é que alguma vez havia de fato desaparecido – o postulado de que o indispensável à busca da maior aproximação possível desse ideal graças ao
Brasil não estava ainda preparado para uma democracia. Ou, ainda, de que grau de garantia que deve proporcionar”2069.
o Brasil necessitaria de uma “democracia tutelar”.
O conjunto de categorias utilizadas pela Escola Superior de Guerra
O discurso sincrético operado Escola Superior de Guerra revisaria o consiste numa reatualização do realismo de OLIVEIRA VIANNA, que tra-
velho pensamento autoritário através de características essencialmente mi- balhava com a parelha Brasil real versus Brasil legal. Neste sentido, pode-se
litares, redesenhando vários aspectos da energia repressiva do Estado na perceber claramente a influência do pensador, que pode ser encontrado no
consolidação dos aparatos de segurança nacional2062. Como premissa básica, Manual da Escola Superior de Guerra2070 em diversas passagens.
este discurso – simplista em demasia e genérico o suficiente para ser empre-
Diversos pensadores vinculam a Escola Superior de Guerra ao Golpe de
gado nos mais diversos campos do conhecimento e nas mais distintas ações
1964, acentuando a participação da ideologia da segurança nacional na queda
políticas – corresponde a um processo de simplificação dos problemas huma-
do então presidente da República João Goulart: “no período dos governos
nos2063. Assim como sucedeu com o fascismo, o simplismo de suas premissas,
militares (1964-1985) a doutrina da segurança nacional teve renovada a sua
o anti-intelectualismo e o anti-empirismo que podem ser constatados em seus
importância na reformulação operada pela Escola Superior de Guerra”2071. O
enunciados fazem parte de um esquema que autoriza a sua difusão, criando
que varia é o grau de participação e influência do pensamento esguiano na
“nós” discursivos de fácil assimilação no meio social. Além disso, uma visão
tomista da sociedade2064, responsável pela proposta “humanista” agradava a 2065. “Em toda a colocação doutrinária da Escola, o homem é visto como o centro das preocupações. O que se
alguns setores mais extremistas, como o catolicismo integralista. Tal visão de busca especialmente é o Bem Comum, na concepção tomista que nutriu a cultura ocidental”. ARRUDA,
Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do Livro, 1983. p.
mundo organizará uma das noções mais caras à Escola Superior de Guerra, XXXI-XXXII.
2066. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. v. I.Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra,
2014. P. 63.
2060. VIEIRA, José Ribas. O Autoritarismo e a Ordem Constitucional no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2067. Como exemplo do uso de expressões democracia e liberdade pela Escola Superior de Guerra: “a cons-
1988. p. 60. trução de uma ordem social de natureza democrática só é possível quando a liberdade é intrínseca a
2061. Para uma análise dos penalistas ligados ao golpe de 1964 Cf ALVES, Marcelo Mayora. Os Penalistas e todos os seus integrantes”. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. v. I. Rio de Janeiro:
a Ditadura Civil-Militar: as ciências criminais e as justificativas da ordem. Tese de Doutorado. Floria- Escola Superior de Guerra, 2014. p. 10.
nópolis: UFSC, 2016. 2068. E vejamos como o pensamento instrumentalista enfatiza a participação processual (equivocadamente
2062. “Observa-se, na doutrina da ESG, o desenvolvimento do aspecto essencialmente militar da ideologia denominada de contraditório), como uma verdadeira panaceia pseudo-democratizante.
autoritária e a preocupação com a definição do papel dos aparelhos repressivos do Estado, com vistas à 2069. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. v. I.Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra,
implementação da política de “segurança nacional”. SILVA, Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário 2014. P. 75.
no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. p. 27. 2070. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. v. I.Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra,
2063. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de 2014. p. 15.
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 17. 2071. DAL RI JÚNIOR, Arno. O Conceito de Segurança Nacional na Doutrina Jurídica Brasileira: usos e
2064. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. v. I.Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra, representações do Estado Novo à Ditadura Militar Brasileira (1935 – 1985). In Revista de Direitos
2014. p. 11. Fundamentais e Democracia. v. 14. n. 14. Curitiba, 2013. p. 530.
592 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 593

configuração das políticas e das tomadas de decisão. nal, portanto, já numa fase secundária de evolução de seus conceitos, interligaria
Segundo DREIFUSS, a participação da Escola Superior de Guerra no segurança ao desenvolvimento, ou seja: militarização e economia de mercado,
processo do golpe de 1964 requer a consideração de que a “elite orgânica” ambas preocupações nos discursos esguianos.
formada pelo pessoal do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais2072 (centro Parece-nos acertada esta orientação de DREIFUSS, que conecta a ideo-
conservador de formação de pessoal) e pelos oficiais da Escola Superior de logia da segurança nacional aos postulados de um pensamento abertamente
Guerra era incapaz de dar conta de um sistema econômico que tinha como antiparlamentarista, sob a alegação da tecnicidade dos procedimentos de
propósito uma abertura sem precedentes ao capital multinacional. O manejo do tomada de decisão, o que de fato autoriza a receptividade do discurso esguiano
instrumental que poderia articular o autoritarismo com a abertura econômica ao pensamento autoritário brasileiro da década de 30. Embora insuficiente,
viria tão somente a partir do “tecnocratismo”, isto é, do processo de tomada o tecnocratismo será peça fundamental na construção da abertura do Brasil
de decisões escamoteadas por linguagem e ideologia racionalistas. As diretrizes ao capital internacional, assumindo, o pensamento ideológico autoritário,
do Estado, portanto, foram conduzidas a partir de “uma racionalidade tecno- posteriormente, as vestes do desenvolvimento econômico2075.
crática”, utilizada de maneira a excluir, de forma maniqueísta, opções políticas. A possibilidade de conexão entre a ideologia da Escola Superior de
Portanto, a racionalidade tecnocrática fora concebida como automaticamente Guerra e o tecnocratismo se fez através da noção de segurança nacional. A
excludente de quaisquer contaminações políticas, o que indica claramente se segurança nacional consistirá num significante capaz de atrair todas as instân-
tratar de um construto ideológico. A tecnocracia como a política de decisões e cias políticas: tanto a nacional quanto a internacional, desaguando em uma
condução do país no sentido de aprimoramento da realidade nacional, culmi- construção barimétrica dos objetivos nacionais e especialmente, articulan-
nava por alijar as classes subalternas de interferências nos processos políticos, do diretrizes para o poder nacional. Nas palavras de PESSOA, “a segurança
subtraindo tais decisões – por se constituirem como meras decisões gerenciais nacional é o centro de gravidade de todas as políticas: interna, externa e in-
e técnicas – do foro público (reproduzindo claramente velhos preconceitos dos ternacional”2076. A construção da doutrina da segurança nacional não se deu
ideólogos autoritários, dentre eles Francisco CAMPOS). Os tecnocratas, por- de forma isolada no Brasil, mas se esparramou por toda a América Latina,
tanto, conduziriam o Estado no processo de tomadas de decisões econômicas, inclusive chegando à própria Constituição de 1988, que trata da polícia mi-
enquanto os oficiais da Escola Superior de Guerra tutelariam o desenvolvimento litar como “força suplementar ou de reserva das forças armadas”. A última
da segurança nacional e “desenvolvimento”, que ocupou o posto de slogan da Constituição Ocidental a conectar a polícia militar às forças armadas foi a
Escola (e deste governo militar). Protegidos sob o manto de uma política técnica Constituição Chilena, sob a autoridade de PINOCHET2077.
e não emotiva, inclusive “apartidária”, a tecnocracia econômica encontraria
O continuismo da ditadura no Brasil, passa, necessariamente, pela
a ideologia repressiva da segurança nacional2073. Sobre a interpenetração das
noções de segurança e desenvolvimento, basta trazer à colação as palavras de 2075. Não é à toa que Ricardo Silva enfatizará com claridade a transformação do discurso autoritário em
COUTO E SILVA, um dos símbolos e mais importantes ideólogos da Escola postulados economicistas, sublinhando a atuação de Roberto CAMPOS e Eugênio GUDIN. Cf SILVA,
Ricardo. A Ideologia do Estado Autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004. Roberto Campos, apesar
Superior de Guerra: “no amplo quadro da Política Nacional, o Desenvolvimen- de não ser formado pela ESG, foi destacado Ministro do Planejamento no governo Castelo Branco, pro-
feriu diversas conferências nos cursos da Escola, sendo esta uma das razões pelas quais foi designado
to e a Segurança intimamente se entrosam, reciprocamente se condicionam e ministro, pois estava em sintonia com os projetos de governo. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y
la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 218.
acentuadamente se interdependem, chegando mesmo, por vezes, a se confundir 2076. PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: Biblioteca do Exército:
numa faixa de recobrimento”2074. A elaboração da doutrina da segurança nacio- Revista dos Tribunais, 1971. p. 100.
2077. “A permanência dos regimes militares latino-americanos supõe a existência de uma ideologia que ul-
trapassa as peculiaridades nacionais e mantém a estrutura e a coerência de cada um. Essa ideologia
chama-se ‘a Doutrina da Segurança Nacional’”. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança
2072. Fundado em 1961 por Augusto Trajano de Azevedo Nunes e Antônio Gallotti e financiado por empresá- Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 13. Sobre a
rios e especialmente pelos Estados Unidos, em 1961 passou a ser dirigido por Golbery do Couto e Silva, Constituição do Chile, de 1980, art. 90: “las Fuerzas de Orden y Seguridad Pública están integradas sólo
um dos principais nomes da Escola Superior de Guerra. por Carabineros e Investigaciones, constituyen la fuerza pública y existen para dar eficacia al derecho,
2073. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 3 ed. garantizar el orden público y la seguridad pública interior, en la forma que lo determinen sus respectivas
Petrópolis: Vozes, 1981. p. 485-486. leyes orgánicas. Carabineros se integrará, además, con las Fuerzas Armadas en la misión de garantizar
2074. COUTO E SILVA, Golbery. Planejamento Estratégico. Campinas: Unicamp: IFCH, 1955.p 22. el orden institucional de la República”.
594 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 595

penetração de determinadas instituições antidemocráticas no seio do princi- apreciação da conveniência na decretação do estado de sítio, que passava a ser
pal dispositivo de governo democrático. Em 1988, o período de “transição admitido, nesta fórmula introduzida pela Emenda 11/1978 na Constituição
democrática” se encarregou de permitir o ingresso do autoritarismo na “Cons- de 1967, diante da simples constatação de “fatores de subversão”2080.
tituição Cidadã”, como parte integrante do processo de negociata entre civis Retomando o caso da Constituição de 1988, talvez o principal aspecto
e militares: o distensionismo da abertura e a ficção de um processo cons- que deva ser mencionado, pois interfere diretamente no campo da segurança
tituinte democrático. Especificamente no caso das instituições militares, a pública e que repercute imediatamente nas discussões criminológicas consiste
Constituição manteve uma enorme quantidade de prerrogativas militares na ausência de separação entre as forças de segurança internas e externas. Na
antidemocráticas. Como acentua ZAVERUCHA, “civis, ao formalizarem as Constituição de 1988, fora mantido o controle parcial do exército sobre a po-
prerrogativas militares constitucionalmente, deram um verniz democrático lícia militar. Desta maneira, o Brasil se notabiliza por estabelecer, à diferença
aos amplos poderes dos militares. Em termos procedurais, o processo de dos demais países democráticos, uma continuidade entre exército e polícia
redação da Constituição foi democrático. Contudo, a essência do resultado militar. Na maior parte dos países ocidentais a polícia se subordina ao Mi-
não foi liberal”2078. Parte da Constituição de 1988 continuou – inclusive com nistério do Interior. Todavia, no caso brasileiro, ela fica à mercê do Exército,
artigos semelhantes – o caminho traçado pela Constituição de 1967. No sendo as polícias militares, forças de reserva2081. ZAVERUCHA alerta para
tratamento das forças armadas e da polícia e no quesito segurança pública, o art. 142 da Constituição, que define que as forças armadas “destinam-se
pouquíssima coisa foi alterada pela “Constituição Cidadã”. Esta espécie de à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
conciliação entre opostos marca profundamente este denominado “período qualquer destes, da lei e da ordem”. Então, como consequência desta forma-
de transição democrática”. Alguns pensadores, como o atual ministro do Su- tação, é justamente as forças armadas que garantem, em última instância, o
premo Tribunal Federal, Ricardo LEWANDOWSKI, se mostraram favoráveis funcionamento do Executivo, do Judiciário e do Legislativo2082.
à manutenção de poderes excepcionais no seio da Constituição de 19672079,
Como já foi referido, a ideologia da segurança nacional somente adquire
mesmo que dotados de alta gama de subjetividade. Mas o mais importante
maior vivacidade a partir do momento em que a noção de guerra passa por
é que o pensador reconhece que o processo de transição, com a manutenção
uma reformulação. Num primeiro momento, a noção de guerra total (tendo
das “salvaguardas”, adveio diretamente da Doutrina da Segurança Nacional,
como paradigma a segunda grande guerra) indicaria a insuficiência das forças
pois havia enorme preocupação para com a “guerra revolucionária”. Em nome
de defesa de um país serem pensadas unicamente a partir das declarações ofi-
disso é que se concedeu enorme discricionariedade ao Chefe do Executivo, na
ciais de conflito armado. Era necessário mobilizar constantemente as forças de
um país. Portanto, a preparação para a guerra em tempos de paz e o cuidado
2078. ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civis-Militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988.
In TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 42. com o território nacional modificaram os contornos desta categoria. Será a
2079. “A Emenda Constitucional nº 11/78, que representou o primeiro passo da abertura política promovida partir da noção de guerra revolucionária2083, que já não atuaria de forma visível
pelo Presidente Ernesto Geisel, superou o impasse, ao substituir os instrumentos de exceção revolucio-
nários pelas chamadas salvaguardas do Estado. A reforma da Constituição, recorda-se, ao revogar os atos e aberta, mas de maneira sutil, através da tentativa de conquista do poder pelo
institucionais e complementares promoveu, simultaneamente, a reestruturação parcial do estado de sítio,
introduzindo, ao lado deste, no Capítulo V do Título II, o estado de emergência e as medidas de emergên-
cia”. LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. As Salvaguardas do Estado no Brasil. In Revista da Faculdade 2080. LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. As Salvaguardas do Estado no Brasil. In Revista da Faculdade de
de Direito da Universidade de São Paulo. v. 79. São Paulo, 1984. p. 155-156. Ainda: “na verdade, o estado Direito da Universidade de São Paulo. v. 79. São Paulo, 1984. p. 156.
de sítio não sofreu nenhuma alteração substancial, continuando, portanto, a apresentar-se como um ins-
trumento rígido. A flexibilidade na defesa das instituições, como se verá mais adiante, foi ensejada pelas 2081. ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civis-Militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988.
novas salvaguardas. Graças a elas, repita-se, foi possível ao General Geisel reunir o necessário consenso da In TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 46.
base de sustentação militar do regime para a supressão dos atos revolucionários”. Ibidem. p. 156. No que 2082. ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civis-Militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988.
concerne ao estado de sítio, a Emenda Constitucional nº 11/78 introduziu, basicamente, duas alterações. E In TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 48.
m primeiro lugar ampliou as hipóteses e m que este pode ser cogitado. Tal ampliação deu-se pelo aumento 2083. A noção de guerra revolucionária estava também inserida no meio dos juristas, conforme se pode verificar
do componente de subjetividade na apreciação das circunstâncias fundamentadoras do sítio. Este passa a em Miguel REALE, em defesa da “Constituição de 69”: “se a Constituição de 1969 apresenta valores que
ser admitido «no caso de guerra, ou a fim de preservar a integridade e a independência do país, o livre fun- merecem ser preservados, não resta dúvida que a revogação progressiva dos Atos Institucionais pressupõe
cionamento dos poderes e de suas instituições, quando gravemente ameaçados ou atingidos por fatores de a adoção de normas que habilitem o Governo a tomar medidas adequadas e urgentes toda vez que assim
subversão. A segunda inovação consistiu no acréscimo, ao rol de medidas autorizadas durante a exceção, o exigir a segurança nacional, sobretudo ante os imprevistos da “guerra revolucionária”, cuja existência só
da possibilidade de «intervenção e m entidades representativas de classe ou categorias profissionais». No por ingenuidade ou malícia se poderá contestar”. REALE, Miguel. A Experiência Jurídica Brasileira. In
mais, foram mantidas as disposições anteriores à reforma. Ibidem. p.. 156. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 69. n. 02. São Paulo, 1974. p. 32-33.
596 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 597

domínio da população, que a doutrina da segurança nacional ampliaria seu possui o seu berço de origem na Escola Superior de Guerra, sendo ainda
espectro de atuação. Na base da noção de guerra revolucionária ingressaria o influenciada pelo positivismo comtiano, pelo nazismo e ainda, pelo pen-
elemento mobilização popular, cujo efeito poderia acarretar a desagregação samento de GÓES MONTEIRO 2089. Analisando-se como a segurança
e a dissolução da própria sociedade. Assim, existiriam novas modalidades de nacional é integrada em seu discurso (isto é, através de seus manuais de
agressão, e que já não se manifestariam através da invasão a um território, formação), tais influências resultam evidentes. Como já foi mencionado,
mas uma nova ocupação: as mentes desprotegidas das pessoas. Desta maneira, a doutrina da segurança nacional se encontra envolvida em quatro concei-
a noção de defesa, compreendida sempre como proteção a um determinado tos: a) os objetivos nacionais, b) a segurança nacional, c) o poder nacional
espaço (território), seria insuficiente também para dar conta do novo fenô- e d) a estratégia nacional 2090. Se se fizer uma análise desde o ponto de
meno da guerra revolucionária. Nas palavras de ARRUDA, “verificou-se que vista dos objetivos nacionais, a doutrina da segurança nacional equipara
não basta a simples DEFESA, mas seria necessário algo mais eficiente. Surgiu, a guerra à política. E, neste sentido, a finalidade da guerra acaba sendo
pois, a noção de SEGURANÇA, encarada como um estado de alerta, de pre- a mesma da política2091. Natural que então, como corolário lógico, a po-
venção, de consciência do perigo”2084. O resultado da estratégia de combate lítica acabe se encontrando inserida em um sistema que relaciona meios
à guerra revolucionária foi a dispersão da doutrina da segurança nacional por e fins2092, ou seja, a sua perspectiva instrumental. Como condutores do
todos os aspectos da vida social e política da população. Os militares, assim, processo, caberia à elite definir os rumos a serem tomados2093.
começaram a se interessar pela vida cívica e especialmente pela sua função No plano das estratégias em meio à guerra revolucionária, assumiria
na construção nacional2085. Esta mais ampla participação militar nos campos vital importância o aspecto psicossocial do poder nacional. Nesse sentido,
da vida civil ajudaria os militares a ganhar a legitimidade que em outros restam poucas dúvidas de que a Escola Superior de Guerra era de fato,
períodos eles próprios não vislumbravam. Segundo STEPAN, isto se deve quem criava e articulava as estratégias de dominação psicossocial do regime
fundamentalmente às ideias lançadas pela Escola Superior de Guerra. Quando civil-militar brasileiro. Tomando como finalidade atingir a mentalidade das
a crise institucional começou a se agravar, certo número de oficiais começou pessoas e especificamente, a partir da introjeção de determinados valores
a sentir que possuíam a estratégia mais adequada e realista para fazer o país e ideais caros à ideologia da segurança nacional, o aparato psicissocial de
se desenvolver, contando, para isso com os tecnocratas mais capacitados2086. dominação ganharia enorme relevância. Ao lado das estratégias propria-
A noção de segurança nacional encontrará abrigo na noção de poder, mente militares, e das concepções de política (uma concepção decisionista)
uma categoria central ao discurso esguiano. No discurso oficial da Escola e econômica (abertura de mercado), o poder psicossocial encontraria es-
Superior de Guerra, a “segurança nacional é a garantia de que a nação, pecialmente na Escola Superior de Guerra um locus de formação da elite
por meio de ações políticas, econômicas, psicossociais, militares e cien- dirigente2094. Na base do discurso da Escola Superior de Guerra se encontra
tífico-tecnológicas supera os antagonismos à conquista e à manutenção
2089. MIYAMOTO, Shiguenoli. Escola Superior de Guerra: mito e realidade. In Revista de Ciências Sociais.
dos objetivos nacionais”2087. Portanto, o discurso da segurança nacional v. 2. n.1. Porto Alegre, 1988. p. 78.
2090. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
mobiliza e interage com os diversos conceitos empregados pela Escola Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 50.
Superior de Guerra, desde os objetivos nacionais às dimensões do poder 2091. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 50.
nacional2088. Segundo MIYAMOTO, a doutrina da segurança nacional 2092. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 50.
2084. ARRUDA, Antônio de. A Escola Superior de Guerra. 2 ed. São Paulo: GRD: Instituto Nacional do 2093. GIANNASI, Carlos Alberto. A Doutrina da Segurança Nacional e o “Milagre Econômico” (1969-1973).
Livro, 1983. p. 05. Tese de Dutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. p. 129. Vejamos o que afirma Alfredo
Buzaid sobre a ESG: “onde há duas décadas, pelo estudo dos problemas brasileiros, se prepara uma elite
2085. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 204. de intelectuais e dirigentes do país, iluminando-os pelo saber e pelo devotamente à Pátria”. BUZAID,
2086. STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires: Amorrortu, 1974. p. 205. Alfredo. O Estado Federal Brasileiro. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1971. p. 41. Ain-
2087. Escola Superior de Guerra. Fundamentos Doutrinários. Rio de Janeiro: ESG, 1995. p. 107. da: “contra a ideia de liberdade para a prática do mal opõe a Revolução a ideia de liberdade para manter
2088. Vejamos o que afirma BUZAID: “o objetivo da Revolução, ao disciplinar a liberdade individual, não é o a ordem e promover o bem comum”. Ibidem. p. 41.
de limitar o uso legítimo senão o de organizá-la em função da segurança nacional”. BUZAID, Alfredo. 2094. SANTOS, Everton Rodrigo. Ideologia e Dominação no Brasil (1974-1989): um estudo sobre a Escola
Rumos Políticos da Revolução Brasileira. Brasília: epartamento de Imprensa, 1970. p. 41-42. Superior de Guerra. In Sociedade e Estado. v. 22. n. 1. Brasília, 2007. p. 164.
598 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 599

claramente que a elite é a responsável pela condução do destino nacio- professores da Universidade de São Paulo e também de outras universidades
nal2095. Neste ponto, a doutrina da segurança nacional conseguiu realizar a foram “aposentados” em maio de 1969 (como por exemplo Florestan FER-
façanha de unificar o elitismo político, que adquiria expressão máxima na NANDES, Fernando Henrique CARDOSO e Octavio IANNI)2102. Além
identificação dos objetivos nacionais, com a domesticação do pensamento, disso, em 1969 criou-se uma nova disciplina para “promover o patriotismo”,
do apequenamento de toda intelectualidade, caracterizando-se pela impo- o curso de Educação Moral e Cívica, cujo material e instrutor deveriam ser
sição da força, o que afinal de contas, garantiria que as finalidades políticas previamente aprovados pelo Estado. Claramente o curso estava modelado
fossem alcançadas, de uma forma ou de outra.2096. Natural que, portanto, de acordo com os preceitos da doutrina da segurança nacional, tendo a ideia
além dos conceitos militares strictu sensu, se manifestassem conteúdos que partido de dentro da Escola Superior de Guerra, para garantir a formação da
produzissem um acoplamento estrutural entre o desenvolvimento econômi- mentalidade de toda uma geração2103.
co e aqueles relativos ao equilíbrio social, tudo dentro de uma perspectiva Tais fundamentos psicossociais seriam os responsáveis pela constru-
militarizada2097, que assumiria as vestes da tecnocracia2098. ção de um sistema discursivo elementar, cuja finalidade seria a de garantir a
Como destaca SANTOS, “altos funcionários da administração pública, supremacia destes valores mesmo em uma democracia. Em outras palavras,
bem como inúmeros parlamentares, freqüentam os cursos da ESG e são futu- garantir a sustentabilidade dos enunciados, mesmo em um regime de demo-
ros “colaboradores” para as lutas no interior do aparelho estatal, não somente cracia tutelar, imunizados ao foro dos debates públicos foi uma das estratégias
para manter o poder militar sobre os civis, mas também para a disputa de adotadas pela Escola Superior de Guerra, o que explica em parte, a pobreza
valores dos indivíduos e dos conhecimentos que podem dar forma e direção epistemológica de seus conceitos, muito embora paradoxalmente, o alto nível
para os negócios do Estado”2099. Não há dúvidas de que a Escola Superior de rendimento e eficiência da catequização de um corpo de subordinados.
de Guerra constituiu, antes e durante a ditadura civil-militar, em um instru- Não há dúvidas de que como estratégia de legitimação, a referência à busca
mento de dominação psicossocial, garantindo a estabilidade ideológica dos pela democracia constituiu um recurso retórico poderoso. Segundo REZEN-
valores do regime, inclusive no campo do ensino superior. A concepção de DE, foi através do recurso à democracia que “seria possível alcançar, segundo
educação, nos termos da doutrina da segurança nacional, faria irradiar, nos os seus condutores, adesão e aceitabilidade para as medidas políticas, econô-
cursos e nas demais atividades pedagógicas, o conservadorismo e o auto- micas e militares”2104. Segue a autora afirmando: “a estratégia de legitimação
ritarismo2100. Como acentua MANSAN, “a militarização, entendida como do regime através de um suposto ideário de democracia assentava-se nos
‘transferência do ethos militar para o processo de decisão’ (Mathias, 2004, p. fundamentos psicossociais desenvolvidos pela ESG como um instrumento
188) foi uma das principais funções de controle social cumpridas pela ação de ação fundamental para resolver o problema da segurança nacional”2105.
formativa da ESG com membros do campo do ensino superior”2101. Setenta Portanto, percebe-se claramente que o uso retórico da expressão democracia

2095. MIYAMOTO, Shiguenoli. Escola Superior de Guerra: mito e realidade. In Revista de Ciências Sociais.
v. 2. n.1. Porto Alegre, 1988. p. 82. 2102. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 168.
2096. SCHINKE, Vanessa. Judiciário e Autoritarismo: estudo comparado entre Argentina e Brasil. In Revista 2103. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 168.
da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. n.67. Belo Horizonte, 2015. p. 696. Segundo o autor, “a lei definia o programa como destinado a “defender os princípios democráticos
pela preservação do espírito religioso, da dignidade do ser humano e do amor à liberdade, como res-
2097. GIANNASI, Carlos Alberto. A Doutrina da Segurança Nacional e o “Milagre Econômico” (1969-1973). ponsabilidade sob a inspiração de Deus”. Destinava-se também a promover “obediência à lei, dedica-
Tese deDutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. p. 110-11. ção ao trabalho e integração na comunidade”. Todo o material de ensino tinha que ter a aprovação do
2098. “A visão do problema nacional do país como passível mais de solução técnica que de política faz da governo, que estimulava a produção de um amontoado de volumes medíocres com histórias de heróis
visão da Escola Superior de Guerra, neste ponto, uma defensora convicta da tecnocracia”. GIANNASI, e a discussão de problemas (certamente legítimos porém, o que é mais importante, seguros), como
Carlos Alberto. A Doutrina da Segurança Nacional e o “Milagre Econômico” (1969-1973). Tese deDu- a necessidade de mais projetos hidrelétricos e mais tecnologia. Do ginásio para cima, muitos alunos
torado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011.p. 204. consideravam o curso uma pilhéria, mas seu conteúdo oferecia uma pista de como o governo militar
2099. SANTOS, Everton Rodrigo. Ideologia e Dominação no Brasil (1974-1989): um estudo sobre a Escola desejava definir o futuro do Brasil”. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. 7 ed. Rio
Superior de Guerra. In Sociedade e Estado. v. 22. n. 1. Brasília, 2007. p. 161. de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 169.
2100. MANSAN, Jaime Valentim. A Escola Superior de Guerra e a Formação de Intelectuais no Campo da 2104. REZENDE, Maria José de. A Ditadura Militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade (1964-
Educação Superior no Brasil (1964-1988). In Revista Brasileira de Educação. v. 22. n. 70, 2017. p. 845. 1984). Londrina: EDUEL, 2013. p. 44.
2101. MANSAN, Jaime Valentim. A Escola Superior de Guerra e a Formação de Intelectuais no Campo da 2105. REZENDE, Maria José de. A Ditadura Militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade (1964-
Educação Superior no Brasil (1964-1988). In Revista Brasileira de Educação. v. 22. n. 70, 2017. p. 845. 1984). Londrina: EDUEL, 2013. p. 41.
600 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 601

não é algo novo. Como elemento estratégico, ela foi usada para garantir a nacional atravessaria distintos regimes políticos. As bases conceituais desta
perpetuação da ideologia da segurança nacional, sem prejuízo de revestir uma noção pobre de democracia, que indicaria na Constituição uma “transição”,
perspectiva formalista e vazia da democracia, o que em última instância au- não rompeu definitivamente com os postulados da doutrina da segurança na-
xiliava na sedimentação das várias expressões do poder nacional, imunizando cional. Assim como a militarização da segurança pública, não se pode perder
virtualmente a doutrina da segurança nacional de ataques dirigidos contra de vista o processo de militarização do poder judiciário2109.
si. Segundo MIYAMOTO, “a palavra democracia está sempre associada ao Portanto, a denominada “transição democrática”, alimentou a instalação
binômio segurança e desenvolvimento, o que remete, por sua vez, à Doutrina da ideologia da segurança nacional nos diferentes corpos políticos, produzin-
da Segurança Nacional, e ao papel que as elites devem exercer para que os Ob- do uma militarização profunda das instituições políticas e judiciárias. Como
jetivos Nacionais sejam alcançados, via fortalecimento do Poder Nacional”2106. assevera BATISTA, “o Brasil se policizou intensamente a partir da “transição
A ressignificação dada ao conceito de democracia, pela Escola Superior democrática”. É como se uma cultura punitiva de longa duração se meta-
de Guerra, permitira uma associação que já se encontrava na base do binô- morfoseasse indefinidamente”2110. De acordo com TEIXEIRA, o processo
mio segurança nacional e desenvolvimento. O regime democrático, para o de “transição democrática” não se deu como uma forma de se romper com o
discurso da Escola Superior de Guerra, seria aquele da liberdade de empresa, governo militar, mas foi a maneira adotada para se conter a abertura demo-
da livre concorrência (que formará a nova subjetividade neoliberal, a do ho- crática, de forma distendida no tempo. Dar continuidade à dominação dos
mem-empresa, como identificarão DARDOT e LAVAL2107). Evidentemente, militares na política interna brasileira mesmo com o fim declarado da ditadura
se esta é a premissa de partida, para a Escola Superior de Guerra, o comunis- era (e foi) o seu objetivo, plenamente bem sucedido2111.
mo e a guerra revolucionária serão os inimigos a ser combatidos (lógica da
A doutrina da segurança nacional e a sua ideologia, ao operar com a
bipolaridade inerente ao período da Guerra Fria). Assim, a segurança nacional
guerra revolucionária, tratou de equalizar o inimigo interno e o externo.
(democrática, pois representante do modelo capitalista) contra a barbárie
Suprimida a ameaça do comunismo, as instâncias políticas e judiciárias vol-
comunista permitiu, que no período da ditadura (1964-1985), se declarasse
taram as suas atenções para o criminoso comum, tomado, então, como o
que os princípios democráticos foram garantidos no intervalo do regime de
novo inimigo. As diversas campanhas de pânico moral, a identificação do
exceção. Isto é particularmente verdadeiro para o discurso esguiano, pois as
traficante de drogas como a mais perigosa classe de deliquente, tornando
garantias da propriedade privada dos meios de produção e as da livre econo-
necessária a instalação de uma política criminal de drogas belicista são alguns
mia de mercado não haviam sido anuladas ou inviabilizadas2108.
dos desdobramentos da ideologia da segurança nacional, que deixou o plano
Uma democracia compreendida como uma manifestação da livre con- da criminalidade política e se instalou em distintas figuras delitivas2112.
corrência e da liberdade de mercado não poderia deixar de produzir reflexos
A ideologia da segurança nacional, portanto, de maneira induvidosa se
no seu empobrecimento e em sua fragilização política. A ideologia da segu-
instalou na percepção e enfrentamento do crime pelas agências estatais2113. A
rança nacional insuflou os ventos da militarização, que atingiram os mais
distintos aspectos da vida social. A própria recepção da polícia militar na 2109. ZAVERUCHA, Jorge. Frágil Democracia e Militarização do Espaço Público no Brasil. Disponível
Constituição de 1988 como uma “força de reserva” das forças armadas indica em http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/23-encontro-anual-da-anpocs/gt-21/gt21-15/
5023-jzaverucha-fragil/file. Acesso em 22.04.2017. p. 02.
que a fragilíssima compreensão da democracia, haurida na lógica da bipola- 2110. BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
p. 114.
ridade relativa à guerra revolucionária e à projeção da ideologia da segurança 2111. TEIXEIRA, Helder Bezerra. Geisel, os Militares e o Projeto Distensionista: transição para a democracia
ou continuismo da ingerência militar na política brasileira? Dissertação de Mestrado. Recife: Universi-
2106. MIYAMOTO, Shiguenoli. Escola Superior de Guerra: mito e realidade. In Revista de Ciências Sociais. dade Federal de Pernambuco, 2001.
v. 2. n.1. Porto Alegre, 1988. p. 81. 2112. Sobre a política da guerra às drogas e o extermínio de pessoas ligada à tal política, imprescindíveis
2107. “O momento neoliberal caracetriza-se por uma homogeneização do discurso do homem em torno da os textos de VALOIS, Luis Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. 2 ed. Belo Horizonte:
figura da empresa”. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a D’Plácido, 2017; ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida: a desconstrução do sistema penal. Rio de
sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p 326. Janeiro: Revan, 2015.
2108. DUARTE, Luiz Claudio. A Escola Superior de Guerra e o Discurso Democrático. In Diálogos. v. 18. n. 2113. “A análise da transição da ditadura para a democracia (1978-1988) levou à percepção do deslocamento do
01. Maringá, 2014. p. 170. inimigo interno para o criminoso comum que permitiu que se mantivesse intacta a estrutura de controle
602 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 603

percepção da segurança pública nos mesmos moldes dos conflitos armados2114 à Escola Superior de Guerra e à formação da ideologia da segurança nacio-
tem autorizado a reprodução ideológica da doutrina da segurança nacional nal. Não se pode perder de vista que tal discurso e as formações enunciativas
na “transição democrática”2115. A articulação em torno da noção de segurança que este registro produz, mesmo que seja o resultado de um contexto geopo-
nacional, portanto, atualiza o discurso da Escola Superior de Guerra. Estando lítico diverso, foram sendo paulatina e progressivamente preparadas, através
o inimigo ao mesmo tempo dentro e fora do país, já não mais existe diferen- de preceitos esguianos, para atravessar os mais distintos regimes políticos.
ça entre forças armadas e polícia (de acordo com a Constituição de 1988, A debilidade genética da noção de democracia, tal como construída pela
realmente, a diferença não existe, pois o que se tem é uma “estrutura militar Escola Superior de Guerra, autoriza portanto a falar-se em uma “transição
fazendo o papel de polícia”2116). De uma maneira geral, a atuação do sistema democrática”. Contudo, como operador de mudança fraco, o cenário de
penal será equivalente à da guerra preventiva2117, não conhecendo quaisquer uma “transição” franqueou espaços para que os processos de alastramen-
espécies de limites. Por fim, evidentemente que a segurança não conhece to da lógica militarizada (ou de uma governamentalidade securitizada) se
nenhum limite. Funcionando na mesma lógica do capital, o próprio sistema mantivessem intactos. O acoplamento estrutural entre segurança e desen-
penal produz uma “mais-valia punitiva”2118. Como acentua COMBLIN, “o volvimento foi uma estratégia fundamental neste processo de ressignificação
desejo de segurança tende a ser, em si, ilimitado. Tende espontaneamente para da ideologia da segurança nacional, que aparece atualmente, abrigada no
o absoluto”2119. É assim que, no plano da política interna, as garantias cons- jargão segurança urbana ou cidadã2121.
titucionais não configurarão óbice algum às formas punitivas. A segurança A atuação do sistema criminal em sintonia com as políticas neoliberais,
nacional, não conhecendo o limite, mormente o constitucional, tende para a a manutenção de uma segurança pública militarizada (e que atravessa todo o
destruição das barreiras que impedem o seu avançar. Novamente de acordo corpo de agentes públicos, da polícia ao judiciário), os discursos de legitimação
com COMBLIN, “a segurança é constitucional ou anticonstitucional; se a do sistema punitivo através de cruzadas morais constituem o cenário no qual
Constituição a atrapalha, muda-se a Constituição”2120. então, deve atuar o processo penal. A parelha segurança-desenvolvimento, que
Neste tópico foram examinados apenas alguns elementos concernentes no campo penal pode ser lida como neoliberalismo e repressivismo puniti-
vo, dispensa, logicamente, a racionalidade jurídica. Disso já demonstrou com
social e mais investimentos na ‘luta contra o crime’. As campanhas maciças de pânico social produziram acerto insuperável Franz NEUMANN em seu capolavoro Behemoth2122.
um avanço sem precedentes na internacionalização do autoritarismo”. BATISTA, Vera Malaguti. O Medo
na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 35.
2114. A lógica da militarização que tem funcionado inclusive como ocupação de territórios inimigos, espe-
Sendo o processo penal um ramo do direito e conectado até as suas
cialmente no Rio de Janeiro, através das Unidades de Polícia Pacificadora indica claramente o reforço entranhas com o militarismo que governa as relações estabelecidas pelo
da lógica da segurança nacional. Cf VALENTE, Júlia. UPP’s: governo militarizado e a ideia de pacifi-
cação. Rio de Janeiro: Revan, 2016; Cf GRANJA, Patrick. UPP: o novo dono da favela. Rio de Janeiro: campo da segurança pública, a perspectiva instrumentalista de processo
Revan, 2015. De forma ainda mais ampla, GRAHAM indicará o surgimento de um novo urbanismo
militar. GRAHAM, Stephen. Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016. logrou êxito em legitimar o processo, por mais de duas décadas, desde fun-
2115. “Com a incorporação dos postulados da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no sistema de segurida-
de pública a partir do Golpe de 1964, o Brasil passa a dispor de modelo repressivo militarizado centrado ções extraprocessuais. O discurso instrumentalista foi o responsável pela
na lógica bélica de eliminação/neutralização de inimigos. A estruturação da política de drogas requeria, conexão entre o velho liberalismo autoritário tecnicista e as funções po-
portanto, reformulação: ao inimigo interno político (subversivo) é acrescido o inimigo interno político-
-criminal (traficante). Categorias como geopolítica, bipolaridade, guerra total, adicionadas à noção de lítico-criminais a ser desempenhadas pelo processo (penal), produzindo a
inimigo interno, formatam o sistema repressivo que se origina durante o regime militar e se mantém no
período pós-transição democrática”. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil necessária convergência do aparato linguístico do velho autoritarismo em
(estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06). 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 21-22.
2116. ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civis-Militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988.
In TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir. O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 53. 2121. “A Doutrina da Segurança Nacional – hoje no estágio da segurança urbana e seus inimigos fantasmáti-
cos – estendeu-se até a segurança econômica, regida todavia pela mesma lógica do Estado de sítio po-
2117. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de lítico: salvaguardados os mecanismos básicos da acumulação, todos os riscos do negócio recaem sobre
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 56. uma população econômica vulnerabilizada e agora, consumado o aprendizado do medo, desmobilizável
2118. AMARAL, Augusto Jobim. A Ostentação Penal. In AMARAL, Augisto Jobim; ROSA, Alexandre Mo- ao menor aviso de que a economia nacional se encontra à beira do precipício, pelo qual certamente des-
rais da. Cultura da Punição: a ostentação do horror. 3 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p.13. pencaria não fosse a prontidão de um salvador de última instância, munido, é claro, de plenos poderes”.
2119. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de ARANTES, Paulo Eduardo. 1964, o Ano Que Não Terminou. In TELES, Edson; SAFATLE, Wladimir.
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 57. O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 228.
2120. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de 2122. NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and Practice of National Socialism. 2 ed. New York: Ox-
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 56. ford University Press, 1944.
604 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 605

uma função democrática e constitucional. Se atentarmos para o número 4.7. ABANDONAR A INSTRUMENTALIDADE, REPENSAR
de mortes violentas no último ano, chega-se ao impressionante número de O PROCESSO PENAL
61.619 pessoas mortas. Destas, 4.224 perderam suas vidas em ações po-
Chegando quase ao final deste ensaio, algumas questões devem ser
liciais (76 % negros), assim como 437 policiais civis e militares perderam
pensadas para que se possa autenticamente projetar um processo penal de-
suas vidas em 2017 (56% também negros). Além disso, o 11º Anuário
mocrático. O primeiro passo, cremos, deve partir da própria doutrina e do
Brasileiro de Segurança Pública indica que houve aumento de 292% no
ensino jurídicos, que devem prestar contas do pensamento e do envolvimento
número de profissionais usados na força nacional, indicando claramente
de notáveis personalidades na construção das pontes de continuidade entre o
a penetração cada vez mais incisiva de lógicas bélicas no conflito com os
velho discurso autoritário e o novo, ressignificado.
inimigos internos. A curvatura do índice de prisionização brasileira (que
tem cerca de 726.712 pessoas de acordo com os dados do Infopen 2017), O objetivo da investigação não é centralizar críticas em determinado
somado ao altíssimo índice de letalidade policial (4.224 pessoas mortas modo de se pensar ou se conceber o processo penal. Muito menos ainda a
em ações policiais) ajuda a se compreender o fenômeno do enraizamento de “reformar” um sistema amparado substancialmente em categorias anti-
da ideologia da segurança nacional. Em números brutos, o Brasil ocupa o democráticas. Portanto, o objetivo é contribuir para que surja uma teoria
terceiro posto no números de pessoas presas ( de acordo com o World Prison processual penal despida da herança autoritária, que no processo penal
Brief)2123, com vigésima nona posição na quantidade de presos por cem mil nos chega desde a Itália, aqui é recepcionada e por diversas oportunidades
habitantes (318 presos por cem mil)2124. reformulada, rectius, ressignificada. Portanto, somente conhecendo a fundo
as relações mais intestinais entre doutrina e política é possível eleger quiçá,
A análise da relação entre a Escola Superior de Guerra e a ideologia
um novo caminho para se seguir.
da segurança nacional foi importante para identificar que a perspectiva ins-
trumentalista é manifestamente antidemocrática, autoritária e militarizada. Segundo uma tradicional narrativa, o pensamento processual penal brasi-
Abandoná-la é uma condição essencial para uma experiência democrática leiro teria conseguido se manter em sintonia com o sistema acusatório, mesmo
que não constitua uma emulação dos velhos traços da doutrina da segurança diante das inúmeras convulsões políticas pelas quais o país atravessou. Estas
nacional, ressignificados e vendidos para uma parcela significativa de estu- narrativas, que relembram os velhos mestres apenas para oferecer lisonjas, que
diosos do processo como uma perspectiva “democrática”. Tal perspectiva enaltece um saber “modernizador”, capaz de produzir a “cientificização” do
é tão democrática quanto a própria ideia de jurisdição como poder, e de processo penal brasileiro foi reponsável por deixar à míngua as reais lutas polí-
todos os seus correlatos derivativos. Em síntese, a pretensão deste tópico ticas, as participações, nem sempre iluminadas ou democráticas, muitas vezes
foi demonstrar que a ideologia da segurança nacional, construída com a inclusive, criminosas de certos intelectuais. Podemos discutir – reproduzindo
participação decisiva da Escola Superior de Guerra, atravessa, de forma a clássica e conservadora teoria do “freio” -, se as participações destes juristas
muitas vezes velada, de outras mais explícita, todo o discurso em torno da podem ser separadas de seu legado acadêmico. Contudo, não se pode perder
instrumentalidade do processo. Além disso, procurou-se demonstrar como de vista as influências destes autores, os seus discursos, como se localizavam
foi construída e projetada a doutrina da segurança nacional, ainda ativa e politicamente e, sobretudo, que espécie de lições podemos tirar de seus ensi-
resquício indelével de uma perspectiva sócio-política de esmagamento da namentos. Fato é que esta narrativa oficial, que escamoteia a “parte obscura”
diferença, autoritária por excelência e antidemocrática desde o seu DNA. destes pensadores, sinaliza unidirecionalmente, como se os grandes mestres e
nomes do processo penal, tivessem estado sempre no front de batalha por um
2123. Disponível em http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_ processo em sintonia com ideias que valorizam o ser humano. Jamais apoiando
taxonomy_tid=All. Acesso em 16.09.2017. Ressalte-se que a análise deste instituto se baseia nos núme- regimes de exceção. Contudo, a biografia de grande parte deles, depõe contra
ros fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, que são diversos daqueles do Infopen, mais atuais.
2124. Disponível em http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison_population_rate?field_region_ esta forma de se apresentar a história brasileira do processo penal. Há uma
taxonomy_tid=All. Acesso em 16.09.2017. Também com base nos números fornecidos pelo Conselho
Nacional de Justiça. forte conexão entre o pensamento autoritário e as maneiras como se constitui o
606 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 607

pensamento processual penal brasileiro2125. As categorias processuais e as formas Aliás, BUZAID, que posteriormente inclusive foi ministro do STF, não
de se construir um discurso processual penal não deixam muitas dúvidas da apenas conhecia as práticas de tortura realizadas nos porões da ditadura, mas
penetrabilidade do discurso processual penal italiano. foi responsável pela elaboração de um documento que, encarnando a razão
Tomemos como exemplo, unicamente para escorar o argumento acima, cínica, negou tais práticas2130 veeementemente aos organismos internacionais.
o pensamento de Alfredo Buzaid, que foi Ministro da Justiça na Ditadura Prova disso são so depoimentos dos sobreviventes, um deles, asseverando
Civil-Militar de 1969 a 19742126 e se empenhou profundamente em levar que BUZAID chegou a visitar os porões do DOI-CODI (Destacamento de
adiante a legislação na qual estava baseada a “revolução”2127. Especialmente Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna)2131. A
este último, considerado um dos grandes processualistas brasileiros, contribuiu inspiração autoritária de BUZAID, além de poder ser constatada a partir de
de forma persistente, ubíqua (em diversas ocasiões e cenários, sendo também sua atuação política propriamente dita (como Ministro da Justiça e como
reitor da Universidade de São Paulo e ali exercendo uma cruzada contra in- reitor da USP), pode também ser constatada em seus escritos técnicos. Para
telectuais que não albergavam as ideias do regime) e incisiva, na supressão da ilustrar, basta analisar-se o opúsculo Em Defesa da Moral e dos Bons Costumes,
democracia brasileira, muito embora seja significativamente homenageado e em que recorre aos pensadores do fascismo italiano para elaborar categorias,
saudado2128, especialmente pela sua produção processual. BUZAID sinteti- percorrendo BUZAID, o reacionarismo de Vincenzo MANZINI e Giuseppe
za exatamente toda a forma de construção de uma narrativa liberalizante e MAGGIORE2132 (assim como vários intelectuais brasileiros).
democratizante de nossos intelectuais, mormente aqueles que se podem in- Retomando a perspectiva instrumentalista, grande parte de seus aspec-
serir como componentes da nossa história processual. O modelo de narrativa tos fundamentais, além de estar assentados em premissas muito próximas
obnubila as relações políticas, como se o produto do pensamento se desse a daquelas oriundas da doutrina da segurança nacional, partem do pressuposto
partir de uma cláusula ceteris paribus, ou seja, jamais se questionando sobre as assente de que o processo não é um simples instrumento de discussão de
interferências políticas na construção de determinada forma de se pensar2129. direitos, ligados à esfera privada, expressão de “técnica e dialética”2133. Neste
ponto, novamente pode-se trazer à colação o pensamento de BUZAID, que
2125. Por exemplo Mário PESSOA, que elabora uma obra de grande impacto na eleboração da Doutrina da sustenta que o processo “é o instrumento que o Estado põe à disposição
Segurança Nacional dedica o livro a ninguém menos do que Alfredo BUZAID e José Frederico MAR-
QUES. Cf PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: Biblioteca dos litigantes para a realização da justiça. Esse é o primeiro fenômeno de
do Exército: Revista dos Tribunais, 1971.
2126. Alfredo Buzaid: biografia. In BUZAID, Alfredo. Estudos e Pareceres de Direito Processual Civil. São
repercussão na ideia do Estado Democrático”2134. Ora, correspondendo o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 11. Saliente-se que Cândido Rangel DINAMARCO inclusive foi
assessor do Ministro da Justiça Alfredo BUZAID. Cf ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e Reforma
do Judiciário: os especialistas em direito processual e as reformas da justiça no Brasil. In Revista Brasi- 2130. “O trabalho que se segue foi elaborado com o objetivo de propiciar à Comissão Interamericana de Direitos
leira de Ciência Política. n. 17. Brasília, 2015. p. 225. Humanos vasta documentação sobre todos os aspectos da tenebrosa campanha difamatória injustamente
2127. Segundo o general Augusto FRAGOSO, sobre a atuação de Buzaid: “na tarefa de preparação dos novos desencadeada contra o Povo e o Governo do Brasil, no momento exato em que este País colhes os frutos
códigos em que se empenha profundamente a Revolução, sua atuação tem sido prepoderante”. FRA- da renovação política e do desenvolvimento econômico e social que lhe trouxe a Revolução Democrática
GOSO, Augusto. Discurso de Saudação. In Marxismo e Cristianismo (o problema do ateísmo). Brasília: de 31 de Março de 1964”. BUZAID, Alfredo. Livro da Verdade. Brasília: Divisão de Segurança e Informa-
Departamento de Impensa Nacional, 1970. p. 13. ções do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1970 . p. 01. Ainda, no Título I, Capítulo I chamado
“Não Há Presos Políticos no Brasil”: “a opinião pública mundial tem sido errôneamente informada a res-
2128. “Assim, adiantamos que, após a autorreforma da autocracia brasileira bonapartista constitucionalizada peito do tratamento que estão recebendo no Brasil aqueles que praticam atos de terrorismo ou de subver-
pela Carta Política de 1988 e seu Estado Democrático de Direito, Buzaid permanece vivo, como nunca, são. Jamais foi presa ou processada qualquer pessoa que tenha manifestado ideias políticas contrárias ao
saudado nos bancos escolares como Mestre da Nova Escola de Direito Processual; não mais paulista, Govêrno ou que, no exercício da liberdade de profissão ou de associação para fins lícitos, tenha tomado
mas brasileira”. MACHADO, Rodolfo Costa. Alfredo Buzaid e a Contrarrevolução Burguesa de 1964: posição oposta à sustentada por qualquer órgão ou repartição oficial”. Ibidem. p. 01-02.
crítica histórico-imanente da ideologia do direito, da política e do Estado de Justiça. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: PUCSP, 2015. p. 745. 2131. “Outro professor, Professor Buzaid, que foi Ministro do Supremo Tribunal Federal, chegou até a fa-
zer visita aos porões do DOI-CODI”. BIERRENBACH, Flávio Flores da Cunha. In SPIELER, Paula;
2129. “Após o golpe de 1964, projetou-se Buzaid meteoricamente como novo diretor da FDUSP em 1966 QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Advocacia em Tempos Difíceis: ditadura militar 1964 – 1985.
e, depois do “golpe dentro do golpe” desferido por um triunvirato da Junta Militar, transformou-se
Buzaid em reitor interino da USP, tornando-se na sequência Ministro de Justiça do terrorismo de Es- 2132. Cf BUZAID, Alfredo. Em Defesa da Moral e dos Bons Costumes. Brasília: Departamento de Imprensa,
tado brasileiro, época que cogestou a campanha de desmentido oficial dps crimes de lesa-humanidade 1970. p. 21-22. Cf MACHADO, Rodolfo Costa. Alfredo Buzaid e a Contrarrevolução Burguesa de
praticados pelos agentes da ditadura militar bonapartista”. MACHADO, Rodolfo Costa. Alfredo Buzaid 1964: crítica histórico-imanente da ideologia do direito, da política e do Estado de Justiça. Dissertação
e a Contrarrevolução Burguesa de 1964: crítica histórico-imanente da ideologia do direito, da política e de Mestrado. São Paulo: PUCSP, 2015. p. 168.
do Estado de Justiça. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUCSP, 2015. p. 21. Segundo MACHADO, 2133. BUZAID, Alfredo. Um Sonho que se Realiza. Como Nasceu a Revista. In Revista de Direito Processual
“como diretor da FDUSP a partir de 1966, Buzaid serviu draconiamente ao controle político e colabo- Civil. a. 1. v. I. São Paulo: Saraiva, 1960. p. 06.
rou no expurgo dos considerados “maus elementos” em toda a USP, despontando como ícone de triste 2134. BUZAID, Alfredo. Democracia y Proceso. In Revista de la Facultad de Derecho de México. t. XX. n.
memória do chamado “terrorismo cultural”. Ibidem. p. 67. 77-78. México D.C: Universidad Autónoma de México, 1979. p. 882.
608 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 609

processo a um mero elemento de administração de justiça, a sua transfor- uma pilastra do instrumentalismo:
mação em palco político e consecução dos fins estatais sobressai de maneira “Entre os extremos do liberalismo político do século XIX e das ditaduras do
cristalina. Não é à toa que a doutrina da segurança nacional estará amparada proletariado do século XX nasce um novo regime, conhecido por democracia
em uma concepção instrumental de poder e da realização de seus objetivos, social. Diante da pregação marxista, que considera a luta de classes com a
consoante demonstrado quando da análise do discurso da Escola Superior causa primordial da exploração dos trabalhadores, verificaram os publicis-
tas, filósofos e pensadores que, não sendo possível salvar a liberdade em sua
de Guerra2135. A supremacia do fato político2136 sobre todas as outras esferas pureza originária, era necessário salvar pelo menos a democracia. Já lem-
corresponde, inclusive, à perspectiva funcionalista que atravessa o discurso bramos que a primeira grande paixão da democracia fora a liberdade. Mas
da Escola Superior de Guerra, novamente coincidindo com alguns critérios uma paixão se substitui por outra. A concepção individualista dos direitos
orientativos do instrumentalismo: “o Sistema Político é funcional na medida humanos, diante dos tremendos sucessos dos últimos cem anos, foi cedendo
lugar a uma concepção dos direitos sociais”2140.
em que as demandas da sociedade são respondidas com decisões ou parâme-
tros de decisão, que sejam acolhidas pelo ambiente social com um razoável No mesmo sentido são as palavras de Miguel REALE:
grau de satisfação”2137. No campo do desenvolvimento do discurso da Escola “tenho dúvida de que igual sentido de equilíbrio e de composição, a salvo
Superior de Guerra, a noção de segurança se equipara, verdadeiramente, a de modelos ideais irrealizáveis, norteará a fixação dos demais elementos
uma linguagem (bélica), apta a codificar as suas relações e permear todo o institucionais da democracia brasileira, que já foi incluída na categoria das
“democracias sociais” Equivocam-se aqueles que, ancorados em protótipos do
universo processual penal, consoante já referido2138. passado, pretendem ver antidemocracia ou pseudodemocracia toda vez que
Além das críticas já tecidas no tópico anterior, não se pode perder de se acrescenta o qualificativo “social” ou “econômica” à palavra “democracia, a
vista que parte da aceitabilidade da perspectiva instrumentalista repousa na qual seria bastante por si mesma. Nenhuma adjetivação da “democracia”, aos
olhos de tais saudosistas, seria válida, exceto a “liberal”, de sua preferência”2141.
precária compreensão, compartilhada por imenso setor doutrinário, dos sig-
nificados assumidos pelo Estado de Bem-Estar Social2139. Vale a pena trazer No caso de DINAMARCO, o sistema processual é torcido em direção ao
aqui as lições de BUZAID, que ilustram perfeitamente como a perspectiva que o autor concebe como “efetividade do processo”2142. Todavia, tais orienta-
“social” do direito está na base da fundamentação que oportunamente será ções, feitas de forma indistinta aos campos civil e penal (base de uma teoria geral
do processo), faz do juiz um ator político, “com forte influência da superada Fi-
2135. PESSOA, Mário. O Direito da Segurança Nacional. Rio de Janeiro: São Paulo: Biblioteca do Exército: losofia da Consciência, deslizando no Imaginário e facilitando o surgimento de
Revista dos Tribunais, 1971. p. 122.
2136. De acordo com BUZAID “a formação de um partido único e a hipertrofia do Estado, que alarga os Juízes Justiceiros da Sociedade”2143. E, assim, este modelo de processo se alinha
seus domínios sobre todos os campos do pensamento, evidenciam que “o fato político” absorve o fato
econômico e o supera. A própria vivência nesses países denota que, acima das conjunturas econômicas facilmente a todo o arquipélago conceitual herdeiro do liberalismo racionário
sujeitas a contínuas variações, está a hegemonia do Estado, que dita regras ao fenômeno social, subor-
dinando-o à política superior do partido dominante”. BUZAID, Alfredo. A Missão da Faculdade de italiano, conjugado em boa medida com a ideologia autoritária brasileira dos
Direito na Conjuntura Política Atual. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
v. 63. São Paulo, 1968. p. 76.
2137. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. v. II. Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra, 2140. BUZAID, Alfredo. A Missão da Faculdade de Direito na Conjuntura Política Atual. In Revista da
2014. P. 35. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 63. São Paulo, 1968. p. 97. Ainda: “Esta nova
2138. “Nos Estados Unidos, a segurança nacional tornou-se uma linguagem: uma linguagem própria a tudo categoria de direitos, denominados direitos sociais, resulta da nova posição o homem, considerado não
o que diz respeito ao Império. A segurança nacional é o valor do qual se fala o tempo todo e que não mais individualmente um em face do outro, mas como titular de direitos em face da sociedade, que tem
precisa ser explicada nem justificada: ela é anterior a toda reflexão ou discussão, o pressuposto do qual por seu turno deveres para com os membros que a integram”. Ibidem. p. 99.
se imagina que todos estejam muito conscientes”. COMBLIN, Pe Joseph. A Ideologia da Segurança 2141. REALE, Miguel. A Experiência Jurídica Brasileira. In Revista da Faculdade de Direito da Universida-
Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 106. de de São Paulo. v. 69. n. 02. São Paulo, 1974. p. 28. Ainda: “Esse modo de ver revela apenas desco-
2139. “É essa evidência que o modismo da “instrumentalidade do processo” camufla, ou conscientemente – nhecimento de que, com o termo “democracia social”, o que se quer significar é uma fase do Estado de
perversidade ideológica, a ser combatida, ou por descuido epistemológico – equívoco a ser corrigido. Direito, o qual deixa de ficar vinculado à “democracia liberal de feitio jurídico-formal, para superá-la,
Ele parece ignorar, ou finge ignorar, o conjunto de fatores que determinaram uma nova postura para o no sentido de uma ordem institucional que possibilite os processos de ação indispensáveis a um Estado
pensar e aplicar o direito em nossos dias, como sejam a crise da razão instrumental, severamente posta que deve interferir, constantemente, na vida econômica, quer supervisionando as atividades privadas,
a nu neste século, os avanços originados pelos estudos semiológicos, a revalorização do político, a quer suprindo-lhes as deficiências, quer atuando ele mesmo como empresário, posta, como já disse, a
partir dos desencantos existenciais recolhidos da experiência do capitalismo tardio e da derrocada do idéia de planejamento no centro da ação política e administrativa”. Ibidem. p. 29.
socialismo real, a crise do Estado de Bem Estar Social e, principalmente, as revoluções que têm sua raiz 2142. ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Demo-
no progresso técnico-científico, acelerado depois da Segunda Grande Guerra Mundial”. CALMON DE crático: crítica à metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 79.
PASSOS, J. J. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. In ________. Ensaios e Artigos. 2143. ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Demo-
v. I. Salvador: JusPodium, 2014. p. 33. crático: crítica à metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 79-80.
610 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 611

anos 30 e posteriormente, já com a guinada economicista (Roberto CAMPOS constitui sua principal característica, que deve ser reconhecida e evitada. Em se
e Eugênio GUDIN), reconfigurado. Desta forma, em que pese toda a tradição tomando como paradigma a doutrina da Escola Superior de Guerra, se cons-
que esta perspectiva tem no direito processual brasileiro, ela não pode ser outra tatará esta mesma maleabilidade conceitual, capaz de se adaptar a distintos
coisa que antidemocrática2144: propõe a desformalização do processo, com o horizontes políticos: “a natureza instrumental da doutrina permitia – como se
consequente abandono do devido processo legal2145, propõe uma espécie de pode observar em sua evolução – mudanças de ênfase e mesmo de conteúdo
desenfrada simplificação processual, ao custo de várias garantias processuais2146, dos conceitos. Eles têm plasticidade e se amoldam a conjunturas novas”2149.
sem falar da hipertrofia dos poderes judiciais2147. Se por um lado a noção de instrumentalidade elevou a níveis impen-
Esta plasticidade da noção de instrumentalidade – adaptabilidade a sáveis os poderes dos juízes – resguardados pela concepção publicística de
diferentes contextos políticos (ao menos no nível de discurso declarado)2148, processo – se verifica, na intransigente retórica que devota espaços cada vez
maiores à politização completa do judiciário – um pretenso discurso “apo-
2144. ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Demo- lítico” a lhe dar sustentação, o que sem dúvidas, é paradoxal. No campo do
crático: crítica à metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 81. No
mesmo sentido CALMON DE PASSOS: “Acreditar-se e dizer-se que o fundamental é a tutela jurídica, processo penal, esta discussão será tratada a partir do ângulo dos sistemas
sendo o processo (prestação de atividade jurisdicional) o acessório é adotar-se postura ideologicamente
perigosa, de todo incompatível com o ganho civilizatório que a democracia representa como forma de processuais penais. Tal fenômeno pode ser constatado no pensamento de
convivência política. CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, Poder, Justiça e Processo: julgando os que
nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 68. BEDAQUE, para quem “a concepção de que o reforço da autoridade do juiz,
2145. Vale a pena transcrever as palavras de CALMON DE PASSOS, que narra experiência pessoal que nos que dá origem ao chamado processo inquisitivo, corresponde a regimes não
dá segurança sobre esta impressão relativamente ao devido processo: “Ouvi de um eminente mestre da
USP, em palestra proferida na cidade de Campinas, que precisamos, em nosso país, libertarmo-nos do democráticos de governo, é absolutamente infundada”2150. Prossegue o autor:
fetiche do devido processo legal, que às vezes opera negativamente em confronto com o valor maior da
efetividade e da celeridade processual, vale dizer, da tutela jurídica. Afirmativa desta natureza preocupa “aquilo que se convencionou chamar de processo acusatório, onde os poderes
duplamente. Ela faz suspeitar haver identidade entre a garantia do devido processo legal e o formalismo
jurídico em detrimento da segurança jurídica, o que é manifestamente falso, sem esquecer que aponta, de iniciativa das partes são levados a extremos, resulta de um individualismo
em verdade, para o endeusamento do arbítrio judicial”. CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, Poder,
Justiça e Processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 69. Cândido Rangel político e filosófico já ultrapassado, pois não atende à realidade socioeconô-
DINAMARCO, responde ao professor baiano, através de uma fórmula já identificada na retórica da
década de 30 e 40, ou seja, a do “equilíbrio”: “recente escrito de Calmon de Passos eleva a níveis exa- mica do Estado moderno, cuja atividade é toda voltada para o social”2151.
gerados o significado da garantia do devido processo legal, ao propor um suposto contraste entre ela e
as modernas conquistas inerentes à instrumentalidade do processo. Descrente dos juízes de sua terra e Este discurso acaba sendo repassado ao processo penal. Um juiz inerte
deste planeta, crê o mestre baiano que essa fulgurante tese seja responsável por uma imensa irresponsa-
bilidade dos magistrados e total falta de confiabilidade do sistema processual, tachando-a de “arma na equivaleria, de acordo com um mantra que percorre esta orientação, a um
mão dos sicários”. Forremo-nos de posturas maniqueístas e não pensemos que todo o bem esteja de um
lado e todo o mal, de outro. A segurança dos litigantes, cultivada pelo due process na medida em que ator político do século XIX, não mais adequado às exigências de um novo
limita os poderes a serem exercidos pelo Estado-juiz, é um valor elevadíssimo, mas não tão elevado ou
absoluto que legitime o esclerosamento, ou engessamento do sistema processual. Seria injusta e depre- Estado intervencionista. Ademais, retira-se do campo de discussão quaisquer
ciativa a esse poderoso instrumento do Estado democrático de direito a afirmação de sua destinação a contornos políticos mais aprofundados (como se verificou no discurso de
aniquilar os anseios por um processo de feição humana, no qual o juiz é constantemente conclamado
a exercer sua sensibilidade ao valor do justo e do socialmente legítimo. Os princípios devem conviver
harmoniosamente na ordem constitucional e na processual, em busca de soluções equilibradas. DINA-
PICÓ I JUNOY). Inclusive TARUFFO se encarregará de alinhar-se à tal
MARCO, Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 15. postura. Assevera o processualista italiano, apesar de países como Estados
2146. Sobre a aceleração processual, Cf GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal. 2 ed. Sal-
vador, JusPodium, 2015. Cf BARONA VILAR, Silvia. Seguridad, Celeridad y Justicia Penal. Valencia: Unidos, França e Alemanha terem introduzido poderes instrutórios ao juiz,
Tirant lo Blanch, 2004;
2147. “Um desses frutos perversos, ou peçonhentos gerados pela “instrumentalidade” foi a quebra do equi-
nem por isso se tornaram países antidemocráticos.
líbrio processual que as recentes reformas ocasionaram. Hipertrofiaram o papel do juiz, precisamente
o detentor de poder na relação processual, portanto o que é, potencialmente, melhor aparelhado para Este argumento é em demasia frouxo e epistemicamente problemático,
oprimir e desestruturar expectativas socialmente formalizadas em termos de segurança do agir humano
e previsibilidade de suas consequências. Privilegiaram, de outra parte, o autor, justamente aquele a
quem cabe o dever ético e político de comprovar o inelutável da sujeição do outro a sua pretensão”.
CALMON DE PASSOS, J. J. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. In ________. sua faceta “negativa”, coincidentemente ou não, com a mesma expressão de ROCCO, de “desflorestar
Ensaios e Artigos. v. I. Salvador: JusPodium, 2014. p. 41. as nulidades”. Ibidem p. 187.
2148. Tome-se como referência as palavras de ONDEI, a justificar o uso dos poderes instrutórios do juiz, 2149. COSTA, Vanda Maria Ribeiro. A Escola Superior de Guerra e a Nova República. In Política e Estraté-
reproduzindo a tese de CARNACINI de que se trata de mera opção ideológica: “o autoritarismo do juiz gia. v. III. n. 2. 1985. p. 263.
não deve ser um fim em si mesmo, mas destinado somente ao controle da recíproca lealdade processual 2150. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais,
e da liberdade do contraditório para garantir a paridade do jogo”. ONDEI, Emilio. Liberalismo o Autori- 1994. p. 75.
tarismo Processuale? In Rivista di Diritto Processuale. v.7. n. 1. Padova: CEDAM, 1952. p. 185. Tem-se 2151. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais,
claramente aqui, um autoritarismo instrumental que coincide vivamente com a instrumentalidade em 1994. p. 75.
612 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 613

pois pressupõe haver uma simetria entre sistema acusatório e inquisitório, uma vez que os Procuradores do Rei (precursor do Ministério Público), eram
com todas as suas correlações políticas. Tal forma de se pensar é simplista e os responsáveis pela propositura da acusação. Outra resultado a que se chega
reducionista. Sem falar que, como adverte BACHELARD, os “obstáculos através da fórmula da separação de funções como critério primordial para se
epistemológicos” sempre andam em pares. A hipótese de que pode haver auferir um modelo acusatório: o código de processo penal mussoliniano – não
convivência entre poderes judiciais e a adoção de um sistema processual de- obstante tudo o que se disse a respeito dele – era acusatório (inclusive este
mocrático é pensada tendo como correlação, de outro lado, a passividade era o discurso oficial, de um processo penal em consonância com a tradição
do juiz em um sistema autocrático. Preliminarmente, deve-se afirmar que a liberal). Como se pode perceber, somente uma concepção vazia de sistema
qualificação de acusatório e inquisitório, recorrentemente tomada a partir da acusatório pode se sustentar em torno deste critério. Evidentemente, se por
separação das atividades das partes, não deve ser tomada de forma heurística um lado não se pode ter um modelo acusatório sem separação de funções
(um modelo tendo exatamente as características reversas do modelo con- obviamente que tal critério é ainda fraco demais para garantir a sua validade.
trário), sob pena de os critérios construídos para identificá-los se tornarem Isso explica, ao menos parcialmente, como e porque a história brasileira do
meramente contrafáticos (isto é, meras ferramentas metodológicas). Ad argu- processo penal, e especialmente o código de 1941, é pensado como inserido
mentandum tantum, tomemos como verdadeira a hipótese da possibilidade de dentro de “nossa tradição liberal”.
um juiz ativo em um sistema democrático/acusatório. Agora, se deve refletir Mas não é só. Além dos inúmeros problemas elencados neste ensaio, as
sobre a perspectiva oposta: em que momento histórico foi possível verifi- fórmulas ressignificadas de autoritarismo acabam por atingir outras tantas ca-
car-se um juiz passivo em um Estado autocrático? O que tais autores não tegorias que ainda não eram objeto de discussão na época, como por exemplo,
demonstram – daí toda a falibilidade de seus pretensos argumentos históricos as provas ilícitas. Não há muitas dúvidas de que uma postura instrumenta-
(contados a partir exclusivamente de um determinado ângulo político) – é a lista acabará orientando o sistema processual no sentido de aceitação, em
possibilidade de convivência de um juiz passivo em um Estado autoritário. maior ou menor nível, das ilegalidades (a exemplo das nulidades). Neste
Evidentemente, porque tal circunstância jamais existiu. O incremento dos sentido, a posição instrumentalista indica muito bem o caminho a ser tri-
poderes judiciais consiste na sobrevivência de uma determinada concepção lhado – e que foi construído claramente a partir da redação do art. 157 do
de juiz que logrou êxito em períodos autoritários, e que se perpetuou através CPP (que excepcionalizou a inadmissibilidade das provas obtidas por meio
das democracias ocidentais, através de constantes ressignificações. ilícito, introduzindo limitações à esta garantia a partir de deslocadas teorias
Qual o critério, portanto, que tal narrativa tradicional usou para iden- norte-americanas, como a da fonte independente e da descoberta inevitável):
tificar juízes considerados passivos em sistemas tidos como antidemocráticos? “não se pode, todavia, concordar com a absoluta desconsideração das provas
Simples. A passividade do juiz é tomada exclusivamente a partir da iniciativa ilícitas. Imagine-se a situação do magistrado que, sabendo da existência de
da ação (princípio da inércia da jurisdição). Portanto, a clássica concepção do provas que permitirão o esclarecimento dos fatos sobre os quais ele deverá
sistema acusatório como um processo em que a ação é promovida por órgão decidir, não possa determinar a sua produção”2153. Mais adiante prossegue o
distinto da acusação ganha foros de narrativa oficial ou majoritariamente autor: “inadmissível que irregularidades cometidas na colheita da prova im-
construída. Mas veja-se que belíssimos resultados teremos: a) as Ordenações peçam a sua apresentação e, possivelmente, uma decisão justa. Deveria o juiz
de 1670 (símbolo máximo da Inquisição), seriam na verdade, acusatórias2152, criminal absolver um criminoso, ou condenar um inocente, apenas porque
não pôde tomar conhecimento de um meio de prova obtido ilicitamente”?2154.
2152. O artigo 6º das Ordenações de 1670 afirma o seguinte em seu Título III (Das Queixas, Denúncias e Acu-
sações): “Nossos procuradores e aqueles dos senhores farão um registro para receber e tomar por escrito
as denúncias que serão circunstanciadas e assinadas pelos denunciantes, se ele souber assinar; senão 2153. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais,
elas serão escritas em sua presença pelo secretário que as recepcionará”. O mais interessante aqui, é que 1994. p. 102.
tais Ordenações, discutidas no Parlamento francês e presididas pelo chanceler Séguier, cujo relatório foi 2154. O autor faz uma ressalva nas edições posteriores do livro, afirmando:“quando da elaboração do trabalho
realizado em conjunto pelo chanceler Pussort, constam de anotações de trabalho e discursos. Vejamos as não estava em vigor ainda a nova Constituição, que regulamentou a matéria, vedando, de forma absoluta
palavras de Pussort sobre o artigo: “Pussort disse que os Procuradores do Rei são as verdadeiras partes e genérica, as provas ilícitas”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São
em matéria criminal e que não parece razoável iniciar um processo sem a sua participação”. Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 105. Nota. 246.
614 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 615

Contudo, apesar da nova ordem constitucional, segue o autor afirmando: ao que parece, o instrumentalismo garantiu a todas estas espécies de receitas
“apresentando-se essa excepcional, o julgador, ao tomar conhecimento da antidemocráticas de proceso, uma sobrevida. Ao se infiltrar radicalmente no
existência de uma prova, determinaria sua produção, ainda que obtida por campo da dogmática processual (penal), acabou por renovar, combinando
meio ilegal. A eventual ilicitude não pode afastar por completo o poder ins- sincreticamente, fórmulas dos ideólogos autoritários das décadas de 30 e 40,
trutório do juiz. No caso em tela, esse poder seria ainda maior, visto que não abraçou as categorias processuais penais herdadas do liberalismo reacionário
importaria a parte interessada pretender trazê-la aos autos. Aqui, a iniciativa italiano, criou uma metanarrativa da acusatoriedade do código de processo
probatória seria exclusiva do magistrado2155. penal de 1941 e de grandes intelectuais que auxiliaram – pela sua acriticidade
Do ponto de vista da perspectiva instrumentalista então, o juiz teria ou adesão aos postulados da defesa social italiana – na construção de nossas
poderes instrutórios ainda maiores: seria dele exclusivamente a prerrogativa figuras processuais e que soube importar, construindo no núcleo do processo,
de fazer introduzir no processo provas vedadas constitucionalmente! Como se a ideologia da segurança nacional. Além disso, graças à sua plasticidade, vai
pode verificar, aquilo que a Constituição estabelece como uma garantia – tida incorporando todas as mais recentes categorias processuais à sua metanarra-
na perspectiva da instrumentalidade como formalidade prescindível – acaba tiva, na qual os fins (antidemocráticos) justificam os meios, onde pacificar é
se constituindo como um entrave à persecução penal, que acaba por não a meta de uma ideia de jurisdição tomada como fenômeno de poder. E, sig-
conhecer limites. O arcabouço teórico da progressiva erosão desta garantia, nificativamente, foi capaz de articular todas estas propostas antidemocráticas
que acabou se consumando com a elaboração do atual art. 157 do CPP, já como se de fato se tratasse de uma revolução constitucional democrática, ao
estava inserida nesta autoritária concepção de processo. Vejamos o que afirma manusear, moldar e fabricar categorias aparentemente em consonância com
o autor em comento:“não obstante a redação constitucional, propõe-se so- uma perspectiva de Estado que surgia como esperança no raiar da Constitui-
lução menos radical, no sentido de se admitir a prova ilícita em função da ção de 1988, esperança que se revelou fugidia.
importância do bem jurídico envolvido no processo”2156. Portanto, em crimes O atual quadro de crise do processo penal deve muito a tal forma de se
graves, a prova ilícita deveria ser permitida. O que em outras palavras significa: conceber a democracia. Continuamos reféns de velhas ideias vendidas como
em crimes graves, não se obedece a garantia da proibição da prova ilícita. E, novas promessas. O resultado, como a politização do judiciário, apenas para
assim, seria possível se atingir a finalidades “metajurídicas” do processo. ficar com este epifenômeno, já se apresentava. E não foram poucos os aplau-
Como se sabe, diversos ativismos se sucedem na tentativa de elaborar sos que em nível doutrinário se fizeram para esta perspectiva. Várias reformas
uma proposta de processo penal que ao fim, tome a Constituição como uma foram feitas no código de processo penal, aparamentadas pelo mesmo arsenal
ilustre desconhecida, sejam eles de cariz socialista, fascista ou gerencial, todos semântico e linguístico e cujo resultado jamais foi uma mudança completa
eles a provocar fissuras em um processo de matriz constitucional2157. no sistema, tido pela narrativa oficial como “acusatório”.
O avanço do processo penal, com o surgimento de novas categorias Não se trata de um evento tipicamente brasileiro. Apenas para tomar-se
processuais penais, não se desembaraçou das leituras autoritárias2158. Portanto, como exemplo, os professores de direito continuaram ensinando as mesmas
doutrinas que tinham ensinado quando do regime nazista, na Alemanha.
2155. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1994. p. 106. Por exemplo tem-se Hans Welzel, que desenvolveu a teoria finalista da ação,
2156. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1994. p. 106.
“cuja eliminação dos critérios racionais do direito penal encaixava dentro do
2157. COSTA, Eduardo José da Fonseca. Los Citerios de la Legitimación Jurisdiccional Según los Activismos quadro geral do Terceiro Reich”, muito embora não tivesse prevalecido sobre
Socialista, Facista y Gerencial. In Revista Brasileira de Direito Processual. n. 82. a. 21. Belo Horizonte:
Forum, 2007. p. 216. teorias mais radicais. Segundo MULLER, WELZEL continuou ensinando
2158. Neste sentido vale à pena transcrever as palavras de SILVEIRA e SILVEIRA: “embora seja difícil que o direito penal possuía uma força moral positiva. Os valores defendidos,
reconhecer, o fato é que o otimismo daqueles momentos de glória parecer ter se transformado em per-
plexidade. Os arroubos autoritários das forças conservadoras ressucitaram velhos fantasmas e estão segundo MULLER, antes de 1945 foram “a lealdade ao Volk, ao Reich e a
transformando a realidade construída ao longo de muitos anos de lutas. O momento parece ser de grande
retrocesso e risco para nossa jovem democracia. SILVEIRA, Sebastião Sérgio da; SILVEIRA, Ricardo
dos Reis. Processo Penal e Democracia. In MELLO, Cleyson de Moraes; COELHO, Nuno M. M. S. Direito, Sociedade e Democracia. Juiz de Fora: Editar, 2016. p. 32.
616 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 617

seus líderes, obediência à autoridade de Estado e a disposição de defendê-lo pelo todo). Se, a partir de então, a ideologia se apresenta mais ideológica do
com armas, ao passo que depois se converteram em respeito pela vida, saúde, que a ideologia, parafraseando aqui o pensamento de BAUDRILLARD, a
liberdade e a propriedade alheia”2159. ideologia se cristalizaria numa tropologia transpolítica. A ideologia, portanto,
O desinteresse dos juristas pela historia das ideias explica, também par- se apresentaria metafórica por excelência.
cialmente, porque é tão difícil se romper com o passado. Chegado ao fim este Retornemos ao pensamento de SLOTERDIJK, por um minuto, a fim
capítulo, forçoso concluir que a noção de instrumentalidade não serve (rectius, de lhe dar, novamente, voz. O cinismo não tolera a transgressão direta da
nunca serviu) a propósitos democráticos. regra, muito menos a sua assunção. O cínico é acometido de uma prefigu-
ração, um estádio prévio, que duplica a imagem do objeto, na cisão entre
PROCESSO PENAL E LIBERALISMO BRASILEIRO: PARA o sujeito de enunciação e enunciado. O cinismo, portanto, faz derivar um
UMA CRÍTICA DA RAZÃO CÍNICA objeto de sua antítese, faz surgir uma fenda, uma ferida irrecuperável entre o
sujeito da enunciação e o próprio enunciado, cristalizando, consolidando uma
Quando Peter SLOTEDIJK descreve o cinismo como uma nova face
estética na qual o próprio sujeito passa a ser capturado pelo objeto. Melhor:
da ideologia, trata de inverter, ou melhor, apresentar, sob a forma de um
seduzido pelo objeto! Eis como a moral é investida de um potencial catéxico
paradoxo, a falsa consciência ilustrada2160. Se retomarmos aqui a máxima
da imoralidade, como o humano é impelido a uma compulsão pelo inumano,
de MARX de que a ideologia é aquilo que vela o mundo, pensamento
como a ideologia é fomentada já não por uma anti-ideologia (lembrando que
estetizado na máxima do valor da mercadoria (que esconderia o abjeto de
o pensamento dito pós-ideológico caracteriza esta sedimentação do “saber”,
todas as relações sociais que alegoricamente a acompanhariam), a ideologia
da ilusão, esquecendo-se do “fazer”), mas por uma ideologia de segundo grau,
se apresenta estreita e umbilicalmente coligada à ideia matriz de alienação
que lhe transmite uma aparência de realidade ao que não é mais real. O locus
e de falsa consciência. Como destacaria ZIZEK, a máxima marxiana seria
da crítica à ideologia permitiria, por convenção, como forma inessencial ao
apreendida por um “eles não sabem o que fazem”. Evidentemente, a crítica
sujeito-suposto-saber uma espécie de transcendentalismo, de acesso privilegia-
marxiana peca por certa ingenuidade, consagrada naquela tarefa desveladora
do à desilusão das formas. De toda a sorte, a crítica da ideologia, neste sentido
da crítica ao capital, para não dizer de sua completa obscuridade no que diz
de falsa consciência, não seria a mais sublime captura do sujeito na própria
respeito à tríade lacaniana do real, imaginário e simbólico, que permitiria
ideologia? Nas palavras de ZIZEK, “a lição teórica a ser extraída disso é que
uma análise mais acurada sobre o sinthoma.
o conceito de ideologia deve ser desvinculado da problemática “representa-
A crítica da razão cínica de SLOTERDIJK, ao se apresentar como uma tivista”: a ideologia nada tem a ver com a “ilusão”2162. Em outras palavras,
“falsa consciência ilustrada”, permitiria, mais uma vez de acordo com ZIZEK, trata-se de como ocorre a substituição da ideologia pela fantasia ideológica.
a sua concretização como um “eles sabem o que fazem, mas mesmo assim o De acordo com ZIZEK, a ideologia não é uma construção do imaginário
fazem”. Esta razão cínica deixa de lado aquele atributo de suma ingenuidade, coletivo ou algo que sirva como um adorno para esta realidade sócio-políti-
para se assumir como uma espécie de espelho convexo de si mesma, garan- ca. O funcionamento sintomal da ideologia permanece do lado do saber, ao
tindo, com isso, duas coisas: a) a perpetuação da ideologia e não justamente passo que a fantasia ideológica se apresenta como uma ilusão, um erro, que
o que lhe imputou o pensamento neoliberal, de sua autodestruição; b) a estruturaria a própria realidade2163. Tratar-se-ia de uma espécie de servidão
transformação da ideologia numa ideologia de segundo grau (ideologia da voluntária, de como a fantasia ideológica opera a partir de um “sabemos que
ideologia2161), que funciona através da catarse, da metonímia (tomar a parte é uma ilusão, mas mesmo assim a queremos”. A ideologia trabalha a partir
2159. MULLER, Ingo. Los Juristas del Horror: la justicia de Hitler: el pasado que Alemania no puede dejar
atrás. Caracas: Actum, 2006. p. 320-321. 2162. ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. In _______. Um Mapa da Ideologia. São Paulo: Contraponto,
2160. Cf SLOTERDIJK, Peter. Crítica da la Razón Cínica. Madrid: Siruela, 2004. 1996. p. 12.
2161. ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. In _______. Um Mapa da Ideologia. São Paulo: Contraponto, 2163. ZIZEK, Slavoj. Eles Não Sabem o Que Fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge
1996. p. 25. Zahar, 1990. p. 63.
618 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 619

da constatação de que desejamos que as coisas sejam assim, em virtude da ainda mais profunda e radical, DERRIDA2168, em Força de Lei. A tautologia
inexistência de outra alternativa. fundante de “a lei é a lei” comprova que o ato fundador não passa de violência.
Este o caminho percorrido por ZIZEK, a fim de identificar que uma Se, portanto, a ideologia não pode aparecer meramente como um des-
forma espectral da ideologia remete ao problema identificado por Lacan cortinamento daquela realidade serviçal à dominação, se tampouco pode ser
acerca do Real. No Real não falta nada. Toda falta, todo excesso já é opera- subsumida ao cinismo tal qual compreendido por SLOTERDIJK – enquanto
dor do simbólico. Doravante, porquanto não há um “fora” do Real que não falsa consciência ilustrada – deve-se ter em mente que, portanto, não resta
prometa e que não se ofereça como um espectro, iniludível, a compor a zona alternativa senão a de colocar a ideologia em um ponto externo, simbiótico,
transfronteiriça entre a realidade (sempre simbolizada) e o Real. O rastro é em relação a si mesma. Esta a razão pela qual uma crítica da ideologia se tra-
inapagável assim como a simbolização restitui, por assim dizer, aquela pujança veste da mais pura ideologia. Esta a razão por que a crítica da ideologia sempre
e plenitude do Real. Se tomarmos em consideração o ensaio de Derrida2164 carrega consigo um vício insanável de se autoproclamar um “mais-que-um”,
a respeito de MARX veremos que justamente se apresentam, na mais pura um fantasma quiçá “autopoiético”. Pensar numa crítica à ideologia seria se
espectralidade, aquelas contradições ontologizadas, diagnósticas de um ma- colocar do lado do Real, do lado daquilo que sobra, do que transborda. Esta
niqueísmo entre aparência e realidade. E é justamente através de MARX e a razão fundamental, pela qual eventual contemplação da realidade já recai
de seu materialismo que se poderia chegar à conclusão desta espectralidade diretamente sobre a simbolização. E desta arte, como não poderia deixar de
ancestral. Não existe realidade sem espectro. A realidade apenas pode ser ser, se compromete, se ajusta, se autocoloca como própria ideologia, pela
compreendida a partir de uma espécie de suplemento espectral, deste diferi- adesão parasitária a certo discurso. Uma denúncia não-ideológica da ideo-
mento sem medida, sem rastro, deixado pelas bordas do simbólico. Por certo logia presumiria a capacidade de o sujeito da enunciação se colocar em uma
que esta compreensão não era desconhecida da hermenêutica filosófica e de crisálida que lhe garantiria imunidade à própria simbolização.
todo o movimento da linguistic turn. Para LACAN, a realidade já é sempre Assim sendo, forçoso reconhecer que uma crítica da ideologia se cons-
reduto do simbólico, subjetivizada, “socialmente construída”, se se quiser, a titui como um enunciado performático (da pura ideologia). Essencial aqui
partir da sociologia construtivista de BERGER e LUCKMANN2165. Todavia, compreender que a operação ideológica torna despiciendas as razões invocadas
a simbolização sempre tende ao fracasso, pois não consegue simbolizar com- pelo “fazer” – se verdadeiras ou falsas. Tomem-se como exemplo as chama-
pletamente o Real. Sempre há excedência (sem excesso) do Real em relação das guerras “preventivas”, as ocupações de territórios baseadas na “proteção
ao simbólico. “Este real (a parte da realidade que permanece não simbolizada) de direitos humanos”. Pouco importa que realmente existam ou não tais
retorna sob a forma de aparições espectrais”2166. Trata-se desta aparição espec- violações. Desde a partir do modelo descrito por SLOTERDIJK, é possível
tral que colmata a lacuna do Real. Para que a realidade apareça enquanto tal, se mentir dizendo a verdade. Portanto, não existe um “lado de lá” da ilusão,
algo deve sofrer um processo de foraclusão. que corresponderia a um local privilegiado de acesso à verdade. Seria diverso
Esta fantasia ideológica, esta espectralidade se apresenta, mais clara- quando apontados estes dardos para o processo penal, em específico, para
mente na completa injustificação da lei, daquela ausência de fundamento que aquilo que tradicionalmente, a partir da obra de Alessandro BARATTA2169,
a erige, que a promove a partir de um pensamento tautológico. Disso já se se apresentou como ideologia da defesa social?
ocupou BENJAMIN2167 em sua Para Uma Crítica da Violência” e de maneira A falta de uma “imaginação processual”, parafraseando aqui Jock
YOUNG2170, resulta de certo compromisso, embora não descompassado, da
2164. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
2165. BERGER, Peter L; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia
do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2003. 2168. DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes,
2166. ZIZEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. In _______. Um Mapa da Ideologia. São Paulo: Contraponto, 2011.
1996. p. 26. 2169. Cf BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Re-
2167. BENJAMIN, Walter. Para Uma Crítica da Violência. In Escritos Sobre Mito e Linguagem. São Paulo: van, 2002.
Duas Cidades, 2011. 2170. YOUNG, Jock. Criminological Imagination. Cambridge: Polity Press, 2011.
620 AUTORITARISMO E PROCESSO PENAL - RICARDO JACOBSEN GLOECKNER CAPÍTULO IV 621

compreensão da ideologia como falsa consciência. Em resumo bastante força- que se reconhecer, pela força da contiguidade, uma espécie de zona cinzenta,
do da noção trazida por BARATTA, tem-se que a ideologia da defesa social, de ponto cego da própria ideologia, que ela não pode conhecer, que consis-
que legitima o sistema punitivo em última instância (apesar de inúmeras te naquilo que ALTHUSSER denominou como “aparelhos ideológicos do
teorias que comprometeriam seus princípios fundamentais – com especial Estado” (família, escola, política, religião, direito, etc)2171. Certo que para
apreço pelo labelling approach), esconde em seu seio a seletividade e a utili- ALTHUSSER os aparelhos ideológicos do Estado não se confundiriam com
zação do sistema punitivo a fim de proteger o modo de produção capitalista. o próprio aparelho repressivo (Administração, Exército, Polícia, Tribunais,
Pode-se compreender a criminologia crítica, no que guarda respeito à obra Prisões, etc), fundamentalmente pela distinção entre a unicidade do aparelho
de BARATTA, como uma tentativa de demonstrar que o sistema punitivo repressivo frente à pluralidade dos aparelhos ideológicos; pela natureza públi-
está moldado, estruturado pela ideologia da defesa social. Esta ideologia, por ca do aparelho repressivo frente à natureza privada dos aparelhos ideológicos
seu turno, se arvora em alguns princípios, cuja desmistificação foi realizada e finalmente, pela circunstância de que o aparelho repressivo funcionaria,
por inúmeras outras teorias, culminando com a teoria do etiquetamento. Ao primordialmente, através da violência e secundariamente mediante a ideolo-
potencial disruptivo do labelling approach, referentemente à ontologização do gia. Já os aparelhos ideológicos inverteriam esta relação.
delito, soma-se o legado marxiano que adicionará o caráter de incapacitação Se levarmos, portanto, em consideração tais aspectos, as práticas cons-
seletiva do sistema punitivo. Grande parte da criminologia brasileira, aderente titutivas dos aparelhos ideológicos do Estado serviriam como uma espécie
às imprescindíveis lições de BARATTA, incorpora justamente esta espécie de de zona imunitária à ideologia, justamente por que esta desconheceria o seu
conformação com o denuncismo da falsa consciência que imanta o sistema conteúdo. Razão pela qual, para o que nos interessa aqui, a ideologia da
punitivo brasileiro. O questionamento que se deve trazer é: estabelecidos estes defesa social desconheceria justamente as práticas constitutivas do próprio
parâmetros, uma crítica da ideologia como falsa consciência é suficiente? E jurídico. Se, portanto, a ideologia da defesa social se erigiria numa espécie de
para além, esta crítica à ideologia não acaba trazendo inúmeros pontos cegos, senso comum jurídico (componente do imaginário coletivo), a cisão entre as
ao se pretender ideologicamente imune? funções declaradas e latentes (da prisão, dos princípios estruturantes, etc) do
Veja-se que esta rede discursiva criminológica, que segue de perto os sistema punitivo como um todo, estaria plenamente de acordo.
passos de BARATTA parte do pressuposto, anteriormente delineado, que Como tudo isso se conecta ao nosso objeto de estudo? Naturalmente,
permitiria uma série de construções acerca do sistema punitivo, a saber: a) toda a narrativa que se consolidou como um discurso oficial, apresentando
que o sistema punitivo seja uma estrutura não simbolizada, isto é, que se as características de uma doutrina e de inúmeros processos de reforma e
situaria do lado de lá do simbólico, isto é, do lado do Real; b) que a tomada tentativas de reforma do processo penal se apresenta da mesma forma como
de posição crítica à ideologia reprodutora do modo de produção capitalista o denunciado por ZIZEK. Não se deve atribuir aos intelectuais brasileiros,
não fosse, por ela mesma, ideológica; c) que não houvesse um espaço de pura independentemente dos argumentos, que tais juristas simplesmente “não
espectralidade nessa dimensão transfonteiriça entre o simbólico e o Real a sabiam o que faziam”. Não se trata de intelectuais que operavam alienados
retornar, a diagnosticar que a oposição ontologizada de um confronto entre pelo véu da ideologia, como autômatos ou marionetes. Deve-se retomar a
aparência e realidade não passa de uma pseudo-constatação. crítica ideológica para se compreender que tais juristas e intelectuais sabiam
Parece fundamental, preliminarmente, deslocar este espaço de certo o que faziam mas mesmo assim o faziam! Essa mudança de rumos na va-
denuncismo escatológico sobre um para-fora do simbólico. Se há, aqui, uma loração da crítica ideológica é fundamental para que as responsabilidades
possibilidade de pensar a ideologia – em especial a da defesa social – haveria pelas eleições dos caminhos da democracia brasileira sejam imputados a
a necessidade, preliminar, de considerar que há um espaço vazio, que não todos aqueles que deram a sua parcela de contribuição na perpetuação do
pode ser ocupado previamente. Esta a condição de possibilidade de uma autoritarismo processual penal.
crítica à ideologia. Se há, portanto, este espaço vazio, imune à ideologia, há
2171. Cf ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
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Foi preciso, para identificar tais processos, saltar para fora das estruturas processo”. No âmago deste discurso foi possível presenciar uma clara vinculação
molares (do discurso centrado nas estruturas de Estado), já que como acentua- deste discurso à ideologia da segurança nacional. Era preciso perscrutar como
do no primeiro capítulo, o autoritarismo se desenvolve também – com muito aquelas categorias processuais penais, que foram mobilizadas em um sentido
mais potência – no nível molecular. Então, era preciso convocar o discurso autoritário na Itália e, posteriormente, no Brasil, não caducaram, não foram
dos juristas para que se pudesse analisar se realmente o discurso produzido du- confrontadas com os mandamentos constitucionais após 1988. A hipótese de
rante o regime fascista italiano foi de fato recepcionado em terras brasileiras. trabalho conduzia à necessidade de se questionar como houve um discurso
Para além da muita propalada e afirmada “inspiração” do Código de Processo que em um primeiro momento, tratava de emprestar nova luminosidade a
Penal Brasileiro no Codice Rocco de 1930, foi preciso balizar as estruturas de velhas categorias; e de outro, como o núcleo de um processo penal autoritá-
ambas as legislações. Contudo, era forçoso também sinalizar para como a rio (que seguia a mesma direção do Codice Rocco) foi compatibilizado com a
doutrina construíra as formas sociais de legitimação de seu próprio discurso. Constituição. Além disso, determinadas categorias – tome-se por exemplo as
Os capítulos II e III deste estudo tentaram – ainda que não se pudesse nulidades – não apenas se inscreviam dentro de um registro antidemocrático.
aprofundar cada uma das categorias processuais em seu inteiro vigor (trata-se, Tais categorias, como a instrumentalidade das formas foram reacomodadas a
é claro, de uma tarefa inacabada) – fazer os discursos processuais penais ita- fim de parecer se tratar de uma “reinvenção constitucional”. O resultado não
liano e brasileiro brotarem, a fim de se perceber como os filtros, os códigos e foi apenas a persistência destas categorias processuais no seio da doutrina e das
as categorias se tocam de forma muito estreita. Também se procurou analisar práticas punitivas brasileiras. Houve o reforço no sentido de que se por um
nos capítulos II e III como na Itália se deram as discussões após a queda do lado elas se encontravam imantadas pelo pensamento autoritário brasileiro,
regime fascista e, como no Brasil se conduziram as diversas tentativas de um conexo ao liberalismo político (que no Brasil não era uma “ideia fora de lugar”)
novo código de processo penal (todas elas sem êxito até o presente momento). que se manifestava sob a forma de um antiparlamentarismo racista, elitista e
em franca sintonia com o discursos políticos que se faziam perceber tanto na
Constatou-se que as reformas parciais do código de processo penal,
Itália quanto na Alemanha, indicando claramente os contornos que o Estado
apresentadas através de distintas leis especiais foram uma metodologia de
Novo assumiria, por outro, a década de 60 traria um câmbio. Esta mudança
trabalho, a fim de conseguir a aprovação da legislação. E, para além disso,
no esteio dos ideólogos autoritários se daria diante de uma estética economi-
como tais reformas seguiram de perto as propostas, muitas delas já contidas no
cista. Da mesma maneira, as categorias processuais penais se encontram num
anteprojeto Frederico Marques. De toda sorte, há que se registrar a presença,
regime de hibridismo: de um lado, a velha tradição liberal brasileira; de outro,
nesta narrativa oficial, de um discurso que apresentou e interpretou o código
novas categorias que foram surgindo, em especial através das globalizações
de processo penal brasileiro como uma estrutura legislativa que não estava
processuais entre distintos regimes jurídicos, especialmente a penetração de
em descompasso com o sistema acusatório.
categorias processuais norte-americanas, como a adoção de teorias e exceções
A forma de apresentação das categorias processuais penais emergentes a às provas ilícitas, a introdução de uma justiça negocial (do juizado especial cri-
partir do Estado Novo, não diferiu do argumento principal que se verificou minal à colaboração premiada), isso sem falar na introdução de teorias também
na Itália: o de que a legislação não havia se afastado da tradição liberal. Me- norte-americanas, como a cegueira deliberada (willfull blindness), a abdução
todologicamente, o tecnicismo se encarregou de instituir um paradigma de de provas, os deveres inerentes ao compliance, etc.
escamoteamento – missão muito bem executada – da razão política no seio
Tal hibridização esgarça ainda mais os limites e parâmetros para a
das discussões doutrinárias e das propostas legislativas. Nos capítulos II e III
conrstução de um processo penal democrático, pois as novas categorias
também foi possível presenciar-se um determinado uso retórico das categorias
aparecem e são direcionadas no seio deste conhecido ambiente inquisitório
e das legislações, que foi denominado como “retórica do equilíbrio”.
que é o sistema de justiça criminal brasileiro2172. Como referido, a hipótese
O capítulo IV tentou identificar a forma de apresentação de uma “nova”
fase metodológica do processo, denominada como “instrumentalidade do 2172. Futuramente, pretende-se investigar esta segunda fase do autoritarismo brasileiro.
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de trabalho era identificar como se operou a “transição democrática” e como deste estilo de pensamento (anti-parlamentar) terá o seu correspectivo jurídi-
as velhas categorias processuais puderam ser interpretadas em consonância co que não poderia deixar de ser uma concepção também “social”, “pública”
com a Constituição de 1988. ou “autoritária” de processo. Não há muitas dúvidas de que a “democracia
Os processos de ressignificação das velhas categorias processuais penais, social” constituía um campo de “reversibilidade ideológica dos direitos”, ou
já que este estudo se cuida de uma espécie de cartografia dos alinhamentos e seja, de justificar não os direitos, mas as suas exceções. Portanto, o campo da
dos nós políticos que alicerçam certa compreensão do processo penal, indi- limitação à liberdade e do avanço nas conquistas jurídicas era o espaço ideal
caram claramente que tais movimentos não se poderiam constituir sem um para o que se desenvolvessem tais doutrinas políticas, como pode ser facil-
alicerce fundamental: a perspectiva instrumentalista de processo. mente constatado no discurso de Alfredo BUZAID2175, de Miguel REALE2176
De uma maneira geral, no curso das narrativas processuais penais de Luis Eulálio Bueno VIDIGAL, que inclusive defendia a Constituição de
brasileiras, se pode identificar a presença de uma determinada forma de 1937 como “democrática2177 ou ainda, de Miguel FENECH, defensor da
pensamento, que se notabiliza por intermediar e custodiar um discurso de compatibilidade entre democracia e Estado totalitário2178.
compatibilidade destas categorias processuais, apontadas como autoritárias, e O sequestro do direito processual pelos escopos processuais políticos,
os direitos funamentais ou humanos. Pode-se denominar como uma “lógica como se pode extrair das propostas instrumentalistas, responsável por um “redi-
da excepcionalização”, que marca profundamente o abismo entre os direitos e mensionamento do objeto”2179, no campo processual penal não encontra espaço
garantias fundamentais instituídos pela Constituição da República e os proce-
2175. “Democracia social não significa, porém, uma ruptura com a democracia política, mas a sua natural
dimentos que lhe entravam a aplicabilidade. Em palavras ainda mais simples, continuação, o aperfeiçoamento de suas instituições tradicionais, a limitação da liberdade de poucos em
se trata de perceber como a “lógica da excepcionalização” é uma prática, benefício da ampliação dos direitos de muitos”. BUZAID, Alfredo. A Missão da Faculdade de Direito
na Conjuntura Política Atual. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 63.
corroborada em grande medida pela doutrina brasileira e seguida vivamente São Paulo, 1968. p.98.
2176. Sobre a democracia social afirma REALE: “Não foi, pois, para implantar uma ditadura, mas para preser-
pelos tribunais pátrios, consistente em cindir os enunciados jurídicos de sua var os valores da democracia social que o povo e as forças armadas se decidiram a estancar o mórbido
processo subversivo prestes a nos desviar das linhas mestras de nosso desenvolvimento histórico”. RE-
concretização. Ou ainda, criar tantas exceções não declaradas aos direitos e ALE, Miguel. A Experiência Jurídica Brasileira. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. v. 69. n. 02. São Paulo, 1974. p. 30. Sobre como a “Revolução de 1964” aumentou os direitos
garantias fundamentais que o resultado final é exatamente o seu oposto: a da população: “não resta dúvida que a Revolução de 64 não diminuiu, mas antes aperfeiçoou o sistema
exceção é justamente se obedecer um direito fundamental2173. dos direitos de ordem privada, o que nem sempre tem sido salientado pelos críticos do atual regime”.
REALE, Miguel. A Experiência Jurídica Brasileira. Idem. Ibidem.
2177. Afirmando o caráter “democrático” da Constituição de 1937 VIDIGAL assevera: “contestou-se o caráter
O paradigma instrumentalista, trouxe novas cores a um dogma que se democrático da Constituição de 1937. Se seus detratores apressados e gratuitos se houvessem dado ao
encontrava presente em todo o discurso liberal antiparlamentar da década de trabalho de ler com atenção e boa fé a réplica lapidar, maravilha de concisão, de Francisco Campos,
possivelmente teriam, ao invés de combatê-lo, atribuindo- lhe inconfessáveis objetivos, em que se teria
30 no Brasil. A noção de democracia social, que aparece no discurso políti- conluiado com Getúlio Vargas, passado a formar a seu lado, na defesa do novo texto constitucional.
VIDIGAL, Luis Eulálio Bueno. Francisco Campos e a Constituição de 1937. In Revista da Faculdade
co anti-parlamentarista do início do século XX, está permeada de posturas de Direito da Universidade de São Paulo. v. 63. São Paulo, 1967. p. 173. Prossegue o autor: “a Cons-
tituição de 1937 foi sempre condenada, sem exame, sem defesa, sem possibilidade de perdão. Desde a
positivistas, o que implica num grave problema para este paradigma, que se injúria levíssima, que mais se encontra na intenção do que no próprio apelido, atribuível a ignorantes
de Direito Constitucional que, supondo amesquinhá-la, sistematicamente a chamavam de carta consti-
autodeclara “anti-positivista”2174. Tal concepção da democracia proveniente tucional, até a denominação de polaca, francamente pejorativa, em que, de cambulhada, se ofendem o
Presidente da República, o autor da Constituição e o povo polonês, inúmeras foram as variantes com
2173. Tomemos como exemplo o pensamento de Miguel REALE JÚNIOR, a fim de demonstrar como a que políticos, mais amantes da forma que da substância, procuraram diminuir-lhe o significado e a
doutrina já reservava um papel decisivo à fundamentação para o afastamento de direitos fundamentais. importância”. Ibidem. p. 178.
Vejamos o que afirma sobre o Ato Institucional nº 5: “deste modo, o legislador diz: a constituição consa- 2178. “como síntese, o Estado totalitário consegue seu caráter orgânico; e como o elemento definitivamente
grou vários direitos individuais, porém, tendo em vista atos “nitidamente subversivos” e tendo em vista incorporado é o elemento popular, pode falar-se, ademais, de seu caráter democrático”. FENECH, Mi-
que estes direitos estão servindo de meio para a subversão, abre-se exceção à regra geral, visando coibir guel. La Posición del Juez en el Nuevo Estado: ensayo de sistematización de las directrices actuales.
que estes direitos outorgados, pela Constituição ao povo, sejam desvirtuados, transformados em meios Madrid: Espasa-Calpe, 1941. p. 56-57.
para os fins subversivos, em detrimento do bem-estar e desenvolvimento da Nação”. REALE JÚNIOR, 2179. “O desenvolvimento mais recente do direito processual reflete a preocupação metodológica de um re-
Miguel. Interpretação do Ato Institucional e Habeas Corpus. In Revista Ciencia Penal. n. 1. São Paulo: dimensionamento do objeto de estudo desta área jurídica, reconhecendo a instrumentalidade dos meca-
José Bushatsky, 1973. p. 104. nismos processuais em relação ao direito material. Esse diecionamento metodológico introduz, como
2174. “assim, tanto na privatística como na publicística, o positivismo está na origem, tanto da reacção an- preocupação prioritária, a capacidade do processo de produzir resultados consistentes com as necessida-
ti-liberal das primeiras décadas do século XX, normalmente designada por advento do Estado social, des do ordenamento de direito material. A avaliação destes resultados, por seu turno, somente é possível
como dos regimes autoritários anti-democráticos, como o fascismo ou o Estado Novo português”. HES- levando-se em conta os escopos do processo, indicaticos das funções a serem por ele exercidas e das
PANHA, António Manuel. Cultura Jurídica: síntese de um milénio. Florianópolis: Fundação Boiteux, finalidades que deve atingir no sistema jurídico e na sociedade”. SALLES, Carlos Alberto de. Processo
2005. p. 423. Civil de Interesse Público. In ________. Processo Civil e Interesse Público: o processo como instru-
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outro que não a repristinação dos velhos movimentos de defesa social2180. Tais ideias acima indicadas já estavam presentes, como já foi de-
Com efeito, a proposta de uma colocação em crítica da narrativa oficial monstrado, no pensamento de FREDERICO MARQUES, o que indica
sobre o processo penal deve trazer luz sobre a atuação dos juristas no campo claramente certa continuidade na interpretação dada ao código de pro-
político. Neste ponto, as palavras de SEELANDER são absolutamente apro- cesso penal brasileiro. Evidentemente, apesar de ser uma “narrativa
priadas: “a verificação da influência do pensamento jurídico nas ditaduras oficial”, existem vozes dissonantes dentro da própria escola de São Paulo,
– ou adaptável às ditaduras – em nossa doutrina e jurisprudência nunca será consoante se pode perceber nas palavras de MORAES: “nosso sistema
feita seriamente, contudo, enquanto predominar uma memória seletiva, ex- processual penal ainda vigente, examinado pelo modelo concebido e pro-
cluidora ou suavizadora de todos os dados politicamente incômodos”2181. Não jetado pelo código de processo penal, em 1941, é um modelo autoritário,
há dúvidas de que os “os atores jurídicos, geralmente, são peças importantes com tendência punitiva, e que rejeita a presunção de inocência em todos
dos modelos autoritários de Estado”2182. os seus aspectos fundamentais”2185.
O advento do que se denominou como processo penal “pós-acusa- O advento do “pós-acusatório” se alinha, hoje, ao que Rubens
tório”, isto é, como um determinado momento em que a Constituição CASARA designa como Estado “pós-democrático”, ou seja, “um Estado
da República, por si mesma se encarregaria de efetivar os direitos e ga- sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que
rantias nela insculpidos (tornando despiciendas as discussões em torno o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam
da acusatoriedade de nosso sistema e dando como fato consumado a a se identificar, sem pudor. No Estado Pós-Democrático a democracia
sua implementação após o regime democrático) tem notável contributo permanece, não mais com um conteúdo substancial e vinculante, mas
doutrinário. O simplismo na definição do sistema acusatório permitiu, como mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador”2186.
claramente, que tudo aquilo que não repousasse na estrita definição de O instrumentalismo, aplicado ao processo penal, não teve como
“separação de funções”, fosse relegitimado em um regime democrático2183. inimigo de fato o liberalismo. Consoante demonstrado ao longo de todo
E, assim, sendo, se poderia construir uma fábula bastante confortável: a o trabalho, o liberalismo jurídico não teve dificuldades em ser sequestra-
de que o processo penal brasileiro jamais se afastou do sistema acusatório. do pelos discursos autoritários em determinados momentos da história.
Vejamos o teor das palavras de GRINOVER: “Quanto ao mais, o Código Como uma proposta que reconecta política e direito através da ideologia
de Processo Penal se mantinha fiel ao modelo acusatório, suprimindo o da segurança nacional e seus múltiplos processos de ressignificação pós-
juizado de instrução e seguindo o princípio segundo o qual todas as provas 88, o grande inimigo da perspectiva instrumentalista não poderia ser
são colhidas perante o juiz (monocrático)”2184. outro que não a democracia2187.

mento de defesa social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 45-46.
2180. O subtítulo da obra acima referida parece ter saído exatamente de obras como aquelas dos positivistas
italianos.
2181. SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. Juristas e Ditadura: uma leitura brasileira. In FONSECA, Ri-
cardo Marcelo; SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. História do Direito em Perspectiva: do antigo
regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2009. p. 429.
2182. CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de 2185. MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência: análise de sua estrutura normativa para a elabo-
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 60. ração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 172.
2183. “o que distingue o modelo acusatório do inquisitório é que, no primeiro, as funções de acusar, defender 2186. CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de
e julgar estão atribuídas a órgãos diferentes, enquanto no inquisitório as funções estão reunidas e o in- Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 23.
quisidor deve proceder espontaneamente”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Influência do Código-Modelo 2187. “o Sistema (inquisitório) não mudou, pelo menos na sua característica principal. Mas foi-se degradando.
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A obra examina cuidadosamente a formação
do pensamento tecnicista, que deu origem à
codificação italiana de 1930 e que posterior-
mente impregnou a formação do código de
processo penal brasileiro de 1941.
Nesse sentido, a obra perquire cada uma
das estruturas dos códigos, colocando-as
em confronto, evidenciando que o processo
codificatório brasileiro se valer dos mesmos
conceitos herdados da tradição italiana.
Demais disso, o livro pretende examinar as
diversas tentativas de reforma do código de
processo penal brasileiro, demonstrando
que as reformas parciais foram uma solução
compartilhada pelos intelectuais envolvidos
em tais procedimentos.
Por fim, pretende-se demonstrar como as ca-
tegorias processuais penais, oriundas de um
clima político autoritário foram capazes de
se manter intactas, mesmo com a Constitui-
ção de 1988.
Para tanto, foi examinada a noção de instru-
mentalidade do processo e de como ela con-
tribuiu para que um processo penal de linha-
gem autoritária permanecesse indene com o
passar dos anos.

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