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JUAREZ TAVARES

Copyright© 2018 by Juarez Tavarez


Editor Responsável: Aline Gostinski
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de
Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares

TEORIA DO
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra

CRIME CULPOSO
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da
Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T23t
5. ed.
Prefácio de Prof. Dr. Dr. h. c. mult Claus Roxin
Tavares, Juarez
Teoria do crime culposo [recurso eletrônico] / Juarez Tavares. - 5. ed., rev. -
Florianópolis [SC] : Tirant Lo Blanch, 2018.
recurso digital : il. ; 4 MB

Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web 5ª edição, inteiramente revista
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-9477-241-1 (recurso eletrônico)

1. Direito penal - Brasil. 2. Delito - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Roxin, Claus. II.
Título.

18-52618
CDU: 343(81)

Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária CRB-7/6135

É proibida a reprodução total ou


18/09/2018 parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/
21/09/2018
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Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Teoria
Aos meus pais, in memoriam,
em reconhecimento de seus esforços
à minha formação e pelas lições que
me passaram, a acreditar no ser humano
e a cultuar a luta por sua liberdade.
Aos dois notáveis processualistas penais,
Geraldo Prado e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.
A Carol Proner e Chico Buarque de Holanda, que expressam, com sua
inteligência e sensibilidade, a esperança de novos tempos.
À Fernanda Lara Tórtima, pela firme amizade e constante lealdade.
NOTA PRÉVIA À QUINTA EDIÇÃO

Nesta quinta edição faz-se uma revisão quanto aos elementos da estru-
tura do delito culposo, adaptando-os à nova sistemática seguida em meu livro
Fundamentos de Teoria do Delito. Embora neste último livro o conceito de
ação assuma características mais extensas, seu núcleo não destoa do que aqui
já estava delineado. As alterações mais intensas se concentram na antecipação
do juízo de imputabilidade para o âmbito da ação, de modo a demonstrar a
necessidade de se diversificarem essas categorias conforme o contexto norma-
tivo ao qual o sujeito se subordine. Por outro lado, seguindo as características
vinculadas à forma e ao modo de violação da norma de cuidado, quando esta
ocorre sem que o sujeito tenha consciência dessa violação, assume-se a postu-
ra de indicar a incompatibilidade da culpa inconsciente com o princípio de
culpabilidade, que pressupõe uma atividade consciente em face da produção
do resultado. Uma vez que na culpa inconsciente inexiste uma consciência
real acerca da verificação do resultado, mas sim uma simples probabilida-
de de sua ocorrência, estar-se-á diante de nítida responsabilidade objetiva.
Atendendo a algumas contribuições doutrinárias mais recentes, procede-se
também a uma atualização bibliográfica sobre os temas aqui propostos.
Quero agradecer, nesta oportunidade, à minha editora brasileira Aline
Gostinski, que tem empreendido todos os esforços para que meus livros
sejam publicados com a máxima presteza e correção, aos editores espanhóis
Salvador Vives e Laura Barrios, por seu apoio e incentivo e à professora
Fernanda Martins, pela composição da edição. Da mesma forma, meus agra-
decimentos à mestranda Juliana Sanches pela minuciosa correção do texto.
Rio de Janeiro, setembro de 2018

Juarez Tavares
NOTA PRÉVIA À QUARTA EDIÇÃO

A Teoria do Crime Culposo esgotou-se há tempos. Esta quarta edição


foi revista e amplianda com novas contribuições da doutrina e correções do
texto, para tornar mais clara a exposição. Em linhas gerais, guarda a mesma
estrutura da edição anterior no tocante ao conceito de ação e aos elementos
do tipo, da antijuridicidade e da culpabilidade, bem como do concurso de
agentes e de crimes.
Queria agradecer, nesta oportunidade, o auxílio prestado pela amiga e
advogada Maria Goretti Nagime Barros Costa quanto à conversão da antiga
formatação às normas atuais da ABNT. Outro agradecimento ao amigo e
Professor Dr. Fábio da Silva Bozza pela minuciosa revisão do texto. Um agra-
decimento especial também ao amigo, magistrado e professor Dr. Alexandre
Morais da Rosa por me proporcionar a oportunidade de relançar esse livro
no mercado editorial brasileiro.
Espero que esta obra continue a colaborar para que os estudiosos do
direito penal possam tornar menos irracional o Sistema Penal. Se isso ocorrer,
desfrutarei do sentimento de haver cumprido meu dever com a defesa da
liberdade e da democracia.
Rio de Janeiro, outubro de 2016

Juarez Tavares
NOTA PRÉVIA À TERCEIRA EDIÇÃO

Este livro tinha, originariamente, a denominação de Direito Penal da


Negligência, em cuja 2ª edição foram reformuladas algumas de suas iniciais
postulações. Atendendo, porém, a ponderações procedidas pela doutrina e
ainda em face do que havia sido proposto na Teoria do Injusto Penal, resolvi
modificar sua estrutura, principalmente no que toca ao conceito de ação.
Penso que em um Estado Democrático de Direito já não mais se comporta
uma submissão do normativo ao ontológico, pois a ideia básica que deve
servir de orientação a toda especulação jurídica será a de proteger a pessoa
humana diante do poder de intervenção, o que, certamente, não poderá ser
obtido por uma postura que privilegie as chamadas categorias lógico-objeti-
vas ou as características ônticas da conduta, conceitos imprecisos, incertos e
não suficientemente substanciais. De conformidade com este objetivo polí-
tico-criminal, procurou-se ajustar o trabalho a uma concepção que estruture
o delito culposo sob a relação comunicativa entre norma e realidade social,
em que os princípios gerais da ordem jurídica não estejam subordinados ao
critério da ponderação, mas tomados no sentido negativo, de uma dialética
que busque, constantemente, deslegitimar as bases do poder punitivo, em
lugar de justificá-las. Poder-se-ia argumentar, dizendo-se que esta constitui
uma concepção anarquista do direito penal. Não tenho receio desta assertiva,
porque não vejo como se possa legitimar uma norma por meio da destruição
da pessoa humana, tal como hoje se propõe na ciência jurídico-penal sob o
pretexto de defender seus bens jurídicos.
A par da atualização bibliográfica, a qual passa a incorporar as obras
editadas mais recentemente no Brasil e no exterior sobre o tema, procurou-se
dar maior dimensão ao texto para proporcionar clareza na exposição, bem
como para possibilitar melhor esquematização da matéria enfocada. Em vir-
tude disso, foram estendidos e reformulados vários itens, principalmente na
introdução, no setor do conceito de ação, da causalidade e da imputação
objetiva, e ainda acrescido um novo capítulo acerca do concurso de crimes,
12 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

inexistente na edição anterior.


Foram igualmente aprimoradas a forma e a diagramação do trabalho,
com a correção ortográfica mais cuidadosa e com a agregação de um número
de margem aos parágrafos, o qual servirá de referência no índice remissivo.
Gostaria de expressar aqui meus agradecimentos a todos aqueles que
NOTA PRÉVIA À SEGUNDA EDIÇÃO
colaboraram para a melhoria deste trabalho. Inicialmente, ao amigo Luís
Greco, que me alertou acerca da necessidade de proceder a uma abordagem Esta segunda edição, ainda que conserve os pontos centrais e a
coerente acerca do conceito de ação. Também, ao amigo e Professor Dr. estrutura da investigação acerca dos delitos culposos, que se haviam de-
Dirk Fabricius, que me facultou a renovação da pesquisa na Universidade de senvolvido por ocasião de minha tese de doutorado nos primeiros anos de
Frankfurt am Main. Em especial, à minha assistente Ana Carolina Andrade 1980, apresenta-se, agora, inteiramente remodelada. Na primeira parte,
Carneiro, pela incansável tarefa de correção do texto, e à minha assessora busca-se atualizar o enfoque das teorias da ação, acrescentando-lhe as con-
Suzana Miranda Palma, pelo auxílio percuciente na confecção do índice tribuições do funcionalismo, a partir da construção de Roxin, passando
remissivo. Finalmente, efusivos agradecimentos ao Prof. Dr. Claus Roxin, pelos extremos da teoria negativista em suas diversas variantes, de Jakobs,
amigo e mestre, que não só me abriu as mais amplas possibilidades de inves- Herzberg e Behrendt, até a contribuição da teoria significativa de Muñoz
tigação no Institut für die gesamten Strafrechtswissenschaften da Universidade Conde. Na segunda parte, propõe-se, primeiramente, uma revisão do con-
de Munique, como também se dispôs a me fornecer inestimáveis subsídios e ceito de ação sobre a base de uma teoria crítica, mediante um procedimento
ponderações a muitas indagações que lhe foram formuladas acerca do con- de desconstrução das concepções tradicionais e a consequente formulação
ceito de ação, da relação entre norma de cuidado e imputação objetiva, do de um conceito delimitativo, adequado ao direito penal de garantia. Em
concurso de agentes e do concurso de delitos culposos. segundo lugar, procede-se a um aprofundamento da estrutura do injusto
do delito culposo, de modo a especificar melhor o conteúdo da infração
Rio de Janeiro, abril de 2008 à norma de cuidado em face das propostas de uma sociedade de risco e
Juarez Tavares dos critérios de imputação. Da mesma forma, são revistos e atualizados os
elementos da culpabilidade do fato culposo, bem como enfrentados os pro-
blemas dos delitos omissivos culposos, do concurso de agentes e dos delitos
qualificados pelo resultado, que haviam ficado de fora da primeira edição.
Finalmente, queria expressar, aqui, meus agradecimentos ao meu
amigo, advogado Alexandre O´Donnell Mallet, pela indicação de alguns
exemplos extremamente sugestivos no âmbito da imputação objetiva, bem
como ao meu monitor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Fre-
derico Antunes de Oliveira Figueiredo, pelo inestimável auxílio na penosa
tarefa da correção do texto.
Rio de Janeiro, setembro de 2003

Juarez Tavares
NOTA PRÉVIA À PRIMEIRA EDIÇÃO

Este trabalho tem como preocupação investigar a hipótese de uma


teoria geral para o fato negligente, a partir de sua consideração sistemáti-
ca. Com isso, ficam abandonadas as contribuições e formulações relativas à
essência e às razões da punibilidade da negligência, que interessam mais ao
setor da indagação filosófica do que propriamente da elaboração doutrinária.
Desenvolve-se a tarefa proposta em duas fases. Na primeira, são ex-
postos os fundamentos doutrinários gerais, quanto à concepção do fato
negligente, consoante os diversos sistemas teóricos do delito. São analisa-
dos, assim, os princípios das teorias causal, finalista, normativista e social,
mediante a investigação de seus principais expositores e intérpretes. Na se-
gunda parte, busca-se a construção de uma teoria do delito negligente para
o direito positivo, a partir da consideração de um conceito de conduta e
da estrutura normativa. Segue-se, aqui, um esquema estrutural para o fato
negligente, orientado pelo modelo do delito doloso, mas autônomo e inde-
pendente deste.
A bibliografia referida e utilizada é constituída exclusivamente das obras
básicas e específicas ao tema, ficando também, de propósito, fora de referên-
cia outras indicações e trabalhos, que, embora constituam matéria relevante
para o direito penal, fogem ao objetivo visado ou se encontram absorvidos
ou inseridos em seus subsequentes.
Rio de Janeiro, setembro de 1985

O autor
PREFÁCIO

Para mim, é uma honra e uma alegria escrever estas palavras introdu-
tórias à obra do Sr. Prof. Tavares. Sua extensa monografia sobre a “Teoria
do Delito Culposo” é não somente uma obra fundamental para a doutrina
brasileira, mas pertence ao campo da ciência que hoje denominamos de
“Dogmática Jurídico-Penal Internacional”. Vale dizer: o livro não se ocupa
apenas do Direito nacional, mas da culpa enquanto problema que existe da
mesma maneira para todos os ordenamentos jurídicos.
A obra expõe o estado da discussão sobre a teoria da culpa não apenas
com base na ciência jurídico-penal brasileira, mas levando em extensa conta
a literatura espanhola, italiana e alemã. A exposição das opiniões dos nume-
rosos autores não se limita ao que eles disseram sobre a culpa, mas situa essas
considerações no contexto da respectiva concepção de sistema, de modo que
surge um panorama do moderno pensamento jurídico-penal. Tal é acentuado
pelo fato de que a exposição abrange todos os aspectos da culpa, desde a ação
até os problemas de culpabilidade.
A importância do presente livro está não só no fato da ampla conside-
ração de literatura internacional, como também e provavelmente ainda mais
no desenvolvimento, em mais de 400 páginas, de uma concepção própria no
que diz respeito a todas as questões relativas à culpa. No presente prefácio,
não é nem possível, nem adequado antecipar as teses do autor. Não tenho,
porém, dúvida de que a obra influenciará profundamente a Ciência do Di-
reito Penal no Brasil e em muitos outros países.
Eu parabenizo o Sr. Prof. Tavares por sua obra e desejo ao livro um
grande êxito, também internacional!
Munique, março de 2009

Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Claus Roxin


(Tradução de Luís Greco)
18 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

VORWORT
Es ist mir eine Ehre und Freude, dem Werk von Herrn Professor Ta-
vares ein Geleitwort mit auf den Weg geben zu dürfen. Seine umfassende
Monographie über die „Theorie des Fahrlässigkeitsdelikts“ ist nicht allein
eine Grundlagenschrift der brasilianischen Literatur, sondern gehört in den ABREVIATURAS
Bereich einer Wissenschaft, die wir heute „internationale Strafrechtsdog-
matik“ nennen. Das heißt: Es wird nicht allein nationales Recht bearbeitet,
sondern das Buch behandelt die Fahrlässigkeit als Problem, das für alle AT Allgemeiner Teil
Rechtsordnungen dieselbe Gültigkeit hat.
BT Besonderer Teil
Das Werk stellt deshalb den Diskussionsstand im Bereich der Fahrläs-
Cf Confira
sigkeitslehre nicht nur auf der Grundlage der brasilianischen Wissenschaft,
sondern unter umfassender Einbeziehung auch der spanischen, der italienis- Conf Conforme
chen und der deutschen Literatur dar. Es beschränkt sich bei Schilderung der CP Código Penal
unterschiedlichen Rechtsauffassungen der zahlreichen behandelten Autoren CPP Código de Processo Penal
auch nicht auf deren Aussage zur Fahrlässigkeit, sondern stellt diese Aussagen
in den Kontext der jeweiligen Systemkonzeption, so dass auf diese Weise ein CR Constituição da República
Panorama des modernen Strafrechtsdenkens entsteht. Das gilt umso mehr, DRiZ Deutsche RichterZeitung
als die Darstellung alle Aspekte der Fahrlässigkeit von der Handlung bis zu DZPh Deutsche Zeitschrift für Philosophie
den Fragen der Schuld umfasst.
FS Festchrift
Die Bedeutung des vorliegenden Buches liegt aber nicht allein in
der Verarbeitung eines umfangreichen internationalen Materials, sondern GA Goldthammer’s Archiv
ebenso und beinahe noch mehr in der Entwicklung einer eigenen Auffas- JuS Juristische Schulung
sung zu allen Fragen der Fahrlässigkeit, die mehr als 400 Seiten umfasst. Es JTACrim Jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal (SP)
ist hier nicht möglich und auch nicht angebracht, die Thesen des Autors
JZ JuristenZeitung
vorwegzunehmen. Doch besteht für mich kein Zweifel, dass das Werk die
Strafrechtswissenschaft in Brasilien und in vielen anderen Ländern nachhal- Loc. cit Local citado
tig befruchten wird. NStZ Neue Zeitschrift für Strafrecht
Ich gratuliere Herrn Professor Tavares zu seinem Werk und wünsche NZV Neue Zeitschrift für Verkehrsrecht
dem Buch einen großen – auch internationalen – Erfolg!
Ob. cit Obra citada
München, im März 2009
OLG Oberlandsgericht
Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Claus Roxin
PE Parte Especial
PG Parte Geral
RDP Revista de Direito Penal
RG Reichsgericht
20 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

RT Revista dos Tribunais SUMÁRIO


STJ Superior Tribunal de Justiça
STF Supremo Tribunal Federal PREFÁCIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
VORWORT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
StG Strafgesetzbuch
ABREVIATURAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
STF Supremo Tribunal Federal
ZFRV Zeitschrift für Rechtsvergleichung PRIMEIRA PARTE - FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIOS
ZStW Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft
CAPÍTULO 1 - INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
I. Característica geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
II. Posição sistemática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
III. A doutrina dos clássicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

CAPÍTULO 2 - TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53


I. A teoria causal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
1. Características dos sistemas causais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
2. Os elementos da negligência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
3. Crítica à teoria causal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
II. A teoria finalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
1. Características do sistema finalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
2. O princípio da finalidade potencial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
3. O modelo conclusivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
4. Variantes do finalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
(1) A concepção de MAURACH . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
(2) A concepção de STRATENWERTH . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
(3) As concepções de KAUFMANN, STRUENSEE, ZIELINSKI e BLEI . . . . . . . . 80
(4) A concepção de ZAFFARONI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
5. O finalismo brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
(1) JOÃO MESTIERI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
(2) LUIZ LUISI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
(3) HELENO CLÁUDIO FRAGOSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
(4) HEITOR COSTA JÚNIOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
(5) LUIZ REGIS PRADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
(6) JUAREZ CIRINO DOS SANTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
(7) CEZAR ROBERTO BITENCOURT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
6. Crítica à teoria finalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
III. As teorias valorativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
1. Características gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
2. A teoria normativista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
(1) O conceito de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
22 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO SUMÁRIO 23

(2) A estrutura do tipo e da culpabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115


(a) A concepção de BOCKELMANN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
SEGUNDA PARTE - POSIÇÃO ADOTADA
(b) A concepção de SCHMIDHÄUSER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
(3) Os fundamentos da negligência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 CAPÍTULO 1 - APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
(a) A concepção de BOCKELMANN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 I. A tendência dos sistemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
(b) A concepção de SCHMIDHÄUSER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 II. As perspectivas metodológicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
(4) Crítica à teoria normativista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
III. Denominação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232
3. A teoria social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
(1) O conceito de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
(a) A concepção de JESCHECK . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136 CAPÍTULO 2 - O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS . . . . . . . . . 239
(b) A concepção de WESSELS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
(c) A concepção de HAFT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
SEÇÃO 1 - PRESSUPOSTOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
(d) A concepção de HELLMUTH MAYER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 I. Proposição de um conceito de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
(2) Os fundamentos da negligência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 1. Pressupostos do conceito de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
(a) A concepção de JESCHECK . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 2. Ação como atividade organizada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
(b) A concepção de WESSELS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
3. A ação no processo de comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
(c) Outros posicionamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
4. A ação como conduta volitiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254
(aa) A concepção de HELLMUTH MAYER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
(bb) A concepção de ARTHUR KAUFMANN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
5. Ação e atos impulsivos, ou automatizados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
(cc) A concepção de HAFT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156 6. Ação e objetos de referência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
(3) Crítica à teoria social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
7. Ação e culpa inconsciente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
8. Ação e omissão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260
IV. A doutrina italiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 9. Características da vontade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
1. Característica geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 10. Ação e esquecimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267
2. As concepções individuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 11. Conclusão sobre o conceito de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 270
(1) A concepção de FIANDACA-MUSCO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
II. A imputabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273
(2) A concepção de BETTIOL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
(3) A concepção de MANTOVANI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
III. A estrutura normativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 276
1. A questão do bem jurídico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
(4) Outros posicionamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
2. O processo de formação normativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279
3. Crítica à doutrina italiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184 3. Interesse e valor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281
V. As teorias funcionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 4. Proibições e comandos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
1. O conceito de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 5. Dever de cuidado e conduta perigosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289
(1) A concepção de ROXIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188 6. Delito culposo e delito omissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
(2) A concepção de JAKOBS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189 IV. A divisão delitos dolosos e culposos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297
(3) A concepção de MUÑOZ CONDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192 V. O sistema adotado e o Código Penal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
(4) Outros posicionamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194 1. A estrutura lógica do art. 13 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 304
(a) ENRIQUE BACIGALUPO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194 2. As implicações teleológicas do art. 13 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308
(b) ROLF DIETRICH HERZBERG . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
(c) HANS-JOACHIN BEHRENDT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198 3. As implicações sistemáticas do art. 18 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 309
2. Os fundamentos da negligência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198 4. Tipos culposos derivados e autônomos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 310
(1) A concepção de ROXIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198 SEÇÃO 2 - O TIPO DE INJUSTO NO FATO CULPOSO. . . . . . . . . . . . . . . . 311
(a) O tipo de injusto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
(b) A antijuridicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 I. Aspectos gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311
(c) A culpabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 1. A questão do tipo aberto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311
(2) A concepção de JAKOBS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 2. A perspectiva de classificação dos delitos culposos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315
(3) A concepção de MUÑOZ CONDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 II. A ação típica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317
3. Crítica às teorias funcionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216 1. A ação típica como conduta voluntária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317
24 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO SUMÁRIO 25

2. A ação típica como conduta descuidada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 322 (DD) Critérios relativos à qualidade da ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 417
(aa) O risco permitido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 418
III. O critério da medida do cuidado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323
(bb) O risco habitual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 421
IV. A questão do tipo subjetivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331 (cc) A culpa leve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 422
V. A lesão aos deveres de cuidado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333 (dd) A questão da gravidade da culpa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 423
1. Delimitação e conteúdo dos deveres de cuidado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .333 Excerto: a compensação de culpas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 426
(1) O dever de reconhecimento do perigo (cuidado interno) . . . . . . . . . . . . . . . . . 334 VIII. As fases de realização do tipo culposo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427
(2) O dever de realizar conduta cuidadosa ou dela se abster (cuidado externo) . . . . 336
(a) A abstenção da conduta perigosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336 SEÇÃO 3 - A ANTIJURIDICIDADE NO FATO CULPOSO. . . . . . . . . . . . . . 428
(b) A execução da ação cautelosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337 I. Aspectos gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 428
(c) O dever de atenção, controle e guarda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
(d) O dever de prévia informação e preparação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339 II. As causas de justificação em espécie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 432
2. As normas de trânsito e os regulamentos profissionais . . . . . . . . . . . . . . . . 342 1. A legítima defesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 432
VI. O princípio da confiança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 348 2. O estado de necessidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435
1. Perigo por ação natural e por ação humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 350 (1) A produção do perigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436
2. Conduta de outrem provavelmente perigosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351 (2) A inexigibilidade do sacrifício do bem protegido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440
3. Deveres especiais de controle . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352 3. O consentimento do ofendido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 441
4. Conduta de outrem contrária ao dever . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352
5. A participação culposa em ação de outrem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353 CAPÍTULO 3 - A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO . . . . . . . . . . . 449
VII. A imputação do resultado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 358 I. Aspectos gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 449
1. A questão do resultado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 358 II. Espécies de culpa: consciente e inconsciente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 455
2. A relação de causalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .362
3. A imputação normativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 366 III. A capacidade de culpabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461
1. O conceito de imputabilidade na negligência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461
(1) Critérios de delimitação da própria causalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367
2. A capacidade diminuída de culpabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 462
(a) A causalidade típica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367
(b) O critério do comportamento alternativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370 3. A actio libera in causa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 462
(c) A causalidade funcional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371 (1) As hipóteses metodológicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 462
(d) A cláusula ceteris paribus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 378 (2) A divergência doutrinária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463
(2) O fim de proteção da norma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 379 (3) Conclusão sobre a actio libera in causa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 465
(a) O código de trânsito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 382
(b) Os regulamentos médicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 385 4. A embriaguez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 468
(c) Os regulamentos laborais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387 IV. A capacidade de reconhecer o cuidado e evitar o resultado . . . . . . . . 474
(3) A imputação normativa do resultado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 388 V. A capacidade de previsão do resultado e do nexo causal . . . . . . . . . . . 477
(a) A previsibilidade do resultado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 389
(b) O critério da evitabilidade do resultado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 394 VI. A consciência da antijuridicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 480
(c) A teoria do aumento do risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 397 VII. A inexigibilidade de conduta conforme à norma . . . . . . . . . . . . . . . 488
(AA) O setor da criação do risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 400 1. As causas de exculpação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 489
(aa) A diminuição do risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 400 2. Particularidades das causas de exculpação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 490
(bb) A ausência do aumento do risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 401
(cc) Aumento do risco e limitação temporal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403
VIII. A exclusão da responsabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 491
(BB) O setor da realização do risco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 406
(aa) A ausência de realização do perigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .406 CAPÍTULO 4 - O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO . . . 493
(bb) A ausência de realização do risco não permitido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 407 I. O conceito de autor culposo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 493
(CC) O setor do alcance do tipo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 408 II. Os pressupostos do concurso doloso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 495
(aa) A autocolocação em perigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410
(bb) A heterocolocação em perigo consentida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 414
III. Os pressupostos da autoria culposa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 498
(cc) O âmbito de responsabilidade alheio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416 IV. A suposta coautoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 501
26 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

V. Autoria mediata e participação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 504


VI. A atuação dolosamente distinta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 511

CAPÍTULO 5 - OS DELITOS QUALIFICADOS PELO RESULTADO . . . 513


I. Característica geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513
II. Os fundamentos doutrinários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513
III. Particularidades da relação dolo e culpa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 516
1. Os grupos de delitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 516
2. A excepcionalidade dos delitos culposos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 518

CAPÍTULO 6 - O DELITO OMISSIVO CULPOSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 523


I. A previsão legal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 523
1. A norma na omissão própria culposa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 524 PRIMEIRA PARTE
2. A norma na omissão imprópria culposa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 526
II. Os elementos do tipo omissivo culposo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 527
III. A culpabilidade nos delitos omissivos culposos . . . . . . . . . . . . . . . . 531
FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIOS

CAPÍTULO 7 - O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS . . . . . . . . . . . . 533


I. Normas gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 533
II. A unidade e pluralidade de ações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 534
1. Ação natural e unidade natural de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 534
2. Ação comunicativa e unidade normativa de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 535
3. A unidade jurídica de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 542
(1) A unidade típica de ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 542
(2) A unidade de ação em identidade parcial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 543
III. O concurso material . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 544
IV. O concurso formal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 545
V. O crime continuado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 546
VI. O concurso de leis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 549
1. Características . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 549
2. Especialidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 553
3. Subsidiariedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 554
4. Consunção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 555
5. Antefatos e pós-fatos impuníveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 556
6. A identidade de autor e a pós-pendência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 558

BIBLIOGRAFIA GERAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 559

INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 571


CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO

SUMÁRIO: I. Característica geral – II. Posição sistemática – III. A


doutrina dos clássicos.

I. CARACTERÍSTICA GERAL
A culpa, no sentido de negligência, ou crime culposo,1 constitui uma
criação da ordem jurídica. Não há crime culposo em sentido natural. O crime
culposo decorre de um processo de imputação que tem por fundamento a
realização de uma conduta que exceda os limites do risco autorizado e se veja
assinalada como penalmente relevante em um tipo de delito. Diz-se que o
crime culposo é inferido de um processo de imputação porque, ao identificar
como penalmente relevante uma determinada conduta e criar sua configura-
ção típica como fato culposo, a ordem jurídica deve encarregar-se de definir
também seus pressupostos, como forma de delimitar a atribuição de responsa-
bilidade pela realização daquela conduta e de seus efeitos. Mas diferentemente
do que postulava a doutrina majoritária até a primeira metade do século XX, o
processo de imputação que dá lugar ao crime culposo possui conteúdo próprio,
que o caracteriza, ao lado do crime doloso e do crime omissivo, como modali-
dade especial de delito. Assim, poder-se-ia também dizer que o crime culposo
compõe uma forma especial de imputação, que a ordem jurídica, por meio de
uma argumentação analítica com base na violação de uma norma de cuidado,
assinala como relevante para definir sua atuação em face de certas condutas que
tenham ingressado na zona do ilícito. A violação da norma de cuidado e o risco
permitido constituem, portanto, elementos essenciais para a caracterização do
crime culposo. Embora a figura do crime culposo tenha sido produzida a partir
de uma alteração de rumos na concepção de conduta, subsiste ainda a discussão
se a estrutura dessa conduta condiciona ou não a forma de aparecimento do
delito.2 Atribuir-se às características da conduta a condição de fundamentar a

1. Como se verá no decorrer do trabalho, atendendo a um preceito de ordem prática, as expressões culpa,
negligência ou crime culposo são usadas, indistintamente, como sinônimas, ainda que, cientificamente,
o termo negligência seja mais adequado a retratar esta modalidade de conduta.
2. Desde o Tratado de ALBERT FRIEDRICH BERNER (Lehrbuch des deutschen Strafrechts, 1857), o
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criação do crime culposo é um velho tema da dogmática penal, que foi desen- mais a uma exegese primária do texto legal e a uma análise moral do aconteci-
volvido mais intensamente a partir da polêmica em torno do conceito de ação mento do que propriamente à determinação da verdade de qualquer daquelas
provocado por MEZGER, ao lado dos causalistas, e WELZEL, pelos finalistas teorias. Tendo em vista justamente as consequências dessa polêmica, de modo
no período de pós-guerra.3 A centralização da temática do delito sobre o con- a evitar que a dogmática em torno do crime culposo se reduza a questões
ceito de ação teve como consequência a produção de uma dogmática estéril,4 puramente práticas, que seriam, então, solucionadas, na maioria das vezes,
que se destacava sobremaneira por admitir a existência de um delito culposo pela jurisprudência, o tema relativo ao conceito de ação deve ser enfrentado
independentemente das orientações políticas do legislador. Isto se operava por sob duas perspectivas: a) da delimitação do poder de punir; b) da unidade de
sobre a base da produção causal de um resultado (teoria causal) ou sobre uma tratamento dos delitos.
orientação final de conduta (teoria finalista). Se alguém, por exemplo, dirigin- A primeira perspectiva decorre do postulado político do direito penal
do em excesso de velocidade, atropelasse outrem, o processo de imputação de e está associada, diretamente, à constituição do tipo de injusto como con-
responsabilidade ao motorista estaria fundamentado pelo fato de haver causado sequência de um Estado de direito democrático, no qual toda conduta deve
o atropelamento e a consequente morte ou lesão do pedestre (esquema causal), ser vista a partir de seus elementos comunicativos, como expressão da pessoa,
ou porque não havia observado um mínimo de direção finalista para evitar esse mas fixados na norma como condição de garantia. A segunda perspectiva está
fato (esquema finalista). Além do causalismo e do finalismo surgiram outras orientada por fundamentos dogmáticos.
teorias da ação (normativista, social, funcionalista, negativista, personalista
e comunicativa), que buscaram enfocar os elementos da conduta conforme Em face da variedade de teorias que pretendem equacionar os elementos
outras orientações. Ainda que fosse complexo compreender como a finalidade essenciais do comportamento, poder-se-ia dizer, em um primeiro momento,
da ação seria tratada no crime culposo, por exemplo, parece que a dogmática que não há demonstração empírica de que o poder de punir do Estado, mani-
daí derivada estaria destinada a legitimar a incriminação sem empreender uma festado mediante a criação das respectivas proibições ou determinações legais,
discussão maior sobre as bases político-criminais dessa decisão. Isto ocorre com possa ser delimitado pela estrutura da conduta. Tendo em vista os respectivos
qualquer teoria da ação que tenha o propósito de servir de modelo para o fato objetivos políticos, sempre que o poder de punir do Estado pretendeu perseguir
culposo a partir de sua própria conceituação. Desde que a discussão ficasse seus súditos com maior rigor, valeu-se de conceitos diferenciados relacionados
restrita à edificação de elementos puramente conceituais, a decisão acerca da ao próprio fato ou à conduta, quer amparando-se na relação de causalidade
incriminação passaria a ser de ordem prática, ou seja, no fundo quem iria de- entre ação e resultado, quer alicerçando-se sobre uma base ontológica, quer
terminar a criação do delito culposo seria a jurisprudência. Diante da polêmica subordinando-se a uma função social. O conceito de conduta tem servido,
acerca de o delito culposo possuir uma base puramente causal ou final, por assim, de medida estratégica para a legitimação do poder de punir.
exemplo, o que poderia dar lugar a indagações puramente abstratas, uma vez Pela perspectiva de proteção, que deve orientar a investigação dogmáti-
não situadas em face da norma incriminadora, a solução dos casos práticos ca do delito culposo, parece que a delimitação do poder de punir só poderá
ficaria por conta de puro decisionismo do julgador, que estaria voltado muito ser obtida de modo mais eficaz por dois outros meios: a) primeiramente,
com uma perfeita identificação das zonas do lícito e do ilícito, traçadas com
conceito de ação passou a constituir o ponto nevrálgico do sistema do delito, que se estendeu até nossos nitidez pela norma penal; b) depois, com a exigência de que a violação nor-
dias por meio da crescente infuência da dogmática alemã. Para esta evolução, cf. ROXIN, Claus. Stra- mativa se expresse com a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico que serve
frecht, AT, 4ª edição, 2006, p. 199 e ss.
3. Sobre isso, WELZEL, Hans. Um die finale Handlungslehre. Eine Auseinandersetzung mit ihren Kri- de pressuposto ao respectivo tipo de delito. Estas são duas condições iniciais
tikern. (Recht u. Staat. 146), Tübingen, 1949; idem, Das neue Bild des Strafrechtsystems (Göttinger
rechtswissenschaftliche Studien. 1), Göttingen 1951, 4ª edição ampliada 1961; idem, Teoría de acción essenciais à configuração do injusto penal. Está claro que estas condições não
finalista, Buenos Aires: Astrea, 1951, p. 18 e ss.; HIRSCH, Hans Joachim. Der Streit um Handlungs-
und Unrechtslehre, insbesondere im Spiegel der Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, in: são absolutamente suficientes, mas servem de ponto de partida já determina-
ZStW 93 (1981), 831-863; 93 (1982), 239-278; MEZGER, Edmund. Moderne Wege der Strafrechts- do sob uma perspectiva de garantia e não de simples justificação.
dogmatik, Berlin: Duncker & Humblot, 4ª edição, 1950.
4. Ver crítica de MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmundo Mezger y el derecho penal de su tiempo. Estu-
dios sobre el derecho penal en el nacionalsocialismo, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003. O importante, portanto, para fundar-se um direito penal de garantia,
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conforme uma ordem jurídica democrática, mais do que a estrutura da condu- conduta facilite o aparecimento de formulações divergentes acerca de sua na-
ta, se causal, final, social ou funcional, será a forma como se indica, ou como se tureza e composição, essa diversidade pode, também, comprometer a própria
manifesta a proibição ou a determinação normativa dessa conduta (definição estrutura do delito como objeto dogmático. Assim, conforme a concepção de
das zonas do licito e ilícito) e como se medem a subsistência e a intensidade conduta que se adote, poderá também variar a dogmática do delito culposo.
da lesão ou do perigo de lesão ao bem jurídico que ela provoca. Nos delitos Afora a questão da legitimidade da incriminação, deve-se assinalar,
culposos, especificamente, isto se dá mediante a forma e o modo como vem também, se a subordinação da dogmática do delito culposo à dogmática da
estruturado o excesso do risco autorizado e como se manifesta sua relação com conduta é adequada a uma formulação coerente.6 A sistematização analítica
o resultado proibido, portanto, segundo a forma e o modo como se desenvolve, da teoria do delito, tanto no aspecto de sua subordinação aos preceitos de
argumentativamente, o processo de imputação dessa conduta ao seu autor. um Estado de direito democrático, mediante a precisa identificação de como
A base da estrutura do delito culposo, portanto, não se situa no con- se manifesta a norma penal e como se mede a lesão ou o perigo de lesão aos
ceito de conduta, mas na forma e no modo de sua imputação, quer dizer, bens jurídicos, quanto sob o aspecto da apreciação dogmática acerca de seus
a relevância penal de uma conduta para caracterizá-la como culposa irá de- elementos essenciais, deve servir ainda para proporcionar a unidade das espé-
pender menos de sua configuração natural e muito mais dos requisitos que a cies de delito em torno de um denominador comum e, principalmente, sua
norma jurídica lhe empreste. Somente por meio da norma que fixe os limites diferenciação. Isto quer dizer que a culpa, não sendo mais vista como simples
do risco autorizado ou desautorizado, portanto, que assinale os contornos do variação do elemento subjetivo, pelo qual se poderia assinalar a vinculação entre
lícito e do ilícito, será possível afirmar-se que a conduta realizada conduz à o sujeito e seu ato, nem como forma especial de aparecimento da ação, mas
produção de um resultado danoso, juridicamente relevante, em face de haver como forma especial de imputação, implica uma configuração diferenciada
lesado ou posto em perigo um bem jurídico. dos elementos relacionados à tipicidade, à antijuridicidade e à culpabilidade.
A despeito dessas considerações, o delito culposo sempre obteve sua Partindo de sua definição legal, pode-se desde já enunciar que, en-
legitimação ao longo da evolução da doutrina, essencialmente, em função da quanto no crime doloso a imputação tem por base a realização de uma ação
relação entre ação e resultado, quer no sentido causal, quer no sentido final, com consciência e vontade de violar os limites típicos das zonas do lícito e
o que tem conduzido a que todas as concepções que buscam caracterizar a produzir lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, na culpa, ou negligência,
culpa, ou negligência, no direito penal, indiquem que seus fundamentos têm a imputação pela realização do tipo tem por base uma ação que excede os
origem, de um modo ou de outro, no próprio conceito de conduta e em sua limites dos riscos autorizados na relação jurídico-social e com isso vem a lesar
extensão sobre os demais elementos do delito. Isto fomentou que o concei- ou a por em perigo um bem jurídico-penalmente relevante.
to de conduta humana, tomado em qualquer sentido (empírico, normativo A diferenciação entre delitos dolosos e culposos corresponde a uma
ou, até mesmo, negativo), fosse usado para reunir, em unidade comum, as necessidade imperiosa da ordem jurídica democrática. Uma vez que o obje-
condutas dolosas e culposas, ou seja, para proporcionar, dogmaticamente, a tivo do direito penal é fixar, com nitidez, os limites do lícito e do ilícito para
unidade de tratamento das variadas formas de aparecimento do delito.5 Por-
tanto, a concepção de conduta conduziu a que a estrutura do delito culposo 6. Modernamente vem se desenvolvendo uma crescente discussão em torno do conceito de coerência. Isto
fosse construída, dogmaticamente, ou sobre um dado natural, empírico ou tem, praticamente, suas origens no entendimento de que não será possível proceder-se à análise dos
fenômenos sem levar em conta a atuação do contexto no qual esses fenômenos se verifiquem, o que
ôntico (concepções causal e final), ou sobre uma simples asserção normativa significa que uma teoria só pode ser conferida em sua correção ou refutação a partir do todo em que ela
é formulada e não apenas em função de seus elementos parciais. Esta discussão tem-se estendido desde
(concepção normativista). Na medida em que a investigação do conceito de a física nuclear até as mais recentes investigações da neurociência. Conf. STEGMÜLLER, Wolfgang.
Probleme und Resultate der Wissenschaftstheorie und Analytischen Philosophie, Tomo II: Theorie und
Erfahrung, 2ª. Parte: Theorienstrukturen und Theoriendynamik, 2ª. Edição, Berlin–New York: Springer,
1985; POLKINGHORNE, John. Quantentheorie. Eine Einführung, Reclam: Stuttgart, 2006, p. 69; ZO-
5. Este é ainda o entendimento geral nas orientações da teoria do delito. Ver, sobretudo, a lição de WES- GLAUER Thomas. “Theorieabhängigkeit der Messung: Ein Argument für die holistische Interpretation
SELS-BEULKE. Strafrecht, AT, 33ª edição, 2003, p. 232 e ss.; da mesma forma ROXIN, Claus. Stra- physikalischer Theorien” in: Eva Jelden (Organizadora): Prototheorien – Praxis und Erkenntnis? , Lei-
frecht, AT, 4ª edição, 2006, p. 196, para quem o pressuposto para a existência do delito consiste na pziger Universitätsverlag 1995, p. 115-122; INGENDAHL, Werner. “Lernen in der Hirnforschung”, in
ocorrência de uma ação, como manifestação exterior significativa. Schulmagazin 5/10, Uni-Wuppertal, 1998, p. 5.
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o efeito de assegurar a todas as pessoas o pleno exercício de sua liberdade, a idoneidade comunicativa dessa proibição e aos elementos que possam de-
norma penal respectiva deve regular a intensidade da imputação tanto em monstrar e medir a lesão ou o perigo de lesão a um bem jurídico.
função do processo de produção objetiva do resultado de dano ou de perigo O estudo do conteúdo do injusto penal vem sofrendo, por sua vez, uma
ao bem jurídico, quanto em função dos modos como se estabelece a relação gradativa transformação. Há algum tempo, era matéria de indagação exclusiva
consciente e volitiva dessa produção (no caso do crime doloso) ou como nela dos delitos dolosos que, por serem mais importantes e numerosos, abarcavam
se representa o excesso do risco autorizado em função do sentido da atividade praticamente todo o direito penal. No sistema do direito natural, por exemplo,
desenvolvida pelo agente (no caso do crime culposo). relevante era apenas o crime doloso. Ao crime culposo se atribuía o papel de
II. POSIÇÃO SISTEMÁTICA quasi delictum, ao qual seria cominada uma poena extraordinaria. Da mesma
forma sucedia com os hegelianos, que buscaram centralizar o núcleo de suas
Se o estudo da culpa, ou negligência, está envolvido, materialmente, preocupações na vinculação dogmática do delito culposo ao crime doloso,
na problemática da teoria do delito, segue-se que seu primeiro parâmetro chegando a ver naquele um momento volitivo, que se manifestaria no saber e
corresponde à sua posição sistemática, quer dizer, conforme se formule seu no querer quanto às condições das quais resulta, como real possibilidade, o
tratamento nas categorias da tipicidade, antijuridicidade ou culpabilidade resultado antijurídico. O mesmo se deu com FEUERBACH, que vinculava
irão ser demarcadas suas áreas e seu alcance. Se, por exemplo, a conduta cul- a teoria da culpa, ou negligência, à teoria da coação psicológica da norma,
posa for caracterizada como forma de culpabilidade, tal como se faz na teoria elaborada sobre o crime doloso, com base na lesão de um direito subjetivo.8
causal-naturalista e em alguns setores da prática judiciária, ficará, imediata-
mente, afastada qualquer investigação acerca do tipo e da antijuridicidade, A prevalência do delito doloso e de seu estudo foi sendo, porém, subs-
porque, sendo estes elementos também os mesmos para os fatos dolosos e tancialmente comprometida em face de novos e complexos conflitos sociais.
culposos, sem qualquer outra valoração normativa, não necessitariam aqui A diversidade operada nas relações capitalistas de produção, com a industria-
de novas indagações, pois já estariam configurados com a atividade causal. A lização e o uso, cada vez mais crescente, de máquinas ou instrumentos sobre
dogmática penal, no entanto, não fixa a posição sistemática aleatoriamente, os quais se passava a exigir uma especial atenção de seus protagonistas para
nem a faz decorrer de mero enquadramento técnico do fato a determinado assegurar a eficácia produtiva, de um lado, e o valor de troca dos próprios
tipo de delito, muitas vezes realizado mecanicamente. A posição sistemática equipamentos, de outro, induz e fortalece uma nova forma de política crimi-
está também comprometida pelo sentido da política criminal e vem a ser, nal.9 Ademais, com o processo produtivo que se desenvolve no âmbito dessa
assim, o resultado da solução que se formula ao problema do conteúdo industrialização e o consequente consumo de seus produtos por um público
do injusto penal, como fundamento do processo de imputação da conduta que, para desfrutá-los, deve aprender como manejá-los, se vão criando novas
proibida expressa no tipo legal.7 Diversamente, pois, do que pensavam os exe- expectativas de relacionamento, antes desconhecidas. A criação de novas ex-
getas, que faziam derivar da interpretação literal da norma os fundamentos pectativas não pode ser vista, porém, fora do modo de produção capitalista. O
classificatórios dos fatos penalmente relevantes, a proibição de uma conduta, modo de produção capitalista está orientado basicamente pela capacidade de
como delito culposo, não se esgota na sua definição legal. A definição legal de
uma conduta proibida constitui apenas o primeiro degrau de concretização 8. Para uma visão histórica, compare-se WELZEL, Hans. Nota 7, 1970, p. 182, bem como BERNER,
Albert Friedrich. Grundlinien der kriminalistischen Imputationslehre, Berlin: Dümmler, 1843, p. 227
dos pressupostos negativos do direito penal, que se devem estender ainda à e ss; BOLDT, Gottfried. Johann Samuel Friedrich von Böhmer und die gemeinrechtliche Strafrecht-
swissenschaft, Berlin-Leipzig: de Gruyter, 1936, p. 387; FEUERBACH, Anselm Ritter von. Lehrbuch
des gemeinen im Deutschland geltenden Peinlichen Rechts, 1840, p. 92 e ss; KÖSTLIN, Christian Rei-
7. No sentido de uma investigação do injusto, como ponto de partida para a análise do fato culposo, nhold. System des deutschen Strafrechts, Tübingen: Laupp, 1855. p. 165; MUÑOZ CONDE-GARCIA
situam-se, entre outros, BOCKELMANN, Paul. Strafrecht, AT, 1975, p. 150 e ss; BURGSTALLER, ARÁN. Derecho penal, PG, 4ª edição, Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 319.
Manfred. Das Fahrlässigkeitsdelikt im Strafrecht, Wien: Manz, 1974, p. 26; ESER, Albin. Strafrecht, 9. MARX, Karl. Das Kapital, in Karl Marx-Friedrich Engels, Werke, Volume 23, Berlin: Dietz Verlag,
II, Juristischer Studienkurs, 1971, p. 14; JESCHECK-WEIGEND. Lehrbuch des Strafrechts, 5ª edição, Tomo I, 1962, p. 87, assinala como as mercadorias, no sistema capitalista, entram no mercado em fun-
1996, p. 563 e ss; KAUFMANN, Armin. “Das fahrlässige Delikt”, in ZfRV 1964, p. 46; ROXIN, Claus. ção de seu valor de troca. Na medida em que os objetos criados pelo trabalho humano se transformam
Strafrecht. AT, 4ª edição, 2006, p. 1063 e ss; RUDOLPHI, Hans-Joachin. “Vorhersehbarkeit und Schut- em mercadorias passam a ser valorados tão somente em razão de sua capacidade de troca no mercado
zzweck der Norm”, JuS 1969, p. 549; WESSELS-BEULKE. Strafrecht, AT, 33ª edição, 2003, p. 223; (fetichização) e não mais pelo tempo de trabalho empregado em sua produção, o que proporciona o
WELZEL, Hans. Derecho penal alemán, 1970, p. 183 e ss. processo de ocultação do valor trabalho e, consequentemente, da mais-valia.
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seus produtos serem trocados no mercado, quer dizer, sob a perspectiva de que discurso argumentativo. Primeiramente, em face da intensificação de seus
as coisas produzidas sejam tratadas como mercadorias e não, simplesmente, elementos simbólicos,12 associados à chamada finalidade de proteção de bens
conforme sua utilidade. Mas os objetos não podem ser impostos, sem mais, aos jurídicos, o discurso argumentativo foi conduzido pela necessidade prática
consumidores, senão na medida em que lhes sejam úteis. Isto implica que essas de proceder a uma separação das atividades, de modo que as atividades deli-
mercadorias só terão valor (só podem ser trocadas) se puderem ser ofertadas no tuosas se diferenciassem daquelas outras que eram vistas como adequadas e
mercado, sob o pressuposto de que interessem (tenham valor de uso) a todos indispensáveis à estrutura social, econômica e política e, por isso, deveriam
os consumidores. Está claro que, em um processo de aferição de utilidade cole- ficar de fora da punição. Por exemplo, com o processo de industrialização,
tiva, o resultado só pode ser levado em conta se as ações de comercialização se ainda que se pudesse reconhecer que as atividades industriais produzissem
orientarem a induzir os consumidores à aquisição dos produtos, ou seja, o valor danos pessoais, se queria evitar a proibição dessas atividades. Isto fazia parte
de troca está também na dependência não apenas de uma relação quantitativa, dos interesses políticos, acolhidos argumentativamente no direito penal.
mas de uma relação comunicativa. Conforme leciona HAUG, o valor de troca Depois, o discurso argumentativo visou a proceder a um tratamento uni-
não pode prescindir também de que a mercadoria seja apresentada de modo forme desses fatos com vistas a fortalecer seu julgamento técnico perante a
atraente; nesse caso, a aparência estética do produto é também portadora de justiça criminal e assegurar, pelo menos teoricamente, uma decisão coerente.
um significado econômico, de tal sorte que quem domina sua manifestação Uma vez fixados os parâmetros para evitar que o processo de imputação se
também domina as pessoas fascinadas e as induz ao consumo.10 Dessa relação estendesse àquelas atividades consideradas socialmente essenciais, está claro
entre o valor de uso e o valor de troca daí equacionado é que são criadas as que as decisões judiciais deveriam estar afinadas com esta finalidade, o que
novas expectativas, pelas quais estaria, em tese, orientada a criação jurídica. poderia ser obtido mediante uma aproximação do julgador às formulações
Quando, por exemplo, as legislações vigentes instituem a responsabilidade de teóricas. O decisionismo judicial ficaria delimitado, portanto, a uma estrutu-
entes coletivos pelo mau produto, não o fazem com vistas ao consumidor indi- ra sedimentada no risco autorizado. Finalmente, como não poderia deixar de
vidual, mas em função da necessidade estratégica de assegurar uma estabilidade ser, o discurso se destinava a solidificar a proibição na medida em que esses
das expectativas coletivas de consumo, de modo a garantir o valor de troca das fatos não se multiplicassem para além de certa frequência estatística, isto é,
mercadorias postas no mercado. que ficassem confinados a uma determinada quantidade, com algum grau
Na verdade, a incontrolável motorização da vida moderna, em escala de estabilidade, de modo a poder atender a uma expectativa daquilo que se
mundial e intensa, a começar do século XIX, e a consequente introdução projetava como juridicamente aceitável conforme o modelo de organização
de atividades e serviços especialmente técnicos daí decorrentes, pelos quais a social vigente. Se era interesse social e econômico, até em face da concorrên-
vida comum começou a compor-se de uma série de atividades arriscadas e, cia, por exemplo, produzir veículos cada vez mais possantes, o controle sobre
em muitos casos, lesivas, conduziram a uma reformulação da teoria do delito, seu uso não poderia impedir sua própria produção, até porque o próprio
que passou a justificar, sob outros parâmetros, a política criminal de estender, uso não teria sentido se esses produtos não pudessem ser comercializados.
também, a essas condutas perigosas a sanção criminal e, consequentemente, Daí que o objetivo da incriminação não era o de eliminar os fatos danosos,
a proceder à sua análise no conteúdo do injusto penal.11 Em termos estrita- apenas fazê-los estacionar em determinados limites aceitáveis, quer dizer, em
mente dogmáticos, portanto, como manifestação abstrata dessa nova política vez de se proibir a produção de veículos que alcancem velocidades magistrais,
criminal, pode-se dizer que o interesse doutrinário em torno dessa espécie de ou se modificar a estrutura do transporte de pessoas, se edifica um discurso
delito se orientou sob diversas perspectivas. dirigido a estabelecer os fundamentos para a responsabilidade individual
Cada uma dessas perspectivas está vinculada, por sua vez, a distin- 12. Há muitas interpretações acerca do simbólico, ora referente à natureza da legislação, ora aos seus obje-
tos aspectos da política criminal, sedimentados em formas determinadas de tivos. Aqui é empregado o “simbólico” em contraposição ao “material” ou “empírico”. Para as variações
desse tema, v. HASSEMER, Winfried. “Das Symbolische am symbolischen Strafrecht”, Festschrift-Ro-
xin zum 70, 2001, p. 1017; RIPOLLÉS, José Luís Díez. “Symbolisches Strafrecht und die Wirkung der
10. HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria, Unesp, 1997, p. 27. Strafe”, in: ZStW 2001, S. 516 (518), que substitui o conceito de simbólico pelo que chama de efeitos
11. Sobre isso, GROPP, Walter. Strafrecht, AT, 2ª edição, 2001, p. 415. expressivos-integrativos da pena.
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do motorista, sob o pressuposto de que os acidentes irão de qualquer forma de proteção. Ao se entender, por outro lado, que as normas jurídicas não são
ocorrer. Aqui se procede, agora, no âmbito da política criminal, a uma nova produtos isolados do processo legislativo, mas sim manifestações típicas de
fetichização da mercadoria, que, em vez de ser ela mesma submetida a contro- uma determinada formação social, a própria regulação das relações interindi-
le, transfere para o consumidor o ônus decorrente de seu emprego. Em face viduais está também subordinada aos seus pressupostos. Embora nos casos em
dessas perspectivas, pode-se ver como os fins de política criminal comprome- que a causação do dano se deva exclusivamente a relações entre indivíduos (p.
tem de modo quase irreversível a formulação da dogmática penal e, portanto, exemplo, alguém distraidamente golpeia a cabeça de outrem) se possa admitir
a base dos fatos penalmente relevantes em todas as formas de manifestação.13 uma certa independência para com a estrutura da formação social, isso não
O argumento principal, portanto, a legitimar que a análise do injusto descarta a conclusão de que sua regulação como matéria penal só adquire sig-
penal do delito doloso se estendesse ao delito culposo teve, na sua origem, o nificado quando associada ao caráter global da sociedade produtiva, quer dizer,
objetivo de obter uma estabilidade do conjunto normativo correspondente o processo incriminador da atividade culposa, tanto nas relações interindivi-
à formação social capitalista, mediante o recurso simbólico à suposta finali- duais quanto nas coletivas, está condicionado aos mesmos pressupostos, mais
dade protetiva da norma. Na medida em que se incorpora ao direito penal a precisamente, ao modo como essas relações estrategicamente se comunicam.
finalidade de proteção de bem jurídico, a dogmática penal passa a dispor de Apesar disso, porém, a partir dessa relação entre proibição e bem ju-
um instrumental teórico que lhe permite justificar a proibição de condutas, rídico, será possível construir um sistema dogmático capaz de superar seu
sem ter que demonstrar que essa proibição corresponda a uma necessidade. conteúdo meramente simbólico, caso se passe a exigir que a lesão ou o perigo
Precisamente nisso é que reside a grande questão da proteção de bem jurídico, de lesão desses bens constitua o fundamento essencial da incriminação, o que,
que não tem a respaldar-lhe a demonstração empírica de que essa proteção, então, justificaria a importância dessa análise em face da necessidade de se
efetivamente, se verifique.14 Na aferição dessa relação entre norma penal e traçar uma perfeita linha divisória entre as zonas do lícito e do ilícito penal.15
bem jurídico, não se deve perder de vista que a edificação de uma política Esta separação das zonas do lícito e do ilícito é uma condição de garantia da
criminal do delito culposo está essencialmente assentada sobre a base de inte- liberdade da pessoa humana e só pode ser satisfeita se formalizada por meio
resses produtivos. Em linhas gerais, a incriminação de fatos culposos só passa de um processo de comunicação absolutamente claro quanto ao conteúdo
a adquirir sentido quando puder incrementar ou solidificar o processo de uso e às consequências das proibições ou imposições legais. Somente com o es-
e, consequentemente, de troca de mercadorias. Como no processo produtivo tímulo e a manutenção de um processo correto de comunicação quanto ao
a troca não precisa ser comprovada, mas apenas projetada, conforme o signifi- que é proibido e ao que é mandado pela norma se poderá assegurar a todos,
cado estratégico da atividade econômica, é fácil compreender como o conceito em um primeiro momento da avaliação jurídica, uma atuação controlada
de bem jurídico se espiritualiza e se transforma em mero objeto simbólico quanto às suas expectativas de conduta e delimitar, ademais, o processo de
sua imputação no tipo respectivo.
13. Não é estranho, no Brasil, o problema da necessidade de melhor regulamentar os atos da motorização e
da industrialização da vida moderna, com vistas a indicar soluções sobre a punibilidade das respectivas A análise do conteúdo do injusto se inicia na consideração da conduta
infrações daí decorrentes. Sobre a matéria do trânsito, por exemplo, é elucidativo o estudo feito pela Co-
missão da Ordem dos Advogados do Brasil (Conselho Federal), composta dos conselheiros IVO D´A- culposa como ação jurídico-penalmente relevante. Isto significa que o con-
QUINO, HELENO FRAGOSO, CARLOS DE ARAÚJO LIMA, SERRANO NEVES e A. EVARISTO
DE MORAES FILHO, publicado na Revista de Direito Penal 7-8, 1972, sob o título “Os ilícitos penais teúdo de injusto do delito culposo se constitui com o processo de imputação,
do trânsito e sua repressão”, o qual formulou uma série de propostas para o enquadramento técnico das
infrações penais praticadas por meio de veículo automotor. Mais tarde, divulgou-se um outro anteproje- quer dizer, um processo de atribuição de qualidade a uma conduta. Essa
to, elaborado por comissão de juristas designada pelo Ministério da Justiça, tratando do mesmo assunto atribuição de qualidade significa que a ordem jurídica quer vincular essa
(DOU de 15.6.79), e que veio a ser o precursor do atual código de trânsito. Por outro lado, pode-se notar
uma considerável ampliação do modelo de delito culposo para os atos lesivos ao meio ambiente, para conduta a alguém que possa responder por ela. O processo de imputação é
as intervenções no setor da bioética e para o uso da energia nuclear, que passaram a constituir interesse
jurídico-penal com a industrialização e com o desenvolvimento de novas tecnologias, absolutamente
desconhecidas no início do século XX. Apesar disso, persiste ainda a necessidade da elaboração urgente 15. Nesse sentido, meu livro Teoria do injusto penal, 3ª edição, 2003, p. 172. No âmbito sociológico, ou da
de regras precisas sobre a segurança do trabalho, cujos índices de acidente assumem frequência alar- teoria do direito, LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt am Main, 1995, p. 131;
mante e estão a exigir especial atenção do poder público. mais recentemente, NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã, S. Paulo, 2006, p. 80, para quem a posi-
14. Sobre isso, BOZZA, Fábio da Silva. Bem jurídico e proibição de excesso como limites à expansão tivação do direito na sociedade moderna implica o controle do lícito e do ilícito, exclusivamente, pelo
penal. São Paulo: Almedina, 2015, p. 190. sistema jurídico.
40 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INTRODUÇÃO 41

sempre um processo de aferição de responsabilidade, que é feito em etapas, Se o conceito de ação, sobre o qual a dogmática penal vem construindo
primeiro, no âmbito do injusto e, depois, na culpabilidade. Especificamen- seu sistema de delito, está vinculado, de uma forma ou de outra, a uma deter-
te no crime culposo, o processo de imputação, no âmbito do injusto, está minada política criminal, torna-se problemático fazer-se inferir desse conceito
orientado de duas formas: no sentido de atribuir a uma conduta a qualidade um elemento limitador do poder de punir.16 Mas se a dogmática penal, ao
de haver, no caso concreto, excedido os limites do risco autorizado e, depois, lado de especulações puramente doutrinárias, deve estar orientada, ainda, no
no de tomar o resultado de dano ou de perigo ao bem jurídico em função sentido de expressar, em termos críticos, a substância da proibição ou da de-
do sentido imprimido por essa conduta. Por exemplo, alguém conduz um terminação – portanto, no sentido de superar a pura exegese dos textos legais
veículo em velocidade excessiva em face do trânsito existente e vem a causar –, deverá levar em conta, na análise desses preceitos, sua relação crítica com os
um acidente em função dessa velocidade excessiva. O processo de imputação conceitos de conduta que, político-criminalmente, lhe correspondem. Uma
no âmbito do injusto irá se ocupar, portanto, da qualidade dessa conduta vez que se proceda, assim, à crítica do conceito de conduta, em função do
de haver ultrapassado os limites do risco autorizado (velocidade excessiva) que, dogmaticamente, representa, pode esse conceito valer, também, como
e da lesão do bem jurídico (morte ou lesão da vítima), em razão do sentido instrumento de crítica da própria proibição ou determinação. Dessa forma, o
da atividade (velocidade excessiva relacionada funcionalmente ao resultado). conceito de conduta deixaria de ser um conceito neutro quanto à proibição ou
Uma vez que a violação desses limites expressa o pressuposto do processo de determinação, diversamente, portanto, do que postulam as diversas teorias da
imputação, com a consequente criação e realização de um risco desaprovado ação, mas não implicaria, em contrapartida, que ficasse subordinado aos fins de
em função do sentido da atividade, chega-se à conclusão de que a conduta política criminal, em oposição, portanto, a algumas consignações funcionais.
culposa está subordinada ao complexo sistemático-estrutural da teoria do O grande defeito das várias teorias que conceituam a conduta parece
delito. Como a conduta culposa resulta de um processo de atribuição de que está, por um lado, em ignorar sua vinculação com a política criminal,
responsabilidade, não tem ela existência natural, é uma criação do direito e, ao tratar seus elementos de modo neutro e, por outro lado, em subordinar a
com isso, deverá estar condicionada a pressupostos negativos de imputação. análise desses elementos aos fins de política criminal por ela assentados, ao
Basicamente, portanto, na medida em que a dogmática penal busque propor que toda a construção dogmática deva estar condicionada a justificar
equacionar um denominador comum a todas as espécies de manifestação a punibilidade da conduta.17 Justamente por essas posturas, de ignorar os
do delito, ainda que na forma de um conceito de ação, faz depender esse fundamentos de política criminal ou de subordinar-se inteiramente a eles,
conceito do processo de imputação a partir da produção da proibição ou é que fracassaram as tentativas de fazer derivar do conceito de conduta um
determinação e de sua manifestação pela norma penal, quer dizer, a conduta procedimento de limitação do poder de punir.
penalmente relevante será aquela que possa ser imputada ao seu autor segun- Ao ponderar-se sobre a construção teórica dos delitos culposos, é impor-
do os parâmetros da proibição ou determinação normativa. tante considerar, também, os próprios objetivos da dogmática penal, que deve
No caso específico do delito culposo, a dogmática foi sendo elabora- estar dedicada a impedir que o legislador possa edificar como culposa qualquer
da, em certa medida, também segundo formas determinadas de imputação, conduta. Tendo em vista as perspectivas da dogmática penal e a relação entre o
quase todas elas, porém, vinculadas aos elementos do conceito de ação, quer conceito de conduta e os preceitos normativos, pode-se concluir que, embora
sob a relação meio e fim, como na teoria causal-naturalista, na teoria finalista, esse conceito não tenha idoneidade absoluta para limitar o poder de punir, lhe
na teoria social da ação e nas teorias funcionais, quer sob uma consideração 16. MARTINS, Antonio. Versuch über die Vorsatzzurechnung am Beispiel der aberratio ictus, Frankfurt
interativa, como na teoria do agir comunicativo. Com base nestes grupos de am Main: Peter Lang, 2008, p. 87, bem retrata a dificuldade da dogmática estéril servir de limite às
finalidades da política criminal.
sistemas tem-se desenvolvido, praticamente, toda a caracterização do delito 17. Foi neste sentido que formulei uma crítica a uma suposta vinculação entre estrutura da conduta e norma
delimitativa, entendendo, na ocasião, ser prescindível a um direito penal garantista um conceito prévio
culposo, como estudo científico, porque cada um desses sistemas representa, de ação (Teoria do injusto penal, 2a. edição, p. 331). Aprofundando, contudo, a discussão desse tema,
também, manifestação de uma determinada política criminal. cheguei à conclusão de ser possível um conceito de conduta, desde que adequado às perspectivas de
delimitação do poder de punir, a partir da consideração da forma como se expressa a proibição ou a
determinação e a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico.
42 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INTRODUÇÃO 43

podem ser reservados dois papéis na argumentação relativa ao crime culposo: como ação típica aquilo que não fosse atribuível à atividade de uma pessoa.
a) de servir de elemento adequado a verificar se o processo de comunicação Já em um segundo momento, a própria norma se encarregaria de estabelecer
expresso na norma penal traça, com nitidez, os lindes do proibido ou do man- para o conceito de conduta alguns outros pressupostos que o delimitassem
dado; b) de estar apto a verificar se a lesão e o perigo de lesão ao bem jurídico segundo um processo negativo de comunicação, ou seja, a norma verificaria
podem ser demonstrados e medidos em face da violação dos limites do risco se, em face dos elementos que buscava traçar para a conduta, como objeto de
autorizado. Nesse sentido, o conceito de conduta passa a ser visto dentro do imputação com base em seus elementos empíricos vinculados à pessoa, não
próprio processo de imputação, no qual devam ser levados em conta tanto a estaria faltando alguma exigência instituída pela ordem jurídica para que essa
funcionalidade e o sentido da relação de causalidade, quanto sua correspon- conduta, uma vez tipificada, servisse de ponto de referência aos seus desti-
dência à intensidade da lesão às normas que disciplinam o risco autorizado. natários. Por exemplo, a norma proibitiva será inválida se tomar como ação
Ao tratar-se criticamente do conceito de conduta a partir da verificação uma simples condição da personalidade (menoridade) ou do status (casado,
da proibição ou determinação e como elemento balanceador do processo de solteiro, viúvo, árabe, etc.) de uma pessoa e não sua própria atividade; e será
imputação, de modo a ser avaliado sem comprometer-se com a finalidade inválida ainda se disser que basta para conferir relevância jurídica à conduta
de legitimar a punição, importa que sua estrutura não pode fundar-se, sim- que esta não tenha sido realizada com vistas a um efeito que, normativamente,
plesmente, em uma consideração extrapenal – como, metodologicamente, se quer evitar (alguém deixa de pagar impostos). Não é suficiente, portanto,
o trataram as diversas teorias da ação – nem, estritamente, segundo traços para a caracterização de uma conduta que possa servir de base à elaboração
normativos. Ou seja, não se pode dizer que a conduta, em termos penais, dogmática da teoria do delito, que ela preencha alguns requisitos empíricos
deva basear-se apenas na causalidade, por exemplo, que o motorista A atro- (por exemplo, que seja simplesmente causal). É preciso que esses componen-
pelou o pedestre B, causando-lhe a morte, nem que para se decidir acerca tes empíricos possam ser submetidos a um juízo de refutação, segundo um
desse atropelamento bastem os elementos dispostos na norma proibitiva do processo de orientação típica, com vistas à sua vinculação ao processo de lesão
resultado morte. Ao pretender-se avaliar o conceito de conduta segundo ou perigo de lesão aos bens jurídicos. E, ao mesmo tempo, a configuração
seus efeitos garantistas, convém esclarecer que isso não pode ser efetuado normativa da conduta não vale sem uma correspondência empírica.
sem proceder-se a uma investigação quanto a seus elementos materiais, quer Vê-se, então, que o processo de imputação está subordinado a duas séries
dizer, uma conduta deve corresponder, em princípio, a alguns pressupostos de argumentos: o primeiro decorrente das condições da conduta; o segundo
que estão vinculados à pessoa humana. Essa consideração pessoal não pode inferido da norma, mas inter-relacionados um ao outro. Embora isso pareça
ser subordinante, porém, da avaliação normativa, mas corresponder apenas a contraditório, não o é, desde que se compreenda o conceito de conduta em face
dados concretos da realidade assumidos e alterados por aquela avaliação em de sua interatividade para com a norma. O ponto nodal dessa interação se situa
sentido negativo. Nestes termos, o conceito de conduta deve incorporar, ao no procedimento negativo de avaliação da norma: em um primeiro momento,
mesmo tempo, elementos empíricos vinculados à pessoa e também elementos a norma se submete a uma avaliação negativa, isto é, passa pela verificação se
normativos que possam descaracterizá-la como objeto de imputação. seus elementos não podem ser descartados em face dos dados comunicativos
Com isso, o conceito de conduta deixa de ser um simples dado ôntico da conduta, tomados empiricamente segundo sua vinculação à pessoa; em um
e passa a valer, simultaneamente, como um elemento essencial (empírico) segundo momento, a norma faz incidir sobre a conduta seus próprios critérios
na delimitação restritiva dos tipos, por um lado, e ponto de referência nor- negativos, vinculados à imputação, com vistas à lesão ou ao perigo de lesão ao
mativo-negativo, por outro. O que o conceito de conduta faz, segundo os bem jurídico. Isto implica possibilitar, dogmaticamente, uma interpretação
dados que lhe correspondem, é tornar possível, em um primeiro momento, dos elementos que compõem o delito, segundo os dados comuns que lhes são
uma avaliação negativa da norma diante de sua impossibilidade de registrar, aplicáveis dentro de um processo limitativo de imputação.18
como objeto de imputação, fatos que não correspondam, empiricamente, aos
18. No plano da teoria do direito, pondera MARCELO NEVES (Entre Têmis e Leviatã, 2006, p. 81) que o
pressupostos de uma ação humana. O legislador, portanto, não poderia situar fato de o sistema jurídico trabalhar a questão do lícito e do ilícito, com exclusividade, não impede que
44 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INTRODUÇÃO 45

Em resumo. O conceito de conduta não pode ter por base elemen- III. A DOUTRINA DOS CLÁSSICOS
tos unilaterais, como a causalidade ou finalidade, que bastariam para
Desde os primórdios da construção dogmática dos delitos culposos,
legitimar as normas proibitivas e mandamentais. Inicialmente se pensava
a doutrina jurídica sempre esteve preocupada em determinar sua ontolo-
que o legislador já estaria legitimado a incriminar certa conduta, uma
gicidade e, ao lado disso, os fundamentos para a sua repressão, quer dizer,
vez que esta fosse causal ou final. Ao contrário, o conceito de conduta
em discutir a questão de sua essência e de sua punibilidade a partir de um
deve, primeiramente, ser extraído da condição da pessoa situada em um
elemento que as pudesse caracterizar. A discussão acerca da essência da culpa,
processo de comunicação, no qual são relevantes não apenas a causali-
como modalidade especial de imputação, corresponde, portanto, a uma
dade ou a finalidade, mas também os efeitos da atuação do agente sobre
forma de argumentação, pela qual a justificação ou legitimação da norma
seu interlocutor e, por via reversa, as reações deste diante daquele, o
proibitiva se vê amparada por uma referência extrajurídica, que vincularia a
que marca a bilateralidade desse conceito de ação. Por exemplo, se uma
criação jurídica e imporia a relevância de sua atuação como uma consequên-
pessoa quer convidar outra para ir ao cinema, sua conduta não se confi-
cia necessária da ordem natural.
gura simplesmente pelo exercício do convite vinculado àquela finalidade,
mas essencialmente pelas condições de aceitação daquele convite por Nesse contexto, deparamo-nos com uma série de teorias que, situando-
parte dessa segunda pessoa. Está claro que convidar uma pessoa para ir -se sob diferentes pontos de enfoque, pretendem reforçar a atuação jurídica.19
ao cinema não constitui qualquer ato ilícito, mas a figuração pode ser São elas o resultado, no fundo, do incipiente desenvolvimento das concepções
estendida a qualquer atividade, mais ou menos gravosa, como a subtração acerca do delito, principalmente da culpabilidade, vigorantes até a criação
de uma coisa alheia móvel. O ladrão não atua apenas de modo causal ou e posterior evolução do conceito normativo de FRANK.20 Independente-
final. Tem em vista sempre as reações de sua vítima. Este conjunto de con- mente das deficiências dessas teorias, estão elas associadas a fins específicos
dições de comunicação envolvendo o agente e seu interlocutor constitui o de política criminal e demonstram como o poder de punir sempre se valeu
pressuposto empírico de qualquer conduta, que a norma deve ter em vista de argumentos variados para se autolegitimar.
quando for regular essa mesma conduta. Em segundo lugar, esse pres- Valem as várias teorias propostas, portanto, como uma indicação de
suposto empírico não é suficiente para os efeitos de garantia do direito como se procedeu a uma variação do substrato político e histórico da ordem
penal. Sobre ele devem incidir as limitações normativas de sua integração jurídica para com uma série de argumentos, encadeados sob uma referência
a um tipo de delito, quer dizer, a norma também inclui, no conceito de específica, situada fora da norma penal, mas usada como seu fundamento
conduta, outros pressupostos que dizem respeito à sua idoneidade para legitimante. Investigando-se atentamente essas concepções, verifica-se que
servir de objeto de imputação, de modo que uma conduta só poderá ser aqui a questão principal diz respeito a critérios de identificação do núcleo do
caracterizada como tal quando possa ser tida como jurídico-penalmente fato e não à sua formulação jurídica. Ao contrário do que resultaria de uma
relevante, quando possa ser imputada ao seu autor com vistas à lesão ou concepção centrada no conteúdo do injusto, todas se restringem a justificar
ao perigo de lesão ao respectivo bem jurídico. Nestas condições, pode-se a imputação a partir de elementos extrajurídicos. Consoante o grau de de-
dizer que o conceito crítico de conduta é aquele que está subordinado a senvolvimento da doutrina penal, essa imputação só poderia ser feita de duas
pressupostos empíricos e também a pressupostos normativos de idoneida- maneiras: ou a título de responsabilidade objetiva ou por meio da existência
de quanto à lesão ou ao perigo de lesão ao bem jurídico. Uma vez assim (ou suposta existência) de um vínculo psicológico entre agente e fato. A
configurado o conceito de ação, a norma pode ser avaliada negativamen- primeira consideração dá lugar às teorias objetivas; a segunda, às subjetivas.
te, ou seja, dentro do processo de sua deslegitimação.
19. Esta sempre foi uma preocupação comum nos autores brasileiros. Ver, por exemplo, BRUNO, Aníbal.
Direito penal, parte geral, 1959, vol. II, p. 80 e ss.; COSTA E SILVA. Comentários ao Código Penal,
leve em conta, ainda, os elementos do ambiente. O que não pode ser feito é subordinar o sistema jurídico reedição 1967, p. 91 e ss.; NORONHA, Edgard Magalhães. Do crime culposo, 1966, p. 19 e ss.; HUN-
a elementos do ambiente, escolhidos aleatoriamente por meio de critérios extrajurídicos, como preceitos GRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, 1958, volume I, t. II, p. 185 e ss.; SALGADO MAR-
da moral, de sentimentos, de ideologias, de convicções políticas, de modo a comprometer a codificação TINS. Direito penal, 1974, p. 219 e ss..
diferenciadora do lícito e do ilícito. 20. FRANK, Reinhard. Über den Aufbau des Schuldprinzips, Giessen: Alfred Töpelmann, p. 6 e ss.
46 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INTRODUÇÃO 47

Em geral, alternam-se os autores nessas duas linhas diretrizes, conforme b. A teoria da prevenibilidade foi, ao que parece, introduzida por
suas preferências ou posturas ideológicas, para optarem por uma ou outra. BRUSA22, e se resume na evitabilidade do resultado, ou seja, culpo-
Entre os subjetivistas, incluem-se todos aqueles que seguem uma concep- so seria o fato quando fosse objetivamente possível evitá-lo. Embora
a expressão “prevenibilidade” tenha caído em desuso, o princípio da
ção psicológica de responsabilidade, tendo como pressuposto a liberdade
evitabilidade ainda tem pleno cabimento no âmbito da imputação do
hipotética de vontade (livre-arbítrio) ou, sob o enfoque determinista, o resultado, ao tratar da estrutura do tipo dos delitos culposos, tanto
contraestímulo das normas penais (coação psicológica), em face de pessoas no âmbito do tipo quanto da culpabilidade.
orientadas por seus instintos. De lado oposto, os objetivistas amparam a c. Também denominada de teoria da falta de atenção, a teoria do defeito
responsabilidade individual nas consequências danosas ou perigosas do fato. de atenção foi elaborada, primeiramente, por FEUERBACH, a partir
Não importa, aqui, proceder a uma profunda análise de todas essas teorias. de uma consideração voluntarista de culpa. Depois, foi seguida por
A exposição que segue tem como objetivo, unicamente, dar uma visão geral BERNER, PESSINA e IMPALLOMENI.23 Modernamente, tem-se
dessas concepções, pela qual se poderá perceber o grau de desenvolvimento salientado como explicação da negligência no setor do erro.24 Ainda
que se credite a FEUERBACH a formulação dessa teoria, sua concep-
que se encontrava a doutrina penal e verificar sua influência no direito sub-
ção, porém, é mais extensa do que a simples falta de atenção. Segundo
sequente, como ponto de referência justificante. sua própria definição, a culpa consistiria em “uma determinação ilícita
Como teorias subjetivas, salientam-se, entre outras, as da previsibilida- da vontade no sentido de uma ação ou omissão, da qual, conforme
de, da prevenibilidade, do defeito de atenção, do vício de inteligência e do as leis da natureza e sem intenção, decorre a lesão jurídica”.25 Neste
defeito de apreciação dos bens jurídicos. aspecto, ao aprofundar a relação entre a vontade do agente e o resul-
a. A teoria da previsibilidade é tão antiga quanto a própria noção de tado, veio FEUERBACH a superar propriamente a tese naturalista
delito. Está contemplada no Direito Romano, no qual é famosa a do defeito de atenção, para centrar o delito culposo, objetivamente,
definição de Paulo: “culpa est quod cum a diligente provideri poterit non na causalidade física e, subjetivamente, na vontade ilícita, associada ao
esset provisum” (PAULUS, 1.31 ad leg. Aquil. 9, 2). Estende-se, igual- não atendimento do dever de diligência ou cuidado, ou seja, conferin-
mente, aos glosadores e pós-glosadores até o direito moderno.21 De do ao defeito de atenção um significado normativo.26
conformidade com esta teoria, a culpa consistiria na falta de previsão d. O vício da inteligência como fundamento da negligência deriva,
do previsível ou na previsão do resultado, sem incluí-lo no processo talvez, da formulação dos pós-glosadores. Segundo a coletânea for-
volitivo. Como se verá, oportunamente, esta teoria serve muito mais necida por ENGELMANN, culpa lata seria aquela “cujus finis est
de critério determinante da culpa, ou negligência, ou de limitação da non intelligere, quod omnes intelligunt”.27 A teoria ganhou corpo
imputação do que de fundamento e explicação de sua essência. Não com a adesão de destacados penalistas, tais como LÖFFLER, VON
obstante, a teoria da previsibilidade ainda está inserida no contexto FERNECK, SAUER e TOSTI, mas sua principal figura foi CAR-
de toda argumentação em torno do fato culposo. Deve-se isso, em RARA, que a utilizou para fundamentar sua clássica definição de
primeiro lugar, a uma tradição histórica, de situar os delitos culpo- culpa: “omissão voluntária de diligência no calcular as consequências
sos a partir de sua base causal, o que comprometeria qualquer outra possíveis e previsíveis do próprio fato”. Explicando essa definição,
forma de argumentação normativa; em segundo lugar, às tendências ressaltava que se diz “omissão voluntária, porque, embora haja nos
simplificadoras, de decidir se se trata de um fato culposo ou de simples
22. BRUSA, Emilio. Saggio di una dottrina generale del reato, Torino: Uni-Torino, 1884, p. 90 e ss. Ex-
acaso. Embora a teoria da previsibilidade se apresente como uma solu- plicativo sobre isto no Brasil, mas sem entrar em particularidades, NORONHA, Edgard Magalhães. Do
ção argumentativa derivada de um procedimento empírico, a própria crime culposo, p. 23-24.
23. BERNER, Albert Friedrich. Lehrbuch des deutschen Strafrechts, Leipzig: Tauchnitz, 1857, p. 23 e ss.;
noção de previsibilidade e a delimitação de seus contornos só podem PESSINA, Enrico. Elementos de derecho penal, Madrid: Sardá, 1892, p. 338; IMPALLOMENI, Gio-
servir de argumentos negativos de imputação se forem amparadas por vanni Battista. Istituzione di diritto penale, obra póstuma, Torino, 1908, p. 257.
24. JIMÉNEZ DE ASÚA, Luís. Nota 21, p. 790. Neste mesmo sentido, encontramos também BETTIOL,
elementos normativos comprometidos com a primazia da liberdade Giuseppe. Direito penal, PG, S. Paulo, 1971, vol. II, p. 116.
humana em face das pretensões criminalizadoras do poder punitivo. 25. FEUERBACH, Anselm Ritter von. Nota 8, p. 90 e ss.
26. FEUERBACH, Anselm Ritter von . Nota 8, p. 93.
21. Ver os pormenores em JIMÉNEZ DE ASÚA, Luís. Tratado de derecho penal, Buenos Aires, 1956, vol. 27. ENGELMANN, Waldemar. Die Schuldlehre der Postglosatoren und ihre Fortentwicklung, Leipzig,
V, p. 752 e ss. 1895, p. 187.
48 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INTRODUÇÃO 49

fatos culposos um vício do intelecto, pelo qual não foram previstas GUYANGA.33 A teoria da perigosidade da conduta, pode-se dizer,
as consequências danosas de um fato, em sua gênese esse vício do constitui um antecedente primário das modernas teorias do risco,
intelecto também remonta à vontade do agente, de vez que fora por que a ampliam em suas bases empíricas para sedimentar uma forma
vício de vontade que não utilizara a reflexão com que podia escla- de imputação delineada normativamente. Já agora não será a mera
recer e conhecer aquelas más consequências”.28 A derivação mais probabilidade da conduta que poderá caracterizar uma atuação cul-
interessante da adoção dessa teoria foi a tese de se negar fundamento posa, mas sim a produção de um resultado com base na realização de
à incriminação do fato negligente, na chamada culpa inconsciente uma conduta que tenha excedido os riscos juridicamente permitidos.
notadamente por ALMENDINGEN e KOHLRAUSCH.29 b. A teoria do erro de fato foi formulada, originariamente, por FRAN-
e. A teoria do defeito de apreciação do bem jurídico tem em EXNER CESCO ALIMENA, tendo por base a culpa inconsciente, na qual
o seu principal adepto, o qual pretende situá-la em estreito conta- salienta a inexistência de associação mental entre a atividade do
to com o sistema de valores protegido pelo direito penal, vindo a agente e os resultados possíveis daí decorrentes. Na culpa consciente,
entender que o agente atua culposamente porque não demonstrou mescla conteúdos objetivos e subjetivos, assinalando sua caracterís-
interesse na defesa do bem jurídico. O fundamento da punibilidade tica como sendo a falsa associação mental entre a conduta e suas
se assenta, aqui, no fato de que, estando o homem inserido num con- consequências, portanto, consistindo, na realidade, em vício de in-
texto de valor, sempre que este valor se mostre ameaçado e, desde que teligência. O próprio FRANCESCO ALIMENA reconhece ainda
seja realmente representativo ao autor, se impõe, automaticamente, à que o erro é determinado por falta de atenção, o que transforma essa
sua consideração, de sorte que se isto não ocorre, tal significa que há teoria de objetiva em subjetiva.34 A teoria do erro de fato não tem
por parte dele um certo menosprezo ao respectivo bem jurídico que qualquer relevância na atualidade, pois foi, praticamente, consumida
lhe corresponde.30 A posição de FRANZ EXNER foi, basicamente, pelas formulações acerca da culpa consciente e inconsciente.
assumida no direito moderno por SCHMIDHÄUSER,31 cuja crítica c. A teoria da infração às normas de polícia e disciplina foi elaborada
se faz mais adiante e que tem como principal defeito o fato de con- por MANZINI, com apoio no art. 43 do Código Penal italiano,
ceber a sociedade humana monoliticamente, em que todas as pessoas sob critérios puramente objetivos. Estes critérios seriam o da cau-
estariam subordinadas aos mesmos esquemas valorativos. salidade e o da contradição entre a conduta do agente e as normas
Nas teorias objetivas, destacam-se as da perigosidade da conduta, do erro regulamentares de cautela, que dizem respeito tanto a normas técni-
cas de profissão, quanto a leis, regulamentos, ordens ou instruções,
de fato e suas consequências, da infração às normas de polícia e disciplina,
relativos, especificamente, a certas atividades.35 Como veremos mais
e da causalidade. adiante, esta teoria ainda impregna a doutrina italiana mais recente,
a. A teoria da perigosidade da conduta nada tem a ver com a posição pois faz derivar a culpa de uma mera presunção legal ou regulamen-
positivista que quer situar o perigo em função de uma capacidade tar. Aqui, não importa, na verdade, a causalidade da conduta para
própria do autor de realizar ações delituosas. Perigosidade significa, com o resultado, mas as características normativas incidentes sobre
aqui, probabilidade de dano e não capacidade de delinquir. Conduta a própria atividade. Será culposa a conduta quando tiver violado
culposa, portanto, seria aquela da qual se poderia esperar, objetiva- normas técnicas ou regulamentos. A produção do resultado poderia
mente, a ocorrência de um dano. Apesar de sua configuração dentro derivar, simplesmente, como uma condição objetiva de punibilidade.
de uma realidade objetiva e, pois, empiricamente observável, essa d. Por sua vez, a teoria da causalidade é devida, sobretudo, à formulação
teoria comportou, também, uma variante subjetiva, seguida, entre de ALESSANDRO STOPPATO, que busca elaborar um critério
outros, por FLORIAN e ALTAVILLA.32 Tomam-na, porém, sob puramente objetivo para a culpa, o que lhe valeu uma exaltada crítica
a forma de perigo objetivo, ROCCO, CECCHI e JANNITTI DI
33. ROCCO, Arturo. L’oggeto del reato, Roma: Foro Italiano, 1913, p. 330; CECCHI, Orfeo. Il delitto
28. CARRARA, Francesco. Programa de direito criminal, tradução brasileira, 1956, tomo I, p. 89. colposo, S. Maria C. V.: Schiano, 1950, p. 57 e ss., bem como JANNITTI DI GUYANGA, Eugenio.
29. Ver, nesse sentido, a obra magistral de KAUFMANN, Arthur. Das Schuldprinzip, 1976. p. 141 e ss. Concorso di più persone e valore del pericolo nei delitti colposi, Milano: Società Ed. Libr, 1913, p. 129
30. EXNER, Franz. Das Wesen der Fahrlässigkeit, Leipzig: Deuticke, 1910, p. 177 e ss. e ss..
31. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Strafrecht, AT, 1971, p. 346. 34. ALIMENA, Francesco. La colpa nella teoria generale del reato, Palermo: Priulla, 1947, p. 28 e ss. Ver
32. FLORIAN, Eugenio. Trattato di diritto penale, pg, I, Milano: Vallardi, 1934, p. 478; ALTAVILLA, também quanto a isto a crítica de JIMÉNEZ DE ASÚA, Luís. Nota 21, p. 794.
Enrico. La colpa, Roma: Ateneo, 1950, p. 513 e ss. 35. MANZINI, Vincenzo. Tratatto di diritto penale italiano, 1941, vol. I, p. 258 e ss.
50 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INTRODUÇÃO 51

por parte da doutrina de seu tempo e da que lhe foi posterior.36 prática de um comportamento irregular, como se dera no direito canônico,
Todas essas posições assumem, às vezes, formas mistas e são encontradas, foi energicamente combatido, inclusive no Brasil,40 por conduzir a verdadeira
na prática, camufladas através de deduções paralelas e secundárias, sem qual- presunção de responsabilidade, embora tivesse sido acolhido, entre nós, no Pro-
quer importância no questionamento do conteúdo da teoria. Modernamente, jeto ALCÂNTARA MACHADO (art. 13).41 Não obstante, pode-se verificar
devem essas teorias ser tratadas dentro do próprio delito como critérios de que os fundamentos traçados por STOPPATO, ainda que não recepcionados
fundamentação de seus elementos e pontos de conexão e não mais como seus de conformidade com a sistemática que ele mesmo pretendia imprimir, isto é,
pressupostos. Dessas teorias, apenas duas delas ainda podem ser objetos de como únicos pressupostos da responsabilidade pelo fato culposo, apresentam
discussão: a da previsibilidade e a da causalidade. A primeira, a que se filiou certos reflexos na atualidade. Dependendo de como seja interpretada, não
CARRARA, funda a essência da imputação (responsabilidade) do fato culposo mais como elemento único da culpa, mas como elemento situado no plano
na previsibilidade dos efeitos danosos da conduta,37 critério hoje dominante no da tipicidade, sua concepção de causa eficiente não se afasta muito da configu-
direito penal, mas já sujeito a alterações, pelo menos quanto ao seu objeto. Por ração da chamada causalidade suficiente, que dá lugar ao sistema proposto por
sua vez, a teoria da causalidade, como já se disse, está ligada, principalmente PUPPE, sob a orientação do critério da probabilidade.42 Por outro lado, a visão
a STOPPATO, mas pode ser encontrada em outros autores, tendo, inclusive, acerca do emprego dos meios antijurídicos, igualmente, poderá representar o
aceitação na teoria da infração às normas de disciplina e de polícia. indício de uma proposta de configurar a culpa a partir da criação de um risco
desaprovado. Afinal, se a conduta causalmente eficiente não for juridicamente
Para STOPPATO, a negligência comportaria dois ângulos de apreciação:
desaprovada, conforme os meios empregados, não haverá culpa, por não ser o
o do princípio da causa eficiente e o dos meios antijurídicos. Pelo primeiro, toda
fato imputável ao seu autor.
pessoa seria responsável pelos atos que constituíssem causa eficiente (decisiva)
de um resultado. Contudo, para essa responsabilidade, seria indispensável, além Já do resumo de suas conclusões, pode-se notar que nem a teoria da
da causalidade eficiente (no sentido natural), que o agente tivesse empregado previsibilidade nem a de STOPPATO chegaram a explicar a verdadeira es-
meios anormais à ideia do direito, o que constituiria os chamados meios antiju- sência do fato negligente. A limitação da questão da essência à justificativa da
rídicos.38 A aferição da culpa, portanto, deveria ser amparada, tão-só, sobre esses imputação jurídica do fato ao seu autor, refoge ao âmbito da metafísica ou da
dois dados objetivos complementares, que, por descartarem a figura da previsi- dialética, para se transformar em objeto de uma filosofia pragmática. Mesmo
bilidade subjetiva, muito se assemelhavam ao princípio medieval do versari in para a teoria da imputação, essa filosofia pragmática não serve como critério
re illicita. Independentemente da iniciativa de STOPPATO, que poderia ser seguro, pois, na ordem jurídica, não basta um critério único de determinação
louvada em face de procurar a superação do subjetivismo no direito penal, sua de responsabilidade, mas sim o complexo de elementos interligados ao excesso
teoria, porém, não encontrou guarida nem na lei, nem na doutrina,39 a não ser do risco autorizado e subordinados a muitos outros princípios, notadamente,
em alguns códigos que, como o italiano, inserem, no conceito de negligência, aos postulados de garantia inseridos no conteúdo do injusto penal.
a “inobservância de leis, regulamentos, ordens ou disciplinas” (art. 43) e que A essência do fato culposo só pode ser, mesmo, apreendida por meio
vieram amparar a teoria de MANZINI da infração às normas de disciplina e da análise do componente material do seu conteúdo de injusto, que está,
de polícia. Em virtude de representar este objetivismo um retorno anacrônico por seu turno, estreitamente ligado aos substratos de política criminal
a uma fase na qual a responsabilidade penal decorreria, tão-só, da simples correspondentes à formação social em que a norma penal é editada. Em
vez de dar ênfase ao relacionamento indivíduo-fato, como é comum em
36. Ver, por exemplo, ALIMENA, Bernardino. Principii di diritto penale, Napoli: Pierro, 1910, vol. I, tomo
I, p. 387 e ss.; BETTIOL, Giuseppe. Direito penal, 1971, vol. II, p. 120 e 121. 40. Elucidativo acerca da não-adoção desse critério pelo código brasileiro, HUNGRIA, Nelson. Comentá-
37. CARRARA, Francesco. Programa de direito criminal, trad., S. Paulo, 1956, p. 89 e ss. rios ao Código Penal, vol. I, tomo I, p. 206 e ss.
38. STOPPATO, Alessandro. L’evento punibile, Verona, 1898, p. 211. 41. “Art. 33–Diz-se o crime: ... III–culposo, quando o resultado não é querido pelo agente, mas deriva deste
39. No Brasil, é generalizada a oposição à teoria de Stoppato. Ver BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 83; HUN- se ter havido com negligência, imprudência, imperícia ou inobservância de determinação da lei ou da
GRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II, p. 186; MACHADO, Raul. A culpa no autoridade”.
direito penal, p. 117 e ss; NORONHA, Edgard Magalhães. Do crime culposo, p. 39 e ss.. 42. PUPPE, Ingeborg. Die Erfolgszurechnung im Strafrecht, Nomos: Baden-Baden, 2000, p. 76 e ss.
52 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

todas a teorias que buscam a essência da culpa, em decorrência de uma


visão puramente positivista, centrada na atribuição pessoal de responsa-
bilidade, até mesmo pela compreensão do fenômeno jurídico em função
CAPÍTULO 2
da relação meio e resultado, que alicerça as teorias da ação, deve-se, hoje,
buscar uma interpretação das normas da responsabilidade penal a partir da TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA
consideração da relação complexa indivíduo-fato-sociedade-Estado. Uma
vez, assim, compreendida essa relação, dela se poderá extrair um conceito
crítico de conduta e, a fortiore, de culpabilidade, sem sua subordinação a SUMÁRIO: I. A teoria causal – l. Características dos sistemas causais
um esquema de causa e efeito, mas orientado por critérios comunicativos, – 2. Elementos da negligência – 3. Crítica à teoria causal. II. A teoria
finalista – 1. Características do sistema finalista – 2. O princípio da fi-
de modo a fazer derivar daí a posição de supremacia da pessoa humana, nalidade potencial – 3. O modelo conclusivo – 4. Variantes do finalismo
como sujeito da ordem jurídica e proporcionar uma crítica da própria – 5. O finalismo brasileiro – 6. Crítica à teoria finalista. III. As teorias
norma incriminadora. valorativas – 1. Características gerais – 2. A teoria normativista – (1)
O conceito de ação – (2) A estrutura do tipo e da culpabilidade – (3)
A eliminação de uma relação pessoal, como centro de responsabilidade, Fundamentos da negligência – (4) Crítica à teoria normativista 3. A
e a necessidade de submetê-la aos condicionamentos sociais não implica, teoria social – (1) O conceito de ação – (2) Fundamentos da negligência
como se verá no decorrer da exposição, fundar a culpa, ou negligência, e toda – (3) Crítica à teoria social. IV. A doutrina italiana – 1. Característica
sua investigação, sobre elementos puramente objetivos e normativos, como geral – 2. As concepções individuais – 3. Crítica à doutrina italiana. V.
pretende, por exemplo, MARINUCCI, que se volta contra a introdução de As teorias funcionais – 1. O conceito de ação – 2. Os fundamentos
da negligência –3. Crítica às teorias funcionais.
conteúdo psicológico-individual no âmbito de sua produção.43 A investigação
do delito culposo deve submeter-se, portanto, antes de tudo, aos princípios
I. A TEORIA CAUSAL
gerais da ordem jurídica democrática, a qual não descarta, em face de estar
subordinada a pactos internacionais de proteção de direitos humanos, nem a 1. CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS CAUSAIS
previsibilidade nem qualquer outro critério que ponha limite à determinação A teoria causal-naturalista da ação tem, como ponto de apoio, ini-
da responsabilidade pessoal. Como, desse modo, o critério da previsibilidade cialmente, o sistema LISZT-BELING, vigorante para a jurisprudência do
é apenas um meio de delimitação da responsabilidade, não tem existência Tribunal do Reich. Este sistema exerceu grande influência no Brasil, prin-
autônoma e só vale na medida em que seja incorporado ao injusto e à cul- cipalmente sob a coordenação de NELSON HUNGRIA e, depois, sob a
pabilidade do fato culposo. influência marcante de ANÍBAL BRUNO. Embora tenha sido substituído
Buscando, portanto, dar um sentido às discussões em torno do fato entre nós quase que inteiramente pelo finalismo, ainda tem aqui seus adeptos
culposo, a partir de sua consideração dogmática, serão examinados, nas pá- na prática judiciária.44
ginas que se seguem, em um primeiro plano, os diversos sistemas da teoria Este sistema, na verdade, sofreu muitas alterações posteriores à for-
do delito, construídos sobre o conceito de conduta e compreensivos dos fatos mulação de seus princípios, de tal forma que, modernamente, se apresenta
negligentes. Em uma segunda etapa, procura-se esboçar uma teoria própria mesclado de ideias estranhas à sua essência objetivo-causal, no setor do injusto,
do delito culposo, tendo por base a constituição de seus elementos sobre a e do psicologismo, no âmbito da culpabilidade,45 o que, em certa medida,
delimitação de um processo de imputação, que deverá estar vinculado, no
injusto e na culpabilidade, à lesão e ao perigo de lesão ao bem jurídico. 44. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, volume I, p. 9: “O fato típico e a culpabilidade cons-
tituem, respectivamente, o elemento material (exterior, objetivo) e o elemento moral (psíquico, subjetivo)
do crime”. Visão geral da teoria causal, TAVARES, Juarez. Teorias do delito, S. Paulo: RT, 1980.
45. Entre nós, assumia esta posição BRUNO, Aníbal. Direito penal, PG, vol. I, p. 346 e ss, vol. II, p. 27 e ss.,
que congregava, no setor do injusto, as conquistas de MAX ERNST MAYER, MEZGER, FISCHER,
43. MARINUCCI, Giorgio. La colpa per inosservanza di leggi, Milano: Giuffrè, 1965. HEGLER e outros, e, na culpabilidade, a concepção normativa de FRANK. Na Itália, continua sendo
54 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 55

contribui para sua manutenção. Em linhas gerais, podemos caracterizar esse Esse raciocínio aplica-se, igualmente, aos adeptos de uma concep-
sistema pelo fato de que nele a ação humana é tomada essencialmente como ção psicológica da culpa. Neste último caso, então, a posição sistemática se
processo causal de um resultado, no qual, à primeira vista, não interferem apresenta como consequência infalível da divisão do delito em duas partes,
fatores volitivos conscientes.46 Tudo que disser respeito à investigação do vigorante já na doutrina do direito comum, na qual todo o objetivo deveria
conteúdo da chamada voluntariedade é tratado, aqui, como culpabilidade. pertencer ao tipo e à antijuridicidade (ao aspecto legal do delito, como se
Assim, se a culpa, ou negligência, já desde os clássicos, se diferenciava falava, ou imputatio facti, na terminologia do direito penal comum) e todo o
do caso fortuito, porque apresentava uma vinculação subjetiva entre o agente subjetivo à culpabilidade (ao aspecto pessoal do delito, a chamada imputatio
e o resultado, era natural que, uma vez sistematizada sua análise na teoria do juris, do direito penal comum).48
delito, devesse integrar-se como objeto da culpabilidade, formando, ao lado A posição sistemática assumida pela negligência, como forma de cul-
do dolo, os dois elementos psicológicos pelos quais se expressava o delito. pabilidade, implica, demais, para os adeptos da concepção psicológica de
Nesta teoria, a negligência e o dolo integram, portanto, a culpabili- culpabilidade, uma presunção prática de vinculação subjetiva entre agente e
dade, como suas formas de aparecimento.47 Confrontando-se com o dolo, fato, quer dizer, uma vez inserida na culpabilidade, presume-se que subsiste
outrossim, a negligência constitui neste sistema uma forma menor de cul- na negligência um vínculo psicológico entre agente e fato, embora, empiri-
pabilidade e, por isso, menos importante, em que a responsabilidade deriva camente, isto não pudesse ser demonstrado na chamada culpa inconsciente.
tão-somente de uma relação psicológica superficial, representada, segundo a Essa posição sistemática da negligência na culpabilidade, evidenciada nas
tese da responsabilidade subjetiva, pela previsibilidade do evento. Enquanto obras de VON LISZT, BELING e demais construtores do sistema causal,49
no dolo, a culpabilidade se salientava em sua forma fundamental, expressa permanece nos autores subsequentes, ainda que busquem estes a superação
pela vontade consciente do resultado antijurídico, vontade esta, portanto, do próprio psicologismo, ao vê-la consubstanciada por elementos normativos
orientada de modo contrário ao direito (böser Wille), na negligência bastava suplementares, que chegam até a merecer o caráter de seus identificadores,
a possibilidade de que o resultado se ligasse ao agente, seja porque dele se como, por exemplo, a infração à norma de cuidado ou a previsibilidade do
teve consciência, embora não se lhe desejasse a ocorrência, seja porque dele resultado. Da observação que se faz da estrutura do sistema causal, pode-se
se poderia ter consciência, em face das circunstâncias concretas do fato. concluir, sem receio de falsa dedução, que a descaracterização da negligência
como forma de culpabilidade é, pois, incompatível com as suas formulações.
Mesmo para quem não veja, na negligência, qualquer conteúdo psico- Se tal ocorrer, já não se pode mais falar de sistema causal, e, sim, de outro
lógico, sua colocação como forma de culpabilidade decorre, tecnicamente, posicionamento, até híbrido, mas não puramente causal.
da estrutura do sistema causal. Com efeito, sendo aqui o tipo de injusto
(integrado, basicamente, pela ação e, se houver, seu objeto) realizado com a Como ocorre, normalmente, com todos os sistemas da teoria do delito,
verificação causal-objetiva do resultado (no homicídio, por exemplo, com a a análise de seus elementos se processa, também aqui, em etapas.
causação do resultado morte), todo e qualquer outro aspecto do delito, em Na primeira etapa, o sistema causal exclui tudo o que for de subjetivo.
particular o que disser respeito de modo exclusivo à vinculação ou relação pes-
soal entre agente e fato, deve ser tratado, necessariamente, na culpabilidade. 48. Ver a informação de JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 200. A doutrina francesa ainda conserva rema-
nescentes dessa postura, dividindo o delito em três partes integrantes ou elementos: o elemento legal,
o elemento material e o elemento moral, de modo que os dois primeiros constituiriam o injusto e, o
último, a culpabilidade (assim, por exemplo, SOYER. Droit Pénal et Procédure Pénale, Paris-Leon,
esta a concepção dominante: ver, por exemplo, MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale, pg, 1988, p. 1976, p. 66 et seq.).
318. Na Alemanha, com postura causal também BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, 1975. 49. Entre outros, LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão, tradução brasileira, p. 289; KOHL-
46. Diante da variedade de formas com que se apresenta esse sistema, esta parece a conclusão mais globa- RAUSCH-LANGE. Strafgesetzbuch, 1956, p. 18; MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal, trad.,
lizante. Ver quase no mesmo sentido, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 220. 1957, vol. II, p. 100; e também BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 449, apesar de procurar a supera-
47. Com esta postura, vemos LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão, tradução brasileira, 1899, ção do próprio sistema mediante a adoção de critérios de autores de correntes opostas. Entre nós, BRU-
p. 250, MAYER, M. E. Die schuldhafte Handlung und ihre Arten im Strafrecht, Leipzig: Hirschfeld, NO, Aníbal. Nota 19, p. 58; GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, vol. I, p. 247; HUNGRIA,
1901, p. 139, RADBRUCH, Gustav. “Über den Schuldbegriff”, ZStW, 1904, 24. p. 344, BATTAGLINI, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II, p. 114; MARQUES, José Frederico. Tratado de
Giulio. Direito penal, tradução brasileira, 1964, p. 249; GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, direito penal, 1965, vol. II, p. 202. Na doutrina italiana, entre outros, ANTOLISEI, Francesco. Manuale
1971, vol. I, p. 247 e ss., entre outros. di diritto penale, parte generale, 1969, p. 284 e ss.;.
56 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 57

Esta exclusão do subjetivo tem sua razão de ser. Tendo em vista que o direito a “falta de precaução” ou o “desprezo do cuidado requerido pela ordem ju-
penal se organiza no sentido de evitar, preliminarmente, que efeitos danosos rídica e exigido pelo estado das circunstâncias”.53
ou perigosos (resultados indesejáveis) de uma atividade se verifiquem con- Vê-se, pois, que, desde o início, a negligência é tomada tanto como
cretamente, fundamenta-se, com sua ocorrência, a reprovação jurídico-penal elemento psicológico do delito, quanto normativo, embora integrante da cul-
sobre o fato (configuração do injusto penal), independentemente de qualquer pabilidade psicológica. Reconhecem-se, portanto, dois elementos essenciais à
elemento subjetivo existente no agente. Para tudo isto, basta que um fato sua configuração: a vinculação psicológica realizada através da previsibilidade
típico e antijurídico se realize e se esgote na produção causal de um resultado do resultado e a fundamentação normativa (fora do âmbito do tipo e da
proibido,50 exaurindo-se, com isso, a primeira etapa de análise do delito. antijuridicidade), representada pela contrariedade a um dever de cuidado.54
Na segunda etapa, a questão da negligência fica adstrita à condição Inicialmente, a grande preocupação, no delito, ao lado da causalidade,
pessoal de responsabilidade, fundada exclusivamente na vinculação sub- era fixar, definitivamente, a relação psíquica entre o resultado ocorrido e o
jetiva entre agente e fato. Este vínculo psicológico, real ou suposto, que agente. Essa relação se tornava necessária para fundamentar a culpabilidade,
decorre de uma compreensão subjetiva da causalidade , exaure a segunda que se resumia no subjetivo (concepção psicológica de culpabilidade).55 Para
etapa da análise do delito. enfrentar esta questão, associou-se à negligência um elemento volitivo, pelo
Por outro lado, estas duas etapas, como estão integradas no fato e são menos, em sua primeira fase. Essa formulação, inclusive, não é privilégio dos
apreensíveis por um idêntico processo de cognição, servem como condição, causalistas, pois dela resultam as teorias do vício de vontade ou da atenção,
em um primeiro plano, da reprovação do fato como injusto e, depois, como já concebidas, respectivamente, por CARRARA e FEUERBACH,56 como
condição da aplicação da pena. Isto está muito claro no sistema causal. Se a também pelos hegelianos, que se esforçaram em encontrar um momento
culpabilidade deve ser moldada segundo duas formas de gravidade, a forma subjetivo na negligência, vendo-o na consciência e vontade acerca das con-
dolosa, como mais grave, e a forma culposa, como menos grave, é evidente dições, das quais, como real possibilidade, deriva o resultado antijurídico.
que esta graduação está diretamente ligada à aplicação, ou individualização Entretanto, a assertiva de que a negligência se compunha de elemento vo-
da pena, o que faz da negligência uma importante condição desta individua- litivo conflitava com a forma dolosa de culpabilidade. Trouxe este conflito,
lização. Esta colocação da negligência como condição de aplicação da pena, como consequência, a tentativa de melhor fundamentar-se a negligência,
tendo por base seu momento subjetivo como fundamento da responsabili- dando lugar a inúmeras formulações relativas à sua essência, entre as quais
dade penal, representou, efetivamente, grande passo diante do objetivismo uma original de BINDING, hoje tomada em consideração pelos autores
germânico, o mesmo acontecendo com a fundamentação causal do injusto, modernos,57 de que a ação culposa deve ter sido querida em sua precedência
com relação às incertezas do direito comum.51 von Tratado. vol. I, p. 290. Entre nós, QUEIROZ FILHO. Lições de direito penal, 1966, p. 147: “Nessa
imprevisão do previsível encontra-se a raiz da culpa”; igualmente, MARQUES, José Frederico. Trata-
2. OS ELEMENTOS DA NEGLIGÊNCIA do, vol. II, p. 202.
53. A contrariedade ao dever, como elemento da negligência, segundo consignava HUNGRIA, Nelson.
É importante salientar que a culpa é tida nos causalistas, desde VON Comentários, vol. I, tomo II, p. 185, já estava prevista na definição de Reynaldo: “incircumspecta
desviatio ad ca diligentia quam communiter adhibent homines”. Ver igualmente LISZT, Franz von.
LISZT, tanto como a “não previsão do resultado previsível”,52 quanto também Tratado, vol. I, p. 291. Entre nós, BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 80: “Concorda-se em que no crime
culposo há sempre um ato inicial contrário ao dever, uma ação ou omissão praticada pelo agente sem
50. Esta conclusão está bem ressaltada em RADBRUCH, Gustav. Der Handlungsbegriff in seiner Bedeu- a atenção ou o cuidado que, nas circunstâncias, as normas de convivência social impunham e que lhe
tung für das Strafrechtssystem, Berlin: Guttentag, 1904, p. 103, em que afirma a estrita causalidade da teriam permitido evitar o resultado”.
ação e separa de seus elementos o conteúdo da vontade, para incluí-lo na culpabilidade. 54. A definição de MEZGER, Edmund. Tratado, vol. II, p. 184, exprime claramente essa estrutura: “Atua
51. Os autores, em geral, quando se filiam ao finalismo e outras correntes modernas, olvidam a contribuição negligentemente quem infringe um dever de cuidado que lhe incumbe pessoalmente e pode prever a
do primeiro sistema de construção do delito. Sem ele, entretanto, não seriam possíveis, cientificamente, ocorrência do resultado”.
as construções hoje encontradas, daí dever-se ressaltar sua qualidade por esse aspecto, independente- 55. Ver a exposição de SOLER, Sebastian. “A Culpabilidade”, Estudos Jurídicos, 1973, n. 6, p. XIX, em que
mente da filiação a outro sistema. Sobre a evolução da responsabilidade, ver LISZT, Franz von. Tratado, se sustentava a validade dessa tese.
vol. I, p. 251, no qual se mostra a penosa tarefa de evitar a punição pelo resultado, existente em todos os 56. As teorias denominadas da vontade são, na verdade, teorias subjetivas e podem tanto referir-se ao defei-
sistemas jurídicos da antigüidade, mas também de não se cair no extremo subjetivismo, por exemplo, to de inteligência, como ao defeito de atenção.
do Espelho da Saxônia, que não punia a atividade culposa. 57. Edmund MEZGER associa-se a um momento volitivo na negligência, pelo menos na fase preceden-
52. Esta é uma fórmula comum, mas não integralizante do pensamento causal-naturalista. Ver LISZT, Franz te: “o ato negligente começa sempre neste instante do ato consciente ou da negligência consciente,
58 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 59

ou momento inicial,58 o que basta para fundamentar-lhe o caráter psicológico o verdadeiro precursor desse novo sistema, ao conceber a negligência como
e situá-la no âmbito do elemento subjetivo do delito. a lesão querida dos deveres de cautela.63 Como a culpabilidade passou a ser
A solução de BINDING, porém, não foi seguida por todos os causa- representada pela reprovabilidade e não se poderia satisfazer apenas com a
listas, chegando-se, em oposição a ela, a uma outra consequência radical, vinculação psicológica entre agente e fato, todo o componente normativo, que
defendida por KOHLRAUSCH, BAUMGARTEN e outros, de eliminar-se lhe ficava estranho no começo, pôde ser tratado de modo mais saliente, sem o
a negligência do direito penal, para tratá-la, exclusivamente, no direito de comprometimento, em tese, da realização objetiva e causal do tipo de injusto.
ordem pública (Ordnungsrecht),59 tendo em vista a impossibilidade de se É com base nessa concepção que ANÍBAL BRUNO,64 NELSON
afirmar, lógica e ontologicamente, o vínculo psíquico, por meio do crité- HUNGRIA65 e outros penalistas brasileiros66 conceituavam a negligência
rio dominante da previsibilidade, na chamada culpa inconsciente.60 Ainda como o elemento psicológico-normativo da culpabilidade, atribuindo-lhe,
que não se tenha acatado a solução proposta pelos negativistas, suas críticas como elementos essenciais, “uma conduta contrária ao dever”67 e “uma relação
refletem-se, também, nas inúmeras outras tentativas de fundamentação da entre o agente e o resultado, que consiste na falta de previsão do previsível”.68
negligência como forma de culpabilidade, mais nitidamente na aferição de Modernamente, os atuais defensores do sistema causal, com o fim de
seu conteúdo psicológico. tornarem mais lógico seu pensamento, dissociam a análise de ambos esses ele-
A teoria causal, por seu lado, só veio a justificar, verdadeiramente, a mentos da negligência em dois estágios: a desatenção ao cuidado objetivo passa
compreensão da negligência dentro da teoria do delito, a partir da adoção da a fazer parte da antijuridicidade, e a não-previsibilidade, ou previsibilidade do
teoria normativa de culpabilidade de FRANK e seus seguidores.61 Tomada resultado, se integra, definitivamente, como componente da culpabilidade.
esta culpabilidade, então, não mais como mero elemento subjetivo do delito, Essa tomada de posição dentro do causalismo conduz, está claro, a alterar a
mas como juízo normativo de censura, proferido pessoalmente ao agente, estrutura do tipo de delito culposo, pois, desde a sua realização, já se deve saber
introduziu-se a possibilidade de se investigar a negligência, também, sob as- de que espécie de delito se trata. Investigando-se, contudo, mais pormenoriza-
pecto normativo, dando-se importância ao não-atendimento da cautela devida damente essa dicotomia de tratamento, pode-se chegar facilmente à conclusão
ou à falta de precaução.62 de que era ela imperiosa consequência de ajuste técnico.
Convém observar, contudo, que FEUERBACH, embora tenha busca- Com efeito, num mero exemplo de acidente de trânsito, será possível
do fundar a negligência em um momento subjetivo, por derivação de sua ilustrar-se essa conclusão. Suponha-se que dois veículos se dirijam pela
concepção de delito amparada na resolução volitiva, pode-se dizer, veio a ser mesma estrada em sentidos opostos: o veículo A segue em sua mão de di-
reção, em velocidade compatível com a estrada ou até em baixa velocidade,
ainda quando cesse mais tarde” (Tratado, vol. II, p. 192-193). Entre nós, por exemplo, EVERARDO
LUNA quer ver na negligência o vício de vontade vencível e intrínseco (nota à tradução de BETTIOL,
Giuseppe. Direito penal, vol. II, p. 127). O próprio GIUSEPPE BETTIOL, apesar de não causalista, 63. FEUERBACH, Alselm Ritter von. Nota 8, p. 93. Com esta conclusão, Reinhart Maurach, Deutsches
compreende a negligência como falta de atenção, consequentemente, como inserida no contexto de uma Strafrecht, A. T., 1971, p. 535.
conduta voluntária, fazendo parte da culpabilidade (Direito penal, vol. II, p. 115). 64. BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 84.
58. BINDING, Karl. Die Schuld im deutschen Strafrecht: Vorsatz, Irrtum, Fahrlässigkeit, Leipzig: Mainer, 65. HUNGRIA, Nelson. Comentários, vol. I, tomo II, p. 185.
1919, p. 127. Informativo, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 566. 66. NORONHA, Edgard Magalhães. Do crime culposo, p. 87: “há culpa quando o agente, deixando de em-
59. Há muitas formas de denominar este ramo do direito e suas infrações. Em Portugal, por exemplo, é cha- pregar a atenção ou diligência de que era capaz, em face das circunstâncias, não prevê o resultado que
mado de direito de contraordenação, constituindo-se, pois, a partir daí as infrações de contraordenações. podia prever, ou prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou poderia evitá-lo”; no mesmo
Dadas as características pública e disciplinar de suas normas quanto às condutas praticadas, é preferível sentido, MARQUES, José Frederico. Tratado, vol. II, p. 156.
tratá-lo como direito de ordem pública, que melhor reflete seu conteúdo. 67. BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 91; HUNGRIA, Nelson Comentários, vol. I, tomo II, p. 184.
60. BAUMGARTEN, Arthur. Aufbau der Verbrechenslehre, Tübingen: Mohr, 1913, p. 116; GALLINER, 68. Assim é a posição de BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 454; igualmente BOLDT, Zur Struktur der
Moritz. Die Bedeutung des Erfolges bei den Schuldformen des geltenden Strafgesetzbuches, Breslau: Fahrlässigkeitstat, ZStW, 1956, pág. 335. Na atualização do Studienbuch de MEZGER, HERMANN
Schletter, 1910, p.29; KOHLRAUSCH, Eduard. Reform des Strafrechts, 1910, vol. I, p. 183. Acerca BLEI assume posição semelhante, concebendo, porém, a lesão ao dever de cuidado tanto como parte
disso, com exaustiva discussão, KAUFMANN, Arthur. Das Schuldprinzip, p. 163. componente do tipo, como da antijuridicidade: no tipo, será ela analisada, quando se trate simplesmente
61. FRANK, Reinhard. Über den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 29; MAYER, Max Ernst. Die schul- de atividade que cumpre exigências objetivas de cuidado; na antijuridicidade, quando o fato não possa
dhafte Handlung und ihre Arten im Strafrecht, Leipzig: Hirschfeld, 1901, p. 106. Entre nós, BRUNO, mais ser excluído do tipo, por exemplo, nas situações de exceção (estados de necessidade) (MEZGER-
Aníbal. Nota 19, p. 57 -BLEI. Strafrecht I, 1970, p. 218). O que BLEI contempla não é verdadeiramente a lesão ao dever de
62. FRANK, Reinhard .Das Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich, Kommentar, Tübingen: Mohr, 1931, § cuidado, mas, sim, os casos em que ela não se verifica. Mais tarde, BLEI, como veremos, reanalisa sua
59, VII; LISZT, Franz von. Tratado, vol. I, p. 291; MEZGER, Edmund. Tratado, vol. II, p. 184 et seq. posição e se filia a outros conceitos, semelhantes ao finalismo.
60 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 61

atendendo a todos os requisitos e recomendações do código de trânsito que consegue atingir e adquirir, pela influência da educação e do ambiente,
e daquilo que se poderia exigir, no caso concreto, para caracterizar um uma suficiente capacidade de prever, de avaliar e de inibir-se, de modo a
motorista-padrão; o veículo B trafega na contramão e em alta velocidade; poder facilmente adaptar-se às exigências complexas da vida social e, pelo
numa curva, onde os dois carros não se veem mutuamente, B choca-se menos, às restrições da moral codificada”.74
com A, produzindo a morte de um dos passageiros. De acordo com a con- O conceito de homem médio, pode-se notar, deriva do raciocínio posi-
cepção inicial, de LISZT-BELING, o fato de A dirigir na mão de direção tivista do estímulo-resposta: o homem mediano é aquele que puder, segundo
e adequadamente configurou um fato injusto pelo simples motivo de que um juízo hipotético, reagir conforme os estímulos (bons estímulos). Em
causou um acidente e a morte da vítima; A só não será punido por razões oposição a esse conceito, entendido por alguns como insustentável, os au-
de culpabilidade. Agora, de conformidade com a nova orientação, o fato de tores modernos orientam-se pelo agente individual, tomado segundo suas
A dirigir adequadamente não é, desde logo, antijurídico; antijurídico será condições favoráveis e desfavoráveis, inatas e adquiridas, de modo que seus
apenas o fato de B dirigir contra as determinações de cuidado e as regras defeitos, para os quais não tenha contribuído diretamente, não podem ser
do trânsito. A questão de culpabilidade só passa a interessar a B e não a A. levados em conta como fatores de aumento de culpabilidade.75
A duplicidade de tratamento dos dois componentes do delito ne-
gligente, no tipo de injusto e na culpabilidade, induz, ainda, por outra 3. CRÍTICA À TEORIA CAUSAL
parte, à associação de mais um requisito, o da evitabilidade do evento, Realmente, difícil é a sustentação da tese psicológica, como fundamen-
como o faz BAUMANN.69 Não basta, portanto, para este autor, que o to da negligência, nos casos em que o agente não tenha previsto ou sequer
agente tenha podido prever o resultado, mas, sim, que este resultado pu- pensado no acontecimento (resultado). Neste particular, afigura-se-nos per-
desse ser evitado, conforme um juízo objetivo. Por outro lado, a questão feita a crítica dos negativistas.
da vinculação psicológica do resultado ao agente perde, em BAUMANN, Com efeito, a previsibilidade, por si só, não basta para caracterizar um
seu sustentáculo, ao afirmar-se, então, que a negligência prescinde desse componente psicológico da conduta humana, com muito menor grau, ainda,
vínculo, reconhecendo-se, na previsibilidade, tão-só um componente de na forma de vinculação ou relação psíquica entre o agente e o resultado. Não
fundamento psicológico, mas não necessariamente relacional-psíquico.70 satisfeito com esta formulação, procurou BAUMANN, moderno partidário
A questão da previsibilidade, por seu turno, apresenta-se, no sistema do sistema causal, desvincular o problema da verificação da negligência, da
causal, ora como fator nitidamente objetivo, baseado no chamado homo necessidade prática de uma exigência dessa vinculação ou relação psíquica,
medius,71 ora lastreado, exclusivamente, no agente concreto, individual.72 chegando a afirmar que o que interessa à sua fundamentação é simplesmen-
O conceito de homo medius não é muito claro, significando um juízo hi- te o reconhecimento de componente que dependa do próprio agente, um
potético acerca do que pensa e se comporta a maioria dos cidadãos dessa elemento, assim, pessoal-subjetivo, mas não psíquico.76
sociedade onde vivem. NELSON HUNGRIA ilustra esse conceito, afir- Na verdade, torna-se, mesmo, difícil determinar tanto o conceito e a
mando que “o homem normal deve ser entendido sob um ponto de vista caracterização da previsibilidade, quanto sua medida e limites. NELSON
estatístico, isto é, tendo-se em conta id quod plerumque accidit”.73 No HUNGRIA afirmava que “existe previsibilidade quando o agente, nas cir-
mesmo sentido, complementa DI TULLIO que esse homem seria “aquele cunstâncias em que se encontrou, podia, segundo a experiência geral, ter-se

69. BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 456. 74. Citado por HUNGRIA, Nelson. Comentários, vol. I, tomo II, p. 189.
70. Idem, p. 452. 75. BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 91, assume posição de compromisso, entendendo que a medida deve ser
71. Assim, BATTAGLINI, Giulio. Direito penal, p. 270; HUNGRIA, Nelson. Comentários, vol. I, tomo II, baseada na experiência da vida diária e no curso natural das coisas, mas, além disso, assentar-se no fato
p. 188; MARQUES, José Frederico. Tratado, vol. II, p. 208. real e nas condições individuais do agente; do mesmo modo, NORONHA, Edgard Magalhães. Do crime
72. Assim, BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 456; LISZT, Franz von. Tratado, vol. I, p. 291; MEZ- culposo, p, 76; com melhor orientação, no sentido da individualização completa do juízo de previsibili-
GER, Edmund. Tratado, vol. II, p. 195. dade, encontra-se modernamente BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 456 e ss.
73. HUNGRIA, Nelson. Comentários, vol. I, tomo II, p. 188. 76. BAUMANN, Jürgen Strafrecht, AT, p. 452 et seq.
62 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 63

representado, como possíveis, as consequências do seu ato”.77 Mais adian- Observando-se com mais atenção esse problema, pode-se concluir
te, porém, vem confundir o conceito de previsibilidade com o critério de que o reconhecimento do critério do homo medius não é consequência da
determinação de seu limite: “é previsível o fato, sob prisma penal, quando concepção psicológica de culpabilidade, mas, sim, da postura sistemática
a previsão do seu advento, no caso concreto, podia ser exigida do homem da negligência dentro desse elemento do delito. É que, assim procedendo,
normal, do homo medius, do tipo comum de sensibilidade ético-social”.78 não se estabelece uma distinção necessária entre o que se imputa pessoal-
ANÍBAL BRUNO não se aventurou à conceituação, assim procedendo mente ao agente e o que, objetivamente, contraria a ordem jurídica e lhe
muitos outros, para os quais a questão da previsibilidade está relacionada é causal-objetivamente imputado.
com as noções de cognoscibilidade e possibilidade.79 Por outro lado, a previsibilidade não é um componente orgânico-psíqui-
Normalmente, a noção de previsibilidade está ligada à questão do poder co do indivíduo. É o resultado de um juízo de valor, puramente normativo,
do agente. MEZGER exprime, com nitidez, essa corrente, ao afirmar que porque associado também à compreensão do injusto (não-atendimento das
“existe previsibilidade do resultado, quando o autor, ao realizar a conduta normas de cuidado) e sua verificação, conforme graus de possibilidade. Neste
contrária ao dever, houvesse podido prever o resultado dessa sua condu- particular, não há que se confundir o problema da causação do resultado com
ta contrária ao dever”.80 Dessa ligação entre previsibilidade e poder resulta a atribuição ao agente de uma conduta negligente que o produziu.
uma conceituação tautológica: previsibilidade é poder prever. Mesmo assim, Nem só na questão da previsibilidade e da busca de sua fundamenta-
porém, essa conceituação continua sendo válida dentro do sistema e até fora ção psicológica se torna deficiente o sistema causal. Da mesma forma, em
dele, o que ocasiona já, agora, uma descaracterização da previsibilidade como sua postura inicial, de considerar como bastante à caracterização do injusto
um claro e puro vínculo psicológico da negligência. O que aqui ocorre é um a “causação do resultado”, já se elimina a possibilidade de tratamento dos
vínculo de ordem e caráter pessoal, mas não psíquico. delitos de mera atividade, para os quais não importa a causalidade, pois se
Relativamente à medida da previsibilidade e seus limites, torna-se ab- esgotam na própria execução da conduta.82
solutamente incompatível com a concepção normativa de culpabilidade o Igualmente, a anteposição “dolo-negligência” na culpabilidade fez in-
critério do homo medius defendido por NELSON HUNGRIA. Se a culpa- cidir sobre eles uma certa comensurabilidade de grandezas, na qual o dolo
bilidade é representada pelo juízo pessoal de reprovação, não há como se representaria sempre o máximo e a negligência o mínimo de gravidade. Isto,
estabelecer uma medida geral, hipotética, como critério determinante da embora seja verdade no âmbito da punibilidade, deve ser devidamente ajusta-
aferição e graduação desse juízo. A medida adequada só pode ser o agente do em termos de valoração do fato global, de modo a não induzir à conclusão
e não o homo medius. É o que faz BAUMANN e, entre nós, fazia ANÍBAL de que “a cada crime doloso correspondem, idealmente, tantos delitos culpo-
BRUNO.81 Mesmo para a tese da culpabilidade puramente psicológica, na sos”,83 o que equivale a dizer que, eliminado o dolo, sempre resultaria possível
qual a previsibilidade funcionaria como critério de imputação, não seria a afirmação da negligência, que seguiria os mesmos elementos típicos e a
possível reconhecer-se validade à medida do homo medius, pois, nesse caso, o mesma estrutura do delito doloso. Esta formulação está em evidente contra-
que se busca é imputar-se o resultado ao agente individual e não a um agente dição com o princípio da legalidade, bem como com os preceitos do Código
abstrato, situado em sua posição. Penal brasileiro (art. 18, parágrafo único), assinaladores da chamada excep-
cionalidade do crime culposo. Mais adiante, quando se tratar, especificamente,
77. HUNGRIA, Nelson Comentários, vol. I, tomo II, p. 188.
78. HUNGRIA, Nelson Comentários, vol. I, tomo II, p. 188.
desta questão, se poderá ver como a doutrina brasileira tem seguido caminhos
79. BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 91 et seq. contraditórios e divergentes quanto à necessidade de uma previsão legal do
80. MEZGER, Edmund. Tratado, vol. II, p. 200.
81. BRUNO, Aníbal. Nota 19, pág. 92, apesar de assumir a posição de compromisso, já afirmada, conclui,
no final: “A previsibilidade tem de ser uma referência pessoal do próprio agente para com o resultado”; 82. Ver, além disso, a abrangente crítica de WELZEL, Hans. Nota 7, p. 62-63; sobre a conceituação de de-
já JÜRGEN BAUMANN se apresenta de modo mais coerente, desde o princípio (Strafrecht, AT, p. litos de mera atividade, WESSELS-BEULKE. Strafrecht, AT, p. 21 e JESCHECK-WEIGEND. Nota 7,
452 e ss.), afirmando a pessoalidade do juízo de previsibilidade. Crítico em relação ao critério do homo p. 263. No sentido do texto, MALAMUD GOTI, Jaime. La estructura penal de la culpa, 1976, p. 41-42.
medius, REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal, pg, vol. I, 2002, p. 182. 83. A frase é de LISZT, Franz von. Tratado, vol. I, p. 293.
64 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 65

delito culposo, não bastando, para tanto, uma interpretação teleológica da ou perigosos, somente se consumam com a ocorrência de algum evento a
norma penal incriminadora, que fundamenta os tipos de delitos dolosos. mais do que a mera execução da conduta, de tal forma que se possa separar,
Finalmente, a duplicidade de tratamento dos elementos da negligência empiricamente, entre causa (conduta) e efeito (resultado). Esta crítica vale
na antijuridicidade e na culpabilidade, proposta modernamente, de modo para todo o sistema, estendendo-se também àqueles que adotam o princípio
que, na primeira, seria incluída a infração às normas de cuidado e, na última, exclusivo da evitabilidade do resultado.86
a previsibilidade pessoal, ainda que represente um progresso considerável II. A TEORIA FINALISTA
com relação à sistemática de LISZT-BELING, não satisfaz inteiramente.
A primeira objeção é a de que a estrutura do direito penal exige que 1. CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA FINALISTA
os componentes do delito sejam analisados em etapas de delimitação, quer O que marca de modo nítido a postura finalista na teoria do delito é
dizer, na tipicidade, primeiramente, quanto às características da ação e do a consideração da ação como atividade conscientemente dirigida a um ob-
resultado e na qual se deve incluir a questão da infração ao dever de cuidado jetivo. Ao contrário de se tomar a ação como mero impulso causal, em que
e, depois, na antijuridicidade, quanto às normas gerais de permissibilida- a vontade desempenharia apenas papel secundário no acontecimento, tal
de da conduta. Antecipar-se o juízo de antijuridicidade só é admissível como foi concebido na teoria causal-naturalista, evidencia-se, aqui, a função
quando se tratar de fato que seja irrelevante ou se situe fora de cogitação decisiva dessa vontade, de forma que a atividade deixa de ser mecânica para se
da ordem jurídica, independentemente do exame do caso concreto. Em tornar finalisticamente orientada. É, nesse sentido, que WELZEL conceitua
termos gerais, a antijuridicidade se vê configurada pela inexistência de uma a ação como o exercício da atividade final.87
causa justificante, significando isto uma necessária simplificação, fruto de Tomando-se a ação como atividade consciente, composta necessaria-
elaborações demoradas na teoria do delito, em especial sob a influência de mente de seus elementos subjetivo e objetivo, o que se busca é encontrar um
MAX ERNST MAYER e outros.84 Incluir-se aí também a comprovação outro conceito superior de conduta (Oberbegriff) que englobe todas as formas
de que o agente infringiu os deveres a que estava obrigado, na situação de manifestação do comportamento humano, dentro e fora do direito. Neste
concreta, para evitar o perigo ou o dano, levaria a uma total subversão do particular, os finalistas assumem posição radical de que todo o ordenamento
conteúdo da antijuridicidade, porque implicaria considerar que a infração jurídico deve subordinar-se aos imperativos da conceituação final de condu-
à chamada norma de cuidado esgotaria toda a análise do delito culposo, ta, que representaria os dados reais da consideração ontológica. Aqui, será
sem levar em conta outros critérios delimitativos. Demais, possibilitaria o preciso salientar que os finalistas nem só contemplam a ação humana como
reconhecimento de uma antijuridicidade civil ou administrativa indepen- um comportamento ontológico-final, mas exigem que a compreensão desse
dente da antijuridicidade penal, pois, se o agente atuasse conforme o dever comportamento se efetive através de formulação de métodos orientados,
de cuidado objetivamente exigível, poderia, apesar disso, infringir outros igualmente, com sentido finalístico.88
deveres administrativos, como os de trânsito, por exemplo, e sua ação seria
considerada como juridicamente permitida, o que não é verdade.85 Na esquemática do finalismo, dirige o homem conscientemente sua
86. No Brasil, QUEIROZ FILHO., Lições, p. 147, considerava que o “imprevisível e o inevitável escapam
No que tange à manutenção da previsibilidade na culpabilidade, será ao domínio da vontade e incidem na faixa do caso fortuito”. Na verdade, isto só vale para os delitos
preciso ressaltar que ela só tem importância excepcional nos delitos de re- de resultado. Nos crimes de mera atividade, a questão da previsibilidade perde sua importância, sendo
substituída pela lesão ao dever de cuidado e pela evitabilidade de realização do fato. Portanto, nem um
sultado, naqueles que, material e independentemente dos efeitos danosos dos dois critérios, previsibilidade ou evitabilidade, pode servir, separadamente, como critério geral e
único da determinação da culpa.
87. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 53. Sobre o finalismo, TAVARES, Juarez. Teorias do delito, S. Paulo: RT,
84. MAYER, Max Ernst. Der Allgemeine Teil des deutschen Strafrechts, Heidelberg: Winter, 1915, p. 10; 1980, p. 53 e ss.; idem, Teoria do injusto penal, 2002, p. 137, 150.
igualmente, GRÜNHUT, Max. “Methodische Grundlagen der heutigen Strafrechtswissenschaft”, in 88. Esta é a formulação finalista verdadeira, que trata da questão da conduta final tanto sob ponto de vista da
Festgabe für Frank, I, p. 5. ontologia, quanto também da epistemologia. A variante neokantiana no direito penal, consubstanciada
85. A antijuridicidade tem que ser entendida de conformidade com toda a ordem jurídica, constituindo, em MEZGER, entende que a ação é igualmente uma atividade final, mas não encontra necessidade de
portanto, um princípio geral de qualquer delito, doloso ou negligente. Ver sobre isso, TAVARES, Juarez. explicar todas as formas de manifestação real da conduta pelo sentido finalista (ver MEZGER-BLEI.
Teoria do injusto penal, 2002, p. 308 et seq. Strafrecht I, p. 76-77).
66 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 67

atividade desde o princípio. Numa primeira etapa, antecipa em pensamento Como consequência do conceito de ação, que informa e orienta a estru-
o objetivo, isto é, o fim a ser alcançado (fase idealizadora); numa segunda tura do delito, desenvolve-se aqui uma nova compreensão dos elementos que
etapa, escolhe, dispõe e orienta os meios causais necessários e possíveis à compõem o tipo legal, a antijuridicidade e a culpabilidade. Tendo em vista
consecução do fim e considera os efeitos concomitantes a esses fatores. Como que o tipo representa a conduta humana proibida (matéria da proibição) ou
última etapa, realiza a atividade planejada, obtendo ou não o objetivo a que imposta (matéria da determinação),93 nele é que se irão determinar, exata-
visa.89 Em todas as fases, o homem atua sempre conscientemente, de modo mente, as características de cada forma especial de comportamento delituoso.
que a causalidade a ele se subordina como instrumento de sua realização. Assim, desde logo, separam-se os delitos dolosos dos negligentes, para efeito
Essa atividade não é, porém, exclusiva do direito penal, mas, sim, um dado de diverso tratamento. A negligência passa, por conseguinte, a constituir uma
ontológico comum a qualquer forma de comportamento. WELZEL dá, modalidade especial de delito, com elementos próprios do tipo de injusto e
acerca disso, um exemplo bastante significativo com respeito ao trabalho da culpabilidade e estruturado à parte do delito doloso.
que, independentemente de seu produto, vale como própria atividade dotada A fundamentação da diferença entre crimes dolosos e negligentes e a
de sentido, tendo em vista sua finalidade positiva.90 necessidade de sua separação, já a partir do tipo de injusto, em duas modali-
Ao contrário da teoria causal, o finalismo não inclui, na conceituação dades de crimes, não encontra entre os autores denominador comum.
de conduta, o resultado, estabelecendo que a atividade humana, como tal, ne- WELZEL, por exemplo, manifesta a diferença segundo o juízo de
cessita unicamente de orientação a um resultado, mas não efetivamente desse valor negativo incidente sobre a conduta típica. No crime doloso, o juízo de
resultado, como componente integrante de sua estrutura. Relativamente a valor recairia sobre o resultado (desvalor do resultado) danoso consciente e
esse posicionamento, pode-se compreender que, ao fazer-se uma valoração volitivamente produzido ao bem jurídico. No crime culposo, ou negligente,
dessa atividade, quer sob ponto de vista jurídico-penal (no tipo e na antiju- o que efetivamente vigora é o desvalor da própria ação, segundo a forma
ridicidade), quer sob ponto de vista ético-social, será possível contemplar-se de sua execução.94
esse juízo independentemente do resultado alcançado, mas tendo por base
apenas o sentido da própria conduta. Cria-se, pois, dupla incidência de juízos MAURACH, por outra parte, entende que a diferença radica no tipo
de valoração: sobre o resultado e sobre o ato. O comportamento que produz subjetivo, ou seja, no componente subjetivo do tipo de injusto. No crime
a morte de outrem é reprovado, portanto, pelo resultado (morte) que causou doloso, há, via de regra, uma perfeita congruência entre os componentes
e pelo sentido da atividade desenvolvida para alcançar esse resultado. objetivo e subjetivo da conduta típica, de sorte que o que realmente se rea-
liza corresponde ao que efetivamente foi querido. No crime culposo, o que
Para Welzel, isto importa caracterizar o próprio direito penal como efetivamente se realizou não correspondeu à vontade do autor da ação, de
instrumento de proteção de valores ético-sociais de consciência, tendo por sorte que se observa um desvio no processo causal, de tal monta relevante
base o sentido da atividade positiva e só, secundariamente, os bens jurídicos, que implica nítida separação entre esses delitos.95
em razão do resultado perigoso ou danoso, concretamente produzido.91
Assim, observa-se que a característica básica da postura finalista é tratar
MAURACH, contudo, argumenta que essa visão da conduta finalista a negligência segundo a condução da atividade humana estabelecida no tipo
não deve conduzir, necessariamente, à proteção primária de valores elementa- de injusto, quer tendo por base o objeto de um juízo de valor, quer o desvio
res ético-sociais, sem o respaldo do bem jurídico, que seria, em última análise, do processo causal ou defeito de congruência. A negligência, portanto, não
o ponto de apoio de toda a função protetiva do direito penal.92
93. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, Parte geral, São Paulo, 1976, p. 167; MAURA-
89. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 54 et seq. CH, Reinhart. Nota 65, p. 228; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A moderna estrutura do fato punível,
90. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 11. 2ª edição, Rio de Janeiro, 2002, p. 29; STRATENWERTH, Günther. Strafrecht, AT, 4ª edição, 2000, p.
91. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 12 et seq. 86; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 74.
92. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 216: “O bem jurídico é o núcleo material de toda norma de conduta 94. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 184; assim também, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 238.
e de todo tipo construído sobre ela”. 95. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 530.
68 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 69

se subordina aos mesmos princípios do tipo doloso, nem deve ser tratada de matar, como acontece com o crime doloso, mas é causalmente cega, di-
como forma de culpabilidade, como acontece na teoria causal-naturalista. ferenciando-se, por outro lado, de puro processo causal qualquer, porque
Dos dois elementos básicos da negligência, infração à norma de cuidado era evitável em virtude da possibilidade de o autor agir finalisticamente. Essa
e a previsibilidade do resultado, que, nas modernas concepções causais, se atividade final possível figurava ao lado da atividade final real (crimes dolo-
bipartem no setor do injusto e da culpabilidade, o que realmente determina sos) como forma de aparecimento da conduta finalista. Enquanto no crime
a caracterização do crime negligente é o primeiro, que corresponde tanto na doloso a finalidade era diretamente identificada, no crime negligente ela
concepção de WELZEL quanto de MAURACH à forma de execução da con- constituía tão-só um momento de referência, como atividade possível.
duta, sobre a qual incide um desvalor jurídico-penal e conduz a um desvio Deve-se ainda mencionar que WELZEL incluía nos delitos culposos
do processo causal. A previsibilidade continua como critério identificador de duas formas de tipo: os de pura causação e os de causação com um núcleo
responsabilidade nos crimes de resultado.96 Entretanto, ainda neste aspecto, de ação finalista. Nos primeiros, há dificuldade de se separar entre crime
não vigoram pontos de coincidência em todos os autores. culposo e mero caso fortuito, o que só poderia ser obtido no tipo subjetivo,
2. O PRINCÍPIO DA FINALIDADE POTENCIAL que congregava a evitabilidade final situada como fator indispensável para
incluir a causação externa na esfera do atuar humano.
Uma das preocupações básicas do finalismo, em seus primeiros escri-
tos, era fundamentar a negligência segundo a noção da atividade dirigida A compreensão da negligência como forma de conduta, ao lado do
a um fim. Essa fundamentação finalista da negligência tem por objetivo dolo, e não como forma de culpabilidade, embora se situe como consequên-
diferenciá-la do caso fortuito e incluí-la no conceito superior de conduta, cia necessária da estrutura finalista, não o foi efetivada por WELZEL. Nas
segundo o qual toda atividade, tanto dolosa quanto negligente, pode ser citadas edições do seu Tratado, a negligência vem tomada como conceito
reduzida, ontológica e sistematicamente, a uma ação dirigida consciente- unitário, no qual se interligam a ação injusta e a culpabilidade, principal-
mente para determinado objetivo. Na primeira edição de seu Tratado,97 mente no tocante à fundamentação do tipo subjetivo. Afirmava WELZEL,
afirmava WELZEL que a execução do delito negligente se realizaria me- inicialmente, que haveria negligência quando o agente não tivesse evitado
diante uma ação causal cega, embora referida à finalidade, e que, apesar de o resultado, pelo fato de não haver tomado o devido cuidado para realizar a
não dirigida pelo agente, como ocorre com o crime doloso, poderia sê-lo. ação. Fundamentando este cuidado, porém, asseverava pressupor uma plena
Criava-se, portanto, com essa assertiva, o conceito de finalidade potencial, compreensão por parte do agente dos deveres da ação e da capacidade para
que passou a integrar o conceito de conduta finalista, em sentido amplo. dirigir sua conduta conforme aquela, de tal modo que somente poderia ser
A ação não era simplesmente atividade dirigida a um fim, mas também realizada uma conduta negligente por autor capaz de culpabilidade. Neste
a atividade que poderia ser dirigida a um fim. Esta posição apresentou-se ponto crítico de seu sistema, chegava a ressaltar que, nos crimes negligentes,
de modo mais claro ainda nas edições posteriores do Tratado, nas quais se careceria de objeto a distinção entre antijuridicidade e culpabilidade, que é,
passou a caracterizar a ação como a causação finalista evitável.98 aqui, então, materialmente impossível.99 Por conseguinte, só podia ser tipi-
camente antijurídica a ação de um sujeito capaz de culpabilidade.
Nesse sentido, apresenta-se bastante elucidativo o exemplo da espingar-
da, mencionado por ele: se o agente, ao limpar sua espingarda, não tomou as A posição tomada por WELZEL sofreu inúmeras críticas relativamente
devidas precauções de descarregá-la previamente e, ao manipulá-la, produz ao princípio da finalidade potencial, sobretudo por parte de outros finalistas,
um disparo e mata terceiro, tal morte é consequência cega e não querida do como NIESE e BUSCH.
manejo descuidado da arma. Assim, esta atividade não se dirige no sentido NIESE, embora finalista, entende não se poder falar em finalidade,
96. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 194; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 243. 99. WELZEL, Hans. Der Allgemeine Teil des deutschen Strafrechts in seinen Grundzügen, 1949, p. 23 et
97. WELZEL, Hans. Der Allgemeine Teil des deutschen Strafrechts in seinen Grundzügen, Berlin: de seq. No Brasil, segue esse caminho CONDEIXA DA COSTA (Da natureza formal dos crimes culposos,
Gruyter, 1940. 1989, p. 98), para quem “nos culposos, a antijuridicidade e a culpabilidade unificam-se, desde que na
98. WELZEL, Hans. Nota 97, p. 23. representação mental da ação está a forma de cuidado representada pelo agente”.
70 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 71

embora potencial, nos delitos negligentes. São delitos que seguem outro equa- pelo fato de que, aqui, se compreendem lesões de bens jurídicos que não são
cionamento, consubstanciando-se na “causação reprovada de um resultado”. executadas finalisticamente, mas produzidas de modo puramente causal por
O que faz com que os crimes negligentes se situem sob o conceito comum de ações cujo objetivo perseguido não lesa, como tal, a ordem jurídica.102
ação, juntamente com os crimes dolosos, não reside na finalidade da causação Por outro lado, afirma que, da mesma forma como ocorre nos delitos
negligente, como tal, mas, sim, no momento anterior a esta causação, justa- dolosos, nos crimes culposos o tipo de injusto pressupõe sempre um desvalor
mente na ação inicial que se dirige em outra direção, finalisticamente. Deste incidente sobre a própria ação, de modo a caracterizar um “injusto pessoal”.
modo, se uma enfermeira, por equívoco, injeta veneno num paciente, com a Enquanto nos crimes dolosos o desvalor da ação radica na final determina-
finalidade de curá-lo, porque pensava tratar-se de medicamento, observa-se ção real do acontecer externo, nos crimes culposos, ao revés, esse desvalor
que sua ação inicial não se dirigia no sentido da morte desse paciente; se esta se funda na direção final ulterior, à qual estava obrigado o autor e que não
se verificar, tratar-se-á de mera causalidade, embora a ação inicial fosse fina- foi seguida por este em suas atividades, ou seja, na direção final exigida pelo
listicamente dirigida. No tocante à antijuridicidade, os delitos negligentes se direito e omitida pelo autor. Neste passo, WELZEL parte para nova visão
apresentam de tal forma que o que vale não é simplesmente o resultado produ- dos delitos culposos, identificando-os num momento omissivo da atividade
zido (se assim fosse, estaríamos diante de um conceito meramente causal), mas, finalista adequada80. Ademais, obtém, com isso, uma separação entre injusto
sim, que a causação deste resultado, que integra o tipo, podia ser evitada, se o e culpabilidade. O injusto abarca a infração à norma de cuidado exigida pelo
agente atendesse ao dever de cuidado, que se lhe impunha nas circunstâncias. direito, para evitar a lesão de bens jurídicos. A culpabilidade deve ser enten-
A infração a este dever de cuidado é que caracteriza a antijuridicidade, porque dida como a reprovabilidade pessoal pela conduta objetivamente descuidada
afirma a inadequabilidade social da conduta.100 do agente. Observe-se, contudo, que, ainda nesta última posição, WELZEL
BUSCH aceita as teses de WELZEL quanto aos crimes dolosos, mas as- não se havia libertado totalmente do princípio da finalidade potencial. Com
severa que a negligência não pode ser abarcada num conceito unitário, como efeito, a finalidade potencial transmuda-se em finalidade exigida e omitida.
se pretendia, em que figurariam a culpabilidade e o injusto. Neste terreno,
adota a postura de VON WEBER, salientando que a antijuridicidade e a 3. O MODELO CONCLUSIVO
culpabilidade podem igualmente ser diferenciadas nos crimes culposos, atra- A concepção finalista não estacionou, porém, no princípio da finali-
vés dos critérios do “dever ser” e do “poder”. A antijuridicidade compor-se-ia dade omitida. Na última edição de seu tratado, WELZEL refez seu sistema,
do dever de observar uma conduta adequada com relação à possibilidade de de modo a comportar nova abordagem, através da identificação do fim da
causar resultado socialmente danoso. Situar-se-ia a culpabilidade em face da atividade com um processo de direção volitiva dos meios causais, segundo
capacidade concreta do autor de cumprir esse dever de cuidado.101 uma construção cibernética. A ação seria, pois, um acontecimento cibernéti-
Em face dessas colocações de NIESE e BUSCH, como também de GRIS- co dirigido ou encaminhado pela vontade.103 Esta direção volitiva dos meios
PIGNI, WELZEL começa a reelaborar seu conceito, já a partir da publicação causais é que, efetivamente, consubstanciaria a conduta humana, em oposi-
de um artigo intitulado “La posizione dogmatica della teoria della azione”, na ção à teoria naturalista-causal, vindo a ser reconhecida em qualquer situação,
Rivista italiana di diritto penale (ano IV, n. 12, pp. 1-6, 1951), em que propug- ainda quando as ações se incluam no setor automatizado dos movimentos
na por melhoria do sistema, ao caracterizar um tipo de injusto culposo fora da corpóreos, em virtude de seu constante e duradouro exercício.104 Nessa con-
culpabilidade. Mais tarde, volta a repetir esta postura na edição do Tratado, em cepção, devem-se destacar duas posturas com relação às consequências ou
1954, e, já na primeira edição do seu Das neue Bild des Strafrechtssystems, em aos possíveis efeitos concomitantes do agir. No contexto final, só ingres-
1951. Neste último trabalho, caracteriza o tipo de injusto dos delitos culposos sam aquelas consequências que estejam incorporadas à condução volitiva
102. Esta posição se reflete, também, em MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 538, e em FRAGOSO, Heleno
100. NIESE, Werner. Finalität, Vorsatz und Fahrlässigkeit, Tübingen: Mohr, 1951; NIESE, Werner. “Die Cláudio. Nota 93, p. 237 et seq.
finale Handlung und ihre praktische Bedeutung”, DRiZ, p. 222. 103. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 58.
101. BUSCH, Richard. Modernas transformaciones en la teoría del delito, tradução, Bogotá, 1970, p. 48 et seq. 104. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 58.
72 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 73

de realização. As demais consequências concomitantes, consideradas como para evitar a produção de efeitos secundários dessa atividade, não queridos
possíveis, mas não levadas em conta no processo da vontade, não pertencem pelo autor, mas socialmente indesejáveis.106 Aqui, com mais ênfase, o que
à relação cibernética finalista, isto é, à relação final. Portanto, não existe ação vale, na verdade, não é a produção desses resultados, mas, sim, a espécie e o
final in abstrato ou absoluta, a ação final só pode ser compreendida em relação modo de execução da própria conduta.107 Esta colocação irá se destacar, em
ao fato visualizado pela vontade de realização. Isto não implica, por sua vez, importância, no âmbito da realização dos respectivos tipos de delito.
reduzir a ação final aos comportamentos dolosos. Em todas as atividades, em Com efeito, enquanto, nos delitos dolosos, os tipos se compõem da
que se estabeleça condução volitiva, há finalidade. Num exemplo dado por ação final dirigida à realização de resultados socialmente indesejáveis, nos
WELZEL, tomado corriqueiramente, pode-se aclarar esse entendimento: a tipos de delitos culposos compreende-se mais a forma e maneira como se
enfermeira que, sem o saber, aplica num paciente injeção de efeitos letais, executou a ação com relação a esses resultados. Assim, o que identifica o
realiza ação final de injetar, mas não ação final de matar. A consequência crime culposo é o processo típico de realização da ação final, que, segundo
(morte), neste caso, não se inclui na relação final do agir, mas nem por isso se o modo como se desenvolveu, infringiu mandamento jurídico de cuidado,
pode negar a condução finalista da atividade desenvolvida pela enfermeira.105 requerido nas circunstâncias, para evitar a lesão do bem jurídico.
Por outro lado, para chegar-se ao delito culposo é mister que se parta Diferentemente dos crimes dolosos, nos culposos o resultado não se
da análise de conjunto das atividades jurídicas penalmente relevantes. liga ao autor como consequência querida, integrante da relação final, mas
Aqui vigora, antes de tudo, o princípio de que o direito penal não se como realização do modo descuidado da atividade final, que levara a cabo.
preocupa unicamente com o resultado lesivo a bens jurídicos, mas, princi- Para determinar-se a existência de delito culposo, ou melhor, para funda-
palmente, com ações realizadas de modo contrário às proibições jurídicas, mentar a realização típica desse delito, é indispensável, pois, que se estabeleça
destinadas à proteção desses bens. Ressalta, assim, no conjunto de proibições, um modelo de ação socialmente adequada, portanto, conforme o cuidado,
de modo primário, o desvalor da ação, como fundamento da especulação e orientada no sentido de evitar consequências socialmente indesejáveis.
jurídico-penal. Contudo, ao direito penal o que importa, realmente, não é Quando a ação concreta não coincide com essa conduta modelo, diz-se que
qualquer ação, mas somente a que possa configurar-se finalisticamente, ou é contrária ao direito e fundamenta, assim, um tipo de delito culposo. Caso
seja, a que possa ser dirigida volitivamente no seu desdobramento causal. contrário, embora tenha havido um resultado socialmente indesejável, se a
Nesse contexto, o direito penal proíbe, inicialmente, ações nas quais a von- ação final concreta se manteve de acordo com o modelo-reitor, haverá apenas
tade está dirigida à produção de resultado socialmente indesejável, quer se um fato juridicamente irrelevante.108
inclua no fim de agir, quer constitua parte do meio empregado ou adve- Dentro do tipo de injusto, assume ainda importância o próprio re-
nha como efeito secundário dessa ação, o que caracteriza, então, os delitos sultado produzido com a conduta descuidada. Embora esse resultado não
dolosos. Depois, proíbe as ações finais, não propriamente as com vistas à seja, agora, elevado à categoria de fundamento do tipo, serve como meio de
produção de resultados indesejáveis, mas aquelas em que o autor confia na seleção das ações que, de uma maneira ou de outra, contrariam um dever
não-produção desses resultados ou, até mesmo, nem haja pensado neles, do de cuidado. Uma ação final pode ser, assim, considerada como descuida-
que decorre a formulação dos delitos culposos. Finalmente, numa proporção da, independentemente do resultado que produza. Porém, como o direito
menor, determina-se a execução de ações para a manutenção de determinados penal se ocupa quase que exclusivamente de delitos culposos de dano, o
bens jurídicos, o que dá lugar aos delitos omissivos. resultado assume, aqui, uma importância de concretização desse dano, de
O fundamento para a proibição da segunda série de ações reside no forma que tão-só com a sua verificação se poderá afirmar que uma ação
fato de que o direito espera que o sujeito empregue, na escolha e na execução
dos meios de agir (processo causal), um mínimo de direção final (cuidado), 106. WELZEL, Hans, Nota 7, p. 185.
107. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 186.
105. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 57. 108. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 191.
74 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 75

descuidada tem relevância penal.109 orientação defeituosa do caráter, principalmente naqueles casos em que não
O resultado delimita, pois, o âmbito jurídico-penal das ações descuida- fosse possível se comprovar um ato de lesão consciente do dever de cuidado.
das e contrárias aos mandamentos jurídicos, e, com isso, se chega à assertiva Assim, afirma categoricamente que, embora não emane a correção de
de que, no atual finalismo, o delito culposo deve ser visto como um aconte- certas ações, no caso concreto, da direção consciente da ação cuidadosa, mas,
cimento sobre o qual incide tanto um desvalor da ação, quanto um desvalor sim, de disposições automatizadas, adquiridas anteriormente, pode a falta
do resultado, mas cuja característica básica reside no primeiro, tendo em vista dessa correção ser reprovada ao agente, a título de culpabilidade, na medida
o nexo final do processo causal, em relação às consequências socialmente em que esse autor não tenha considerado os limites e os perigos da situação
indesejáveis dele resultantes. em que se encontrava, em face das disposições automatizadas, quando po-
Tomando-se o delito culposo como um tipo estruturado de maneira deria reconhecê-los.113 Está, com isto, assentada, nos delitos culposos, uma
diversa do tipo dos delitos dolosos, dever-se-ia chegar à elaboração de nítida culpabilidade pela conduta de vida. Uma referência de WELZEL
uma culpabilidade própria para aqueles delitos, independentemente destes. feita ao condutor de veículos ilustra bem essa conclusão: quem dirige ou
WELZEL, entretanto, não atinge esse extremo, ainda que procure tratar aprende a dirigir automóvel deve familiarizar-se com os mecanismos de
os delitos culposos sempre à parte dos crimes dolosos. Com efeito, o que direção, marcha e freios, realizar os necessários movimentos manuais e dos
faz na culpabilidade é apenas adaptar o juízo de reprovabilidade sobre o pés à condução, gravar na mente as regras e sinais de trânsito e adequar-se
conteúdo do tipo de injusto, salientando que essa culpabilidade deve per- ao ritmo do tráfego. Todos esses movimentos e, ainda, a atitude em face de
manecer igual em sua estrutura para todas as categorias de crimes. 110 Como certos perigos, tiveram que ser exercitados por atos de vontade, segundo o
expressão diferenciadora, utiliza tratamento diversificado no tocante à pre- plano estabelecido pelo autor, até que se converteram em atos mecânicos e
visibilidade do resultado, salientando que esta deva ser apreciada sob dois condicionados pela repetição, que o conduzem a reagir sempre conforme
ângulos: no tipo de injusto, sob aspecto objetivo, tendo por base o homo tendência determinante, em face de certas situações de perigo. A reprovabili-
medius; na culpabilidade, sob ponto de vista exclusivamente individual, dade de tal atividade automatizada recai, por exemplo, no autor negligente,
com base no autor concreto.111 Na culpabilidade, ainda se compreendem por não haver cultivado de maneira suficiente a forma de controle emocional
as espécies de negligência consciente e negligência inconsciente, conforme inconsciente, diante de perigos efetivamente presentes.114
a lesão ao dever de cuidado tenha ou não se produzido conscientemente
4. VARIANTES DO FINALISMO
com relação ao resultado possível de lesão ao bem jurídico. As respectivas
espécies de negligência, consciente e inconsciente, deverão ser investigadas, Juntamente com a posição apresentada por WELZEL, o finalismo
por conseguinte, no setor da consciência potencial do injusto.112 conta com outras formulações, dentre as quais se destacam as de ARMIN
KAUFMANN, MAURACH, STRATENWERTH, STRUENSEE e ZIE-
Um dos pontos mais controvertidos da posição de WELZEL situa-se
LINSKI. Com postura bastante próxima, situa-se ainda BLEI. Na Espanha,
justamente na culpabilidade da negligência inconsciente, ou melhor, na fun-
segue posição mais próxima de WELZEL, CEREZO MIR. Na Argentina,
damentação dessa culpabilidade.
ainda que com uma posição garantista, é finalista ZAFFARONI. No Brasil,
Negando validade às duas concepções tradicionais que disso se ocupa- podem ser contados como finalistas CEZAR ROBERTO BITENCOURT,
vam, quais sejam, as teorias da vontade e do sentimento, WELZEL entende HEITOR COSTA JÚNIOR, HELENO FRAGOSO, JOÃO MESTIERI,
haver descoberto a justa explicação para o conteúdo da culpabilidade do JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, LUIZ LUISI e LUIZ REGIS PRADO.
delito culposo no chamado defeito permanente do processo volitivo, isto é, na Está claro que, além desses nomes, há muitos outros que acolhem o finalismo.
109. WELZEL, Hans, Nota 7, p. 193. A escolha desses nomes teve por base, exclusivamente, aquelas posições mais
110. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 244.
111. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 245. 113. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 212.
112. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 245. 114. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 213 et seq.
76 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 77

características do finalismo, atendidas conforme sua evolução e que hão trata- qualquer infração à norma de cuidado, nem inquirir acerca da adequação social
do do delito culposo em toda a sua extensão com vistas ao direito positivo.115 da conduta.120 A matéria da infração do dever de cuidado, que para WELZEL
fundamenta a realização do tipo, se situa em outro setor, justamente em uma
(1) A CONCEPÇÃO DE MAURACH
fase preliminar ao juízo de culpabilidade, que MAURACH denomina de res-
MAURACH, ao contrário de WELZEL, jamais procurou fundamentar ponsabilidade pelo fato. Assim, atua negligentemente aquele que tenha causado
a ação final culposa com base no princípio da finalidade potencial. Entende o resultado desaprovado, de modo contrário à ordem jurídica, embora fosse
de modo simples que o conceito de ação é radicalmente o mesmo para os obrigado e capaz de evitá-lo. Essa responsabilidade pelo fato pressupõe, por-
fatos dolosos e culposos, reconhecendo que, nestes últimos, há manifestação tanto, nos crimes culposos, que tenha o autor omitido um dever de cuidado,
de vontade dirigida finalisticamente a determinado resultado.116 Segundo juridicamente determinado, e que lhe era exigível segundo um juízo objetivo.
seu pensamento, além disso, não se pode reconhecer diferença entre esses
Em complemento, na culpabilidade analisa-se a evitabilidade subjeti-
dois fatos, a não ser no âmbito do tipo subjetivo. Com efeito, enquanto nos
vo-pessoal do resultado em face do não-atendimento do dever de cuidado
fatos dolosos, a finalidade da ação se dirige ao resultado típico e, assim, se
a que estava obrigado o agente nas circunstâncias concretas do fato.121 Por
transforma em dolo, nos fatos culposos esta finalidade se relaciona com um
outro lado, no setor da infração pura e simples do dever de cuidado que
resultado, na verdade, determinado, porém, na maioria das vezes, penalmente
fundamenta a responsabilidade pelo fato, não se exclui de apreciação, inclu-
indiferente e, portanto, atípico.117 Dessa forma, o tipo dos delitos culposos
sive, o ato do inimputável. Neste esquema, a imputabilidade não é elemento
ressente-se de congruência entre suas partes objetiva e subjetiva. Este pensa-
dessa responsabilidade pelo fato, mas, sim, unicamente pressuposto do juízo
mento é seguido, também, no Brasil, por HELENO FRAGOSO.118
de culpabilidade.122
Da mesma forma que outros finalistas, MAURACH considera o delito
A culpabilidade, em si, não comporta, por sua vez, um juízo sobre o
culposo como crime autônomo com relação ao delito doloso, acrescentan-
caráter, como o faz WELZEL no tocante à negligência inconsciente. Neste
do que, no setor de suas relações, não se pode pretender que o fato doloso
aspecto, MAURACH é bastante incisivo ao renegar toda e qualquer intro-
absorva o culposo pelo princípio da subsidiariedade, havendo entre ambos,
missão na culpabilidade de elementos referentes à conduta de vida do agente
na realidade, relação de alternatividade.119 O que, entretanto, assenta sua
ou aos seus sentimentos éticos.123 O juízo de reprovabilidade deve recair sobre
posição como contrária à de WELZEL é a forma especial que empresta à
o autor de um fato típico e antijurídico, pelo qual estava responsável, em face
sistematização do tipo objetivo e do dever de cuidado.
das exigências de cuidado impostas pela ordem jurídica e que podia evitar,
Em MAURACH, o tipo se esgota e subsiste na causação do resultado no caso concreto, com base em suas condições pessoais.124
proibido, tomando, portanto, as mesmas consequências da teoria causal-natu-
Relativamente aos efeitos da previsibilidade no fato culposo, MAU-
ralista. Neste particular, no âmbito da realização típica, não se quer cogitar de
RACH assume posição curiosa, pois, se, por um lado, assenta a violação
115. Não poderia deixar de consignar, aqui, por exemplo, que cabe a CONDEIXA DA COSTA a primazia
do dever de cuidado na categoria da responsabilidade pelo fato, por outro,
de haver, no Brasil, discutido a estrutura do tipo conforme o modelo finalista (“O dolo no tipo”, in conclui que se o resultado não puder ser previsto por alguém, nem mesmo
O Correio Fluminense, Niterói, 14/05/67, 23/05/67, 28/05/67, 13/06/67, 12/07/67 e in O Fluminense,
28/05/67). Não foi ele incluído, todavia, entre os autores finalistas brasileiros, porque não chegou a pelo próprio juiz, mediante o critério da prognose posterior objetiva, então
formular um estudo extensivo do delito culposo frente ao direito positivo. Não obstante, é de se registrar
sua contribuição ao finalismo brasileiro e reconhecer sua filiação, desde o início, a este sistema. Até já não se fala de excluir a responsabilidade pelo fato, mas, sim, o próprio
porque, com seu livro Da natureza formal dos crimes culposos, 1989, tratou questões relevantes desse
tema, que foram levadas em conta na própria exposição dogmática feita mais adiante. tipo, pela aplicação do critério da adequação, que é destinado a determinar
116. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 529.
117. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 530.
120. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 538.
118. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 237 et seq.
121. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 555 et seq.
119. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 531. O próprio Maurach informa que, embora a jurisprudência
tenha hoje se orientado a considerar o tipo de delito culposo como tipo de interceptação, isto é, utilizado 122. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 570.
como solução em favor do réu (in dubio pro reo), tal não implica deixar de reconhecer que entre dolo e 123. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 415.
negligência subsiste uma diferença de qualidade e não apenas de quantidade. 124. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 572.
78 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 79

o problema da causalidade.125 do fato culposo pela simples finalidade. Neste contexto, passa a ser impor-
tante a determinação do tipo de delito, estruturado segundo a necessidade
(2) A CONCEPÇÃO DE STRATENWERTH
de proteção dos bens jurídicos, já através da responsabilidade pela sua lesão
STRATENWERTH assinala que os fatos culposos também compor- ou perigo evitáveis, embora não queridos. Desde que não exista congruência
tam, no fundo, uma ação conduzida finalisticamente. Partindo de posição integral entre as finalidades, potencial e real, deve-se, então, concluir pela
semelhante à de MAURACH, considera, porém, que o que marca defini- insubsistência de uma responsabilidade jurídico-penalmente relevante.129
tivamente o fato negligente é que a finalidade está aqui orientada a outro
Por outro lado, STRATENWERTH nega validade a um conceito su-
resultado, diverso daquele jurídico-penalmente relevante, como, por exem-
perior de ação, globalizante para todas as espécies de delitos. Isto só seria
plo, a dirigir o automóvel como tal ou talvez a outro acontecimento, mas
possível – afirma – se o conceito de ação contivesse um mínimo comum a
não efetivamente ao acidente.
todas as formas de conduta. O conceito final de ação, contudo, não serviria
Relativamente à conexão final entre ação e resultado, ainda que admita a esta tarefa, porque, justamente, conduziria a uma diferenciação de várias
que, na negligência, há referências maiores à causalidade, considera indispen- formas de fatos puníveis. Ao conceito final sempre são opostos novos concei-
sável uma ponderação acerca da evitabilidade do evento.126 Num acidente de tos de ação, que, abstraindo de todas as particularidades das formas de delitos,
trânsito, por exemplo, no qual o motorista causou o resultado porque dirigia contêm suficiente substância material, capaz de adaptar-se a qualquer fato.
em velocidade excessiva, entende que a responsabilidade por este resultado
Dentre esses novos conceitos, se poderia mencionar a teoria social de
só lhe pode ser atribuída, se se reconhecer que o motorista teria tido a possi-
ação, segundo as concepções de ENGISCH, MAIHOFER e JESCHECK.
bilidade de controlar o acontecimento – que de fato não dominou – e assim
Apesar disso, pode-se buscar um conceito superior de ação, a partir do prin-
evitá-lo.127 No juízo finalístico sobre esta conexão, procura caracterizar, por
cípio finalista, com base no conceito de “conduta” ou de “evitabilidade”, fora
sua vez, que o fato culposo deve ser analisado em dois planos.
do âmbito jurídico.130
Num primeiro plano, comporta uma determinação negativa, ou seja, de
Além das considerações acerca da própria adaptação do finalismo aos
que a ação e o resultado não se liguem, mutuamente, por meio de finalidade
fatos culposos, no setor da conduta, STRATENWERTH, seguido, neste as-
consciente. Não significa isto, entretanto, que seja esse processo tomado no
pecto, por JAKOBS,131 estrutura o tipo de injusto desses delitos de uma forma
sentido puramente causal, mas, sim, final. O que importa no direito penal não
inteiramente diversa daquela que lhe é atribuída pelo tratamento dominante.
é o processo da causalidade, mas o processo causal de relevância jurídico-penal.
O tipo de injusto não se ocupa somente do dever de cuidado, mas, também,
Assim, num segundo plano, ao lado da investigação negativa da fi- das características do autor com relação à possibilidade de atendimento desse
nalidade consciente, deve-se fazer outra indagação, desdobrada em dois cuidado. Assim, o cuidado não é medido no tipo conforme o homo medius,
momentos: da finalidade potencial e da finalidade real. A finalidade poten- como faz WELZEL; seu padrão é o próprio autor concreto.132 Há, aqui, por-
cial indica, para a respectiva situação de fato, as exigências de conduta que tanto, antecipação da culpabilidade para dentro do tipo de injusto.
devam ser atendidas; a finalidade real, como objeto de valoração, diz respeito
Na culpabilidade propriamente dita, tratar-se-á, de maneira exclusiva, da-
à ação efetivamente realizada pelo agente. Tão-só por esse duplo grau de in-
queles elementos que complementam a responsabilidade pelo desatendimento
vestigação é que se torna possível fundamentar o fato culposo.128 Isto é mais
evidente no caso das ações automatizadas, nas quais se torna impossível a
129. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 82.
consciência acerca do resultado e, por conseguinte, difícil a caracterização 130. Idem, p. 77.
131. JAKOBS, Günther. Studien zum fahrlässigen Erfolgsdelikt, Berlin: De Gruyter, 1972, p. 69. Também
defendem o mesmo ponto de vista, entre outros, SAMSON, Erich. Strafgesetzbuch, Systematischer
125. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 573. Kommentar, 7ª edição, 1998, anotações ao § 16, ns. 13 et seq.; OTTO, Harro Strafrecht, Grundkurs, AT,
126. STRATENWERTH, Günter. Strafrecht, AT, 4ª. edição, 2000, p. 82. 1976, p. 172; CRAMER, Peter. Schönke-Schröder-Cramer, Strafgesetzbuch, Kommentar, 24ª edição,
127. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, 2000, p. 76. 1991, p. 255 et seq.
128. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 82 132. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 412.
80 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 81

desses deveres de cuidado. Nisso, em geral, não se vê diferença entre delitos Afastando-se do modelo welzeliano, ao tomar uma posição bastante
culposos e delitos dolosos, pois o que se investiga na culpabilidade é apenas a controvertida e mesclar, no conceito de ação, conteúdos normativos, con-
capacidade de culpa (imputabilidade), o conhecimento potencial do injusto e sidera, por seu lado, ZIELINSKI, que o ponto de partida ontológico da
a exigibilidade de conduta adequada à norma.133 Para compensar esta equiva- concepção de WELZEL não pode ser vinculante para a teoria do delito,
lência, quanto aos seus elementos, entre culpabilidade dolosa e culposa, propõe uma vez que não existe um conceito prévio de ação, porque, no plano
STRATENWERTH que os delitos culposos sejam analisados, ainda, quanto ontológico e psicológico, não há critério material capaz de estabelecer em
ao seu merecimento de pena. Assim, não basta para a punibilidade de uma que medida devem ser incluídas, na conexão final, as relações de valor
ação culposa o simples preenchimento dos elementos da tipicidade, antijuridi- correspondentes a um conduta no âmbito social. Entende, porém, que a
cidade e culpabilidade. Será preciso determinar-se, em face das circunstâncias teoria do delito exige uma demonstração de que a ação final possa ser objeto
concretas que se apresentavam ao agente, se ainda assim o fato devesse merecer de valoração no âmbito do injusto; isto porque a descrição típica da ação
punição, em face do caráter abrangente da norma de cuidado. ilícita deve estar perfeitamente descrita para poder ser compreensível ao
Diversamente do que entende a doutrina dominante, a responsabilidade destinatário da norma e, assim, ser possível o cumprimento de seu mandato
pelo fato culposo não pode ser orientada pelo perigo que o obrigado poderia ou de sua proibição.137 A validade de um conceito final de ação não resulta,
evitar, com base em um grau de otimização de sua capacidade, porque este assim, de sua ontologicidade, mas de fundamentos ligados à capacidade de
critério é absolutamente irreal. Pelo contrário, a sua responsabilidade deve comunicação de sua descrição.138 Se o fenômeno “ação” está estruturado
ficar condicionada à conclusão de que, no caso concreto, com segurança, para o conhecimento empírico, o direito está obrigado a ter em conta este
certeza, e sem maiores dificuldades, esse perigo pudesse ser evitado, em face fenômeno, se quiser fazê-lo objeto de sua regulação.
da condução normal de sua atividade. Desta forma, serão merecedoras de Por outro lado, se a lei situa a finalidade como base de seu conceito de
pena tão-somente as condutas que demonstrem indiferença, desconsideração ilícito, daí não se deve inferir que o mesmo suceda com o delito culposo. Assim,
ou leviandade para com a norma de cuidado.134 a finalidade, no fundo, resulta de uma interpretação do injusto e somente pode
ser acolhida como tal no delito doloso, no qual serve de vinculação, tanto no
(3) AS CONCEPÇÕES DE KAUFMANN, STRUENSEE, ZIELINSKI E
BLEI injusto quanto na culpabilidade, às suas consequências jurídicas.139 Embora
chegue a esta conclusão, reconhece, porém, que os delitos culposos não se
ARMIN KAUFMANN acolhe, em princípio, o conceito final de ação
podem diferenciar, no âmbito da ação, dos delitos dolosos, isto é, tanto na
como o exercício da atividade final, conceito este válido para todas as espécies
negligência consciente, que trata como se fora uma forma de dolo eventual de
de delito, tanto dolosos ou culposos, quanto comissivos e omissivos. Apesar
perigo,140 quanto na negligência inconsciente, o que deve valer não é a produ-
disso, tendo em conta as dificuldades para a caracterização de uma finalida-
ção de uma lesão no bem jurídico, mas a própria ação final que lhe dá causa.141
de potencial, passa a ressaltar que, dentre os elementos caracterizadores da
conduta final, se deve dar preponderância à capacidade de atuar do sujeito. O delito culposo estaria constituído, por exemplo, no âmbito do
Precisamente, vale esta capacidade de atuar como o denominador comum injusto, tão-somente da ação final contrária ao dever, sendo, para tanto, ab-
de todas as formas de conduta: dolosas, culposas ou omissivas.135 solutamente irrelevante o resultado produzido. Assim, a questão dos delitos
culposos, cometidos com negligência inconsciente – que seriam nada mais
Por seu turno, STRUENSEE pretende, também, superar a questão da
finalidade potencial, ao compreender o delito culposo como a realização, não
1987, p. 53 et seq.
autorizada, de uma atividade final arriscada.136 137. ZIELINSKI, Diethart. Disvalor de acción y disvalor de resultado en el concepto de ilícito, tradução
castelhana de Marcelo Sancinetti, Buenos Aires, 1990, p. 105.
133. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 421 et seq. 138. ZIELINSKI, Diethart. ob. cit., p. 122.
134. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 424. 139. ZIELINSKI, Diethart ob. cit., p. 86 et seq.
135. KAUFMANN, Armin. Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, Göttingen: Schwartz, 1959, p. 59 et seq. 140. ZIELINSKI, Diethart ob. cit., p. 183.
136. STRUENSEE, Eberhard. “Der subjektive Tatbestand des fahrlässigen Delikts”, in Juristenzeitung, 141. ZIELINSKI, Diethart ob. cit., p. 194.
82 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 83

do que delitos dolosos não descritos tipicamente – reside, exclusivamente, na (4) A CONCEPÇÃO DE ZAFFARONI
formação da norma, de encontrar e descrever as ações proibidas, tipicamente Partindo de que a teoria do delito, em seu conjunto, deve ser apreciada
perigosas, as quais, por sua vez, só deixam de ser proibidas se executadas com conforme um programa de redução da irracionalidade do sistema punitivo,
determinadas precauções que afastem o perigo de sua realização.142 procura ZAFFARONI elaborar um conceito de ação que lhe seja próprio e
BLEI, embora não adepto formal da teoria finalista, assume posições adequado aos fins desse programa. Assim, entende que o conceito de ação, no
semelhantes ao finalismo no tocante ao tratamento do crime culposo. Como direito penal, deve ser um conceito jurídico e não um conceito naturalístico,
ponto de partida, põe em destaque não se ocupar o direito tão-só do resultado quer dizer, o direito penal não pode simplesmente importar esse conceito de
como objeto de valoração e, consequentemente, de modo exclusivo do desva- outras disciplinas científicas. Não obstante, agrega a esse conceito jurídico
lor por este gerado, quando se consubstancia na lesão a um bem jurídico. Ao um fundamento naturalístico, porque entende não ser possível elaborar-se
contrário, as proibições e determinações jurídicas tomam o resultado apenas um conceito unicamente a partir de um mundo que não existe.
como evento de uma ação negativamente valorada, fundando-se, pois, em Uma vez que o conceito de ação desempenha um papel redutor da in-
primeira linha, no desvalor da ação em lugar do desvalor do resultado. criminação, seus dados não são meros elementos naturalísticos, que possam
Esse desvalor da ação, por seu turno, deve ser inferido de dois aspectos: ser identificados pelas ciências naturais, mas elementos reelaborados da rea-
em primeiro lugar, da vontade má (böser Wille) manifestada na ação ou na lidade, conforme seu desiderato jurídico. Esse sentido dialético do conceito
omissão, que, por si só, é apta a conduzir, nos crimes dolosos, a um desvalor de ação, ao mesmo tempo como dado da realidade e como entidade jurídi-
da própria conduta, conforme se evidencia da punibilidade da tentativa ou co-penal, é que possibilitaria alcançar seu conteúdo ôntico.146
de outras atividades sem resultado ou, até mesmo, com resultados aprovados Como conceito jurídico-penal, o conceito de ação não pode ser nem
socialmente; em segundo lugar, da condição objetivamente defeituosa da naturalístico, no sentido causal, nem valorativo, no sentido normativo. Deve
conduta humana, sobre a qual incide um juízo negativo da ordem jurídica, ser, porém, um conceito pré-típico, no qual estariam inseridos todos os dados
como ocorre com os fatos negligentes.143 referentes à motivação do agente, que representaria o seu conteúdo ôntico.147
Em relação a estes dois aspectos, BLEI não poupa críticas a MAURACH, Embora o ser, ou a condição ôntica da conduta humana, não imponha a
pelo comprometimento puramente mecânico-causal de seu sistema, especial- adoção de um conceito extrajurídico de ação, no sentido de um conceito
mente quando este último afirma que, no setor do injusto, o que importa, ôntico como queria WELZEL, por outro lado, o conceito jurídico-penal de
nos fatos negligentes, é a mera causação, que se verifica, por exemplo, em um ação não pode prescindir das limitações que aquele conteúdo ôntico determi-
acidente aéreo, ou com a falha do motor, ou com a defeituosa navegação, ou ne. Esta exigência de uma limitação aos conceitos científicos, especialmente
com a insuficiente iluminação de solo quando da aterrissagem, etc. Ao contrá- ao conceito jurídico-penal de ação, decorre, ademais, das normas consti-
rio disso, entende BLEI que o tipo dos delitos culposos, e nisto está de acordo tucionais e do direito internacional, como corolário dos princípios nullum
com a posição de WELZEL, compõe-se tanto do resultado quanto igualmente crimen sine conducta e cogitationis poenam nemo patitur.148 Tendo em vista,
de uma ação lesiva às exigências objetivas de cuidado, que seriam aferidas por justamente, estes princípios, como fundamentos de argumentos redutores do
critério de necessidade para evitar-se a lesão ao bem jurídico resultante da sistema penal, afigura-se-lhe a teoria finalista como a que mais se aproximou
conduta.144 Na culpabilidade, contemplam-se a evitabilidade e a previsibilidade desses critérios, daí ser a finalidade da conduta um elemento essencial ao
pessoais, além de outros elementos comuns aos crimes dolosos.145 conceito de ação, menos por sua identidade ôntica do que por sua capacidade
de se submeter aos limites traçados por esse conceito à construção do tipo.149
146. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal, parte general, com a colaboração de Alejandro Alagia e
142. ZIELINSKI, Diethart. ob. cit., p. 220. Alejandro Slokar, 2ª edição, Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 413 et seq.
143. BLEI, Hermann. Strafrecht, AT, p. 261. 147. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 414.
144. BLEI, Hermann. ob. cit., p. 262 et seq. 148. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 415.
145. BLEI, Hermann. ob. cit., p. 267 et seq. 149. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 416.
84 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 85

Por outra parte, o conceito de ação engloba todos os componentes que as ações não são criminalizadas por si mesmas. O que se proíbe é a realização
dão sentido à atividade, o qual deve esgotar-se na sua exteriorização material, de resultados, produzidos por certas formas particulares de execução de ações.
quer dizer, o resultado não integra o conceito de ação.150 Assim, incluem-se, Apesar de com este raciocínio dar ênfase ao desenvolvimento causal da condu-
genericamente, no conceito de ação, tanto os fatos dolosos quanto culposos. ta, não descarta que as ações culposas contenham uma finalidade. A finalidade
A diferença entre delitos dolosos e culposos fica, entretanto, reduzida ao setor seria relevante para identificar de qual ação se trataria e, de acordo com ela, de-
do tipo, ao qual caberá traçar as exigências de política criminal para considerar terminar o cuidado que lhe corresponderia para fechar o tipo e concretizá-lo.155
como delituosas as variadas formas de manifestação da conduta e seus efeitos. De qualquer modo, entende que os tipos culposos são tipos abertos, nos
Às vezes, a incriminação se dá quando a exteriorização da conduta se esgota quais há a necessidade de uma busca da norma de cuidado que os comple-
nela mesma (delitos de mera atividade); outras vezes, além da exteriorização da te e feche.156 Sistematicamente, o tipo se compõe de uma ação final, de um
conduta, se exige a produção de um efeito determinado (delitos de resultado). resultado que lhe corresponde e, principalmente, da característica da lesão à
Nos delitos culposos, a proibição não incide sobre a própria finalidade, como, norma de cuidado. Tendo em vista a forma da violação à norma de cuidado,
aliás, já se tem ressaltado, mas sim sobre a programação defeituosa da exterio- se consciente ou inconsciente, que procura substituir pelo conceito de culpa
rização da conduta, porque violadora de um dever de cuidado.151 temerária ou não temerária, admite a existência de um tipo objetivo e de um
Conforme as características dos delitos culposos, de só se verificarem tipo subjetivo, este último apenas no caso da culpa temerária ou consciente.157
em face da violação de uma norma de cuidado efetuada por uma programa- Com base na violação à norma de cuidado, ZAFFARONI conclui que
ção defeituosa da exteriorização da conduta, a base comum entre estes fatos o delito culposo se caracteriza como um defeito de programação dentro da
e os delitos dolosos reside na evitabilidade da lesão, como forma de exteriori- causalidade, o qual, porém, só seria determinável se se soubesse qual era a
zação da sua própria finalidade. Isto decorre porque “qualquer atividade deve finalidade dessa programação. Assim, como o tipo está composto de todos
realizar-se conforme certo cuidado e, ao dotar de sentido uma ação, se deve os elementos essenciais a determinar esse defeito de programação, deve nele
evitar que essa exteriorização que altera alguma coisa no mundo provoque se integrar também o resultado e, consequentemente, todo o processo re-
um conflito, ao lesar alguém”.152 lativo ao que denomina de tipicidade conglobante, isto é, a previsibilidade
Atendendo às características de cada forma de manifestação da condu- objetiva, baseada no critério do standard mínimo, o princípio da confiança,
ta no que toca à sua seleção típica, ZAFFARONI classifica as infrações em o nexo de determinação, a insignificância, o cumprimento de um dever
dois grandes grupos: ativas e omissivas. As infrações ativas individualizam jurídico e o consentimento.
diretamente as ações que o poder punitivo associa ao âmbito de proibição; No que concerne à culpabilidade, o delito culposo não apresenta par-
as infrações omissivas individualizam as ações que sejam díspares para com o ticularidades. Isto se explica pelo fato de que ZAFFARONI, diferentemente
modelo de ação devida (agere aliud). No primeiro caso, o resultado é causado dos que a tratam sob a forma de uma reprovabilidade com base, exclusiva-
(nexo de causação) pelo agente; no segundo, não é por ele evitado (nexo de mente, na variação da capacidade de autodeterminação do sujeito, concebe a
evitação).153 A partir dessas formas estruturais, se edificam as particularidades culpabilidade como “o juízo necessário para vincular, de forma personalizada,
da antijuridicidade e da culpabilidade, segundo se refiram aos tipos dolosos o injusto ao seu autor e, no caso, operar como principal indicador do máximo
ou culposos, ativos ou omissivos.154 da magnitude de poder punitivo que possa ser exercido sobre ele”.158
Relativamente ao tipo, entende ZAFFARONI que, nos delitos culposos, A culpabilidade, assim, implicaria a síntese de um juízo de repro-
vação baseado no âmbito da capacidade da pessoa no momento do fato
150. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 416 et seq.
151. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 419. 155. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 549.
152. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 419. 156. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 549.
153. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 444 et seq. 157. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 564.
154. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 445. 158. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 656.
86 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 87

(autodeterminação), formulado conforme os elementos da ética tradicional, teses finalistas de WELZEL e MAURACH, sob o plano de uma concepção
e de um juízo de reprovação pelo esforço do sujeito de alcançar um estado de filosófica neokantiana das normas de cultura, no sentido de MAX ERNST
vulnerabilidade, quer dizer, de superar os obstáculos à intervenção estatal.159 MAYER. Ainda que, no fundo, o que venha a prevalecer seja sua orientação
Com essa postura, quer ZAFFARONI obter um máximo de redução finalista, MESTIERI procura se afastar dos modelos existentes, criando seus
do sistema penal, pois fá-lo fundar-se contrasseletivamente, quer dizer, aten- próprios conceitos, principalmente no setor do tipo de injusto, como con-
dendo ao esforço do sujeito de se livrar da intervenção penal, “conspirando sequência, inclusive, de sua conceituação de negligência.
contra o próprio direito penal, no que toca à sua finalidade pacificadora e Em princípio divide o tipo de injusto em duas partes, objetiva e sub-
redutora da violência”.160 O esforço para a vulnerabilidade seria, então, “a jetiva, como o faz com os delitos dolosos. No tipo objetivo, compreende a
contribuição pessoal do sujeito às pretensões legitimantes do poder punitivo infração à norma positiva de conduta necessária a evitar que os bens jurídicos
e, portanto, contrário ao esforço redutor e pacificador do direito penal”.161 sofram qualquer ameaça de lesão, que caracteriza o resultado penalmen-
Como tal conceito poderia gerar confusões, ZAFFARONI procurar enfati- te desaprovado. No caso específico do homicídio culposo, por exemplo, o
zar que esse esforço pela situação de vulnerabilidade indica a necessidade de resultado morte.164 No tipo subjetivo, vislumbra a finalidade extratípica,
serem tratados desigualmente aqueles que caíram no sistema punitivo por caracterizando a incongruência à causalidade objetiva produtora do resultado.
mero acidente e aqueles que o fizeram voluntária e conscientemente com o Neste contexto, é partidário da consideração, já exposta por MAURACH, de
propósito de destruir o sistema. que cada negligência constitui um erro com referência a elementos do tipo
objetivo, abrangendo também o processo causal, ainda que MAURACH não
5. O FINALISMO BRASILEIRO contemple um tipo subjetivo.165
(1) JOÃO MESTIERI O que fica em aberto no seu sistema é a questão da previsibilidade,
Foi MESTIERI o primeiro brasileiro a dedicar-se, sistematicamente, tomada exclusivamente sob ponto de vista objetivo, quando da investigação
ao finalismo, com base no direito positivo, ao dar ao chamado “homicídio à infração à norma de cuidado no tipo de injusto. A culpabilidade, dessa
culposo” interpretação diversa da que lhe era tradicionalmente conferida. forma, fica adstrita quase que, exclusivamente, à exigibilidade de conduta
Como princípio fundamental, adota a posição, já anteriormente levada a adequada à norma. Contudo, neste aspecto, MESTIERI entende, simples-
cabo por WELZEL e outros finalistas, de que “todo comportamento humano mente, não existir culpabilidade naqueles casos em que o autor se conduziu
deve ser socialmente adequado, revestindo-se do cuidado necessário para que diligentemente, ou seja, de acordo com o dever de cuidado, ou quando o
não venha a consistir em ameaça aos bens jurídicos”.162 Portanto, o que vale fato resulte de atividade associada a estados precedentes de medo, horror,
é, evidentemente, a lesão ou a ameaça de lesão aos bens jurídicos. cansaço excessivo ou males súbitos, não produzidos descuidadamente pelo
Relativamente à conceituação da negligência, segue MESTIERI o autor.166 A razão para declarar-se, nestes casos, a ausência de culpabilidade
caminho de que, nela, o agente atua com “vontade tendencial extratípi- não é fundamentada muito claramente, mas pode resultar, como se deduz,
ca”, infringindo, com isto, “uma norma cultural de conduta de observância de que aqui falta, de igual modo, a exigibilidade de outra conduta ou que o
juridicamente exigível, sendo causa de um resultado ilícito: na suficiência fato escapa à previsibilidade, segundo a experiência da vida, seguindo orien-
requerida pelo tipo, expressando a norma de conduta violada”.163 Observan- tação, nesse sentido, exposta em algumas decisões da la Câmara Criminal do
do-se melhor esta afirmação, pode-se concluir que há, aqui, conjugação das
164. MESTIERI, João. ob. cit., p. 73.
159. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 656. 165. MESTIERI, João. ob. cit., p. 74. MAURACH, Reinhart (Nota 65, p. 530) dizia, expressamente, o se-
guinte: “Como só se pode falar de um tipo subjetivo e, com isso, de dolo, quando a finalidade como
160. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 655. dolo envolve e dirige o acontecimento típico, falta no tipo culposo, por sua vez, congruência das partes
161. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Notga 146, p. 655. subjetiva e objetiva”. Com tal afirmação, Maurach está distante da concepção de Mestieri, tão-só na
162. MESTIERI, João. Curso de direito criminal, parte especial, crimes contra a pessoa, 1970, p. 70. medida em que não concebe um tipo subjetivo no delito culposo.
163. MESTIERI, João. idem, ibidem. 166. MESTIERI, João. ob. cit., p. 89.
88 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 89

Tribunal de Alçada de São Paulo.167 não é penalmente proibido, mas o resultado real e não querido da conduta
foi a concreção de uma lesão ou de um perigo a um bem jurídico”.173 Por
(2) LUIZ LUISI
outro lado, aceita, na qualificação da conduta como descuidada ou cuida-
Como pioneiro do finalismo no Brasil, pode ser citado, ainda, LUIZ dosa, o critério do homem prudente e consciencioso de WELZEL, porque
LUISI, ao qual se dedicou, com afinco, na sua tese de livre-docência, em considera que, neste campo, o que vale é apenas o dado objetivo da ação
1974, reeditada depois de 10 anos, sob o enfoque, agora, da nova parte geral descuidada. As características individuais e a capacidade pessoal do agente
do Código Penal. LUISI considera que a ação humana não é uma realidade seriam matéria da culpabilidade.174
amorfa, mas dotada de sentido, organizada e com um contexto ontológico
definido, antes de sua disciplina jurídica.168 Seguindo os passos de FRANZ (3) HELENO CLÁUDIO FRAGOSO
BRENTANO, LUISI estima que a característica ontológica da atividade Depois de sua incursão no domínio da teoria normativista de con-
humana estaria centrada na chamada intencionalidade, que identifica com a duta, opta pelo finalismo HELENO CLÁUDIO FRAGOSO. Assim,
175

própria finalidade.169 Por outro lado, a intencionalidade não pode subsistir conceitua a ação como toda atividade dirigida a um fim, dela excluindo o
sem estar relacionada a alguma consequência, não importando se esta conse- resultado, para incluí-lo no tipo de delito respectivo.176 Relativamente aos
quência se projete como o objetivo do agente, ou como meio para alcançá-lo. delitos culposos admite também, neles, uma finalidade. Diversamente, en-
Há, portanto, ações finais quanto ao fim e quanto ao meio.170 Esta assertiva tretanto, do que se dá nos delitos dolosos, a ação dos delitos culposos está
tem como efeito ajustar a teoria, também, aos delitos culposos, nos quais orientada a um fim penalmente irrelevante. Como consequência dessa reali-
o que importa, em última instância, é o modo de execução da ação e não, dade ontológica, concebe para os fatos puníveis três categorias fundamentais:
propriamente, o fim perseguido pelo agente. os delitos comissivos dolosos, os delitos omissivos e os delitos culposos,177 os
Seguindo esse raciocínio, LUISI constrói o tipo dos delitos culposos quais terão tratamento diferenciado na teoria do delito.
sobre uma ação que põe em perigo ou lesa um bem jurídico, realizada com Diferentemente de outros finalistas, FRAGOSO constrói, portanto, os
imprudência, imperícia ou negligência, portanto, com infração a um dever delitos culposos em uma categoria autônoma, com tipicidade, antijuridici-
de cuidado.171 Seus elementos integrantes seriam, assim, a conduta final do dade e culpabilidade próprias.
agente, sua execução descuidada (com imprudência, imperícia ou negligên- O tipo culposo seria estruturado por uma ação final e uma causalidade
cia), uma situação de perigo ou um resultado de dano em decorrência da operada sem observar as normas de atenção, cuidado ou diligências impostas
conduta descuidada e a previsibilidade e ausência de vontade quanto ao pela vida de relação, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto. A
evento danoso e à situação de perigo.172 tipicidade, neste caso, se determinaria por meio da comparação entre a con-
Avaliando as críticas feitas à proposição inicial de WELZEL, de com- duta do agente e o comportamento que teria, nas circunstâncias, uma pessoa
preender uma finalidade potencial na ação culposa, LUISI conclui que, prudente e com discernimento ordinário. O tipo culposo, ademais, seria um
tanto nos delitos dolosos quanto culposos, há uma ação final. “No tipo tipo aberto, porque caberia ao juiz identificar a conduta descuidada.178
doloso, a conduta tem por fim a realização de um evento lesivo ou de perigo Em decorrência dessa particularidade do tipo dos delitos culposos,
para o bem jurídico”, enquanto que no tipo culposo “o fim último da ação
173. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 79.
167. MESTIERI, João. Ob. Cit., p. 89: “Não há como reprovar tais comportamentos; o resultado típico quan- 174. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 81.
do surge nesses casos é devido ao fortuito, situa-se mais além da exigibilidade e da previsibilidade, esta 175. Com a obra Conduta punível, S. Paulo: Bushatski, 1961, que lhe valeu o título de livre-docente na
a linha fronteiriça além da qual militam apenas as forças cegas e incalculáveis”. antiga Universidade do Brasil (hoje UFRJ), impressionado com as ponderações de RADBRUCH frente
168. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, Porto Alegre: Fabris, 1987, p. 37. ao naturalismo, FRAGOSO conceituava o delito, simplesmente, como “tipicidade, antijuridicidade e
169. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 39. culpabilidade” (p. 176).
170. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 41. 176. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 163.
171. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 75. 177. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 165.
172. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 99. 178. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 239.
90 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 91

de não conterem, exaustivamente, os elementos que caracterizam a matéria (4) HEITOR COSTA JÚNIOR
da proibição, sua realização configura um indício quase que seguro de que Também orientado ao finalismo se encontrava HEITOR COSTA
a ação é antijurídica, desde que se constate a inobservância do cuidado JÚNIOR, ao exigir os elementos subjetivos nas causas de justificação.186 Mais
exigível ao autor.179 Para avaliar a antijuridicidade, é ainda necessário que tarde, em sua festejada obra sobre os delitos culposos, expressa de modo mais
se proceda à verificação se o resultado era ou não objetivamente previsível, ostensivo aquela orientação, ao salientar que “o tipo não descreve meros pro-
com base no critério do homo medius.180 Apesar disso, estima que, em certos cessos causais”.187 Contudo, não retrata o tipo unicamente como a descrição
casos, será necessário levar em conta as características específicas do agente, classificatória da matéria da proibição, mas lhe reconhece uma importante
com as qualificações profissionais que apresente (engenheiro, mecânico, função político-criminal, justamente, de limitar o poder punitivo do Estado,
médico, piloto, etc.).181 mediante essa descrição exaustiva da conduta proibida, como corolário ina-
Uma particularidade relevante de sua construção dogmática reside na fastável do princípio da legalidade.188
conclusão de que, se, por um lado, a infração à norma de cuidado caracteriza Relativamente aos delitos culposos, acolhe inicialmente a tese de que
um ato injusto, por outro lado, a sua observância torna o fato lícito.182 se trata de tipos abertos, uma vez que considera impossível descrever todas as
Não obstante, embora o fato contrarie o cuidado objetivamente exigível formas de sua realização.189 Em sequência, entende que a ação típica culposa
e o resultado fosse previsível, FRAGOSO admite possa a antijuridicidade ser é uma ação final, na qual a finalidade real foi insuficiente para a realização
excluída em face de uma causa de justificação. Assim, por exemplo, considera da conduta almejada, quase que geralmente extratípica. Nisto diverge de
em estado de necessidade o médico que, para salvar um paciente em estado MESTIERI e FRAGOSO, porque considera possível que o objetivo visado
grave, dirige em excesso de velocidade e vem a atropelar um pedestre.183 pelo agente seja também típico, tal como se dá nos delitos qualificados pelo
Já a culpabilidade continua sendo, para FRAGOSO, o resultado de um resultado.190 O tipo estaria composto, basicamente, por esta ação final de-
juízo de reprovabilidade pessoal pela realização da conduta típica e antiju- feituosa e, com isso, da violação aos deveres de cuidado, do resultado, da
rídica, no qual figuram como elementos a imputabilidade, o conhecimento relação de causalidade entre ação e resultado e da imputação do resultado.
potencial da antijuridicidade e a exigibilidade de conduta diversa. Inclui-se, Particular importância se revela na sua consideração sobre a previsibili-
também, como elemento deste juízo, a previsibilidade pessoal em relação ao dade do resultado e nas limitações normais do risco permitido incrementado
resultado. No que toca ao conhecimento potencial da antijuridicidade, como com a prática de uma conduta descuidada. Inicialmente, inclui como fator
esta vem, praticamente, constituída sobre a violação da norma de cuidado, de limitação à violação aos deveres de cuidado o princípio da confiança, nos
o que vale, aqui, é mais a possibilidade de o agente conhecer a violação do termos em que é empregado pela jurisprudência alemã, quer dizer, uma vez
cuidado objetivo, inclusive a possível lesão do bem jurídico.184 que esteja realizando uma ação cuidadosa, o agente pode confiar que outros
Relativamente à exigibilidade de conduta diversa, sua exclusão pode também o façam, desde que não demonstrado o contrário.191 Por outro lado,
resultar de uma cláusula genérica. Assim, não atuaria com culpabilidade o em oposição aos demais finalistas brasileiros, HEITOR COSTA JÚNIOR se
agente que violasse a norma de cuidado por medo, susto, fadiga ou outras filia à corrente de STRATENWERTH, sustentando que a medida da previ-
circunstâncias semelhantes, que não tivessem sido por ele provocadas.185 sibilidade do resultado deve ser extraída das condições pessoais do agente e
não do homem prudente e consciencioso. Em razão disso, pondera que ao
179. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 239. 186. COSTA JÚNIOR, Heitor. “Elementos subjetivos nas causas de jusitifcação”, in Revista de Direito Penal,
180. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 240. 1978, nº 23.
181. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 241. 187. COSTA JÚNIOR, Heitor. Teoria dos delitos culposos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1988, p. 53.
182. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 241. 188. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 54.
183. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 243. 189. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 55.
184. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 244. 190. COSTA JUNIOR, Heitor. Nota 187, p. 57.
185. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 245. 191. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 61
92 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 93

profissional mais qualificado não bastará o simples cumprimento de regras guição da cláusula genérica de exculpação com base na inexigibilidade de
técnicas, mas uma atuação de conformidade com essas suas habilidades, isto conduta diversa, considerando não ser reprovável a lesão ao cuidado objetivo,
é, que as esgote adequadamente no caso concreto.192 quando o agente tenha sido levado a realizar a conduta descuidada por medo,
Por outra parte, em todos os delitos culposos estima que deve haver consternação, susto, fadiga ou outras condições semelhantes.197
um resultado, o qual, entretanto, não poderá ser imputado ao agente se for (5) LUIZ REGIS PRADO
inevitável. Em virtude dessa particularidade, o resultado não pode ser visto
Também está agregado ao finalismo LUIZ REGIS PRADO, o qual
como simples condição objetiva de punibilidade, como pensava uma parte
segue, em linhas gerais, o posicionamento de JOSÉ CEREZO MIR, ao in-
da doutrina italiana seguidora de MANZINI, ou dos próprios finalistas sub-
cluir, no conceito de ação, um dado de valor. Portanto, a ação final não está
jetivos, como ZIELINSKI. Se, algumas vezes, não se puder demonstrar o
submetida, exclusivamente, a um conteúdo ontológico ou naturalista, mas a
prejuízo decorrente do resultado, isto não significa que este resultado não
um substrato axiológico. Diz textualmente LUIZ REGIS PRADO: “O direi-
seja relevante. Como o resultado deve estar em conexão com a ação descui-
to deve partir, desse modo, do conceito finalista de ação. Não significa, a rigor,
dada, o prejuízo derivaria precisamente da prática dessa ação. Ademais, se se
um conceito ontológico, mas torna-se vinculante para o direito sempre que
demonstrar que o resultado ocorreria de qualquer modo, isto é, com ou sem
este tenha como ponto de partida a concepção do homem como pessoa”.198
a ação descuidada, estar-se-á diante de um caso de ausência de imputação.193
No que toca aos delitos culposos, diferencia LUIZ REGIS PRADO,
Seguindo, além disso, a maioria da doutrina finalista, sustenta a inad-
no âmbito do tipo, entre delitos dolosos e culposos, vendo, nestes últimos,
missibilidade da divisão do tipo culposo em dois segmentos, objetivo e
um comportamento mal dirigido a um fim irrelevante. Ao reconhecer nos
subjetivo, devido à incongruência entre a finalidade perseguida pelo autor
delitos culposos uma finalidade, entende que sua diferenciação para com
e o resultado proibido.194 Apesar disso, exige, nas causas de justificação, um
os delitos dolosos se faz unicamente no âmbito do tipo de injusto, que se
elemento subjetivo, ainda nos delitos culposos, mas que se expressariam
assenta na infração ao dever objetivo de cuidado. Seguindo a linha mais
unicamente no “querer o resultado socialmente valioso”. Isto vale para todas
pura do finalismo, não reconhece, ao contrário de MESTIERI, uma bi-
as causas de justificação, que são estendidas aos delitos culposos da mesma
partição do tipo dos delitos culposos em tipo objetivo e tipo subjetivo.199
forma como nos delitos dolosos, tais como a legítima defesa, o estado de
O tipo se comporia, assim, da inobservância do cuidado objetivamente
necessidade, o exercício regular de um direito, o estrito cumprimento de um
devido, da produção de um resultado e da afirmação do nexo causal, da
dever legal e o consentimento do ofendido195.
previsibilidade objetiva do resultado e da conexão interna entre desvalor
Em atenção ao seu engajamento à tese de STRATENWERTH, de in- da ação e desvalor do resultado.200
dividualizar a medida do dever de cuidado já no âmbito do tipo, HEITOR
Ao contrário da corrente tradicional do finalismo, LUIZ REGIS
COSTA JÚNIOR compõe a culpabilidade dos delitos culposos dos mesmos
PRADO não adota a figura do homem prudente para determinar a medida
elementos daquela dos delitos dolosos, ou seja, da imputabilidade, do conhe-
do cuidado, mas se fixa na demonstração da necessidade objetiva de, aten-
cimento potencial da antijuridicidade e da exigibilidade de conduta diversa.
dendo àquele cuidado, proteger-se o bem jurídico, cuja lesão ou perigo de
Não obstante, considera só haver culpabilidade quando o agente “tiver cons-
lesão constituiria o desvalor do resultado.201
ciência do resultado, da possibilidade de evitá-lo e do curso causal e, também,
se estes lhe forem previsíveis”.196 Finalmente, amplia a possibilidade da ar- Quanto à antijuridicidade, não vê LUIZ REGIS PRADO qualquer

192. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 61 et seq.. 197. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 109.
193. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 68. 198. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, 3ª edição, volume 1, São Paulo, 2002, p. 91.
194. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 69 et seq. 199. PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 303.
195. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 76. 200. PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 304.
196. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 106. 201. PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 304.
94 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 95

diferença entre os delitos culposos e dolosos, assinalando que a culpabilidade do ao modelo de tipo que lhe corresponda. Estes critérios seriam o do homem
delito culposo se restringe à determinação da capacidade do agente, conforme prudente e consciencioso, do dever de informação e abstenção de ações peri-
suas habilidades e características pessoais, de evitar a realização do fato típico.202 gosas, da utilidade e o princípio da confiança.206 Ademais disso, para afirmar
o desvalor do resultado exige que este seja o “produto específico da lesão do
(6) JUAREZ CIRINO DOS SANTOS
cuidado objetivo”.207 Como a configuração do tipo de injusto está condicio-
Apesar de suas contribuições próprias quanto à estrutura e ao tratamento nada à realização do risco não autorizado, descarta a possibilidade de uma
dos elementos do delito, adota também o conceito de ação final JUAREZ ação típica quando os resultados se situarem fora do âmbito de proteção da
CIRINO DOS SANTOS. Seu pensamento mais recente, expresso em sua bem norma que constitui o substrato do respectivo tipo de delito. Isto se dará nas
cuidada obra, se manifesta no sentido de que o conceito de ação “como ativida- hipóteses de colaboração em ação intencional autoperigosa da vítima, de
de dirigida pelo fim (nobre ou abjeto, altruísta ou egoísta, legal ou criminoso) exposição consentida a perigo criado por outrem, de perigos situados em área
destaca o traço que diferencia a ação de todos os demais fenômenos humanos de responsabilidade alheia, de danos resultantes de traumas sobre terceiros e
ou naturais, e permite delimitar a base real capaz de incorporar os atributos de outras consequências danosas posteriores.208
axiológicos do conceito de crime, como ação típica, antijurídica e culpável”.203
Em relação à construção dos tipos, divide-os em segmentos objetivo e
Com este dimensionamento do conceito de ação, faz ver JUAREZ CIRINO
subjetivo. No primeiro, se integram todos os elementos relativos ao cuidado
DOS SANTOS que a definição da ação final não encerra em si mesma, como
objetivo, à causalidade e à atribuição do resultado. No segundo, se incorpo-
pretendem JOSÉ CEREZO MIR e LUIZ REGIS PRADO, características
ram a representação das circunstâncias do fato, a previsão do resultado e a
axiológicas, as quais só terão relevância na delimitação dos demais elementos
confiança na sua não verificação, isto na culpa consciente, bem como a atitu-
do delito extraídos de sua valoração normativa.
de subjetiva em relação à possibilidade, não representada, mas representável,
Relativamente aos delitos culposos, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS de lesão de bens jurídicos.209
os compreende como uma categoria diversa daquela dos delitos dolosos,
Com base na exposição sustentada por ROXIN, admite JUAREZ
construindo seu tipo de injusto sobre a lesão do dever de cuidado como risco
CIRINO DOS SANTOS a extensão aos delitos culposos das causas de jus-
não permitido. Em apoio à sua tese invoca a legislação de trânsito, a qual,
tificação da legítima defesa, do estado de necessidade e do consentimento
primeiramente, institui o dever de atenção e cuidado na direção de veículos
presumido. Embora acolha, em linhas gerais, o pensamento de que a “constru-
e, depois, delimita esse dever pelas normas jurídicas que definem o risco
ção judicial dos tipos abertos de imprudência leva em consideração a situação
permitido na circulação de veículos.204
concreta que fundamenta a justificação”,210 exige um tipo subjetivo de justifica-
Acolhendo a teoria do risco, pondera, por outro lado, que a simples ção e fica na dúvida quanto à exclusão da antijuridicidade nas hipóteses em que
infringência do cuidado objetivo, embora possa implicar, em regra, a criação o agente realiza uma ação, objetivamente justa, mas sem consciência da situação
do risco, pode ser insuficiente para indicar lesão ao risco autorizado, assim de legítima defesa. Nesta hipótese parece propender para o reconhecimento de
como, a observância estrita da norma de cuidado não garante que a conduta uma exclusão da punibilidade em lugar da justificação.211
se situe nos limites do risco autorizado, se, por exemplo, a manutenção da-
Já no âmbito da culpabilidade, por ele concebida tanto no sentido
quela regra elevar o perigo de um acidente.205
de fundamento de legitimidade da pena, quanto de sua limitação, exclui o
Em atenção a essas ponderações, insere um grupo de elementos para de-
limitar a extensão do risco autorizado e, assim, obter a adequação da conduta 206. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 91 et seq.
207. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 96.
202. PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 304. 208. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 99 et seq.
203. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 26 et seq. 209. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 109.
204. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. p. 90. 210. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 170.
205. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 90 et seq. 211. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 171.
96 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 97

princípio da liberdade de vontade, próprio do finalismo e se filia aos funda- Particularidade apresenta na sua concepção de antijuridicidade do fato
mentos da teoria de ROXIN da dirigibilidade normativa.212 Apesar disso, em culposo típico, ao vê-la formada, basicamente, do desvalor do ato e do desva-
face de considerar que o homem é responsável por suas ações, porque vive lor do resultado, sendo que o primeiro resulta da inobservância do cuidado
em sociedade e, assim, elevar o princípio da alteridade como fundamento devido e o último da lesão ao bem jurídico.219 Esta íntima relação entre
material da culpabilidade, fundamenta a “reprovação de culpabilidade na tipicidade e antijuridicidade, na qual se mesclam os elementos relacionados
normalidade de formação da vontade realizada no tipo de injusto concre- à infração ao dever de cuidado, ao resultado e aos correspondentes juízos
to”.213 Estes fundamentos, que dizem respeito, portanto, aos “defeitos da de desvalor, o situa, no entanto, em uma posição mais próxima da teoria
formação de vontade antijurídica” na área da capacidade de vontade, do primitiva de WELZEL e fora da influência de outras variantes do finalismo
conhecimento do injusto e da exigibilidade, valem tanto para delitos dolosos contemporâneo. Isto se apresenta com mais nitidez, quando quer caracterizar
quanto culposos. o tipo conforme um processo comparativo entre a ação efetivamente realizada
e aquela que teria realizado um homem prudente, bem como assinalar à anti-
(7) CEZAR ROBERTO BITENCOURT
juridicidade um conteúdo material, que é a ofensa a um bem jurídico, a qual,
Posição dogmática finalista adota, por derradeiro, CEZAR ROBER- porém, pode estar justificada por uma norma permissiva. Nessa estrutura,
TO BITENCOURT, que define a ação como o comportamento humano como ele mesmo afirma, a lesão do bem jurídico, que figura como elemento
voluntário conscientemente dirigido a um fim.214 Relativamente aos delitos básico da antijuridicidade, não pode ser entendida no sentido naturalístico,
culposos, entende que sua caracterização decisiva reside na forma e na nature- mas como ofensa a um valor ideal da ordem jurídica.220
za dos meios empregados em função da finalidade perseguida pelo agente.215
Em CEZAR ROBERTO BITENCOURT, ademais, a culpabilidade
O tipo culposo seria composto de uma conduta mal dirigida, normal- dos delitos culposos terá a mesma estrutura da culpabilidade dos delitos
mente destinada a um fim penalmente irrelevante, quase sempre lícito. O dolosos, ou seja, a imputabilidade, a consciência potencial da ilicitude e a
núcleo desse tipo seria representado, assim, pela divergência entre a ação exigibilidade de comportamento conforme ao direito. A reprovação, por
efetivamente praticada e a que deveria ter sido realizada.216 seu turno, com base no poder agir de outro modo, se expressa em função
Como elementos do tipo culposo inclui, assim, a inobservância do das condições pessoais do agente, se, nas circunstâncias, poderia atuar com
cuidado objetivo, a produção do resultado, o nexo causal, a previsibilidade a diligência necessária e que lhe era exigível. Assim, não haveria culpabili-
objetiva do resultado e a conexão interna entre desvalor da ação e desvalor dade, caso ao agente se mostrasse impraticável a observância da diligência
do resultado.217 ou lhe fosse de difícil atendimento.221
No que toca à questão primordial do tipo dos delitos culposos, que é a 6. CRÍTICA À TEORIA FINALISTA
da medida da previsibilidade, opta por levar em conta as condições cognos-
A maior contribuição da teoria finalista reside no setor dos fatos culposos,
cíveis por uma pessoa inteligente, agregadas às condições conhecidas pelo
precisamente, na metodologia empregada, de deslocar-lhe o estudo do âmbito
autor e à experiência comum, na época do fato, sobre o curso causal. Com
da culpabilidade para situá-lo dentro de todo o complexo da teoria do delito.
isso se afasta do critério exclusivo do homo medius, mesclando-o com dados
Com isso tornou-se possível um aprofundamento do exame dos componen-
próprios do autor.218
tes da negligência e seu ajuste aos fatos concretos, cada vez mais frequentes e
212. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 182. necessitados de atuação judicial rápida e adequada. Dogmaticamente, a desca-
213. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 183. racterização da negligência como mera forma de culpabilidade para constituir
214. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, parte geral, S. Paulo: Saraiva, 2000, p. 150.
215. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, p. 151.
216. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, p. 219. 219. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, p. 221 e 240.
217. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, p. 222. 220. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, p. 237.
218. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, p. 224. 221. BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, p. 220 et seq.
98 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 99

um tipo especial de delito significou, em primeiro lugar, uma quebra na con- feita pelos finalistas de que o legislador estaria vinculado à estrutura final de
cepção anterior que a tratava sob ponto de vista exclusivamente psicológico ação, quando se dispusesse a proibir qualquer conduta.224
e cuja dificuldade de ajustá-la ao princípio da liberdade de vontade sempre Não obstante se possa reconhecer uma estrutura final de ação com
pairou sem solução satisfatória.222 Na visão finalista, a negligência toma outra caráter redutor, como faz ZAFFARONI, dando ao sistema finalista uma
feição, sendo situada sob plano normativo tanto no âmbito do tipo quanto da característica que não possuía, de servir de instrumento de contenção à
culpabilidade, mas sem descurar-se de seus elementos puramente psicológicos, irracionalidade do jus puniendi, isto não é suficiente para superar suas defi-
como se dá na negligência consciente, e da capacidade subjetivo-pessoal do ciências, também, em outros aspectos da teoria do delito, como na tipicidade
autor, que serve de fundamento final de sua responsabilidade. e na culpabilidade. Para esclarecer melhor estas deficiências, procedamos à
Essa colocação possibilitou, ademais, o soerguimento de um vivo análise das principais proposições finalistas, destacando-lhes defeitos e con-
debate em torno dos elementos da responsabilidade penal da chamada tradições, sequencialmente, na ação, no tipo de injusto e na culpabilidade.
negligência inconsciente. Em face disso, puderam ressurgir inúmeras pro- A maior dificuldade do tratamento do crime culposo na teoria da ação
posições, dentre as quais, inclusive, dos próprios finalistas, como BUSCH, final situa-se, precisamente, conforme já acima exposto, em comprovar-se-
no sentido de eliminar-se a negligência inconsciente do direito penal, para lhe, lógica e ontologicamente, a compatibilidade com a estrutura finalista
substituí-la por delitos de perigo, em evidente renovação das teses negati- do agir. Ainda que os autores modernos, não-finalistas, como WESSELS,
vistas de KOHLRAUSCH.223 tenham descartado a importância desse debate, o certo é, como o demons-
Outro debate importante foi suscitado no âmbito da própria ação, no tram JAKOBS, ROXIN, SCHEWE e outros,225 que se tornou bastante
qual se questionou acerca da compatibilidade entre uma atividade dirigida, duvidosa a existência de finalidade em todas as ações humanas, em especial,
sempre e obrigatoriamente, a um fim e a produção de um resultado não final, naquelas em que o agente atua, omitindo certas diligências a que estava
derivado de um defeito de causalidade. Aqui, porém, as dúvidas iniciais se obrigado e nas quais nem sequer pensara. Por exemplo, o motorista cansado
foram transformando, em face das críticas apresentadas pelos opositores do não presta atenção no sinal luminoso vermelho e cruza uma avenida, vindo
sistema e das respectivas contestações de seus adeptos. Neste aspecto, as críti- a ocasionar acidente, do qual resulta a morte de uma pessoa. Para justificar
cas ora possibilitaram melhor enquadramento e reelaboração do conceito de finalisticamente esta atitude descuidada, será preciso valer-se da estrutura do
ação por parte dos próprios finalistas, ora se tornaram ineficazes, em face de tipo de injusto, através de comparação entre a conduta efetivamente realizada
sua ingenuidade ou simplificação. Convém notar que quase todas essas críti- e aquela que deveria ser efetuada pelo motorista. Este paralelo, ou melhor,
cas se limitam a contestar a compatibilidade entre ação finalista e negligência, este método comparativo, contudo, no qual se inserem juízos normativos
tendo por base modelos de conduta inconsciente, na qual inexistiria qualquer de valor (conduta descuidada ou conduta cuidadosa), não é capaz de situar
finalidade. Este debate parece, porém, que perdeu o significado, na medida o problema na órbita exclusiva da ação final, mas, sim, agora, no tipo de
em que se passou a reconhecer que a questão da negligência inconsciente injusto, o que, de certa forma, configura contradição à estrutura ontológica
não era uma questão a ser decidida na ação, mas no tipo de injusto. Quanto da ação e manifesta submissão a um conceito normativo de conduta.
a isto, ressalta WESSELS, não finalista, que as manifestações antifinalistas Da mesma forma, não é convincente a solução aventada por STRUENSEE
de hoje não se dirigem mais ao caráter final da própria ação, mas à exigência de que a finalidade da ação culposa se dirige às circunstâncias fundamentadoras
222. Elucidativo a respeito das dificuldades de se encontrar solução satisfatória para a negligência incons-
ciente, KAUFMANN, Arthur. Das Schuldprinzip, p. 156.
223. BUSCH, Richard. Modernas transformaciones en la teoría del delito, p. 49, diz o seguinte: “Creio que 224. WESSELS/BEULKE. Strafrecht, AT, 32ª edição, p. 27.
este conhecimento obriga a averiguar se no direito penal moderno, que faz da vontade humana o ponto 225. SCHEWE, Günter. Reflexbewegung, Handlung, Vorsatz, Lübeck: Schmidt-Römhild, 1972, p. 145; da
central do conceito de delito e, em geral, de todos os conceitos penais, existe ainda campo para a figura mesma forma, JAKOBS, Günther. Studien zum fahrlässigen Erfolgsdelikt, p. 76; ROXIN, Claus. Stra-
dos delitos culposos”. Em sequência, filiando-se a uma concepção de Germann (Das Verbrechen im frecht, AT, I, 3ª edição, 1997, p. 192. Contra estas posturas, assinalam JESCHECK-WEIGEND (Nota
neuen Strafrecht, 1942, p. 141), ressalta mais: “A proposta de Germann de rechaçar a negligência como 7, p. 221) que isto não impede o reconhecimento da finalidade, pois, apesar de que esses movimentos
forma criminal de culpabilidade e em seu lugar criar delitos dolosos de perigo, ou limitá-los a medidas automatizados se apresentem, à primeira vista, como puramente causais, estão sempre submetidos a um
preventivas, parece-me merecer, por este motivo, muita consideração”. processo de atualização consciente, isto é, podem ser a qualquer tempo dirigidos pela vontade.
100 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 101

do chamado risco não permitido, em cuja situação o agente atua consciente- a pena, faz parte do tipo de injusto, assim como o resultado doloso (a lesão
mente.226 Com esta posição de STRUENSEE, a finalidade volta a ter relevância corporal), que estava na representação inicial do agente e que animou toda
unicamente no setor do injusto e não mais na fase pré-jurídica do conceito de a sua atividade. Neste caso, o fim perseguido pelo agente (a lesão corporal)
ação, o que, do mesmo modo, desnatura sua característica ôntica. Ademais, não é atípico, daí não se poder dizer que, no delito culposo, o agente persiga
como bem ressalta ROXIN, a negligência nem sempre implica uma realização um fim extratípico ou irrelevante.
consciente de fatores de risco, podendo ser afirmada, perfeitamente, nos casos Se estamos tratando de um conceito de ação, que possa abarcar,
em que o agente tenha violado a norma de cuidado, sem se ter dado conta de também, a negligência e não apenas o dolo, metodologicamente devemos
que, com isso, ultrapassara o risco autorizado.227 considerar, em primeiro plano, os elementos que compõem esse conceito. Por
O que se pretende com a teoria da ação final não é proporcionar tipifi- isso, a negligência só pode relacionar-se com o conceito de ação final, abs-
cação do delito culposo, pois tal pode também ser feito com a teoria causal. traindo-se do tipo de injusto, pois, caso contrário, não se trabalha mais com
O objetivo político-criminal do finalismo é estabelecer um fundamento on- o conceito ontológico de ação, mas, sim, com o conceito normativo-típico
tológico, ao qual se devam subordinar todas as formas de atividade humana, de ação, como faz ZAFFARONI, que já se afasta da estrutura finalista da
justamente por ser esse fundamento a generalização concreta da conduta conduta, que, segundo WELZEL, seria anterior e independente do direito.
humana, realizada por meio da redução de seus elementos mais gerais. Dentro Nem sempre a superação do conceito welzeliano inicial, como o
deste esquema de raciocínio, WELZEL pretendeu, de início, compreender, proposto por ZIELINSKI sobre a base de uma ação final impregnada de
na ação, a atitude culposa, ampliando o conceito dessa ação final por meio valor, conduz a resultados mais eficazes a um direito penal de garantia, por
do princípio da finalidade potencial. Embora essa tentativa não tenha surtido implicar uma injustificável subjetivação do injusto, com a consequência
efeito positivo em face das dificuldades sistemáticas que originava, era, na incompreensível de tratar os delitos culposos como se fossem delitos do-
verdade, consequência lógica do conceito inicialmente proposto. losos não tipificados.
Posteriormente, com a assertiva de que, na ação culposa, quer o autor Ademais, deve-se considerar, como bem pondera JESCHECK, que
outra coisa que não aquele resultado típico, como o fazem MAURACH, uma vez que a conclusão caracterizante do delito culposo, ou da ação negli-
FRAGOSO e MESTIERI, passa-se a trabalhar com um conceito paralelo gente, não é mais a finalidade omitida ou potencial, mas, sim, a forma ou o
de conduta, que não é nem geral nem generalizante do concreto. Pois, se no modo de execução da ação, tal modo de ver não esgota o complexo de situa-
crime culposo não quer o autor o resultado típico (e isto é óbvio, caso con- ções, que pode comportar a atividade descuidada. Em algumas vezes, não é o
trário, o fato seria doloso), mas outro resultado extratípico e até irrelevante modo ou a forma de execução da ação que lhe irá identificar a contrariedade
juridicamente, como afirma FRAGOSO, isto, na realidade, nada tem a ver normativa, mas, sim, o próprio exercício da atividade.228
com o conceito de ação como tal, mas já está indissoluvelmente atado às
consequências do tipo de injusto. A melhor maneira de o finalismo ultrapassar esse obstáculo talvez seja
aquela fornecida por WELZEL de, quando se afirmar a finalidade, utilizan-
Por outro lado, é certo que este último posicionamento limita por do-se expressão emprestada de NICOLAI HARTMANN, caracterizar-se
demais o âmbito dos crimes culposos, a ponto de tornar-se incompatível com isso o fato de a conduta humana só ser tida como realmente humana e
com os chamados delitos qualificados pelo resultado, ou preterintencionais. relevante, se for encaminhada ou dirigida pela vontade, independentemente
Pode-se ver que nestes delitos, por exemplo, na lesão corporal seguida de
morte (art. 129, § 3º, do CP), o resultado culposo (a morte), que qualifica 228. Trazem à luz, com precisão, JESCHECK-WEIGEND, Nota 7, p. 222, o exemplo da enfermeira, que pode
atuar negligentemente, tanto quando substitui inadvertidamente uma injeção por outra, no tocante a um
paciente, como quando aplica neste uma injeção correta, mas que ele não poderia tomar por intolerância
226. STRUENSEE, Eberhard. “Der subjektive Tatbestand des fahrlässigen Delikts”, in Juristenzeitung, alérgica. Na última hipótese, é vidente que não há que se falar que a atividade da enfermeira foi descuida-
1987, p. 53 et seq.; idem, “Objektives Risiko und subjektiver Tatbestand“, in Juristenzeitung, 1987, p. da em seu modo de execução. O modo e a forma de execução podem ser aqui até cuidadosos e adequados
541 et seq. ao direito, como no exemplo dado. O erro, porém, subsiste no fato de ela ter simplesmente atuado, quan-
227. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 192. do qualquer atividade nesse sentido (de aplicar a injeção) já ensejaria a lesão ao bem jurídico.
102 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 103

de haver ou não um fim consciente que se deseja alcançar.229 A esta situação de injusto, a análise da culpabilidade, tornando este elemento inteiramente
chega, de certo modo, ZAFFARONI, ao propor um conceito final de ação vazio de concreto conteúdo pessoal. Repetir-se o mesmo juízo pessoal na
que se ajuste aos princípios constitucionais. Uma outra solução é formulada culpabilidade, como o faz HEITOR COSTA JÚNIOR, poderia ser uma
por LUIZ REGIS PRADO, de emprestar à ação um determinado sentido, solução, mas, à primeira vista, parece redundante.
em função de seu conteúdo axiológico. Nestas formulações, é possível que a Essas posições tanto podem retratar aspectos positivos no enquadra-
ação culposa se torne compatível com o conceito final de ação, desvinculada mento técnico dos fatos negligentes dentro do direito penal, com repercussões
do socorro prestado pelo tipo de injusto, na medida em que nele se englobem favoráveis ao réu e à sociedade, conforme a intenção normativa, quanto con-
todos os componentes que dão sentido à atividade humana. A questão está, duzir a um estado de arbítrio, em que o julgador exercerá poder ilimitado de
entretanto, em associarem-se à ação final componentes que dela não faziam criar elementos nas disposições penais, para atender-lhe os interesses e senti-
parte e que, na verdade, a desnaturam de seu conteúdo ontológico. Nestes en- mentos pessoais, nem sempre compatíveis com a adequação social. Seria esse
saios, já não resta mais uma ação final, mas uma ação axiológica e, portanto, risco menor, evidentemente, se acolhêssemos a tese de STRATENWERTH
quase que social, ou uma ação de conteúdo normativo, porque dependente e de HEITOR COSTA JÚNIOR, pela possibilidade de individualizar-se
de preceitos constitucionais. Independentemente disso, essas soluções não o dever de cuidado, ou de ZAFFARONI, de trabalhar com o critério do
são pacíficas entre os próprios finalistas, o que indica muito claramente suas standard mínimo, sem o suporte do conceito vago e impreciso do homem
dificuldades e incoerências sistemáticas, já a partir do conceito de ação. prudente, inteligente e consciencioso, ou de agregar-lhe outros critérios de
Do mesmo modo como se dá na ação, os finalistas não encontram imputação como faz JUAREZ CIRINO DOS SANTOS.
unanimidade no tocante à constituição do tipo de injusto dos delitos cul- Contudo, mesmo a possibilidade de individualização do dever de cui-
posos. Se escolhermos a proposição de MAURACH, o tipo será o mesmo dado ou o critério do standard mínimo não está imune a reparos. Com efeito,
que na teoria causal. Se acolhermos a posição de MESTIERI e WELZEL e partindo-se, na elaboração do tipo de injusto, da medida pessoal de determi-
da maioria dos autores, o tipo passará a contar com elementos normativos nação da evitabilidade do resultado e do atendimento à norma de cuidado
(lesão ao dever de cuidado, etc.) não estabelecidos formalmente pela lei. concretamente exigível ao autor, não se chega a uma identificação clara do
Se adotarmos a posição de ZAFFARONI, o tipo conterá, sistematicamen- injusto, fazendo-o depender, em contraste com os demais ramos do direito e,
te, elementos da antijuridicidade. De qualquer forma, será, portanto, um assim, também com os crimes dolosos, de um juízo subjetivo e não objetivo.
tipo penal amplo, ou aberto,230 no qual assume papel importante o juiz Para tanto, seria indispensável uma alteração radical na estrutura do delito,
como integrador da norma jurídica, o que, inclusive, é incompatível com em geral, e do injusto, em particular, de modo a compreender-se, ao lado do
o princípio da legalidade exposto no art. 1o do Código Penal, bem como delito doloso, outra forma de delito, no caso, o culposo, subordinado a regras
com os postulados de garantia. inteiramente estranhas às que o Código Penal contém na sua parte geral. Deste
Por outro lado, se a conduta descuidada que integra o tipo deve ser modo, chegar-se-ia demasiado longe com o princípio do injusto pessoal, pre-
aferida no caso concreto em face de um modelo indefinido, passa-se a cisamente, de que todo juízo sobre a antijuridicidade deveria ser feito com base
adotar o conceito de homem prudente, inteligente e consciencioso, impossí- no autor individual e não no fato por ele realizado. Quanto ao critério do stan-
vel de ser demonstrado empiricamente e só compreendido por um juízo dard mínimo ainda não se solidificou, inteiramente, ficando na expectativa da
de valor extralegal. Para superar este problema, a solução mais imediata elaboração de seus parâmetros, que tanto poderiam referir-se a um modelo de
seria a adoção da proposta de STRATENWERTH, de trabalhar com as prudência quanto à capacidade individual do autor, ou seja, a uma constatação
características pessoais do autor. Mas, neste caso, anteciparíamos, no tipo empírica objetiva, mas submetida a critérios seletivos e valorativos. Finalmente,
não soluciona definitivamente a questão temperar-se o critério do homem
prudente com condições pessoais do autor, como pretende BITENCOURT,
229. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 58; idem, “Zur Dogmatik im Strafrecht”, in Festschrift für Maurach, p. 7.
230. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 187. No Brasil, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 86. ou com princípios da imputação objetiva, que dependem do caso concreto e
104 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 105

não valem como norma geral de delimitação do dever de cuidado. Uma vez insubsistentes os complementos de que esse autor individual, referido no tipo
que o conceito de homem prudente, então, decorreria das condições pessoais e de injusto, deva, pelo menos, compreender que sua atividade possa causar lesão
circunstanciais do próprio autor, parece que não se tratará mais de um conceito de bem jurídico. A menção ao bem jurídico em nada altera a concepção do
empírico objetivo, mas de um conceito pessoal, ou subjetivo. Por que, então, tipo de autor, embora forneça, e menos mal, um ponto de referência para a
ainda trabalhar-se com o conceito simbólico de homem prudente? estruturação do tipo, sem esbarrar nos perigos de uma generalização ilimitada.
É verdade que se poderia argumentar, em sentido oposto, que o princí- Na relação entre tipo e antijuridicidade dos delitos culposos é,
pio do injusto pessoal exigiria uma tal interpretação e que isto não contraria também, claudicante a postura finalista. Em face de, durante sua evolu-
a ordem jurídica; que, pelo contrário, está em conformidade com a ordem ção, haver situado a questão da adequação social da conduta no âmbito
jurídica, pois todo fato antijurídico é pessoalmente antijurídico. Assim, por da antijuridicidade e, depois, no tipo, conduziu a algumas confusões, que
exemplo, posso destruir meu automóvel e isto não me será um fato antijurídico, WELZEL corrigiu ao longo de sua carreira. Se a ação típica deve ser ca-
mas o será para meu vizinho que me ajuda nesta tarefa sem minha aquiescên- racterizada como uma ação descuidada, não importa com que critérios
cia. Observando-se melhor, todavia, esta colocação, pode-se constatar que a isto se faça, então a infração ao dever de cuidado integra o tipo e não a
atividade de destruição não se refere a mim, mas, sim, à coisa alheia móvel com antijuridicidade, ficando sem apoio a tese sustentada, por exemplo, por
relação ao meu vizinho, cuja atuação independe de suas condições pessoais e BITENCOURT, de situá-la na antijuridicidade. Se, porém, a ação típica
que, afora isso, pode sujeitar-se a um juízo meramente objetivo, determinante deve ser tomada, primeiramente, como ação perigosa e, depois, como ação
de sua contradição ao que proíbe a ordem jurídica (antijuridicidade). descuidada, aferida esta particularidade em função de critérios normativos
Esse exemplo refere-se a fato doloso, mas ilustra bem a impropriedade da ordem jurídica, então, toda a matéria do injusto já estará na tipicidade,
do conceito de injusto pessoal. Aplicado aos fatos culposos, cuja preocupação ensejando uma tipicidade conglobante como o faz ZAFFARONI. Neste
da doutrina é encontrar fórmula abrangente e globalizante, a teoria do injusto caso, ainda assim, a infração ao dever de cuidado não estará situada na
pessoal gera uma série de conclusões antecipadas. Primeiramente, como o antijuridicidade. Haverá, isto sim, uma antecipação do exame da antijuri-
injusto é exclusivamente realizado pelo autor individual, é evidente que não dicidade, o qual se deverá efetuar na tipicidade. Mas esta última solução,
há que se falar, aqui, então, de coautoria ou participação, conclusão a que se que parece correta em face de um direito penal de garantia, porque eli-
pode chegar, porém, por meio de outras vias. Em segundo lugar, induz a um mina as questões subjetivas da antijuridicidade, não terá mais uma feição
raciocínio estranho, de que o dever de cuidado que fundamenta a proibição finalista, mas da teoria dos elementos negativos do tipo, no sentido de um
legal não subsiste sem a presença de um autor determinado e certo. Aqui, evi- tipo total de injusto.
dentemente, não se trata de saber se este ou aquele autor pudera conduzir-se No campo da culpabilidade, o finalismo não solucionou todos os
como determinava a lei, mas, sim, de indagar se sua atividade, considerada problemas daí derivados. Primeiramente, tomando a culpabilidade como
objetivamente, está ou não em contradição com ela. juízo de valor, em oposição ao injusto, concebido como objeto de valora-
O tipo de injusto, desde a sua criação, é, fundamentalmente, um tipo ção, atendendo, portanto, a um traçado original que remonta a GRAF ZU
de fato e não de autor. Assim, resultam sem sentido as conclusões de que um DOHNA,232 como consequência da influência neokantista, filiou-se mais a
esclerótico, em situação de não perceber as circunstâncias envolventes da ação um esquema formal do que procurou fundamentá-la materialmente.
típica, não atua culposamente, pois o dever de evitar o acontecimento ou Essa crítica que lhe faz ARTHUR KAUFMANN é absolutamente cor-
de atender às determinações de cuidado, como pressuposto da tipicidade, só reta. Pois, se, nesta divisão, a culpabilidade se ocupa tão-somente de mero
233

seria concebível onde fosse exequível seu cumprimento, como propõe STRA- juízo de valor, passa a ser elemento normativo-formal, sem qualquer vinculação
TENWERTH, seguido, aqui, por MALAMUD GOTI.231 Igualmente, são 232. GRAF ZU DOHNA, Georg Theobald Alexander. Der Aufbau der Verbrechenslehre, Bonn: Röhrscheid,
1950, p. 11 et seq.
231. MALAMUD GOTI, Jaime. La estructura penal de la culpa, p. 74. 233. KAUFMANN, Arthur. Das Schuldprinzip, p. 180.
106 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 107

com o concreto-pessoal. Para que isto ocorra, indispensável será se incluírem só pode ser o fato previsto no tipo de injusto e contrário à ordem jurídica,
nela elementos concretos referentes ao agente, como faz WELZEL, por exem- no sentido objetivo. É justamente sobre esse fato que se edifica a culpabi-
plo, com a previsibilidade e a evitabilidade pessoais no tocante ao resultado. lidade. Esta, independentemente das concepções que lhe são formuladas,
Contudo, assim procedendo, WELZEL insere, na culpabilidade, elementos pode resumir-se no juízo proposto pelo Estado, para, atendendo aos inte-
concretos, referentes ao agente, verdadeiros objetos de valoração, e desnatura resses de política criminal, determinar a responsabilidade do agente pelo
sua concepção sistemática, porquanto o juízo de valor acerca da previsibilidade fato praticado. Embora se deva reconhecer que o fato humano está sempre
não se reduz a uma indagação normativa, mas se fundamenta em dados que condicionado pela dimensão psicossocial do autor, isto não interessa ao di-
devam ser empiricamente demonstrados, ou seja, de que determinado autor reito penal, para determinar-lhe a responsabilidade, enfim, para a aplicação
previra o evento (culpa consciente), ou pudera prevê-lo (culpa inconsciente). da pena aos imputáveis e medida de segurança aos inimputáveis, porque a
Está claro que, na culpa inconsciente, o critério de sua aferição, ainda que re- culpabilidade deve ser entendida como culpabilidade do fato e não como
ferido ao agente, está subordinado a juízos normativos, que, em certa medida, culpabilidade de autor. As outras circunstâncias internas, além daquelas rela-
prescindem de uma referência subjetiva. Mas, na culpa consciente, a afirmação cionadas exclusivamente ao fato concreto e isolado, são estranhas ao juízo de
da previsibilidade está, indissoluvelmente, ligada ao âmbito subjetivo. Não será culpabilidade.234 Esta base caracterológica da culpabilidade só poderia valer
qualquer agente, mas o autor individual que previra o evento. A aferição da num regime jurídico-penal positivista, no qual o fundamento da medida
previsão, neste caso, é feita por um processo empírico e não normativo. penal fosse tão-só a periculosidade do indivíduo. Daí, porém, já não se pode
A introdução de dados concretos referentes ao agente na culpabilidade mais falar de finalismo, mas sim de uma concepção sintomática de conduta,
é correta e saudável, porque ajusta a norma penal à realidade, mas implica, ainda mais incompatível com o direito penal garantista e liberal.
no tocante à metodologia finalista, uma certa incoerência. Por outro lado, A saída proposta por MAURACH, de separar do exame da culpabi-
se aceitarmos a variante de STRATENWERTH, estaremos sendo fiéis ao lidade os juízos objetivos referentes à exigibilidade de conduta adequada à
sistema, mas transformaremos a culpabilidade numa relação divorciada do norma, em que se analisariam as possibilidades da infração aos deveres de
concreto, ou seja, do objeto real que lhe dá fundamento: a possibilidade cuidado, que, assim, não comporiam o tipo de injusto, mas fundamentariam
pessoal ou a capacidade de prever e de evitar o resultado proibido. Vê-se, a responsabilidade pelo fato, traz algumas vantagens no setor dos crimes
pois, que a estrutura finalista da culpabilidade apresenta falhas insanáveis. dolosos, mas pode causar confusão nos crimes culposos.
Percebendo as dificuldades sistemáticas de seu sistema, WELZEL pre- Em primeiro lugar, esvaziaria o tipo de injusto, fugindo da concepção
tendeu superá-las com um apelo a uma substância caracterológica, vendo na tradicional do finalismo. Em segundo lugar, exigiria uma individualização
negligência não um ato de vontade, mas, sim, o processo de má formação da culpabilidade, nem sempre atendível empiricamente.
do caráter, que fundamentaria o juízo de reprovação sobre o agente. Esta Se é certo que a culpabilidade se baseia, fundamentalmente, na exi-
posição assumida por WELZEL é ainda pior do que a falha sistemática, gibilidade de outro comportamento, ou melhor, no poder agir de outro
acima apresentada, e está em incompatibilidade com nosso direito penal modo, que serve de sustentáculo ao chamado juízo de reprovação, ou de
de garantia, lastreado na legalidade dos crimes e das penas. Como corolário inadequação, não se sabe como subsistiria a culpabilidade isenta desse juízo,
deste princípio, resulta que todo o delito, com seus elementos essenciais, organizada segundo uma hipotética liberdade de vontade, principalmente
tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, deve estar vinculado a um fato
objetivo, legalmente previsto. À lei não importa o conteúdo do caráter do
234. Não se pode afirmar outra coisa, diante da absoluta legalidade dos crimes e das penas. No sentido da cul-
agente, nem sua conduta ou sua postura interna e moral, mas, exclusivamen- pabilidade do fato é a maioria da doutrina brasileira. V. BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 34; MARQUES,
José Frederico. Tratado de direito penal, vol. II, p. 156; HUNGRIA, Nelson. Um novo conceito de
te, o fato delituoso (o injusto típico), pelo qual se faz responsável. culpabilidade, apêndice aos Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II, p. 484. Indefinido, aceitando
uma culpabilidade da personalidade, pelas indicações, MARTINS, José Salgado. Direito penal, p. 206.
O que, de modo decisivo, limita e delimita o âmbito da culpabilidade Seguindo, em sentido geral, a orientação finalista, com base no poder agir de outro modo, PRADO, Luiz
Regis. Nota 198, p. 347.
108 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 109

em situações em que a vontade dirigente do acontecimento, como ocorre na atuado nos limites do cuidado objetivo, ou quando o resultado se verificaria,
negligência inconsciente, está alheia à realização do resultado. mesmo que o agente atendesse ao dever de cuidado. A questão da inserção sis-
Do mesmo modo, o extremo defendido por MESTIERI, de que a temática dessa medida no tipo ou na culpabilidade é que se torna problemática,
culpabilidade se resumiria na exigibilidade objetiva de outra conduta, isto é, em face das consequências extrapenais que tal posição pode gerar.
de conduta ajustada ao cuidado, não satisfaz inteiramente. Com esta posi- Por exemplo, o motorista dirige em alta velocidade, sem saber que
ção, definitivamente, se altera o conteúdo do juízo de culpabilidade, que de transporta, no porta-malas, carga explosiva, ali colocada ilicitamente por
pessoal-subjetivo, como em WELZEL, passa a ser absorvido pelo impessoal- outrem; em virtude da velocidade excessiva, vem o carro a chocar-se com
-objetivo. Esta é a conclusão, inclusive, a que se chega, quando MESTIERI outro, fazendo explodir a bomba e produzindo a morte dos passageiros;
afirma que a previsibilidade ou a evitabilidade do resultado morte no homi- mais tarde, descobre-se que, mesmo que dirigisse o motorista na velo-
cídio deva ser apreciada segundo a experiência geral da vida. Talvez se mostre cidade normal, a bomba explodiria e mataria as mesmas pessoas, ainda
isto eficaz na prática judiciária, em que se necessita de limite ao subjetivismo que um pouco mais tarde. Aplicando-se a proposição de MESTIERI, será
e de critério mais geral. Contudo, mesmo aí será difícil evitar-se o arbítrio possível limitar-se a responsabilidade culposa, excluindo-se o motorista de
judicial através da determinação do que implica a experiência geral da vida, culpabilidade e, assim, de punição, porque não se lhe poderia exigir outra
desde que aferida no âmbito da culpabilidade. Para a formulação sistemática, conduta, tendo em vista que, pela experiência geral da vida, não ocasiona
ademais, será indispensável uma postura que não dê margens a interpreta- uma velocidade excessiva detonações no porta-malas nem é de se esperar
ções indemonstráveis. A experiência geral da vida poderia, em contrapartida, objetivamente tal acontecimento.
ser usada no âmbito do injusto, mas não na culpabilidade. Desde que, na Nesse caso, excluindo-se apenas a culpabilidade, como quer MES-
culpabilidade, o que se trata é de um juízo pessoal, com base no poder agir TIERI, o fato permaneceria típico e antijurídico, o que poderia conduzir,
de outro modo, sua avaliação deve ser feita sobre o autor concreto. Com a em princípio, a uma responsabilidade civil do motorista pelos danos causa-
experiência geral da vida não se torna possível avaliar esse poder pessoal. dos, os quais não resultariam da velocidade excessiva imprimida ao veículo,
Como se pode avaliar um poder pessoal com base em um critério geral, e mas da explosão, o que seria muito discutível. Com o método de WELZEL,
não nas condições do próprio agente? obter-se-ia o mesmo desfecho, só que inexistiria o tipo de injusto e se teria
O mérito de MESTIERI deve ser salientado, não obstante, pela preo- de trabalhar com o conceito hipotético de um homem prudente, o que
cupação de sair do impasse da culpabilidade como juízo pessoal-subjetivo, poderia gerar alguma dificuldade, pois, no caso, o motorista, efetivamente,
por meio da elaboração de critério isento de induções e materialmente estru- não atendeu às determinações de cuidado com respeito à velocidade social-
turado. Teria este critério a vantagem de tornar compatível com o conteúdo mente adequada. O ideal seria aplicar-se a fórmula de MESTIERI no tipo
da culpabilidade a negligência inconsciente, cujas características são ainda de injusto e não apenas na culpabilidade, como faz ZAFFARONI com o
discutidas. Por outro lado, a fórmula da experiência geral da vida, como critério do standard mínimo.
medida do cuidado exigível no âmbito do injusto e não na culpabilidade, É igualmente admirável a assertiva de se excluir do âmbito dos fun-
parece melhor do que aquela aduzida por WELZEL e a maioria dos finalistas, damentos da culpabilidade o princípio abstrato da liberdade de vontade,
integrativa pelo homem prudente, inteligente e consciencioso, e se aproxima como o faz JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, mas a questão está em
do critério do standard mínimo de ZAFFARONI. se saber se sua substituição pelo princípio da dirigibilidade normativa é,
A medida da experiência geral da vida poderia conduzir a um juízo espe- ainda, suficiente para construir um direito penal de garantia. Antevendo as
cial de adequação social, como um prenúncio da teoria da imputação objetiva dificuldades que daí adviriam, o próprio autor, aliás, um dos mais notáveis
do resultado, como limitação da causalidade. Com isto, poder-se-iam resolver penalistas brasileiros, não se pôde furtar de fazer referência, quando buscava
inúmeros problemas nos quais o resultado se produz, embora o agente tenha os fundamentos da culpabilidade no princípio da alteridade, aos defeitos na
110 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 111

formação de vontade do sujeito, em nítido reencontro, ainda que sob outra emergiu, no Direito Penal, uma dificuldade primária, justamente aquela de
perspectiva, com os postulados welzelianos. se saber se a conduta humana delituosa teria que ser analisada tão-somen-
Ainda que apresente falhas sistemáticas e, às vezes, de ordem episte- te segundo o dado normativo-legal, com base no tipo, ou se, muito pelo
mológica, não se pode deixar de reconhecer que o finalismo representou, contrário, e antes disso, deveria ser caracterizada, exclusivamente, segundo
no direito penal, e continua representando e se apresentando como o mais componentes gerais, independentemente da noção de delito.237 Essa diver-
completo e coerente sistema da teoria do delito que, em oposição ao causa- sidade de opiniões pode gerar duas consequências opostas: ou de se tomar a
lismo, se teve notícia desde seu aparecimento. ação como elemento básico e de ligação dentro da teoria do delito, ou de se
excluir o conceito de ação, para ver, no delito, unidade normativa, integrada
Relativamente ao fato culposo, a maior contribuição, como já se afir- pela tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Essa preocupação não é ori-
mou no início, é a correta abordagem acerca de sua autonomia em relação ginária da teoria social da ação, sendo já observada em partidários do sistema
aos fatos dolosos. Isto faz com que todo tratamento futuro desses crimes causal, como RADBRUCH, o qual poderá ser indicado como o verdadeiro
deva partir da estrutura finalista, diferenciando-se sua tipicidade, em face precursor de um conceito normativista de conduta.238
da infração a uma norma de cuidado, e sua culpabilidade, em função das
condições pessoais do agente.235 Conforme se adote a última posição, a de se excluir completamente
da teoria do delito o conceito de ação, como conceito geral e anterior à
III. AS TEORIAS VALORATIVAS caracterização da tipicidade, esse será compreendido como dado exclusiva-
mente normativo-penal, subsistente nas várias figuras delituosas em espécie,
1. CARACTERÍSTICAS GERAIS previstas na parte especial do Código Penal. Defendem esta orientação,
Ao lado das teorias causal-naturalista e finalista, tem tomado corpo de basicamente, BOCKELMANN, RODRÍGUEZ DEVESA, FIANDACA-
doutrina, mais enfaticamente nos últimos anos, a chamada teoria social da -MUSCO, FREUND, SCHMIDHÄUSER e, entre nós, FRAGOSO, em
ação. Esta teoria, embora não venha a formar um sistema integral e harmôni- sua primeira fase e, de certa forma, BENJAMIM MORAES. A outra posi-
co como as outras duas produziram, com consequências radicais na estrutura ção, representada, entre outros, por ARTHUR KAUFMANN, BETTIOL,
da teoria do delito, pode ser caracterizada por um elemento comum e origi- EBERHARD SCHMIDT, ENGISCH, HAFT, JESCHECK, JIMÉNEZ
nal: o de que a ação não é, unicamente, uma entidade do ser, mas, também, DE ASÚA, MAIHOFER, WESSELS e, entre nós, por EVERARDO
na realidade, uma noção impregnada de valor. Essa concepção de ação com- LUNA e RICARDO ANDREUCCI, vê, na ação, um elemento social de
porta, contudo, muitas orientações e se traduz, hoje, basicamente, através valor, autônomo do conceito de delito, pelo menos figurativamente, sobre
de alguns tratados e compêndios jurídico-penais extensos ou, pelo menos, o qual se deve estruturar a concepção analítica e devem recair as categorias
bem fundamentados, tais como os de JESCHECK e WESSELS, bem como de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Em posição singular nisso
através de inúmeros artigos, monografias e outros ensaios de vários autores.236 tudo, situa-se H. MAYER, tomando por base um raciocínio dialético he-
Dentro das várias orientações que assume essa teoria e antes de serem geliano, porém, eclético no tocante a essas duas orientações e mais com
fornecidos maiores esclarecimentos acerca dos elementos que envolvem o respeito ao causalismo e ao finalismo.
conceito de conduta culposa, será preciso distinguir duas orientações básicas, 237. Esta preocupação está bem presente em WESSELS-BEULKE. Strafrecht, AT, 2001, p. 25, e JESCHE-
que, ainda que não se vinculem entre si quanto à estrutura do delito, se sub- CK-WEIGEND. Nota 7, p. 222.
238. RADBRUCH, Gustav. “Zur Systematik der Verbrechenslehre” in Festgabe für Frank, 1930, tomo I,
metem ao mesmo ponto de partida da noção de valor e retratam a conduta p. 162; idem, Der Handlungsbegriff in seiner Bedeutung für das Strafrechtssystem, 1904, reimpres-
são, Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 1967, p. 143; do mesmo modo, SCHÖNKE-SCHRÖDER-
punível em geral. Desde que se formaram os sistemas da teoria do delito, -LENCKNER. Strafgesetzbuch, Kommentar, 1991, pré-anotações ao § 13. Como Radbruch adotava
um modelo neokantiano de teorização, era normal que, muitas vezes, utilizasse não apenas elementos
sedimentados na experiência, próprios do positivismo, mas também juízos de valor, que expressavam,
de um modo ou de outro, uma concepção mista, derivada de sua vinculação a uma norma fundamental,
235. WESSELS-BEULKE. Strafrecht, AT, 32ª edição, 2002, p. 224. tal como na proposta de Kelsen, que, no fundo, representava uma criação axiológica sobre a qual iria se
236. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 222 et seq.; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 27 et seq. assentar a elaboração jurídica.
112 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 113

A análise das concepções normativa e social, com todos os seus corre- o qual só pode ser pronunciado no âmbito do tipo legal, se torna impossível
latos e variações, só pode ser feita através de certa redução metodológica, em atender-se àquele requisito com um conceito prévio de ação, já que inexiste
que se questionam unicamente os aspectos estruturais do sistema. Como um juízo de valoração que possa ser enunciado ex ante.239
são muitos e variados seus adeptos e formulações, toda investigação jurídi- De todas as variações previstas, entende-se por normativista a posi-
co-penal não se tornaria possível de ser aqui realizada sem tal metodologia. ção doutrinária que, embora não desconhecendo, às vezes, o conceito de
Dessa forma, procuraremos enfatizar a análise apenas dos autores que se ação, subordina-o, contudo, a categorias jurídico-penais, de tal forma que
disponham, bem ou mal, a seguir um sistema, isto é, a fazer indagações se torne diluído na configuração do tipo de injusto e em sua estrutura,
globais sobre a teoria do delito. Só em casos excepcionais far-se-á remissão pouco importando, nesta caracterização, que se admitam teses já expostas
a outros trabalhos, quando, por exemplo, representem alguma contribuição por outras doutrinas, pois a ação jamais será tomada como elemento da
decisiva, fundamentadora ou reformuladora de qualquer das orientações experiência ou como categoria do ser.
aqui discutidas. Relativamente à doutrina brasileira, por exemplo, tendo
em vista seu ainda incipiente desenvolvimento sistemático, apesar de algu- O debate em torno do conceito normativo de ação poderia parecer,
mas valiosas contribuições individuais, será ela sempre remetida, quando à primeira vista, reduzir-se ao esquema de um conceito unitário do delito,
se relacionar com o assunto enfocado. ao estilo da escola técnico-jurídica. Entretanto, todos os autores partidários
dessa teoria, hoje em evidência, são concordes em refutar um conceito uni-
2. A TEORIA NORMATIVISTA tário de delito e reafirmar a validade do seu conceito analítico, fazendo dele
Não há unidade de pensamento na teoria normativista. Seus adeptos seu material de pesquisa e de elaboração discursiva.
divergem uns dos outros em muitos pontos importantes da teoria do delito, BOCKELMANN, particularmente, configura sua própria teoria do
de tal modo que, quando se tenta obter nisso tudo uma sistematização, delito, através da consideração do tipo de injusto e, com isso, chega à con-
sempre se corre o risco de perda e confusão metodológica. Em sequência, clusão de que todo o embate doutrinário em torno do conceito de ação se
serão revistas as contribuições de seus teóricos mais importantes, tendo por encontra superado e deve ser abandonado da investigação jurídico-penal.
base seu denominador comum, que é o de prescindir de um conceito pré-tí- Apesar disso, não desdenha, por sua vez, as conquistas do finalismo, notada-
pico ou naturalista de ação. mente, quanto à divisão do tipo de injusto em duas partes, uma subjetiva e
(1) O CONCEITO DE AÇÃO outra objetiva, em que a primeira inclui todo o complexo dos elementos sub-
jetivos do delito, inclusive a negligência, e a outra diz respeito à ação causal.240
O conceito normativista de ação passa por algumas dificuldades de
sistematização. Alguns, por exemplo, como é o caso de BOCKELMANN, SCHMIDHÄUSER evita formular uma teoria do delito segundo
simplesmente desconsideram o conceito de ação, sem muitas preocupações e o conceito de ação, entendendo que a característica básica do fato ju-
partem para a elaboração de conceitos próprios, especificamente pragmáticos; rídico-penalmente relevante se resume em seguir uns poucos elementos
outros, como SCHMIDHÄUSER, buscam elaborar um todo sistemático, conceituais, sem subordinar-se a conceito geral e abrangente. Essa ordena-
a partir de uma base positivista e intentando superar, através de novas pers- ção deve-se dirigir, em primeiro lugar e sobretudo, a um fim pragmático
pectivas, os dogmatismos dos sistemas dominantes. Mais recentemente, e, ao mesmo tempo, ético, respectivamente, à aplicação do direito e à
FREUND ressalta ser absolutamente sem sentido perquirir-se sobre um imposição, como consequência, de uma pena justa.241 Dessa forma, parte
conceito pré-jurídico de ação, uma vez que nenhum dos conceitos até hoje
propostos pôde preencher corretamente seus requisitos básicos, pelo menos o 239. FREUND, Georg. Strafrecht, AT, Berlin-Heidelberg-New York: Springer, 1998, p. 23 et seq.
240. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 51 et seq.; com orientação semelhante, GIMBERNAT ORDEIG,
de fazer da conduta humana um objeto capaz de sofrer o juízo jurídico-penal Enrique. Estudios de derecho penal, 1976, p. 90 et seq., para quem os conceitos de ação são inidôneos
de valoração. Tendo em vista que o objeto de valoração, no caso, a conduta para fixar o conteúdo da proibição penal que tem sido estabelecida pelo legislador, vindo a operar, pre-
ferencialmente, com conceitos normativos de conduta.
humana, fica sempre na dependência da característica do juízo de valoração, 241. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 144 et seq.
114 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 115

de uma consideração normativa e fundamenta seus argumentos em base a administração pública, os quais são por elas protegidos diretamente; b)
clássica, no que não discrepa muito da teoria causal. Os elementos do as normas sancionatórias se referem a uma modalidade particular de bem
delito são tratados, mais ou menos, segundo a formulação tradicional de jurídico, que é a vigência das normas de conduta.247 Assim, o processo de
LISZT-BELING, apenas modificando-se em dois aspectos essenciais: no incriminação compreenderia dois estágios: um, referente à contrariedade a
tocante às condições objetivas de punibilidade e à culpabilidade. As con- uma norma específica de conduta, tipificada na lei penal, o chamado juízo
dições objetivas da punibilidade, por exemplo, fariam parte do conceito de de injusto;248 outro, relativo à sanção, o chamado juízo de culpa.249
delito, integrando, juntamente com outras causas de extinção e exclusão da
(2) A ESTRUTURA DO TIPO E DA CULPABILIDADE
pena, o elemento denominado de momentos do fato relativos à punibilidade
da conduta ou características suplementares do delito.242 Igualmente, não há comum acordo entre os normativistas quanto à
estrutura do tipo de injusto e da culpabilidade. Aqui, mais do que em qual-
FRAGOSO, antes de sua filiação ao finalismo, entendia ser a conduta
quer outro elemento do delito, tomam-se atitudes completamente diversas
obra do mundo dos valores, tomada no sentido geral e comum da atividade
da doutrina tradicional, mais na fundamentação da culpabilidade do que,
humana, que só adquiria significado penal, quando tratada no tipo de injus-
propriamente, em sua constituição. Ponto comum, porém, pode-se observar
to.243 Este, por sua vez, era tomado como o “conjunto da parte exterior da
em BOCKELMANN e SCHMIDHÄUSER que excluem do conteúdo da
conduta punível, à qual deve ajustar-se a parte subjetiva do fato, correspon-
culpabilidade o princípio da liberdade de vontade, que entendem não estar
dente à culpabilidade”.244 Dessa forma, compreendia o delito nos moldes do
apto a resolver as questões ali propostas.
sistema causal, em que todo o objetivo pertenceria ao injusto, todo subjetivo
à culpabilidade. Isto é o que resulta de sua afirmativa de que são inconcebíveis (A) A CONCEPÇÃO DE BOCKELMANN
elementos subjetivos no tipo,245 bem como de que a antijuridicidade deve
ser tomada exclusivamente no sentido objetivo. Esta conclusão foi tomada BOCKELMANN parte do princípio de que a realização da ação
após a elaboração da Conduta punível, quando FRAGOSO passa a ocupar-se típica, em seus elementos objetivos e subjetivos, que se referem ao dolo e à
da questão da antijuridicidade e, após fazer uma análise exaustiva de suas negligência, não fundamenta unicamente o tipo de injusto, mas também
teorias, expressa que “embora vivamente criticada, a concepção objetiva da o denominado tipo de culpabilidade. Entretanto, a realização dessa conduta
antijuricidade deve, a nosso ver, ser mantida”.246 típica, por si só, não contém todos os elementos capazes de justificar o juízo
de censura de culpabilidade, razão pela qual, além do tipo de culpabilidade,
FREUND pretende subordinar a estrutura do delito ao sistema cons- entram nesse juízo outros fatores referentes à capacidade de entendimento
titucional, partindo, antes de tudo, da questão relativa à legitimidade da e autodeterminação, ao conhecimento ou à possibilidade de conhecimen-
pena, como instrumento adequado e racional de proteção de bem jurídico. to da proibição de sua atividade e outras circunstâncias excepcionais que
Conforme essa tarefa de proteção, devem ser reconhecidas duas espécies de exijam um comportamento diverso.
bens jurídicos, correspondentes a duas espécies de normas: a) as normas de
conduta, proibitivas ou mandamentais, dizem respeito aos bens jurídicos A culpabilidade consiste, por conseguinte, em juízo acerca de que o
individuais ou coletivos, como a vida, a integridade física, o patrimônio, autor tomou uma falsa decisão de valor, tendo dado sua preferência pelo
injusto e não pelo direito. Só depois de se conjugarem elementos do tipo de
242. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 382 et seq.
culpabilidade e os referidos ao entendimento e conhecimento da proibição
243. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Conduta punível, São Paulo, 1961, p. 175 et seq.; do mesmo modo, RO- e à exigibilidade é que se complementa a teoria da culpabilidade.250
DRÍGUEZ DEVESA, Derecho penal español, pg, 1976 et seq.; em situação semelhante, MORAES
FILHO, Benjamim (Crimes sem ação, 1941), o qual, embora negue a existência da ação em certos
delitos, se subordina à previsão legal, vindo a filiar-se, indiretamente, a um conceito normativista.
244. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 243, p. 201. 247. FREUND, Georg. Ob. cit., p. 10.
245. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 243, p. 201 et seq. 248. FREUND, Georg. Ob. cit., p. 25 et seq.
246. FRAGOSO, Heleno Cláudio. “A antijuridicidade”, in Revista Brasileira de Criminologia e Direito Pe- 249. FREUND, Georg. Ob. cit., p. 107 et seq.
nal, nº 7, 1964, p. 45. 250. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 58 et seq.
116 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 117

Tendo em vista a aplicação da pena, BOCKELMANN propõe ainda comportamento volitivo e estava em contacto com o valor.254 Assim, pretende
uma distinção entre a culpabilidade, compreendida como tipo de culpa e prescindir de qualquer referência à liberdade de vontade, como pressuposto
outros elementos da censura, e a culpa em sentido amplo, abrangente do tipo e fundamento da culpabilidade.
de injusto e da culpabilidade. Esta culpa teria importância para a individua- Relativamente à remodelação do conceito de ânimo conforme ao direi-
lização da medida penal, pois – assim entende – seu fato central reside no to, entende que se trata de uma postura espiritual de valor, de certa duração,
“injusto culpado”.251 Para a fundamentação da culpabilidade propriamente dirigida à realização de ideais éticos.255 De acordo com isto, seria a culpabili-
dita, tomada no sentido de uma censura acerca da falsa decisão de valor dade o elemento negativo do bom ânimo, isto é, o comportamento espiritual
do agente, afasta-se inteiramente do problema da liberdade, propondo sua da pessoa, eticamente contrário ao valor.256
substituição por critérios práticos, ou seja, de que tudo deve ser resolvido
segundo o sistema de orientação da maioria dos membros da comunidade Sistematicamente, compreende a culpabilidade como tipo de culpa
jurídica, isto é, dos cidadãos. (Schuldtatbestand), ou seja, a culpabilidade se fundamenta, como elemento
do delito, através de componentes legais caracterizadores e suplementares
Portanto, para determinar-se o fundamento da culpabilidade, ou de de uma situação de fato desvalorada, que se expressa já no tipo de injusto,
que se possa decidir de acordo com o valor, vigora unicamente o fato de tomada aqui, entretanto, no aspecto de conduta espiritual de valor.257 Esses
que, sem prejuízo de diferenças de caráter ou temperamento, os homens se componentes legais englobam a participação ou sociabilidade espiritual do
deixam conduzir faticamente pelas normas jurídicas. A constatação empírica autor (imputabilidade), sua experiência de desvalor atual e específica (dolo)
desse fato legitima e justifica a censura e a punição.252 Esta invocação empírica ou a possibilidade subjetiva de tal experiência (negligência) e, ainda, ele-
faz BOCKELMANN tecer cerrada crítica ao princípio do livre-arbítrio, de mentos especiais de culpabilidade. Nessa estrutura, o dolo e a negligência
certa forma, o princípio que sempre fundamentou a culpabilidade de vonta- representam o ponto nevrálgico da formulação, como elementos da imputação
de, asseverando que “se se tomar, seriamente, a suposição de que o homem subjetiva.258 As causas de exculpação têm fundamento normativo, segundo
pode optar livremente diante de alternativas de conduta, sem necessidade de o qual o que efetivamente se deve levar em conta não é a inexigibilidade
seus fundamentos na qualidade das causas, alcança-se não a afirmação, mas de outra conduta, mas, simplesmente sua constituição de valor, que torna
a negação de sua responsabilidade. Se a resolução volitiva não possui causas, compreensível a lesão do bem jurídico.259
não tem, igualmente, uma causa na pessoa de quem se exprime”.253
(3) OS FUNDAMENTOS DA NEGLIGÊNCIA
(B) A CONCEPÇÃO DE SCHMIDHÄUSER O fato de que se deva prescindir de um conceito genérico de ação, para
A culpabilidade é para SCHMIDHÄUSER a pedra de toque de seu enfocar o delito sob o prisma do tipo legal, não se torna indiferente, quando
sistema. De início, da mesma forma como ROXIN, elimina o princípio se pretende solucionar o problema da estrutura do delito negligente. A con-
abstrato do poder atuar de outro modo (exigibilidade de outra conduta) do sequência lógica imediata dessa concepção é a busca de uma determinada
âmbito de fundamentação da responsabilidade. Com isso, regressa a um fundamentação normativa que apoie essa estrutura e a justifique, bem como
conceito psicológico de culpabilidade, enxertando-o com aspectos valorativos a caracterização do fato negligente segundo os interesses do legislador em
próprios. A par disso, busca outro conceito para o ânimo adverso ao direito, face da lesão de bem jurídico ou na criação de deveres jurídicos. Já de início,
em contraposição à culpabilidade de caráter de WELZEL. A culpabilida- nota-se divergência quanto à posição sistemática da negligência. Enquanto
de vem a ser, então, a conduta lesiva ao bem jurídico, com base em que o
254. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 118 e 290.
autor individual não levou espiritualmente a sério o bem jurídico lesado pelo 255. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Gesinnungsmerkmale im Strafrecht, 1958, p. 116.
256. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 255, p. 172 e 182.
251. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 59 et seq. 257. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 283 e 289.
252. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 59. 258. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 302.
253. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 108. 259. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 364 e 365.
118 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 119

BOCKELMANN, por exemplo, se situa na linha de consideração autôno- dever de cuidado tem o caráter de um não-fazer, mas diferentemente do que
ma, ou seja, quer ressaltar a característica da negligência como espécie de acontece com os delitos omissivos impróprios dolosos, o delito negligente
delito, SCHMIDHÄUSER ainda continua fiel ao sistema da dependência, não pressupõe um dever especial de garantidor, mas apenas um dever geral
tratando-a como forma de culpabilidade. Essas divergências, entretanto, não de atendimento,263 o que, evidentemente, o aproxima dos delitos omissivos
decorrem de puro acaso, mas, sim, de pontos de partida diferentes quanto próprios. Assim, a medida desse cuidado estaria ligada à noção do homem
à construção dos tipos penais e à participação da norma em sua elaboração. prudente e consciencioso, situado na posição concreta do autor, confor-
me, inclusive, a posição dos finalistas.264 Para integralizar o tipo de injusto
(A) A CONCEPÇÃO DE BOCKELMANN objetivo, seria indispensável, além disso, que à lesão a esse dever de cuida-
BOCKELMANN fundamenta-se em que as normas de direito penal do se agregasse um raciocínio hipotético de eliminação, isto é, de que seu
devem estar baseadas ético-socialmente e incrementar, assim, um juízo de atendimento pudesse ter evitado a lesão ao bem jurídico.265 O tipo subjetivo
desvalor que recai no seu primeiro degrau, não só sobre o efeito, mas sobre compreenderia a previsibilidade ou a previsão do resultado, possibilitando a
a estrutura da conduta que o produziu. A atuação jurídica, em suma, é re- diferença entre a culpa consciente e a culpa inconsciente. A previsibilidade
tratada através do desvalor do ato e do desvalor do resultado.260 Objeto da seria deduzida da forma de prognose posterior, portanto ex ante e segundo
atuação penal, porém, não é todo acontecimento natural involuntário, mas medidas objetivas, em que, por conseguinte, não se cogita das condições
modalidades defeituosas de conduta. Por consequência, a primeira questão pessoais e defeitos do autor, que seriam matéria exclusiva da culpabilidade.266
proposta é a de se determinar que circunstâncias constituem a qualidade A culpabilidade constituir-se-ia da imputabilidade e também dos
especificamente defeituosa da conduta humana, que possam fundamentar o elementos objetivos e subjetivos. Na culpa consciente, seria observada a
juízo de desvalor jurídico. Em resposta a esta questão, apresenta, em primeiro decisão defeituosa da vontade, e, em virtude disso, deveria sofrer o agente
plano, o dolo e a negligência. a reprovação da ordem jurídica nos mesmos moldes do que ocorre com
O fato doloso seria defeituoso, porque o autor sabe o que faz, ou não os crimes dolosos. Na culpa inconsciente, porém, a culpabilidade não se
faz, e através desse conhecimento não se abstém da realização do fato, como deveria situar na liberdade de vontade, pois isto, para BOCKELMANN,
deveria fazê-lo.261 O defeito no fato culposo subsiste na lesão do cuidado seria incompatível com a ausência de previsão do resultado, mas, sim, no
exigido no relacionamento. Esta lesão seria um elemento subjetivo, mas de- próprio desconhecimento do risco para com o bem jurídico, quando o
terminado segundo critérios objetivos e gerais, e fundamentaria o desvalor agente tomasse a iniciativa do agir.267 Esta mescla de elementos subjetivos
do fato negligente. Com sua constatação, porém, não se estará prejulgando e objetivos na culpabilidade tem semelhança com a posição assumida por
acerca da culpabilidade, que depende de se decidir se pode o agente ser re- ROXIN, de que não se pode falar, neste terreno, de puro juízo de reprova-
provado em virtude dessa lesão ao dever de cuidado.262 A diferenciação entre ção, sem componentes materiais sobre os quais deva ele recair.
dolo e negligência, que se faz, portanto, no âmbito do tipo de injusto, pois aí
se processam os juízos de desvalor das normas penais, engendra tratamento (B) A CONCEPÇÃO DE SCHMIDHÄUSER
diverso para os fatos dolosos e negligentes. Apresentando-se com sistema acabado, SCHMIDHÄUSER lança-se
igualmente à tarefa de fundamentar a constituição da negligência dentro da
No setor do tipo de injusto, BOCKELMANN divide e separa a parte
estrutura do delito. Nisso, porém, ao contrário dos autores anteriormente
objetiva da subjetiva. O tipo objetivo seria composto, no caso dos delitos
citados, assume atitudes próximas demais do causalismo, pois começa a
negligentes de resultado, da causação desse resultado e da lesão ao dever de
cuidado. Enquanto a causação representa uma atividade, um fazer, a lesão ao 263. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 150 a 156.
264. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 152 e 157.
260. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 52 et seq. 265. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 157.
261. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 54. 266. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 153.
262. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 56. 267. BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 158 et seq.
120 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 121

compreender a negligência como elemento apenas da culpabilidade, ao fundamento como elemento da culpabilidade, em que desempenha papel
lado do dolo. Apesar dessa colocação sistemática causal-naturalista, a ne- preponderante o chamado ânimo adverso ao direito.
gligência não funciona como mera forma de culpabilidade, mas como um O ânimo adverso ao direito é representado, em SCHMIDHÄUSER,
dos elementos que fundamenta a imputação subjetiva do fato contrário ao como a constituição psicoespiritual do autor. Possibilitará ela o conheci-
direito como culpabilidade.268 mento do fato e do injusto, como pressuposto da culpabilidade, evidenciada
A negligência passa a ser conceituada através de dois aspectos essenciais: através de um juízo sobre o defeito no comportamento espiritual do autor.272
os lados negativo e positivo. O lado negativo resulta da comparação com o Para determinar-se a culpabilidade, é indispensável partir-se de dois
dolo, pelo qual se conclui que, na negligência, falta sempre, quando já não a aspectos: a) da determinação de por que e como um conhecimento é con-
consciência do fato, a consciência do injusto. O lado positivo é deduzido da siderado existente, embora na realidade não tenha existência; b) da solução
essência da culpabilidade. A negligência caracteriza a constituição psicoespiri- ao problema da liberdade de vontade na negligência.
tual que possibilita ao autor, no momento em que começa ou continua a atuar
de modo não permitido, a ter consciência do fato injusto. Essa consciência, na O fundamento da culpabilidade pelo conhecimento potencial do fato é
realidade, não existe, se resume a um juízo de mera possibilidade.269 dado, primeiramente, pela experiência de que o homem pode tirar conclusões
em seu pensamento e chegar, com base em determinados conhecimentos,
Do lado positivo, SCHMIDHÄUSER entende que a negligência é, assim a certos reconhecimentos da situação de fato, de modo muito rápido e até
como se passa com o dolo, uma conduta espiritual lesiva a bens jurídicos, mesmo puramente abstrato. Se for possível saber-se que conhecimentos possui
destarte, um posicionamento interno contrário ao direito. Se o agente tivesse um homem acerca da situação de fato, pode-se dizer que este, pressupondo
tomado a sério o bem jurídico lesado, teria obtido sucesso com a consciência sua normalidade, seja capaz de reconhecê-la em determinada situação.273
do fato e, daí, com a consciência do injusto, omitindo-se da ação planejada.270 Sobre essa capacidade de o ser humano, com base em seus conhecimentos,
Do lado negativo, pode ela ser manifestada através da culpa consciente e da reconhecer a situação de fato, é que se assenta o juízo de culpabilidade da
culpa inconsciente. Em ambas, o autor não está consciente acerca do aconte- negligência, assomando-se, como seus elementos, precisamente a lesão ao
cimento e não se importa com os apelos de valor do bem jurídico em questão. bem jurídico e o apelo de valor.
Dessa forma, mesmo na culpa consciente, reconhece SCHMIDHÄUSER que O juízo de culpabilidade significa, então, que o autor não tomou a
falta ao autor a consciência acerca do acontecimento, ou seja, sobre a verificação sério as exigências da ordem jurídica,274 embora sempre fosse capaz de fazê-lo.
do resultado, porque, aqui, embora tenha tido, na verdade, consciência inicial Parte-se, pois, do raciocínio de que alguém que tome a sério as pretensões
da situação de fato e de tal resultado, nega essa possibilidade de verificação do protetivas dos bens jurídicos, controla suas ações no sentido das exigências
resultado no momento em que começa a agir. O autor exclui, por conseguinte, de conduta do seu meio; de que, por fim, reconhece o fato injusto quando
de sua mente os elementos fáticos que servem de base ao apelo de valor, não se este lhe seja reconhecível.
importando com este, de modo inconsciente, quando de sua atuação. Falta ao
autor, na culpa inconsciente, inclusive, aquela consciência inicial da existência Aqui surge um problema: como determinar quando o fato injusto
de uma situação de fato e de tal resultado.271 deva ser considerado como reconhecido? SCHMIDHÄUSER considera seu
reconhecimento ou sua reconhecibilidade quando houver consciência parcial
O lado negativo da negligência tem importância para diferenciá-la suficiente para que o autor, com o auxílio do conhecimento da experiência
do dolo. Seu lado positivo, por outra parte, marca efetivamente o seu que lhe seja disponível, possa relacionar suas conclusões ao fato concreto

268. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 302.


269. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p.303. 272. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 352.
270. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 346. 273. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 346 et seq.
271. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 339 et seq. 274. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 347.
122 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 123

iminente, contrário ao direito.275 negligência e, assim, da culpabilidade, porque o fato não pôde ser previsto.278
No que toca à questão da liberdade de vontade, procura SCHMI- A previsão do resultado inclui-se, portanto, na problemática da
DHÄUSER superá-la, afirmando que tudo se resolve com a conclusão de consciência parcial do fato, precisamente no setor da individualização do
que o autor normal, com base no sentido da culpabilidade, pode dirigir sua conhecimento da experiência geral. Dessa forma, para determinar-se o limite
conduta segundo os valores objetivos. Assim, não se cogita sobre se o autor da responsabilidade, deve-se operar com a relação entre o conhecimento da
pôde, mas não realizou; simplesmente, afirma-se que não tomou espiritual- experiência geral e o fato verificado. Se o agente, na prática do fato, revela
mente a sério o bem jurídico ou que teve, relativamente ao fato contrário ao desconhecimento da experiência, de modo a não tornar possível a consciência
direito, contato com o valor.276 É justamente essa ligação direta de contato com total do fato, estará excluído de culpabilidade.
o valor que caracteriza, por outro lado, a culpabilidade e substitui o dogma Um exemplo ilustrará melhor essa problemática: a avó, que mora na
da liberdade de vontade, pois mesmo reconhecendo-se esse contato com o zona rural e vem, pela primeira vez, à cidade, desconhecendo que as portas
valor, não se questiona, mais além, se, com isso, poderia ter-se conduzido de do metrô se fecham automaticamente, depois de certo tempo, não agirá cul-
outra maneira. O reconhecimento de que o agente estava em contato com o posamente ao não atentar para a curta distância que os separa das portas, de
valor basta ao juízo de culpabilidade. tal modo que estas possam espremer o braço da criança, que de brincadeira
Por outro lado, fazendo da negligência um elemento da culpabilidade, o mantém esticado em seu vão, enquanto abertas; se, porém, a avó adquirir
SCHMIDHÄUSER adota, no tipo de injusto, os mesmos fundamentos do esse conhecimento da automação das portas, através dessa experiência desas-
causalismo, vendo-o unicamente como a realização causal de resultado lesivo trosa, deverá estendê-lo a situações semelhantes, também inclusive a outros
ao bem jurídico. meios de transporte, podendo, com isso, alcançar a consciência total do fato.
De todos os problemas suscitados por SCHMIDHÄUSER, interesse Depois disso, já não se poderá isentá-la de culpa.279
especial deve merecer o da previsibilidade. Partindo-se de que a negligência é, ao (4) CRÍTICA À TEORIA NORMATIVISTA
mesmo tempo, estabelecida pela ausência de consciência do fato e do injusto e
Ao afirmarem que a ação jurídico-penalmente relevante é tão-só a ação
pela desconsideração do agente para com a proteção do bem jurídico, embora
típica, os normativistas abandonam a discussão em torno de seu conteúdo e
estivesse em contato com o valor, chega-se, à primeira vista, à conclusão de
passam a deduzir-lhe os princípios, exclusivamente, do postulado da legalidade.
que a previsibilidade não tem aqui lugar e que, ademais, não há possibilidade
Com isso, por um lado, deixam de abordar os pressupostos da incriminação,
de reconhecimento de causas de exculpação dentro da rigidez desse sistema.
simplificam o problema e escapam das grandes dificuldades que daí derivam.
O autor, contudo, fornece esclarecimentos nesse sentido, salientando Por outro lado, chegam à mesma conclusão do positivismo jurídico, pois fazem
que, na negligência, ao falar-se da falta de consciência do fato, não se quer com que tudo dependa da norma e através dela se expresse. Essa posição assume
negar, pelo menos, uma consciência parcial desse fato. Essa consciência par- hoje mais importância do que parece, quando, por exemplo, se verifica sua
cial vigora, também, inexplicavelmente, para caracterizar o injusto e se refere adoção por ilustres penalistas da atualidade e, além disso, pela imensa maioria
à possibilidade de o autor, com base em seu conhecimento da experiência dos autores brasileiros ainda fiéis ao tecnicismo unitarista de ROCCO. Igual-
geral e conforme sua constituição espiritual momentânea, alcançar oportuna- mente se pode dizer que ela representa um retorno ao classicismo e à escola de
mente a consciência total do fato.277 Em alguns momentos, essa consciência BINDING, ainda que mediante o ajuste com a realidade vigente e as conquis-
parcial pode apresentar-se de tal maneira debilitada, que o autor não possa tas da teoria do tipo, da antijuridicidade e da culpabilidade.
mais chegar à consciência total do fato. Neste caso, dá-se lugar à exclusão da
Tomando-se o delito como composto apenas de tipicidade,
275. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 347.
276. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 336, 348. 278. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 350.
277. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 349. 279. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 351.
124 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 125

antijuridicidade e culpabilidade, independentemente do conceito de ação, um sistema integral do delito, no qual se incluem aquelas espécies sob mesmo
assume-se a postura unitária ou, pelo menos, se chega até ela, indiretamente. e único enfoque, como ocorre, por exemplo, com SCHMIDHÄUSER, que
Essa solução simplista de eliminar o conceito de ação da teoria do delito não edifica a culpabilidade de todos os delitos com base no valor e não na liber-
significa progresso, como pretendem seus partidários, mas, sim, retrocesso. dade de opção, o que vem demonstrar absoluto desprezo por tudo que diga
Mesmo que se admita, com ROXIN, que isto não impede a liberalização do respeito ao conteúdo empírico da atividade humana.
direito penal, nem conduz a consequências arbitrárias, pois estas não depen- Como as propostas dos diversos autores de concepção normativa variam
dem apenas de concepções, mas da maneira como a lei é aplicada e dos fins em seus desdobramentos, será conveniente fazer-se uma crítica individuali-
a que se destina, está em desacordo com o raciocínio de que o direito deve zada de cada um deles, até mesmo para seguir um caminho metodológico
retratar a realidade e não pode existir alheio a ela. mais apurado. Nessa crítica, evidentemente, não se pode perder de vista a
Ainda que se considere, como, aliás, pondera HAFT, que o conceito sistemática da teoria do delito, a partir de seus componentes essenciais: da
de ação, tal como proposto pelas teorias tradicionais, tem pouca serventia ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
para o direito penal e apenas se limita a possibilitar a delimitação dos casos
Assim, BOCKELMANN dificilmente convence, quando afirma en-
de não-ação, não se pode descartar que um mínimo de características da
contrar-se superado todo embate doutrinário em torno do conceito de ação.
conduta humana deve ser levada em conta na elaboração de um conceito de
Logo em seguida, ao procurar deduzir um sistema próprio a partir do tipo
delito. Isto não significa que o conceito de ação, como tentaram fazer crer
de injusto, segue as pegadas do finalismo, propondo a separação entre delitos
os finalistas, esteja permanentemente subordinado a um conteúdo ontoló-
dolosos e negligentes. Ora, essa separação exige, como ponto de partida, pelo
gico, quer como dado do ser, quer como categoria lógico-objetiva. O que se
menos metodológico, a consideração do sentido da conduta, o que demonstra
deve exigir do legislador, em qualquer hipótese, é sua subordinação a dados
a insubsistência de um conceito puramente normativo de ação. O próprio
empíricos que possam ser submetidos a juízos de verificabilidade, quer dizer,
BOCKELMANN, ao justificar normativamente o delito doloso, conclui que
o conceito de ação, dentro de certas características mínimas, deve servir de
o desvalor da conduta reside, aqui, no fato de que o autor sabe o que faz ou
filtro inicial ao poder punitivo, que não pode, assim, retratar como conduta
não faz e, apesar disso, não se abstém da realização do fato. Em face disso, o
aquilo que for produzido, exclusivamente, no plano subjetivo ou normativo.
dolo passa a fazer parte do tipo de injusto. Ao contrário do finalismo, porém,
Se assim não se procedesse, resultaria que o direito, porque ciência do dever-
que alcança essa conclusão por via necessária de sua teoria de ação, BOCKEL-
-ser, poderia ultrapassar, sem limites, o conteúdo real das coisas e estabelecer
MANN não apresenta outra fundamentação de reforço para explicar por que se
seu conteúdo normativo, segundo suas próprias pretensões, estranhas às do
põe no mesmo caminho. Seu argumento é meramente interpretativo. Se o que
grupo social. A promulgação das normas deve estar associada ao real, dentro
vale é tão-só o sentido que se extrai das normas dispositivas, quer dizer, daquelas
do possível, para evitar formações abstratas inumanas.
normas auxiliares, mais crítica se toma sua posição em face de legislações que
Ademais, prescindindo-se do conceito geral de ação, não há como não preveem expressamente definições de dolo. Sua alegação, por exemplo,
estabelecer um meio de ligação entre as características da tipicidade, antiju- de que o objeto da atuação penal é constituído de modalidades defeituosas
ridicidade e culpabilidade, que poderiam ser tratadas de modo assistemático, de conduta, não ilide que, antes de se dizer o que seja uma ação defeituosa, se
sem qualquer coerência interna. Por outro lado, é absolutamente impossível deva declarar o que se entende pela própria ação. Toda interpretação da norma
obter-se apenas no âmbito normativo a almejada unidade conceitual do penal incriminadora, por outro lado, se tomada no sentido hermético, de algo
delito. Como se sabe, em virtude de estruturas típicas diversificadas, não será feito e acabado juridicamente, conduzirá à negação da própria interpretação,
possível cogitar-se de unidade no tocante aos delitos dolosos, negligentes e hoje assimilando basicamente conteúdos semânticos superiores à concepção
omissivos. Por questão de coerência lógica e sistemática, tais espécies de delito puramente gramatical e orientados à finalidade limitadora do direito penal.
devem ser tratadas separadamente e subordinadas a princípios próprios. Os
Relativamente ao fato culposo, ao seguir a posição moderna de que seu
partidários da teoria normativista, contudo, assim não entendem e constroem
126 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 127

fundamento se encontra na lesão ao dever de cuidado, BOCKELMANN normas jurídicas e, por isso, serão reprovados ao se constatar que violaram
não pôde evitar a adoção das teses finalistas, ao preconizar-lhes um trata- essa norma voluntariamente; nos últimos, de que os cidadãos que realizaram
mento diferenciado. Por outra parte, na construção do tipo de injusto do atividades contrárias ao dever de cuidado poderão ser reprovados, porque não
fato culposo se situa no mesmo plano de HAFT e MESTIERI, ao dividi-lo reconheceram devidamente que dessas atividades poderiam resultar eventos
em subjetivo e objetivo, ao incluir, no primeiro, a previsibilidade ou previ- proibidos pela lei. Vê-se, assim, que o juízo de culpabilidade, nesses dois
são do resultado, e, no segundo, a relação de causalidade e a lesão ao dever casos, não é o mesmo.
de cuidado. Com isso busca superar a herança causal de seu tempo, o que Em segundo lugar, ao diversificar esse juízo, o que pretende não é, na
pode ser notado, inclusive, com mais nitidez, no tratamento da negligência verdade, fundamentar a culpabilidade na culpa inconsciente, mas buscar uma
inconsciente, que está situada tanto no tipo de injusto como na culpabili- justificação para sua punibilidade, em face dos reclamos de política criminal.
dade, da mesma forma como o faz HAFT. Sua culpabilidade, por sua vez,
está fundada em critério diverso do que é postulado tradicionalmente, ou Tanto esse tratamento duplicado dentro do conteúdo da culpabilidade
seja, substitui o princípio da liberdade de vontade pelo princípio do desconhe- para o dolo e para a negligência, quanto esse pragmatismo político-criminal
cimento do risco para o bem jurídico. Ao desligar-se da liberdade de vontade não se encontram aptos a servir de modelo de construção sistemática do
como fundamento da culpabilidade, admite BOCKELMANN duas teses: delito e de fundamento de justificação da pena. Através do reconhecimento
a) primeiramente, constata e afirma a incompatibilidade entre liberdade de de duplo juízo de censura, com bases diversas, o que se faz é conturbar-se a
vontade e negligência inconsciente; b) em segundo lugar, atesta e assevera teoria do delito, de modo a torná-la confusa e cada vez mais excessivamente
a impropriedade de um conceito de culpabilidade calcado, exclusivamente, particularizada, a ponto de perder de vista seu caráter global. Partindo-se,
no poder de atuar de outro modo. A primeira tese corrobora a exposta por além disso, de princípios exclusivamente imediatistas e servidores da pu-
ARTHUR KAUFMANN; a segunda concorda com ROXIN. É evidente que nibilidade, o que se obtém é a desconsideração da crítica viva às normas
se pode considerar crítica a compatibilidade entre negligência inconsciente e incriminadoras e o constante assentamento dos institutos jurídico-penais
liberdade de vontade, fato este que sempre assolou a doutrina penal. Todavia, como pedras imutáveis de uma construção intocável, mas assistemática. Por
isto não deve implicar a substituição do fundamento da culpabilidade por fim, observando-se melhor o sistema proposto por BOCKELMANN, po-
outro critério, ainda não sedimentado e demasiadamente prático. de-se ainda questionar, da mesma forma como ocorre com o finalismo, a
medida da previsibilidade com base na noção abstrata do homem prudente
Se, por um lado, a fundamentação da culpabilidade no poder do agente
e consciencioso. Ao mesmo tempo, pode-se reconhecer validade à concep-
de atuar de outro modo não extrai todo o conteúdo com que se expressa o seu
ção da negligência como conduta omissiva, muito embora isto não esteja
juízo, por outro, a mudança de orientação, neste setor, tem permitido inúme-
suficientemente desenvolvido em seu trabalho. Esta última colocação traz o
ras teorias autoritárias e incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.
efeito de, dentro dos limites aí traçados, descartar a hipótese de delitos omis-
Especificamente, a fundamentação da culpabilidade no desconhecimento do
sivos negligentes autônomos, quer dizer, os fatos puníveis passam a compor
risco para o bem jurídico não pode subsistir por si só. Além de engendrar a
duas grandes divisões e tão só duas: os crimes dolosos e os crimes culposos.
quebra de unidade na teoria do delito, poderá conduzir a um pragmatismo
inconsequente. Com efeito, dizer-se que o que vale na culpa inconsciente, Por seu turno, o sistema proposto por SCHMIDHÄUSER contém
para fins de caracterização de sua culpabilidade, é apenas o desconhecimento o mesmo defeito básico de abstrair-se de um conceito geral de ação. Ade-
do risco que a atividade descuidada levava ao bem jurídico implica alterar mais, está em atraso diante das perspectivas de um direito penal do futuro,
significativamente seu enunciado. por considerá-lo segundo o ponto de vista da aplicação da pena justa. Ora,
precisamente neste aspecto, suas pretensões são altamente discutíveis e contra-
Em primeiro lugar, atribui dois fundamentos diversos à culpabilidade,
ditórias. Efetivamente, antes de tudo é absolutamente questionável se a pena
conforme se trate de fatos dolosos ou culposos. Nos primeiros, valeria o
pode ser considerada, de qualquer modo, como justo meio de repressão da
princípio de que, empiricamente, todos os cidadãos se deixam conduzir por
128 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 129

criminalidade, ou se o direito penal, diante de graves atividades antissociais, se destinam a infratores, na maioria dos casos, incapazes de entendimento
deve ainda permanecer como o único instrumento eficaz para a manutenção de e de autodeterminação, de pessoas cujos valores morais estão submetidos a
bens jurídicos. Esta ideia de vincular o direito penal à aplicação da pena justa outros parâmetros racionais, formados por meio de mecanismos ainda pouco
desconsidera inteiramente o fato de que, iniludivelmente, não há pena justa, evidenciados e, por isso mesmo, reconhecidamente estranhos a qualquer
uma vez que o próprio direito que a sustenta não é igualmente justo. Como se valoração psicoindividual.
pode extrair de um conteúdo injusto uma consequência sempre justa? Por outra Dos elementos singulares do delito, o mais discutível é a concepção de
parte, a própria pena tende hoje a se transformar e, em que pese aos esforços culpabilidade de SCHMIDHÄUSER. Nos demais, como estão basicamente
publicitários da mídia de fazer crer o contrário, a se extinguir diante de outros estruturados segundo a teoria causal, valem as mesmas críticas apresentadas a
meios de controle social mais eficazes e menos sangrentos. Abstraindo-se da esta concepção. A culpabilidade, agora baseada não mais na liberdade de vonta-
ideia de uma retribuição ética, segundo o modelo kantiano de justiça, o direito de, mas no ânimo adverso ao direito, deve ser discutida, porém, com minúcias.
penal não é um apêndice da teologia. É apenas um recurso estatal de ordenação,
daí dever ser visto com limitações. Essa posição do ânimo, aliás, tem sido bastante criticada pelos parti-
dários do princípio da culpabilidade de vontade e todos os que defendem
Se partirmos da ideia de que a finalidade básica do direito penal é a certa limitação ao poder estatal, dentre os quais se situa ARTHUR KAU-
aplicação da pena justa, estaremos pressupondo duas situações: a) a de que FMANN, que corretamente conclui ser ela incompatível com o direito
todas as penas previstas no Código Penal são adequadas e justas a priori, e liberal, bem como demasiadamente controvertida para servir de funda-
sua aplicação consiste em aproximar-se do que o legislador concebeu ao ela- mento seguro de responsabilidade.280
borar a lei, isto é, a aplicação nada mais é do que a atualização concreta do
sentimento ético; b) ou a de que o direito penal só pode adquirir dignidade, Na verdade, a teoria do ânimo adverso ao direito não deve ser intei-
quando se situe dentro de certa ordem moral extrajurídica, que lhe daria a ramente tributada a SCHMIDHÄUSER, pois, também, está incluída nas
orientação decisiva. obras de GALLAS, JESCHECK, LISZT-SCHMIDT, RADBRUCH e WES-
SELS, entre outros, e cuja origem deve remontar a MAX ERNST MAYER,
Essas duas situações, porém, estão muito longe da realidade. As penas ao definir o ânimo como um “complexo de qualidades de caráter, que se
previstas no Código Penal não são eticamente fundamentadas, mas obede- evidenciam em determinado domínio”.281 Mesmo que houvesse definido
cem a razões de oportunidade política do Estado; e o direito penal está cada o ânimo, MAX ERNST MAYER, contudo, em face de seu espírito liberal
vez mais distante da moral metafísica, sendo muito mais um produto de não se inclui entre seus partidários, vindo a afirmar que “toda culpabilidade
contradições sociais do que de realização ética. é culpabilidade de vontade”.282
A concepção de SCHMIDHÄUSER não se limita a negar a necessida- SCHMIDHÄUSER, entretanto, não se satisfez com as definições tradi-
de de uma teoria ontológica da ação, ou fundamentar eticamente o direito cionais de ânimo, propondo-lhe uma nova conceituação como “uma postura
penal, mas sim, ainda, elaborar a teoria do delito sem perder contatos com espiritual de valor, de certa duração, orientada à realização de ideais éticos”.283
a formulação causalista acerca do injusto. Afora a questão da ação, nada de Essa conceituação conduz à caracterização da culpabilidade como “elemento
novo acrescenta à teoria do delito, a não ser, por exemplo, a colocação das negativo do bom ânimo”,284 de tal sorte a tornar crítica a diferenciação entre
condições objetivas de punibilidade como elementos do delito, no que vem antijuridicidade e culpabilidade, a ponto de não se saber, em definitivo,
tocar na mesma tecla de que todo o direito penal tem por base a punibilida- do que trata uma e outra. Isto se acentua ainda mais, quando declara que,
de. Isto contraria, porém, tanto o nosso direito como o direito alemão, de
onde se origina o autor. Em ambos, ao lado da pena, se preveem também e, 280. KAUFMANN, Arthur. Das Schuldprinzip, p. 151.
281. MAYER, Max Ernst. Die schuldhafte Handlung und ihre Arten im Strafrecht, 1901, p. 51.
cada vez com mais intensidade, uma série de medidas socioeducativas ou de 282. MAYER, Max Ernst. Die schuldhafte Handlung und ihre Arten im Strafrecht, p. 35.
segurança, que jamais poderão ser intituladas de justas ou de injustas, pois 283. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 255, 1958, p. 69.
284. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 255, p. 172.
130 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 131

na antijuridicidade, está caracterizado o desvalor ético-social da conduta tipicidade e à antijuridicidade, mas também à culpabilidade. A definição do
volitiva, enquanto, na culpabilidade, se afirma outro desvalor ético, situado delito, sendo estrita e, ao mesmo tempo, abrangente de todos seus elementos
no ânimo contrário ao direito. Ora, a conduta volitiva antijurídica inclui, essenciais, não comporta derivações sobre a conduta de vida, o caráter ou a
obviamente, uma orientação contrária ao direito. Para sair desse impasse, postura de valor do indivíduo em face de preceitos éticos.286
SCHMIDHÄUSER procura complementar a noção de ânimo adverso ao No que diz respeito à negligência, são muitos os reparos que se podem
direito como conduta espiritual eticamente contrária ao valor. Como a noção opor a SCHMIDHÄUSER. O primeiro deles, de que a negligência integra
de culpabilidade prescinde, nesta colocação, da liberdade de vontade, está tão-somente a culpabilidade, estando o tipo de injusto já preenchido com
claro que aqui se trabalha com um dado comum também à antijuridicidade, a realização causal do resultado, implica adoção pura e simples do causa-
isto é, a conduta contrária ao valor (norma penal). A diferença entre ambas lismo, no que se sujeita às mesmas críticas a este formuladas. O segundo
só poderá ser evidenciada pelo atributo da espiritualidade ética, inquestio- é o de que, subordinando o tratamento da negligência na culpabilidade à
navelmente obscuro e complicado. concepção de valor, independentemente do pressuposto da liberdade de
Ademais, a posição do ânimo adverso ao direito, como fundamento da vontade, cria condições ao estabelecimento de uma responsabilidade pelo
culpabilidade, se apresenta insustentável também por outros motivos. resultado e pela personalidade, confundindo e obscurecendo, o que o di-
O primeiro motivo é o de que a culpabilidade não pode ser consi- reito sempre pretendeu simplificar e clarificar.
derada a partir de uma postura de “uma certa duração”, como pretende a Caracterizar-se a negligência, por exemplo, pela constituição psicoes-
conceituação de SCHMIDHÄUSER, pois o direito penal não trata de ações piritual do autor, que lhe possibilite, embora não ocorra na realidade, ter
gerais da vida, mas exclusiva e restritamente de ação única, manifestada na consciência do fato (o chamado lado positivo da negligência), mostra-se
realização do delito. incompatível com o atual estágio da culpabilidade e da teoria do delito,
O segundo motivo é o de que nem sempre será possível situar o ânimo pois significa simplesmente abandonar o critério tradicional da previsibili-
adverso ao direito sobre uma base ética, pois há ocasiões em que a atividade dade e passar a trabalhar com um conceito puramente abstrato de ânimo,
é delituosa (injusta), a culpabilidade penal está íntegra, e subsiste, contra- ainda não especificado e delimitado.
riamente, um ânimo eticamente bom (exemplo do ladrão que furta para Se o critério da previsibilidade é questionável diante da possibilidade de
distribuir aos pobres).285 justificar tanto a repressão como a liberalização, é, sem dúvida, mais simples
O terceiro motivo é o de que a teoria do ânimo é incompatível com do que o proposto por SCHMIDHÄUSER e está, hoje, mais apto a ser uti-
o princípio da culpabilidade pelo fato isolado, embora SCHMIDHÄUSER lizado pelos julgadores, com maior eficácia do que a referência à constituição
procure fazê-lo, socorrendo-se de KANT e colocando-se em oposição à sua psicoespiritual de valor, que, por si só, nada significa e pouco expressa.
própria tese, quando afirma que o que vale é unicamente o ânimo do fato Por outra parte, resulta absolutamente incompreensível afirmar-se que,
isolado. Contudo, não há como conciliar-se com o fato isolado um ânimo de na negligência consciente, o autor também não possui consciência do fato,
certa duração, a não ser que se modifique a definição proposta inicialmente. mas unicamente um conhecimento parcial dele, com base na experiência
Por fim, a culpabilidade pelo ânimo adverso ao direito merece, na própria, relacionada à fase inicial de sua atividade. Com essa concepção
mesma medida, os reparos feitos à culpabilidade de caráter de WELZEL, por acerca da negligência consciente se chega, facilmente, a admitir que, neste
contrariar o princípio da legalidade, disposto no art. 1o do Código Penal, que caso, se pune o autor exclusivamente porque, embora tivesse tido, alguma
exige, em qualquer caso, a definição do delito previamente ao seu cometi- vez, conhecimento de uma situação semelhante, dele não usou, ao realizar a
mento e no qual são assinalados, inclusive, os elementos referentes não só à 286. Desta forma crítica também se manifesta JÜRGEN BAUMANN (Strafrecht, AT, p. 369) para quem
“toda substituição da culpabilidade do fato isolado pela culpabilidade da conduta de vida significa su-
285. Exemplo derivado de fato ocorrido na região do Reno e relatado por ARTHUR KAUFMANN (Das bordinar o ponto de conexão da punibilidade ao domínio da liberdade de punir e representa, assim, um
Schuldprinzip, p. 152). atentado ao princípio da legalidade”.
132 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 133

atividade descuidada, ou seja, pune-se o autor pela falta de atualização de sua de vontade, que pode ser normativa (quanto a isto não há impedimento
experiência, hipótese que contrasta, de modo incisivo, com o bom senso e algum), da estrutura do delito, para substituí-la pela teoria do risco ou do
escapa do âmbito de uma política criminal realista, que deve estar empenhada ânimo, em vez de tornar garantida a liberdade individual e assegurar os
em proteger o cidadão de juízos arbitrários subjetivos, fundando-se sempre interesses dos cidadãos, mascara o verdadeiro sentido das normas penais.
na comprovação efetiva de que esse tivesse podido atuar de outro modo, Isto porque passa a estruturar o direito penal numa infração a um dever
porque consciente da situação de fato em que se encontrava. extrapenal e, portanto, esquece e ignora os pressupostos de incriminação
Da mesma forma, com essa conceituação, não se demarcam nitida- com base na lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos, cuja determinação e
mente os contornos e limites entre culpa consciente e culpa inconsciente, pois estrita individualização constituem o conteúdo das funções da norma penal.
ambas vêm substanciar-se no mesmo ponto de partida, nem se dá passo de- A adoção de tais fundamentos insere-se como verdadeira faca de dois
cisivo para separar a culpa do dolo. Com efeito, se a caracterização da culpa gumes diante da garantia individual e dos reclamos em favor da liberaliza-
consciente, a partir do princípio do conhecimento parcial do fato, tem como ção. Se, por um lado, os fins de política criminal que embasam a busca de
escopo fomentar uma renovação metodológica no sentido de diferenciá-la uma pena justa podem ser capazes de dar a alguns casos controvertidos uma
do dolo eventual, o que se consegue com isso cai por terra, quando SCH- solução adequada, por outro, notadamente por motivo da teoria do ânimo,
MIDHÄUSER afirma que esse conhecimento parcial do fato igualmente representam um regresso indevido à culpabilidade de caráter, pela conduta de
se dá com o dolo eventual e que a diferenciação pretendida só se opera no vida e, por que não, pelo sadio sentimento do povo, pela segurança nacional
setor da consciência do injusto. Na negligência consciente, faltaria sempre e outras criações semelhantes.
essa consciência, no dolo eventual ela existiria na forma de uma consciência Ao direito penal não interessa, em última análise, a estrutura de caráter
potencial.287 Incompreensível se torna essa tentativa de diferenciação, quando do agente, nem tampouco a maneira de ele se conduzir na sociedade, de se
se verifica que, na culpa consciente, por exemplo, a ausência de consciência ilustrar, de experimentar condicionamentos bons ou maus, mas o poder de
do injusto é incrementada através da falta de consciência integral do fato, que dispunha, no momento do fato, de realizar uma conduta adequada às
bem como que, em todas as formas de negligência, a ausência de consciência determinações ou proibições normativas. Fora disso, estar-se-ia violando,
do injusto é suprida pela potencialidade dessa consciência, exatamente do inquestionavelmente, o âmbito interno da personalidade do agente, em de-
mesmo modo como ocorre com o dolo.288 trimento do preceito da legalidade que, no sentido mais estrito e lógico,
Em linhas gerais, a concepção normativa de conduta não soluciona os quer significar que o Estado só pode interferir sobre o cidadão em face de
problemas suscitados na teoria do delito, em especial aqueles referentes ao sua conduta delituosa do momento e não de sua vida passada extrapenal.
fundamento da culpabilidade e aos critérios limitativos de responsabilidade Está isto, agora, se tornando cada vez mais evidente com a eliminação,
nos fatos culposos. nos códigos penais, da agravante fixa da reincidência específica ou da própria
Os ensaios de remodelação do princípio básico de culpabilidade de reincidência em geral (Código Penal alemão), com previsão de caducidade
vontade, ainda vigente entre nós e em quase todos os autores estrangei- da reincidência, com a substituição das medidas repressivas por métodos
ros, apresentados por BOCKELMANN e SCHMIDHÄUSER, longe de de tratamento, com o incremento cada vez mais intenso do sistema aberto,
sacramentarem a pureza de formulação, resultam obscuros e carentes de com extensão da suspensão condicional da pena aos condenados à reclusão,
logicidade interna. com a substituição da pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de
Por outro lado, ainda que, por exemplo, se possa negar a vinculação sub- direitos e, mesmo no campo do processo penal, com a impossibilidade de
jetiva entre agente e fato na culpa inconsciente, a eliminação da culpabilidade decretação de prisão preventiva em delitos culposos ou, como ocorre, por
exemplo, no Código de Processo Penal alemão (§ 154a), com a possibilidade
287. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 318, 330, 341 e 346. de se proceder à absorção de alguns delitos por outros.
288. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 352.
134 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 135

Todo esse conjunto de reformulações serve para indicar a atenuação das ENGISCH também se fundamenta no causalismo, quando articula ser
noções de reprovabilidade, com reflexos também no setor do injusto penal. a ação a produção de consequências sociais relevantes e calculáveis.292 O causa-
Ora, se os códigos penais se encaminham no sentido da atenuação de cir- lismo, aliás, só se dilui como ponto de apoio da teoria social de ação a partir
cunstâncias pretéritas, não se pode compreender como se deva justificar uma de MAIHOFER, para quem a ação será todo comportamento objetivamente
reprovação pelo caráter ou pela conduta de vida, quando estas circunstâncias dirigido no sentido de um resultado objetivamente previsível.293 Ainda que
nem se refiram à realização de um delito. se observe, aqui, a menção ao resultado, esse último enfoque se fixa mais na
coordenação da atividade com vistas a um objetivo e não faz derivar o con-
3. A TEORIA SOCIAL ceito de ação da ocorrência desse resultado. Assim, a ação será tomada como
A metodologia seguida pelos partidários da teoria social da conduta conduta eficaz e não simples causa de efeitos sociais. O resultado, por isso
procura, antes de tudo, estabelecer as tarefas de um conceito de ação com mesmo, não mais integra a ação, mas, sim, o tipo de injusto. Por outro lado,
vistas a determinar os fundamentos necessários pelos quais a obra do homem surpreendentemente, a direção volitiva não compõe a ação como tal, embora
pode ser caracterizada como uma conduta punível. Essa resposta – assim, faça parte de sua definição, devendo ser considerada, segundo o autor, ex-
entendem – não poderia ser obtida com o conceito de ação, mas por meio clusivamente como fundamento da matéria da autoria.294 Modernamente, a
da interpretação do tipo de delito. A tarefa do conceito de ação se esgotaria teoria social da ação ganha contornos definitivos e integradores de sistema
na caracterização e delimitação do conteúdo do comportamento humano, com as contribuições de JESCHECK e WESSELS. Este último classifica as
como âmbito setorial de um juízo prévio de imputação, situando-se, por isso várias diretrizes existentes em três grupos estruturais: a) da tendência da ação
mesmo, em bases sócio-valorativas, antecedentemente aos conceitos jurídi- objetiva; b) da finalidade subjetiva; c) da estrutura pessoal do agir.295 Todas
cos.289 Dessa forma, tornar-se-ia possível um conceito de ação desvinculado essas opiniões convergem, entretanto, para o tratamento da ação como fator
das categorias sistemáticas da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, sensível da realidade social, incluindo aspectos causais, finais, normativos
o que se contrapõe à tese dos normativistas, que deduzem o dado “valor” ou pessoais.296 Será possível, por conseguinte, conciliar-se com as atividades
exclusivamente da estrutura legal do delito. juridicamente relevantes dolosas, negligentes ou omissivas, sem sacrifício do
(1) O CONCEITO DE AÇÃO
princípio conceitual. Como partidários da tendência da ação objetiva, si-
tuam-se, entre outros, ENGISCH, EBERHARD SCHMIDT, MAIHOFER
O conceito social de ação foi enunciado, pela primeira vez, por e DONATSCH; como adeptos da finalidade subjetiva, figuram, principal-
EBERHARD SCHMIDT em nota ao Tratado de VON LISZT: a ação seria mente, BETTIOL, JESCHECK, WESSELS e HAFT; como formulador da
um fenômeno social na medida de direção de seus efeitos sobre a realidade teoria pessoal do agir, está ARTHUR KAUFMANN. Os autores brasileiros
social. Através disso, pretendia superar o conceito causal-naturalista, embora que seguem posição semelhante à da teoria social estariam melhor classifi-
se mostrasse atrelado à sua essência, ao conceber a ação como comportamen- cados na primeira corrente, quer dizer, fazem da ação um comportamento
to voluntário relacionado à produção de efeitos no mundo exterior.290 Mais causador de efeitos sociais valorativamente relevantes.297
tarde, o autor reelaborou a matéria acerca da produção dos efeitos sociais,
para compreender a ação como “a conduta portadora de vontade, que afeta 292. ENGISCH, Karl. “Der finale Handlungslehre”, in Festschrift für Kohlrausch, 1944, p. 161.
a esfera de vida de seu próximo através de seus efeitos, vindo a apresentar-se, 293. MAIHOFER, Werner. “Der soziale Handlungsbegriff”, in Festschrift für Eberhard Schmidt, 1961, p.
178.
sob aspectos normativos, como unidade de sentido social”.291 294. WERNER MAIHOFER. Der Handlungsbegriff im Verbrechenssystem, 1953, p. 70.
295. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 27.
296. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 27.
289. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 218 et seq. 297. Além dos autores citados, alguns outros assumem opiniões semelhantes à da concepção social de ação,
290. LISZT-SCHMIDT. Lehrbuch des deutschen Strafrechts, 1932, p. 153, nota de rodapé. A qualificação entre outros, PREISENDANZ, Holger. Strafgesetzbuch, Berlin: Schweitzer, 1975, pré-anotações III
de Eberhard Schmidt como precursor da teoria social da ação é feita geralmente pela doutrina, como se 1; WOLFF, E. A. Der Handlungsbegriff in der Lehre vom Verbrechen, 1964, p. 29 et seq.; WÜRT-
pode ver em JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 223, nota 27; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 27 TENBERGR, Thomas. La situazione spirituale della scienza penalistica in Germania, tradução italia-
e, principalmente, em MAURACH-ZIPF. Strafrecht, AT, p. 206. na, 1965, p. 83 e, mais recentemente, combinando a significação social com a estrutura final de ação,
291. SCHMIDT, Eberhard. “Soziale Handlugslehre”, in Festschrift für Engisch, 1969, p. 339. MIR PUIG, Santiago. Derecho penal, Parte general, 5ª edição, 1998, p. 161. Nos autores brasileiros,
136 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 137

(A) A CONCEPÇÃO DE JESCHECK expressão e característica da antijuridicidade de cada delito em espécie e fun-
Entre todas as orientações, a que mais nitidamente confere um sentido damenta, por isso, o conteúdo do injusto, ou seja, o sentido da proibição dessa
altamente abrangente à conduta humana, para fins de aplicação sistemática conduta.302 A culpabilidade é, por seu lado, reprovabilidade da formação de
do direito penal, é, iniludivelmente, a de JESCHECK: “ação é uma con- vontade, na qual desempenha papel preponderante o chamado ânimo adverso
duta socialmente relevante”.298 Esse conceito assinala de modo definitivo e ao direito. Misturam-se, assim, a liberdade de vontade, a exigibilidade de outra
sintetiza de modo perfeito o conteúdo da teoria social de ação. Tendo em conduta e a má-formação do caráter, de modo que a culpabilidade será tanto
vista este fato, a análise dessa teoria deve-se fixar nas suas contribuições, que, culpabilidade do fato isolado quanto culpabilidade pela conduta de vida.303
juntamente com as de WESSELS, como já se afirmou acima e com as quais, Ao contrário de WELZEL, que chega a limitar a culpabilidade de cará-
inclusive, guarda grandes semelhanças, constituem um organismo sistemá- ter a casos excepcionais e, especialmente, aos crimes culposos, JESCHECK
tico, compreensível da teoria do delito. aplica esse conceito a todos os tipos de delito, como princípio suplementar
JESCHECK procura esclarecer o sentido da conduta socialmente rele- da culpabilidade do fato. Em qualquer caso, culpabilidade de caráter e cul-
vante, afirmando que se deve entender por conduta toda resposta do homem pabilidade do fato se baseiam no princípio do ânimo desvalorado.
a uma exigência situacional reconhecida ou, pelo menos, reconhecível, atra- O ânimo, que poderia se traduzido também como convicção, é con-
vés da realização da possibilidade de reação que se lhe apresente disponível, ceituado como uma qualidade do cidadão, relevante para a manutenção
segundo sua liberdade.299 Essa conduta pode subsistir no exercício da ativi- da ordem social, sobre o qual se baseia a orientação a favor do direito e da
dade final, como pode também limitar-se à causação de efeitos, na medida vontade à obediência jurídica.304 Admitem-se, ademais, gradações no ânimo,
em que estes efeitos possam ser dominados (encaminhados) pelo homem, vinculadas, para mais ou para menos, ao motivo da formação de vontade.
ou à inatividade frente a determinada expectativa de ação, compreendendo, Em contraposição à doutrina dominante, a medida da determinação do
destarte, aspectos adaptáveis às atividades dolosas, negligentes e omissivas. No defeito do ânimo, ao invés de ser tomada segundo o “poder individual” do
que toca à relevância social da conduta, anuncia sua existência, quando o autor, deverá basear-se no “poder médio” que, entretanto, não se reduz à
exercício da ação implicar relacionamento do indivíduo com seu mundo mera expressão estatística, mas, sim, ao poder esperado pela comunidade
social, de modo que seja este afetado pela sua atuação eficaz.300 jurídica sob condições normais. Apesar disso, porém, os defeitos físicos e de
Mesmo que a ação se componha de forma a compreender fatos dolosos, entendimento, assim como as deficiências no âmbito da experiência vital, não
negligentes e omissivos, não será nela que esses fatos se diferenciam, nem devem ser imputados ao autor, porque este não tem poder sobre aqueles. O
será seu papel estabelecer tal distinção. Esta será unicamente possível no tipo que é reprovado no autor e constitui sua culpabilidade é a desconformidade
de injusto e na construção dos elementos da culpabilidade, caracterizando, com a medida do ânimo jurídico e da força de vontade que eram esperados
desta maneira, três formas fundamentais da ação punível: os crimes dolosos, da média dos cidadãos.305 Embora adote a posição do princípio do defeito do
negligentes e omissivos.301 ânimo jurídico, JESCHECK continua, porém, fundamentando a culpabili-
dade na liberdade de vontade e, principalmente, na possibilidade de correta
O delito, cujo modelo básico é o doloso, compõe-se de dois elementos
opção, dando importância, por isso, ao conhecimento da antijuridicidade,
gerais: a antijuridicidade e a culpabilidade. O tipo representa nisso a forma de
posto que potencial, para a reprovação do autor.306
basicamente partidários da tendência da ação objetiva, destacam-se LUNA, Everardo da Cunha. Es-
trutura jurídica do crime, 1970, e ANDREUCCI, Ricardo. Coação irresistível por violência, 1974, p. Ainda na linha de importância para a imposição do juízo de censura
60. Este último dá o retoque conclusivo: “[...] é no mundo dos valores, como diz Bettiol, que a ação
deve ser entendida, porque a sua compreensão deriva da realidade social, cimentados os atos pelo dado
teleológico. Isso sem que se confunda esta vontade com culpabilidade” (p. 60-61). 302. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 245.
298. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 223. 303. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 404 et seq.
299. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 223. 304. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 426.
300. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 224 et seq. 305. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 427-428.
301. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 232. 306. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 429.
138 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 139

jurídica, figura a normalidade de circunstâncias concomitantes. Verifican- social de ação, o que não o impede de aduzir, porém, a característica da
do-se a ocorrência de situações excepcionais, legalmente previstas, que matéria da proibição dentro do tipo de injusto, que o transforma em in-
prejudiquem consideravelmente a capacidade normal de autodeterminação, dício de antijuridicidade, bem como de pregar, abertamente, com traços
será o autor exculpado, porque, então, o defeito do ânimo não se arvora em sistemáticos bem marcantes, a validade do duplo enfoque do dolo, no
causa originária do fato.307 tipo de injusto e como forma de culpabilidade.309 Igualmente, classifica as
Ao lado da matéria referente à imputabilidade, ao conhecimento poten- formas fundamentais do delito em crimes dolosos, negligentes e omissivos, que
cial do injusto e às causas de exculpação ligadas à anormalidade de condições seguem, cada um, regras próprias, ainda que subordinados a modelo geral
concomitantes, figura ainda o chamado tipo de culpa, que, contudo, diferen- estabelecido para os fatos dolosos.310
temente do que pretende, por exemplo, BOCKELMANN, só congrega os
(C) A CONCEPÇÃO DE HAFT
fatores que assinalam com minúcias o ânimo jurídico do autor, atualizado no
fato, isto é, tão-só aqueles elementos do ânimo constantes nos delitos típicos Apesar de ser partidário da formulação de um conceito de ação, HAFT
em espécie.308 Assim, para não serem confundidos com os elementos do considera que esse conceito só preenche um significado: o de possibilitar a
tipo de injusto, os elementos do tipo de culpa devem sofrer duas limitações: exclusão, do âmbito do direito penal, das hipóteses de não-ação, como os
a primeira, no sentido de que estes são descritos diretamente como elemen- movimentos reflexos.311
tos exclusivos do conteúdo de culpabilidade, de modo a caracterizá-la com Relativamente à evolução sistemática do conceito de ação, reconhece
independência e não como reflexo do que constitua matéria da imputação HAFT que nem a teoria causal nem a teoria final foram capazes de compreen-
subjetiva no âmbito do tipo; a segunda, no sentido de que esses elementos der, sob o manto de um conceito superior, a ação e a omissão. Se, por um
caracterizam uma particularidade da culpabilidade de certos delitos em espé- lado, a teoria causal pôde adequar-se às ações culposas, mas não às dolosas, a
cie, diferentemente dos que se incluem na imputabilidade, na possibilidade teoria final apenas pôde compreender a estrutura dos delitos dolosos, sendo,
do conhecimento da antijuridicidade, ou nas causas de exculpação. Podem porém, incapaz de retratar a finalidade nas ações culposas. 312
ser citados como exemplos desses elementos do tipo de culpa os motivos
Tendo em vista que a teoria social engloba todos os fatores de uma
torpe e fútil na qualificação do homicídio, o motivo de relevante valor moral
conduta, tanto os causais, quanto os finais, ou até mesmo aqueles que só
ou social no homicídio privilegiado, o estado puerperal no infanticídio, o
adquirem relevância a partir de um juízo de valor, pôde superar aquelas
motivo de reconhecida nobreza no registro de filho alheio como próprio e
deficiências e servir como um conceito superior e unitário.313
todos os demais que agravem, atenuem ou fundamentem o conteúdo de
culpabilidade de determinados delitos. Como o conceito social de ação possibilitou o enunciado de um conceito
superior de conduta, adaptável a qualquer espécie de delito, a questão de se uma
(B) A CONCEPÇÃO DE WESSELS conduta constitui ação deve ser solucionada previamente à análise do tipo.314
As proposições de JESCHECK são acatadas de modo geral por WES- Essa análise prévia das características da ação se torna necessária em
SELS, que as simplifica ao nível de comunicação pragmática. Entre eles, alguns casos, pois, em determinadas circunstâncias, podem faltar a uma con-
contudo, vigoram algumas diferenças, que se expressam muito mais no as- duta as características básicas de ação. Assim, não haverá ação: a) quando lhe
pecto formal-expositivo do que propriamente no conteúdo. faltar a condição de conduta humana (ação ou omissão), isto é, não haver
Assim, WESSELS toma, por exemplo, o delito estruturado nas cate- 309. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 46.
gorias da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, unidas pelo conceito 310. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 37, 223 e 237.
311. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, 6ª edição, München: Beck, 1994, p. 30.
312. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 31.
307. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 429. 313. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 32.
308. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 469 et seq. 314. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 33.
140 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 141

sido realizada por uma pessoa natural; b) quando lhe faltar a condição de ação proibida no direito penal.319 Valeria esse conceito material como um
ter sido conduzida por uma vontade, quer dizer, na vis absoluta, nos movi- conceito destinado ao direito e não se confundiria com o conceito natural
mentos praticados em estado de inconsciência ou em sono profundo, ou nos de ação, tomado em sentido mínimo, para englobar o agir e o omitir-se.
movimento reflexos; c) quando a conduta não for socialmente relevante, isto Dessa forma, conduz-se o pensamento de H. MAYER para uma postura
é, quando a conduta não se manifestar exteriormente (acontecimentos da normativista e se coloca, ao mesmo tempo, próximo do causalismo e da
vida psíquica não constituem ação, nem a confiança em atos de magia ou teoria social da ação.
feitiçaria); d) na omissão, quando a ação esperada não fosse possível de ser Dentro do que propõe, seria a ação, no sentido material, uma vontade
realizada por qualquer pessoa situada na posição do sujeito.315 objetivada num acontecimento externo, de tal modo que, como afirmam o
finalismo e a teoria social da ação, somente o acontecimento controlável pela
(D) A CONCEPÇÃO DE HELLMUTH MAYER
vontade humana poderia ser tratado como ação, jamais, por conseguinte, o
HELLMUTH MAYER expõe uma concepção original, tendo por processo causal em si.
base o raciocínio dialético hegeliano, e só indiretamente poderia ser inti-
Por outra parte, a vontade antijurídica já é reconhecível e visível na
tulado como adepto da teoria social da ação, situando-se, pois, em posição
manifestação externa da ação, de forma que a antijuridicidade não pode ser
intermediária. Para ele, é perfeitamente reconhecível um conceito de ação
fundamentada unicamente através da posição subjetiva do autor. A possí-
fora do âmbito do direito. Esse conceito, porém, deveria seguir, pelo
vel manifestação objetiva externa da vontade antijurídica pode ter também
menos, a preocupação de possibilitar a diferença entre o agir e o omitir-se.
desdobramento fenomênico, mesmo quando falte faticamente essa vontade
Por conceituação do próprio fato punível, deduz-se, inclusive, a necessidade
antijurídica, o que impõe o dever aos órgãos de persecução criminal de in-
de tal conceito de ação, pois o fato punível nada mais é do que ação punível
vestigar a existência de culpabilidade.320
contrária aos imperativos legais.316
Com o objetivo de conciliar-se com os fatos dolosos e culposos, en-
A fim de preencher sua função mínima e geral, a conduta deve ser con-
tende o autor que a vontade deve ser tomada como unidade no sentido da
ceituada como “comportamento corporal voluntário (agir ou omitir-se), que
exteriorização da pessoa, não simplesmente, por isso, como exteriorização do
arrasta consigo ou causa, como se diz normalmente, o resultado típico”.317
intelecto. Por via de consequência, o dolo e a culpa consistiriam também em
Com essa definição de conduta, parte-se, por conseguinte, de princípio da
exteriorizações da vontade, perfazendo, ainda que de modo diverso, unidade
teoria causal-naturalista, precisamente de que a ação nada mais é do que causa
fenomênica. Como a ação não é a modificação causal do mundo do ser, mas
de um resultado. Mais adiante, contudo, referindo-se negativamente aos casos
a determinação do caminhar do mundo através da vontade humana como
de ausência de ação, considera que só haverá ação quando a conduta seja con-
causa única, juridicamente relevante, pode-se incluir a omissão na ação, in-
trolável pela vontade humana, vindo, com isso, a aproximar-se do finalismo.318
dependentemente do conceito físico de causa.321
Suas elucubrações, por outro lado, não param aqui. A par dessa con-
Sistematicamente, partindo-se do conceito de fato punível como vonta-
ceituação mínima e abrangente de conduta, procura lançar as bases de um
de objetivada, pois, como unidade interna e totalidade, chega-se à conclusão
conceito material de ação, que se destinaria a esgotar o conteúdo de sentido
de que o delito reparte-se em dois setores fundamentais: o injusto objetivo e a
do comportamento humano e dar os fundamentos por que um fato externo
culpabilidade (imputação subjetiva). Compreende o injusto objetivo a parte
pode ser acoimado de lícito ou ilícito, isto é, como declaração de vontade
externa do fato, o acontecimento externo pelo qual se manifesta a vontade.
obrigatória, como ação não permitida nos termos do direito civil, ou como
A culpabilidade é a parte interna do fato, isto é, a vontade antijurídica como
315. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 33 et seq.
316. MAYER, Hellmuth. Strafrecht, AT, 1967, p. 42. 319. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 46-47.
317. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 42. 320. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 50.
318. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 43. 321. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 50-51.
142 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 143

tal. Ao injusto objetivo pertence tudo o que se manifesta objetivamente. À Da mesma forma, porém, como ocorre com a estrutura do delito
culpabilidade pertence só o que fundamente a responsabilidade da vontade em geral, as divergências mais significativas se verificam, aqui, no setor da
com a realização do fato. Injusto e culpabilidade constituem unidade dialéti- construção do delito negligente, em especial, na conexão de seus elementos
ca, assim como corpo e mente, de modo que qualquer um sem o outro seria essenciais e na fundamentação da responsabilidade do agente.
um nada, um cadáver.322 Na investigação desses dois componentes do delito, A teoria social da ação parece revestir-se, hoje, do papel de teoria domi-
a novidade se fixa, porém, apenas na fundamentação. Na verdade, o tipo, a nante no âmbito da indagação sobre os elementos do delito culposo. Ainda
antijuridicidade e a culpabilidade são estruturados segundo a proposição da que padecendo de algumas divergências, a estrutura do fato culposo segue,
teoria causal, comportando, ainda, supletivamente, aspectos do finalismo e, em linhas gerais, a proposta já enunciada pelo finalismo de tratá-lo como
timidamente, da teoria social da ação. delito próprio, a partir do tipo de injusto. Apesar disso, a teoria social supera
(2) OS FUNDAMENTOS DA NEGLIGÊNCIA o finalismo, ao aprofundar o estudo de sua estrutura principalmente no
âmbito da culpabilidade.
Na teoria social, com suas múltiplas variantes, torna-se difícil estabe-
lecer tratamento unitário para a negligência. O mesmo se pode dizer dos (A) A CONCEPÇÃO DE JESCHECK
partidários da concepção normativista. Nessas orientações, porém, pode-se
observar, cada vez mais nitidamente, que se procede à diferenciação entre a O representante mais característico da teoria social da ação, na atualidade,
não-observância do cuidado objetivamente exigido e do cuidado possível ao é JESCHECK, que desenvolve, em seu Tratado, uma série de regras e princí-
autor, os quais serão investigados, respectivamente, na antijuridicidade e na pios acerca do delito culposo, a ponto de compor teoria própria e completa.
culpabilidade, ou mesmo, quanto ao primeiro, no tipo de injusto. Na sua construção, parte de que todas as formas de atividade punível
Afora alguns resquícios de causalismo, manifestados, de modo evidente, são representadas por uma ação socialmente relevante, o que vigora para os
por exemplo, em BETTIOL e na doutrina italiana em geral, em EBERHARD crimes dolosos comissivos, para os crimes negligentes e omissivos. Desses
SCHMIDT, ENGISCH, MAIHOFER, MANTOVANI, H. MAYER, RO- fatos todos, os dolosos devem servir de modelo de construção dogmáti-
DRÍGUEZ DEVESA e SCHMIDHÄUSER, os demais autores tratam do ca, em que se situam as características da tipicidade, antijuridicidade e
fato negligente como forma especial de delito e não como forma ou espécie de culpabilidade, assim como a dependência da punição, conforme o caso,
culpabilidade, seguindo, nesse passo, os ensinamentos do finalismo. a condições objetivamente consideradas. Nos crimes culposos, será, do
mesmo modo, seguido o modelo do crime comissivo doloso, apenas com
Se fizermos análise mais profunda, poderemos verificar, também, que retoques, acréscimos e correções indispensáveis deste modelo às característi-
foi ENGISCH, conforme WELZEL, o mais importante dos precursores das cas próprias daqueles.324A elaboração de JESCHECK, inclusive, incorpora
modernas teorias da negligência, ao constatar que entre a conexão causal da quase todas as conquistas dos demais autores partidários da mesma concep-
ação e o resultado, e a culpabilidade faltava outro momento muito especial do ção de ação, de forma que deve servir também de modelo de construção
fato, representado pela omissão de um dever externo de cuidado objetivo, sem para os que se filiam a esse tipo de enfoque. Ademais, é ela tão exaustiva,
o qual se tornaria inteiramente impossível fundamentar-se a antijuridicidade.323 que vale a pena ser focalizada com minúcias.
322. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 60. A negligência, segundo JESCHECK, não constitui simplesmente
323. ENGISCH, Karl. Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit, 1930, p. 277 et seq. A qualificação
de Engisch, como precursor da nova formulação acerca do fato culposo, feita por WELZEL (Nota 7, forma de culpabilidade, mas espécie particular de ação punível, dotada de
p. 183) e também, entre nós, por FRAGOSO, Heleno (Nota 93, p. 238) é contestada por BINAVINCE,
Emilio (Die vier Momente der Fahrlässigkeitsdelikte), 1969, p. 37 et seq., para quem tal trunfo deve ser estrutura própria no tocante ao injusto e à culpabilidade. Nisso, segue a
legado a Radbruch que, em 1904, em seu famoso escrito “Über den Schuldbegriff”, publicado na ZStW
nº 24, p. 344 et seq., propunha diversidade de tratamento da neligência relativamente aos seus aspectos
normativos, como lesão ao cuidado, e psicológico, como previsão do resultado, de modo a possibilitar está em que ele, efetivamente, deu corpo a essa pretendida diversidade, demonstrando as incongruências
um conceito de culpabilidade que unificasse as formas “dolo” e “culpa” em um conceito geral e comum. de um tramento unificado do dolo e da culpa, bem como possibilitando outra estruturação para o injusto
Para Radbruch, já nesta época, a negligência se compunha tanto do fato de que o autor não previra o re- dos delitos culposos.
sultado, quanto de que ele fora mais descuidado do que o homem normal. O mérito de Engisch, todavia, 324. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 560.
144 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 145

grande maioria dos autores modernos. Em consequência, o injusto vem a ser integralizado tanto com a atividade
Assim, determina a negligência em dupla medida: primeiramente, es- defeituosa, quanto com o resultado lesivo.
tabelece que comportamento, com vistas a evitar lesões involuntárias de bens O injusto do resultado, que é o mais visível nas disposições penais, pois
jurídicos, é objetivamente devido em uma situação concreta de perigo; em estas quase que exclusivamente se ocupam de sua verificação – por exem-
segundo lugar, se esse comportamento pode ser exigido também pessoalmen- plo, no homicídio negligente, o que importa, à primeira vista, é a morte da
te ao autor, segundo sua constituição e capacidade individuais. vítima –, vem a ser preenchido pela ocorrência, causação e previsibilidade
Tendo em vista a primeira medida, conclui que o tipo de delito ne- desse resultado proibido.328 A previsibilidade desse resultado, por sua vez,
gligente não se esgota tão-só na ocorrência causal do resultado penalmente deve estar em consonância com a própria medida de exigência do dever
proibido. Mais do que isso, será necessário que esse resultado se baseie em de cuidado, isto é, com a pessoa conscienciosa e ajuizada ou inteligente,329
uma lesão daquelas exigências de cuidado que a ordem jurídica impõe a forma um pouco mais refinada do conceito de homo medius, vigorante entre
uma pessoa conscienciosa e ajuizada pertencente ao círculo relacional do nós. Entretanto, nem só o resultado deve ser previsível, senão também o
agente e situada na mesma circunstância de fato, e que esse resultado não processo causal em seus elementos ou traços essenciais. Realizado o tipo de
tenha sido previsível a tal pessoa.325 injusto com verificação desses dois aspectos, da lesão do dever de cuidado e
do resultado, considera-se indiciada a antijuridicidade do fato.330
Só depois de se afirmar ou se determinar a realização do componente ob-
jetivo da negligência, representado por esses dados relativos à ação desvalorada Precisamente, na relação tipo-antijuridicidade, reside um dos aspectos
em face das exigências de cuidado e da previsibilidade do homem médio, é que mais controvertidos da elaboração de JESCHECK, envolvendo todo um
se pode seguir adiante na investigação e se decidir se esses cuidados e essa previ- conjunto de concepções acerca das funções do direito penal e sua forma de
sibilidade poderiam ser também estendidos pessoalmente ao agente concreto. manifestação. O tipo será o fundamentador do conteúdo do injusto, isto é,
o componente material da antijuridicidade, pois inclui em si a matéria da
As primeiras indagações dizem respeito à matéria do tipo de injusto; as proibição. Nisto, mostra-se JESCHECK receptivo das ideias de MEZGER
últimas à matéria de culpabilidade ou, como pretende JESCHECK, seguindo e se aproxima do pensamento de WELZEL. Ao contrário de MEZGER,
a terminologia de GALLAS, do tipo de culpabilidade.326 entretanto, que considerava simplesmente o tipo como ratio essendi da an-
O tipo de injusto compõe-se, portanto, basicamente, de todos os ele- tijuridicidade, com base em disposições valorativas, JESCHECK entende
mentos que fundamentam o desvalor da conduta (injusto da ação) e o que o direito penal não valora apenas o fato da vida social, mas determina
desvalor do resultado (injusto do resultado). condutas no sentido subjetivo, isto é, busca orientar o querer dos cidadãos
O injusto da ação compreende a lesão aos deveres objetivos de cuida- de acordo com um dever jurídico concreto.
do, que, embora não estejam formalizados na lei penal, são deduzidos do Em MEZGER, o direito estatuía unicamente um dever impessoal,
ordenamento jurídico e do sentido das normas penais de dirigir seus des- limitado a caracterizar os estados ou acontecimentos como desejados ou
tinatários sociais a uma vontade e a um querer substancialmente corretos. indesejados. Assim, o fato praticado pelo doente mental apresentar-se-ia,
Atinge-se, com isso, a pretensão de vincular o Direito Penal e as normas que sem maiores problemas, como antijurídico, porque, à vista da norma penal
o integram a um dever jurídico decorrente da determinação de condutas. O valorativa, deveria ser valorado como lesão de bem jurídico.331 As normas
objeto da determinação, porém, não se esgota no simples querer substancial- determinativas só teriam importância no setor da culpabilidade, em que se
mente correto, mas engloba ainda a ausência de lesão aos bens jurídicos.327
328. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 582 et seq.
325. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 564. 329. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 587.
326. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 565; GALLAS, Wilhelm. Beiträge zur Verbrechenslehre, Berlin: 330. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 588.
de Gruyter, 1968, p. 43 et seq. 331. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 236 et seq.; MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal, tradu-
327. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 578. ção espanhola de J. A. Rodríguez Muñoz, Madrid, 1995, p. 339 et seq.
146 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 147

fixava a questão de se, efetivamente, o homem pôde conduzir-se de acordo esta última serve de acessório àquela na caracterização do injusto.
com os juízos de valor pronunciados sobre sua conduta. Mas, mesmo assim, A estrutura normativa proposta por JESCHECK faz com que se veja,
as normas determinativas mantêm-se como acessórias das normas valorati- na relação tipo-antijuridicidade, uma questão a ser tratada de modo conjunto.
vas. Vigoram estas últimas, por conseguinte, para todos os setores do delito, O tipo contém o fundamento da antijuridicidade, mas pode ocorrer que, em
em especial o injusto. certas situações, incidam outras normas que, embora não excluam a proibição
Em JESCHECK, ao contrário de MEZGER, na medida em que se ali consubstanciada, tornam a conduta aprovada pela ordem jurídica. O debate
trate de disposições penais, as normas estatuem deveres jurídicos, o que desloca-se, pois, para o campo das causas de justificação, de sorte que a ação
lhes assinala a característica de serem normas imperativas. Nesse sentido, em legítima defesa, por exemplo, continua típica, mas não antijurídica.
antes mesmo de uma ação, a qual poderia ser valorada como antijurídica, Na questão do caráter indiciário do tipo com a antijuridicidade, enten-
haver sido praticada, consistiria função do direito conduzir os homens de que o que se trata é de oposição entre norma proibitiva e norma permissiva
para um querer de conteúdo correto. Dessa forma, as normas imperativas ou, formalmente falando, entre regra e exceção. O tipo conteria a regra, que
são determinantes de uma conduta interna, de um querer correto em seu expressaria o conteúdo da antijuridicidade; a exceção estaria representada pela
conteúdo, de tal modo que a vontade da ação deve ser a peça nuclear da an- incidência, no caso, de causas de justificação. No setor da antijuridicidade,
tijuridicidade.332 Independentemente de sua filiação, JESCHECK mostra, de acordo, aliás, com a doutrina tradicional, só restará lugar à investigação
aqui, uma evidente identidade com WELZEL. da existência ou da ausência de causas de justificação.
Na antijuridicidade, ademais, não se faz diferença quanto à idade, saúde É interessante notar que essa orientação não discrepa, nas conse-
mental ou capacidade dos destinatários da norma determinativa. Em princí- quências práticas, daquela proposta por MAX ERNST MAYER. Aqui,
pio, admite-se, toda a coletividade está submetida a essa determinação, daí porém, a antijuridicidade se compõe da realização do tipo e da ausência
por que se necessita limitá-la adequadamente através de disposições explíci- de causas de justificação, enquanto lá o tipo seria elemento autônomo,
tas. Essa limitação traria como consequência que as medidas de segurança embora interligado à antijuridicidade no papel de sinal de alerta acerca de
e educativas impostas pelo juiz aos doentes mentais ou aos menores não sua verificação.335 Relativamente a MEZGER, a concepção de JESCHECK
poderiam ser atributos da ordem policial, mas sanções jurídico-penais, asso- deflui como evolução necessária. MEZGER não chegou a realizar a com-
ciadas ao fato antijurídico, ou seja, seriam o resultado da infração à norma pleta compatibilização entre o caráter indiciário do tipo e a fórmula da
determinativa. Doutrinariamente, essa concepção deu lugar à teoria dos fins ratio essendi, enquanto JESCHECK procurou fazê-lo, ainda que tivesse
da norma. Por esta teoria, por exemplo, se o fim da norma determinativa é de modificar o conceito inicial e tomar a expressão “indício” no sentido
a proteção dos bens jurídicos, expressa nos objetos concretos da ação, serão determinativo e não unicamente valorativo.
decisivos à lesão dessa norma a espécie e o modo de perigo para o objeto de
proteção pressuposto no tipo. Por seu turno, esse perigo depende essencial- Nos crimes culposos, JESCHECK fundamenta a relação tipo-anti-
mente da vontade condutora da ação do autor.333 juridicidade da mesma forma como nos delitos dolosos, vindo a admitir,
igualmente, aqui a incidência de causas de justificação, ainda que submetidas
À antijuridicidade, por seu turno, não basta só a vontade da ação, mas a certos arranjos próprios a esses crimes. Entre as causas de justificação, as-
ainda o fato de que essa vontade tenha alcançado seu objetivo, quer dizer, o sinala que têm inteiro cabimento a legítima defesa, o estado de necessidade
produto causado por ela.334 Neste aspecto, JESCHECK conjuga seu pensamen- e o consentimento do ofendido. Mostra-se duvidoso se as outras demais
to acerca da norma determinativa com o da norma valorativa, entendendo que causas podem também ser admitidas, tendo em vista a constituição do tipo

332. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 237. 335. MAYER, Max-Ernst Der allgemeine Teil des deutschen Strafrechts, 1923, p. 9, 10, 182. Sobre a classi-
333. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 238. ficação das concepções do indício de antijuridicidade, ver CLASS, Wilhelm. Grenzen des Tatbestandes,
334. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 237. Breslau-Neukirch: Kurtze, 1923, p. 39.
148 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 149

de injusto com base na lesão à norma de cuidado. Ainda rejeita a possibili- cuidado interno e externo e, assim, evitar a realização do resultado típico.
dade dos elementos subjetivos de justificação nos delitos de resultado, não Contudo, as circunstâncias referentes aos defeitos físicos, às falhas de
os admitindo, nem mesmo, na legítima defesa.336 entendimento, às lacunas do saber e experiência, assim como às dificuldades
Finalmente, ao contrário do que postulava nas primeiras edições de seu derivadas de situações extremamente especiais, que o autor não pôde superar,
livro, JESCHECK não mais admite o reconhecimento do risco permitido não devem influir na sua reprovação, salvo a hipótese da assunção consciente
como causa especial de justificação. Entende, agora, que os casos nos quais de atividade, para a qual não estava preparado.343 Este mesmo raciocínio
a lesão à norma de cuidado não seja antijurídica devem ser enquadrados deve ser aplicado a situações nas quais a previsibilidade do resultado era
nas hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade, consentimento do incontestável para a maioria das pessoas, mas não ao autor, em virtude de
ofendido ou consentimento presumido.337 sua inexperiência no trato dos instrumentos perigosos. Assim, no caso citado
Na culpabilidade dos crimes negligentes, JESCHECK não se afasta do por SCHMIDHÄUSER, da avó inexperiente, que não afasta seu neto das
princípio do ânimo adverso ao direito, conceituando-a como a reprovabili- portas do metrô, que se fecham automaticamente sobre o braço estendido
dade da ação típica e antijurídica.338 Diversamente do que faz com os crimes da criança, a questão da responsabilidade deve ser resolvida, excluindo-se-lhe
dolosos, edifica aqui a culpabilidade com base na antijuridicidade do delito a culpabilidade através da negação da previsibilidade subjetiva. Neste caso,
culposo, afirmando que todos os seus elementos devam com ela relacionar-se. não tem qualquer relevância a assertiva de SCHMIDHÄUSER quanto à
chamada consciência parcial do fato.
No tocante à sua estrutura, estatui como seus componentes da
culpabilidade a capacidade de culpa (imputabilidade), a consciência da an- (B) A CONCEPÇÃO DE WESSELS
tijuridicidade e a evitabilidade do erro de proibição,339 a possibilidade do
A orientação de JESCHECK é seguida por WESSELS, em seus traços
reconhecimento e do atendimento dos deveres de cuidado340 e, nos delitos de
essenciais. Com efeito, este considera que o que une, em fundamento
resultado, a previsibilidade subjetiva desse resultado e do processo causal.341
comum, os crimes dolosos e negligentes é o conceito de conduta humana,
No que tange às causas de exculpação, reconhece plena validade ao princípio
entendida como ação socialmente relevante.344 Mais explicitamente do que
geral da inexigibilidade de outra conduta, como norma geral de desculpa.342
JESCHECK, porém, vê, na negligência, um conteúdo omissivo, justamen-
Em todo o setor da culpabilidade, considera que a medida tanto da pos- te, na desatenção contrária ao dever dos cuidados objetivamente exigíveis
sibilidade de reconhecimento e atendimento aos deveres de cuidado, como da no relacionamento.
previsibilidade subjetiva do resultado e da inexigibilidade de conduta diversa,
O tipo de injusto dos crimes de resultado compor-se-ia da causação do
recaem sobre o agente concreto individual, autor da conduta lesiva dos de-
resultado, da lesão aos deveres objetivos de cuidado e da imputação objetiva
veres de cuidado, mas, de qualquer modo, aferida da comparação hipotética
do resultado, baseada no defeito da conduta, com vistas à orientação do fim
com um dado objetivo de “alguém”, situado nas mesmas condições e dotado,
protetivo das normas de cuidado.345 Ao questionar o problema dessa impu-
hipoteticamente, de características semelhantes às do autor quanto à idade,
tação em casos em que se pode determinar, provavelmente, que o resultado
inteligência e conhecimento. Em face dessa capacidade individual, seria for-
ocorreria da mesma forma, se fosse atendida a norma de cuidado, assevera
mado o juízo sobre as suas possibilidades de poder cumprir as exigências de
WESSELS que os delitos culposos pressupõem sempre, segundo sua natu-
reza, a evitabilidade da realização do tipo.
336. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 588 et seq.
337. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 591. A punição do autor negligente tem, pois, como fundamento, o fato de
338. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 592.
339. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 593.
340. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 594. 343. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 594 et seq.
341. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 596. 344. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 223.
342. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 597. 345. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 226 et seq.
150 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 151

que não evitou o resultado desaprovado, embora estivesse a isso objetivamente graus do domínio da vontade, fazendo-a figurar, ao lado do dolo, como
obrigado e fosse subjetivamente capaz. A evitabilidade do resultado figura, desse forma de imputação subjetiva ou culpabilidade.350 Mesmo partindo dessa
modo, tanto como pressuposto do tipo de injusto, como da culpabilidade.346 posição sistemática, o autor não desconsidera, todavia, que a negligência,
Essa evitabilidade assume papel importante dentro do tipo de injusto, qual seja, objetivamente considerada, se caracterize pela causação de um resultado
de tornar relevante ou irrelevante a lesão ao dever de cuidado, instituindo-se típico, através da lesão aos deveres de cuidado. Essa lesão aos deveres de
como elemento fundamentador do injusto nos delitos de resultado. cuidado, por sua vez, pela forma como se estrutura o raciocínio dialético
Assim, uma lesão aos deveres objetivos de cuidado só será tipicamente do autor, será tanto característica do tipo legal quanto da antijuridicidade,
relevante, quando se constitua em um fundamento adequado para o resultado já que esta está contida e manifestada naquele.351
típico. Daí ser decisivo determinar-se o como o fato se daria, caso o autor tivesse Como a lesão aos deveres de cuidado faz parte, portanto, do injusto
tido uma conduta juridicamente correta e não ultrapassasse os limites do risco objetivo, seus limites devem ser determinados também objetivamente e de
permitido.347 Tem isto, inclusive, direta consequência no âmbito do processo acordo com a experiência geral. A medida desse dever, contudo, deve também
penal. Desde que as circunstâncias concretas indiquem a probabilidade e tão-só depender da capacidade do homem individual, com base em critério de exi-
de que o resultado ocorreria do mesmo modo, se uma conduta cuidadosa e gibilidade: o homem só pode atender aos deveres de cuidado que lhe sejam
isenta de defeitos tivesse sido tomada, deve-se declarar a absolvição do acusado passíveis de exigência segundo as circunstâncias. Uma exigibilidade carente
pela aplicação pura e simples do princípio in dubio pro reo.348 elimina o dever objetivo de cuidado. Dessa maneira, as questões da tipicida-
Na culpabilidade, WESSELS continua se orientando pelo ânimo adver- de e da culpabilidade se interligam em unidade, ainda que se possa afirmar,
so ao direito, admitindo, nos crimes culposos, a mesma estrutura dos crimes sistematicamente, sua diferenciação em compartimentos separados.352
dolosos, acrescida da previsibilidade subjetiva do resultado.349 A distinção entre negligência e dolo, por exemplo, se faz, para H.
MAYER, no setor da culpabilidade, no qual se salienta que há entre ambos,
(C) OUTROS POSICIONAMENTOS unicamente, gradação quantitativa e não qualitativa. A negligência é com-
Afora JESCHECK e WESSELS, que defendem ponto de vista no sentido preendida na evitabilidade subjetiva da realização do tipo, que se configura
da autonomia do delito culposo com relação aos delitos dolosos, chegando, como essência e deve ser determinada através de dois juízos, um positivo,
com isso, às mesmas conclusões estruturais do finalismo, a teoria social da ação outro negativo. O juízo positivo significa que o autor estaria em condições de
se enriquece com outras contribuições importantes nesse setor, tais como, entre dominar sua conduta, de que, enfim, teria podido evitá-la; o juízo negativo
outras, de HELLMUTH MAYER, ARTHUR KAUFMANN, HAFT e, na resulta de que, efetivamente, não a evitou.
Itália, de BETTIOL. Estes autores apresentam, contudo, um posicionamento No contexto da culpabilidade, por conseguinte, não se fundamenta a
comum: ocupam-se da negligência, normalmente, dentro da culpabilidade, responsabilidade pela previsibilidade subjetiva. Ao contrário, vê-se, no poder
mas também a levam em conta no setor do injusto quanto à infração ao dever evitar, elemento mais eficiente do que a previsibilidade para abarcar as várias
de cuidado. A ênfase na culpabilidade, porém, é de tal ordem, que passa des- razões por que o homem não faz uso suficiente de sua capacidade volitiva.353
percebida essa consideração objetiva do dever de cuidado. Na determinação dessa evitabilidade não entra em consideração o fato de
que o autor não tenha esforçado suficientemente sua vontade. O que vale,
(AA) A CONCEPÇÃO DE HELLMUTH MAYER pois, é a capacidade subjetiva de que era portador no momento do fato, nada
HELLMUTH MAYER compreende a negligência como um dos importando, para a caracterização da negligência, que se tenha descuidado
346. WESSELS-BUELKE. Nota 234, p. 232. 350. MAYER, Hellmuth. Strafrecht, AT, Berlin-Stuttgart-Köln-Mainz, 1967, p. 106.
347. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 232. 351. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 129.
348. WESSELS-BUELKE. Nota 234, p. 233. 352. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 129.
349. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 237. 353. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 130.
152 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 153

de melhorar sua capacidade, por exemplo, de que o médico tenha deixado expressada como livre e autorresponsável decisão de vontade contra um dever
de se aperfeiçoar, visto que a lei não fornece qualquer indicação ou qualquer ético reconhecido.358 A culpabilidade, portanto, é culpabilidade de vontade e
ponto de apoio de que o descuido culpável da própria capacidade deva ser não culpabilidade pela conduta de vida, pelo ânimo adverso ao direito, pelo
punível.354 Este raciocínio final coloca HELLMUTH MAYER em oposição caráter, pelo entendimento ou pelo sentimento.359
às teorias do ânimo adverso ao direito e à concepção de culpabilidade de Relativamente à negligência, chega ARTHUR KAUFMANN a conclu-
SCHMIDHÄUSER, refletindo, neste passo, um posicionamento liberal. sões bastante importantes de que, entre as espécies de negligência consciente e
inconsciente, normalmente previstas pela doutrina e em algumas legislações,
(BB) A CONCEPÇÃO DE ARTHUR KAUFMANN
tão-somente a primeira se harmoniza com a culpabilidade ética, isto é, com
ARTHUR KAUFMANN entende haver, na negligência, um ele- a culpabilidade de vontade.360 Esta conclusão não é obtida arbitrariamente,
mento objetivo, precisamente, a infração aos deveres de cuidado, em que mas, sim, através de vários silogismos, nos quais se põe à mostra o conteúdo
assume, inclusive, capital importância, a problemática da imputação obje- da culpa consciente como forma de dolo de perigo e da culpa inconsciente,
tiva do resultado, quando, segundo a mensurabilidade humana, se pudesse como expressão da responsabilidade pelo resultado.
afirmar que uma conduta cuidadosa o teria ou não evitado.355 Entretanto, a
Com efeito, no que toca à primeira, segue-se a antiga lição de KOHL-
preocupação básica do autor não é a estrutura do fato culposo em si, senão
RAUSCH de que aqui a culpabilidade não se dirige à lesão, mas unicamente
a compatibilidade entre negligência e culpabilidade. Ao analisar esta hipó-
ao perigo, de modo que este pertence à estrutura de representação da von-
tese, KAUFMANN parte do princípio de que o homem, como criatura,
tade.361 Seria o delito daí derivado, em sua essência, delito doloso de perigo,
está submetido às leis da ordem de criação, que, contudo, não o vinculam
constituído através do resultado, que, porém, não pertence ao tipo, mas às
causal, mas moralmente.
condições objetivas de punibilidade.362
A liberdade desse homem, portanto, à sua própria disposição, significa
A característica básica da culpa consciente radica, pois, no fato de que o
liberdade para a realização da própria essência, segundo o modelo da lei
agente atua com consciência concreta acerca do perigo irregular de um bem
moral, objetivamente preexistente, que pode ele tomar, conscientemente,
jurídico. Se o agente possui, assim, apenas uma consciência abstrata acerca
como sua.356 Da objetividade da lei moral, resulta o conceito de dever, sendo
do perigo, de que, por exemplo, o motorista saiba que dirigir veículos é,
este o fundamento para a responsabilidade e para a culpa. Todo dever só
por si, uma atividade perigosa, mas diga a si mesmo que, segundo a média
pode fundar-se por meio de um valor ético, objetivamente dado, jamais,
humana, nada pode acontecer da forma como vem dirigindo, não haverá
por conseguinte, pela vontade subjetiva de alguém ou de uma pluralidade
culpa consciente pela ausência, no caso, da respectiva vontade de perigo. A
de homens, ou por simples coação.
culpa consciente, contudo, não se confunde com o dolo eventual, como outra
Assim, só existem deveres jurídicos como deveres éticos e, pois, culpa forma de expressão da vontade. Para que este ocorra é indispensável assentir
jurídica como culpabilidade ética, de tal sorte que o conteúdo do princípio o agente no resultado e não apenas no perigo.
da culpa seja igualmente o mesmo no direito e na ética. A censura de culpa-
Por outro lado, nem sempre a representação acerca da necessidade
bilidade penal pode, porém, constituir-se unicamente de um segmento da
do perigo deve ser associada ao consentimento quanto à realização do re-
culpabilidade ética, não podendo, todavia, em princípio, contraditá-la.357
sultado, pois o agente, embora admita a possibilidade de que alguma coisa
Nesta colocação, o princípio da culpabilidade penal só apresenta sentido e
importância se for entendido materialmente, isto é, como culpabilidade ética,
358. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 129.
359. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 149.
354. MAYER, Hellmuth. Ob. cit., p. 131. 360. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 162.
355. KAUFMANN, Arthur. Das Schuldprinzip, 2ª edição, Heidelberg, 1961, p. 140. 361. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 154. Ver também KOHLRAUSCH, Eduard, “Die Schuld”, Die Re-
356. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 127-128. form des Reichsstrafgesetzbuchs, organizado por Franz von Liszt e Paul Aschrott, vol. I, p. 154.
357. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 128. 362. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 154.
154 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 155

suceda, pode esperar que não ocorra e que tudo se contorne. Demais, um MAURACH, sobre a negação ou defeito de representação ou de vontade372
perigo só pode ser mentalizado como necessário e não como possível, pois a e de WELZEL, com base na estruturação defeituosa do caráter.373
representação acerca da possibilidade da possível verificação de um resultado A culpa inconsciente, portanto, salvo algumas exceções submetidas à
soa um absurdo.363 teoria da actio libera in causa, nas quais ocorre uma ligação subjetiva entre a
Na culpa inconsciente, o perigo alcança o bem jurídico fora do representação do agente na fase inicial de sua atividade e determinados re-
âmbito da consciência, de forma que falta já a própria vontade de que se sultados típicos,374 não constitui forma de culpabilidade de vontade375 e está,
verifique.364 Embora esta vontade possa existir em um momento anterior, por via de consequência, em contradição com a estrutura da culpabilidade
não será adequado, por exemplo, punir-se o médico pela omissão de estudar penal, a partir da culpabilidade ética.
na universidade e de ali adquirir conhecimentos suficientes para emitir um Na verdade, o princípio da culpabilidade como tal só reinará no direito
diagnóstico sobre determinada enfermidade.365 É que, neste caso, mesmo penal quando lhe for excluída a culpa inconsciente.376 Esta conclusão vigora,
havendo a vontade consciente de não estudar, esta não pode ser estendida igualmente, para a concepção normativa de culpabilidade, pois negligência
a situações posteriores indetermináveis, sob pena de adoção do princípio como pura normatividade não possui existência real. A culpabilidade nor-
do versari in re illicita.366 mativa deve, em todo caso, alicerçar-se em um núcleo real, expressando-se,
O esquecimento só fundamenta a culpabilidade de vontade quando precisamente, numa conduta psicoespiritual.
disser respeito à concentração sobre determinado objeto, jamais, porém, Essa conduta psicoespiritual, entretanto, não é verificável na culpa
abstrata e genericamente.367 Assim, a omissão acerca do dever, realizada inconsciente. O fato de que nela o agente tenha podido prever e evitar o
volitivamente, em uma fase anterior, só possui validade quando se incluir resultado, se tivesse atendido ao cuidado, atenção e diligência devidos,
na consciência de que essa omissão pode representar importância no sen- demonstra uma circunstância hipotética: a possibilidade da culpa, mas
tido de uma lesão de bens jurídicos.368 Diante desta colocação, entende não a própria culpa. Este problema, inclusive, não pode ser resolvido pelo
insubsistentes as concepções acerca da culpabilidade do esquecimento de conceito formal de reprovabilidade ou censurabilidade. Mesmo que se afir-
SIGRID FISCHER,369 bem como as tentativas de superação de BINDING, masse a validade de que o que é censurável não é o fato de que o agente
com o conceito extenso de vontade,370 de KÖHLER, acerca da indolência teria podido evitar o resultado, mas sim, de que não o evitara, essa censura
e do comodismo na comprovação do perigo,371 de KLEIN, KADECKA e se apresentaria como insubsistente, caso se salientasse que esse agente não
havia pensado na possibilidade de tal resultado, nem em fase anterior à
363. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 155.
364. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 156. ação, nem em qualquer momento de sua atividade.377
365. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 157.
366. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 156. A conclusão de ARTHUR KAUFMANN acerca da incompatibilidade
367. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 157.
368. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 157.
372. KADECKA, Ferdinand, “Willensstrafrecht und Verbrechensbegriff”, ZStW, 1940, p. 21, situava a culpa
369. FISCHER, Sigrid, (Das Vergessen als Fahrlässigkeit, Breslau-Neukirch, 1934, p. 64 et seq.), tentou inconsciente em um defeito de vontade, vinculando-se, portanto, em linhas gerais, a uma teoria ou
caracterizar o mero esquecimento, também, como culpabilidade de vontade, salientando que a causa concepção subjetiva; o defeito de vontade, entretanto, ao contrário dos autores filiados a essa concep-
deste esquecimento seria representada por defeito da necessária concentração; a concentração sobre ção, não seria entendido conforme a existência de uma “vontade má”, mas, sim, pela ausência de “boa
determinado objeto constituiria, por sua vez, parte integrante da vontade. Com base nisso, a reprovação vontade”. Esta posição de Kadecka reflete, segundo ele, a postura tomada, anteriormente, por Klein,
da negligência se manifestaria, portanto, sobre a ausência de concentração ou em uma concentração e encontra guarida, modernamente, entre outros, em MAURACH (Nota 65, p. 534), que submete a
defeituosa, assim, pois, sobre um elemento da consciência em vias de reprodução, em que seria decisivo conceituação da culpa inconsciente ao princípio do defeito de representação e vontade, ao afirmar que,
o momento para o qual se fundamentara o dever de concentração e se tornara conhecido do autor. aqui, “o autor atua porque, em virtude de insuficiente esforço de suas potencialidades de entendimento e
370. BINDING, Karl, Die Normen und ihre Übertretung, vol. II, p. 104 et seq., entendia que tudo seria vontade, não previu o resultado”, quer dizer, se perfila uma ausência de representação e de vontade, não
produzido pela vontade. Desta premissa fazia derivar a consequência de que a “vontade deve ser inde- uma vontade especialmente má.
pendente da representação do agente”, de modo que se pudera falar de “vontade inconsciente”, funda- 373. KAUFMANN, Arhur. Ob. cit., p. 157 et seq.; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 212.
mentadora da culpa inconsciente.
374. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 162.
371. KÖHLER, August, Probleme der Fahrlässigkeit, München: Beck , 1912, p. 81 et seq., procurava fun-
damentar a culpa inconsciente no fato de que o autor imputável, sem se encontrar em situação de ne- 375. KAUFMANN, Arthur, Ob. cit., p. 162-163.
cessidade, afastara, por ação volitiva, a tensão de melhor comprovar certo perigo para os bens jurídicos, 376. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 164.
como consequência de conduta planejada para a sua realização. 377. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 231.
156 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 157

entre negligência inconsciente e o princípio da culpabilidade, por ele concebi- culposos, a bipartição entre tipo objetivo e tipo subjetivo.383 Ao primeiro
do como culpabilidade ética, não implica, todavia, sua adoção no campo das agrega a lesão ao cuidado objetivo, tomado como seu elemento não-escri-
realizações práticas de política criminal. Ao contrário disso, essa conclusão to e identificado por meio de um juízo de complementação, anterior ao
apresenta-se unicamente como satisfação a especulações de ordem filosófica processo de sua subsunção. Nos delitos de resultado, também se inclui, no
e não político-criminal, pois estas últimas se vinculam, indiscutivelmente, tipo objetivo, a questão da imputação objetiva.384 Ao tipo subjetivo perten-
à forma de realização histórica do princípio da culpabilidade e não, exclusi- ceria o processo de imputação subjetiva, pelo qual seriam postos à prova o
vamente, à sua formulação ética.378 A colocação da negligência inconsciente conhecimento ou a previsão (na culpa consciente), ou o não-conhecimento,
diante das exigências do princípio da culpabilidade de vontade (culpabilidade mas a possibilidade desse conhecimento, ou a previsibilidade (na culpa
ética, culpabilidade penal) conduz, muito mais, a um melhor entendimento inconsciente) da produção do tipo objetivo.385
das normas penais do que, propriamente, a uma finalidade prática.379 No âmbito das causas de exclusão da antijuridicidade, são admitidos,
A consequência prática da não adoção das conclusões acerca da ne- principalmente, o consentimento presumido do ofendido e o estado de
gligência inconsciente, em face do princípio da culpabilidade, se faz notar, necessidade.386
porém, no setor dos delitos qualificados pelo resultado que, contrariando Já na culpabilidade deve ser posto à prova se o autor poderia ter evita-
os entendimentos e premissas firmados teoricamente por ARTHUR KAU- do, pessoalmente, a lesão objetiva de cuidado, constatada no tipo objetivo
FMANN, são tratados por este como forma de aplicação do princípio e resultante de um processo de subsunção de sua conduta a um parâmetro
versari in re illicita.380 Relativamente a isto, declara, por fim, espantosa- não-escrito.387
mente, que “somente fanáticos do princípio da culpabilidade, incapazes de
verem os limites de sua realização, podem retratar o pensamento do versari Ainda que, no setor da culpabilidade, o parâmetro da lesão ao dever
pura e simplesmente como um mal”. 381 de cuidado seja constituído pela capacidade individual do autor, na tipi-
cidade, o preenchimento do cuidado objetivo é aferido de acordo com o
Por este caminho seguiu, entre nós, também, EVERARDO CUNHA conceito do homem prudente e consciencioso, situado na posição social
LUNA, para quem, inexistindo a figura legal da preterintencionalidade, de- do autor e apreciado ex ante.388
veria ser considerada como mera responsabilidade objetiva a ocorrência do
resultado mais grave na lesão corporal seguida de morte.382 Por seu turno, as características da culpa consciente e inconsciente,
atendendo ao tratamento diversificado dos delitos culposos, devem ser ex-
(CC) A CONCEPÇÃO DE HAFT traídas tanto dos elementos do tipo quanto da culpabilidade. Assim, haverá
culpa consciente quando o sujeito tiver tomado como possível a realização do
Diversamente dos demais, HAFT reconhece à negligência uma dupla
tipo, embora tenha confiado, de modo contrário ao dever (conforme os pa-
função, no tipo de delito como uma forma de conduta, na culpabilidade
râmetros do tipo objetivo) e culpavelmente (segundo seu poder individual),
como forma de culpa. Ao tipo de conduta pertenceria a matéria referente
na sua não-realização (conforme os elementos do tipo subjetivo).389 Haverá
à norma objetiva de cuidado, à culpabilidade se somaria o cuidado subje-
culpa inconsciente, quando o sujeito, sem o reconhecer, deixar de atender
tivamente possível ao autor.
ao cuidado, ao qual estava obrigado e era capaz de atender, segundo as
Atendendo às características da conduta, HAFT prevê, nos delitos
383. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 67.
384. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 157.
378. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 164. 385. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 158.
379. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., 164-165. 386. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 163.
380. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 246. 387. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 158.
381. KAUFMANN, Arthur. Ob. cit., p. 246. 388. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 163.
382. LUNA, Everardo Cunha, nota a Giuseppe Bettiol, Direito penal, vol. II, p. 129. 389. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 160.
158 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 159

circunstâncias objetivas (do tipo objetivo) e suas condições pessoais (matéria entrelaçado nos esquemas causais, situando todo o conceito de ação a partir
da culpabilidade), e, em consequência disso, tiver realizado o tipo.390 da produção de um resultado, embora social. Igualmente, no mesmo esque-
Ainda que essas modalidades de negligência desempenhem as mesmas ma, ENGISCH. Em período posterior, ainda MAIHOFER que, mesmo
funções no âmbito do delito, HAFT reconhece que sua diferenciação é ne- superando, em tese, o problema da produção do resultado, não sabe como e
cessária no setor da quantificação da pena, por representar a culpa consciente onde tratar da direção volitiva da atividade, que lhe cai às mãos como ferro
um grau mais elevado de participação voluntária na consecução do fato.391 em brasa, concluindo por desnaturar inteiramente a teoria do delito e seu
Do mesmo modo, ainda que contraditoriamente, admite que tanto a culpa próprio conceito, ao colocar esse problema para ser resolvido no setor da
consciente quanto a inconsciente possam ser equiparadas, quando se mani- autoria, fora, portanto, segundo seu esquema, dos efeitos do conceito geral
festarem pela forma mais grave da leviandade, conceito este pouco preciso, e do conteúdo do injusto.
mas usado com frequência no direito alemão, em correspondência à conhe- Por outro lado, JESCHECK e WESSELS deixam-se conduzir de tal
cida culpa grave do direito civil. Não obstante, considera, de conformidade modo pelo sentido subjetivo da conduta, que se transformam quase em fi-
com a doutrina dominante, que haverá leviandade quando o cuidado que era nalistas, ou HAFT, cujo conceito de ação serve muito mais como elemento
devido ao autor tenha sido por este grosseiramente violado, isto é, de forma decorativo do que, propriamente, como fundamento da teoria do delito.
anormalmente elevada.392 Como não informa de que modo se deva medir Estas diversidades e contradições se passam, da mesma forma, com outros au-
essa lesão, deixa em aberto o problema se a leviandade deve ser tratada no tores, como, por exemplo, com ARTHUR KAUFMANN, que fundamenta
âmbito do tipo ou da culpabilidade. o agir num conceito pessoal-subjetivo, mas o vincula a aspectos de relevância
social, dando a tudo um verniz ético.
(3) CRÍTICA À TEORIA SOCIAL
De todas as questões que a teoria social apresenta, a mais discutida é a
Metodologicamente, a teoria social da ação apresenta semelhanças
que se refere ao conceito de relevância social, caracterizado como elemento
tanto com a teoria finalista e causal, quanto com a teoria normativa, o que a
integrante do conceito de ação, segundo a definição de JESCHECK . Quanto
transforma numa tentativa de formulação eclética. Dentro dessa perspectiva,
a isto se pode dizer que: a) não há unidade de conceituação do que seja con-
a teoria social sofre as críticas atribuídas às suas antecessoras e ainda mais os
duta socialmente relevante; b) o conceito de relevância social se confunde, na
reparos específicos, referentes à sua própria natureza.
maioria das vezes, com a característica da tipicidade, isto é, a ação socialmente
De maneira geral, o grande trunfo dessa teoria é situar o conceito de relevante será a que preencher um tipo legal; c) todas as condutas humanas
ação fora da esfera estritamente jurídica, o que possibilita sua construção realizadoras de um delito são socialmente relevantes; d) não se pode deter-
empírica. Interessante e significativa é, também, a proposta de um conceito minar nem se determina, de modo claro, qual a medida dessa relevância; e)
de ação mais amplo do que o resultante de dados puramente ontológicos, de finalmente, toda conceituação se resolve, no fundo, a expressões tautológicas.
modo a englobar, em si, os elementos da omissão e possibilitar sua contínua
Vejamos, por exemplo, o conceito e a colocação de JESCHECK, que,
renovação dentro da teoria do delito, conforme as várias tendências observa-
por ser o mais completo dos partidários da teoria social, possibilita melhor
das na alteração legislativa. Talvez o primeiro ponto positivo dessa teoria seja
visualização do problema. Para ele, a ação, ao ser tomada como conduta
este: o de poder superar a alteração legislativa, sem dela se fazer depender.
socialmente relevante, implicaria toda resposta do homem a uma exigência
A maior falha que se observa é sua desarmonia sistemática, devido situacional reconhecida ou reconhecível, efetuada segundo a opção que lhe
à diversidade de diretrizes, o que, de certa forma, se verifica em todos os era disponível no plano de liberdade. Significa, assim, que a ação é reação
sistemas ecléticos. Assim, vemos, por exemplo, EBERHARD SCHMIDT a um estímulo, o que o liga ao positivismo biológico. Por outro lado, a
390. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 160. ligação estímulo-resposta não se concretiza mecanicamente, mas por meio
391. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 161. de um ato de liberdade, aproximando-se, com isso, da filosofia kantiana.
392. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, p. 161.
160 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 161

Essa visão eclética de JESCHECK aproxima-o das posturas fenomenológi- Essa identificação da relevância social com a dirigibilidade da conduta
cas contemporâneas.393 Isto, porém, não soluciona a questão da relevância implica a reconceituação do próprio valor, que se transforma, por conseguin-
social. Diante dessa, JESCHECK segue com destino a um sociologismo te, em elemento da ontologia, ainda que JESCHECK procure negá-lo. Essa
existencial, afirmando que socialmente relevante será a conduta que impli- contradição é alcançada devido à permeabilidade da expressão “relevância
que relacionamento do indivíduo com seu mundo social, quer dizer, que se social”, que tudo pode significar, dependendo da proposta metodológica do
projete na esfera social de outros homens, segundo seus efeitos. Ao admitir penalista. Só se pode reconhecer um caminho para transpor esse obstáculo:
que tudo se resume na produção de efeitos sociais, cede lugar à formulação negar-se à concepção social da ação a qualidade de uma teoria autônoma
de EBERHARD SCHMIDT e passa a trabalhar com um conceito causal de do agir, para apresentá-la como forma especial de aparecimento da teoria
ação. Aliás, JESCHECK não se importa com isso, pois reafirma enfaticamen- finalista. Com isso, entretanto, ainda resta examinar-lhe a validade como
te que a conduta humana pode limitar-se, algumas vezes, à mera causação fundamentadora dos crimes omissivos.
de efeitos. Ao contrário de EBERHARD SCHMIDT e, nisso, muito supe- É interessante notar que a teoria social da ação não fomentou, demais,
rior, procura JESCHECK deixar bem nítida a característica finalista de sua a elaboração de sistemas próprios da teoria do delito. Com exceção de
concepção, quando subordina a produção causal desses efeitos ao domínio JESCHECK e WESSELS, a consequência dessa teoria foi diversificada
volitivo do homem, isto é, a conduta socialmente relevante resume-se naque- através de seus representantes, segundo os traços do sistema causal, em
la que é dominada pela vontade, tese esta tipicamente welzeliana. que a preocupação científica se resume, seguidamente, no enfoque de um
Assim, essa formulação carece de autonomia suficiente que lhe imprima aspecto especial de certa questão jurídico-penal do que, propriamente, na
o rótulo de essencial e originalmente axiológica. Mesmo quando WESSELS, estruturação da teoria do delito.
por sua vez, no mesmo ritmo de JESCHECK, talvez percebendo as conse- Relativamente à teoria do delito, JESCHECK e WESSELS mostram-se
quências de sua vinculação finalista e de sua dependência a outros sistemas, coerentes com seus pontos de referência, afigurando-se correta a colocação do
entende que o conceito de relevância decorra da possibilidade de se emitir dolo no tipo de injusto e a divisão dos fatos puníveis em três grandes categorias:
sobre a conduta questionada um juízo de valor, que engendra, por si, uma dos crimes dolosos, culposos e omissivos. Com a adoção, porém, da teoria do
posição axiológica, admite também essa característica através da produção de ânimo, são observadas grandes e graves contradições no setor da culpabilidade,
efeitos sociais, isto é, se fixa no resultado causalmente verificado.394 sujeitando-se aqui às mesmas observações feitas à teoria normativista.
JESCHECK não consegue libertar-se do finalismo, ainda quando es- Igualmente não se mostra convincente a estrutura normativa proposta
tabelece a distinção entre finalidade do agir comissivo e dirigibilidade na por JESCHECK, de que o direito penal se ocupa da determinação e orienta-
omissão, pois essa dirigibilidade se coaduna, perfeitamente, com as moder- ção de conduta interna, de um querer correto. Muito ao contrário, ao direito
nas proposições de WELZEL, relativas à estrutura cibernética da conduta penal importa, em primeiro plano, a delimitação de sua esfera de atuação,
humana. Assim, a concepção de JESCHECK, também por isso, não pode, tendo como base a lesão ou o perigo de lesão aos bens jurídicos; depois é
decididamente, ser caracterizada como uma teoria puramente axiológica, que se deve ocupar da vontade do indivíduo e sempre na medida em que
mas, sim, como finalista, expressa sob outra forma, aqui através da chamada esta vontade interesse diretamente à caracterização do fato delituoso ou de seus
relevância social da ação. Todos os intentos em demonstrar o contrário e elementos essenciais. Tomar atitude diversa significa, sem dúvida, subjetivar-se
fundar, por exemplo, a autonomia da conduta omissiva fora do âmbito on- demasiadamente o direito penal e suas normas, a ponto de deslocá-lo de sua
tológico, precisamente, no setor da relevância social, caem por terra quando verdadeira função e passar a tratá-lo como instrumento de pedagogia social,
se nota que o dado de valor se resume no dado ôntico da dirigibilidade. decididamente um completo absurdo.
393. Para uma visão fenomenológica da liberdade no âmbito das estruturas: GILES, Thomas. Crítica feno- A caracterização do direito penal como instrumento de coação interna
menológica da psicologia experimental em M. Merleau Ponty, Petrópolis: Vozes, 1979, p. 395 et seq.
394. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 28. não resolve, ademais, os problemas da criminalidade e, por outro lado, é
162 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 163

inteiramente arbitrária, pois infringe o princípio da legalidade, conforme A colocação de JESCHECK e WESSELS, quanto ao fato culposo, é
já se afirmou atrás. O pensamento contrário, que estrutura e fundamenta o mais moderna e infinitamente melhor elaborada do que a dos demais segui-
direito penal, exclusiva ou basicamente, em face da lesão de bens jurídicos, dores da teoria social da ação. De início, pode-se dizer que esta colocação é
que vem desde BIRNBAUM, é mais liberal e, adotando-o, não significa coerente com a postura da atividade finalista que acatam; também, insere-se
que se admita, como entende JESCHECK ad argumentandum, que as me- ela num sistema global autônomo, capaz de dar condições para análise minu-
didas de segurança possam ser impostas pela autoridade policial. Esta não é dente dos fatos isolados; afasta-se do causalismo e procura fundamentação no
uma questão da estrutura normativa, como pretende JESCHECK, mas da desenvolvimento da atividade, conforme o cuidado ou desconforme com ele,
organização política do Estado, da constituição e competência dos diversos juntamente com indagações acerca das perspectivas individuais do agente;
órgãos encarregados de aplicar o direito, dos princípios institucionalizados finalmente, pretende ajustar aos fatos negligentes regras e conceitos de anti-
de garantia individual. juridicidade e causas justificantes e da culpabilidade. Em sua oposição pode
No setor da relação tipo-antijuridicidade, a assunção por JESCHECK ser destacado o seguinte: o atendimento, nem sempre correto, do critério do
da teoria da tipicidade como ratio essendi da antijuridicidade não produz, homem prudente, inteligente e consciencioso, como medida determinadora
na prática, as mesmas consequências da tese de MEZGER. No fundo, irá da previsibilidade objetiva; a adoção, especialmente em JESCHECK, de
desembocar na mesma conclusão da tese de MAX ERNST MAYER, de versão modificada da tese da antijuridicidade tipificada; a ênfase, ao sistema-
que, na antijuridicidade, o que se questiona é tão-só acerca da existência ou tizar a culpabilidade, no princípio do ânimo adverso ao direito e a solução,
da ausência de causas de justificação. Para chegar-se a isso, contudo, não é por meio da evitabilidade, do problema da imputação do resultado. Algumas
necessário adotar-se outra estrutura normativa, como propõe JESCHECK, das objeções e de certos pontos positivos já foram discutidas anteriormente,
pois tal resulta da função do próprio tipo de injusto. Em nosso direito, essa quando da análise de outras teorias, razão por que se torna desnecessário
é a posição tradicionalmente defendida.395 repeti-las. Entre os aspectos tratados, três merecem análise de maior profun-
didade: a) a questão do conteúdo da ação culposa; b) a estrutura do injusto;
No tratamento da negligência, situa-se, talvez, a contribuição mais c) a constituição da culpabilidade.
significativa da teoria social. Antes de tudo, é preciso louvar a clarividência
de ENGISCH, de dividir a investigação do fato culposo em duas fases: da A questão do conteúdo da ação culposa envolve, de modo geral, toda
lesão ao cuidado objetivo (na antijuridicidade) e da previsibilidade (na cul- conceituação de conduta, pois aqui se trata de determinar se a ação culposa
pabilidade). Este enfoque revolucionou, sem a menor dúvida, o método de guarda características causais, finais ou axiológicas e se ela se resume, efeti-
trabalho de casos e importou em nova e dinâmica compreensão do injusto vamente, num agir ou em uma omissão.
desses delitos, que não se caracterizaria mais pela mera causação do resultado, O primeiro aspecto encontra-se a rigor superado pelos autores, ao
mas, sim, pela forma ou pelo modo de se conduzir a atividade. Entretanto, considerarem que, na ação culposa, tanto será possível quanto relegável
ainda que aqui tenha surgido a nova ideia, até o presente não se alcançou total a consideração de finalidade. O que, de modo decisivo, vem esclarecer a
unidade de pensamento neste setor. HAFT, por exemplo, não reconhece um questão é a proposta da fórmula da relevância social da conduta, tomada
tratamento distinto para os delitos dolosos e culposos, inserindo a negligên- por JESCHECK no sentido da ação cibernética de WELZEL. Mesmo na
cia no âmbito do tipo e da culpabilidade do delito em geral, basicamente, conduta culposa, em que não se busque um fim específico, no sentido de
portanto, no tipo de delito doloso. objetivo determinado, há dirigibilidade volitiva e isto basta para identificar
essa conduta como jurídico-penalmente relevante. Aqui, porém, continua em
395. BRUNO, Aníbal. Nota 45, p. 233; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 171; MARQUES, José vigor a crítica que se fez acima, de que a conceituação da “relevância social”
Frederico. Tratado de direito penal, vol. II, p. 97; PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 313; HUNGRIA,
Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II, p. 21; QUEIROZ FILHO, A. Lições de direito não exprime claramente as pretensões da teoria social da ação e seu verda-
penal, p. 163. Contra esta posição, entendendo, recentemente, que a tipicidade constitui a ratio essendi deiro sentido. Por outro lado, fica em aberto, na área da conduta, a fixação
da antijuridicidade, REALE JÚNIOR, Miguel Instituições de direito penal, Rio de Janeiro: Forense,
2002, vol. 1, p. 146.
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das características de tal ação como culposa ou como dolosa, pois isto será abstraídas de considerações hipotéticas e se basearem em dados concretos e
tarefa do tipo de injusto. Entretanto, se isto é tarefa do tipo de injusto, então sólidos, pois só dessa forma se pode admitir validade a um dever jurídico, pelo
não há por que se preocupar com ela no setor da ação: basta a determinação próprio princípio da legalidade. A solução estaria ou na adoção do princípio
de caracteres gerais comuns e estará preenchida sua função. Vê-se, pois, que proposto por STRATENWERTH, JAKOBS e outros, de que todo dever será
toda problemática de enquadramento da ação culposa no conceito de ação medido segundo as condições pessoais do agente, o que é controvertido, em
pode ser contornada por meio de um conceito geral, independentemente da se tratando de injusto penal, ou no fortalecimento da tese de MESTIERI, da
caracterização própria dessa modalidade de ação. experiência geral da vida, ou de ZAFFARONI, do standard mínimo. Ainda
O que resta examinar é, portanto, se o conceito de JESCHECK e que, nas duas últimas fórmulas, se constatem lacunas, são elas mais concretas e
WESSELS é compatível com certa estrutura real da conduta humana ou reais do que o conceito de homem prudente, consciencioso e inteligente. Igual
com certas formas de aparecimento dessa conduta, entre as quais figura a raciocínio vale para a determinação da previsibilidade do resultado, que, para
ação culposa. Pelo visto, a posição que assumem não apresenta, nessa matéria, JESCHECK e WESSELS, será aferida também por esse critério.
qualquer novidade quanto às concepções anteriores criticadas, principal- O injusto dos delitos culposos apresenta, aqui, a mesma estrutura dos
mente quanto ao finalismo em sua fase recente. Dentro das dificuldades delitos dolosos, quanto à caracterização do sistema da antijuridicidade e
que surgem nesse terreno e entre as concepções até agora compreendidas de quanto à relação tipo-antijuridicidade, que já foi objeto de crítica anterior.
modo completo e integral acerca da teoria do delito, pode-se afirmar, porém, O que deve ser salientado, como particularidade, na estrutura do injusto dos
que a orientação desses autores pode estar apta para englobar, no conceito delitos culposos, é a consideração do resultado como elemento integrante e
geral de ação, como “conduta socialmente relevante”, tanto a manifestação fundamentador da ilicitude penal, interligando corretamente o significado e
consciente intencional quanto a descuidada ou desatenta. Ao aspecto de se a importância do desvalor da ação e do desvalor do resultado. JESCHECK
saber se a negligência faz parte ou não da conduta positiva ou da omissão, e WESSELS dão, com isso, um passo à frente do finalismo, que toma o
isto será determinado no tipo de injusto, pois tal conclusão escapa, nesses resultado secundariamente, ainda que não o desprezando, como faz, por
autores, ao âmbito das perspectivas concretas ao conceito de ação. Nesse sen- exemplo, WELZEL, ou, sem sentido extremo, até tendo-o como mera con-
tido, JESCHECK e WESSELS atuam de comum acordo, quando entendem dição objetiva de punibilidade, como pretendem, por exemplo, ARMIN
que, na negligência, o que há é o desatendimento de deveres de cuidado, ou KAUFMANN, SCHAFFSTEIN e ZIELINSKI.396
seja, eminentemente conduta omissiva. Criticável é, nesse caso, a falta de Na fundamentação do injusto dos delitos de resultado – os delitos
fundamentação para tal assertiva, por exemplo, do fato culposo como delito culposos são em sua esmagadora maioria delitos de resultado –, basear-se
de dever, aos moldes da tese de ROXIN. Inclusive a ausência de tal caracte- tão-só no desvalor da ação é desprezar e desperceber as funções limitativas
rística deixa duvidoso o entendimento acerca do conteúdo da ação culposa, do direito penal com base na lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos. Se
pois tanto JESCHECK quanto WESSELS empregam indistintamente as o desvalor da ação possibilita a identificação da conduta culposa, o resultado
expressões “omissão e lesão”, ao fazerem referência aos deveres objetivos de é que a transforma em jurídico-penalmente relevante, daí ser perfeitamente
cuidado na estrutura do tipo de injusto. louvável tratar os delitos culposos e dolosos, simultaneamente, dentro de um
Vale notar que a assunção da negligência como omissão, no tipo de mesmo critério. Além disso, a importância do desvalor do resultado não para
injusto, implica reformular o conceito de homem prudente e consciencio- no conteúdo do injusto, pois está intimamente ligado, ainda, à interpretação
so ou inteligente. Se o fato culposo é um delito-dever, por exemplo, surgem
396. KAUFMANN, Armin. “Das fahrlässige Delikt”, in ZfRV, 1964, p. 41; SCHAFFSTEIN, Friedrich.
dificuldades de se encontrar um padrão para medir-se o grau de exigência e “Handlungsunwert bei den Fahrlässsigkeitsdelikten”, in Festschrift für Hans Welzel, 1974, p. 561; ZIE-
LINSKI, Diethart. Handlungs und Erfolgsunwert im Unrechtsbegriff, 1973, p. 128. Com este pensa-
de cumprimento desse dever. Para isto o conceito de homem prudente não mento, também HORN, Eckhart. Konkrete Gefährdungsdelikte, Bonn, Habilitationsschrift, 1973, p.78,
satisfaz. Se o delito culposo é delito-dever, as soluções propostas devem estar e a doutrina italiana tradicional, como, por exemplo, MANZINI, Vicenzo. Tratatto di diritto penale,
vol, I, p. 638, e VANNINI, Ottorino. “Le condizione estrinseche di punibilità nella strutura del reato”, in
Studi senesi, vol. 43, p. 45.
166 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 167

das causas de justificação e à gradação da culpabilidade. determinar-se o que é e o que não é evitável.
Nas causas de justificação, por exemplo, se tratarmos tão-somente do HELLMUTH MAYER coloca-se em posição contraditória, pois
desvalor da ação, deixaremos de compreender a extensão dos elementos admite a existência de uma ação fora do âmbito estrito do direito penal e,
subjetivos aí interferentes, bem como não será possível, em contrapartida, ao mesmo tempo, formula toda sua teoria do delito a partir do tipo legal,
lidar-se com um conceito exclusivamente objetivo. Em qualquer caso, será sem se importar com esse conceito naturalístico de ação. Esta duplicidade
incompreensível, sem o resultado, trabalhar-se com critérios pessoais de de abordagem torna-se complicada e não deixa de sujeitar-se a reparos. Me-
previsibilidade e evitabilidade, como elementos do juízo de culpabilidade. todologicamente situa-se, a princípio, de modo correto, ao ver, na atividade
Até mesmo na aplicação da pena, o desvalor do resultado aferido no injusto humana, tanto caracteres causais, como finais e sociais. Na verdade, isto
e, notadamente, na culpabilidade, influi de modo explícito, conforme a parece estar isento de contestação. Entretanto, é plenamente contraditório
regra da individualização do art. 59 do Código Penal, que manda atender afirmar-se, em primeiro lugar, que há necessidade de um conceito de ação
às consequências do delito. fora do direito penal, para o efeito de estabelecer a diferença entre o agir e
Especificamente a WESSELS, além das considerações já feitas junta- o omitir-se e, depois, reafirmar-se que só o que interessa, efetivamente, é a
mente com JESCHECK, deve-se ressaltar a inclusão, no tipo de injusto e na conduta causal-típica para estabelecerem-se os casos de ausência de ação com
culpabilidade, do critério da evitabilidade, que funciona, como já foi visto, base na direção final da vontade. Assim, não se mostra coerente esse sistema,
como pressuposto desses elementos do delito. A adoção de tal critério aparece pois prevê três direções antagônicas, pelo menos metodologicamente, quando
para limitar a responsabilidade do indivíduo diante de certos acontecimen- trata do conceito de ação, de sua importância na configuração do delito e de
tos situados na chamada zona de fronteira entre o punível e o impunível, e situações identificadoras de sua qualidade.
também para solucionar a questão do relacionamento entre a desatenção ao Relativamente à preocupação de diferenciar o agir do omitir-se, HELL-
dever de cuidado e o resultado típico, que se aplica aos exemplos discutidos MUTH MAYER submete-se à crítica geral lançada ao causalismo e até ao
de imputação objetiva, normalmente levados em conta por ROXIN, com finalismo, pois se a omissão é pautada pela infração a um dever de agir, não pode
acentuada relevância no processo penal. subordinar-se a dado naturalístico. Também, adotando o conceito mínimo de
O critério da evitabilidade só tem serventia, porém, se aplicado su- conduta do causalismo, como um comportamento voluntário que produz um
pletivamente ao da previsibilidade, pois, caso contrário, em vez de limitar, resultado no mundo exterior, não pode compreender, senão sob o pressuposto
pode ampliar a responsabilidade do réu. Aliás, WESSELS não fornece um de negação desse conceito, como essa atividade possa ser analisada, também,
conceito de evitabilidade ou do que se deve entender por evitável, deixando-o sob o ângulo da direção final da vontade e de sua relevância social.
a cargo de uma decisão empírica. Como solução, faz referências lacônica aos Ao tentar, ao lado do conceito de ação causal, estruturar um conceito
critérios da teoria da causalidade adequada, que ele mesmo desenvolve na material de ação, subjacente ao acontecimento típico, considerado fenome-
elaboração da teoria da imputação objetiva do resultado.397 De acordo com nicamente como fundamento para a aferição da antijuridicidade, o autor
ela, teríamos de entender por evitável o acontecimento que se envolve com o nada mais faz do que manipular conceitos antagônicos dentro de um mesmo
autor através de processo causal típico, julgado segundo o método da prognose propósito, isto é, tornar seu sistema adequado à compreensão de todas as
posterior objetiva. O método da prognose, porém, sujeita o julgamento, quase variantes e formas diversificadas do comportamento humano. Essa tentativa,
que inteiramente, ao entendimento subjetivo do juiz, ainda que colocado porém, não pode ser tida como eficaz, pois suscita muitas dúvidas e incertezas
na posição do autor, antes do resultado. Isto não oferece garantia alguma acerca do que, especificamente, constitua uma ação penalmente relevante.
de que se promova uma verdadeira investigação da evitabilidade, tendo em Sistematicamente, HELLMUTH MAYER não obtém êxito na sepa-
vista até mesmo que, já no plano absolutamente objetivo, se torna impossível ração dialética dos elementos do delito, sobretudo entre a antijuridicidade
397. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 232. objetiva e a culpabilidade subjetiva, porque admite no setor do injusto
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elementos subjetivos e, na culpabilidade, objetivos. Essa divisão dialética ARTHUR KAUFMANN mantém-se numa posição polêmica, tanto
do fato delituoso não é, de per si, inadequada, porém, não será adequada no que toca ao fundamento da culpabilidade, quanto à análise da culpa
na medida em que se exteriorize na bipartição injusto-culpabilidade. Na inconsciente e sua compatibilidade e repercussões para com o princípio da
verdade, dialética é a ação humana ou dialético será o tratamento típico do liberdade de vontade.
conflito social, tanto quando se trate de objeto de análise quanto seja apre- A premissa inicial de ARTHUR KAUFMANN, de que toda cul-
ciada a partir do agente. Neste aspecto, o finalismo se mostra muito mais pabilidade jurídico-penal é culpabilidade ética, contradiz o princípio da
dialético do que a construção proposta por HELLMUTH MAYER, porque independência, pelo menos relativa, entre direito e ética. O autor deseja, a
não desconsidera no injusto o lado subjetivo da conduta, tomando-a como todo custo, vincular esses dois ramos do conhecimento humano, de tal sorte
unidade integral, bem como exprime o juízo de censura na culpabilidade que o juiz, ao aplicar a pena, não agiria em nome do Estado e como seu
com base em elementos subjetivo-pessoais do agente e segundo o poder de representante, mas em nome da moral social. As outras premissas por ele de-
agir de outro modo, vale dizer, inter-relacionando-os com uma base objetiva. fendidas quanto à negligência inserem-se em contexto relevante, mas quedam
No âmbito dos delitos culposos, HELLMUTH MAYER mantém-se no mesmo lugar, quando se verifica que o próprio autor não adota, na prática,
de acordo com a moderna teoria causal, como é formulada, por exemplo, por o fundamento teórico invocado na caracterização da culpabilidade.
BAUMANN, mas com a agravante de não estabelecer nitidamente a separação Relativamente ao conceito de culpabilidade, como culpabilidade moral,
entre antijuridicidade e culpabilidade. Isto acontecia com o finalismo em seus a discussão remonta aos gregos clássicos, em que se notam alternâncias entre
primeiros passos, ao inserir, por exemplo, como medida do atendimento aos a consideração da responsabilidade puramente moral, decorrente da hybris,
deveres de cuidado, a experiência geral dependente da capacidade individual, e a exigência de conhecimento do fato injusto.398
conforme o critério da exigibilidade. Apesar disso, ao tratar da culpabilidade,
não segue a teoria do ânimo adverso ao direito, sendo salutar salientar-se, como A vinculação do direito à ética e, consequentemente, do princípio
o faz, que o homem deve ser punido pelo que realmente praticou e não pelo da culpa à reprovação moral manteve-se praticamente inalterada até o
que é. Essa posição apresenta contornos liberais e está de conformidade com século XVII e início do século XVIII, quando aparecem as tentativas de
as exigências de atendimento à garantia individual, muito embora o autor, no sua separação, notadamente com as obras de SAMUEL PUFENDORF e
campo do injusto, pretenda, no fundo, basear o delito e, consequentemente, CHRISTIAN THOMASIUS. Em PUFENDORF, a separação entre di-
todo o direito penal na esfera da infração a deveres jurídicos. reito e moral se pronuncia, basicamente, no âmbito da imposição da pena,
para a qual institui o pressuposto da imputabilidade. A imputabilidade
Mesmo ressaltando-se a validade dessa concepção de culpabilidade, isto significaria, então, que a ação livre devesse ser vista como própria do autor
não obsta a que se encontrem, em seu conteúdo, fórmulas nem sempre cor- (ad ipsum proprie pertinens) e, por isso, também como fundamento (causa
retas. É o que se verifica, por exemplo, com o critério da previsibilidade, que
o autor procura substituir, mas com carência de originalidade, pelo critério
da evitabilidade, sem precisar-lhe os fundamentos. Neste aspecto, como já 398. A expressão hybris implica várias conotações. Segundo ABBAGNANO, Diccionario de filosofia, p.
afirmamos, o melhor seria propor-se uma conjugação de ambos os critérios, 631, entendia-se por hybris qualquer violação da medida ou dos limites que o homem deveria manter
em suas relações com outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas. Por sua vez, JIMÉ-
como solução de reforço, até que se criem outros meios mais seguros de deter- NEZ DE ASÚA, Luís. Tratado de derecho penal, vol. V, p. 104, seguindo as informações de Kelsen
e Del Grande, afirmava que hybris significava sempre o mal, ao qual se respondia com uma pena, ne-
minação da responsabilidade; mas será necessário, em qualquer caso, indicar mesis. Para que pudesse exercer uma punição contra aquele que se contaminava com o mal, ou hybris,
o direito grego passou, entretanto, da responsabilidade pela mera causalidade objetiva à exigência de
seus fundamentos. Todo questionamento da fórmula da previsibilidade não culpabilidade. Nas hipóteses de responsabilidade individual das conhecidas tragédias, principalmente
de Orestes (Ésquilo) e Édipo (Sófocles), há uma constante tensão entre a punição a partir da causa e a
se mantém pelo fato de se pretender superá-la por meios suplementares, ponderação do conhecimento sobre o fato. Embora, por exemplo, Sófocles quisesse exprimir a crença
na culpa pelo ato involuntário, a justiça só seria efetivada se o sujeito conhecesse o fato. Assim, por
mas, sim, em face da sua substituição por critérios nem sempre explícitos, este princípio, Édipo deveria ser inocente, pois ignorava que o homem que matara fosse seu pai, como
dos quais não escapa HELLMUTH MAYER. também que a mulher com a qual mantivera relações sexuais fosse sua mãe. Sobre a evolução do con-
ceito de hybris e sua superação na filosofia clássica grega, ver LAMER-KROH, Wörterbuch der Antike,
Stuttgart: Kröner, 1995, p. 323.
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moralis) para a sua responsabilidade.399 Desta forma, PUFENDORF já fundamento da reprovação é que se deve invocar para a culpabilidade um
anuncia o princípio da imputação objetiva, mais tarde desenvolvido por conteúdo moral, pois, caso contrário estar-se-ia fazendo tabula rasa do
HEGEL e acolhido pela doutrina penal da atualidade, sob o critério de que, princípio da legalidade, com sérios prejuízos à liberdade individual.
para a responsabilidade, não basta a relação de causalidade, mas que o fato Sob outro aspecto, a consideração da culpabilidade jurídica não implica
seja considerado como obra própria do agente. Por seu turno, THOMA- a negação da liberdade de vontade ou da culpabilidade de vontade, como
SIUS quer tratar a questão no setor das regras incidentes sobre a conduta, pretende fazer crer ARTHUR KAUFMANN, nem tampouco será inviável
esclarecendo que, enquanto a moral se ocupa dos aspectos internos dessa um dever jurídico sem que se constitua, antes, em dever moral.
conduta, ou seja, do sentimento, o direito estabelece a noção de injusto e
justo, com base na legalidade externa.400 A relativa independência entre direito e ética, hoje defendida pela opi-
nião dominante, salienta claramente que, mesmo que um dever legal não
A partir das ponderações de PUFENDORF e THOMASIUS, a cul- possua o respaldo da ética social, permanece como exigível até que sua lega-
pabilidade começa a ser vista sob plano estritamente jurídico, sendo esta a lidade seja contestada por outra lei ou pelo costume, nesta última hipótese,
concepção atualmente dominante.401 De todos os argumentos invocados evidentemente, como norma derrogatória de sua eficácia.402 Claro está que,
para separar-se a culpabilidade ética da culpabilidade jurídica, talvez o mais de conformidade com a lei brasileira de introdução às normas, uma lei só
válido seja aquele que afirma a exigência, para esta última, de se referir ine- poderá ser revogada por outra lei.403 Contudo, o costume pode torná-la ine-
vitavelmente a um fato típico e antijurídico. Na verdade, toda construção da ficaz, acarretando, na prática, sua não observância, embora ainda continue
culpabilidade ética esbarra principalmente neste obstáculo, de que o direito em vigência. A ineficácia constitui, então, uma causa de exclusão do juízo
penal só está interessado pelas condutas que, descrevendo um delito previsto de antinormatividade, gerado com o preenchimento do tipo legal de delito.
na lei penal, violem os mandamentos ou proibições normativos, indepen-
dentemente dos preceitos de bem e mal, que lhe podem ser agregados, ou do Igualmente, a liberdade de vontade não está irremediavelmente impli-
sentimento do autor. Esta deve ser, em última análise, a posição do jurista, cada na configuração moral. Mais do que isso, será admissível reconhecer-se
daí ser absolutamente descabida a tese de que a culpabilidade seria apenas que, na culpabilidade, o que vale é o poder do agente de agir de outro modo,
um pressuposto da pena, com a qual se possibilitaria fundá-la em qualquer em face das circunstâncias concretas do fato que condicionam seu compor-
preceito, tanto na moral quanto na conduta de vida ou no caráter. tamento ou nele exercem substancial influência.

Está claro, porém, que a construção de uma culpabilidade formal- Esse reconhecimento do “poder atuar de outro modo” depende mais das
mente jurídica se coloca, às vezes, em desacordo com os fins do próprio condições pessoais do agente do que propriamente da reprovação ético-social
direito. Se, por um lado, a culpabilidade deve ser avaliada segundo os do comportamento. Uma conduta pode ser censurada ético-socialmente e,
dados do direito e não da moral, por outro lado, será sempre passível apesar disso, ser o agente declarado desculpado pela aplicação do princípio
de reconhecimento a indagação acerca da aprovação ético-social da con- da inexigibilidade de outra conduta.
duta formalmente culpável como causa ou circunstância atenuante, ou Aliás, os casos aventados de inexigibilidade de conduta diversa são,
como causa de exculpação. Mas tão-somente neste sentido e não como em sua maioria, reprovados pela moral, embora o agente não sofra qualquer
sanção jurídica. Isto está bem e nitidamente demonstrado, por exemplo, nas
399. PUFENDORF, Samuel. De iure naturae et gentium, 1694, I, V, § 3. situações de estado de necessidade exculpante, nas colisões de deveres ou no
400. THOMASIUS, Christian. Fundamenta iuris naturae et gentium ex communi deducta, 1705, I, 4, § 89 et
seq.
401. BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 373; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 422; MEZGER, Ed- 402. Com sentido semelhante, mas quanto à convicção do autor, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 419;
mund. Tratado de derecho penal, vol. II, p. 17; WELZEL, Hans. “Zum Notstandsproblem”, in ZStW, WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 127. Relativamente à força derrogatória do costume, JESCHECK-
1951, p. 47; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 127. Entre nós, PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 347; -WEIGEND. Nota 7, p. 112; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 97; STRATENWERTH, Günter. Nota
Miguel Reale Júnior, Instituições de direito penal, parte geral, vol. 1, p. 188. No sentido de um fun- 126, p. 57. Entre nós, timidamente, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 87; contra, PRADO, Luiz
damento ético da culpabilidade, semelhante ao de Arthur Kaufmann, situam-se FIGUEIREDO DIAS, Regis. Nota 198, p. 135.
Jorge de. Questões penais fundamentais revisitadas, S. Paulo: RT, 1999, p. 129, e BETTIOL, Giuseppe. 403. Decreto-Lei 4657/42, com redação da Lei 12.376/2010, art. 2º: Não se destinando à vigência temporá-
Direito penal, pg, p. 29. ria, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
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excesso escusável da legítima defesa, nos quais o autor violaria, em princípio, naquela a consciência e vontade acerca do perigo de forma independente da
uma regra moral, mas nem por isso seria considerado culpado. lesão do respectivo bem jurídico.406 Assim, se o autor quer conscientemente
Na questão da negligência, a concepção de ARTHUR KAUFMANN o perigo de lesão ao bem jurídico, deve querer consequentemente também
apresenta-se, às vezes, de forma contraditória. Primeiramente, reconhece a essa lesão.407 Por outro lado, a simples diferença entre dolo de perigo e dolo
existência do delito culposo; depois, entretanto, acrescenta que, no caso de de dano é, teoricamente, insubsistente sem a referência específica a determi-
culpa consciente, trata-se não de negligência, mas de dolo de perigo; mais nados tipos de delito contidos no Código Penal.408
tarde, reafirma a separação entre dolo eventual e culpa consciente; finalmente, Na verdade, a identificação entre dolo de perigo e culpa consciente conduz
chega à conclusão de que a culpa inconsciente está em desacordo com o princí- a duas consequências inafastáveis: a) a impossibilidade de se estabelecer,
pio da culpabilidade de vontade, mas não adota as últimas consequências desta diante disso, a diferença entre dolo eventual e culpa consciente; b) a im-
afirmação, reconhecendo a necessidade prática de se punir o delito culposo, possibilidade de se admitir a forma da culpa consciente quanto aos delitos
mesmo na forma de culpa inconsciente. O mesmo raciocínio contraditório culposos de perigo previstos expressamente no Código Penal, por exemplo,
se estende ao campo dos delitos qualificados pelo resultado, para os quais, ao nos arts. 250, § 2o; 251, § 3o; 252, parágrafo único; 256, parágrafo único;
mesmo tempo, salienta o perigo do princípio da responsabilidade pelo re- 259, parágrafo único; 270, § 2o; 271, parágrafo único; 273, § 2o; 278, pa-
sultado, mas, depois, reafirma o exagero daqueles que pretendem excluir do rágrafo único; 280, parágrafo único, nos quais todas as ações importam
direito penal o versari in re illicita. unicamente na realização do perigo, na maioria das vezes, concretamente,
De todas as posições assumidas, as mais importantes são as que pre- sem solicitação de qualquer resultado lesivo material. Nestes casos, tornar-
tendem reconhecer, na culpa consciente, uma modalidade de dolo de perigo -se-ia extremamente difícil a separação das respectivas responsabilidades, por
e as de caracterizar a culpa inconsciente como uma forma de negligência dolo ou negligência, indispensável até mesmo para a tipificação dos delitos.
absolutamente incompatível com a culpabilidade de vontade. A tarefa de ARTHUR KAUFMANN de procurar ainda remediar essas
Antes de tudo, deve-se reafirmar que a tese da culpabilidade como críticas, ao estabelecer a distinção entre culpa consciente e dolo eventual com
culpabilidade de vontade é perfeitamente adequada diante dos preceitos de base no critério do consentimento (Einwilligungstheorie), em vez de corro-
garantia e do princípio da legalidade, pois é a única que faz incidir a repro- borar sua tese inicial, vem ao encontro de seus opositores. Se o agente, no
vação sobre o agente com base no fato injusto, sem referência ao caráter ou caso de dolo eventual, consente no resultado e não no perigo, como afirma
às condições de sua conduta anterior. Todas as tentativas de superação dessa ARTHUR KAUFMANN, como ficaria, então, o problema dos delitos de
tese têm o mesmo defeito, de tornar insegura a aplicação do direito, quer perigo abstrato, em que não há um resultado empiricamente verificável,
pela introspecção indevida do juízo de censura, quer pela dubiedade de tra- sendo a própria atividade considerada como perigosa e, portanto, objeto da
tamento dos fins da pena ou dos princípios de política criminal. vontade consciente? Além disso, se, na culpa consciente, o agente, embora
admita a possibilidade de que alguma coisa suceda, pode esperar que não
A tese de que a culpa consciente constitui uma forma de dolo de perigo ocorra, em última análise, esse agente não quis a verificação do perigo. Sua
já foi defendida por KOHLRAUSCH e tem como adeptos, entre outros, vontade consciente, portanto, está dirigida no sentido do não-cumprimento
SCHAFFSTEIN.404 Contra isto se alega que a comprovação do perigo não da norma de cuidado, mas não no sentido do perigo para o bem jurídico. No
decorre da vontade do agente nem da consciência ou inconsciência acerca dolo eventual dos delitos de perigo, ocorre justamente o contrário, o agente
de sua realização,405 bem como que somente seria correto afirmar-se a iden- inclui, no âmbito de sua vontade, a realização do perigo. Para se verificar o
tidade entre culpa consciente e dolo de perigo caso se pudesse demonstrar
406. BINAVINCE, Emilio. Die vier Momente der Fahrlässigkeit, p. 155.
404. SCHAFFSTEIN, Friedrich. “Tatbestandsirrtum und Verbotsirrtum”, in Göttinger Festschrift für das 407. MIRICKA, August. Die Formen der Strafschuld und ihre gesetzliche Regelung, Leipzig: Hirschfeld,
Oberlandsgericht Celle, 1961, p. 180. 1903, p. 155.
405. NOWAKOWSKI, Friedrich. “Zur Welzels Lehre von der Fahrlässigkeit”, JZ, 1958, p. 339. 408. BINAVINCE, Emilio. Die vier Momente der Fahrlässigkeit, p. 156.
174 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 175

momento consciente na negligência, não é preciso socorrer-se do dolo de ou incompatível com o princípio da culpabilidade, desde que se reconheça
perigo formulado por KOHLRAUSCH. Esta consciência está inquestiona- ou não ao agente, no caso específico, a possibilidade de autodecisão. Para
velmente ligada à realização de ação descuidada, sem que, com isto, se afirme isto deve-se exigir, pelo menos, a possibilidade do conhecimento do injusto,
consentir o agente no perigo que daí derivaria. o que se torna crítico, por exemplo, quando o agente desconhece o próprio
A tese de ARTHUR KAUFMANN, de identificar a culpa consciente fato fundamentador da proibição, estando, por conseguinte, agindo de modo
com o dolo de perigo pode, entretanto, ter um supedâneo nos delitos de inconsciente acerca do dever jurídico.Neste caso, o desconhecimento do fato
perigo abstrato que admitam a forma culposa. Nestes casos, só será possível poderá atuar sobre a culpabilidade. Mesmo aqueles que, como MAURACH,
a culpa consciente na forma de erro de tipo. Por exemplo, em face de uma não veem problemas em compatibilizar a culpa inconsciente com a culpa-
caligrafia incompreensível do médico, tem o agente consciência de que pode bilidade de vontade, estariam aqui, também, prontos a reconhecer um erro
fornecer medicamento em desacordo com a receita (art. 280), mas espera que de proibição, excludente dessa culpabilidade. A solução final, portanto, sendo
a sua interpretação feita sobre a letra desse médico esteja de conformidade idêntica, faz com que o problema se resuma à questão puramente metodoló-
com o que efetivamente se prescreveu. Nesta hipótese, o agente atua com erro gica. Da postura de ARTHUR KAUFMANN, deve-se deduzir, todavia, que
de tipo, quer dizer, sobre o que se contém na receita. Desse erro resulta sua não busca apenas um conteúdo psicológico para a negligência, mas também
atuação culposa. Fora disso, a culpa consciente se confundiria com o dolo de um componente volitivo. Daí suas conclusões acerca do dolo de perigo e sobre
perigo, pois não se produz, aqui, então, a possibilidade de escolha, que é fun- a culpa inconsciente se tornarem extremamente dogmáticas.
damental à determinação da negligência, já a partir das fórmulas de FRANK. IV. A DOUTRINA ITALIANA
A conclusão de que a culpa inconsciente se contrapõe ao princípio da
culpabilidade de vontade tem como apoio a opinião generalizada de que 1. CARACTERÍSTICA GERAL
nela falta qualquer vínculo psicológico entre o agente e o resultado.409 O Na doutrina italiana, inexiste um sistema definitivo que possa ser classi-
problema não está, entretanto, em se questionar acerca da base psicológica ficado como causal, final, normativista ou social. Atendendo a uma tradição
da culpa inconsciente, mas sim, de se indagar se esta ausência de conteúdo do século XIX, calcada nas lições de CARMIGNANI e CARRARA, os au-
psicológico é ou não admissível no direito penal da culpa. tores buscam dar novos contornos à clássica dicotomia entre objetivo, como
A primeira premissa a ser determinada é acerca do que se deva enten- elemento do injusto, e subjetivo, como elemento da culpabilidade. Disto
der por culpabilidade de vontade. ARTHUR KAUFMANN a quer vincular à resulta um sistema eclético, insuscetível de uma rigorosa posição sistemática,
culpabilidade ética, em que se afirma a liberdade e autorresponsabilidade da embora útil em alguns postulados práticos.
decisão do agente contra um dever eticamente reconhecido. Excluindo-se, A teoria normativista, por seu turno, tem sofrido, nos últimos anos, uma
entretanto, a referência e fundamentação à culpabilidade ética, pode-se com- considerável transformação na Itália, buscando superar a velha fórmula do
preender como culpabilidade de vontade, no sentido que lhe dá, por exemplo, século XIX, de retratar todo o objetivo no injusto e todo o subjetivo na culpa-
MAURACH, o exercício do direito de escolha (opção) do agente imputável.410 bilidade. Quanto a isto, pode-se notar uma profunda alteração no tratamento
A culpabilidade de vontade já estaria, pois, consubstanciada no fato de o do delito culposo, que, em vez de se ver situado, exclusivamente, no âmbito da
agente ter a possibilidade, em face das circunstâncias, de se decidir contra ou a culpabilidade, como sua forma de expressão, ao lado do delito doloso, passa a
favor do direito. Essa possibilidade de decisão, num ou noutro sentido, é que adquirir foros de autonomia, na linha traçada pela teoria finalista.
autoriza o reconhecimento da culpabilidade. Assim, a consideração da culpa 2. AS CONCEPÇÕES INDIVIDUAIS
inconsciente, como modalidade do fato delituoso, pode tornar-se compatível
(1) A CONCEPÇÃO DE FIANDACA-MUSCO
409. Veja-se, entre nós, por exemplo, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 211.
410. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 415. Dois autores italianos modernos, GIOVANNI FIANDACA e ENZO
176 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 177

MUSCO, seguem, em linhas gerais, uma orientação normativista. Assim, Relativamente ao delito culposo, entendem FIANDACA-MUSCO
depois de afirmarem que o conceito de ação humana deve ser a base de toda que este não configura, portanto, uma segunda forma menos grave de culpa-
a construção dogmática do delito comissivo doloso,411 não lhe reconhecem bilidade, como pensava a doutrina anterior. Os delitos culposos representam
um caráter geral e superior, que possa abarcar todos os comportamentos um modelo específico de ilícito penal, dotado de estrutura e características
delituosos, inclusive os culposos.412 Ao contrário, entendem que a dogmática próprias, que emergem do plano da tipicidade e se refletem no âmbito da
penal deve centralizar-se, agora, na doutrina da tipicidade e da antijuridici- culpabilidade. Neste aspecto, o conceito de ação, que, inicialmente, estaria
dade e não na teoria da ação, porque as premissas da construção do delito submetido aos requisitos causais, como o movimento corpóreo do homem,
não podem ser fornecidas a priori, a partir de dados ontológicos. O conceito adquire outros contornos, porquanto passa a desempenhar uma função se-
de ação estaria, pois, vinculado a cada espécie de delito, da qual resultaria letiva dos comportamentos penalmente relevantes. “Sob este ponto de vista”
por meio de um processo puramente interpretativo do respectivo tipo legal – dizem FIANDACA-MUSCO, “o terreno nevrálgico é constituído, pro-
e da configuração de sua culpabilidade. Sob este aspecto, assinalam que “os priamente, pelo delito culposo, em cujo âmbito assumem relevância penal
critérios que presidem a determinação do conceito de ação são informados não apenas os comportamentos conscientes e voluntários, mas, também,
pelos princípios da imputação penal, e não vice-versa”.413 comportamentos que não correspondem ao conceito de ação, sustentado pela
Ainda que busquem reconhecer que, na construção da teoria do delito, consciência e vontade como coeficientes psicológicos efetivos”.416
o ponto de partida deva ser sempre constituído pela verificação de um aconte- Nisso residiria a distinção entre delitos dolosos e culposos. Enquanto
cimento que lese ou ponha em perigo um bem jurídico, não descartam que, nos delitos dolosos a consciência e vontade residiriam em coeficiente psico-
num segundo momento, este acontecimento deva ser imputado a alguém, lógico efetivo, nos culposos, tais requisitos se identificam ora com um dado
conforme os pressupostos de responsabilidade estabelecidos pelo ordena- psicológico, como na culpa consciente, ora com um dado normativo, como
mento penal. Neste segundo momento, importa considerar que a conduta na culpa inconsciente. Neste último caso, consoante a lição de MARCEL-
criminosa assume a forma de uma ação, cujos parâmetros serão dimensio- LO GALLO, a ação se considera voluntária quando resultar dominável pela
nados de conformidade com as características de cada fato delituoso. Assim, vontade, sendo que um ato será dominável ou controlável quando puder ser
nos delitos comissivos, poder-se-ia conceituar a ação, de um modo muito impedido mediante a ativação dos poderes normais da vontade de impul-
simples, como “o movimento corpóreo do homem”, que será relevante na sioná-lo ou de contê-lo. O agente, nestas circunstâncias, será reprovado por
medida em que seja voluntário e consciente. 414 não haver ativado os poderes de controle que deveria e poderia ativar para
Essa fórmula da consciência e vontade não exprimiria, porém, uma idên- impedir a ocorrência do evento lesivo, assumindo o juízo sobre a volunta-
tica realidade psicológica, comum a todas as formas de conduta criminosa. Ao riedade um conteúdo normativo, porque a reprovação se funda, aqui, sobre
contrário, reclama dados diversos, conforme se refira aos delitos dolosos e aos o fato de que o “agente não observara, apesar de poder fazê-lo, o standard de
culposos. Nos dolosos, é caracterizada pela participação efetiva da consciência diligência exigido na situação concreta”.417
e vontade. Assim, neste sentido, seguindo, inclusive, as ponderações de MA- Seguindo esta linha de raciocínio, FIANDACA-MUSCO não se afastam,
RINUCCI, os pressupostos de existência de uma ação consciente e voluntária porém, da tradição italiana, pois consideram, a partir de uma interpretação da
coincidem com aqueles exigidos para o dolo, quer dizer, ação consciente e definição de culpa contida no art. 43 do Código Penal italiano, que os requisi-
voluntária e ação dolosa acabam por se tornar a mesma coisa.415 tos de natureza psicológica devem ser tratados na culpabilidade, enquanto os de
natureza normativa ficam a cargo da tipicidade.418 Neste último aspecto, o tipo
411. FIANDACA-MUSCO. Diritto penale, Parte generale, Bologna: Zanichelli, 2001, p. 189. dos delitos culposos se comporia de uma ação que viola os deveres objetivos
412. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 190.
413. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 192. 416. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 499.
414. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 192. 417. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 500.
415. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 193. 418. FIANDACA-MUSCO. Ob. ct., p. 501.
178 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 179

de diligência ou atenção. Sobre a base destes deveres objetivos de diligência se perigosa. Igualmente, entra em consideração, no âmbito do tipo, o princípio
situariam regras da experiência relativas à perigosidade de determinados com- da confiança, como limite do alcance dos deveres de diligência.425 Isto não
portamentos e dos meios mais adequados a evitar-lhes as consequências. Estas implica, porém, que se descarte, no delito culposo, a relação de causalidade,
regras de diligência representariam “a cristalização dos juízos de previsibilidade que deverá ser analisada segundo o critério da teoria da condição.426
e evitabilidade repetidos no tempo”,419 que operam, inclusive, no âmbito da No setor da antijuridicidade, FIANDACA-MUSCO compreendem
chamada culpa específica, resultante da inobservância de leis, ou regulamentos como causas de justificação, normalmente, o consentimento do ofendido, a
escritos.420 Por outro lado, será ainda o critério da previsibilidade que irá de- legítima defesa e o estado de necessidade. Neste passo, contrariam a juris-
marcar os limites da culpa e do caso fortuito. O caso fortuito excluiria a culpa, prudência dominante na Itália, que só admite como justificante o estado
propriamente, porque consiste em um acontecimento imprevisível.421 de necessidade.427
Por seu turno, os juízos de previsibilidade e evitabilidade devem ser Já no âmbito da culpabilidade, ressaltam sua função de estabelecer os
efetuados ex ante, segundo o modelo do homo medius, quer dizer, sobre o pressupostos subjetivos da imputação do fato ao agente. Neste aspecto, indi-
modelo de um agente que exerça a mesma profissão, o mesmo ministério, o vidualizam a previsibilidade, que passa a ser vista, agora, como previsibilidade
mesmo ofício ou a mesma atividade do agente real. Embora a medida da pre- subjetiva. Apesar dessa personalização, procedem a uma abstração das caracte-
visibilidade seja tomada segundo, portanto, um modelo objetivo de agente rísticas do sujeito concreto, com a consequência de assumirem, como ponto
prudente, um modelo individualizador poderá ser utilizado, posteriormen- de referência, um sujeito ideal, situado na posição do agente concreto, não
te, para atender ao conhecimento superior do agente sobre o fato. Isto não semelhante a ele em tudo, mas em algumas de suas qualidades pessoais, o que
implica, porém, que todos os agentes que são portadores de conhecimentos conduz a objetivizar o conteúdo do juízo de culpabilidade.428 Por fim, aceitam,
especiais devam ser responsabilizados. Neste passo, dever-se-á distinguir entre como causa de exclusão da culpabilidade, a inexigibilidade de comportamento
maior conhecimento causal (por exemplo, um motorista sabe, por sua expe- diverso, sobre a base das circunstâncias anormais concomitantes ao agir.429
riência, que certo cruzamento é perigoso) e especial capacidade (por exemplo,
um corredor de fórmula 1 é um excelente piloto).422 Esta diferenciação se faz (2) A CONCEPÇÃO DE BETTIOL
importante, porque o portador de maior conhecimento causal deverá usar Pode-se destacar BETTIOL como o mais eminente e tradicional re-
esse conhecimento no âmbito da diligência devida, já que esse conhecimen- presentante do ecletismo italiano. BETTIOL filia-se, primeiramente, ao
to é próprio do contexto fático sobre o qual a diligência se funda. Por sua finalismo, entendendo que toda atividade humana se dirige a determinado
vez, o portador de maior capacidade não deverá, só por isso, ser submetido fim, que o agente pretende realizar ou alcançar. Neste sentido, inclui, no
a maiores exigências, porque o direito penal não pode reclamar sempre de conceito de ação, a causalidade objetiva e a direção subjetiva do homem,
certas pessoas que esgotem seus dotes especiais sob a ameaça de uma pena.423 acreditando tratar-se de grande erro metodológico querer isolar qualquer
Ainda que os juízos de previsibilidade e evitabilidade sejam a forma desses componentes e submetê-los à análise distinta e minuciosa.430 A ação
normal de manifestação da diligência devida, não são suficientes para circuns- estaria subordinada, pois, a um conceito complexo causal-final, porque, em
crever a área da culpa penal. Ao lado disso, o juízo de culpa pressupõe que algumas espécies delituosas, vem afirmada a prevalência do momento fina-
a ação tenha ultrapassado certo limite, precisamente o da adequação social e lístico, enquanto que em outras, do naturalista-causal. Ao lado disso, já em
do risco autorizado,424 o que a caracterizaria como uma ação notoriamente contraposição à concepção finalista, assevera que não se pode prescindir,

419. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 502. 425. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 513.
420. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 504. 426. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 515.
421. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 504. 427. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 519 et seq.
422. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 510. 428. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 525.
423. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 511. 429. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 527.
424. FIANDACA-MUSCO. Ob. cit., p. 511. 430. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal, pg, tradução brasileira, 1966, p. 263 e 267.
180 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 181

nesse conceito, de certo dado axiológico, precisamente, de que a ação está que, no segundo, a finalidade diz respeito à realização de resultado não
indubitavelmente enquadrada no mundo dos valores, isto é, irremediavel- proibido pela lei penal, “um resultado diverso daquele que efetivamente se
mente ligada à realidade social e não à realidade mecânico-naturalista. Essa produz”.435 É certo, porém, que reconhece, nesses casos, a prevalência da
realidade social, por sua vez, só passa a ter sentido quando vinculada a um causalidade sobre a finalidade, mas enfatiza que não se trata mais de cau-
critério final, pois somente aquele que atua com finalidade consciente realiza salidade mecanicamente compreendida. Aqui se trata de uma causalidade
uma ação. Esse critério final, jungido ao elemento de valor ressaltado em que podia ser evitada pelo agente, desde que tivesse “examinado com maior
cada espécie delituosa, possibilita a construção do conceito unitário de ação. atenção a situação concreta na qual atuou”.436
Segundo a definição por ele proposta, seria ação “um conceito finalístico, Já que o delito culposo é visto, basicamente, como aquele em que se
teleológico, de valor”.431 poderia evitar o resultado, pretende BETTIOL destacar a existência, em
Contrariamente, também, aos autores tradicionais do finalismo, BET- todos eles, de um “erro de cálculo”, determinado pela falta de atenção. Como
TIOL não identifica a ação, com seus componentes subjetivos e objetivos, este erro é evitável, pela própria natureza da falta de atenção (se não houvesse
como objeto exclusivo de valoração, no qual restaria analisado, inclusive, o falta de atenção, não haveria erro), aduz que pode igualmente ser prevenido.
conteúdo da vontade, isto é, o objetivo perseguido pelo agente e seus respec- Esse raciocínio conduz à aceitação, como delito culposo, das hipóteses
tivos desdobramentos. Ao invés disso, é de opinião de que se deva estabelecer em que o resultado é querido pelo agente, mas é causado porque esse agente
distinção entre o querer e o seu conteúdo. O querer como tal será questio- atuou por convicção errônea quanto à autorização da conduta,437 assim, por
nado na ação, e, consequentemente, como objeto. O conteúdo do querer, exemplo, em excesso na legítima defesa ou em erro sobre os pressupostos
a determinação do que se quer e em que condições, pertenceria à análise da típicos de uma causa de justificação.
culpabilidade e não da ação. O dolo e a culpa, por conseguinte, entendidos
como elementos psicológicos de conteúdo, são tratados na culpabilidade.432 Casos como esses, que sempre foram tratados como crimes dolosos e cuja
solução pela negligência é discutível, por exemplo, em face da adoção da teoria
O injusto teria, por sua vez, caráter inteiramente objetivo, resolven- da culpabilidade, passam a se integrar no conceito amplo de negligência dado
do-se no “juízo da lesividade do fato praticado”.433 Com essa concepção, por BETTIOL, como a “violação de um dever de atenção que determina um
afasta-se o autor definitivamente do finalismo e assume posições ecléticas, erro vencível a respeito da licitude do fato praticado, dos limites dentro dos
fazendo predominar o esboço sistemático do causalismo, embora manifeste quais se é autorizado a agir, do nexo causal que vincula à conduta ilícita um
relevância à finalidade da conduta e sua sociabilidade. evento lesivo previsto ou não previsto desde que previsível e que de qualquer
Seguindo a tradição da doutrina italiana, BETTIOL apresenta a modo devia e podia ser evitado”.438 Nesta conceituação, um tanto casuística e
negligência como elemento psicológico da culpabilidade,434 coincidindo, longa, ressalta-se, pois, em primeiro lugar, que a negligência implica a infração
assim, com a posição da teoria causal-naturalista. Entretanto, admite que, a um dever; depois, que essa infração determina um erro quanto à conduta e,
embora nos delitos culposos de resultado a causalidade se sobreponha à finalmente, que o resultado lesivo era previsível e evitável.
intencionalidade, há de se falar, ainda, aqui, de uma conduta finalistica- Embora expresse a previsibilidade como elemento do fato culposo,
mente orientada a um objetivo. admite BETTIOL, em face do código italiano (art. 43), possa ela ser presu-
O que distingue a finalidade do atuar doloso do negligente é que, mida, “quando se trata de uma conduta contrária a leis, regulamentos, ordens
no primeiro, a vontade se move com vistas a um fim consciente, enquanto ou disciplinas”.439
435. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 115.
431. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 268 e 272. 436. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 116.
432. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 270-271. 437. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 118-199.
433. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 318 e 323. 438. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 122-123.
434. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal, pg, vol. II, p. 94, 114. 439. BETTIOL, Giuseppe. ob. cit., p. 122.
182 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 183

(3) A CONCEPÇÃO DE MANTOVANI (4) OUTROS POSICIONAMENTOS


Essa linha eclética é seguida, também, por MANTOVANI, para quem se Mais recentemente, PADOVANI situa a problemática da ação dentro do
deve diferenciar, no âmbito da teoria da ação, entre um conceito sintético, ou tipo de delito e, ao mesmo tempo, a conceitua segundo um conteúdo pura-
unitário geral, no sentido de caracterizar a ação como uma exteriorização do mente causal, como “movimento corpóreo perceptível no mundo exterior”.445
homem no mundo social, e um conceito analítico, relacionado a cada tipo de Por outro lado, inclui a negligência no âmbito da culpabilidade como,
delito. Enquanto a conduta dolosa comissiva deve ser apreciada naturalistica- ao lado do dolo, uma das formas do nexo psíquico entre agente e fato. Apesar
mente, as condutas omissivas e culposas são conceitos normativos, subordinados, disso, entende que em “termos de conteúdo intrínseco a culpa é totalmente
respectivamente, a uma norma impositiva e a uma norma cautelar.440 diversa do dolo: enquanto este é constituído pelo coeficiente psíquico real
Seguindo esta linha de entendimento, MANTOVANI conceitua a relativamente ao fato, aquela se expressa, sobretudo, sobre um plano norma-
ação como o “movimento do corpo, idôneo a lesar o interesse protegido tivo. Consiste, pois, num juízo sobre a inobservância, por parte do sujeito,
pela norma ou o interesse estatal perseguido pelo legislador por meio da das regras cautelares inerentes à atividade por ele desenvolvida”. 446 Por isso
incriminação”.441 Situando-se, pois, sobre uma base causal, ao compreender mesmo, considera que todos os esforços para encontrar um fundamento
a ação como movimento corporal, na esteira da definição tradicional de psicológico na culpa naufragaram diante da constatação de que, embora a
VON LISZT, MANTOVANI envereda, porém, no seu ecletismo, por um atitude psíquica caracterize a conduta do sujeito, “a sua natureza culposa de-
caminho semelhante ao finalismo, ao caracterizar a idoneidade lesiva como pende sempre e inevitavelmente de uma valoração formulada em referência a
uma finalidade objetiva. Com isso pretende individualizar, já no plano um dever de diligência, de prudência ou de perícia”.447 Assim, na culpa, não
material, a unidade mínima da conduta dentro da pluralidade fragmen- é relevante a circunstância de que a velocidade excessiva do automóvel seja
tária dos movimentos corpóreos singulares, em si mesmos insignificantes voluntária, mas, sim, de que tal velocidade contrasta com uma regra cautelar,
e irrelevantes. Ao incluir a idoneidade lesiva como elemento fundamental cuja observância seja exigível ao motorista.448
da ação, tomada como finalidade objetiva, assevera haver conseguido, com Uma posição mais radical é tomada por MARINUCCI, que busca
isso, a formulação de um conceito de ação capaz de adaptar-se aos delitos rechaçar os conceitos final e social de ação, propondo um retorno ao sistema
consumados e tentados, de dano e de perigo, de resultado e de atividade, causal, como base de um conceito negativo. O conceito de ação teria, assim,
dolosos e culposos, de conduta livre e de conduta vinculada.442 a única função de eliminar, desde o início, do direito penal, aqueles com-
Enquanto o finalismo subjetivo, epíteto da formulação de WELZEL, portamentos que não apresentem qualquer valor.449 Por outro lado, estima
seria próprio, sobretudo, do fato doloso, o finalismo objetivo pretende que esse conceito de função negativa deve ter alguns pressupostos mínimos,
caracterizar todas as espécies de conduta. Com base nesta distinção meto- como a dominabilidade da vontade sobre o processo causal, a calculabilidade
dológica, realiza MANTOVANI, também, a separação entre fatos dolosos do ato e a potencial coeficiência das energias mentais e espirituais, de modo a
e culposos. Enquanto, no delito doloso, a ação é subjetivamente dirigida possibilitar que sejam estabelecidas as fronteiras “entre aquilo que possui o
à produção do evento lesivo, no delito culposo, o agente é reprovado por decisivo momento humano e o caráter de ação” e “aquilo que, ao contrário,
não haver previsto tal finalidade objetiva ou, caso a tenha previsto, por não pertence apenas ao pré-humano”.450
se haver abstido de tal conduta.443 Coerentemente com esta conceituação,
a culpa constituiria, junto com o dolo, uma forma de culpabilidade.444
445. PADOVANI, Tullio. Diritto penale, 5ª edição, Milano: Giuffré, 1999, p. 147.
446. PADOVANI, Tullio. ob. cit., p. 269.
440. MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale, Padova, 1989, p. 157. 447. PADOVANI, Tullio. ob. cit., p. 269.
441. MANTOVANI, Ferrando. ob. cit., p. 158. 448. PADOVANI, Tullio. ob. cit., p. 269.
442. MANTOVANI, Ferrando. ob. cit., p. 159. 449. MARINUCCI, Giorgio. El delito como acción. Crítica de un dogma, tradução espanhola de José Edu-
443. MANTOVANI, Ferrando. ob. cit., p. 159. ardo Sáinz-Cantero Caparrós, Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 137 et seq.
444. MANTOVANI, Ferrando. ob. cit., p. 318. 450. MARINUCCI, Giorgio. ob. cit., p. 140.
184 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 185

3. CRÍTICA À DOUTRINA ITALIANA final, que, no fundo, não serve para nada, e ainda um conceito analítico
A doutrina italiana apresenta muitas contradições, sendo o resultado de relacionado a cada tipo de delito. Com isso desarticula a unidade do con-
formulações ecléticas, nem sempre compatíveis entre si. Vamos realizar sua ceito do delito, pois trabalha, na verdade, com dois conceitos de conduta:
crítica tomando em consideração os seus mais conhecidos autores. um conceito genérico, no âmbito do ser, e outro específico, no âmbito do
tipo. Isto conduz a considerar que as condutas dolosas devam ser aprecia-
Inicialmente, poderíamos dizer que, embora fosse muito claro na forma
das naturalisticamente, enquanto que as omissivas e culposas constituam
de exposição, BETTIOL não pôde, igualmente, superar a questão de se obter
conceitos puramente normativos. Por outro lado, essa conclusão não é
um conceito geral de ação, com base exclusivamente no componente axio-
tão simples, pois, ao mesmo tempo em que define a ação, em geral, como
lógico. Assim, acaba desembocando num ecletismo normativo, ao admitir,
um movimento corporal idôneo a lesar o interesse protegido pela norma,
por exemplo, a prevalência da teoria final ou da concepção causal-naturalista,
MANTOVANI insiste em afirmar que, na negligência, subsiste também
consoante os diversos tipos em espécie e também, ao mesmo tempo, descartar
um objetivo (finalidade), que não foi previsto pelo agente ou que, embora
os fundamentos iniciais das teorias causal e final para afirmar que a ação não
previsto, não implica a abstenção de sua conduta. O mais grave é que,
pode deixar de submeter-se ao mundo dos valores, um mundo pré-jurídico.
em virtude dessa formulação, compreende como perfeitamente natural
Para superar esse impasse, de uma concepção subordinada ao tipo de delito
que o dolo e a negligência constituam formas de culpabilidade, tal como
e de um momento valorativo pré-jurídico, enfatiza que esse dado axiológico
na concepção psicológica. A virtude de MANTOVANI está, porém, em
deve funcionar muito mais como atributo abstrato de qualquer conduta do
subordinar a análise da conduta delituosa à sua capacidade de lesar o bem
que, especialmente, como elemento configurador da atividade juridicamente
jurídico, exigindo-lhe o que denomina de idoneidade lesiva. A questão que
relevante. Com isso, não fornece qualquer fundamento seguro para o concei-
fica em aberto é como tratar essa idoneidade lesiva. MANTOVANI quer
to de ação. Afinal, o conceito de ação é pré-jurídico ou é normativo?
caracterizá-la como uma finalidade objetiva da conduta, mas não explica
Essa indecisão vai refletir-se também no âmbito do injusto. Assim, como chega a essa conclusão, se tomando a conduta em função de seu
embora se considere, de certo modo, finalista, por ver, na atividade, uma sentido, ou dos meios causais de que dispõe o sujeito.
vinculação a determinado sentido, não acata as consequências disso no setor Por sua vez, PADOVANI se mostra causalista, mas inclui o conceito
amplo da teoria do delito: o tipo de injusto continua ainda subordinado de ação no tipo de delito, quer dizer, o conceito de ação é ao mesmo tempo
ao esquema causal, e a culpabilidade é assinalada como elemento subjetivo normativo e naturalístico. A par disso, não se distancia em nada da velha
expresso por dolo ou culpa. Ora, compor a culpabilidade como dolo e culpa concepção psicológica de culpabilidade, pois a fundamenta sobre os elemen-
é, evidentemente, um retrocesso, pois, na verdade, com isso não há culpabi- tos do dolo e da negligência. Embora sua culpabilidade tenha fundamento
lidade. Há apenas um juízo de fato sobre elementos empíricos, nada mais. psicológico e isto é evidente, admite PADOVANI que a negligência carece
Embora dolo e culpa integrem a culpabilidade, não ficam aí isolados. de qualquer conteúdo psíquico, o que o coloca numa posição insustentável,
Em seus últimos escritos, passou BETTIOL a defender a introdução da teoria a de conviver com um elemento objetivo e normativo dentro de um conceito
do ânimo na culpabilidade, o que definitivamente desnatura por completo psicológico de culpabilidade.
o sistema psicológico que poderia construir. Essa guinada de construção da Quanto a MARINUCCI, deve-se-lhe louvar o esforço de demonstrar
culpabilidade conduz, infelizmente, às antigas posturas do direito penal da as incongruências do sistema finalista de conduta, mas seu conceito de ação,
vontade, de excluir o Tatstrafrecht (direito penal do fato) para trabalhar, ainda no sentido puramente negativo, pode apresentar-se como inútil se não for
que ele não o admita, com um Täterstrafrecht (direito penal do autor), posição tomado como uma condição pré-jurídica indispensável a qualquer forma de
obviamente incompatível com sua formação liberal. criminalização. Da sua proposta de subordinar a conduta penalmente rele-
No mesmo erro metodológico incorre também MANTOVANI, pois, vante às características dos pressupostos de dominabilidade, calculabilidade e
assistematicamente, defende um conceito genérico de ação, de conteúdo potencial coeficiência de energia do agente pode, porém, resultar a elaboração
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de um conceito garantista de conduta, a ser empregado em todos os setores culpabilidade deve consistir em um juízo sobre o agente concreto e não sobre
da teoria do delito. um modelo ideal de autor, a partir do momento em que se fundamenta o
De todos os penalistas italianos, GIOVANNI FIANDACA e ENZO critério individualizador em uma base puramente objetiva e não subjetiva,
MUSCO são dos poucos que buscam equacionar o delito culposo como quer dizer, se abandona o agente concreto, já não mais se estará tratando de
independente do delito doloso. Embora se filiem ao normativismo, não se um juízo de culpa, mas de um juízo sobre o injusto.
desligam do enunciado causal, porque se valem da velha referência ao movi- V. AS TEORIAS FUNCIONAIS
mento corpóreo para conceituar a conduta. Por outro lado, mesmo para os
delitos dolosos, deixam de fazer a distinção entre dolo e vontade consciente, O termo funcional tem suscitado muitas controvérsias. Desde o
que evidentemente não são a mesma coisa. Problemática é ainda a distinção século XIX, com a obra dos corifeus da escola sociológica francesa,451 e já
das condutas dolosas e culposas. Ao assinalarem que, na conduta dolosa, o no primeiro terço do século XX, com a proposição de BRONISLAW MA-
que se evidencia é o fato de que a vontade e a consciência se expressam em LINOWSKI de uma antropologia que se deveria ocupar da cultura como
um coeficiente psicológico efetivo, na verdade, nada dizem. O que é, afinal, uma relação funcional,452 quer dizer, como um aparelho instrumental capaz
esse coeficiente psicológico efetivo? É a vontade consciente, ou é a vontade de resolver as necessidades e os problemas humanos, a investigação cien-
de realização, como pensava WELZEL? tífica das atividades sociais se deslocou da simples constatação (cognição)
para um procedimento no qual os elementos singulares, como, por exem-
Quanto à medida da previsibilidade, FIANDACA-MUSCO operam plo, a conduta, deveriam ser vistos como engrenagens de uma estrutural
com os dois tradicionais critérios usados, exaustivamente, desde o finalismo: global. Esta estrutura global, no entanto, não seria a soma desses elementos
no setor do injusto com o modelo de homem prudente, e, na culpabilidade, com singulares, mas um organismo independente. Os elementos singulares,
o modelo do autor individual. Ainda que empreguem, no injusto, o modelo como, por exemplo, a conduta, as instituições jurídicas, a reação social a
de homem prudente, cuja crítica já foi feita atrás, quando da análise da teoria determinados atos, só existiriam em função desse organismo, que traçaria
finalista, buscam fornecer, na verdade, um limitador a esse critério, exigindo seus limites e suas expectativas.453
que se lhe agreguem as condições objetivas atinentes ao autor, quanto à profis-
são, ofício e atividade. Esta proposta merece encômios, pois pode se ajustar ao As teorias funcionais, portanto, têm como fundamento tratar a conduta
critério da experiência geral da vida, ou do standard mínimo de ZAFFARONI, dentro de uma ordem de orientação, conforme os dados existentes no sistema
sem deixar de atender às particularidades do caso, como, por exemplo, em- jurídico ou social ao qual se vê subordinada.454
preender a distinção, perfeitamente correta, entre o maior conhecimento causal 1. O CONCEITO DE AÇÃO
e a maior capacidade do autor, como já exposto anteriormente.
A ação, portanto, deixa de ser uma exclusiva manifestação individual
A maior dificuldade da articulação de FIANDACA-MUSCO está no e passa a ter sentido apenas como elemento de um sistema que a orienta
enfrentamento do disposto no art. 43 do Código Penal italiano, relativamen- em face das expectativas por ele propostas. Independentemente das variadas
te à chamada culpa específica, resultante da infração a normas regulamentares, concepções acerca dessa conduta, podemos considerar como funcionais todas
questão esta não superada pela doutrina e que contrasta com um direito as teorias que conceituam a ação a partir de sua interação e desenvolvimento
penal de garantia.
451. DURKHEIM, Emile. La división del trabajo social, tradução castelhana de Carlos G. Posada, Barcelo-
Insustentável é ainda o critério usado para medir a previsibilidade no na: Planeta-Agostini, 1994, p. 133, em que trabalha com os conceitos de coesão social e solidariedade
em função do fortalecimento do organismo a partir da reação ao delito.
âmbito da culpabilidade, que se assenta em um modelo de homem ideal. 452. MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem, tradução brasileira, Vozes: Petró-
Apesar de enunciarem este critério como sendo um critério individualiza- polis, 2000, p. 153 et seq.; MALINOWSKI, Bronislaw. “A teoria funcional”, in Malinowski – Antropo-
logia, org.: Eunice Ribeiro Durham, S. Paulo: Ática, 1986, p. 169 et seq.
dor, na verdade, nada mais fazem do que trabalhar, tanto no injusto quanto 453. RESTA, Eligio. Le stelle e le masserizie. Paradigmi dell´osservatore, Roma: Laterza, 1997, p. 144.
454. Para uma visão geral das várias teorias funcionais, poderia remeter à minha obra Teoria do injusto penal,
na culpabilidade, com um modelo ideal de homem prudente. Mas se a 2ª edição, 2002, p. 52 et seq.
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sob a influência de um sistema simbólico de orientação.455 Dito dessa forma, acima proposta.
pareceria que o conceito funcional de conduta é mera expressão linguística, De conformidade com isso, a ação seria simplesmente conceituada
mas não o é. A característica básica desse conceito reside em que a ação só como a “manifestação exterior da personalidade”. Esclarecendo sobre este
pode ser definida em função de sua relação para com o sistema no qual se enunciado, afirma ROXIN que se deveria entender por ação tudo aquilo
insere. Com isso, ficam descartadas todas as formas de conceituação que se que pudesse ser atribuído ao homem como atividade vinculada ao seu centro
fixem apenas em dados empíricos objetivos, como, por exemplo, na carac- psicoespiritual (anímico espiritual) de ação. Assim, não se compreenderia,
terística causal da conduta, tal como proposto pela teoria causal-naturalista, primeiramente, como ação, aquilo que resultasse exclusivamente de sua esfera
ou na projeção de um objetivo futuro a ser perseguido pelo agente, como, corporal, como dos setores de seu ser animal, vital ou material, sem se sub-
por exemplo, propugna a teoria finalista. meter ao controle do “eu”, ou à instância psicoespiritual de direção.457 Isto
Dentro das variadas conceituações funcionais, poderemos destacar, en- significa que faltaria ação, por não haver manifestação da personalidade no
tretanto, cinco orientações: a) as que veem, na ação, um simples elemento de sentido de um controle psicoespiritual, nos casos de coação física absoluta,
um sistema global (BACIGALUPO, HERZBERG, BEHRENDT); b) as que de sono profundo, de delírio, de convulsões, ou de movimentos reflexos, os
a expressam como uma manifestação da personalidade, procedida segundo quais não estivessem dominados ou não pudessem ser dominados consciente
a relevância da norma que a orienta (ROXIN); c) as que a conceituam se- e volitivamente. Também faltaria ação, ainda que se pudesse afirmar a exis-
gundo seu significado (MUÑOZ CONDE, VIVES ANTÓN); d) as que a tência de uma relação psicoespiritual, em simples pensamentos ou cogitações,
compreendem segundo o papel social desempenhado pelo sujeito (JAKOBS); na medida que não se deixem manifestar exteriormente.458
e) as que a situam dentro do processo de comunicação (MEAD, HABER- O conceito de ação para ROXIN deve preencher, ademais, quatro pre-
MAS, KLAUS GÜNTHER). Poder-se-ia agregar, ainda, a esse conjunto, dicados: a) deve constituir um conceito geral, ou superior, capaz de se ajustar
uma concepção que deriva da biologia, que caracteriza a ação em face de um a qualquer espécie de manifestação do delito, isto é, aos delitos dolosos,
organismo que se autorreflete segundo as normas de sua própria constituição culposos e omissivos; b) deve servir de elemento de ligação entre os diversos
(Maturana). Esta última concepção, embora importante para a compreensão estágios que compõem a estrutura do delito, isto é, os atributos de tipicida-
de alguns fenômenos, se distancia do campo relativo a uma ação culposa, de, antijuridicidade e culpabilidade; c) deve servir para excluir da apreciação
para fixar-se no âmbito estritamente da relação entre o sujeito e sua própria penal, antes de qualquer indagação sobre a tipicidade, as manifestações ex-
reprodução, pelo que ficará de fora da exposição.456 ternas ou os fatos internos da consciência, que não se incluam como ação.
(1) A CONCEPÇÃO DE ROXIN Não se agrega, nesses predicados, a tarefa de empreender um ponto de apoio
para a determinação do tempo ou do lugar do crime, nem da unidade ou
ROXIN desenvolve, recentemente, de modo mais nítido, os contor-
pluralidade de ações para efeito do concurso de crimes.459
nos de sua concepção do delito em seu Tratado. Esta postura, porém, é
fruto de uma gradativa evolução, em que se manifestam, inicialmente, ele- (2) A CONCEPÇÃO DE JAKOBS
mentos normativistas; depois, proposições neokantianas, ainda presentes na A ação para JAKOBS deve ser vista como um elemento do sistema de
sua argumentação e, finalmente, uma posição funcional, com destaque na imputação, o qual tem como tarefa determinar qual pessoa deva ser punida
condição da pessoa humana como ponto central da elaboração jurídica. Daí para assegurar que a validade da norma se mantenha estável.460 O conceito
se poder dizer que sua teoria se insere no segundo grupo da classificação de ação, porém, não pode se esgotar na assertiva de que a um sujeito seja
455. Para uma visão acerca da teoria functional de PARSONS, que praticamente tem influenciado todas as
formulações funcionais, e que se orienta de conformidade a um sistema, ver MÜNCH, Richard. “Tal-
cott Parsons and the Theory of action. 1. The Structure of the Kantian Core”, The American Journal of 457. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 202.
Sociology, 1981, p. 709. 458. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 202.
456. Para aqueles que desejarem aprofundar-se nesta teoria, é ilustrativa a obra de MATURANA Umberto. 459. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 184 et seq.
Was ist Erkennen?, München-Zürich, 1994, p. 27 et seq. 460. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, Berlin-N. York, 1993, p. 125.
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imputável sua conduta, mas deve assinalar, também, o que seja afinal um (causa, finalidade ou relevância social). 464
sujeito e o que é sua ação.461 É preciso observar que o juízo de individualização da capacidade do
Neste particular, independentemente das críticas aos conceitos causal sujeito de desempenhar seu papel social é necessário, ademais, como meio de
ou final de ação, JAKOBS está de acordo em assinalar que em todos eles distanciá-lo dos estigmas e do descumprimento de papéis anteriores. Nesse
já se encontra estratificada a conclusão de que a conduta deva ser estrutu- caso, a garantia da individualização tem como conteúdo apenas a norma
rada a partir de um ato de vontade, sem que seja preciso levar em conta o jurídica, que representa sempre o motivo dominante do agir. Tudo o que for
conteúdo dessa vontade de modo a empreender a necessária distinção entre realizado em virtude desse motivo depende, porém, da capacidade do autor
direção da ação e direção dos impulsos. Ao proceder-se, porém, deste modo, individual de conduzir sua conduta. Se faltar a possibilidade dessa condução
o que se faz, no fundo, é tomar a ação em função do sujeito, ao qual se quer da conduta, de modo que o sujeito cause inevitavelmente um resultado (por
imputar o fato. Assim, no processo de imputação do injusto, não importa exemplo, a morte de alguém), não haverá a ação, por não ser uma manifes-
que o sujeito tenha sido levado à conduta por coação de seus impulsos. tação individual de sentido de que sua atuação se situe em contraste com o
Basta que sua manifestação (output) se dê na forma de um ato voluntário motivo dominante da norma.465 A evitabilidade passa a ser, assim, o elemento
ou finalisticamente orientado. Tudo o que disser respeito aos atos impulsivos decisivo para a determinação da ação. No entanto, é preciso atentar para o
é matéria do próprio sujeito e não do conceito de ação.462 fato de que a expressão de sentido de uma ação penalmente relevante, com
Ao contrário do que se dá, porém, com as teorias causal e final, a base na evitabilidade do evento, não se funda na manifestação do autor em
conclusão de que a direção dos impulsos é irrelevante para o conceito de face da realidade, mas de sua postura frente à validade da norma. Em virtude
ação não deriva de fundamento ontológico ou lógico-objetivo. É, na ver- disso, a ação seria, pois, uma forma de causação imputável.466
dade, o resultado da tarefa de formular, jurídico-penalmente, as espécies Atendendo a essas características, a ação será conceituada, respecti-
relevantes de expectativas e suas respectivas garantias em um contato social. vamente, no sentido positivo ou negativo, como a “causação evitável do
Na diversidade dos contatos sociais existentes, não se pode ter sempre resultado” ou o “não impedimento evitável de um resultado”, conforme a
uma mesma decisão, que varia conforme o ramo de direito de que se trate. avaliação normativa.467 Isto vale para a ação e para a omissão, entenden-
Embora a imputação relevante para o injusto não leve em consideração a do-se pela expressão “resultado” também o próprio comportamento. A
constituição individual do sujeito, porque o direito penal quer garantir, inclusão, no âmbito do evento do próprio comportamento, é consequência
de qualquer modo, as expectativas em contatos anônimos (por exemplo, da vinculação do conceito de ação ao sistema de imputação, com base na
alguém que faça uma viagem de trem, deve ter assegurada a expectativa de desestabilização da vigência da norma. Se a ação implica não reconhecer
que os demais passageiros o respeitem na mesma condição de passageiro), o autor a vigência da norma, este não-reconhecimento exige uma certa
não se pode deixar de lado a consideração em torno de sua capacidade in- objetivação, que pode redundar em um evento material determinado e
dividual no desempenho do papel social que lhe é assinalado.463 também no próprio movimento corporal.468
Essa referência à capacidade individual em função do papel social Ainda que o critério de evitabilidade seja empregado, normalmente, no
atribuído ao sujeito, que pode ser descartada em outros âmbitos, mas que âmbito do injusto ou da culpabilidade, em face de fundamentos diversos,
é imprescindível no direito penal, não foi especulada pelas teorias causal, aqui é trabalhado com o auxílio de uma hipótese de imputação individual.
final ou social, que trabalharam com elementos estandardizados de conduta
464. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 139.
465. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 139.
461. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 136. Para o direito alemão, a doutrina considera como 466. JAKOBS, Günther. “El concepto jurídico-penal de acción”, tradução de Manuel Cancio Meliá, in Estu-
sujeito de ação apenas a pessoa humana, assertiva esta que é compartida também por JAKOBS, ROXIN dios de derecho penal, Madrid: Civitas, 1997, p. 112.
e todos os penalistas modernos. 467. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 143.
462. JAKOBS, Günther. Strafecht, AT, 2ª edição, p. 136. 468. JAKOBS, Günther. “El concepto jurídico-penal de acción”, tradução de MANUEL CANCIO MELIÁ,
463. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 139. in Estudios de derecho penal, Madrid: Civitas, 1997, p. 117.
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Mas o que interessa para determinar a evitabilidade não é propriamente o normativos, denomina de conceito significativo de ação.472
rumo dos acontecimentos, em termos causais, mas a vinculação do sujeito ao Pelo método de subordinar o conceito de ação aos critérios valorativos
motivo dominante da norma. O raciocínio parte de se o sujeito teria evitado das normas jurídicas, poder-se-ia pensar que MUÑOZ CONDE se situaria
o resultado, caso tivesse um motivo dominante para fazê-lo. entre os partidários da teoria normativa de ação. Mas, na realidade, sua for-
No fundo, o juízo sobre a evitabilidade reside no conhecimento ou na mulação não se ajusta inteiramente ao ideário normativo, porquanto vê como
possibilidade do sujeito de realizar aquele comportamento, tal como deter- necessário que toda ação constitua, antes de tudo, uma conduta humana, que
minasse sua motivação. Assim, em conhecido exemplo de JAKOBS: se um será “o ponto de partida de toda reação jurídico-penal e o objeto ao qual se
sujeito lança telhas sobre uma rua, mas desconhece ou não pode conhecer agregam determinados predicados (tipicidade, antijuridicidade e culpabilida-
que se trata de uma rua, não se lhe pode reconhecer na sua conduta a ação de), que convertem essa conduta humana em delito”.473 Contrapondo-se essa
de “lançar telhas sobre a rua”. Aqui a determinação se sua conduta constituiu ponderação com suas demais formulações, pode-se ver, perfeitamente, que
uma ação em termos penais depende, pois, do conhecimento ou da possibi- MUÑOZ CONDE defende, na realidade, um conceito funcional de ação,
lidade do conhecimento acerca do fato que a motivou. pois subordina o significado dessa ação aos juízos de valor do sistema penal.
(3) A CONCEPÇÃO DE MUÑOZ CONDE Assim, para aferir se determinado comportamento constitui ação,
estima ser imprescindível levá-lo em conta como um todo, ou seja, dentro
Inicialmente, ao enunciar o conceito de ação, MUÑOZ CONDE se
do sistema e não apenas em um de seus elementos eventuais. Haverá ação,
satisfaz com os postulados da teoria finalista, pois a concebe como “todo
por exemplo, se alguém conduzir em alta velocidade, mas, independente-
comportamento dependente da vontade humana”. Em complemento, agrega
mente disso, vier a ser picado em uma curva por um mosquito, perder a
que o conteúdo dessa vontade será “algo que se quer alcançar, quer dizer, um
direção e ocasionar um acidente. É que aqui não interessa o fato de que a
fim”.469 De conformidade com isso, a direção final da ação se realizaria em
perda da direção tenha sido motivada pela picada do mosquito, e que sua
duas fases, uma interna e outra externa. Na fase interna, estariam situadas a
reação constituiria um movimento reflexo ou puramente instintivo, mas que
representação do fim, a seleção dos meios e a consideração dos efeitos con-
o sujeito dirigia em alta velocidade e, assim, não pôde controlar, a contento,
comitantes ou consequentes da conduta. Na fase externa, se dá a execução
seu veículo. Isto vale também para as hipóteses de atos automatizados (por
do plano de ação, traçado na fase interna e dominado pela vontade.470 Na
exemplo, frear, trocar de marcha, apertar com o pé a embreagem, etc.). Estes
elaboração do conceito de ação, qualquer dessas fases é importante, podendo
atos, os quais já se incorporaram definitivamente na memória de ação do
a valoração penal recair tanto no fim que se quer alcançar quanto nos efeitos
sujeito e, por isso, nos quais não seria possível se reconhecer a presença de
concomitantes da conduta.
uma conduta consciente, podem ser incluídos no ato consciente de dirigir,
Não obstante haver tomado como modelo de ação o finalista, MUÑOZ uma vez que seu significado só pode ser extraído se forem apreciados em seu
CONDE adverte que o conceito de ação não pode ser enunciado a partir todo e não apenas em sua parte específica.474
desse dado único, que é a finalidade. Por isso, entende salutar a formulação
Da mesma forma, entende MUÑOZ CONDE que a omissão não
de ROXIN, ao compreender a ação como um conjunto de dados fáticos e
pode ser definida por si mesma, mas em referência a uma ação que pode
normativos que são a expressão da personalidade.471 Assim, busca MUÑOZ
ser realizada. Como nem toda não-realização de uma ação possível pode
CONDE propor um conceito de ação com base em critérios valorativos
ser definida como omissão, conclui que esta deve ser conceituada com o
extraídos das normas jurídicas, que teriam o condão de determinar os ele-
auxílio de elementos normativos pelos quais se possa defini-la “como a
mentos da ação que lhe são relevantes. A este conceito, elaborado sobre dados

469. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 242. 472. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 246.
470. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 243. 473. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 239.
471. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 246. 474. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 247.
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omissão de uma ação esperada.”475 Esses dados derivam, assim, da norma e das quais se extraem as exigências de se comprovar que o autor se com-
jurídica que regula a atividade e que funciona, no caso, como norma de portou de acordo com a forma prevista em lei, que seu comportamento não
referência, isto é, a omissão só terá relevância dentro do sistema. Por isso estava autorizado nas circunstâncias e que detinha as condições pessoais para
mesmo, em muitos casos, só se poderá distingui-la da ação se for subme- ser responsabilizado por sua conduta, o que tem dado lugar aos elementos
tida à avaliação dessa norma de referência. Assim, no ilustrativo exemplo tradicionais da ação, da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade.478
extraído de FLETCHER, da impassividade do guarda do Palácio de Buc- Especificamente em relação ao conceito de ação, entende BACIGA-
kingham frente a diversas provocações de turistas, sua aparente inatividade LUPO que esse se limita a estabelecer um denominador comum a todas
não deve ser considerada como omissão, mas como uma forma de ação, as formas de delitos, dolosos e culposos, ativos e omissivos. Isto conduz a
em face da norma de referência à qual sua conduta está subordinada.476 que o conteúdo do conceito de ação não deve abranger todos os elementos
Apesar dessa formulação sistêmica, MUÑOZ CONDE não descarta um do comportamento humano, mas apenas aqueles que sirvam à sua função
fundamento naturalístico para a omissão, representado pela possibilidade como elementos do delito. Por isso, assinala a necessidade de se proceder
de atuar do sujeito, o que conduz a aferi-la segundo um juízo alético (de a uma distinção essencial entre a direção ou dirigibilidade da ação, por
possibilidade ou impossibilidade) e não apenas de um dado normativo. um lado, e direção ou dirigibilidade dos impulsos, por outro. Com isso,
O conceito significativo de ação, como não se resume na realização final de deixa de tomar como relevante, no conceito de ação, a possibilidade ou a
uma atividade, mas resulta da sua posição em face da norma jurídica de impossibilidade de o autor motivar-se de acordo com as normas de direito,
referência ou reguladora, serve tanto aos fatos dolosos quanto aos culposos. para situar essa questão no âmbito do erro.479
(4) OUTROS POSICIONAMENTOS Em consequência, conceitua a ação como “todo comportamento ex-
terior evitável”, isto é, “um comportamento que o autor teria podido evitar
(A) ENRIQUE BACIGALUPO se tivesse um motivo para fazê-lo”.480 A evitabilidade, por seu turno, não
Segue posicionamento funcional, igualmente, ENRIQUE BACIGA- precisa ser conhecida do autor, bastando que se refira às suas capacidades
LUPO, o qual constrói toda a teoria do delito sobre a base de um processo concretas de ação. Desta maneira, não há que se confundir evitabilidade
de imputação. Para tanto, estima que o “sistema da teoria do delito é um ins- e motivação do sujeito. Assim, se o motorista não aciona os freios de seu
trumento conceitual que tem a finalidade de permitir uma aplicação racional veículo e vem a atropelar o pedestre, embora desconhecesse que esse mesmo
da lei a um caso”,477 o que significa que à teoria do delito caberá estabelecer veículo possuía outro freio especial de emergência, pratica uma ação, ainda
uma ordem metodológica pela qual se poderá obter uma solução adequada que, em face de seu desconhecimento, não pudesse ter acionado aquele
ao conflito que se deverá resolver através do direito penal. Esta ordem me- freio de emergência. Em sentido inverso, não haverá ação, por falta de
todológica, na verdade, se desenvolve em face de dois objetivos: a) primeiro, capacidade de evitar o fato, no caso do sujeito que põe fogo em algum
o de servir de mediação entre a lei e o caso concreto, de uma maneira geral; material combustível, mas não espera que a ventania repentina predecessora
b) segundo, o de servir de mediação, em determinados graus, entre a lei e os de uma tempestade conduza as chamas para algumas casas próximas e as
objetos postos em julgamento, isto é, o de possibilitar que sejam tomados incendeie.481 Com tal conceito de ação, pretende BACIGALUPO cumprir
em consideração pelo julgador os aspectos mais particulares do fato, por uma tarefa inicial do processo de imputação, que é excluir do âmbito do
exemplo, os seus elementos objetivos ou subjetivos, as fases de sua realização direito penal todo fato totalmente irrelevante.482
ou as formas de seu aparecimento. Dessas duas ordens de objetivos se chega
à edificação de um quadro de categorias comuns a todas as espécies de delito 478. BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, pg, p. 204.
479. BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, pg, p. 249.
475. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 247. 480. BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, pg, p. 250.
476. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 270. 481. BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, pg, p. 250.
477. BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, parte general, Buenos Aires: Hammurabi, 1999, p. 203. 482. BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, pg, p. 250.
196 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 197

(B) ROLF DIETRICH HERZBERG comissivos, um dever de impedir o resultado, HERZBERG procura en-
Seguindo uma linha mais radical, HERZBERG pretende redirecionar frentá-la utilizando, também nesses casos, os recursos próprios dos delitos
o conceito de ação, tomando como modelo do fato punível o delito omissivo omissivos. Para tanto, quer caracterizar a posição de garantidor tanto em
impróprio. Disso resulta um conceito negativo de ação. O seu empreendimen- relação à pessoa que esteja obrigada por lei ou contrato a proteger o bem
to decorre de uma premissa por ele assentada de que, se a lei penal só define jurídico quanto àquela que seja responsável pela fonte produtora do peri-
de maneira estrita a conduta omissiva própria, não seria possível admitir-se go.487 Diante disso, o autor de um delito comissivo também deverá ser visto
a responsabilidade por omissão imprópria, se não houvesse um denomina- como situado em uma posição de garantidor, de vez que, com seu movi-
dor comum para as condutas comissivas e omissivas.483 Esse denominador mento corpóreo voluntário, já houvera desencadeado uma fonte produtora
comum deveria ser o conceito de ação. de perigo e, portanto, terá o dever de impedir os resultados indesejáveis
dela decorrentes. Aplicando, praticamente, esta colocação a um delito,
Embora seja cético quanto à elaboração de um conceito superior de se poderá dizer, por exemplo, que o “homicídio é a não-evitação de uma
ação, capaz de abarcar todas as formas de manifestação do delito, entende morte evitável na posição de garantidor”.488
que, em certa medida, isto poderá ser obtido, pelo menos em suas linhas
fundamentais e com vistas a concretas espécies de ações. Assim, no crime Embora a construção da teoria negativa de ação seja inferida dos
de homicídio, a ação de matar tanto pode resultar de um movimento cor- delitos de resultado, como o homicídio, HERZBERG quer estendê-la
póreo voluntário quanto do fato de não ter sido impedida, ainda que isto ainda a todas as demais formas de seu aparecimento, isto é, aos delitos
fosse possível, por uma pessoa em posição de garantidor. Desse raciocínio de mera atividade por ação e, especialmente, aos omissivos próprios. Para
se infere, pois, que o conceito de homicídio, a partir da consideração de isso, retoca seu conceito inicial para concluir que a ação é a não-evitação
seu núcleo como ação de matar, é perfeitamente definível em ambas as de alguma coisa evitável, quer se trate de um evento material, quer de um
formas, comissiva e omissiva, com as características antes enunciadas. Caso simples movimento corporal, ou de uma inatividade.489 Em consequência
faltasse, porém, no tocante à omissão, a condição de garantidor, já não mais disso, HERZBERG renuncia a compreender, no conceito de ação, qualquer
se poderia agregá-la ao conceito de homicídio484. referência à vontade, ou à finalidade. Em seu lugar, estaria inserida apenas a
evitabilidade do fato. No exemplo, sempre citado, do delito de homicídio,
Com base neste raciocínio, isto é, da necessidade prática de se adotar em que A atira em B e o mata, a caracterização de sua conduta como ação
um conceito que se adapte a cada tipo de delito, especialmente em face do não se alicerça no fato de que A atuara com consciência e vontade no sen-
contexto no qual se desenvolve a ação típica, é que HERZBERG assinala, tido de apertar o gatilho e direcionar o tiro contra B, mas simplesmente em
enfaticamente, que o caminho metodológico correto deve ser percorrido que A atua, porque poderia ter evitado o movimento corporal exaurido no
ao inverso: “deve-se partir da omissão e buscá-la também na comissão”.485 acontecimento, e mata dolosamente B, porque sabe disso (de que poderia
Dessa forma, ao contrário do que propunha RADBRUCH, entre ação e evitar o movimento corpóreo) e prevê o resultado.490
omissão não se trata de uma abordagem entre A e não-A, mas de não-A e
não-A. Assim, “aquilo que o omitente não impede – o resultado indesejá- Em atenção a esta característica do conceito de ação com base tão-só na
vel – não é de nenhuma forma prevenido pelo autor, que também não o evitabilidade do acontecimento, com exclusão de qualquer referência à sua
impede porque não toma ânimo para refreá-lo”.486 origem volitiva, a finalidade da conduta desempenharia, exclusivamente, uma
função instrumental probatória. Com isso, a ausência de voluntariedade, que
Diante da situação extremamente complexa de admitir, nos delitos HERZBERG trata igualmente como finalidade, não implicaria desnaturar a
483. HERZBERG, Rolf Dietrich. Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, Berlin-N. York:
De Gruyter, 1972, p. 156 et seq. 487. HERZBERG, Rolf Dietrich. Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, p. 172.
484. HERZBERG, Rolf Dietrich. Nota 483, p. 157. 488. HERZBERG, Rolf Dietrich. Die Unterlassung im Strafrecht un das Garantenprinzip, p. 173.
485. HERZBERG, Rolf Dietrich. Nota 483, p. 170. 489. HERZBERG, Rolf Dietrich. Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, p. 175 et seq.
486. HERZBERG, Rolf Dietrich. Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip, p. 172. 490. HERZBERG, Rolf Dietrich. Nota 483, p. 181.
198 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 199

ação, mas indicar indiciariamente que o fato poderá ser tido como inevitável.491 de sua posição. Seu pensamento foi se desenvolvendo ao longo de sua vida
até consolidar-se no Tratado, mas ainda, assim, continua em evolução. Sua
(C) HANS-JOACHIN BEHRENDT primeira grande contribuição foi a de romper com a estrutura normativa
Com orientação semelhante situa-se dentre os partidários de uma proposta pelas doutrinas até então dominantes.
teoria negativa de ação, também, BEHRENDT, que pretende funda- No processo de desenvolvimento de sua variada produção científica,
mentá-la psicanaliticamente. A ação teria, assim, seu conceito extraído da chegou a asseverar, em uma fase inicial, que os crimes culposos não seriam, na
omissão, mas o modelo dessa omissão estaria calcado na sua relação com verdade, delitos de ação, mas delitos de dever.495 Com isso procurava proceder
o respectivo tipo de delito. A ação seria, portanto, a “não-evitação evitável a uma diferenciação entre os crimes dolosos e culposos, já a partir do tipo de
de uma situação típica”.492 Como a ação só teria significado dentro do injusto, conforme a estrutura normativa que os caracterizava. A norma aqui
tipo e poderia, assim, implicar uma concepção puramente normativista, assumia a função individualizadora de uma conduta antissocial, não pelas ca-
BEHRENDT enfrenta a questão, por dois modos. Em primeiro lugar, racterísticas dessa própria conduta, mas pela infração a um dever de cuidado.
quer atribuir à ação, qualquer que ela seja, uma característica psíquica
Apesar disso, porém, subordinava a realização do tipo de injusto, nos
que a fundamenta. Em segundo lugar, ação será apenas a que implicar a
casos de crimes de resultado, à imputação desse resultado levada a termo
manifestação exterior da destrutividade humana.493 De acordo com isso,
através do aumento do risco permitido.496 Os tipos de dever se vinculariam,
atos valoradamente positivos ou neutros não constituiriam qualquer ação,
pois, ao excesso do risco permitido, de sorte que só seriam típicas as condutas
porque neles inexistiria a manifestação da destrutividade humana.
culposas que excedessem os limites específicos desse risco.497
2. OS FUNDAMENTOS DA NEGLIGÊNCIA A tese do aumento do risco assinalava, já naquela época, a originali-
(1) A CONCEPÇÃO DE ROXIN dade dessa concepção e tinha semelhança com a conclusão formulada por
MALAMUD GOTI de que a lesão ao dever de cuidado nada mais seria do
Deslocando a questão do crime culposo quase que inteiramente à que a forma através da qual se ultrapassam os limites da permissibilidade
tipicidade, entende ROXIN que essa postura decorre, modernamente, de de condutas perigosas e cujo risco é aceito pelo Estado e pela sociedade.498
três transformações ocorridas na teoria do delito: a) como consequência
necessária da ruptura do conceito clássico de delito, em face do regresso à Mais tarde, em evolução de seu pensamento, ROXIN desenvolve ainda
norma determinativa; b) pelo reconhecimento do injusto pessoal; c) com a mais sua concepção e abandona, definitivamente, a tese de que os delitos
implantação da teoria da imputação objetiva. De todas essas transformações, culposos constituiriam delitos de dever e passa a tratá-los com a mesma
ressalta, entretanto, que a mais importante radica no desenvolvimento da estrutura dos delitos dolosos, ou seja, unicamente sobre a base da criação de
teoria da imputação objetiva, pela qual o tipo do delito culposo se firma, um risco desautorizado ao bem jurídico.
basicamente, na realização de uma conduta que incremente um risco não Uma das consequências da assunção da tese do risco é possibilitar outro
autorizado ou ultrapasse os limites de um risco autorizado no âmbito da tratamento para casos controvertidos, nos quais subsiste tanto a infração ao
finalidade protetiva da norma.494 dever de cuidado, quanto a afirmação da previsibilidade objetiva e subjetiva
A obra de ROXIN é, talvez, a mais profunda que se produziu na teoria do resultado, mas nos quais a consciência jurídica prática evidencia e reclama
do delito, daí por que seja difícil proceder-se a uma classificação metodológica a absolvição do agente.

491. HERZBERG, Rolf Dietrich. Nota 483, p. 181. 495. ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, Berlin: de Gruyter, 1970, p. 22.
492. BEHRENDT, Hans-Joachin. Die Unterlassung im Strafrecht: Entwurf eines negativen Handlungsbegri- 496. ROXIN, Claus. “Sobre el fin de protección de la norma en los delitos imprudentes” in Problemas bási-
ffs auf psychoanalytischer Grundlage, Baden-Baden: Nomos, 1979, p. 132. cos de derecho penal, p. 182.
493. BEHRENDT, Hans-Joachin. Nota 492, p. 96 497. ROXIN, Claus. Nota 496, p. 182.
494. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 921. 498. MALAMUD GOTI, Jaime. La estructura penal de la culpa, p. 59.
200 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 201

Assim, por exemplo, no caso do farmacêutico, ocorrido em 1887, por ou evitável, mas de atividade que se orienta para além do que o legislador
relatado. Estava uma criança sendo tratada por médico habilitado, que lhe aceita como perigoso, dentro da ordem social, onde cada vez mais se amplia
havia receitado remédio à base de fósforo, para ser tomado, porém, apenas a esfera dos riscos individuais e coletivos. Através disso, será possível com-
uma única vez. Por solicitação da mãe, o farmacêutico que aviou a receita preender-se melhor a tese de ROXIN de que “a ação que não ultrapassa o
ministrou-lhe algumas quantas doses mais, até que a paciente veio a falecer risco permitido, que não incrementa o perigo de produção do resultado, se
de envenenamento por substância química. Mais tarde, pôde-se verificar chegar a causar um resultado, deverá ser julgada, nesse aspecto, do mesmo
que se o médico fosse solicitado a dar novas receitas, o teria feito na mesma modo que a conduta não proibida”.501
medida do farmacêutico. Sob outro prisma, procedia também ROXIN à crítica à concep-
Esse fato induz várias conclusões, pois destaca, em primeiro plano, ção causal do delito culposo, salientando que a redução da tipicidade à
não a causalidade, mas a hipótese de comportamento adequado. Analisan- realização causal do resultado, no sentido da teoria de equivalência dos an-
do-o, ROXIN observara que realmente o que importava não era se teria tecedentes, como a adotada pelo Código Penal brasileiro (art.13), conduz,
ou não o médico continuado com o medicamento, mas se o seu emprego a priori, a estender-se demasiadamente o âmbito da responsabilidade, que
pelo farmacêutico, na forma como o fez, estava de acordo com as normas não pode mais ser limitada, nem mesmo pelos critérios da previsibilidade
de cuidado da medicina. Se assim fosse, a conduta do farmacêutico não ou evitabilidade do evento, pois, abstratamente considerado, tudo pode
poderia ser taxada de culposa, pois o fato de prescindir da consulta ou de ser previsível ou evitável.502
nova receita, geralmente obrigatória, não importara um aumento do risco Em lugar disso, propunha a fixação concreta dos deveres de cuidado,
para o bem jurídico, descaracterizando, destarte, uma lesão ao dever de como instrumento adequado a estabelecer o campo limitado daquilo que
cuidado.499 A ausência de consulta ao médico poderia indicar atividade deva ser evitado ou previsível, mediante a ameaça da pena. Dentro dessa ne-
imprópria dentro de sua profissão de farmacêutico, mas, no caso, jamais um cessidade de limitação da responsabilidade, procurava amparo nos princípios
homicídio culposo. Por outro lado, o julgamento deveria ser distinto, se o da confiança e do risco permitido, culminando com a conclusão de que com
médico houvesse receitado o medicamento através de controles, para evitar eles se pudesse seguir o caminho da tipificação dos deveres de cuidado, cuja
o envenenamento, caso em que teria sido possível a salvação da criança, se tarefa estará a cargo de trabalho de aperfeiçoamento sistemático.503
consultado oportunamente. Ainda que tão-só existisse uma probabilidade
de salvamento ou que o médico realmente ordenasse um exame de con- (A) O TIPO DE INJUSTO
trole, a conduta do farmacêutico, por haver excluído essa hipótese, teria
Agora, no Tratado, e partindo da premissa da imputação objetiva, cri-
o efeito de incrementar o perigo e, consequentemente, ultrapassar o risco
tica ROXIN a doutrina tradicional, que constrói o tipo dos delitos culposos,
permitido, vindo a configurar-se como homicídio culposo.500
exclusivamente, sobre a violação da norma de cuidado, acrescida de critérios
A rápida análise desse caso, efetuada por ROXIN, serve para ilustrar seu de sua determinação, como os da evitabilidade, previsibilidade ou inadequa-
pensamento, demonstrando que a estrutura do fato culposo passava, grada- ção social. Em seu lugar, afirma ROXIN que, na própria violação da norma
tivamente, por uma profunda transformação, para chegar à assertiva de que, de cuidado, já se encontram albergados diversos elementos da imputação
em todas as ações culposas, subsiste uma atividade perigosa, na maioria das objetiva, os quais podem caracterizar a negligência de uma forma mais precisa
vezes, inclusive, permitidas pelo Estado e que o tipo de injusto seria constituído e correta do que a derivada daquelas cláusulas gerais.504
de modo exclusivo de excessos no exercício dessa atividade perigosa.
Assim, não se tratava de mera conduta causal ou de resultado previsível 501. ROXIN, Claus. “Infracción del deber y resultado en los delitos imprudentes”, in Problemas básicos de
derecho penal, p. 168.
499. ROXIN, Claus. “Infracción del deber y resultado en los delitos imprudentes”, in Problemas básicos de 502. ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, p. 22.
derecho penal, p. 171. 503. ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, p. 23.
500. ROXIN, Claus. Nota 499, p. 172. 504. ROXIN, Claus. Nota 225, vol. I, p. 922.
202 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 203

Por outro lado, se o autor não tiver incrementado um perigo juridica- indicia a criação de um perigo não autorizado, mas tal não significa, por outra
mente relevante ao bem jurídico, faltará a violação a uma norma de cuidado. parte, que necessariamente o fundamente. Aquilo que pode ser perigoso, em
No caso do jovem que tenha marcado um encontro com sua namorada em abstrato, pode não o ser no caso concreto.507 Ao reverso, a realização de uma
determinado local, mas que se vê surpreendido em face de ser ela esmagada atividade dentro das recomendações não implica, normalmente, a criação
por um meteoro, não se pode falar de violação a qualquer norma de cuidado, de um perigo não autorizado. Em face dessa dicotomia de tratamento, para
pois, com sua conduta, não houvera incrementado qualquer risco para a sua caracterizar-se o risco não autorizado, no último caso, dever-se-á demonstrar,
vida. A questão, portanto, não está centrada na violação à norma de cuidado, então, que a manutenção da atividade dentro do estritamente regulamentar
mas na criação de um risco não autorizado para o bem jurídico. Assim, não conduziria, claramente, a um acidente. Assim, desde que o acidente se situe
haverá infração a uma norma de cuidado, ainda que de uma atividade de- distante de uma manifesta ocorrência, não há que se falar de delito culposo.508
corra a morte de alguém, se o autor tiver realizado essa atividade nos limites Em relação às normas profissionais, não devem ser tratadas do mesmo
impostos pelas regras que a regulam (por exemplo, as regras de trânsito), pois, modo que as normas regulamentares. Como dizem respeito, geralmente, ao
neste caso, uma vez autorizada a conduta, estará excluída a possibilidade de exercício de ofícios privados ou à prática de certos esportes, ao contrário do
se haverem violado os limites do risco que ela pudesse incrementar. que se pode pensar, sua infração não deve constituir um indício de realização
Com base no critério de que o núcleo dos delitos culposos é consti- de um risco não autorizado. É que muitas vezes essas normas nem mais estão
tuído pela violação dos limites do risco autorizado, ROXIN conclui, por em vigor e, outras vezes, estão já ultrapassadas para serem aplicadas ao caso
outro lado, que a autorização desse risco implica, assim, a própria exclusão concreto. Portanto, no futebol, por exemplo, a infração às suas regras, ainda
do injusto penal e não, apenas, da culpabilidade do fato. Embora a sua que disso ocorram eventos lesivos, não implica, salvo casos manifestos, a
construção possa dar a entender que, nesses delitos, o que vale é, simples- formação de um delito culposo.509
mente, o desvalor do ato, pondera ROXIN, no entanto, que em qualquer Particular importância tem a disciplina do critério para se determina-
delito, por decorrência da formação do injusto, tanto sobre uma norma de rem os limites do risco. Geralmente, a doutrina trabalha com o critério do
determinação quanto de valoração, é indispensável a inclusão do desvalor homem prudente ou, excepcionalmente, como o faz STRATENWERTH,
do resultado.505 Para ele, assim, a própria ação típica deve ser tomada como do autor individual, para avaliar se houve ou não violação do cuidado ob-
“unidade de fatores internos e externos (inclusive do resultado)”.506 Isso jetivo. ROXIN, ao contrário, como assenta o tipo dos delitos culposos na
será, evidentemente, consequência lógica de uma construção do delito realização do risco não autorizado, ou na violação dos limites do risco auto-
culposo por sobre a teoria da imputação objetiva, para a qual o resultado rizado, formula uma diferenciação quanto a esse critério.
desempenha um papel significativo.
Caso a atividade seja regulamentada em geral, como, por exemplo, as
Se o cerne dos delitos culposos se fixa na violação dos limites do cirurgias, as construções, a condução de veículos ou o exercício profissional
risco autorizado, ou no incremento de um risco não autorizado, as normas em geral, ou, ainda que não regulamentada, se insira nos hábitos normais
regulamentares de atividades arriscadas desempenham, aqui, um papel ex- das pessoas, o critério deverá ser obtido da figura do homem prudente que
tremamente relevante. Neste aspecto, propõe ROXIN sua classificação em decorreria dos padrões de comportamento previstos nas normas regulamen-
dois grupos de casos: as normas regulamentares e as normas profissionais. As tares ou nesses hábitos.
primeiras, como normas jurídicas, se estendem a todos, as segundas, somente
às pessoas que cumpram atividades específicas. Se, ao invés, a atividade específica não for regulamentada ou seja
impossível obter-se uma linha diretriz de comportamento, propõe o
Em relação às primeiras, pondera que, sendo normas gerais, sua violação
507. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 924.
505. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 921. 508. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 925.
506. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 270. 509. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 926.
204 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 205

atendimento de duas regras: a) nos casos em que falte a medida do risco também a sua divisão em tipo objetivo e tipo subjetivo. Mas só aceita esta
em face de atividades específicas, o autor deve informar-se melhor sobre os divisão para a culpa consciente. O tipo subjetivo estaria, assim, constituído
riscos dessa sua intervenção, ou, se esta informação não for possível, ou for da representação acerca de todas as circunstâncias do fato, assim como de um
insuficiente, deve se abster da atividade. Ademais, caso o autor não tenha perigo não autorizado e da confiança em que o tipo objetivo não se realize.512
capacidade para realizar a atividade sem riscos, deve também dela se abster; Na culpa inconsciente falta o tipo subjetivo, porque, neste caso, o autor
se a realizar, assim mesmo, e disso resultar um evento lesivo, se aperfeiçoará não representa as características e os pressupostos do tipo objetivo. Atentando
o tipo do delito culposo; b) no caso em que seja impossível determinar os para esse raciocínio, tece severas críticas ao pensamento de STRUENSEE,
limites do risco, o critério deverá ser aferido da ponderação social acerca que quer ver, na culpa inconsciente, um tipo subjetivo, que seria preenchido
da atividade arriscada: em relação a ações socialmente desaprovadas (por não pela consciência do agente em relação às circunstâncias do fato, mas aos
exemplo, as corridas urbanas proibidas de veículos), a simples realização fatores de risco. Em contrapartida, diz ROXIN que, geralmente, na culpa
da atividade já implica a criação de um risco não autorizado; já quanto a inconsciente, o autor tampouco pensa nos fatores de risco, que são inerentes
atividades socialmente aprovadas (por exemplo, a prática de futebol em à regra de cuidado que violara e nem por isso deixa de realizar o tipo.513
campos privados), os pequenos riscos que poderiam encerrar devem ser
tolerados, bem como devem ser também tolerados os altos riscos da direção (B) A ANTIJURIDICIDADE
em alta velocidade de uma ambulância.510
No setor da antijuridicidade, admite ROXIN possa haver justificação
Em sequência à discussão dos critérios de determinação do risco, em fatos culposos, notadamente, pela legítima defesa, pelo estado de neces-
ROXIN traz à baila o problema da especial capacidade do autor. Normal- sidade e consentimento presumido do ofendido.
mente, a doutrina tradicional considera que, no tipo de injusto, não deve ser
Quanto à legítima defesa, estima encontrá-la em dois grupos de casos.
levada em conta a capacidade individual, mas aquela que seja atinente a um
No primeiro caso, quando o resultado advém como consequência involun-
homem normal, o chamado homem prudente. A discussão se o autor era,
tária do uso de meios de defesa. Assim, por exemplo, estaria justificada a
pessoalmente, capaz ou incapaz de atender ao cuidado objetivo seria proble-
morte de alguém, em decorrência de disparo acidental de uma arma, que
ma da culpabilidade. Discrepando disso, STRATENWERTH e JAKOBS se
estava sendo usada pelo autor para sua defesa própria. Aqui, a conduta es-
orientam pela capacidade individual do autor.
taria justificada, ainda que implicasse um risco não autorizado, porquanto
Quanto a essa questão, assume ROXIN uma posição intermediária. o autor já se encontrava em legítima defesa e a consequência mais grave fora
A assunção de uma atividade por um sujeito incapaz não exclui o tipo, se o desdobramento do ato anterior. No segundo caso, quando o resultado
a medida do risco ficar aquém daquela que seria exigível de um homem fosse justificável, ainda que o fato fosse doloso. Por exemplo, alguém dá um
prudente; no entanto, poderá haver a exclusão da culpabilidade. Agora, a tiro de advertência para assustar o agressor, mas acaba por atingi-lo. Nesta
realização de uma atividade arriscada por alguém especialmente capaz de hipótese, a ação estará justificada, caso a consideração do resultado como
evitá-la não implica a exclusão do tipo, ainda que a medida do risco se man- doloso conduzisse à mesma solução. Além dessas hipóteses, mantém-se
tenha dentro dos limites do critério padronizado do homem prudente. Neste cético quanto à possibilidade de legítima defesa, sem que o agente tenha
último caso, se o agente é dotado de especiais qualidades, deve exercê-las para representado a situação de defesa. Apesar disso, considera como exclusão
evitar a lesão de bem jurídico. Neste particular, ROXIN admite valer-se, para da tipicidade, por ausência do desvalor do resultado, o fato no qual o su-
o delito culposo, dos mesmos critérios dos delitos omissivos.511 jeito, dirigindo sem atenção, vem a atropelar um ladrão que simulara um
No tocante à estrutura do delito, ROXIN acolhe para o delito culposo acidente, evitando com isso que fosse assaltado.514 Os mesmos argumentos
512. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 943.
510. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 932 et seq. 513. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 944.
511. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 937 et seq. 514. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 952 et seq.
206 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 207

da legítima defesa valem para o estado de necessidade. estas, afirma que são sempre admissíveis, ainda que não estejam expressamente
Já o consentimento presumido do ofendido é tomado como causa de reguladas na lei, sendo dedutíveis dos princípios político-criminais vigorantes
justificação, principalmente nas atividades profissionais, entre as quais o exer- para os casos em espécie, com base nos fins de prevenção geral e especial.
cício da medicina. Assim, estarão, por isso mesmo, justificadas eventuais Nesse aspecto, invocava dois exemplos: o famoso caso da eutanásia pra-
lesões à saúde ou à integridade corporal da vítima, em face de lhe haver o ticada por médicos durante o regime nazista e o chamado autor por motivo
médico prestado assistência na rua, por força das circunstâncias de estar ela de consciência. No primeiro caso, que retrata a morte de vários pacientes em
inconsciente e gravemente ferida, sem a observância das condições ideais de hospitais alemães, realizada por médicos internos, sob determinação superior,
higiene que normalmente lhe seriam exigidas. 515 porém, através da seleção dos pacientes mais aptos, feita esta para evitar a
morte de todos os demais pacientes, entende que se deveria excluir a respon-
(C) A CULPABILIDADE sabilidade ou culpabilidade, pela desnecessidade da pena, sob o fundamento
Tratando especificamente da culpabilidade, ROXIN já havia provocado, da singularidade da situação e da finalidade protetiva dos autores para com os
no início de sua elaboração dogmática, uma ruptura no sistema tradicional, demais pacientes.518 No segundo caso, em que assume importância a negativa
ao abandonar o princípio de que a culpabilidade é “poder atuar de outro da autorização para a transfusão de sangue dos adeptos da seita “Testemunhas
modo”. Em seu lugar, afirmava a vontade do legislador jurídico-penalmente de Jeová” e que traz grandes implicações no âmbito dos delitos omissivos,
orientada no sentido da determinação da responsabilidade do sujeito da ação admite ROXIN se devam aplicar os mesmos fundamentos do primeiro, sob a
típica injusta. Assim, o fundamento da culpabilidade não seria a reprovação alegação de que, de qualquer modo, os agentes atuaram em favor das vítimas,
pela má formação de vontade, mas a necessidade prática, segundo os fins da embora tão-só segundo suas concepções.519
pena, de se estabelecer uma responsabilidade criminal do autor, na medida Em seus trabalhos primitivos, ROXIN dava a entender que a cul-
em que isto seja imprescindível por razões de prevenção especial ou geral, pabilidade compreenderia um estágio final, vinculado aos propósitos de
para manter uma ordem social pacífica.516 prevenção geral e especial, que representaria o que denominava de critério
Com isto, pretendia justificar que o legislador “às vezes castiga e às relativo à necessidade da pena. Agora, no Tratado, ROXIN torna mais
vezes prescinde da sanção, apesar do poder geral de agir de outro modo e clara sua concepção, fazendo distinguir entre culpabilidade em sentido
apesar da culpabilidade daí subsistente, porque, ainda que se dê por suposta estrito e necessidade preventiva, que já esboçara anteriormente.520 Estes dois
a possibilidade de culpabilidade humana, faz depender a responsabilidade elementos integram a categoria por ele chamada de “responsabilidade”. A
jurídico-penal de considerações preventivas”.143 culpabilidade desempenharia o papel de estabelecer as condições pelas quais
se poderia atribuir ao sujeito um juízo de censura. Já a necessidade preven-
Em apoio a sua tese, ROXIN invocava o caso do estado de necessidade
tiva diria respeito às condições pelas quais se poderia desculpar a conduta
exculpante, no qual é de todo possível reconhecer-se “o poder atuar de outro
do agente. Neste esquema, portanto, a categoria da necessidade preventiva
modo”, mas, mesmo assim, o legislador isenta o agente de responsabilidade,
englobaria todas as antigas causas de exculpação, enquanto à culpabilidade
tendo em vista a falta de necessidade de prevenção especial ou geral.517
ficariam atreladas a imputabilidade e a consciência da ilicitude.
Em face das dificuldades que seu sistema poderia gerar, procurava ROXIN
A culpabilidade, como primeiro elemento da categoria da responsa-
rebater as críticas que se lhe pudessem opor, principalmente no tocante à possi-
bilidade, seria conceituada como “a atuação injusta apesar da acessibilidade
bilidade e aos fundamentos de causas extralegais de exculpação. Relativamente a
normativa”. Com isso quer dizer que “se deve afirmar a culpa de um autor,

515. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 955.


516. ROXIN, Claus. “Culpabilidade y responsabilidad como categorias sistemáticas jurídico-penales”, in 518. ROXIN, Claus. Nota 516 , p. 222.
Problemas básicos del derecho penal, tradução castelhana, Madrid: Reus, 1976, p. 209. 519. ROXIN, Claus. Nota 516, p. 223.
517. ROXIN, Claus. Nota 516, p. 221 . 520. ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, p. 33.
208 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 209

quando ele, por ocasião do cometimento do fato, em virtude de sua constitui- a realização do tipo, mas não a alcança, na negligência, o agente erra na
ção mental e anímica, estava disponível ao apelo da norma, quando lhe eram medida em que não reconhece como ocorrente a realização do tipo. Este
(ainda) psiquicamente acessíveis as possibilidades de decisão em prol de uma erro pode se dar de dois modos, a) ou o agente nem pensa que alguma coisa
conduta conforme à norma, quando estavam presentes, no caso concreto, as está ou não para realizar-se, b) ou representa falsamente que alguma coisa
possibilidades de direção psíquica (quer sejam livres ou determinadas), das não se realizará, embora se realize.526
quais são portadores os adultos sadios e em situação normal”.521 Uma vez que o conceito de ação se confunde, aqui, com o crité-
Com esta conceituação, pretende ROXIN fundamentar a culpabilida- rio da evitabilidade, a negligência seria conceituada como uma forma de
de sobre a base da “acessibilidade normativa”, em substituição ao princípio evitabilidade, em que falta o conhecimento atual do evitável. Assim, sua
da liberdade de vontade. Para tanto, parte de que o agente se faz culpado diferenciação do dolo se daria porque, enquanto neste a cognoscibilidade
quando, embora seja dotado da capacidade de se conduzir de conformidade do evitável se desdobra em conhecimento, naquela tal não ocorre, quer
com a norma, não tenha aproveitado as alternativas de conduta que lhe eram, dizer, o conhecimento do evitável não é manifestado, estancando o processo
em princípio, psiquicamente acessíveis. na própria cognoscibilidade. 527
Desprezando os fundamentos do princípio da liberdade de vontade, Tendo em vista a estrutura do direito penal, tanto no dolo quanto na
não vê necessidade de se invocar o princípio do “poder agir de outro modo”, negligência o agente está subordinado aos ditames de uma norma, não tendo
que considera indemonstrável. A afirmação da liberdade de agir resultaria outro dever que o de submeter-se ao que a ela determinar. Assim, no come-
da circunstância de que o autor é tratado como um ser livre, na medida em timento culposo do fato, deve o agente omitir-se da ação; e deve realizá-la
que mantenha intacta a capacidade de se autodirigir e ser motivado pela no seu cometimento por omissão. Ao contrário do que postula a doutrina
norma.522 A culpabilidade teria, portanto, uma estrutura complexa, cons- em geral, JAKOBS quer assinalar ao delito culposo comissivo um núcleo
tituída de circunstâncias empíricas e normativas. Empíricas seriam aquelas omissivo. Neste caso, ao agente não se proíbe que atue sem cuidado, mas se
que dizem respeito à capacidade de autodeterminação e de acesso à norma. lhe obriga a omitir-se de uma ação descuidada.528
Normativas seriam aquelas que atribuem ao autor a possibilidade de uma
Por outro lado, nem toda previsibilidade de um resultado constitui
conduta conforme ao direito, a partir daquelas circunstâncias empíricas.523
negligência relevante. É que, no tipo objetivo, incidem limitações relativas
Relativamente aos fatos culposos, a estrutura da responsabilidade não à imputação objetiva que também se estendem ao delito culposo. Destarte,
se altera, admitindo ROXIN que lhe sejam estendidas todas as formas de jurídico-penalmente relevante será apenas a “previsibilidade de um risco que
exclusão da culpabilidade, quanto aquelas que excluem a necessidade pre- ultrapasse os limites do risco autorizado e que, ademais, seja objetivamente
ventiva, as comumente chamadas causas de exculpação.524 imputável”.529 O risco permitido, porém, não delimita o conceito de negli-
(2) A CONCEPÇÃO DE JAKOBS gência, apenas sua relevância jurídica.
A culpa e o dolo, para JAKOBS, integram o tipo subjetivo, como cir- Como a ação é conceituada a partir da capacidade individual de
cunstâncias que transformam a realização do fato em ação típica.525 Como, evitar suas consequências, no tipo do delito culposo, não se deve ter como
na negligência, a representação do agente e a realidade não se correspon- critério o padrão do homem médio, do homem prudente, mas as caracte-
dem, trata-se, na verdade, de uma hipótese de erro. Em contraste, porém, rísticas do autor individual. Com isso, JAKOBS individualiza a medida do
com o erro que deriva do delito doloso tentado, em que o agente representa dever de cuidado e, consequentemente, do risco, isto é, da possibilidade de
521. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 740.
522. ROXIN, Claus.Nota 225, p. 741. 526. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 315 et seq.
523. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 743. 527. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 317.
524. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 956. 528. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 319.
525. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 256. 529. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 319.
210 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 211

reconhecimento do evitável, opondo-se, pois, tanto àqueles que incluem obrara com defeito volitivo quanto à sua observância e, por isso, se mostrara
a previsibilidade na culpabilidade quanto aos que a tratam objetivamente infiel ao direito. Portanto, a culpabilidade constitui uma forma de imputa-
dentro do tipo. Especificamente quanto a esta última solução, pondera que, ção de defeito volitivo. Por defeito volitivo deve ser sempre entendido um
com a objetivação da medida do reconhecimento do risco, se perde a refe- déficit de motivação fiel ao direito.534
rência para o tipo subjetivo, de modo que os delitos de dano se transformam Para serem capazes de motivar o comportamento, as normas, antes
em delitos de perigo abstrato.530 Assim, o médico que prescreve um medica- de tudo, devem possuir legitimidade. Sua legitimidade é que dará à impu-
mento do qual decorreram lesões à vítima, mas assim o faz porque acreditara tação de culpabilidade seu conteúdo material, tratando o infrator como
na sua eficiência, uma vez que tivera a ocasião de pôr à prova seu parecer, cidadão, podendo-se-lhe exigir, então, que motive seu comportamento de
ainda que, objetivamente, contrarie a lex artis, não atua nem dolosa nem conformidade com a norma.535 Se toda pessoa está subordinada à norma,
culposamente, em face de não haver reconhecido nem lhe ser reconhecível numa relação sinalagmática, como propõe JAKOBS, a relação entre sujeito
que disso pudessem resultar aquelas consequências. e direito é, no fundo, uma relação contratual, quer dizer, a liberdade que
Ao propor a individualização da medida da previsibilidade, JAKOBS se reconhece ao infrator, ao ser tratado como cidadão, de configurar seu
submete o autor individual aos critérios da imputação, de tal sorte que comportamento, é medida em função de seu papel social de se manter
cada um deve responder como autor na medida do desempenho de sua fiel ao ordenamento jurídico.536 Tratando, assim, o sujeito em face de sua
função na realização da conduta. Se um pesquisador, em virtude de seus fidelidade ao direito, como dever pessoal, JAKOBS transforma o próprio
especiais conhecimentos, deve usá-los integralmente quando efetue uma ordenamento num conjunto de cláusulas contratuais. A característica de
investigação, o mesmo não se pode dizer de um estudante de engenharia cidadão, que decorre do papel social do sujeito e de sua capacidade de
que, eventualmente, passe a trabalhar numa construção.531 Em consequên- motivação, se resume, no fundo, a um rótulo, que só tem significado numa
cia desse pensamento, o que se exige não é que todos os homens devam ser relação de obrigações recíprocas, na qual a capacidade de cumprir o dever
tratados com a mesma capacidade, o que contraria a realidade dos fatos, legal está sempre subordinada ao dogma de que cada um terá concordado,
mas que todos os homens estejam submetidos ao mesmo processo de moti- de antemão, com aquelas obrigações. A questão da legitimidade da norma
vação quanto às expectativas de conduta que a norma lhes traça, conforme representaria, aqui, simplesmente, a função de assentar as bases de sua
o papel social que desempenhem.532 vigência. Uma vez em vigência, presume-se que o dever dela decorrente é
No tocante à culpabilidade, valem para os delitos culposos os mesmos aceito por todos, como vinculante de seus comportamentos.
fundamentos aplicados, em geral, aos delitos dolosos. A culpabilidade de- Para se entender a estrutura da culpabilidade em JAKOBS, é necessá-
sempenha, para JAKOBS, uma função vinculada aos postulados funcionais rio, antes de tudo, esclarecer sua distinção para com os demais elementos do
por ele assentados no tocante às finalidades da norma penal. A punição do delito, em especial com a ação, a tipicidade e a antijuridicidade.
sujeito tem como objetivo assegurar a confiança geral na norma, como forma O conceito de delito pressupõe a existência de um sujeito, tratado por
de treinamento geral acerca de seu reconhecimento.533 JAKOBS como sistema psicofísico. Este sistema psicofísico integra, por sua
Culpabilidade seria, então, o juízo de censura sobre o autor, porque vez, um sistema geral, que é o ordenamento jurídico, no qual se desenvolvem
este não se motivara de conformidade com a norma, quer dizer, um juízo as ações e as reações. A forma de manifestação desse sujeito (sistema psicofísi-
de declaração de que o autor individual, apesar de ser capaz de reconhecer co) é a ação, que existirá na medida em que se vincule a um resultado evitável.
e acatar a motivação de comportamento que lhe era prescrita pela norma, Todo o complexo conteúdo da ação está construído, todavia, sob critério
530. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 320. 534. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 481; idem, “El principio de culpabilidad”, in Estudios de derecho
531. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 322. penal, tradução espanhola, p. 383.
532. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 323. 535. JAKOBS, Günther. “El principio de culpabilidad”, in Estudios de derecho penal, p. 384.
533. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 481. 536. JAKOBS, Günther. “El principio de culpabilidad”, in Estudios de derecho penal, p. 393.
212 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 213

negativo. Uma vez que seja impossível ao sujeito evitar o resultado, não imaturidade. Não se desculpa, assim, a lesão culposa causada por um torcedor
haverá ação, sendo esta inevitabilidade tomada como um motivo material de exaltado em outro expectador, em protesto inconsciente contra a atitude do
sua exclusão. Se não houver motivo material para excluir a ação, esta ainda juiz, ou mesmo aquela causada pela frenagem brusca de um motorista, diante
poderá ser desapreciada desde que subsista um motivo jurídico para tanto. da notícia de que sua companheira estaria grávida.544
Os motivos jurídicos se subdividem no âmbito da tipicidade e da antijuridi- Especial importância tem, também, a hipótese de se estenderem à
cidade. Ao reconhecer-se que uma ação é antijurídica, se afirma, assim, que, matéria da inexigibilidade os princípios da ponderação dos riscos. Aqui,
além de ter capacidade fática de evitar o resultado, o autor não é beneficiário deve vigorar o mesmo critério do bloqueio de motivação. Assim, no céle-
de uma motivação jurídica que possa justificar seu comportamento. Isto, bre caso do cocheiro que, conscientemente, para não perder o emprego,
entretanto, não implica que o autor tenha contraposto seus motivos pessoais utiliza, em sua carroça, um cavalo indomável, vindo com isso a causar um
ao motivo da norma, isto é, que tenha atuado com infidelidade ao direito, acidente e lesões corporais em terceiro, entende JAKOBS, ao contrário da
questão esta que está afeta aos elementos da culpabilidade. concepção dominante, que não haverá exclusão de culpabilidade, porque
Tendo em vista a característica de sua tarefa, a culpabilidade é construída falta um bloqueio de motivação relevante e o emprego não constituiria um
sobre duas estruturas, que devem ser completadas para declarar a infidelidade bem jurídico de maior valor.545
ao direito por parte do autor: o tipo de culpabilidade e o tipo de exculpação.
(3) A CONCEPÇÃO DE MUÑOZ CONDE
Especificamente, pertencem ao tipo de culpabilidade a imputabilidade e o
conhecimento ou a cognoscibilidade do injusto. Ao tipo de exculpação se Seguindo a orientação comum da moderna doutrina espanhola,
agregam todos os elementos relativos à inexigibilidade de comportamento ade- MUÑOZ CONDE começa a tratar do delito culposo a partir do tipo de
quado à norma,537como os relativos ao estado de necessidade exculpante,538 ao injusto, o qual congrega a lesão ao dever de cuidado, o resultado e todos os
autor por convicção,539 ao excesso escusável da legítima defesa,540 à colisão de elementos da imputação objetiva.
deveres541 e à clausula geral inespecífica de inexigibilidade.542 Tendo em vista a característica dos delitos culposos de não terem a respec-
Particular importância é conferida, não obstante, à inexigibilidade nos tiva ação típica descrita com precisão na lei penal, qualifica-os de delitos de tipos
fatos culposos. Aqui vigora o princípio de que a culpabilidade estará excluída abertos, tal como o fazia WELZEL. Apesar disso, entende que tal característica
se o autor não estava capacitado para bloquear sua motivação dominante em não implica uma violação do princípio da legalidade, uma vez que a própria
contraposição à motivação que lhe era imposta pela norma, especialmente natureza das coisas impede que possam ser legalmente descritos, com maior
porque “o interesse do autor fora absorvido por um acontecimento que, de exatidão, todos os comportamentos culposos.546 Para justificar essa afirmação
conformidade com a valoração jurídica, era perfeitamente compreensível”.543 estima necessário buscar um ponto de referência com o qual se possa proceder a
uma comparação para com a ação típica, vendo-o no dever objetivo de cuidado.
Assim, seguindo aquele princípio, é de se desculpar o ato do agente que,
O núcleo do tipo desses delitos consistiria, assim, na “divergência entre a ação
em face da notícia de um acidente ocorrido com seu filho menor, abandona um
realmente realizada e a que deveria ter sido realizada em virtude do dever de
ferro de soldar em brasa, sem se dar conta de que, com isso, acabara de provocar
cuidado que, objetivamente, era necessário observar”.547
um incêndio. Isto não vigora, contudo, quando o agente estava capacitado para
seguir a motivação dominante da norma, ainda que tivesse atuado por medo ou Fazendo coincidir seu pensamento com o da teoria final, quer funda-
mentar o desvalor jurídico dos delitos culposos sobre a forma de realização da
537. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 493.
538. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 567.
ação, ou sobre a seleção dos meios utilizados para essa realização. Com isso,
539. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 577.
540. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 582. 544. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 587.
541. JAKOBS, Günther.Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 588. 545. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 587.
542. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 591. 546. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 322.
543. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 587. 547. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 323.
214 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 215

a norma jurídica desempenharia um papel educador, de motivar os cidadãos para fundamentar o tipo de injusto culposo. Assim, àquele que disponha
a atuarem, subjetiva e objetivamente, com cuidado, quando realizem ações de maiores conhecimentos técnicos, deve-se exigir que os esgote em sua
que possam produzir resultados lesivos.548 Ao valer-se do fundamento moti- conduta, de uma forma, portanto, muito mais rigorosa e distinta do que se
vacional da conduta em face da finalidade protetiva da norma, aproxima-se poderia exigir de outro, que não os detivesse. Neste aspecto, se torna relevan-
MUÑOZ CONDE das teorias funcionais, porque constrói o tipo de delito te, também, a função ou o papel que se reserva ao sujeito na prática da ação
e a própria ação culposa sob a perspectiva de um sistema global. determinada,552 o que corresponde a um critério de imputação funcional.
Estando o cuidado objetivo inserido no tipo dos delitos culposos A lesão ao dever de cuidado resultaria, portanto, da conjugação de fatores
como seu elemento de referência, seu conceito, ademais de objetivo, é objetivos e subjetivos, referentes, respectivamente, aos elementos gerais e indi-
também normativo. Trata-se de um cuidado objetivo, porquanto não inte- viduais, pelos quais se obtém a conclusão de que, em comparação com a ação
ressa para a sua configuração o critério individual ou pessoal do autor, pelo que deveria ter sido realizada, a ação concreta ficara aquém do cuidado que lhe
qual se extrairia o cuidado que poderia ser aplicado no caso concreto, mas era exigido nas circunstâncias. Caso, entretanto, a ação concreta seja conforme
o cuidado que era exigido na vida de relação social, especificamente quanto ao cuidado, não será típica, porque o direito penal não poderá obrigar que
a uma conduta determinada. Como este dado puramente objetivo, requi- alguém realize uma conduta acima do que lhe era objetivamente exigível. 553
sitado da vida de relação, é muito incerto, se torna indispensável ajustá-lo Apesar de o tipo dos delitos culposos abarcar, praticamente, todos os
às exigências da norma, mediante um juízo de comparação entre a conduta elementos do injusto, sua antijuridicidade não apresentaria acentos espe-
que teria seguido um homem razoável e prudente, posto na situação do ciais. Valem, aqui, assim, em princípio, as causas de justificação dos delitos
autor, e a conduta que efetivamente foi executada. Este juízo normativo, dolosos. O mesmo se pode dizer da culpabilidade, cuja concepção, lastreada
comparativo, se compõe, por sua vez, de dois elementos, um intelectivo e nos princípios de prevenção geral e especial, segue, mais ou menos, os fun-
outro valorativo. O primeiro se refere às consequências da ação, que eram damentos articulados por ROXIN. De conformidade com isso, com o juízo
objetivamente previsíveis. O segundo diz respeito à adequação social da de culpabilidade se afirma a capacidade concreta do sujeito de se motivar de
conduta. Assim, em face disso, só seriam culposas as condutas que produ- acordo com a norma, daí resultando a censura sobre seu comportamento.
zissem resultados objetivamente previsíveis e, ademais, que ficassem aquém Importante, assim, para fundamentar sua culpabilidade, não é que tenha
da medida socialmente adequada à sua realização.549 o sujeito à sua disposição várias modalidades de ação, mas que a “norma
Na aferição da adequação social da conduta valem tanto as regras de penal o motive, com seus mandatos ou proibições, a abster-se de realizar
cuidado inseridas em normas regulamentares ou de circulação, quanto os uma dessas ações possíveis”.554 A motivabilidade, que seria a capacidade de
critérios da imputação objetiva, os princípios da confiança, do risco autori- reagir às exigências normativas, constituiria a faculdade humana fundamental
zado e da razoabilidade.550 que permitiria a atribuição de uma ação a um sujeito e a exigência de ser
Além dos critérios objetivos, que valoram a negligência sob o ponto de pronunciado sobre ele um juízo de responsabilidade por essa ação praticada.
vista de um observador imparcial, situado na condição do autor concreto, Sobre este fundamento estariam, também, organizados todos os elementos
subsiste, nos delitos culposos, um tipo subjetivo, que “atende à capacidade da culpabilidade, como a imputabilidade, a possibilidade do conhecimento
individual, ao nível de conhecimentos, previsibilidade e experiência do sujei- do ilícito e a exigibilidade de comportamento distinto,555 bem como os que
to”.551 No tipo subjetivo, portanto, se incluem todos os elementos que levam compõem o chamado tipo de culpabilidade.556
em conta as condições do autor concreto. Isto vale tanto para excluir, quanto
552. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 326.
548. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 323. 553. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 327.
549. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 323. 554. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 404.
550. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 324 et seq. 555. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 409.
551. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 325. 556. MUÑOZ CONDE, GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 409.
216 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 217

3. CRÍTICA ÀS TEORIAS FUNCIONAIS ou ainda centradas em torno de um dever geral, não tipificado, de colaborar
É extremamente difícil resumir, em poucas páginas, todas as contra- na sua prevenção e repressão, ferindo-se, com isso, até mesmo o princípio
dições, acertos e desacertos das teorias funcionais. Isto será feito com maior da legalidade. Diante dessas figuras delituosas, que tanto podem ser dolosas
extensão na segunda parte deste livro, quando da análise de cada elemento quanto culposas (nossa lei de crimes ambientais é pródiga na criação de tipos
que compõe o delito culposo. Aqui, serão indicados, em linhas gerais, apenas omissivos culposos), a dogmática penal se ressente de um fundamento mais
os seus pontos mais polêmicos. estável do que o da referência aos fins protetivos da norma.

Referentemente a ROXIN, sua posição de vincular as categorias da É verdade, por outro lado, que a teoria do risco permitido, desenvol-
tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade às finalidades da política criminal, vida por ROXIN dentro do tipo de injusto, representa uma importante
ainda que busque retratar, com maior fidelidade, o sistema jurídico vigente e, contribuição delimitadora desse processo de incriminação, porque parte de
até mesmo, limitar a extensão de suas normas, pode implicar consequências outra estruturação das normas penais, especificamente no tocante aos delitos
contraditórias. Assim, mesmo no plano da limitação da incriminação, pode negligentes, em oposição às teses da doutrina jurídica em geral.
trazer, alternativamente, como aliás já se pronunciou MUÑOZ CONDE,557 Originariamente, o risco permitido esteve associado às causas de jus-
tanto vantagens como desvantagens à liberdade individual. tificação, sendo assim tratado em quase todos os autores.558 Isto implica, no
Não há dúvida de que a relação das normas penais a critérios de política fundo, considerar que as ações perigosas, desde que contrárias às normas
criminal, dependendo da articulação de seus fundamentos e da finalidade regulamentares, já constituiriam ações culposas típicas. Para que o autor
proposta, pode justificar, de um lado, medidas limitativas à imposição de se liberasse de qualquer responsabilidade penal, seria preciso que normas
pena, quando se trate de casos em que o risco para o bem jurídico não fora permissivas especiais lhe acobertassem a conduta, o que, normalmente, não
aumentado pela atividade do agente, ainda que esta tenha sido realizada em ocorria, ficando o fato, de resto, submetido ao juízo da culpabilidade, nem
contrariedade à letra da lei. Aliás, os casos-modelo, discutidos por ROXIN, sempre demonstrável e nem sempre valorativamente descomprometido.
demonstram perfeitamente isso, pois as soluções ali propostas são, efetiva- Com ROXIN, no tipo de injusto, o risco permitido será visto sob outro
mente, compatíveis com a liberdade individual, tendo em vista o sentido do ângulo. Desde que a ação se tenha mantido nos limites deste risco, ainda que
direito punitivo e das normas que o compõem. De outro lado, porém, essa tenha lesado um dever de cuidado regulamentar, só excepcionalmente será
mesma colocação poderá conduzir a justificar uma punição desnecessária. Por ainda típica, o que conduz a uma interpretação garantista da norma penal.
exemplo, ainda, nos casos-modelo, isto pode acontecer desde que a finalidade Por outro lado, ainda assim, a consideração do risco autorizado dentro
protetiva assinalada à norma estatal se desvincule dos postulados liberais e do tipo de injusto poderá fomentar, ao revés, uma interpretação no sentido
passe a punir ações paralelas, como acontece, muitas vezes, nos crimes contra de substituir a lesão de bem jurídico por uma lesão de dever. Com efeito,
a segurança do Estado e em fatos cuja punição esteja situada em ordem de partindo-se de que a lesão ao dever de cuidado constitui-se num abuso, ou
prioridades. Como estas prioridades dependem do regime político ou, apesar melhor, numa ultrapassagem dos limites daquilo que o Estado permite, em se
deste, de objetivos nem sempre democráticos, a tarefa de estabelecer limites tratando de atividades por si mesmas perigosas, como no tráfego de veículos
à incriminação se torna extremamente vulnerável, principalmente no que e nas intervenções médico-cirúrgicas, por exemplo, tem-se que as normas re-
toca a delitos demonizados, como os ligados ao uso de drogas, à corrupção, lativas aos delitos culposos sejam fundamentalmente normas de dever. Quer
à sonegação fiscal, ao meio ambiente, à regulação da atividade financeira e ao isto dizer que importante não será mais o resultado produzido, mas, sim, a
trânsito de veículos. Nestes delitos, são criadas, geralmente, figuras de defi-
nição ampla e controvertida quanto à sua lesividade, ou mesmo baseadas na 558. Tomando o risco permitido como causa de justificação ou, pelo menos, associado a outra causa de jusi-
tificação, encontram-se, entre outros, JÜRGEN BAUMANN, Strafrecht, AT, p. 328; ENGISCH, Karl.
manutenção de políticas de controle, sem a devida referência ao bem jurídico, “Der Unrechtstatbestand im Strafrecht, DTJ-Festschrift, 1968, tomo I, p. 418 et seq.; HIRSCH, Hans
Joachim. Die Lehre von den negativen Tatbestandsmerkmalen, Bonn: Röhrscheid, 1960, p. 308; HAR-
DWING, Werner. “Verursachung und Erfolgszurechnung”, JZ 1968, p. 290; JESCHECK-WEIGEND.
557. MUÑOZ CONDE, Francisco. “Función de la norma penal”, in Nuevo Pensamiento Penal, nº 2, p. 405. Nota 7, p. 401.
218 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 219

infração a um dever geral, extrapenal, de conservar-se dentro dos limites do à estrutura dos delitos dolosos. Ocorre, porém, que, nesses, a subsistência de
socialmente aceitável e tolerado. Com isso, a posição funcional se afasta do um tipo subjetivo influi, decisivamente, na fundamentação, no agravamento
critério do bem jurídico e pode passar a trabalhar, exclusivamente, com um ou na minoração do injusto. Já nos delitos culposos, salvo no caso de se in-
conceito de delito de dever, como pretende JAKOBS. Percebendo, inclusive, cluírem no tipo subjetivo tão-só os dados relativos ao especial conhecimento
essas derivações inevitáveis, ROXIN tem procurado, em seus pronunciamen- do agente, como na proposição de MUÑOZ CONDE, sua constituição em
tos mais recentes, por exemplo, no seu Tratado, excluir dos delitos culposos nada influi na fundamentação do injusto. Daí parecer que essa formulação só
todo conteúdo omissivo e orientar a construção do tipo sobre a produção do contribui, na verdade, para agravar os pressupostos das causas de justificação.
resultado e não sobre a infração de deveres. Com sua adoção, em correspondência com os delitos dolosos, se exigiriam,
O direito penal é e deve ser lastreado, fundamentalmente, no resultado também, aqui, elementos subjetivos de justificação, como, por exemplo, a
antijurídico e não na infração a deveres extrapenais. Mesmo que se punam consciência de estar em situação de defesa ou de perigo. Apesar de se preten-
condutas que ponham em perigo o bem jurídico, sem a realização material der, com essa exigência acerca dos elementos subjetivos de justificação, se fixar
de determinado resultado, tal como se concebe naturalisticamente, ainda um fundamento para a exclusão do desvalor da ação, é ela, dogmaticamente,
assim, a punição se exerce, porque, justamente, esse resultado está em vias insustentável, porque se contrapõe à estrutura da culpa inconsciente, fato que
de se concretizar ou há uma certa probabilidade de que ele ocorra. não ficou de fora do tirocínio de ROXIN, ao excluir, dessa modalidade de
culpa, o tipo subjetivo e deixar em aberto a justificação para casos nos quais o
É forçoso reconhecer que a opção de ROXIN pela teoria do risco agente nem havia pensado na existência de seus pressupostos.
não o tem conduzido a desconsiderar, em todos os delitos, a relevância do
Na culpabilidade, situa-se, talvez, o ponto mais controvertido da sis-
desvalor do resultado, mas sua posição apresenta, na verdade, semelhanças,
temática funcional. Primeiramente cuidemos de ROXIN. Mesmo que se
em linhas gerais, com as de JAKOBS e MALAMUD GOTI.559 Este último,
possa dizer que aqui procura ele superar o conceito clássico de culpabili-
porém, embora aceite as teses do risco permitido, conclui, corretamente,
dade, tanto no âmbito da concepção psicológica quanto da normativa, não
que nem sempre nos delitos culposos se pode pressupor a infração a um
pode evitar, no entanto, de associar o direito penal às medidas punitivas que
dever extrapenal, pois há casos de infrações jurídico-penais ainda quando
prevê, em vez de contraditar-lhe os fundamentos. Nesse passo, mostra-se
se tenha atuado de modo correto perante o direito administrativo, como
apenas dogmático e não crítico. Por outro lado, afastar da investigação do
também há casos de infrações a regras do trânsito que não implicam a
conteúdo da culpabilidade o dado referente à liberdade de vontade leva a
violação de normas penais.560 JAKOBS, por sua vez, chega a concordar
subordinar o direito penal aos interesses diretos do Estado. Dizer-se, com
que, no fundo, o que importa é a evitabilidade do resultado, embora tome
efeito, que o que está em jogo é saber se o legislador quer ou não punir de-
essa evitabilidade por si mesma como substrato do seu conceito de ação.561
terminada conduta significa sujeitar o direito penal a servir de instrumento
Estas observações são oportunas porque suscitam discussões relevantes em
exclusivamente sancionatório e não garantista.
setores antes absolutamente desconhecidos da ciência penal.
Ao assumir uma posição crítica e substancialmente correta aos siste-
Outro ponto bastante polêmico é o da admissibilidade ou não de um
mas atuais de culpabilidade, ROXIN deveria propor medidas mais enérgicas
tipo subjetivo nos delitos culposos. Os funcionalistas, em geral, têm acolhido
para vincular o juiz às exigências de atendimento às garantias individuais.
um tal tipo subjetivo, vendo nele a referência à representação do agente, ou às
Poderia manter o princípio da liberdade de vontade e, ademais, balanceá-lo
suas características especiais. Não se pode dizer, ainda, com segurança, se há
com o princípio da motivabilidade, sem deixar preso o aplicador da lei a
necessidade dessa construção dogmática, que corresponde a uma equiparação
esquemas repressivos de ordem político-criminal. Esta canalização do juiz à
559. JAKOBS, Günther. Studien zum fahrlässigen Erfolgsdelikt, 1972, p. 59; MALAMUD GOTI, Jaime. La política criminal e à liberdade de estabelecer seus princípios equivale a passar
estructura penal de la culpa, Buenos Aires, 1976, p. 48 et seq. por cima do princípio da legalidade, o que contraria o próprio espírito da
560. MALAMUD GOTI, Jaime. La estructura penal de la culpa, p. 62 et seq.
561. JAKOBS, Günther. Studien zum fahrlässigen Erfolgsdelikt, 1972, p. 48 et seq. formulação proposta por ROXIN de liberalização e defesa do indivíduo. Não
220 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO TEORIAS DA AÇÃO CULPOSA 221

há dúvida de que o princípio abstrato do poder agir de outro modo sustenta discutir a legitimidade do sistema, mas apenas verificar, no caso concreto, se as
uma culpabilidade presumida, porque indemonstrável. Mas disto não se condições da parte devedora do contrato poderiam se ajustar às suas cláusulas.
infere, automaticamente, que se deva abandonar o princípio da liberdade Essa característica contratual tampouco se desnatura com a sua assertiva
de vontade, cujos fundamentos, inclusive, parecem mais nítidos do que os de condicionar a responsabilidade de cada um ao papel que normativa e so-
da chamada “acessibilidade normativa”. Afinal, a “acessibilidade normativa” cialmente desempenha na realização de suas atividades. Isto é consequência
não é outra coisa, senão a conclusão de um juízo sobre a capacidade de agir normal de um sistema contratual. Por exemplo, em um contrato de prestação
do sujeito em face da norma, o que, no fundo, pressupõe uma liberdade de de serviços, o autor só é responsável no âmbito de suas funções, cujo cum-
vontade, desde que motivada pela própria norma. primento, inclusive, o vincula a ser fiel às normas que as disciplinam. Caso
No setor específico da legalidade, mostra-se salutar a iniciativa de assim não ocorra, as consequências podem variar desde a suspensão até a
ROXIN de clamar por uma tipificação mais exaustiva das condutas culposas, rescisão do contrato por justa causa. Não há outra explicação para esta relação
como resultado da conclusão de que o critério tradicional da previsibilidade, entre autor e Estado, que não seja a de uma relação contratual empregatícia.
aventado como instrumento limitador, se aplicado integralmente dentro de Exigir-se que o sujeito, ainda que em um Estado de direito, seja fiel às suas
suas consequências lógicas, leva a estender demasiadamente o âmbito de res- normas e seja punido, exclusivamente, por sua infidelidade, tomada como
ponsabilidade, de vez que, na realidade social, tudo pode ser, abstratamente culpabilidade, para assegurar que a norma se mantenha estável e prestigiada,
considerado, previsível ou evitável. É esta uma séria afirmação que deve ser é erigir a ordem jurídica sobre um único fundamento, que é de manter, a
sempre meditada por todos os que consideram o critério da previsibilidade qualquer custo, o funcionamento do sistema.
como o único infalível e isento de defeitos, às vezes até como o único critério Ao adotar-se uma tal teoria, todas as interpretações que podem ser
caracterizador da negligência. feitas sobre a norma não estão orientadas por uma visão garantista do indi-
Diante disso, a conclusão de ROXIN toma aqui o escopo de mostrar a víduo, mas de sua subordinação a um mundo de normas, que dele dispõem
necessidade de uma investigação mais enfática do tipo legal dos delitos culpo- e sobre ele impõem o que lhes parece conveniente. Se o fundamento de
sos e não unicamente de sua culpabilidade. Com isso se formula uma crítica tudo é tão-só a manutenção da estabilidade do sistema normativo, ficam
bastante séria ao sistema causal, que só vê em tudo isto problemas atinentes sem objeto todas as críticas à sua legitimidade, bem como qualquer tentati-
à forma de culpabilidade e se desliga da preocupação básica de estabelecer o va de alterar-lhe os pressupostos e elementos. O sistema vale por si mesmo,
conteúdo do injusto fora da noção de causalidade. ainda que injusto e ilegítimo.
Por seu turno, não é convincente a posição assumida por JAKOBS, Especificamente quanto ao tratamento dos delitos culposos não parece
cuja orientação funcional muito se aproxima das teorias estrutural-sistêmi- muito claro o entendimento de que aqui se trata de um erro quanto ao
cas. Embora seja correta sua crítica aos conceitos tradicionais de ação, por reconhecimento da realização do tipo, erro este que tem por base a falta
desconsiderarem que o conceito de conduta pressupõe um conceito prévio de do conhecimento atual do evitável. Muito mais fácil será a conceituação
sujeito, sua opção de tratar esse sujeito como um próprio sistema organizativo de ROXIN, com base na prática de uma ação arriscada que ultrapasse os
é, no mínimo, curiosa e inusitada. Isto contribui para afirmar que o direito limites do autorizado. Se o critério da evitabilidade é válido para eliminar do
penal nada tem a ver com a pessoa humana, mas apenas com sistemas. Neste âmbito dos delitos culposos tudo o que for proveniente de caso fortuito, não
passo, é fácil constatar que sua teoria do direito penal é, no fundo, uma teoria é suficientemente seguro para fundamentar sua punibilidade, sem o auxílio
privatística, porque parte dos pressupostos de que, neste sistema, os subsis- de outros critérios que comportem uma avaliação empírica.
temas concorrem entre si, de modo igual, como as partes em um contrato. O grande mérito de JAKOBS está em procurar eliminar do direito
Para tanto, importa à legitimidade desse sistema geral de normas apenas que penal todos os elementos derivados de uma concepção teológica ou onto-
essas normas tenham vigência. Uma vez assentada a vigência, já não se pode lógica, que jamais foram, objetivamente, demonstrados. Nisso se inclui sua
222 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

crítica às referências ao chamado homem prudente e consciencioso, e às


derivações do juízo de reprovabilidade, de conteúdo moral, para o âmbito
jurídico. Mas, não obstante, sua substituição por fundamentos sistêmicos
distanciados da pessoa humana, como individualidade e sociabilidade, por-
tadora de um destino que não se identifica necessariamente com o do Estado,
compromete, substancialmente, sua teoria.
Mais claro é, sem dúvida, o pensamento de MUÑOZ CONDE, que
não se deixa enganar pela ideia de fidelidade ao direito. Quanto à estrutura do
tipo dos delitos culposos, como mescla elementos finais com os critérios da
imputação objetiva, muito se aproxima da construção de CLAUS ROXIN e de
JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, aplicando-se-lhe as mesmas observações já
anteriormente apresentadas. Por outro lado, se é válida sua crítica ao princípio SEGUNDA PARTE
abstrato do poder agir de outro modo, e coerente a busca por um fundamento
material da culpabilidade, que ele mesmo quer encontrar na motivabilidade, POSIÇÃO ADOTADA
deveria levar ao extremo essa crítica e regressar a outros posicionamentos que
tomara, de inserir, no conceito de culpabilidade, todos os elementos relativos
ao papel social do agente quanto à proteção de bem jurídico.562 Estes velhos
pensamentos refluem na atualidade como elementos de garantia da liberdade
individual, porquanto só admitem haver culpabilidade quando o sujeito estiver,
em face da norma, capacitado socialmente de atender aos seus apelos, por ser
partícipe da consecução de suas finalidades. Se isto se der, então, já se estará
situando o direito penal em uma própria teoria crítica da sociedade.
Finalmente, afiguram-se insubsistentes as tentativas de se formular um
conceito de ação a partir de seus dados negativos. A crítica maior que se
poderia fazer a essas teorias reside em que o direito penal não é um instru-
mento ideológico de formação de personalidade adequada à norma, nem o
Estado deverá ser tratado como senhor absoluto, ao qual se deve obediência.
A norma, em lugar de instituir unicamente deveres jurídicos a serem cum-
pridos por todos, tem a finalidade de dimensionar as respectivas zonas de
sua atuação, em face de resultados lesivos ou perigosos aos bens jurídicos.
Para tanto, a imposição de deveres não deve ser a regra, mas a exceção, ou
somente ser usada na medida em que limite ainda mais a extensão daquela
lesão ou daquele perigo. Por isso, o conceito negativo de ação, embora dog-
maticamente atraente, é incompatível com as finalidades da própria norma.

562. MUÑOZ CONDE, Francisco. “Über den materiellen Schuldbegriff”, in Goltdammer´s Archiv für Stra-
frecht, 1978, p. 74 et seq.
CAPÍTULO 1
APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA

SUMÁRIO: I. A tendência dos sistemas – II. As perspectivas meto-


dológicas – III. Denominação – IV. Conceito

I. A TENDÊNCIA DOS SISTEMAS


Todos os sistemas discutidos no capítulo anterior, que procuram abarcar
a problemática da teoria do delito em geral e do fato culposo em particular,
têm dois objetivos comuns: o esclarecimento do conteúdo do injusto penal
e a determinação dos pressupostos da responsabilidade pessoal. Qualquer
observação mais aprofundada das proposições debatidas, desde VON LISZT
até a atualidade, chega facilmente à conclusão de que esses objetivos perse-
guidos pela doutrina ainda não foram suficientemente alcançados, pois não
é possível afirmar-se, com certeza e convicção categóricas, que algum dos
sistemas tenha elucidado as questões fundamentais do tipo de injusto e da
culpabilidade, de modo a superar todas as contradições.
A dificuldade já se inicia pela conceituação de conduta, tomada no
sentido mais diverso e que adquire foros de dignidade a partir do momento
em que passa a ser considerada como elemento indispensável da estrutura
do delito. Apesar disso, esse conceito vem sendo atacado de vários modos,
através de orientações recentes, a ponto de não se tornar algo definitivo e
indiscutível, devendo ser, no mínimo, questionado em seu próprio sentido
de existência e necessidade.
No tipo de injusto, por outro lado, mantêm-se incertezas acerca da
validade da subjetivação finalista, bem como da fórmula simplista calcada
na verificação do resultado, ou mesmo da substituição do critério da violação
da norma de cuidado pelo do incremento do risco.
Na culpabilidade, tanto pela introdução cada vez mais crescente de
elementos normativos, quanto pela substituição do princípio da liberdade
de vontade por outros critérios de valor e de política criminal, ou de ina-
dequação em face da estabilidade da norma, igualmente não se assentaram
226 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA 227

bases claras de sua enunciação. Por um lado, isto tanto pode significar uma a se chocar com outro, que fecha uma curva na contramão, a adoção pura
exagerada subjetivação psicológica, quanto uma perigosa investida contra as e simples do critério causal representa indiscutível injustiça para o primeiro
liberdades do cidadão, através do fortalecimento da teoria do ânimo adverso motorista, que, assim, teria realizado um fato injusto, quando, na realidade,
ao direito, ou da consecução de um direito penal do inimigo. quem o realizou fora outro. Este critério pode valer, talvez, para o direito civil,
Tudo isto está a demonstrar que a evolução do conceito doutrinário de em que o injusto e a responsabilidade têm outros fundamentos. No direito
delito não parou nem mesmo com a estrutura finalista ou as modernas teorias penal, contudo, a diferenciação entre injusto e culpabilidade deve ser tratada
funcionais, nem deve estancar nos próximos anos, como se poderia acredi- minuciosamente, a fim de se garantir um máximo de justiça e um mínimo de
tar dogmaticamente. Maiores dificuldades advirão provavelmente também incriminação, sem deixar de lado a questão do bem jurídico.
com a pretensa vinculação do direito penal às correntes criminológicas, que, Observe-se que, no direito penal, as consequências são drásticas para
como já aconteceu com o positivismo italiano, exigem mudanças radicais na o autor, sem outras derivações, como a ação regressiva contra o causador do
conceituação do delito e em seus elementos. dano, daí a necessidade de uma rigorosa limitação de sua responsabilidade.
Em contrapartida à solução da teoria causal, as demais soluções propostas
No setor dos delitos culposos, em especial, o desentendimento é ainda
melhoram consideravelmente a estrutura do injusto, fazendo-a compreender,
mais acentuado. Não se pode afirmar que algum dos sistemas tenha condições
ao lado da verificação do resultado, também e principalmente, a lesão aos
de impor suas regras de modo incontestável, nem englobar em seus meandros
deveres de cuidado, ou melhor, o desatendimento aos cuidados concreta-
toda a variedade de manifestações do comportamento humano. Se, por exem-
mente exigidos na ocasião, como pressuposto necessário à demonstração
plo, no causalismo, a negligência era desconsiderada em sua real importância,
da relevância de lesão ou do perigo de lesão ao bem jurídico. No exemplo
devido à deficiente compreensão de seus elementos na culpabilidade, e à im-
citado, o primeiro motorista, evidentemente, não realizaria um fato injus-
possibilidade de ser superado este obstáculo sem reformulações estruturais,
to; sua atuação está fora do âmbito de incidência da norma penal, porque
os outros sistemas, inclusive o finalista e o funcional, se apresentam impreg-
se manteve dentro do que o Estado recomenda como correto e adequado
nados de contradições e incongruências, embora – tanto o finalista quanto o
quando da condução de veículos motorizados. Atuando de conformidade
funcional – tenham contribuído para melhorar a visualização e o tratamento
com as normas de cuidado, sua conduta não constitui elemento da realização
jurídico-penal dos fenômenos jurídicos, a partir do conceito de ação ou da
do tipo com base na demonstração da lesão do bem jurídico. Assim, estará
estrutura do próprio tipo de injusto, bem como discutir com amplitude a
excluído o fato injusto, sem necessidade de fazer a investigação prosseguir
questão da imputação, como complemento da causalidade.
até a culpabilidade. À mesma correta solução chega a moderna concepção de
Entretanto, o problema básico dos delitos culposos continua sem so- constituir o tipo dos delitos culposos a partir do excesso do risco autorizado.
lução: a determinação precisa da composição do tipo e a delimitação da No caso em debate, não se pode dizer que o motorista que dirigia em sua
responsabilidade do agente. mão de direção atuara além dos limites do risco autorizado. Pelo contrário,
A composição do tipo de injusto é necessária como corolário do princípio dirigindo em sua mão de direção, o motorista atuara dentro dos limites do
da legalidade, pois, desde que este exija a definição da ação delituosa, de modo risco tolerado e, portanto, não se lhe pode imputar o resultado danoso.
estrito, está claro que se o código se limita a apenas prever sua realização como A nova estruturação do injusto indica a tendência, hoje dominante,
ação culposa, isto não satisfaz. Será preciso, além disso, que se caracterize, com de se alargar cada vez mais o âmbito da tipicidade, com o objetivo de servir
precisão, essa ação culposa. Neste passo, é insatisfatória a conclusão da teoria aos interesses do princípio da legalidade. Esse alargamento da tipicidade,
causal, que se contenta com a verificação do resultado, sem questionar acerca porém, não se detém na simples determinação da lesão aos deveres de cui-
das qualidades da condição que o produzira. No exemplo, sempre citado, do dado. A orientação que se observa é de pretender incluir, no tipo de injusto,
motorista que dirige seu veículo regularmente, segundo os mandamentos do também elementos da culpabilidade, de modo a superar as questões relativas
trânsito e de acordo com as normas de cuidado exigidas na ocasião, e vem aos limites dessa lesão aos deveres de cuidado.
228 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA 229

Assim, se a maioria dos autores, partidários da concepção finalista, entre Com o finalismo, a concepção normativa ganhou certa pureza, dando
eles, notadamente WELZEL, se apega, nesse particular, a critérios semelhantes como consequência a exclusão de todo o psicológico da culpabilidade. Passa
aos do homo medius ou da pessoa medianamente prudente ou diligente, outros então a negligência a ser entendida como culpabilidade, pela previsibilidade
buscam um critério pessoal, através da transposição, para o tipo de injusto, da subjetivo-pessoal do resultado e, como injusto, pela desatenção ao cuidado
investigação da previsibilidade subjetiva do acontecimento, como propõem, objetivo, tendo como limite a previsibilidade do homem mediano. Uma
por exemplo, STRATENWERTH e JAKOBS. Ainda que esta última tentativa outra forma de tratamento metodológico chega ao extremo com MAURA-
pareça representar um retorno aos primórdios do finalismo, em que se mesclam CH e seus seguidores, que advogam uma ruptura das categorias tradicionais,
conceitos do injusto e da culpabilidade, significa a preocupação de superar a para incluir a previsibilidade objetiva no âmbito da responsabilidade pelo
questão do homo medius, ou homem prudente, decididamente uma das pedras fato e propor uma exclusiva individualização do juízo de censura, através da
de toque de qualquer sistema. Igualmente poderia valer no enquadramento dos possibilidade pessoal de conhecimento do injusto.
delitos culposos omissivos, em que não se trabalha com critérios de homem Atualmente, por fim, observa-se nova tendência alargadora, principal-
mediano, mas, sim, com as condições pessoais do próprio agente. mente com ROXIN, em que se pretende associar ao juízo de reprovabilidade
A consequência dogmática dessa concepção seria a de caracterizar o elementos ligados aos fins protetivos da norma, inserindo-lhe um elemento
delito culposo como forma especial de delito de dever, estruturado segundo complementar, que seria a necessidade da pena. Se os ciclos se confirmarem,
o esquema proposto aos delitos omissivos em geral. duas novas orientações serão possíveis: ou uma redução ainda mais drástica,
o que implicaria, consequentemente, ampliação do injusto, como decorre da
Se, no tipo de injusto, se verifica um alargamento de sua composição, a
teoria dos elementos negativos do tipo, ou uma reformulação da teoria do
tendência, na culpabilidade, é de reduzir seus elementos a um juízo normativo
delito, de modo a se criarem elementos novos no injusto e na culpabilidade,
acerca da possibilidade de conhecimento do injusto. A redução da culpabilidade
como aliás, vem fazendo ROXIN.
a um juízo normativo de cognoscibilidade do injusto se manifesta paulatina-
mente desde a teoria causal, mas não se firma definitivamente de modo linear, Essas possibilidades parecem mais evidentes, principalmente com a am-
comportando, pois, regresso a certa conceituação ampla e abrangente. pliação da análise dos delitos culposos e omissivos. No Brasil, por exemplo,
pretende-se seguir solução redutora, ao conceber-se a culpabilidade não como
No causalismo primitivo, por exemplo, a culpabilidade se resumia no elemento do delito, mas, sim, como pressuposto da pena.565 Tal critério,
dolo e na negligência, sendo esta conceituada, como elemento psicológico, porém, não retrata a tendência dominante nem deve permanecer, porque
quase exclusivamente segundo o critério da previsibilidade do resultado. Mais importaria desnaturação da teoria do delito e o regresso ao conceito unitário,
tarde, com Frank, os autores causalistas ampliaram sua noção, de modo a há muito superado, além de possibilitar a construção de uma culpabilidade
compreender nela todos os elementos fundamentadores da reprovabilidade.563 desvinculada do fato e alicerçada no caráter ou na conduta de vida do agente.
Em face dessa importante contribuição de FRANK e ainda de HEGLER,564
a negligência passou a assumir mais intensamente a posição de elemento psi- II. AS PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS
cológico-normativo da culpabilidade, sendo investigada tanto no seu aspecto A evolução das transformações ocorridas no conceito doutrinário do
de relação psíquica para com o resultado, na forma da cognoscibilidade da fato culposo indica que o avanço mais significativo, e que se torna já prati-
extensão da ação descuidada, quanto na própria lesão aos deveres de cuidado. camente definitivo, parece fixar-se na compreensão de que ele não constitui
563. FRANK, Reinhard. Das Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich, Tübingen, 1931, p. 136 et seq. Nesta
mais uma simples forma de culpabilidade, mas um tipo especial de delito,
última edição de seus famosos comentários ao Código Penal alemão, FRANK vem salientar que os
fundamentos da culpabilidade não podem estar assentados, simplesmente, na subsistência do conheci- 565. Originariamente este posicionamento se deve a DOTTI, René. incesto, Curitiba, 1976, p. 173, havendo
mento (dolo) ou da possibilidade de conhecimento da extensão da ação descuidada (culpa), mas sim na se estendido, no Brasil, principalmente com DE JESUS, Damásio, Direito penal, pg, 1977, p. 400, à
dominabilidade individual do fato. Isto quer dizer que a culpabilidade, ao invés de se confundir com a custa de uma interpretação equivocada da teoria finalista e de alguns tipos penais, como, por exemplo, o
relação psíquica entre agente e resultado, é a conclusão de um juízo de valor que se processa sobre essa da receptação. Recentemente, RENÉ DOTTI procura revigorar esse entendimento, in Curso de direito
relação, de modo a fundamentar sua reprovação perante a ordem jurídica. penal, pg, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 335 et seq. Crítica a esse posicionmento, TAVARES, Juarez.
564. HEGLER, August. “Die Merkmale des Verbrechens”, ZStW 36, 184. Teorias do delito, S. Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1980, p. 109.
230 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA 231

com estrutura própria acerca do injusto e da culpabilidade. Essa assertiva reproduz uma variante de um conceito normativista de conduta, que decorreria
representa, sem dúvida, o sucesso materializado da concepção finalista de de cada tipo de delito e, assim, seria interpretado apenas segundo as perspectivas
delito, que, através da crítica aos postulados causais e da determinação do da incriminação. Ao contrário, o que se deve fazer é encontrar um conceito de
conteúdo ontológico da conduta humana negligente, pôde proporcionar conduta que possa se ajustar à função delimitadora da norma penal, ou seja,
melhor tratamento técnico desses fatos. que possa ser capaz de servir de elemento negativo de verificação e de medição
Ao lado dessa compreensão do fato culposo como delito autônomo em da intensidade da lesão do bem jurídico. Está claro que isto poderia ser obtido,
relação ao delito doloso, a doutrina moderna ou pós-finalista tem deixado também, mediante uma análise puramente normativa da proibição, mas, na
em aberto, porém, duas questões relevantes: a) da característica essencial da medida em que os elementos normativos vinculados a uma conduta estão na
norma penal, que lhe dá fundamento; b) da natureza da conduta jurídico- dependência de indicadores empíricos, o conceito de conduta deve refletir o
-penalmente relevante, que deve ser tomada em conta como elemento de propósito garantista, ou seja, deve ser compreendido dentro dos mesmos pressu-
tipificação. Em face de um direito penal de garantia e limitador, a solução postos de legitimidade da norma proibitiva ou mandamental. Nesta condição,
dessas duas questões deve preceder a qualquer estruturação dogmática. metodologicamente, não é adequado que se postule um conceito de conduta,
exclusivamente, a partir de uma posição extrapenal ou, exclusivamente, da es-
Na solução dessas duas questões – da característica da norma penal trutura da norma proibitiva. Ao elaborar-se um conceito de conduta somente
e da natureza da ação jurídico-penalmente relevante –, podemos partir de a partir de uma posição extrapenal estar-se-ia retornando ao naturalismo ou ao
que esta tarefa não pode ser empreendida, exclusivamente, sobre a base de ontologismo. Por sua vez, fazer derivar a conduta apenas da norma, cai-se em
uma entidade abstrata, como a causalidade, a finalidade ou a evitabilidade, um normativismo, deixando, então, ao legislador a tarefa de dizer acerca dos
tomadas como elementos de um conceito de conduta individual. elementos do próprio comportamento, legitimando a incriminação.
Ao elaborar um conceito de conduta e fazê-lo projetar-se na estrutu- Sistematicamente, portanto, pode-se construir um conceito de con-
ração do tipo de delito, a doutrina tradicional não postulava, através disso, duta como elemento integrante dos pressupostos do injusto penal. Como o
uma perfeita delimitação do poder de punir do Estado. Ao contrário, o conceito de conduta não pode prescindir de sua relação com a norma crimi-
conceito de ação sempre foi utilizado como fundamento do poder de punir. nalizadora, deve ser tratado, então, como o primeiro degrau de constituição
Isto era consequência de um objetivo muito determinado: fazer com que do injusto. Essa inserção do conceito de ação como elemento inicial da
o tipo de delito dependesse, necessariamente, do conceito de conduta. análise do injusto possibilita antecipar, já no injusto, muitas questões rele-
Assim, bastaria à incriminação, para a teoria causal, que o tipo descrevesse vantes a proceder uma limitação do poder de punir, vinculando essa análise
um processo de produção material de efeitos. Por seu turno, o finalismo à investigação dos contextos de atuação do sujeito.
sempre se ergueu sobre a tese da subordinação do legislador à estrutura
final de conduta, e o funcionalismo elevou a tipicidade à categoria de uma Em qualquer caso, como ponto de partida desse direito penal de garan-
definição de papéis solidificados pelo princípio da evitabilidade, tomado tia, deve-se buscar uma proposição que preencha pelo menos dois requisitos:
como elemento estrutural do conceito de conduta. a) engendre um conceito crítico de ação, capaz de se possibilitar uma avaliação
reflexiva negativa dos pressupostos de legitimidade da norma; b) compreenda
Em oposição a essas perspectivas do conceito de ação, será preciso, agora, a natureza do delito culposo em face das zonas de intervenção estatal.
refazer a relação entre o conceito de conduta e a tipicidade, de modo a su-
bordinar tanto o conceito de conduta quanto sua tipificação em função do Como a ação humana só tem sentido na medida em que se refira à
caráter limitador da norma penal. Em vez de edificar um conceito de ação convivência, a qual está normalmente vinculada a um sistema normativo de
como modelo para a atuação normativa, será preciso visualizar esse conceito garantias, estas duas questões devem ser tratadas dialeticamente, de modo
de conduta em termos de garantia, como elemento que sirva para identificar a que uma se veja na dependência da outra. Isto tem sua razão de ser. Se o
forma e o modo de lesão ou de perigo de lesão ao bem jurídico. Com isso, não se que se trata é de delimitar o exercício do poder punitivo, o ponto relevante
232 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA 233

será o de traçar os contornos sobre os quais se assentam seus limites, tanto A denominação tradicional “culpa” aparece no Direito Romano para
em face da norma quanto de seus elementos empíricos, como a conduta indicar tanto a imputabilidade quanto a negligência ou luxúria.566 No Direito
que lhe serve de substrato. Penal Comum, era frequente, ao lado de imprudência ou negligência, o uso da
Por isso mesmo, cada vez mais se acentua a necessidade de um contor- expressão quase-delito,567 que é encontrada nas obras de CARMIGNANI568
no metodológico adequado aos delitos culposos, para o efeito de obter um e CARRARA569 e perdura ainda em alguns códigos penais.570
cumprimento satisfatório daquelas duas proposições acima fixadas. Nessa Os autores de língua francesa usam sobretudo a palavra “falta”, signi-
relação dialética entre conduta e natureza da norma não se pode deixar de ficando a negligência e a culpabilidade em geral. Autores há que empregam,
atentar para o fato de que, aqui, não se está tratando de uma conduta em todavia, a denominação “imprudência”, mas o próprio Código Napoleônico,
geral, mas de um comportamento penalmente relevante. Neste diapasão, se afi- do mesmo modo que FERRI, se refere ao “delito involuntário” (art. 319),
guram como corretas as propostas funcionais de vincular toda a análise desses em oposição ao delito doloso.571 O novo código francês continua usando,
delitos às características do sistema no qual eles se desenvolvem, tomando-se inclusive, a denominação de “falta” (art. 121-3).
em consideração que a conduta não pode ser vista como expressão isolada
A expressão “imprudência” é contemplada nos códigos penais espanhol
de um indivíduo abstrato, mas dentro de uma pessoa concretizável em um
(arts. 5, 10, 12, 14, 81, 136) e federal mexicano (art. 8), como também é
processo de comunicação normativa.
utilizada por autores modernos.572
Como estamos tratando de um processo de comunicação normativa,
No entanto, mesmo que em alguns códigos se especifique uma deno-
o conceito de conduta não pode ser extraído, sem mais, de uma elaboração
minação dominante (culpa, imprudência, negligência, delito involuntário,
abstrata singular e descomprometida, mas sim como um produto de reflexões
quase-delito, imperícia), esta não fica isolada das demais, notando-se certa
sistemáticas, a partir da crítica à proibição ou determinação. Como o direito
mescla confusa e assistemática de todas elas, como ocorre, por exemplo, no
não pode se afastar dos elementos de uma lógica axiomática, podemos propor
Código Penal espanhol.573 Essa ausência de uniformidade designativa decor-
uma hipótese normativa de trabalho, à qual se poderia atribuir a particularidade
re naturalmente da falta de sistema homogêneo do delito culposo e de sua
de servir de orientação metodológica à solução das questões acima enunciadas:
considerada secundariedade em relação ao delito doloso.
o delito culposo constitui uma forma especial de delito com conteúdo omissivo.
A adoção da tese de que o delito culposo é um delito de conteúdo 566. DEVESA, Rodríguez. ob. cit., p. 402-403; JIMÉNEZ DE ASÚA, Luís. Tratado de derecho penal, vol.
omissivo irá implicar uma reconstrução de sua tipicidade, de modo a excluir, V, p. 678.
567. DEVESA, Rodríguez. ob. cit., p. 403.
na sua constituição, a referência comparativa ao homem prudente. Isto, por 568. CARMIGNANI, Giovanni. Elementos de derecho criminal, tradução castelhana de Antonio Forero
sua vez, conduz a uma especificação de como deve ser tratado o conceito de Otero, Bogotá: Temis, 1979, p. 47.
569. CARRARA, Francesco. Programa de direito criminal, tradução brasileira, vol. I, p. 92.
conduta para se ajustar a essa proposição. 570. Por exemplo, Chile (art. 2º e 4º), Honduras (art. 2º) e Costa Rica (art. 18, §2o)
571. Assim, por exemplo, em ORTOLAN, Joseph-Louis-Elzear. Elements de droit pénal, 1886, encontram-
III. DENOMINAÇÃO -se as denominações “delitos não-intencionais” (p. 159), “homicídio involuntário, por imprudência ou
mesmo sem falta” (p. 168); GARRAUD, Roger. Traité de droit pénal, 1888, emprega a denominação
“falta”, como a palavra “culpa”, mas para diferenciar da culpabilidade agrega-lhe o atributo “simples” ou
Tendo em vista a esquematização normativa acima proposta para o “não-intencional” (p. 377); por sua vez, HAUS, Jacques-Joseph. Droit pénal, 1879, p. 232, critica a ex-
delito culposo, torna-se necessário também reelaborar-se sua nomenclatura pressão “delito involuntário” e se filia à corrente da denominação “falta”; mais recentemente, SOYER,
Jean-Claude. classifica as infrações em “intencionais” e “não-intencionais” (p. 104), acentuando que
jurídica. Esta tarefa, aliás, não esteve alheia à elaboração jurídica em geral, estas últimas compreendem, por sua vez, tanto as contravenções quanto os “delitos de imprudência” e
aqueles ditos materiais, que existem independentemente da intenção ou da má fé (p. 108), numa clara
salientando-se desde o Direito Romano, como corolário da posição adota- tentativa de sistematização perante o art. 319 do código napoleônico (Droit pénal et procédure pénal,
1976). FERRI, Enrico. Principii di diritto criminale, p. 443.
da. Entretanto, nem sempre se manteve coerente e uniforme, podendo-se 572. Entre nós, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. in Revista de Direito Penal, n. 23, pág. 55; nos autores de
afirmar, sem qualquer receio, que desde o aparecimento da culpa no direito língua espanhola, MALAMUD GOTI, Jaime. El delito imprudente (hoje está abandonada pelo próprio
autor esta denominação, ver La estructura penal de la culpa, 1976); DE LIAÑO, Gomez. La impruden-
penal, trava-se uma verdadeira batalha para se chegar a uma solução definitiva cia punible en el uso de vehículos a motor, Salamanca, 1973.
573. Nos arts. 118, 1ª e 120, 1º, o código espanhol de 1995 emprega as expressões “culpa” e “negligência”,
de como ela se deve denominar. ainda que se tenha inclinado, quanto à definição geral, pela expressão “imprudência”.
234 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA 235

A preocupação deste trabalho é propor pontos convergentes acerca da vocábulo latino negligentia, ae, tem primitivamente o significado de descuido,
estrutura do fato não-doloso, de modo a torná-lo compreensível dentro de incúria, preguiça, cuja ação, estribada no verbo negligere, indicava desaten-
um sistema global, em que se estabelecem não só seus traços essenciais do der, no sentido, portanto, da perspectiva da estrutura da norma penal.577 Esta
tipo de injusto e da culpabilidade, como também de ordem terminológica. origem latina é correspondente ao significado da origem germânica de fahrläs-
A denominação “negligência”, originariamente proposta neste trabalho, sig, derivado do vocábulo formado no século XV varlessig dos componentes do
tem origem bastante antiga. Sua utilização ganha relevância, porém, nos meio alto alemão varn lan, com o sentido de descuidar, descurar, desleixar.578
autores e no direito da Europa Central.574 Está claro que, em termos semânticos, a origem etimológica, por si só,
Modernamente tem ela sua razão de ser no sentido de poder retra- não basta para caracterizar ou descaracterizar a validade atual de um vocábu-
tar o conteúdo do fato que quer significar. Partindo-se da análise de que o lo. Entretanto, se conjugarmos essa origem etimológica com o propósito e
cerne dos fatos puníveis que ela caracteriza é constituído pela omissão, por a estrutura do direito penal contemporâneo, podemos, facilmente, concluir
parte do agente, do cuidado objetivamente exigível em face da ação perigosa ser muito mais adequada a expressão negligência do que culpa.
que empreendera, deve-se, consequentemente, concluir que a denominação Analisando-se, sistematicamente, a expressão culpa, emerge a conside-
“negligência” encarna, com clareza, esse conteúdo de sentido da estrutura ração de que, se com ela se quer igualmente designar a negligência, se está
normativa dessa espécie de fato. partindo de ponto de vista estritamente vinculado à concepção psicológica de
Por outra parte, a expressão “culpa” tem a acentuada desvantagem de, culpabilidade, que via nesta exclusivamente as formas de dolo e negligência, de
além de criar embaraços de compreensão popular, confundir dois sentidos tal ordem a transmitir a um de seus elementos, justamente o menos manifesto
diversos: a negligência, como forma de imputação e como juízo de atribui- em termos de contrariedade à ordem jurídica, seu próprio teor terminológico.
ção pessoal, tomada como culpabilidade. Torna-se isto ainda mais nítido, ao Aliás, essa identificação de termos entre culpabilidade e negligência
propor-se a estruturação do fato culposo como delito autônomo e não mais (culpa em sentido amplo e culpa em sentido estrito, como dizem os clássicos)
como simples forma de culpabilidade, pois é possível que haja negligência no tem sua razão de ser histórica na própria confusão do Direito Romano e Direito
sentido puramente objetivo, sem que se verifique a culpabilidade. Até mesmo Penal Comum, relativamente ao tratamento dos fatos dolosos e não dolosos.579
nos autores brasileiros tradicionais filiados a outras concepções, é constante Finalmente, é de se considerar que a caracterização da “culpa” como im-
a afirmação de que a “negligência” corresponde a uma noção ampla, abran- prudência, negligência ou imperícia, conforme a postura assumida pelo Código
gendo também outras formas de infração ao dever de cuidado, tais como, Penal, foge ao aspecto de conteúdo, para fixar-se no lado causal do aconteci-
por exemplo, a imperícia e a imprudência.575 mento. O importante, na estruturação e na consequente denominação que lhe
Do mesmo modo, etimologicamente, as expressões “culpa” e “negligên- corresponde de um fato punível ou de qualquer instituto de direito penal, não
cia” apresentam variações. Segundo COMMELERÁN Y GOMEZ, a origem é a causalidade, mas, sim, sua essência normativa. Em termos normativos, a
da palavra culpa (do latim culpa, ae) é mais obscura do que de negligência, deri- denominação “culpa” tem outro significado; as expressões imprudência, negli-
vando, talvez do sânscrito Kulpha, com o sentido de mal, enfermidade, mancha gência e imperícia jamais poderiam ser compreendidas do mesmo modo, pois
que se contrai pelo mal.576 Ao invés, a expressão negligência, derivada do não se trata de mecanismo de compreensão, mas de denominação de sentido.
O jurista não se deve impressionar apenas pelas possíveis diferenciações práticas
574. Isto vale tanto para o direito penal alemão, como para o direito penal austríaco e suíço-alemão.
575. Assim, por exemplo, GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, vol. I, p. 259: “A rigor a palavra
negligência seria suficiente para ministrar todo o substrato da culpa. Mas costuma-se aludir também à 577. COMMELERÁN Y GOMEZ, Francisco. Diccionario clásico-etimológíco latino-español, 1912.
imprudência e à imperícia. Essas duas ideias poderiam caber dentro da de negligência”. Assim também, 578. COMMELERÁN Y GOMEZ, Francisco. Diccionario clásico-etimológíco latino-español, 1912; Duden,
NORONHA, Edgard Magalhães. Do crime culposo, p. 91. Por sua vez, BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. Ethymologie, Herkunftswörterbuch der deutschen Sprache, Mannheim, 1963; KLUGE, F. Etymolo-
88, conclui que embora o Código Penal tenha adotado a classificação de imprudência, negligência e giscbes Wõrterbucb der deutscben Sprache, Berlin, de Gruyter, 1967. Sobre isso, também BUSTOS
imperícia, como formas de violação do dever de cuidado, “em algum momento do processo inicial da RAMÍREZ, Juan. Culpa y finalidad, 1967, p. 11 et seq.
culpa, existe sempre uma omissão da diligência necessária para evitar o resultado típico”. 579. DEVESA, Rodríguez. ob. cit., p. 402, informa, com base em BINDING, NEBRIJA e CRUZ HERRERA,
576. COMMELERÁN Y GOMEZ, Francisco. Diccionario clásico-etimológico latino-español, Madrid: Im- que a palavra “culpa”, ainda que não usada nos editos da época republicana antiga, adquire também o sig-
prenta Perlado, 1912. nificado de culpa levis, mas conserva, como já explicado no texto, a acepção igualmente de culpabilidade.
236 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO APRECIAÇÃO SISTEMÁTICA 237

da imprudência, tomada como ato positivo, da negligência, vista como omis- de o representar”. O mesmo tratamento foi adotado no Código Penal de 1982,
são, e da imperícia, entendida como violação das regras técnicas. Deve buscar bem como no recente Código Penal português de 1995 (art. 13º).
uma denominação que consigne e expresse o sentido essencial da forma de Apesar de a denominação “negligência” parecer mais correta, como se
atividade, em face das exigências garantistas do direito penal. demonstrou, sua utilização, na prática judiciária e na doutrina penal brasileira,
Na caracterização do delito negligente não será necessário determinar-se não tem sido levada em consideração, por força da expressão “delito culposo”
se a produção causal do resultado transcorreu ou não mediante movimen- empregada no Código Penal para designar os fatos praticados com negligência.
to do agente ou de descuido de regras técnicas, senão de que sua conduta Atendendo, assim, a uma razão de ordem prática e até mesmo filosófica,
perigosa constituiu omissão do cuidado que, através dos acontecimentos e a partir da transformação que se processou na obra de WITTGENSTEIN, de
circunstâncias concretas, lhe era exigível em função do risco autorizado e utilizar no discurso científico as mesmas expressões da linguagem comum,581
em face da lesão do bem jurídico. Nem sempre, aliás, é mais grave o delito, cabe ponderar que o emprego de uma expressão no campo do direito deve
porque o agente infringiu regras técnicas ou porque desenvolveu um movi- preencher um requisito básico, que é o de possibilitar, com o maior grau de
mento ou ficou parado. O que vale não é isto, mas a lesão do dever de agir clareza possível, a identificação do objeto que quer significar. Por outro lado,
cuidadosamente, quando o agente tenha realizado uma atividade perigosa em em se tratando de um sistema no qual a norma penal deve estar submetida
face dos limites do risco autorizado, de tal forma que a lesão do bem jurídico a uma constante comprovação de sua legitimidade, mediante um procedi-
lhe possa ser imputada. Daí a necessidade de se modificar a terminologia mento racional, a questão da comunicação de suas proibições ou comandos
causal e passar-se à adoção de uma terminologia de essência. deve preceder a qualquer outra, inclusive aos rigorismos dogmáticos.
Conforme esse entendimento, a negligência, por conseguinte, nada tem a Relativamente à negligência, o que se observa hoje é uma dupla ten-
ver com a forma de “culpa” de outrora. Exprime ela, hoje, conceito de conteú- dência de linguagem. Conforme a variação da terminologia, é comum se
do, consubstanciado na omissão das cautelas devidas no momento da execução fazer, na linguagem diária, uma confusão entre fato culposo e culpabilidade.
da ação perigosa, como forma de lesão ou perigo de lesão relevante ao bem Ainda que perdure na linguagem comum a ideia de que a culpa, tomada no
jurídico. Esta denominação não é estranha ao nosso direito. Nesse mesmo sentido de negligência, se confunda com a culpabilidade ou, em alguns casos,
sentido, já a empregava o projeto Sá Pereira, ao estipular no art. 34: “Às penas até mesmo com o dolo, por exprimir com este um denominador comum
cominadas neste Código estará sujeito quem lhe infringir as disposições por de reprovabilidade, isto está se transformando. Tanto na linguagem jurídica
vontade ou negligência”. Seguia neste passo, inclusive, a tradição do direito quanto na linguagem comum se está tornando compreensível o vocábulo
português, cujo código de 1886, no art. 2º, era elucidativo tanto na questão culposo para ações não dolosas, o que demonstra que a linguagem comum
terminológica, quanto na compreensão normativa: “A punição da negligência, está se apropriando da linguagem jurídica para exprimir os mesmos objetos.
nos casos especiais determinados na lei, funda-se na omissão voluntária de um
dever”. Fiel a esse entendimento, a doutrina portuguesa é concorde também Por força de instrumentos de comunicação de massa, ainda que imper-
em empregar a expressão negligência para designar essa modalidade de fatos.580 feitos, a diferenciação entre culpa (negligência) e culpabilidade se faz sentir
Foi o que ocorreu, inclusive, no erudito projeto EDUARDO CORREIA, na esfera pública, já com certa dose de estratificação. Justamente para não
cujo art. 10 constava: “Só é punível quem age com dolo ou com negligência”; e se contrapor a esta tendência, que não pode ser alterada simplesmente pela
no art. 12: “Age com negligência quem não representa o dever objetivo de cuidado influência de uma obra dogmática, mas por mecanismos mais poderosos
adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, podendo ou sendo capaz de comunicação, só disponíveis em âmbitos mais amplos de discussão, será
preciso refazer a proposta inicialmente contida neste livro. Assim, em vez de
se forçar a utilização do vocábulo “negligência”, que poderá ser mais correto,
580. Por exemplo, CORREIA, Eduardo. Direito criminal, 1963, vol I, p. 421; DIAS, Jorge Figueiredo. O
problema da consciência da ilicitude em direito penal, Coimbra: Almedina, 1969, p. 235 et seq.; MAIA
GONÇALVES. Código Penal português na doutrina e na jurisprudência, 2a edição, Coimbra: Almedi- 581. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas, tradução brasileira de MARCOS MONTAGNO-
na, 1972, p. 8 et seq.. LI e revisão de EMMANUEL CARNEIRO LEÃO, Petrópolis: Vozes, 1996, nº 120.
238 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

o melhor será conjugá-lo com os de “culpa”, “delito culposo”, “fato culposo”


ou “ação culposa”, de modo a tornar mais apreensível seu significado.
Embora essa atitude possa implicar uma alteração na terminologia CAPÍTULO II
científica, estará atendendo, de outra parte, à necessidade de ajustar-se a
dogmática penal a um sentido prático, sem o qual o próprio direito perderia O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS
sua utilidade. Independentemente disso, porém, a expressão “negligência”,
por seu turno, talvez não seja adequada a compreender todo o desdobramen- • SEÇÃO 1 - PRESSUPOSTOS
to do processo de imputação, alicerçado não apenas na violação da norma
de cuidado, mas sobretudo na violação dos limites do risco autorizado e na
Sumário: I. Proposição para um conceito de ação – II. A imputa-
lesão efetiva do bem jurídico, subsistente como pressuposto necessário de bilidade–III. Estrutura normativa – III. A divisão delitos dolosos e
tipo de injusto. Por isso mesmo, a expressão “culpa”, ainda que defeituosa, negligentes – IV. O sistema adotado e o Código Penal.
como já se viu, talvez possa servir de instrumento mais adequado a retratar
essa forma de imputação criada pela ordem jurídica.
Em função disso, as expressões “negligência”, “culpa”, “culposo”, “ação Na medida em que se empresta ao delito culposo um conteúdo omis-
culposa” ou “fato culposo” devem ser empregadas indistintamente. A ex- sivo, se registra a necessidade de se delimitar normativamente a estrutura da
pressão “negligência”, porém, deve ser usada sempre em oposição ao “dolo”, conduta, que não pode ser agora o resultado exclusivo de juízos pré-jurídi-
toda vez que houver necessidade de se diferenciar entre fato culposo e cul- cos. A reformulação, por seu turno, do conceito de conduta implicara uma
pabilidade, ou seja, sempre que se queira evitar confusão entre as expressões alteração do sistema do injusto. À medida que se fixe o conceito de conduta
“culpa” e “culpabilidade”. Fora dessa relação, não obstante as ponderações em face da norma criminalizadora e não mais como dado naturalístico ou
antes apresentadas, podem ser utilizadas também as expressões “culpa cons- ontológico, portanto, agora como conceito jurídico, todos os elementos da
ciente” e “culpa inconsciente” para retratar as características da conduta e ação devem ser analisados como etapa prévia ao injusto.
do sujeito em face da regulamentação normativa. Assim, foi em face dessa I. PROPOSIÇÃO DE UM CONCEITO DE AÇÃO
finalidade prática que, no texto, se foram alternando essas denominações,
A primeira indagação acerca da proposição de um conceito de ação deve
conforme o sentido da exposição e atendendo à necessidade de tornar mais
dizer respeito à sua viabilidade. Se, como se disse na introdução (primeira
claros seus fundamentos. Poderia parecer que a questão da terminologia é
parte, capítulo 1), a estrutura da conduta, por si mesma, não tem aptidão
de somenos importância no tratamento dos delitos, mas as expressões aqui
para delimitar o poder de punir, pode-se questionar sua viabilidade ou sua
invocadas podem gerar efeitos diversos, conforme representem significados
própria utilidade na teoria do delito.
confusos e mal digeridos, que tornem impróprio o processo de comunicação
normativa. Na medida em que a norma proibitiva deixe margem a confusões, Normalmente, a conceituação da conduta vem sendo tratada pela dou-
ainda que em virtude de suas expressões, se vê inviabilizada também sua trina segundo duas orientações fundamentais: se esta conduta se subordina
construção dogmática, tomada como um conjunto de princípios e critérios estritamente ao prisma do direito ou se deve derivar de um conceito geral,
a limitar o poder de punir. Nesse sentido, desde que atendidas, portanto, as compreensível de todo comportamento humano, quer tenha ou não relevân-
particularidades da exposição, o uso daquelas expressões pode ser tido como cia jurídica. Isto vale para todas as teorias: causal, final, social, normativista e,
adequado, o que não obsta, está claro, a se continuar usando a expressão inclusive, para as teorias funcionais. Conforme se adote a primeira orienta-
“negligência”, sempre que o texto necessite de clareza. ção, o conceito de conduta só pode ser visto sob o aspecto legal. Se partirmos,
porém, de que a ação penalmente relevante não pode se desvincular de algum
componente empírico, porque este possibilitaria a construção de elementos
240 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 241

capazes de pôr à prova a legitimidade da proibição ou determinação, o ca- norma, no sentido de verificar, negativamente, se o seu processo de constru-
minho simplesmente legal não será adequado ao propósito aqui tratado. ção traça, com nitidez, as zonas do lícito e do ilícito e é capaz de pôr à prova
Por outro lado, há um dado empírico que não pode estar divorciado do a regularidade do processo de imputação da conduta ao seu autor.
procedimento de crítica à produção legislativa da proibição ou determinação: Se ao jurista o que realmente importa é fundar um estado de garantia da
a conduta que se quer regular normativamente é um comportamento do pessoa humana, que não pode ser transformado simplesmente em elemento
homem, em sua individualidade e sociabilidade. Este fato é incontroverso, da natureza, ou em objeto de uma construção social, ou ainda em condição
não depende de formulações subjetivas nem de considerações ontológicas. neutra de uma instituição, o conceito de conduta deve estar subordinado a
Está claro que a opção simplesmente legalista é muito mais simples, duas séries de perspectivas: a) uma perspectiva garantista, com base normativa
porque desloca o problema de sua amplitude e variabilidade, para situá-lo e comunicativa; b) uma perspectiva dogmática, como sua realização concreta
nos limites estreitos das definições normativas. Neste sentido, o jurista não nos respectivos tipos de delito. A conjugação de ambas perspectivas conduz a
terá outro trabalho que o de investigar os elementos caracterizadores do tipo eliminar-se uma subordinação do direito a um determinado enfoque naturalis-
de cada delito (homicídio, furto, estelionato, etc.), para determinar se houve ta, ontológico ou sociológico, como condição necessária e imprescindível à sua
ou não conduta delituosa. Tal ocorre normalmente com os partidários de construção. Por outro lado, na medida em que se exija que a base normativa
uma teoria puramente normativista de conduta. de uma estrutura garantista se realize dogmaticamente nos respectivos tipos
A opção por uma sedimentação empírica, ao invés, requer análise de delito, se torna imperioso estabelecer algumas condições comuns a todos
minuciosa do homem, de seu meio e de suas características. Dentro desta os delitos, a partir da consideração de que sua legitimidade se funda na lesão
ordem de coisas, a tarefa se amplia consideravelmente, pois aqui, então, ou no perigo de lesão a um bem jurídico, como obra de uma pessoa humana
se devem investigar, primeiramente, as características e os elementos da e não como simples manifestação de um interesse institucional.
atividade humana em face de sua sociabilidade ou convivência; depois, sua Uma vez que o conceito de conduta decorre das próprias perspectivas
estrutura individual e, finalmente, sua vinculação a um sistema de valores. da dogmática penal, que estão subordinadas ao objetivo comum de impedir
Deste modo, será possível compreender o comportamento em todos os que o legislador possa caracterizar como delituosa qualquer conduta, a teoria
seus matizes e formas de aparecimento, o que torna possível formular um da ação não pode estar desvinculada dos próprios pressupostos de legitimida-
sistema pelo qual se proceda à crítica da produção normativa. O problema de da incriminação. A teoria da ação, uma vez compreendida sob o enfoque
é que essa opção conduz a uma indagação infinita acerca dos elementos dialético de sua relação para com a norma proibitiva ou mandamental, induz
que devem compor o conceito de ação, o que estimula uma concorrência a que tenha que ser elaborada de modo a servir de elemento apto a verificar
de ideias e proposições que tornam instáveis os pressupostos sobre os quais como essa proibição ou determinação se manifesta, ou seja, se por meio delas
deverá fundar-se a norma jurídica. Foi o que ocorreu com o finalismo, que será possível traçar com nitidez os seus limites. A crítica do conceito de ação
queria reduzir todos esses pressupostos a elementos ontológicos da conduta, traz consigo, por isso, também a crítica à proibição ou à determinação.
ou com os partidários da teoria social, que, ao buscarem sua superação, A tentativa de formulação de uma teoria própria do delito culposo de-
acabaram por admitir que, no fundo, todas as manifestações sociais do ser pende, por outro lado, da natureza da norma sobre a qual ele é construído.
humano podem ser penalmente relevantes. Se o que caracteriza o delito culposo é, fundamentalmente, o risco excessiva-
Vê-se, então, que, a partir das dificuldades ou deficiências dos con- mente desaprovado, a sua dogmática deve ser estruturada, também, a partir
ceitos pré-jurídicos de ação, a tarefa de se encontrar sua substância é ainda da consideração pragmática dos fatos singulares, que devem ser diferenciados
mais complexa, não propriamente pela busca infinita ou incessante de seus segundo um conceito geral, capaz de pô-los em ordem orgânica e sistemática.
elementos, mas principalmente quando o conceito de ação se veja situado Embora, hoje, se discuta a cientificidade de um conceito geral, que pareceria
como instrumento idôneo a possibilitar uma necessária avaliação reflexiva da derivar de uma concepção holística, aos moldes do sistema hegeliano de
242 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 243

totalidade, é ainda válido trabalhar-se com esse conceito geral, na medida seus limites normativos. Isto quer dizer que a ordem jurídica, ainda que
em que se possa integrá-lo numa perspectiva axiomático-construtivista, bem concebida normativamente com certa independência de dados naturalísticos,
própria da ciência moderna.582 não pode prescindir de alguns elementos que estão associados diretamente
A fim de dar seguimento a uma fundamentação adequada desse con- aos objetos que quer regular. Neste sentido, o primeiro pressuposto dogmático
ceito geral, não se deve deixar de considerar que o objeto da indagação diz respeito à inserção do conceito de ação em um sistema jurídico garantis-
jurídica – aqui identificado como conduta descuidada, ou seja, realizada para ta, que tenha a finalidade de preservar a pessoa humana diante de qualquer
além dos limites do risco autorizado – é igualmente composto de elementos forma de intervenção no âmbito de sua liberdade. O segundo pressuposto
empíricos, pelos quais se deve orientar o labor construtivista. Da mesma dogmático é decorrência da própria condição de pessoa, que se atribui ao
forma que a matemática moderna intuicionista tem por base a entidade autor de uma conduta típica.
dos números naturais, ainda que procedidos por meio de seu isolamento A tarefa de se elaborar, portanto, um conceito dogmático de ação é uma
construído,583 a tarefa jurídica também se alicerça na observação de dados tarefa complexa, porque se situa, respectiva e conjuntamente, em duas fases
empíricos, como forma de isolar a entidade da conduta e, assim, construí-la interligadas: a) condiciona-se a um sistema normativo, sob o qual é cons-
para os efeitos de servir de parâmetro a uma avaliação reflexiva negativa da truído e deverá valer; b) complementa-se a partir da análise da condição do
norma penal proibitiva. homem e seu meio. Daí se dizer que se trata de um processo dialético, no qual
A questão crítica da ciência jurídica está em que os sistemas operativos tanto os dados da primeira quanto da segunda fase, ainda que antagônicos
que trabalharam a teoria do delito sempre se ocuparam de sedimentá-la em na sua origem – o homem não depende do direito para sua existência e nem
termos aléticos, de possibilidade ou impossibilidade, necessidade ou desne- o sistema jurídico depende de uma categoria pré-jurídica –, constituem uma
cessidade e, mais recentemente, de ponderabilidade ou imponderabilidade. unidade, da qual resulta o conceito que deve ser utilizado.
Seguindo, contudo, a tendência da ciência moderna, da qual o direito não 1. PRESSUPOSTOS DO CONCEITO DE AÇÃO
pode se afastar, se chega à conclusão de que os conceitos jurídicos, na verdade,
não estão subordinados aos termos aléticos. Ao contrário, tendo em vista os Antes de se proceder à análise do comportamento e de suas caracte-
procedimentos de garantia da pessoa, a construção jurídica não pode e não rísticas, podemos afirmar que, em um Estado de garantias e de proteção da
deve eliminar qualquer predicado que os possa servir, ainda que sua adoção pessoa humana, o que ressalta aos olhos, à primeira vista, na tarefa que se
possa indicar tratar-se de um termo inconsistente para com o sistema. Assim, destine a procurar um conceito inserido na vida de relação do homem, é que
apesar de se descartar um conceito pré-jurídico de ação, que devesse subordi- seus elementos devem ser apresentados de tal forma que possam ser objetiva-
nar ao seu enunciado toda a produção normativa, é possível, para viabilizar mente demonstrados ou até mesmo refutados. Isto é uma exigência imposta
o enquadramento dogmático dos respectivos tipos de delito, partir-se de pelo sistema jurídico, que não pode ficar na dependência de um modelo
alguns pressupostos que, embora não sejam propriamente jurídicos, estão subjetivo de conduta. A condição de refutabilidade é, portanto, essencial para
vinculados intrinsecamente à elaboração normativa. estabelecer os limites da interferência legislativa sobre as atividades humanas.
Explanando acerca das dificuldades de se estabelecer a devida dimensão entre
Esses pressupostos conduzem, assim, à construção de um conceito dog- o empírico e o normativo, pondera DALLMEYER que “a realidade (em-
mático de ação. Embora esse conceito dogmático possa ser elaborado em pírica) limita certamente o espaço de possibilidade jurídica”,584 quer dizer,
função da unidade dos respectivos tipos de delito, não pode ele se desvincular a contraprova da produção jurídica, no sentido de questionamento de sua
do objetivo de harmonizar o sistema jurídico às suas condições de legitimida- legitimidade, só pode ser efetuada caso o enfoque normativo se veja também
de, quer dizer, não pode se afastar, também, dos fundamentos que assinalam assentado em conteúdos empíricos (indutivos) que delimitem o espaço da
582. COSTA, Newton C. A. da. O conhecimento científico, 2ª edição, S. Paulo, 1999, p. 94 et seq 584. DALLMEYER, Jens. Beweisführung im Strengbeweisverfaheren, Frankfurt am Main, Univ. Diss, 2002,
583. COSTA, Newton C. A. da. O conhecimento científico, p. 88. p. 23.
244 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 245

manifestação e aplicação normativa. consideração garantista, na medida em que proporcionem a sedimentação


Assim, qualquer conceito proposto só passa a ter validade científica se de seus elementos empíricos, como instrumentos para a avaliação reflexiva
possibilitar seu confronto com a realidade objetiva, que é representada, no crítica da norma proibitiva ou mandamental.
caso da conduta, pela pessoa humana. Por outro lado, como o sistema nor- O fato de subordinar-se o conceito de ação a um mundo objetivo traz à
mativo está estruturado em função dessa pessoa, o conceito dogmático de ação discussão se isto implica tratá-lo como um conceito universal. Ao entender que
deverá orientar-se em sua direção, tendo em conta suas características como a pessoa humana, antes de ser protegida e orientada juridicamente, é um ser
ser social e com os atributos individuais que lhe são exclusivos e não, sim- social, poderíamos chegar à conclusão de que o conceito de conduta humana,
plesmente, como elemento do mundo físico ou metafísico. Toda metodologia como tal, enquanto objeto de investigação e não como juízo de valor, deveria
centrada nas ciências naturais ou em função de um projeto ontológico, como ser conceitualmente idêntico, tanto no campo do direito quanto de qualquer
fundamento da elaboração da atividade humana, fracassa porque desconside- outra disciplina científica. Essa é uma questão, porém, que apresenta uma
ra que esta não se reduz, respectivamente, nem à causalidade física, nem aos importância limitada. Ao contrário do finalismo, que quer vincular todo nor-
instintos e impulsos da atividade animal, nem a uma finalidade meramente mativo à estrutura final de ação, sem se ocupar das suas consequências, aqui o
abstrata, fixada à conduta como seu substrato ôntico. Caso se estabeleça, por que se busca é equacionar um conceito de conduta que, embora leve em conta
exemplo, que a investigação deve conter um mínimo de objetividade, isto as características essenciais da pessoa humana, possa servir à estruturação de
significa que ela deve estar apta a sofrer refutações a partir das relações entre um sistema normativo que tenha como fundamento a proteção dessa mesma
o conceito proposto e a realidade humana, tomada a partir da realidade so- pessoa. Assim, o conceito de conduta será universal na medida em que se situe
cial.585 Na medida em que, assim, se relaciona o sistema normativo à realidade nessa perspectiva, não porque leve em conta a essência da pessoa, mas porque
humana e, ao mesmo tempo, à compreensão dessa realidade dentro das pro- tenha, em primeiro plano, sua própria proteção.
postas normativas de sua proteção, ou seja, se constrói o sistema normativo, Se o conceito de conduta está subordinado a uma realidade objetiva,
atendendo às características objetivas do ser humano e de sua vida de relação, isto significa que sua construção deve levar em conta os elementos que lhe
conforme o projeto de pessoa que um Estado democrático de direito deve servem de substrato, ou seja, as características da pessoa humana dentro de
traçar, se passa a incorporar esse ser humano nas expectativas de sua proteção um mundo objetivo. Como o mundo objetivo da pessoa humana é aquele
normativa e se produz o efeito de superar tanto as concepções ontológicas de no qual ela mesma se afirma como pessoa em função de outrem e não em
conduta quanto as postulações puramente positivistas. função de objetos, toda conduta está subordinada a uma característica
JÜRGEN HABERMAS propõe algumas condições de validade de um de sociabilidade. Esta característica da sociabilidade constitui o primeiro
conceito de ação, tendo como pressupostos três séries de argumentos: a) a pressuposto daquilo que HABERMAS propõe como “mundo objetivo”.
subordinação a um mundo objetivo; b) a racionalidade, à qual o sujeito Isto quer dizer que a ação não pode ser tomada, em sua origem, exclusiva-
atuante, reciprocamente, se submete; c) a pretensão de que seus atos de mente, como elaboração espiritual ou subjetiva, mas uma construção apta
comunicação, ou seja, seu comportamento implique uma validade incon- a submeter-se a um processo objetivo de refutação. Com isso, descarta-se,
dicional em relação aos demais interlocutores.586 Ainda que não se adotem na sua conceituação, a assertiva hegeliana, que a subordina, em primeiro
integralmente tais pressupostos, podem eles servir de ponto de partida a uma plano, ao mundo das ideias.
Em relação à racionalidade, ao contrário do que propõe HABERMAS,
585. Ainda que no sentido neokantiano, REALE, Miguel, O direito como experiência, 1968, p. 156, esclare-
ce a ligação entre as ciências naturais e sociais, situando-a nos seguintes termos: “[...] sendo cada estru- que procede, nesse setor, com uma aproximação kantiana, podemos trabalhar
tura social um todo de significações, determinado pela polarização de uma valoração-matriz, compreen-
de-se a impossibilidade de compreendê-la em termos de mera causalidade, ou de puras relações formais, sua questão no sentido que lhe empresta NEWTON DA COSTA, de estar
como pretendem certos defensores exacerbados do estruturalismo, que sacrificam a concretitude do real subordinada a três dimensões: a) a de sua logicidade dedutiva básica; b) a de
aos seus esquemas reducionistas”.
586. HABERMAS, Jürgen. Kommunikatives Handeln und detranszendentalisierte Vernunft, Stuttgart: Re- poder recorrer também a procedimentos indutivos de verificação; c) a de ser
clam, 2001, p. 8.
246 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 247

inseparável de uma atitude crítica, permanente e radical.587Atendendo a estas um acesso direto à realidade por meio da linguagem.588 Isto implica, pois,
dimensões e à vista de que o mundo objetivo, representado pela sociabilidade, a construção de um conceito de pessoa, que corresponda a este propósito.
deve ser compreendido sob uma perspectiva racional, não podem os elementos Em face desse pressuposto, pode-se partir de que a pessoa é dotada de
do conceito de ação se limitar à relação de causalidade, ou ficar na dependência condições de propor a si mesma determinados objetivos, o que a situa por
da produção de seus efeitos materiais, nem também fixar-se na finalidade. A cima de todas as demais entidades do mundo natural. Apesar disso, porém,
racionalidade implica a conclusão de que as próprias leis da causalidade, ainda e independente do conceito de uma finalidade que seria inerente a qualquer
que subsistam autonomamente e sejam extraídas da experiência, se edificam de suas atividades, a limitação desses objetivos deve ser fixada em regras que,
segundo critérios lógicos que, uma vez comprovados, se estendem a todas as nitidamente, indiquem seus contornos e sua extensão. Assim, se, em certa
suas formas e só valem na medida que levem em consideração as características medida, se poderá dizer que os delitos culposos, especificamente, “constituem
de suas partes integrantes e possam submeter-se a um procedimento dedutivo, uma espécie da categoria de comportamento desviante, que, por sua vez, inte-
ou seja, a causalidade só vale quando subordinada a uma teoria que a possa gra a categoria geral do comportamento social do homem”,589 se deverá agregar
explicar. Por seu turno, a finalidade é, empiricamente, indemonstrável, não que essa assertiva só tem validade se vista dentro de um sistema de regras pelas
podendo, assim, submeter-se a um procedimento de refutação. O conceito quais se definam, previamente, as características do comportamento desviante
de conduta, portanto, não deve estar associado a um elemento aleatório ou e os elementos categoriais do comportamento social do homem.
isolado. Deve estar associado, em um primeiro momento, às características da
vida humana, como vida de relação, da qual emergem todos os aspectos da so- A questão, pois, de se encontrar um conceito dogmático de conduta,
ciabilidade e da individualidade e pela qual o homem se materializa e se realiza, também denominado apropriadamente de conceito performático de ação, como
produz, cresce, organiza e adquire, através de repetições e atividades laborais exaurimento dos objetivos de garantia da pessoa humana dentro do sistema
cada vez mais complexas, possibilidade de formular pensamentos abstratos e normativo e, também, adequado a preencher todas as perspectivas da teoria do
propor seus respectivos objetivos. Somente mediante essa consideração, será delito em geral, e do delito culposo, em particular, não pode prescindir da fixa-
possível construir um conceito de ação, que seja passível de uma constante ção dos critérios de determinação das características gerais do comportamento
reformulação crítica, que ficará sempre atenta quanto à forma como a sociabi- do homem na vida social. O conceito de pessoa, neste caso, não é inferido de
lidade e a individualidade se conjugam na norma. suas características puramente empíricas, senão dos elementos que identificam
seu comportamento em vinculação ao contexto do mundo a vida.
A questão da racionalidade, por outro lado, diz respeito também à
forma e ao modo como se identifica a realidade empírica em face do con- Por outro lado, os elementos identificadores do comportamento devem
tingente normativo. Normalmente, entende-se a realidade empírica como ser analisados a partir de sua consideração em um mundo objetivo de so-
um dado objetivo, apreensível pelos sentidos e independente do observador. ciabilidade. O conceito de pessoa, portanto, será obtido primordialmente
Ocorre, porém, que essa realidade, na medida em que é apreensível senso- dessa característica de sociabilidade, pela qual o homem se expressa como
rialmente, não poderá deixar de sujeitar-se aos próprios condicionamentos entidade comunicativa sui generis em um mundo objetivo. Se, contudo, essa
do observador, ou seja, na medida em que a expressão da realidade se faça sociabilidade e a consequente comunicabilidade são essenciais para a for-
por meio da linguagem, subsiste sempre um estado de tensão entre o que mulação de um conceito de pessoa, inclusive, pressupostos indeclináveis de
se percebe como objetivo e o que se representa linguisticamente como tal. sua responsabilidade, devem elas se ajustar, precisamente, aos preceitos de
Daí dizer DALLMEYER que o problema está em harmonizar a descrição garantia, que decorrem de objetivos racionais destinados a regrar condutas
do mundo, que existe independentemente dessa descrição e é idêntico para humanas e possibilitar, assim, a convivência.
todos os observadores, com a compreensão linguística, de modo a se obter
588. DALLMEYER, Jens. Beweisführung im Strengbeweisverfahren, cit., p. 17.
589. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. “As origens dos delitos de imprudência”, in Revista de Direito Penal,
587. COSTA, Newton C. A. da. O conhecimento científico, 1999, p. 203. nº 23, 1978, p. 55.
248 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 249

Embora a elaboração de um conceito de ação esteja na dependência organizativo, pelo qual o homem se faz presente no mundo, isto implica
desses preceitos garantistas, a norma não pode levar em conta elementos di- considerar que a vinculação entre norma e realidade humana não pode se
versos de comportamento, em oposição ao conceito que se desenvolvesse da dar, simplesmente, pela causalidade. Esta poderá estar inserida no processo
consideração do homem no seu contexto social, ou seja, a norma que elevasse organizativo, mas não o esgota. Ademais, ao considerar-se que a atividade or-
à categoria de comportamento ilícito apenas elementos subjetivos da conduta ganizada é a primeira e mais primitiva forma de conduta, ela mesma também
tornar-se-ia incompreensível e imprestável como norma de conduta ou como não esgota todas as características de uma conduta capaz de servir de objeto
delimitador do poder de punir porque, então, não teria traçado com nitidez de investigação dogmática.
os contornos de sua atuação, mas regulado matéria completamente diversa. A investigação dogmática não pode ficar restrita às reações adaptativas
Se o ser humano, que é o sujeito da ordem jurídica, está comprome- ao ambiente, ainda que complexas, nem a componentes instintivos e auto-
tido com sua própria característica, de ser social e comunicativo, o direito matizados, ainda que empíricos. Se a investigação dogmática deve ser feita
não poderá desvincular-se da realidade humana e das condições assentes sob uma norma valorativa, configurada historicamente, seu objeto deve estar
nessa estrutura, para a elaboração de suas normas e adoção de seus con- também constituído de elementos vinculados tanto à prática social quanto
ceitos básicos e genéricos. Nesse sentido, o conceito de conduta preenche à sua racionalidade.
ainda outra finalidade: a de condicionar dialeticamente a norma, ou seja, a Como a própria atividade cognoscitiva do homem surge e se estratifica
norma assinala os limites que devem ser impostos a um conceito de conduta como fator e aspecto de sua atividade prática,591 antes de ser tratada como
para que sirva a um propósito garantista e, ao mesmo tempo, não pode se atividade consciente, o conceito de conduta humana deve ser estruturado sob
desvincular de que esse conceito de conduta deva ser visto em função da a característica de constituir atividade social e não, exclusiva e tão-somente,
pessoa humana em sua sociabilidade. uma conduta individual.
Precisamente em função dessa relação dialética entre elementos vin- Diante desse aspecto inicial, poder-se-ia pensar que, concordando com
culados à pessoa humana e à norma de garantia, poder-se-á construir um os partidários da teoria social, se viesse a afirmar que a ação, para as ciências
conceito de conduta seguindo dois caminhos: em um primeiro momento, do homem, seria toda conduta social. Ainda que se possa dizer, está claro, que
estabelecendo os parâmetros relativos à pessoa; em um segundo momento, as condutas humanas, em geral, são condutas sociais, em face do princípio
buscando comprovar sua validade em face da norma de garantia. reitor da sociabilidade, que preside todos os comportamentos, esta concei-
2. AÇÃO COMO ATIVIDADE ORGANIZADA tuação, porém, não se mostra suficiente a ponto de bastar ao fundamento
da teoria do delito, pois, da mesma forma, será possível reconhecer conduta
De certa forma, na vida em geral, quer humana ou animal, há deter- social em certos animais gregários e, por outro lado, constituiria um conceito
minada relação entre organismo e meio, de modo que se aquele se distingue demasiado amplo, sem a fixação de elementos concretos que lhe pudessem
deste, por outro lado e apesar disso, está unido a ele. Informa RUBINSTEIN exprimir os limites. A peculiaridade da atividade humana, ao contrário disso,
que “toda forma de proceder é sempre uma unidade, que se baseia em con- se manifesta precisamente no fato de que aqui se trata de atividade consciente
trastes internos, na qual o indivíduo ressalta de seu meio ambiente e de sua acerca do meio e de suas condições variáveis, e orientada subjetivamente
união com ele, permanecendo, não obstante, unido a ele”.590
Sob o enfoque dessa relação indivíduo e meio, configura-se, de certo 591. RUBISTEIN, S. L. Principios de psicologia general, p. 120. SÁNCHES VÁSQUEZ, Adolfo. Filosofia
modo, uma forma de conduta, que poderia, então, ser conceituada como da Praxis, Rio: Paz e Terra, 1977, p. 185, assinala que não há que se confundir entre atividade e práxis,
pois se toda práxis é atividade, nem toda atividade é práxis. Isto reflete o pensamento expresso no texto,
toda atividade organizada que vincula o indivíduo ao seu meio. Está claro que que não pretende a identificação entre atividade e prática, mas, sim, caracterizar que, antes de ser uma
atividade consciente e racional, a conduta do homem deve ser analisada dentro do seu conteúdo social,
se a conduta, sob esta apreciação, tem como característica um elemento como manifestação da práxis. Igualmente não se quer dizer, com isso, que haja uma sequência crono-
lógica entre prática social e atividade consciente. Ambas nascem e se desenvolvem conjuntamente, em
unidade dialética. A divisão de suas partes componentes é necessária, porém, ao perfeito entendimento
590. RUBISTEIN, S. L. Principios de psicologia general, México: Grijalbo, 1967, p. 118. científico dessa matéria.
250 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 251

dentro da prática social, quer dizer, a prática social não pode ser deixada de quais o indivíduo adquire e desenvolve sua existência pessoal”.593 Ou seja, o
lado nessa conceituação, como seu elemento delimitador. trabalho social induz a um processo de comunicação, pelo qual o indivíduo
Assim, o fator da sociabilidade, para que possa desempenhar algum afirma sua própria existência pessoal.
significado no comportamento humano, deve estar agregado a outros ele- Na medida em que a norma pretenda regular uma atividade, deverá
mentos, inclusive, de características empíricas. Partindo de um dado empírico estar aberta a uma avaliação negativa, no sentido de verificar se efetivamente
– a conscientização em face dos meios e de suas condições, bem como de sua não está impedindo o próprio processo de comunicação, tanto no aspecto
dirigibilidade na prática social, ou seja, a relação material que se estabelece social quanto individual e, assim, se excedendo em sua tarefa regulamenta-
entre a pessoa, de um lado, e os dados do ambiente, de outro – se torna dora. Mas também a prática social só pode ser aquela que se configure de
possível compreender como se procede à criação de vínculo ativo entre o modo a ser delimitada, em sua extensão, por um procedimento normativo.
homem e o mundo que o cerca, pelo qual “a existência representa unidade Embora a prática social não implique juízo de valor, deverá ser apta a ser
real e mútua influência entre o sujeito e o objeto”.592 delimitada normativamente em função dos preceitos de garantia da ordem
Uma vez que se reconheça a influência do sujeito sobre o objeto, po- jurídica. Esta parece ser a única forma de equacionar o conceito de conduta
de-se assumi-lo como pessoa humana, a partir de sua atividade como prática como um instrumento delimitativo do poder de punir.
social e extrair sua relevância do poder de que dispõe para atuar diretamente 3. A AÇÃO NO PROCESSO DE COMUNICAÇÃO
sobre os objetos que cria e persegue, bem como influir os demais homens
e com eles relacionar-se. À vista disso, tornam-se, pois, supérfluos, nesse Ainda que a prática social se exprima no processo de produção e de
aspecto, os dados referentes à relevância social da conduta, como querem sobrevivência, enfim na vida de relação, não se reduz ela, porém, à mera pro-
os partidários da teoria social da ação, com base em juízos de valor social. dução de efeitos. Ao contrário, se sua relevância decorre do poder de influir
A conduta será relevante na medida em que possa ser contemplada em uma sobre os demais sujeitos e com eles relacionar-se, implica, por conseguinte,
prática social, capaz de suscitar, na norma, uma avaliação crítica reflexiva, um processo de comunicação humana, sem o qual não se pode falar de uma
quer dizer, o conceito de conduta deve agregar aqueles elementos que, de atividade dotada de sentido.
um lado, possibilitem a norma de se orientar criticamente e, de outro lado, O problema, portanto, da determinação da relevância social, que traz
possam ser delimitados por ela. em si, como dado normativo ou valorativo, sérias e insolúveis dificuldades,
A prática social, portanto, não é sinônimo de juízos de valor. A prática torna-se superado pela determinação de uma característica prevalente da con-
social significa que o homem não pode ser compreendido isoladamente, duta que é, precisamente, sua dirigibilidade na prática social comunicativa.
senão em suas relações com os demais homens no processo de produção Tendo em vista que o sentido da atividade é assinalado em face do
e de sobrevivência, o que os transforma em elementos integrantes de uma poder de relação do sujeito, a prática social implica que toda ação se insira
comunicação recíproca. Como diz HOLZKAMP, a prática social se assenta em um processo de comunicação, pelo qual uma pessoa transmite infor-
em que a categoria da conduta congrega também “a participação individual mações a outra pessoa, de modo que constituam elementos relevantes para
no processo social de produção e reprodução por meio do trabalho,” mas, o seu agir. A ação individual, portanto, não se desvincula das perspectivas
também um “aspecto psíquico do trabalho social” e as “atividades vitais nas de ação de outrem. Por seu turno, se não visa a um determinado resultado
imediato, toma-o em consideração no ato de reconhecimento de fazer valer
592. RUBISTEIN, S. L. Principios de psicologia general, 1967, p. 590. Ainda que sob forte influência do as informações fornecidas e orientá-las. Se a ação cumpre, em um primeiro
subjetivismo, mas, em certo sentido, da mesma forma, SÁNCHES VÁSQUEZ, Adolfo. Filosofia da
Praxis, p. 189: “A atividade humana é, por conseguinte, atividade que se desenvolve de acordo com momento, uma função de orientação, isto significa que a produção de um
finalidades, e essas só existem através do homem, como produtos de sua consciência. Toda ação ver-
dadeiramente humana requer certa consciência de uma finalidade, finalidade que se sujeita ao curso da resultado não lhe é incorporada, diretamente, como o exaurimento de um
própria atividade”. Em sentido semelhante, ainda que sob outra perspectiva, já se havia manifestado, por
seu turno, WELZEL: “Toda a vida comunitária do homem se estrutura, para bem ou para mal, sobre a
atividade final do homem” (Nota 7, p. 50). 593. HOLZKAMP, Klaus. Grundlegung der Psychologie, Frankfurt–N. York: Campos, 1983, p. 234.
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fim previamente proposto, mas como elemento de um contexto de prática subtrair atende aos elementos da realidade, como prática social, não é su-
social, no qual ela se desenvolve e que tem como protagonistas, também, ficiente que o ladrão tenha realizado a subtração, orientando sua atividade
todos os outros sujeitos. Dessa forma, as informações fornecidas e orientadas, em face daquilo que quer subtrair (coisas alheias) ou de seus titulares, mas
praticamente, não podem estar desvinculadas, em uma atividade organizada, que incorpore, nesse plano, a lesão de bem jurídico, porque só com isso é
de outras atividades, com as quais se devam confrontar. que se aperfeiçoa o ato perlocucionário. Somente neste caso, ou seja, com a
Caso a pessoa do interlocutor não tome a informação como aceitável exigência da posse do objeto, com a qual interfere, comunicativamente, na
e, assim, não se realize a pretensão inicialmente proposta, o processo de vida de relação de outrem e se desvincula da relação meio e fim, é que se pode
comunicação ainda subsiste, podendo se exaurir num discurso persuasivo, regular essa atividade, proibindo-a, porque só assim se poderá construir uma
ou executar-se em um processo mecânico, ou em uma determinação direta. referência à lesão ou ao perigo de lesão ao bem jurídico. Está claro que a ação
À primeira vista, poderia parecer que para se caracterizar uma ação não de subtração só se efetiva porque o processo de comunicação desencadeado
importaria, em princípio, o resultado que o agente quisesse alcançar, mas, entre o ladrão e sua vítima não é suficientemente persuasivo em termos de
antes disso, que o agente dirigisse sua atividade em face de outra pessoa como discurso. Caso fosse possível ao ladrão obter a coisa apenas na conversa, sua
interlocutora. Ocorre, porém, que, no processo de comunicação, não basta ação poderia se resumir num discurso persuasivo, que satisfaria por inteiro
que ação se resuma a um procedimento de mão única. Se a ação se expressa sua objetividade. Caso contrário, o ladrão poderá agir diretamente, como de
como uma forma de comunicação, na qual se sedimentam elementos capazes fato ocorre, para fazer valer sua pretensão inicial, subtraindo a coisa. Vê-se
de dar à norma penal as condições para que ela mesma possa ser avaliada que toda ação, ao desenrolar-se em um processo de comunicação, tem como
criticamente na regulação dessa atividade, os atos interlocutórios devem ser seus elementos essenciais uma manifestação exterior e objetos de referência
vistos sempre como atos performativos, ou seja, atos que se desenvolvem no pelos quais se orienta, agregando a isso a delimitação que a presença do outro
sentido de obter de outrem determinado comportamento. Se o resultado, impõe à sua atuação. Sem estes dados essenciais, não há ação.594 Convém
assim, não integra diretamente a ação, está ele dentro do contexto no qual ressaltar, porém, a divergência que há entre essa concepção, aqui defendida,
se desenvolve o ato performativo. Desta forma, o conceito de ação que tenha e aquela, representada por um enfoque mecanicista da conduta. Embora
por base elementos comunicativos e não apenas causais deve ser sempre cheguem ao mesmo resultado, os modernos partidários de uma concepção
tomado em consideração com vistas à sua regulação, e não como ato isolado, mecanicista de conduta, que, como, por exemplo, GERHARD ROTH, res-
constituindo, portanto, matéria que só interessa àquelas ciências que tratem saltam que a conduta humana, em geral, só se distingue de meras reações
da pessoa sob a perspectiva de sua relação para com outras pessoas dentro de físicas pela sua orientação no plano objetivo, o que seria demonstrado pela
um sistema normativo. Portanto, seguindo uma metodologia construtivista, resistência que essa conduta deve enfrentar quando de sua realização prática,
as próprias condições objetivas de sociabilidade não são condições aleatórias, longe estão de um conceito racional.595 Primeiramente, os postulados dessa
mas aquelas que a ciência jurídica, por exemplo, caracteriza como relevantes concepção são questionáveis, porque não tomam em consideração os aspectos
para compor um sistema de garantias. valorativos que se manifestam na estratégia comunicativa do agente de fazer
valer sua pretensão. Em segundo lugar, ainda que apresentem importância
Em termos práticos, em face das consequências de um conceito de ação ao ressaltarem a possibilidade de se excluírem do processo inicial de sua
fundado na performatividade do ato de comunicação, e não na causalidade,
importa, para afirmar a qualidade da ação de subtrair no furto, a demons- 594. Para uma visão mais específica do conceito de ação como agir comunicativo, ver HABERMAS, Jürgen.
Faktizität und Geltung, 4ª edição, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 15 et seq.; idem, Erläuterung
tração de que o agente tenha alcançado a posse da coisa. A posse da coisa, zur Diskursethik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992; idem, “Richtigkeit und Wahrheit”, in DZPh,
1998, p. 179. Para a sua crítica, LYOTARD, Jean-François. Der Widerstreit, 2ª edição, München: Fink,
que constitui o desenlace final de sua ação, é relevante para caracterizar sua 1989, p. 298: Ota Weinberger, Recht, Institution und Rechtspolitik: Grundproblem der Rechtstheorie
und Rechtsphilosophie, Wiesbaden-Stuttgart: Steiner, 1987, p. 214. Para uma visão geral, em especial
tipicidade, ou seja, para indicar que se tratou da prática de atividade lesiva no âmbito da teoria do conhecimento, PAWLOWSKI, Hans-Martin. Einführung in die juristische Me-
thodenlehre, 2ª edição, Heidelberg: CF Muller, 2000, p. 37 et seq.
ao bem jurídico, o que delimita sua substância. Para se dizer que a ação de 595. ROTH, Gerhard. Fühlen, Denken, Handeln. Wie das Gehirn unser Verhalten steuert, Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 2001, p. 406.
254 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 255

conceituação, como atividade orientada a um fim, os dados subjetivos, que dados relativos ao processo de comunicação, ou seja, de que toda atividade
sempre constituíram os elementos essenciais da teoria finalista, ou seja, de humana é consciente e volitiva, desenvolvida em uma prática social com a
que é possível caracterizar-se uma conduta em função do fim, unicamente pretensão de que seja tomada pelo outro como válida e, por isso, vinculada a
sob plano objetivo, pretendem subordinar a ordem jurídica a esse conceito uma regra à qual se subordina. Dialeticamente, torna-se impossível conceber
mecanicista, o que viola a terceira dimensão da racionalidade, relativamente uma atuação volitiva sem uma regra que lhe corresponda, porque, na práti-
a não possibilitar que esse conceito seja submetido a uma crítica constante. ca social, os comportamentos não se orientam segundo a produção de um
resultado, mas segundo sua avaliação normativa, ou seja, no direito penal,
4. A AÇÃO COMO CONDUTA VOLITIVA segundo a lesão ou o perigo de lesão a bens jurídicos.
No entanto, uma vez que se tome a conduta humana como atividade Por outro lado, toda regra pressupõe evidentemente um substrato
orientada e dirigida no processo de comunicação e não apenas em face de sua empírico que lhe forneça substância e sobre o qual estará assentada, inicial-
orientação mecânica a um fim, pode-se concluir que ela é, implicitamente, mente, a vontade. Uma vontade sem fundamento empírico constitui absurdo
uma atividade volitiva. lógico. Mas, o significado da vontade não decorre tão-só desse fundamento
A característica de ser a conduta humana atividade volitiva tem assento, empírico. Também lhe está agregada a regra que determina sua manifestação
inclusive, na própria natureza social dessa atividade, em oposição aos atos no mundo exterior, como forma de comunicação. Se, na prática, for obser-
instintivos e impulsivos. Igualmente, se a conduta humana é essencialmente vado um comportamento singular, em que não se possa esclarecer acerca da
conduta volitiva, afiguram-se absolutamente irrelevantes as pretensões em- existência real ou do fundamento empírico, ou da regra à qual se subordi-
píricas de salientar a existência de determinados fatos sem finalidade, como, na, se desnatura a conduta humana volitiva como tal, vindo a tratar-se de
por exemplo, certos crimes omissivos culposos, em que o agente nem havia conduta meramente impulsiva e, portanto, irrelevante sob aspecto social e
pensado na realização de algum resultado, ou nos chamados atos automatiza- também jurídico. Se faltarem a essa conduta as características que a assentam
dos, que tanta preocupação trouxeram a JAKOBS e a partir dos quais passou em um processo de comunicação não poderá ela ser objeto de proibição ou
a construir seu sistema sob o critério normativo da evitabilidade. comando normativo. O legislador, portanto, não está legitimado a incriminar
Por outro lado, se a conduta tem sua existência projetada no campo condutas que não se projetem em um processo de comunicação, porque isso
da prática social e no processo de comunicação daí inferido, é também ir- impossibilitaria a verificação de sua racionalidade, isto é, a norma não teria
relevante exigir-se sua vinculação necessária a determinado fim. Assim, o objetos de referência para ser avaliada.
reconhecimento de fatos automatizados não ilide a posição aqui assumida, 5. AÇÃO E ATOS IMPULSIVOS, OU AUTOMATIZADOS
pois, para a caracterização da conduta, não é relevante a descoberta da fina-
lidade, como pretendiam os partidários do finalismo. Relevante é que a ação Quando se discute a questão dos elementos essenciais da conduta no
só pode ser caracterizada como conduta humana quando se insira consciente- processo de comunicação, não se torna relevante a pretendida distinção pro-
mente em uma prática social, quer dizer, quando se vincule conscientemente posta por JAKOBS entre direção da atividade e direção dos impulsos, para
a um objeto de referência dentro de um processo de comunicação, ou seja, incluir no conceito de ação, também, os atos impulsivos e só tratá-los, separa-
que se subordine a determinadas regras. Deste modo, será possível a inte- damente, no âmbito do injusto, como problema de imputação. O objetivo de
gração entre atividade e objetos de referência concretos, isto é, entre a ação JAKOBS, com essa distinção, da mesma forma como o faz BACIGALUPO, é
de dirigir um automóvel, por exemplo, e as regras de trânsito e os demais possibilitar a inclusão, no conceito de ação, dos atos automatizados, nos quais
transeuntes. No caso penal, por exemplo, dentro de um panorama de garan- não se possa reconhecer, empiricamente, uma atividade consciente, como se
tia, essas regras estão vinculadas diretamente à lesão ou ao perigo de lesão do dá, normalmente, em atos isolados na condução de veículos.
bem jurídico, que irá demarcar sua incidência. Embora na condução dos veículos os atos de frear, trocar de marcha ou
É inaceitável, assim, que sejam eliminados do conceito de ação todos os desembrear estejam incorporados na memória do motorista, de modo que
256 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 257

não precisem de atualização consciente cada vez que tenham que ser realiza- realiza uma conduta cuidadosa, ou dirige em excesso de velocidade). Os
dos, isto não desnatura a atividade de dirigir como uma atividade consciente parâmetros (objetos) de referência podem ter, portanto, diversos matizes.
e volitiva, porque o motorista não dirige sozinho em um mundo devastado A diferença fundamental, no entanto, entre um conceito comunicativo de
e desabitado. Em qualquer condição, estará ele, primeiramente, submetido conduta e aqueles que se atêm exclusivamente à relação entre meio e fim,
às regras de direção e, depois, a sofrer estímulos de outros motoristas, das ou entre fatores causais e resultado, reside na relação que se forma entre o
condições da pista, das variações climáticas, da advertência dos guardas e da agente e seus interlocutores. Na verdade, não se pode falar de ação, salvo
conversa de seus passageiros, que são fatores de sua própria vida de relação. sob aspecto puramente causal, se não se tiver em vista essa relação. Por
Deste modo, em todas essas vezes, terá de orientar conscientemente sua outro lado, toda ação está vinculada normalmente a regras ou normas, o
atividade conforme essas regras e todos os demais fatores de referência, que que implica dizer que sua execução está condicionada a pontos de orien-
funcionam como pontos de comunicação entre esse motorista e o mundo. tação funcional, ou seja, na relação social a relevância da atividade dos
Caso esse motorista nada sinta em relação a isso tudo, porque padecera, mo- agentes só é salientada na medida que possa influenciar os demais, ven-
mentos antes, um colapso que o colocara inconsciente, ou caso se encontre cendo-lhes a resistência e impondo-se, assim, com pretensão de validade.
sob o efeito de uma coação física absoluta (por exemplo, por estar sofrendo A pretensão de validade não tem aqui, porém, os contornos que lhe
uma tortura física permanente por parte de outrem), ou se ache em estado de empresta HABERMAS, no sentido de fazer valer o melhor argumento e,
hipnose ou sonambulismo, falta a essa atividade a característica de conduta assim, alcançar o consenso dentro de uma perspectiva estatista. Uma coisa é
humana, por não se tratar de uma conduta consciente e volitiva. Portanto, as conceber a ação sob ponto de vista político, como coadjuvante de uma socie-
hipóteses tratadas pela doutrina majoritária como ausência de ação adquirem, dade democrática, outra será, então, dotar-lhe de sentido de conformidade
assim, um novo fundamento: não apenas faltará aqui a consciência – de fato, com a orientação normativa à qual está subordinada. A pretensão de valida-
a consciência não estará, aqui, presente –, mas principalmente a possibilidade de significa, assim, orientar a atividade de tal forma que incorpore, em seu
de o agente orientar sua atividade frente a parâmetros de referência, pelos sentido, todas as normas que a regulamentem, quer para acatá-las, quer para
quais se manifestaria essa consciência. Voltar-se-á a esse tema mais adiante. infringi-las e ainda obter a concordância dos interlocutores ou vencer-lhes a
Por outro lado, já na hipótese de o motorista dirigir em lugar desa- resistência. Isto se torna mais claro, ao ver-se que a conduta do homem, como
bitado, a característica de sua atividade como ação humana dependerá da atividade inserida na prática social, ou, dito de outro modo, no processo
existência ou não de um objeto de comunicação, como parâmetro de refe- social de produção e comunicação, não pode desvincular-se da consideração
rência. Havendo qualquer forma de objeto de referência, de modo que o das normas de convivência, ainda que seja para não as observar.596
motorista, estando consciente de sua existência, possa estabelecer, em função Assim, a conduta humana é aquela em que mais se afirma o caráter
disso, uma pretensão de validade para sua atividade, haverá ação. Caso con- consciente acerca da relação com os demais homens, com a sociedade e com
trário, o ato é irrelevante como prática social e, portanto, não é apto para se as normas que regulam a vida comunitária. Esta relação entre a atividade
caracterizar como conduta humana. individual e as determinações da vida coletiva não implica a aceitação da tese
6. AÇÃO E OBJETOS DE REFERÊNCIA
596. O sentido da atividade em uma ordem de convivência sempre foi associado a um conteúdo moral.
Os parâmetros, ou objetos de referência, dizem respeito a um conjun- Assim, REALE, Miguel. O direito como experiência, p. 193: “De resto, já observei ser inerente ao
pensamento selvagem em geral, do selvagem, inclusive, um apetite natural de ordem”. Assim também,
to de fatores que disciplinam a conduta como ação comunicativa. Neles se RUBISTEIN, S. L. Principios de psicologia general, p. 591: “A conduta do ser humano conduz impli-
citamente, como aspecto determinante, a relação com respeito às normas morais, sendo mais essencial
incorporam fatores empíricos e normativos, como os objetivos perseguidos disso o conteúdo social, ideológico e moral”. Este apelo à moral já era identificado na filosofia tomista.
Neste último sentido, assim se pronuncia JOLIVET, Regis. Tratado de filosofia, vol. II, 1967, p. 563:
pelo agente (A quer matar B), a não realização de certos atos (A deixa de “O homem que tem fome, posto nas condições em que pode apoderar-se de um pão, representa-se esse
pão não só como capaz de lhe desalterar a fome, mas também como propriedade alheia, isto é, o pão é
saudar B), o descumprimento de determinados deveres (A deixa de so- representado sob diferentes aspectos que lhe definem o valor sob o ponto de vista do bem”. Na socio-
logia crítica retoma o tema ADORNO, Theodor. La sociedad. Lecciones de sociología, Buenos Aires:
correr B), ou a aceitação ou não de ordens, mandamentos ou normas (A Proteo, 1971, p. 47.
258 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 259

dos normativistas de que toda atividade juridicamente relevante é só aquela formas de manifestação da conduta delituosa, em especial a negligência.
que o direito qualifica como tal através da tipicidade. Isto até pode ser cor- Como aqui não importa a finalidade da conduta, são inócuas e ficam
reto, em certa medida. Mas a questão deve ser pensada sob outros aspectos. sem efeito as críticas que foram opostas em geral à concepção finalista de
Se é certo que o conceito de conduta só tem relevância na medida em que conduta, as quais sempre insistiram em que esta postura seria incompatível
se destine a preencher os elementos do tipo de delito respectivo – daí sua com a atividade culposa, pois nesta não se vislumbra qualquer finalidade,
perspectiva garantista –, os elementos comuns dessa atividade típica se as- notadamente na forma da negligência inconsciente, em que o agente atua
sentam nos pressupostos de que essa conduta, para ser tratada como conduta sem haver sequer pensado no resultado possível. Falhou, neste aspecto, o
humana, deve ser observada em seus aspectos de prática social, que indicam finalismo ao insistir na demonstração da finalidade nos delitos culposos e
suas particularidades como conduta humana em geral e fixam seus elementos omissivos, a ponto de inventar uma finalidade potencial ou um fim juridica-
e seu conteúdo. Quer dizer, as qualificações de uma conduta juridicamente mente irrelevante, ou pressupor esta finalidade, sem qualquer demonstração
relevante não se assentam apenas na norma. Se assim fosse, a norma que e passar a trabalhar com o tipo de injusto, como pretendeu WELZEL nas
definisse essa conduta não poderia ser questionada. Mas o cerne de toda últimas edições de sua obra. Na verdade, na negligência, não se contem-
essa indagação está situado, precisamente, na exigência de que o conceito de pla uma vontade dirigida no sentido do resultado proibido, derivando daí
conduta se mostre apto a também possibilitar uma crítica frente à norma. as dificuldades do sistema finalista e a oportunidade de seus críticos de o
Essa atividade, assim concebida, pode ou não estar vinculada a um fim acoimarem de incompatível com os delitos culposos.
socialmente útil e aprovado, juridicamente proibido e penalmente punido Se observarmos melhor, porém, o conteúdo da conduta negligente, sem
ou simplesmente irrelevante. Fundamental não será, aqui, o fim perseguido pressupor uma finalidade real ou potencial, ou a expectativa da realização do
pelo agente, mas o parâmetro de referência ao qual, conscientemente, se deva tipo de injusto, chegamos à conclusão de que também nela subsiste uma con-
ligar e pelo qual possa orientar sua atividade, de modo a pretender que essa duta volitiva. Neste caso, a volição não está ligada ao resultado juridicamente
atividade seja tomada como válida pelos seus interlocutores e possa, assim, proibido. A volição é a expressão de ser da própria atividade, conforme sua
se constituir de elemento primeiro da crítica à norma. orientação em face dos parâmetros de referência, que, como já se disse – e
Mesmo na realização de uma conduta contrária às expectativas do inter- convém repetir –, são multifacéticos, englobando, ao mesmo tempo, deter-
locutor, a pretensão do agente é de que esse interlocutor aceite, de qualquer minado objetivo empírico e uma regra de conduta. Pode, portanto, exaurir-se
modo, sua conduta como válida, ou através de persuasão ou por outro meio, na própria projeção exterior da atividade.
inclusive pela força, como normalmente ocorre nas atividades proibidas.
7. AÇÃO E CULPA INCONSCIENTE
Nesse particular, parece equivocada a pretensão da teoria do agir comu-
nicativo, principalmente aquela proposta por HABERMAS, de sedimentar o A questão da culpa inconsciente, por sua vez, não interfere no conceito
conceito de ação exclusivamente no discurso, com vistas a um consenso, sem de ação. Mesmo na culpa inconsciente, é perfeitamente possível reconhe-
levar em conta que o processo de comunicação não se resume a esse discurso cer-se uma atividade volitiva, pois o que é nela inconsciente é a relação entre
e deve pressupor, inclusive, o próprio dissenso. A comunicação envolve não o agente e os limites do risco autorizado. Antes dessa avaliação, que se faz,
apenas um ato de persuasão, mas qualquer forma de manifestação da vontade. porém, em uma segunda fase, também no âmbito do tipo, a atividade é,
O ponto nodal do processo de comunicação reside na orientação do agente de qualquer modo, consciente em relação à existência dos riscos que pesam
em função de parâmetros (objetos) de referência, de modo a fazer com que sobre essa atividade, ainda que o agente não os reconheça no caso concreto.
sua pretensão venha a ser tomada como válida, ou pelo consenso, ou como Quem dirige em excesso de velocidade, mesmo que não preste atenção
expressão do dissenso. Ao chegarmos a esse ponto da atividade humana, no velocímetro, sabe, naquele momento, que há uma regra ou norma que
socialmente orientada, podemos discutir sua compatibilidade com todas as disciplina aquela forma de dirigir e que serve de parâmetro de referência a
260 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 261

qualquer motorista, como sabe que todos os carros devem seguir na faixa jurídica a condiciona como prática social e possibilita sua existência. É
da direita. É, pois, consciente quanto à existência de um objeto de refe- justamente dessa relação que nasce o conteúdo da omissão em face da
rência para aquela respectiva atividade, que o afeta e também os demais. atividade socialmente esperada, fazendo-se dessa atividade esperada seu
Há uma série enorme de argumentos acerca da culpa inconsciente, que são objeto de referência no processo de comunicação.
relevantes para diminuir sua extensão ou até para descaracterizá-la. Esses O erro dos opositores e dos adeptos do finalismo está em não atenta-
argumentos, porém, não interferem na assertiva de conceber-se a conduta rem para o fato de que, antes de se afirmar a característica final da conduta,
como atividade consciente e volitiva. Quanto ao problema específico da se deve ressaltar sua vinculação com a realidade como prática social. A con-
culpa inconsciente, será tratado mais adiante. duta não é entidade abstrata, mas o resultado de uma redução conceitual
8. AÇÃO E OMISSÃO dos componentes concretos da atividade humano-social. A esta conclusão,
procurou chegar, entre nós, ainda em sua fase neokantiana, HELENO
Por seu turno, a conduta omissiva, embora adquira relevância em FRAGOSO, ao afirmar que por ação se deve entender o “comportamento
função de um dever de agir ou de impedir o resultado típico, também é social referido à vontade”.599
uma forma de conduta volitiva, pois tem como pressupostos parâmetros de
referência, expressos em uma norma mandamental e em uma atividade que 9. CARACTERÍSTICAS DA VONTADE
o sujeito poderia realizar. Outro aspecto de destacada importância na determinação do conceito
Essa norma mandamental e a atividade que poderia realizar são a forma de ação diz respeito às características, dimensão e configuração da vontade
pela qual o agente mantém contato com o meio. FRANCISCO MUÑOZ como elemento imbricado, indissoluvelmente, na atividade humana juri-
CONDE quer ver, nesta atividade possível, o conteúdo ontológico da omis- dicamente relevante.
são, que serve juntamente com os dados normativos mandamentais para O grande drama e as inúmeras discussões das teorias sobre a ação se
caracterizar essa conduta como uma ação significativa.597 Essa conceituação assentam em duas questões: a) se nela se deve ou não investigar o conteúdo
significativa de conduta, que é também seguida na Espanha por VIVES da vontade; b) se será possível afirmar-se a vontade em todos os atos hu-
ANTÓN,598 parece correta, mas para manter-se esse entendimento não há manos. A última questão já está praticamente respondida em parte, diante
necessidade, porém, de se invocar qualquer fundamento ontológico. O con- da assertiva de que todas as condutas humanas são volitivas. A primeira
ceito significativo de ação pode ser tomado dentro dos pressupostos do tipo. questão, todavia, ainda perdura diante daqueles que, vendo a ação humana
A atividade possível ou, como querem alguns, a ação esperada consti- exclusivamente pelo seu lado externo-causal, se satisfazem para afirmar
tui ponto de referência do processo de comunicação e, assim, deve integrar a existência de uma ação com a conclusão de que a atividade não tenha
juntamente com a norma mandamental o conceito de conduta no sentido sofrido coação absoluta no momento de sua manifestação, isto é, quando
de prática social. Ainda que a norma mandamental decorra do sistema da alteração do mundo exterior.
jurídico, tal fato não desnatura o conceito de ação, como um conceito que O conceito de vontade, para a concepção aqui defendida, não deriva de
se desenvolve a partir dos pressupostos de comunicação. Isto demonstra ato isolado da psique do indivíduo, nem tampouco de reações reflexológicas.
que este conceito, conforme as características da prática social, não é um De vez que se reconheça na atividade humana, pelo menos, a existência de
conceito isolado, mas um conceito produzido na unidade dialética dos dois componentes básicos, a sociabilidade como prática social e a vontade,
contrários. Ao mesmo tempo em que a atividade se converte em manifes- claro está que esta vontade só pode ser conceituada a partir da relação entre
tação do sujeito, em oposição à sua configuração jurídica, esta regulação o impulso socioindividual e as regras e os objetos referenciais pelos quais ela
se orienta no processo de comunicação.
597. MUÑOZ CONDE-GARCIA ARÁN. Nota 8, p. 270.
598. ANTÓN, Vives. Fundamentos del sistema penal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p. 205. 599. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 243, p. 172.
262 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 263

Por outra parte, conforme se fixe a atividade em função de seus pa- sem correspondência externa, não haveria necessidade de sua relação com
râmetros de referência, a determinação da vontade e sua conceituação não o processo causal. Este último posicionamento, que contemplava a vontade
podem ser excluídas da relação com a utilização dos fatores causais, quando como simples ato psíquico interno, traduz uma velha fórmula espiritualista
naqueles parâmetros se inserir o objetivo perseguido pelo agente. Um ato do conceito de vontade, devido à filosofia idealista, hoje totalmente superada.
só é querido quando a vontade se completa na manifestação da causalidade Por outro lado, não pode mais subsistir uma concepção puramente empíri-
sobre a realização do objeto pretendido ou acolhido nos inúmeros e intermi- ca de ato volitivo, que corresponde principalmente à teoria psicológica de
náveis interesses e necessidades que cercam a vida humano-social. Há de se WUNDT.602 Uma vez que se compreenda a atividade humana como uma
distinguir, também, entre ato querido e ato desejado. Ato querido é ato de atividade de prática social e comunicativa, caem por terra tanto os postulados
vontade, e ato de vontade só pode existir na medida em que se conjugue com puramente idealistas quanto puramente empíricos.
a dirigibilidade do processo causal. Já o ato do desejo é matéria da cogitação GILBERT RYLE é crítico em face do conceito de vontade, porque lhe
interna do homem. Por exemplo, alguém pode desejar dirigir um automóvel, parece estranho sua subsistência fora da execução da ação. A vontade estaria,
mas só terá vontade de fazê-lo quando, efetivamente, puser em marcha os portanto, de tal forma imiscuída na ação que implicaria sua própria inexis-
instrumentos causais que irão satisfazer aquele desejo que se projeta, pois, tência como elemento singular.603 Essa crítica, porém, é insubsistente, porque
como vontade já na medida em que se empreendam estes atos ou, caso isso parte de um conceito mecânico de vontade, que se traduz no que o direito
não se faça imediatamente, quando se fará em tempo próprio, ou se faria caso sempre tratou como simples voluntariedade. No âmbito do direito, pode-se
fossem empreendidos.600 Analisando justamente esta relação entre ato voli- dizer que a vontade só pode ser caracterizada, no sentido de um fato delituo-
tivo e manifestação causal, pondera HARRY FRANKFURT que o conceito so, se for tomada como uma ação direcionada em função de um objeto de
de vontade não pode ser confundido com o simples propósito de realizar referência, ou seja, em função da lesão ou do perigo de lesão ao bem jurídico.
alguma coisa, pois pode acontecer que esse propósito seja alterado e nada A chamada manifestação externa da vontade não é, portanto, o resultado de
produza. Portanto, haverá vontade apenas quando o sujeito efetivamente uma atuação mental, mas sua forma terminativa.604 Deste modo, é impossível
executa aquilo a que se propôs, ou quando, embora não o faça, assim mesmo reconhecer, neste processo, duas instâncias distintas, uma da espiritualidade
o executaria caso atuasse ou de qualquer modo o executará, quando agir.601 e outra da causalidade. Isto, evidentemente, não implica reduzir toda a vida
Justamente porque a atividade humana constitui conduta sociorracional espiritual à mera causalidade. A vida espiritual, como atividade psíquica
é que se chega, quando se trata de ato volitivo, à produção da dirigibilida- da pessoa, existe, é um dado real e sensível, mas a vontade, compreendida
de dos fatores causais e, inclusive, dos próprios objetivos ou objetos. Se a como um fenômeno, não pode ser apreendida senão quando se manifesta na
conduta humana fosse tão-somente o resultado de reflexos condicionados, condução de uma atividade material. Justamente a direção da causalidade,
inexistiria vontade, porque tudo se resumiria na fórmula do estímulo-res- portanto, a atividade material, ao contrário do que se pensa, comprova a
posta. Se a conduta fosse unicamente uma indagação de ordem subjetiva, existência da vontade, sem qual nada poderia ser produzido. O ser humano,
600. Também faz uma distinção entre desejo e volição, LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova
quando realiza uma atividade, não o faz mecanicamente, mas sim segundo
legislação penal, p. 86, para quem o desejo constituiria a primeira etapa do ato volitivo, o qual se com- uma prévia orientação, ainda que tomada em frações indivisíveis de tempo.
poria, ainda, de uma etapa deliberativa e de, por fim, uma etapa executiva. No campo da filosofia, há
uma grande especulação, desde DESCARTES até nossos dias, sobre a relação entre os mundos material
e espiritual, dividindo-se as teorias entre as que, por um lado, dão prioridade à vida mental (como DES- Por seu turno, a sociabilidade do ser humano induz a que todos os im-
CARTES, com seu princípio do cogito ergo sum), e, de outro, as que asseveram a sua redução ao plano pulsos ou desejos se manifestem de acordo com determinado sentido e se
da causalidade (como Kim com o princípio da reversibilidade). Há ainda uma posição intermediária,
defendida por KARL POPPER, com base no princípio dos três mundos, que muito se aproxima daquela concretizem em certos objetivos sociais, através de processo consciente. Se
referenciada por LUIZ LUISI, embora sob outras perspectivas. POPPER quer fazer valer, de conformi-
dade com sua teoria, a função do mundo dos dados internos (o segundo mundo) como um instrumento
de ligação entre o mundo das ideias (o terceiro mundo) e o mundo da causalidade (o primeiro mundo), 602. WUNDT, Wilhelm. Grundzüge der physiologischen Psychologie, Leipzig, 1874, especialmente o ca-
de modo a possibilitar uma condução da vontade sobre um processo executivo (POPPER, Karl. Objek- pítulo 4º, no qual introduz a formulação de que a vontade se revela como um acontecimento psíquico
tive Erkenntnis, Hamburg: Hoffmann und Campe, 1973, p. 175). autônomo, ao lado da consciência e do sentimento.
601. FRANKFURT, Harry. “Willensfreiheit und der Begriff der Person”, Analytische Philosophie des Geis- 603. RYLE, Gilbert. The concept of mind, Chicago: University of Chicago Press, 1984, p. 62 et seq.
tes (Org. Peter Bieri), Beltz: Weinheim, 1981, p. 290. 604. MCCANN, H. “Volition and basic action”, in Philosophical Review, N. York: Cornnel, 1974, nº 83.
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isto acontece, dizemos que a atividade humana é consciente e volitiva. Assim, dolosamente significa querer realizar determinado tipo legal, obtendo, alcan-
se, por um lado, a vida social estimula o alcance de certos objetivos, criando, çando os objetivos visados ou, pelo menos, pretendendo alcançá-los, com
portanto, os impulsos, por outro, esta mesma vida produz os objetos materiais vistas à lesão ou ao perigo de lesão do bem jurídico.
que concretizam ou possibilitam a concretização desses impulsos, de modo A confusão que se fez na crítica ao finalismo, de identificar vontade e
que se os interesses sociais servem de motivos do agir (impulsos para o ato), ao finalidade e concluir que os delitos dolosos se compunham fora do tipo, o
mesmo tempo constituem a finalidade ou a referência do agir (objeto do ato). que tornaria essa teoria incompatível com os delitos culposos, pode ser aqui,
Somente a compreensão recíproca entre o objetivo, como referência, e perfeitamente, superada. A vontade não integra a ação como elemento ôntico,
o impulso permite, sob prisma global da sociabilidade da conduta, a formu- contrariamente, portanto, ao que postulavam os finalistas. A vontade só integra
lação de um conceito de vontade metodologicamente superior às criações a ação na medida em que esta se manifesta como uma atividade comunicativa.
da psicanálise e às do condutivismo reflexológico. Para o jurista, com maior Se os tipos de delito, dolosos ou culposos, estão assentados em uma
razão, esta análise da vontade torna-se mais prática e mais eficiente, pois não atividade, pois do contrário não poderiam ser delitos – não há delito sem
requer indagações de ordem psíquica. Por outra parte, nos termos assinalados ação –, devem subordinar-se aos pressupostos mínimos dessa atividade. Uma
por PETER ZIMA, a edificação da vontade sobre a base concreta de execução vez superada a questão da causalidade e do simples normativismo, para edi-
de uma tarefa permite a construção do conceito do próprio sujeito, como su- ficar-se a ação como processo de comunicação, é imprescindível que seja
jeito atuante, no sentido de fixar, no processo de comunicação, como objetos nela inserida a vontade como seu elemento configurador. Sem vontade, não
de referência, os demais indivíduos e com eles interagirem de conformidade há comunicação e, sem comunicação, não há ação. O problema relativo à
com as normas sociais de convivência.605 distinção entre as atividades dolosas e culposas não pode ser visto, assim,
Equacionado dessa forma o problema do conceito de vontade, sob o prisma exclusivo da existência ou inexistência de vontade, mas sim em
torna-se consequente que esta vontade só se caracteriza como tal, se função dos parâmetros (objetos) de referência, que a orientam. Os delitos
observada, inclusive, no seu conteúdo. A investigação sobre o conteúdo culposos, portanto, decorrem de uma mesma base dos delitos dolosos, qual
da vontade, porém, não implica o reconhecimento da imputabilidade ou seja, a realização de uma ação dotada de vontade, mas dele se diferenciam,
da inimputabilidade, nem por isso mesmo a emissão de juízo de valor porque esta base está orientada por parâmetros de referência diversos.
acerca do “poder” do agente. Mesmo um inimputável pode agir, possui Por seu turno, tendo em vista a característica de que a negligência está
vontade, pois pode propor-se objetivos, escolher e dirigir os meios causais substancialmente centrada na violação do risco autorizado, sua investigação
para alcançá-los, e manifestar-se de conformidade com regras, pelas quais só se torna viável a partir do momento de se proceder à diferenciação e res-
dirige sua atividade como ação comunicativa.606 pectiva valoração de parâmetros de referência, na fase específica subsequente,
Por outra parte, ao dizer-se que na ação se investiga o conteúdo da portanto, na fase de sua complementação típica. Isto não implica que, para os
vontade, não importa reconhecer um fato como doloso ou culposo. Isto delitos dolosos ou para os delitos culposos, se torne necessário um conceito
constituiria, como já afirmado, tarefa que se desenvolve em outras fases da pré-jurídico de ação, que os unifique. A unificação dessas duas espécies de
análise do tipo de injusto, pois o dolo, por exemplo, não se identifica com delito se pode dar dentro da análise dos pressupostos dos próprios tipos. Sua
a vontade, nem está isento de valorações jurídico-legais. Agir volitivamen- diferenciação entre delitos dolosos e culposos se processa, então, na análise
te, em sentido genérico, não corresponde à realidade do atuar doloso; agir subsequente de seus parâmetros de referência, que fazem encaminhar a con-
clusão para um ou outro dos tipos específicos, em função das limitações que
605. ZIMA, Peter. Theorie des Subjekts, Tübingen und Basel: UTB, 2000, p. 9 et seq.
606. Sobre a capacidade de agir do inimputável, MAURACH, Reinhart, “O conceito finalista de ação e seus
devem ser impostas pelas respectivas normas.
efeitos sobre a teoria da estrutura do delito”, in Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal,
1966, nº 14, p. 32. É importante salientar, todavia, que mesmo se admitindo que o inimputável atue Ademais, examinar o conteúdo da vontade significa tomá-la como fe-
volitivamente, este juízo é relativo, pois se efetivamente se demonstrar sua total falta de consciência não
há que se falar de ação. nômeno material e não apenas simbólico. Evidentemente, na determinação
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da conduta como ação, importante é apenas salientar que aqui não se trata de em face das objeções de JAKOBS,607 mas, agora, em atenção àquelas levan-
mera voluntariedade, termo por demais ambíguo e incerto, mas de vontade, tadas especificamente por ROXIN,608 SCHEWE609 e outros, de que há ações
derivada como elemento de relação da execução causal dos propósitos do sem vontade, cuja conclusão já havia sido aduzida por HELENO FRAGO-
agente, dirigida à consecução material de seus objetivos e orientada conforme SO, com base em BERTRAND RUSSEL,610 por se tratar, na maioria dos
os parâmetros de referência em um processo de comunicação. casos, de condutas automatizadas, cabe redarguir que nem sempre as condu-
Como toda conduta humana é, por sua própria origem social, condu- tas automatizadas indicam, tout court, a existência de atividade involuntária.
ta volitiva, não haverá ação, como já se disse, quando o sujeito não puder Em oposição a essa tese, a psicologia, por exemplo, tem afirmado o
orientá-la segundo um parâmetro de referência, tal como na coação física conteúdo volitivo do ato automático. LEWIN salienta que, nesse caso,
absoluta (vis absoluta), nos movimentos reflexos ou estados de inconsciência, como a direção dos meios causais é por demais conhecida e já está incor-
em suma, quando não se efetive verdadeiramente uma atividade consciente. porada na memória do indivíduo, passa ela despercebida a um observador
Diversamente, porém, da sistematização da doutrina dominante, as hipóteses comum, embora o início desses atos tenha sido consciente e voluntário. O
de ausência de ação não podem ser deslocadas de sua avaliação típica, uma vez mesmo se dá com o fim de agir, que condiciona volitivamente esse auto-
que os parâmetros de referência não são constituídos apenas de dados empí- matismo.611 Assim, se desejo ir à cidade com meu automóvel, não preciso
ricos, mas também de normas, como, por exemplo, da norma que delimita aprender todo o trajeto novamente nem manipular os meios causais como
penalmente o risco autorizado. Nesse sentido, poder-se-á dizer que o que se fosse a primeira vez que dirigisse um veículo e naquelas condições. Os
está em jogo nas hipóteses de ausência de ação é um pressuposto de análise atos de direção e de orientação, de escolha do trajeto, da atenção à sinali-
da própria conduta típica, em função dos parâmetros de referência por ela zação e às placas e às normas de cuidado se desenvolvem automaticamente,
admitidos. Assim, a exclusão da ação, nesses casos, não constitui a conclusão mas todos estão condicionados à atividade de dirigir para, conforme o
amparada sobre um dado puramente naturalístico, como se costuma dizer, exemplo, chegar à cidade. Aqui, há evidentemente vontade, mesmo que
mas uma conclusão decorrente da impossibilidade de se estabelecer um pro- o trajeto seja interrompido ou que o automatismo da atividade causal
cesso de comunicação. Haverá ausência de ação toda vez que o agente não conduza à concretização de outros objetivos diferentes, como é corrente
puder complementar seu processo de comunicação, seja porque não atua acontecer, por exemplo, nas hipóteses de culpa inconsciente.612
consciente ou volitivamente, seja porque sua submissão a uma coação exter-
na descaracteriza sua pretensão de validade, ou porque o sujeito se situe em 10. AÇÃO E ESQUECIMENTO
contextos completamente diversos daqueles aos quais a norma é aplicável. Da mesma forma, podemos dizer que nos atos de esquecimento, que
Será sempre conveniente ressaltar que a contemplação da vontade como são importantes nos casos de omissão de atividade devida (por exemplo,
elemento da atividade humana, integrante de conceito geral e abrangente, quando o guarda-freios esquece de acionar os binários na hora marcada, ou
não importa ainda no estudo e na afirmação da liberdade de opção ou de o controlador de voo deixa de comunicar a uma das aeronaves a existência
autodeterminação, pois tal tarefa exige a complementação de juízos de valor
607. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 145.
acerca do poder individual do agente que escapam ao âmbito de um conceito 608. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 212.
básico em função das garantias inseridas no tipo de injusto. Uma tarefa é a 609. SCHEWE, Günter. Reflexbewegung, Handlung, Vorsatz: strafrechtsdogmatische Aspekte des Willens-
problems aus medizinisch-psychologischer Sicht, Lübeck: Schmidt-Römhild, 1972.
de visualizar a conduta como elemento comum a todas as atividades típicas, 610. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 243, p. 173; RUSSELL, Bertrand. Religión y ciencia, 1956, p. 114.
outra a de afirmar a sua validade em face de pressupostos de sua motivação. 611. LEWIN, Kurt. Vorsatz, Wille und Bedüfnis. Mit Vorbemerkungen über die psychischen Kräfte und Ener-
gien und die Struktur der Seele, Berlin: Springer, 1926. Sobre uma explicação mais detalhada acerca
O que aqui se pretende com o conceito de conduta é estabelecer uma etapa disso e das propostas de KURT LEWIN, ver KOPFKA, Franz, Princípios de psicologia da Gestalt,
1975, p. 427 et seq. Sobre a atividade voluntária e comportamentos apreendidos, ver LE NY, Gustav.
indispensável a ser seguida no processo de imputação. Condicionamento e aprendizagem, 1975, p. 187, o qual salienta o papel dos reforços na aquisição de
conhecimentos e formas instrumentais de conduta, mas não deixando de considerar que esses atos auto-
Voltando às questões dos atos automatizados, já discutidos mais atrás matizados também se incluem em uma atividade global voluntária.
612. Também com esta conclusão, LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 89.
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de outra na mesma direção), ao contrário do que se supunha, não se trata vivo na lembrança do agente. Para manter tal fato em condições de vivaci-
de mera falha de memória, mas de uma questão vinculada ao complexo da dade, será necessário estabelecer uma contínua e permanente comunicação
atividade volitiva. entre esse e outros acontecimentos gravados em novos sistemas de traços, de
Nesse sentido, a psicologia salienta que o esquecimento se pode ve- modo a ampliar e estabilizar o sistema preferido. Esta comunicação constante
rificar por dois processos: a) ou como apagamento dos traços da memória entre os dados estabiliza e impede a estratificação dos sistemas de traços de
pelo decurso do tempo (o chamado esquecimento irreversível); b) ou por memória em prejuízo do processo total, deixando sempre à mostra o fato a
simples ato falho, resultante de processo seletivo de atividades volitivas em ser recordado. Assim, afigura-se conclusiva a afirmação de BARTLETT, subs-
tensão. No primeiro processo, não há atividade consciente e, assim, não há crita por KOFFKA, de que os traços e, consequentemente, todo o processo
ação. A conduta é mero desenrolar causal sem parâmetro de referência e, de recordação e esquecimento são determinados e “levados pelo interesse”.614
portanto, imprestável como agir comunicativo. O segundo aspecto interes- Por meio da psicologia experimental, desde a Gestalt até a psicologia
sa particularmente ao enfoque da conduta, sendo reforçado especialmente cognitiva moderna, principalmente pela obra de LARRY SQUIRE, foi pos-
pelas investigações de BIRENBAUM, LAUENSTEIN, VON RESTORFF e sível constatar, inclusive, que todas as formas e modalidades de memorização
KOFFKA.613 Aqui, o processo se vê caracterizado dentro daquilo que se de- podem ser classificadas em dois grandes grupos: a memorização declarativa e
nomina de zona de tensão, na qual os traços de memória podem ser fixados de a memorização procedimental.615
forma coesa, podem ser substituídos por outros dados ou podem ser interco- A memorização declarativa diz respeito a três sequências de registros
municados, em uma relação constante entre eles mesmos e o sistema do ego. relativos, respectivamente, aos fatos do contexto pessoal do sujeito (quem é,
Mediante esses estudos, pode-se concluir que se o ato falho não está onde esteve em determinada data e o que fez em certo momento, etc.), aos
subordinado a uma conduta consciente como tal no momento de sua ocor- fatos objetivos de memória (que se referem a pessoas, locais, tempo, fórmulas,
rência, seu processo de elaboração depende, principalmente no tocante à dados, independentemente do contexto pessoal, como, por exemplo, 2 + 2 =
disponibilidade dos dados, do traço (ou dado) que se determinou como im- 4, Marte é um planeta, o Pão de Açúcar fica no Rio de Janeiro) e aos conhe-
portante ou juridicamente relevante (por exemplo, não esquecer de acionar cimentos particulares (dados que possibilitam um juízo sobre sua constituição
os binários na hora marcada, ou de comunicar oportunamente a existência ou confiança). Todos esses dados interagem mutuamente, de modo que os
de outra aeronave no mesmo espaço), bem como dos interesses da pessoa e de fatos pessoais estão vinculados aos fatos objetivos e estes, por sua vez, influen-
seu domínio naquele campo de tensão. O controlador de voo, por exemplo, ciam os conhecimentos particulares. Um sujeito não poderá recordar-se, às
está inserido num campo de tensão, porque lhe estão subordinados vários vezes, de fatos de sua vida pessoal sem se valer de dados e fatos conhecidos,
conhecimentos, lembranças, atenções e normas, que se encontram incorpora- e nem poderá formar um juízo sobre estes dados, sem levar em conta como
dos na sua memória e dos quais se deve valer em todos os momentos. Aqui se eles se deram e repetiram. Esta modalidade de registro de fatos apresenta
dá a mesma estrutura dos atos automatizados, nos quais a ação memorizada uma particularidade: é sempre consciente, mas a atuação volitiva inicial, às
corresponde em seu momento inicial a um ato volitivo e consciente. vezes, é mínima, salvo quando se trate de objetos de aprendizado. Por esta
O chamado campo de tensão, que é uma consequência da atividade particularidade, esta forma de memória é a mais suscetível de apagamento
consciente inicial, pode ou não fazer com que um acontecimento se ponha pelo decurso do tempo e só interessa ao âmbito da ação como pressuposto
em condições de ser recordado a qualquer momento e, assim, permaneça para a realização de outras atividades (por exemplo, a memória de dados é
imprescindível em alguns concursos públicos ou certames, ou para poder se
613. KOFFKA, Franz. Princípios de psicologia da Gestalt, p. 430. Tratando o problema do esquecimento
associado ao da atividade volitiva, também, na filosofia HUISMAN VERGEZ. “O conhecimento”, in 614. KOFFKA, Franz. Princípios da psicologia da Gestalt, p. 536. Também LUISI, Luiz. O tipo penal, a te-
Compêndio moderno de filosofia, 1978, vol. II, p. 36 et seq. Também compreendendo o esquecimento oria finalista e a nova legislação penal, p. 95, compreende o esquecimento da ação esperada nos delitos
em função do estado de organização das lembranças, JOLIVET, Regis. Tratado de filosofia, vol. II, p. omissivos como um ato volitivo.
278 et seq, assinalando ainda que o esquecimento se torna impossível nos casos em que a lembrança está 615. ROTH, Gerhard. Fühlen, Denken, Handlung, Frankfurt am Main, 2001, p. 151; Larry Squire, Memory
incorporada a estruturas solidamente articuladas e constantemente evocadas. and Brain, Oxford: Oxford University Press, 1987.
270 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 271

orientar no trânsito ou prescrever um medicamento). dos funcionalistas, porque não vincula o conceito de ação, exclusivamente, a
A memorização procedimental, por sua vez, se refere às habilidades, um sistema ou ao processo de imputação. Ainda que a indagação acerca dos
ao uso de especiais conhecimentos, à classificação de modelos de atuação, aos elementos que devam integrar a ação sob sua apreciação típica constitua uma
condicionamentos clássicos, aos conhecimentos aleatórios, às noções de direção etapa necessária no processo de imputação, não pode ser reduzido a servir
e a tudo o que disser respeito às condições de execução das atividades do de base ao modelo de conduta para o efeito de sua criminalização ou para
sujeito. Neste último aspecto, como os dados dizem respeito à vida de re- a garantia da estabilidade da norma. A discussão em torno dos elementos
lação do sujeito, inscrevem-se diretamente no âmbito da atividade volitiva materiais da ação, a partir de um enfoque comunicativo, é relevante como
e seu esquecimento pode ser avaliado segundo o interesse demonstrado no recurso metodológico para proporcionar uma delimitação normativa daquilo
seu registro e na sua atualização. que se poderia atribuir ao sujeito, de modo a fazer com que sua descrição
como ação típica deva ser submetida, constantemente, a um procedimento de
Assim configurados os fatos da memória, pode ocorrer que os atos de prova de sua legitimidade. Por outro lado, esses elementos, ainda que sejam
esquecimento importem uma forma particular de ausência de ação, quando apreciados sob o enfoque de uma prática social, portanto, como expressão
não for possível a interação entre interesse e memória. Isto se dá, normalmen- do sujeito em uma comunidade comunicativa, só valem na medida em que
te, na presença de certas enfermidades (por exemplo, na doença de Parkinson, possam servir, normativamente, como fatores limitativos da incriminação.
em acidentes vasculares ou alterações psíquicas), quando o sujeito, sem o Isto significa que todos os elementos comunicativos, que caracterizam a ação
saber, está impossibilitado de atualizar sua memória procedimental, embora como prática social e, portanto, a vinculam a um sujeito, não têm, por si
não tenha perdido sua memória declarativa.616 O mesmo não se dá, em con- mesmos, o menor significado, senão como elementos inseridos no processo
trapartida, em alguns casos de amnésia, em que o sujeito perde sua memória normativo de sua avaliação como redutores da incriminação, quer dizer,
declarativa (não sabe quem é, onde está, qual sua profissão, etc.), mas conser- como objetos aptos a fundamentarem uma dogmática crítica do delito.
va sua memória procedimental (sabe conduzir automóvel, conhece as regras
do trânsito, etc.). Neste último caso, haverá ação, mas poderá ser excluída a Atendendo a esses objetivos, que são, na verdade, consequência de uma
culpabilidade, porque o agente seria inimputável, ou porque o fato não lhe ordem jurídica democrática, o conceito de conduta só pode ser enunciado a
seria evitável ou porque esse desconhecia o dever de atuar cuidadosamente partir de seus pressupostos dogmáticos. De acordo com isso, pode-se dizer
(o controlador de voo, por exemplo, ainda que tenha mantido as habilidades que o conceito de ação é um conceito jurídico, porque não pode estar des-
pessoais, deixa de exercer o controle de aeronaves, porque em virtude da vinculado da norma criminalizadora. Assim, em função do que deva resultar
amnésia desconhece que está a isto obrigado). dessa associação entre tipo e atividade comunicativa, poderíamos, em sentido
lato, enunciar que conduta volitiva, orientada por parâmetros ou objetos de
11. CONCLUSÃO SOBRE O CONCEITO DE AÇÃO referência, expressos no injusto e subordinados a um discurso jurídico válido, no
Finalmente, deve-se dizer que a posição aqui assumida no que toca ao âmbito da prática social do sujeito.
conceito de ação não se identifica com a concepção mantida por WELZEL Desta conceituação se infere, por conseguinte, como já foi dito, que
e demais finalistas, nem com a teoria social de ação de JESCHECK e WES- toda ação é atividade volitiva e, assim, consciente. A menção à prática hu-
SELS, nem com os funcionalistas. Ao contrário dos finalistas e partidários da mano-social significa que a atividade do homem deve ser entendida como
teoria social da ação, aqui não se admite um conceito pré-jurídico de ação, manifestação de sua sociabilidade, influente sobre os demais homens e vin-
vinculante para o direito, por considerar insustentável associá-lo a um dado culada às normas de convivência, como forma de união entre indivíduo e
ôntico e, também, por considerar desnecessária a indagação acerca de sua meio, que se estrutura em um processo contínuo de comunicação.
relevância social no âmbito da conduta. Por sua vez, também se diferencia A ligação entre a conduta e as normas de convivência não induz à con-
clusão de que se trate de um conceito puramente normativo de ação, mas,
616. ROTH, Gerhard. Fühlen, Denken, Handeln, 2001, p. 165.
272 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 273

exclusivamente, de um conceito de relação, pois o homem não pode se subtrair uma conduta de conformidade com a norma e uma conduta antinormativa.
às regras da estrutura social no sentido de uma dessocialização, mas pode, A conduta antinormativa, portanto, será aquela que implica um contraste
através de sua própria atividade, impulsionada por outras regras, modificá-las entre a vontade singular e a vontade universal, justamente quando o sujeito
e transformá-las. Esta relativa independência do homem é que possibilita que a realiza com pretensão de validade. Isto quer dizer que o sujeito, ao realizar
se pronunciem sobre ele juízos de valor afirmativos ou negativos. uma conduta contrária à norma, pretende impor sua vontade singular sobre
A menção à volição da conduta e sua sociabilidade ficaria sem efeito, a vontade universal. Sem que o sujeito tenha a capacidade de efetivamente
se não se pudesse estabelecer um elemento concreto para sua afirmação. violar a orientação normativa, embora a ela subordinado, valendo-se do
Dizer-se, pois, que a ação se materializa como expressão da prática huma- sentido de imposição de sua conduta como válida em face dos demais, não
no-social significa ainda que a vontade só se torna objetivável e, portanto, poderá haver ação penalmente relevante.
empiricamente apreensível, a partir do momento em que se estabelece II. A IMPUTABILIDADE
como relação entre o motivo do agir e o objeto do agir, especificamente,
como fator determinante e condicionante da escolha, emprego e manipula- À medida que se atribua ao sujeito uma conduta contrária à ordem
ção dos meios causais disponíveis à integração dessa ação à atividade global jurídica, está claro que essa atribuição pressupõe que esse sujeito se situe no
do sujeito. Por outro lado, ao assinalar que a sociabilidade da conduta se âmbito de contexto dessa ordem jurídica. Uma vez que o sujeito não per-
materializa tipicamente, o que se faz é excluir uma concepção pré-jurídica tença a esse contexto, em razão de vinculações culturais a outros contextos
de conduta, que, desde longa data, tem suscitado inúmeros e controver- normativos ou de transtornos mentais que o incapacitem de proceder a uma
tidos problemas e, ao mesmo tempo, vincular a proibição aos dados do análise crítica de sua conduta em face dos demais e da ordem jurídica e da
conflito social que se desencadeia com sua violação. conduta dos demais diante de si e da ordem jurídica, não poderá praticar uma
ação penalmente relevante. Se o sujeito não pode fazer uma autocrítica de sua
O conceito de conduta aqui formulado considera o homem como conduta e da conduta dos demais, nessas condições, não poderá igualmente
ser integral, fazendo daí derivar a análise de seu comportamento como atender às normas de cuidado que pesem sobre sua atividade. Nesse ponto,
consequência necessária dessa sua característica de estar inserido em uma portanto, a questão da imputabilidade deve ter sua análise antecipada para o
determinada formação social e de ser sujeito de um processo de comunica- momento da configuração da própria conduta. Constatada a inimputabilida-
ção e, portanto, a um contexto que constitui sua prática social. Com isso se de, estará negada a própria ação. A negativa da imputabilidade pode abranger
pressupõe ao conceito de ação uma noção própria do sujeito. Em qualquer também casos em que o sujeito tenha perdido completamente sua memória,
das teorias da ação, há uma noção prévia de sujeito. Para a concepção aqui o que lhe tornará incapaz de atender às normas de cuidado. Cabe ressaltar,
desenvolvida, o sujeito é quem se encontra capaz de orientar socialmente contudo, que uma simples perturbação da atividade consciente ou volitiva,
sua conduta em função dos parâmetros de referência propostos dentro sem se caracterizar como perda completa da capacidade de autocrítica e auto-
de um contexto prático, portanto, como pressuposto de uma delimitação determinação, não altera relação do sujeito para com a norma. Tratar-se-á de
do processo de imputação típica. Esse processo, por seu turno, tem como caso relativo à capacidade relativa de culpabilidade ou semi-imputabilidade,
condição essencial que o sujeito, uma vez orientado pela norma, seja capaz que não implica uma ausência de ação.
de proceder a uma autocrítica de sua conduta, de acordo com os dados
normativos aos quais esteja vinculado, e também proceder, do mesmo A diferença entre as hipóteses de ausência de consciência ou vontade e
modo, a uma crítica da conduta dos demais. Pode-se até dizer que a vontade de perturbação da atividade consciente ou volitiva já fora objeto de discussão
singular se ajusta à vontade universal, à medida que o sujeito possa avaliar pela ciência penal desde o século XIX, por influência da filosofia hegeliana,
seu procedimento diante da norma e tomá-lo com a pretensão de validade. no sentido de que a imputabilidade constitui pressuposto da própria ação, de
Justamente nesse ponto é que se encontra presente a diferenciação entre modo que os inimputáveis estariam fora do direito penal criminal, ficando
sujeitos a normas especiais.
274 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 275

Essa tese tem precedentes em MERKEL617 e está associada ainda a a terminologia do código deve ser atualizada no sentido de afirmar que o
BINDING618, com repercussões no estrangeiro e no Brasil619. O funda- elemento anímico da imputabilidade está constituído por distúrbio mental,
mento inicial dessa tese deriva do conceito de vontade, que é tomado no que pode congregar as psicoses e todas suas formas e também os casos de
sentido de um querer interno, fruto do idealismo, ou da compreensão da retardamento ou insuficiência mental.
ação como objeto de um sujeito relacionado a juízos de valor. A vinculação O conceito de imputabilidade, está claro, é formulado de um modo
de uma vontade singular a uma vontade universal, que fundamenta a iden- geral para os fatos dolosos. Nada impede, porém, que se pretenda uma for-
tidade da atuação do sujeito com a ordem jurídica e, portanto, confere à mulação específica para os delitos culposos. Isto resultaria da interpretação
ação humana a possibilidade de associar-se a valores sociais concretos, não do próprio art. 26 do Código Penal. Na capitalização do conceito de inim-
desnatura sua conceituação estratégica e comunicativa. A ação não pode putabilidade ou imputabilidade para os delitos culposos, serão diversas as
estar divorciada de como o sujeito de situa na ordem jurídica, o que con- consequências e os resultados, conforme se tomem posições dentro do tipo
diciona também o próprio conceito de vontade, não como mero impulso, de injusto. Para os partidários da teoria causal, a imputabilidade é concebida
mas sim como fator dirigente da própria atividade. Um sujeito, como o genericamente, tanto para os fatos dolosos como para os culposos, já que ela
inimputável ou o indígena em estado natural, completamente desvinculado se antecipa à investigação do dolo e da negligência. Igualmente para aqueles,
do contexto da ordem jurídica, não pode dirigir sua vontade de conformi- como STRATENWERTH, por exemplo, que tratam a questão da capaci-
dade com a orientação da norma criminalizadora. dade de entender o cuidado necessário já no âmbito do tipo de injusto, a
Normalmente, entende-se por imputabilidade a capacidade geral, mas imputabilidade assume os mesmos contornos do crime doloso, passando-se
com base em elementos concreto-pessoais (biopsicológicos), de entender a ser compreendida como a capacidade geral de entender o ilícito do fato e
o caráter criminoso do fato e determinar-se de acordo com esse entendi- determinar-se de acordo com isso. Se, porém, o tipo de injusto apenas traba-
mento. O Código Penal brasileiro, como todos os demais códigos, não lha com critérios objetivos, está claro que a consequência mais lógica será a
contempla uma definição de imputabilidade, apenas de inimputabilidade, particularização da culpabilidade em geral e da imputabilidade em especial.
conforme critério biopsicológico normativo. Inimputáveis são todas as pes- Assim, partindo de uma posição de JESCHECK, podemos conceituar
soas, acometidas de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto a imputabilidade nos delitos culposos como a capacidade de entender o
ou retardado, que não possuam a plena capacidade de entender o caráter caráter criminoso do fato contrário ao dever de cuidado e de suas conse-
criminoso do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento (art. quências previsíveis e evitáveis, bem como determinar-se de acordo com
26). Desse conceito de inimputabilidade deduz-se, ao inverso, um conceito esse entendimento, com base em condições de sanidade e maturidade men-
de imputabilidade. De conformidade com a nova classificação das enfer- tal.620 Portanto, nos fatos culposos, o agente não será avaliado segundo uma
midades mentais efetuada pela Organização Internacional de Saúde, todas capacidade de entendimento da ilicitude de qualquer resultado, mas pela
as referências a doença mental ou desenvolvimento mental incompleto capacidade de entendimento acerca fato da lesão do dever de cuidado, bem
ou retardado estão compreendidas como “distúrbios mentais”. Portanto, como de suas consequências evitáveis e previsíveis. A imputabilidade contém,
portanto, duas colunas mestras: a capacidade pessoal do agente, elevada sobre
617. MERKEL, Adolf. Lehrbuch des deutschen Strafrechts, Stuttgart: Ferdinand Enke, 1889, p. 51: “So-
mente tal indivíduo pode ser sujeito de um delito, de cuja vontade resultam acontecimentos penalmente uma base biopsicológica, mas relacionada ao fato injusto.
relevantes, que, ao caracterizá-lo, lhe podem ser em consequência atribuídos”.
618. BINDING, Karl. Die Normen und ihre Übertretung,vol. II, p. 170 Da mesma forma que a própria culpabilidade, é a imputabilidade ba-
619. Por exemplo, com esta ideia, MAYER, Max Ernst. Strafrecht, AT, p. 107. No Brasil, adota-a, também, seada no fato e não em condições da vida ou em aspectos puramente abstratos
REALE JÚNIOR, Miguel. Antijuridicidade concreta, 1974, p. 52, e Instituições de direito penal, 2002,
p. 208; na primeira de suas duas obras, assim se manifestava: “Se entendemos a ação como a atividade e gerais. Dessa conjugação entre a capacidade pessoal e o fato injusto culposo
carregada de significado valorativo, o evento em seu sentido humano e social e o dolo iluminado pelo
significado do que se deseja, é imprescindível que a imputabilidade constitua um pressuposto do crime”; deflui o juízo de que aquele agente é ou não capaz de culpabilidade, isto é,
já na última, ressalta: “A imputabilidade, portanto, não é pressuposto da culpabilidade, nem obstáculo à
culpabilidade, mas dado distintivo da pessoa humana, razão pela qual constitui um pressuposto da ação,
vista esta decorrência de uma opção valorativa. O inimputável, neste sentido, não age, pratica fatos”. 620. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, 5ª edição, p. 593.
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imputável ou inimputável. O juízo aqui é geral, porque não se questiona foi assumido como consequência de postulado de garantia, pois teria como
na imputabilidade se, efetivamente, o agente teve ou não conhecimento do objetivo impedir a intensificação de aspectos subjetivos da conduta, estranhos
injusto ou se pôde ou não adquirir esse conhecimento. Na verdade, esses à realidade social, bem como a interferência autoritária do poder punitivo
questionamentos pertencem à consciência atual e potencial da antijuridici- sobre condutas que, ainda que aparentemente tenham relevância jurídica,
dade e não à imputabilidade. Portanto, quando se analisa a capacidade de não ofendam esses bens jurídicos.
entender e de se autodeterminar em face da norma, como norma de cuidado,
não está procedendo ao exame concreto de sua violação, mas sim se o agente, 1. A QUESTÃO DO BEM JURÍDICO
segundo suas condições biopsicológicas, poderia compreender o caráter ilí- Essa concepção do bem jurídico como elemento essencial de proteção
cito da violação da norma de cuidado. na configuração dos tipos legais e, consequentemente, na estruturação das
Convém fazer, ademais, outra observação. Tendo em vista que, nos normas de conduta sancionadas criminalmente não indica, porém, por si
delitos culposos, não há uma confrontação direta do agente para com a só, acerca do substrato social dessas normas e do direito penal. Este é um
norma, o juízo de imputabilidade deve ser ainda mais restrito, ou seja, devem defeito básico de toda concepção que assenta o bem jurídico como objeto de
ser ampliadas as bases empíricas de afirmação da inimputabilidade para se proteção do direito penal. Aliás, o conceito de bem jurídico tem sido usado
estender, então, as expressões “doença mental” e “desenvolvimento mental também de suporte argumentativo da doutrina para explicar o porquê de
incompleto ou retardado”, portanto, os distúrbios mentais, em favor do certas incriminações, mas a partir do pressuposto puramente formal de que
agente. Não se trata aqui de reeditar um sistema puramente psicológico de a norma penal teria como escopo sua proteção, ou seja, admitindo, desde
inimputabilidade ou aquela velha formula doutrinária da “perturbação dos logo, sua legitimidade.
sentidos e da inteligência”, mas de atualizar sua base empírica em função do Sob a observação das perspectivas do direito penal, já alertava HAS-
fato culposo. A questão da doença mental, por exemplo, deve ser encarada SEMER acerca da falácia da proposição de interpretar as normas penais
em face de uma interpretação extensiva das modalidades constantes da Clas- segundo a sua finalidade de proteger bens jurídicos. Explicava HASSEMER
sificação Internacional de Doenças (CID 10), que está, inclusive, orientada que, com isso, o que, no fundo, se conseguia, era intensificar e fortalecer o
a considerar como tal uma série de perturbações mentais que impeçam o poder punitivo, em vez de limitar o seu alcance.623 Por isso mesmo, a melhor
sujeito de participar ativamente na execução de suas atividades vitais típicas, orientação é a de elevar o bem jurídico a uma outra categoria. Em vez de
e de dominá-las.621 Assim, desde que o processo de determinação da inimpu- ser tratado como objeto de proteção, deve assumir a posição de objeto de
tabilidade está vinculado à capacidade plena de entender o caráter criminoso referência necessário da incriminação.624 Isto implica exigir, em qualquer
da conduta em face da norma de cuidado ou de determinar-se de acordo com incriminação, a demonstração de a conduta haver lesado ou posto em perigo
isso, a análise das condições empíricas desse processo deve adaptar-se também o respectivo bem jurídico. Caso a incriminação não possa ter como objeto de
a esta formulação. Com isso pode-se declarar a inimputabilidade do agente, referência a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico, é ela inválida por não
quando, em decorrência da enfermidade mental, não puder internalizar as representar a norma um instrumento adequado do processo de comunicação
exigências da norma de cuidado. que se destina a determinar as zonas do lícito e do ilícito.

III. A ESTRUTURA NORMATIVA


Heleno Cláudio. “Objeto do Crime”, in Lições de direito penal, 1972, apêndice ao 2º volume; JES-
A doutrina moderna tem entendido que a função do direito penal é, CHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 7; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 212; ROXIN, Claus. Nota 225,
p. 11; SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 111; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 33;
primordialmente, a proteção dos denominados bens jurídicos.622 Isto sempre TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 1982, p. 13; WESSELS-BEULKE.
Nota 234, p. 2.
621. FEGERT, J. Was ist seelische Behinderung? Votum: Münster, 1995; DILLING/MOMBOUR/SCHMI- 623. HASSEMER/MUÑOZ CONDE. La responsabilidad por el producto en derecho penal, Valencia: Tirant
DT, Internationale Klassifikation psychischer Störungen. ICD-10, Bern, 1991. Lo Blanch, 1995, p. 22.
622. BRUNO, Aníbal. Nota 45, p. 14; BETTIOL, Giuseppe. Direito penal, vol. I, p. 193; LISZT, Franz von. 624. No Brasil, como adepto desta concepção, BOZZA, Fábio da Silva. Bem jurídico e proibição de excesso
Direito penal alemão, p. 93; de certa forma também BAUMANN. Strafrecht, AT, p. 9; FRAGOSO, como limites à expansão penal. São Paulo: Almedina, 2015, p. 190.
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Por outro lado, a investigação da relação interesse-norma-valor, que Isto demandaria, porém, outra pesquisa. Por isso, pode-se ficar aqui com
está no fundo da elaboração normativa, pressupõe, evidentemente, a adoção essas duas orientações, que ainda que se mostrem incompletas, como ocorre
de um princípio construtivista, em oposição fundamental ao positivismo com qualquer formulação jurídico-filosófica, apresentam-se praticamente
jurídico, pois este não se importa e, ao contrário, desconsidera qualquer capazes de enfocar o fato em face da função da norma, independentemente
indagação fora do âmbito puramente legal. de desvios ideológicos.627
Afora o positivismo jurídico, ninguém nega que o direito não está A adoção de qualquer das teses acima enunciadas implica, consequente-
alheio aos interesses da estrutura social, nem pode sobreviver por muito mente, concepções diversas na estrutura da norma penal e na formulação do
tempo sem eles. Há, portanto, uma relação necessária entre a norma jurí- direito. Se a norma nada mais é do que a formalização do interesse, torna-se
dica e o interesse que lhe serve de substrato. Essa relação, por sua vez, tem demasiadamente simples sua construção, não restando senão investigar-se o
engendrado uma série de posturas, que dizem respeito mais à finalidade das bem jurídico ou o interesse protegido e a respectiva infração ao mandamento
normas do que, propriamente, ao modo como elas se estruturam. ou proibição promulgados para a sua proteção. Com isso estaria realizada
Geralmente, pode-se ver essa relação sob duas perspectivas: a) a pri- toda a tarefa científica, tal como propõe o positivismo jurídico e a escola de
meira, tomando-se a norma, simplesmente, como instrumento de proteção ROCCO.628 Se, ao invés, for adotada a tese de que o direito está inserido
imediata do interesse; b) a segunda, subordinando-a a um processo de ava- num sistema de formação social, então será imperiosa a pesquisa acerca desse
liação. Ao se adotar a primeira perspectiva, a norma seria concebida como sistema e de suas implicações, assim como dos modelos axiológicos e suas
a forma estatal de manutenção e proteção de interesses sociais relevantes ou expressões normativas, contidos nos tipos legais.
dominantes. Uma vez promulgada, só caberia interpretá-la e fazê-la incidir no Foge, porém, ao objetivo aqui traçado a pesquisa acerca dos interesses
caso concreto. Pela segunda, a norma jurídica, em todas as suas fases, estaria sociais que compõem as relações sociais definidas em certa formação sis-
submetida a um processo de verificação de legitimidade e validade, de modo têmica, que constituiria objeto mais afeto à criminologia ou à sociologia.
que o interesse só pudesse nela se inserir na forma de valor jurídico, cuja lesão O que, efetivamente, importa no caso é a determinação do porquê da
ou perigo de lesão condicionaria a intervenção estatal.625 estrutura normativa, como proibição ou comando, ou seja, o problema da
De acordo com a primeira perspectiva, chegaríamos ao mesmo pensa- formação da norma penal.
mento de KELSEN de que o direito não existe sem o Estado e que tudo se 2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO NORMATIVA
resume na proteção estatal, quer dizer, a norma deve ter, necessariamente,
um caráter sancionatório. Na outra, ao contrário, embora se expresse através Pode-se começar salientando que todos os interesses sociais apresen-
do Estado, por meio de formulações definidas, o direito deve ser concebido tam uma dupla carga de características: uma subjetiva, vinculada aos seus
em um sistema global de formação social e, portanto, submetido a limita- portadores, representada pelos desejos, intenções ou perspectivas, e outra
ções quanto à sua validade. Há inúmeras outras formas de tratar a relação da objetiva, de condicionamentos materiais. Tanto os elementos subjetivos
norma para com seus objetos, bem como de explicar o fenômeno jurídico.626 quanto os objetivos estão inseridos numa prática social na qual o sujeito
se orienta. Para caracterizar-se, pois, um interesse, será preciso situá-lo na
625. Não é outra, ademais, a formulação que dessa delimitação da norma penal faz nascer direitos subjetivos,
indistintamente, a todos os cidadãos em face dos poderes estatais. Assim, afirma HABERMAS, Jürgen.
La inclusión del otro, tradução castelhana, Barcelona: 1991, p. 189: “No estado democrático de direito,
o exercício do poder político está duplamente codificado: o tratamento institucionalizado dos problemas em certas exigências imutáveis; a terceira insere o direito em dois aspectos, um quanto à sua gênese e
propostos e a mediação regulada procedimentalmente dos correspondentes interesses devem poder ser outro quanto às suas condições de possibilidade e validade, afirmando, por conseguinte, que o direito
entendidos ao mesmo tempo como a realização de um sistema de direitos”. não resulta do fato nem lhe é imanente, mas não pode, por outra parte, ser compreendido sem a vincula-
626. Por exemplo, MIGUEL REALE (O direito como experiência, p. 7 et seq.,) reconhece que todas as ção aos eventos históricos. Esta última posição está alicerçada na filosofia kantiana.
explicações em face do binômio direito-experiência podem ser reduzidas a três perspectivas filosófi- 627. Para outras formulações, ver PAWLOWSKI, Hans-Martin. Einführung in die juristische Methoden-
cas fundamentais: a posição imanente, a posição transcendente e a posição transcendental. A primeira lehre, p. 55 et seq.
afirma não se poder dissociar o direito dos eventos históricos, considerando que os problemas jurídicos 628. ROCCO, Arturo. L´oggetto del reato e della tutela giuridica penale: contributo alle teorie generali del
estariam permanentemente inseridos nesses eventos e só seriam explicáveis segundo essas relações; a reato e della pena, Roma: Società editrice del “Foro italiano”, 1932; idem, II problema e il metodo della
segunda atesta a existência de um direito baseado não só em fatos, mas também em paradigmas ideais, scienza del diritto penale, 1910.
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relação recíproca entre as condições sociais objetivas e a atividade prática da diversidade hegemônica das classes sociais nas várias estruturas.631 Pode
das classes sociais atuantes no campo global das formações ou modos de suceder, inclusive, o inverso, isto é, que, no campo econômico, os interesses
formação social. O interesse de que aqui se trata, portanto, não pode ser estejam vinculados a condições conservadoras, enquanto se mostrem pro-
confundido com o interesse psicológico, normalmente identificado com o gressistas no jurídico. Neste último caso, por exemplo, é de se mencionar
motivo de conduta. o Código Criminal brasileiro de 1830 que, embora promulgado durante
O interesse social que engendra a formação normativa e é delimitado a vigência do Poder Moderador, continha disposições liberais avançadas
reciprocamente por ela, através de via indireta, significa basicamente, para diante da formação social calcada nos grandes proprietários e, por isso,
usar uma terminologia bastante peculiar de NICOS POULANTZAS, a ex- autoritária. Da mesma forma, atualmente, pode-se verificar o progresso
tensão-limite da atuação prática das classes sociais nas suas relações havidas liberal da legislação referente à prisão aberta em vários Estados, apesar da
no complexo das estruturas social, econômica, política, ideológica e jurídi- manifestação autoritária de poder na estrutura política, que projeta uma
ca, que compõem uma formação social.629 Isto quer dizer que a atividade imagem discriminatória dos condenados e concentra sua atenção na maior
humana, tanto na sua acepção de conduta atribuível a um sujeito, quanto de repressão aos delitos patrimoniais, tal como no passado.
prática social de grupos ou forças dominantes ou hegemônicas atuantes nas 3. INTERESSE E VALOR
estruturas estatais, tem limitações e extensão que se condensam nos respec-
Por outra parte, os interesses não podem ser retratados em sua inte-
tivos interesses. Esses interesses, tomados, primeiramente, em sua acepção
gralidade se forem limitados, exclusivamente, a seus aspectos objetivos e
objetiva, como formas, pressupostos e condições da vida material, no sentido
subjetivos. Para que se torne completa sua análise, será preciso relacioná-los
de estabelecer uma ordem-limite da prática social e, depois, conforme sua
aos dados materiais da vida social, aos denominados bens materiais, assim
visão subjetiva, enfocados como objetivos condicionantes da atividade social,
como aos dados ideais, os bens culturais.
não existem independentemente de determinada formação social, isto é, fora
das estruturas social, econômica, política, ideológica e jurídica. Na medida em que os interesses se relacionem com esses bens, que
existem concretamente na vida social com o sentido de valores históricos, se
Os interesses, entretanto, não devem ser apresentados como elementos
produz um condicionamento destes valores, que deixam de ser valores autô-
de uma dessas estruturas, mas como elementos mediadores entre as condi-
nomos e passam a fazer parte desses interesses ou a se cunharem como sua
ções da vida material e as formações ideais que nela se desenvolvem. Essa
forma condensada. Assim, a vida humana, por exemplo, constitui um bem
característica instrumental do interesse, no sentido de fator determinante e,
da pessoa e da comunidade, que pela sua importância como valor social
ao mesmo tempo, limitador das atividades práticas das classes sociais que se
se torna objeto igualmente dos interesses jurídicos das classes sociais hege-
realizam nessas estruturas conforme o grau de sua hegemonia, é que induz,
mônicas. O mesmo ocorre com outros valores sociais, como a integridade
muitas vezes, à sua confusão com o bem jurídico.
corporal, a liberdade, a honra, o patrimônio, etc. Os interesses, portanto,
Por outro lado, como essas estruturas se mantêm, muitas vezes, na incorporam esses valores. Uma vez que esses valores se vejam incorpora-
atual formação social capitalista, relativamente desvinculadas umas das dos nos interesses, possibilitam a edificação da chamada ordem jurídica,
outras, o interesse poderá variar em uma e outra dessas estruturas, de modo cuja construção, por uma particularidade da formação social capitalista,
que, se conservadores no campo jurídico, se mantenham progressistas no deve encarnar, simbolicamente, o consenso público.632 O problema está,
campo econômico.630 Isto, porém, não deve ser visto como desatualização
631. POULANTZAS, Nicos. Hegemonía y dominación en el Estado moderno, p. 121: “Dito de outro modo,
do direito, em face do progresso social, mas como consequência natural esses desajustes históricos do jurídico com relação ao econômico não constituem avanços ou retroces-
sos da estrutura do direito sobre a estrutura econômica. Formam parte de uma mesma estrutura, que é
a do conjunto de uma formação social historicamente determinada com níveis que possuem historici-
629. Mais ou menos nesse sentido, POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais, tradução brasi- dades próprias e cujo desenvolvimento desigual é função desta mesma estrutura”. Com outro enfoque
leira, 1977, p. 108. quanto ao mesmo tema, LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se ensina errado, Brasília, 1980.
630. POULANTZAS, Nicos. Hegemonía y dominación en el Estado moderno, tradução castelhana, 1977, p. 632. Para uma visão exaustiva desse problema, NEVES, Marcelo. Zwischen Themis und Leviathan: Eine
115 et seq. shwierig Beziehung, Baden-Baden: Nomos, p. 2000, p. 113 et seq.
282 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 283

no entanto, como delimitar a incorporação desses valores, cunhados em preencher algumas outras condições, além do consenso.
interesses, à norma penal como bens jurídicos e também como caracterizar Em primeiro lugar, o procedimento será racional mediante sua sub-
esse processo de incorporação em termos racionais. missão a um processo indutivo e dedutivo, que possibilite identificar, com
Inicialmente, pode-se dizer que os interesses não passam a fazer precisão, seu enunciado; em segundo lugar, deverá ser constantemente sub-
parte, direta e automaticamente, da norma como interesses juridicamen- metido à crítica e refutação para que não se torne estagnado; em terceiro
te protegidos, mas como condensação de valores concretos, historicamente lugar, deverá estar relacionados à pessoa humana, como expressão de sua
configurados, correspondentes a uma determinada formação social e incor- vida pessoal e social. Esse mesmo raciocínio deve se estender à delimitação
porados à ordem jurídica por um procedimento que costuma ser chamado de todos os demais valores concretos que se transformem em bens jurídicos.
de racional. É necessário frisar que se esses valores não possuem autonomia Na medida que se edifique um conceito de conduta capaz de ser objeto
absoluta dos interesses que lhe servem de substrato, porquanto, no fundo, de referência de uma norma penal e, ao mesmo tempo, se deixar por ela de-
são inferidos de seu relacionamento, por sua vez, não se encontram na de- limitar criticamente, a partir da concepção de pessoa dentro de uma prática
pendência imediata e direta daqueles interesses. Há, na verdade, uma relativa social comunicativa, a construção de uma teoria do bem jurídico deve levar
autonomia dos valores. Se, por uma parte, se encontram impregnados dos em conta, também, esses mesmos pressupostos. Daí se dizer que a concepção
interesses, de outra, estabelecem os limites e o âmbito de realização prática do bem jurídico só será racional se for posta em função de preceitos limita-
desses interesses no campo das estruturas social, econômica, política, ideo- dores da incriminação.
lógica e jurídica. Essa relativa autonomia dos valores e a sua consecução por
um procedimento orientado pelo consenso pode ser adequada a explicar sua O conteúdo da norma penal é constituído pela definição de condutas
expressão, independentemente de sua utilidade, como produtos simbólicos (tipo) que lesem ou ponham em perigo bens jurídicos, caracterizando tal
da criação do homem e de sua capacidade, embora subordinados, indefecti- definição a matéria da proibição ou do comando jurídicos. Entre norma e
velmente, aos condicionamentos na prática social. tipo, por conseguinte, não há diferença essencial, desde que se compreenda
que o tipo encarna tão-somente a matéria-prima formalizada do preceito
O procedimento orientado pelo consenso, que modernamente vem normativo, de maneira que a realização do tipo já encerra em si a confecção
sendo encarado como racional, pode gerar concretamente algumas contra- do proibido ou a não confecção do juridicamente imposto.
dições. Pode acontecer, por exemplo, que sejam criados valores abstratos,
formais, sem correspondência real e direta com aspectos da pessoa ou da A afirmação do ilícito, contudo, não pode derivar exclusivamente da
vida social. Esse é o grande problema suscitado pela chamada espiritualiza- infração à norma, resultante da realização da conduta proibida ou da não-
ção do bem jurídico. Geralmente, entende-se que se esses valores, porém, realização da ação imposta, porquanto a norma penal incriminadora não se
mesmo sendo de criação abstrata, integrem a norma e passem a fazer parte encontra isolada do ordenamento jurídico. A infração à norma proibitiva
de seus pressupostos, juntamente com os valores sociais concretos, podem ou mandamental só se ultima quando não subsistam determinadas permis-
ser tomados como bens jurídicos. Ocorre que a incorporação desses valores sões (normas permissivas). Entre normas permissivas e incriminadores há,
de criação artificial à norma penal, por si só, não pode implicar a sua consi- assim, completa interação. A completa interação entre essas diversas normas
deração como bens jurídicos. é devida à separação relativa da estrutura jurídica de outras estruturas que
compõem a formação social. Uma vez que goze dessa relativa autonomia, a
O processo de construção dos bens jurídicos a partir da incorporação estrutura jurídica pode, perfeitamente, conjugar seus interesses no sentido
dos valores aos interesses vem sendo reconhecido, ultimamente, como ra- de conformar coerentemente todas as suas normas.
cional, na medida em que corresponda ao consenso. Parece, no entanto, que
o consenso não é suficiente para legitimar essa forma de incorporação. Na Essa separação relativa da estrutura jurídica requer, entretanto, três
verdade, o processo de incorporação dos valores à norma só será racional se condições: a) que se proceda à separação dos bens jurídicos, como valores,
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dos interesses que os inspiraram; b) que se insira a lesão ou o perigo de lesão As análises do neokantismo, do finalismo e da teoria social da ação
a esses valores como pressupostos da norma; c) que se proceda à vinculação apresentam, na verdade, aspectos parciais da questão, pecando todas pelo
harmônica e coerente de todo o conjunto normativo abstrato e formal, no unilateralismo e culturalismo. Se, por exemplo, pode-se questionar o enun-
sentido de verdadeira ordem jurídica, e na qual toda e qualquer norma possa ciado da tipicidade de MEZGER como ratio essendi da antijuridicidade, por
ser tomada como objeto de orientação dos sujeitos. impossibilitar, de certa forma, a crítica da proibição, por outro lado, não
Estas condições acima fixadas constituem os verdadeiros pressupostos menos criticáveis devem ser as elucubrações de WELZEL e JESCHECK,
de legitimidade para as normas penais, pois possibilitam a união, na ordem respectivamente, pela subjetivação do injusto e pela transformação do direito
jurídica, do que HABERMAS chama de faticidade da instituição do direi- penal em instrumento ideológico. Igualmente, padece de fundamento orgâ-
to estatal com a validade do procedimento de sua aplicação segundo uma nico a proposta funcional de querer extrair da relação entre sujeito e norma
pretensão racional. Com isso, pode-se liberar o sujeito de suas amarras ao o pressuposto da motivação normativa estabilizante do sistema, se não puder
regime autoritário, de forma a tomar a norma como uma “limitação fática de incorporar esse sujeito em uma determinada formação social.
seu campo de ação e se situar, estrategicamente, em face das consequências Parece-nos que a verdadeira análise do problema deve partir da realida-
jurídicas de sua possível violação, ou de querer seguir, performativamente, de social e de suas múltiplas facetas para a criação da norma, como preceito
as leis, em atenção aos resultados de uma comum formação de vontade sob específico da estrutura jurídica. Como tal, deve esse preceito ser tomado,
a pretensão de sua legitimidade”. 633 objetivamente, com relação aos sujeitos e manifestado sobre uma conduta
A antijuridicidade se encontra ligada, assim, a esses pressupostos, na estrita, sob o pressuposto da lesão ou do perigo de lesão ao respectivo bem
medida em que a infração normativa, para estabelecer-se como atividade ilícita, jurídico singular. Fora disso, torna-se praticamente impossível a elaboração
tenha que atentar contra os bens jurídicos e, ao mesmo tempo, estar subordi- de uma ciência do direito penal, com objeto próprio.
nada à condição de que se tenha posto à disposição do sujeito um objeto claro 4. PROIBIÇÕES E COMANDOS
de orientação, consoante à proibição ou à determinação de sua conduta.634
É comum, nos manuais e tratados jurídicos, a assertiva de que as
A concepção teleológica neokantiana de MEZGER e a teoria pessoal normas incriminadoras em geral se compõem de proibições e comandos,
do injusto do finalismo pretenderam compreender esse fenômeno da relação em correspondência às atividades positivas e negativas.
tipo-antijuridicidade, mediante o suporte do fim da norma e o papel dos su-
jeitos na elaboração do injusto. Igualmente, JESCHECK e os partidários da Interpretando a norma jurídica em função de seu conteúdo, entendem
teoria social da ação animam-se do propósito de veicular, por meio da norma alguns, porém, que não se deve falar, alternadamente, de proibições ou co-
penal, a finalidade ou o conteúdo ideológico da formação social, enxergando, mandos, mas de unidade de proibições e de comandos, a ponto de se dizer
no conjunto normativo, a função teleológica de orientação de valor destinada que sempre que o direito proíbe uma conduta, ao mesmo tempo determi-
a atingir todos os cidadãos, como objetos-educando, independentemente da na uma outra.636 Esta afirmação, se bem que insuficiente, pois é possível o
infração. O mesmo se dá com o funcionalismo, que exige uma relação de cumprimento da proibição através da mera abstenção de qualquer conduta,
motivos entre sujeito e norma. O direito penal serviria, assim, de instrumento traz à luz da discussão um aspecto deveras relevante, que é o da vinculação
ideológico de impregnação de certa postura social.635 recíproca entre proibição e comando no contexto da norma, o que tem
particular importância no estudo dos delitos culposos. Para ser correta, esta
633. HABERMAS, Jürgen. “Über den internen Zusammenhang von Rechtsstaat und Demokratie”, in Zum
Begriff der Verfassung, org. Ulrich Preuss, Frankfurt am Main: Fischer, 1994, p. 85.
assertiva deve ser compreendida no conjunto normativo global e não apenas
634. Por uma antijuridicidade materializável, pugna também MIGUEL REALE JR., Antijuridicidade con- em função de uma norma singular.
creta, p. 136, para quem a doutrina scheleriana de normas-valor padece da referência ao plano histórico;
assim, “sendo os valores condicionados historicamente pelo contexto cultural em que atuam, o sentido
e o alcance do valor tutelado estão como que imanentes ao tipo, compreendendo-se também a ação
concreta de conformidade com esse contexto cultural”. 636. Assim, por exemplo, CIRINO DOS SANTOS, Juarez.”A Dialética da Norma de Conduta”, in Revista
635. JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts, p. 188-189. de Direito Penal, n. 21/22, p. 63.
286 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 287

Os delitos dolosos, por exemplo, trazem em seu bojo a condução da ilegitimidade só não será, de antemão, reconhecida, caso se proceda a uma
atividade humana, objeto da norma, consciente e voluntariamente, de modo avaliação da atividade como perigosa, de modo a permitir uma contraprova
contrário ao bem jurídico. No crime doloso, portanto, a atuação se dirige da presunção legal. Isto quer dizer que o desvalor do ato, inferido da mera
contra o bem jurídico ou contra o sistema de conduta necessário a evitar realização da ação típica, só se poderá efetivar na medida em que se reconheça
o perigo ou a lesão do bem jurídico. Esta atuação consciente e voluntária sua potencialidade para lesar ou colocar em perigo o bem jurídico. Não se
tanto pode ser positiva quanto negativa, derivar de proibição ou de determi- trata, como poderá parecer, à primeira vista, de transformar os delitos de
nação. O que efetivamente vale é a direção da conduta contrária ao sentido perigo abstrato em delitos de perigo concreto. Nos delitos de perigo con-
da norma. O que é valorado, por conseguinte, é tanto a direção contrária creto, o resultado de perigo tem que estar presente como elemento essencial
à norma (desvalor do ato), quanto a consecução do objetivo visado pela da tipicidade. Nos delitos de perigo abstrato, mesmo que se prescinda desse
conduta e proibido pela norma (desvalor do resultado). resultado concreto de perigo, deve-se, não obstante, exigir um exame da
O desvalor do ato e o desvalor do resultado se integram em unidade potencialidade lesiva da própria atividade.
recíproca, de sorte que, quase sempre, um se manifesta através do outro. Às Esse sistema de valoração proposto no contexto da norma demonstra,
vezes, a infração normativa está assentada sobre o desvalor do ato, pois com de modo claro, a função do direito penal de fixar os pressupostos delimi-
isso a conduta já se postou na zona do proibido. Isto se dá, principalmente, tadores do poder punitivo, em face da lesão ou do perigo de lesão ao bem
nos denominados delitos de perigo abstrato, nos quais o legislador quer jurídico, conforme as formas de manifestação da atividade humana.
prescindir da demonstração concreta da lesão ou do perigo de lesão ao bem A proibição e a determinação existem, no sistema normativo, como
jurídico, presumindo essa lesão ou o perigo de lesão em face das característi- instrumentos ou formas de avaliação da lesão ou do perigo de lesão ao bem
cas da própria atividade. Outras vezes, a conduta possui graus de valoração, jurídico, podendo, em cada caso, manifestar-se reciprocamente, o que pode
quando não basta para a completa infração normativa tão-só o desvalor do tornar correta a conclusão de que, numa mesma norma, são passíveis de sub-
ato, mas também o desvalor do resultado. Neste último caso, o bem jurídi- sistência proibição e determinação, dependendo da conduta realizada.637 Isto
co só passa a ser efetivamente atingido quando se materializa o desvalor do está muito claro nos delitos omissivos, quando às vezes o agente realiza outra
resultado como consequência do desvalor do ato. Este último, porém, só se atividade que não a devida. A realização desta outra conduta é proibida, em
manifesta como tal, na medida em que se põe em vinculação com o desvalor face da determinação daquela específica. Nos delitos comissivos, por outra
do resultado, tal como acontece, por exemplo, no homicídio doloso. parte, nem sempre subsistem proibição e comando num mesmo contexto,
Quando se analisam essas relações entre atividade e resultado para o pois a proibição pode ser satisfeita sem a consequente imposição de outra
efeito de fazer incidir sobre elas a norma penal, devem ser estabelecidos conduta; basta que o agente não realize uma conduta contrária à norma; tudo
alguns parâmetros para que a infração normativa não se converta em mera o mais pode ser por ele realizado ou não realizado, que não altera a sistemática
desobediência a deveres de organização, tal como ocorre nos delitos de perigo em torno da afetação do bem jurídico.
abstrato. Ainda que esses delitos se vejam cada vez mais frequentes na legis- O problema, assim, da proibição ou da determinação dentro da norma
lação, sua legitimidade contraria a ordem constitucional. Em face de suas está relacionado diretamente à forma de conduta concretamente realizada.
características de presumir um resultado de dano ou perigo pela prática de
uma conduta descuidada o legislador ignora um atributo essencial da norma Nos crimes dolosos, em que a conduta é dirigida, consciente e volunta-
criminalizadora que é o de indicar fatores concretos para seus destinatários riamente, à consecução do resultado proibido ou à não-realização da atividade
poderem por ela se orientar. Isso só ocorre quando em virtude da ação des-
637. Esta configuração concreta dos modos de coação jurídica fora já tratada por BOLDT, Gottfried. “Zur
cuidada se produza uma alteração sensível da realidade empírica. Assim, Struktur der Fahrlässigkeitstat”, in ZStW, 68, p. 346-347, que concebia a estrutura normativa com base
mesmo para aqueles que legitimam esses delitos perante a ordem jurídica, sua na imposição de uma conduta para os delitos culposos e os dolosos. Ao mesmo tempo, porém, conforme
o modo de atividade concretamente realizada, a fórmula da imposição se materializaria em condutas
positivas específicas, tanto nos crimes culposos quanto nos crimes omissivos.
288 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 289

mandada, a proibição e a determinação se tornam passíveis de identificação procedimento. A partir dessa assertiva, a norma mandamental incide sobre
direta. É que, nesse caso, há identidade entre o que se proíbe ou se manda e o essa atividade concreta e pode exigir sua abstenção ou sua execução dentro
que o agente efetivamente realizou ou não-realizou, conforme a dirigibilidade de certos padrões de cuidado, por parte do sujeito. Com efeito, a proibição
de sua atividade, com vistas a lesar ou pôr em perigo o bem jurídico. da morte no homicídio culposo está relacionada à imposição de uma con-
Nos crimes culposos, ao invés, a proibição e a determinação não estão duta concreta cuidadosa, em face dos limites do risco autorizado. Se, nos
expressas na definição da conduta incriminada, em face das inúmeras pos- crimes comissivos dolosos, a proibição está diretamente enunciada na defi-
sibilidades de conjugação, no mesmo momento, de preceitos proibitivos e nição normativa da conduta, nos delitos culposos essa proibição só adquire
determinativos que incidem sobre a conduta concretamente realizada. Isto relevância na medida em que se vincule a uma determinação frente a uma
deriva do fato de que, aqui, o agente tanto pode ter tido atividade não- conduta concreta. Essa forma de manifestação da determinação implica que
-proibida e com isso haver acarretado uma consequência proibida, quanto ninguém está submetido, de antemão, a qualquer obrigação de se abster ou
também pode haver realizado atividade proibida e com isso produzido um de atuar cuidadosamente, salvo quando tenha que empreender uma atividade
resultado proibido, ou ainda não realizado uma atividade mandada e com concreta que viole ou esteja em vias de violar os limites do risco autorizado.
isso produzido um resultado proibido, ou, em casos raros, só encontráveis O direito penal deve estar estruturado sob os pressupostos de lesão e de
na legislação especial, haver infringido uma determinação normativa, inde- perigo de lesão ao bem jurídico e não, simplesmente, da mera infração norma-
pendentemente do resultado. Pode também haver realizado uma atividade tiva. A conclusão de que nos delitos culposos a proibição só adquire relevância
proibida e não haver causado resultado proibido. A definição da conduta quando vinculada a uma norma determinativa frente à atividade concreta,
incriminada, portanto, não pode abarcar todo o complexo de aparecimento diversamente, portanto, dos delitos comissivos dolosos, vale para assinalar que
e de execução da conduta concretamente realizada. sua estrutura é autônoma daquela do delito doloso e, ao mesmo tempo, deva
Essa variedade de formulações indica, além disso, que nos delitos culpo- estar ajustada à forma como a ação se desenvolve para lesar ou pôr em perigo
sos não há identificação entre o que o agente, consciente e voluntariamente, o bem jurídico. Sem esta consideração, todas as infrações seriam iguais.
pretendia e aquilo que efetivamente ocorreu. Pode-se notar que, em todos os Por seu turno, a dependência da proibição para com a determinação é
casos citados, a proibição da atividade está relacionada, em primeiro lugar, à ainda mais nítida nos delitos culposos omissivos, nos quais o comando incor-
lesão ou ao perigo de lesão do bem jurídico e, em segundo lugar, à conduta pora, quase sempre, a proibição. Já nos delitos culposos comissivos, a proibição
concretamente realizada pelo agente. Isto decorre da estrutura normativa vem sempre relacionada a uma determinação, o que as faz reciprocamente
desses delitos, que não podem ser identificados, antecipadamente, senão dependentes. Por sua vez, nos delitos dolosos comissivos, a proibição pode sub-
frente à atividade efetivamente praticada. Esta relação entre a atividade defi- sistir isoladamente. O agente quer matar e mata, realizando, pois, a conduta
nida normativamente e aquela concretamente executada conduz à construção proibida. Caso o agente não queira matar, sua conduta, em princípio, é livre.
de uma estrutura complexa, que produz uma vinculação inseparável entre Mas desde que realize uma atividade perigosa, só deve executá-la cuidado-
a norma proibitiva, que regula a atividade definida normativamente, e uma samente ou, simplesmente, não a fazer, porque essa conduta deve pautar-se
norma mandamental, que deve atender à atividade concreta. Só neste sentido dentro dos limites fixados para o risco autorizado.
é que se pode, então, construir uma estrutura normativa dos delitos culposos,
na qual possam subsistir proibição e determinação. A norma determinativa 5. DEVER DE CUIDADO E CONDUTA PERIGOSA
só adquire sentido, por sua vez, quando se veja confrontada com a atividade Os atributos do cuidado estão, portanto, inseparavelmente atados à
concreta, em face dos limites do risco autorizado. Como, ademais, a norma realização de uma conduta perigosa, daí a relevância atribuída por ROXIN
determinativa é, na verdade, uma norma de imputação, somente a conduta ao incremento ou aumento do risco e não, propriamente, à infração à norma
perigosa que tenha violado, concretamente, os limites do risco autorizado que o institui. Tem razão ROXIN quanto ao aspecto de que, nos delitos
e, assim, posto em perigo ou lesado um bem jurídico, pode ser objeto desse culposos, relevante é a realização de uma conduta perigosa.
290 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 291

O problema está, entretanto, em determinar, no âmbito da estrutura queira dirigir veículos motorizados, será necessário que efetue atos de dire-
normativa desses delitos, como essa atividade perigosa é tratada pela ordem ção cuidadosa; isto porque a atividade de dirigir veículos é considerada em
jurídica, a fim de ajustá-la aos pressupostos de lesão ou perigo de lesão ao si mesma uma atividade perigosa, ainda que permitida, ou seja, tendo em
bem jurídico. Por isso mesmo, o perigo não se integra à norma penal pura e vista a necessidade de se traçarem, com nitidez, os contornos das linhas divi-
simplesmente, mas tão-só como atributo de uma conduta. Por outro lado, sórias do ilícito, parte-se do argumento de que a direção de veículos contém
atendendo a que a ordem jurídica deve preservar, em primeiro plano, a liber- os pressupostos para caracterizar uma intromissão no âmbito do proibido.
dade de atuação, uma conduta perigosa, por si mesma, não pode ser objeto Por outra parte, na própria execução da atividade, não pode o agente descu-
de referência de uma norma proibitiva ou mandamental, senão na medida rar-se de que, nesse caso, tem também como objeto de referência, ademais
em que tenha ultrapassado os limites do risco autorizado. daqueles que são próprios da atividade de conduzir, os dados normativos
O risco autorizado é que irá demarcar, então, os parâmetros da incidência que lhe traçam os parâmetros da direção. A atividade de conduzir, como é
da norma penal. Em princípio, uma conduta perigosa pode ser proibida pelo uma atividade que deve contar com a participação necessária de outrem, só
direito administrativo, no sentido de que só seja realizada cuidadosamente, terá eficácia caso atenda ao modo como os demais se conduzem e reagem à
ou até mesmo não seja realizada. Mas a sua imputação penal depende de que conduta descuidada do agente, o que, por seu turno, está indissoluvelmente
à essa conduta, assim caracterizada como descuidada, sejam agregadas outras ligado às indicações de condução traçadas pela norma, que, no fundo, é,
condições de modo a estabelecer uma perfeita delimitação das zonas do lícito também, uma norma de cuidado e uma norma prática de eficácia.
e do ilícito, o que se faz mediante o processo argumentativo, por exemplo, da O delito culposo encerra, assim, no seu conteúdo normativo, uma
noção de criação ou aumento do risco, tal como o propõe ROXIN. referência de que há, com relação ao agente e à sua atividade, um dever
Nas atividades de circulação de veículos, torna-se visível essa assertiva. jurídico de cumprir essa tarefa cuidadosamente, mas, ao mesmo tempo,
Para a concessão da licença de dirigir, exige o Estado a comprovação, não assim o fazendo, estará possibilitando a própria execução dessa atividade.
apenas de que o motorista saiba distinguir o cuidado ou os cuidados a que Isto vale tanto para os crimes comissivos como para os omissivos e tem ainda
está obrigado, mas também que saiba conduzir um veículo cuidadosamente. aplicação nos delitos qualificados pelo resultado. Nestes últimos, o conteúdo
A condução do veículo descuidadamente é proibida. Estas são condições determinativo vem assinalado no fato de que se o agente está realizando uma
administrativas impostas aos condutores. Um motorista pode ser multado, conduta inicial dolosa e, pois, perigosa, pode ter contra si a imputação de
por exemplo, por haver transitado em alta velocidade, ainda que não haja consequências mais graves, a título de negligência, caso não limite a extensão
causado qualquer acidente. dessa sua conduta. Não pode o agente omitir-se, pois, da prática de certas
ações cuidadosas quando sua atividade seja perigosa, tanto quando não quer
A questão do cuidado, porém, quando no âmbito penal, deve ser aquilo que a norma proíbe, como quando quer realizar uma conduta proibi-
melhor elucidada. O cuidado que se impõe ao motorista, ainda que decorra da. Mas, assim o fazendo, ou seja, cumprindo o cuidado, estará assegurando
da sedimentação de observações empíricas efetuadas sobre essas atividades a eficácia de sua atividade dentro dos limites que, inicialmente, teria traçado.
de circulação de veículos, que, por seu turno, podem até estar contidas em
instruções ou normas administrativas, está indissoluvelmente vinculado à Essa aparente contradição que se manifesta nos delitos qualificados
própria proibição, daí se poder dizer que esse cuidado desempenha uma pelo resultado deriva da conjugação de dois preceitos num mesmo dispo-
função específica, de estabelecer, previamente, os limites do risco autorizado. sitivo legal e é consequência do sistema normativo, quando se intercalam,
formalmente, disposições proibitivas e mandamentais.
Ao argumentar-se com a conduta descuidada, pode-se chegar à com-
preensão da bilateralidade da norma. Na medida em que se autoriza a prática A razão de ser dessa diversidade de estruturas normativas entre fatos
da direção, se tem em vista que a execução concreta dessa atividade está dolosos e culposos reside em que o conjunto normativo, como dado formal,
submetida a uma imposição de conduta que é a seguinte: desde que alguém deve ser ajustado à espécie de conduta realizada, como dado material.
292 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 293

Esse dado material da conduta efetuada pelo agente constitui o objeto Essa especificação do dever é necessária para impedir não só a criação de
de referência da norma e, por conseguinte, seu delimitador. Ao mesmo tempo um dever geral de atuação e evitar, assim, que, nos delitos de perigo abstrato, a
em que a norma estabelece os círculos de atividades contrárias ou adequadas conduta descuidada seja simplesmente presumida, como também para obstar
aos pressupostos de lesão ou de perigo de lesão ao bem jurídico, sofre a in- a que o direito penal se transforme em instrumento ideológico, meramente
fluência da configuração prática da conduta humana, que pretende avaliar. sancionador e repressivo. Na medida em que se vincula a formação do delito
Essa influência da conduta concreta sobre a forma de atuação normativa culposo a uma determinação normativa, se desnatura também a concepção
se subordina, igualmente, aos elementos configuradores da conduta, como que quer retratar o cuidado em sentido ôntico. Não existe um cuidado em
atividade orientada em função de parâmetros de referência e materializada si mesmo, senão associado a uma conduta normativamente determinada.
como realidade humano-social. Isto quer dizer que a conduta perigosa, para De conformidade com a Constituição, só deve o homem fazer aquilo
ser considerada como típica, está sujeita, além dos elementos que lhe são que lhe é prescrito especificamente na lei (art. 5º, II, CR), ou seja, sua ati-
pressupostos como atividade prática, a uma avaliação pela ordem jurídica vidade em geral é livre e só poderá ser limitada quando a lei assim o faça
em função de sua aprovação ou desaprovação. taxativamente. No caso dos delitos culposos, essa taxatividade apresenta-se
Nos delitos culposos, particularmente, se mostra clara a relação defasada, em face da inexistência, no tipo legal, de uma descrição exaustiva
dialética entre os elementos da conduta derivados da prática social e sua das atividades cuidadosas devidas. Isto tem origem, inclusive, na própria
referência obrigatória ao cuidado a que deve estar subordinada. Destarte, organização da estrutura jurídica e nas possibilidades de verificação concre-
o conteúdo da conduta humana, com seus elementos dinâmicos de direção ta da conduta perigosa, cuidadosa ou descuidada. Este fato situa os delitos
consciente da causalidade ou possibilidade dessa direção, se situa diante culposos no setor daqueles em que o princípio de garantia ainda não foi
da norma sob duplo enfoque: a) serve, em primeiro lugar, de objeto de inteiramente observado. Desde que se deixe ao juiz a faculdade de afirmar
incidência normativa e de configurador de sua forma de expressão; b) toma a forma de conduta cuidadosa que o agente deveria ter realizado, se faz
a norma de cuidado como seu próprio objeto de referência, pelo qual se tabula rasa do princípio da legalidade. Daí a necessidade de se traçarem,
poderá orientar praticamente. com nitidez, os contornos exatos das normas de cuidado, que assinalam, va-
Vê-se, então, que a conduta humana perigosa não resulta da simples lorativamente, a relevância da ação perigosa, bem como de se estabelecerem
produção causal, mas do modo como seus elementos se configuram na prá- limites empíricos e normativos à relação entre ação descuidada e resultado.
tica social e na sua estrutura normativa. Na medida em que a conduta, com Esta última exigência conduz, modernamente, ao desenvolvimento cada
seus elementos materiais, atua sobre a norma e engendra o dever jurídico vez mais intenso de critérios de imputação, que se devem estender desde a
de agir cuidadosamente, porque se trata de uma conduta que carrega com- reformulação do conceito de causalidade até a vinculação da ação descui-
ponentes capazes de produzirem efeitos danosos ao bem jurídico, também dada ao sistema lógico e valorativo da ordem jurídica.
toma esse mesmo dever jurídico como seu objeto de referência para o efeito 6. DELITO CULPOSO E DELITO OMISSIVO
da tipificação dos delitos culposos. Essa relação dialética entre os elementos
O dever jurídico, criado do mútuo influxo da norma formal e da con-
materiais da conduta e sua vinculação a um objeto de referência norma-
duta concreta, faz nascer, no delito culposo, um conteúdo semelhante àquele
tivo demonstra, com clareza, nos delitos culposos, a insubsistência de um
dos delitos omissivos, com a diferença de que nestes a atuação é sempre
conceito pré-jurídico de ação, em face de sua inaptidão para compreender
obrigatória, enquanto que naqueles o agente pode ou não realizar a atividade.
essa forma de relação. Por outro lado, o conteúdo de dever da norma de-
A incriminação da atuação culposa só se efetiva se da forma dessa realização
terminativa nos delitos culposos constitui especificação concreta do dever
resultar, concretamente, lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.
normativo em atenção às formas de lesão ou de perigo de lesão ao bem
jurídico, sem as quais não se poderia afirmar sua tipicidade. Por seu turno, o fato de que, nos delitos omissivos, a atividade é obriga-
tória e nos culposos é facultativa, tem como consequência, respectivamente,
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a exigência ou não de vinculação prévia dos agentes na configuração do tipo. omissivos, o dever de agir não é gerado pela forma de atividade, mas pelas
No crime omissivo, o dever jurídico ou legal vincula, previamente, o su- relações do agente em face da ordem jurídica, quer como garantidor, quer
jeito e se deixa por ele fundamentar. Só deve atuar aquele sujeito que traz em como portador das condições típicas de assistência.
sua pessoa as condições para o agir e se obrigou a fazê-lo, conforme o âmbito Apesar de nos delitos culposos não se levar em conta, previamente, a
de suas relações, ou aquele sujeito que se encontra inserido nas situações típicas condição do agente, isto não obsta a considerá-los como delitos de dever, como
previstas normativamente, que assinalem sua relação para com a necessidade se verá mais adiante quando se tratar da matéria relativa ao concurso de pessoas.
de sua atuação. Aqui, antes mesmo de se omitirem tipicamente, os sujeitos já
Poderia parecer, à primeira vista, que ao tratar os delitos culposos em
estão submetidos a deveres que os vinculam ao bem jurídico, ou na forma de
face dos limites do risco autorizado, estar-se-ia conduzindo a descaracterizá-
deveres especiais de impedir o resultado ou como deveres gerais de assistência.
los como delitos de dever. ROXIN, inclusive, deixou de considerá-los como
No crime culposo, o dever resulta da configuração da atividade perigo- delitos de dever, procedendo, portanto, a uma alteração de sua concepção
sa, como cuidadosa ou não, em face da determinação, concreta, dos limites inicial. Ocorre, porém, que essa configuração está centrada na vinculação
do risco autorizado. O problema dos agentes não importa, previamente, na entre a proibição ou determinação e o processo analítico de argumentação,
configuração do tipo, ainda quando a negligência se basear na assunção de extraído da determinação do cuidado. Uma vez assentado o pressuposto
atividade para o qual o autor não estava habilitado. Nesse último aspecto, da proibição ou do comando como resultante de ação que contenha em si
tratando-se de agente incapaz, em face do cuidado, sua execução poderia ser todas as condições de violar o risco autorizado, pode-se dizer que isso só
proibida. Mas, tendo em vista que, aqui, como em qualquer outra atividade, teria sentido se estivesse conjugado também a um dever de só praticar essa
o que se deve considerar é a realização concreta de uma atividade perigosa, conduta quando dela não se possa esperar o desfecho lesivo ao bem jurídi-
que tenha violado os limites do risco autorizado, o delito culposo não pode co. Neste caso, o bem jurídico continua, ainda, a desempenhar um papel
resultar simplesmente da execução dessa ação, mas da execução por parte de preponderante para a norma determinativa, porquanto só haverá o dever
um agente incapaz e, ao mesmo tempo, descuidado. Está claro que, muitas de não realizar a ação, quando demonstrado o risco concreto de lesão a esse
vezes, a incapacidade é de tal ordem que haverá uma conduta descuidada bem jurídico. Isto significa, assim, que a delimitação do risco autorizado
já com a sua realização. No entanto, essa conduta deverá estar associada não pode ser feita, exclusivamente, pela noção argumentativa do cuidado,
ao risco autorizado e somente se poderá dizer que o agente deveria dela se mas, principalmente, por sua relação concreta com a lesão de bem jurídico.
abster, mesmo antes de executá-la, se a autorização para sua execução for, Por outro lado, a vinculação da proibição a um pressuposto de dever serve
efetivamente, também vedada, em razão de estar ela vinculada a um agente para adotar-se uma plena diferenciação no processo de imputação pessoal,
capaz. É que neste caso, os limites do risco impõem que o agente se abstenha delimitando com mais especificidade o círculo de autores e fazendo com que
da atividade. Por exemplo, quem não entenda de radares ou não tenha pre- a lesão de bem jurídico também se ajuste a essa particularidade.
paro suficiente não poderá executar a atividade de controle de voo. Mesmo
A caracterização do delito culposo, como delito de conteúdo omissivo,
assim, poder-se-ia resumir o problema à mera verificação das condições de
não significa, portanto, que se trate de delito propriamente omissivo, mas
realização concreta da própria atividade, sem a necessidade de se pesquisar
de delito sui generis, com conteúdo próprio de injusto e de culpabilidade e
o conteúdo das possibilidades do agente em face de suas relações protetivas
configurado sob uma norma determinativa, como fundamento da proibição.
para com a vítima ou de responsabilidade pelas fontes produtoras do perigo.
Isto acontece, com frequência, nas atividades de direção de veículos, em que Trata-se de delito de conteúdo omissivo, porque a norma proibitiva que
o agente, sem possuir habilitação ou habilidades, empreende a condução assinala seu injusto só adquire relevância quando associada a uma norma man-
desses veículos. Ainda neste caso, deve-se investigar se a atividade foi ou não damental que lhe serve de base para regular a execução concreta da conduta,
descuidada e se, efetivamente, a falta de habilitação se caracterizou como conforme os limites do risco autorizado, traçados pela forma como devam ser
condição para a omissão da direção cuidadosa. Por seu turno, nos delitos empregados os meios para a execução dessa ação. A norma proibitiva é, assim,
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configurada sob a não-realização de uma conduta cuidadosa, a partir da reali- imputação, resulta ele de um conjunto de argumentos analíticos em face do
zação de uma atividade que, concretamente, se ponha em relação direta para sentido da atividade desenvolvida como atividade lesiva.
com a lesão do bem jurídico. Vê-se, então, que a proibição da conduta não terá O que se pretende, então, é estabelecer que essa imputação está con-
o menor sentido, se estiver divorciada da norma impositiva de cuidado, porque dicionada a três elementos: a) que o agente tenha infringido uma norma de
a proibição como tal não pode ser exercida genericamente. cuidado incidente sobre a execução concreta da conduta; b) que a infração
Ainda resta uma dúvida. Como se fala de infração a uma norma de à norma de cuidado implique violação dos limites do risco autorizado; c)
cuidado, como pressuposto da configuração dos delitos culposos, surge a que com a violação dos limites do risco autorizado se tenha, concretamente,
questão de como harmonizar essa afirmação com aquela de que, nesses de- lesado ou posto em perigo um bem jurídico. Nesta última hipótese, está
litos, o que, efetivamente, vigoram são a forma e o modo de imputação claro, desde que se conte com a existência legal de delitos culposos de perigo.
centrada na infração aos limites do risco autorizado. Há, evidentemente, aqui
uma questão metodológica que deve ser resolvida e que poderia conduzir à IV. A DIVISÃO DELITOS DOLOSOS E CULPOSOS
opção em favor de uma ou de outra estrutura, ou seja, ou o delito culposo Mesmo que no direito positivo os crimes culposos não venham des-
estaria fundamentado na norma de cuidado ou na infração dos limites do critos exaustivamente nos respectivos tipos, a proposta de que constituem
risco autorizado. Já se afirmou, no início, que os delitos culposos constituem delitos sui generis, com conteúdo próprio de injusto e de culpabilidade, é
uma criação de ordem jurídica, o que os caracteriza em função dos elementos perfeitamente compatível com o sistema jurídico vigente.
que fundamentem sua imputação a um agente determinado. Com isso, o que É justamente da análise do direito positivo que se pode construir um
se afirma é que a culpa, tomada no sentido de negligência, não possui uma subsistema jurídico do delito culposo dentro do sistema penal. Está claro que
existência natural, assim como ocorre, por exemplo, com a vontade que vem a lei não nasce isolada do contexto social, daí ser imprescindível que a estrutura
a fundamentar o dolo. Aqui, a ordem jurídica tem um problema a resolver: normativa seja posta em consonância com seu substrato. A relação do substrato
como enfrentar a realização de condutas empiricamente perigosas em face com a norma e a configuração desta em face das modalidades concretas de
dos limites que lhe são impostos? Está claro que a ordem jurídica não pode conduta só se faz tendo em vista as definições e as previsões do Código Penal.
proibir todas as condutas concretamente perigosas. Se assim o fizesse, tornaria Isto é, aliás, uma consequência inexorável do princípio da legalidade.
impraticável a vida social, porquanto quase todas as condutas contêm em si
mesmas uma dose considerável de carga lesiva, não apenas aquela da direção No sistema proposto, ficou demonstrado que a conduta culposa é,
de veículos, mas até mesmo a simples utilização de um chuveiro elétrico ou a por excelência, atividade consciente e voluntária com relação aos objetos
utilização de um lápis por parte de uma criança, com o qual poderia se ferir de referência de sua execução. A afirmação de que a conduta é atividade
ou ferir outros. Como estas condutas são condutas da vida diária, não podem consciente e voluntária, ainda que resulte de uma consideração do próprio
ser estritamente regulamentadas e nem teria sentido fazê-lo em um Estado homem e de sua atividade prática, é também levada em conta pela norma e se
democrático, no qual se assegura a liberdade, como condição essencial da deixa por ela influenciar, pois esta não pode prescindir de sua ponderação no
pessoa. Há, portanto, a necessidade de se limitar a vedação dessas condutas, momento em que se procede à análise da forma como se dá a relação entre a
ou seja, há uma necessidade de se limitar o poder regulamentador do Estado. atividade causal e o dever de cuidado, tomado como objeto de referência no
Há que se guardar, entre a proibição e a carga lesiva da conduta, uma relação seu processo de comunicação. Uma vez que em qualquer atividade humana
pela qual se possa estabelecer que essa conduta esteja em vias de, efetivamen- se afigura como imprescindível sua consideração como atividade consciente e
te, produzir um dano no bem jurídico. Portanto, parece que o fundamento voluntária, em face de essa atividade expressar uma relação para com outrem,
da proibição reside na demonstração de que essa conduta é lesiva a um bem essas características da atividade como tal se inserem como proposições ade-
jurídico determinado. Daí que o pressuposto do tipo dos delitos culposos está quadas à realidade das coisas e formuladas como condição de um sistema de
assentado no processo de imputação dessa conduta. Como todo processo de garantias e limitações.
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A conclusão de que o delito culposo possui um conteúdo omissivo, aos bens jurídicos, só terá um caminho a seguir: ajustar seus mandamentos e
embora decorra da estrutura normativa, não elucida a questão da caracterís- proibições à forma e ao modo de como essa conduta se desenvolve na realidade
tica substancial da conduta negligente dentro do tipo legal. prática. Conforme essa modalidade de conduta, a norma terá, então, ao seu
Assim, será necessário estabelecer também diante do direito positivo dispor, tanto a proibição de qualquer atividade, quanto a imposição de certas
a diferença legal, que serve de base à construção do tipo de injusto, entre atividades, possibilitando, com isso, sua aplicação.
crimes dolosos e culposos. Por meio desta investigação, pode-se afirmar que Quando se assinala que é a forma e o modo da atividade concreta que
o fato de o delito culposo constituir um crime sui generis não resulta apenas condiciona a atuação normativa, não se está querendo com isto adotar-se a
da estrutura normativa, mas da necessidade, como condição de garantia, de se tese de WELZEL de que o crime culposo apenas se constitui através disso,
estabelecer sua diferença para com os delitos dolosos. Esta diferença não ilide isto é, da forma ou do modo de execução da ação, considerados como social-
a afirmação inicial de que toda atividade humana é consciente e voluntária. mente indesejáveis. A questão deve ser colocada em outros termos.
Ao invés, a diferença assinala que a dirigibilidade consciente e voluntária A forma e o modo da atividade perigosa, ou seja, o fato de que nem
dos meios causais pode, às vezes, não seguir o curso desejado pelo agente, sempre a atividade perigosa está orientada corretamente de acordo com o
mas essa defasagem entre o objetivo proposto e o que efetivamente acontece previamente projetado pelo agente gera a necessidade de se prever também,
se inclui no conceito de conduta consciente e voluntária. Isto se dá porque, para esses casos, um modo especial de atuação normativa. Com isso não
com a afirmação da existência de um objeto de referência para a conduta, se está afirmando que essa atuação normativa sempre tenha que se con-
o que se está fazendo é criar as condições para pôr à prova sua tipificação. cretizar através de imposições sobre a forma e o modo como a atividade
Ninguém nega, por exemplo, que os atos habituais foram voluntários perigosa deva ser realizada. É possível, inclusive, diante da incapacidade
e diretamente conscientes em seu momento de formação, como também do agente, por exemplo, ou de outras condições, que a atividade não deva
ninguém nega que, em face de um conceito amplo, a ausência de dirigibi- nem ser executada. Esse fato, porém, não tira a validade da assertiva de
lidade correta dos meios causais e a consequente obtenção de objetivos não que a norma se condiciona pela forma e pelo modo da atividade perigosa.
queridos possa se incluir no âmbito do que se compreende por conduta Pelo contrário, indica que a norma, condicionada pela forma especial dessa
humana. O problema, portanto, não se situa na determinação pré-jurídica atividade, institui como pressuposto de configuração da conduta proibida
das características da conduta humana como atividade negligente, mas na que esta não devesse, inclusive, ser realizada, o que vem a indicar a relação
determinação concreta da diferença entre esta e a atividade dolosa. Como recíproca entre conduta e norma, no sentido de que se a primeira condi-
este não é um assunto isento de valores jurídicos, tal só pode ser tratado e ciona a segunda, esta reage sobre aquela, segundo os pressupostos que lhe
solucionado a partir da consideração da estrutura típica. são fixados pelos procedimentos racionais de sua aplicação.
A diferença entre ação dolosa e ação culposa tem importância tanto A chamada dialetação da norma não pode ser entendida através de ação
para a identificação prática do tipo legal de delito, quanto também para a e reação verificáveis em dois segmentos isolados dos fatos em relação, mas
forma como se expressa a norma jurídica. mediante um aporte global de todo o complexo da atuação normativa. Por
Através de indagações acerca da formação normativa, ficou assentado que seu turno, a exigência de abstinência da execução da atividade não ilide a
a função do direito penal se materializa na determinação dos pressupostos da conclusão de que o crime culposo constitua um delito de conteúdo omissi-
incriminação, como lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos, bem como que vo. A norma que impõe a atividade cuidadosa, é portadora, igualmente, da
essa função é formalizada na lei e concretizada na incidência desta sobre a con- proibição de qualquer outra atividade perigosa que não seja cuidadosa. O
duta do agente. Pois bem, a origem dos delitos culposos radica precisamente agente que, sem condições concretas de cuidado, executa a atividade perigosa,
nesse enfoque de formalização-concretização. Se a norma só pode ser aplicada opõe-se tanto à proibição quanto à determinação, pois, agindo, não respeita
sob o pressuposto de que a conduta tenha causado lesão ou perigo de lesão os ditames da norma que clamavam, no caso, em favor da abstinência, e, ao
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mesmo tempo, omitiu-se do cuidado necessário e, consequentemente, não adequado à determinação do dolo, podemos admitir três espécies dessa
atendeu ao que determinava a norma. relação: a) o objeto de referência é tomado como objetivo final; b) o objeto
A razão de ser da norma de cuidado, que vem constituir o fundamento de referência se constitui como objetivo típico, vinculado a outro objetivo
do tipo de injusto do delito culposo, está, pois, na gradação que se verifica final, típico ou extratípico; c) o objeto de referência está vinculado às con-
na forma e no modo de execução da ação perigosa e suas diferenças, que dão sequências concomitantes ou paralelas da conduta, resultantes do emprego
os contornos do risco autorizado. No crime doloso, a norma simplesmente dos meios ou da própria atividade perigosa.
exerce uma atuação diretamente proibitiva ou mandamental. Contudo, à Nessa sequência, tanto se pode verificar o dolo direto quanto o dolo
medida em que a orientação empreendida pelo agente não corresponde ao eventual, dependendo da qualidade da vinculação volitiva com a direção
real desenvolvimento dos meios causais, a atuação direta da norma vai ceden- objetiva dos fatores causais. Esta vinculação volitiva se estrutura, aqui, aten-
do lugar a imposições cada vez mais tênues, até que esta não possa mais ser dendo, portanto, a certa gradação na dirigibilidade da conduta, ou seja, à
exercida e se considere o fato estranho ao direito penal. É justamente nesta forma e ao modo de sua execução.
gradação da atividade perigosa, em face da direção consciente e voluntária de Normalmente, há atividade dolosa quando toda a execução se liga,
sua execução, que nasce o sentido e a valoração jurídico-penal do cuidado, em segundo critérios objetivos de necessidade ou possibilidade, à condução vo-
que se estabelecem os delitos dolosos, de um lado, e os culposos, de outro, litiva destinada a lesar ou a pôr em perigo um bem jurídico. Especificando
e se manifestam as classificações do dolo (direto e eventual) e da negligência melhor, haverá atividade dolosa quando o agente dirige os meios causais de
(consciente e inconsciente). A questão, portanto, da compatibilidade entre a tal ordem que neles se reflete sua orientação, de modo direto e perfeito, ou
negligência inconsciente e o direito penal não deve ser discutida no âmbito como expressão necessária dos próprios meios, ou como consequência neces-
da ação, como pretenderam fazer as diversas teorias da ação, mas no âmbito sária da execução ou do alcance do objetivo (todos casos de dolo direto), ou
do tipo de injusto e da culpabilidade. como consequência possível da execução ou do alcance do objetivo, desde
As elaborações doutrinárias para diferenciar dolo e negligência, prin- que o agente se conforme com isto (dolo eventual), tudo isso com vistas a
cipalmente, dolo eventual e culpa consciente, expressas pelas teorias da lesar ou pôr em perigo um bem jurídico.
probabilidade, consentimento, sentimento e outras,638 só se mostram válidas, Em todos esses aspectos, há uma gradação na infração à norma, que vai
quando tomadas no complexo da situação de fato ou, mais precisamente, no desde a contrariedade frontal até à contrariedade conformada. No entanto,
contexto global da execução dos meios causais, conforme a relação entre a ocorre sempre aqui um confronto entre proibição ou determinação, de um
orientação da conduta e seu objeto de referência. lado, e atividade dolosa de realização ou não-realização, de outro, pois mesmo
Na realidade, a conduta dolosa importa também uma repartição da aquele que apenas concorda, tendo em vista as condições objetivas globais,
relação volitiva do agente para com seu objeto de referência. Adotando- pode querer também realizar ou não realizar, respectivamente, a conduta
-se, analogicamente, o esquema metodológico da teoria finalista, que é típica proibida ou mandada e lesiva ou perigosa ao bem jurídico.639
638. A teoria da probabilidade entende que a diferença entre dolo eventual e negligência consciente se efetiva Se o agente, porém, não concorda ou não se conforma com a reali-
através do processo de representação: se o resultado era provável ao agente, trata-se de dolo eventual
(nesse sentido, SAUER, Wilhelm. Grundlagen des Strafrechts nebst Umriss einer Recbts und Sozialphi- zação ou não-realização da conduta penalmente proibida ou mandada, a
losopbie, 1921, pág. 618; também, MAYER, Max Ernst. Strafrecbt, AT, pág. 121). A teoria do consenti- proibição ou determinação não sofre contrariedade, senão na medida em
mento exige para a caracterização do dolo a aceitação ou a conformação do agente para com a realização
do tipo e a verificação do resultado, daí a invocação das famosas fórmulas de Frank, destinadas a servir que a execução se desenrola de modo contrário ao cuidado exigido objeti-
de modelo de orientação para pesquisar-se a verdadeira intenção do agente (nesse sentido, entre outros,
BAUMANN, Jürgen. Strafrecbt, AT, p. 410; CALLÓN, Cuello Calón, Derecbo Penal, (atualização), vamente, segundo critérios pragmáticos, em face do perigo ou da lesão ao
1968, p. 420; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 263; ONECA, Anton. Derecho penal, pg, 1949, pág.
202). A teoria do sentimento desenvolveu-se com base na teoria do ânimo e pretende estipular a diferen- bem jurídico, ou seja, na medida em que sejam ultrapassados os limites do
ça no elemento subjetivo da “desconsideração” ou indiferença do agente para com o resultado: se este
resultado for indiferente ao sujeito, há dolo eventual (assim, ENGISCH, Karl. Untersuchungen über
Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht, 1930, pág. 233). Para uma visão de outras teorias, remeto-me
ao meu trabalho Teoria do injusto penal, 2ª edição, 2002, p. 334 et seq. 639. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 262
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risco autorizado, pondo em perigo ou lesando bens jurídicos. O cuidado A tarefa diferenciadora entre dolo e negligência, por conseguinte, se
de que se trata não é, assim, um cuidado genérico, que na verdade seria efetua em duas etapas: a) da confrontação entre conformar-se e não confor-
incompreensível, mas o cuidado como o conjunto de técnicas, atenção e mar-se; b) da infração normativa, imediata ou mediatizada.
diligência que são impostas concretamente à execução de uma conduta, Pela primeira, deve-se fazer um aporte geral sobre todo o processo da
frente à lesão ou ao perigo de lesão ao bem jurídico.640 dirigibilidade, a fim de se poder afirmar que, efetivamente, o agente incluiu
A imposição do cuidado, ou melhor, dessas técnicas de execução, no plano de sua atividade o que realmente ocorreu. Caso isso se dê, ou seja,
portanto, serve de suporte analítico para a identificação acerca da infração caso o agente se conforme com o resultado, já se poderá antever o momento
normativa e vem assinalar a característica da conduta culposa. O que marca, inicial de uma atuação dolosa, que será complementada na segunda etapa.
pois, a diferença entre a atividade dolosa e a culposa não é apenas a possibi- Nesta segunda etapa, evidencia-se a estruturação do respectivo tipo de delito,
lidade de que, com a execução ou com o alcance do objetivo pretendido, se em que assume importância o desvalor do ato (conduta perigosa descuidada)
verifique um acontecimento lesivo ou perigoso ao bem jurídico, sendo isto e do resultado (acontecimento material ou conduta tipificados como decor-
consentido pelo agente (dolo eventual) ou por ele afastado de verificação rência da conduta descuidada), com relação à lesão ou ao perigo de lesão ao
(negligência consciente). Na atividade culposa, a infração à norma não se dá bem jurídico. Caso o resultado tenha ocorrido por força, unicamente, da
imediatamente com a realização de uma atividade geralmente perigosa para infração ao dever de cuidado e de seu desdobramento na produção material
o bem jurídico, mas somente com a execução dessa atividade perigosa em do resultado lesivo, estar-se-á frente a um delito culposo. Com base na teoria
oposição àquelas técnicas, atenção ou diligências que se lhe impunham na sua do duplo efeito, pela qual se procede à diferenciação entre resultado dire-
execução. Só dessa forma, ademais, se poderá dizer que, analiticamente, se tamente querido e consequências concomitantes ou supervenientes, tem-se
configurou uma invasão para além dos limites do risco autorizado. Quando questionado a legitimidade de uma imputação por dolo eventual como forma
se fala, portanto, de conduta descuidada, o que se está querendo indicar é de imputação dolosa, uma vez que o conformar-se com o resultado não
que, normativamente, se impunha à execução de uma atividade uma série implicaria atuar com vontade de produzir o evento.641 Como, no entanto,
de preceitos de atenção, que, na realidade, não foram levados a efeito. Assim, o Código Penal brasileiro ainda mantém a dicotomia entre dolo direto e
quando se afirma que certo motorista atuou descuidadamente na direção do dolo eventual, acolhendo o dolo eventual como modalidade de dolo, será
veículo, implica considerar, por exemplo, que, diante da intensidade do trá- importante, então, proceder-se a uma ainda mais rígida distinção entre dolo
fego, dirigiu em excesso de velocidade, ou não respeitou o sinal vermelho, ou e culpa. Uma vez que não se possa justificar que a conduta do agente se tenha
não atendeu à distancia mínima para com o veículo imediatamente à frente, vinculado volitivamente ao resultado, haverá culpa e não dolo. Nesse sentido,
etc. Em todos esses atos do motorista, o que se está levando em consideração o conformar-se com o resultado, para constituir elemento de dolo eventual,
é a execução de uma atividade em desacordo com as imposições normativas deve ter o respaldo de elementos empíricos que demonstrem que a execução
do código de trânsito, não em face de um cuidado abstrato, que não existe. da ação não possa ser contornada pelo agente, segundo um juízo subjetivo
em face de sua capacidade de evitá-lo ou a expectativa de sua não ocorrência.
640. BACIGALUPO, Enrique. Hacia el nuevo derecho penal, Hammurabi: Buenos Aires, 2006, p. 328,
considera que a diferença essencial entre dolo eventual e culpa consciente reside na qualidade do perigo
produzido pelo agente: se for perigo direto, haverá dolo eventual, se for perigo indireto, culpa conscien- V. O SISTEMA ADOTADO E O CÓDIGO PENAL
te. Com esta postura, afasta-se BACIGALUPO da concepção tradicional sobre o dolo, que o ampara
na relação volitiva entre agente e fato, para situá-lo exclusivamente no plano do perigo, o que conduz a
tomar o dolo eventual como paradigma de sua concepção. Esta construção, embora bastante engenhosa, Ao estabelecer-se um sistema acerca do fato culposo, em que se acen-
se choca frontalmente, porém, com o art. 18, I, do CP, que fixa o conteúdo do dolo no elemento volitivo
do agente. Modernamente, pode-se ver, ademais, que a filosofia tampouco deixou de lado o elemento
tuam seus componentes normativos e limitativos, torna-se também necessário
volitivo para caracterizar as condutas humanas. Ver, por exemplo, SEARLE, John. Mentes, cerebros y confrontá-lo com o respectivo direito positivo (lei penal) para mostrar sua
ciencia, Catedra: Madrid, 1994, p. 69, que assinala como uma característica essencial da ação humana o
fato de que uma pessoa, quando a realiza, está em uma posição especial para saber o que está fazendo. logicidade e compatibilidade.
Para tanto não necessita observar a si mesma, basta que possa explicar e identificar seu próprio com-
portamento. Justamente esse domínio volitivo é que deve ser levado em conta na aferição do dolo e da
culpa, sem a necessidade de se proceder à substituição de seu conteúdo pela noção de perigo direto, que, 641. MANRIQUE PÉREZ, María Laura. Acción, dolo eventual y doble efecto, Madrid-Barcelona-Buenos
no fundo, desemboca no critério da probabilidade, nada mais. Aires: MarcialPons, 2012, p. 265 et seq.
304 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 305

A primeira objeção que opõem os partidários do causalismo a qualquer Em uma proposição universal afirmativa, tal como a do art. 13, o su-
outra teoria é no sentido de que, segundo a norma do art. 13 do Código jeito está distribuído nela (Todo S é P), mas o predicado não está distribuído
Penal, o legislador brasileiro acatou taxativamente as conclusões do sistema por ela (Todo P não é S), ou seja, toda causa é uma ação, mas nem toda ação
Liszt-BELING e que, portanto, qualquer outra formulação estaria situada é causa. A conversão de uma proposição só se torna viável, se efetivada através
contra legem. Será isto, efetivamente, verdadeiro? da limitação de sua extensão, isto é, quando a convertenda não contém os
É necessário dizer que o art. 13 induz a uma primeira conclusão: de que termos com uma extensão maior que a convertida.642
o Código Penal exige, previamente a qualquer indagação jurídica, a fixação Na proposição universal do art. 13, a noção de causa é tomada de
de um conceito de ação. Isto parece estar evidenciado, quando, ao conceituar modo a compreender que toda causa é parte das ações, pois o atributo (ação)
a causalidade, esse dispositivo deixa de conceituar ação: “Considera-se causa a é compreendido apenas numa parte de sua extensão. A proposição desse
ação ou omissão, sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Assim, para se saber art. 13 sofre, antes da definição de causa, uma outra limitação imposta pela
como se pode formular o juízo de eliminação hipotética, é preciso decidir primeira parte do dispositivo, assim consignada: “o resultado de que depende
como caracterizar o primeiro de seus elementos, que é a ação. Se assim não a existência do crime só se imputa a quem lhe deu causa”.
se proceder, perdendo-se a noção do primeiro elemento, torna-se inócua a Isto quer dizer que, para o direito penal, o importante não é só a
relação de causalidade e, consequentemente, a definição pretendida. causalidade física ou natural, mas, sim, a causalidade posta em marcha por
Em face da necessidade, pois, da prévia conceituação de ação, já se des- alguém, daí a necessidade de se tratar a configuração do delito, também, em
carta de nosso direito positivo a pretensão extremada da teoria normativista, função do processo de imputação. Tal dispositivo indica que o código, ao
que entende deva desaparecer do direito penal a problemática da ação. Como adotar a teoria da condição, abriu a oportunidade para que se lhe pudessem
está sendo visto no decorrer da exposição, é possível, porém, a construção de opor as correções necessárias, traçadas por outras teorias ou outros critérios,
um conceito de ação sem ser puramente normativo ou pré-jurídico. de modo a só imputar um resultado a alguém, se puder ser afirmado como
Por outro lado, da disposição contida no art. 13, não é forçoso concluir- obra sua e não do acaso ou de outras circunstâncias.
-se que a ação seja tomada, exclusivamente, no sentido de causa, a ponto de Ainda que se procurasse admitir, no plano da lógica, que a definição
implicar a adoção pura e simples da teoria causal-naturalista, nem outrossim do art. 13 pudesse resultar de uma inferência imediata por subalternação,
que o Código Penal tenha substituído a relevância da causalidade pela fina- isto não seria possível, pois entre a proposição universal defendida pelos
lidade da conduta. causalistas de que toda ação é exclusivamente causa (superalterna) e a uni-
versal, que está no código, de que “causa é a ação ou omissão sem a qual o
1. A ESTRUTURA LÓGICA DO ART. 13 resultado não teria ocorrido”, não há subalternação. Com efeito, na primeira
Tratando-se, como é o caso, de norma definidora de causa, com ca- (superalterna), o sujeito é ação e, na segunda (suposta subalterna), o su-
racterísticas de proposição universal afirmativa, podemos afirmar que dela jeito é causa, o que implica uma conversão anterior, e isto não é possível
deve resultar a seguinte conclusão: toda causa que importa ao direito penal é porque a convertenda (toda ação é causa) tem os termos maiores do que a
uma ação sem a qual o resultado não teria ocorrido. Com isso se estará estabe- convertida (toda causa é ação).
lecendo, todavia, uma noção de causa segundo a teoria da condição e não Haveria subalternação, se o código definisse ação de modo particular,
um conceito de ação, quer dizer, disso não se pode inferir imediatamente quer dizer, afirmando que algumas ações são causa. Mesmo assim, entre-
a conclusão de que toda ação é, exclusiva e tão-somente, uma causa. Este tanto, a inferência imediata disso conduziria a uma proposição universal
método de conversão é incompatível com a proposição universal afirmativa. indeterminada, uma vez que, na subalternação, os resultados verdadeiros
Só vale, no plano da lógica formal, para as proposições universais negativas
e particulares afirmativas.
642. LEFEBVRE, Henri. Lógica formal – lógica dialética, tradução brasileira, 1979, p. 153.
306 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 307

só se processam da superalterna para a subalterna e não vice-versa, isto é, o preenchimento do tipo de injusto pela causalidade, enquanto que, nos
da afirmação de que algumas ações são causa se poderia inferir que algumas crimes dolosos, esse mesmo tipo de injusto só se complementaria com a
causas são ações, mas não o contrário. Mas, afinal, o que seriam as causas ação finalisticamente orientada.643
que não constituíssem ações? Aqui se poderia ponderar, inclusive, que essas Mesmo que, empiricamente, se possa afirmar que, às vezes, se torna
causas seriam as chamadas causas cegas, sem finalidade. Tudo isso, porém, difícil encontrar, na atividade humana, o conteúdo volitivo que a orienta e
é incerto em termos lógicos. dirige, não se pode imediatamente concluir da definição do Código Penal
Igualmente, pelo raciocínio silogístico não se obtém outro resultado. que o legislador entendeu haver ações que funcionam, exclusivamente, como
Partindo-se da definição legal do art. 13, como premissa maior, jamais se causa de um resultado e nada mais.
chega à conclusão de que “toda ação é causa”, nem por inúmeros e variáveis Para determinar-se a validade de tal assertiva não basta a conversão por
sorites, pois, ou se pratica a falácia da equivocação, tomando um único termo limitação, pois esta nem sempre apresenta resultado correto.644 Assim, por
em mais de um sentido, ou se comete o equívoco do ilícito menor. Com exemplo, dizer-se que algumas ações são causa implica uma divisão no plano
efeito, a sequência de silogismos ficaria assim: da conduta em ações que, desde o começo, são tomadas exclusivamente como
Toda causa é a ação sem a qual o resultado não teria ocorrido. causas de um resultado e aquelas que, desde o começo, são causa e mais alguma
Ação é aquilo sem o que o resultado não teria ocorrido. coisa, como, por exemplo, causa e vontade consciente acerca do sujeito. Entre-
tanto, se concluíssemos dessa forma, cometeríamos a falácia existencial, pois
Logo, toda causa é aquilo sem o que o resultado não teria ocorrido. estaríamos pressupondo a existência de ações diversas, quando o legislador não
Aquilo sem o que o resultado não teria ocorrido é ação o fez, procurando retratar a causalidade a partir da consideração de um resul-
Logo, toda ação é causa. tado típico imputável a um autor. Está claro que essa impossibilidade lógica
no âmbito da causalidade não interfere na consideração de outros critérios
Neste sorites, há três falhas. Primeiramente, o termo médio “ação” da
normativos que fundamentam o processo de imputação.
primeira cadeia é tomado em dois sentidos diversos: um, como conceito
estrito, relativo à produção de um resultado; outro, como conceito genérico Destarte, por meio da conversão limitada, torna-se indeterminada a
de causa, derivado de inferência imediata por conversão, processo incom- validade da conclusão de que algumas ações são tomadas exclusivamen-
patível com a proposição universal afirmativa, contida na premissa maior. te como causa. Disso tudo, o que se pode concluir da interpretação do
O silogismo possui, portanto, apenas dois termos, e não três. Na segunda art. 13 é o seguinte: o código exige previamente a conceituação de ação,
cadeia, notamos a introdução de um termo médio perfeito “aquilo sem o não havendo por parte do legislador qualquer impedimento nesse sentido,
que o resultado não teria ocorrido”, mas o termo menor “ação”, distribuído nem muito menos adoção do sistema causal-naturalista. Também pode-se
na conclusão, não o está na premissa menor, praticando-se, com isso, o cha- concluir que a conversão por limitação, feita da definição de causa do art.
mado ilícito menor. A fim de que se pudesse dar validade à segunda cadeia, 13, retrata apenas a possibilidade de se proceder à separação entre ação e
a conclusão deveria ser que “toda causa é uma ação” e não o contrário. omissão, ou seja, de que as causas são às vezes ações e às vezes omissões,
fato que é ditado pelo próprio legislador, sem que isto signifique renúncia
É de salientar-se ainda que – diante da proposição do art. 13, de que
expressa a uma concepção de ação. Isto quer dizer que o legislador deixou
“causa é a ação sem a qual o resultado não teria ocorrido” – não se deve
em aberto o sistema que se poderia adotar e a formulação em torno do
realizar uma conversão por limitação, de modo a extrair a conclusão de
conceito de ação, na medida em que esse conceito possa ser utilizado para
que “alguma ação é causa”, fato que muito alegraria aqueles que pretendem
determinar os parâmetros da imputação.
superar o sistema LISZT-BELING com a combinação de postulados desse
sistema com o finalismo, tal como o faz MAURACH, para quem, nos 643. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 257, 538, 541.
crimes culposos, se trataria de compreender a ação e, consequentemente, 644. COPI, I.M. Introdução à lógica, tradução brasileira, 1974, p. 175 et seq.
308 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 309

2. AS IMPLICAÇÕES TELEOLÓGICAS DO ART. 13 poder-se-á proporcionar o verdadeiro transporte da concepção comunica-


Ao salientar que a omissão constitui causa, quando sem ela o resul- tiva de ação, antes proposta, à estrutura da norma e, consequentemente,
tado não teria ocorrido, ao contrário do que pode parecer, o código não ao tipo de injusto e à culpabilidade.
impõe que a questão da causalidade seja tratada sob aspecto puramente A disposição legal acerca da causalidade pode ser ressuscitada, por-
físico ou material. Ao invés, o código fomenta com isso a formação do tanto, dentro de novo espírito interpretativo, servindo de base ao sistema
raciocínio de que o problema da omissão deve estar afeto à formação da proposto. Observe-se que, embora a lei se ocupe aqui da diferença entre
estrutura normativa, pondo em destaque a valoração do não-agir, tanto ação e omissão, não se preocupa ainda com a diferenciação entre crimes
no aspecto social como no jurídico-penal. Nesse passo, o art. 13 tem que dolosos e culposos. Ao contrário do que propunha a teoria causal-naturalis-
ser interpretado juntamente com o que é ditado pelos seus parágrafos, não ta, a norma do art. 13 não induz à conclusão de que a negligência e o dolo
valendo o conceito de causa isoladamente. devam ser estudados na culpabilidade. Apenas os descarta da problemática
O mesmo ocorre em relação à causalidade em geral, que deve ser da causalidade e da caracterização da ação.
tratada no âmbito do tipo de injusto como um dos elementos do processo 3. AS IMPLICAÇÕES SISTEMÁTICAS DO ART. 18
de imputação. A regra contida no art. 13 refere-se, portanto, igualmente
Em complemento ao disposto no art. 13, o art. 18 do Código Penal
a um dado material e a um dado normativo. Isto está bem claro quando
estabelece muito bem a posição sistemática dessa indagação, ao enfatizar que,
se procede à sua interpretação à luz dos preceitos do seu § 2º, que subor-
no delito culposo, se trata de causar o resultado mediante imprudência, negli-
dina o conceito de omissão em geral a determinados deveres que lhe dão
gência ou imperícia. Sistematicamente isso significa que a diferenciação entre
substância, pois, só desta maneira se poderá entender que uma inatividade
delito doloso e culposo se efetua na estrutura do tipo de injusto. A menção
possa causar alguma coisa. A causalidade, então, passa a ser tratada norma-
à causalidade praticada por imprudência, negligência ou imperícia indica a
tivamente e não mais como relação empírica.
realização do desvalor do ato e do desvalor do resultado, com independência
A regra do código, entretanto, não implica necessariamente a adoção da mera produção causal e do atuar doloso.
de uma pura teoria normativista. Se assim fosse, não estaria exigindo que
Não basta, assim, à configuração do tipo do delito culposo, que o resul-
a causalidade se vinculasse na sua própria definição a uma conceituação de
tado se tenha produzido apenas pela ação do agente. É imprescindível que a
conduta. Por outro lado, na medida em que a causalidade não se resume a
causalidade se desenvolva mediante a infração aos deveres de cuidado. A falta
um dado empírico, mas conjuga esse dado com preceitos normativos, ou
de expressa menção aos deveres de cuidado não ilide essa conclusão, visto
deles até prescinde, como ocorre na omissão, não poderá subordinar-se a um
que esses deveres estão implícitos nas formas de imprudência, negligência e
conceito pré-jurídico de ação, que pressupõe ou dados puramente empíricos
imperícia. Mediante esses elementos impostos pelo legislador como elementos
(como na teoria causal), ou elementos ônticos (como na teoria finalista), ou
analíticos, tem-se a formulação da culpa dentro de um processo de imputação.
dados exclusivamente centrados na relevância social (como na teoria social
de ação). Em nenhum desses casos seria possível retratar com fidelidade a Na verdade, estas velhas modalidades já perderam a razão de ser,
omissão, sem uma referência a um dever de agir, nem, por outro lado, cons- diante da moderna investigação do conteúdo do injusto penal, que as
truir um sistema da teoria do delito em que tanto a ação quanto a omissão engloba num conjunto uniforme e harmônico, de acordo, aliás, com sua
estivessem subordinadas àqueles pressupostos. estrutura normativa.645 Como se trata de, faticamente, omissão ou não-
-cumprimento do cuidado objetivamente exigido em face da execução de
Uma vez que a ação irá implicar a consecução de um resultado ma-
terial, e a omissão seria uma forma de atribuição de responsabilidade por
645. Com esta mesma conclusão, TÓRTIMA, José Carlos. “A imperícia e o domínio da vontade nos crimes
um resultado que dela não deriva empiricamente, uma teoria da ação culposos”, in RT 666/400: “Com efeito, não parece coerente admitir-se imperícia como modalidade de
conduta culposa, quando se sabe que esta pressupõe, como já salientado, uma ação ou omissão voluntá-
não poderá ser nem pré-jurídica nem puramente normativa. Com isso ria do agente que, entretanto, não deseja o resultado lesivo”.
310 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 311

uma ação perigosa, todas essas fórmulas podem ser resumidas na negligên- que a atribuída ao delito doloso correspondente, indicando que se trata de
cia, que expressa esse conteúdo. fato, cujo conteúdo de injusto é menor e não, simplesmente, que o agente
Afirmando-se, assim, que a negligência se caracteriza, porque o agente mereça pena menos rigorosa. Se assim fosse, não seria preciso a previsão
causa um resultado através da infração aos deveres de cuidado, objetivamente isolada do delito culposo, pois poderia constituir meramente uma circuns-
impostos nas circunstâncias, afasta-se definitivamente da compreensão da tância atenuante prevista na parte geral. A proposição apresentada acerca do
teoria causal de que todo o fenômeno devesse ser tratado na culpabilidade. sistema do fato culposo a partir de um conceito comunicativo de ação é, por
conseguinte, compatível com o direito positivo.
Como a infração aos deveres de cuidado é resultado da forma e do
modo de aparição da própria atividade perigosa em função do risco auto- • SEÇÃO 2 - O TIPO DE INJUSTO NO FATO CULPOSO
rizado, se verifica na estrutura normativa como instrumento de graduação
SUMÁRIO: I. Aspectos gerais – 1. A questão do tipo aberto – 2.
do ataque ao bem jurídico, conforme os parâmetros traçados pelo processo A perspectiva de divisão dos delitos culposos – II. A ação típica – III. A
de imputação. Por conseguinte, não se trata de fato relativo ao autor, mas, lesão aos deveres de cuidado – IV. Delimitação e conteúdo dos deveres
sim, à configuração do delito em si, de sua tipificação. Está isso bem claro, de cuidado – V. A importância das normas de trânsito e regulamentos
além do que dispõe o art. 18, pelos tipos de delito culposo em espécie, profissionais – VI. O princípio da confiança – VII. A imputação do
previstos no Código Penal. Não há neles, meramente, uma diferença de resultado – 1. A questão do resultado – 2. A relação de causalidade –
3. A imputação normativa – VIII. As fases de realização do tipo.
culpabilidade, mas de injusto e de pena.
4. TIPOS CULPOSOS DERIVADOS E AUTÔNOMOS I. ASPECTOS GERAIS
Com efeito, há ainda, na legislação penal brasileira, exemplos marcan- O tipo de injusto dos delitos culposos se compõe da ação violadora
tes de delitos culposos que se encontram tipificados de modo inteiramente dos limites do risco autorizado e, geralmente, do resultado e das condições
independente dos delitos dolosos. Assim, afora os casos de crimes culpo- de sua atribuição ao agente. A ação violadora dos limites do risco autori-
sos previstos no Código Penal, que encerram uma valoração diversa do zado corresponde a uma ação perigosa, desaprovada pela ordem jurídica
conteúdo de injusto, prevê-se, no Código Penal militar, o delito de “fuga e lesiva aos deveres de cuidado. Por seu turno, a imputação do resultado
culposa de preso”, cujo tipo do art. 179 constitui delito independente e configura o processo pelo qual se possa traçar, negativamente, a relação
autônomo com relação ao art. 178. O mesmo caso se verifica nos arts. entre ação descuidada e resultado, no plano da causalidade e no plano
210 e 255 do diploma castrense. Como o direito penal é compreensivo de normativo. O processo de imputação, portanto, não é aferido aqui positi-
um todo, tão-só um conceito de delito culposo que atenda às diferenças vamente. Conforme as particularidades próprias do Estado democrático,
ocorrentes no próprio tipo de injusto e não apenas na culpabilidade seria o qual assegura, em primeiro plano, a liberdade pessoal, o tipo de injusto
apto a servir-lhe de modelo de construção dogmática. deve constituir uma condição de garantia dessa liberdade e não um modelo
abstrato de legitimação do poder de punir.
Quando o legislador prevê um fato como agravante ou atenuante es-
pecial, fá-lo ou na forma de delito qualificado, ou agravado, ou de delito 1. A QUESTÃO DO TIPO ABERTO
privilegiado, mantendo, em todos os casos, certa coerência técnica.
A inclusão, no tipo de injusto, de elementos normativos, como a lesão
Relativamente ao delito culposo, porém, o legislador não retrata nem aos deveres de cuidado e o risco desautorizado, aliada à inexistência de defi-
um privilégio, nem uma qualificativa ou simplesmente uma agravação, senão nição legal quanto ao modo e à forma de sua execução, sugere a questão se
um aliud, quer dizer, revalora as ações em face da forma ou do modo de os delitos culposos não seriam delitos de tipos abertos.646 A teoria dos tipos
atentado ao bem jurídico. Esta técnica está representada no Código Penal
em todos os delitos culposos pela previsão de outra pena, menos rigorosa 646. Assim eram tratados por WELZEL, Hans. Nota 7, p. 187. Hoje, a maioria dos autores acolhe essa
classificação: MUÑOZ CONDE-GARCIA ARÁN. Nota 8, 323; ROXIN, Claus. Nota 225, p. 950; ZA-
312 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 313

abertos implicaria reconhecer que, faltando a imagem diretora específica de elementos normativos, basicamente, do risco desautorizado e da lesão ao
para o preenchimento do tipo, praticamente não se encontraria na lei uma dever de cuidado, isto não implica qualificá-los como de tipos abertos.
diferenciação entre proibição e permissão, o que levaria à necessidade de Se tipo de injusto é hoje tomado como a descrição definitiva dos ele-
suprir essa lacuna por meio de elementos positivos da antijuridicidade.647 Esta mentos que caracterizam a conduta proibida, só resta concebê-lo como tipo
posição reflete o inverso da teoria dos elementos negativos do tipo. Enquanto fechado, pois, do contrário, estaria praticamente afetada a segurança jurídica
esta última transborda o tipo, de forma extensiva, sobre a antijuridicidade, e descaracterizada sua função como elemento fundamentador de garantia.648
aquela o diminui para aquém de seus elementos verdadeiros. Essa concepção Também o que marca o tipo é precisamente o fato de ser injusto tipificado,
dos tipos abertos é relevante, porque mostra claramente a necessidade ur- isto é, injusto específico, legalmente consignado. Isto tem como consequência
gente de se analisar o conteúdo da norma penal e de se estabelecerem regras de que nele devam estar incluídos, sem exceção, todos os elementos caracte-
legislativas que impeçam a violação do princípio da legalidade. rizadores do conteúdo de injusto de uma espécie de delito, que assinalam as
A análise da norma penal induz a considerar que o pressuposto da delimitações das zonas do lícito e do ilícito.
realização do tipo, representado pela lesão ou pelo perigo de lesão ao bem Como condição de garantia, o tipo deve possibilitar que a análise do
jurídico, só se torna materializado quando a proibição ou o comando jurí- delito se proceda em etapas bem determinadas. Se assim não se der, estar-se-á
dico se interliguem a ações concretas, tomadas segundo a forma e o modo diante de uma incriminação ilegítima. Isto não impede, por outro lado, que,
de execução. Se, por um lado, a modalidade da conduta concreta influi nessa análise do delito, possam ser antecipados alguns de seus elementos, uma
sobre a conformação da estrutura normativa, a relevância dessa conduta vez se mostrem necessários a verificar se a ação estava excluída de apreciação
em face do direito penal só se impõe, quando haja correspondência entre do direito penal, porque justificada ou não culpável. A fixação dos elementos
a compreensão normativa e a forma como essa conduta se expressou na do tipo, por conseguinte, como tipo de garantia, não implica que sua análise
realidade. Para esse liame, não será preciso, é evidente, que se parta da in- sempre, e em qualquer caso, preceda à da antijuridicidade e da culpabilidade.
dução de condutas concretas singulares, o que seria quase que impossível Como todos esses elementos do delito são instituídos normativamente, a orien-
em face da forma multifacética de sua execução. Basta que se estabeleça um tação básica é de proteção da liberdade e não de legitimação do poder. Uma vez
parâmetro de conduta concretizável, em face da realidade social, e sobre ele que se perceba a incompatibilidade da atuação do poder de punir para com a
se edifique e articule a definição legal, mas sob a condição de que a conduta, ordem jurídica democrática, em qualquer dessas etapas do delito, a antecipação
assim, definida, possa ser empiricamente avaliada. de sua análise passa da condição de mero capricho dogmático à de instrumento
A questão dos tipos abertos, por conseguinte, está intimamente ligada necessário a fazer cessar imediatamente a intervenção penal indevida.
à estrutura normativa, destinada a indicar os aspectos relevantes da ação pe- Nesse procedimento dialético, a antijuridicidade, que normalmente é
rigosa, mediante a garantia de que a intervenção estatal só se dará se ocorrer, aferida após a afirmação da tipicidade, de forma negativa, quer dizer, desde
de fato, uma lesão ou um perigo de lesão ao bem jurídico. Daí a necessidade que realizado o tipo, já se estabelece um indício de antijuridicidade (que so-
de uma definição que possa servir de objeto de referência empírica dessa mente se torna excluído, mediante a confrontação com normas permissivas
lesão ou desse perigo. Esta exigência não é mero capricho dogmático, mas de toda a ordem jurídica), passa a desempenhar um outro papel, que é o de
o resultado de uma conquista histórica da humanidade, condensada nos dar ao tipo elementos de valoração que comprometam a sua relevância. Aqui,
direitos fundamentais da pessoa humana. Apesar de os delitos culposos não deve-se partir do raciocínio de que só haverá tipo quando não existir em favor
estarem dispostos na lei, como ocorre com os delitos dolosos, e servirem-se do sujeito elementos que autorizem sua conduta, daí a relevância da caracte-
FFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 549. Entre nós, COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 55; rização do risco desautorizado, como pressuposto normativo indispensável à
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 239; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 86.
647. Sobre a caracterização e crítica da teoria dos tipos abertos, ver JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 648. Com esta conclusão, mas com outros fundamentos, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 247; PRA-
247; indicação também em FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 199; há investigação exaustiva em DO, Luiz Regis. Nota 198, p. 302; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 156; SCHMIDHÄUSER,
ROXIN, Claus. Offene Tatbestand und Rechtspflichtmerkmale, 1970. Eberhard. Nota 31, p. 158.
314 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 315

demonstração do processo de imputação.649 objetivo quanto subjetivo, são inadmissíveis, portanto, criações judiciais
Assim, a complementação pelo juiz de elementos normativos, conti- ou doutrinárias quanto a esses elementos essenciais, salvo no sentido de
dos no tipo dos delitos culposos, isto é, da comprovação acerca da conduta delimitar-lhes o alcance e a extensão.
perigosa, da violação do risco autorizado, da lesão aos deveres de cuidado Não basta, assim, aos preceitos de um Estado democrático de direito,
e da imputação, não significa um juízo positivo da ilicitude, mas exclusiva- que de tipos esparsos se infira uma conduta culposa, quando não haja nem
mente uma tarefa relativa à confrontação entre tipo e normas permissivas, previsão nem parâmetros legais para a sua identificação.650 Antes, portanto,
que figuram como elementos objetivos de valoração. Isto, evidentemente, de se buscar a classificação dos tipos culposos, deve-se estabelecer a ne-
não conduz à conclusão de que se trate de tipos abertos, os quais o julgador cessidade de uma tipificação mais eficiente e completa desses fatos, como
se encarregaria de complementar segundo seus próprios critérios. Trata-se objetivo imediato de política criminal de garantia. Como, entretanto, a
de tipos fechados, nos quais há, primeiramente, uma previsão legal sobre reformulação legislativa nesta matéria, além de morosa, é de difícil con-
a forma de sua realização, se dolosa ou culposa; depois, a demonstração cretização, em face da variedade múltipla da conduta violadora do risco
acerca da desautorização da conduta, aliada à verificação empírica de uma autorizado e do dever de cuidado, cabe à doutrina fixar, mais precisamente
condição para a sua afirmação, resultante da análise das normas de cuidado possível, os elementos que o delimitem.
e dos critérios normativos de imputação que delimitam a conduta perigosa.
2. A PERSPECTIVA DE CLASSIFICAÇÃO DOS DELITOS CUL-
É importante salientar a diferença entre as partes integrantes do juízo POSOS
de valor (objetos sobre os quais ele recai, ou objetos de valoração) e o
próprio juízo de valor. A antijuridicidade, como tal, é juízo de valor que A assertiva de que o fato culposo constitui modalidade especial de
envolve toda a ordem jurídica e não se limita pelos objetos integrantes delito de conteúdo omissivo não obsta a que se reconheçam delitos culposos
do tipo de delito. Mas nos delitos culposos, os objetos de valoração que comissivos e omissivos, de resultado e de mera atividade, de dano e de perigo.
integram o juízo de antijuridicidade estão compreendidos nos respectivos Como, entretanto, ao tratar-se da estrutura normativa, se salientou que o
tipos, como condições limitadoras de sua configuração. Está claro, porém, dever de atuação imposto pela norma é infringido pela omissão de atividade
que mesmo contornando a teoria dos tipos abertos por meio de um enfoque cautelosa, é preciso delimitar suficientemente as características dessas formas
dialético da relação tipo-antijuridicidade, é imprescindível que os delitos de aparecimento do fato negligente, a fim de não se produzir uma série in-
culposos venham expressamente previstos na lei, em atenção aos princípios findável de contradições.
da legalidade e da excepcionalidade, consoante o disposto nos arts. 1º e 18, É lícito afirmar-se que tanto o delito culposo omissivo quanto o
parágrafo único, do Código Penal. Em face desses princípios, a conduta delito culposo comissivo têm a lesão ao dever de cuidado como referência
culposa deve conter uma expressa indicação de sua característica como à violação do risco autorizado. Além disso, porém, no delito culposo omis-
culposa e vir descrita na lei em seus elementos essenciais. Estas exigências sivo, subsistem outros deveres: o de garantidor, imposto pessoalmente ao
decorrem, inexoravelmente, do fato de que as normas penais só podem ter sujeito, segundo suas relações de proteção a determinados bens jurídicos ou
legitimidade na medida em que indiquem, de modo claro, seu conteúdo e de responsabilidade por determinadas fontes de perigo, ou um dever geral
a forma de autorização à intervenção do poder punitivo. de assistência e, ainda, outras circunstâncias típicas. Assim, culposamente
Como a intervenção do poder punitivo sobre o sujeito está condi- realizados, podem ser tanto os crimes omissivos próprios (dever geral de
cionada à legalidade quanto ao modo como é executada a ação perigosa e assistência), como impróprios (dever de garantidor), desde que legalmente
verificados a lesão e o perigo de lesão aos bens jurídicos, tanto no plano 650. São inadmissíveis, assim, as modalidades culposas que poderiam ser inferidas dos delitos capitulados
nos arts. 130 (perigo de contágio venéreo), 174 (induzimento à especulação) e 180, § 1º (receptação
qualificada) do Código Penal, ainda que a proibição se faça em consonância com a infração a um dever
649. Para essa relação dialética entre tipo e antijuridicidade, permito-me remeter ao meu livro Teoria do de reconhecimento da situação por parte do agente. Nestes casos, o dever de reconhecimento está a
injusto penal, 2ª edição, 2002, p. 165 et seq. indicar o dolo eventual e não a simples negligência.
316 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 317

previstos como tal. não admite a hipótese de tentativa de fato culposo, a divisão entre delitos de
É rara, evidentemente, a ocorrência dos delitos omissivos próprios mera atividade e de resultado só tem relevância quanto à caracterização ou
culposos. Só são encontrados na legislação militar e extravagante. O Código não do desvalor do resultado, como condição de preenchimento do tipo, já
Penal Militar, aliás, contempla número significativo desses delitos, como, que em todos eles se compreende um desvalor da ação.
por exemplo, arts. 179 (fuga de preso ou internado), 196, § 3o (descum- A divisão em delitos culposos de dano e de perigo tem guarida também
primento de missão), 199, parágrafo único (omissão de providências para no direito positivo. Na maior parte dos casos, trata-se de delitos de dano, no
evitar danos), 200, parágrafo único (omissão de providências para salvar que correspondem quase que integralmente aos delitos de resultado. Con-
comandados), 322 (condescendência criminosa), 324 (inobservância de lei, tudo, entre os crimes contra a incolumidade pública, muitas são as figuras
regulamento ou instrução) e 381 (tolerância culposa), em que a característi- de delitos culposos de perigo, que podem, inclusive, expressar-se através das
ca da incriminação, orientada pelos preceitos de hierarquia e disciplina, dá formas de perigo concreto ou abstrato. Entre os delitos de perigo abstrato,
cabimento a essa possibilidade. Também o Estatuto da Criança e do Ado- por exemplo, são normalmente citados os previstos nos arts. 270, § 2o (Enve-
lescente (Lei nº 8069/90) prevê delitos omissivos próprios culposos, por nenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal), e 273,
exemplo, arts. 228 e 229. Da mesma forma, o Código do Consumidor (Lei § 2o (Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado
8078/90), nos seus arts. 63, § 2º, e 66, segunda parte, § 2º. Igualmente, a a fins terapêuticos ou medicinais). Mesmo nesses casos, a própria redação
Lei Ambiental (Lei 9605/98), em seu art. 68, parágrafo único. dos respectivos tipos está a indicar uma alteração da realidade, por exemplo,
Os crimes omissivos impróprios culposos, por sua vez, não necessitam tornar a água imprópria para o consumo, ou alterar a substância, o que deve
de tipo especial para subsistirem, pois se integram, juntamente com os deli- descartar a ideia de um perigo simplesmente abstrato.
tos comissivos, nos tipos culposos em geral e se subordinam ao princípio da II. A AÇÃO TÍPICA
excepcionalidade estabelecido no art. 18, parágrafo único, do Código Penal.
A ação que compõe, nuclearmente, o tipo dos delitos culposos conjuga
Por seu turno, a divisão entre delitos de resultado e de mera atividade em si duas características: a) de conduta voluntária; b) de conduta descuidada
não influi na violação do risco autorizado. Os delitos culposos, em sua grande e violadora do risco autorizado.
maioria, são de resultado, nos quais se prevê a verificação necessária de um
evento material separável da ação, o que traz, como consequência, a obriga- A questão da ação típica é, sem dúvida, bastante complexa nos delitos
toriedade da indagação acerca da causalidade e da imputação desse resultado. culposos, pois envolve tanto os elementos constitutivos da conduta humana
A expressão “resultado”, que fundamenta esta divisão, só pode ser entendida como conduta comunicativa, quanto os requisitos da estrutura normativa,
sob aspecto empírico e não normativo-jurídico. Se tal não fosse, a divisão expressa no dever de cuidado. Aqui se trata de saber, primeiramente, se a
não teria razão de ser, porquanto todos os delitos possuem resultado no sen- noção de conduta, antes formulada, pode adaptar-se ou não aos fatos cul-
tido jurídico. Em contrapartida, os delitos de mera atividade, nos quais se posos. Em segundo lugar, como se configura uma ação que se contrapõe,
devem incluir os crimes formais, são extremamente raros, mas se encontram simultaneamente, a uma norma proibitiva e a uma norma mandamental.
previstos em disposições do próprio Código Penal, como, por exemplo, os 1. A AÇÃO TÍPICA COMO CONDUTA VOLUNTÁRIA
arts. 270, § 2o (Envenenamento de água potável ou de substância alimentícia
ou medicinal), 278, parágrafo único (Outras substâncias nocivas à saúde), A primeira característica da ação típica, como conduta voluntária,
e 280, parágrafo único (Medicamento em desacordo com receita médica), pressupõe a compreensão do que efetivamente ocorre no fato culposo em
além das já citadas, previstas no Código Penal Militar e na legislação extra- oposição ao fato doloso, em termos de desenvolvimento do processo causal.
vagante que combinam as características da atividade com a omissão. Como No fato doloso, o agente, desde logo, vincula a realização do tipo em
o direito positivo brasileiro, conforme estatui o art. 14, II, do Código Penal, torno de seu objeto de referência, quer como seu objetivo, quer como meio
318 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 319

necessário ou como consequência superveniente ou concomitante, necessária proceder-se a uma vinculação entre essa conduta mesma e a norma de cuida-
ou possível, do emprego dos meios ou do alcance daquele objetivo, de tal do e, daí, caracterizá-la como violadora do risco autorizado. Como poderia,
modo que se coloca de acordo com isso. por exemplo, o agente orientar sua conduta segundo a norma de cuidado,
No fato culposo, ao contrário, o sujeito não vincula, desde logo, ao seu se atuasse involuntariamente? Inclusive, caso o motorista atue involuntaria-
objeto de referência, tomado no sentido de seu objetivo, a realização do tipo mente, ele simplesmente não dirige, seria um autômato, o que, na realidade,
de delito específico. Este ocorre, sem que o agente o tenha esperado. Por é incompreensível. Na medida em que a norma de cuidado, assim, se insere
exemplo, em um atropelamento, o motorista não o situa como objeto de como um objeto de referência para a atividade do agente, pressupõe que
referência de sua atuação como motorista, ou seja, não dirige o automóvel essa atividade seja, no mínimo, voluntária. O finalismo chega a esta mesma
exclusivamente em função do atropelamento e nem da morte do pedestre, conclusão, por outra via, a de considerar a vontade como elemento essencial
mas sim das condições de tráfego e condução que lhe são impostas. O atrope- da conduta, tomada em seu estereótipo pré-típico. Mas para tanto não é
lamento e a morte da vítima decorrem de circunstâncias que estão fora de sua necessário proceder-se à elaboração de um conceito pré-jurídico voluntário
relação volitiva. A relação volitiva do motorista está sedimentada basicamente de conduta. A própria estrutura do tipo dos delitos culposos impõe que a
no próprio processo de condução do veículo. conduta descuidada deva ser voluntária, pois, caso contrário, não poderia ser
atribuída ao agente. Precisamente, neste ponto, é que se juntam dogmatica-
Essa diferença do fato doloso e culposo assinala, assim, que, no primei- mente as disposições legais e as feições humano-sociais da conduta.
ro, há certa congruência entre a relação volitiva e o resultado, por um lado, e
o transcorrer da atividade material-causal, de outro, enquanto, no último, o Está claro, também, que antes de ser objeto de valoração legal, como
processo causal se complementa contrariamente ao que estava programado cuidadosa ou descuidada, a conduta congrega seus elementos humano-so-
na relação volitiva. A dirigibilidade do processo causal continua existindo, ciais, que lhe dão corpo e estrutura. Mas esses elementos humano-sociais só
mas se torna insuficiente para in concreto manobrar esse processo, de acordo têm importância na medida em que possam ser objetos de uma ponderação
com as pretensões do agente. normativa. A questão se com esta conduta o agente realizou ou não um tipo
de delito que ele não queria, isto é, que não se associava à direção volitiva
A falta de correspondência concreta entre a relação volitiva e o proces- dos meios causais, não ilide nem molesta a constituição dessa conduta em
so causal não induz, por conseguinte, à conclusão de que inexista, no fato si como atividade volitiva. Mas, por outro lado, a conduta como atividade
culposo, qualquer vontade do sujeito. Pelo contrário, só será compreensível volitiva só tem significado em face das propriedades que possa oferecer à sua
esta falta de congruência, quando se pressuponha e se admita que o agente sistematização dogmática, ou seja, a questão da voluntariedade é elemento
atue volitivamente. É que aqui a vontade não se liga ao resultado ou, no caso condicionante e condicionado da estrutura normativa. A caracterização,
de delitos de mera atividade, à realização do tipo mediante uma infração pois, de uma conduta como voluntária só tem sentido e significado em
à norma de cuidado, mas integra a conduta humana, como seu elemento função da norma que disciplina a atenção, diligência ou o cuidado que o
essencial, para os efeitos de sua apreciação dogmática. agente deve ter na direção de sua atividade.
Essa exigência de que a conduta que integra o tipo deva ser voluntária, A consideração, no tipo de injusto, do objeto de referência da conduta,
independentemente de sua apreciação como conduta descuidada, é conse- em termos de objetivo do agente, toma, portanto, duas vias: uma primeira
quência de um procedimento que deva levar em conta, na conferência dos via, de fazer valer, na constituição do tipo, como elementos próprios da con-
elementos da tipicidade, a possibilidade de que essa conduta seja capaz de duta, aqueles dados ou fatores relativos ao processo de comunicação; uma
tomar como referência de um processo de comunicação os dados normati- segunda via, de tomar esses dados em sentido limitativo da atividade típica,
vos que sobre ela incidem, para caracterizá-la como descuidada ou não. Em mas ao tempo condicioná-los ao processo de sua avaliação. A avaliação nor-
outros termos, a condição de conduta voluntária, neste caso, não importa mativa dos dados comunicativos, nos quais se incluem as condições essenciais
como dado naturalístico, mas sim como dado sem o qual não seria possível
320 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 321

da conduta, entre as quais o fato de ser ela conduta voluntária, é significativa como algo imutável, perseguido por todos, em todas as obras, nem como algo
sob a perspectiva de limitar o processo de imputação. mecânico, na forma de que as peças de uma engrenagem sejam feitas para
Nos crimes dolosos, por exemplo, o objetivo do agente está valorado alcançar o conjunto (fim). O objetivo deve ser compreendido concretamente
no tipo de injusto, associado a uma atividade voluntária, já caracterizada como limite no espaço e no tempo.
como tal por imposição normativa. Nestes delitos, a constituição da con- No processo de comunicação, os objetos referenciais se situam entre
duta como voluntária e comunicativa corresponde reciprocamente à sua si em uma relação de finitude, quer dizer, a ação visa especialmente a gerar,
avaliação normativa, ou seja, a conduta será voluntária não apenas porque no interlocutor, sua aceitação como inexorável. Uma vez, assim, proposto, o
isto constitui condição de sua apreciação como conduta humana, mas objetivo do agente também pode surgir como meio de transição, de media-
principalmente porque o tipo de delito assim o exige. Por razões de ordem ção, de passagem de uma coisa à outra.
normativa, pode o direito entender que a valoração do objetivo do agente Em uma abordagem bastante plástica da relação de finitude entre os
seja relevante por si mesmo, como nos delitos dolosos, e pode dispor, objetos referenciais, lembra LEFEBVRE que se a margem é o lugar onde
também, de modo contrário, como acontece nos crimes culposos, que termina o mar, é também onde se finda o continente, portanto, limite de um
trabalham exclusivamente sob as características descuidadas da conduta, e de outro. Entretanto, esta margem é uma realidade concreta, pois o mar
que esse objetivo só tem relevância na medida em que se associe a uma corrói o continente e este, resistindo, eleva-se ou se rebaixa, disto resultando
ação violadora do risco autorizado. Nestes, a estrutura normativa, diante que, tanto o mar quanto o continente, enquanto se limitam numa linha
da realização causal concreta da atividade, despreza o objetivo como ele- comum, são também causas desse limite, uma vez que este resulta da inte-
mento típico e passa a atuar com base na proibição ou comando indiretos, ração de ambos, em sua luta contínua. O objetivo, nestas condições, diante
justamente, da imposição de conduta cuidadosa. Quanto à condução de da reciprocidade de ações, também se realiza na causa.651
veículos, por exemplo, a relevância da incidência normativa está centrada
nas próprias condições de risco desenvolvidas por essa atividade, ou seja, na Ao compreender-se a relação entre a ação do agente e seu objetivo,
forma como o motorista deva dirigir o veículo, da velocidade imprimida, não deve o intérprete analisar exclusivamente o fato segundo um único ele-
da atenção à sinalização, da distância para com os veículos que seguem à mento singular, mas no seu todo complexo. No delito culposo, ao mesmo
frente, do uso dos faróis e da própria manutenção do veículo. tempo em que o agente delimita seu agir (propõe seus objetivos) e não o
conduz de modo correto, quer esteja ou não consciente acerca disso, está
Por desprezar essa relação material-normativa entre conduta e tipo, inserindo no contexto novos limites (objetivos), que podem ser causa de
é que não se tornou possível, até agora, compreender a função do tipo nos outros pretendidos. Aqui se observa, destarte, um conjunto de objetivos,
crimes culposos e se concluiu, apressadamente, que se trata de delitos estru- delimitadores do agir.
turados sobre uma base inteiramente causal.
Se, por exemplo, A quer chegar à cidade e para isto dirige seu auto-
Autores há, como já visto quando se tratou das particularidades da móvel, o objetivo, ou limite da atividade de dirigir, está fixado no fato de
conduta, que contestam não só a compatibilidade entre a concepção de uma alcançar a cidade. Se, porém, no meio do caminho, ultrapassa inadvertida-
atividade volitiva e o tipo de delito, como também afirmam ser ela por demais mente um sinal vermelho e vem a colher o pedestre B, o objetivo (de chegar
limitada para abarcar toda as formas de atividade, especialmente nos casos à cidade) também foi causa do atropelamento; por sua vez, este constitui o
de esquecimento e quando o agente não se propunha o alcance de qualquer objetivo concreto da direção do veículo e causa do resultado delituoso. Nesta
objetivo. A esses pode-se redarguir que tanto o esquecimento é um ato de sequência, o que se vê é que o processo causal está delimitado, precisamente,
vontade, conforme já demonstrado atrás, como também há vontade, quando pelos objetivos situados pelo agente, ou seja, se encontra inserido no próprio
o agente não se tenha proposto qualquer objetivo especial.
O objetivo de uma ação não deve ser entendido de modo absoluto, 651. LEFEBVRE, Henri. Lógica formal – Lógica dialética, p. 207.
322 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 323

processo de comunicação, que engloba diversos objetos de referência, tais ou integridade da vítima) só tem sentido se associada, previamente, a uma
como chegar à cidade, dirigir adequadamente para atender a este objetivo e norma mandamental (dirigir em velocidade adequada).
subordinar-se à disciplina normativa do trânsito. Ao compreender-se a relação recíproca, neste caso, entre comando
No complexo da atividade, pode-se estabelecer um objetivo volitivo e proibição, é necessário ter sempre em vista que o motivo da imposição
(chegar à cidade), perseguido mediante meios causais volitivamente dirigi- normativa reside no fato de o agente executar uma ação perigosa ao bem
dos (direção do veículo) e um objetivo involuntário (atropelamento), limite jurídico. Como já afirmado anteriormente – e convém novamente frisar
e causa de um fato legalmente proibido. A conduta do agente, no entanto, –, em princípio, a execução de uma ação perigosa ao bem jurídico, não se
orientava-se voluntariamente no sentido de um objetivo pretendido e se tratando de fato doloso, não é proibida. A transformação dessa conduta
limitou no resultado proibido. Uma vez que o resultado proibido não perigosa, não proibida, em atividade proibida, depende de alguns fatores: a)
correspondeu ao objetivo voluntário, a delimitação dos pressupostos da a violação de uma norma mandamental, que impõe ao agente a obrigação
tipicidade relativos à lesão ou ao perigo de lesão do bem jurídico só pode de, ao executá-la, cercar-se de determinados cuidados; b) haver a conduta
ser efetivada através da imposição de uma conduta cuidadosa. Disso resulta, violado os limites do risco autorizado. Ao violar a norma mandamental e,
então, que a forma dessa lesão se deve expressar como conduta perigosa e assim, os limites do risco autorizado, o agente, simultaneamente, viola a
descuidada, mas em razão da norma, não por um apelo ontológico, que proibição e realiza a conduta típica.
dizer, o cuidado não pode ser produto exclusivo de um decisionismo nem A violação da norma mandamental pode se dar de dois modos: a)
mera expressão linguística. quando o agente simplesmente não agir e com isso contrariar igualmente
2. A AÇÃO TÍPICA COMO CONDUTA DESCUIDADA a imposição jurídica (nos delitos omissivos culposos); ou b) quando agir
e deixar de efetuar conduta cuidadosa (nos delitos comissivos culposos).
A segunda característica da ação típica como conduta descuidada está
No primeiro caso, a omissão do cuidado se preenche pela omissão de uma
vinculada à natureza da norma dos delitos culposos. Nestes delitos, subsiste
atividade cuidadosa; no último, a omissão do cuidado se efetiva com a
uma norma proibitiva, até porque os respectivos tipos são, normalmente,
prática de uma atividade positiva descuidada.
construídos por derivação dos tipos dolosos (veja-se, por exemplo, o delito
de homicídio culposo), mas esta norma proibitiva só tem sentido se asso- Na determinação da tipicidade de uma conduta concreta, a tarefa con-
ciada a uma norma mandamental. À vista disso, há, aqui, portanto, uma siste em perquirir se esta conduta, efetivamente, foi realizada cuidadosamente
perfeita interação entre a realização de uma conduta descuidada e a omissão ou não, segundo a necessidade objetiva de delimitar a extensão do perigo
de uma conduta cuidadosa. ou do dano ao bem jurídico ou, no caso de omissão, em que figura ainda o
problema do dever de garantidor ou do dever legal tipificado, se a não reali-
Ao mesmo tempo em que o agente realiza uma conduta contrária ao
zação da conduta implicou concretamente a ausência de conduta cuidadosa,
cuidado que deveria ter, porque estava executando uma ação perigosa ao bem
esperada também pela mesma necessidade delimitativa à intervenção estatal.
jurídico, viola a imposição normativa que o obrigava a atuar de outro modo,
precisamente do modo segundo o qual o direito estabelece. Ao executar uma III. O CRITÉRIO DA MEDIDA DO CUIDADO
ação perigosa descuidada, viola a norma de cuidado, que é mandamental
Tendo em vista uma orientação limitativa, torna-se relevante, também,
e, pois, também a proibição. Por exemplo, o motorista dirige com excesso
estabelecer os critérios pelos quais se possam aferir os contornos do cuida-
de velocidade e vem a causar um atropelamento: neste caso, não atendeu
do que deveria ter sido atendido pelo agente. Desde logo, afirma-se, como
ao cuidado que a norma lhe impunha, de dirigir em velocidade adequada
condição de um direito penal de garantia, que, na aferição da tipicidade da
ao tráfego e, por outro lado, violou a proibição de não lesar bem jurídico
conduta, não se deve, em caso algum, ter por base a figura do homem prudente,
alheio, ao causar o atropelamento. Neste exemplo do atropelamento, fica
consciencioso e diligente, com cuja conduta imaginária se deveria comparar a
evidente que a norma proibitiva incidente sobre a lesão do bem jurídico (vida
324 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 325

conduta realizada pelo agente. outro padrão de conduta a ser levado em consideração para determinar a
Esta figura do homem prudente nada mais é do que uma sofistica- tipicidade. A norma não exige e não permite que tal espécie de operação
ção do conceito de homo medius da teoria causal, que tantos problemas já supra as deficiências da matéria de proibição no tipo de injusto. O que a
apresentou e que não possui qualquer fundamento científico. Na realidade norma impõe é a realização de ação cuidadosa, cuja característica deve estar
dos fatos, a figura do homo medius será inferida de juízo subjetivo-pessoal diretamente ligada à realidade concreta, em que o agente atuou, com vistas
do próprio julgador e não de um padrão objetivo e coerente. É uma ilusão a atender sua finalidade delimitativa do poder punitivo.
imaginar que tal figura possa servir de orientação ao seu juízo.652 Na verda- É necessário fazer-se uma abordagem mais aprofundada desta questão
de, em vez de fixar um padrão ou modelo orientador objetivo, o julgador do homem médio, ou homem prudente, que tanto impressiona a doutrina
se transfere, com todos os seus componentes, conhecimentos e traumas a ponto de penalistas de escol se haverem por ela orientado (por exemplo,
pessoais, à situação do agente e daí, segundo seu arbítrio (pois não há HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS,
padrão legal que o contenha), determina a conduta que deveria ser levada LUÍS GRECO e NILO BATISTA). Para poder abordar essa questão de
a efeito por ele. Assim, o critério do homem prudente seria, simplesmente, modo mais didático, poder-se-ia enfocá-la sob dois ângulos. O primeiro em
aquele que fosse fixado pelo julgador e nada mais. relação ao conceito de homem prudente, o segundo em relação à sua funda-
Por outro lado, em um Estado democrático de garantias, cada cidadão mentação em face de dados empíricos.
deve ser tratado segundo sua individualidade, ou seja, a cada um se assegura O conceito de homem prudente conduz, na verdade, a uma elaboração
um mínimo de liberdade de projetar socialmente sua existência pessoal e não livre da doutrina, ou seja, a um simples decisionismo, porquanto não existe
segundo um padrão causal e estatístico, ou simplesmente aleatório. Dentro um parâmetro legal em toda a ordem jurídica que discipline este conceito.
desta perspectiva de individualização, convém frisar que, na própria investi- O decisionismo se dá, justamente, quando a fixação dos elementos de um
gação científica mais moderna, o procedimento padronizado ou estatístico objeto fica na dependência exclusiva do observador (ou julgador), sem que
está também em franca decadência. Já não será possível afirmar, por exemplo, se lhe sejam traçadas as linhas divisórias desses elementos. Em um Estado
que determinado elemento do átomo tenha sempre uma forma de mani- de garantias, no qual se postula que as decisões sejam tomadas não apenas
festação padronizada. Com muitas indicações, praticamente incontestáveis, em função do consenso, aferido na esfera pública, mas principalmente do
informa POLKINGHORNE que por conta do experimento realizado com dissenso, uma orientação puramente decisionista é absolutamente incompa-
partículas no chamado efeito túnel se chega à conclusão de ser praticamente tível com sua estrutura democrática. Já por este aspecto se vê, então, que o
impossível estabelecer um parâmetro pré-determinado de comportamento conceito de homem prudente é insustentável em face do direito.
dessas partículas, quer dizer, ainda nas ciências naturais inexiste um funda- Ao verificar-se, ademais, sua confrontação com dados empíricos, pode-
mento para se inferir um conceito de comportamento médio.653 se concluir que, definitivamente, este conceito não tem fundamento. Para
A operação comparativa entre a conduta realizada pelo agente e a con- seguir um raciocínio empírico, o chamado homem prudente só poderia re-
duta que teria um homem prudente, como pretendem WELZEL e outros sultar de um processo de observação de comportamento daqueles que não
autores,654 está em desacordo, também, com a constituição do tipo de delito teriam realizado um ato imprudente, ou da comparação, por inferência, da
culposo e fere o princípio da legalidade, pois cria, a par da realidade típica, conceituação de homem imprudente. Por meio, então, de uma generalização
se chegaria à conclusão de que o homem prudente seria aquele que realizaria
652. REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal, vol. 1, p. 182, também reprova o critério do ho- ou não realizaria a conduta de certa forma, ou que não realizaria certa con-
mem médio, considerando-o inaceitável, insuficiente e desnecessário, visto que “cada um de nós fabrica
o seu tipo de homem médio, cuja figura muitas vezes não será sequer a imagem de nós mesmos”. duta, por exemplo, que o motorista prudente não dirigiria o veículo com
653. POLKINGHORNE, John. Quantentheorie, p. 89. aquela velocidade, ou não ultrapassaria pela direita, ou circularia de noite
654. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 187, 191; entre nós, BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, 4ª edição, Rio
de Janeiro, 2008, p. 80 ; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 239; GRECO, Luís. Um panorama da com os faróis acesos, ou não dirigiria caso houvesse tomado algumas cervejas
teoria da imputação objetiva, Lisboa: aafdl, 2005, p. 54; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 91.
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a mais do que o recomendado. Este processo de comparação, embora tenha a fato de não haverem cometido atropelamentos, justamente por este fato,
aparência de empírico, porque induz à impressão de que se está produzindo estes motoristas não poderiam ser tomados como medida comparativa, já
uma observação dos comportamentos individuais, não pode, no entanto, que estariam situados em condições diversas daquelas em que se encontrava
desvincular-se do normativo. O observador, no caso o julgador, só poderá o autor que cometeu o atropelamento. Se, ao contrário, esses motoristas
dizer se o motorista conduziria com velocidade adequada ou não ultrapas- forem tomados em consideração nas condições em que se encontrava o autor,
saria pela direita ou circularia com os faróis acesos, em face da norma que igualmente suas condutas já não são objetos empíricos confiáveis, porque
disciplina essa atividade de direção. O julgador (observador) não poderá, passam a depender exclusivamente de um juízo de possibilidade formulado
pela simples observação, concluir, por exemplo, que o motorista deve deixar pelo julgador. Na realidade, os motoristas em geral não se encontravam nas
de dirigir se beber algumas cervejas a mais, salvo com o auxílio normativo, condições do autor. Quem os coloca nesta condição é o julgador, que, com
que irá vedar esse tipo de atividade. Portanto, a conclusão acerca do homem essa inferência, contamina o dado empírico. Se, ademais, o conceito fosse
prudente, feita sobre um procedimento de comparação, é absolutamente inferido mediante a comparação com a conduta imprudente, embora se
inservível como medida do cuidado, porque incorre em tautologia, ou seja, tivessem, então, em mãos elementos mais concretizáveis para essa inferência
motorista (homem) prudente será aquele que não é imprudente em face da (as normas dizem o que se deve fazer ou não fazer), o conceito de homem
norma e motorista imprudente será aquele que não foi prudente. Como prudente seria inútil, porquanto a conduta imprudente já seria caracterizada
implica tautologia, o conceito resulta de puro decisionismo. pela própria norma e não necessitaria, portanto, de uma medida extralegal.
Ademais, no primeiro caso, em que o conceito de homem prudente Transportando essa análise para o campo analítico, teríamos o que
é aferido com base na generalização das condutas daqueles que atuem ou FRANZ EXNER retrata como acaso. O julgador, para determinar a medida
não atuem de certa forma, que poderíamos chamar de “conceito positivo do cuidado, está imbuído, por exemplo, do raciocínio do homem prudente
de homem prudente”, o conceito estaria ligado a uma observação empíri- e inicia um procedimento empírico para sua determinação. Tem em conta,
ca impossível, ou seja, os objetos padronizados tomados como medidas do por exemplo, os comportamentos dos motoristas M1, M2, M3, M4, cada
prudente, que seriam as condutas de outros que não o autor, são inservíveis, um tomado individualmente e independentemente dos demais. Em face de
porquanto observados, em todas as hipóteses, em condições absolutamente que esses motoristas não teriam cometido atropelamentos, chega à conclusão
diversas daquelas da conduta chamada imprudente. Novamente, o julgador de um conceito de motorista prudente MP, resultante da conjugação das
simplesmente imagina que todas as pessoas assim atuem prudentemente. condutas dos demais. Este seria um conceito empírico de homem prudente.
Para que a conduta generalizada fosse aferida mediante um procedimento Aparentemente parece perfeito o raciocínio de que, frente a diversos moto-
válido, deveria ser levada em conta nas condições que o autor atuou. Mas ristas (M1, M2, M3 e M4) que não cometam atropelamentos, esses podem
uma vez que leve em conta as condições concretas do autor, o conceito do ser tomados como padrão de homem prudente. Na realidade, porém, o
homem prudente já perde seu padrão, porquanto, então, passa a admitir que que se está procurando produzir é um conceito causal de homem prudente,
as condutas observadas não são aquelas que são na verdade observadas, senão ou seja, da observação dos comportamentos M1, M2, M3 e M4 resulta,
aquelas que poderiam ser observadas, caso fossem realizadas nas condições provavelmente, o padrão MP. Mas como diz EXNER, nos processos em-
em que se encontrava o autor. Essa produção empírica é, assim, inválida, píricos de observação, é preciso atentar para o fato de que quando se toma
porque sua conclusão não resulta de um dado realmente existente, mas da- cada acontecimento individualmente e independente dos demais (e não se
quele que poderia estar presente. Por exemplo, os motoristas que conduzem teria outro modo de proceder, no caso dos motoristas, porque os homens
seus veículos pelas ruas não cometem, de maneira geral, atropelamentos, isto não são entidades robóticas), o processo não pode conduzir a um resultado,
está claro, porque se cometessem a todo momento atropelamentos, o trânsi- porque então não vigoraria uma lei causal geral, senão um grande acaso.655
to de veículos seria impossível. Por não cometerem atropelamentos, seriam
655. EXNER, Franz. Vorlesungen über die physikalischen Grundlagen der Naturwissenschaften, Deuticke:
assim incluídos no conceito de homem prudente. Ocorre, porém, que pelo Leipzig, 1922, p. 681, conforme ERHARD SCHEIBE. Die Philosophie der Physiker, Beck: München,
328 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 329

No entanto, se os motoristas fossem todos unidos pelos dados comuns do ciência, pode-se considerar a experiência geral da vida no sentido que lhe
autor, já não seriam, então, outros motoristas, senão o próprio autor. Não empresta OSKAR NEGT, a partir da consideração da experiência desenvol-
haveria, pois, nem objeto de comparação nem necessidade de um conceito vida com o trabalho, primeiramente, como forma específica de produção e
de homem prudente. transformação da realidade e, depois, como reação ativa sobre essa realida-
Ao contrário dessa postulação do homem prudente, a característica de.657 Atendendo a esses dois sentidos, pode-se dizer que a experiência geral
da conduta cuidadosa deve ser inferida das condições concretas, existentes no da vida é uma forma de experiência na qual a transformação da realidade
momento do fato, e da necessidade objetiva, naquele instante, de estabelecer e sua atuação sobre ela são vivenciadas por todos, em função do trabalho
os pressupostos do perigo e da lesão do bem jurídico, ou seja, a medida do que socialmente desenvolvem, e, por isso mesmo, integrante do processo
cuidado não pode ser feita, exclusivamente, por um procedimento empírico, de cognição dos sujeitos que se orientam em determinada formação social.
mas sim sob o complexo empírico-normativo. Sem a delimitação normativa Esta experiência geral da vida não é, como poderá parecer, uma fórmula
se torna impossível a fixação dos elementos empíricos que configurariam a abstrata. Como é cunhada pelas pessoas em seus laboratórios concretos
medida do cuidado. de atuação frente à realidade, como atividade laboral, está presente em
todos os regulamentos profissionais, bem como nas relações interpessoais
Na identificação dessa conduta cuidadosa que deveria ter sido realizada como forma comunicativa de desempenho de atividades produtivas e de
pelo agente, está claro que o julgador necessita de uma orientação, e esta seus reflexos na atuação geral. A experiência não terá sentido se não estiver
orientação não pode ser tomada com a criação de uma figura abstrata, como associada a uma relação interpessoal, ou seja, uma experiência só pode
é a do homem prudente. Desde há muito tem-se pretendido formular um ser tomada em consideração como dado empírico pela norma se puder se
critério para essa orientação. Um critério mais realista, por exemplo, é o da associar a um objeto de referência da conduta.
experiência geral da vida, como na proposta feita por JOÃO MESTIERI.656
Até se pode adotar esse critério como ponto de partida para a medida do Como o que se trata é de estabelecer a medida do cuidado, a experiência
cuidado, mas convém delimitá-la normativamente para não transformá-la geral da vida, aliás, como já se disse, só poderá valer como critério medidor
em uma fórmula vazia. Não se trata aqui de buscar uma fórmula para possi- quando situada no contexto da norma. Na execução de várias atividades, há
bilitar e fundamentar a tipificação de uma conduta. Ao contrário, a fórmula inúmeras regras para seu desempenho, algumas escritas, outras não escritas.
da experiência geral da vida só vale na medida em que sirva de parâmetro Mas, ainda que não escritas, são regras de comportamento que são acolhidas
empírico negativo do cuidado instituído pela norma, ou seja, não haverá por todos os que desempenham aquela atividade específica. O sentido pro-
conduta descuidada desde que tenha sido realizada de conformidade com a posto por NEGT, de configurar a experiência em função do desempenho do
experiência geral da vida. Com isso se possibilita traçar com maior nitidez trabalho, corresponde, evidentemente, à forma como a pessoa se insere no
os desdobramentos causais que tal conduta acarreta, como pressuposto para próprio mundo. Uma vez inserida no processo produtivo, que é necessário
medir a extensão do perigo ou do dano ao bem jurídico. Sem tal medida, para sua própria subsistência, a pessoa faz de sua experiência nesse campo
torna-se absolutamente inviável qualquer processo de imputação. específico da produção de bens também uma forma de comunicação a ser
levada a efeito em suas relações interpessoais, na medida em que estas se
A fim de evitar uma contestação de que aqui se estará trabalhando desenvolvem em determinada formação social.
também com um conceito abstrato, convém esclarecer melhor acerca do
conceito de experiência geral da vida. Sem querer revisitar toda a filosofia da Vejamos um exemplo concreto da medida do cuidado. Se A, médico,
esquece, no abdômen de certa paciente, uma compressa de gaze e B, outro
2007, p. 233. médico, resolve tirá-la, mas sem respeitar as normas de cuidado, suas condu-
656. MESTIERI, João. Curso de direito criminal, p. 89. Aqui, MESTIERI utiliza a fórmula na culpabilidade,
mas nada obsta e até seria recomendável que se transferisse o critério para o tipo de injusto. Também tas podem ou não ser tomadas como culposas. Isto irá depender da atividade
crítico em relação ao conceito de homem prudente, homem normal ou bom motorista, se situa VILLA-
VICENCIO, Felipe. Código Penal comentado, 3ª edição, Lima: Grijley, 2002, p. 70; idem, Derecho 657. NEGT, Oskar. Öffentlichkeit und Erfahrung. Zur Organisationsanalyse von bürgerlicher und proletaris-
penal, pg, Lima, 2007, p. 388. cher Öffentlichkeit, Frankfurt am Main, 1972.
330 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 331

concreta que ambos praticaram. a norma mandamental. Por exemplo, na atividade cirúrgica, é comum a
Em relação a A, por exemplo, pode ser que, segundo o padrão de ocorrência de se confundirem compressas e partes do organismo, daí a indi-
homem prudente, tal esquecimento constituísse fato objetivamente impre- cação da experiência no sentido de se proceder a um rigoroso procedimento
visível. A não teria, pois, atuado culposamente. Entretanto, pode acontecer de contagem dessas compressas, antes e depois da intervenção.
que A tenha esquecido a compressa de gaze porque não realizara uma prévia Com esses exemplos, pode-se demonstrar também que a medida do
contagem daquelas outras que foram efetivamente usadas e das que levou cuidado está, por outro lado, vinculada ao desdobramento causal da con-
para usar, antes da operação. Como esta era uma tarefa necessária a impedir duta, pois, para determinar-lhe os limites, será necessário valer-se de uma
que as compressas impregnadas de sangue se confundissem com partes do ponderação sobre a extensão dessa causalidade e os critérios que devem ser
organismo, sua conduta foi negligente. Pode até ser que este fato seja impre- utilizados para, sobre essa extensão, fixar as demarcações da zona do ilícito.
visível, mas, para o profissional médico, situado concretamente na sala de Em face disso, a moderna teoria do delito culposo passou a se ocupar mais
operações, o esquecimento foi produto de uma atividade descuidada, pela dos critérios normativos da imputação do que propriamente da delimitação
omissão da conduta necessária de contar e verificar a falta das compressas de do cuidado. Com isso, procedeu-se, inclusive, a uma mudança radical na
gaze. O que valerá, portanto, para determinar se houve uma conduta cuida- compreensão do tipo de injusto, que foi se transformando em um conjunto
dosa ou não, serão os elementos da experiência geral da atividade médica à de elementos que caracterizam a violação do risco permitido e não mais,
qual o médico A estava subordinado, aliados às regras específicas relativas à simplesmente, apenas da norma de cuidado. Não obstante esta postura
sua conduta laboral. Vê-se aqui que a experiência geral não está relacionada a haver recebido a adesão de quase toda a doutrina contemporânea, a adoção
uma atividade puramente abstrata, mas a uma conduta de trabalho médico. da teoria do risco não impede que se continue a ter em vista, como etapa
Por outro lado, quanto a B, que retira as compressas e acarreta lesões preliminar, a violação à norma de cuidado como fundamento do tipo dos
na paciente, ao contrário, pode ocorrer que o padrão de conduta indique delitos culposos.
que o fato era previsível, mas as circunstâncias concretas, por exemplo, Como se verá adiante, o tipo dos delitos culposos pode comportar,
a urgência da intervenção, as condições do hospital, as características do assim, uma dupla análise: em um primeiro momento, proceder-se-á à ve-
paciente ou mesmo do material empregado induzam-no a realizar aquela rificação se houve ou não violação à norma de cuidado; em um segundo
atividade, tal como de fato aconteceu. Neste caso, a figura-padrão do momento, se fará a análise concreta do processo de imputação em face do
médico prudente se tornou excessiva em face dos limites normativos do risco autorizado e seus desdobramentos. Uma vez que se tenha negado a
cuidado inferidos da situação fática. A experiência da atividade médica violação à norma de cuidado, não haverá necessidade de se cogitar dos des-
indicará, então, que, frente àquelas adversidades, sua conduta se manteve dobramentos do processo de imputação, que terá como seu pressuposto a
dentro dos limites do risco autorizado. causalidade. É que pelas características dos delitos culposos, de se assentarem
Está claro que a solução pelo critério do homem prudente poderia ser fundamentalmente sobre uma norma mandamental como forma de subsis-
complementada com a exigência de que lhe fossem estendidas as mesmas tência da proibição, a análise do respectivo tipo de injusto é procedida de
condições em que se encontrava o sujeito concreto. Mas daí não se estará tal forma que sua primeira etapa seja a de uma investigação normativa e não
medindo o cuidado segundo o homem prudente, mas segundo o autor causal. A análise dos parâmetros normativos do cuidado deve, ademais, servir
concreto. O problema está em eliminar-se do direito penal todo e qualquer de condição necessária e preliminar da aferição da imputação do resultado.
elemento meramente fictício ou subjetivo. O conceito de homem pruden- IV. A QUESTÃO DO TIPO SUBJETIVO
te é, evidentemente, uma ficção. A experiência geral relativa à execução
de uma atividade é, ao revés, um elemento concreto, aferível, inclusive, Diante das características da ação típica, ainda que se reconheça, na ação
empiricamente, o que pode servir de elemento objetivo de referência para culposa, tanto o componente subjetivo, representado pela relação volitiva
332 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 333

entre o agente e sua execução, quanto o objetivo, expresso na causalidade, proceder-se à distinção entre tipo objetivo e tipo subjetivo, porquanto isto
não é recomendável a divisão do tipo em subjetivo e objetivo, como se costuma facilita a delimitação da ação proibida ou mandada, assinalando com nitidez
fazer com o tipo doloso. É que, neste caso, a relação volitiva final não inte- as etapas e a intensidade da produção do perigo e da lesão ao bem jurídico.
ressa à realidade normativa. A relevância da ação resulta, aqui, de puro juízo Por outro lado, a divisão do tipo em dois segmentos só tem validade, quando
objetivo sobre a conduta concretamente realizada e a violação do dever de se torne possível a congruência entre as suas partes subjetiva e objetiva, isto é,
cuidado, situando-se fora deste juízo a vinculação consciente ou volitiva entre entre a manifestação objetiva causal e a vontade conscientemente vinculada
agente e objeto de referência. Portanto, dogmaticamente, não há razão para a um objeto de referência, tomado como objetivo do agente.658 A questão da
se incluir, nos delitos culposos, um tipo subjetivo, ainda que nele se busque incongruência dos tipos foi, inclusive, muito bem retratada por MAURA-
equacionar a chamada culpa consciente. Na verdade, a culpa consciente, CH, para o efeito de disciplinar melhor o âmbito da tentativa e diferenciá-la
como se verá mais adiante, é uma questão que está vinculada diretamente à do erro, mas não para solidificar um tipo subjetivo nos delitos dolosos. A
forma e ao modo como o agente se relaciona com a norma mandamental e própria estrutura normativa dos delitos culposos, que, hoje em dia, tem
não com o resultado proibido. Relacionar-se a culpa consciente ao resultado é chamado a atenção, inclusive, para proceder-se à nova distinção entre dolo
uma velha argumentação da teoria causal e da concepção de conduta centrada eventual e culpa consciente com base na produção do perigo e não mais na
na relação meio e fim e não como um processo de comunicação. A relação consciência do agente, não comporta uma subjetivação.
subjetiva entre o agente e o resultado proibido, que se manifesta na culpa
consciente, é questão que só pode interessar à culpabilidade e não propria- V. A LESÃO AOS DEVERES DE CUIDADO
mente à tipicidade. Dizer-se, ademais, que o tipo subjetivo seria importante 1. DELIMITAÇÃO E CONTEÚDO DOS DEVERES DE CUIDADO
para retratar uma reprovação subjetiva do agente é absolutamente impróprio.
Primeiro, porque, no âmbito da tipicidade, não se trata de reprovabilidade, Deve-se estabelecer a distinção entre o dever de cuidado, associado à
nem mesmo para aqueles que aceitam, sem mais, uma culpabilidade jurídi- norma jurídica, e a lesão a este dever. O dever de cuidado tem características
ca como reflexo de uma culpabilidade moral. Segundo, porque a chamada exclusivamente normativas e se impõe, de modo concreto, a todos os que vivem
reprovabilidade subjetiva conduz a verdadeiro decisionismo, deixando nas em sociedade e desenvolvem atividades que não se dirijam direta ou eventual-
mãos do julgador a decisão final acerca da violação da norma de cuidado, mente à realização de um tipo de delito ou a um resultado típico, na medida
sem se ater às suas delimitações objetivas. Igualmente, buscar-se edificar um em que essas atividades impliquem lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico.
tipo subjetivo para nele incluir a previsibilidade é não só impróprio como A lesão ao dever de cuidado resulta da omissão da ação cuidadosa, imposta pela
um retrocesso na identificação dos elementos que a ciência moderna tem norma, no sentido de atender às funções de delimitação da atividade proibida.
agregado à sua determinação. A previsibilidade não é mais um indicativo A comprovação da lesão ao dever de cuidado se faz negativamente: se a ação
de mera falta de atenção, ou um vício da inteligência como queriam, res- realizada pelo agente era adequada ao objetivamente exigido, será cuidadosa e,
pectivamente, a antiga teoria italiana de PESSINA e IMPALLOMENI e portanto, não será típica. Caso contrário, haverá a lesão ao dever de cuidado,
aquela de CARRARA, resultante dos pós-glosadores. Hoje a previsibilidade, porque, na condução da atividade, foram omitidas as exigências impostas pela
como se verá mais adiante, sofreu uma profunda remodelação que não pode
658. Neste sentido, MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 530; STRATENWERTH, Günter. Strafrecht, Nota
ficar resumida a elementos subjetivos. Quando a previsibilidade, ademais, 126, p. 408. Entre nós, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 240: “Nenhuma função exerce aqui a
distinção entre tipo objetivo e tipo subjetivo, dada a incongruência entre o aspecto objetivo e o aspecto
é enfocada segundo a perspectiva do agente, isto não será mais matéria da subjetivo do comportamento nos crimes culposos”; também COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 69.
Contrariamente a essa formulação, MESTIERI, João. Curso de direito criminal, p. 74: “Forma-se o tipo
tipicidade, mas da culpabilidade. subjetivo do tipo culposo de homicídio com uma das modalidades previstas no art. 17, II, do Código
Penal, correspondente à natureza da conduta objeto do juízo de desvalor”; também CIRINO DOS SAN-
Por outro lado, toda a matéria referente à consciência e vontade do TOS, Juarez. Nota 93, p. 108: “...essa atitude subjetiva configura um estado psíquico necessariamente
diferente da disposição psicológica e emocional do dolo e da imprudência consciente, mas suscetível de
agente situada como objeto de valoração, só tem importância nos delitos ser definido como tipo subjetivo da imprudência inconsciente”. Também, em favor de um tipo subjetivo,
STRUENSEE, Eberhard. Grundlagen des Strafrechts, Berliner Wissenschafts-Verlag: Berlin, 2005, p. 1
dolosos. No processo de imputação dos delitos dolosos faz-se necessário et seq.
334 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 335

norma em face da lesão ou do perigo ao bem jurídico. Apesar de a moderna como dizem BINDING e JESCHECK, situa-se o dever de reconhecimento
teoria da imputação objetiva haver caracterizado o tipo dos delitos culposos do perigo.660 Esse dever constitui, logicamente, um pressuposto do cuidado ex-
em razão da violação do risco autorizado e não da norma de cuidado, nada terno, pois não é possível o atendimento de uma medida cautelar ou cuidadosa
obsta a que se estabeleçam ainda aqui os parâmetros relativos à infração do sem o dever de reconhecê-la. Nesta área, é de se levar em conta o conhecimento
dever de cuidado, que servem de etapas necessárias aos fundamentos da pró- especial do autor, bem como a gravidade do perigo e as qualificações do bem
pria imputação. Inclusive, esta separação entre a análise da infração à norma jurídico.661 Assim, por exemplo, o conhecimento especial que tem o autor de
de cuidado e os critérios de imputação é absolutamente necessária em face dos que, em determinado cruzamento e certa hora, a rua estará cheia de escolares,
delitos culposos de mera atividade, que se apresentam cada vez mais frequen- faz com ele deva esperar que surjam pessoas diante do veículo.662A mesma
tes na legislação penal e nos quais seria inaplicável a limitação da causalidade, expectativa se verifica diante de crianças brincando em ambos os lados da rua.
porquanto inexistiria a referência material (o resultado) para torná-la efetiva. Isto se estende igualmente a outros fatos. No exemplo da compressa na cirur-
Ademais, a comprovação da lesão ao dever de cuidado é indispensável gia, o especial conhecimento do médico de que essa pode ser confundida com
em um sistema no qual a ação do agente se afirme como uma atividade de órgãos do paciente faz com que esse médico tenha o dever de reconhecer que,
comunicação, isto é, que se oriente em função de um objeto de referência. na manipulação de compressas, isso possa acontecer.
Quando do enunciado do conceito comunicativo de ação, foram feitos os O dever de reconhecimento do perigo consiste, praticamente, no aten-
necessários aportes à fundamentação e justificação desse conceito e ficou dimento de condições relativas ao exercício de uma atividade, incluindo a
ressaltada a necessidade de que a ação se oriente por parâmetros de referência, condução causal e eventuais variações das circunstâncias e do desenvolvi-
como forma de vinculação entre agente e meio. Em se tratando de ação típica mento do perigo. O anestesista, portanto, deve reconhecer a possibilidade
culposa, o parâmetro de referência não poderá ser o resultado, uma vez que de reações alérgicas, tendo em vista o tipo de anestesia empregado, o estado
este está fora do processo de comunicação. O agente não se relaciona ao resul- do paciente e os efeitos secundários do produto. Da mesma forma ocorre
tado que efetivamente vem a ocorrer. O resultado só está situado como objeto com o patrão no tocante à comunicação que determinada máquina apresenta
de referência da conduta nos delitos dolosos. Aqui o objeto de referência só defeito e está em desacordo com as normas de segurança do trabalho.
pode ser a norma de cuidado, ao lado das condições fáticas de realização da Deve-se evitar, contudo, qualquer extensão exagerada das exigências
própria atividade, daí a sua relevância como elemento essencial na configura- de cuidado, quando seja absolutamente impossível o seu reconhecimento ou
ção do tipo culposo. Isto terá, inclusive, uma consequência prática imediata: este ultrapasse a medida do que pertence à experiência geral da vida diária.663
todo o procedimento penal deverá expressar, de modo claro e insofismável,
acerca de qual norma de cuidado se trata e de que forma fora violada. Por exemplo, o motorista não deve reconhecer o fato de que alguém,
em ação de suicídio, se atire de um edifício em queda livre sobre seu carro.
Tendo em vista a estrutura da norma proibitiva nos delitos culposos, o Deve, porém, contar com a possibilidade de os freios não funcionarem a con-
conteúdo do dever de cuidado se manifesta de duas formas: primeiramente, tento, quando em velocidade excessiva, ou trafegando com lonas ou pneus
pelo dever de reconhecimento do perigo para o bem jurídico, resultante da ação molhados ou sobre areia. Dadas, ademais, as características do veículo, por
a ser realizada (cuidado interno), e, depois, pelo dever de se abster dessa ação exemplo, em se tratando de carro novo, o motorista não tem o dever de
perigosa ou somente efetuá-la sob cautela (cuidado externo).659
660. BINDING, Karl. Die Normen, I, p. 499; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 578.
(1) O DEVER DE RECONHECIMENTO DO PERIGO (CUIDADO 661. Neste sentido, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 578; orientando-se unicamente pela própria ativida-
INTERNO) de e não pelo bem jurídico, SEILER, Robert. “Die Bedeutung des Handlungsunwertes im Verkehrsstra-
frecht”, in Festschrift für Maurach, 1972, p. 86: “O núcleo da responsabilidade em delitos negligentes
Localizado no plano intelectivo do autor, constituindo dever preliminar, situa-se em que o autor permaneceu aquém do dever de cuidado e não que ele tenha causado uma lesão
ou perigo concreto ao bem jurídico”.
662. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 579; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 227.
659. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 578 et seq.; WESSELS-BEULKE. Nota 234, 32ª edição, 2002, p. 663. Mais ou menos neste sentido, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 579; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 188;
227. WESSELS-BEULKE. Nota 234, 2002, p. 227.
336 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 337

reconhecer defeitos de fabricação dos componentes, ainda mais quando ga- Nesses casos, a infração ao dever de cuidado não resulta da forma de
rantidos de modo manifesto pelo produtor. Uma vez que esse dever prévio execução da atividade, mas da própria realização dessa atividade. Isto não
não possa ser cumprido, porque inexigível, não há que se falar, então, de significa que a forma de atividade negligente não condicione a norma, como
delito culposo. já exposto atrás, mas que a forma concreta da execução dessa atividade negli-
gente, às vezes, não é a única modalidade de infração ao dever de cuidado.
(2) O DEVER DE REALIZAR CONDUTA CUIDADOSA OU DELA SE
ABSTER (CUIDADO EXTERNO) Por exemplo, o leigo que resolve fazer em alguém uma operação delicada não
infringe o cuidado apenas porque se tenha saído mal na intervenção, mas
Desde que o agente deva reconhecer o perigo para o bem jurídico como por não se abster de realizá-la.
resultado de sua ação, é de exigir-se-lhe, em consequência, conduta adequada
aos preceitos proibitivos e mandamentais. Esse dever pode consubstanciar-se (B) A EXECUÇÃO DA AÇÃO CAUTELOSA
ou na total abstenção da conduta perigosa ou na execução de ação sob as
A segunda consequência do dever de reconhecimento do perigo é a execu-
medidas adequadas de cuidado. A divisão, nestes dois aspectos, do dever de
ção da ação, tomando-se as devidas precauções para não ultrapassar os limites do
evitar a realização do tipo, conduz a um aperfeiçoamento da prática judiciária,
risco autorizado. Esse dever vem ligado, na doutrina jurídica, às atividades do
vindo a atender à mais perfeita incidência da norma sobre situações concretas
chamado “risco permitido”, que se destina a encontrar uma solução dentro
diversificadas. O atendimento do chamado cuidado externo se manifesta com
do direito para a permissão de certas atividades, consideradas perigosas por
a abstenção da conduta perigosa e a execução da ação cautelosa, aliadas ao dever
natureza, mas, ao mesmo tempo, tidas como socialmente úteis. Isto se refere
de atenção, controle e guarda e ao dever de prévia informação e preparação.
especialmente à utilização dos meios rápidos de transporte, à implantação de
(A) A ABSTENÇÃO DA CONDUTA PERIGOSA indústrias de gás, eletricidade ou nucleares e à confecção de substâncias vene-
nosas para a agricultura ou para o consumo doméstico e assim por diante. No
A primeira consequência do reconhecimento do perigo ao bem jurídico sistema finalista, essas atividades estariam compreendias no que WELZEL
deve ser, via de regra, a abstenção da conduta perigosa. Esta abstenção deve ser denominou de ações socialmente adequadas.
imediata e repentina e tomada sempre em vista, desde que o agente, com a
atividade, não se encontre em condições efetivas de evitar o perigo. A teoria do risco permitido, na verdade, chega, em certos casos, a uma
conclusão sui generis: de identificar o cuidado devido com o próprio risco
Aquele que, apesar da inaptidão, realiza uma atividade perigosa, para a permitido. Como a questão não estaria em se determinar o cuidado devido,
qual não estava preparado, infringe especialmente o dever de cuidado. Aqui mas em delimitar a extensão do risco autorizado, toda atividade perigosa
se dá o caso que a doutrina chama de “culpa pelo excesso”.664 Tal não implica em geral, mas que é socialmente útil, poderia ser considerada dentro do
necessariamente habilitação profissional, mas, sim, aptidão ou capacidade cuidado objetivamente devido. Isso pode gerar, por um lado, a visão de que
concreta de efetuar a atividade. Por exemplo, o motorista recém-habilitado a norma encerra uma proibição geral de perigo, conforme os padrões de
não deve aventurar-se a conduzir veículos em ruas de tráfego intenso, se não utilidade social. Este ponto de partida não é correto, pois não observa que
estiver suficientemente prático e experiente para isso, nem deve participar de todo perigo só constitui objeto de proibição, na medida em que se concretize
competição automobilística. O mesmo se passa com o médico recém-forma- em determinada atividade e sua forma de execução, ou seja, quando efetiva-
do com relação aos atos de extrema delicadeza e habilidade.665 mente seja potencialmente danoso ao bem jurídico. De conformidade com
664. DREHER, Eduard. Strafgesetzbuch, 1976, p. 73; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 580; LACKNER- Bina Vince se pode afirmar que perigosa não é a instalação industrial como
-KÜHL. Strafgesetzbuch, 24ª edição, München: Beck, 2001, p. 99; MAURACH, Reinhart. Nota 65,
p. 576: “(...) a negligência não se situa, nesse caso, na ação arriscada (que o autor, materialmente, não tal, mas a atividade realizada no exercício dessa indústria em relação a um
podia realizar melhor do que efetivamente o fez), mas na assunção de uma atividade, cujo realizador
reconhecia não estar para ela preparado”; SANGUINETTI. La colpa penale nella circolazione stradale, bem jurídico concreto.666 Esta consideração tem relevância, porque a simples
Milano: Giuffrè, 1976, p. 178.
665. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 576: “Atua negligentemente (...) o médico clínico-geral, quando o mento através de médico que se descuidou de sua progressiva formação científica”.
encaminhamento do paciente ao médico especialista era de se impor; igualmente a assunção de trata- 666. BINAVINCE, Emilio. Die vier Momente der Fahrlässigkeitsdelikte, p. 75.
338 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 339

subsunção da conduta à atividade industrial permitida não a classifica como JESCHECK de que quanto maior valor social ela significar, menor deverá
cuidadosa, nem socialmente útil. Tudo depende, portanto, da forma e do ser o perigo que se deve esperar de sua execução.668
modo de execução dessas atividades. Além do mais, hoje se questiona, com Esta ponderação de JESCHECK tem lugar no tratamento ao trânsito
propriedade, a prática de certas atividades industriais, em face de sua ação de veículos, bem como, até em maior grau e escala, na forma e no modo de
destruidora do meio ambiente, bem como do próprio equilíbrio e harmonia execução da atividade laboral, efetivada nas grandes indústrias e outras fontes
da natureza, a tal ponto de comprometer-lhes a própria funcionalidade social. produtivas, onde se criam condições ótimas de concretização de perigos e
O problema, portanto, se desloca do âmbito da tipicidade para aquele dos danos à integridade física, à saúde e a vidas humanas, devido sobretudo à
próprios fundamentos do injusto. substituição da proteção e defesa desses valores individuais, indispensáveis à
Está claro que há certa espécie de atividade, que, pela possibilidade de vida coletiva, pela instrumentalização do lucro.669
acarretar perigos incalculáveis, necessita de uma limitação e de normas rígidas
de segurança, como medidas preventivas a sérios desastres ecológicos e huma- (D) O DEVER DE PRÉVIA INFORMAÇÃO E PREPARAÇÃO
nos. Sua autorização ou proibição não pode ficar, assim, exclusivamente, na Ligadas ao dever de cuidado na execução da atividade concreta estão
dependência de sua utilidade social. Por outro lado, na medida em que estas também as exigências de prévia informação e preparação a serem tomadas
atividades perigosas se situem como objeto de valoração do tipo culposo, suas como medidas preliminares a essa execução. 670
características de perigosidade e risco devem submeter-se aos parâmetros das
A esse dever de se informar e se preparar para a execução de uma
normas de cuidado, a fim de possibilitar a exata dimensão desse perigo e de seus
atividade, está por igual associado o dever, já anteriormente mencionado,
efeitos. Aqui, já não se está tratando de medidas de proteção, mas de elementos
de reconhecimento do perigo para o bem jurídico. Tendo em vista este
a determinarem se esse perigo, apesar de sua utilidade social, ultrapassou ou
binômio reconhecimento do perigo-informação e preparação, como cui-
não os limites fixados normativamente para a sua admissibilidade.
dados prévios, é que se estipula, por exemplo, a norma impositiva de só se
Não obstante, como se verá adiante ao se tratar do processo de impu- permitir a condução de veículos por pessoas habilitadas segundo regras e
tação, o risco permitido poderá servir de elemento limitativo, quando for exames convencionados.
levado em conta como fator que intervenha na relação entre a infração à
Essa norma, por sua vez, não encerra a amplitude e a espécie desse
norma de cuidado e o resultado danoso.
dever. Pode tanto se referir, por exemplo, a uma habilitação para dar rápido
(C) O DEVER DE ATENÇÃO, CONTROLE E GUARDA
diagnóstico acerca do perigo, quanto a assenhorear-se acerca de ativida-
de concreta determinada. Essa norma impositiva da prévia habilitação se
Uma vez atendido o risco produzido pela execução de certas atividades, estende desde a condução de veículos até atividades profissionais ou de
é de se levar em conta o dever de atenção, controle e guarda a todos os que execução perigosa ao bem jurídico.
se encontrem interessados na realização dessas atividades.667 Esse dever de
atenção, controle e guarda tem que se associar ao tipo de atividade concre- Assim, no tocante à possibilidade de diagnóstico da situação de
tamente realizada, pois, caso contrário, se cairia na teoria dos riscos gerais. perigo, ali se incluem o diagnóstico médico de identificar prontamente
A atividade concreta que se desenvolve sob as condições da atividade poten- certa enfermidade e ainda a previsão, a um físico nuclear, de acidente em
cialmente perigosa é que estabelece os requisitos e especificações do cuidado determinado reator, conforme o conhecimento informativo e preparatório
a ser atendido. Relativamente às atividades da vida social que, pela sua natu- que tiveram ou que deveriam ter tido.
reza, encerram uma potencialidade de perigo, pode-se aceitar o princípio de 668. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 581.
669. Ver o sempre atual relatório de CIRINO DOS SANTOS, Juarez. “As origens dos delitos de imprudên-
cia”, Revista de Direito Penal, nº 23, p. 59 et seq.
667. Neste sentido, mas fiel à teoria do risco permitido, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 580; também 670. Por esta exigência prévia, ENGISCH, Karl. Untersuchungen über Vorsatz und Fabrlässigkeit im Strafre-
SAMSON, Erich. Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch, comentário 16 ao § 16. cht, p. 290; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 581.
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Há que se estabelecer, também, o dever de informar-se sobre as condições ao autor e não mais pela lesão a um dever de cuidado objetivo (que seria
de uma atividade concreta. O agente, antes de executá-la, deve tomar as devidas obviamente o resultado da estrutura normativa).
precauções, segundo as informações que dela deveria ter. Assim, por exemplo, o Essa individualização do dever de cuidado, apesar de representar tenta-
motorista deve informar-se acerca das disposições e regras do trânsito vigentes tiva de superação do critério do homo medius por algo mais concreto, implica
em certo país, antes de aventurar-se a executar a condução do veículo. confundir entre as imposições da norma em abstrato e a conduta concreta.
Aqui, no entanto, do mesmo modo como ocorre com o dever de reco- A conduta concreta, evidentemente, pertence ao homem que a realiza, mas,
nhecimento do perigo, não se deve estender demasiadamente esta exigência, no tipo de injusto, ela é tomada como objeto de incidência normativa e não
mas apenas associá-la concretamente à atividade que é desenvolvida pelo em relação ao seu sujeito.
agente e nas circunstâncias concretas em que ela se realiza. Caso contrário, Não há critério definitivo e perfeito para estabelecer a medida desse
tornar-se-ia impossível a prática de qualquer atividade, pois, na maioria das dever de cuidado. Embora a melhor solução possa ser a de utilizar-se o critério
vezes, devido mesmo às circunstâncias vitais, a prévia informação detalhada da previsibilidade objetiva, baseado no que seja efetivamente necessário para
de tudo não se materializa na execução dessa atividade, como, por exemplo, dimensionar efeitos danosos ou perigosos de uma determinada conduta, 674
em relação às normas direcionais vigorantes para certa cidade. o critério individualizador pode ser empregado, porém, no âmbito da limi-
Há que se mencionar ainda que esse dever de informação e preparação tação da causalidade, em face de situações nas quais a previsibilidade deve ser
não deve ser tomado em sentido genérico, mas individualizado para o caso aferida pela posição do autor concreto. Isto será visto mais adiante quando
específico da ação a ser realizada. Assim, por exemplo, um médico não será da análise dos critérios próprios de imputação.
descuidado pelo fato de não haver estudado adequadamente no seu tempo Desde que não seja possível a aplicação do critério de previsibilida-
de Faculdade, mas, sim, porque executou ação concreta para a qual não de, porquanto se trate, por exemplo, de delito culposo de mera atividade,
estava habilitado no momento dessa execução.671 Da mesma forma, embora pode ser invocada também, como medida do dever de prévia informação,
o motorista deva informar-se acerca das regras de condução em uma cidade, a regularidade com que se realiza a atividade sem produzir perigo ou lesão
antes de empreender a atividade de conduzir, não será culpado por não se ao bem jurídico. Em função dessa regularidade, será possível afirmar-se, em
haver informado previamente do sentido de uma determinada via, mas pela consequência, se o resultado era ou não objetivamente evitável, segundo a ex-
sua desatenção às placas indicativas desse sentido. periência da vida diária, quer dizer, se podia, nas circunstâncias concretas em
Tal como ocorre com a caracterização da ação descuidada, a medida do que se encontrava o agente, ser tomado a sério por ele, segundo sua profissão,
cuidado não pode ser dada, aqui, nem pela concepção do homem prudente, papel social, grau de instrução e facilidades de reconhecimento do perigo e
consciencioso e diligente, ainda que postado na posição e papel concreto de informação, e de seu preparo diante da execução da atividade concreta.
do autor e associado ao critério da previsibilidade objetiva, com referência Nisso tudo, devem ser eliminados do tipo de injusto todos os processos
à profissão, ao círculo social e às circunstâncias da vida diária,672 nem pela causais anormais ou inadequados, segundo juízo ex ante da situação do perigo.
capacidade individual do próprio autor.673 No primeiro caso, estaríamos jo- Não se deve, entretanto, considerar um processo como anormal ou inade-
gando com o conceito abstrato do homo medius; no segundo, com elementos quado e, assim, descaracterizar a exigência de cuidado, quando o descuido
individualizantes, referentes à culpabilidade, o que implicaria caracterizar o defluir da maneira como vem sendo executada uma forma determinada de
tipo de injusto com a lesão a um dever de cuidado individualmente imposto atividade. Mesmo que todas as pessoas atuem descuidadamente de certa
maneira, tal atividade pode ser tida como descuidada, tudo dependendo de
671. Assim, ENGISCH, Karl. Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht, p. 396; KAU-
FMANN, Arthur. Das Schuldprinzip, p. 157; MAYER, Max Ernst. Strafrecht, AT, p. 131 como foi executada no caso concreto.675
672. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 241; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 582; WESSELS-
-BEULKE. Nota 234, p. 227. 674. BLEI, Hermann. Strafrecht I, p. 265.
673. COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 61; JAKOBS, Günther. Studien zum Fahrlässigen Erfolgsdelikt, 675. BLEI, Hermann. Strafrecht I, p. 265. Vinculando-se à apreciação ex ante da situação de perigo, sem
p. 69; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 411; OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht, vol. I, p. 172. maiores indagações, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 582.
342 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 343

No tráfego urbano, é incomum no Brasil, por exemplo, o atendimento destinam, em princípio, a servirem de modelos e preceitos de execução das
de muitas regras de direção, sobretudo, da preferência da direita, como esti- atividades sociais ali abrangidas. Para se determinar a importância dessas
pula o Código de Trânsito brasileiro e as normas internacionais da condução normas no tocante à lesão ao dever de cuidado do tipo de injusto, deve-
de veículos. Nem por isso essa atividade pode ser antecipadamente conside- se, antes de tudo, esclarecer acerca de sua natureza jurídica. Pode-se, em
rada como irrelevante, por inserir-se no contexto de processo causal anormal princípio, afirmar que tais normas constituem, na verdade, preceitos direti-
ou inadequado, ou seja, porque todos assim agem. Há que se distinguir, vos, preliminares da norma penal. Devido à predestinação desses preceitos
entretanto, entre a habitual infração à norma de cuidado e a regularidade da à norma penal, viável será incluí-los no chamado direito de ordem pública,
prática da respectiva atividade. Se, por um lado, o costume é o de infringir parte do direito administrativo que engloba regras de conduta social, cujos
a norma de cuidado em determinadas condições, disso não se pode concluir destinatários são ou a coletividade em geral ou certas pessoas que se dedicam
que se trate de conduta juridicamente irrelevante. Mas se o costume estiver a uma atividade particular, isto é, os motoristas profissionais e amadores, os
associado a um procedimento de regularidade, de modo que disso não resul- médicos, farmacêuticos e dentistas, os engenheiros, os industriais, etc.
te, normalmente, perigo ou lesão ao bem jurídico, isto implica uma limitação Geralmente, a infração a estas normas acarreta sanção de ordem ad-
ao dever de cuidado. Outros desdobramentos dos processos causais anormais ministrativa, imposta pelo Estado na forma de multa, impedimento ou
serão tratados mais adiante quando da limitação da causalidade. suspensão da atividade, ou seja, na forma de advertência, a fim de que o fato
São numerosos os casos de condutas que, habitualmente, infringem não se torne a repetir.
normas de cuidado, por exemplo, a ultrapassagem pela direita, o uso in- Os autores, em sua maioria, têm mantido uma contínua divergência na
discriminado e fornecimento de antibióticos pelas farmácias, sem a devida determinação de sua natureza jurídica, havendo quem entenda constituírem
receita médica e sem conhecimento da enfermidade real e das reações essas infrações exclusivamente atentados a bens administrativos e não a bens
peculiares do paciente, o não-atendimento de normas de segurança do jurídicos,676 terem como consequência somente efeitos sociais específicos e
trabalho, como não usar cintos fixadores nos andaimes, a aquisição comum não lesão individual ou cultural,677 esgotarem-se na desobediência e não se
de mercadorias sem nota (importante para a caracterização de uma recep- submeterem a qualquer desvalor de ordem ética ou representarem um con-
tação culposa, etc.). Em todos esses casos, embora o dever de cuidado se teúdo de injusto insignificante em face do direito penal.678
veja violado, o fato pode comportar igualmente outra análise no âmbito
da imputação do resultado, inclusive, para excluí-la, conforme os critérios Outros, ao contrário, têm suscitado objeções à autonomia de infrações
que regulam a fixação dos limites do risco autorizado. administrativas de tal categoria frente ao direito penal, como o fazem, por
exemplo, MATTES e BERISTAIN. O primeiro, autor de alentado estudo
2. AS NORMAS DE TRÂNSITO E OS REGULAMENTOS PRO- sobre o tema, rechaça a teoria da autonomia em geral, concluindo que: a)
FISSIONAIS inexiste um direito penal administrativo autônomo; b) as infrações à ordem
Ao chegar-se à medida do cuidado e sua extensão, bem como ao pro- pública implicam uma lesão de bem jurídico e têm base ética como qualquer
blema dos processos causais anormais ou inadequados, ressalta a questão da delito; c) as infrações à ordem pública são uma decantação do direito penal
influência, na configuração do tipo de delito culposo, da infração às normas de polícia e de administração, isto é, direito penal contravencional.679
do trânsito ou técnicas de profissão e regulamentos de certas atividades. Esta
676. Nesse sentido, outrora, MAURACH, Reinhart. Tratado de derecbo penal, tradução espanhola de Juan
matéria será também tratada mais adiante, quando da análise dos critérios Córdoba Roda, 1962, vol. I, p. 21.
limitativos da imputação pelo fim de proteção da norma. Aqui o que inte- 677. WOLF, Erik. “Die Stellung der Verwaltungsdelikt im Strafrecht”, Frank-Festgabe, p. 524.
678. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 5, 18; Eberhard Schmidt, Strafrecht und Disziplinarrecht, 1950, p.
ressa é situar a relação entre estas regras profissionais e o dever de cuidado 871; SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 207 (contraditório).
integrante do tipo de delito culposo. 679. MATTES, Heinz. Untersuchungen zur Lebre von den Ordnugswidrigkeiten, obra póstuma, org. por
Herta Mattes, Berlin: Duncker Humblot. Entendendo, praticamente, que as infrações à ordem só se
distinguem dos delitos pela natureza da sanção, BRENNER, Karl, Ordnunswidrigkeitenrecht, Mün-
Essas regras estão contidas, geralmente, em disposições esparsas e se chen: Vahlen, 1996, p. 3. Por sua vez, GÖHLER-KÖNIG-SEITZ, Gesetz über Ordnungswidrigkeiten,
344 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 345

BERISTAIN complementa a tese de MATTES, assinalando que: a) os Pela própria estrutura dessas infrações à ordem pública, pode-se con-
delitos de trânsito têm dimensão ética, não só de lege ferenda, como em face siderá-las como relativamente independentes do direito penal, pois, se,
do direito positivo; h) essa proteção formal pressupõe e encerra um conteúdo algumas vezes, congregam elementos desse ramo do direito, referindo-se a
material; c) as infrações de tal espécie referem-se ao bem jurídico público salus conteúdo material, a objeto vinculado a um valor, a bens jurídicos e a aspec-
publica, coincidente com o sentido de justiça e seu pressuposto.680 tos éticos, por outras vezes, dizem respeito exclusivamente a regras diretivas,
Ao compreender-se bem a característica e a natureza dessas infrações, sem qualquer conteúdo ético-social.
será, antes de tudo, imprescindível dizer que não há, no direito brasileiro, Essa relativa independência está mais evidente ainda no direito brasi-
tal preocupação, pois não possuímos uma lei como a Gesetz über Ordnungs- leiro, em que as regras de trânsito, bem assim as normas técnicas de profissão
widrigkeiten de 1968, cuja origem remonta a uma lei de 1952 na Alemanha. (médicos, farmacêuticos, dentistas, engenheiros) ou regulamentos indus-
Essas infrações à ordem, aliás, já vinham sendo objeto de inúmeros projetos triais, não se situam num contexto legal comum, nem mantêm com o direito
de reforma do velho código alemão de 1871, desde 1911, mas só vieram a se penal qualquer semelhança estrutural, mas o tomam como uma instância
tornar realidade após o término da Segunda Grande Guerra, com a edição, mais elevada, desde que, através das infrações, se efetive uma lesão de bem
primeiramente, em 1949, da lei das infrações penais econômicas. A lei de jurídico-penalmente relevante.682
1968 tem amplitude muito maior do que as meras infrações às regras do O problema da classificação dessas normas dentro dos ramos existentes
trânsito, chegando a congregar efeitos semelhantes aos previstos em nossa no direito não está afeto diretamente ao fato culposo. Aqui, o que se preten-
lei de contravenções. Isto pode ser explicado historicamente, pois, através da de saber é se, infringido um regulamento diretivo ou uma regra técnica de
primeira lei de reforma do direito penal alemão de 1969, conjugada com a profissão, arte ou ofício, se pode automaticamente pressupor a lesão ao dever
lei de infrações à ordem pública de 1968, excluíram-se do Código Penal as de cuidado e, portanto, conduzir ao preenchimento do tipo de injusto penal
contravenções, fazendo com que ou se incluíssem algumas nos delitos, ou culposo. Do mesmo modo, se, atendidas inteiramente essas normas, se tem
outras, nas infrações à ordem pública. Antes disso, porém, o regulamento como inadequado o processo causal e, por conseguinte, irrelevante para fins
de trânsito de 1968 passou a compreender também infrações que se regiam de realização desse tipo de injusto culposo, tendo em vista não se caracterizar
pela parte geral da lei de infrações à ordem pública (§ 49). Desde então, a lei qualquer lesão ao dever de cuidado.
disciplinadora dessas infrações congrega tanto aspectos das contravenções,
quanto fatos relativos às normas de direção de veículos e outras regras. Daí Com base nas conclusões referentes à relativa autonomia das normas do
tornar-se extremamente complicada sua natureza jurídica. trânsito e regras técnicas de profissão com relação ao direito penal, ressaltada
ainda mais pelas particularidades de nosso direito positivo, não se pode reco-
A doutrina considera, sobretudo, que todas as infrações do trânsito nhecer, de antemão, nas infrações a essas normas, um apêndice do processo
que não constituam delitos, bem como outras infrações referentes ao direito causal ou da lesão ao dever de cuidado relevante para fundamentar o injusto
tributário, às normas de proteção ao meio-ambiente, ao comércio de medi- penal. Ao contrário, o que ocorre é apenas o descumprimento de meras e
camentos, ao regulamento das atividades práticas da arte de curar, etc., estão simples indicações, com apoio na experiência comum e repetida, de como
incluídas no âmbito das infrações à ordem pública.681 se deve praticamente conduzir veículo, ou realizar certa atividade de modo
München: Beck, 2002, p. 3 et seq., entendem, por um lado, que as infrações à ordem se diferenciam,
formalmente, dos delitos, por implicarem a imposição de uma pena de multa administrativa (Buße), 682. Desde o projeto governamental de 1979, relativo aos crimes de trânsito (DOU de 15.6.79), se pretendeu
e não uma pena de multa criminal ou uma pena restritiva de direitos ou de liberdade; por outro lado, fazer valer, no Brasil, a proposta de transformar simples infrações regulamentares em infrações penais
consideram que, em face de decisões da Corte Constitucional, contenham essas infrações um menor (delitos). Neste projeto de 1979, se consignava, por exemplo, como delito o seguinte: Art. 10. Violar
conteúdo de injusto do que os fatos criminais. regra de trânsito, expondo a perigo a vida, integridade física ou a saúde de outrem; Art. 14. Conduzir
680. BERISTAIN, Antonio. Objetivación y finalismo en los accidentes de tráfico, Madrid: Reus, 1963, p. 54 veículo motorizado que não tenha licença ou autorização especial para circular, sem placa de identifi-
et seq. cação ou com placas ou selos falsos ou ilegíveis. Com tais disposições, a finalidade do projeto era a de
681. Referências em JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 57 et seq.; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 8 criminalizar as infrações regulamentares em grau mais alto do que simplesmente prevenir acidentes de
et seq.; SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Nota 31, p. 207 et seq.; GÖHLER-KÖNIG-SEITZ. Gesetz über trânsito. Isto está demonstrado com o art. 14, que pretendia considerar delito a utilização de veículo sem
Ordnungswidrigkeiten, 2002, p. 1 et seq. placa. Felizmente estas propostas não foram acolhidas nem no atual código de trânsito.
346 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 347

racional e de forma que não ocasione perigo à ordem ou à segurança pública. A infração à norma regulamentar constitui apenas indício da lesão ao
São, portanto, normas práticas de eficiência e não normas de cuidado nos dever de cuidado, imposto pela norma penal.685 O importante é, assim, o que
termos em que se vislumbra nos tipos de injusto dos delitos culposos. deveria ser concretamente realizado para se evitar o perigo e não a infração
Apesar de essas normas disciplinarem tarefas específicas de certas profis- abstrata de norma de trânsito ou de regulamento destinado a traçar regras
sões, não são suficientemente abrangentes para atender as diversas situações técnicas de profissão, arte ou ofício.686
perigosas ocorridas em concreto, como exige o dever objetivo de cuidado.683 Se o que devesse concretamente ser realizado o fosse de tal monta que
Assim, como não se pode afirmar a adequação ao dever de cuidado da con- excedesse a medida do normalmente previsível e evitável, segundo um juízo
duta que se conserva nos limites das normas regulamentares, por se exigir concreto de adequação, não se pode inquinar de defeituosa a conduta do
atenção ou cuidados maiores, segundo as circunstâncias concretas (por exem- agente, apesar de haver ocorrido a lesão do bem jurídico.
plo, manter a velocidade permitida, quando a situação de perigo impõe a É evidente, porém, que, nesse juízo, como se ponderou, deve também
imediata abstenção da atividade, como a parada instantânea do veículo diante ser levado em consideração o conhecimento especial do agente no tocante ao
de escolares que saem do colégio), do mesmo modo não se pode afirmar caso concreto e à situação vigorante no momento da realização da atividade.
já, na infração a essas normas regulamentares, lesão ao dever de cuidado Um neurologista, por exemplo, deve saber, em face de seus conhecimen-
objetivamente exigido nas circunstâncias (por exemplo, ultrapassar a velo- tos especiais, que, em caso de púrpura hemorrágica, há sempre o perigo
cidade permitida em local absolutamente desabitado ou deserto).684 Há um concomitante de hemorragia cerebral e que, com esse quadro, uma punção
erro comum, principalmente, na jurisprudência, de considerar que a forma lombar produzirá inevitavelmente a morte do paciente. Um exímio nadador
grosseira como são infringidas estas normas conduziria à lesão ao dever de ou guarda-vidas não pode desenvolver a atividade de nadador principiante
cuidado e até mesmo à assunção do risco do resultado, o que implicaria, neste ou inexperiente e, assim, chegar ao local de socorro no mesmo ritmo de bra-
último caso, a configuração de um delito doloso. É perfeitamente possível çadas em que este chegaria, ou empregar as mesmas técnicas de salvamento
que um motorista, por exemplo, conduza em excesso de velocidade e, ainda de um leigo, permitindo que a vítima se afogue, antes do socorro definitivo.
assim, não tenha infringido a norma de cuidado em face das circunstâncias Nestes dois exemplos, pode acontecer tanto ao médico quanto ao salva-vidas
concretas do caso. Uma vez que a norma de cuidado só tem relevância na executarem suas tarefas, atendendo às normas técnico-cirúrgicas ou da arte
medida em que se relacione à conduta concreta, porque só a partir daí é de salvar e, mesmo assim, devido ao conhecimento especial de ambos e às
que se pode dizer que efetivamente essa conduta estará relacionada à norma características concretas das respectivas ações, lesarem o dever de cuidado.
proibitiva, a infração às regras de trânsito, por exemplo, não é suficiente por Isto, está claro, não pode implicar automaticamente a realização tipo de
si mesma para configurar uma conduta descuidada (e, muito menos, dolosa). injusto culposo. Além da violação da norma de cuidado, há que se proceder
Caso se aceite o argumento contrário, estar-se-á fundando o injusto penal a à análise da imputação normativa.
partir da criação de um dever geral de proteção, o que viola o princípio da
legalidade, que exige que cada dever esteja previamente configurado no tipo Especificamente ao caso do médico, depois de longa discussão realiza-
de delito e não na ordem jurídica como um todo. da em Frankfurt (Alemanha) com o professor costarriquenho Gustavo Chan
Mora, que está dedicado a estudar as particularidades da responsabilidade no
âmbito da arte de curar, chegamos à conclusão de que os conhecimentos es-
683. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 190.
684. BLEI, Hermann. Strafrecht I, p. 265; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 582; MAURACH, Reinhart. peciais que aquele neurologista disponha não poderão, por si só, conduzir à
Nota 65, p. 560; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 412; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 190. Entre infração à norma de cuidado, porque esta norma não lhe impõe o dever sobre-
nós, filiando-se a Lenckner, “Technische Normen und Fahrlässigkeit”, in Festschrift für Engisch, p. 490
et seq., entende FRAGOSO, Heleno Cláudio (Nota 93, p. 241), que a observância da norma regulamen-
tar exclui a tipicidade da conduta. Na doutrina italiana, a violação de regras especiais estipuladas nos re-
-humano de curar, mas apenas de evitar a morte ou lesão no paciente. Tudo
gulamentos constitui praticamente uma presunção de negligência (assim, BETTIOL, Giuseppe. Direito
penal, vol. II, pág. 122 e a maioria); a jurisprudência, porém, superando o positivismo jurídico, desde 685. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 190.
há muito, tem entendido de modo diverso (referência informativa em Sanguinetti, La colpa penale nella 686. Esta concretização do cuidado é que efetivamente marca a relação normativa da dimensão do perigo ao
circolazione stradale, p. 121 e 129). bem jurídico para com a forma de atividade.
348 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 349

depende, portanto, do enfoque que se deva dar à norma de cuidado. Haveria, Segundo este princípio, todo aquele que atende adequadamente
entretanto, violação da norma de cuidado por omissão, caso o médico se obri- ao cuidado objetivamente exigido, pode confiar que os demais copar-
gasse diretamente com o paciente a usar seus conhecimentos especiais e não o ticipantes da mesma atividade também operem cuidadosamente. 689 A
tivesse feito, embora pudesse fazê-lo. É que aí, então, em face dessa obrigação consequência da aplicação deste pensamento no direito penal será a de
assumida diretamente para com o paciente, o médico estaria situado na posição excluir a responsabilidade dos agentes em relação a fatos que se estendam
de garantidor do bem jurídico e teria o dever de impedir o resultado. para além do dever concreto que lhes é imposto nas circunstâncias e nas
Muitas vezes, a infração à norma regulamentar coincide com a lesão condições existentes no momento de realizar a atividade. Em face disso,
ao dever de cuidado, na medida em que essa infração esteja medida de pode-se compreender o princípio da confiança sob dois aspectos: como
conformidade com as condições concretas de execução da atividade. Há critério limitador do dever concreto de cuidado ou como delimitador
inúmeros exemplos em que a lesão ao dever de cuidado coincide com a in- do risco autorizado, conforme se dê, respectivamente, maior ênfase à
fração à norma regulamentar. Assim, quando o motorista cometa seguidas estrutura normativa ou aos contornos empíricos da norma proibitiva.
infrações de trânsito que impliquem um perigo ao bem jurídico (dirigir em Na verdade, tanto em um como em outro caso, as soluções conduzirão
velocidade só compatível numa pista de corridas, mas em uma rua estreita; ao mesmo desfecho, que será o de limitar a incidência da norma crimi-
dirigir na contramão em avenida de tráfego intenso e durante o período nalizadora ao caso concreto. Parece, à primeira vista, que, atendendo
mais crítico do dia); ou quando se determinar que um operário da cons- à postulação de que o tipo dos delitos culposos está assentado sobre a
trução retire, em meio à tempestade e sem usar luvas e sapatos de material violação do risco autorizado, se pode dizer que o princípio da confiança
especial ou qualquer isolante corporal, fios elétricos que estejam caídos implica um critério de delimitação daquele risco, ou seja, a incidência
nos andaimes; ou se autorizar o tráfego de veículos pesados sobre viadutos do princípio da confiança impede o reconhecimento de que a ação do
novos, sem a prévia prova de carga, havendo veículos ou pessoas que circu- agente incrementou ou aumentou o risco de produção do resultado. Este
lem em vias que possam ser alcançadas por eventuais desabamentos de seus é o raciocínio empreendido por ROXIN e que, talvez, deva prevalecer
pilares, etc. Embora, em todos esses exemplos, se possa dizer, então, que a na doutrina jurídica.690 Tendo em vista, porém, esse duplo enfoque, será
infração regulamentar coincidiu com a lesão objetiva de cuidado, convém correto também conservar-se o princípio da confiança no âmbito da
observar que isso só ocorreu porque o cuidado imposto normativamente estrutura do dever de cuidado, o que poderá implicar ainda uma delimi-
deixou de ser atendido, concretamente, pelo autor. A coincidência das tação da extensão das normas que disciplinam expressamente a atividade
infrações, portanto, não implica que uma possa determinar a outra. arriscada, como, por exemplo, as normas de trânsito. Mas convém obser-
var que, como será absolutamente impossível exigir-se de cada pessoa uma
VI. O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA atenção extraordinária, que pudesse ir além daquela que lhe era atribuível,
Na doutrina penal moderna, tem-se particularmente salientado, como segundo juízo concreto de adequação, este princípio vigora como limita-
limitador concreto do dever de cuidado, o chamado princípio da confiança. O dor, precisamente, no âmbito da atividade concreta, quer esteja ou não
princípio da confiança foi desenvolvido pela jurisprudência, especialmente, expressamente disciplinada.691 Como o princípio da confiança é extraído
no direito de trânsito. Hoje tem aplicação mais ampla, estendendo-se a todos de uma atividade concreta, convém destacar alguns grupos de casos para
os setores em que haja uma atuação conjunta, ou seja, atividades comunitá- dar maior clareza aos seus contornos.
rias ou em divisão de trabalho.687 Alguns autores, inclusive, como JAKOBS,
o utilizam como critério geral de imputação.688
689. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 228.
690. ROXIN, Claus. Nota 697, p. 1070.
687. ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, 4ª edição, vol. I, p. 1070; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 427; 691. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 208 et seq., entende que o princípio da confiança consti-
WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 228. tui um critério de exclusão da imputação objetiva e não propriamente um limitador da extensão do dever
688. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição p. 208 et seq. de cuidado.
350 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 351

1. PERIGO POR AÇÃO NATURAL E POR AÇÃO HUMANA dever de atuação ou de omissão naquelas hipóteses em que essa atividade
Na elaboração desse princípio, deve-se proceder, previamente, à distin- ou inatividade estejam diretamente associadas à lesão do bem jurídico, não
ção entre o perigo produzido pelas forças naturais e aquele criado por ação importando a utilidade social de sua atuação.
de outra pessoa. Tratando-se de perigo produzido pelas forças naturais (por Salvo na hipótese de ação conjunta e vinculante, ninguém, em prin-
exemplo, o resultante de inundação ou qualquer calamidade), tem-se esta- cípio, deve responder por ações defeituosas de terceiros. Ao invés, pode até
belecido que vigora o preceito de que todo e qualquer risco deve ser evitado mesmo confiar em que todos os demais atendam aos respectivos deveres de
por todos, desde que previsível e não admissível, segundo uma razão mais cuidado.693 Modernamente, está associado a esse dever o princípio de autor-
elevada de utilidade social.692 Quando, porém, o perigo provém de atividades responsabilidade, que é, na verdade, um critério de limitação da imputação
humanas singulares, teria aplicação regra inversa: neste caso, o perigo não e não, propriamente, de limitação do dever de cuidado. Um exemplo, no
precisa ser calculado, uma vez que a pessoa humana que o produziu é, por qual se estipulam as duas espécies de produção de perigo e as respectivas res-
si mesma, responsável por essa produção, de tal modo que toda desgraça, ponsabilidades, é mencionado por STRATENWERTH: deve um motorista
levada a efeito através de sua conduta contrária ao cuidado, lhe deva ser, contar que certa galeria de estrada se tornou obstruída por detritos de toda
exclusivamente, computada. Estes critérios são criados a partir de decisões ordem, durante longo temporal (perigo ocasionado por ação natural, que
estratificadas dos tribunais alemães. Apesar de expressarem um pensamen- todos devem evitar), mas não precisa contar que os encarregados da limpeza
to bem elaborado, convém esclarecer melhor sua aplicação. Está claro que dessas galerias e, por elas responsáveis, se omitiram de as desobstruir, con-
quando se trate de perigos resultantes de forças naturais, pelo fato mesmo trariando, assim, o dever de cuidado.694
de que não podem ser atribuídos à atuação específica de alguém, devem ser
2. CONDUTA DE OUTREM PROVAVELMENTE PERIGOSA
levados em consideração por todos. Ocorre, porém, que esse dever de cuida-
do que se impõe a todos deve ter uma limitação centrada na intensidade dos É preciso considerar que este princípio, que foi elaborado, precisamente,
perigos que podem resultar diretamente aos bens jurídicos em decorrência de para estabelecer limitação concreta do dever de cuidado, não vigora quando,
atuação concreta dos agentes diante das condições naturais adversas. Neste em virtude de circunstâncias especiais, resultar absolutamente provável, se-
caso, não vale uma regra geral de dever. É preciso que se verifique, primeiro, gundo a experiência da vida diária, que a conduta de outrem lesará o dever
se o dever pode ser atendido fisicamente pelo agente. Por exemplo, diante de de cuidado. Nessas circunstâncias especiais situam-se as distrações manifestas,
um tornado, parece que muitos deveres de cuidado, que poderiam ser exequí- os casos de embriaguez, os defeitos físicos, a idade avançada, a imaturidade,
veis em outras condições, são de cumprimento impossível, dada a variação bem como as condições concretas da atividade em certa localidade.
que se processa na própria produção do perigo. Dizer-se, por exemplo, que, Assim, por exemplo, nas localidades onde não se atende à preferência
neste caso, se deve ficar em casa e não na rua, ou que não deve ou se deve dos veículos vindos da direita (como no Brasil), é indispensável que o condu-
dirigir veículos, tem o mesmo significado. Em um terremoto, por exemplo, tor cuidadoso não confie em que os outros motoristas executarão, também,
pode ser adequado deixar as residências, criando-se então um dever de assim condutas cuidadosas.695 Igualmente, por exemplo, se o médico-assistente
se proceder em relação a alunos de uma escola. Mas se o terremoto é de tal está embriagado, não pode o médico-chefe confiar em que aquele irá efe-
intensidade que produz rupturas nas próprias ruas, aquele dever se torna sem tuar um diagnóstico perfeito ou prescrever o medicamento adequado. Está
sentido. Afinal, qual das atividades será a mais adequada? Cria-se, na verdade, claro, todavia, que estas circunstâncias não abalam o princípio da confiança,
uma situação de conflito insolúvel. Por outro lado, tem-se que verificar até quando não interfiram diretamente na lesão de bem jurídico. Por exemplo,
que ponto a questão da utilidade social está ou não associada diretamente à se o médico-assistente é cego, mas sua atuação se limita apenas a escutar os
lesão do bem jurídico. O agente só estará obrigado ao cumprimento de um
693. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 427; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 191.
694. STRATENWERTH, Günter. Strafrecht, AT, 2ª edição, 1976, p. 314.
692. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 427. 695. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 927.
352 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 353

batimentos cardíacos, o médico-chefe pode confiar nas suas informações. confiar. Contudo, se o médico estiver embriagado e, neste estado, prescrever
medicamentos, não poderia confiar em que essas enfermeiras se conduzissem
3. DEVERES ESPECIAIS DE CONTROLE de conformidade com o cuidado exigido, porque, diante da condição do
Tem-se assentado, também, que não se pode aplicar o princípio da médico, ainda que este prescrevesse os medicamentos corretamente, pode-
confiança nos casos em que o dever de cuidado esteja dirigido, exatamente, riam as enfermeiras desconfiar da correção de seu ato e, assim, igualmente
no sentido de controle, fiscalização e guarda de condutas de outrem,696 não cumprir sua determinação. Por sua vez, o engenheiro que não fiscaliza
principalmente quando dizem respeito a ações de crianças ou enfermos setor de sua responsabilidade não poderia, igualmente, confiar em que seus
mentais ou a realizações difíceis e arriscadas, compreendendo-se aí cirurgias subordinados o façam cuidadosamente, porque estes poderiam também
ou experimentos científicos, a utilização de energia nuclear, o trabalho em contar que seus próprios erros passem pelo crivo da fiscalização.
máquinas de ação automática, etc.697 Por exemplo, o engenheiro que é De qualquer modo, esta regra não deve valer de modo absoluto, sendo
encarregado da supervisão de todos os trabalhos executados em uma obra de se acolher, aqui, a ponderação de ROXIN no sentido de que o impor-
não pode confiar em que seus supervisionados cumpram seus respectivos tante será determinar o que, efetivamente, produziu o resultado, isto é, se o
deveres, porque a fiscalização se estende também à verificação concreta resultado decorreu ou não da violação ao dever de cuidado. Assim, embora
desse cumprimento. Igualmente, aqui, ainda que o engenheiro tenha como o motorista esteja dirigindo em estado de embriaguez, deve ter excluída sua
ocupação o controle da atividade dos demais, o seu dever estará limitado culpa se o acidente resultar, exclusivamente, do não-atendimento do cuidado
à verificação das atividades concretas dos subordinados que estejam dire- pelo outro condutor (por exemplo, que não observa a via preferencial). Neste
tamente ligadas à lesão do bem jurídico. Por exemplo, o engenheiro que caso, o emprego do princípio da confiança está justificado em face do critério
fiscaliza uma escavação não pode confiar em que as estacas de contenção normativo suplementar de imputação, de se excluir aqui a negligência, se o
lateral tenham sido colocadas pelos empregados, deve ele mesmo verificar acidente não puder ser evitado, ainda que o motorista estivesse sóbrio.699
se isto de fato ocorreu. Mas não precisa verificar o número de empregados
utilizados na colocação dessas estacas, quanto a isso pode confiar na ade- Diferente é, todavia, o caso do excesso de velocidade mencionado no
quação da mão-de-obra realizada pelo feitor. parágrafo anterior, que deve ser visto sob outro ângulo. Se o motorista em
velocidade normal pudesse evitar o acidente, ainda que o outro houvesse
4. CONDUTA DE OUTREM CONTRÁRIA AO DEVER desrespeitado a via preferencial, o princípio da confiança não o socorre, ainda
Normalmente, diz-se que é irrelevante a alegação da confiança como que respaldado pelo critério normativo suplementar da conduta alternativa.
limitador do dever de cuidado por quem atua, por si mesmo, de modo con- É que, neste caso, o resultado foi exclusivamente obra sua, sem a interferência
trário a esse dever.698 Assim, o motorista que dirige pela preferencial, mas do outro motorista. Como veremos mais adiante, o critério da conduta alter-
em excesso de velocidade, não poderia confiar em que outros atendessem à nativa é também utilizado em todos os momentos do processo de imputação.
sua preferência, até porque, ao cruzar uma via preferencial, o motorista que 5. A PARTICIPAÇÃO CULPOSA EM AÇÃO DE OUTREM
se encontra em via secundária também espera, para calcular o tempo que
lhe resta para fazer o cruzamento, que o motorista da preferencial circule Além dos casos específicos dos delitos culposos, pode-se aplicar, ainda,
em velocidade adequada. Por outro lado, o médico não está, em princípio, o princípio da confiança para solucionar questões da participação culposa
encarregado de fiscalizar os atos privativos das enfermeiras, porque pode neles em ação subsequente de outrem. Esta participação pode ocorrer de duas
formas: a) quando a ação subsequente de outrem é culposa; b) quando a
ação subsequente é dolosa.
696. Assim, em conclusão, PUPPE, Ingeborg. Strafrecht Allgemeiner Teil im Spiegel der Rechtssprechung,
Baden-Baden: Nomos, 2002, p. 135. Como se sabe, não é possível a participação culposa em crime doloso,
697. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 563; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 428.
698. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 927; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 563; STRATENWERTH, Günter.
Nota 126, p. 429. 699. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 928.
354 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 355

de modo que o autor culposo possa responder como se tivesse em concurso equacionar melhor as delimitações da responsabilidade do autor antecedente,
de agentes com o autor doloso. Mas há casos em que o agente atua com vio- convém proceder-se, nestes dois casos, a uma diferenciação entre as atividades
lação da norma de cuidado e, em virtude disso, contribui para que outrem dolosas e culposas relativas à atuação subsequente.
possa realizar uma ação dolosa. A questão aqui é determinar se o agente cul- Quando se trate de atuação dolosa subsequente, o critério a ser usado
poso, embora não seja coautor ou partícipe do crime doloso, responde pelo deve atender aos mesmos parâmetros do princípio da confiança que vigoram
crime culposo correspondente e até que medida isto realmente é admissível. nos casos em que o autor antecedente atua cuidadosamente. Aquele que atua
JESCHECK entende, por exemplo, que, nesta matéria, devem ser di- cuidadosamente, salvo em casos especiais, não precisa preocupar-se com o fato
ferenciados dois grupos de casos: a) no primeiro caso, a infração ao dever de de que outrem possa atuar dolosamente.702 Os casos especiais são justamente
cuidado já congrega em si mesma o perigo de verificação do resultado típico; aqueles nos quais é manifesta a atuação dolosa de outrem.
b) no segundo caso, a infração ao dever de cuidado não constitui um risco Por exemplo, o caso do farmacêutico tem que ser desdobrado em
juridicamente abusivo.700 algumas variantes. Se ele tivesse tomado todas as precauções na venda do
No primeiro caso, tratar-se-ia de comportamento de tal forma desa- veneno, não precisaria preocupar-se com que essa substância pudesse ser
tento que o agente efetivamente poderia prever, sem maiores problemas, utilizada para matar uma pessoa pelo comprador. Sua atuação se situaria
o resultado típico. Assim, por exemplo, realizaria o tipo do delito culposo dentro do dever de cuidado e isso não lhe poderia prejudicar. Problemática
de homicídio o farmacêutico que tivesse vendido ao homicida, mediante é a hipótese em que o comprador já demonstrasse a inequívoca intenção de
infração à norma de cuidado, a substância venenosa, sabendo que esta era utilizar o veneno para matar. Aqui, como era manifesta a intenção quanto à
altamente perigosa e que só poderia ser fornecida sob estrita vigilância e teria lesão de bem jurídico, se poderia dizer que o farmacêutico não poderia in-
restrita aplicação terapêutica. Da mesma forma, seria autor de delito culposo vocar em seu favor o princípio da confiança, independentemente se atuara
de homicídio o médico que liberasse da internação um paciente psicopata, cuidadosa ou descuidadamente quanto à exigência de receita ou quanto à
sem a cautela de comunicar o fato a seus familiares, embora soubesse que identificação do medicamento.
aquele poderia assassinar, como o fez, sua própria família, porque isto lhe Convém, no entanto, analisar melhor a última hipótese. A pergunta
fora repetidas vezes relatado.701 Seria ainda autor do crime culposo de ho- que daí resultaria seria a seguinte: está o farmacêutico obrigado a verificar,
micídio aquele que emprestasse seu automóvel para que outrem o dirigisse, quando vender qualquer medicamento, a intenção do comprador? Em prin-
embora não tivesse para isso habilitado e nessa condição (lesando a norma cípio, a resposta seria negativa. Não se insere, no dever do farmacêutico, o
de cuidado) atropelasse e matasse um pedestre. Em todas essas hipóteses, a dever de verificar a intenção do comprador de seus remédios, até porque
atuação subsequente dolosa ou culposa seria manifesta, e o agente, ao saber este comprador poderá fazer com o medicamento o que bem entenda, tudo
dessas circunstâncias, infringiria, por sua vez, grosseiramente uma norma de dentro de sua própria atuação e responsabilidade. Mas, e se o comprador ma-
cuidado relativa ao exercício de atividade que lhe era própria. nifestar sua intenção de matar? Neste caso, a atuação do farmacêutico deverá
No segundo caso (em que a violação da norma de cuidado não consti- ser apreciada sob outras regras: se a conduta do farmacêutico de entregar ao
tui um risco desmedido), o agente só seria responsável pelo delito culposo, comprador o medicamento constituir um recurso indispensável para a con-
se tivesse um conhecimento especial acerca das circunstâncias, do contrário secução do plano criminoso subsequente, pode-se-lhe imputar o resultado
restaria impune, por não ser permitido um regresso causal infinito. morte, a título de culpa, porque sua atuação constituiria uma contribuição
Ainda que o critério utilizado por JESCHECK seja válido como forma idônea para a realização desse delito doloso, de modo a se poder dizer que,
de particularizar a extensão da violação do dever de cuidado e poder, assim, com isso, violou também uma norma de cuidado, a de não fornecer ins-
trumentos idôneos para a consecução de resultados lesivos subsequentes,
700. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 572 et seq.
701. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 573. 702. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 430.
356 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 357

quando estes resultados dependerem de sua conduta; se, porém, a atuação conteria em se tratando de fatos culposos subsequentes de outrem. Em face
do farmacêutico se situar apenas como mais uma via de consecução do delito disso, somente quando se possa reconhecer que a conduta de terceiro se dirige,
subsequente, além de outras, sua conduta não teria um grau de idoneidade direta e imediatamente, no sentido de um crime doloso e que a atuação do
suficiente para servir de suporte à produção do resultado, podendo, então, agente seja meio idôneo para sua consecução, é que não se pode nela confiar,
invocar em seu favor o princípio da confiança. daí resultando, como consequência, um delito culposo autônomo.
Quando se trate, por outro lado, de atuação culposa subsequente, o Nesse contexto, pode ser solucionada uma série de fatos, que até hoje
emprego do princípio da confiança apresenta contornos distintos. Para esses perambulam na culpabilidade, como, por exemplo, da pessoa que empresta
casos, que se referem a acontecimentos em que não se concretiza um objetivo um revólver a seu amigo para ser por este utilizado em defesa pessoal, diante
diretamente contrário à norma, é sempre mais fácil prever-se uma conduta de atos de roubo, mas que é surpreendida ao saber que fora utilizado para
descuidada ou cuidadosa subsequente do que para os fatos dolosos, em que a matar, por motivo de pura vingança; ou do comerciante que vende soda cáus-
relação volitiva se encaminha no sentido oposto à proibição legal. É o que se tica a uma dona de casa e esta vem a empregá-la para envenenar o marido.
dá na entrega da direção do automóvel a uma pessoa incapacitada de exercer A mera solução de previsibilidade não basta para caracterizar o tipo de
essa atividade, porquanto será sempre possível prever-se que, da sua execução, injusto desses fatos, pois, dependendo da situação, era o fato previsível, mas
algum resultado indesejado pode decorrer. Neste aspecto, quando a atuação não se poderia reconhecer que fosse o objetivo imediato do sujeito. Nestes
do sujeito for descuidada, mas não constituir um risco desmedido, deve ser casos, pode-se dizer que ao sujeito não se poderia exigir uma ponderação
atendida a ponderação de STRATENWERTH, em oposição a JESCHECK, acerca da evitabilidade do resultado, como extensão do dever preliminar de
de que só haverá realização do tipo culposo se a produção do resultado sub- reconhecimento do perigo. É que, em se tratando de ação dolosa de outrem,
sequente (aquele que o agente cometer culposamente), for não apenas uma o dever de evitar o resultado só opera quando a ação do agente constitua uma
consequência possível, mas, principalmente, seu único fim possível.703 Assim, contribuição inequívoca para produção do resultado.
por exemplo, só realizará o tipo culposo de lesão, por omissão, o dono do bar
que vender bebida alcoólica a um motorista que vem a atropelar e ferir um A adoção da tese da previsibilidade se torna ainda mais discutível em
pedestre, caso aquele já demonstre não estar mais em condições de dirigir casos de exercício profissional. Por exemplo, o médico psiquiatra, perante o
e responder por seus atos.704 Neste exemplo, tanto a atuação descuidada do qual o paciente se tratava de crise nervosa e passional, prescreve-lhe fortes
motorista quanto o resultado eram mais do que previsíveis e a conduta do calmantes, sem submetê-lo, contudo, a isolamento. Se os calmantes não são
dono do bar, servindo mais bebida ao motorista, contribuiu para sua atua- adequadamente tomados, vindo o paciente a cometer homicídio, porque os
ção culposa subsequente, caso o resultado do acidente tenha decorrido, está ministra em grande quantidade à sua mulher, está claro que, aqui, diante
claro, da embriaguez do motorista e não de outros fatores. Aqui não pode da crise emocional, era previsível tal desfecho, mas o médico não o poderia
ele invocar o princípio da confiança. evitar, sob pena de não exercer mais sua profissão.

Por outro lado, relativamente aos fatos dolosos subsequentes, torna-se Se o médico prescrever o medicamento adequado e específico, não
insuficiente o critério da simples previsibilidade, pois com ele se tornaria tendo diante de si um quadro reconhecível de imediato homicídio, pode
impraticável qualquer atividade social, já que tudo pode ser previsível em confiar em que seu paciente seguirá o tratamento ministrado. Veja-se que
termos abstratos. Tratando-se de ações dolosas de outrem, o critério da previ- esta hipótese é diversa daquela mencionada mais atrás, na qual o médico
sibilidade deve ser modificado mediante o uso do princípio da confiança, no toma conhecimento de que o paciente está decidido a exterminar sua famí-
sentido de que esta confiança possa ter maior extensão do que normalmente lia, mas, mesmo assim, o desinterna e não avisa seus familiares sobre o seu
real estado de saúde. Neste último caso, como já se disse, não será possível
703. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 430. Contra, JESCHEK-WEIGEND. Lehrbuch des Strafre- aplicar-se o princípio da confiança, porque a própria atividade do médico
chts, p. 574.
704. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 574. é, em si mesma, descuidada e associada diretamente à lesão ou ao perigo
358 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 359

de lesão ao bem jurídico. Ao médico psiquiatra não incumbe apenas minis- que se caracteriza por ser um acontecimento material abstratamente separável
trar medicamentos ou fazer diagnósticos dentro das normas profissionais da ação típica, segundo juízo naturalístico.707 A afirmação, entretanto, de que,
específicas, mas também verificar os efeitos de seus atos, tendo em vista os nos delitos culposos de mera atividade, a realização do tipo se reduz à infração
perigos representados pelo transtorno mental do paciente e as atividades à norma de cuidado não implica adotar-se um simples juízo objetivo de cons-
que dele se possam esperar. tatação, mas, como já assinalado atrás, submetê-los aos controles normativos
Ao afirmar-se que existe um quadro reconhecível de atividade contrária adequados que estão inseridos nos desdobramentos da norma mandamental.
à esperada, será sempre necessário fazer-se uma análise do contexto no qual A questão do resultado suscita a definição prévia dos parâmetros que
a atividade se desenvolve, levando-se, então, em conta a exteriorização de possam identificar o que constitua afinal um resultado. Geralmente, a doutri-
desejos, a expressa referência a tal ato e outras condições objetivas indicadoras na quer fazer uma separação entre dois conceitos de resultado: um resultado
dessa conduta. A razão de ser do emprego do princípio da confiança, nesses naturalístico e um resultado normativo. Sob o enfoque naturalístico, nos
casos, radica precisamente na necessidade de se limitar o dever de cuidado delitos de perigo o resultado será quase sempre identificado como um perigo
dos delitos culposos, tendo por base uma fórmula coincidente e harmôni- concreto; nos delitos de dano, o resultado será visto dentro da alteração efe-
ca para com os delitos dolosos. Uma vez que se trata de fatos nos quais se tiva da realidade empírica. Já no enfoque normativo, o resultado só pode ser
mesclam duas atividades, uma negligente e outra dolosa, o que valer para os concebido como resultado final de dano ou de perigo ao bem jurídico e não
fatos dolosos, deve também valer para os culposos. Assim como nos delitos como alteração ou probabilidade de alteração da realidade material. Pode
dolosos não se reconhece instigação quando o agente principal já estiver de- haver, entretanto, fatos em que a produção do resultado naturalístico não se
cidido acerca do fato (omnimodo facturus),705 também não se deve reconhecer identifique diretamente com a lesão de bem jurídico. Nas formas qualificadas
delito culposo quando, através de uma conduta, se tenha fornecido ao sujeito dos delitos de perigo comum, por exemplo, em que se prevê o cometimento
principal, já decidido acerca desse fato, apenas um meio para cometê-lo.706 culposo do delito básico, com resultado de perigo, que conduz à produção
de resultado de dano, dentro de um contexto geral de perigo, expressa-se,
VII. A IMPUTAÇÃO DO RESULTADO de modo claro, que o resultado naturalístico, por exemplo, morte ou lesão
1. A QUESTÃO DO RESULTADO corporal, não expressa em toda sua extensão a lesão do bem jurídico. Isso
não desnatura, porém, a formulação de que todos os crimes são crimes de
A doutrina costuma proceder a uma separação entre delitos de resultado resultado. O fato de que os resultados morte ou lesão corporal (resultados
e delitos mera atividade. Segundo essa orientação, nos delitos de mera atividade individualizados), apesar de danosos, sejam capitulados não como dano, mas
o tipo de injusto culposo quase sempre estará preenchido com a lesão ao dever como perigo a um suposto bem jurídico denominado “incolumidade públi-
de cuidado, na forma e nas condições ali descritas. Nestes delitos, toda tarefa ca” (por exemplo, art. 258), não implica que na definição de resultado deva
valorativa incidente sobre o fato se resume, praticamente, no que se conven- prevalecer a tese naturalística. O problema está na falsa conceituação de um
cionou chamar de “desvalor do ato”. Nos delitos de resultado, entretanto, o bem jurídico coletivo, a incolumidade pública, que na verdade não passa de
tipo de injusto culposo é complementado com a verificação desse resultado, um bem jurídico pessoal, ainda que sem individualização dos sujeitos, por
705. BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, 2008, p. 184; BLEI, Hermann. Strafrecht I, p. 251; Paul Bo- tratar-se de fatos que afetam número indeterminado de pessoas.
ckelmann, Nota 7, p. 185; HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo II, p. 248;
JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p.689; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 687; STRATENWERTH, Está claro que tudo isso também deverá estar na dependência da ca-
Günter. Nota 126, p. 342; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 185.
706. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 432. Contra esta limitação do dever de cuidado, JESCHE- racterização de determinados bens jurídicos coletivos, como a incolumidade
CK-WEIGEND (Nota 7, p. 574), para quem ela não deve prevalecer quando haja pontos de contato
indicativos de que a conduta do agente irá auxiliar o cometimento do crime doloso de outrem. Esta pública ou a saúde pública, que apresentam disparidades quanto à sua cons-
crítica, contudo, não tira validade à limitação proposta, porque, evidentemente, se for reconhecível à
primeira vista o cometimento de fato doloso de outrem, ao qual será agregada a atuação do agente, cai tituição e que devem estar associados a um bem jurídico pessoal, para que
por terra igualmente o princípio da confiança. Ocorre, porém, que, em se tratando de fato doloso de
outrem, a adoção desse princípio deve subordinar-se a regras menos rígidas daquelas vigorantes para
fatos culposos de terceiro. 707. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 7.
360 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 361

possam valer como bens jurídicos. Mesmo nessa hipótese de não reconheci- ao princípio da lesividade, como condição essencial do direito penal de um
mento de um bem jurídico coletivo, que é correta, porque os bens jurídicos Estado democrático.710
devem permitir uma verificação empírica de seu conteúdo, o que não ocorre Dentro do contexto do fato culposo, assim como nos delitos dolosos,
com os chamados bens coletivos espiritualizados, é sempre possível proceder- ambos os conceitos “ação” e “resultado” se vinculam, reciprocamente, de
-se à separação entre resultado de dano e lesão de bem jurídico. Voltando ao maneira que se torna absolutamente impossível dizer-se que este se sobrepõe
tema da “incolumidade pública”, podemos dizer que esse bem jurídico, ainda àquela, ou vice-versa. Esta compreensão mútua corresponde exatamente à
que a doutrina o considere como coletivo, na realidade, está vinculado dire- estrutura da norma, que se esgota na proibição de ações e resultados, como
tamente a bens pessoais ou, pelo menos, é passível de uma reflexão a partir condição à precisa delimitação dos setores do lícito e do ilícito, bem como
da pessoa, em face de perigos que lhe possam afetar de um modo geral. Isso na dimensão das formas de ofensa ao bem jurídico respectivo. Assim, a de-
não implica, assim, a constituição de um bem jurídico coletivo, abstrato e terminação das zonas do lícito e do ilícito, que se projetam e se medem de
incompreensível, salvo sob ponto de vista estritamente normativo, como uma conformidade com a forma de ataque ao bem jurídico, sempre se concretiza
imitação de um suposto “inconsciente coletivo”. O bem, aqui, é referenciado ou na própria ação perigosa, ou em resultados de dano ou perigo. Embora
à pessoa e pode ser comprovado empiricamente pela demonstração de que o resultado dos delitos culposos não esteja vinculado à relação volitiva, não
é passível de sofrer perigo derivado de ações concretas de perigo ou de dano pode ser descartado de consideração na norma penal.711 Deve-se ponde-
individualizado. Quando se fala, por exemplo, que o perigo, aqui, atinge um rar, ademais, que essa divisão entre crimes de mera atividade e de resultado
número indeterminado de pessoas, isso quer dizer que esse perigo é de tal sempre foi mais didática do que científica, porque, no fundo, se conside-
intensidade que pode se espalhar além da vítima concretamente afetada. Mas, rarmos por resultado uma alteração no mundo exterior, todos os crimes
de qualquer forma, está sempre vinculado a uma vítima concreta. No crime produzem resultados. As condutas, uma vez projetadas no espaço, produzem
de explosão, por exemplo, se no local não houver pessoa alguma e ali nem alterações empíricas. Mesmo aquelas que são simplesmente normativas, têm
poderia estar qualquer pessoa, por lhe ser vedado o acesso naquele momento, também seu componente empírico, real ou possível. Nos crimes omissivos,
está claro que o perigo, ainda que abstrato, era impossível de concretizar-se, por seu turno, que não têm uma conduta empiricamente manifestada no
ou melhor, a falta de uma possível relação com uma pessoa concreta, qualquer mundo exterior, há, de qualquer forma, uma referência empírica a um re-
de seja, descaracteriza a presunção de perigo resultante da ação. sultado indesejado e pelo que se atribui ao sujeito a responsabilidade de não
Apesar de alguns autores modernos darem maior atenção à ação des- o haver evitado, suscitando, com isso, também a discussão se era ele evitável
cuidada e, assim, orientarem-se pelo desvalor da ação, vendo, no resultado, ou não. Mesmo que se adote a teoria naturalística, deve-se dizer, então, que
unicamente um “momento fortuito”708 ou até mesmo uma “condição ob- os crimes de resultado seriam aqueles em que a alteração no mundo exterior
jetiva de punibilidade”,709 será mais correto proceder-se a uma avaliação se apresenta como manifesta, de modo a ser possível distingui-la do proce-
do fato em face do dano ou do perigo concreto ao bem jurídico. Assim, dimento que a produz, enquanto que os de mera atividade seriam aqueles
carece de validade a distinção entre delitos de resultado e delitos de mera nos quais a alteração exterior se confunde com o próprio processo de sua
atividade. O correto será, pois, fundar-se o tipo tanto na infração à norma produção. De certo modo, isso poderá facilitar a identificação das ações ini-
de cuidado quanto na imputação do resultado. A necessidade da determi- dôneas a gerarem um perigo ou um dano ao bem jurídico. Pode-se concluir
nação de uma medida de imputação, aferida objetivamente, corresponde
710. Assim, também, figurando a lesividade como fundamento de qualquer incriminação, BATISTA, Nilo.
708. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 184 et seq.; BINAVINCE, Emilio. Die vier Momente der Fahrlässigkeits- Introdução crítica ao direito penal, Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 91 et seq.
delikte, p. 222. 711. Assim, também, BETTIOL, Giuseppe. Direito penal, vol. II, p. 119; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota
709. ENGISCH, Karl. Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit, p. 341 et seq.; KAUFMANN, Ar- 93, p. 243: “O resultado é elemento do tipo dos crimes culposos e não condição objetiva de punibilida-
min. “Das fahrlässige Delikt”, in Zeitschrift für Rechtsvergleichung, 1964, p. 41; MANZINI, Vincenzo. de, ao contrário do que afirmam alguns autores. E isto porque a previsibilidade do resultado constitui
Tratatto di diritto penale italiano, p. 606; VANNINI, Ottorino. Le condizioni estrinseche di punibilità elemento fundamental para a ilicitude e a culpabilidade dos crimes culposos”; JESCHECK-WEIGEND.
nella struttura del reato: a proposito degli art. 47 e 158 del progetto preliminare, Siena: Circolo Giuri- Nota 7, p. 583; MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, vol. II, p. 206; TOLEDO, Fran-
dico, 1929; ZIELINSKI, Diethart. Handlungs-und Erfolgsunwert im Unrechtsbegriff, 1973, p. 128. cisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 1982, p. 89 et seq.
362 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 363

disso tudo o seguinte: a) todos os crimes possuem resultado, que está expresso contato resultam graves alterações na saúde de algumas pessoas. Tendo em
na forma de perigo concreto ou de lesão ao bem jurídico; b) a diferenciação vista apenas razões de política criminal no sentido de não permitir que tal fato
naturalística entre dano e perigo pode ser útil, quando haja dificuldade de fique impune, a jurisprudência e a doutrina europeias trabalham, nesta hipó-
identificação da forma de afetação do bem jurídico, principalmente no que tese, com o critério de uma “causalidade geral”, que, segundo o princípio da
toca ao desenvolvimento do processo de imputação. exclusão, fornecido pelo Supremo Tribunal da Alemanha, seria constituída de
“princípios da experiência que servem de base, no caso concreto, à constatação
2. A RELAÇÃO DE CAUSALIDADE da causalidade e que normalmente tornam de tal forma provável a relação entre
Como corolário do disposto no art. 13 do Código Penal, o primeiro causa e efeito que autorizam, razoavelmente, excluir-lhe as dúvidas”.713
pressuposto para que o tipo de injusto dos delitos culposos de resultado seja Essa noção de causalidade, contudo, tem gerado enormes controvér-
preenchido, integralmente, é que esse resultado tenha sido causado pelo autor. sias. Primeiramente, faz tabula rasa de todos os conhecimentos empíricos
Na determinação do conceito ou da qualificação de causa, deve-se sobre a produção dos fenômenos. Depois, desconhece a subordinação das
partir, primeiramente, de dados empíricos, formulados logicamente de normas penais ao princípio constitucional da presunção de inocência. Não
conformidade com a teoria da equivalência das condições. Neste primeiro possibilita, ademais, excluir da relação de causalidade aquela contribuição
momento, causa será, com efeito, a ação ou omissão sem a qual o resultado que, efetivamente, só por mera fantasia poderá ser nela inserida. Finalmente,
não teria ocorrido. Não importa, nesta aferição, que o agente não tenha nos termos assinalados por KLAUS VOLK, torna impossível a distinção do
querido o resultado, bastando que, através do critério de eliminação hipo- resultado, porque subordina sua produção exclusivamente a um juízo nega-
tética, se caracterize que, excluída mentalmente a ação, automaticamente tivo, calcado na exclusão de dúvidas.714
se excluirá o resultado. Aqui se trata, conforme a expressão de HASSEMER, de uma “caixa
Já neste primeiro momento, porém, a teoria da equivalência das condi- preta”, daquelas utilizadas pelos mágicos, na qual tudo se joga e da qual
ções deve sofrer algumas correções, a fim de torná-la adequada a estabelecer tudo pode sair, menos uma conclusão racional. Uma vez que o processo de
uma causalidade que possa ser juridicamente operante, isto é, uma causali- produção do resultado não possa ser demonstrado empiricamente em suas
dade em torno de ações humanas. origens, dar-se-á uma imputação cega contra reum.715
Assim, por exemplo, se A e B injetam em C, ao mesmo tempo, idêntica Aplicando-se a casos dessa natureza (ao caso da decisão empresarial por
quantidade de veneno, cada qual suficiente para produzir-lhe a morte, esse maioria, acima relatada) a teoria da equivalência das condições, chega-se a
resultado mostra-se duvidoso em face do critério puro e simples da elimina- um impasse. Ao eliminar-se, por exemplo, a contribuição causal do acionista
ção hipotética de cada ação respectiva, pois, excluída uma delas, ainda haverá divergente, não haverá eliminação do resultado, pois o critério da eliminação
a permanência da morte. Aqui se deve, então, orientar a causalidade por mental só afirma a causalidade se conduzir, hipoteticamente, à negação do
meio de critério suplementar, de que, havendo concorrido para o resultado resultado, mas não quando o resultado permanecer. Esta conclusão, porém,
várias ações, cada uma suficiente para acarretá-lo, é de se afirmar também a ocorrerá, também, com relação aos demais acionistas: eliminada cada uma
causalidade, quando, eliminadas todas elas, incontinenti torna-se eliminado das ações individuais dos membros do conselho, o resultado permanece, quer
o resultado.712 Este raciocínio independe se o fato é doloso ou culposo. dizer, em ambos os casos não se poderia afirmar a causalidade. Pelos dados
A questão se torna complexa, entretanto, ao se tratar da investigação 713. HASSEMER/MUÑOZ CONDE, La responsabilidad por el producto en derecho penal, p. 140.
da causalidade no âmbito dos órgãos diretivos de empresas. Por exemplo, o 714. VOLK, Klaus. “Kausalität im Strafrecht”, in NStZ, 1996, p. 105-152.
715. HASSEMER/MUÑOZ CONDE, La responsabilidad por el producto en derecho penal, p. 146. Embora
conselho de certa empresa resolve, por maioria, que devem ser lançados, na HASSEMER tenha usado a expressão “caixa preta” para se opor ao raciocínio articulado, especifica-
mente, no caso do “aerosol” empregado para a proteção e limpeza de couro e do qual resultaram altera-
rede pluvial, os dejetos de uma substância tóxica por ela produzida, de cujo ções na saúde dos consumidores, no fundo, seus argumentos dizem respeito aos fundamentos da decisão
do Supremo Tribunal alemão quanto à caracterização da causalidade pelo critério da generalização, daí
712. WESSELS/BEULKE. Nota 234, p. 52; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 68 et seq. sua referência também à hipótese de ações coletivas.
364 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 365

apresentados, a impressão que se tem é que, aqui, estão presentes os mesmos Tomando por base este raciocínio, podemos utilizar aqui a fórmula de
elementos da chamada causalidade alternativa: eliminadas, alternativamente, MAXWELL, sugerida por ERNST NAGEL, de que “a diferença entre um
as contribuições, o resultado permanece, mas se forem eliminadas as con- evento e outro não depende da mera inferência dos tempos e dos lugares nos
dições (no caso a resolução do conselho) em sua totalidade, o resultado fica quais se produzem, mas somente das diferenças de natureza, configuração ou
de fora, pelo que se conclui que a ação coletiva do conselho fora causa do movimento dos corpos implicados”.717 Isto quer dizer que para a determina-
resultado (a lesão corporal por ofensa à saúde). ção da causalidade, ainda no âmbito da teoria da equivalência das condições,
Ocorre, porém, que, neste conselho, havia uma conduta que era não se pode inferir o resultado tão-só de uma sequência lógica contrafática,
contrária a lançar dejetos tóxicos na rede pluvial. Atribuir a esta conduta mas levando em conta a natureza e a qualidade da condição.
individual a qualidade de causa, independentemente de se argumentar com No conselho diretivo da empresa, no qual fora votada a resolução de
a violação de qualquer preceito de justiça, constitui um absurdo, porque lançar os dejetos tóxicos na rede pluvial, havia duas séries de condições de
justamente essa conduta se dirigiu contra a atuação causal, no sentido de natureza diversa: as que foram a favor e a que foi contra essa resolução. Ao pro-
evitar o resultado, ou seja, não será possível empiricamente se compreender ceder-se ao critério da eliminação hipotética, a solução só será empiricamente
como causalidade uma condição que se oponha à produção do resultado. correta, se forem tomadas distintamente as condições que se manifestaram no
Poder-se-á objetar, então, que a questão envolve aqui a proteção de bens conselho, isto é, agrupando, de um lado, as favoráveis (as ações daqueles que
jurídicos relevantes, que foram lesados pela ação conjunta do conselho. votaram a favor) e, de outro, a desfavorável (a ação do que votou contra), para
Ocorre, porém, que a invocação da proteção de bens jurídicos não pode montar duas cadeias causais diversificadas. Aplicando-se à primeira cadeia o
servir de pretexto para se eliminar da realidade uma condição empírica, que critério da eliminação hipotética, teremos o seguinte desfecho: eliminadas as
se dirigia justamente no sentido de evitar sua violação. Estabelecer a distin- condições favoráveis (daqueles que votaram a favor), o resultado será também
ção, portanto, entre condições positivas e condições negativas do resultado excluído; eliminada, por sua vez, a condição desfavorável (daquele que votou
corresponde a uma exigência indeclinável de uma ordem jurídica que tenha contra), o resultado permanece. Quer dizer, as condições favoráveis (dos que
por base a preservação da liberdade individual e a perfeita identificação de votaram a favor da resolução) foram causa do resultado, a outra desfavorável
como se projetou, na realidade, o exercício dessa liberdade, na medida em não o foi. Esta é a única maneira de poder fazer da relação de causalidade um
que se reconheça à pessoa uma função diferenciada no mundo em que vive. processo de demonstração empírica correto. Caso contrário, estar-se-á traba-
Independentemente dessa fundamentação acerca do reconhecimento lhando com a “caixa preta” de que fala HASSEMER.718
da individualidade do comportamento da pessoa humana, como exigência da Uma outra questão delicada na causalidade, que sugere, inclusive, uma
ordem jurídica, pode-se também proceder aqui com outros argumentos pu- suavização de seu processo pelo princípio da confiança, como já explicado
ramente empíricos, aptos a demonstrar a necessidade dessa individualização. anteriormente, é a que se refere ao chamado regresso infinito. O tratamento
Dizia DAVIDSON que a teoria da causalidade é apenas uma do regresso infinito tem preocupado muito a doutrina, que sempre está ofere-
explicação de acontecimentos para trazer o fenômeno ao âmbito da racio- cendo fórmulas e critérios para delimitá-lo.719 Neste sentido, nosso Código
nalidade.716 Trata-se, pois, de encontrar uma fórmula pela qual se possa, Penal, seguindo uma linha baseada em critério de adequação, já dispõe,
racionalmente, distribuir a responsabilidade entre os que, efetivamente,
no sentido natural, empreenderam uma condição para o resultado e dela 717. NAGEL, Ernst. La estructura de la ciencia, tradução espanhola, Paidós: Barcelona, 1991, p. 295 et seq.;
MAXWELL, James Clerck. Matter and Motion, N. York: Dover, 1991, p. 13.
se excluir aquele que não o fez, ou o fez de modo contrário, ainda que sua 718. Também crítico quanto a isto, SCHULZ, Lorenz. “Kausalität und strafrechtliche Produkthaftung. Mate-
riell und prozessrechtliche Aspekte”, in Kausalität und Zurechnung. Über Verantwortung in komplexen
atividade não tenha impedido o evento. kulturellen Prozessen, org. Weyma Lübbe, Berlin – N. York, 1994, p. 41 et seq.
719. JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en derecho penal, Buenos Aires, 1996, p. 31, por exemplo,
contempla a questão da proibição de regresso como elemento da imputação objetiva, salientando, quan-
to a isto, que “um comportamento que de modo estereotipado é inócuo não constitui participação em
716. DAVIDSON, Donald. Handlung und Ereignis, 1998, p. 302 et seq. uma organização não permitida”.
366 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 367

no parágrafo único do art. 13, de uma regra especial sobre a causalidade socorro das demais proposições, muitas das quais ainda em desenvolvimen-
superveniente. Neste caso, considera suficiente eliminar a causalidade ante- to, mas válidas na medida em que podem limitar o sistema de imputação.
cedente, quando a superveniente tenha, por si só, isto é, sem a participação Vê-se, então, que a imputação normativa não deve ser encarada como um
contínua da antecedente, produzido o resultado. Apesar de os autores do fundamento para a responsabilidade, mas em função de seu desempenho para
projeto que deu origem ao código haverem entendido que com essa fórmula limitar a extensão do processo causal, que se desenvolve entre a ação descui-
solucionariam, definitivamente, os inúmeros problemas que se produzem dada e o resultado típico. Daí se dizer que todos os critérios da imputação
no desdobramento do processo causal, diversas outras questões continuam normativa são, no fundo, critérios garantistas, que minimizam a intervenção
sem solução, daí a necessidade de se ajustarem critérios para melhor equacio- estatal no âmbito da liberdade humana.
ná-las. Como estes critérios, no entanto, já não mais pertencem ao âmbito
(1) CRITÉRIOS DE DELIMITAÇÃO DA PRÓPRIA CAUSALIDADE
da estrita relação de causalidade, que é inferida, em nosso direito positivo,
de conformidade com a teoria da equivalência das condições, mas de argu- A causalidade entrou em crise nas ciências naturais a partir da formulação
mentos que dizem respeito aos próprios fundamentos do injusto, podemos das leis da termodinâmica e, consequentemente, com a equação do princípio
considerá-los como verdadeiros critérios normativos de imputação. da entropia e, principalmente, com as formulações da teoria quântica, que,
com base nas proposições teóricas de HEISENBERG sobre o princípio da
3. A IMPUTAÇÃO NORMATIVA indeterminação, induziram à sua descaracterização como lei geral. Apesar disso,
Atendendo a uma sistematização proposta por LACKNER/KÜHL, as próprias ciências naturais, como informa SCHEIBE, estão reabilitando o
podemos classificar os critérios normativos de imputação em quatro grupos: princípio da causalidade, acreditando ainda que os fenômenos estejam vincu-
a) critérios de delimitação da própria causalidade; b) critérios de delimitação lados a relações constantes e funcionais de causa e efeito.721
com base no fim de proteção da norma; c) critérios de imputação objetiva; No direito penal, em particular, não interessa, em princípio, o dissí-
d) critérios de delimitação com base na qualidade da ação.720 dio científico em torno da causalidade. Aqui, a causalidade deve funcionar
Com estes quatro grupos de critérios, o que se pretende é equacionar como primeiro critério delimitativo da intervenção do poder punitivo. Como
a questão da relação, nos delitos culposos, entre a produção do resultado e a teoria explicativa da causalidade, adotada pelo direito positivo, induz a
a infração do dever de cuidado (conexão de dever de cuidado), que deve ser sequências infinitas, torna-se necessário proceder-se a uma limitação dessa
levada em conta em todas as condições em que se desenvolve o processo extensão. Como critérios limitativos da causalidade podem ser invocados os
causal, inclusive no que toca ao regresso infinito. a) da causalidade típica; b) do comportamento alternativo; c) da causalidade
funcional; d) da cláusula ceteris paribus.
Todos esses critérios podem ser utilizados conjunta ou separadamente,
em uma sequência de etapas necessárias a fixar, com nitidez, os contornos
(A) A CAUSALIDADE TÍPICA
do injusto. Na exposição que se segue, procura-se elaborar uma classificação
desses critérios, atendendo a seus pressupostos lógicos e ao entendimento da O art. 13 do Código Penal não se resumiu a trabalhar unicamente com
doutrina. Uma vez excluída validamente a imputação, no caso concreto, em uma causalidade natural, fundada na teoria da equivalência das condições. Ao
virtude da incidência de um deles, não há necessidade, salvo como reforço afirmar, categoricamente, no início de sua redação, que o “resultado de que
de argumento, da invocação de outros. Poder-se-iam, é verdade, em face do depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa”,
sistema do Código Penal, tomar em conta apenas os critérios de delimita- quer com isso significar que o processo da causalidade está não só influen-
ção da própria causalidade. Ocorre, porém, que nem sempre se poderá dar ciado pelos dados empíricos, mas que também se condiciona à caracterização
uma solução satisfatória ao perfeito equacionamento do caso concreto sem o do tipo de crime de resultado. Adota-se, portanto, no próprio Código Penal,

720. LACKNER-KÜHL. Strafgesetzbuch, 24ª edição, München: Beck, p. 100 et seq. 721. SCHEIBE, Erhard. Die Philosophie der Physiker, p. 209.
368 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 369

um conceito complexo de causalidade, compreendendo tanto a causalidade Pelo contrário, o normativo só terá validade na medida em que se ajuste aos
natural, quanto a causalidade típica. elementos do agir comunicativo. Mas este, por seu turno, só será adequado
Depois de haver superado a angústia de ajustar a relação de causalidade, se puder proporcionar aos critérios normativos uma delimitação do poder
configurada como uma relação de necessidade entre os fenômenos no sentido de punir. A configuração da conduta a partir de elementos comunicativos,
de uma lei natural, à sua configuração teórica, a explicação científica tem se- embora seja decisiva como limite inicial da criminalização, não pode ser
guido caminhos cada vez mais complexos, principalmente nas ciências sociais. tomada isoladamente. Assim, diversamente do que entendem os partidários
Pelas suas próprias características, a causalidade típica não pode ser compreen- do finalismo, a recepção, no tipo de delito, de dados comuns, configuradores
dida, portanto, exclusivamente, pelos princípios e critérios propostos nas da conduta humano-social, segundo a acepção de um agir comunicativo,
ciências naturais ou empíricas, cujos resultados estão sempre na dependência constitui apenas uma etapa de sua normatização, mas não seu condicionante
de uma demonstração material. Em lugar disso, a causalidade típica se agasalha, definitivo. Se o legislador quer tipificar uma conduta, não basta atender aos
normalmente, em postulados qualitativos, que estão melhor configurados nas seus substratos comunicativos. Mais do que isso, deve verificar, também, de
ciências hermenêuticas ou de interpretação.722 Isto está de acordo, inclusive, que forma esses elementos fáticos podem ser recepcionados no tipo, de modo
com as modernas elaborações sobre a causalidade, que a distinguem, por um a não comprometer as garantias centradas na proteção da pessoa humana.
lado, sob o aspecto de sua organicidade, situada no plano de uma lei natural (o O desdobramento da ação como atividade típica se reflete, por outro lado,
chamado caráter nomológico da causalidade) e, por outro lado, sob o aspecto também no âmbito da causalidade.
de sua explicação (o chamado caráter argumentativo da causalidade). Não fosse No crime culposo, a causalidade se resolve, como já salientamos, me-
esta distinção, se tornariam impossíveis, por exemplo, todas as explicações diante o critério da eliminação hipotética do resultado. Se, nesta fase, for
causais dos fenômenos históricos, os quais não podem ser repetidos empiri- negada sua existência, não mais se tratará da sua subsequente limitação nor-
camente e nem se submetem a uma individualização, porquanto concorrem, mativa, pois o direito não pode alterar a realidade das coisas. Se, entretanto,
simultaneamente, com outros inúmeros fatores.723 for afirmada a causalidade natural, enseja saber se através da lesão ao dever
A distinção entre uma causalidade natural e uma causalidade típica de cuidado concretamente realizada se produziu o resultado típico.
corresponde, por outro lado, a um objetivo próprio do direito penal, quer A causalidade típica implica considerar que esse resultado, previsto na
dizer, os elementos que compõem o tipo de delito devem ser vistos diale- lei como proibido, tenha sido produzido por ação lesiva ao dever de cuidado.
ticamente, de modo a conjugarem tanto fatores do mundo humano-social A ação que causa o resultado é tomada, aqui, então, sob o aspecto de uma
(comunicativo), quanto categorias normativas, em etapas necessárias de me- ação descuidada, aferida esta sua qualidade em face das normas de cuidado
dição e delimitação do poder de punir. Mesmo no tipo de injusto, a análise que disciplinam a atividade. Só haverá causalidade, se o resultado decorrer
da conduta não pode ser efetuada, exclusivamente, no plano normativo. dessa ação descuidada. A este mesmo desfecho chega a teoria da imputação
objetiva formulada, por exemplo, por ROXIN, mas com outro indicativo,
722. A inclusão da causalidade na própria tipicidade já fora empreendida por BELING, Ernst. Die Lehre vom de que, na hipótese, o risco desautorizado não se realizou no resultado.
Verbrechen, Tübingen: Mohr, 1906, p. 208, que assim se expressa: “Mas também a posição sistemática da
causalidade se tornou mais clara: não pertence ela à teoria da ação, mas à teoria do tipo e, na verdade, ao
tipo material”. Defendendo uma causalidade adequada ao tipo, também, ENGISCH, Karl. Die Kausalität
No âmbito da causalidade típica devem ser tratadas as hipóteses dos
als Merkmal der strafrechtlichen Tatbestände, Tübingen: Mohr, 1931, p. 21, embora disso passe a inferir processos causais anormais ou atípicos. Por processos causais anormais ou atí-
um conceito de causalidade natural, muito usado na jurisprudência alemã e que, no fundo, corresponde ao
princípio da causa eficiente. No campo da filosofia do direito, seguindo uma linha neokantiata, acentua, picos devem ser computados aqueles nos quais, segundo o conhecimento
por exemplo, entre nós, REALE, Miguel, O Direito como experiência, p. 157, que “a estrutura dos fenô-
menos sociais apresenta, com efeito, características inconfundíveis com as dos fenômenos físicos e bioló- e a experiência vitais, produzissem resultados que escapam inteiramente
gicos, de tal sorte que ao conceito de causalidade sócio-cultural devem corresponder métodos, princípios
e técnicas diferentes dos aplicáveis àqueles outros domínios do conhecimento”. dos desdobramentos habituais dos riscos desenvolvidos com a conduta. Por
723. BUNGE, Mario. Kausalität, Geschichte und Probleme, Tübingen: Mohr, 1987, p. 292 et seq.; LO- exemplo, alguém desfere um tapa na vítima e lhe produz a morte ou alguém
RENZ, Chris. Konstruktion der Vergangenheit. Eine Einführung in die Geschichtstheorie, Böhlau Ver-
lag, 1997; HOFFMANN, Arndt. Zufall und Kontingenz in der Geschichtstheorie, Frankfurt am Main, vai cobrar o aluguel da vítima e esta fica tão abalada com a cobrança que
2005, p. 185-266.
370 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 371

acaba caindo da escada e sofrendo uma lesão na coluna, ou alguém lança certeza. A conclusão deve estar, então, submetida ao princípio da probabili-
sobre outrem uma bola de ping-pong, mas a suposta vítima a encara como dade, que faz parte dos fundamentos da teoria da causalidade desde DAVID
se fosse uma bomba, atira contra a bola para fazê-la explodir no ar e acaba HUME: uma ação é causal para um resultado quando, provavelmente, se-
acertando uma pessoa que se encontrava sentada em um bar, ou alguém que gundo a normalidade das circunstâncias, o produz.725 Em sentido inverso,
lança um papel de bala pela janela que, levado pelo vento, cola nos óculos que é o que nos interessa: uma ação não será causal, quando, provavelmente,
de um motorista, que nervoso, ainda que com certa visão, projeta o carro o resultado decorreria de sua execução, quer essa ação tivesse sido praticada
sobre os transeuntes que se encontravam na calçada. Em todos esses casos, o desta ou daquela forma, ou seja, descuidada ou cuidadosamente.726
desvio do processo causal é de tal forma acentuado e desproporcional ao que, Esta limitação da causalidade pelo comportamento alternativo,
segundo a experiência, se poderia esperar da ação do agente que não pode ser entretanto, nem sempre é satisfatória, porque pode levar a argumentos abso-
incluído no âmbito da causalidade vinculada à violação da norma de cuidado. lutamente incompreensíveis e até absurdos. Suponha-se o seguinte exemplo:
um motorista dirige seu carro em excesso de velocidade; ao passar por de-
(B) O CRITÉRIO DO COMPORTAMENTO ALTERNATIVO
baixo de uma passarela de pedestres, vem a atropelar e, consequentemente,
À vista da indeterminação da causalidade no sentido de que o resultado matar alguém, que, em atitude suicida, se lança desde cima por sobre o
fora produzido pela ação descuidada, pois sobre o processo causal podem veículo. Está claro que se o motorista estivesse em velocidade normal o fato
interferir, como normalmente acontece, outros fatores, sua determinação, provavelmente também aconteceria do mesmo modo. Mas, poderíamos ra-
neste caso, está condicionada a um critério normativo negativo: uma vez ciocinar, ainda, ad absurdum, que a morte inclusive não teria ocorrido, se o
que se conclua que o resultado teria sido produzido ainda que a ação fosse motorista dirigisse em velocidade ainda maior, pois, neste caso, chegaria ao
cuidadosa, faltará a causalidade. local do acidente bem antes de a vítima se lançar da passarela.
Esse critério limitativo, pelo comportamento alternativo, com base no
que, hipoteticamente, ocorreria se a ação fosse cuidadosa, vem sendo usado (C) A CAUSALIDADE FUNCIONAL
também pela teoria da imputação objetiva, mas, na verdade, pode também Em consequência da indeterminação a que leva o critério da inversão
ser tratado como uma modalidade de aferição da própria causalidade. Este é, dos elementos do processo causal, com base na probabilidade, a ciência vem
inclusive, o entendimento de INGEBORG PUPPE, que o fundamenta sobre propondo uma outra forma de consideração do problema. Toda a causali-
um conceito próprio de causalidade, extraído do critério de suficiência.724 Não dade no direito penal é, geralmente, construída sobre elementos singulares,
obstante, a orientação para se chegar à conclusão de que, em caso de ação por exemplo, a conduta de A e o resultado morte de B. Para concluir que a
cuidadosa, o resultado não ocorreria, não precisa alcançar um grau absoluto conduta de A produziu a morte de B, os juristas se satisfizeram, primeira-
de certeza, porque, afinal, nem mesmo nos fenômenos naturais subsiste esta mente, com o critério da eliminação hipotética, que está na base da teoria da
equivalência das condições. Ao enfrentarem algumas dificuldades com este
724. PUPPE, Ingeborg. Die Erfolgszurechnung im Strafrecht, Nomos: Baden-Baden, 2000, p. 76 et seq. Ao critério, passaram a construir o processo causal sobre outros fundamentos,
que parece, o enunciado de PUPPE de causa “como um componente necessário de uma condição sufi-
ciente para o resultado” (p. 71) está amparado em duas vertentes científicas: por um lado, na explicação como o do critério da prognose posterior objetiva, que sustentava o enunciado
científica dos fenômenos de CARL HEMPEL, de outro lado, no conceito de inus-causalidade de JOHN
LESLIE MACKIE. Ao primeiro, CARL HEMPEL, a causalidade deve ser vista como um processo ex-
plicativo dentro de um contexto, de modo que “uma causa é um conjunto mais ou menos complexo de
circunstâncias e fatos que poderiam ser descritos como um conjunto de enunciados [...]”; assim, pode-se 725. Acolhendo o critério da probabilidade como determinante, VOLK, Klaus. “Kausalität im Strafrecht”, p.
dizer que “a explicação causal afirma implicitamente que há leis gerais, “[...] em virtude das quais o apa- 105: “Ao conceito de causalidade basta, assim, a alta probabilidade de que um determinado fator seja
recimento dos antecedentes [...]” “[...] é uma condição suficiente para o aparecimento do fato assinalado causativo e tenha atuado no caso concreto.”
no explanandum” (La explicación científica. Estudios sobre la filosofia de la ciencia, tradução espanho- 726. A inversão dos termos da relação causal no sentido de um juízo de probabilidade não é estranho às ciên-
la, Barcelona: Paidós, 1996, p. 344). MACKIE, por seu turno, distingue entre as condições suficientes e cias naturais. Assim, por exemplo, SUPPES, Patrick, The probabilistic theory of causality, Amsterdam:
desnecessárias, de um lado, e insuficientes e necessárias, por outro, para afirmar a causalidade quando North-Hollanda, 1970, p. 25 et seq., busca fundamentar uma teoria qualitativa da probabilidade, que
a condição se inserir como parte necessária de um processo complexo, sem que subsista outra condição pode se ajustar ao critério do comportamento alternativo, quer dizer, se o resultado ocorreria com uma
suficiente (The cement of the universe, N. York: Oxford Uni-Press, 1974). Bastante elucidativo sobre a ou com outra qualidade da condição segundo os mesmos índices de probabilidade, a causalidade ficaria
teoria de PUPPE, LUÍS GRECO, “Imputação objetiva: uma introdução”, in ROXIN, Claus. Funciona- confinada apenas à condição aparente e, pois, indeterminada. Tomando também a probabilidade como
lismo e imputação objetiva no direito penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.143 et seq. critério científico geral da causalidade, BUNGE, Mario. Geschichte und Probleme, p. 418.
372 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 373

da teoria da causalidade adequada, ou com o critério da causa relevante, que o que se nota, particularmente, é que os fatos se sucedem de uma forma
dizia respeito à teoria correspondente de MEZGER da causalidade juridi- linear, dentro de uma estrutura racional a partir de um impulso inicial. Mas
camente relevante. Esta forma de pensar a causalidade era perfeitamente há um problema maior nessa proposição: se a relação causal tem origem em
adequada a retratar fenômenos lineares, representativos, geralmente, de ações dados ontológicos, não será possível compreendê-la como uma sequência de
individuais e resultados materialmente sensíveis. acontecimentos, mas apenas como uma sequência de coisas. Ocorre, porém,
O mundo moderno, entretanto, em virtude de inúmeras circuns- que essa relação reificada não retrata, com fidelidade, o que, na verdade, se dá
tâncias, que aqui não são relevantes para o estudo da questão, foi gerando na produção dos fatos, que estão submetidos a inúmeros fatores anteceden-
ações e resultados cada vez mais complexos, que não se deixam explicar tes e concomitantes, que não podem ser identificados, simplesmente, como
por enunciados tão elementares. Isto se deu tanto nas ciências jurídicas coisas, por exemplo, as relações contratuais, os atos de gestão, o exercício do
quanto nas próprias ciências naturais. A modificação estrutural das ciências poder, os deveres de assistência ou de garantidor e as normas de cuidado.
naturais e a retratação diferenciada de seus objetos, conforme os objetivos Haveria, assim, de se modificar essa estrutura da relação de causalidade, que
de seu emprego, desencadearam uma verdadeira revolução nas teorias. A correspondesse à complexidade do mundo.
consequência natural de tal transformação seria, como de fato se deu, a Já no âmbito das ciências naturais, por conta da transformação e da
formulação de outros enunciados de causalidade que se ajustassem a uma alteração de seus objetos, pôde-se notar que os elementos da relação de
nova compreensão da realidade. causalidade também mudaram. Superando o entendimento medieval, que
Na filosofia medieval, por exemplo, o problema da causalidade estava estaria alicerçado na unidade de elementos singulares, as ciências passaram
submetido, normalmente, às proposições aristotélicas das chamadas quatro a considerar que, no processo causal, o que vale são os acontecimentos.728
causas (causa formal, causa material, causa eficiente e causa final), que foram Isto quer dizer que, no processo causal, tanto a condição quanto o resultado
incorporadas na filosofia escolástica de TOMÁS DE AQUINO, como moda- devem ser tratados como um conjunto de circunstâncias que, dialeticamen-
lidades de conduta e não, propriamente, como relação entre os fenômenos. O te, interagem e não mais em uma sequência imutável. Esta nova forma de
que, entretanto, sempre atormentou a discussão acerca da causalidade não foi ver a causalidade já pode ser encontrada, inclusive, na obra de HUME, que
sua vinculação a uma conduta, mas o significado que, nessa relação, deveria buscava traçar a diferenciação entre o princípio causal, de fundo ontológico,
representar uma causa inicial, primitiva, que, no fundo, se identificaria com o e as leis causais, de base empírica. De conformidade com o princípio causal,
“nada”. No encalço de desbravar esse caminho, ANSELMO DE CANTER- a interpretação dos fatos deveria sempre corresponder ao fundamento de
BURY propôs, dentro de sua perspectiva ontológica, que se as coisas existem, uma sequência, pelo qual nada ocorre sem uma causa, ou seja, a relação de
existem apenas em decorrência do princípio do encadeamento, pelo fato de causa e efeito constitui um elemento essencial na estrutura do mundo, in-
que todas derivam de um processo inicial de criação. Por outro lado, como dependentemente de qualquer comprovação empírica. Já pelas leis causais,
o processo de criação não pode derivar de si próprio, porque então seria ele que se associam a uma explicação de como as coisas acontecem, o que vale
mesmo mutável, só pode resultar do “nada”. Mas se o processo causal se dá não é propriamente o que ocorre, mas a relação entre os acontecimentos,
entre coisas, não pode resultar do “nada”, daí que a existência de um enca- de sorte a se poder afirmar que a ocorrência de um conduz, regularmente,
deamento pressupõe a criação como produto de um “ser” que esteja fora e à ocorrência do outro. O critério da regularidade, manuseado por HUME,
acima do próprio “nada”.727 Uma vez assentada a criação, tudo o que existe conduz, portanto, a um outro estágio da explicação causal, que deixa de
só poderá ter significado à vista de uma relação entre antecedente e conse- ser simplesmente o resultado de uma relação necessária para se constituir
quente, ou seja, segundo uma relação de necessidade. Neste procedimento, em uma forma de manifestação do entendimento que se processa sobre a
experiência. Se é a experiência que irá determinar se certo acontecimento
727. GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média, tradução de EDUARDO BRANDÃO, S. Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 292 et seq.; ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia, Lisboa: Presença, 1999, vol.
3, p. 42 et seq. 728. DAVIDSON, Donald. Handlung und Ereignis, Frankfurt am Main, 1998, p. 85.
374 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 375

produz outro acontecimento, o princípio causal não é um princípio uni- sistema. Ainda que se possa criticar a redução da problemática da expli-
versal, mas apenas a derivação de uma lei da regularidade.729 cação causal a um princípio funcional, porquanto isto poderia conduzir
Fornecendo um quadro desse procedimento, alerta, porém, MARIO a uma indeterminação quando se trate da relação entre objetos singulares
BUNGE, que é professor de teoria da ciência da Universidade de Montreal, e não acontecimentos, a teoria funcional tem contribuído para esclarecer
que “não basta dizer que a relação de causalidade seja o liame entre acon- melhor o sentido das relações entre os objetos, em face do contexto no qual
tecimentos, nem também concluir que ela seja não-reflexiva, assimétrica e estas relações se dão.
transitiva, e que, por este motivo, haverá outras infinitas relações com tais Parece que a explicação funcional da relação de causalidade entre fenô-
acontecimentos”.730 O importante não será apenas buscar-se uma simples menos ou acontecimentos se deveu, primeiramente, a ERNEST MACH, nos
relação empírica entre os fatos, consoante uma lei universal, mas enqua- últimos terços do século XIX. Segundo MACH, a causalidade não pode ser
drá-los em um procedimento explicativo, capaz de demonstrar que essa aferida segundo um critério puramente empírico baseado na necessidade, mas
relação é coerente com o princípio da regularidade. Recompondo, porém, sim de conformidade com o sistema no qual os processos se verificam.731 Na
a antiga discussão travada em torno das proposições de HUME acerca do verdade, a indagação acerca da causalidade só passa a ser interessante quando
hábito, e de KANT sobre a possibilidade de se reduzir a questão causal a um acontecimento ocorre em condições de anormalidade, quer dizer, só se
uma categoria a priori, HEMPEL e OPPENHEIM pretendem construir passa a prestar atenção à causalidade quando se depara com um resultado
a explicação causal como uma forma lógica de deduções, a partir de con- inesperado e se quer atribuir sua produção a qualquer ato ou acontecimento
dições antecedentes e proposições universais. De conformidade com esse que lhe tenha precedido. Assim se dá, por exemplo, na vida diária, quando um
esquema, as condições antecedentes e as proposições universais (leis de aparelho deixa de funcionar, quando se produz um acidente automobilístico,
causalidade), constituiriam o explanans (causa), pelo qual se poderia expli- quando um avião cai e assim por diante. Justamente em face dessa acidenta-
car o explanandum (resultado). Esse esquema, denominado de explicação lidade do acontecimento, é que se põe em dúvida a causalidade naturalística,
nomológica-dedutiva da causalidade, pressupõe, assim, três requisitos: a) com base na relação de necessidade entre os atos ou acontecimentos anteriores
que o explanans contenha uma lei universal; b) que essa lei possua conteú- e o que sucedeu. É que todos já se acostumaram a observar as coisas dentro de
do empírico; c) que todas as proposições do explanans sejam verdadeiras. certo sentido de estabilidade, que estará abalada caso um acontecimento dessa
Primeiramente, importante é caracterizar que a causalidade é dependente ordem se apresente. Assim sucede, por exemplo, com o tráfego de veículos.
de uma interação temporal, isto é, que, entre o acontecimento A e o acon- Todos se acostumaram a chegar a seus destinos sem qualquer interrupção,
tecimento B, há uma constatação de que B é posterior a A; depois, deve-se com o trem, com o automóvel ou com o avião. Ainda que acidentes sempre se
assegurar que, entre o acontecimento A e o acontecimento, B subsiste uma produzam, são tomados como acontecimentos excepcionais, a quebrar aquela
relação empiricamente demonstrável; finalmente, conclui-se que A é a ex- estabilidade do sistema. Uma vez posta em dúvida a determinabilidade objetiva
plicação coerente para o aparecimento de B. Ademais, como as condições dos fenômenos, que gera a estabilidade, a causalidade só poderá ser enfocada
devem ser apreciadas dentro de um processo, será relevante assinalar que a segundo um critério funcional que confronte o resultado ou acontecimento
história do acontecimento A deve ser função da história do acontecimento inesperado com o sistema no qual ocorra, quer dizer, a questão inicial não será
B. Ao concluir, assim, que a relação de causalidade se dá entre aconteci- a de imediatamente atribuir a produção do fenômeno a um determinado fator
mentos e não entre elementos singulares, a ciência abriu a possibilidade causal, mas a de indagar o que falhou dentro do sistema, de modo que aquele
de dispor cerca de um outro enunciado, pelo qual a causalidade não é evento veio a se produzir.732
aferida de elementos isolados, mas de conformidade com um determinado Outro não é, por seu turno, o procedimento que passou a ser adotado

729. HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano, tradução de JOSÉ DE OSCAR DE AL-
MEIDA MARQUES, S. Paulo: Unesp, 1998, p. 46. 731. MACH, Ernst. Erkentnis und Irrtum, Fischer: Jena, 1926, p. 278.
730. BUNGE, Mario. Kausalität, Geschichte und Probleme, p. 420. 732. SCHEIBE, Erhard. Die Philosophie der Physiker, p. 221, 222.
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nas ciências jurídicas, especialmente, no direito penal. Ao exigir que a afir- Assim, no tratamento do exemplo do motorista que dirige em excesso
mação da causalidade se fizesse dentro da tipicidade e, no que toca aos delitos de velocidade e atropela um suicida que se lança sobre o veículo de uma pas-
culposos, principalmente em confronto com a norma de cuidado, o direito sarela, cada um dos elementos da cadeia causal – a ação e o resultado – não
encampou, praticamente, o enunciado das ciências naturais. O problema é pode ser visto como fato isolado, mas como acontecimento em uma relação
que não o fez de modo satisfatório, ao usar, na sua determinação, o critério funcional. Isto implica considerar não apenas a morte ou o atropelamento da
hipotético da probabilidade. Como este critério é indeterminado, a única vítima, mas ainda o fato de se haver ela lançado sobre o veículo em movimen-
forma possível de ajustá-lo aos preceitos de garantia é deixar de afirmar a to. Só assim é que se pode fazer uma apreciação funcional do processo causal,
causalidade quando o resultado provavelmente também ocorreria se a ação de modo que um acontecimento só tenha sentido em função da existência do
do sujeito fosse adequada ao cuidado. A fim de evitar a indeterminação outro. Que função desempenhou, afinal, a ação descuidada para o resultado?
deste critério, deve-se propor outro enunciado, independentemente do que, Apenas a de atropelar a vítima, mas não a de induzi-la a se lançar da passarela.
depois, se decida em torno dos demais critérios de imputação objetiva. Neste aspecto, a ação descuidada e a ação cuidadosa estão no mesmo plano,
Acolhendo-se essa postulação no sentido de elaborar um critério limita- qual seja, ambas não constituem função do acontecimento, porque, para a
dor da causalidade, deve-se partir, na identificação de seu desdobramento, de ação do suicida, qualquer dessas formas de ação não faria o menor sentido,
dois dados essenciais: a) da necessidade da vinculação entre ação e resultado; isto é, se o veículo estava sendo dirigido em velocidade excessiva ou dentro
b) da função da ação para com o resultado. dos padrões fixados pelas regras de trânsito. Diferente será o caso, por exem-
plo, da pessoa que está atravessando a rua e vem a ser atropelada por um
Àqueles que defendem um fundamento material do injusto é imperioso veículo em alta velocidade. Nesta hipótese, a condução cuidadosa constituiria
que se exija, até mesmo como seu pressuposto indeclinável, que esse só estará a função de possibilitar que o pedestre atravessasse a rua, quer dizer, o fato
preenchido se ficar assentado que o resultado proibido está necessariamente de atravessar a rua teria sentido se o carro não estivesse em alta velocidade.
vinculado à ação do agente. Esta exigência de uma relação de necessidade Para a concretização deste enunciado e sua determinação, podemos, então,
entre ação e resultado é que provoca a discussão se este está ou não associado, dizer que, nos delitos culposos, a causalidade só estará afirmada quando a
concretamente, a uma ação descuidada.733 ação descuidada constituir função do resultado.
Pelos critérios apresentados, no que toca à limitação do dever de cui- Esse enunciado é válido também para as ações praticadas em colegia-
dado e à identificação da causalidade com base na teoria da condição, ou à dos, como para aquela, já discutida atrás, de que o conselho de uma empresa
configuração do comportamento alternativo com base na teoria da proba- resolvera, por maioria, lançar, na rede pluvial, dejetos tóxicos. Neste exem-
bilidade, não se tem segurança para proceder à vinculação entre conduta do plo, não se pode tomar em consideração apenas a relação de causalidade
agente descuidada ou excedente dos limites do risco autorizado e o resultado entre a resolução do conselho e o resultado danoso ao meio ambiente e às
efetivamente realizado. vítimas, mas ainda a relação de causalidade que se processou entre as ações
A decisão sobre se o resultado está associado, concretamente, a uma dos conselheiros e essa resolução. Tomando-se em consideração a ação do
ação descuidada do agente, só poderá ser obtida se considerarmos que a ação conselheiro divergente, podemos dizer que ela não constituiu uma função da
descuidada constitui a função desse resultado.734 Com isso se quer significar resolução tomada pela maioria, ainda que esta resolução constitua a função
que tanto a ação quanto o resultado devem ser tratados como acontecimentos dos resultados danosos. É que, votando contra a proposta, a ação do conse-
históricos temporais, submetidos a um processo de interação. lheiro divergente não teve sentido para essa resolução. Portanto, a ação do
733. Esta assertiva está assentada em um critério nomológico de causalidade, tomada como condição neces-
conselheiro divergente não fora causal para o resultado. Não será diferente a
sária. Sobre isto, ver o exaustivo estudo de MEIXNER, Uwe. Theorie der Kausalität. Ein Leitfaden zum solução na hipótese de a ação de votar constituir já uma condição necessária
Kausalbegriff in zwei Teilen, Paderborn: Mentis, 2001, p. 445 et seq.
734. Para uma visão crítica de toda a análise funcional, STEGMÜLLER, Wolfgang. Probleme und Resultate à validade da resolução. Neste caso, não se deve observar apenas a relação
der Wissenschaftstheorie und analytischen Philosophie. Erklärung, Begründung, Kausalität, Berlin-
-Heidelberg-New York: Springer, 1983, p. 676 et seq. entre o voto e a validade da resolução, mas o voto e o sentido da resolução, o
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voto, sendo contrário ao sentido da resolução, ainda que a validasse quanto É que, aqui, os fatores causais que estão presentes no momento da ação (o
ao quorum, não teria a função de conformar-se com a sua emissão. soco e a constituição física da vítima) são qualitativamente diversos dos fa-
tores que intervêm no momento do resultado (a hemorragia se desenvolve
(D) A CLÁUSULA ceteris paribus pela ausência do fator coagulante e não pela gravidade do soco). Do mesmo
Ainda como critério limitador do regresso infinito da causalidade, po- modo se deve tratar o conhecido exemplo da arma deixada em casa pelo pai,
demos incluir, aqui, a cláusula ceteris paribus. De conformidade com seu em local abrigado de interferências estranhas, mas que, assim mesmo, vem
enunciado, só haverá causalidade quando as condições que atuam no mo- a ser usada pelo filho, que, culposamente, fere seu colega. Aqui os fatores
mento do resultado se situarem sob os mesmos fatores que vigoravam no presentes no momento da ação (guardar a arma em local de difícil acesso) e
momento da ação. Assim, de acordo com esta cláusula, não basta, para afir- do resultado (a descoberta da arma pelo filho e sua utilização) são qualitati-
mar a causalidade, a simples eliminação hipotética da ação e a consequente vamente diversos, pois o resultado não decorreu do modo como a arma fora
eliminação do resultado, mas a subsistência de fatores iguais tanto no mo- guardada, mas da interferência inesperada de seu filho.
mento da ação quanto no do resultado. (2) O FIM DE PROTEÇÃO DA NORMA
A cláusula ceteris paribus, que tem origem no princípio da uniformi- Da necessária relação entre a violação do dever de cuidado e o resul-
dade de JOHN STUART MILL,735 é uma consequência da generalização tado emerge a discussão acerca da limitação da imputação pelo critério do
lógica que se processa nas ciências em geral. Como diz ERNST NAGEL, fim de proteção da norma. De acordo com DEGENER, a discussão sobre
a explicação e a análise dos fenômenos geram, primeiramente, leis gerais, o fim de proteção da norma como limitação da responsabilidade penal foi
que são levadas a cabo, normalmente, sob o aspecto estatístico; depois, leis levada a sério, primeiramente, por MAX LUDWIG MÜLLER, no âmbito
quase gerais, no sentido de que, embora sejam expressas com o caráter de da culpabilidade, com dois exemplos muito significativos, que podem ainda
universalidade, abrem a possibilidade de submeterem sua aplicação a uma ser usados como paradigmáticos.737 O primeiro exemplo: uma pessoa em
certa dose de ponderação, diante da variabilidade e complexidade dos fato- estande de tiros usa, indevidamente, como munição, um projétil fora dos
res que influenciam a produção dos fatos concretos.736 A adequação entre padrões adequados; neste momento, se mete um estranho, de repente, na
o seu caráter de universalidade e a consecução de seus objetivos práticos só linha de tiros, que vem a ser mortalmente ferido pelo projétil indevido. Aqui,
se torna possível na medida em que se tenha presente que as relações entre embora a ação tenha violado a norma de cuidado quanto ao uso dos projéteis,
os fenômenos dependem, geralmente, da igualdade dos fatores que possam a morte da vítima não se inclui no âmbito da proibição, porquanto não era
ou devam nelas intervir. sua finalidade específica evitar que o uso de projéteis incorretos pudesse matar
Estas ponderações têm significativa influência na explicação de inúme- alguém que se metesse indevidamente na linha de tiro. O outro exemplo:
ros fatos culposos que resultam de desdobramentos de fatos dolosos, como alguém deixa em posição bastante instável sobre o parapeito de sua janela um
nas concausas, que andam perambulando pelo direito penal e foram deixadas vaso de plantas, o qual vem a cair sobre um transeunte, em dia de tempestade;
ao largo pela doutrina, que sempre as trata como irrelevantes. A vantagem antes, porém, que o vaso o alcançasse, o transeunte salta para a outra calçada
da cláusula ceteris paribus é a de instituir, como pressuposto da imputação, e vem a ser morto por uma laje que desaba sobre sua cabeça. Embora a ação
que os fatores causais sejam qualitativamente iguais, tanto no momento da de se colocar na janela um vaso naquelas condições de instabilidade fosse
ação quanto no momento do resultado. Assim, por exemplo, o soco dado descuidada e induzisse a atitude do transeunte a saltar para a outra calçada,
no hemofílico e do qual lhe resulta a morte, tempos depois, por hemorragia, a sua morte não se incluiu no âmbito de incidência da norma de cuidado
deve apenas caracterizar uma lesão corporal, mas não o homicídio culposo. relacionada à exigência de não se colocar vasos na janela, que não pode se

735. MILL, John Stuart. A system of logic, London, 1879, livro 3, cap. 3, seção 1. 737. DEGENER, Wilhelm. Die Lehre vom Schutzzweck der Norm und die strafgesetzlichen Erfolgsdelikte,
736. NAGEL, Ernst. La estrutuctura de la ciencia, p. 419. Baden-Baden: Nomos, 2001, p. 14 et seq.
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estender à higidez da marquise de prédios vizinhos. Com estes exemplos, se seja, no momento da queda da marquise a influência da queda do vaso se fazia
pode mostrar o cerne da questão relativa ao fim de proteção de norma, que presente, contribuindo para a causalidade. Este fato é diferente daquele da
é determinar o alcance das limitações das atividades que ela encerra. ambulância em que o agente é ferido e morre em consequência de um acidente
A norma de que se trata não é, evidentemente, a norma penal que de trânsito, porque então a causalidade já estava acabada e se inaugura uma
fundamenta o tipo de delito culposo, mas a norma de cuidado à qual está outra causalidade que, por si só, produziu o resultado. Tudo depende, então,
submetida a conduta concreta do agente.738 Esta distinção é importante, de uma sequência temporal, que não está bem delimitada. Daí a propriedade
porque, em se tratando de norma penal, já não se cogita propriamente de sua da limitação pelo fim de proteção da norma.
finalidade protetiva, mas do alcance do tipo. ROXIN faz, perfeitamente, esta A importância da limitação pelo fim de proteção da norma, entretan-
distinção, ao compreender o critério do fim de proteção da norma dentro das to, não elimina a necessidade da determinação de sua extensão. Como se
hipóteses de exclusão da imputação pela realização do risco não permitido, e sabe que a norma de cuidado não se estende ao evento danoso verificado,
o critério do alcance do tipo como gênero de situações de autocolocação ou ainda que tenha sido causal para sua ocorrência? Para a configuração exata
heterocolocação em perigo.739 As normas aqui tratadas são regulamentares, da extensão da norma de cuidado é indispensável fazer-se sua vinculação ao
que apresentam comandos determinados, como as normas de trânsito, de bem jurídico lesado ou posto em perigo. Aqui não se trata de estabelecer-se
prática médica ou de regulamentos profissionais. uma associação entre esta norma e o fim de proteção dos bens jurídicos;
Convém esclarecer que a argumentação em torno do fim de proteção primeiro, porque é impróprio proceder-se a uma argumentação com base
da norma não exclui outros critérios limitativos da imputação, levados a na proteção de bem jurídico, já que isso não tem nem respaldo empírico
efeito em outras circunstâncias. A dificuldade que se apresenta na conjuga- nem jurídico, mas apenas simbólico; depois, porque o bem jurídico já foi
ção entre a conduta concretamente realizada e a norma regulamentar reside lesado, não cabe mais falar-se de sua proteção. Aliás, qual proteção, se já foi
não apenas na identificação da norma que irá nortear aquela atividade, mas lesado? A associação que se deve fazer é entre a norma de cuidado e a lesão
principalmente na determinação de sua extensão. concreta do bem jurídico, ou seja, se a lesão do bem jurídico estava vinculada
funcionalmente à lesão à norma de cuidado. Isto quer dizer o seguinte: se
Afinal, por que se diz no exemplo de DEGENER que o fato de a mar- a norma de cuidado está dirigida exclusivamente ao fato de se colocar um
quise haver caído na cabeça do transeunte não pode ser atribuído à dona do vaso na janela, ou seja, a exigir que a dona do vaso, como fonte produtora de
vaso? Aparentemente, a queda de um vaso da janela não tem o condão de fazer perigo, não o exponha a condições que possam produzir lesão em outrem,
com que a marquise do outro lado da rua desabe sobre o transeunte. Mas se o isto nada tem a ver com a norma de cuidado que, efetivamente, estava a dis-
transeunte passou por baixo da marquise, porque fora assim obrigado para se ciplinar também a manutenção da marquise. A norma de cuidado incidente
livrar do vaso que estava caindo em sua cabeça, pelo menos, à primeira vista, se sobre o vaso não guarda sentido para com a manutenção da marquise, isto
pode dizer que há causalidade em face da teoria das condições. Frente a este fato é, a colocação ou a queda do vaso não está em função de como se mantém a
haveria dúvida acerca da propriedade de se lhe aplicar a limitação contida no marquise do outro lado da rua. Se a lesão do bem jurídico decorre da queda
§ 1º do art. 13 do CP. Se, por um lado, a morte do transeunte fora produzida da marquise e como ambas as normas de cuidado não guardam uma relação
exclusivamente pela queda da marquise, parece que se trata de uma causalidade funcional, está claro que não se pode atribuir a responsabilidade dessa lesão
superveniente relativamente independente que, por si só, produziu o resultado. à dona do vaso. Portanto, a extensão do fim de proteção da norma nada
Mas o desabamento da marquise não pode eliminar o fato de que o transeunte tem, na verdade, de efeito protetivo, mas meramente funcional para com a
foi levado à posição debaixo dessa marquise em função da queda do vaso, ou lesão de bem jurídico. Com isso se elimina do direito penal um argumento
assentado apenas em elementos simbólicos.
738. Assim, KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, 3ª edição, München: Vahlen, 2000, p. 624.
739. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 325 e 334; considerando importante esta distinção, também, GRECO, As normas de cuidado estão associadas, em muitos casos, a regulamentos
Luís. “Imputação objetiva: uma introdução”, in ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no
direito penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 165.
382 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 383

profissionais ou a regras específicas relativas à execução de certas atividades. mínima não pode ser inferior à metade da velocidade máxima assinalada
Entre estas podem ser destacados o código de trânsito, os regulamentos mé- na via respectiva). Disto se pode concluir que, em muitos casos, a simples
dicos e os regulamentos laborais. violação dos limites da velocidade máxima não implica violação da norma
de cuidado, se tal não constituir perigo à segurança do trânsito. Se a norma
(A) O CÓDIGO DE TRÂNSITO está, aqui, circunscrita a tudo o que disser respeito à segurança do trânsito, o
O Código de Trânsito Brasileiro dispõe, por exemplo, de inúmeras re- fato de alguém dirigir em excesso de velocidade e, nesta condição, produzir
comendações, que, na verdade, são deveres administrativos, sobre a condução a morte da pessoa que se lança por sobre o veículo desde uma passarela, não
de veículos, tais como, a preferência da direita (art. 29, III, c), a prioridade poderá ser por ela disciplinado, porquanto se situa para além dos seus limites.
de passagem dos carros da polícia, dos bombeiros, de salvamento ou de fis- Esse mesmo fato, como vimos, já fora analisado e solucionado segundo
calização do próprio trânsito e das ambulâncias (art. 29, VII), a guarda de os princípios limitativos da causalidade funcional. Aqui, está submetido a
distância para com os veículos laterais e frontais (art. 29, II), a ultrapassagem uma outra perspectiva: em vez de estar cingido ao panorama exclusivo do
pela esquerda (art. 29, IX), o acionamento de luzes direcionais ao efetuar desdobramento causal, se subordina a uma solução normativa, superadora
manobras (art. 29, XI, a), a proibição de ultrapassagem em vias de duplo da causalidade. Vê-se, assim, que estes critérios normativos de limitação da
sentido ou pista única, nos trechos em curvas ou aclives sem visibilidade, imputação podem retratar o mesmo fato de diversos ângulos, conforme o
nas passagens de nível, em pontes ou viadutos, ou nas travessias de pedestres enfoque seja dado segundo os seus variados fundamentos.
(art. 32), a obrigação de realizar conversões somente nos locais apropriados,
PUPPE, por exemplo, quer analisar todas as hipóteses relacionadas ao
ou, na sua inexistência, abrigando-se, previamente, no acostamento (art. 37),
fim de proteção da norma sob o critério da idoneidade, que é derivado de
a obrigação de circular com luzes acesas durante a noite, ou nos túneis, ou
sua concepção de causa como condição suficiente.741 Segundo seu raciocínio,
ainda sob chuva forte, neblina ou cerração (art. 40, I e IV), a obediência aos
cumpre proceder a essa análise em duas etapas: primeiramente, distinguir
limites de velocidade máxima (art. 43) ou mínima (art. 62), a proibição de
entre idoneidade geral e idoneidade específica; depois, aduzir o sentido da
avançar sinal vermelho de semáforo (art. 208).
proteção normativa e a contribuição causal. No primeiro momento, portan-
Todas estas regras são, na verdade, indicações estandardizadas de uma to, deve-se fazer uma generalização da norma e de sua proibição. A proibição
regra geral contida no art. 28 do mesmo Código de Trânsito, in verbis: “O do excesso de velocidade será irrelevante para a responsabilidade do motorista
condutor deverá, a todo o momento, ter o domínio de seu veículo, diri- se não for idônea, no sentido de uma norma geral, a evitar o acidente. Se,
gindo-o com atenção e cuidados indispensáveis à segurança do trânsito”. porém, essa inidoneidade for apenas constatada no caso específico e não
Desta norma geral, conjugada com aquelas regras estandardizadas, se infere como norma geral, o fato ainda estará dentro dos limites de proteção da
a função do código que está relacionada à segurança do trânsito. Há normas norma. Imaginemos um exemplo em que o motorista dirige em excesso
de trânsito, porém, que não dizem respeito à segurança, mas exclusivamen- de velocidade e vem a se chocar com outro veículo, que não obedecera à
te a interesses de fiscalização da administração. Lembra oportunamente preferencial. Há, aqui, duas condutas, igualmente contrárias à norma de
LUÍS GRECO que, nesses casos, sua desatenção não implica violação dos cuidado. Embora se possa argumentar que o acidente não teria ocorrido,
limites do risco autorizado.740 caso o primeiro motorista tivesse atendido aos limites de velocidade, isto não
Da norma geral do código, pode-se ver, por exemplo, que a proibi- o exoneraria, porque este raciocínio não vale como regra geral, mas apenas
ção do excesso de velocidade está conjugada, também, com a observância para o caso específico. Numa segunda etapa, cumpriria verificar o sentido
da velocidade mínima (de acordo com o código – art. 62 –, a velocidade da proteção normativa e a chamada continuidade da contribuição causal. Se
a finalidade da norma, ao impor limites de velocidade, tem o significado de
740. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva, p. 46. GRECO faz menção expressa à
norma do art. 250, III do CTB, que determina ao motorista que mantenha a luz da placa traseira ilumi-
nada quando dirija à noite. 741. PUPPE, Ingeborg. Die Erfolgszurechnung im Strafrecht, p. 110 et seq.
384 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 385

possibilitar ao motorista, a qualquer tempo, o uso suficiente dos freios para quando interfiram diretamente nas atividades que são por ela reguladas.
evitar acidentes, isto impõe a desconsiderar as atitudes daqueles que também Assim também não se inclui, no âmbito de proteção da norma, a aten-
agiram descuidadamente e, com isso, contribuíram para o evento, desde que ção que o motorista deve ter para com pessoas que estejam passando nas
estas últimas contribuições não se tenham antecipado à primeira. Caso ocorra passarelas sobre a pista. Se os limites de velocidade máxima têm a finalidade
a última hipótese, o resultado decorrente da conduta do motorista que dirige de possibilitar que o motorista possa parar o veículo a tempo (isto se deduz,
em excesso de velocidade não estará mais situado no âmbito de proteção da inclusive, da indicação do art. 28 do CTB), nisso não se inclui que deva
norma e, assim, se produziria uma exclusão da causalidade. sempre prestar atenção nas passarelas sobre a pista, pois a construção de tais
Esse raciocínio de PUPPE pode ser, também, estendido às hipóteses de vias para pedestres tem, por sua vez, a função de desonerá-lo desse dever.
causalidade superveniente, mas, no Brasil, isto é desnecessário porque, pela Portanto, no exemplo do pedestre que se atira por sobre o veículo de uma
limitação traçada no parágrafo único do art. 13, a imputação só se dará se a dessas passarelas, a imputação estará excluída porque o resultado se situa além
causa antecedente continuar a atuar no momento da realização do resultado. da finalidade protetiva da norma respectiva. Neste juízo, são irrelevantes os
O fabricante de automóveis, por exemplo, não poderá ser responsabilizado critérios da probabilidade ou da idoneidade, que são critérios quantitativos.
pelo acidente por não haver fornecido o veículo com os freios adequados, Igualmente, pelo fim de proteção da norma, se soluciona um conheci-
quando o motorista, simplesmente, não os tenha acionado no momento do caso, que pode perfeitamente ocorrer em qualquer lugar: um motorista
oportuno. A responsabilidade do fabricante será apurada, neste caso, pelo avança o sinal vermelho em um cruzamento; em decorrência disso, chega
código do consumidor, mas não segundo a norma de trânsito, porque, no mais cedo em determinado ponto da outra quadra e acaba atropelando um
momento do acidente, sua contribuição causal não se fizera presente. pedestre, que atravessa a rua fora da faixa. Não tivesse avançado o sinal, não
Embora o raciocínio de PUPPE seja importante como forma de argu- teria chegado a tempo no local em que o pedestre atravessara a rua e, assim,
mentação em torno dos limites da imputação, que ela, nestes casos, quer tratar não o teria atropelado. Embora pela teoria da equivalência das condições e,
como limites da causalidade, a referência ao modelo de idoneidade se situa um inclusive, pela da causalidade típica, o agente tenha produzido o resultado,
pouco fora da questão, porque, no fundo, se resume a um juízo de probabi- este se situa, porém, fora do âmbito de proteção da norma. É que a norma
lidade.742 Na verdade, a determinação do âmbito de proteção da norma, por que proíbe o avanço do sinal vermelho tem como finalidade específica evitar
ser matéria de valoração, deve ser procedida segundo um juízo de ponderação colisões no cruzamento e não em outros pontos distantes da mesma rua.
de objetivos e valores e não de probabilidade. De acordo com nosso Código De qualquer modo, a questão poderá ser analisada sob outro prisma, se,
de Trânsito, por exemplo, todas as regras estandardizadas devem ser aprecia- por exemplo, o resultado se deu porque o motorista dirigia em excesso de
das segundo a finalidade de segurança do trânsito, quer dizer, da “utilização velocidade, ou porque não acionara os freios do veículo, ou porque estava
das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos alcoolizado, ou porque o veículo estava com pneus gastos e, assim, não pôde
ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga parar no devido tempo. Nestas hipóteses, não se cogita mais da apreciação
ou descarga” (CTB art. 1º, § 1º). Dessa norma se extrai que não se incluem, do fato segundo a norma que disciplina o avanço de sinal, mas de outras
no âmbito de proteção das regras de trânsito, a forma e as condições como normas (de limitação de velocidade, das condições do veículo, da utilização
o veículo é fabricado, salvo quando empregado nas manobras de circulação, dos freios, etc.), as quais podem ter sido violadas e se realizarem no resultado.
parada, estacionamento e operação de carga ou descarga. Portanto, os defeitos
de fabricação só interessam ao âmbito de proteção da norma regulamentar (B) OS REGULAMENTOS MÉDICOS
Da mesma forma devem ser tratadas as disposições relativas ao exer-
742. Mesmo PUPPE, Ingeborg. Die Erfolgszurechnung im Strafrecht, p. 121, admite que a generalização dos cício da medicina, cujas normas legais são complementadas por resoluções
elementos do processo causal implica a eliminação da causalidade quando a “ocorrência do dano for
tão frequente na conduta que atende à norma de cuidado quanto naquela (conduta) que a viola”. Este e pareceres dos respectivos órgãos de fiscalização. Assim, de acordo com o
raciocínio estatístico está pressupondo, evidentemente, um juízo de probabilidade.
386 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 387

art. 17 da Lei nº 3.268/57, regulamentada por seguidos decretos, só podem profissional.” Quer dizer que todas as limitações devem ter em vista que o
exercer a profissão de médico as pessoas devidamente inscritas no conselho de emprego de qualquer terapia, mesmo que constitua uma infração a normas
medicina de sua região, ao qual incumbe fiscalizar-lhes a atividade. Por outro regulamentares, deve ser admitido uma vez que essa forma de terapia seja neces-
lado, há, no regulamento do exercício profissional (Decretos nº 20.931/32, sária ou a única possível para salvar a vida do paciente. Aqui, como se trata de
nº 44.045/58 e suas modificações posteriores), inúmeras regras de obser- conflito entre uma regra geral (a que diz que o médico deve agir com a melhor
vância obrigatória, tais como: a) o dever de escrever as receitas por extenso, de sua capacidade para atender à saúde do paciente) e uma regra específica de
legivelmente, em vernáculo, nelas indicando o uso interno ou externo dos vedação (que não permite o emprego de terapias ainda não testadas ou experi-
medicamentos, o nome e a residência do doente, bem como a própria resi- mentais), a solução do conflito se revolve segundo um juízo de ponderação de
dência ou consultório (art. 15, b); b) o dever de ratificar, em suas receitas, a valores, que não pode ser resumido a um simples critério de probabilidade ou
posologia dos medicamentos, sempre que esta for anormal, eximindo assim o de idoneidade, embora a própria norma regulamentadora se tenha orientado
farmacêutico de responsabilidade no seu aviamento (art. 15, c); c) a proibição por estes, ao estatuir a condição de que a terapia deva ser de utilidade razoável
de receitar sob forma secreta, valendo-se de código ou número (art. 16, b). para o paciente (código de ética, art. 130). Não se trata de ponderar que o
Ademais, o código de ética médica, promulgado pelo Conselho Federal de emprego dessa nova terapia provavelmente conduziria ao salvamento ou que
Medicina, também traça outras vedações, como: a) prescrever tratamento ela era idônea para aquele tipo de enfermidade. Se o resultado for somente pro-
ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de vável, a execução da ação estará dentro dos limites da vedação da norma geral
urgência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, e, portanto, implicaria uma violação do cuidado por ela prescrito. Se a terapia
fazê-lo imediatamente cessado o impedimento (art. 62); b) deixar de fornecer fosse idônea, não precisaria de qualquer ponderação, porque já não se cogitaria
a outro médico informações sobre o quadro clínico do paciente, desde que de conflito, estaria ela autorizada, por não se encontrar no âmbito da norma
autorizado por este ou seu responsável legal (art. 83); c) deixar de informar de vedação específica. Mas a questão pode ser outra: as terapias tradicionais
ao substituto o quadro clínico dos pacientes sob sua responsabilidade, ao ser não são suficientes para evitar a morte, e a terapia a ser empregada é proibida.
substituído no final do turno de trabalho (art. 84); d) executar ou participar Portanto, o conflito não se resolve pelos juízos de idoneidade ou de proba-
de pesquisa médica em que haja necessidade de suspender ou deixar de usar bilidade, apenas em face do reconhecimento de ser a terapia a única chance
terapêutica consagrada e, com isso, prejudicar o paciente (art. 129); e) realizar de salvamento. Neste caso, os resultados desastrosos que daí decorrerem não
experiências com novos tratamentos clínicos ou cirúrgicos em paciente com estarão mais submetidos à vedação da norma, porque seu âmbito de atuação
afecção incurável ou terminal sem que haja esperança razoável de utilidade cede lugar a um valor mais alto que é a defesa da vida humana.
para o mesmo, não lhe impondo sofrimentos adicionais (art. 130).
(C) OS REGULAMENTOS LABORAIS
Como se observa, essas são, na verdade, regras bem menos específicas
do que aquelas relativas à circulação de veículos, mas, em determinadas cir- Em face do grande número de acidentes do trabalho, o poder público
cunstâncias, são elucidativas, por exemplo, quando prescrevem a vedação de tem expedido normas de segurança para preveni-lo em diversas áreas.743 Para
tratamento sem exame direto do paciente ou de utilizar experiências com tanto, vigoram entre nós diversas normas preventivas, destacando-se, em
novos tratamentos ainda não suficientemente testados, que constituem de- primeiro plano, as convenções internacionais e, depois, normas internas,
veres prévios à execução de qualquer terapia. expedidas pelo Ministério do Trabalho, no que toca a atividades laborais
específicas.744 Embora estas normas se refiram à segurança no trabalho, nelas
Por outro lado, convém sempre alertar que essas regras estão todas subor-
dinadas a um princípio geral, expresso pelo art. 2° do código de ética, in verbis: 743. Vinculando, por exemplo, a política empresarial aos custos da prevenção, TERRADILLOS BASOCO,
Juan María. La siniestralidad laboral como delito. Albacete: Editorial Bomarzo, 2006, p. 20.
“O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício 744. Entre as convenções internacionais, podem ser citadas as seguintes: 012 – Agricultura; 016 – Exame
da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade Médico dos Menores (Trabalho Marítimo); 103 – Proteção da Maternidade; 045 – Trabalho Subterrâ-
neo; 081 – Fiscalização do Trabalho; 042 – Doenças Profissionais; 113 – Exame Médico dos Pescado-
res; 115 – Proteção Contra Radiações Ionizantes; 120 – Higiene (Comércio e Escritórios); 124 – Exame
388 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 389

se incluem disposições que dizem respeito, inclusive, a perigos que possam re- probabilidade, idoneidade, cláusula ceteris paribus e outras), ou como pon-
sultar a terceiros,745 daí constituírem regras importantes na determinação do deração de valor efetuada sobre a finalidade da norma de cuidado para
dever de cuidado. A todas elas se estendem os mesmos raciocínios que foram delimitar-lhe o âmbito de incidência. De acordo com a metodologia, então,
articulados relativamente às regras de trânsito e ao exercício da medicina. seguida, resta examinar, aqui, três séries de critérios: a) o critério da previsi-
bilidade; b) os critérios relativos à evitabilidade do resultado; c) os critérios
(3) A IMPUTAÇÃO NORMATIVA DO RESULTADO
relacionados diretamente ao aumento do risco e sua realização no resultado.
Não cabe, aqui, proceder a uma exaustiva explanação sobre as origens,
a evolução e as variações doutrinárias sobre a imputação objetiva no direito (A) A PREVISIBILIDADE DO RESULTADO
penal. Para tanto remetemos o leitor às obras específicas.746 O que interessa Desde o Direito Romano, passando pelos glosadores e pós-glosadores
ao exame da tipicidade dos delitos culposos é discutir os critérios utilizados até nossos dias, a negligência sempre esteve assentada na previsibilidade do
por essa teoria para delimitar a responsabilidade, principalmente em face resultado, que constituiria, inclusive, sua própria essência. Isto valia tanto
do regresso infinito da causalidade, levado a efeito pela adoção da teoria da para o direito civil quanto para o direito penal. Com a separação que se fez
equivalência das condições, fora dos casos anteriores. entre os elementos da negligência na culpabilidade e no injusto, de modo a
Alguns dos critérios empregados pela teoria da imputação objeti- que, neste último, se incluísse a lesão ao dever de cuidado, cujo incremento
va já foram antes analisados como limitadores da própria causalidade, na se deve, ademais, ao disposto no § 276 do Código Civil alemão, o critério da
forma de fatores que se desenvolvem de sua explicação teórica (adequação, previsibilidade passou a ser enfocado sob duas orientações básicas: no âmbito
do injusto, tratou-se da previsibilidade objetiva, na culpabilidade, da previsi-
Médico dos Menores (Trabalho Subterrâneo); 127 – Peso Máximo; 136 – Benzenos; 139 – Câncer bilidade subjetiva. Este é ainda o sistema dominante, muito embora alguns
Profissional; 148 – Meio Ambiente de Trabalho (Contaminação do Ar, Ruído e Vibrações); 152 – Segu-
rança e Higiene (Trabalho Portuário); 155 – Segurança e Saúde dos Trabalhadores; 161 – Serviços de autores, como FREUND, GROPP, JAKOBS, STRATENWERTH e, entre
Saúde no Trabalho; 162 – Asbesto / Amianto; 167 – Segurança e Saúde na Construção; 170 – Produtos
Químicos; 174 – Prevenção de Acidentes Industriais Maiores; 176 – Segurança e Saúde nas Minas; nós, HEITOR COSTA JÚNIOR,747 optem por uma individualização do
184 – Segurança e Saúde na Agricultura. Além dessas convenções, vigoram, internamente, também,
normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, tais como: NR6 Equipamentos de Proteção tipo de injusto dos delitos culposos e, consequentemente, tenham que tomar
Individual – EPI; NR7 Programas de Controle Médico de Saúde Ocupacional; NR8 Edificações; NR9
Programas de Prevenção de Riscos Ambientais; NR10 Instalações e Serviços em Eletricidade; NR11 por base o critério da previsibilidade subjetiva como elemento integrante do
Transporte, Movimentação, Armazenagem e Manuseio de Materiais; NR12 Máquinas e Equipamentos; processo de imputação (JAKOBS) ou como aferição da medida do cuidado
NR13 Caldeiras e Vasos de Pressão; NR14 Fornos; NR15 Atividades e Operações Insalubres; NR16
Atividades e Operações Perigosas; NR17 Ergonomia; NR18 Condições e Meio Ambiente de Trabalho (FREUND, GROPP, STRATENWERTH e HEITOR COSTA JÚNIOR).
na Indústria da Construção; NR19 Explosivos; NR20 Líquidos Combustíveis e Inflamáveis; NR21 Tra-
balho a Céu Aberto; NR22 Segurança e Saúde Ocupacional na Mineração; NR23 Proteção Contra In-
cêndios; NR24 Condições Sanitárias e de Conforto nos Locais de Trabalho; NR25 Resíduos Industriais; Na verdade, o critério da previsibilidade deve constituir um dos ele-
NR26 Sinalização de Segurança; NR29 Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho mentos de limitação da responsabilidade, que poderá ser utilizado tanto
Portuário; NR30 Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho Aquaviário; NRR4 Equi-
pamento de Proteção Individual–EPI e NRR5 Produtos Químicos. no injusto quanto na culpabilidade. O critério da previsibilidade pode ser
745. Por exemplo, de acordo com a NR8, relativa à segurança nas edificações, as aberturas nos pisos e nas
paredes devem ser protegidas de forma que impeçam a queda de pessoas ou objetos (item 8.3.2). Do prescindido se se entender que o tipo dos delitos culposos não se compõe
mesmo modo, a NR13, que disciplina o uso de caldeiras a vapor, exige para sua instalação que se mante-
nha a distância mínima de 3 (três) metros para com propriedades alheias ou vias públicas (item 13.2.3); da violação ao dever de cuidado, mas tão-somente da recognoscibilidade de
a NR14 dispõe que os fornos devem ser instalados de forma a evitar acúmulo de gases nocivos e altas sua realização, como pretendem, por exemplo, FRIEDRICH CHRISTIAN
temperaturas em áreas vizinhas (item 14.2.1); a NR10, que trata da segurança do trabalho em instalações
e serviços de eletricidade, regula também os atos de prevenção de danos a usuários e terceiros SCHROEDER e SCHMIDHÄUSER.748 Adotando-se, porém, a tese do-
746. Por exemplo, BUSTOS RAMÍREZ, Juan. “Imputación objetiva (cuestiones metodológicas y sistemáti-
cas)”, Estudios penales y criminológicos XII, Universidad de Santiago de Compostela, 1989; FRISCH, minante, que é a correta, de que a violação ao dever de cuidado integra o
Wolfgang. “La imputación objetiva: el estado de la cuestión”, Sobre el estado de la teoría del delito,
Madrid: Civitas, 2000, p. 22 et seq.; JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal, tradução
de ANDRÉ LUÍS CALLEGARI, S. Paulo: RT, 2000; MENDES, Paulo de Souza. “Crítica à ideia de
diminuição do risco de Roxin”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 14, 1996, p. 102 et seq.; 747. FREUND, Georg. Strafrecht, AT, Berlin, Heidelberg, N. York: Springer, 1998, p. 150 et seq.; GROPP,
PESSOA, Nelson. “Imputación objetiva y el concepto de acción”, Teorías actuales en el derecho penal, Walter. Strafrecht, AT, 2ª edição, 2001, p. 436 et seq.; JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p.
Buenos Aires: Adhoc, 1998, p. 199 et seq.; PRADO, Luiz Regis/CARVALHO, Erika Mendes de. Teo- 320 et seq.; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 411; COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 61.
rias da imputação objetiva do resultado, S. Paulo: RT, 2002; REYES ALVARADO, Yesid. Imputación 748. SCHROEDER, Friedrich Christian. “Die Fahrlässigkeit als Erkennbarkeit der Tatbestandsverwirkli-
objetiva, Bogotá: Temis, 1996; ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal, chung”, in Juristenzeitung, 1989, p. 776 et seq.; SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Strafrecht, AT, 2ª edi-
com abrangente introdução de LUÍS GRECO, Rio de Janeiro: Renovar, 2002. ção, 1984, p. 431.
390 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 391

tipo dos delitos culposos, como seu componente essencial, a previsibilidade classe, a esse se estendem todas as particularidades dessa classe. Tomemos, por
do resultado terá seu papel como uma consequência necessária dessa tese. A exemplo, como classe genérica, os alimentos transgênicos, que hoje estão a
questão está, entretanto, em, primeiramente, decifrar o que se deva enten- suscitar inúmeras controvérsias sobre seus malefícios à saúde humana. Uma
der por previsibilidade; depois, determinar o parâmetro de sua aferição. São vez constatada essa particularidade, poder-se-ia formular a seguinte propo-
coisas distintas, que devem ser tratadas separadamente. sição, resultante de uma investigação empírica: “todos os transgênicos são
O conceito de previsibilidade é bastante controvertido, porquanto não cancerígenos”. Dessa generalização se pode prever, até prova em contrário,
existem elementos que possam informá-lo com absoluta precisão. Normal- que qualquer outro alimento derivado de um transgênico, se ingerido, trará
mente, a previsibilidade tem o sentido de um determinado prognóstico que se como consequências uma alteração na saúde do consumidor. Aqui, a previ-
faz acerca da possibilidade de realização de um certo evento. Como se trata de são não advém da ação de ingerir o alimento, mas do fato de esse alimento
um prognóstico e não de um juízo de probabilidade, muitas foram as discus- pertencer à categoria geral dos transgênicos. Esta modalidade de previsão,
sões sobre o modo de seu enunciado. Já no âmbito da teoria da causalidade como não vem baseada em fatores específicos que são desencadeados pela
adequada, por exemplo, a previsibilidade resultaria de um juízo objetivo feito ação humana, mas em generalidades acerca de uma classe de objetos não será
ex post, mas levando em conta os fatores ex ante, substanciando a chamada suficiente para orientar a conduta do sujeito. Situações empíricas concretas
prognose posterior objetiva, que fora proposta por MAX RÜMELIN na virada podem excluí-la. Por exemplo, será sempre necessário proceder-se a uma
dos séculos XIX e XX.749 análise do alimento efetivamente consumido. Só a partir disso será possível
verificar se o fato era previsível e que, portanto, o agente o previu ou não.
A ciência moderna, por seu turno, sempre esteve atenta para o signifi-
cado das previsões. Como informa MARIO BUNGE, há uma tendência de A outra modalidade de previsão diz respeito às leis estruturais que
não se proceder à diferenciação entre previsibilidade e descrição, ou expli- regem algumas propriedades dos objetos, constituindo a chamada previsi-
cação de um fenômeno, o que só é válido, porém, no âmbito das estruturas bilidade estrutural. Nesta modalidade, igualmente, a previsão não decorre
lógicas, porque a previsão, na prática, jamais poderá identificar-se com a propriamente da ação, mas das alterações que necessariamente se deverão
descrição ou a explicação científica.750 Em consequência dessa identidade e produzir nas coisas. Assim, diante da constatação de que a água ferve aos
atendendo às considerações da mecânica clássica e do eletromagnetismo, a 100 graus, se pode prever que, sob esta temperatura, uma caldeira esteja
previsibilidade científica fora vista unicamente sob o aspecto quantitativo, submetida a uma pressão maior do que se a água estivesse a 30 graus, daí a
daí reconhecer-se, inicialmente, apenas uma espécie de previsibilidade, que recomendação de se observar se as válvulas de segurança estão em perfeito
seria a previsibilidade estatística. Entretanto, como a previsibilidade não vem funcionamento. Como a previsão, neste caso, não é inferida por extensão,
associada especialmente a um parâmetro quantitativo, mas a diversos fatores e mas decorre da aplicação de uma lei natural, sua aferição depende se, efe-
circunstâncias, hoje são reconhecidas outras espécies de previsibilidade, con- tivamente, se verificaram, no caso concreto, as condições estabelecidas por
forme o número ou as características das leis que disciplinam esses fatores.751 aquela lei: se a água estava mesmo a 100 graus, e não a 50 ou 60. O fato de
haver algumas variações quanto ao ponto de ebulição da água, conforme a
Além da previsibilidade estatística, que está amparada por um critério distância do local em relação à Linha do Equador ou sua altitude superior ao
meramente quantitativo, há ainda a previsibilidade taxonômica, a previsibili- nível do mar, de modo a que aquele seja alcançado aos 99,5 e não aos 100
dade estrutural, a previsibilidade fenomenológica e a previsibilidade temporal. graus, não altera os parâmetros dessa espécie de previsibilidade, porquanto
A previsibilidade taxonômica afirma generalidades acerca de uma classe essas variações são, em si mesmas, desprezíveis.
de objetos, de modo que, uma vez identificado certo fator dentro daquela Já na previsão fenomenológica, leva-se em conta um determinado fator
749. RÜMELIN, Max. “Die Verwendung der Kausalbegriffe im Straf und Civilrecht”, in Archiv für die civi- estático conhecido, que está presente no objeto, por exemplo, o índice de
listische Praxis, 1900, tomo 90, p. 171 et seq.
750. BUNGE, Mario. Kausalität, Geschichte und Probleme, p. 342 et seq. transparência de um vidro. Tendo em conta esse fator, se pode prever que,
751. BUNGE, Mario. Kausalität, Geschichte und Probleme, p. 347 et seq.
392 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 393

sob baixa luminosidade, o motorista terá ou não sua visão diminuída, con- a teoria dominante. Quanto a isto, entretanto, cabem algumas ponderações.
forme o índice de transparência do para-brisas. Nesta forma de previsão, ao Atendendo às diversas modalidades de previsibilidade, podemos notar
contrário, por exemplo, do que se dá com as leis estruturais, não é importante que entre essas não subsiste unidade. Enquanto, por exemplo, as formas re-
o fator temporal, quer dizer, se a água está, neste momento, em ebulição ou lativas aos critérios estatístico, taxonômico, estrutural e fenomenológico são
se isto se dará somente dentro de alguns segundos, o que poderá causar um operadas, via de regra, objetivamente, a forma temporal encerra em si mesma
aumento variável de pressão na caldeira por efeito dos gases. Aqui, o índice um conteúdo de ponderação subjetiva, ou seja, depende da capacidade do
de transparência será sempre o mesmo, quer o motorista esteja dirigindo agente de antever as consequências de sua ação no contexto de sua realização.
durante o dia ou de noite, ontem ou antes de ontem, quer dizer, em dado
grau de luminosidade a sua visão será afetada em determinada proporção, Diante desses fatos, a questão da previsibilidade deve seguir, neste par-
independentemente do tempo decorrido. Da mesma forma como ocorre com ticular, pelo menos metodologicamente, a linha traçada por WIESELER e
a previsão estrutural, esse prognóstico depende também de outros fatores, WOLTER quanto à questão da violação à norma de cuidado, de acolher, no
que podem eliminar esse tipo de previsibilidade: por exemplo, o motorista próprio injusto, os dois critérios de sua aferição, um objetivo e outro subjeti-
portava óculos especiais que puderam aumentar a sua visão, ainda que sob a vo.752 Isto não implica a admissão de um tipo subjetivo nos delitos culposos,
transparência reduzida do para-brisas. Neste caso, a estrutura deficitária do porque não se está tratando aqui de qualquer elemento subjetivo, mas apenas
objeto foi superada pela própria intervenção do sujeito. de um critério pessoal de aferição da previsibilidade, conjuntamente com um
critério objetivo ou impessoal. Em vez de se estabelecer que toda a previsibi-
Finalmente, a previsibilidade temporal se refere a fatos que se desen- lidade deve estar assentada apenas em elementos objetivos, pondera-se que
volvem em uma sequência pela qual se pode prognosticar sua sucessão, por isto não se pode dar em todas as suas modalidades, mas somente naquelas que
exemplo, a velocidade imprimida por um veículo. Sabendo-se que a velocida- só comportam um juízo puramente objetivo. A adoção, portanto, do critério
de faz com que o veículo se aproxime mais rapidamente de um cruzamento pessoal é necessária no âmbito de aferição da previsibilidade temporal e, em
ou da faixa de pedestres, pode-se prever que, mantida aquela velocidade, alguns casos, da previsibilidade fenomenológica, que podem variar conforme
determinada pessoa não consiga atravessar a rua sem ser colhida pelo automó- o agente disponha de uma capacidade especial ou não para antever o evento.
vel. Como, entretanto, os fatores podem ser influenciados por circunstâncias
que interagem mutuamente, essa forma de previsibilidade, salvo na hipótese O critério pessoal deve estar relacionado à capacidade objetiva do
da previsibilidade puramente estatística, não apresenta os mesmos índices agente, em face dos fatores causais existentes no momento do fato de prever o
de plausibilidade que as demais, devendo ser corroborada em cada caso com resultado. Não há, assim, que se proceder a uma comparação entre este agente
indagações ou investigações complementares. e um imaginário homem standard, mas simplesmente de conferir, diante do
contexto, se as condições materiais da conduta e das circunstâncias poderia
Ao trazer para o âmbito de discussão todas essas modalidades de embasar um juízo objetivo de que aquele agente previu o resultado. Dadas
previsão, a ciência moderna vem dando uma contribuição decisiva para as características, portanto, da previsibilidade temporal, que faz depender da
equacionar o problema da limitação da causalidade, não apenas sob o capacidade do próprio agente a conclusão acerca se o resultado era ou não
aspecto puramente estatístico ou, de outro lado, subjetivista, mas sob pa- previsível, cai definitivamente por terra o critério do homem prudente.
râmetros objetivos e conhecidos.
Por outro lado, o critério objetivo deve estar lastreado na experiência
Apesar dessa contribuição da ciência moderna, a aferição da previsibili- geral da vida para a espécie de previsibilidade estatística, ou nas medidas pró-
dade comporta ainda uma outra indagação, que é a de se saber se aqui devem prias a cada um dos fatores nas outras espécies de previsibilidade. Por exemplo,
vigorar critérios puramente objetivos ou se os parâmetros se devem orientar
pela capacidade do próprio agente. A dicotomia tradicional da previsibilidade,
752. WIESELER, Johannes. Der objektive und der individuelle Sorgfaltspflichtmaßstab beim Fahrlässigke-
objetiva no injusto, e subjetiva na culpabilidade, tem norteado, como dissemos, itsdelikt, Aachen: Shaker, 1995, p. 159 et seq.; WOLTER, Jürgen. Objektive und personale Zurechnung
von Verhalten. Gefahr und Verletzung in einem funktionalen Straftatsystem, Berlin, 1981, p. 42 et seq.
394 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 395

no caso das caldeiras que sofrem uma pressão maior quando a temperatura A necessária relação entre a conduta contrária ao dever de cuidado e o
da água aumenta, a medida da previsibilidade será aquela determinada pela resultado, que deriva já da própria estrutura dos delitos culposos materiais,
própria norma que disciplina a manutenção e o uso daquele objeto. Vê-se, conduz à conclusão de que, aqui, como nos delitos omissivos, os fatos estão
então, que novamente se prescinde da figura do homem prudente. submetidos ao crivo se o resultado era ou não evitável. Se o resultado não puder
ser evitado com a conduta conforme ao cuidado, adequada ao caso concreto,
(B) O CRITÉRIO DA EVITABILIDADE DO RESULTADO torna-se evidente que a lesão ao dever de cuidado seria irrelevante para sua
Tendo em vista que a previsibilidade não esgota o tipo de injusto dos verificação. Com isto estará excluída a imputação objetiva do resultado, que
fatos culposos e, por si só, não caracteriza ainda o delito culposo, além de não se orienta pela causalidade física (teoria da equivalência das condições),
reconhecer que o critério da previsibilidade é, por demais, flexível e incerto mas de acordo com um juízo de adequação. Aqui se discute, particularmente,
para determinar, com segurança, os limites da responsabilidade, a doutrina como deve ser pronunciado esse juízo de adequação, ou seja, até que ponto
atual vem asseverando, de modo mais ou menos majoritário, que, nos delitos se deve considerar válida a probabilidade da ocorrência do resultado, segundo
materiais (de resultado), a imputação como fundamento dessa responsabilidade o critério da eliminação hipotética, em caso de conduta conforme o cuidado,
deve estar ancorada na relação entre a lesão ao dever de cuidado e o resultado a fim de se negar a relação entre esse resultado e a lesão ao dever de cuidado.
concretamente verificado. Quanto a isto, a doutrina está de acordo de que esta As orientações são muitas. Pretendem algumas afirmar a imputação,
relação é necessária para a responsabilidade do agente, o que varia é apenas quando o resultado teria sido evitado, segundo um juízo de probabilidade ex-
o fundamento de suas consequências e a conclusão acerca de seus efeitos. Já trema (nos limites da certeza) ou, ao inverso, só negam a imputação, quando
vimos atrás, quando se tratou da causalidade típica e da questão do fim de o resultado não teria sido evitado segundo esse juízo.757 Outros se fixam no
proteção da norma, que, nos delitos culposos, todo o processo de imputação critério da possibilidade da evitação ou não-evitação do resultado.758
está ancorado na relação entre resultado e infração da norma de cuidado.
Independentemente dessas variantes doutrinárias, a utilização do juízo
No sistema clássico de delito, a ausência de um vínculo entre ambos, de evitabilidade como critério de imputação tem por base, entretanto, duas
isto é, entre a lesão ao dever de cuidado e o resultado, daria lugar à exclusão da orientações básicas: uma positiva e outra negativa. Pela primeira, afirma-se a
culpabilidade,753 pois, tomando-se a negligência como forma de culpabilidade imputação quando, caso a ação fosse cuidadosa, o resultado teria sido evitado
e nada mais, qualquer alteração naquela implicaria modificação nesta. Nas segundo um juízo de probabilidade nos limites da certeza.759 Pela segunda,
concepções modernas, ora se exclui a antijuridicidade,754 ora a tipicidade, ora a excluir-se-á a imputação quando o resultado for inevitável, isto é, quando,
responsabilidade pelo fato.755 Dessas orientações, a que mais se acentua, como já quase que certamente, ocorreria da mesma forma, caso a ação tivesse obede-
vimos, é a da exclusão da tipicidade, pelo fato inclusive de compreender toda cido ao cuidado devido.760 Em caso de dúvida, deve-se aplicar o princípio in
a matéria relativa à vinculação entre a conduta descuidada e o resultado.756 dubio pro reo, excluindo-se a imputação, quando dados concretos indiquem
753. DREHER, Eduard. Strafgesetzbuch, p. 11; EXNER, Franz. “Fahrlässiges Zusammenwirken”, in Frank-
-Festgabe, p. 583; sobre isso, ULSENHEIMER, Das Verhältnis zwischen Pflichtwidrigkeit und Erfolg
bei den Fahrlässigkeitsdelikten, Bonn: Röhrscheid, 1965, p. 64. a vinculação entre desvalor do ato e desvalor do resultado.
754. BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 456; atualmente, JESCHECK-WEIGEND (Nota 7, p. 584) en- 757. Seguem esta posição, entre outros, BOCKELMANN, Paul. Nota 7, p. 156; WELZEL, Hans. Nota 7,
tendem que, no caso, a ausência da imputação objetiva do resultado faz cair o nexo de antijuridicidade p. 194.
em duas hipóteses: a) o agente realiza o resultado através de uma conduta lesiva aos deveres de cuidado, 758. MEZGER, Edmund. Leipziger Kommentar zum Strafgesetzbuch, p. 490, segue o entendimento de que
mas o resultado teria ocorrido também com uma conduta cuidadosa e adequada ao dever (princípio do se deva absolver o agente “ainda que só exista a possibilidade de que se houvesse originado o mesmo
comportamento alternativo adequado ao direito); b) o agente realiza o resultado através de uma ação resultado com uma conduta conforme ao dever por parte do autor”. Embora com outra fundamentação,
descuidada, porém fora do âmbito de proteção da norma violada. Relativamente à medida da previsi- chega à conclusão quase semelhante, KAUFMANN, Arthur. “Die Bedeutung hypothetischer Erfolg-
bilidade ou evitabilidade do resultado, adotam JESCHECK-WEIGEND uma posição de compromisso sursachen im Strafrecht”, in Festschrift für Eb. Schmidt, p. 229, exigindo, entretanto, que sobre o juízo
entre a fórmula do in dubio pro reo e do aumento do risco para o objeto material. de possibilidade da ocorrência do resultado, se o autor tivesse acatado as determinações de cuidado, se
755. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 539. proceda à consideração hipotética de que esse resultado não poderia ser evitado, segundo um juízo de
756. Há ainda algumas orientações que pretendem, aqui, negar o desvalor do resultado. Assim, por exemplo, medida humana, isto é, de que se fosse de esperar que o resultado se produziria independentemente da
WELZEL, Hans. Nota 7, p. 194; de certo modo, KAUFMAM, Arthur. “Die Bedeutung hypothetischer conduta descuidada do autor.
Erfolgsursachen im Strafrecht”, in Festschrift für Eb. Schmidt, 1961, p. 229; entre nós, BITENCOURT, 759. Assim, KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, 3ª edição, p. 615.
Cezar Roberto. Direito penal, vol. 1, p. 222, vê, como elemento essencial do tipo dos delitos culposos, 760. Assim, WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 231.
396 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 397

que era de se esperar que o resultado, possivelmente, se daria do mesmo jeito, resultado será inevitável na medida em que a argumentação para demons-
ainda que a ação fosse cuidadosa.761 trar o contrário não comportar um juízo de refutação. Assim, por exemplo,
O fundamento para a adoção desses critérios encontram WESSELS quando se tratar das concausas (alguém golpeia inadvertidamente no braço
-BEULKE no fato de que, para a imputação, não basta que a conduta do um hemofílico e causa-lhe a morte, por hemorragia, porque este não houvera
agente tenha violado uma norma de cuidado e causado o resultado, mas tomado naquele dia o medicamento anti-hemorrágico), em que a participa-
sim que o perigo deflagrado com aquela conduta se tenha concretizado no ção da contribuição paralela não pode ser medida, a inevitabilidade da morte
resultado. Isto se dará quando o resultado, produzido pela conduta descui- deve ser sempre admitida, ainda que se argumente que o agente atuara com
dada, for evitável. A evitabilidade objetiva do resultado constitui, portanto, violação do dever de cuidado (de que deveria ter prestado atenção para não
nos delitos culposos, a essência da imputação no tipo de injusto. A questão golpear inadvertidamente outrem). A falta de possibilidade de avaliação da
da evitabilidade também terá relevância no âmbito da culpabilidade, mas intensidade da produção causal implica a desconsiderar juridicamente essa
tomada, então, subjetivamente. Assim, no âmbito do tipo, se o resultado for produção, justamente porque também nos delitos culposos uma causalidade
inevitável, faltará a imputação, porque, então, como o resultado ocorreria de só será relevante na medida em que possa fazer parte do âmbito dos objetos
qualquer forma, tanto com a ação cuidadosa quanto com a ação descuidada, de referência do agente, em confronto com a sua relação normativa.
não se poderá dizer que esse resultado seja a concretização do perigo desen-
(C) A TEORIA DO AUMENTO DO RISCO
cadeado pela conduta do agente.762
Diversamente da doutrina tradicional, a partir da contribuição de
O critério da evitabilidade tem seu ponto fraco, todavia, ao funda-
ROXIN, é possível construir uma estrutura de imputação com base na
mentar-se no princípio da probabilidade; isto porque este princípio deve
teoria do risco, a qual englobará, sob este signo, diversos critérios já ante-
constituir fator de limitação na própria causalidade e não critério de impu-
riormente discutidos, como o do comportamento alternativo, do fim de
tação objetiva. A distinção entre ambos reside, justamente, em que o juízo de
proteção da norma e da evitabilidade do resultado.763 Além disso, aqui são
probabilidade integra a determinação da própria causalidade e pode resultar
tratadas questões ainda não suficientemente resolvidas por aquelas proposi-
de um compromisso entre a base naturalista da causalidade e sua explicação
ções doutrinárias, as quais podem ser agrupadas em três grandes setores: a) do
teórica. Já os critérios da imputação objetiva dizem respeito a uma avaliação
incremento (ou criação) do risco não permitido; b) da realização do risco não
do risco produzido por uma conduta descuidada, não estando esse risco
permitido; c) do alcance do tipo. Sobre estes três setores, são desenvolvidos
autorizado pelo direito. Ao fazer-se a transposição desses fundamentos da
critérios valorativos e empíricos com vistas a estabelecer as exatas linhas divi-
imputação para a teoria da tipicidade, com vistas a traçar, com nitidez, os
sórias entre o lícito e o ilícito. Isto é mais do que evidente, quando ROXIN,
contornos da responsabilidade, o critério da evitabilidade deveria estar vin-
por exemplo, estatui como pressuposto da responsabilidade no âmbito do
culado à teoria do risco e não ao princípio da probabilidade. De qualquer
injusto que a conduta tenha realizado um perigo para o bem jurídico, não
modo, uma vez que esse critério pode proporcionar um ajuste na delimitação
acobertado pelo risco autorizado nos limites do alcance do tipo.
da responsabilidade, em face da ponderação que faz entre o resultado e as
condutas descuidada e cuidadosa, pode ser admitido, validamente, como A teoria do aumento do risco se insere em um sistema de base fun-
fator negativo de imputação. cional, que apresenta a peculiaridade de buscar uma relação mais íntima
No entanto, para que esta limitação seja eficaz, não basta trabalhar- 763. Parece que a teoria do aumento do risco, como critério da imputação, foi criada por ROXIN em um
se apenas com o sentido empírico da causalidade, mas proceder-se a uma artigo publicado na ZStW, tomo 74, 1962, p. 411 et seq., intitulado “Contrariedade ao dever e resultado
nos delitos culposos” (“Pflichtwidrigkeit und Erfolg bei fahrlässigen Delikten”), no qual examina, sob
reavaliação dessa causalidade em termos de relevância jurídica, ou seja, o aquele argumento, alguns casos controvertidos da jurisprudência, como o do “ciclista” (tratado pelo
Supremo Tribunal em 1957), do “farmacêutico” (julgado pelo Tribunal do Reich em 1887), do “fabri-
cante de pincéis” (tratado pelo Tribunal do Reich em 1929) e da “cocaína” (referido como um julgado
não publicado do Tribunal do Reich de 15/10/1926). O próprio ROXIN faz referência, ademais, que
761. Assim, KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, 3ª edição, p. 615; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 233. fora KARL BINDING o precursor desta teoria, ao estabelecer para o âmbito de justificação dos fatos
762. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 232. culposos, o critério do risco adequado (Nota 225, p. 320).
398 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 399

entre a formulação doutrinária e sua concretização empírica, de modo a os pressupostos de validade.


construir argumentos jurídicos sedimentados, resultantes da discussão tra- Não obstante, é possível o acolhimento dos critérios relacionados à
vada em torno de casos práticos.764 Mediante o emprego desses argumentos, teoria do aumento do risco, se coordenados sob outros parâmetros. Para que
que constituiriam uma síntese de proposições teóricas e soluções concretas esses critérios possam exercer, efetivamente, uma função democrática, devem
formuladas a exemplos padronizados, seria possível edificar um conjunto de todos eles se subordinar ao princípio geral de que à norma penal é assinalada
topoi, que terá relevância no preenchimento de campos indeterminados das uma única tarefa, que é a de limitar o conteúdo, a extensão e os efeitos do
normas penais e na assunção de uma política criminal compatível com um poder de punir. Esta é a única forma de realizar uma política criminal realis-
Estado democrático de direito. ta. Fora disso, em que pese ao brilho dos defensores da teoria da prevenção
Embora o propósito funcional seja louvável, na medida em que se geral positiva, o que há é puro argumento simbólico. Como não se pode
orienta no sentido de uma base mais realista para a norma penal, dela eli- demonstrar empiricamente que o direito penal protege bem jurídico – que
minando a indeterminação e seus conteúdos metafísicos, deve-se ponderar, essa proteção é simbólica todos percebem intuitivamente –, o que se deve
todavia, que há, no sistema funcional, um defeito insuperável, que é o de fazer é utilizar o conceito de bem jurídico naquilo em que se mostra eficaz,
articular a interpretação das disposições penais e o respectivo tratamento dos que é servir de pressuposto de limitação da norma e não como seu objeto de
casos concretos sob o pressuposto de uma política criminal de proteção de proteção. Este é um passo relevante para conter a expansão do sistema penal.
bens jurídicos, a qual está subordinada a dois objetivos absolutamente inal- Por outro lado, se o funcionalismo pretende excluir da norma seus resquí-
cançáveis: de prevenir os delitos pela intimidação (prevenção geral negativa) cios metafísicos, por serem empiricamente indemonstráveis, deles não pode
e de reafirmar a vigência da norma pela punição (prevenção geral positiva). se libertar, ao eleger, como tarefas do direito penal, prestações meramente
O primeiro desses objetivos (de prevenir pela intimidação), todos simbólicas e, assim, também indemonstráveis.765
sabem, é meramente hipotético. O segundo (de reafirmar, pela imposição Dogmaticamente, a teoria do risco assevera que o tipo do delito cul-
da pena, a validade da norma), que está no cerne de todos os sistemas fun- poso só estará configurado quando a conduta ultrapassar os limites do risco
cionais, faz da pena um objeto simbólico, justamente porque esta não é mais autorizado e o resultado constituir a concretização desse comportamento de-
caracterizada como um instrumento de ressocialização ou reinserção social do sautorizado. Ao ultrapassar os limites do risco autorizado, a conduta implicou,
agente (que indicaria efeitos empíricos sensíveis e reais), mas terá o sentido por seu turno, um perigo relevante ao bem jurídico e, pois, um aumento do
de uma função de controle do prestígio da ordem jurídica. risco da ocorrência do resultado. Quer dizer, então, que haverá imputação
Com isso, caem por terra, no sistema funcional, todos os efeitos de- quando a conduta implicou um aumento do risco da ocorrência do resultado
mocráticos que pretende produzir, incompatibilizando-o, também, com a e quando este resultado constituir, concretamente, a realização material daquele
tarefa de proteção de bens jurídicos, que passa a ser, então, igualmente, risco não autorizado. Como a tarefa normativa é impor limites à responsabili-
meramente simbólica. Afinal, o sistema funcional protege bens jurídicos ou dade e já porque a afirmação positiva de que a conduta ultrapassou os limites
quer apenas reafirmar a vigência da norma? Não o socorre a edificação de do risco autorizado é, muitas vezes, empiricamente indemonstrável, a questão
conjuntos de topoi, porquanto será vedado utilizá-los como parâmetros fixos básica reside, aqui, em determinar os casos em que a conduta perigosa, efeti-
de interpretação, ou como elementos integradores da norma. É que, diante vamente, não constitui um aumento do risco desautorizado.
dos princípios da legalidade e da taxatividade, que exigem uma subordina- Isso se dá, normalmente, nas seguintes hipóteses: a) quando a conduta,
ção do juiz aos precisos contornos da norma incriminadora e aos elementos em vez de aumentar, diminuiu o risco do resultado; b) quando a conduta
particulares por ela dispostos, a ausência desses pressupostos só comporta não aumentou o risco para o resultado; c) quando a conduta arriscada não
uma interpretação favorável ao acusado, pois, caso contrário, faltar-lhe-ão
765. Para esta questão, ver o sugestivo artigo de DUBBER, Markus Dirk. “Positive Generalprävention und
Rechtsgutstheorie: Zwei zentrale Errungenschaften der deutschen Strafrechtswissenschaft aus amerika-
764. Neste sentido, também, GRECO, Luis. ob. cit., p. 67 et seq. nischer Sicht”, ZStW 117 (2005), p. 486 et seq.
400 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 401

se concretizou no resultado proibido; d) quando a conduta arriscada não se orientou, concretamente, sua conduta, no sentido de proteger esse bem ju-
inclui no âmbito do tipo do respectivo delito. rídico diante de um dano de maior gravidade. Não se exige, para excluir-se a
Seguindo o esquema proposto por ROXIN, poderemos agrupar as imputação, que o agente tenha salvado, efetivamente, o bem jurídico. Uma
duas primeiras hipóteses no setor da criação do risco; a terceira, no setor da vez que tenha evitado um dano maior, não importa que de sua conduta tenha
realização do risco, e a última, no setor próprio do alcance do tipo. Embora a resultado, de qualquer modo, um dano à vítima, pois se reconhece que atuara
classificação feita por ROXIN seja bem apreciada pela doutrina e adequada na medida de suas possibilidades.
a retratar com alguma fidelidade o conteúdo de todas aquelas hipóteses, Há inúmeros exemplos de situações nas quais o agente atua no sentido
deve ser adaptada ao contexto da exposição, ou seja, ao pressuposto de de proteção do bem jurídico. O mais elementar é aquele da queda de objeto
que, na verdade, a ação arriscada constitui uma ação descuidada e como tal sobre a vítima, o qual é afastado pelo agente, de modo que, em lugar de
deve ser encarada. Os critérios de imputação por ele propostos servem, de golpeá-la mortalmente na cabeça, vem a lesar-lhe o ombro. Neste caso, se o
qualquer modo, como mais alguns indicadores delimitativos da responsa- agente não atuasse, a vítima morreria. Na identificação da relação entre a ação
bilidade, que devem incidir, suplementarmente, quando falharem ou forem do agente e seu efeito concreto, e o que aconteceria à vítima, deve-se valer,
inadequados todos os demais critérios. na ausência de outro melhor, do velho e criticável critério da probabilidade.
Como aqui o juízo de probabilidade não é utilizado para imputar, mas para
(AA) O SETOR DA CRIAÇÃO DO RISCO negar a imputação, nada obsta à sua validade.
Este setor diz respeito a situações relativas à ação descuidada do agente. Convém observar, todavia, que a ação do agente que diminui o risco
Em vez de trabalhar com o critério da infração à norma de cuidado, que não pode criar um risco autônomo. O risco diminuído deve estar na linha
caracterizaria a ação descuidada, ROXIN prefere partir, porém, de um outro de desdobramento causal do risco maior. Não seriam, portanto, excluídos da
fundamento, que é o do risco não permitido. Quer dizer, aqui se trata de imputação aqueles riscos que o agente criar, ainda que remotamente vincu-
equacionar os efeitos de uma ação que tenha ultrapassado os limites do risco lados ao risco maior. Por exemplo, para evitar que uma casa seja inundada,
autorizado. Por exemplo, ao dirigir em excesso de velocidade, o motorista o agente desvia o curso do rio e acaba produzindo uma inundação na casa
realiza uma ação que ultrapassa os limites do risco autorizado. No fundo, a vizinha, ainda que menor. Aqui, está claro, não há diminuição do risco,
situação é a mesma da violação a uma norma de cuidado, só que com outra porque o agente produzira nova cadeia de risco a bem jurídico alheio, ainda
roupagem. Uma vez que o agente tenha, assim, se excedido na sua atividade, que em menor intensidade. Igualmente não haverá diminuição do risco na
cumpre verificar se, ainda assim, o resultado lhe pode ser imputado. Neste hipótese em que o agente, ao procurar evitar que a vítima seja alcançada
setor da criação do risco, serão analisados os critérios da diminuição do risco por uma grande pedra, acaba por lançá-la em um buraco, onde tem a perna
e da ausência do aumento do risco. quebrada. Nestas hipóteses, a imputação é afirmada, mas o agente poderá
beneficiar-se do estado de necessidade.
(aa) A DIMINUIÇÃO DO RISCO
Em primeiro lugar, não haverá imputação na hipótese de diminuição (bb) A AUSÊNCIA DO AUMENTO DO RISCO
do risco. Haverá diminuição do risco, quando a conduta do agente, embora Da mesma forma, não haverá imputação, quando a conduta do agente,
perigosa e causal para o resultado, tenha produzido um dano menor na ainda que não autorizada, perigosa e causal para o resultado, não tenha
vítima. Se a norma penal tem como pressuposto o dano ou o perigo de dano aumentado o risco de sua produção. Aqui, como a lesão ao bem jurídico
ao bem jurídico, a orientação da conduta do agente fixa os parâmetros de ocorreria de qualquer modo caso a conduta do agente fosse autorizada ou
intensidade da agressão a esse bem jurídico. Aqui, opera-se uma exclusão da não, a imputação é excluída por não ser possível medir a alteração da inten-
imputação, porque o agente, em vez de se dirigir à lesão do bem jurídico, sidade de agressão a esse bem jurídico. A conduta do agente estaria situada,
402 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 403

pois, numa zona de neutralidade e indeterminação. imputação restaria excluída. Isto pode ser também obtido com a assertiva de
Pode-se dar um exemplo dessa situação: um lojista resolve construir que, aqui, a contribuição causal do agente não implicou mais que uma sim-
uma cobertura para o pátio interno de seu estabelecimento, sem atender às ples lesão e que, em face de ser sua contribuição insignificante, não aumentou
normas de segurança relativas a incêndio e desabamento. Alguém se atira o risco da produção do resultado, que adveio pelo desvio causal suscitado
pela janela do 10º andar do edifício contíguo e morre ao bater a cabeça pelo desdobramento da concausa.
nesta cobertura. Está claro que o fato de a cobertura ter sido construída Esse quadro pode ficar mais explícito nas hipóteses de intervenção de
pondo em risco todos aqueles que por debaixo dela circulassem não impli- terceiro sobre a causalidade anterior, de modo que a força da concausa se veja
cou, no caso concreto, um aumento do risco da morte do suicida, não se fortalecida por essa intervenção. Por exemplo, alguém desfere um soco no
podendo, portanto, imputar esta morte ao lojista. À mesma conclusão se braço de um hemofílico, que horas antes havia se submetido a uma transfusão
poderia chegar pela limitação imposta, na própria causalidade, pelo critério de sangue para a reposição do fator coagulante, o que torna inócuo os efeitos
da causalidade típica ou do comportamento alternativo ou ainda segundo do soco para desencadear imediatamente uma hemorragia. Mais tarde, deixa
o critério do fim de proteção da norma. A opção por aquelas ou por esta a vítima de continuar o tratamento, ou, por qualquer motivo, se modifica
solução depende da metodologia empregada. Ao sistema do Código Penal o quadro inicial e sua situação se agrava ainda mais com a intervenção do
brasileiro será mais adequado o critério de limitação na própria causalida- médico sobre o hematoma que se havia produzido no braço da vitima, do
de, tendo em vista a interpretação teleológica do art. 13, embora não seja que lhe resulta a morte. Nesta hipótese, estará excluída a imputação, não pela
incorreta a proposta sugerida por ROXIN. aplicação do § 1º do art. 13, mas porque a ação do agente que dera o soco
Incluem-se ainda, no âmbito da criação ou do aumento do risco, os no braço não representou um aumento do risco do resultado morte, o qual
casos de cursos causais hipotéticos, nos quais a causalidade anterior se vê mo- só fora viável, na verdade, pela ação indevida do médico.
dificada por uma causalidade superveniente. Estes casos podem ser tratados,
(cc) AUMENTO DO RISCO E LIMITAÇÃO TEMPORAL
normalmente, sob os critérios limitadores na própria causalidade. O Código
Penal brasileiro, inclusive, prevê, no art. 13, § 1º, uma regra expressa sobre a O decorrer do tempo conduz também, em certas circunstâncias, à ex-
causalidade superveniente, que pode ser aplicada a fatos dolosos e culposos. clusão da imputação. Diante da influência de diversos fatores que intervêm
no desenrolar do acontecimento durante longo tempo, a afirmação de que
Há, porém, algumas hipóteses que fogem ao âmbito da limitação do
a contribuição causal do agente para com a morte da vítima continuaria a
art. 13, § 1º, e para as quais se deverá atender ao critério do aumento do
produzir efeito no momento do evento não pode ser tomada de modo abso-
risco. Em se tratando, por exemplo, de concausas que são intensificadas por
luto apenas com base em um aumento inicial do risco. Daí a necessidade de
atuação de outrem, deve-se verificar até que ponto a contribuição do agente
sua limitação temporal. Por outro lado, diante da imprecisão quanto à causa
terá ainda alguma relevância para o resultado final.
determinante do resultado, é inaplicável aqui a regra limitadora do art. 13, §
Quando foram discutidos os casos de limitação da causalidade, pô- 1º, do CP, que apenas incide quando se possa demonstrar que a causalidade
de-se traçar, como parâmetro de limitação da causalidade, a cláusula ceteris superveniente por si só o produziu. Mas o decurso do tempo, como torna
paribus, pela qual se exige que o desenrolar da causalidade se processe sob as incerta a determinação acerca se o risco criado pelo agente ainda desem-
mesmas circunstâncias desde o seu início até o resultado final. Nas concausas, penharia um papel significativo na produção do resultado, transfigura as
embora o fator desencadeante de um resultado mais grave esteja presente no próprias bases do processo de imputação. Por exemplo, alguém desfere uma
momento da ação, a sua produção pode não ser imputável ao agente, caso facada na perna da vítima, que contava a este tempo com 85 anos de idade.
decorra quase que inteiramente do desdobramento das causas preexistentes. Transportada ao hospital, a vítima vem a morrer 10 anos depois, quando
Aplicando-se o critério da cláusula ceteris paribus se poderia concluir que então já teria 95 anos. Está claro que diante das condições temporais, aliadas
como os fatores eram desiguais, no momento da ação e no do resultado, a à idade da vítima, já não se pode dizer que esta morrera em consequência da
404 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 405

lesão que motivara sua longa internação hospitalar. A questão fundamental a relação de causalidade entre condição e evento como um acontecimento
está, porém, na determinação do tempo necessário a indicar que o aumento extraordinário, que provoca uma alteração no sistema, até então, organizado
inicial do risco se torna irrelevante para o resultado. Como não se trabalha e fechado em torno da estabilidade dos bens jurídicos da vítima. Mas, por
aqui com critérios de certeza, poder-se-ia dizer que a imputação seria excluída outro lado, a causalidade está presente na vida diária, sem que se perceba ou
pelo decurso do tempo, na medida em que fosse provável, em face das cir- se lhe dê atenção. Por exemplo, ninguém se pergunta, a cada momento, de
cunstâncias, que o risco produzido pela conduta do agente já não tivesse vigor onde veio e aonde vai, nem por que envelhece a cada minuto, se o Sol irá se
suficiente para continuar contribuindo para o resultado. Parece, no entanto, apagar amanhã, ou se a constelação do Cruzeiro do Sul continua brilhando
que esse critério é insuficiente, porque está calcado em uma argumentação no céu brasileiro e justifique, assim, sua reprodução na bandeira nacional.
puramente negativa. Geralmente, o critério da probabilidade é usado para Estas perguntas têm de certo modo alguma relevância, pelo menos para se
demonstrar o contrário de uma afirmação, mas não para fundamentar uma esclarecer sobre nossa origem, nossa disposição genética, o futuro de nosso
simples negação, de que, assim, determinado risco já não possui vigor. Poder- planeta ou para as conclusões astronômicas. Mas elas não são feitas ou só o
se-ia dizer, por exemplo, que a imputação estaria excluída se fosse provável são excepcionalmente, porque já estamos tão acostumados a viver sem elas,
que o evento decorrera de outros fatores e não da condição posta pelo agente, que seu esclarecimento em nada nos altera, embora, em cada uma dessas,
mas, ainda assim, a conclusão dependeria de uma série de demonstrações haja uma indagação acerca de um processo causal. Afinal, o envelhecimento,
positivas, nem sempre suscetíveis de fundar uma argumentação convincen- por exemplo, nada mais é do que um contínuo desenrolar de causas e efeitos,
te. A doutrina tem trabalhado esta questão no âmbito do fim de proteção e a ciência nos ensina que o Sol e o nosso céu estão em constante processo
da norma, ora para excluir,766 ora para afirmar767 a imputação, ou mesmo de mudanças. Analisando justamente esta relação causal, conclui HUND
para excluir a punibilidade.768 A solução pelo fim de proteção da norma é, que ela passa despercebida porque aqui não se distingue entre passado e
porém, demasiadamente formal e não pode servir de parâmetro limitador, futuro, estando ambos entronizados em um mesmo segmento.770 Quando
quando a conduta inicial tenha sido programada para lesar o bem jurídico isto ocorre, o âmbito propriamente causal perde seu significado, o que vale
em tempo posterior (caso da bomba ou da mina terrestre, que explodem bem é apenas um processo explicativo de como o estado das coisas, gradativa-
mais tarde), ou quando a infração à norma de cuidado só adquira relevância mente, se altera.771 Assim, na medida em que o tempo produza um estado
com a produção do resultado, independentemente de sua ocorrência tem- dessa ordem, em que não se possa separar o passado (condição) e o futuro
poral (caso de um defeito no airbag, que só se manifesta quando ocorra um (evento), sob a perspectiva de um acontecimento extraordinário, capaz de
acidente).769 Tendo em vista essa dificuldade e atendendo a que o processo desequilibrar o sistema, não estarão mais presentes os pressupostos do au-
de imputação não pode estar divorciado de uma argumentação analítica e mento do risco, nem de sua realização no resultado, ou seja, os pressupostos
funcional, pode-se trabalhar a questão de outro modo. da imputação de responsabilidade. Nesse procedimento, que consiste, por-
Normalmente, por força da teoria da condição, entende-se que haverá tanto, de uma avaliação em que se descarta a simples determinação da
causalidade quando um evento não puder ser pensado sem a subsistência de causalidade em favor do reconhecimento de uma alteração de estado, com
uma condição anterior ou, dito com outras palavras, quando sem essa condi- a consequente exclusão da imputação, poderão ser utilizados dois critérios:
ção o evento não se realizaria (art. 13 CP). Com esta formulação, concebe-se o da funcionalidade da condição e o da suficiência. Pelo primeiro, poder-
se-á excluir a imputação quando se concluir que o resultado (a morte da
766. Por exemplo, ROXIN, Claus. “Zum Schutzzweck der Norm bei fahrlässigen Delikten”, Festschrift für
Gallas, 1973, p. 253. vítima, por exemplo) não estará mais em função da condição (o ferimento,
767. Por exemplo, SILVA SANCHEZ, Jesus-Maria. “Sobre la relevancia jurídico-penal de la no inmediatez por exemplo) que inicialmente desencadeara o risco de sua ocorrência, mas
en la producción del resultado”, Consideraciones sobre la teoría del delito, Buenos Aires, 1998, p. 59.
768. Por exemplo, GÓMES RIVERO, María del Carmen. La imputación de los resultados a largo plazo:
especial referencia a la problemática del SIDA, Valencia: Tirant lo Blanch, 1998.
769. Para essas questões, GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva, Rio de Janeiro: 770. HUND, Friedrich. “Zeit als physikalischer Begriff”, Studium Generale, 23, 1970, p. 1100, in Erhard
Lumen Juris, 2005, p. 110 et seq., com muitas ponderações pertinentes em torno das divergências dou- Scheibe, Die Philosophie der Physiker, p. 225.
trinárias sobre o tema. 771. SCHEIBE, Erhard. Die Philosophie der Physiker, p. 224.
406 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 407

sim de outros fatores, na medida em que estes passem a tornar crônico seu resultado. Normalmente, esses casos são tratados no âmbito da interrupção
próprio estado. O resultado estará em função de uma condição, quando da imputação pela limitação da própria causalidade (art. 13, § 1º, do CP),
só possa ser explicado em face de uma alteração dessa, ou seja, quando sua sendo conhecidíssimos no Brasil os clássicos exemplos da ambulância, da in-
produção só adquira sentido se vinculada a essa condição, segundo as regras fecção hospitalar e de outros desdobramentos causais da ação inicial contrária
que disciplinam sua relação.772 Assim, no exemplo citado, a morte da vítima ao dever.773 No âmbito dos delitos culposos, o que efetivamente interessa é se
não adquire sentido em função do aumento do risco provocado pela ação do o resultado foi ou não produzido conjuntamente pela ação perigosa (descui-
agente, mas pelas alterações que se processaram no estado do paciente. Se dada) e pela ação superveniente. Se o resultado for produzido concretamente
isto se dá, podemos dizer que a imputação estará excluída porque o resulta- apenas pela ação superveniente não haverá imputação.
do não se situou em função do aumento do risco. Pelo segundo critério, a
imputação será excluída quando, sopesados os diversos fatores produtores (bb) A AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DO RISCO NÃO PERMITIDO
do resultado, a condição inicial (o ferimento) não for mais suficiente para Não haverá também imputação quando a ação descuidada não houver
explicar a morte da vítima, ou seja, quando a transfiguração do aumento influído na produção concreta do resultado. A aferição aqui é feita ex post,
do risco em alteração de estado minimize de tal forma a contribuição causal de modo a concluir que o cumprimento do dever de cuidado seria, no caso,
que a torne irrelevante para o resultado. Em ambos se dirá que o evento não absolutamente inútil. Há semelhança entre esta hipótese e os casos de compor-
pode ser imputado ao agente como obra sua. tamento alternativo conforme ao direito. Lá, entretanto, se concluiu que não
haveria causalidade se o evento tivesse sido produzido de qualquer forma por
(BB) O SETOR DA REALIZAÇÃO DO RISCO comportamento conforme ao cuidado, ou seja, por comportamento situado
Neste setor são tratadas as hipóteses relativas à concretização do risco dentro dos limites do risco autorizado. Aqui, não se está buscando propor uma
não autorizado, quer dizer, da efetiva relação entre a ação descuidada e o causalidade alternativa, mas sim verificar se a conduta contrária ao cuidado,
resultado efetivamente produzido. Durante toda verificação da tipicidade ou seja, fora dos limites do risco autorizado, influiu ou não sobre o resultado.
dos delitos culposos, emerge sempre a discussão relativa à relação entre Assim, no famoso caso do fabricante de pincéis, julgado pelo Tribunal
ação descuidada e resultado, que já foi anteriormente tratada sob outros do Reich em 1929, não haveria imputação. Trata-se da ação do gerente de
enfoques, quanto à própria causalidade, ao fim de proteção da norma e, uma fábrica de pincéis, que entrega a suas empregadas pelos de cabra im-
ainda, à imputação objetiva no que toca à previsibilidade e evitabilidade. portados da China, sem os desinfetar previamente. Como os pelos estavam
Aqui a perspectiva é traçada sob o ângulo do aumento do risco e comporta contaminados pelo bacilo antrácico (carbúnculo), 4 (quatro) trabalhadoras
uma análise dos critérios da ausência da realização do perigo e da ausência são afetadas pela doença e morrem. Analisada ex ante a situação, se tratava
de realização do risco não permitido. de uma ação contrária do dever, ou seja, situada fora dos limites do risco
autorizado. Mas apreciado o fato ex post, pôde-se ver que ainda que o autor
(aa) A AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DO PERIGO houvesse submetido o material à desinfecção, a contaminação ocorreria de
A primeira forma de se excluir a imputação é pela verificação sobre se o qualquer modo, em face da ineficiência dos produtos desinfetantes até então
perigo que a ação descuidada desencadeou veio a intervir concretamente no disponíveis no mercado. Vê-se, então, que o fato de o autor não haver desin-
772. Um exemplo da física poderá ilustrar essa afirmação. Diz-se que a força de atração de um ímã sobre
fetado os pincéis em nada influiu na produção do resultado.
um objeto está em função da distância que os separa. Na medida em que se altere esta distância haverá
maior ou menor força atrativa, quer dizer, um resultado (a atração) estará em função da condição (a Esse exemplo é diverso daquelas hipóteses tratadas no critério do
distância) quando qualquer alteração desta produzir uma modificação naquele. Uma vez que isto seja comportamento alternativo. Lá era possível a atuação conforme ao cuidado,
experimentalmente comprovado, diz-se também que a explicação acerca do aumento ou da diminuição
da força atrativa só terá sentido se vinculada à distância entre o ímã e o objeto. Se, por seu turno, a força
atrativa, por qualquer mecanismo, sofrer outra alteração, agora desvinculada da distância entre o ímã 773. Por exemplo: alguém é ferido na perna, levado ao hospital e morre devido a um acidente provocado
e o objeto, já não se poderá dizer que há entre ambos uma relação funcional. Como na vida diária os por culpa do motorista da ambulância, no qual a vítima tem sua cabeça esmagada; alguém é ferido e
acontecimentos se sucedem como fenômenos, é perfeitamente adequado trabalhar-se a causalidade ou a levado ao hospital e morre por infecção hospitalar; alguém produz na vítima um ferimento, esta toma
imputação sob uma perspectiva funcional e não como simples regra contrafática. um medicamento para aplacar a dor, que lhe produz uma reação alérgica e consequentemente a morte.
408 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 409

excluindo-se a causalidade quando com esta atuação provavelmente o resul- regulação das expectativas de conduta.774 Tendo em vista o pluralismo de
tado também teria ocorrido. Aqui, ainda que o autor tivesse atuado conforme ideias, convicções e decisões acerca do agir, garantidas ao indivíduo como
ao cuidado que lhe era imposto, esta atuação não teria qualquer influência no desdobramento da proteção à dignidade da pessoa humana, a intervenção
resultado, independentemente da aplicação do princípio da probabilidade, do poder punitivo, a contrario sensu, só se pode legitimar na medida em que
porque o cuidado que deveria ser atendido na época era inócuo em face dos leve em consideração a separação das atividades de cada um sob a esfera de
recursos disponíveis para evitar o perigo. Se a conduta tivesse sido realizada manifestação do próprio poder individual de autodeterminação. Isto quer
hoje, já não se poderia tratar a questão desta forma, porque as medidas sani- dizer que a pessoa humana ao mesmo tempo em que tem assegurada sua
tárias poderiam evitar o resultado. dignidade, como objeto de proteção do Estado, impõe a este uma limitação
Devem ainda ser incluídos, no âmbito da realização do risco no resul- quanto ao processamento da responsabilidade alheia sobre a base da liber-
tado concreto, todos os casos em que a contribuição da ação descuidada seja dade de agir. Assim, ninguém deverá ser responsabilizado porque outrem
insignificante para a sua produção. Nesta hipótese, se aplica o princípio da decidiu, por conta própria, atuar de outro modo, ainda que se submetendo
intangibilidade do risco. Assim, não haveria crime culposo de inundação no fato aos riscos de sua atividade. Embora se reconheça ao Estado um importante
de um alguém lançar um balde de água sobre uma represa prestes a transbordar. papel na regulação da vida social, não lhe cabe, todavia, a função de tutor
Em face da impossibilidade de se avaliar, empiricamente, essa contribuição da das atividades individuais. Esta é a consequência que decorre da considera-
ação, deverá ser excluída a imputação, porque a sua afirmação não pode sub- ção do princípio da autodeterminação como fundamento de um regime de
meter-se a um procedimento de refutação. Aqui não são adequados os critérios liberdade e garantia. Em face desse argumento, pondera HAFT que cada
do comportamento alternativo nem a regra da interrupção do nexo causal (art. pessoa é responsável apenas por sua conduta e não pela conduta dos demais,
13, § 1º, CP), porque não contemplam exatamente as características do fato. salvo quando se situe na posição de garantidor do bem jurídico ou quando,
Na verdade, poder-se-ia talvez dizer que, numa avaliação ex ante, a inundação em face de seu especial conhecimento do risco resultante de sua atividade, o
não seria provável, mas de qualquer modo houve uma contribuição causal que tenha melhor apreendido do que quem vier a suportar o perigo.775
se somou aos demais fatores desencadeantes do resultado e que só deixa de ser As ressalvas de HAFT suscitam a importante questão de estabelecer as
levada em consideração por um critério normativo que só pode ser formulado regras que fixem os contornos e os limites do âmbito da autorresponsabili-
ex post, em face da apreciação do fato em sua totalidade. dade. Geralmente, a doutrina se orienta em duas vertentes, ora pelas regras
da exculpação, ora pelas regras do consentimento.
(CC) O SETOR DO ALCANCE DO TIPO
De acordo com as regras de exculpação, deve-se negar validade ao prin-
Neste setor se procede à análise das limitações impostas aos tipos de cípio da autorresponsabilidade em relação às pessoas que não possam atuar
delito existentes na parte especial dos códigos penais. Cada delito, ao ser culpavelmente. Isto se dá quando se trate de inimputáveis ou daqueles que se
elaborado pelo legislador, comporta uma interpretação adequada a delimi- encontrem em uma situação que lhes tolha a capacidade de motivação, como,
tar-lhe as respectivas zonas de injusto, situadas na perfeita identificação das por exemplo, nos estados de coação ou em execução de ordem de superior
exigências normativas quanto à lesão ou ao perigo de lesão do bem jurídico hierárquico não manifestamente ilegal.
que lhes serve de substrato. Não se trata, assim, do fim de proteção da norma
Segundo as regras do consentimento, o fundamento da autorresponsa-
de cuidado, como já exposto mais atrás. Aqui importam especialmente os
bilidade reside na renúncia sobre o bem jurídico. Para tanto é indispensável
casos decorrentes da autocolocação em perigo, da colocação em perigo alheia
que estejam presentes os seguintes pressupostos: a) o bem jurídico deve ser
e dos submetidos ao âmbito de responsabilidade de outrem.
disponível; b) o agente deve ser o único titular do bem jurídico; c) o agente
Todos estes casos estão subordinados ao princípio geral da autorrespon-
774. Assim, por exemplo, KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, 3ª edição, p. 63; SCHÖNKE/SCHRÖDER/LEN-
sabilidade que se desenvolve no Estado democrático como condição para a CKNER. Strafgesetzbuch Kommentar, 24ª edição, p. 164.
775. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, 6ª edição, p. 65.
410 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 411

deve ter a capacidade de consentir, isto é, deve possuir a capacidade de avaliar zona urbana por simples emulação, a responsabilidade pelos efeitos danosos
o significado e o alcance de sua renúncia; d) o ato de disposição não pode ser que daí resultem em uma delas não pode ser estendida à outra, salvo se esta,
obtido por coação, fraude ou violação de dever pessoal; e) o consentimento efetivamente, tenha provocado diretamente o acidente.
deve ser manifestado antes do fato, de modo expresso ou concludentemente; Aqui vigora o princípio de que, nos limites do tipo, não podem ser
f ) o consentimento não pode violar princípios expressos da ordem jurídica.776 abarcados eventos para os quais a vítima, por si mesma, tenha voluntariamen-
A opção por uma ou por outra série de regras depende do caso te contribuído de uma forma decisiva. Para se excluir a imputação, porém,
concreto. WESSELS-BEULKE, por seu turno, optam pelas regras do con- não basta que a vítima se tenha posto em perigo circunstancialmente. Ao
sentimento, principalmente quando se trate de autocolocação em perigo invés, sua contribuição para o evento deverá ser no cômputo geral suficiente
relativamente à própria vida, uma vez que, neste caso, as condições não para a sua ocorrência, quer dizer, deverá constituir o ponto de gravidade sobre
podem ser inferiores àquelas referentes à ofensa à integridade corporal.777 A o qual se situam as forças favoráveis à sua produção.
adoção de qualquer das regras, porém, deve seguir uma orientação que seja Sob esses pressupostos deve ser tratado o polêmico caso da cessão e uso
mais próxima do fator que desencadeou a causalidade. Assim, a condição de de drogas. Se alguém cede a outrem cocaína e o consumidor morre porque a
ser a vítima inimputável não deve excluir a aplicação do princípio da autor- ingere em grande quantidade, o cedente só deverá ser responsabilizado pelo
responsabilidade, caso esta circunstância não seja decisiva para o desfecho delito respectivo previsto na lei de tóxicos,779 mas não pelo homicídio culposo
do caso. Por exemplo, se a vítima consentiu validamente na disposição ao a que poderia corresponder a morte da vítima.780 Na verdade, a vítima teve
perigo de sua integridade física, com pleno conhecimento do significado para a sua morte uma participação decisiva e a assumiu deliberadamente, de
desse ato e independentemente da sua inimputabilidade, deve valer o prin- modo a constituir o ponto de gravidade de sua ocorrência.
cípio da autorresponsabilidade. Se, porém, a vítima consentiu porque sua
condição de inimputável favorecia esse consentimento ou porque executava O mesmo desfecho deve ser dado também à controvertida indagação
uma ordem superior, não deve vigorar o princípio da autorresponsabili- se o cedente da droga se situaria em posição de garantidor, de modo a res-
dade, ainda que preenchidos os pressupostos do consentimento. Isto vale ponder pelo crime de homicídio culposo por omissão, caso não chamasse o
também para as hipóteses de semi-imputabilidade. Neste sentido, inclusive, médico quando o consumidor já tivesse entrado em estado de inconsciência
pondera ROXIN que o fato de ser alguém semi-imputável não implica em virtude dos efeitos da droga. Apesar da orientação da jurisprudência
excluir-se a autorresponsabilidade, se apesar da diminuição de sua capaci- alemã no sentido de que aqui teria havido homicídio culposo por omissão,
dade de culpabilidade tiver atuado com pleno reconhecimento do perigo, entende ROXIN que, em face da autocolocação em perigo da vítima, ao in-
devendo, pois, permanecer impunível o colaborador.778 gerir por sua própria conta a droga, haveria no caso unicamente omissão de
socorro dolosa. Para reforçar seu argumento, vale-se ROXIN de um preceito
(aa) A AUTOCOLOCAÇÃO EM PERIGO de política criminal de que com a punição do agente pelo delito de tráfico já
estaria satisfeito o poder de punir do Estado.781 Em que pese à argumenta-
O primeiro dos casos de concretização do princípio da autorrespon-
ção de ROXIN, parece que, aqui, não devem caber ponderações de política
sabilidade diz respeito à participação alheia na autocolocação em perigo ou
criminal. Se a imputação é excluída porque a contribuição da vítima fora
na autolesão. Ainda que o agente tenha contribuído causalmente para o
decisiva para quebrar a responsabilidade do cedente pelo nexo de causalidade,
resultado, este não lhe será imputado quando a vítima se tenha, delibe-
da mesma forma e até com maior razão, essa mesma situação de a vítima se
radamente, colocado em perigo ou se autolesado. Assim, se duas pessoas
resolvem participar, cada qual com seu veículo, de uma corrida de carros em 779. Lei 11.343/06, art. 33, § 3º: “Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu
relacionamento, para juntos a consumirem: Pena–detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento
de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.”
776. Assim, WESSELS/BEULKE. Nota 234, p. 63. 780. Neste sentido, ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, 3ª edição, p. 337; SCHÜNEMANN, Bernd. “Fahrlässige
777. WESSELS/BEULKE. Nota 234, p. 63. Tötung durch Abgabe von Rauschmitteln?”, in NStZ, 1982, 60.
778. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 339. 781. ROXIN, Claus. Strafrecht, Nota 225, p. 338.
412 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 413

haver autocolocado em perigo deverá excluir a extensão do dever especial mesmos argumentos valem no tocante à omissão. Se o código não prevê a
de garantidor, que havia sido gerado com a atividade anterior do cedente, modalidade culposa de auxílio ao suicídio, tanto na comissão quanto na
criadora do perigo. Assim, a imputação da omissão de socorro (dolosa) ao omissão, isto significa que renunciou a atribuir ao agente, em tais casos,
cedente da droga é a que melhor se adapta ao acontecimento, mas sob uma uma posição de garantidor, sendo, portanto, impossível responsabilizar
fundamentação dogmática, não por razões de política criminal. o cedente da droga pela omissão culposa de impedir o resultado, pois tal
Como os fundamentos quanto à imputação são idênticos, seria con- imputação estaria em contradição com o próprio sistema.
traditório excluir-se o delito culposo de homicídio por comissão e admiti-lo Um caso interessante de autocolocação em perigo me foi relatado
por omissão, quando justamente o primeiro é mais grave do que o segundo. pelo advogado ALEXANDRE MALLET: a montadora de automóveis X
Por outro lado, mesmo HAFT, que parte da consideração de que o prin- constata que o sistema de airbag de seus veículos apresenta um defeito, ge-
cípio da autorresponsabilidade não poderia ser invocado nas hipóteses em rando o perigo de ser acionado indevidamente e, assim, de produzir lesões
que o sujeito fora garantidor do bem jurídico lesado ou posto em perigo, nos usuários. Em consequência, convoca publicamente todos os proprie-
reconhece-lhe aqui aplicação, por entender não estar o cedente nessa condi- tários desses veículos para se dirigirem às respectivas concessionárias e ali
ção de garantidor.782 Está claro, porém, que a responsabilidade do cedente procederam à troca do produto avariado. Um desses proprietários, porém,
poderá subsistir caso seja portador de um conhecimento especial, de modo apesar de notificado por carta quanto ao problema, simplesmente o ignora
a compreender melhor o perigo do que o usuário. Assim, por exemplo, se e continua, assim, a usar o veículo. Certa vez, durante uma viagem, o airbag
o cedente sabe que o usuário está embriagado e mesmo assim lhe entrega a é acionado indevidamente e produz lesões tanto no motorista quanto em
droga para consumo, será responsabilizado pela morte deste se esta advier um passageiro. Neste caso, embora o fabricante tenha contribuído de modo
da ingestão conjunta de droga e álcool, porque seu especial conhecimento causal para o evento, este não lhe pode ser imputado porque se situa fora
da situação de fato lhe assegura um domínio sobre a causalidade, da qual o do alcance do tipo, em face de o proprietário do veículo se haver colocado
usuário não era possuidor. Nesta hipótese, a infração à norma de cuidado voluntariamente em perigo.
se realizou no resultado típico por obra do próprio sujeito, não podendo ser A questão pode ter outros desdobramentos, por exemplo, se a vítima
aplicada a limitação pelas regras do consentimento ou da exculpação, porque houvesse adquirido o veículo em segunda mão e, assim, não tivesse recebido a
justamente a circunstância da embriaguez, que é fator de culpabilidade e não carta-convocatória do fabricante e nem tivesse lido a chamada publicada nos
do injusto, foi decisiva para excluir a autorresponsabilidade. jornais. Nesta hipótese, fica descartada também a imputação do evento ao fa-
Ademais dos argumentos relativos ao princípio da autorresponsabi- bricante, porque a este não se pode estender um dever contínuo e infinito de
lidade, há de ser observado também o sistema do Código Penal, que, ao entrar pessoalmente em contato com todos os proprietários que se seguiram
prever o delito de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122) ao primeiro comprador, ao qual a carta fora encaminhada, salvo se algum
unicamente na modalidade dolosa, expressamente excluiu a responsabi- desses tivesse comunicado anteriormente àquele a alteração da titularidade
lidade do colaborador quando este tenha atuado apenas com culpa. Em do veículo. Configurando-se esta última situação, ao fabricante incumbiria o
face disso, portanto, quem entrega dolosamente a outrem uma droga para dever de fazer também a esse a chamada para a troca do produto defeituoso.
que este com ela se suicide, só cometerá o delito do art. 122 do CP e não Por outro lado, não importa à imputação do fato ao fabricante a ex-
o de homicídio (art. 121). Se a entrega não for vinculada dolosamente ao tinção do prazo de garantia. Em se tratando de produto que gera perigo por
suicídio, mas ao simples uso, ainda que com riscos à própria vítima, o ce- defeito de fabricação, o dever de alertar para tal circunstância e de proceder à
dente só deverá responder pelo delito de cessão de droga, nem pelo auxílio substituição da peça não pode ser extinto enquanto esta peça continuar sendo
ao suicídio (art. 122), nem pelo homicídio culposo (art. 121, § 3º). Estes usada no veículo com as mesmas características originais. Portanto, ainda
que o veículo venha a ser seguidamente revendido, ao fabricante incumbe
782. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, 6ª edição, p. 65
414 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 415

comunicar o fato aos subsequentes proprietários, desde que, está claro, tenha o próprio agente que executa a ação perigosa ou lesiva com a contribuição
conhecimento acerca das respectivas revendas. da vítima. Não haverá imputação quando o ponto de gravidade da produção
Uma outra questão que se poderia colocar seria a da responsabilidade do resultado se situar na dependência da atuação da vítima. Como a vítima
do primeiro comprador, que recebera a carta de convocação do fabricante não executa propriamente a ação, a imputação será excluída especificamente
e não a repassou ao segundo proprietário. Independentemente de que sua quando o perigo ou a lesão decorra da ação determinada ou induzida pela
omissão possa ser levada em conta no plano da indenização civil, não se lhe vítima e não de uma atuação isolada do agente.
pode, igualmente, imputar o evento, porquanto não se lhe estende o dever de A diferenciação entre as situações de autocolocação e heterocolocação783
preservação das qualidades das peças originais do veículo, quando defeituosas em perigo tem suscitado enormes divergências doutrinárias, todas elas elabora-
na sua origem. Aqui, evidentemente, não se aplicam as regras de limitação das sobre casos concretos. Situemos alguns deles: 1) um motorista é obrigado
da autorresponsabilidade, porquanto, inclusive, a responsabilidade do fabri- pelo passageiro, que o ameaça com uma faca, a dirigir em excesso de velocidade
cante independe, por exemplo, se a vítima era ou não imputável. Trata-se de e acaba se chocando com um poste, daí resultando lesões graves no próprio
uma situação objetiva (o acionamento do airbag) para a qual é irrelevante a passageiro; 2) um motorista transporta, na caçamba aberta de seu caminhão,
capacidade da vítima de conduzir adequadamente o veículo. algumas pessoas, atendendo a seus próprios pedidos e sem atar os respectivos
Como se está tratando do alcance do tipo de delito respectivo (ho- cintos de segurança. Em uma curva, um dos passageiros cai e quebra a perna;
micídio, lesão corporal, etc.) são irrelevantes as regras específicas relativas à 3) um viciado insta outro a injetar-lhe na veia uma substância composta de
fabricação do veículo e aos direitos do consumidor, quer dizer, a responsa- heroína, do que lhe resulta a morte; 4) alguém, portador do vírus HIV, sem uso
bilidade penal não pode estar subordinada às regras que dizem respeito, por de preservativo, mantém relações sexuais com outro, que conhecendo o perigo
exemplo, ao direito do consumidor de ser informado, antes de sua compra, acaba também se contaminando. Em todos esses casos há um denominador
acerca das qualidades ou defeitos do produto. Uma vez que o consumidor comum: a vítima consentiu na realização da ação perigosa. Para determinar-se
não tenha sido, previamente, alertado de qualquer irregularidade quanto ao a imputação, deve-se valer aqui das regras do consentimento e da exculpação,
veículo que está adquirindo, isto é matéria própria do direito do consumidor conforme as características concretas da respectiva conduta.
e não do direito penal. Está claro, todavia, que o direito penal pode levar em No caso 1, ao motorista não poderá ser imputada a lesão da vítima,
conta algumas disposições do código do consumidor como orientação para a porque, além de ser válido o seu consentimento, ela mesma dominava, de
determinação do risco autorizado, quando digam respeito a condições especí- certa forma, a causalidade e havia deliberadamente infringido, por sua pró-
ficas da conduta submetida à análise, mas essas regras não podem ser tomadas pria conta, a norma de cuidado.
em sentido vinculante para a imputação. Por sua vez, os próprios tipos de No caso 2, o motorista infringiu uma norma de cuidado, ao aceitar
delito previstos no código do consumidor devem submeter-se a uma análise transportar as pessoas naquelas condições, mas estas mesmas o instaram a
própria quanto aos seus elementos constitutivos e seus limites, cujos parâ- isso. A imputação será excluída se a queda da vítima e sua consequente
metros podem ser extraídos dos preceitos gerais traçados por aquele código. lesão se incluir como uma consequência normal da condução do veículo,
porque então a atuação daquela será decisiva para a produção do resultado.
(bb) A HETEROCOLOCAÇÃO EM PERIGO CONSENTIDA
Se, porém, a vítima vier a cair porque o motorista dirige em alta velocidade e
Como desdobramento do princípio da autorresponsabilidade dá-se acaba derrapando, já não se poderá dizer que o resultado fora decisivamente
também a situação em que o perigo é executado por outrem e não pela consequência de sua conduta, mas sim da situação anormal provocada pelo
própria vítima, mas com seu incentivo ou consentimento. Esta hipótese se
diferencia da contemplada no item anterior porque lá o perigo ou a lesão 783. Originariamente, havia sido empregada neste livro a expressão “altercolocação em perigo”, que está
evidentemente correta em face do vernáculo. Atendendo, entretanto, a interesse eufônico, passa a ser
seriam efetivados pela própria vítima com a contribuição do agente. Aqui é empregada, aqui, a expressão “heterocolocação em perigo”, que já vinha sendo utilizada, por exemplo,
por LUÍS GRECO e que está, igualmente, correta.
416 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 417

motorista. Nesta última hipótese, haverá imputação, uma vez que a conduta implicar a responsabilidade de outrem, em proveito de quem esse dever se
executada pelo motorista excedeu os limites compreendidos pelo consenti- veja preenchido; isto porque a ordem jurídica não pode agir contraditoria-
mento da vítima. mente, de exigir a atuação de um em proveito de outro e, ao mesmo tempo,
No caso 3, o consentimento não pode se estender à disposição quanto punir o beneficiário quanto aos resultados de perigo ou de dano sofridos
à vida, sendo, portanto, imputável ao agente a morte da vítima, como ho- pelo salvador. Ademais, em face disso, a eficácia do cumprimento desse dever
micídio culposo. estaria seriamente comprometida já pelo fato da ponderação que o próprio
obrigado se formula, de, ao salvar a vítima, conduzi-la necessariamente à pu-
No caso 4, embora a gravidade do contágio possa suscitar um julga- nição, se, desse ato de salvamento, lhe resultar algum dano. A consequência
mento emocional, não deverá haver imputação, uma vez que a vítima mesma imediata seria, assim, de não cumprir o dever ou de cumpri-lo a contragosto.
é que realiza consciente e deliberadamente a ação que a contamina. Vigoram,
aqui, portanto, os mesmos fundamentos das hipóteses de autocolocação em Uma vez que a ordem jurídica deve ser organizada como um sistema co-
perigo. Diversa será, entretanto, a solução se o agente a induzir em erro, municativo, suas normas devem estar adequadas a desempenharem a função
o que viciará seu consentimento, ou se a vítima não tiver capacidade para de elementos de referência de condutas. Se essas normas forem construídas de
compreender o significado do contágio. tal forma que seus marcos referenciais induzam a realização de condutas com
consequências contraditórias, deixam de servir de elementos de motivação
(cc) O ÂMBITO DE RESPONSABILIDADE ALHEIO dessas condutas e perdem, assim, o sentido de coerência que lhes poderia ser
imprimido. Este conflito, portanto, deve ser resolvido pela prevalência da
Igualmente não haverá imputação quando o fato se incluir no âmbito
norma que apresente maior carga de motivação, que, no caso, deverá ser a
de responsabilidade de outrem, que estava, por qualquer motivo, obrigado
norma mandamental e não a norma proibitiva.
a enfrentar o perigo. Distintamente das situações anteriores, aqui a vítima
se autocoloca em perigo por imposição do dever decorrente de sua posição Com base nisso é que devem ser tratados os casos, por exemplo, do
de garantidor ou em cumprimento a um dever geral de assistência. Exemplo bombeiro que se fere ao apagar o incêndio provocado culposamente pela
clássico dessa situação: A se está afogando e é salvo por B, guarda-vidas, o qual, dona de casa que esquece o ferro de passar roupas ligado; do salva-vidas
por sua vez, vem a sofrer, em virtude desse ato, uma séria lesão nos pulmões. acima relatado; do policial que é chamado a intervir para separar uma briga
Embora o fundamento da exclusão da imputação continue sendo o princípio e acaba caindo no trajeto ao local da peleja, e outros semelhantes, nos quais
da autorresponsabilidade, seus parâmetros, nesta hipótese, se orientam também o salvador sofre perigo ou lesão a bem jurídico próprio, como consequência
pelo sentido de coerência da ordem jurídica. Isto quer dizer que no caso se cria da ação de salvamento. Em todos esses casos, a consequência lesiva não pode
uma situação de conflito entre duas normas e seus respectivos efeitos: de um ser imputada àquele que provocou a situação de perigo, porque se inserem
lado, a norma mandamental, que impõe o dever de salvar; de outro lado, a no âmbito de responsabilidade da atividade determinada ao salvador.
norma proibitiva, que veda a produção de efeitos perigosos ou danosos resul-
tantes de uma conduta. Ambas as normas estão em vigor, mas sua aplicação (DD) CRITÉRIOS RELATIVOS À QUALIDADE DA AÇÃO
conjunta ao caso concreto gera o desconforto de ver a pessoa que necessitava do Finalmente, a imputação deve ser excluída em virtude das característi-
salvamento ser objeto de imputação dos efeitos do próprio ato de salvar. Para cas da própria ação realizada pelo agente. Diz-se que pela qualidade da ação
resolver o conflito não cabe aqui o emprego do princípio da ponderação de não há imputação, quando aquela se mantém nos limites do cuidado que
valor, porquanto os dois sujeitos em conflito – o salvador e o salvado – detêm era imposto ao agente para seu empreendimento ou sua execução, matéria
os mesmos direitos de proteção quanto à sua integridade física. esta que, inclusive, como já assinalado atrás, integra necessariamente o tipo
A questão, portanto, deve se situar em outro polo. Está claro, antes dos delitos culposos (risco permitido). Mas, a qualidade da ação exclui ainda
de tudo, que o cumprimento de um dever por parte de alguém não pode a imputação quando, embora haja descumprimento da norma de cuidado,
418 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 419

a conduta se mantenha nos limites do chamado risco habitual, ou quando a justificação.784 Agora, nas versões mais recentes de seu tratado, compreende-
violação da norma de cuidado se tenha produzido de forma tão leve, que lhe -o unicamente como um princípio estrutural comum para diversas causas
falte idoneidade para fundamentar a intervenção do poder punitivo. de justificação, entre as quais o consentimento presumido, a atuação para o
Não importa, para essa espécie de argumentação, a relação entre ação e resguardo de interesse juridicamente reconhecido em delitos contra a honra
resultado, mas a legitimidade da própria ação para servir de base ao processo e atos relacionados ao poder de polícia.785 ROXIN esclarece que o conceito
de imputação. A questão, portanto, diz respeito ao conteúdo de injusto de de risco permitido percorreu caminhos muito distintos.786 Com o finalismo,
uma ação para caracterizá-la como culposa e, assim, possibilitar a responsa- principalmente com WELZEL, o risco permitido foi identificado com a ação
bilidade do seu autor. Aqui serão tratados os critérios do risco permitido, do socialmente adequada,787 quer dizer, aquela ação tolerada pela comunidade
risco habitual e da culpa levis. social e a ordem jurídica, embora perigosa, uma vez integrante da estrutura
daquelas atividades consideradas como inerentes ao desenvolvimento e à
(aa) O RISCO PERMITIDO manutenção da sociedade industrializada. Ainda que o conceito de ação so-
cialmente adequada fosse mais amplo, compreendendo inclusive as chamadas
A teoria do risco permitido tem suscitado inúmeras controvérsias
ações insignificantes sob ponto de vista de sua lesividade, sua identificação
como ficou demonstrado no decorrer desta exposição. Já se viu, inclusive,
com o risco permitido conduziu a situá-lo no âmbito da tipicidade, quer
quando se tratou da medida do cuidado, que a doutrina moderna tende
dizer, a empregá-lo como limite da conduta proibida.
a substituir, no tipo dos delitos culposos, a referência à infração à norma
de cuidado pela violação do risco autorizado, o que não está incorreto. Conforme o conceito proposto por ROXIN, que talvez seja o que
Na verdade, o risco desautorizado se insere na constituição do tipo dos melhor interprete o significado da relação entre conduta e norma de cuidado,
delitos culposos como instrumento da argumentação analítica, pela qual se pode-se compreender o risco permitido como a qualidade que se empres-
configura esta forma de conduta proibida. Apesar disso, ali ficou mantido ta àquelas condutas que, em geral, representam um perigo (risco) ao bem
o entendimento de que a referência à infração à norma de cuidado ainda jurídico, mas que são autorizadas pela ordem jurídica, porque interesses pre-
era importante como etapa preliminar de verificação da realização do tipo dominantes da comunidade assim o exigem. Neste sentido, o risco permitido
e, principalmente, para identificar o tipo de injusto nos delitos culposos é aquele autorizado por uma norma regulamentar de cuidado.
de mera atividade. Por esta característica dos tipos dos delitos culposos, Desde que a conduta se mantenha nos limites do cuidado regulamentar,
de se sustentarem sobre uma violação ao cuidado objetivo, ou pelo exces- não se pode imputar ao seu autor o resultado que decorra de sua execução.
so do risco autorizado, a teoria do risco permitido quase que perdeu sua Como o risco permitido só tem significado porque está referenciado a uma
importância como critério limitativo da imputação. Desde que a conduta norma regulamentar, e não propriamente a uma característica da conduta
se tenha mantido nos limites do risco permitido, parece que não há que se ou à sua proibição pela ordem jurídica, era perfeitamente explicável que
cogitar do próprio tipo de delito culposo. A questão adquire, no entanto, a doutrina o situasse no âmbito da antijuridicidade e não da tipicidade.
certa relevância, na medida em que se concebe a própria tipicidade como ROXIN, porém, o encara como critério de imputação, no qual o protótipo
um processo de imputação, no qual se busca determinar os limites do poder estaria representado pela direção automotiva dentro dos padrões ou limites
de punir frente a uma lesão de bem jurídico conduzida por determinado estandardizados de conduta fixados pelas regras de trânsito.788
agente. Assim, enunciada a tipicidade, se poderia dizer que o risco permi-
Há que se proceder, aqui, a uma diferenciação entre a conduta situada
tido é também um critério limitativo da imputação.
O emprego da teoria do risco permitido no direito penal sofreu, com 784. JESCHECK, Hans-Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts, 3ª edição, 1978, p. 232.
785. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 401.
o passar dos anos, uma significativa mudança de rumos. JESCHECK, por 786. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 319.
exemplo, contemplava-o, primeiramente, como uma verdadeira causa de 787. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 84.
788. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 320
420 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 421

no âmbito do risco permitido e aquela considerada como lesiva ao cuida- marcha ou até mesmo parar o veículo. Por outro lado, se o médico empregar
do. Quando uma conduta é realizada desatendendo ao cuidado imposto pela corretamente toda a técnica que lhe é recomendada, não precisa se preocupar
norma, o que sucede é que essa conduta sofre um processo de avaliação con- em buscar novos recursos para, por exemplo, obter a cura de uma enfermidade
creta, ou seja, sua afirmação como contrária ao cuidado decorre do fato de que até então incurável. Este plus pode até ser moralmente recomendável, mas não
no caso concreto havia um cuidado imposto pela norma e que fora desatendido lhe é juridicamente exigível, porque o perigo para a vida do paciente não está
por uma conduta em função da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. Já diretamente vinculado ao seu domínio. Diz-se, então, que o médico atuou
no que toca ao risco permitido, como se trata de elemento limitador da im- dentro dos limites do risco permitido ao restringir sua atividade às técnicas
putação em função de que a conduta perigosa ou lesiva ao bem jurídico se tradicionalmente indicadas. Mesmo no trânsito de veículos, é possível também
situava dentro dos limites autorizados, não lhe é inerente uma avaliação em face trabalhar-se com a teoria do risco permitido, excluindo-se a imputação desde
do caso concreto, mas uma ponderação globalizada. A realização da conduta que o motorista se mantenha nos limites das normas regulamentares e o perigo
dentro do que aquela norma tenha autorizado impede se possa, em razão disso, não esteja diretamente vinculado ao seu domínio.
configurar um processo de imputação consubstanciado em um tipo de delito. Normalmente, são tratadas, no âmbito do risco permitido, aquelas con-
Não há necessidade, assim, de se submeter o caso concreto a uma avaliação dutas que a ordem jurídica autoriza de antemão, ainda que perigosas ou lesivas
típica, porque a ordem jurídica já autoriza aquela conduta. Na verdade, há aqui aos bens jurídicos. Por exemplo, as instalações nucleares, o trânsito de veículos,
uma antecipação do juízo geral de antijuridicidade, mas não propriamente a a venda de medicamentos, a venda de produtos químicos venenosos de limpe-
incidência de uma causa de justificação. Havendo uma norma que autorize za, a prática de esportes radicais ou violentos, a posse de cães de guarda, etc. Em
a conduta, não cabe lugar a indagação acerca do ilícito, como pressuposto de todos esses casos, a realização das respectivas condutas conforme a autorização
qualquer atuação jurídica. Atendendo a esta particularidade do risco permitido concedida ou dentro de seus limites não implica uma intrusão nas zonas do
em face do processo de imputação, tem-se que a infração à norma de cuidado, ilícito. O que irá caracterizar a conduta como típica não é, propriamente, o fato
que é tipicamente uma questão penal, em função da lesão de bem jurídico, de ela ser perigosa ou lesiva ao bem jurídico, mas que essa lesão ou esse perigo
não basta por si mesma para caracterizar o injusto culposo. É preciso que a decorram do fato de que aquela conduta tenha sido realizada fora dos limites
conduta seja apreciada também frente ao contexto da ordem jurídica. Esta era do risco autorizado e, assim, lesiva ao cuidado concretamente imposto. Como
uma questão sempre posta em dúvida pela doutrina e pela jurisprudência: de o risco permitido é estruturado normativamente, não cabe aqui proceder-se a
saber se uma vez situada a conduta no âmbito da norma regulamentar, isto já uma avaliação empírica prévia para determinar se a conduta era ou não lesiva
liberaria o agente frente à norma de cuidado referenciada a um tipo de delito. A ao bem jurídico, porque, se assim fosse, se tornaria praticamente impossível
questão é ainda polêmica e só pode ser resolvida procedendo-se a uma avaliação uma série de atividades sociais, hoje tidas como imprescindíveis.
tanto da norma de cuidado quanto do risco permitido. Pode-se dizer que o
risco permitido constitui um limite seguro à determinação do cuidado, quando (bb) O RISCO HABITUAL
se refira a perigos indiretos aos bens jurídicos. Assim, nos atentados diretos a Ao lado do risco permitido deve ser acentuado também, como critério
bens jurídicos pessoais, sem o consentimento da vítima, a prevalência dentro limitativo de imputação nos delitos culposos, o chamado risco habitual.
do processo de imputação cabe à norma de cuidado, que imporá, então, os Aqui não se trata de uma conduta que se tenha mantido nos limites do
parâmetros concretos de realização da conduta frente à lesão ou ao perigo de dever de cuidado, mas de condutas que tenham inclusive violado esse dever
lesão do bem jurídico. Por exemplo, o motorista deve sempre levar em conta de cuidado e se mantido dentro do que, pela experiência, se costuma so-
os perigos concretos de sua direção, independentemente dos limites de velo- cialmente tolerar como margem de erro aceitável. Geralmente, incluem-se,
cidade fixados pelo código de trânsito, porque esses perigos estão diretamente no risco habitual, fatores causais remotos ou condutas que desenvolvam
vinculados ao seu domínio. Se a rua estiver cheia de pedestres, ainda que a processos causais incontroláveis.
estes seja proibida a circulação naquele espaço, deve o motorista diminuir a Pelo critério do risco habitual podem ser solucionadas também questões
422 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 423

relativas ao regresso infinito e à causalidade superveniente. Um instrutor de doutrina, pela sua eliminação da pena criminal, principalmente porque o re-
autoescola que ensina a seus alunos técnicas de pilotagem arriscada, não sultado dificilmente poderia ter sido evitado por um homem comum.792 Mais
pode ser responsabilizado por haver um desses alunos participado de uma recentemente, DUTTGE, em profundo trabalho sobre o delito culposo,
corrida urbana por simples emulação e causado a morte de um transeun- considera que a culpa leve e a culpa mediana, em função de sua impondera-
te. Nem poderá o médico ser responsabilizado pela morte de paciente em bilidade e imprecisão, violam o princípio constitucional da legalidade e seu
estado de câncer terminal, ao buscar, com seu consentimento, extirpar-lhe corolário de taxatividade. Assim, apenas uma anormal violação da norma de
o tumor, ainda que a operação fosse manifestamente arriscada. Em casos cuidado poderia implicar a configuração do tipo culposo.793
como tais, embora a atitude de cada um dos autores tenha violado certas Convém esclarecer que o tratamento da culpa leve no direito penal e
normas técnicas ou se afastado dos padrões dominantes para sua execução, sua distinção com a culpa média ou grave não deve ser efetivado conforme os
interesses sociais preponderantes, como a finalidade profissional de minorar ditames do direito civil. Ao contrário, deve ser executado sobre dois pontos
os sofrimentos de pacientes ou a liberdade no exercício de qualquer profis- nevrálgicos: a) o seu conceito e determinação; b) os seus efeitos.
são, indicam que a margem de erro que essas condutas apresentam pode
perfeitamente se incluir no risco aceitável. Observe-se que, nestas hipóteses, (dd) A QUESTÃO DA GRAVIDADE DA CULPA
nem sempre a limitação pela fórmula da causalidade superveniente, inserida
Desde que o tipo dos delitos culposos tem seu fundamento na lesão
no § 2º do Código Penal, pode satisfazer, porque o resultado, pelo menos
ao dever de cuidado objetivo, não se pode estabelecer uma gradação na
no segundo exemplo (do médico que retira o tumor em uma intervenção
culpa com base na gravidade do resultado produzido. Pode ocorrer, in-
arriscada), se situava como consequência da própria conduta do agente e
clusive, que o resultado seja extenso e gravíssimo e nem mesmo haver
não por interferência de uma outra condição que por si só o tivesse causado.
delito culposo. O ponto de partida, portanto, deve ser a forma e o modo
(cc) A CULPA LEVE
como a norma de cuidado foi violada. Como a conduta descuidada não é
aquela que, naturalisticamente, incorpore essa condição, mas aquela que
A questão da culpa leve sempre esteve presente na dogmática penal, ora está vinculada diretamente à imposição normativa quanto à sua execução,
se confundindo com a culpa inconsciente,789 ora decorrendo dos chamados ou às condições preliminares dessa execução, a medida da intensidade da
graus da culpa.790 Até mesmo nosso Código Penal, na antiga redação do violação normativa só pode ser efetuada com sucesso a partir da análise dos
art. 42, seguindo o modelo do art. 133 do Código Penal italiano,791 fazia regulamentos que a disciplinam.
menção aos graus da culpa como circunstâncias a serem levadas em conta
na aplicação da pena. Os regulamentos de trânsito, por exemplo, em todas as partes do
mundo, contemplam variações quanto à violação das respectivas normas
Hoje a matéria ainda se apresenta confusa em termos sistemáticos. de cuidado. O Código de Trânsito Brasileiro, inclusive, mantém uma ex-
ROXIN, por exemplo, situa a culpa leve fora da questão da imputação ob- tensa tabela de infrações, graduadas conforme a sua gravidade (arts. 162 e
jetiva, para inseri-la numa posição intermediária, de gradação do injusto e seguintes). Embora a classificação dessas infrações como graves ou leves não
da culpabilidade, para ao final concluir, na companhia de grande parte da seja vinculante para o direito penal, porque muitas delas não dizem respeito
diretamente à ação de dirigir, mas a seus pressupostos (art. 162, V) ou a
789. KOHLRAUSCH, Eduard. Reform des Strafrechts, 1910, vol. I, p. 183.
790. PADOVANI, Tullio. Diritto penale, 5ª edição, p. 279. situações posteriores ao ato de direção (art. 176), pode servir de elemento
791. Art. 133. “Gravità del reato: valutazione agli effetti della pena: Nell’esercizio del potere discrezionale para a determinação da variação da culpa, ou seja, da violação da norma de
indicato nell’articolo precedente, il giudice deve tenere conto della gravità del reato, desunta: 1) dalla
natura, dalla specie, dai mezzi, dall’oggetto, dal tempo, dal luogo e da ogni altra modalità dell’azione; 2) cuidado. Recentemente, com as modificações introduzidas no âmbito dos
dalla gravità del danno o del pericolo cagionato alla persona offesa dal reato; 3) dalla intensità del dolo
o dal grado della colpa. Il giudice deve tener conto, altresì, della capacità a delinquere del colpevole, de-
sunta: 1) dai motivi a delinquere e dal carattere del reo; 2) dai precedenti penali e giudiziari e, in genere, 792. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 950.
dalla condotta e dalla vita del reo, antecedenti al reato; 3) dalla condotta contemporanea o susseguente 793. DUTTGE, Gunnar. Zur Bestimmtheit des Handlungsunwerts von Fahrlässigkeitsdelikten, Tübingen:
al reato; 4) delle condizioni di vita individuale, familiare e sociale del reo.” Mohr, p. 271 et seq.
424 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 425

crimes de trânsito, pode-se, inclusive, tomar como parâmetro de uma culpa definem. Ao efetuar-se, porém, a limitação na própria ação perigosa, corre-se
grave as infrações decorrentes de atos que geram um risco maior ao bem jurí- o risco de enveredar-se por um caminho assentado, exclusivamente, em juízo
dico. Assim, aqueles atos de direção que se resumam ao empreendimento de de probabilidade, quer dizer, a culpa será média ou grave, na medida em que
corridas, competições ou disputas ou demonstrações de perícia em manobras seja menos ou mais provável que, da conduta realizada, resulte o evento.
automotivas não autorizadas. Para esses casos, porém, o próprio Código de Embora essa solução não tenha sido enfrentada pela teoria da causa-
Trânsito Brasileiro já previu uma tipificação específica (art. 308). lidade adequada ou por outras teorias da causalidade, como, por exemplo,
O problema está, entretanto, nas normas regulamentares que não da causalidade eficiente, que se ocuparam mais em afirmar ou negar a cau-
apresentem essa gradação classificada. Quanto a estas, o critério deverá ser o salidade e não de graduá-la, de certa forma seria uma consequência dessas
que melhor se ajuste ao sentido da imputação objetiva, ou seja, haverá culpa formulações. A teoria da imputação objetiva, por seu turno, pretendeu,
leve ou grave, quando a forma ou o modo de violação da norma de cuidado como se viu nas páginas antecedentes, partir de um juízo de ponderação
representar menor ou maior risco para a ocorrência do resultado, conforme entre o que pode ou não pode ser imputado ao agente, conforme o sentido
sua menor ou maior evitabilidade. Justamente porque esse critério é ainda que lhe empresta o risco desaprovado. Como, entretanto, o que está em
muito fluido, convém agregar-se-lhe o parâmetro da probabilidade, ou seja, jogo não é a afirmação da imputação com base na produção do risco, mas a
haverá culpa leve quando da forma ou do modo da violação à norma de sua exclusão, quando a gradação da ação perigosa não atingir determinado
cuidado não se possa concluir que o resultado ocorreria. Havendo dúvida patamar, ainda que sua realização constitua um risco desaprovado, o juízo
quanto ao grau de probabilidade da ocorrência do resultado, se remota- de ponderação aqui deverá tomar outros contornos, que não podem ser
mente provável ou se simplesmente provável, é de se aplicar o princípio in obtidos tão-só de critérios empíricos ou normativos.
dubio pro reo e concluir pela exclusão da imputação. Como nesta matéria Para que se possam delinear com alguma clareza os limites do que
reina sempre uma completa inexatidão quanto à medida do risco e da constitua uma culpa média ou grave, parecem inservíveis tanto os elementos
probabilidade, se figura correta a proposta de DUTTGE de que somente empíricos da causalidade, quanto os normativos do risco desaprovado. Em
a culpa bastante grave possa caracterizar o tipo dos delitos culposos.794 face disso, o modo de graduar a gravidade da culpa com base na ação perigosa
A questão da gravidade da culpa, portanto, assume uma importância não pode valer sem uma referência à intensidade de violação à norma de
significativa no processo de imputação, uma vez que não se trata, simplesmen- cuidado. Uma culpa será grave, na medida que a ação perigosa se tenha rea-
te, de limitar-lhe o alcance do tipo por critérios normativos, mas condicionar lizado com tal intensidade que não apresente dúvida quanto a contrariar ao
este alcance às próprias características da ação culposa, segundo o grau de cuidado objetivamente exigível para evitar o resultado. A referência à norma
intensidade da violação da norma de cuidado, no sentido de registrar com de cuidado é aqui essencial, porque antes de se proceder à gradação da ação
maior nitidez os contornos das zonas de intervenção do Estado. perigosa, será preciso verificar qual será o significado que essa norma atribui
àquela forma de realização da ação. Se, por exemplo, no Código de Trânsito
Está claro que não será fácil proceder-se à diferenciação entre culpa
Brasileiro (art. 62), consta que os limites de velocidade a serem observados se
média ou grave. Quando se busca equacionar essa diferença para os fins de
referem tanto ao máximo quanto ao mínimo, isto indica que este parâmetro
limitação da imputação, os parâmetros vão se tornando cada vez mais inde-
da velocidade só terá sentido se levado em conta para fins próprios da circu-
finidos. Mas essa poderia ser obtida de dois modos: a) ou estimando uma
lação, ou seja, haverá culpa grave ou não, na medida em que a violação do
gradação na ação perigosa; b) ou determinando uma gradação na intensidade
limite de velocidade implicar, diretamente, um perigo concreto para outros
da violação da norma de cuidado. No fundo, esses dois modelos se interpene-
veículos ou pessoas. Assim, se alguém dirige em excesso de velocidade, este
tram, porque devem estar subordinados a alguns parâmetros prévios, que os
excesso só se traduz em culpa grave, caso esteja ligado diretamente às condi-
ções de circulação. O motorista que dirige, por exemplo, em velocidade não
794. DUTTGE, Gunnar. Zur Bestimmtheit des Handlungsunwerts von Fahrlässigkeitsdelikten, Tübingen:
Mohr, p. 387 et seq. permitida durante a madrugada em uma via expressa, ainda que possa haver
426 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 427

realizado uma ação perigosa, que lhe implicasse a imposição da respectiva (art. 13, § 1º, CP), a qual poderá ter sido posta em marcha tanto por tercei-
multa, não viola com grave intensidade a norma de cuidado. Portanto, o ros (caso da ambulância, por exemplo), como pela própria vítima (caso de
processo de reconhecimento da culpa grave decorre não apenas de uma in- automedicação inadequada, por exemplo).
vestigação empírica procedida sobre a ação perigosa, mas ainda do sentido A solução destes casos poderá ser obtida, na verdade, por dois cami-
que a norma de cuidado confere a esta ação perigosa. nhos: por via da análise da imputação objetiva ou da causalidade funcional.
Em relação a esta última, a atuação da vítima ou de terceiro excluirá a impu-
EXCERTO: A COMPENSAÇÃO DE CULPAS
tação, quando a atuação do agente não puder alcançar esse comportamento
O tema da compensação de culpas tem sido, desde há muito, relegado como seu objeto de referência para o efeito de poder dirigir sua atividade de
pela doutrina, entendendo os autores que a participação da vítima na vio- conformidade com a norma de cuidado, ou seja, a questão está, então, em
lação do cuidado não produz qualquer efeito no âmbito da imputação.795 se verificar se a atuação da vítima ou do terceiro estava de tal forma fora do
Esta conclusão, porém, não pode ser tomada em sentido absoluto. Depois contexto que não pudesse ser incluída na relação funcional do agente para
da superação dos fundamentos puramente causais no âmbito da definição de com a norma. Por exemplo, um motorista dirige em excesso de velocidade
responsabilidade no direito penal, é possível reconhecer relevância à atuação por uma rodovia, quando vem a se chocar com outro, que resolve conduzir
da vítima para, em certos casos, excluir a imputação. A doutrina tem aca- na contramão. Está claro, aqui, que o acidente deve ser atribuído àquele que
tado esta tese, por exemplo, nas chamadas colisões em cadeia, em que um dirigia na contramão, pois tal fato, em virtude de qualquer expectativa, não
primeiro motorista produz culposamente um acidente, fechando a pista de poderia influir de antemão no excesso de velocidade do outro condutor,
rodagem, enquanto outros motoristas, em seguida, por dirigirem em excesso como da mesma forma não poderia influir na condução daquele que o faria
de velocidade, nele se envolvem, aumentando a extensão dos resultados lesi- dentro da velocidade adequada. Neste caso, a atuação do outro não se inclui
vos. Como a atuação dos demais motoristas decorre de sua exclusiva decisão, na relação funcional do agente para com a norma, independentemente da
pode-se afirmar que, em relação ao primeiro motorista, estará excluída a velocidade do veículo. O mesmo vale nas hipóteses de atuação exclusiva da
imputação dos demais resultados.796 Pondera quanto a isso FEIJÓO que a vítima, que resolve, por sua própria conta, realizar uma conduta perigosa,
imputação só estará excluída quando o primeiro condutor nada puder fazer sem que o agente possa tomá-la no âmbito de sua relação funcional. Por
para evitar futuros acidentes. Se, ao contrário, após o acidente, ainda puder exemplo, um pedestre resolve caminhar na pista de uma rodovia durante a
realizar algumas tarefas protetivas, como retirar obstáculos da pista, sinalizar noite, sem portar qualquer sinal que o possa identificar e vem a ser colhido
o local ou acenar aos motoristas, os demais resultados lhe serão imputados, por um veículo que está sendo conduzido em excesso de velocidade. Aqui
conjuntamente com os demais condutores, porque, então, o primeiro estaria estará, da mesma forma, excluída a responsabilidade do motorista em face
em posição de garantidor, em face da ingerência.797 Além desses casos de da limitação imposta pela causalidade funcional.798 Já no âmbito da imputa-
colisão em cadeia, a compensação de culpas poderá ainda ocorrer quando a ção objetiva, a atuação da própria vítima ou de terceiro poderá igualmente
atuação da vítima ou de terceiro tiver sido decisiva para o desfecho do evento. impedir que a conduta do agente tenha aumentado o risco da produção do
O próprio direito brasileiro sempre reconheceu a exclusão da causalidade nas resultado. Se tal ocorrer, ou seja, se aquela conduta tiver influído na conduta
hipóteses de causa superveniente que por si só tenha produzido o resultado do agente, de tal modo que dela não poderia esperar maior risco ao bem
jurídico, estará excluída a imputação.
795. Assim, por exemplo, seguindo a doutrina majoritária, ANÍBAL BRUNO. Nota 19, p. 94; ROMEO
CASABONA, Carlos María. Conducta peligrosa e imprudencia en la sociedad de riesgo, Comares:
Granada, 2005, p. 28; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2007, volume 1, p. 289; VIII. AS FASES DE REALIZAÇÃO DO TIPO CULPOSO
CEREZO MIR, José. Curso de derecho penal español, p. 440.
796. Assim, entre outros, FEIJÓO, Bernardo. Resultado lesivo e imprudencia, Bosch/Externado: Bogotá, Também nos delitos culposos é possível compreender-se um iter
2003, p. 356; BURGSTALLER, Manfred. Das Fahrlässigkeitsdelikt im Strafrecht, Viena, 1974, p. 119;
ROXIN, Claus. “Zum Schutzzweck der Norm bei fahrlässigen Delikten”, Festschrif für Wilhelm Gallas,
1973, p. 257. 798. Assim, também, embora sob o argumento da inexistência da “conexão de risco”, CRAMER/STEM-
797. FEIJÓO, Bernardo. Resultado lesivo e imprudencia, 2003, p. 357. BERG-LIEBEN. Schönke-Schröder, Strafgesetzbuch, Kommentar, 27ª edição, München, 2006, p. 329.
428 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 429

criminis, desde a produção da conduta até seu resultado final. Entretanto, justificação (critério negativo de determinação). Parece, no entanto, que, em
diversamente do que ocorre com o delito doloso, o início da execução da face do princípio da presunção de inocência, essa assertiva deve ser revista
ação típica por meio da violação da norma de cuidado não implica, desde para também se exigir que o juízo de antijuridicidade só possa ser afirmado
logo, a incidência da norma penal. É que, sendo o tipo dos delitos culpo- depois de um exame negativo da norma incriminadora em face do caso
sos integrados, como já visto, por disposições extrapenais, referenciadas a concreto. Assim, em vez de se presumir a antijuridicidade desde logo com
normas regulamentares, a violação dessas normas, ainda que constitua ato a realização do tipo de injusto, a postura correta será a de verificar se não
ilícito perante outros ramos da ordem jurídica, só passa a interessar ao direito subsiste, apesar disso, uma causa que justifique a conduta.
penal na medida em que produza um resultado de tal forma grave que esteja Como, ademais, o tipo de injusto dos delitos culposos, em face da
previsto em um tipo de delito. De conformidade com esta característica dos natureza da norma, não se caracteriza pelo suporte volitivo, com a conse-
delitos culposos, não se lhes pode reconhecer a forma tentada. Para refor- quente divisão em tipo objetivo e tipo subjetivo, em oposição ao que ocorre
çar essa conclusão, o próprio art. 14, II, do Código Penal, ao disciplinar a no delito doloso, mas depende de juízo normativo acerca da lesão do dever
tentativa de delito, expressamente exigiu que a execução fosse interrompida de cuidado, o juízo negativo de antijuricidade pode ser, aqui, antecipado,
por circunstâncias alheias à vontade do agente, o que quer significar que sua figurando, assim, as causas de justificação como mais um reforço de delimi-
conduta estava dirigida dolosamente no sentido da produção do resultado. tação do risco autorizado.
Tendo em vista esta assertiva, é igualmente impossível, por vedação legal, Podemos asseverar que o injusto do atuar negligente é fundamental-
a chamada tentativa na culpa imprópria, aquela que resulta do excesso no exer- mente menor do que o da conduta dolosa. Isto traz como consequência que
cício de ação acobertada por uma causa de justificação. Por exemplo, alguém, as causas de justificação atuam aqui em maior amplitude do que nos crimes
ao defender-se de uma agressão, realiza uma ação de defesa desproporcional, dolosos, ainda quando apresentem equivalência de resultado. Onde não se
mas cujo resultado, que, na verdade, não aconteceu, só poderia ser atribuído possa, por exemplo, justificar o consentimento de uma intervenção dolosa,
culposamente ao agente, caso efetivamente tivesse acontecido. A solução culpo- como em se tratando do homicídio, é possível, em certas circunstâncias,
sa para tal excesso só pode ser acolhida se, de fato, advier o resultado proibido. a justificação quando o resultado derive de conduta culposa (intervenção
Se tal não ocorrer, o ato é penalmente indiferente, sem consideração às regras médico-cirúrgica arriscada, com o consentimento do paciente). A colisão de
acerca da evitabilidade ou inevitabilidade do erro de proibição. deveres, na qual normalmente se exige, para a justificação na conduta dolosa,
que se cumpra o dever ou interesse preponderante, tendo em vista salvar-se o
bem de maior valor, no fato culposo se baseia sempre na grandeza do perigo
• SEÇÃO 3 - A ANTIJURIDICIDADE NO FATO CULPOSO para o bem em confronto.799 Com idênticos fundamentos, pode-se justificar
SUMÁRIO: I. Aspectos gerais – II. As causas de justificação em
através da legítima defesa um homicídio culposo, o que não seria mais pos-
espécie – 1. Legítima defesa – 2. Estado de necessidade – 3. Consen- sível em caso de conduta dolosa.800
timento do ofendido. Tratando-se de condutas objetivamente incorretas, mas aprovadas pela
ordem jurídica, em decorrência dos fins que perseguem (consentimento pre-
I. ASPECTOS GERAIS sumido, atuação no interesse do ofendido e ações funcionais), a doutrina
Desde a contribuição do neokantismo, especialmente de MAX ERNST costuma exigir, aqui, como critério orientador, a devida investigação por parte
MAYER, a doutrina vem enunciando que o tipo de injusto, quando inte- do agente dos pressupostos da causa justificante em consideração. Esta inves-
gralmente preenchido, constitui indício de sua antijuridicidade. Isto significa tigação funciona nos crimes dolosos como critério para se valorar o erro do
que a antijuridicidade não precisaria mais de juízo positivo de determina-
799. Assim, STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 418.
ção. O indício seria confirmado caso não estivesse presente uma causa de 800. Assim, STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 419; ampliando a justificação, GEPPERT, Klaus.
“Rechfertigende Enwilligung des verletzten Mitfahrers”, in ZStW, nº 83, p. 969.
430 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 431

agente, no tocante a esses pressupostos. No fato culposo, estaria ela relacio- só se exige nos fatos dolosos e não nos fatos culposos. Ainda que a conduta
nada a uma condição determinante para o reconhecimento da justificação. do agente tenha provocado um tumulto, que poderia ter sido evitado caso
Afirma-se que como a conduta do agente é aqui incorreta do ponto de vista o agente fosse comedido na forma de comunicação, uma vez que o fim de
objetivo-normativo, pois lesa um dever de cuidado, só poderia ser justificada proteção das pessoas foi alcançado, estarão também preenchidos os elementos
pelo fim que persegue, o que engendra, como consequência, que o agente do estado de necessidade justificante.
deveria analisar a situação concreta e daí se convencer de que sua atuação é É preciso ressaltar que não se aplica aos fatos culposos a exigência de
permitida. Desde que, assim, o agente não tivesse observado a exigência da que, ao lado dos pressupostos objetivos, devam vigorar elementos subjetivos
investigação devida, só poderia beneficiar-se de uma causa de exculpação. 801 de justificação.802 O delito culposo é, por sua natureza normativa, um fato em
Contudo, esta exigência da investigação devida deve ser descartada nos que a intervenção do direito penal se faz através da punição de condutas des-
delitos culposos, uma vez que já no âmbito do tipo de injusto, ao se proceder cuidadas, mas não finalisticamente orientadas no sentido da produção de um
à avaliação dos cuidados que são impostos à conduta perigosa ou lesiva ao bem resultado proibido. A vontade representa aqui unicamente papel secundário
jurídico, são levados a efeito os conhecimentos especiais do agente e sua relação na investigação do tipo de injusto e da antijuridicidade, funcionando como
pessoal para com a norma de cuidado. Esta exigência da investigação devida só determinante geral da conduta e não como dirigente do resultado típico.
terá relevância caso se passe a considerar que as causas de justificação devem Para aqueles que inserem, no âmbito da antijuridicidade dos delitos
acobertar inteiramente todos os elementos do tipo de injusto, entre os quais os dolosos, os elementos subjetivos de justificação, se destinam eles a excluir
deveres de reconhecimento do perigo. Dada, entretanto, a autonomia que se o “desvalor da ação”, isto é, o juízo negativo incidente sobre a forma de
deve emprestar às causas de justificação, sua análise deve ser feita conforme o execução ou a própria execução da atividade típica. Como no fato culpo-
sentido permissivo estabelecido pela ordem jurídica, que prescinde dessa ava- so, o desvalor da ação já é analisado praticamente no tipo de injusto, por
liação pessoal. A delimitação das zonas do ilícito deve ser feita objetivamente, meio do questionamento da lesão ao dever de cuidado, o que representa
não se exigindo do agente nada além do que preencher os elementos indicados importância básica na antijuridicidade é o desvalor do resultado concreto
pela ordem jurídica para autorizar, excepcionalmente, a conduta. ou potencial. Assim, os elementos subjetivos de justificação perdem, aqui,
Por outro lado, a exigência da investigação devida, embora não chegue a importância capital como fatores de justificação. Na culpa inconsciente,
implicar um elemento subjetivo de justificação, é, na verdade, um sucedâneo inclusive, o agente não representa a possibilidade de causar resultado anti-
dos elementos subjetivos, ao impor ao agente o dever de reconhecer que os jurídico. Como consequência, não se lhe pode exigir uma vontade de atuar
pressupostos da justificação estão presentes no caso concreto. conforme o direito. Quem, por exemplo, impede um furto de automóvel,
Normalmente, as hipóteses levantadas para legitimar a exigência da porque tenha atropelado o ladrão no momento de penetrar este no veículo,
investigação devida estão relacionadas diretamente à violação à norma de realiza, na verdade, o tipo de lesão corporal culposa, mas estará acobertado
cuidado e não a uma situação justificante. No caso, por exemplo, do agente pela legítima defesa de terceiro.
que noticia fogo em um cinema e causa com isso um grande tumulto com
lesões e, até mesmo, a morte dos frequentadores, o que se dá não é uma si-
802. Assim, SCHAFFSTEIN, Friedrich. “Handlungsunwert bei den Fahrlässigkeitsdelikten”, in Festschrift
tuação justificante, mas uma simples violação da norma de cuidado, de não für Welzel, p. 573; Wolfgand Frisch, “Grund und Grenzprobleme des sogennanten subjketiven Rechts-
fertigungselements”, FS-Lackner, Frankfurt am Main, 1985, p. 122; STRATENWERTH, Günter. Nota
haver, previamente, verificado as condições que poderiam gerar essa notícia. 126, p. 419; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 589. Exigindo elementos subjetivos de justificação
Se, no entanto, o fogo, de fato, está se alastrando, a comunicação estará também nos delitos culposos, ZIELINSKI, Diethart. Handlungs- und Erfolgsunwert im Unrechtsbe-
griff, p. 255; COSTA JÚNIOR, Heitor. “Elementos subjetivos nas causas de justificação”, in RDP nº
acobertada pelo estado de necessidade, não importando as ponderações do 23, p. 53; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 551. Indefinido, WELZEL, Hans. Nota 7, p. 121 e 196.
Admitindo elementos subjetivos de justificação na legítima defesa, como a consciência da situação de
agente quanto às modalidades de contornar de outro modo o perigo. Isto defesa e da necessidade da reação, mas considerando impunível o fato em caso de reação objetivamente
justa, por ausência do desvalor do resultado, ROXIN, Claus. Strafrecht, Nota 225, p. 953; admitindo,
condicionadamente, no sentido de avaliar o cuidado em face do autor, POMARES CINTAS, Ester. La
801. Assim, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 588. relevancia de las causas de justificación en los delitos imprudentes, Comares: Granada, 2004, p. 191.
432 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 433

II. AS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO EM ESPÉCIE a legítima defesa. No fato doloso, a solução correta deve ser a negação da legí-
tima defesa e o reconhecimento do estado de necessidade.804 No fato culposo,
Em princípio, todas as causas justificantes são admissíveis no fato
a doutrina tem-se orientado ora para afirmar a legítima defesa em favor do
culposo. Esta é uma conclusão óbvia em face do caráter geral do juízo de
agente,805 ora para caracterizar a exclusão de culpabilidade pelo reconhecimento
antijuridicidade. Só para aqueles que procedem a uma divisão, no âmbito do
da inexigibilidade de outra conduta,806 ora para excluir o próprio pressuposto
injusto, entre causas de justificação e causas que excluem o injusto penal803 é
da negligência, através da identificação do fato com o risco permitido e, assim,
que poderia haver uma limitação das causas de justificação quanto aos delitos
considerar a ação do agente como adequada ao cuidado.807
culposos, precisamente em face das características da infração normativa. Não
obstante, particular importância possuem aqui a legítima defesa, o estado de A melhor solução é a de se reconhecer, no caso, um estado de necessi-
necessidade e o consentimento do ofendido. dade justificante, conforme os pressupostos, como aliás, propugna a doutrina
majoritária para o fato doloso.808 As demais soluções apresentam, na verdade,
1. A LEGÍTIMA DEFESA contradições insolúveis. Senão, vejamos.
Segundo nosso Código Penal, atua em legítima defesa aquele que, O fato, está claro, não cabe nos estreitos limites da definição legal da
usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual legítima defesa contida no art. 25 do Código Penal, que exige a existência de
ou iminente, a bem jurídico próprio ou de outrem (art. 25). uma agressão por parte de quem sofra a reação, quer dizer, para justificar-se o
A situação de legítima defesa pode subsistir em três hipóteses: a) o fato pela legítima defesa, haveria a necessidade de que o terceiro inocente fosse
agressor atua culposamente e, assim, põe em perigo bem jurídico alheio, o agressor. Se o terceiro inocente não é o agressor, não está obrigado a supor-
sendo repelido pelo agredido volitivamente; b) o agressor atua dolosamen- tar a agressão daquele que está se defendendo da agressão desencadeada por
te, mas é repelido através de atuação culposa da vítima ou de terceiro; c) o outrem. Se o terceiro inocente for agredido por aquele que se está defendendo
agressor atua culposamente e é repelido pela vítima ou por terceiro também da agressão de outrem, poderá atuar em legítima defesa própria contra aquele,
por ação ou omissão culposa. o que só seria possível se se tratasse, para aquele, de um estado de necessidade e
A primeira hipótese refere-se basicamente ao crime doloso, porque na não de legítima defesa. Ao se admitir a solução pela legítima defesa, dever-se-á
configuração da legítima defesa não importa se o agressor atua com dolo ou reconhecer também ao terceiro inocente a mesma forma de justificação, ou
com culpa, basta que haja desencadeado uma agressão, a qual o agredido não seja, a utilização em seu favor da legítima defesa, o que geraria a mais absoluta
tenha o dever de suportar. As duas últimas, porém, são autênticas situações perplexidade jurídica: duas atuações em legítima defesa recíproca, nas quais,
de fatos culposos. O decisivo para se determinar o âmbito de aplicação da em uma delas, o agredido não estaria obrigado a suportar a reação.
legítima defesa, como fato doloso ou culposo, é a ação do agredido, pois este Igualmente, adotar-se apenas a tese da exclusão da culpabilidade seria
é que necessita de justificação para acobertar juridicamente o fato típico que
comete ao repelir a agressão. 804. A posição do direito brasileiro, em sua maioria, é neste sentido: por exemplo, BRUNO, Aníbal. Nota 45,
p. 368; COSTA E SILVA, Antonio José da. Comentários ao código penal, p. 138; FRAGOSO, Heleno
Cláudio. Nota 93, p. 204; MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, vol. ll, p. 121; excluin-
O que permanece em discussão, no entanto, tendo em vista a permissibi- do a legítima defesa e a punição se o erro for inevitável, HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código
penal, vol. I, tomo II, p. 297; admitindo a legítima defesa, pelo emprego analógico do art. 73 do Código
lidade de se estenderem os pressupostos da legítima defesa em favor do agente Penal, DE JESUS, Damásio. Direito penal, pg, p. 340; NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal,
com mais intensidade no fato culposo do que no doloso, é se cabe legítima pg, vol. I, p. 367.
805. Referência na nota anterior.
defesa em situações nas quais o agredido, defendendo-se, atinge bem jurídico 806. Referência em MAURACH, Reinhart. Kritik der Notstandslehre, 1935, p. 141.
de terceiro inocente, em vez de bem jurídico do agressor. Uma vez que isto 807. Assim, MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 553.
808. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 602, afirma, categoricamente, que a legítima defesa só é admissível quando
ocorra, a doutrina, em sua maioria, descarta a possibilidade de se reconhecer implique uma reação contra bem jurídico do agressor e não de outrem. Caso seja lesado bem jurídico de
terceiro inocente, a solução será a do estado de necessidade agressivo e não da legítima defesa. Consi-
derando, também, inadmissível a legítima defesa, na hipótese de lesão a terceiro inocente, mas optando
803. GÜNTHER, Hans-Ludwig. “Rechtfertigung und Entschuldigung in einem teleologischen Verbrechens- pela punibilidade de tal fato e não pelo estado de necessidade, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota
system”, in Rechtfertigung und Entschuldigung, Freiburg im Breisgau, 1987, p. 381 et seq. 93, p. 145.
434 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 435

ceder diante do injusto, colocando o terceiro inocente como um impedi- objetivamente viável, é de se reconhecer a legítima defesa, apesar de que, em
mento da ação do agredido. Por sua vez, a teoria do risco permitido não caso de atuar doloso, houvesse abuso de direito. Caso contrário, a construção
poderia ir tão longe, a ponto de incluir, por exemplo, no campo da nor- passaria por alto do dispositivo da legítima defesa contido na legislação penal.
malidade da vida, mas assumida pela sociedade como necessária, ação que Muitos exemplos práticos podem ser aventados para caracterizar fatos
consista em disparos na via pública. culposos, em que o agente atue em legítima defesa. Haverá, pois, legítima
No tocante aos pressupostos objetivos da legítima defesa, como no defesa, quando o proprietário dá um tiro de advertência em um matagal
fato culposo não há consciência por parte do agente acerca do emprego e vem a atingir alguém que estava na iminência de matá-lo; ou quando o
dos meios ou de seu uso, moderada ou imoderadamente, a melhor orien- agredido aperta o gatilho de uma arma, por ele supostamente tida como
tação será dada pelo resultado ocorrido. Esse resultado deve ser, em tese, descarregada, contra o agressor e vem a atingi-lo, repelindo com isto a agres-
objetivamente necessário a repelir a agressão. Entretanto, mesmo que o são. Também será o caso de legítima defesa, quando o agredido utiliza um
resultado vá além do necessário, é ainda de se reconhecer a legítima defesa, meio para causar somente lesões e causa a morte do agressor, por haver este,
pois, faltando ao agente a consciência de seus pressupostos, é admissível e inesperadamente, lhe caído em cima. O resultado não era aqui necessário,
justificável um erro no uso dos meios. mas as circunstâncias eliminam a antijuridicidade, por atribuir-se ao agressor
Se, por exemplo, o agente puder se defender apenas com lesão, mas um dever de tolerância em face do resultado mais grave.811
o faz com a morte culposa do agressor, estará acobertado pela legítima 2. O ESTADO DE NECESSIDADE
defesa. Ademais, é de se interpretar o art. 25 do Código Penal, dando uma
conotação diferenciada no que se refere à necessidade dos meios: se estes No Código Penal, que se filiou à teoria unitária, não se reconhece, em
estão ligados indissoluvelmente ao resultado mais grave, de forma que não princípio, validade ao critério da ponderação de bens na caracterização do
se possa conceber seu uso sem certa dose de imoderação, é de se exigir do estado de necessidade. O Código Penal dispõe, com efeito, que haverá estado
agressor que sofra os riscos deste acontecimento.809 de necessidade sempre que o agente tenha que lesar bem jurídico alheio, para
salvar, de perigo atual e não provocado por sua vontade, bem jurídico próprio
Certamente, é de se investigar, em todo caso, acerca da existência de ou de outrem, desde que não se possa razoavelmente exigir o sacrifício do
um abuso de direito. Haverá abuso de direito, quando entre a agressão e o bem a ser protegido (art. 24).
resultado lesivo, decorrente da defesa, subsistir uma crassa desproporção,
inadmissível à vista social.810 Assim, por exemplo, não se pode reconhecer a Em oposição a isto, entretanto, o Código Penal Militar, na trilha do
legítima defesa de ação culposa que mata uma criança, a qual, sem ordem revogado Código Penal de 1969, prevê duas espécies de estado de necessida-
ou autorização do proprietário, penetra no jardim de sua casa, para apanhar de: o justificante (art. 43) e o exculpante (art. 39), de modo que o primeiro
uma bola que lá havia caído. Aqui, a produção do resultado morte constitui tem lugar quando o bem jurídico a ser salvo seja de maior valor do que o
abuso de direito, em face da desproporção entre a vida e a defesa da incolu- bem lesado, enquanto que o outro se estende aos casos em que se estabeleça
midade do domicílio. Neste caso, porém, pode-se reconhecer em favor do igualdade de bens ou até mesmo superioridade do bem lesado. Não é objeto
agente a extinção da culpabilidade, talvez pela impossibilidade de previsão deste trabalho discutir aqui a validade de uma ou de outra teoria, ou se o
subjetiva ou evitabilidade individual do acontecimento. O abuso de direito direito vigente optara por uma ou outra, mas esclarecer acerca das particu-
(Rechtsmissbrauch) deve ser aqui apreciado de modo menos severo do que nos laridades do estado de necessidade no fato culposo.
atos dolosos. Desde que resulte evidente a agressão dolosa da vítima contra o Pode-se dizer, porém, que mesmo não se adotando a teoria diferenciadora,
bem jurídico do agente, e a ação culposa deste último não vá muito além do não será lícito deixar de lado a consideração acerca da proporcionalidade entre
o bem sacrificado e o bem protegido pelo agente. Isto decorre já da redação
809. Assim, HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, vol. I, tomo II, p. 301.
810. ROXIN, Claus. Nota 225, p. 577; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 108. 811. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 106.
436 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 437

do art. 24 do Código Penal, quando condiciona a subsistência do estado de conduz a inúmeras perplexidades.
necessidade à inexigibilidade razoável do sacrifício do bem protegido.812 Nos delitos de perigo concreto, parece ser possível diferenciar-se o dolo
No fato culposo, o estado de necessidade apresenta, por sua vez, alguns de perigo da culpa consciente. Se o agente atua com culpa consciente repre-
problemas que giram em torno, sobretudo, da produção do perigo e da carac- senta mentalmente esse perigo, mas, ao contrário daquele que atua com dolo,
terização dessa condição da inexigibilidade do sacrifício do bem protegido. não se conforma com ele, acreditando ou confiando em poder evitá-lo ou
que ele não ocorra. Há, então, uma possibilidade concreta de se diferenciar
(1) A PRODUÇÃO DO PERIGO
entre o perigo causado dolosamente e aquele causado com culpa.
Quanto ao primeiro aspecto (da produção do perigo), a doutrina domi-
No entanto, em se tratando de crimes de perigo abstrato, que estão cada
nante salienta que não impedirá o reconhecimento do estado de necessidade
vez mais inflacionando a legislação penal, principalmente em delitos am-
o fato de o perigo a ser evitado ou afastado ter sido produzido através de
bientais ou contra o consumidor, a culpa consciente se confunde, na prática,
ação lesiva aos deveres de cuidado, ou seja, há estado de necessidade, mesmo
com o dolo de perigo. Sua diferenciação só será possível caso se modifique a
quando o perigo tenha sido causado culposamente.813
estrutura típica desses delitos, fazendo-se incluir no tipo um juízo de possi-
Essa posição dominante, no entanto, precisa ser melhor esclarecida bilidade do perigo ao bem jurídico. Adotando-se essa nova estrutura, haveria
em face do sistema do código. Em primeiro lugar, deve-se fazer uma abor- dolo de perigo se o agente incluísse, na sua consciência e vontade, também
dagem mais correta quanto à afirmativa de que a expressão contida no art. a possibilidade de produzir um perigo ao bem jurídico. Ao revés, agiria com
24 “a que não provocou por sua vontade” se refere exclusivamente ao dolo. culpa consciente se rechaçasse essa possibilidade do perigo ou confiasse na
Esta afirmação parecia indiscutível em face da antiga redação da Parte Geral sua inexistência. Isto, entretanto, apesar de correto, não é levado em conta
do código de 1940, mas lá mesmo fora tida como duvidosa.814 É que nem pela doutrina, que continua insistindo na configuração dos delitos de perigo
sempre se pode identificar, nos respectivos tipos de delito da parte especial, abstrato a partir de uma presunção de perigo, o que conduz, inexoravelmente,
uma absoluta linha divisória entre a ação dolosa e culposa. Com efeito, tra- a confundir, neste caso, entre dolo de perigo e culpa consciente. Embora isso
tando-se de culpa consciente, já se afigura difícil distinguir entre a produção se passe na doutrina, está claro que, no âmbito de um Estado de direito, se
do perigo, feita com dolo, daquela resultante de uma atividade consciente e faz imperiosa a necessidade de se proceder a essa diferenciação, porquanto só
descuidada. Isto se torna ainda mais agudo, quando se procura estabelecer dessa forma será possível medir-se a intensidade da agressão ao bem jurídico e
a relação concreta entre delitos de dano e delitos de perigo. Nos delitos de atender, assim, ao princípio da proporcionalidade. Por conseguinte, é perfeita-
perigo, por exemplo, a diferenciação entre dolo de perigo e culpa consciente mente correta a asserção de que o dolo, em qualquer caso, deve compreender
812. REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal, vol. 1, p. 167, considera que o estado de ne- não apenas os elementos materiais do fato (relação causal e resultado), mas
cessidade, no direito brasileiro, não está fundado no balanceamento de bens, podendo, assim, haver o a lesão ou o perigo ou a possibilidade do perigo de lesão ao bem jurídico.815
sacrifício do bem de maior valor para salvar o bem menos valioso. Pondera, todavia, que a referência à
razoabilidade do sacrifício do bem de maior valor implica um juízo de proporcionalidade, que traçaria
a diretriz de se admitir ou não tal sacrifício, o que, em suma, quer dizer que o agente poderá sacrificar Mas nos crimes de dano, igualmente, é difícil se distinguir entre dolo de
bem de maior valor, desde que este sacrifício não seja razoavelmente desproporcional para com o bem
de menor valor. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, vol. I, tomo II, p. 278: “A inexi- perigo e culpa consciente. Imaginemos a hipótese de o agente, por exemplo,
gibilidade diz também com a proporção objetiva entre o quantum do perigo e o fato necessitado”. Da
mesma forma, COSTA E SILVA, Antonio José da. Comentários ao código penal, p. 127. Entendendo querer produzir um perigo para a vida de outrem, pondo fogo no quarto,
que a cláusula da razoabilidade contida na última parte do art. 24 do Código Penal se refere à questão
da exigência ou não da proteção do bem jurídico e que, assim, embora não se confunda com ela, seria
mas sem a vontade de produzir-lhe a morte. Haverá aqui, o delito de perigo
equivalente à clásula da adequação da legislação alemã, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. previsto no art. 132 do Código Penal. Excluída a hipótese de dolo eventual de
154.
813. Assim, BRUNO, Aníbal. Nota 45, p. 383; COSTA E SILVA, Antonio José da. Comentários ao código dano, haverá concretamente, porém, delito de homicídio culposo se a vítima
penal, p. 125; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 206; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93,
p. 148; PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 323. Admitindo também o estado de necessidade, quando vier efetivamente a morrer.816 Entretanto, se a vítima sobreviver sem sofrer
o perigo tenha sido causado dolosamente, mas não intencionalmente, BITENCOURT, Cezar Roberto.
Direito penal, pg, vol. 1, p. 256. 815. Ver atrás a crítica ao posicionamento de KAUFMANN, Arthur. Primeira Parte.
814. MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, vol. II, p. 127; HUNGRIA, Nelson. Comentários 816. Assim textualmente, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 169: “Se sobrevém o dano, haverá crime
ao código penal, vol. I, tomo II, p. 273. culposo (lesões corporais culposas ou homicídio culposo), desde que tenha havido apenas dolo de perigo”.
438 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 439

qualquer lesão, haverá apenas o delito de perigo para a vida de outrem, com do Código Penal, que é a interpretação correta, ficaria, à primeira vista,
dolo de perigo. Se, por sua vez, o agente produzir o perigo culposamente, comprometida a admissibilidade do estado de necessidade, caso o perigo
ainda que consciente acerca desse perigo, caso a vítima venha a sofrer lesões fosse causado culposamente, pois a doutrina, em geral, considera que, neste
ou morrer, o desfecho será o mesmo se tivesse produzido o perigo dolosa- caso, o autor deverá agir para evitar o resultado.817
mente, ou seja, haveria, do mesmo modo, crime de lesão corporal culposa Embora a disciplina dos delitos omissivos, contida no art. 13, § 2º, do
ou homicídio culposo. Vê-se, pois, que a qualidade do perigo produzido pelo Código Penal, impregne toda a estrutura do delito, de modo a comprome-
agente (se doloso ou culposo) não altera as consequências mais graves do fato, ter a interpretação de cada um de seus elementos, é preciso reconhecer, nas
o que indica que, nesta hipótese, a diferenciação entre dolo de perigo e culpa causas de justificação, uma certa autonomia quanto à estrutura das normas
consciente não se mostra, assim, tão relevante, salvo no âmbito da aplicação proibitivas ou mandamentais. Compondo-se as causas de justificação de
da pena, o que é muito pouco diante da necessidade de se proceder a uma uma estrutura própria, com base no interesse do Estado na solução concreta
avaliação da imputação no âmbito do injusto. do conflito gerado pela atividade típica, podem elas admitir, perfeitamente,
Sem outros arroubos teóricos, o legislador brasileiro, entretanto, buscou composições diferenciadas daquelas que, logicamente, deveriam decorrer das
estabelecer esta diferença no setor do estado de necessidade, ao excluí-lo na normas proibitivas ou mandamentais.
hipótese de o perigo ter sido causado dolosamente. Assim, se o agente tiver Ainda que na constituição do tipo dos delitos omissivos impróprios
representação acerca do perigo e o desejar (atuando com dolo de perigo), figure a ingerência como elemento integrante do dever de impedir o resulta-
não se pode socorrer do estado de necessidade, se, para salvar-se das chamas, do, isto não obsta a que, em uma causa de justificação, se passe a trabalhar sob
tiver que agredir dolosamente outra pessoa ou aquela mesma contra a qual outros pressupostos. Assim, pode o legislador imprimir condições menores
queria ele produzir o perigo. para o reconhecimento do estado de necessidade do que poderia resultar de
Se, porém, a agressão levada a cabo contra terceiro ou contra a própria uma interpretação sistemática do tipo dos delitos omissivos impróprios. É
vítima do perigo for culposa (agente provoca o perigo com dolo de perigo que, na configuração do estado de necessidade, deve ser dada relevância à ação
e causa culposamente a morte de outrem ao procurar fugir do perigo), po- necessária e não à origem da situação de necessidade. Caso o agente tenha
der-se-á estender o estado de necessidade em seu benefício, pois, como o que atuar, imediatamente, para salvar sua vida em perigo, a ordem jurídica
resultado não se inclui na relação volitiva, é indiferente que o agente tenha lhe reconhece esse direito de salvamento, por considerá-lo preponderante em
conscientemente causado o perigo ou que tenha atuado com consciência de relação a qualquer outro, salvo se a situação de perigo tivesse sido produzida
subsistir uma situação de necessidade. intencionalmente por ele, porque, então, o critério da preponderância do seu
Uma outra questão relevante, que envolve a análise da produção do direito já não seria mais levado em conta. A forma como o legislador consi-
perigo no estado de necessidade, é a de sua relação sistemática com a es- dera um direito de salvamento preponderante, para inseri-lo no âmbito de
trutura dos fatos omissivos, que se fundamentam no dever de garantidor uma causa de justificação, não depende de como o mesmo legislador estime
decorrente da “ingerência”, ou seja, daqueles fatos omissivos que resultam relevante uma dada circunstância para configurar o tipo de um determinado
do dever que tem o agente de impedir os resultados danosos e perigosos de- delito. Portanto, em face da autonomia das causas de justificação, é perfei-
rivados de fato anterior praticado por ele e gerador do perigo, com violação tamente possível a convivência entre a causação culposa do perigo no estado
de um dever de cuidado (CP, art. 13, § 2o, c). De conformidade com este de necessidade e a ingerência nos delitos omissivos impróprios.
dispositivo, se o agente causar, dolosa ou culposamente, o perigo, passa a Por outro lado, para aqueles que admitem, nos fatos dolosos, a subsis-
se incluir em uma posição de garantidor do bem jurídico alheio e, assim, tência dos elementos subjetivos de justificação, o que, no fundo, corresponde
sobre ele incide o dever de impedir que esse bem jurídico venha a sofrer
817. De acordo com esta posição, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Nota 93, p. 254, pois admite que “quem,
lesão ou perigo de lesão. A subsistir essa interpretação do art. 13, § 2º, c, mesmo sem culpa, põe fogo a um depósito de feno e abstém-se de salvar a pessoa que se achava no
interior do mesmo, praticará o crime de homicídio (doloso ou culposo, conforme o caso)”.
440 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 441

a uma interpenetração moralizante no âmbito do direito penal, a questão da ocasiões, na culpa consciente, não mentaliza o valor dos bens em conflito,
produção do perigo está a ela intimamente ligada. Quem cria conscientemen- não há como considerá-lo no julgamento do fato culposo.
te o perigo não está animado da vontade de salvar. Mas nos fatos culposos, em
que esses elementos subjetivos de justificação não devem existir, tornar-se-ia 3. O CONSENTIMENTO DO OFENDIDO
possível reconhecer o estado de necessidade em favor do agente, quando o O consentimento do ofendido pode referir-se ao tipo de injusto e à
perigo tivesse sido causado por sua vontade. antijuridicidade. No primeiro caso, é indispensável que a realização do tipo
seja obtida contra a vontade do titular do bem protegido e isto se dá tão-so-
(2) A INEXIGIBILIDADE DO SACRIFÍCIO DO BEM PROTEGIDO
mente nos delitos dolosos. No segundo caso, o consentimento vigora como
A doutrina dominante tem entendido que a aferição da inexigibilidade, causa justificante extralegal e pode verificar-se nos fatos dolosos e culposos.
isto é, da proporcionalidade entre o sacrifício do bem alheio e a proteção
Nos delitos culposos, normalmente, o consentimento do ofendido
do bem próprio ou de outrem, se faça com base tanto em condições ou
quanto à ação descuidada pode conduzir à exclusão da imputação, como já
elementos objetivos quanto subjetivos, compreendendo-se, nestes últimos,
visto nos capítulos anteriores relativamente às hipóteses de auto e heteroco-
as características do agente, sua posição íntima em face do perigo e da pro-
locação em perigo. Tratando, porém, dialeticamente a aferição do injusto,
teção, sua afinidade com o bem a ser protegido, etc.818 Se, no fato doloso,
nada obsta que também aqui se possa trabalhar com o consentimento do
este entendimento objetivo-subjetivo tem aplicação, conforme a doutrina
ofendido como causa de exclusão da antijuridicidade, quando não seja possí-
tradicional, como resultado da extensão da constituição do tipo de injusto
vel a exclusão da imputação objetiva. Isto se dá, normalmente, nas hipóteses
(tipo objetivo e tipo subjetivo) ao âmbito da antijuridicidade e das causas
em que a aceitação do perigo por parte da vítima não é expressa, mas tácita,
permissivas, tal não se verifica nos fatos culposos. Aqui, a proporcionalidade
ou quando se trate de consentimento presumido.
entre o sacrifício e a proteção, consequentemente, entre o bem sacrificado e o
bem protegido, tem que ser feita exclusivamente segundo os dados objetivos, A fim de que o consentimento possa excluir a antijuridicidade de uma
pois não há, por parte do agente, relação consciente com essa proporcio- conduta típica dolosa, em geral, a doutrina tem assentado alguns requisitos
nalidade, nem mesmo na forma de culpa consciente. Na culpa consciente, deduzidos do ordenamento jurídico, tais como a disponibilidade do bem
observa-se tão-somente representação mental acerca do perigo e da necessi- jurídico, o valor social do resultado, a anterioridade do consentimento à
dade de salvamento, como também do valor dos bens em conflito, mas não ação lesiva, a não infringência aos bons costumes e a adequação da conduta
acerca do resultado (sacrifício do bem alheio). à forma e ao modo de execução efetivamente consentidos.819
Assim, a proporcionalidade entre proteção e sacrifício deve ser induzida O principal apoio da adoção do consentimento do ofendido como
dos dados objetivos singulares, existentes no momento da ação necessária. causa de exclusão da antijuridicidade nos delitos dolosos radica na disponi-
Não se deve ter em vista igualmente aqui o padrão do homo medius, mas, bilidade do bem jurídico lesado.820 Este problema da disponibilidade afeta
sim, a necessidade objetiva de proteção concreta ao bem em perigo. Já que, profundamente a indagação estrutural do direito penal, pois envolve a análise
nestes casos, não pode o juiz apreciar a intenção do agente, no sentido de e o estudo de suas características normativas. Assim, toda questão da disponi-
salvar o bem e os motivos do agir, deve ater-se exclusivamente à grandeza do bilidade está alicerçada igualmente na forma de atuação normativa, em face
perigo, da mesma forma como ocorre nas hipóteses da justificação extralegal da forma concreta de aparecimento da conduta.
da chamada colisão de deveres. Esta é, talvez, a conclusão mais adequada em
819. Ver explicação exaustiva desses pressupostos em MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 338 e ss.; também
face da teoria unitária adotada pelo Código e que não acata, em princípio, impondo condições, BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 20-21; PIERANGELLI, José Henrique. O consen-
timento do ofendido na teoria do delito, S. Paulo: RT, 1990, p. 100 et seq.; PRADO, Luiz Regis. Nota
a ponderação de bens. Como o agente, na culpa inconsciente e, em certas 198, p. 335.
820. BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 20; BETTIOL, Giuseppe. Direito penal, pg, vol. I, p. 400; JESCHE-
CK-WEIGEND. Nota 7, p. 378; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 166; REALE JÚNIOR,
818. Assim, BRUNO, Aníbal. Nota 45, p. 384; HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, vol. I, Miguel. Instituições de direito penal, vol. I, p. 175; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 339; WELZEL,
tomo II, pág. 278. Hans. Derecbo penal alemán, p. 139.
442 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 443

Em princípio, todos os bens são da pessoa ou projetados para a sua rea- um objeto de referência do tipo e valor de preferência da pessoa, tomado
lização, não se podendo estabelecer, a priori, divisão entre bens do indivíduo exclusivamente em face de sua lesão ou perigo de lesão, o fato de seu titular
e bens do Estado ou da coletividade, para permitir ou não sua disposição dele dispor, consentindo nessa lesão ou no perigo, implica simplesmente des-
pelos respectivos titulares.821 Quando se fala de bem jurídico da pessoa, como caracterizar os pressupostos da intervenção do Estado por haver esse titular
fundamento de toda conceituação do bem jurídico, tal assertiva não descarta reconhecido ao autor da ação um direito preponderante quanto a solucionar
a hipótese de proceder-se a uma separação entre a pessoa, tomada generica- o conflito segundo seus próprios critérios. Esta postura se aproxima daquela,
mente, e o indivíduo concreto, que sofre a ação de outrem. Isto não implica, defendida por JESCHECK-WEIGEND, de que a disponibilidade do bem
porém, reconhecer-se ao bem jurídico uma natureza multifacética. O bem jurídico, como valor, se deve situar dentro da perspectiva do exercício do
jurídico só pode ser conceituado como bem pessoal, mas o exercício de sua direito de liberdade pessoal, reconhecido pela ordem jurídica em um Estado
titularidade pode ser executado tanto pelo indivíduo concreto, quanto pelo de direito,824 mas dela se afasta na medida em que não condiciona esse exer-
Estado. A vida humana, por exemplo, é bem jurídico pessoal por excelência, cício ao âmbito dos bens nitidamente individuais, mas apenas ao âmbito dos
o que ninguém duvida, mas o exercício da titularidade desse bem tanto é poderes próprios desse mesmo exercício, como consequência das limitações
cometido ao indivíduo quanto ao Estado, que tem interesse em que seja des- que se devem impor aos critérios de solução individual dos conflitos.
frutado por todos. O mesmo ocorre, por exemplo, com o patrimônio de uma Partindo desses pressupostos, quando a conduta se orienta volitiva e
pessoa que esteja aplicado em fundos de rendimento em estabelecimento finalisticamente contra a proibição normativa e engloba a própria conse-
bancário; neste caso, o bem jurídico, inegavelmente, pertence ao investidor, quência dessa conduta, a solução do conflito deve observar critérios mais
mas o exercício de sua titularidade pode ser também estendido ao próprio rigorosos. Nesse caso, para que este atentado direto e ostensivo ao bem ju-
agente financeiro, que deve ter a liberdade de verificar a melhor forma de rídico seja justificado pelo consentimento do ofendido, necessário será que
obter, na aplicação, um rendimento mais rentável ao seu cliente. a norma permissiva que o ampara seja atendida mediante o preenchimento
Assim, quando se fala de disponibilidade do bem jurídico, o que ocorre de certos requisitos especiais, que façam desaparecer tanto o desvalor do ato
é que, segundo a sua importância para a finalidade de delimitação da in- quanto o desvalor do resultado. Por esta razão, condiciona-se o consenti-
tervenção do Estado, está ele, como valor jurídico, conforme o caso, mais mento a que o bem esteja mais submisso ao titular individualizado e menos
submisso ou menos submisso ao exercício de seus respectivos titulares in- restrito à atuação estatal, segundo seu grau de importância na estrutura ju-
dividualizados. Só na aparência é que se pode, então, fundar a classificação rídica, bem como que a forma e o modo de execução da ação sejam por ele
entre bens do indivíduo e da coletividade. Ademais, como o bem jurídico abarcados, o resultado não importe grave perturbação do interesse social e o
não deve funcionar como objeto de proteção, não se deve atender aqui nem à fato no seu complexo não ofenda os princípios gerais da ordem jurídica (os
teoria do negócio jurídico nem à teoria da renúncia do interesse. Pela primeira, o chamados bons costumes). Isto se dá no fato doloso.
consentimento excluiria a antijuridicidade da conduta, conforme as regras do Se, entretanto, a conduta não se orienta volitiva e finalisticamente no
direito privado, como o simples exercício do direito de dispor do bem;822 pela sentido da lesão ou do perigo ao bem jurídico, apenas o fazendo indiretamen-
segunda, a antijuridicidade seria excluída pela renúncia do titular do bem à te através da lesão aos deveres de cuidado, a norma permissiva que serve de
sua proteção.823 Na verdade, desde que se compreenda o bem jurídico como substrato ao consentimento do ofendido não pode vigorar e dispor do mesmo
821. Já admiti a possibilidade de tal classificação, anteriormente, in “O consentimento do ofendido no direito modo acerca dos requisitos para sua incidência como o faz nos fatos dolosos.
penal”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, nº 12, vol. 12, 1969, p.
259. Posteriormente, sob a influência da obra de HASSEMER, mudei de opinião, in Teoria do injusto Assim, as condições para a validade do consentimento têm que ser ade-
penal, 2ª edição, p. 215, para concluir que a primeira condição para que determinado valor possa ser
considerado como bem jurídico reside na possibilidade de ser reduzido a um objeto de preferência e quadas e corresponder a essa estrutura normativa dos fatos culposos e à forma
referência da pessoa humana.
822. ZITELMANN, Ernst. Ausschluß der Widerrechtlichkeit, Tübingen: Mohr, 1906, p. 56.
concreta de conduta que a condiciona. Em face disso, o consentimento do
823. Assim MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal, vol. I, p. 413 et seq.; Richard Honig, Die Enwilli-
gung des Verletzten, Mannheim: Bensheimer (1919), p. 118. 824. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 377.
444 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 445

ofendido deve obedecer a regras menos rígidas, quando se trate de fatos cul- pois, a validade do consentimento como causa justificante, basta realizar duas
posos, devido precisamente à diferença qualitativa e quantitativa do injusto. operações: primeiramente, verifica-se se o resultado produzido mantém certa
Tendo em vista que, nos fatos culposos, o resultado não se liga voliti- proporcionalidade com a conduta concretamente consentida; em segundo
vamente ao agente, mas decorre de má dirigibilidade dos fatores ou meios lugar, se este resultado verificado pode ser incluído proporcionalmente na
causais (processo causal), a questão do poder de disposição do bem jurídico, relação meio-fim, partindo da conduta perigosa realizada, mas consentida,
para submetê-lo à lesão, não tem aqui suma importância, nem igualmente conforme o fim da norma de cuidado e a efetiva lesão do bem jurídico.
o fato relativo à capacidade de disposição do titular. Dessa forma, o con- Não se exige aqui que se estabeleça uma ligação consciente entre o
sentimento do ofendido deve ser visto não sob o prisma da disponibilidade agente e a conduta perigosa, nem que ao agente fosse possível representar
do bem, mas, sim, do resultado efetivamente verificado. É que a questão essa ligação. O que importa é verificar se a finalidade da conduta do agente
da disponibilidade está afeta diretamente à estrutura da norma. Quanto era ou não protetiva, bem como se o titular também consentiu, tacitamente,
mais carga proibitiva tiver a norma, menos submisso estará o bem jurídico acerca de uma conduta perigosa. Não ocorrendo estas hipóteses, o fato será
à vontade do particular e mais restrito à atuação estatal e vice-versa. Nos antijurídico. Não se trata aqui de atuação no interesse do ofendido e do
delitos culposos, como a norma proibitiva, em vez de se situar em posição consentimento presumido, mas, sim, de consentimento real.
proeminente, secunda uma norma impositiva e com ela é inferida, e como Se fosse atuação no interesse do ofendido ou consentimento presumi-
sua contrariedade não se verifica diretamente, pois se concede ao cidadão, do, caberia ainda um juízo objetivo sobre a função que poderia desempenhar
inclusive, liberdade para agir ou não, apenas com as limitações do cuidado a vítima diante da situação perigosa, o que, evidentemente, representa au-
objetivamente necessário a impedir perigo ou lesão ao bem jurídico, a mento das exigências de cuidado. De qualquer forma, não precisa o agente
questão da disponibilidade do bem cede lugar de importância à questão proceder à chamada “investigação devida”, exigível pela doutrina para o fato
do resultado e da ligação meio-fim. Ademais, nos fatos culposos, o desvalor doloso. Basta que desse juízo objetivo se possa concluir que a vítima, de
do ato já está praticamente investigado no tipo de injusto, o que conduz, qualquer modo, teria consentido na conduta perigosa.
portanto, a certa simplificação nas causas justificantes.
Finalmente, deve-se considerar que não haverá justificação, quando
O problema se reduz, assim, a se saber se o resultado efetivamente apenas um dos titulares houver consentido acerca do perigo para o bem
verificado corresponde ou não ao resultado consentido e, em caso positivo, jurídico, quando se trate de bem jurídico com mais de um titular, bem
se este consentimento faz ou não desaparecer o desvalor material desse resul- como quando o fato, de maneira geral, tomado como um todo, ofenda
tado. Se o resultado, tomado como concretização de conduta perigosa, mas o sentido de valor da norma. Em relação a esta última condição (sentido
consentida pelo titular, não se opuser de maneira quantitativa e qualitativa- de valor da norma), deve-se esclarecer que o sentido de valor da norma
mente desproporcional ao que foi consentido, pode-se reconhecer validade não pode estar desvinculado do perigo ou da lesão ao bem jurídico. Uma
a esse consentimento, por tal aspecto, mesmo que isto não fosse possível em norma não vale por si mesma, senão em função de sua relação para com as
se tratando, a contrario sensu, de fato doloso. delimitações da zona do ilícito. Não se deve falar aqui de ofensa aos bons
Por outro lado, o resultado deve estar relacionado à ação descuidada e costumes, porque isto viola o princípio da legalidade e foge ao âmbito da
perigosa, mas consentida. Assim, se esta ação, embora perigosa, não afeta de incidência normativa, já que esta referência “bons costumes” não integra a
maneira desproporcional o sentido da norma de cuidado, tendo em vista os fins norma penal nem vem contida no tipo de injusto.826
que persegue, igualmente deve-se justificar o resultado daí decorrente, como con-
sequência inevitável da realização da conduta consentida.825 Para determinar-se, 826. Com esta conclusão também CLAUS ROXIN, “Verwerflichkeit und Sittenwidrigkeit als unrechtsbe-
gründende Merkmale im Strafrecht”, in JuS, 1964, p. 373, relativamente ao § 226, “a” do Código Penal
alemão, que vincula o consentimento acerca de lesão corporal à exigência de que o fato não se contrapo-
nha aos bons costumes; idem, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, p. 31, em que postula que a norma
825. Orientando-se igualmente pelo resultado, STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 305; GEPPERT, constitucional do princípio da legalidade refere-se não só à constituição do tipo de conduta proibida,
Klaus. “Rechtfertingende Einwilligung des verletzten Mitfahrers”, in ZStW, nº 83, p. 969. mas também disciplina o tipo permissivo.
446 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O INJUSTO DOS DELITOS CULPOSOS 447

Assim, por exemplo, haverá de se reconhecer validade ao consentimen- para, justamente, descartar a incidência da permissão. Evidentemente, se a
to justificante, quando alguém, já em péssimo estado de saúde, devido a mal norma tem efeito protetivo, não pode este efeito, por ele mesmo, servir de
incurável, consente tacitamente acerca de uma intervenção cirúrgica extre- impedimento à permissão.
mamente perigosa, vindo a perecer devido a esta intervenção. É que, neste Por outro lado, em relação à chamada transgenitalização, ou ope-
caso, a norma não pode impedir a livre manifestação de vontade, ainda que ração de mudança de sexo, a matéria se tornou controvertida em face do
se dê de forma tácita, no sentido de obter uma melhoria de suas condições art. 13 do Código Civil de 2003, que assim dispôs: “Salvo por exigência
pessoais, mesmo sob o perigo de uma lesão irreversível ao bem jurídico. médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar di-
Caso controvertido, entretanto, é aquele que decorre do consentimen- minuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”
to relacionado a intervenções cirúrgicas proibidas ou não autorizadas, por Apesar disso, o Ministério da Saúde tem autorizado essa cirurgia no Sistema
exemplo, as intervenções que modificam integralmente a aparência da pessoa. Único de Saúde desde a Portaria nº 457/2008, ampliada pela Portaria nº
A questão da proibição ou não autorização da intervenção cirúrgica não 20.803/2013, e ainda pela Resolução nº 1.955/2010, do Conselho Federal
implica um confronto com o sistema de valores da ordem jurídica, a ponto de Medicina. Com isso, pode-se dizer que essa espécie de cirurgia está hoje
de tornar inválido o consentimento. A ordem jurídica garante o direito de de acordo com a ordem jurídica brasileira. Em virtude dessa autorização,
dispor do próprio corpo, como decorrência do princípio geral de liberdade, uma vez cumpridas as condições ali estabelecidas, tratar-se-á de caso de
previsto na Constituição. Há, portanto, uma norma permissiva de conduta atipicidade de conduta, no sentido do que ZAFFARONI inclui na cha-
para o fato de a pessoa querer modificar sua aparência. É preciso observar mada “tipicidade conglobante”. Isto é importante porque essas cirurgias
que, em se tratando de norma permissiva, sua incidência só será descartada implicam uma lesão irreversível nas pessoas que são a elas submetidas, o que
quando vigorar, expressamente, uma condição que impeça sua aplicação ao poderia suscitar uma infração aos “bons costumes”, conforme assinalado no
caso determinado por esta condição expressa. Normalmente, as intervenções art. 13 do Código Civil. No confronto, porém, entre a norma permissiva e
não autorizadas ou proibidas estão em desacordo com a ordem jurídica, mas a norma proibitiva da lesão corporal, deve prevalecer a norma permissiva e,
não necessariamente com o sistema de valores que ela encerra. Esta é uma portanto, diante da nova proposta de se fazer uma integração da tipicidade
situação que envolve não apenas o consentimento em si mesmo, frente a suas e da antijuridicidade, caracterizar-se o fato como atípico.
condições de validade, como principalmente o sentido de valor da norma Embora, modernamente, estejam-se vulgarizando as intervenções ci-
permissiva. A primeira indagação que se poderá fazer é se a norma permissiva rúrgicas para redesignação sexual, a ordem jurídica tem a preocupação de
de conduta – a liberdade de dispor do próprio corpo – encarada no sentido assegurar a todos uma vida digna, a partir da consideração do conceito de
de valor, desempenha ou não uma função protetiva. Está claro que as normas pessoa, o qual não se pode desvincular da condição de gênero. É precisa-
permissivas têm uma carga de valor, quando autorizam uma conduta apesar mente sob este pressuposto que se têm desencadeados todos os movimentos
de essa conduta lesar ou colocar em perigo um bem jurídico. Para que a no sentido da igualdade de gênero no âmbito dos direitos fundamentais,
atuação das normas permissivas produza o efeito de descartar a incidência da que estariam seriamente comprometidos caso se deixasse nas mãos de ter-
norma proibitiva ao caso concreto, será preciso que as condições apresentadas ceiros a sua simples disposição. Contudo, a questão não pode ser posta
pela permissão sejam de tal monta que, em termos comparativos, superem desta forma. Na intervenção cirúrgica de redesignação sexual, não se está
as configurações da zona do ilícito traçadas pela proibição. Neste ponto, pondo em confronto a ordem jurídica. Está sendo atendida uma solici-
assim, pode-se dizer que as normas permissivas têm um sentido protetivo tação do interessado no sentido de estabelecer para seu futuro uma nova
frente a condutas que se tenham caracterizadas como típicas. O sentido perspectiva quanto à sua vida sexual. Ainda que essa intervenção tenha o
protetivo aqui não está relacionado a desautorizar essas condutas, mas de caráter de irreversibilidade que caracteriza seus efeitos, não pode ela ser
acobertá-las como válidas na ordem jurídica. Outro aspecto da questão diz comparada, por exemplo, àquela que implicasse uma simples mutilação do
respeito a se, em decorrência desse efeito protetivo, pode ele ser invocado
448 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

paciente. Redesignar sexo não é a mesma coisa que amputar um braço ou


uma perna, ou furar um olho. Uma intervenção que apenas se resumisse
a, por exemplo, amputar o braço do paciente, está claro que não poderia
CAPÍTULO 3
ser justificada pelo consentimento, porque manifestamente contrária ao
sistema de valores inseridos na própria norma permissiva. Perdura, nesta A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO
hipótese, a preponderância do caráter protetivo da ordem jurídica sobre o
ato de disposição individual. No âmbito do direito penal, não se pode falar
em ofensa aos bons costumes. Este termo é absolutamente incompatível SUMÁRIO: I. Aspectos gerais – II. As espécies de culpa e a liberdade
com uma ordem jurídica democrática, na qual a cada pessoa se confere a de vontade: culpa consciente e inconsciente – III. A imputabilidade
– IV. O reconhecimento do cuidado objetivo e a evitabilidade da
capacidade de formular uma autocrítica em relação ao seu comportamento realização do tipo – V. A previsibilidade do resultado e do nexo causal
e, bem assim, sobre o comportamento dos demais, mas sob o prisma da e sua evitabilidade – VI. A consciência da antijuridicidade – VII. A
igualdade de tratamento e de respeito à dignidade. inexigibilidade de conduta conforme à norma.
Um pouco diferente, mas com igual desfecho, será o tratamento penal
naqueles casos de intersexualidade, que pode resultar de várias causas, como
I. ASPECTOS GERAIS
hipospadia, síndrome da insensibilidade androgênica parcial e total, Sín- De acordo com a teoria dominante, a investigação da culpabilidade
drome de Turner, Síndrome de Klinefelter, agenesia vaginal ou disgenesia no fato culposo se limita a determinar se o autor era capaz, segundo suas
gonadal parcial e total. Aqui, a intervenção médica é também autorizada, mas aptidões e atributos pessoais, de evitar a realização do tipo e a ocorrência
a autorização está orientada no sentido de definir o sexo da pessoa conforme do resultado.827 Esta posição é contestada por JAKOBS, OTTO e STRA-
sua opção, justamente pelo fato de o paciente carecer, física ou psiquica- TENWERTH, que entendem ser atributo do tipo de injusto a análise do
mente, dessa definição sexual. Como a intervenção é, então, curativa, o fato chamado “cuidado subjetivo”, isto é, do cuidado individualmente possível ao
já estaria autorizado, mesmo sem a manifestação expressa do Ministério da autor.828 Admitindo-se esta tese como válida, a culpabilidade do fato culposo
Saúde, não ingressando, assim, desde o princípio na zona do ilícito e nem se não apresentaria diferença substancial com a do delito doloso. Neste sentido,
podendo falar de uma infração à norma de cuidado. por exemplo, entende JAKOBS que o juízo de culpabilidade se baseia em
um defeito de motivação do sujeito, de modo a fundamentar a imposição
da pena como um instrumento de manutenção da confiança geral da norma
e de um atuar dentro do âmbito de seu reconhecimento.829
Apesar de os modismos pós-modernos estarem impregnando o direito
penal vigente, no sentido de legitimá-lo a partir de sua condição expressiva,
ou seja, pelo sentido de assegurar, mediante a atribuição de responsabilidade
e imposição de pena, a estabilidade das normas, a culpabilidade só se legitima
na medida em que possa servir de limitação ao poder de punir.
É longa a discussão em torno dos fundamentos e das características da

827. Assim, BLEI, Hermann. Strafrecht, I, p. 267; MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 570; WELZEL, Hans.
Nota 7, p. 244; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 237; de certa forma também JESCHECK-WEI-
GEND. Nota 7, p. 592 et seq.
828. JAKOBS, Günther. Studien zum fahrlässigen Erfolgsdelikt, p. 69; OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht,
I, p. 172; SAMSON, Erich. Systematischer Kommentar, anexo 13 et seq. ao § 16.
829. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 480 et seq.
450 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 451

culpabilidade, bem como acerca de sua eficácia de servir de instrumento li- base nos elementos concretos vinculados às particularidades de sua relação
mitador da punição. A doutrina sempre esteve envolvida nesta discussão, ora para com a norma. Por isso, na composição de seus elementos, não se deve
para encontrar na culpabilidade um componente causal-empírico (concepção buscar uma fundamentação para a pena, nem os parâmetros delimitadores
psicológica de culpabilidade),830 ora para fundá-la em juízo normativo,831 de suas finalidades supostamente protetivas, mas exclusivamente aquilo que,
ora para fazê-la derivar de um dado relacionado à conduta de vida832 ou ao relacionado ao agente e à sua conduta, possa excluí-lo da incidência da norma
caráter do agente,833 ora para substituí-la pelo princípio da proporcionalida- penal a partir de uma base empírica e valorativa.
de.834 Todos estes enfoques, em maior ou menor grau, buscam de qualquer Quando se desenhou, na introdução, o conceito de conduta, depois
modo legitimar a culpabilidade (ou proporcionalidade como querem HAS- trabalhado em maior extensão no capítulo primeiro da segunda parte, ficou
SEMER e ELLSCHEID) para servir de fundamento da sanção penal. Ainda assentado que esse conceito deveria ter uma função abrangente na teoria do
que buscando um sentido mais liberal, outro não foi também o objetivo, delito de modo a solidificar um sistema de garantias. De conformidade com
por exemplo, do Projeto Alternativo alemão de 1966, elaborado por uma aquele conceito, a conduta compreenderia uma base empírica, representada
plêiade de juristas, que tratou de dar à culpabilidade exclusivamente a função pelo processo de comunicação dentro de uma prática social vivenciada pela
de servir de limite superior da pena e não de sua fundamentação, a qual, pessoa e uma avaliação normativa, a qual se encarregaria de traçar os contor-
então, estaria orientada apenas por objetivos preventivos (§ 59, 1º). Diante nos desse processo de comunicação para fins de proteção da liberdade e, ao
de encontros e desencontros em torno do conceito e do fundamento da mesmo tempo, se submeter negativamente aos elementos empíricos, como
culpabilidade, têm surgido, no entanto, posições doutrinárias no sentido forma de controle de sua própria legitimidade. Esse conceito de conduta seria
de sua deslegitimação ou, pelo menos, sua extrema limitação, como, por absolutamente inútil se não pudesse servir também de parâmetro delimitati-
exemplo, mediante sua exclusão pura e simples do direito penal,835 ou sua vo dentro dos demais elementos do delito, principalmente da culpabilidade.
orientação segundo o princípio da vulnerabilidade,836 ou a declaração de sua
incompatibilidade para com o sistema penal.837 Situada como processo de comunicação dentro de uma prática social,
a conduta só terá significado se for compreendida sob um parâmetro de re-
Tendo em vista o caráter limitativo da culpabilidade, aqui se deve ferência pelo qual o agente possa orientar a sua execução. Este parâmetro de
tratar da vinculação concreta entre a conduta injusta e as condições pessoais referência engloba tanto os objetos materiais quanto uma regra ou norma de
do próprio agente. A culpabilidade desempenha, assim, o papel de filtrar orientação, como, por exemplo, as regras do código de trânsito. A inserção
as proibições e imposições normativas com vistas a proteger, em primeiro desse parâmetro de referência como elemento integrante da ação faz com que
plano, a liberdade pessoal, como pressuposto essencial da ordem jurídica. ele se estenda também à culpabilidade. A extensão desse parâmetro de referên-
Culpabilidade, portanto, não implica reprovação, nem declaração de in- cia à culpabilidade produz, por sua vez, quatro efeitos: a) impede a atribuição
compatibilidade para com a ordem jurídica, mas puramente um processo de de responsabilidade do agente pelo fato quando em função da subsistência de
avaliação para verificar se será possível desculpar a conduta do agente com elementos empíricos não se possa estabelecer um processo de comunicação com
a norma; b) amplia as margens de análise dos elementos empíricos em função
830. LISZT, Franz von. Das Deutsche Reichsstrafrecht, 1906, p. 137; RADNRUCH, Gustav. “Über den da prática social do agente e dos preceitos de garantia da ordem jurídica; c)
Schuldbegriff”, ZStW, 24 (1904), p. 345; BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, 1906, p. 180.
831. FRANK, Reinhard.Über den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 11. submete a norma a uma crítica constante, pondo à prova sua racionalidade
832. MEZGER, Edmund. Strafrecht, Ein Lehrbuch, 1931, p. 247. e legitimidade; d) submete o juízo de culpabilidade à demonstração de sua
833. RITLER, Theodor. Lehrbuch des österreichischen Strafrechts, Vol. I, 2ª edicão, 1954, p. 153.
834. HASSEMER/ELLSCHEID. “Strafe ohne Vorwurf”, Civitas, Jahrbuch für Sozialwissenschaften, 9, idoneidade para resolver o conflito social gerado pelo fato injusto.
1970, p. 27.
835. SCHEFFER, Uwe. Grundlegung eines kriminologisch-orientierten Strafrechtssystems, 1987, p. 138. Como a culpabilidade é examinada, normalmente, depois da análise
836. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 650 e ss. procedida na tipicidade e na antijuridicidade, a base sobre qual se executará
837. FABRICIUS, Dirk. “Culpabilidade e seus fundamentos empíricos”, tradução de JUAREZ TAVARES e
FREDERICO FIGUEIREDO, Direito e Psicanálise. Interseções a partir de “O Processo” de Kafka, Rio seu procedimento limitativo deverá ser, agora, a conduta injusta, pela qual
de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 13 – 42.
452 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 453

se podem extrair, especificamente quanto autor, as condições negativas da sustentável um juízo de culpabilidade pronunciado sobre o autor, sob a
punição. Isto quer dizer que o conceito de conduta, quando transportado afirmação de infidelidade ao direito, como pretende JAKOBS. A exigência
para o âmbito da culpabilidade, deverá ser tratado não apenas por suas ca- de conteúdo volitivo na conduta e a consideração de seu desdobramen-
racterísticas gerais, mas em relação à ação concretamente realizada sob a to em todo o processo de motivação e eleição que se segue constituem
perspectiva da violação à norma de cuidado. Esta vinculação do conceito de elementos delimitadores do juízo de culpabilidade. A questão não está,
conduta à infração à norma de cuidado, como característica de sua configura- assim, vinculada à demonstração de uma liberdade de vontade abstrata,
ção no injusto e sua extensão à culpabilidade, irá demarcar, em um primeiro mas à capacidade concreta de poder dirigir a conduta no sentido de um
momento, os limites da análise dos elementos que se destinam a pôr à prova objeto de referência, que, no caso, deve ser a norma de proibição ou de
todos os atos da intervenção penal, bem como impedir que o julgador passe determinação. Destarte, onde não houver possibilidade de se reconhecer e
a retratar o autor segundo sua conduta de vida ou seu caráter e, com base demonstrar essa capacidade de dirigir o processo causal por si mesmo, sem
nisso, afirmar sua responsabilidade pelo fato. interferência de estranhos, no sentido da orientação referencial existente,
Tendo em conta a exigência de que o julgador não possa invocar, em aqui, especificamente nos delitos culposos, no sentido da norma de cuidado
prejuízo do autor, elementos próprios de sua condição de pessoa, mas os e da evitabilidade do evento, não há que se falar de culpabilidade.
dados relacionados à sua conduta, deve-se estabelecer, como pressuposto A concepção de que o juízo de culpabilidade deve ser subordinado a
e limite de sua análise, que a conduta descuidada deve corresponder, em condições de sua limitação e não de sua afirmação tem, ademais, dois outros
toda sua extensão, em primeiro lugar, à estrutura da conduta humana em fundamentos. Um, jurídico, outro, criminológico. Juridicamente, o juízo
geral como ação comunicativa e volitiva, e não simplesmente como uma de culpabilidade não pode ser visto, exclusivamente, sob a ótica do direi-
conduta causal, final, social ou funcional. Isto implica que se faltar à con- to penal, mas também da ordem jurídica em sua totalidade. Isto significa
duta descuidada qualquer elemento do processo de comunicação já não que o juízo de culpabilidade deverá estar subordinado, em primeiro lugar,
se poderá pronunciar sobre seu autor o juízo de culpabilidade. Assim, em ao princípio da presunção de inocência, que implica, evidentemente, uma
virtude dessa característica da conduta como ato volitivo e comunicativo presunção de não-culpabilidade. Se a presunção de não-culpabilidade, hoje
dentro de uma prática social, os defeitos de motivação devem funcionar inserida positivamente no art. 5º, LVII, da Constituição, é a regra que deve
aqui em sentido negativo, quer dizer, na medida em que não seja possível ser necessariamente seguida, o juízo de culpabilidade só poderá ser limitativo
ao sujeito motivar sua conduta dentro de um processo de eleição, não se e não afirmativo. Se o juiz está vinculado à ordem jurídica e principalmente
lhe pode culpar pelo ato praticado. à Constituição, por força, inclusive, do que dispõe seu art. 102, que con-
Independentemente do que os funcionalistas tenham proposto, a ver- fere ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, está obrigado
dade é que, em uma prática social, não se pode descartar de apreciação o a submeter qualquer decisão ao enunciado do princípio da presunção de
conteúdo volitivo do ato realizado. Isto não conduz a se erigir em pressu- não-culpabilidade. Por outro lado, como também se insere na Constituição
posto indeclinável da culpabilidade o velho axioma do livre arbítrio, mas o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX), está vedado ao julgador proferir
subordinar a análise da culpabilidade a elementos materiais que não se o juízo de culpa contra o autor com base em outra fundamentação que não
resumam à satisfação de meras expectativas normativas. Não se pode decla- aquela que decorra estritamente dos enunciados legais. Estes são pressupos-
rar um sujeito culpado, atribuindo-se-lhe uma característica de maldade, tos que não podem ser desconsiderados no julgamento. A estes argumentos
que poderia resultar de um juízo de reprovação segundo a concepção nor- jurídicos se somam, ademais, aqueles de ordem criminológica. Todos sabem
mativa tradicional desde FRANK, ou do ânimo adverso ao direito, como que o processo penal, em que pese a todos os preceitos de garantia, é um
pretendem JESCHECK e WESSELS, que guarda, de qualquer forma, um instrumento extremamente delicado e perigoso, no qual se encontra campo
fundo moral incompatível com um Estado de direito. Igualmente não é fértil para as manifestações arbitrárias de poder, recalques, idiossincrasias e
concepções discriminatórias. Exatamente em face disso, o que se observa é
454 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 455

que o juízo de culpabilidade reflete, normalmente, a parcialidade política na identificação dos elementos que a compõem, sem produzir outro efeito,
e ideológica do julgador que, ao pronunciá-lo, transfere ao caso concreto como seria a imposição da pena, senão o de afirmação da responsabilidade
toda sua problemática individual e social, bem como sua posição dentro das do sujeito.
estruturas integrantes da sociedade, notadamente, nas classes sociais pre- Uma vez assentadas as bases da culpabilidade dentro da perspectiva
ponderantes nessas estruturas. Isto decorre não só da vinculação necessária limitativa e em função do conceito de conduta, podem ser aí compreendidos
entre indivíduo (juiz) e as estruturas, mas também e principalmente pela os seguintes elementos: a semi-imputabilidade, a possibilidade de reconhecer
natureza da estrutura da ordem jurídica, que está impregnada, pelo menos e atender ao cuidado objetivo, a previsibilidade e evitabilidade subjetiva do
indiretamente, de características e interesses das estruturas econômica, po- resultado, a consciência da antijuridicidade e a inexigibilidade de conduta
lítica e ideológica. ALESSANDRO BARATA sempre demonstrou como o diversa, elementos esses vinculados à conduta contrária à norma de cuidado.
processo se transforma em palco dessas manifestações, facilitado pela própria
característica da ordem jurídica de criar uma realidade normativa, paralela II. ESPÉCIES DE CULPA: CONSCIENTE E INCONSCIENTE
e diferenciada da realidade social e individual e como isso repercute direta- Tradicionalmente, em função da relação do agente com a violação do
mente na emissão do juízo de culpabilidade.838 Assim urge que, como medida cuidado no âmbito da culpabilidade, são reconhecidas duas formas de apa-
de garantia individual, decorrente do princípio da legalidade, se preserve ao recimento da culpa: consciente e inconsciente.
máximo a independência relativa da ordem jurídica, exigindo-se que o juiz
se valha exclusivamente de elementos jurídicos ao emitir o juízo de culpabi- Há culpa consciente não apenas quando o agente prevê o resultado e
lidade. Pode isto ser alcançado, é bem verdade que parcial e relativamente, espera que ele não ocorra, mas, sobretudo e basicamente, quando o agente
pelo princípio consagrado da exigibilidade de outra conduta por parte do está ciente de que, com sua atividade, lesa um dever de cuidado. A previsão
agente, ou seja, mediante a determinação de que o agente era capaz e poderia do resultado, por si só, não teria condições de caracterizar essa forma de
ter agido concretamente de conformidade com a proibição e determinação negligência; isto porque no processo de imputação o resultado não vale por
contidas no tipo de injusto. Essa exigibilidade de outra conduta, porém, si mesmo, mas unicamente como concreção de uma atividade que tenha
não esgota o juízo de culpabilidade. Em se tomando a culpabilidade em violado a norma de cuidado. A simples previsão do resultado não significa,
sentido negativo e em face do contexto normativo, também aqui se mani- assim, haver o agente atuado com culpa consciente. Em razão dessa estru-
festa o princípio da intervenção mínima, ou seja, não haverá culpabilidade, tura da culpa consciente, referente à realização do tipo de injusto com base
se a ordem jurídica, atendida em sua totalidade, tal como se faz no injusto, na lesão ao dever de cuidado, torna-se criticável a denominação culpa com
dispuser de outros meios, menos restritivos à liberdade individual e menos previsão, porque esta expressão não retrata fielmente o fato. Mais do que a
dessocializantes, capazes de solucionar o conflito que fora desencadeado com previsão, deve ser exigida para caracterização da culpa consciente o conhe-
a ação descuidada e a produção do resultado proibido. Como o juízo de cimento acerca da lesão ao dever de cuidado e o reconhecimento de que a
culpabilidade não depende da imposição de pena,839 será sempre possível conduta o está lesando.840
condicioná-lo a um juízo de idoneidade, pelo qual a ordem jurídica só pode Na culpa inconsciente, o agente não pensa poder realizar o tipo mediante
assegurar sua intervenção no conflito quando seus outros recursos não sejam a lesão ao dever de cuidado, pois isto lhe é desconhecido concretamente,
suficientes para recompô-lo. Nesse caso, o juízo de culpabilidade se resumirá apesar de conhecível. A característica básica dessa forma de culpa reside exata-
mente no fato de que o agente atua sem saber que sua atividade desatende ao
838. BARATA, Alessandro. “Das Theater des Rechts und die Dramaturgie des Lebens. Zur Zurechnung von cuidado objetivamente necessário a evitar o perigo ou a lesão ao bem jurídico.
Verantwortlichkeit im Strafprozeß”, in Das Recht und die schönen Künste, Heinz Müller-Dietz zum 65.
Geburtstag, Heike Jung (Organizadora), Baden-Baden 1998, p. 133-159. 1. A diferenciação entre essas duas formas de culpa parece remontar a
839. GÜNTHER, Klaus. Schuld und kommunikative Freiheit, Frankfurt am Main: Klostermann, 2005, p.
112: “Para o significado e fundamento do conceito de culpabilidade, a pena e suas funções ou fins não
representam mais qualquer papel, à medida que a autocompreensão dos cidadãos como pessoas de 840. A questão torna-se mais clara quando se observa que o conceito de previsão depende de juízo de ade-
direito se incorporem no papel de destinatários da norma”. quação, que se refere a critérios variados, como já se disse atrás (4.4.3.3.A).
456 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 457

FEUERBACH,841 que substituiu a antiga classificação dos “graus de atuar de outro modo, ou, como querem os funcionalistas, na capacidade
culpa” pelo critério da relação subjetiva entre agente e resultado, que concreta de motivação de conformidade com a norma, qualquer análise que
se tornou definitivamente consagrado na maioria das legislações, na se faça dessa capacidade de motivação não pode ser desenvolvida sem tomar
doutrina e na jurisprudência. Nessa diferenciação, o que pode ser dis- como ponto de apoio a configuração do tipo de injusto e sua estrutura nos
cutível não é propriamente a possibilidade de uma construção jurídica
fatos culposos. Admitiu-se já no setor da conduta, que não há como se
que implique a subsistência dessas duas formas de culpa, mas, sim, se
essa distinção, como é hoje proposta, implica necessariamente reco- questionar, em um primeiro momento, a compatibilidade entre a culpa e o
nhecer-se uma escala quantitativa e qualitativa entre elas, de tal sorte princípio da conduta voluntária, pelo fato de não se indagar naquele setor
que a culpa consciente representasse a mais grave e a inconsciente a acerca das características normativas dessa espécie de atividade punível.
menos grave das duas. Essa discussão tem acarretado duas posições Por outro lado, admitiu-se igualmente que tanto a negligência consciente
absolutamente antagônicas. Para uns, a culpa consciente é sempre mais quanto a inconsciente estão de conformidade com a estrutura normativa e
grave ou pode ser no caso concreto,842 enquanto que outros entendem com a ação típica. O problema reside, portanto, em se saber se ainda será
que as duas formas propostas não têm importância no sentido de au- possível atribuir-se pessoalmente ao autor a responsabilidade por haver
mentar ou diminuir o juízo de culpabilidade.843 Mais do que isso, o
realizado o fato injusto, com culpa inconsciente.
problema deve ser visto sob outro ângulo, ou melhor, pelo menos, em
primeiro lugar, sob o aspecto se a culpa inconsciente está ou não de O princípio da culpabilidade de vontade exige que se demonstre que ao
conformidade com o princípio da culpabilidade de vontade. agente era possível dirigir sua atividade segundo seus propósitos e motivos.
Para que se possa dar uma solução definitiva a esse problema, será Isto significa que todo aquele que não tenha essa possibilidade, quer porque
preciso saber se, efetivamente, o princípio da culpabilidade de vontade é seja inimputável, quer porque atue em total desconhecimento acerca da ne-
adequado a uma forma de vinculação do agente ao fato, na qual não se lhe cessidade da atuação cuidadosa, quer seja induzido por outras circunstâncias
possa reconhecer a presença de qualquer substrato psicológico. Ainda que impeditivas de tal atividade, não pode igualmente ser responsabilizado pes-
no âmbito da culpabilidade a doutrina se tenha fixado na capacidade de soalmente pelo seu ato, não age, pois, com culpabilidade.
841. FEUERBACH, Anselm Ritter Von, (Nota 8, p. 93), retrata a culpa consciente como culpa direta e a O núcleo da questão radica em se determinar se o agente que atua sem
culpa inconsciente como culpa indireta. A primeira estaria caracterizada quando a pessoa, embora com conhecer que age descuidadamente (por exemplo, o motorista cruza um sinal
intenção diversa de praticar um delito, tivesse realizado uma ação com consciência de sua vinculação
causal para com um resultado ilegal, possível ou provável e não se tivesse omitido de realizá-la ou de vermelho, sem perceber) pode ou não ser pessoalmente responsabilizado pelo
empregar os meios que lhe estavam disponíveis para evitá-lo. A segunda ocorreria quando uma pessoa,
sem consciência da punibilidade ou da perigosidade de uma ação produtora de um delito, tivesse rea- resultado decorrente desta conduta.
lizado voluntariamente essa conduta ou se omitido de fazê-la e se colocado em uma situação que não
pudesse ser retratada como dolosa ou como modalidade de culpa direta, mas cujo resultado tivesse ela Essa matéria tem implicado inúmeras indagações e muitas são as so-
podido prever ou lhe fosse devido prever, caso tivesse atuado com cuidado.
842. Esta é uma posição que tem já assento em CARRARA, Francesco. Programa de direito criminal, p. luções propostas para a sua sedimentação no direito penal. Parece que a
93, que considerava que o grau da culpa deveria decorrer de sua maior ou menor previsibilidade. Com
este pensamento, GARRAUD, Roger. Traité de droit pénal, p. 381; HAUS, J. J. Droit pénal, p. 236 e doutrina hoje dominante aceita a compatibilidade entre culpa inconsciente
RICCIO, S. Il reato colposo, Milano, 1952, p. 319, entre outros, consideram ser a culpa consciente a
mais grave de suas formas. No Brasil, a opinião geral se fixa em considerar o caso concreto, ou seja, não e culpabilidade. Não obstante as objeções à proposição de KOHLRAUSCH
tomar a culpa consciente, a priori, como mais grave: assim, por exemplo, BRUNO, Aníbal. Nota 19, de que a culpabilidade só é preenchida dolosamente e, assim, a culpa cons-
p. 93; NORONHA, Edgard Magalhães. Do crime culposo, p. 80. Deixando a matéria para o âmbito de
aplicação da pena, PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 306. ciente representaria uma forma especial de dolo de perigo, ficando, por via
843. Assim, HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, vol. I, tomo II, p. 202. JESCHECK-WEI-
GEND. Nota 7, p. 568, entendem apenas útil a diferenciação para determinar as fronteiras com o dolo de consequência, afastada do direito penal a culpa inconsciente, essa tese é
eventual. Com este último entendimento também BINAVINCE, Emilio. Die vier Momente der Fahr-
lässigkeitsdelikte, p. 142, e MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 534. Apesar de não reconhecer diferença ainda relevante, embora sob outro fundamento. Convém dizer que essa tese
qualitativa substancial entre a culpa consciente e inconsciente, entende ROXIN, Claus. Strafrecht, Nota da incompatibilidade entre culpa inconsciente e culpabilidade foi defendida
225, p. 940 et seq., que, na culpa inconsciente, só será possível, talvez, reconhecer um conteúdo mais
grave de culpabilidade, quando a forma grosseira de desatenção possa corresponder a uma situação em
que, caso o agente confiasse na não ocorrência do resultado, estivesse sua ação justificada. Seguindo
modelarmente por ARTHUR KAUFMANN, mas não prevaleceu na dou-
esta linha, assevera que em caso de violação normal do risco permitido a culpa consciente será mais trina. De qualquer modo, para se discutir acerca da compatibilidade entre
grave do que a culpa inconsciente, porque a representação de uma possível realização de um tipo penal
implicará um contramotivo mais intenso do que na hipótese em que o perigo dessa realização lhe fosse culpa inconsciente e culpabilidade de vontade será preciso fixar-se um critério
apenas reconhecível.
458 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 459

através do qual se possa, no caso concreto, afirmar ou não que o princípio se a ação perigosa fosse executada com algum grau de intensidade, de modo
de culpabilidade comporta essa forma de procedimento. A ligação entre a a se poder concluir com base nela que o agente percebera o sentido arrisca-
conduta negligente inconsciente do sujeito e a culpabilidade de vontade do dessa conduta e, assim, deveria esforçar-se para omiti-la ou só realizá-la
não tem por escopo unir aquela atividade à exigência de que toda conduta quando pudesse diminuir-lhe os riscos. É que, embora a conduta, em seus
seja voluntária. Isto já está demonstrado: a atividade culposa, consciente ou contornos essenciais, seja volitiva, o fato de o agente não haver percebido, no
inconsciente, é voluntária. O que falta na última é a consciência do agente de caso concreto, que era o condutor de uma atividade arriscada diminui, con-
que realiza um tipo de injusto. Será que o agente que atua sem consciência sideravelmente, em face dos apelos normativos, sua capacidade de motivação
de que lesa um dever de cuidado e, consequentemente, preenche um tipo de ou eleição de outra conduta, a qual só poderia ser levada em consideração
injusto, age culpavelmente? Esta é, enfim, a indagação que resta. caso houvesse um dado concreto mais evidente que pudesse fornecer ao
Procurando equacionar a resposta a essa pergunta dentro da teoria do agente elementos empíricos pelos quais, por seu próprio esforço, pudesse
delito, abrem-se dois caminhos metodológicos: ou a solução será dada por reagir de outro modo. Por exemplo, se o motorista ultrapassa inadvertida-
meio de critério que identifique normativamente a real direção de uma ati- mente um sinal vermelho e causa um acidente, porque a luz vermelha não
vidade lesiva ao dever de cuidado à possível dirigibilidade de tal atividade, apresentava uma intensidade suficiente para indicar-lhe a vedação de passar,
segundo as determinações impostas no caso concreto, ou por meio do trata- está claro que aqui se produziu uma violação a uma norma de cuidado, mas
mento adequado ao erro de proibição. Na primeira hipótese, a questão passa em um sentido em que seu atendimento estava seriamente comprometido,
a constituir matéria de ordem prática e de política criminal. Na segunda, um ou seja, conforme o desenrolar do trânsito de veículos, poder-se-ia dizer que
problema concreto com base na real capacidade do agente de poder entender aqui se verificou violação da norma de cuidado de mínima intensidade, o
in casu a determinação legal e, assim, saber que age contra ela. que conduz a descartar a culpabilidade do sujeito, em face de já não se poder
estabelecer um juízo de atribuição de responsabilidade, porque lhe seria im-
Uma vez que a culpabilidade é vista como culpabilidade jurídica, tendo possível eleger outra conduta, parando no sinal. Diverso, está claro, seria o
por base o tipo de injusto, portanto, submetida a uma estrutura delimitativa tratamento da culpa consciente, em que o motorista vê o sinal e não pode
sob o pressuposto de lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos, ao legislador dizer se está vermelho. Esta condição adversa o obrigaria, então, a passar o
só será lícito criar critérios de solução dos problemas normativos desde que cruzamento com maior cuidado. Quer dizer, pois, que a afirmação acerca
isto não importe a negação da estrutura da conduta, nem a desconsideração da compatibilidade da culpa inconsciente com o princípio da culpabilidade
do fim da norma e dos seus limites. só poderia ser admitida quando ocorresse uma grave violação da norma de
Nesta análise devem-se reunir, pelo menos, dois elementos fundamen- cuidado, aferida conforme a intensidade do risco para o bem jurídico. En-
tais: o caráter pessoal de atribuição do juízo de culpabilidade e a possibilidade tretanto, a valer essa argumentação, sua culpabilidade estaria, na verdade,
de direção da atividade conforme o dever. Já que no próprio tipo de injusto presumida tão só com a grave violação da norma de cuidado, o que implica
se compreendeu que o resultado lesivo ao bem jurídico só pode ser imputado uma autêntica forma de responsabilidade objetiva. A culpa inconsciente é
ao agente depois de submetido ao crivo dos critérios nomológicos e normati- incompatível, portanto, com o princípio da culpabilidade penal, resolven-
vos, nada obsta a que se aplique aqui o mesmo critério, só que, em vez de se do-se no âmbito da responsabilidade civil.
referir a um juízo de adequação da conduta para com o resultado, se efetue Para se entender essa solução, tem-se que levar em conta que o princípio
direta e concretamente sobre o autor individual. de culpabilidade, como dito antes, não constitui um elemento a fundamentar
Feito isto, observa-se que na culpa inconsciente há um decréscimo na a pena, mas um elemento negativo da pena, quer dizer, a pena só poderá ser
capacidade de motivação direta do agente em face do perigo para o bem imposta quando descartadas todas as possibilidades de exclusão do juízo de
jurídico. Portanto, diante desse decréscimo, torna-se impossível emitir um culpabilidade. E uma das proposições para um princípio negativo de culpabi-
juízo de atribuição pessoal de responsabilidade. Este só poderá ser efetuado lidade deve residir justamente em que a imputação pessoal do fato a alguém
460 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 461

será sempre excluída, quando a base empírica de seus elementos não esteja ao dever de cuidado, sobretudo, ao conteúdo de atenção einformação. O que
demonstrada de tal forma clara de que o próprio agente tenha a capacidade vale não é o fato do menosprezo à ordem jurídica, mas a intensidade da lesão
de sobre ela dirigir sua atividade. Caso isto não se dê, a atuação estatal é ile- ao dever de cuidado, nada mais.844
gítima, porquanto estará instituindo como fundamento da coação um dado Por outro lado, se estão hoje praticamente abandonadas no direito
meramente simbólico da realidade empírica ou sem possibilidade de refutação. penal as antigas referências aos “graus da culpa” (lata, leve, levíssima), vi-
Mesmo que se admita a culpa inconsciente como compatível com o gorantes para o direito civil845 e que estava inseridas na antiga redação da
princípio da culpabilidade de vontade, como faz a doutrina dominante, isso Parte Geral do Código Penal (art. 42),846 isto não obsta a que se proceda a
não impede no caso concreto o reconhecimento do erro de proibição. Para uma avaliação da intensidade da lesão à norma de cuidado para estabelecer
os casos em que o agente efetivamente não tinha condições de tomar conhe- os limites do alcance do tipo no âmbito do injusto e, consequentemente,
cimento de que agia de modo contrário ao dever de cuidado, a possibilidade impedir que o juízo de culpabilidade seja emitido abstratamente. Buscando
do conhecimento do injusto já está também praticamente comprometida. uma forma de concreção desse juízo, justamente na medição da pena a ser
O reconhecimento da compatibilidade entre culpa inconsciente e aplicada ao agente, o art. 59 do Código Penal vigente, ao se referir apenas
culpabilidade permite o retorno à discussão acerca da influência das duas à sua culpabilidade e não mais aos graus da culpa ou à intensidade do dolo,
espécies de negligência sobre a gradação do juízo pessoal de responsabi- como constava da redação anterior, não impediu que se possa também pro-
lidade. Podemos encerrar a discussão, salientando o seguinte: ainda que ceder a uma limitação da culpabilidade a partir da avaliação da forma e do
se afirme a relevância penal da culpa inconsciente, a razão deve ser dada, modo de execução da ação descuidada, em face das exigências concretas
aqui, em parte às ponderações de ROXIN, no sentido de a culpa consciente de cuidado. Por exemplo, o motorista que, diante da saída de uma escola,
constitui uma forma mais grave de culpa do que a negligência inconsciente, dirige em velocidade adequada, mas deixa de empregar a buzina ou fazer
porque nela há a presença, ademais, de elementos empíricos mais claros, de sinais luminosos para alertar os transeuntes e em face disso vem a provocar
modo a proporcionar ao agente uma eleição acerca da continuidade ou não um atropelamento deve ter sua culpabilidade diminuída em face da menor
de sua conduta. Isto não obsta, está claro, de também se excluir o próprio gravidade da lesão à norma de cuidado.
tipo de injusto do delito culposo caso a conduta represente um perigo não III. A CAPACIDADE DE CULPABILIDADE
significativo para o bem jurídico.
Não importa, ademais, para classificar a culpa consciente como mais 1. O CONCEITO DE IMPUTABILIDADE NA NEGLIGÊNCIA
grave, o fato de que, muitas vezes, o injusto se apresente com o mesmo grau De acordo com nova sistemática agora adotada, a imputabilidade não
de intensidade, tanto na culpa consciente quanto na culpa inconsciente. Isto é deve integrar mais a culpabilidade, mas sim o próprio injusto, como sua
perfeitamente possível, mas o juízo de culpabilidade, ainda que tenha por base etapa inicial. Portanto, toda a temática sobre esse tema já foi antes tratada
o fato injusto, em um sistema de garantias só está adstrito à sua gravidade para no âmbito do injusto. Assim, resta aqui unicamente o exame dos casos de
ser afirmado, mas não para ser negado, quer dizer, o fato de o injusto apresen- semi-imputabilidade ou capacidade diminuída de culpabilidade. Igualmente,
tar-se mais grave ou menos grave só interessa à culpabilidade para, neste último devem ser tratadas na culpabilidade as questões relativas à actio libera in causa,
caso, diminuir as chances de que esse juízo possa prevalecer. Se no injusto a 844. Na primeira edição deste livro, havia eu optado por considerar as formas de negligência consciente e
lesão à norma de cuidado for menor, isto terá repercussão na culpabilidade, a inconsciente como irrelevantes, reconhecendo a ambas a mesma gravidade. Hoje, depois de refletir
sobre a função do direito penal em um Estado de direito democrático, passei a defender outra opinião,
ponto de excluí-la; mas se for maior isto não conduz à sua majoração, porque como se pode ver no texto.
845. No direito civil, por exemplo, GOMES, Orlando. Obrigações, p. 309; também MIRANDA, Pontes de.
não se trata, aqui, de justificar a imposição da pena, senão de limitá-la. Nem se Tratado de direito privado, 1971, vol. 23, p. 72: “A culpa ou é grave, lata culpa, ou leve, levis culpam.”
pode falar de que há casos em que o não-reconhecimento do perigo (culpa in- É interessante notar, outrossim, que também no direito civil os autores têm utilizado a palavra “negli-
gência” no sentido abrangente da imprudência e imperícia; assim, GOMES, Orlando. ob. cit., p. 308 et
consciente) implica menosprezo à ordem jurídica e desconsideração reprovável seq. e DIAS, Aguiar. Da responsabilidade civil, 1954, vol. I, p. 122.
846. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, vol. I, tomo II, p. 202.
462 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 463

à emoção ou paixão e à embriaguez, que não se limitam aos enfoques de uma b. o agente se põe em estado de inimputabilidade ou de ausência de
teoria da ação, mas sim a um juízo de valor relacionado aos fundamentos de ação por meio da lesão a um dever de cuidado (embriaga-se, por
determinação da culpabilidade. exemplo, porque não atende ao cuidado de parar de beber) e vem a
causar o resultado proibido mediante a infração também a um dever
2. A CAPACIDADE DIMINUÍDA DE CULPABILIDADE de cuidado no momento de plena capacidade (no mesmo exemplo,
depois de embriagar-se, se omite de prestar socorro a filho menor
Atendendo à regra do art. 26, parágrafo único, atuará com capa- que caíra na piscina, deixando-o morrer);
cidade diminuída de culpabilidade culposa o agente que, em virtude de c. o agente se põe em estado de inimputabilidade ou de ausência de
perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ação voluntariamente e vem a causar um resultado sem que houvesse
ou retardado, não era plenamente capaz de compreender a ilicitude de antes infração ao dever de cuidado: alguém se embriaga por prazer,
seu comportamento de violação da norma de cuidado ou de determinar- é conduzido à casa por seu vizinho que, no meio do caminho, lhe
-se de acordo com esse entendimento. A expressão “perturbação mental”, pede para dirigir, já que está interessado em dormir no banco traseiro
empregada pelo código, é traduzida hoje pela Organização Mundial da do carro, vindo a resultar dessa sua direção um acidente no qual o
vizinho sofre graves lesões.
Saúde sob o termo “transtorno mental” (CID-10), o qual também engloba
d. o agente se põe em estado de inimputabilidade ou de ausência de
deficiências de desenvolvimento ou retardamento.
ação voluntariamente e vem a causar um resultado que já estava
3. A ACTIO LIBERA IN CAUSA anteriormente incluído em seu propósito: alguém se embriaga com
o propósito de perder suas inibições para matar e acaba nesse estado
É igualmente válido para os fatos culposos o enunciado de que a im- cometendo um homicídio.
putabilidade deve estar presente no momento em que o agente pratica o fato
Nessas hipóteses só haverá de se falar de negligência ou culpa nas duas
descuidado. Este princípio sofre, porém, a exceção da chamada actio libera in
primeiras, ainda dependendo da imputação do resultado. Na terceira hipó-
causa, cuja teoria procura estabelecer um critério diferenciado de determina-
tese, o fato é atípico, porque não houve ação culposa, por se tratar de uma
ção da imputabilidade, em casos em que o autor iniciou ou pôs em marcha
nítida situação de heterocolocação em perigo, com a exclusão da imputação.
o processo causal, quando se encontrava em estado de plena consciência e
Na última hipótese, o fato é doloso.
autodeterminação, mas que só alcança relevância típica quando tenha já per-
dido a imputabilidade. Pode este fato ocorre também quando o agente perde (2) A DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA
a capacidade física de ação no momento em que se realiza o tipo de injusto.847 Não é pacífico, porém, o fundamento da actio libera in causa, nem tam-
(1) AS HIPÓTESES METODOLÓGICAS pouco há concordância entre os autores quanto à sua legitimidade no direito
penal. Uma parte da doutrina pretende caracterizar a actio libera in causa
Para melhor equacionar as situações que sugerem o emprego da actio dolosa a partir do momento em que o agente se tenha colocado em estado
libera in causa, convém distinguir a seguinte série de casos: de incapacidade (modelo do tipo).848 Outra parte entende que o importante
a. o agente se põe em estado de inimputabilidade ou de ausência de não é a relação entre o agente e o estado de incapacidade, mas, sobretudo,
ação voluntariamente e vem a causar um resultado, porque, no sua vinculação com o resultado concreto, quer dizer, a referência deve-se
momento de plena capacidade, infringe um dever de cuidado: a
enfermeira toma uma dose excessiva de sonífero, com o fim de
fixar no momento em que a ação é praticada, já estando o agente em estado
adormecer e se esquece de que deveria acordar em hora certa, para de incapacidade (modelo de exceção).849 Estas duas teorias se defrontam,
ministrar medicamento num paciente, vindo este a morrer; alguém na verdade, em função de empregarem metodologia distinta no tratamento
que se embriaga por prazer, sabendo que neste estado se torna
violento, esperando, porém, que nada aconteça; 848. Assim, GROPP, Walter. Strafrecht, AT, 2ª edição, 2001, p. 256; ROXIN, Claus. Nota 225, p. 782; DE-
VESA, Rodríguez. Derecho penal español, pg, p. 383.
849. Assim, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 447; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 133. Na doutrina
847. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 446. italiana, FIANDACA-MUSCO. Diritto penale, pg, 4ª edição, 2001, p. 312.
464 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 465

do fato. A primeira delas (modelo do tipo) pretende regredir a análise da in- da pela própria estrutura dos respectivos tipos de delito, os quais, em função
fração à norma de cuidado a um momento no qual o agente ainda não teria de sua finalidade protetiva, abarcariam tanto as ações neles descritas quanto
realizado a conduta efetivamente perigosa para o bem jurídico. A segunda as ações precedentes, que lesem a pretensão de proteção dos bens jurídicos;853
(modelo de exceção) tem o propósito de trabalhar com o momento em que d) para STRENG e HERZBERG, a norma que disciplina a inimputabilidade
essa conduta perigosa concretamente se execute, ainda que o agente, nesta comporta uma extensão quanto à caracterização do momento do fato, de
ocasião, já não tenha mais a capacidade de entender e de se autodetermi- modo a também nele compreender as ações precedentes.854
nar. A denominação dada ao primeiro modelo decorre do fato de que seus Nenhuma das duas correntes pode preencher, entretanto, de modo
partidários se fixam na extensão da configuração do tipo, como base para satisfatório, os pressupostos de afirmação do princípio da culpabilidade de
se proceder ao juízo de responsabilidade. Com isso justificam a legalidade vontade. O modelo de exceção, que se orienta pelo momento da execu-
de sua postura, quer dizer, trabalham no sentido de afirmar que a conduta ção do delito em estado de incapacidade, enfrenta um obstáculo quase que
antecedente (colocar-se em estado de embriaguez, por exemplo) é típica. O intransponível, qual seja, o de justificar a emissão de um juízo de respon-
tipo, então, passa a ter aqui uma conceituação extralegal. A denominação do sabilidade pessoal incidente sobre uma pessoa que, naquele momento, era
segundo modelo já se apoia em preceito de direito costumeiro, pelo qual se incapaz de se motivar de conformidade com a norma. Por sua vez, o modelo
poderia abrir uma exceção ao princípio de que a imputabilidade deve estar do tipo é também insustentável, primeiro, porque elabora, para esse efeito,
presente no momento da execução do fato. O costume, no caso, recomen- um conceito de tipo que é incompatível com o princípio da legalidade e,
daria um juízo de culpabilidade em função de um princípio de justiça ou de depois, na medida em que pretende, em uma de suas variantes, antecipar o
uma política criminal de proteção de bem jurídico.850 início da execução do delito para uma fase na qual não se pode demonstrar
Com vistas a melhor equacionar a relação entre tipo e imputabilida- empiricamente qualquer perigo de lesão ao bem jurídico. Por fim, a solução
de, no primeiro modelo (modelo do tipo) se poderiam construir quatro pela autoria mediata igualmente não satisfaz; cria uma figura imaginária de
variantes: a) para SCHRÖDER, por exemplo, o juízo se deve fixar na ação autor atrás do autor, baseada em meras suposições psicológicas e passa a tra-
precedente, entendendo, assim, que o fato a ser avaliado é aquele que o agente balhar sob o pressuposto de uma pluralidade de agentes, quando na verdade
realiza ao se colocar em estado de incapacidade, não o fato que irá executar se trata de agente único.855 Atendendo a estas dificuldades, alguns autores
em momento posterior; isto porque a precedente autocolocação em estado vem repudiando o emprego da actio libera in causa, optando por excluí-la
de incapacidade representaria o início de realização do fato punível poste- do direito penal ou limitá-la aos casos de aplicação de um tipo especial de
rior;851 b) para ANÍBAL BRUNO, JAKOBS, SCHLÜCHTER, SCHILD delito de perigo, subordinado a uma condição objetiva de punibilidade.856
e ROXIN, entre outros, a actio libera in causa expressa uma modalidade de
(3) CONCLUSÃO SOBRE A ACTIO LIBERA IN CAUSA
autoria mediata. O autor faz dele mesmo, no momento em que se encontrava
com plena capacidade, um instrumento inimputável, o qual irá realizar a ação Diante dessas incertezas e da ausência de uma solução legal imediata,
posterior, atendendo ao plano que lhe fora, anteriormente, por ele mesmo o melhor caminho é repudiar a teoria da actio libera in causa e excluí-la do
traçado;852 c) para SCHMIDHÄUSER a actio libera in causa estaria legitima-
853. SCHMIDHÄUSER, Eberhard. Die actio libera in causa–ein symptomatisches Problem der deutschen
850. É o que defendem, no fundo, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 447, e a doutrina italiana, por exem- Strafrechtswissenschaft, Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1992, p. 27.
plo, FIANDACA-MUSCO. Diritto penale, pg, 4ª edição, 2001, p. 312, e PADOVANI, Tullio. Diritto 854. STRENG, Franz. “Der neue Streit um die actio libera in causa”, JuristenZeitung, 1994, p. 709; HERZ-
penale, 5ª edição, 1999, p. 250 et seq. BERG, Rolf Dietrich. “Gedanken zur actio libera in causa: Strafreie Deliktsvorbereitung als Begehung
851. SCHRÖDER, Horst. “Verbotsirrtum, Zurechnungsunfähigkeit, actio libera in causa”, Goltdammer´s Ar- der Tat”, Festschrift für Spendel, 1992, p. 203.
chiv nº 57, p. 297. Esta mesma conclusão era defendida na doutrina italiana por MANZINI, Vincenzo. 855. Crítico quanto às soluções para os desvios do dolo, MARTINS, Antonio. Versuch über die Vorsatzzure-
Tratatto di diritto penale italiano, vol. I, Torino: Utet, 1926, p. 616. chnung am Bespiel aberratio ictus, 2008, p. 52.
852. BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 53; DOLD, Dennis. “Die actio libera in causa als Sonderfall der mittelba- 856. HETTINGER, Michael. Die “Actio libera in causa”–Strafbarkeit wegen Begehungstat trotz Schuldun-
ren Täterschaft”, GA, 7/2008, p. 427; JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 506; SCHLÜCH- fähigkeit? : eine historisch-dogmatische Untersuchung, Berlin: Duncker & Humblot, 1988, p. 436;
TER, Ellen. “Zur vorsätzlichen actio libera in causa bei Erfolgsdelikten”, Festschrift für Hirsch, Berlin: NEUMANN, Ulfrid. Zurechnung und Vorverschulden: Vorstudien zu einem dialogischen Modell stra-
de Gruyter, 1999, p. 345 et seq.; SCHILD, Wolfgang. “Die Straftat als actio libera in causa”, Festschrift frechtlicher Zurechnung, Berlin: Duncker und Humblot, 1985, p. 52 et seq. Bastante crítico e repudian-
für Triffterer, Wien: Springer, 1996, p. 203 et seq.; ROXIN, Claus. Strafrecht, Nota 225, p. 783. do integralmente a actio libera in causa, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 704 et seq.
466 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 467

direito penal. Há inúmeras razões para isso. Primeira: normalmente, não há esteja violando uma norma de cuidado. Para se aferir se houve ou não essa
possibilidade de se estabelecer uma vinculação empírica entre a colocação violação será preciso se fazer uma análise minuciosa do contexto no qual isso
em estado de inimputabilidade e o fato consequente, porque para tanto seria ocorreu. Só com base no contexto é que se pode chegar a uma conclusão
necessário que o agente mantivesse um domínio do processo causal desde o de que agente agira com culpa ou, até mesmo, sem qualquer culpa. Caso se
estado antecedente até a consecução do resultado, o que envolveria, princi- conclua que o agente tenha atuado com infração a uma norma de cuidado,
palmente nos delitos culposos, um reconhecimento do objeto de referência por exemplo, que ao se colocar voluntariamente em estado de incapacidade
de sua conduta como conduta descuidada, fato que seria extremamente du- sabia que mais tarde deveria dirigir um veículo e não se dispôs, previamen-
vidoso em caso de plena inimputabilidade. Segunda: no ato consequente te, a passar as chaves do veículo a outra pessoa, essa forma de violação da
não será possível afirmar-se o dolo do agente, pois este pressupõe, para sua norma de cuidado condiciona o modo posterior de sua atividade. Assim,
imputação, que o agente dirija a atividade durante todo o processo de exe- se essa violação se tiver dado por culpa consciente, a ação posterior não lhe
cução com vistas a lesar ou pôr em perigo o bem jurídico. Terceira: o que na pode ser imputada dolosamente, porquanto não será possível proceder-se a
verdade o agente está criando ao se colocar em estado de inimputabilidade é uma vinculação entre a violação consciente da norma de cuidado e a ação
um estágio de preparação do delito, que só pode ter relevância se puder ser consequente dolosa, quando se verifique, justamente, um decréscimo na sua
demonstrado que sem ele o delito não se realizaria. capacidade de entendimento e autodeterminação.
Contudo, para os autores que admitem a actio libera in causa, deve-se Em se tratando de culpa inconsciente, torna-se impossível a caracte-
ponderar mais o seguinte: só poderia haver actio libera in causa dolosa nos rização da actio libera in causa. Para se estabelecer uma ligação entre a ação
casos claros em que o agente se coloque dolosamente (voluntariamente) em precedente e o fato posterior praticado e não se deixar seduzir pela mera
estado de incapacidade e se tenha ligado, também dolosamente, ao resultado responsabilidade objetiva, será preciso que estejam preenchidos dois pressu-
produzido.857 Por outro lado, se o agente se colocar voluntariamente (dolo- postos: a) a violação da norma de cuidado deve ser efetivada de modo grave
samente) em condição de incapacidade (o agente quer se embriagar), mas e manifesto, tanto em momento anterior quanto no momento da prática do
não ordenar sua conduta especificamente para o cometimento do fato – ou fato; b) o fato posterior deve ser previsto pelo agente segundo suas condições
seja, apesar de querer embriagar-se voluntariamente, o agente não vincula pessoais e em face da gravidade da infração à norma de cuidado por ele co-
essa vontade a um cometimento doloso do fato posterior –, a única solução metida. Como o fato posterior deve ser, assim, previsto e não simplesmente
será classificar o fato como culposo e não doloso, porque sempre subsiste a previsível ao agente em um momento anterior, ou seja, no momento em que
perspectiva de que o agente atue com a esperança de que nada vá ocorrer, o este se coloca em estado de inconsciência, isto só lhe poderia ser apreciável
que lhe deve beneficiar pelo princípio in dubio pro reo. caso a violação à norma de cuidado fosse grave. Caso a lesão à norma de
Já quanto aos delitos culposos, caso se admita a actio libera in causa, cuidado seja leve, não é de se concluir que o agente possa ligar-se à execução
esta deverá condicionar-se à verificação da forma e do modo como a ação da ação posterior, quer dizer, que tenha previsto que realizaria, posterior-
do agente viola a norma de cuidado no momento em que se coloca em si- mente, uma conduta culposa. Essa conclusão é a única que se pode inferir
tuação de incapacidade, e também como isto se reflete, concretamente, na dessa duplicidade de infrações à norma de cuidado, realizadas em momentos
condução posterior de sua atividade. Isto quer dizer que o simples fato de o distintos, isto é, antes e depois do fato. Se o agente deve ser capaz de prever
agente se colocar em estado de incapacidade não implica, desde logo, que já o fato em dois momentos distintos, será preciso que as condições pelas quais
se orienta se apresentem de tal forma clara e manifesta, que lhe seja possível,
sem maior esforço, pronunciar um duplo juízo de que o fato iria realizar-se
857. Admitindo a actio libera in causa nos delitos culposos, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 448; RO-
XIN, Claus. Nota 225, p. 783; STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 227. Entre nós, pondera, con- em um momento posterior, em virtude da violação de norma de cuidado,
tudo, BRUNO, Aníbal. Nota 19, p. 52: “A doutrina tem de manter-se fiel à exigência de um momento
de culpabilidade, isto é, de dolo ou culpa, na fase de imputabilidade, em relação ao resultado típico, e ocorrida em um momento anterior. Em se tratando de infração leve, o cálculo
não só em referência ao ato de tornar-se inimputável, para não transformar o instituto em uma espécie
do velho versari in re illicita, intolerável sempre”. de prognósticos é meramente hipotético, o que não pode conduzir a uma
468 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 469

afirmação de que o resultado lhe fosse, efetivamente, previsto. embriaguez só exclui a imputabilidade quando for completa e resultar de
Por outro lado, como a actio libera in causa diz respeito não à fun- caso fortuito ou força maior. Nos demais casos, de embriaguez preordenada,
damentação da culpabilidade em geral, mas tão-só da imputabilidade, o voluntária ou culposa, a imputabilidade se deve manter inalterada. Por força
problema da imputação do resultado deve ser visto sob prisma subjetivo, da dubiedade da redação do código, que induz a uma diferenciação entre
ainda que dentro de um quadro geral. Questiona-se, assim, se aquele agente embriaguez completa e incompleta, não é incomum se claudicar na exata
tinha a capacidade de prever e evitar o fato, não se efetivamente previu ou interpretação de seus dispositivos. O que se pode extrair é que o código
teve a possibilidade de prevê-lo e evitá-lo. A previsão deve também se estender acolhe a actio libera in causa, inicialmente, no caso de embriaguez preorde-
a todas as circunstâncias do fato. Em crimes qualificados pelo resultado, só se nada, isto é, quando o agente se embriaga com o propósito determinado de,
poderia admitir a actio libera in causa, quando o agente atuasse pré-ordena- nesse estado, cometer um delito. Neste caso, parece que a teoria adotada é a
damente para a prática do delito doloso e incluísse, nessa sua determinação, da autoria mediata para dizer que o agente fez dele mesmo um instrumento
igualmente como prevista, a consequência mais grave, quer dizer, o dolo e para a prática do delito. Nas hipóteses de embriaguez voluntária ou culposa
a negligência devem estender-se, antes do ingresso em situação de incapaci- há necessidade, porém, de se proceder a algumas ponderações.
dade, respectivamente, ao tipo fundamental e ao resultado mais grave. Isto Na embriaguez voluntária, o agente se embriaga porque quer se embria-
tudo, no entanto, é fruto de pura argumentação, porque, na realidade, como gar. Isto não conduz, entretanto, a uma automática presunção de que, caso
se disse, não há possibilidade de se estabelecer uma vinculação empírica venha a praticar em estado de embriaguez um delito, o faça dolosamente.
entre o momento anterior de se colocar em estado de inimputabilidade e o Pode perfeitamente ocorrer que a ação posterior do agente demonstre exa-
momento posterior de execução do fato. tamente o contrário. Por exemplo, o ébrio dirige devagar e até mesmo com
atenção, mas acaba não visualizando a placa indicativa do sinal de parada
Relativamente ao questionamento do erro, havendo actio libera in
obrigatória e vem causar um acidente no qual perece o motorista do outro
causa, o problema da evitabilidade ou inevitabilidade deve ser transportado
veículo. Em virtude do modo de conduzir (devagar e com atenção) e da
à época em que o autor, em estado consciente e capaz, põe em marcha a ação
forma como foi objetivamente provocado o acidente (por não visualizar o
descuidada.858 Em face de a estrutura do tipo dos delitos culposos se fixar,
sinal de parada obrigatória), se poderá concluir que o agente, ao embriagar-
fundamentalmente, na lesão ao dever de cuidado e na imputação objetiva
se, não queria produzir uma ação dolosa posterior. Por outro lado, para que o
do resultado, é irrelevante, na negligência, o erro de tipo, pois o que se lhe
fato lhe seja imputado a título de dolo é preciso que o fato consequente seja
poderia consignar integra a problemática da realização objetiva do tipo, di-
por ele querido, ou assumido por ele o risco de sua produção no momento
versamente do que ocorre nos delitos dolosos. Mais uma vez a adoção da
em que se põe em estado de incapacidade. Neste aspecto, a diferença entre
teoria actio libera in causa enfrenta uma dificuldade: como apreciar a questão
esta forma de embriaguez e a preordenada reside em que, nesta última, o
do erro sem antes concluir que o fato foi doloso e não culposo.
agente deve atuar sempre com dolo direto, porquanto inclui o resultado no
4. A EMBRIAGUEZ âmbito de sua representação e vontade como sendo seu objetivo final.
As regras acima expostas devem ser aplicadas também à particular si- No que toca à embriaguez culposa, a primeira conclusão é de que
tuação do tratamento desfrutado no direito brasileiro pela embriaguez. A o fato posterior não poderá ser imputado ao agente dolosamente. Disto
fim de não se cair na mera responsabilidade objetiva ou em um fundamento não resulta, porém, que necessariamente deva haver culpa. É perfeitamen-
moral extrajurídico, é preciso assinalar, com algum rigor, os limites exatos te possível que o agente se tenha embriagado culposamente e não venha
da norma geral contida no art. 28, II, do Código Penal. a cometer um fato culposo. Neste particular, será necessário trabalhar-
De conformidade com os arts. 28, II, e 61, II, l, do Código Penal, a se também com o método do chamado modelo de exceção, ainda que de
modo diferenciado, quer dizer, como não se pode valer, aqui, da teoria da
858. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 441. autoria mediata e nem se considerar que o simples fato de se embriagar
470 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 471

culposamente constitua o início de realização do delito praticado pos- No direito brasileiro, o tratamento da embriaguez reflete, de certa
teriormente em estado de incapacidade, é indispensável verificar como, forma, a preocupação do legislador de 1940 de valer-se da norma penal
objetivamente, fora violada a norma de cuidado tanto na ação precedente como instrumento ideológico de conformação de costumes, o que não foi
quanto na consequente. Se, por exemplo, o agente se embriagar culposa- alterado com a reforma de 1984, embora as condições objetivas não indi-
mente, tendo, nesse momento, a consciência de que está de carro e de que cassem a necessidade de uma política criminal tão drástica. Antes disso,
terá de dirigir ainda que sem condições para tanto, aí nada se vislumbra. inclusive, o mesmo legislador que promulgou a reforma de 1984 já havia
O fato é até então juridicamente irrelevante, mas será indicativo, porém, se manifestado mais benevolamente com relação ao tratamento do depen-
de uma grave violação à norma de cuidado no momento em que o agente dente de drogas, para possibilitar a exclusão da imputabilidade, quando,
se põe a dirigir, o que poderá autorizar a previsão de que possa vir a co- em razão dessa dependência, não fosse possível ao agente entender o caráter
meter um acidente e um resultado proibido se prosseguir na condução. ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento (Lei
Caso, porém, o agente se tenha embriagado culposamente, mas sem estar nº 6.368/76, art. 19), critério que prevalece até hoje, apesar de inúmeras
obrigado a dirigir, até mesmo porque viera sem carro, e, posteriormente, reformas legislativas, cada uma delas mais rigorosa no tratamento penal
vem a dirigir, porque um de seus amigos insiste para que o faça, tem-se o (Lei 11.343/2006, art. 45) O rigorismo do tratamento dado à embriaguez
seguinte: da conjugação de ambas as atividades se poderá concluir que da no Código Penal não ficou, é certo, incólume às críticas da doutrina. É
embriaguez culposa não seria previsível um resultado proibido naquelas conhecida a polêmica travada entre NELSON HUNGRIA, que defendia,
condições, isto é, de provocar um acidente de trânsito com vítima, o que por um lado, a disciplina legal, e BASILEU GARCIA, que a atacava, por
exclui, portanto, o delito culposo que daí poderia derivar. Está claro que, outro, enfatizando sua desnecessidade e impropriedade.859
neste exemplo, não é de se excluir de plano a questão da responsabilidade Apesar dessas críticas, o panorama atual conduz a um tratamento ainda
daquele que tenha fornecido o carro para que o ébrio conduzisse. Este é mais rigoroso da embriaguez, principalmente quando se refira à direção de
um problema que se resolve com os dados normais do delito culposo veículos automotores. 860 Depois de várias reformas, o Código de Trânsito
Já no que diz respeito à embriaguez resultante de caso fortuito ou força
859. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, vol. I, tomo II, p. 386 et seq. Mais recentemente,
maior, duas questões devem ser previamente resolvidas. A primeira se refere FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 7ª edição, S. Paulo: RT,
à característica da chamada embriaguez completa; a segunda ao que se deva 2001, p. 468, considera a disciplina da embriaguez voluntária ou culposa, contida no art. 28, II, do
Código Penal, como violadora da norma do art. 5º, XLV, da Constituição da República, por não atender
entender por caso fortuito ou força maior. Deve-se dizer que como o impor- ao caráter pessoal da responsabilidade e se contentar com a simples verificação de um nexo material
objetivo entre uma ação e um evento lesivo.
tante no âmbito da imputabilidade é o controle do agente sobre seus atos, 860. Na esteira de uma política de purificação, sob o efeito dos holofotes da onda moralizadora muito própria
da pós-modernidade, o congresso brasileiro resolveu, desde a Lei 11.705/08, disciplinar com maior
a partir da capacidade de entendimento e autodeterminação, o conceito de rigor a ingestão de bebidas alcoólicas por motoristas. Em face da redação ambígua, essa legislação,
embriaguez completa não pode divorciar-se desse contexto. Assim, haverá hoje completada com a lei 13.546/2017, tem conduzido a interpretações verdadeiramente absurdas em
matéria penal, principalmente por parte dos meios de comunicação. Por exemplo, ao contrário do que
embriaguez completa quando o agente ingressar na fase em que perde seu se vem afirmando, a ingestão de bebidas alcoólicas na condução de veículos não implica, desde logo, o
reconhecimento de crime doloso de homicídio ou lesões corporais no trânsito. A lei não transforma, só
autocontrole. Não será preciso, portanto, que o agente ingresse na fase coma- por essa circunstância, um crime culposo em crime doloso. Pelo contrário, ao prever uma modalidade
de homicídio culposo qualificado (art. 302, § 3º), a lei descartou essa automática realização de crime
tosa ou crônica, porquanto, então, a norma do art. 28, § 1º, seria redundante. doloso. Claro que a lei veda também a extensão dos benefícios da Lei 9.099/95 ao motorista que tenha
cometido o fato sob o efeito do álcool ou de substâncias análogas, ou ainda que tenha participado de cor-
Por outro lado, como a questão da embriaguez está vinculada à relação entre rida, disputa ou competição automobilística, ou de exibição ou demonstração de perícia não autorizada,
ou ainda que tenha excedido em 50 km/h a velocidade máxima permitida para a via (art. 291, CTB).
a ação precedente e o resultado posterior, sobre a base de critérios típicos A promulgação da lei tem gerado grandes expectativas quanto à sua eficácia, que, está claro, depende
de imputação em face da qualidade da ação praticada, haverá caso fortuito muito mais ou quase exclusivamente do trabalho dos órgãos fiscalizadores do que, propriamente, de seu
enunciado. Tomando por miúdos, o que lei proíbe, ou seja, conduzir sob efeito do álcool ou substância
quando se trate de fato imprevisível ou inevitável. Atendendo ao mesmo psicoativa, já constituía delito quando a concentração alcoólica fosse acima de 6 decigramas por litro de
sangue, o qual, na primitiva redação, estava ainda condicionado à ocorrência de dano potencial à inco-
critério, haverá força maior quando o agente não poderia controlar a ação lumidade alheia. Essa alteração do crime de perigo concreto em perigo abstrato não deve influir na sua
interpretação. Uma vez que se assente, quando se trate de delito de perigo abstrato, que se deve abrir a
precedente, ainda que se tivesse esforçado para tanto. possibilidade de se questionar acerca da aptidão da conduta para lesar o bem jurídico, como, aliás, uma
exigência do Estado de Direito, a alteração legislativa pouco acrescentou, salvo para os julgadores que
busquem fazer da norma penal um instrumento mal intencionado.
472 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 473

Brasileiro incluiu no art. 302, um § 2º, pelo qual se qualificava, com pena crime de perigo abstrato ali previsto, que está a exigir a demonstração de efei-
de reclusão de 2 a 4 anos, o homicídio culposo, quando o agente dirigisse tos sensíveis ao próprio bem jurídico, o qual, segundo uma ótica personalista,
veículo, em via pública, sob o efeito do álcool ou de substância psicoati- só poderá ser identificado como a incolumidade da própria pessoa. Assim,
va que determinasse dependência, desde que estivesse com sua capacidade não haverá crime se não houver essa demonstração. Se alguém ingere bebida
psicomotora alterada. Por outro lado, a mesma lei de reforma equiparava alcoólica e conduz veículo em uma estrada vicinal, sem qualquer possibilida-
para idêntico tratamento o fato de o homicídio ser cometido quando da de de vir a se defrontar com outro veículo ou mesmo com outra pessoa, não
participação de corrida, disputa ou competição automobilística, ou ainda de há violação da norma, por ausência do pressuposto estado de perigo ao bem
demonstração de perícia em veículo automotor não autorizada pela autori- jurídico. O art. 306 encerra, portanto, a criminalização da própria violação
dade competente. Posteriormente, ainda com maior rigor, por meio da Lei da norma de cuidado. Apesar dessa criminalização ser muito rigorosa, ela tem
13.546/2017, uma vez já tendo sido revogada a antiga norma do art. 302, § um significado importante: a norma do art. 306, que criminaliza a infração
2º, se instituiu o § 3º do mesmo artigo, com o qual se pune quem cometer à norma de cuidado, delimita a norma do art. 302, § 3º. Uma vez que, pela
homicídio, ao dirigir veículo automotor, sob o influência do álcool ou de norma do art. 306, só haverá crime se o agente estiver com sua condição
qualquer substância psicoativa que cause dependência. Apesar dessa reforma psicomotora alterada, pode-se dizer, então, que a norma do art. 302, § 3º,
criminalizar mais rigorosamente o homicídio no trânsito, o mesmo código que se refere ao homicídio, só pode incidir sob duas hipóteses: a) quando a
mantém em vigência a norma do art. 306. Esta norma prevê como crime embriaguez produzir uma alteração da capacidade psicomotora do agente;
autônomo o fato de dirigir veículo com capacidade psicomotora alterada em b) quando se tratar de embriaguez completa, pelo álcool ou substância psi-
face da ingestão de álcool ou de substância psicoativa que cause dependência. coativa que cause dependência, desde que essa condição de embriaguez não
Subsistem, portanto, no ordenamento de trânsito duas normas: a que prevê tenha sido provocada por caso fortuito ou força maior, quando, então, estará
uma forma qualificada de homicídio culposo, quando a direção estiver sob excluída a imputabilidade. Pode parecer estranho que uma norma secundária
influência do álcool ou qualquer substância psicoativa que cause dependência delimite uma norma principal. Ocorre, porém, que a infração à norma de
(art. 302, 3º) e a que prevê um delito autônomo de dirigir sob os mesmos cuidado, que será conduzir sob ingestão do álcool ou de substância psicoativa
efeitos, desde que com a capacidade psicomotora alterada. Para estabelecer que cause dependência, só é criminalizada quando o sujeito estiver com sua
uma delimitação precisa da proibição, é necessário valer-se de uma interpreta- capacidade psicomotora alterada. A simples ingestão de bebidas alcoólicas,
ção sistemática da lei. Atendendo ao princípio da proporcionalidade, deve-se portanto, que não provoque a alteração da capacidade psicomotora não é cri-
proceder à interpretação do novo § 3º do art. 302 em consonância com o minalizada, ou seja, não caracteriza um fato penalmente relevante. A simples
disposto no art. 306. O art. 306 proíbe, sob a cominação de uma pena de ingestão, portanto, de bebida alcoólica ou de substância psicoativa, mesmo
detenção de 6 meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de se obter no caso do homicídio, não o qualifica, salvo se houver produzido no agente
a permissão ou habilitação de dirigir, conduzir veículo automotor quando, uma alteração de sua capacidade psicomotora.
sob o efeito da ingestão de álcool ou substância psicoativa que cause depen- Na verdade, a questão da embriaguez sempre foi tratada pelo direito
dência, o sujeito estiver com sua capacidade psicomotora alterada, portanto, penal com muita carga emotiva e obedecendo a lugares comuns no âmbito
apenas quando o agente estiver com sua capacidade psicomotora reduzida. da medicina legal e da psiquiatria. Até hoje não há um entendimento pacífico
Não basta, portanto, a simples ingestão de bebida alcoólica. Essa redução da sobre seus efeitos na capacidade de resolução da pessoa. Assim, por exem-
capacidade psicomotora é consequência, sem maiores problemas, da própria plo, DÖRNER e PLOG, dois psiquiatras modernos, falando da dependência
norma expressa do art. 306. Esta, ao fazer referência ao uso do álcool ou de por álcool, cujo quadro é mais esclarecedor do que o da simples intoxicação,
substância psicoativa que cause dependência, condiciona a incriminação à adotam a classificação da OMS para reconhecer cinco (5) espécies dessa de-
produção de um estado no condutor que torne reduzida sua capacidade pendência: os tipos alfa, beta, gama, delta e épsilon, que se processam em
psicomotora. Essa condição alicerça uma interpretação limitativa do suposto quatro (4) fases evolutivas, de preliminar, de defesa, de crítica e de cronicidade.
474 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 475

Dentro dessas espécies, a perda de controle ocorreria a partir do tipo gama, A exigência de que o agente se encontre em condições de reconhecer o
quando se podem notar sintomas graves de abstinência. Nos tipos alfa e beta, cuidado objetivo que lhe era exigível nas circunstâncias e, assim, evitar a reali-
o dependente ainda manteria controle sobre seus atos, apesar de ser desde zação do tipo, representa a necessidade de materializar o juízo de culpabilidade,
logo classificado como ébrio, principalmente pela característica de considerar em atenção à espécie de injusto que lhe serve de pressuposto.863 Aqui não se
a bebida como medicamento, necessário à adaptação psíquica e social da vida trata de saber que está violando o cuidado, o que ocorre, por exemplo, nos casos
diária.861 Já quanto à intoxicação aguda, segundo TÖLLE, também com base de culpa consciente, mas de ser capaz de reconhecer que, no caso concreto, sua
na classificação internacional da OMS, pode ela se manifestar sob três formas: a conduta está subordinada à imposição do cuidado e que, assim, deve evitar a
embriaguez simples, a embriaguez complexa e a embriaguez patológica. Como realização da conduta descuidada. Igualmente, não se está aqui formulando
na intoxicação aguda o quadro mental se aproximaria daquele resultante de uma condição acerca da imputabilidade, a qual diz respeito a características
uma enfermidade, o poder de controle estaria aqui comprometido já com a pessoais, levadas a efeito sobre a constituição física e mental, relativas à capaci-
embriaguez simples, em virtude de algumas características básicas da relação dade de entendimento e autodeterminação. Ainda que na imputabilidade deva
entre a intoxicação e a representação da realidade, como a superestima pessoal, ser tomada em conta a relação entre agente e norma de cuidado, para poder
a euforia, a irritabilidade, a perturbação, a obsessão verbal, a tendência depres- individualizá-la quanto ao fato culposo, ali não se questiona, especificamente,
siva e suicida e, algumas vezes, a perda da consciência.862 Portanto, segundo essa quanto às condições empíricas que conduziriam o agente, no caso concreto, a
análise de TÖLLE, a capacidade psicomotora estaria alterada com a embriaguez ser capaz de reconhecer o cuidado que está desatendendo.
simples, sem necessidade que se trate de embriaguez completa. Mas embria- Pode-se esclarecer melhor essa relação entre imputabilidade e re-
guez simples não se confunde com a mera ingestão de alguns copos de bebida conhecimento do cuidado com um exemplo. Um controlador de voo
alcoólica. A ingestão de bebida só se identifica com a embriaguez, simples ou comunica, erroneamente, ao comandante de uma aeronave que deva ater-
completa, quando se alcançam aqueles estágios de perda de controle. rissar em uma determinada pista do aeroporto, a qual estava sendo usada,
Há que se reconhecer, pois, que a intoxicação aguda ou a dependência no entanto, por outro avião, o que vem a produzir um acidente. A relação
pelo álcool, na medida em que gera um quadro de doença mental, conduz a entre o controlador e o cuidado será analisada, então, sob duas perspec-
caracterizar uma autêntica situação de inimputabilidade, nos termos do art. tivas: na imputabilidade, se verá se o agente estava em condições físicas e
26 do Código Penal, independentemente do tratamento especial que lhe é mentais de entender que sua conduta estaria subordinada a uma norma
destinado pelo art. 28, II. de cuidado, ou seja, de que devesse prestar atenção e checar todas as pistas
do aeroporto antes de autorizar a descida do avião; já no reconhecimento
IV. A CAPACIDADE DE RECONHECER O CUIDADO E EVI- do cuidado será exigido que, no momento de sua atuação, estivesse em
TAR O RESULTADO condições de reconhecer que estava violando um cuidado e, assim, poder
Ademais da imputabilidade, o juízo de culpabilidade nos fatos culposos evitar a realização do tipo, o que pode acontecer por diversos fatores, ou
deve ser efetivado em etapas, como aliás se dá igualmente nos delitos dolosos. seja, quando sua visão tivesse sido prejudicada por um reflexo enganoso, ou
Dentro desta sequência e atendendo aos pormenores da realização do injusto que o outro avião houvesse indevidamente usado a pista que estava livre,
nos delitos culposos, não basta que o agente esteja dotado de capacidade ou se sua atenção tivesse sido desviada por outro fator (um chamado do
de entendimento e autodeterminação em face do cuidado objetivo que lhe próprio comandante informando fogo na aeronave, etc.).
era exigível. É necessário que lhe seja também atribuída a capacidade de A capacidade de reconhecimento do cuidado, diferentemente do que
reconhecer esse cuidado objetivo e evitar a violação da norma que o institui. ocorre no âmbito da tipicidade, não tem como parâmetro condições objetivas

861. DÖRNER-PLOG. Irren ist menschlich. Lehrbuch der Psychiatrie. Psychoterapie, Bonn: Psychiatrie 863. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 594; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 237; SCHMOLLER,
Verlag, 1996, p. 246 et seq. Kurt. “Zur Konturierung von Unrecht und Schuld. Überlegungen anhand des Fahrlässigkeitsunrechts,
862. TÖLLE, Rainer. Psychiatrie, Berlin-Heidelberg: Springer, 1994, p. 152. ZStW, 129, 2017, p. 1075.
476 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 477

que possam fundamentar a imputação em face de que podem ser atendidas, norma de cuidado, ao executá-la tem a capacidade de motivar-se no sentido
indistintamente, por todos os que exerçam aquela atividade. No âmbito da de sua não execução, na medida em que possa reconhecer, pessoalmente,
culpabilidade, a capacidade de perceber que a atividade concreta viola um o risco dela decorrente.
cuidado que lhe é imposto tem que ser avaliada segundo as características do Isto pode ser mais explícito na culpa consciente, em que o agente reco-
agente individual, que deve estar em condições, em virtude de poder se mo- nhece que está violando uma norma de cuidado, uma vez conhecendo suas
tivar de conformidade com a norma, de saber que medidas lhe são exigidas próprias limitações. Mesmo assim, não se pode traçar um esquema de respon-
na ocasião do exercício da atividade para impedir sua violação. sabilidade porque o agente tenha violado a norma de cuidado conscientemente.
Por seu turno, a capacidade de evitar a violação da norma de cuidado Apesar disso, pode ser que o agente, por outras circunstâncias, saiba que está
diz respeito à possibilidade efetiva de o agente atender a este cuidado, por ele violando a norma de cuidado, mas não a reconheça como tal. Por exemplo,
reconhecível ou reconhecido. A evitabilidade constitui, em última análise, um médico clínico resolve extirpar um quisto de um paciente, embora saben-
um requisito negativo essencial de limitação da atribuição pessoal de respon- do que não é de sua especialidade e que, para tanto, deveria remetê-lo a um
sabilidade, sobre o qual se assentam todos os demais elementos desse juízo. cirurgião. Aparentemente, ao saber que se está excedendo no exercício profis-
Para excluir a atribuição de responsabilidade não é preciso demonstrar que o sional, o médico poderá também reconhecer o risco de sua atividade e evitar
fato era inevitável. Basta que não se demonstre que o agente poderia evitá-lo. as consequências dela resultantes. Mas pode ser que, diante da aparente sim-
Por outro lado, ao medir-se a capacidade do reconhecimento do cuida- plicidade do caso, entenda ele que poderá realizar a intervenção sem maiores
do e a evitabilidade da violação da norma, devem ser levadas em conta não consequências para o paciente, o que significa que não reconheceu o cuidado
apenas as particularidades do próprio agente, mas também sua posição na que lhe era imposto. Nesta hipótese, não se pode dizer que o médico tenha
ordem jurídica, como partícipe da elaboração normativa. Segundo KLAUS atuado com culpabilidade, até mesmo porque, se assim fosse, estaria seriamente
GÜNTHER, em uma sociedade civil que se paute por modelos democráticos comprometida a profissão médica, que exigiria em todos os casos a distribuição
de organização e de solução de conflitos, é fundamental, para a atribuição de pacientes para especialistas, nem todos acessíveis a qualquer momento.
de responsabilidade a qualquer de seus membros, a existência de mínimas Na culpa inconsciente, é praticamente impossível a atribuição de res-
condições pelas quais se possa assegurar aos próprios agentes o poder de de- ponsabilidade, porque o reconhecimento de sua incapacidade deve provir
cidir se atuam ou não de conformidade com a norma.864 Atendendo a esta de um juízo incidente sobre sua própria pessoa, a qual está comprometida
particularidade da relação entre indivíduo e Estado, na aferição do poder também com a forma e do modo como haja violado a norma de cuidado. Nos
individual devem ser considerados, em favor do agente, seus defeitos físicos, a casos em que a norma de cuidado tenha sido inconscientemente violada, o
carência de inteligência ou de experiência, ou situações extremamente graves, dado empírico vinculado ao fato ilícito é, subjetivamente, intangível, o que
de cuja gênese não tenha ele participado ou dos quais não pode libertar-se.865 torna indemonstrável a afirmação de que o agente seria pessoalmente capaz
Mais complexo é, todavia, o caso em que o agente empreende uma de reconhecer o cuidado e as medidas adequadas a evitar a sua violação. É que
atividade para a qual não está capacitado, segundo o grau e o desenvolvi- a violação inconsciente da norma de cuidado implica que o agente não seria
mento exigidos pela ordem jurídica. Neste particular, a doutrina tem fixado capaz de reconhecer que sua conduta violara os limites do risco autorizado.
a regra de que se alguém é incapaz de realizar certa tarefa, além de violar a Estará, então, excluído qualquer juízo de atribuição de responsabilidade.

V. A CAPACIDADE DE PREVISÃO DO RESULTADO E DO


864. GÜNTHER, Klaus. “Strafrechtliche Verantwortlichkeit in der Zivilgesellschaft”, Antritsvorlesung, edi-
ção ampliada, Frankfurt am Main: Uni-Frankfurt, 1999. NEXO CAUSAL
865. O sentido emprestado pela doutrina ao poder individual nem sempre é escorreito. Assim, por exemplo,
JESCHECK-WEIGEND (Nota 7, p. 594) entendem de maneira geral que o juízo de culpabilidade deve O juízo de atribuição pessoal de responsabilidade está condiciona-
ser efetivado com base no autor individual, tendo em vista o nível de suas forças, experiência e conhe-
cimento. Entretanto, contraditoriamente, ao concretizarem o juízo de reconhecimento, tomam como do ainda à demonstração de que o agente, em virtude de suas condições
parâmetro, não o poder individual, mas o poder de “outro”, situado na posição do autor.
478 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 479

e qualidades, tenha previsto ou estivesse dotado da capacidade de prever o Discute-se, por outro lado, se a previsão implica ou não um conheci-
resultado e o nexo causal em toda sua extensão. Deve-se acrescentar a isso a mento pormenorizado da situação de fato. A doutrina majoritária tem seguido
exigência de que tanto o nexo causal quanto o resultado poderiam ter sido a orientação de que basta que, nas circunstâncias concretas, o resultado e o
evitados pelo agente. Aqui não se trata mais de evitar a realização da condu- processo causal possam ser visualizados pelo autor em seus traços essenciais no
ta descuidada, mas de haver podido evitar a produção causal do resultado âmbito do dever de cuidado.867 Está claro que não se deve exigir que o nexo
proibido. Normalmente, quando ao agente não tenha sido possível evitar a causal e o resultado possam ser previstos nos mais mínimos pormenores, mas a
realização da conduta descuidada, igualmente não se lhe pode reconhecer a previsão deve abarcar o nexo causal e o resultado não apenas em seus elementos
evitabilidade do nexo causal e do resultado. Pode ser, no entanto, que esti- essenciais, mas inclusive em todos seus desdobramentos. Por exemplo, alguém
vesse em condições de reconhecer o cuidado, mas o resultado de sua atuação lança de uma ponte uma lata de refrigerante, que vem a atingir uma pessoa,
não lhe fosse evitável. A verificação da capacidade de previsão e de evitação produzindo-lhe lesões na cabeça. Neste caso, não se vai exigir que o agente
compõe a análise da imputação subjetiva do resultado e, bem assim, do pro- tenha previsto, pormenorizadamente, o tipo de lesão que fora produzido, se
cesso causal em seus contornos essenciais. contundente ou cortante. No entanto, deve-se exigir que também tenha tido
Aqueles que caracterizam o tipo de injusto tão-somente com a causação a capacidade de prever o desdobramento dessa lesão. Atribuir-se ao agente que
do resultado entendem que a culpabilidade encontra seu conteúdo justamen- lançou uma lata de refrigerante todos esses desdobramentos será evidentemente
te nesta imputação.866 Essa posição, contudo, não deve ser seguida, pois isso incompatível com um juízo de previsibilidade, que deve estar limitado ao de-
implicaria simplificar demasiadamente a determinação da responsabilidade, senrolar normal dos acontecimentos e não a situações catastróficas.
desatendendo, assim, a todos os preceitos de garantia da ordem jurídica. No Nesta matéria, aplicam-se também em favor do agente as considerações
tipo de injusto, como vimos, a previsão, tomada em sentido objetivo, serve acerca de suas deficiências congênitas ou irreversíveis, desde que lhe sejam
como critério regulador da imputação do resultado, ao lado de outros critérios desconhecidas ou impossíveis de conhecimento. Assim, não há capacidade
normativos, entre os quais o da evitabilidade desse resultado. Na culpabilidade, de previsão nem de evitação do resultado, em caso de acidente resultante
a imputação assume outra postura: será aferida segundo a capacidade pessoal de esclerose cerebral do motorista, a ele irreconhecível.868 Nesse exemplo,
do autor de prever e evitar esse resultado (previsão subjetiva). se não houver desde logo a declaração da inimputabilidade, exclui-se de
A atribuição pessoal de responsabilidade depende não apenas do fato qualquer modo a culpabilidade, porque o resultado não estava situado na
de que o agente tenha ou pudesse ter tido consciência do resultado e de sua capacidade de previsão e evitação. O mesmo ocorre com o ofuscamento
que poderia evitá-lo (cognição do resultado), mas também de que sua exe- repentino, ocorrido em autoestrada, tendo em vista a deficiência visual do
cução lhe seja ou tenha sido previsível ou evitável segundo suas condições agente, a ele desconhecida e irreconhecível. Admite-se ainda a incapacidade
pessoais (cognição da execução). Nesta última hipótese, é necessário ainda de previsão em situações resultantes de atividades da própria vítima ou de
que seja investigado até que ponto a ordem jurídica não está exacerbando seu terceiro interveniente, com as quais o agente não pôde contar, ou em caso
poder regulamentador, instituindo um juízo normativo sem respaldo empí-
867. Nesse sentido, é esclarecedor o parecer de RUDOLPHI, Hans-Joachin. “Literaturbericht Strafrecht,
rico e acolhendo uma responsabilidade objetiva pelo resultado. Dificuldades Allgemeiner Teil”, in ZStW nº 85 (l973), p. 127, de que a culpabilidade negligente não pressupõe que
o autor tenha podido prever: “[...] a ocorrência do acidente e o consequente resultado típico em seu
de poder prever o resultado são frequentes no trânsito e nas atividades de desenvolvimento final, mas, sim, que o autor tenha podido prever a verificação desse resultado típico
construção, exacerbadas pela crescente complexidade das situações concre- exatamente como realização do perigo antijurídico derivado de sua conduta. Isto não significa, em todo
caso, que o autor deva ter podido prever o processo causal concreto, produtor do resultado típico injusto,
tas apresentadas (congestionamento do tráfego, defeitos na pista, abalos no em todos os seus pormenores. Indispensável é apenas que ele possa prever a verificação do resultado
como realização possível do perigo para o bem jurídico, causado antijuridicamente por sua conduta, ou
solo ou transformações atmosféricas violentas, neurose coletiva, etc.). Uma seja, que possa prever o fato de que a causação concreta do resultado se situava no âmbito de proteção
do cuidado por ele lesado”.
vez presentes estas dificuldades, não pode subsistir o juízo de culpabilidade. 868. Assim, STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 415, com a conclusão de que se trata de extinção da
própria tipicidade. No mesmo sentido, MALAMUD GOTI, Jaime. La estructura penal de la culpa, p.
866. Esta é a consequência lógica da teoria causal-naturalista, seguida por MARQUES, José Frederico. Tra- 74. Poder-se-ia também pensar, neste caso, de exclusão da própria imputabilidade ou da capacidade de
tado de direito penal, vol. II, p. 209, e QUEIROZ FILHO. Lições de direito penal, p. 147. recohecer o cuidado e de evitá-lo, conforme tratado no item anterior.
480 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 481

de falha repentina de memória. Não haverá, assim, capacidade de previsão Fiel à tradição programática que sempre animou a legislação brasileira,
e de evitação do resultado no conhecido exemplo, citado por JESCHECK, o legislador de 1984 manteve, na primeira parte do art. 21, a regra de que
do agente que desfere um soco de pouca intensidade em alguém e acaba “o desconhecimento da lei é inescusável”. Uma vez que, logo em seguida,
produzindo-lhe a morte por hemorragia, porque se tratava de pessoa he- admite, no mesmo dispositivo, a relevância do erro de proibição inevitável
mofílica, mas cuja condição, apesar de conhecida, fora momentaneamente para o efeito de excluir a culpabilidade da conduta, dá a impressão de haver
esquecida em virtude da excitação provocada no ânimo do agente pela atitude obrado contraditoriamente. Tal, porém, não sucede. Embora não seja de
reprovável da própria vítima.869 Aqui, evidentemente, não se trata de auto boa técnica a inserção de mero dispositivo programático nas leis penais, a
ou heterocolocação em perigo, uma vez que nem a vítima nem o agente referência ali feita à irrelevância do desconhecimento da lei significa apenas
assumiram conscientemente, um em função do outro, o risco da produção e tão-só que todos devem se esforçar para conhecer as leis, o que constitui
do resultado, nem da questão da cláusula ceteris paribus, porque as condi- um pressuposto da concepção que trabalha a consciência da antijuridicidade
ções existentes antes e depois continuavam idênticas, nem de inevitabilidade no seu sentido potencial e não atual.872 Esta questão, todavia, nada tem a
objetiva, porque segundo um juízo de probabilidade, o fato poderia ter sido ver com as hipóteses de erro de subsunção, que podem conduzir a verdadei-
evitado. O que se exclui é a capacidade de previsão do evento. ro erro de proibição e, assim, se encontram abrangidas pela segunda parte
do dispositivo, e nem implica que é irrelevante à culpabilidade a arguição
VI. A CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE acerca do desconhecimento ou conhecimento acerca da validade (vigência)
Na realidade, a consciência do injusto pode referir-se tanto ao conheci- ou âmbito de incidência de uma lei, nem quanto à punibilidade da conduta.
mento da norma proibitiva como tal, como também aos pressupostos típicos A adoção da relevância do erro de proibição inevitável constitui decor-
de uma causa de justificação, seus limites jurídicos e sua subsistência.870 A rência dos fundamentos da culpabilidade de vontade, lastreados na norma
consciência da norma proibitiva conduz ao reconhecimento, em caso de sua proibitiva ou mandamental, pois não se pode sancionar aquele que atua sem
ausência, do chamado erro de proibição direto (erro de direito). O desco- consciência da ilicitude de seu ato. Uma tal sanção, se prevalente, estaria em
nhecimento dos pressupostos típicos de uma causa de justificação ou de seus desacordo tanto com a estrutura normativa quanto com o sistema deduzido da
limites jurídicos ou de sua subsistência implica, respectivamente, o erro de própria definição de inimputabilidade (art. 26), que se baseia precisamente na
tipo permissivo (erro sobre os pressupostos típicos de uma causa de justifi- capacidade de conhecimento da ilicitude do fato. Tanto pode o conhecimento
cação) e o erro de permissão (erro sobre os limites jurídicos e a subsistência relacionar-se à capacidade natural de apreensão das coisas (submetendo-se,
de uma causa de justificação).871 pois, ao domínio da imputabilidade), quanto de valorar seu ato, de acordo com
Essas espécies de erro não estão todas disciplinadas, porém, no art. padrões dominantes na ordem jurídica e impostos coercitivamente.
21 do Código Penal. Este se refere apenas ao erro de proibição direto (erro Tendo em vista que o art. 26 do Código Penal se caracteriza como o
sobre a ilicitude do fato) e se aplica, ainda, por via de consequência, ao erro pressuposto sobre o qual se deve assentar a posterior elaboração da culpabili-
de permissão (erro sobre os limites jurídicos e a subsistência de uma causa de dade, claro está que, nesta sequência, não pode nem deve haver contradições.
justificação). O erro quanto aos pressupostos típicos de uma causa de justi- A legislação tem que ser interpretada de modo sistemático e harmônico, a fim
ficação encontra disciplina no âmbito do erro de tipo (art. 20), por força de de possibilitar a criação dogmática. A responsabilidade pessoal tem que estar
uma concepção estribada, em princípio, nas lições de JESCHECK e WES- efetivamente condicionada à possibilidade de conhecimento da ilicitude. Isto
SELS, mas que tem suas origens na teoria dos elementos negativos do tipo. corresponde a uma especificação sequencial do prévio conhecimento dos

872. TOLEDO, Francisco de Assis. O erro no direito penal, p. 132, conclui quase desta forma; idem, “Cul-
869. Assim, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 597. pabilidade e a problemática do erro jurídico-penal”, RT 517/255 et seq., em que salienta que o antigo
870. TOLEDO, Francisco de Assis. O erro no direito penal, 1977, p. 103 et seq.; JESCHECK-WEIGEND. art. 16 do Código Penal está circunscrito exclusivamente à ignorância da lei e não ao desconhecimento
Nota 7, p. 593; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 146 et seq. da ilicitude do fato; assim, também, MUNHOZ NETTO, Alcides. A ignorância da antijuridicidade em
871. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 593; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 147 et seq. matéria penal, 1978, p. 127.
482 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 483

elementos integrantes do tipo legal e serve para os crimes dolosos e culposos. ou quer realizar. Essa exigência de direcionamento intelectivo no sentido do
Em face disso, deve-se interpretar restritivamente o art. 21, primeira parte, fato injusto pode parecer, à primeira vista, que aqui se está produzindo uma
de forma a salientar que ali não se está impedindo a análise de todos os pres- confusão entre o conhecimento dos elementos do tipo de injusto e aqueles da
supostos que condicionam a conduta do agente em face de sua vinculação antijuridicidade. Esta aparente confusão se desvanece, porém, na medida em
com a norma. Em um Estado democrático, o processo legislativo, em toda que se observe que no erro de proibição não se está cogitando do desconhe-
sua extensão, está subordinado ao reconhecimento de que todos os cidadãos cimento da matéria da proibição, por exemplo, da ação típica, de seu objeto
tenham podido nele participar, não se admitindo que se possa impor a todos e demais circunstâncias de sua execução, mas sim da própria proibição. Mas,
uma determinada forma de atuação ou uma proibição, que lhes seja inaces- o que se exige, na verdade, é que essa proibição deve estar relacionada direta-
sível em termos de motivação. mente à norma proibitiva ou mandamental que sedimenta o tipo de injusto
Por isso mesmo, não há sentido algum em se limitar o erro de proi- concretamente realizado. Não basta, portanto, para afirmar-se a consciência
bição apenas ao conhecimento do fato como proibido em geral e não se da antijuridicidade, que o agente conheça a proibição do fato, em função de
estender suas consequências ao desconhecimento da validade da norma sua inserção social. Deve ele saber ou, pelo menos, poder saber que o fato
que o proíbe. Se a proibição depende de uma norma válida, votada pelo que pratica está inserido como proibido na ordem jurídica, e que, ademais,
Parlamento e subordinada em sua legitimidade a que tenha aberto a possi- seja também penalmente relevante. A relevância penal do fato é que assinala
bilidade concreta de sua refutação por parte de todos, não há como separar a vinculação concreta do agente à norma proibitiva e, por consequência, ao
proibição e validade. A questão da validade, por outro lado, deve ser vista tipo de injusto. Assim, como a proibição está associada a um ato de sanção,
em face da própria constituição material do juízo de culpabilidade. Um que a caracteriza como penalmente relevante, inclui-se também no erro de
cidadão não pode motivar-se diante de uma norma sem que ele mesmo proibição o desconhecimento acerca da punibilidade da conduta.
possa proceder a uma autocrítica de seu comportamento, conforme os Nos crimes culposos, o conhecimento do injusto reduz-se à consciên-
objetos de referência que tem fixado para sua orientação. Separar-se proi- cia das exigências objetivas de cuidado, como verdadeiro dever jurídico. Essa
bição e validade é uma velha fórmula positivista que só tem significado consciência tanto pode ser atual, quanto potencial. É de se exigir ainda que
em face de uma concepção que também separe norma e lei e que ficaria o agente tenha podido saber que o resultado que causaria ou causou era
muito bem posta no século XIX, quando se estava iniciando a construção reprovado pela ordem jurídica.873 Essa matéria apresenta particular impor-
dogmática do delito, ou frente a um enfoque neokantiano que trabalhe os tância nos delitos de perigo comum e nas contravenções, pois nem sempre
fatores da responsabilidade, exclusivamente, com base em um sistema de é fácil a identificação de uma situação de perigo estabelecida de antemão,
deveres. Diante disso, não atua com culpabilidade o agente que tem o fato de maneira abstrata, pelo legislador.
como permitido, por não poder conhecer a norma jurídica proibitiva ou Relativamente à qualidade do conhecimento do injusto, é preciso res-
mandamental ou por não poder alcançar sua validade, pois age, na verdade, saltar uma diferença essencial entre o reconhecimento do próprio cuidado e
dentro do sentido de concretização da inimputabilidade. o dever jurídico de atendê-lo. Em parágrafos anteriores, já se tratou acerca da
O caminho para se estender o erro de proibição à validade ou vigência capacidade do agente de reconhecer o cuidado e de, assim, evitar a realização
da norma já fora aberto com a assertiva de ROXIN, de que a consciência do tipo culposo. Aqui volta-se ao tema, mas sob outra perspectiva. É que
da antijuridicidade deve estar relacionada ao injusto concreto e não a uma ao agente só se pode atribuir a responsabilidade pelo fato culposo cometido
proibição ou a um mandato genérico. O agente deve, assim, não apenas deter quando estiver em condições de reconhecê-lo sob a perspectiva de um dever
a capacidade de alcançar esse conhecimento, segundo suas condições pessoais de atuar cuidadosamente e, também, quando seja capaz de conhecer que sua
de maturidade e higidez mental (imputabilidade), mas também estar rela- conduta viola o cuidado objetivo, pelo qual se deveria orientar.
cionado à valoração normativa incidente sobre o fato que ele mesmo realiza
873. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 593.
484 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 485

A capacidade de conhecer o próprio cuidado é pressuposto indecli- situações idênticas, como, por exemplo, dos afazeres domésticos de desligar o
nável, portanto, da consciência do injusto dos delitos culposos. Nos delitos ferro de passar roupas antes de sair de casa, de não colocar vasos na janela que
dolosos, a matéria já estará contida no âmbito do elemento intelectivo do possam cair sobre os transeuntes, de não ligar muitos aparelhos elétricos em
dolo, gerando, entre outras consequências, a questão da chamada (e criticá- uma mesma tomada, e outros semelhantes, as normas de cuidados especiais
vel) valoração paralela na esfera do leigo, pela qual não se exigiria do agente, como, por exemplo, do médico, do engenheiro, do controlador de voo, dos
em relação aos elementos normativos do tipo, um conhecimento especiali- gerentes de usinas nucleares e outras de mesma categoria, em que se exija um
zado acerca de seu conteúdo, bastando que sua compreensão refletisse aquilo conhecimento especializado, devem ser avaliadas segundo o conhecimento
que normalmente se conceberia como objeto de um conhecimento vulgar. 874 do agente em toda sua plenitude e não de acordo com a percepção de um
Como aqui, porém, não se trabalha com o tipo subjetivo e também porque leigo. Até mesmo porque o leigo não poderia alcançar o conteúdo da norma
o objeto de orientação da conduta não contém características puramente de cuidado que orienta essas atividades. Por isso, o conhecimento genérico
empíricas, mas essencialmente normativas, se torna absolutamente inservível não poderá servir, aqui, de parâmetro para sua avaliação. Nesses casos, o re-
o critério da valoração paralela na esfera do leigo. Está claro que, quando se conhecimento do cuidado, como pressuposto da consciência do injusto, deve
fala de erro de proibição, não será preciso que o agente tenha conhecimento ser medido e avaliado de conformidade com a relação intelectiva especial do
técnico acerca da norma de cuidado, basta que tenha consciência, de confor- autor para com o objeto de referência de sua conduta. Caso não se atendesse a
midade com suas condições pessoais, de que deveria obedecê-la, caso viesse a essa forma de avaliação, haveria uma padronização do juízo de culpabilidade,
efetuar a atividade perigosa. Atendendo, no entanto, a que esta consciência que conduziria a confundi-lo com o injusto e, consequentemente, a violar o
do injusto não pode ser obtida sem um prévio conhecimento acerca do cui- princípio da responsabilidade pessoal.
dado objetivo, surge aqui a questão do critério pelo qual se deva avaliar este O tratamento do erro de proibição direto (art. 21) segue aqui as
conhecimento. Em correspondência ao que ocorre nas hipóteses de erro de mesmas regras atinentes ao crime doloso, mas com as seguintes variações:
subsunção, em que o desconhecimento do agente está relacionado a elemen- se inevitável, segundo juízo incidente sobre o autor e não conforme o cri-
tos normativos do tipo e não diretamente à proibição, também aqui se busca tério objetivo do homo medius, estará excluída a culpabilidade; se evitável,
utilizar um padrão comum, pelo qual se extrairia o respectivo dever jurídico cumpre investigar se esta evitabilidade era atendível facilmente ou com
de atuar cuidadosamente. O fundamento para esta invocação reside em que certa dificuldade pelo autor. No primeiro caso, uma vez que se mantenha
a norma penal institui uma proibição mediante a tipificação das condutas e integralmente a consciência do injusto, porque era de fácil acesso o conhe-
que, portanto, estando estas tipificadas com clareza, o conhecimento acerca cimento do dever de cuidado, será atribuído ao agente o respectivo delito
dos elementos fáticos sobre os quais se apoia a proibição, por exemplo, o culposo. No outro, deve-se reconhecer o seguinte: em se tratando de culpa
cuidado objetivo, se estende, indistintamente, a todos os cidadãos e não ha- consciente, a evitabilidade do erro conduzirá à diminuição da culpabilidade,
veria necessidade de se exigir que o agente tivesse atuado com conhecimento aplicando-se a causa de diminuição especial prevista na última parte do art.
especial sobre o conteúdo dessa norma. Esta concepção, no entanto, pretende 21; se houver, porém, culpa inconsciente, a dificuldade de acesso ao conheci-
construir um contexto de entendimento que não corresponde à realidade, e mento do dever de cuidado equivale à sua inevitabilidade, o que implicará,
também se orienta, exclusivamente, por razões de política criminal no sentido assim, a exclusão da culpabilidade. Esta dicotomia de tratamento tem sua
de, praticamente, presumi-lo. Principalmente nos crimes culposos, em que razão ser. Se o agente, na culpa inconsciente, viola a norma de cuidado
as normas proibitivas estão acopladas a normas mandamentais, é insuficiente sem o saber, está claro que o erro resultante de sua má compreensão acerca
uma valoração genérica. Afora casos de cuidados gerais, que são por todos do dever de cuidado só poderá ser inevitável, porque uma vez que ignore a
conhecidos em razão da experiência ou mesmo da repetição ininterrupta de base empírica que lhe proporcionaria o conhecimento do cuidado, também
não poderá alcançar o conteúdo do elemento normativo que lhe impõe esse
874. KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, 2005, p. 95; ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, 4ª edição, 2006, p. 486 et
seq.; WESSELS-BEULKE, Strafrecht. AT, 2006, p. 87. cuidado. Um exemplo esclarecerá melhor essa solução.
486 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 487

Um médico plantonista recebe a incumbência de checar a cada hora a erro em favor do agente, ao haver este cumprido satisfatoriamente seu dever
pressão arterial de um paciente. Para tanto utiliza o aparelho de pressão que de informação e atuado nos limites de seu conhecimento.875
lhe é fornecido pelo hospital e que está acoplado diretamente ao paciente. Relativamente ao erro sobre os limites jurídicos ou a subsistência de
Atendendo a esse dever, faz um relatório pormenorizado do quadro clínico, uma causa de justificação (erro de permissão), aplicam-se-lhe os mesmos
indicando em todos os informes que a pressão estaria estável. O paciente, princípios do erro de proibição direto, instituídos no art. 21 do Código
porém, apresentava, na realidade, outro quadro e acaba morrendo de aciden- Penal, mas com as variações que lhe correspondem quando se tratar de
te vascular-cerebral, justamente porque sua pressão não fora corretamente crime culposo.
controlada. O médico é processado porque teria atuado culposamente, ao
não controlar a pressão do paciente, conforme o dever de cuidado que lhe O erro de tipo permissivo, por sua vez, incidente sobre os pressupostos
era imposto. Procedendo-se, porém, a uma perícia no aparelho, se constata típicos de uma causa de justificação, orienta-se segundo as regras do erro de
que estava com defeito, indicando erroneamente para menos todas suas tipo (art. 20, § 1o), que têm aplicação especificamente aos delitos dolosos.
medições. A perícia, no entanto, acaba não beneficiando imediatamente o Havendo o legislador acatado a chamada teoria da culpabilidade limitada,
médico, porque, em todas as ocasiões, em que a pressão fora controlada, o se o agente desconhece ou conhece falsamente algum dos elementos de uma
paciente apresentava desconforto, dor de cabeça, agitação e outros sintomas causa de justificação, quer seja evitável ou inevitável, restará excluído o delito
que estariam demonstrando que aquela medição estaria incorreta ou defei- doloso, por não se haver integralizado sua culpabilidade. A questão do crime
tuosa. Diante desses sintomas, o médico usa um aparelho manual e constata culposo, porém, permanece intocável, o que significa que, excluído o delito
que a pressão estava correta e que não havia perigo de vida. Como já havia doloso em consequência da exclusão de sua culpabilidade, cabe ao julgador
procedido a medições com dois aparelhos, o médico desconsidera o quadro examinar a subsistência ou não da culpabilidade negligente. Se se chegar à
clínico do paciente e não manda verificar se os aparelhos estavam corretos, conclusão de que o conhecimento acerca dos elementos da causa de justi-
porque achava que estes já deveriam ter sido testados antes de serem por ele ficação concretamente examinada era impossível ao agente, segundo suas
usados. Ademais, tenta comunicar-se com o setor especializado de controle condições pessoais, não há que se falar em delito culposo, em virtude de não
dos aparelhos do hospital, mas sem sucesso, porque os telefones estavam se haver integralizado sua culpabilidade.876
bloqueados. Como estava de plantão, pensa além disso que não deveria sair Outros aspectos da incidência de erro de tipo permissivo sobre o fato
do local para pedir ajuda, confiando em outro colega que lhe informara culposo já foram elucidados atrás, quando da análise dos pressupostos das
haver usados os mesmos aparelhos e que estes aparentavam estar corretos. causas de justificação. De qualquer forma, o erro sobre os pressupostos de
Aqui, o médico agiu com culpa inconsciente, está claro, porque, ao não uma causa de justificação só tem significado na culpa consciente e sobre ele não
proceder a troca dos aparelhos ou à sua verificação, em face do quadro do podem incidir as regras do art. 20, § 1º. Caso a conduta do agente seja inevi-
paciente, violou inconscientemente a norma de cuidado, que lhe deter- tável, estará excluída a própria tipicidade; caso seja evitável, deve-se ponderar
minaria que procedesse dessa forma. Por outro lado, também atuou com sobre essa evitabilidade. Em se tratando de evitabilidade que demande um
erro de proibição, porque não entendeu que, diante das informações do certo esforço do agente, pode-se também excluir-se a culpabilidade, porquan-
colega e pelo fato de estar de plantão, lhe incumbisse um dever de proceder to o tratamento do erro, nesta hipótese de delito culposo, deve ser menos
àquela verificação ou à sua troca. Como se tratava de culpa inconsciente e rigoroso do que nos delitos dolosos. A culpabilidade, então, só não será
o conhecimento do dever de cuidado fora de difícil acesso, estará excluída excluída na hipótese em que a evitabilidade seja facilmente contornada pelo
a culpabilidade. A dúvida, nesse caso, portanto, caracterizará um estado no
875. LEITE, Alaor. Dúvida e erro. Sobre a proibição no direito penal, São Paulo: Atlas, 2013, p. 162; da
qual será impossível exigir-se do agente maiores informações, além daque- mesma forma, reconhecendo validade ao erro em caso de dúvida, BUSATO, Paulo César. Direito penal,
Parte geral, 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 573.
las que lhe eram razoavelmente acessíveis. Pode-se, assim, acolher, aqui, a 876. Sobre a problemática do erro culposo sobre descriminantes, CAVALIERE, Antonio. L´errore sulle scri-
proposta de ALAOR LEITE no sentido de reconhecer a inevitabilidade do minanti nella teoria dell´illecito penale. Contributo ad una sistematica teleológica, Napoli: Jovene
Editore, 2000, p. 514 et seq.
488 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 489

agente, caso em que, porém, deverá ser atenuada. Na culpa inconsciente, como informadores de sua constituição e parece que esse é seu verdadeiro papel ou
o agente que atua lesando um dever de cuidado não possui consciência acerca função dentro da teoria do delito. Essa posição se torna ainda mais saliente
do emprego dos meios, nem estabelece ponderação de valor, nem tem notícia nos delitos culposos do que nos crimes dolosos, pela simples razão da dife-
da situação de necessidade, torna-se superada a questão da investigação da rença de estrutura normativa e da distinção da ação típica. Não obstante,
modalidade de erro de tipo permissivo. É que muito antes de se avaliar se isto não impede, por sua vez, como pretendem alguns, que esse princípio
efetivamente houve ou não tal erro, já estaria, pelo mesmo motivo, excluído possa aqui servir como causa geral de exculpação. Dentro de um direito
o próprio injusto da conduta. Esta é uma conclusão lógica das características penal de garantia, a concepção de uma culpabilidade limitadora conduz a
especiais que modelam o injusto do fato culposo.877 admitir todas as formas de sua exclusão, na medida em que digam respeito
às impossibilidades reais de motivação.
VII. A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA CONFORME À
NORMA 1. AS CAUSAS DE EXCULPAÇÃO
Ademais das outras condições limitativas da atribuição pessoal de Assim, nada obsta que se apliquem aos delitos culposos, ainda com
responsabilidade, deve-se ainda incluir, na culpabilidade, a exigência de mais amplitude e alargados os respectivos dispositivos em favor do agente,
que o agente poderia ter atuado de outro modo. Este princípio informa todas as formas de exclusão da culpabilidade dos crimes dolosos, isto é,
toda a culpabilidade e funciona como critério regulador da capacidade de o estado de necessidade exculpante (em vigor no Código Penal Militar),
motivação em face da lesão aos deveres de cuidado. Quando se trata de fatos o excesso escusável da legítima defesa, a coação irresistível e a obediência
dolosos, a doutrina tem negado a aplicação deste princípio como cláusula hierárquica à ordem não manifestamente ilegal, com o efeito de excluir a
genérica de exculpação sob o argumento de que seus parâmetros são fixa- evitabilidade da realização do tipo e do resultado.
dos sem qualquer referência legal ou limitações que possam comportar, ao A ocorrência desses casos acima citados, previstos no Código Penal
menos, uma avaliação material de seus elementos. Embora a concepção (arts. 22 e 23, parágrafo único) e Código Penal Militar (arts. 38, 39, 43 e
dominante na doutrina se encontre hoje superada, aqui não vem ao caso 45, parágrafo único), ainda que rara, é perfeitamente admissível nos fatos
discutir acerca de sua aplicação nos fatos dolosos. O que importa agora culposos. Alguns exemplos:
é que, nos fatos culposos, a doutrina, ao contrário, tem-se manifestado 1. A se encontra em um cinema, quando lá irrompe incêndio. Com a
favoravelmente a tal causa geral de exculpação.878 finalidade de salvar-se, dirige-se à saída de emergência, onde se de-
Está claro, ademais, que embora se possa considerar que toda culpa- fronta com B. Pensando que B poderia suportar ainda mais alguns
segundos, pela sua aparente robustez, A, já exausto, empurra B e con-
bilidade do delito culposo está baseada na capacidade de prever e evitar o
segue sair primeiro. B, porém, morre em seguida asfixiado, por não
resultado por parte do agente e de que, por conclusão, se poderia afirmar possuir um dos pulmões, fato que A poderia ter tido conhecimento,
que ele teria condições de agir de outra forma, a atribuição de responsabili- se identificasse em B um velho conhecido (estado de necessidade
dade pessoal não pode se esgotar em um princípio genérico de exigibilidade, exculpante em ação negligente).
mas em fundamentos que digam respeito à concretização de um juízo de 2. A obriga B, com uma pistola, a dirigir em alta velocidade. B sabe que é
capacitação diante dos apelos normativos. possível um atropelamento, mas superestimando sua capacidade, dirige
A inexigibilidade, portanto, vem sempre associada a outros critérios como lhe é determinado, na esperança de que o evento não se realize.
O atropelamento de um pedestre, porém, vem a acontecer (coação
irresistível em ação culposa, exemplo de MAURACH).879
877. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 594.
878. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 308; BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, AT, p. 476; BOCKEL- 3. A ataca B com simples soco. Este deseja repelir a agressão, mostrando
MANN, Paul. Nota 7, p. 159; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 255. Entre nós, HUNGRIA, Nelson. Comen-
tários ao código penal, vol. I, tomo ll, p. 201, assim declara: “No tocante à identificação da culpa stricto uma arma. Esta, porém, devido ao excitamento de ânimo de B, é
sensu, é perfeitamente aceitável o critério da não-exigibilidade (Nichtzumutbarkeit) como causa de
exclusão da culpabilidade ...]”. 879. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 567.
490 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO A CULPABILIDADE NO FATO CULPOSO 491

sacada com extrema força e dispara, matando A (excesso escusável de tratado no erro de proibição direto.
legítima defesa em ação negligente).880
As soluções aqui propostas têm a finalidade de delimitar previamen-
4. A, chefe do trânsito local, manda B, seu motorista, dirigir em alta te o conteúdo do dever do funcionário, de conformidade com o sistema
velocidade para perseguir um infrator. B pensa que com o carro do
jurídico e atendendo ao espírito do art. 22 do Código Penal. Também
trânsito, além de lhe ser permitido correr, não haverá perigo, por ser
ele exímio motorista. Na carreira, contudo, ocasiona um acidente com serão aplicadas as mesmas regras do erro de proibição nas demais causas
graves consequências (obediência a ordem não manifestamente ilegal de exculpação, quando o agente erra no tocante ao perigo a ser evitado.
de superior hierárquico em ação negligente). Supõe o autor a existência desse perigo, quando, na verdade, ele não existe
Em todos os casos acima citados, uma vez que se trata de ações culposas (erro em ação culposa consciente). Se o erro for inevitável estará excluída a
é lícito que sejam estendidos em favor do agente os respectivos pressupostos culpabilidade; se evitável, a culpabilidade poderá ser também excluída em
das causas exculpantes previstas no Código Penal. virtude das dificuldades do agente quanto ao reconhecimento do perigo e
à sua evitação, caso contrário, será apenas atenuada.
2. PARTICULARIDADES DAS CAUSAS DE EXCULPAÇÃO
VIII. A EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE
No estado de necessidade exculpante, na coação irresistível e no excesso
escusável da legítima defesa, o juiz deve atender à grandeza do perigo para A culpabilidade como qualidade da ação tem um significado limitador.
bem jurídico do agente ou daquele que ele salva ou protege. Na obediência Nessas condições, só poderá ser afirmada quando não houver para o mesmo
hierárquica vigoram outras regras. Se a ordem for de vinculação obrigatória, fato outra solução menos rigorosa do que aquela proposta pela lei penal, por
isto é, não ofenda em tese um bem penalmente relevante, fala-se que estará força do princípio constitucional da intervenção mínima. Se nos crimes dolo-
excluída a antijuridicidade. Se a ordem for de vinculação facultativa, seu sos, estará excluída a culpabilidade pela ausência de responsabilidade quando
cumprimento constitui causa de exculpação.881 Neste aspecto, entretanto, o conflito puder ser resolvido de outro modo, com muito mais razão é este
preferimos adotar o seguinte: princípio aplicável integralmente aos delitos culposos. Isso tem particular
importância nos crimes ambientais, os quais antes de serem investigados
a) Se a ordem é de vinculação obrigatória e não resultar de lei, não há comportam uma atuação preventiva do poder público, instituindo como
que se falar em exclusão da antijuridicidade pela aplicação do princípio do medida constante da ação civil pública ou mesmo do respectivo inquérito
estrito cumprimento de dever legal. O fato será ilícito, mas o agente terá sua civil o chamado Termo de Ajustamento de Conduta (Lei 7.347/85, art. 5º,
culpabilidade excluída, por se encontrar em situação de conflito, que torna § 6º). Uma vez aceitas as condições inseridas nesse termo, estará excluída a
inevitável a perda do bem. Como medida do preenchimento do dever de obe- culpabilidade do agente por fato culposo, porque o próprio poder público,
diência devem ser tomadas as condições pessoais do agente e a inevitabilidade por meio do Ministério Público, inaugurou com o sujeito nova relação ju-
do perigo para o bem jurídico, resultante do descumprimento da ordem; rídica de modo a solucionar o conflito de forma menos rigorosa do que a
b) Se a ordem é de vinculação facultativa, por contrariar norma penal intervenção penal. O mesmo ocorre nos casos de transação penal da Lei dos
ou ofender direitos e bens da humanidade, a regra aplicável é a do erro de Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95).
proibição: se inevitável, estará excluída a culpabilidade; se evitável, subsiste a
culpabilidade, podendo-se, embora, admitir atenuação dessa culpabilidade,
quando o agente tivesse tido certa dificuldade para reconhecer o dever jurídico
decorrente das exigências concretas de cuidado. Aplicam-se também aqui
as variações correspondentes à culpa consciente e inconsciente, conforme
880. MAURACH, Reinhart. Nota 65, p. 567.
881. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 393; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 143.
CAPÍTULO 4
O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO

SUMÁRIO: I. O conceito de autor culposo – II. Os pressupostos do


concurso doloso – III. Os pressupostos da autoria culposa – III. A
suposta coautoria – IV. Autoria mediata e participação – V. A atuação
dolosamente distinta.

I. O CONCEITO DE AUTOR CULPOSO


Na teoria causal-naturalista, o autor culposo seria aquele que rea-
lizasse a ação causal, produtora do evento legalmente proibido. Com a
superação desse conceito causal dentro da configuração do tipo de injusto
pela teoria final de ação, o autor culposo passou a ser aquele que realizasse
uma ação descuidada e a concretizasse em um resultado proibido. Já com
a adoção das teses funcionais, autor culposo se constituiu naquele que
haja realizado uma ação perigosa para o bem jurídico e excedente do risco
permitido. Não obstante a introdução do risco permitido, como elemen-
to essencial na configuração do tipo dos delitos culposos, representar, de
certo modo, um avanço para nele se poder discutir a imputação objetiva
do resultado, o cerne da conceituação da autoria nesses delitos continua
sendo a realização da ação descuidada, que deve ser tomada como objeto
de referência da perspectiva de conduta do agente.
Ao adotar-se o critério de que o tipo dos delitos culposos está estru-
turado essencialmente pela violação à norma de cuidado, tem-se como
consequência que esses delitos se constituem em delitos de dever, pelos quais
se deve proceder a uma especialização dos respectivos autores.
Assim, autor de um delito culposo é somente aquele que, em face da
possibilidade de realizar uma ação perigosa, está subordinado a um dever de
cuidado incidente sobre a forma e o modo de executá-la.
A noção de delitos de dever se deve a ROXIN, que instituiu essa
categoria para diferenciá-la dos delitos de domínio e dos delitos de mão
494 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 495

própria.882 Os delitos de domínio seriam aqueles cuja forma central de ma- na teoria do delito, principalmente, como se verá adiante, no que se refere
nifestação da autoria estaria representada pelo domínio ou controle do fato. à matéria do concurso de crimes, na qual mesmo ROXIN passa a adotar
Nestes delitos, autor será quem, por si mesmo ou por meio de outrem, outra concepção, diversa daquela que hoje defende.
detém o domínio de sua realização. São normalmente delitos de domínio
os delitos comissivos sem indicação de uma qualidade especial de autoria, II. OS PRESSUPOSTOS DO CONCURSO DOLOSO
como o homicídio, a lesão corporal, o furto, o dano, etc. Já, por sua vez, Não é possível equacionar-se de maneira correta a questão do con-
os delitos de mão própria são aqueles nos quais a forma central de manifes- curso de agentes nos fatos culposos, sem antes decidir se, nesses fatos,
tação da autoria se fixa em que só podem ser realizados por quem, por sua devem estar presentes os mesmos requisitos formulados para a autoria e
própria mão, quer dizer, pessoalmente, execute a ação típica. Tal ocorre, participação nos fatos dolosos.
por exemplo, com o delito de falso testemunho (art. 342 CP), que só pode Segundo as normas que regem o concurso de agentes, nos fatos dolosos
ser executado por quem seja testemunha em determinado procedimento. gerais (os chamados delitos de domínio) será autor quem desempenhe um
Se os delitos de domínio admitem, sem maiores problemas, coautoria e papel determinante na realização do delito, o que se pode dar de três formas:
participação, assim como autoria mediata, os delitos de mão própria não a) como autor direto, isto é, executando pessoalmente a ação típica; b) como
admitem coautoria, apenas participação. Finalmente, os delitos de dever, autor mediato, ou seja, obtendo a execução da ação típica por meio do do-
que interessam à teoria da negligência, seriam os que pressupõem como mínio da vontade de outrem que a executa pessoalmente; c) como coautor,
autor, ou seja, como centro de sua realização, aqueles que lesem deter- quando realiza a ação típica comunitariamente.884 Aquele que não se situar
minado dever, sem o qual não se configura o respectivo tipo de injusto. nestas três perspectivas não será mais autor, senão partícipe.
Situam-se nesta categoria os crimes culposos e omissivos.
Por esta configuração da autoria, pode-se dizer, então, que o coautor
ROXIN havia, nas primeiras edições de sua obra acerca da autoria, deve ser portador do domínio do fato, da mesma forma que o autor direto e
classificado os delitos culposos entre os delitos de dever. Hoje, porém, o mediato. Será portador do domínio do fato, assim, quando divida o traba-
considera delitos de dever, por exemplo, os delitos funcionais próprios lho de sua realização de modo a desempenhar uma função significativa nessa
(prevaricação, corrupção passiva, concussão, etc.), os delitos militares divisão (por exemplo, segura a vítima, enquanto outro a mata).
(deserção, insubmissão, insubordinação, etc.) e os delitos omissivos im-
próprios.883 Tendo em vista, por outro lado, que os delitos culposos se Como a coautoria depende da estrutura do respectivo tipo de delito de
constituem, fundamentalmente, através da lesão a um dever de cuidado, que se trata, integram, também, na sua configuração, o dolo com relação à
será mais coerente tratá-los como delitos de dever, sem incluí-los no âmbito sua realização comunitária (resolução comum para o fato) e, ainda, se houver,
comum dos delitos de domínio. Na realidade, só terá sentido proceder-se os demais elementos subjetivos do injusto. Neste esquema, portanto, se es-
à diferenciação entre delitos dolosos e culposos, caso se tenha em conta tendem ao coautor todos os elementos que vinculam o autor ao respectivo
que, nestes últimos, o autor não dirige sua atividade em contradição frontal tipo de delito. ROXIN, com base no Código Penal alemão (§ 25, II), exige
com a norma penal proibitiva, mas, em sentido indireto, viola a proibição para a coautoria um plano comum para o fato, bem como sua execução
penal mediante o descumprimento de um dever de cuidado, que lhe era comunitária, mas de modo que a ação de cada um desempenhe uma contri-
exigido nas circunstâncias para evitar a lesão do bem jurídico. Pretender buição relevante para a sua realização final.885
incluir os delitos culposos no âmbito dos delitos de domínio, sem atentar Nem sempre é fácil distinguir-se, no caso concreto, entre coautoria e
para esse fato particularíssimo do conteúdo do injusto penal, a partir da participação. Ainda na fase da predominância do sistema causal-naturalista
violação a uma norma de cuidado, conduz a situações incompreensíveis do delito vigorava a teoria formal-objetiva, pela qual se considerava coautor
882. ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherschaft, Berlin: de Gruyter, 1ª edição 1963, capítulo IX. 884. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 14 et seq.
883. ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, II, München: Beck, 2003, p. 10. 885. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 77 et seq.
496 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 497

quem executasse, parcial ou totalmente, a ação típica, enquanto que partícipe partícipe, ainda que tivesse pessoalmente executado a ação típica.890 Por seu
seria quem apenas contribuísse para a execução da ação típica por meio de turno, a teoria subjetiva limitada se orienta também pela vontade dos parti-
uma conduta preparatória ou auxiliar.886 cipantes, mas não a toma isoladamente do contexto geral de atuação ou da
Como variante oposta, no próprio sistema causal-naturalista, destaca- contribuição de cada um para o resultado.891 Na especulação em torno da
se também a teoria subjetiva, que busca caracterizar a coautoria em função teoria subjetiva, no que toca à concepção da teoria do dolo, entende ROXIN
do sentido da vontade do atuante ou do omitente. Será, pois, coautor quem que aí se acha o momento inicial ou o fundamento precursor da teoria do
atue com vontade de autor (animus auctoris) e partícipe quem age com domínio fato, ao retratar um autor a partir do controle que exerce sobre a
vontade de partícipe (animus socii) e, ao fomentar ou produzir o fato, tome vontade dos demais participantes.892
esse fato como alheio.887 Dentro da teoria subjetiva podem ser observadas Em face das dificuldades apresentadas tanto pela teoria formal-objetiva
duas tendências quanto à caracterização da direção da vontade: a teoria do quanto pela teoria subjetiva, a jurisprudência alemã, apesar de se orientar
dolo e a teoria do interesse. pelo sentido da vontade do atuante ou do omitente, se volta para uma ob-
Pela teoria do dolo, sustentada já no século XIX por KÖSTLIN e VON jetivação dessa orientação volitiva, de modo que a postura subjetiva para o
BURI, a distinção entre coautoria e participação se daria em função da auto- fato venha a ser avaliada segundo uma consideração global de realização desse
nomia ou não da vontade. Havendo autonomia da vontade haverá coautoria. fato.893 Mesclam-se, então, elementos subjetivos e objetivos.
Onde não houver autonomia da vontade haverá apenas participação. Isto De todas as posturas, ainda deve obter a preferência a teoria do domínio
implica que a vontade do partícipe está na dependência da vontade do autor. do fato. Nos casos duvidosos, porém, pode-se valer da teoria subjetiva limi-
Se o autor não quiser o fato, o partícipe também não o quer.888 tada para comprovar se o agente quis o fato como próprio ou como alheio,
Pela teoria do interesse, a vontade do coautor será manifestada no fato o que poderá solucionar, com maior precisão, alguns casos controvertidos da
por meio do próprio interesse na sua execução, enquanto que a vontade participação punível. Assim, será coautor quem, na divisão funcional de tarefas
do partícipe é caracterizada como aquela na qual falte a manifestação de com vistas à execução do fato, tenha atuado com controle sobre essa execução,
interesse próprio.889 ainda que não a tenha realizado pessoalmente, e que, ademais, tenha agido
em função de uma cooperação comunitária para o fato, de modo que o tome
Por outro lado, a teoria subjetiva pode apresentar-se sob dois sentidos: como seu. Há enorme controvérsia quanto a se, por exemplo, o mandante
um sentido extremo, que caracteriza o que se convencionou chamar de teoria seria coautor ou partícipe, questão essa que se desenvolve em virtude de uma
subjetiva extrema, e um sentido limitado, que deu lugar à teoria subjetiva diversidade de interpretações sobre o que se deva entender por domínio do
limitada, que é a dominante na jurisprudência alemã. A teoria subjetiva fato. Enquanto ROXIN, por seu turno, considera-o como instigador, tendo
extrema – entende a doutrina – estaria hoje inteiramente superada em face em vista os requisitos básicos para a coautoria por ele traçados, todos calcados
da nova redação dada ao § 25, I, do Código Penal alemão. Por esta teoria na execução do fato,894 outros, como JAKOBS, o incluem como coautor, em
subjetiva extrema, se faltasse a qualquer dos participantes a autonomia da
vontade ou o interesse próprio na execução do delito, de modo que estivesse 890. A decisão paradigmática do Tribunal do Reich, RGSt 74, 84, de 1940, que encampou a teoria subjetiva
extrema e se tornou o objeto preferencial da crítica da doutrina se deu sobre o conhecido “caso da ba-
submetido à influência da vontade ou do interesse de outrem, seria ele apenas nheira”: duas irmãs viviam na região do Mosela e ambas esperavam um filho ilegítimo; o pai era um
tirano; quando uma delas dá à luz, pede a outra irmã que afogue o recém-nascido na banheira, para evitar
que o parto fosse descoberto pelo pai. Naquela época era cominada ao homicídio a pena de morte. O
886. Com este pensamento, ainda hoje, FREUND, Georg. Strafrecht, AT, Berlin-Heidelberg, 1998, p. 330. juiz de primeira instância condenou a homicida justamente à pena de morte, mas o Tribunal do Reich
887. O principal partidário desta teoria entre os penalistas modernos é JÜRGEN BAUMANN. Strafrecht, reformou a sentença e, argumentando que ela atuara com animus socii e não com animus auctoris,
AT, 7ª edição, Bielefdeld: Gieseking, 1975, p. 552 et seq., o qual tem seus passos seguidos por seu dis- condenou-a somente como cúmplice e não como co-autora do fato, o que lhe valeu, e também à mãe da
cípulo ULRICH WEBER, a partir da 9ª dição, 1985, a qual foi por este atualizada. criança, uma pena de prisão reduzida.
888. VON BURI, Maximilian. “Urheberschaft und Beihilfe”, Goltdammer´s Archiv, nº 17, p. 233, 1869; 891. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 167.
KÖSTLIN, Christian Reinhold. Neue Revision der Grundbegriffe des Kriminalrechts, Tübingen: Lau- 892. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 12.
pp, 1845, p. 464. 893. Indicações em ROXIN, Claus. Nota 895, p. 13 e em WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 167.
889. Para uma exposição mais particularizada, ROXIN, Claus. Nota 895, p. 11. 894. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 78, acrescenta, como requisitos para a co-autoria, um plano comum para
498 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 499

virtude de sua concepção própria acerca do que denomina de “domínio da sua conduta põe em perigo ou lesa, diretamente, o bem jurídico. O autor
forma de manifestação para o fato”;895 uma terceira corrente, defendida por culposo pode realizar uma ação perigosa e só será efetivamente autor de um
STRATENWERTH, partindo do princípio da planificação e organização, faz delito culposo quando tenha violado uma norma de cuidado e concretizado
depender a solução do fato se a contribuição do mandante era ou não decisiva esta violação no resultado proibido.
para a sua execução, ou seja, o chefe do bando, por exemplo, seria coautor na Pela confrontação entre conduta dolosa e norma, bem assim, portan-
medida em que tivesse um absoluto domínio sobre os autores diretos, de tal to, entre conduta e bem jurídico, ao autor do delito doloso não se exige
modo que estes só executariam o fato se aquele, assim, o determinasse.896 Parece que, na sua atividade, deva subordinação a uma norma de dever. Como
que a concepção que melhor argumenta acerca dos pressupostos e elementos está em confronto com uma norma de proibição ou de comando, a ava-
da coautoria e da participação, nesta hipótese, é a de STRATENWERTH, liação jurídica se fará diretamente sobre sua conduta. Entretanto, em um
porque, na verdade, o domínio do fato não pode ser aferido, de antemão, por Estado democrático de direito não basta para a imputação que alguém se
um elemento abstrato, mas somente diante de sua execução concreta. confronte com a norma, é preciso, ademais, que este confronto seja em-
III. OS PRESSUPOSTOS DA AUTORIA CULPOSA piricamente demonstrável. Daí, atendendo à sua característica conflitiva
para com a norma, é de se exigir que exerça ele um completo e constante
Não obstante a preferência pela teoria do domínio do fato e da utili-
controle da realização do fato. Só com esta exigência é que se pode afirmar
zação suplementar da teoria subjetiva limitada, o tratamento do concurso
que ele, efetivamente, se confronta com a norma. Está claro que quem
de agentes no delito culposo pressupõe o esclarecimento de dois pontos
executa diretamente a ação típica será autor ou coautor, conforme atue
relevantes: a) se os delitos culposos pertencem à mesma categoria dos delitos
individualmente ou não, porque neste caso estará, também, em confronto
de domínio; b) se os delitos culposos podem comportar uma avaliação ob-
com a norma respectiva. Ainda que, como bem se explicita com a teoria do
jetivo-subjetiva, de forma a possibilitar uma diferenciação entre aqueles que
domínio do fato, não seja necessário que este autor execute pessoalmente
têm o fato como próprio daqueles que o tomam como alheio.
a ação típica, só será autor de um delito doloso se agir de tal modo que
Quando da análise da estrutura do tipo dos delitos culposos, ficou possa viabilizar uma avaliação empírica sobre se, com sua conduta, influi
consignado que estes guardariam uma diferença substancial, em termos de decisivamente na realização do fato.
imputação, para com os delitos dolosos. Enquanto nos delitos dolosos a Tendo em vista esta característica, a coautoria nos delitos dolosos está
norma simplesmente proíbe ou determina uma conduta, nos delitos culpo- subordinada a requisitos sem os quais não pode subsistir. São requisitos que
sos a proibição só se dá em função do descumprimento de um dever. Quer tem o objetivo de, negativamente, pôr à prova se a atividade concreta está
dizer, então, que a proibição não pode ser exercida pelo fato de que a conduta em confronto com a norma. Estes requisitos, portanto, não defluem de uma
seja por si mesma perigosa quando de sua execução, mas apenas quando ela simples elucubração intelectual, mas da relação concreta entre a atividade do
tenha contrariado uma norma de cuidado. Esta distinção substancial entre os agente e a proibição ou o comando normativo.
delitos dolosos e culposos deve refletir-se no âmbito do concurso de agentes.
Diversamente do que se dá nos delitos dolosos, nos delitos culposos
O autor doloso está, desde o início, em contraposição à norma, porque com
a relação entre agente e norma proibitiva não é efetivada mediante uma
avaliação direta de confronto entre o que se faz, ou não se faz, e o que está
o fato, uma execução comunitária e uma contribuição essencial, de cada um, para essa execução. Está
claro, então, que, por esses requisitos, o mandante só poderia ser classificado como instigador e não proibido, ou mandado. Aqui, a relação se concretiza mediante a intervenção
como co-autor.
895. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2a. edição, p. 623.
de duas normas de categorias distintas: uma norma de cuidado e uma norma
896. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 326: “O mesmo vale para o apoio psíquico: haverá instiga- proibitiva. Para que o agente possa ser enquadrado como autor é preciso,
ção ou cumplicidade, se o amante induzir a mulher casada, ou fortalecer sua resolução, a eliminar seu
marido; haverá co-autoria, se a mulher – como ambos sabem – só atuar porque e na medida em que seu assim, que, primeiramente, realize uma ação perigosa; depois que essa ação
amante com ela se solidarizar, não importando se a própria execução ficar apenas a ela confiada.” No
mesmo sentido, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 680; KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, 3ª. edição, p. perigosa se confronte com uma norma de cuidado que se destina a regular
772; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 178..
500 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 501

aquela espécie de atividade que está sendo desenvolvida; finalmente, que a Por outro lado, quando da estrutura do tipo de injusto, ficou con-
execução dessa atividade descuidada se tenha exaurido no resultado proibido, signado que os delitos culposos não comportam a constituição de um tipo
o qual lhe pode ser objetivamente imputado. Vê-se, então, que, nesta sequên- subjetivo, ainda que na forma da culpa consciente. A configuração de um
cia, o autor passa a violar a norma proibitiva (aquela que proíbe o resultado) tipo subjetivo só teria sentido se houvesse, nos delitos culposos, a possi-
por meio da violação de uma determinativa (norma de cuidado). Só quando bilidade de congruência entre a ação causal e a vontade do agente, o que
se dá a última etapa desse desenvolvimento é que se poderá afirmar que um não ocorre. Assim, não será possível proceder-se nos delitos culposos a uma
agente é autor de um delito culposo. avaliação objetivo-subjetiva, de modo a compor os elementos da teoria do
Como a questão da autoria depende, substancialmente, da relação domínio do fato com a teoria subjetiva limitada.
entre agente e norma e de sua postura em face do perigo ou da lesão ao bem A compreensão da autoria culposa, por conseguinte, é derivada de
jurídico, os fundamentos da autoria culposa devem ser diversos daqueles um juízo de imputação diferenciado sobre a base de uma relação normativa
formulados para a autoria dolosa. Se a coautoria pode ser conceituada, a complexa, o que conduz a maiores exigências para a sua caracterização.
grosso modo, como a execução do fato mediante a participação de mais de
um autor, seus pressupostos devem obedecer, em linhas gerais, aos mesmos IV. A SUPOSTA COAUTORIA
pressupostos exigidos para a autoria, vale dizer, as características da autoria Em função dessa relação normativa complexa, os delitos culposos não
dos delitos culposos, sendo distintas daquelas dos delitos dolosos, devem comportam coautoria, somente autoria colateral.897 Caso um determinado
submeter-se a regras próprias e, também, diferenciadas. Atendendo a estas evento tenha contado com a participação de mais de uma pessoa, cada uma
circunstâncias, podemos, agora, tratar de responder às questões inicial- responderá, individualmente, pelo delito culposo respectivo. Assim, no
mente propostas. conhecido exemplo de dois operários que jogam conjuntamente uma tábua
Se, no fato doloso, se pode prescindir de como o autor execute a ação, de um andaime e acabam produzindo lesão em um transeunte, a responsa-
o mesmo não se dá no fato culposo. Aqui, a execução está condicionada ao bilidade de ambos não pode ser afirmada no sentido de uma coautoria. É
modo e à forma como determinado autor viola a norma de cuidado e, através que cada um deles tem uma relação própria para com a norma de cuidado,
disso, produz a lesão do bem jurídico. Se o autor culposo está vinculado a o que exige que seja submetido a um processo de avaliação mais pormeno-
uma norma de cuidado, está, igualmente, submetido a um dever de agir de rizado. Inclusive, dependendo da espécie de previsibilidade (taxonômica,
certa forma e de certo modo. Se esta forma e este modo não o condicionarem, estrutural, fenomenológica ou temporal), fator que tem suscitado inúmeros
não se lhe pode imputar o resultado proibido. Daí se dizer que os delitos problemas na doutrina penal, é essa distinta de pessoa para pessoa. Em
culposos são uma subespécie dos delitos de dever. alguns casos, como na previsibilidade temporal, ou na fenomenológica,
o critério de sua aferição não pode se basear, exclusivamente, em dados
Tratando-se de delitos com um tipo de estruturação complexa, no
objetivos, mas sim em um complexo de condições objetivas e pessoais.
qual estão mesclados dever extrapenal, proibição penal e resultado impu-
Examinando as particularidades da percepção das coisas, HOLZKAMP,
tável, cada autor detém características objetivas próprias que não podem
talvez o mais eminente psicólogo nesta matéria, assinala que a atividade
ser estendidas simplesmente a qualquer um que tenha contribuído cau-
de orientação é fundamentalmente uma manifestação do indivíduo, o qual
salmente para o resultado proibido. Portanto, os delitos culposos não são
não recepciona os dados diretamente do mundo, mas em função de sua
simplesmente delitos de domínio, nos quais o importante é o controle
postura vital desenvolvida a partir do mundo898, o que significa dizer que
que o agente exerça sobre a sua realização, mas delitos cuja substância se
encontra – repita-se – na forma e no modo como o agente é alcançado pela 897. Assim, com esta posição, BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, pg, 2ª edição, 1999, p. 501; BA-
TISTA, Nilo. Concurso de agentes, 2008, p. 84 ; COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 111 et seq.;
proibição, a partir do não atendimento a um dever de cuidado, o qual, FREUND, Georg. Strafrecht, AT, 1998, p. 379; GROPP, Walter. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 347; JES-
CHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 573; LACKNER-KÜHL. StGB, 24ª edição, 2001, p. 170; CIRINO
inclusive, deverá impregnar todo o processo de imputação. DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 249; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Nota 146, p. 690.
898. HOLZKAMP, Klaus. Grundlegung der Psychologie, 1983, p. 253.
502 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 503

a percepção que cada um tem da realidade, para daí extrair os elementos por um fato menos grave, isto é, derivado de uma atividade que só indire-
que podem fundamentar o cuidado objetivamente devido, não pode ser tamente se confronta com a norma proibitiva, seja calcada, exclusivamente,
tomada em comum, mas segundo as experiências internalizadas de cada na fórmula da condicio sine qua non ou se oriente pelos fins da pena cri-
sujeito. Caso não se proceda a esta diversificação na avaliação da própria minal. Esta perspectiva garantista mais se afirma quando se projetam esses
norma de cuidado, estará desqualificado o próprio processo de imputação e dados às modernas especulações sobre a responsabilidade penal com relação
não se poderá, igualmente, estruturar a culpabilidade em função do evento a fatos complexos.
efetivamente realizado. Como diz KRAATZ, a chamada coautoria culposa é Vejamos um caso muito polêmico ocorrido na Suíça e relatado por
apenas uma “figura simbólica”, que só serve de argumento para a doutrina STRATENWERTH: dois operários, em resolução comum e cada qual
justificar a extensão da responsabilidade penal a determinados eventos, nos realizando a respectiva tarefa, empurram para um vale várias pedras, sendo
quais a própria causalidade não possa ser empiricamente comprovada.899 que uma delas vem a rolar sobre um transeunte, produzindo-lhe a morte.
Diversamente do que se dá, assim, no delito doloso, no delito culposo Investigado o fato, não se chegou à conclusão de qual das pedras efetiva-
não se pode reconhecer uma unificação das condutas sob o plano de uma mente produzira a morte da vítima.903 ROXIN quer resolver esta hipótese,
resolução comum ou uma causalidade conjunta para o fato.900 Atendendo em atenção à finalidade de política criminal e com o único propósito de
a estas particularidades, o processo de imputação está aqui subordinado evitar a absolvição de ambos, como uma autêntica situação de coautoria.904
a um juízo de avaliação que vai desde a consideração objetiva do desdo- Uma vez que na coautoria se prescindiria de que cada um dos coautores
bramento da atividade até a sua individualização. Assim, no exemplo dos contribuísse de modo causal para o resultado, mas apenas com a execução
operários, cada um deles só poderá ser autor colateral de lesão corporal da conduta, a responsabilidade estaria resolvida com a demonstração de
culposa, jamais coautor. Com essa individualização da participação de cada que, efetivamente, ambos rolaram as pedras e que uma delas, não importa
um o que se obtém é uma melhor e mais perfeita especificação de sua qual delas, matara o transeunte. Ainda que sedutora esta tese para sustentar
responsabilidade, evitando-se, pois, uma generalização que só conduz a uma acusação, ela viola preceito fundamental da responsabilidade penal
perplexidades e soluções controvertidas. Analisando a atuação em grupos, e, principalmente, a exigência da demonstração efetiva da relação causal
assinala MANSDÖRFER que embora a atuação coletiva possa facilitar, entre ação e resultado, tal como está exaltado no art. 13 do Código Penal
em alguns casos, a produção do resultado, cada indivíduo conserva nessa brasileiro.905 Se não se descobrir qual das pedras atingiu a vítima, é de se
atuação coletiva suas características pessoais e se vincula, pessoalmente, aos aplicar, aqui, o princípio in dubio pro reo e absolver ambos os operários.906
deveres de cuidado que lhe são impostos.901 O fato de agir coletivamente O que é vedado é concluir no sentido de uma responsabilidade por mera
não implica considerar que o sujeito deva responder como coautor em construção argumentativa. O operário cuja pedra não atingiu a vítima está
relação aos resultados daí advindos.902 excluído da relação de causalidade, independentemente dos argumentos ju-
Embora essa configuração dos fatos culposos em função do compor- rídicos que possam ser utilizados na solução da questão.907 Valem, ademais,
tamento de cada autor respectivo possa, à primeira vista, se chocar com as 903. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, 2000, p. 433.
evidências de um processo causal ou funcional de imputação, no fundo cor- 904. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 96.
905. Este é o raciocínio articulado por RENZIKOWSKY, Joachim. “Die fahrläsiige Mittäterschaft”, FS für
responde a uma perspectiva garantista de impedir que a responsabilidade HARRO OTTO, Berlin, 2007, p. 426, para quem é impossível pensar-se em uma responsabilidade sem
se demonstrar, primeiramente, a causalidade entre a conduta descuidada e o resultado, relativamente a
cada um dos participantes do acontecimento.
906. No sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal da Alemanha, assim decidiu o Tribunal de
899. KRAATZ, Erik. Die fahrlässige Mittäterschaft. Ein Beitrag zur strafrechtlichen Zurecnhungslehre auf Schleswig (OLG Schleswig NStZ 1982, 166) no famoso caso da caixa de fósforos: dois ladrões
der Grundlage eines finalen Handlungsbgeriffs, Berlin: Duncker & Umblot, 2006, p. 296 et seq. penetraram em uma fábrica, en plena escuridão; como nada enxergassem, resolveram acender alguns
900. Assim, negando qualquer possibilidade de co-autoria, BOTTKE, Wilfried. “Mittäterschaft bei gemein- fórforos, para ali se orientarem; em consequência das fagulhas, eclodiu um incêndio no local; como
samer fahrlässiger oder leichtfertiger Erfolgserwinkung”, Goltdammer´s Archiv, 10, 2001, p. 474 et seq. não fosse possível determinar de qual das caixas de fósforos utilizadas adveio a fagulha que deu causa
901. MAINSDÖRFER, Marco. “Responsabilidad e imputación individuales en la ejecución de tareas en un ao incêndio, resolveu o tribunal absolver ambos os ladrões em relação a esse fato, aplicando, então, o
grupo”, Revista para el análisis del derecho (InDret), Barcelona, 2007, p. 9. princípio in dubio pro reo.
902. MAINSDÖRFER, Marco. ob. cit., p. 14. 907. Com a mesma conclusão, KRAATZ, Erik. Die fahrlässige Mittäterschaft, 2006, p. 358.
504 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 505

aqui, as considerações já expedidas quanto à determinação da causalidade Como, entretanto, a norma do art. 29 do Código Penal, que disciplina
em relação a fatos complexos. o concurso de agentes no direito brasileiro, não limita a participação a fatos
A conclusão de que os delitos culposos não comportam coautoria dolosos, a questão adquire aqui outros contornos, que só podem ser traçados
não se choca, por seu turno, com a norma do art. 29 do Código Penal. normativamente.
Ainda que ali se disponha que “quem concorre para o crime incide nas É interessante observar, para se obter uma correta interpretação do
penas a este cominadas”, isto não implica admitir o concurso de agentes art. 29, como se foram processando as teorias que fundamentam a par-
em todas as espécies de crime. Veja-se, por exemplo, que, em delitos de ticipação punível no direito penal. No direito alemão, vários foram os
mão própria, é conceitual e materialmente impossível haver coautoria. argumentos a favor da disciplina contida, hoje, nos §§ 26 e 27 do Código
Como pode alguém que não seja testemunha em determinado processo Penal. Inicialmente, como não havia essa limitação de que a participação só
ser coautor de falso testemunho, se não está sendo ouvido pela autoridade se poderia dar nos delitos dolosos, a jurisprudência dos tribunais daquele
competente e nem tem o dever de dizer a verdade? A norma do art. 29, país, impregnada pela estrutura causal-naturalista do delito, se manifestava
portanto, deve ser interpretada de conformidade com a estrutura própria no sentido de admiti-la igualmente nos delitos culposos. Isto decorria de
de cada espécie de delito. Na expressão relativa a concorrer para o crime, dois fundamentos: primeiro, para haver participação bastava que os partí-
que constitui o cerne da questão do concurso de agentes segundo o art. 29 cipes tivessem realizado um fato típico e antijurídico, quer dizer, adotava-se
do Código Penal, se devem compreender, assim, apenas as hipóteses nas a teoria da acessoriedade limitada, pela qual a culpabilidade não integra
quais essa concorrência seja possível, quer pelo aspecto material, quer pelo a relação de concurso; segundo, como o dolo e a culpa estavam situados
âmbito normativo. Por outro lado, essa expressão, por exemplo, não pode se na culpabilidade, era perfeitamente possível a participação tanto em fatos
sobrepor aos elementos que configuram o processo de imputação, tal como dolosos quanto culposos. Mais tarde, com a alteração que se propôs, na
a relação de causalidade e os limites normativos que lhe são impostos, do estrutura do delito, pela teoria final da ação, de modo a situar o dolo no
contrário justificaria a punição do fabricante da cama pelo crime de estupro próprio tipo e não mais na culpabilidade, a participação não poderia ser
que fora cometido sobre ela. inferida da simples causalidade, mas deveria ajustar-se à espécie de delito
de que se tratava, qual seja, se doloso ou culposo. Em busca de uma solução
V. AUTORIA MEDIATA E PARTICIPAÇÃO que disciplinasse de modo racional a participação punível e em face das
Uma vez descartada a hipótese de uma coautoria em fatos culposos, inúmeras dificuldades decorrentes da elaboração de uma regra que atendes-
cumpre verificar se estes comportam a participação ou a autoria mediata. se às diversas particularidades dos delitos dolosos e culposos, o legislador
No direito alemão, do qual provêm quase todas as inspirações da mo- alemão optou por restringir o âmbito da participação punível aos delitos
derna teoria do delito, a participação nos delitos culposos não seria possível, dolosos, tanto na forma da instigação quanto da cumplicidade.
porque, de conformidade com os §§ 26 e 27 do respectivo Código Penal, Antes dessa regra travou-se, porém, uma ampla discussão em torno
tanto a instigação quanto a cumplicidade dizem respeito, exclusivamente, da possibilidade da participação (instigação e cumplicidade) em fatos cul-
a fatos dolosos. Por outro lado, devido à especial configuração da autoria posos. Por um lado, situavam-se WELZEL e BOCKELMANN, para os
mediata, na qual alguém comete o fato por meio de outrem, será sempre quais a participação em delito não doloso estaria em contradição com a
de se exigir o controle do autor mediato sobre a execução da ação realizada natureza das coisas, ou com as chamadas categorias lógico-objetivas.909 Do
pelo autor direto, o que contradiz a estrutura do fato culposo, no qual o lado oposto situava-se, entre outros, ROXIN, para quem seria admissível
agente não atua com esse propósito e nem, ademais, poderá fazê-lo com
relação à produção do resultado.908 autor adotada pelo finalismo.
909. BOCKELMANN, Paul. Strafrechtliche Untersuchungen, Göttingen: Schwartz, 1957, p. 74; WELZEL,
908. Assim, também, COSTA JÚNIOR, Heitor (Nota 187, p. 114), para quem os casos de autoria mediata, Hans. Aktuelle Strafrechtsprobleme im Rahmen der finalen Handlungslehre, Karlsruhe: C.F.Mueller,
que alguns autores resolvem apenas com a responsabilidade civil, são incompatíveis com a noção de 1953, p. 15.
506 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 507

uma participação em fato não doloso nos delitos de dever, como seria o participação nesses fatos foi consignado por WELZEL, antes mesmo da
caso do delito culposo.910 ROXIN mudou de opinião depois, como já se reforma do Código Penal alemão, que passou a restringi-la aos fatos dolosos.
viu, porque não mais considera os crimes culposos como delitos de dever, Dizia WELZEL que se “a acessoriedade não requer um fato principal culpá-
mas os argumentos que articulava na época são interessantes e vale a pena vel, pressupõe, não obstante, um fato principal antijurídico doloso”. E mais
reproduzi-los para se ter uma ideia correta de como se deu a evolução adiante acrescentava que a “admissão de uma instigação a um fato principal
da teoria da participação em delitos culposos. O argumento principal de não doloso conduziria a uma total inversão das condições de vida e a repre-
ROXIN residia em que, nesses delitos, não é o dolo, mas a violação ao dever sentações completamente alheias à tradição nacional”. Assim, “quando o
que assinalava a diferença substancial entre autoria e participação. Assim, legislador, relativamente a determinados tipos (os delitos especiais próprios),
na hipótese de alguém que, dolosamente, instiga um motorista a dirigir restringe a imposição de punibilidade a determinado grupo de autores – por
em excesso de velocidade e de que resulta a morte de um transeunte, seria razões mais ou menos ponderadas –, resulta contra legem, mediante o sub-
admissível puni-lo como instigador do delito culposo de homicídio que o terfúgio de uma participação em fatos principais não dolosos, dar cabida à
motorista praticara. Como o importante não é o dolo, mas o fato de que punibilidade com independência de uma autoria que fundamente a pena e,
o carona está, também, vinculado a uma norma de cuidado, em função do deste modo, ampliá-la a outro grupo de autores.”914 Afora essa argumentação
que possa levar o motorista a fazer, a caracterização da instigação seria aqui típica de política criminal, que sob este ponto de vista é, inclusive, garantista,
perfeitamente correta. Nesse sentido, se orienta parte da doutrina nacional, são ainda relevantes outros fundamentos.
que ora admite apenas a instigação,911 ora a participação em qualquer de O ponto de partida para se exigir que a participação só se pode dar em
suas espécies (cumplicidade e instigação).912 fatos dolosos é dado pela solução que se pode oferecer aos casos de erro do
Apesar de ser aparentemente racional a ideia de uma instigação dolosa partícipe em relação à atuação dolosa do autor principal. Aliás, foi justamente
punível em um delito culposo, principalmente em função dos fins de política em função dessas hipóteses que se travou a mais intensa discussão sobre a
criminal no sentido de suprir lacunas legais, ela precisa ser posta em con- admissibilidade da participação em delitos culposos.
fronto com aquela assertiva doutrinária, repetida useiramente, de que não há Por exemplo: A induz B a apresentar uma notícia crime à polí-
participação dolosa em crime culposo e vice-versa. Esta assertiva sempre teve cia, acreditando, falsamente, que B sabia tratar-se de uma comunicação
sua razão de ser na necessidade de uma unidade de resolução para o fato. Isto incorreta, embora B ignorasse essa circunstância e pensasse que, efetiva-
continua válido, ainda, no sistema funcional, salvo se estivermos atrelados mente, a notícia crime era correta (caso citado por MAURACH), ou A
a uma solução puramente oportunista de obter a qualquer custo a punição instiga B a atirar contra C, mas não sabe que B toma C, erroneamente,
de alguém, tal como preconizado por DAHM, que dizia que “o temor pela por um animal que se mexia atrás de um arbusto (citado por BOC-
impureza dos conceitos não deve conduzir ao medo diante de resultados KELMANN).915 Nestes dois casos, podem ser notados alguns elementos
injustos”.913 Não basta, assim, para a punibilidade de uma conduta, que se importantes na fixação dos pressupostos da relação entre os partícipes.
articulem argumentos em função de resultados, mas que esses argumentos O que se deve extrair dos exemplos é o seguinte: aqui há um autor direto
possam ser submetidos a rigoroso exame e a um processo de refutação. que não domina sua conduta, a qual está sendo levada pela vontade do
Atendendo a isso, vejamos como deve ser o tratamento da participa- indutor. Mas, por outro lado, o indutor não atua nem como partícipe
ção nos fatos culposos. O principal argumento contra a admissibilidade da nem como autor. No primeiro caso, A não é autor porque quer o fato
como alheio, ou seja, A acredita que o fato é de B, que este, afinal, sabe o
910. ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherschaft, 16ª edição, Berlin – New York: de Gruyter, 1994, p. 370.
que faz e A apenas o instiga a fazê-lo; mas sem o saber, acaba controlando
911. PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 398.
912. Admitindo por força do art. 31 do Código Penal, REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito
penal, vol. I, p. 324. 914. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 162 e 163.
913. Referência em ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherschaft, 16ª edição, p. 366. 915. ROXIN, Claus.Täterschaft und Tatherschaft, 16ª edição, p. 261.
508 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 509

sua execução, pois leva B a proceder a uma comunicação falsa, o que ao cuidado necessário incidente sobre essa execução. Argumentar-se que o
lhe retira a condição de partícipe. Igualmente no segundo caso, A pensa carona também está submetido a uma norma de cuidado relacionada à di-
estar participando de fato alheio, ou seja, acredita que está instigando B reção do veículo é um completo absurdo, porque conduziria a criar normas
a atirar contra uma pessoa, o que lhe retira a condição de autor e lhe dá de cuidado pelo simples fato de se viver em comunidade.
a de partícipe; por outro lado, não será autor nem partícipe, porquanto Diversa será, porém, a solução para o caso, sempre comentado, do
não pode estender seu dolo à representação subjetiva do autor direto, ou instrutor de autoescola que determina a seu aluno que realize manobra
seja, na realidade, está dominando o fato, mas inconscientemente. Estas arriscada, da qual resulta acidente e consequente lesão dos ocupantes do
circunstâncias retratam bem a dificuldade de se encontrar um fundamen- outro veículo. Nesta hipótese, como nas precedentes, deverá ser analisada,
to correto para a participação, quando o instigador não pode determinar, isoladamente, cada uma das condutas: do condutor-aprendiz e do instrutor
com precisão, os limites e o alcance do dolo de instigação, ou quando essa da autoescola. Embora o condutor curse a escola de condução, portanto,
ação se desvia daquilo que o instigador queria. O mesmo fenômeno se dá se encontre em estágio de aprendizado, pode, em muitas situações, per-
quando da instigação ou cumplicidade dolosa em fato culposo. ceber que atua em contraposição a uma norma de cuidado, até mesmo
O grande argumento de ROXIN, ao defender a possibilidade de tal porque, antes de aventurar-se a dirigir o veículo, deverá ser alertado pelo
participação em fatos culposos, antes da reforma de 1975, residia em superar, instrutor acerca das ações proibidas ou arriscadas. Quer dizer, então, que
aqui, o fundamento exclusivo do domínio do fato e trabalhar com o conceito o condutor-aprendiz poderá realizar, por si mesmo, uma ação arriscada
de delitos de dever, o qual ele mesmo abandonou, mas por outros motivos. e, portanto, uma ação culposa. Por sua vez, o instrutor só poderá exercer
Independentemente de que hoje ainda se deva trabalhar com o conceito de seu ofício, uma vez habilitado especialmente para tanto, nos termos do
delitos de dever, mesmo sob a ótica de uma teoria moderna do concurso de art. 155 do Código de Trânsito. Assim, não é um simples acompanhante
agentes, não seria possível admitir-se participação em fato culposo. Assim, do ato de direção, procedido pelo aprendiz; deve atender, em face de seu
uma vez que se conjuguem – como faz a jurisprudência alemã – no concurso especial conhecimento e ainda do papel de garantidor da boa condução,
de agentes, os enfoques da teoria do domínio do fato e da teoria subjetiva todas as normas de segurança que devam ser observadas na circulação de
limitada, é inviável conceber-se uma participação em delitos culposos, uma veículos. Justamente, em função dessa condição especial de instrutor, a
vez que tanto o cúmplice quanto o instigador não podem estender o seu dolo violação à norma de cuidado pela má direção do veículo é também rea-
ao fortalecimento da ação descuidada, porque então seriam os verdadeiros lizada por ele, independentemente da ação do aprendiz, o que, de forma
autores, mas de fato não o seriam, porque tomam o fato como alheio; da definitiva, descarta a invocação de uma possível participação culposa na
mesma forma, será também inadmissível uma participação na hipótese de modalidade de instigação, como poderia sugerir a doutrina tradicional.
delitos de dever. É que, simplesmente, nem o instigador nem o cúmplice se Poder-se-ia pensar, aqui, em uma autoria mediata por parte do instrutor,
encontram submetidos aos deveres de cuidado, que só afetam quem, efeti- mas isso esbarra na dificuldade de se demonstrar, como já se salientou, o
vamente, exerça a atividade perigosa. exercício do domínio do fato nos delitos culposos. Em face mesmo dessa
Assim, no exemplo daquele que instiga o motorista a correr mais do dificuldade, é que se impõe a consideração dos delitos culposos como deli-
que o permitido, não há, por parte do instigador, qualquer infração a uma tos de dever, com conteúdo nitidamente omissivo. Se o instrutor exerce um
norma de cuidado. Aqui há um impasse: ele não pode ser autor, porque não ofício e está subordinado a deveres de orientação, em razão desse exercício,
tem dolo de autor; não pode ser partícipe, porque, se seu dolo se estender à parece que se lhe configura, então, uma nítida posição de garantidor. O
ação descuidada, será então autor e não mais partícipe de crime doloso; não instrutor, como garantidor da boa condução do aprendiz, uma vez que o
pode ser partícipe, igualmente, porque, para tanto deveria executar a ação pe- induza, culposamente, a violar os deveres que são inerentes à condução,
rigosa e se o fizesse seria autor, bem como não a executando está desobrigado atua também de modo contrário aos deveres de proteção que lhe são im-
postos pela condição de garantidor. Não se deve descartar, além disso, que,
510 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE AGENTES NO FATO CULPOSO 511

em determinadas circunstâncias, quando se trate de culpa inconsciente por VI. A ATUAÇÃO DOLOSAMENTE DISTINTA
parte do aprendiz, possa este ser desculpado, agora em face da inevitabilida-
Nosso Código Penal, buscando superar os resquícios de responsabili-
de do resultado, apreciada subjetivamente. Se o aprendiz desconhecia que
dade objetiva que estavam armazenados na sua primitiva redação, dispõe no
sua manobra implicava uma violação à norma de cuidado e só a efetuara
art. 29, § 2º, que se “algum dos concorrentes quis participar de crime menos
por confiar na habilidade do instrutor, não poderá evitar pessoalmente o
grave, ser-lhe aplicável a pena deste; essa pena será aumentada até metade,
resultado, o que lhe exclui a culpabilidade. Dá-se, então, um erro quanto
na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.
à norma de cuidado, o qual deve ser tratado no âmbito da culpabilidade
e não da tipicidade, justamente por não se reconhecer, no delito culposo, Como se pode observar, esta regra se destina, na verdade, aos delitos do-
um tipo subjetivo, tal como ocorreria no delito doloso. losos, em cuja divisão funcional de trabalho um dos coautores, ou partícipes,
não estende seu dolo a um resultado mais grave, que pode constituir ou uma
A partir desses dois exemplos, que configuram soluções extremamente
forma de qualificação do delito inicialmente acordado ou outro delito diverso.
complexas, pode-se concluir que a participação é, logicamente, inadmissí-
Isto implica, portanto, a quebra do elemento subjetivo, de modo a interromper
vel nos delitos culposos, ainda que sejam concebidos como delitos de dever.
o processo de imputação e, assim, a coautoria ou a participação.
Cada um dos participantes deve responder como autor pela sua respectiva
ação, dolosa ou culposa.916 Caso não haja previsão legal para a punibilidade Pode ocorrer, no entanto, que o resultado mais grave seja culposo,
de um dos autores, por não lhe ser possível imputar o resultado, isto não o que daria lugar – caso, assim, a lei o preveja – a um delito qualificado
implica a necessidade de uma argumentação que busque suprir esta lacuna. pelo resultado. Pela regra do Código Penal, se o resultado for culposo não
Como diz WELZEL, este é um problema de opção legislativa e não dou- haverá, igualmente, coautoria ou participação, aliás na trilha das conclu-
trinal, que deve subordinar-se ao princípio da legalidade.917 sões expostas nos verbetes precedentes. Cada autor responderá pela sua
respectiva ação, por exemplo, por lesão corporal seguida de morte e por
Não socorre a posição contrária argumentar-se com o art. 31 do
lesão corporal simples ou grave, conforme o caso. Mas, como aquele que
Código Penal. A regra ali contida de que o “ajuste, a determinação ou
responde pelo crime menos grave havia participado, inicialmente, de um
instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são pu-
delito doloso, poderá ter sua pena aumentada até metade se o resultado
níveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado” tem a finalidade de
mais grave, ou seja, o resultado culposo, também atribuído ao outro par-
limitar o âmbito de incidência da participação e não implica unir todas as
ticipante, lhe for previsível.
suas formas sob o fundamento comum da simples causalidade. Quer dizer,
então, que esta regra deve subordinar-se às características e à estrutura dos Aqui se opera uma situação bastante complexa, mas que demonstra
fatos culposos, que se constituem, ademais da causalidade, de infração a que, de acordo com o Código Penal, o delito culposo não se resume na afir-
deveres de cuidado, que condicionam todo o processo de imputação. Por mação ou na negação da previsibilidade. A previsibilidade, nesta hipótese,
outro lado, pelo que se depreende de seu enunciado, essa regra do art. constitui unicamente um critério de agravação de pena do delito doloso
31 não tem destinação própria aos delitos culposos, mas, sim, aos delitos e não elemento de delito culposo. Nada obsta, porém, que se apliquem,
dolosos, uma vez que assinala como marco divisório da punibilidade a aqui, todas as propriedades do critério da previsibilidade.
tentativa, que é inadmissível na negligência.

916. Com esta posição, entre outros, BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004, p. 79 et seq.; COSTA JÚNIOR, Heitor. Nota 187, p. 112; CIRINO DOS SANTOS, Juarez.
Nota 93, p. 252. Rejeitando a participação, mas admitindo a co-autoria, René Ariel Dotti, Curso de di-
reito penal, parte geral, 2001, p. 358, e BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal, pg, vol. I, 2000,
p. 392. Equivoca-se, porém, este último, ao dizer que a doutrina brasileira, à unanimidade, admite a
co-autoria em delitos culposos, pois desde a 1ª edição dos livros de NILO BATISTA e HEITOR COSTA
JÚNIOR, respectivamente, em 1979 e 1988, a tese já era rejeitada por estes autores.
917. WELZEL, Hans. Nota 7, p. 163.
CAPÍTULO 5
OS DELITOS QUALIFICADOS PELO RESULTADO

SUMÁRIO: I. Característica geral – II. Os fundamentos doutrinários


– III. As particularidades da relação entre dolo e culpa.

I. CARACTERÍSTICA GERAL
Classicamente, entendia-se por delito qualificado pelo resultado aquele
delito que se compunha de uma ação principal, dolosamente realizada, e de
um resultado mais grave, o qual era atribuído objetivamente ao agente. Esta
espécie de delito não é mais admissível na legislação brasileira, pelo menos
em tese, por força do art. 19 do Código Penal, que deve ser tomado como
regra de limitação necessária da imputação, extensível e obrigatória para toda
forma de incriminação, no sentido de só imputar ao agente os resultados mais
graves quando tenham sido cometidos, pelo menos, culposamente.
Assim, os delitos qualificados pelo resultado seriam aqueles em que o
respectivo tipo estaria composto de uma ação precedente dolosa, pela qual
se produz um resultado mais grave culposo. Essa combinação de dolo e
culpa assinala, pois, a característica essencial dos delitos qualificados pelo
resultado, que podem ser chamados, também, de delitos preterdolosos. Não
obstante, o Código Penal faz diversas combinações, às vezes incompreensí-
veis, de ação precedente dolosa e resultado mais grave, também doloso (art.
129, § 1º e § 2º–lesões corporais graves), ou de ação precedente culposa
e resultado mais grave culposo (art. 260, § 2º e art. 263 – desastre ferro-
viário culposo). Este tratamento diferenciado do Código Penal conduz à
necessidade de se efetivar, sobre os delitos qualificados pelo resultado, uma
análise que busque envolver todas essas particularidades de sua configura-
ção concreta e não apenas da relação entre dolo e culpa.

II. OS FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIOS


No direito penal comum, segundo uma tradição que remontava ao
Direito Romano, vigorava o princípio de que in homicidio culpa dolo non ae-
quiparator. Por influência da igreja, porém, para tornar a punição compatível
514 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO OS DELITOS QUALIFICADOS PELO RESULTADO 515

com este princípio e, ademais, atender ao critério do versari in re illicita, modos: ou com base na própria conduta ou com base na cominação da
CARPZOV passou a fundamentar um conceito novo de dolo, derivado da pena. Para proceder a esta avaliação, a doutrina tem seguido, basicamente,
teoria do dolus generalis e do dolus indirectus, pelo qual “na vontade da causa três vias argumentativas: a) para JAKOBS, a agravação estaria legitimada
situa-se a vontade do efeito”.918 Com isso se queria dizer que, nos delitos qua- porque decorreria de uma diferenciação, em termos de gravidade, pro-
lificados pelo resultado, a imputação ao agente do evento mais grave estaria duzida no injusto a partir da decisão tomada pelo próprio agente, como
legitimada porquanto constituiria nada mais do que uma forma de atribuição consequência da aplicação de critério análogo ao do versari in re illicita;922
dolosa. Uma vez que o agente tivesse realizado uma ação dolosa precedente, b) por sua vez, JESCHECK legitima a agravação desde que o resultado
este dolo se estenderia ao resultado mais grave consequente, ainda que este possa ser revisado com base nos elementos que fundam a culpabilidade do
lhe fosse inteiramente imprevisível. fato culposo;923 c) finalmente, BOLDT entende que a agravação se dá em
Em oposição a esta tese de CARPZOV, buscou criar FEUERBACH virtude da maior perigosidade da ocorrência do resultado que se processa
uma nova categoria para as formas de culpabilidade, a culpa dolo determi- com a prática do delito precedente doloso.924
nata, que se situaria entre o dolo e a culpa. De conformidade com isso, o De todos os argumentos apresentados, o mais plausível, porque subor-
resultado mais grave não seria mais um simples produto da causalidade, dinado a uma base empírica, é o de BOLDT. O de JAKOBS é incompatível
nem de extensão do dolo, mas constituiria uma modalidade nova de culpa, com um direito penal de garantia, porquanto não se pode legitimar uma
derivada de uma ação dolosa. Em consequência dessa assertiva, não admitia agravação simplesmente por força da tomada de decisão do agente, sem que
FEUERBACH que se atribuísse este resultado mais grave ao agente sem que se demonstre que esta decisão se tenha estendido ao resultado mais grave.
lhe fosse, ao menos, previsível.919 Contudo, essa nova forma de culpabilidade Quanto ao de JESCHECK, ainda que busque encontrar uma fórmula com-
da culpa dolo determinata não vingou. A doutrina preferiu tratar essas espécies patível com o princípio da culpabilidade, pode legitimar uma agravação
de delito dentro da combinação de dolo e culpa e não com um elemento em casos de culpa leve, isto é, quando a violação da norma de cuidado for
subjetivo próprio e diferenciado. realizada nos seus limites mínimos. Uma vez tomado como paradigmático
A adoção legal de tal configuração unitária de dolo e culpa em um o argumento de BOLDT, é preciso, entretanto, desenvolvê-lo em seus con-
mesmo tipo de delito conduziu, por seu turno, a uma variada fundamen- tornos empíricos para verificar se, efetivamente, é afinal compatível com
tação. Normalmente, a doutrina segue, aqui, dois caminhos: ou caracteriza um direito penal de garantia. Desenvolvendo-se este argumento pode-se
os delitos qualificados pelo resultado como sendo uma forma legal de um relacioná-lo a três sequências: a) o resultado mais grave se relaciona com
concurso formal, ou os eleva a uma categoria distinta dos demais delitos que o delito-base segundo um juízo de probabilidade; b) o delito-base, ao ser
integram a combinação, compreendendo-os como delitos autônomos, com realizado, traz em si mesmo a probabilidade nos limites da certeza de que o
conteúdo de injusto próprio.920 Uma vez que sejam compreendidos como resultado mais grave ocorrerá; c) o delito-base constitui um meio adequado
delitos autônomos, a imputação pelo resultado mais grave estaria legitimada à produção do resultado mais grave.925
em função desse resultado e não só de sua relação para com a ação dolosa Levando-se em conta essas sequências, pode-se notar que, em todas elas,
antecedentemente realizada.921 o que ressalta é que a agravação é inferida da conclusão de que a realização
Na verdade, o que está em jogo, nos delitos qualificados pelo resul- do delito doloso precedente implica um perigo maior para o bem jurídico e,
tado, não é apenas a relação entre dolo e culpa, mas o conteúdo de injusto portanto, configuraria um conteúdo de injusto mais grave. Ocorre, porém,
do fato. Normalmente, o conteúdo de injusto pode ser avaliado de dois
922. JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, 2ª edição, p. 331.
918. SCHUBART, Martin. “Das Problem der erfolgsqualifizierten Deilkte”, ZStW 85, p. 759. 923. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 572.
919. FEUERBACH, Anselm Ritter Von. Nota 8, p. 104. 924. BOLDT, Gottfried. “Zur Struktur der Fahrlässigkeitstat”, ZStW 68, p. 356.
920. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 262; Maurach-Zipf, Strafrecht, AT, 8ª edição, p. 284. 925. Outras sequências em HIRSCH, Joachin. “Zur Problematik des erfolgsqualifizierten Delikte”, Goltdam-
921. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 572. mer´s Archiv, nº 67, 1972, p. 758.
516 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO OS DELITOS QUALIFICADOS PELO RESULTADO 517

que a relação entre o delito-base e o grau de probabilidade da produção do típico para vida, como desdobramento natural da forma de agressão ao bem
resultado também se poderia dar, normalmente, com a conjugação de um jurídico. Por sua vez, os delitos qualificados pelo resultado vinculados à
delito doloso e de um delito culposo, em concurso formal, o que, então, liberdade se assentam em que o desdobramento do perigo produzido pelo
torna bastante crítica a legitimidade dos delitos qualificados pelo resultado. delito-base se encontra na dependência do maior ou menor controle que o
Para superar esse problema, há dois caminhos a seguir: ou proceder- agente possa exercer sobre essa ação. Já os delitos qualificados pelo resultado
se a uma redução da pena que lhe for cominada, de modo a ajustá-la aos de perigo comum, nos quais se situam também os delitos contra o meio-
mesmos parâmetros do que resultaria do concurso formal entre o delito ambiente, têm por base o fato de que o resultado mais grave, decorrente
doloso precedente e o delito culposo subsequente, o que pode ser feito da execução do delito doloso antecedente, está associado a uma fonte de
mediante o recurso de uma hermenêutica reducionista, ou procedendo-se perigo, incontrolável ou só restritamente controlável pelo agente.927
a uma limitação de sua configuração, por meio de uma análise rigorosa dos Tendo em vista essas características dos respectivos grupos de delito,
pressupostos da relação entre delito-base e resultado mais grave, conforme devem ser ajustados os respectivos requisitos necessários à limitação do
suas particularidades no caso concreto. processo de imputação. Assim, por exemplo, no delito de lesão corporal
seguida de morte, se poderá trabalhar com critério objetivo de previsibili-
III. PARTICULARIDADES DA RELAÇÃO DOLO E CULPA dade, porque a prática de certa forma de lesão induz a que a todos se torne
Ao discutir acerca dos delitos qualificados pelo resultado, ressalta previsível ou imprevisível um evento mais grave. Enquanto isso, nos delitos
PUPPE que uma solução correta para as questões que apresenta só pode ser qualificados pelo resultado relativos à liberdade, como o constrangimento
operada nos respectivos tipos, não cabendo, pois, nesta matéria, um critério ilegal, o sequestro, o roubo, a extorsão e a extorsão mediante sequestro, a
dogmático geral.926 Apesar de as soluções dependerem, é verdade, da análise previsão do resultado mais grave está diretamente associada à capacidade
dos tipos em espécie, alguns dos quais, inclusive, absolutamente despro- do agente. Por seu turno, nos delitos qualificados pelo resultado de perigo
porcionais quanto à avaliação de gravidade dos fatos que os compõem, é comum, a questão da previsibilidade está subordinada às condições obje-
possível articular uma série de ponderações acessíveis a qualquer forma de tivas e subjetivas relativas à sequência de desdobramento do perigo.
incriminação, que parta da relação sequencial entre dolo e culpa. Afora essas particularidades, que devem ser avaliadas no caso concreto,
1. OS GRUPOS DE DELITOS em todos esses delitos, porém, há que se exigir um pressuposto indeclinável:
a conduta precedente que constitui o delito-base e o resultado mais grave
Podemos, entretanto, acolher de PUPPE sua seleção metodológi- devem estar em uma relação de causalidade, de modo que o resultado mais
ca quanto aos grupos de delitos que apresentem características comuns, grave decorra sempre da ação precedente e não de outras circunstâncias.
ofertando-lhes, adequadamente, as limitações necessárias ao seu respectivo Assim, por exemplo, não se dará o delito de lesão corporal seguida de morte
processo de imputação. (art. 129, § 3º do CP), se o resultado morte não advier das lesões provocadas
Assim, na relação entre dolo e culpa, podem ser identificados três na vítima, mas da interferência de outros fatores.
grupos de delitos: a) os delitos qualificados no campo da integridade cor- Por outro lado, ademais da ausência de causalidade, excluirá também
poral; b) os delitos qualificados pelo resultado no campo da liberdade; c) os a qualificação pelo resultado a presença de qualquer das hipóteses que elimi-
delitos qualificados pelo resultado de perigo comum. Os delitos qualifica- nam a imputação objetiva, de forma que o resultado mais grave não possa ser
dos pelo resultado relativos ao campo da integridade corporal se assentam avaliado como obra do agente, respectivamente, então, quando o resultado
na assertiva de que a prática de uma lesão corporal, conforme sejam as esteja fora da relação de risco, não seja previsível ou evitável, se situe fora do
circunstâncias ou condições nas quais foi produzida, representa um perigo âmbito de proteção da norma, tenha sido acolhido pela vítima que se lhe
926. PUPPE, Ingeborg. Strafrecht, Allgemeiner Teil im Spiegel der Rechtssprechung, tomo 1, 2002, p. 189. 927. PUPPE, Ingeborg. Nota 938, p. 256.
518 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO OS DELITOS QUALIFICADOS PELO RESULTADO 519

autoexpõe ou permite que se lhe exponha. grave culposo, quando este último corresponder a um delito culposo
Finalmente, nos delitos cuja ação precedente é culposa (perigo de desas- expressamente previsto na lei penal.
tre ferroviário culposo, com resultado mais grave culposo), só deverá haver a Este raciocínio está de conformidade com o art. 18, parágrafo único,
qualificação quando essa ação precedente for executada com culpa consciente. do Código Penal, que adota o princípio da excepcionalidade do delito
culposo e pelo qual só será admissível a configuração típica de uma ação
2. A EXCEPCIONALIDADE DOS DELITOS CULPOSOS culposa, quando expressamente prevista em lei, quer dizer, não se pode
Não obstante estas ponderações, os delitos qualificados pelo resul- admitir a criação de um delito culposo mediante uma interpretação teleo-
tado ainda continuam apresentando contradições insuperáveis, as quais lógica ou sistemática de alguns tipos de delito previstos na parte especial
não poderão ser contornadas, senão com sua eliminação da lei penal. do código,929 principalmente, dos delitos qualificados pelo resultado.
Todas as soluções práticas, que se processam concretamente em relação Na verdade, ao adotar o critério do delictum culposum e não do crimen
a cada tipo de delito, são meramente paliativas, em termos axiológicos, culpae, o Código Penal teve em vista delimitar com maior rigor as linhas
porquanto apenas minimizam, mas não expurgam a absurda despropor- divisórias entre os atos dolosos e os culposos. Tendo em vista uma posição
cionalidade de seu tratamento penal em comparação com o que resultaria diretamente decorrente do princípio da legalidade, os limites do dolo e da
de um concurso formal ou, até mesmo, material de delitos. Ademais, a culpa devem ser fixados pelo legislador e não pela doutrina. A doutrina só
prevalecer, isoladamente, a norma do art. 19 do Código Penal, tería- será chamada a integrar a norma penal quando o legislador deixar aberta
mos que conviver com resultados mais graves dolosos e culposos em um a questão em torno dessa integração. Assim, por exemplo, como o legis-
mesmo dispositivo, tal como, por exemplo, a doutrina brasileira tem lador não delineou com exaustão a distinção entre dolo eventual e culpa
sustentado em relação às lesões corporais graves (art. 129, §§ 1º e 2º),928 consciente, caberá à doutrina fazê-lo, mas nos limites precisos das defini-
o que viola, flagrantemente, o princípio da delimitação da imputação. ções de dolo e culpa previstas no art. 18. À doutrina brasileira, portanto,
Mas, de qualquer modo, os delitos qualificados continuam a subsistir na está vedada a construção desta distinção a partir de uma teoria puramente
legislação penal, o que gera um obstáculo difícil de ser superado frente intelectiva, sobre a base da representação do agente, quando o Código
aos princípios orientadores do direito penal. Penal optou, deliberadamente, pela teoria do consentimento, ao acolher a
Diante disso, cabe, no entanto, uma solução que, se não é absolu- fórmula da assunção do risco.
tamente eficaz para harmonizar o seu conteúdo de injusto aos critérios Da mesma forma como ocorre com a distinção entre dolo eventual
garantistas, poderá fornecer elementos para minimizar a configuração e culpa consciente, a doutrina está também defesa de criar uma configu-
desses delitos e impedir que sua interpretação se conduza no sentido ração culposa para determinada conduta, quando o Código Penal não o
de uma afronta ao princípio da legalidade. Essa solução é a de encarar tenha feito expressamente. Ao alicerçar-se a ordem jurídica sobre preceitos
os delitos qualificados pelo resultado como uma unidade jurídica, na delimitativos, em função da forma e do modo de lesão ao bem jurídico,
qual as ações precedentes dolosas e os resultados mais graves, dolosos ou que constituem o fundamento da intervenção estatal sobre o direito de
culposos, se combinam em uma relação de concurso formal. Para tanto, liberdade do cidadão, os delitos culposos só podem ser admitidos, quando
porém, atendendo ao princípio da legalidade e ao da excepcionalidade inexista qualquer dúvida de que essa forma de comissão fora incluída na
do delito culposo (arts. 1º e 18, p. único, do CP), só se poderá admitir tipificação da conduta. E isto se faz mediante uma referência expressa do
uma relação entre uma ação antecedente dolosa e um consequente mais legislador sobre a sua admissibilidade. Ainda que, sob o ponto de vista on-
tológico, a alguma atividade possam ser reconhecidas as características de
928. Assim, optando pela solução culposa nos resultados mais graves de lesão corporal, MAYRINK DA
COSTA, Álvaro. Direito penal, pe, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 238; FRAGOSO, Heleno Cláudio. 929. Assim, JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 591; JOECKS, Wolfgang. Strafgesetzbuch, Studienkom-
Nota 93, p. 148; FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, vol. 1, mentar, München: Beck, 2001, p. 67; MAURACH-GÖSSEL-ZIPF. Strafrecht, AT, vol. 2, 1989, p. 99;
2001, p. 332; PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 135. SCHÖNCKE-SCHRÖDER-CRAMER. Strafgesetznuch, Kommentar, 1991, p. 222.
520 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO OS DELITOS QUALIFICADOS PELO RESULTADO 521

uma ação culposa, quer dizer, orientada pela infração à norma de cuidado, estender o dolo do agente. Isto não implica uma ruptura no sistema, por-
isto será penalmente irrelevante, caso o legislador não a tenha expressa- quanto, então, os delitos de aborto, previstos nos arts. 125 e 126 do CP,
mente previsto como culposa, além de dolosa. O tipo dos delitos culposos, passarão a somente comportar um cometimento com dolo direto e não
assim, não pode ser tomado como um tipo de arremate, o chamado Auf- mais com dolo eventual. Se o aborto for provocado com dolo eventual,
fangtatbestand dos alemães, um tipo que ficaria à disposição do julgador haverá apenas lesão corporal seguida de aborto e não mais o aborto como
para punir por culpa o infrator, caso o dolo não pudesse ser comprovado delito autônomo.
no caso concreto. Esta solução está de conformidade com o princípio da legalidade e
Por outro lado, é imperioso que, em qualquer caso, se proceda à com a norma da excepcionalidade do delito culposo. Não a desnatura, por
distinção entre delito doloso e culposo, porque isto é consequência do outro lado, a norma do art. 19, que, a exemplo do § 18 do Código Penal
princípio constitucional da proporcionalidade. A lei não pode cominar alemão, tem a finalidade, exclusiva, de evitar que os resultados mais graves
para delitos dolosos e culposos a mesma pena, assim como não autoriza sejam atribuídos ao agente a título de responsabilidade objetiva. O atendi-
que a doutrina chegue ao mesmo resultado por força de uma interpreta- mento dessa finalidade não significa que a norma do art. 19 deva substituir
ção protetiva do bem jurídico. A estrutura moderna dos delitos culposos, a norma da excepcionalidade do delito culposo (art. 18, parágrafo único),
edificada a partir de uma diferenciação normativa quanto à sua realização, porquanto esta última é um corolário do princípio da legalidade, que não
e não mais como forma de culpabilidade, ou como simples modalidade pode ser derrogado por via de uma outra norma, ainda mais quando se
alternativa de conduta, implica descartar do alcance do tipo todas as ações trate de norma puramente limitativa de imputação.
não dolosas, salvo quando sejam expressamente admitidas pelo legislador. Veja-se, por outro lado, que esta solução está mais próxima de um
Isto apresenta uma alteração profunda na análise dos delitos em espécie. O critério de proporcionalidade do que aquela que, tradicionalmente, a dou-
delito culposo não constitui, assim, um minus, mas um aliud em relação ao trina brasileira vem defendendo. Como será possível admitir-se uma lesão
delito doloso, daí a necessidade de sua expressa e induvidosa previsão legal. corporal dolosa e um resultado de aborto culposo (art. 129, § 2º, V), com
Atendendo a estas características da norma da excepcionalidade do uma pena de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão, quando, em caso de con-
delito culposo e do enquadramento dos delitos qualificados pelo resultado curso material entre a lesão corporal dolosa (art. 129) e um aborto doloso
como uma unidade de delitos em concurso formal, os resultados mais (arts. 125 ou 126), a pena poderia variar entre 2 e 11 anos (resultante da
graves que qualificam esses delitos só poderão ser imputados ao agente se soma das penas da lesão e, alternativamente, dos delitos de aborto previstos
forem dolosos ou, sendo culposos, tiverem uma previsão expressa como nos arts. 125 e 126)? A contestação a esta pergunta só pode ser negativa,
puníveis, isoladamente, como culposos. Isto conduzirá a não permitir que ou, ao menos, cética, haja vista que a pena do aborto doloso varia, justa-
o legislador crie resultados mais graves culposos, salvo quando estes resulta- mente, de 3 a 10 anos de reclusão, enquanto a da lesão corporal dolosa
dos impliquem um conteúdo de injusto próprio, de forma a configurarem vai de 3 (três) meses a 1 (um) ano de detenção. O conteúdo de injusto do
um delito culposo autônomo. Assim, em relação à lesão corporal, os re- aborto doloso é, assim, muitíssimo mais grave do que o da lesão corporal
sultados mais graves previstos nos respectivos §§ 1º e 2º do art. 129 só dolosa. Como, porém, o legislador não pune o aborto culposo, este fato
comportarão a forma culposa, se cada um deles constituir, isoladamente, não se apresenta como relevante para o direito penal, tendo, portanto, um
um delito culposo. Caso isto não ocorra, o resultado mais grave só poderá conteúdo de injusto inavaliável e, por isso mesmo, não poderia produzir
qualificar o delito, se puder ser atribuído ao agente dolosamente. uma alteração tão substancial no conteúdo de injusto da lesão corporal, de
Dessa forma, por exemplo, no delito de lesão corporal seguida de modo a fazê-la equiparar-se ao aborto doloso.
aborto (art. 129, § 2º, V), como este não possui uma forma culposa, só
poderá qualificar o delito de lesão corporal, se àquele resultado se puder
CAPÍTULO 6
O DELITO OMISSIVO CULPOSO

SUMÁRIO: I. A previsão legal – II. Os elementos do tipo de injusto


– III. A culpabilidade nos delitos omissivos culposos.

I. A PREVISÃO LEGAL
Os delitos omissivos culposos se apresentam no direito penal de duas
formas: ou como delitos omissivos próprios ou como delitos omissivos impró-
prios. Os delitos omissivos próprios culposos, embora raros, têm-se mostrado
presentes na legislação penal, por exemplo, arts. 228, p. único; 229, p. único;
231; 234 e 235 da Lei 8.069/90 (ECA); art. 63, § 2º, da Lei 8.078/90 (Código
do Consumidor); art. 68, p. único, da Lei 9.605/98 (Lei Ambiental). Por sua
vez, os delitos omissivos impróprios culposos estão subordinados ao princípio
da excepcionalidade dos delitos culposos e, ainda assim, só serão admissíveis
quando seja possível equiparar-se a omissão a um comportamento ativo.
Quando a omissão vem descrita no respectivo tipo de delito (delitos
omissivos próprios), não há que se cogitar de sua equivalência para com
o comportamento ativo, porquanto a previsão legal obedece, em tese, ao
princípio da legalidade, o qual estará atendido desde que seja inequívoco
o comando normativo. Se a determinação legal, porém, for ambígua ou
incerta, ou impor uma atividade impossível de ser identificada pelo sujeito,
a norma penal deve ser declarada inválida, porque inidônea para motivá-lo
de acordo com o seu enunciado.
A cada vez mais profusa utilização de normas mandamentais na legislação
penal, que correspondem ao papel desempenhado pelo Estado fiscalizador,
exige um exame mais rigoroso dos pressupostos dos delitos daí derivados. Este
exame é uma medida adequada a impedir que o exercício do poder de punir
se transforme em uma execução forçada de relações contratuais. Quando o
Estado se desfaz de sua função social, o incremento de disposições contratuais
no direito penal aumenta ainda mais a irracionalidade do sistema, porque passa
a tratar a pessoa humana como situada no mesmo plano de poder, quer dizer,
na relação entre Estado e pessoa, confere-se a esta a obrigação de se submeter
524 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O DELITO OMISSIVO CULPOSO 525

às regras daquele, sob a presunção de que atua com a mais ampla liberdade subordinado não apenas à demonstração de que o sujeito tenha infringido
de atender ao comando normativo, ainda que para isso não fosse capaz. Isto uma norma mandamental, mas de que essa norma mandamental se vincule
provoca uma profunda distorção no sistema, só passível de correção por meio a um elemento de eficácia instituído pela norma de cuidado, que serve de
de medidas que restrinjam o alcance das normas mandamentais. base para especificar, em face da situação típica, de que forma ou modo
Essas medidas podem ser alinhadas em três séries: a) na identificação do se deve cumprir o mandamento legal. Esta relação dialética entre norma
conteúdo das respectivas normas, relativamente à omissão própria e à omissão mandamental e norma de cuidado faz dos delitos omissivos próprios cul-
imprópria; b) na limitação do conteúdo de injusto do fato; c) na aferição dos posos uma categoria bastante complexa, que não se resume a uma simples
pressupostos da imputação pessoal de responsabilidade. conjugação de omissão e negligência.
Uma vez que a norma extrapenal de cuidado é editada justamente
1. A NORMA NA OMISSÃO PRÓPRIA CULPOSA para disciplinar as atividades consideradas arriscadas, a situação típica deve,
Ao proceder-se à distinção na própria lei penal entre delitos culposos também, englobar todas as referências acerca do risco não permitido, com
omissivos próprios e impróprios, torna-se imprescindível verificar a estrutura o que se possibilitará identificar, com clareza, como o não atendimento do
das normas que lhe correspondem. cuidado pode implicar a omissão ao comando legal.
Os delitos omissivos próprios culposos estão subordinados a uma No exemplo do art. 63 do Código do Consumidor se pode ver que a
norma mandamental por excelência, de sorte que o núcleo do respectivo omissão não tem como objeto de referência a simples falta de comunicação
tipo de injusto deve estar constituído de dois comandos: uma determinação acerca da perigosidade de um produto, mas em relação a dizeres ou sinais
de cuidado e uma determinação de conduta. A determinação de cuidado, ainda ostensivos dessa perigosidade que devem constar nos respectivos invólucros,
que se oriente por normas regulamentares de profissão, arte ou ofício, como embalagens, recipientes ou publicidade. A norma de cuidado, aqui, impõe
acontece nos delitos culposos em geral, está sempre em função da determina- ao fabricante ou produtor, primeiramente, que verifique a inocuidade ou
ção de conduta, porquanto só com a perfeita identificação do que é imposto a perigosidade de um produto, antes que o coloque para comercialização,
ao sujeito é que se pode legitimar o comando legal. Como a omissão não tem depois, uma vez havendo constatado a sua perigosidade, que indique, nos
existência senão em relação a uma ação – não existe omissão, por omissão seus invólucros, embalagens, recipientes e publicidade, a espécie de efeitos
– tem significação especial, nestes delitos, a chamada situação típica, que é que poderá resultar do seu uso ou emprego. Ao buscar uma tipificação para
representada por todos os elementos, condições e circunstâncias, inseridos essa omissão, o legislador cumpriu, aqui, de certo modo, as exigências de-
no tipo de delito, que assinalam o contexto exato em que a omissão se torna correntes da estrutura normativa desse delito.
relevante.930 Assim, por exemplo, no art. 63 do Código do Consumidor, a Ao contrário, no art. 68 da Lei Ambiental,932 o legislador fez tabula
omissão culposa diz respeito à não inserção nas embalagens, invólucros, re- rasa dessa estrutura, deixando de disciplinar, com precisão, a situação típica.
cipientes ou publicidade de produtos destinados ao consumo, de dizeres ou Em primeiro lugar, não especifica o objeto da omissão, apenas reza que esta
sinais ostensivos sobre a periculosidade desses produtos. A condição de que omissão diz respeito ao não cumprimento de “obrigação de relevante interesse
a não inserção (omissão) desses dizeres ou sinais dá lugar a um processo de ambiental”, o que significa que, em vez de descrever o conteúdo do dever
imputação de responsabilidade do sujeito demonstra que a norma de cuidado imposto ao sujeito, remete esse conteúdo a um outro dever. Em segundo
só tem eficácia quando acoplada à norma mandamental contida no tipo.931 lugar, ao prever a modalidade culposa (art. 68, p. único), tornou-a estéril,
Essa característica da estrutura dos delitos omissivos próprios gera, porquanto deixou de consignar um objeto de referência, também, para a
por conseguinte, a necessidade de que todo o processo de imputação se veja norma de cuidado, pois ali não se constata qualquer indicação de que forma
930. Assim, KAUFMANN, Armin. Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, Göttingen: Schwartz, 1959, p. 932. Art. 68 da Lei 9-805/98: “Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir
96; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 615; WELZEL, Hans. Nota 7, p. 281. obrigação de relevante interesse ambiental: Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. Parágrafo
931. Assim, também, STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 434. único. Se o crime é culposo, a pena é de 3 (três) meses a 1 (um) ano, sem prejuízo da multa.”
526 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O DELITO OMISSIVO CULPOSO 527

e de que modo se poderia caracterizar a infração a essa norma, nem como II. OS ELEMENTOS DO TIPO OMISSIVO CULPOSO
seria, em contrapartida, a conduta realizada no âmbito do risco permitido.
Em todos os delitos omissivos culposos há alguns elementos comuns.
Quando a descrição típica não reflete, como neste último caso, as exigências
Como a forma de conduta está, aqui, condicionada à natureza da norma,
da estrutura normativa da omissão própria culposa, deve ser declarada invá-
de modo que o que se incrimina é a não realização da ação mandada, o
lida por ofensa ao princípio constitucional da legalidade.
primeiro elemento do injusto desses fatos é constituído da omissão de uma
2. A NORMA NA OMISSÃO IMPRÓPRIA CULPOSA ação determinada, quer seja descrita como tal no respectivo tipo de delito
(omissão própria), quer resulte da violação de um dever imposto a um sujei-
Já nos delitos omissivos impróprios culposos, a norma que os disciplina
to garantidor (omissão imprópria). Em decorrência das particularidades da
não possui uma autonomia originária. Aqui, além da norma de cuidado e da
estrutura normativa, a omissão deve vir associada nesses delitos à violação de
norma determinativa, subsiste como preponderante a norma proibitiva da con-
uma norma de cuidado, cujo conteúdo é preenchido por disposições regula-
duta. Como essa norma proibitiva constitui o cerne da incriminação, a omissão
mentares destinadas a delimitar o alcance do risco permitido.
só é relevante quando possa ser equiparada à ação. Neste contexto, não assume
qualquer função a chamada situação típica, porque a ação esperada deve refe- Atendendo, ademais, ao comando normativo, outro elemento essencial
rir-se ao não impedimento do resultado típico que, normalmente, é produzido na configuração do tipo de injusto diz respeito à capacidade de agir. O sujeito
por ação e cuja ocorrência é prevista como elemento do respectivo tipo comis- deve estar em condições, conforme o exija a respectiva norma, de realizar a ação
sivo. Destarte, a omissão não está associada, nestes delitos, a elementos típicos mandada. Uma vez que, nos delitos omissivos, o tipo de injusto está alicerçado
especiais, que existem especificamente para servirem de seu objeto referencial. na ação esperada individual, e não em uma ação qualquer, a medida da ca-
O objeto referencial é dado para a ação e não para a omissão. A omissão se in- pacidade é aferida segundo as condições, habilidades, deficiências ou especial
troduz no contexto na medida em que subsista sobre o agente, primeiramente, informação do sujeito omitente e não de um suposto homem prudente.
um dever de impedir o resultado por decorrência de sua posição de garantidor Integram ainda o tipo de injusto culposo omissivo todos os elementos
e, depois, um dever de atender ao cuidado relativo quanto à forma e ao modo de delimitação do processo de imputação, ou seja, os atinentes à causalidade
de conduzir sua atividade em face do perigo da produção do resultado. e à imputação normativa. Convém registrar, no entanto, que o enunciado da
Apesar de a norma incriminadora ser, aqui, predominantemente proi- causalidade não pode seguir, aqui, a mesma estrutura dos delitos comissivos,
bitiva, a norma de cuidado só tem relevância quando associada a uma norma porquanto, na omissão, não existe um objeto de referência nomológico,
mandamental extratípica resultante da posição de garantidor. Tendo em vista quer dizer, não existe uma causalidade que se oriente por leis naturais. A
esta particularidade, torna-se indispensável nesses delitos, para efeito de aten- causalidade na omissão só pode ser retratada funcionalmente, de modo a
der ao princípio da legalidade, que as condições pelas quais um sujeito se ajustar o critério da eliminação hipotética à sua estrutura. Aplicando-se este
insere como garantidor de um determinado bem jurídico se vejam descritas raciocínio ao art. 13 do Código Penal, teríamos, então, que a omissão será
expressamente na lei. Como, por seu turno, essas condições vêm descritas no causa de um resultado, quando suprimida a ação devida ou esperada for o
art. 13, § 2º, do Código Penal, é a partir delas, e não de outras circunstâncias, resultado, também, suprimido. Mas como este juízo de eliminação não é
que se deve proceder à delimitação da omissão imprópria culposa. Não cabe, certo, é apenas provável, ou até mesmo incerto, a afirmação da causalidade
portanto, no direito brasileiro, a invocação de condições materiais de criação e não pode se satisfazer com um mero raciocínio lógico e contrafático. Ao
fundamentação da posição de garantidor, tal como se faz na doutrina alemã.933 contrário, deve estar respaldada em elementos empíricos que demonstrem
Os elementos contidos no art. 13, § 2º, do Código Penal condicionam e deli- que o resultado não ocorreria, com um grau de probabilidade nos limites da
mitam, obrigatoriamente, o conteúdo da norma mandamental. certeza, se a ação devida fosse efetivamente realizada, tal como o contexto
assim o determinava. Se não se puder demonstrar empiricamente essa rela-
933. Por exemplo, como o fazem JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 620 et seq.; ROXIN, Claus. Nota 895, ção, é de se negar a causalidade, por aplicação do princípio in dubio pro reo.
p. 714 et seq.; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 247 et seq.
528 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O DELITO OMISSIVO CULPOSO 529

Por outro lado, tendo em vista as características da negligência, deve o a interpretação no sentido dessa exclusão segue, aqui, as regras da imputa-
sujeito poder prever a realização do tipo e reconhecer poder evitá-la.934 Neste ção normativa quanto à falta do poder de controle sobre o resultado. É que
particular, aplicam-se ao caso todos os pressupostos, limitações e implicações neste caso, não opera um poder de controle exigível ao omitente, porque a
do critério da previsibilidade já expostos. obrigação de proteção não pode implicar a eliminação do próprio obrigado,
Especificamente quanto aos delitos omissivos impróprios culposos, o que lhe retira a qualidade de garantidor.
ainda se agrega ao respectivo tipo de delito a subsistência de uma posição Na questão da ingerência, só se deverá caracterizar a posição de garanti-
de garantidor do sujeito, consoante as disposições contidas no art. 13, § 2º, dor, quando a ação precedente perigosa tiver sido realizada fora do âmbito do
do Código Penal, respectivamente: a) a quem tenha por lei obrigação de risco permitido, o que significa que se a ação precedente criadora do perigo
cuidado, proteção ou vigilância; b) a quem, de outra forma, assumiu a res- tiver sido realizada dentro do risco permitido, não é de se exigir do sujeito o
ponsabilidade de impedir o resultado; c) a quem, com seu comportamento poder de controle sobre o resultado dessa ação.
anterior, criou o risco da ocorrência do resultado (ingerência). A inserção no tipo dos delitos culposos do dever de impedir o resultado,
Ainda que na aferição do conteúdo de injusto se devam tomar por base, decorrente da posição de garantidor, induz à consideração acerca da postura
exclusivamente, essas situações legalmente estabelecidas quanto à posição de do agente em face dessa posição, o que influi decisivamente no processo de
garantidor, sua análise deve estar subordinada à estrutura dogmática da con- imputação do resultado. Na culpa consciente, o sujeito confia ou espera,
duta e às limitações impostas à norma em função do substrato material que de modo contrário ao dever de cuidado, que não está inserido no poder de
lhe deu origem. Partindo-se de uma lição de SCHÜNEMANN, pode-se dizer controle sobre o resultado, decorrente de sua relação para com vítima ou
que todas as condições que fundamentam a posição de garantidor, uma vez com a fonte produtora de perigo. Já na culpa inconsciente, o sujeito, também
que têm a função de possibilitar o acoplamento da omissão a um tipo de delito com violação do dever de cuidado, sequer há cogitado de que estaria inserido
comissivo, devem guardar analogia com os fundamentos da autoria por ação. naquele poder de controle. Assim, por exemplo, o pai acredita que os gritos
Assim, nas relações de proteção e vigilância impostas por lei, ou na de socorro vindos do mar não sejam de seu filho, mas de alguém fazendo
assunção de responsabilidade, ou na ingerência, deve vigorar, por parte do uma brincadeira, e, assim, não lhe presta socorro (culpa consciente), ou,
omitente, um poder de controle sobre o resultado e sobre as fontes produ- interessado na leitura de um jornal, nem se dá conta da situação de perigo
toras do perigo.935 Esse poder de controle deve estar adaptado à estrutura da em que aquele se encontrava (culpa inconsciente).
norma mandamental, quer dizer, sua caracterização como tal não correspon- Há que se fazer, aqui, no entanto, duas limitações. Em primeiro lugar,
de inteiramente ao domínio do fato dos delitos dolosos. Aqui, o poder de a aferição da culpa deve ser efetuada conforme o contexto e não apenas com
controle tem que ser visto dentro do dever de impedir o resultado, o que o base na relação direta entre agente e perigo. Para que se possa imputar ao
torna dependente da extensão da respectiva norma que imponha esse dever. pai o resultado é preciso que, efetivamente, as condições do contexto lhe
Desde que seja impossível demonstrar que ao omitente, em face do contex- confiram a possibilidade de saber que seu filho se encontrava próximo da
to, não era exigível inteiramente esse poder de controle, não se realizará o fonte de perigo. Se, por exemplo, o pai sabe que seu filho se fora com a mãe
conteúdo de injusto dos delitos omissivos impróprios. Portanto, ainda que até um quiosque e que, assim, não estaria próximo do mar, no momento em
por lei se atribua ao pai o dever de proteção aos filhos menores, não poderá que escuta os gritos de socorro, não terá a possibilidade de alcançar a com-
ser responsabilizado pela omissão de salvar-lhe a vida quando a prática da preensão de que esteja situado na posição de garantidor em face do perigo.936
respectiva ação implicar o seu próprio perecimento. Neste caso, embora a lei Em segundo lugar, como na culpa inconsciente o sujeito não percebe que se
não esclareça quanto a essa modalidade de extinção da posição de garantidor, encontra na posição de garantidor, ou seja, que se insere no poder de controle
934. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 434.
sobre o resultado, a imputação só será possível quando o contexto indicar,
935. SCHÜNEMANN, Bernd. Grund und Grenzen der unechten Unterlassungsdelikte. Zugleich ein Beitrag
zur strafrechtlichen Methodenlehre, Götttingen: Schwartz, 1971, p. 281 et seq. 936. Assim, STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 435.
530 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O DELITO OMISSIVO CULPOSO 531

com absoluta clareza, que a fonte de perigo está próxima e que, portanto, a e este entra em coma por desnutrição, o impedimento do resultado morte
circunstância do poder de controle sobre o resultado é previsível ao sujeito, ou lesão corporal está na dependência direta e imediata da ação esperada, daí
sob qualquer condição. Caso a situação de fato não seja clara, deve-se excluir por que sua produção por omissão se equipara à sua produção por ação.938
a imputação da culpa inconsciente. Em se tratando de delitos qualificados pelo resultado, no qual o evento
Finalmente, integra o tipo de injusto dos delitos omissivos impróprios mais grave seja levado a efeito por omissão daquele que se situava na posição
culposos um elemento não escrito: a cláusula da correspondência. De acordo de garantidor, deve-se exigir ainda maior rigor na determinação do processo
com esta cláusula, o conteúdo de injusto do fato só se aperfeiçoa quando a de imputação, de modo que, já na realização do tipo fundamental, deva o
realização do resultado decorrente da omissão do sujeito equiparar-se à sua sujeito haver criado, com sua própria conduta, o risco da ocorrência do re-
produção por ação. Esta cláusula, embora não conste expressamente no Código sultado mais grave. Por exemplo, a mãe X, porque estava dedicada a outros
Penal, como elemento essencial aos delitos omissivos impróprios, é corolário do afazeres, embora tivesse reconhecido a gravidade do fato, deixa de atender
princípio da legalidade. Isto porque sem essa cláusula, que constitui também seu filho menor, que padecia de grave enfermidade. Mais tarde, quando a
uma extensão das condições da posição de garantidor, não se torna possível situação se torna ainda mais grave, leva-o ao hospital, mas já não mais pode
legitimar uma incriminação por omissão sem uma referência típica. salvá-lo, vindo a criança a morrer em consequência da enfermidade que a
A cláusula da correspondência tem suscitado intenso debate. A dou- acometia. Neste caso, como a enfermidade da criança não fora provocada
trina alemã, por exemplo, a considera apenas útil nas hipóteses de delitos pela mãe, não se pode dizer que tenha ela criado, conscientemente, o risco
vinculados a específicas modalidades de cometimento, como os delitos de de um resultado mais grave. Em razão do fato, deve responder a mãe por
estelionato, constrangimento ilegal, furto qualificado, roubo, extorsão, extor- homicídio culposo por omissão e não por lesão corporal seguida de morte.939
são mediante sequestro, etc.,937 em que a ação típica tem uma configuração III. A CULPABILIDADE NOS DELITOS OMISSIVOS CUL-
própria. No estelionato, por exemplo, a vantagem para o agente deve resultar
POSOS
do emprego de meio fraudulento e do consequente induzimento em erro da
vítima e não de qualquer procedimento causal. Atendendo ao conteúdo das normas mandamentais, a culpabilida-
de nos delitos omissivos culposos deve corresponder, respectivamente, às
Contudo, a cláusula da correspondência não deve ser analisada sob a
características de que aqui não se trata apenas de se atribuir a alguém a res-
perspectiva exclusiva de sua utilidade dogmática, mas como um instrumen-
ponsabilidade pelo fato, com base na violação à norma de cuidado, mas de se
to de delimitação do poder punitivo. De conformidade com esta última
aferir a capacidade de motivação em face de deveres impostos diretamente na
perspectiva, a cláusula da correspondência deve ser entendida no sentido
lei ou resultantes da posição de garantidor. A inserção desses novos elementos
de só legitimar a omissão imprópria, quando a produção do resultado e a
na determinação da culpabilidade não implica, todavia, uma modificação
consequente lesão do bem jurídico, que é atribuída à não realização da ação
essencial na sua estrutura. O que se deve fazer é ajustar os elementos tradi-
devida, não puder ser evitada a não ser pelo imediato exercício do poder de
cionais da culpabilidade a essa nova realidade normativa.
controle e de execução dessa ação por parte do sujeito omitente. Isto significa
que a cláusula da correspondência circunscreve os delitos omissivos impró- A imputabilidade, atendendo à nova sistemática, deve ser antecipada
prios somente aos atentados a bens jurídicos fundamentais, como a vida, a para uma etapa inicial do injusto, e deverá ser apreciada como a capacidade de
integridade corporal e saúde, a liberdade individual e a liberdade sexual. Fora entender e de se autodeterminar em função da violação da norma de cuidado
desses casos, como a não realização da ação mandada não está vinculada dire- e do dever imposto ao sujeito. Imputabilidade significará, então, a capacidade
tamente a uma lesão imediata do respectivo bem jurídico, falece legitimidade 938. Tempos atrás já defendi esta mesma posição no pequeno opúsculo intitulado As controvérsias em torno
à omissão imprópria. Quando a mãe deixa de prover a subsistência do filho dos crimes omissivos, Rio de Janeiro: ILACOP, 1996, p. 81. Acolhendo esta posição, também, CIRINO
DOS SANTOS, Juarez. Nota 93, p. 115.
939. Com essa conclusão, INGELFINGER, Ralph. “Die Körperverletzung mit Todesfolge durch Untelassen
937. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 787. und die Entsprechendsklausel des § 13 Abs. 1 Halbs. 2 StGB”, Goltdammer´s Archiv, 12, 1997, p. 582.
532 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

de entender o caráter ilícito do fato resultante da violação da norma de cuidado


e do não atendimento do dever legal ou decorrente da posição de garantidor,
bem como de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento. Na culpa-
bilidade, restará, porém, o exame da capacidade diminuída de culpabilidade.
CAPÍTULO 7
Integra, também, a culpabilidade a consciência potencial da antijuri- O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS
dicidade, representada pelo conhecimento acerca das exigências objetivas de
cuidado, como verdadeiro dever jurídico, bem como o conhecimento acerca do
SUMÁRIO: I. Normas gerais – II. A unidade e a pluralidade de ações
dever de agir ou de impedir o resultado, respectivamente, imposto diretamente
– III. O concurso material – VI. O concurso formal – V. O crime
pela norma mandamental ou como consequência da posição de garantidor. continuado – VI. O concurso de leis.
Assim como se dá com os demais delitos culposos, essa consciência tanto
pode ser atual, quanto potencial. Na culpa consciente, vigora normalmente o I. NORMAS GERAIS
conhecimento atual desses deveres. Na culpa inconsciente, em que o agente
As regras referentes ao concurso de crimes dolosos valem igualmente para
viola o dever de cuidado sem o saber, não se poderá inferir uma capacidade
os delitos culposos. De conformidade com o que se pode extrair dos arts. 69, 70
de conhecer os deveres de agir como deveres legais ou jurídicos. Isto porque a
e 71 do Código Penal, que disciplinam, respectivamente, o concurso material,
inconsciência acerca do descumprimento do dever de agir produz uma ruptura
o concurso formal e o crime continuado, a questão inicial a ser resolvida diz
na extensão de sua capacidade consciente, de modo a não poder justificar uma
potencialidade de conhecimento acerca desses deveres. Nos delitos de resultado respeito a determinar-se, com exatidão, o que se deva caracterizar como “uma
material é de se exigir ainda que o agente tenha podido saber que o resultado só ação” (concurso formal) e “mais de uma ação” (concurso material ou crime
que causaria ou causou era reprovado pela ordem jurídica, porque se lhe incum- continuado), ou seja, como “unidade” ou “pluralidade” de ações. A decisão
bia o dever de impedi-lo.940 O desconhecimento desses deveres implica, pois, acerca da “unidade” ou “pluralidade” de ações tem implicações significativas,
um erro de mandato, que se resolve pelas regras do erro de proibição, valendo, pois pode conduzir ao acúmulo de penas (no caso do concurso material) ou
aqui, as mesmas considerações traçadas anteriormente sobre o tema (Capítulo sua exasperação (no caso do concurso formal e do crime continuado). Da
4 VI). Convém observar, entretanto, que o desconhecimento acerca da posição mesma forma, há que se decidir entre “unidade de ações” com ou sem desígnios
de garantidor não constitui um erro de mandato, mas sim uma questão que autônomos ou entre “pluralidade de ações” com ou sem continuidade, o que
deve ser apreciada no âmbito do tipo de injusto, na caracterização da culpa também conduziria a indicar, no primeiro caso, o concurso formal impróprio
como infração à norma de cuidado. ou próprio e, no segundo caso, o crime continuado ou o concurso material,
com a consequência igualmente do acúmulo de penas (para o concurso formal
Como nos delitos omissivos culposos o reconhecimento do cuidado ob-
impróprio e para o concurso material) ou de sua simples exasperação (para o
jetivo e a evitabilidade da realização do tipo, bem como a previsibilidade do
concurso formal próprio e para o crime continuado).
resultado e a sua evitabilidade, estão indissoluvelmente vinculados à norma
mandamental, seu exame já é efetuado no âmbito da própria tipicidade, se- Além da determinação da unidade ou pluralidade de ações, há ainda
guindo, neste passo, a proposta de STRATENWERTH.941 Valem, igualmente, outra questão a ser decidida: da unidade ou pluralidade de delitos. Geralmen-
para esses fatos, as limitações relativas à culpa levis e as ponderações acerca da te, mas nem sempre, a unidade de ação ou a pluralidade de ações, conduz,
limitação de responsabilidade na culpa inconsciente, bem como sobre a inexi- respectivamente, à unidade ou pluralidade de delitos. Como, portanto, a
gibilidade de conduta conforme a norma. Da mesma forma, não admitem os conclusão acerca da unidade ou pluralidade de delitos a partir da decisão
crimes omissivos culposos coautoria, autoria mediata ou participação. acerca da unidade ou pluralidade de ações não é absoluta, mas depende da
argumentação acerca dos pressupostos do processo de imputação, torna-se
940. JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 593. relevante tratar, também, do “concurso de leis”, comumente chamado de
941. STRATENWERTH, Günter. Nota 126, p. 434.
534 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 535

“concurso aparente de normas” ou “concurso impróprio de tipos”, que tem patrimonial (art. 163), morte dolosa (art. 121), morte culposa (art. 121, § 3º) e
a finalidade de esclarecer acerca de qual dos tipos estará subordinado o fato. explosão (art. 251). Em todos estes casos, haveria unidade de ação. Em contra-
Especificamente no crime culposo, há que se fazer a devida adaptação partida, se alguém desfere vários tiros sobre diversas pessoas, haverá pluralidade
das regras dos arts. 69, 70 e 71, conforme as características dos respectivos de ações. Aplicado este critério ao concurso de agentes, se o coautor houvesse
tipos, todos apoiados na lesão à norma de cuidado ou na violação dos limites dado sua contribuição material para o fato por meio de uma só ação, ter-se-ia
do risco autorizado, como também se o agente atuara com culpa consciente igualmente unidade de ação em relação aos demais, embora estes tivessem
ou inconsciente. A referência à violação à norma de cuidado e à atuação com realizado vários tipos.944 Por exemplo, em um furto a residências, alguém se
culpa consciente ou inconsciente é significativa na medida em que por seu encarrega de ficar de vigia, enquanto os demais realizam várias subtrações em
meio se podem traçar, mais precisamente, os limites da intervenção penal diversos apartamentos. Para este vigilante houve unidade de ação, já que sua
com base no processo de imputação, especialmente, à vista da gravidade do conduta correspondeu a única manifestação de vontade.
fato. Embora na apreciação do concurso de crimes ou do concurso de leis Já o critério da unidade naturalística de ação foi criado pela jurispru-
não importe, diretamente, quanto ao crime culposo, a relação psicológica dência alemã para disciplinar como “unidade jurídica de ação” aqueles casos
do agente em face da norma de cuidado e do resultado, pois o concurso se em que várias condutas essencialmente da mesma espécie correspondiam a
orienta normalmente por critérios objetivos, não se descarta, no entanto, essa uma só vontade e, atendendo ao contexto espaço-temporal, estivessem de
relação, quando implique uma diversificação do sentido da própria atividade, tal forma unidas que, para um observador neutro, transparecessem como
ou seja, conforme atue o agente com culpa consciente ou inconsciente isto se constituíssem unidade de atuação.945 Na verdade, o Supremo Tribunal
se refletirá na forma e no modo como a violação da norma de cuidado e o alemão percorreu algum caminho para chegar a esta fórmula final. Inicial-
resultado influenciaram, funcionalmente, sua conduta. mente, trouxe em consideração que a unidade decorreria de um sentido
natural, dado pela realização objetiva das condutas em função do fato em
II. A UNIDADE E PLURALIDADE DE AÇÕES sua totalidade, que assim se apresentaria no contexto a um terceiro como se
1. AÇÃO NATURAL E UNIDADE NATURAL DE AÇÃO se tratasse de única ação.946 Em decisões posteriores, o Tribunal acrescentou
àquelas condições os elementos espaço-temporais que dariam, então, unida-
A doutrina tem trabalhado, normalmente, com dois conceitos para pro- de à manifestação de vontade.947 Estas decisões obtiveram adesões e críticas
ceder à diferenciação entre unidade e pluralidade de ações: ação naturalística de eminentes penalistas, mas, de qualquer forma, ainda permanecem como
(ou ação em sentido natural), de um lado, e unidade naturalística de ação, de uma solução prática na diferenciação entre unidade e pluralidade de ações.
outro. A ação naturalística (ou em sentido natural) seria aquela na qual uma
resolução para o agir se realizaria em uma manifestação de vontade. Este critério 2. AÇÃO COMUNICATIVA E UNIDADE NORMATIVA DE AÇÃO
nasceu praticamente com o finalismo, mas se estendeu aos demais penalistas Apesar de a solução prática da jurisprudência alemã orientar-se mais
em geral.942 Assim, o que caracterizaria a unidade de ação seria a unidade pelo contexto, o que pode conduzir a conclusões adequadas em muitos casos,
de manifestação de vontade. Caso se verificasse apenas uma manifestação de parece que a questão da unidade ou pluralidade de ações não pode ficar
vontade, haveria unidade de ação, ainda que esta implicasse a produção de circunscrita à manifestação de vontade, cujos contornos advêm de certo
vários resultados típicos, mesmo que se tratasse de eventos lesivos a bens jurí- modo da teoria geral dos contratos no direito civil948 e que, muitas vezes, em
dicos altamente personalíssimos.943 Mas, se ocorressem várias manifestações de
vontade, haveria, então, várias ações. Exemplo: alguém desfere um tiro e lesa 944. WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 289, com base ainda na jurisprudência do Supremo Tribunal alemão
(BGHSt 49, 177).
diversas pessoas (art. 129), ou coloca um explosivo e, com isso, produz dano 945. Assim, de conformidade com isso, WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 292; BGHSt 43, 381 e BGH StV
98, 70.
942. WESSELS-BEULKE, Strafrecht. AT, 2006, p. 289. 946. BGHSt 4, 219, 220.
943. Assim, KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, 5ª edição, 2005, p. 695; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 947. BGHSt 10, 231.
289, todos com base na jurisprudência do Supremo Tribunal alemão (BGHSt 1, 20; 2, 246; 6,81). 948. SCHMIDT/BRÜGGEMEIER. Zivilrechtlicher Grundkurs, Luchterhand: Neuwied, 1998, 79, infor-
536 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 537

face das dificuldades empíricas de sua identificação, fica na dependência do de ações. Haverá, então, uma ação quando a conduta se orientar no mesmo
desdobramento causal, como, por exemplo, do número de tiros desfechados sentido conforme os objetos de referência que a determinam, ou seja, quando
contra a vítima. Esta visão mista subjetivo-causal, que é adotada, via de regra, os objetos de referência orientem a execução da conduta de tal modo que o
nas decisões dos tribunais, conduz a perplexidades principalmente quando agente não precise renovar essa execução para poder impô-la como válida.
se trata de diferenciar entre concurso formal próprio e impróprio, em que a A conclusão acerca da unidade ou da pluralidade não estará na dependência
doutrina se deixa iludir pela ideia de que a expressão “desígnios” é indicativa apenas do processo causal. O processo causal pode ser único e isso indicar
de dolo.949 Essa ilusão decorre justamente de uma falsa compreensão: a de que a conduta se orientou sempre num mesmo sentido, conduzindo à sua
que o dolo constitui uma relação psicocausal para com o resultado, a qual unidade. Pode o processo causal ser múltiplo e a conduta ser única, uma vez
era produto da concepção naturalista dominante no século XIX, quer dizer, que todos os objetos tenham implicado sua realização, quer dizer, o processo
na medida em que a ação se concentrar na manifestação de vontade e a causal se congrega em um mesmo sentido. Por outro lado, não pode a uni-
vontade passar a ser vista como fator causal de um resultado, haveria tantas dade de ação ficar na dependência do dolo. O dolo não desempenha aqui
ações quantos resultados correspondessem àquela manifestação volitiva. Esse qualquer papel. O importante é a orientação da atividade dentro do processo
argumento, contudo, deixa de lado todo o complexo da atividade humana, de comunicação. A adscrição de um sentido à atividade pelos parâmetros,
que se caracteriza, como já anunciado anteriormente, como uma ação co- ou objetos de referência, faz com que essa atividade seja realizada em função
municativa, na qual se torna imprescindível a subsistência de um parâmetro desses parâmetros. Se a atividade está em função do parâmetro, sua realização
(objeto) de referência que lhe assinale o sentido e ao qual esteja subordinada deve levar em conta, também, a reação que irá ter que enfrentar, de modo
sua execução. Partindo dessa consideração, pode-se dizer que a unidade ou que uma atividade só terá também sentido se for tomada pelo agente com
pluralidade de ações só poderá ser afirmada em face da direção da atividade pretensão de validade. A pretensão de validade tem como desiderato atender
frente a este parâmetro de referência, ou seja, de conformidade com seu às determinações do próprio parâmetro de referência, ou até mesmo ven-
sentido funcional. O parâmetro de referência é que assinala o sentido da cer-lhes a resistência para impor sobre ele a execução da atividade e, assim,
atividade. Os parâmetros (também chamados de objetos) de referência, no lesar ou pôr em perigo um bem jurídico. Esse complexo de relações entre a
entanto, não se confundem com os objetos materiais do delito, como a coisa atividade causal e a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico é que deve ser
subtraída, ou a pessoa ferida. Objetos de referência são todo o complexo de tomado como base para a determinação da unidade ou pluralidade de ações.
condições normativas e empíricas, dentro de uma prática social, que orien- Por exemplo, alguém resolve realizar furto em uma residência, apro-
tam a execução de uma atividade. Por isso, é irrelevante a existência de várias veitando-se de que a porta de entrada se encontrava aberta. Após ingressar
pessoas feridas ou de vários objetos subtraídos para determinar a pluralidade facilmente no imóvel e realizar algumas subtrações, o agente resolve romper
mam, todavia, que mesmo no direito civil a manifestação de vontade deve possuir um destinatário. Sem um cofre que estava chumbado na parede, dele retirando pertences de pes-
este destinatário, será impossível concretar-se um negócio jurídico. Uma simples e pura manifestação soas diversas. Aqui, haverá unidade de ação e, também, único delito de furto
de vontade, portanto, sedimentada apenas em escritos, símbolos ou acenos, conduziria a uma extrema
subjetivação que não estaria acolhida no âmbito de autonomia do negócio jurídico, que pressupõe, via
de regra, uma aceitação daquela manifestação de vontade por parte do destinatário.
qualificado pelo rompimento de obstáculo, porque, independentemente dos
VIDAL, Hélvio Simões. Convergência de normas e concurso de penas, Mandamentos: Belo Horizonte, objetos a serem subtraídos e mais o obstáculo que teve de ser rompido, a
2007, p. 137; LOPES, Jair Leonardo. Curso de direito penal, 2ª edição, S. Paulo, 1996, p. 224; REALE
JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal, Rio de Janeiro, 2003, volume II, p. 111; limitando a ex- orientação da atividade seguiu o mesmo sentido de lesão de bem jurídico,
pressão “desígnios autônomos” ao dolo direto, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, pg,
Rio de Janeiro, 1985, p. 367, e PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 492; corretamente, entendendo que ou seja, o sentido de subtrair objetos situados naquela residência. Não foi,
a expressão “desígnios autônomos” indica diversidade de fins e não de dolo, CIRINO DOS SANTOS,
Juarez. Direito penal, parte geral, 2ª edição, Rio de Janeiro: 2007, p. 412. portanto, a forma como o processo causal se encaminhou que assinalara a
949. VIDAL, Hélvio Simões. Convergência de normas e concurso de penas, Mandamentos: Belo Horizonte, unidade de ação, mas o sentido que lhe foi imprimido em função da lesão de
2007, p. 137; LOPES, Jair Leonardo. Curso de direito penal, 2ª edição, S. Paulo, 1996, p. 224; REALE
JÚNIOR, Miguel. nstituições de direito penal, Rio de Janeiro, 2003, volume II, p. 111; limitando a ex- bem jurídico. Igualmente, aqui não interessa o número de pessoas lesadas. O
pressão “desígnios autônomos” ao dolo direto, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, pg,
Rio de Janeiro, 1985, p. 367, e PRADO, Luiz Regis. Nota 198, p. 492; corretamente, entendendo que que importa é a lesão patrimonial, ou seja, o que essa lesão representa para o
a expressão “desígnios autônomos” indica diversidade de fins e não de dolo, CIRINO DOS SANTOS,
Juarez . Direito penal, parte geral, 2ª edição, Rio de Janeiro: 2007, p. 412. agente em termos de orientação de conduta. Em se tratando de lesão a bens
538 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 539

jurídicos materiais, como o patrimônio, por exemplo, os objetos devem ser normas de cuidado (a proibição do excesso de velocidade e a de dirigir sem
vistos em sua universalidade e não em relação a cada pessoa particular.950 luzes à noite), as normas constituíram para o motorista um mesmo objeto ou
Com esse critério podem ser solucionados, sem maiores dificuldades, casos parâmetro de referência, ou seja, a forma de dirigir além dos limites do risco
em que a diversidade de procedimentos causais conduzidos de conformidade autorizado, imprimindo à execução da conduta o mesmo sentido e produzin-
com um mesmo sentido constituem unidade de ação, ainda que pudessem do, assim, a lesão de bem jurídico. Em face desse direcionamento único em
indicar pluralidade de ações se fossem individualmente considerados. Por função dos parâmetros de referência da conduta, também se poderá dizer que
exemplo, alguém, mantendo a vítima sob coação, realiza com ela, inicial- a lesão de bem jurídico não implicou uma modificação desse comportamento,
mente, atos libidinosos e, em seguida, conjunção carnal. Apesar de a conduta de modo que o agente tivesse que alterar a condução do veículo a cada minuto,
se desenrolar em várias fases haverá unidade de ação e igualmente apenas ou seja, a conduta do motorista se orientou num mesmo sentido, em função
um delito de estupro. É que aqui o sentido da atividade, determinado pelo da violação das normas de cuidado e da lesão dos bens jurídicos.
objeto de referência, que seria a lesão à liberdade sexual, pressupunha vencer Este critério de orientação pelo objeto de referência e sua função dentro
a resistência da vítima a partir da prática dos atos libidinosos, o que indicaria da configuração da atividade está bastante próximo daqueles elementos práticos
a unidade de ação, embora com procedimentos causais diversificados.951 aventados pela jurisprudência alemã. Mas, diferentemente dali, não empreende
Aplicando-se este critério aos delitos culposos ter-se-ia o seguinte: a uni- quanto àqueles elementos um enfoque naturalista, nem se vale do ideário de
dade de ação não deve ter por base apenas a infração a uma norma de cuidado. um observador neutro para decidir se haverá unidade ou pluralidade de ações.
Está claro que se houver a violação de apenas uma norma de cuidado, apesar de A jurisprudência alemã está correta quando, superando a formula subjetivista
os procedimentos causais serem diversos, haverá, inquestionavelmente, unida- da manifestação de vontade, busca equacioná-la dentro do contexto material
de de ação. Por exemplo, o motorista dirige sem freios e antes que o veículo se da própria atividade, inclusive sob o enfoque espaço-temporal. Parece equivo-
choque contra um muro, e acabe parando, vem a atropelar dois transeuntes na cada, porém, quando pretende, com isso, edificar um conceito naturalístico
calçada, produzindo-lhes lesões. Haverá unidade de ação, ou seja, a produção de ação a partir da observação de um terceiro, tomado em consideração igual-
de dois resultados mediante única conduta culposa, de dirigir sem freios. Mas mente dentro de um contexto natural. Em se tratando, especificamente, de
ainda que haja a violação de várias normas de cuidado, é possível reconhecer-se delitos culposos, em que o contexto natural cede lugar à norma de cuidado,
também a unidade de ação. Tudo depende se as normas de cuidado violadas ou ao risco autorizado, a identificação da unidade ou da pluralidade de ações
constituíram para o agente um ou vários objetos de referência. Se todas as não pode ficar na dependência de uma observação naturalística, mas de um
normas de cuidado compõem apenas uma forma de referência em termos de enfoque centrado na relação funcional entre a atividade efetivamente empreen-
orientação de conduta, isso conduzirá a reconhecer-se a unidade de ação. Por dida e os objetos normativos pelos quais deveria orientar-se. Isto não impede,
exemplo, o motorista dirige, durante a noite, em excesso de velocidade e sem está claro, que, na apreciação que se faça dessa relação funcional, se levem
luzes e vem a se chocar com um automóvel, matando dois de seus ocupantes em conta também os aspectos espaço-temporais nos quais se desenvolveu a
e causando lesões em outros dois. Aqui, apesar de haver a violação de duas atividade, mas isso, de qualquer modo, submetido ao crivo das delimitações
normativas que irão demarcar os lindes do procedimento causal, para evitar
950. Assim, se o ladrão subtrai de uma casa vários objetos de proprietários diversos haverá apenas uma ação que o critério espaço-temporal seja utilizado abusivamente e passe a assinalar
e também apenas um delito de furto. O mesmo vale para o crime de roubo, quando apenas uma pessoa é
ameaçada ou vítima da violência, embora os bens patrimoniais subtraídos pertençam a pessoas diversas. uma pluralidade de ações, quando, na realidade, há apenas unidade. Por exem-
Neste sentido, STREE/STEMBERG-LIEBEN. Schönke-Schröder Strafgetzbuch, Kommentar, 2006, p.
838; JAKOBS, Günther. Strafrecht, AT, p. 893; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, p. 720; MITSCH, plo, o motorista ultrapassa vários sinais vermelhos e atropela, com isso, duas
Wolfgang.“Konkurrenzen im Strafrecht”, JuS 93, p. 388; SAAN, Rissing-van. Strafgesetzbuch, Leipzi- ou mais pessoas. Aqui, embora se observe uma sequência temporal na viola-
ger Kommentar, 2004, p. 36.
951. Com esse mesmo desfecho, RIGHI, Esteban. Derecho penal, parte general, LexisNexis: Buenos Aires, ção à norma de cuidado, bem como nos resultados produzidos, poderá haver
2007, p. 440, que considera neste caso a unidade do objeto de valoração jurídica como condição deter-
minante, quer dizer, toma o objeto de referência típica como princípio orientador da decisão acerca da unidade de ação, caso essa violação temporal tenha imprimido à conduta do
unidade ou da pluralidade de ações; igualmente, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal, parte
geral, 2ª edição, Rio de Janeiro, 2007, p. 406. agente mesmo e único sentido, quer dizer, os objetos de referência, que seriam
540 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 541

a norma de cuidado que veda a condução sob sinal vermelho e os transeuntes decisão acerca da unidade ou pluralidade de ações depende não apenas da
como titulares de bens jurídicos, desempenharam, para a conduta do agente, violação a várias normas de cuidado, mas se o agente, depois dessas violações,
uma mesma função, de vedar-lhe a condução daquela forma naquele contex- poderia fazer com que sua atividade voltasse ou não a atender ao cuidado. Se o
to. A duplicidade de resultados não pode implicar aqui uma pluralidade de agente puder, a qualquer tempo, retomar uma conduta adequada ao cuidado,
ações, até mesmo porque o que deve valer para sua determinação é a violação haverá pluralidade de ações, caso contrário, apenas uma ação. Assim, no caso
à norma de cuidado e não o desfecho da causalidade. Está claro, porém, que do motorista que atropela algumas pessoas em sequência, haveria pluralidade
poderá haver pluralidade de ações, caso o motorista, diante do atropelamento de ações caso ele pudesse a qualquer momento voltar a dirigir corretamente
de um transeunte, passa a ter em consideração a atitude dos demais transeuntes, (por exemplo, retomar a velocidade adequada), ou unidade, quando isso lhe
como objetos de referência distintos, quer dizer, sua atividade não está mais fosse impossível (por exemplo, perder o controle do veículo).953 A solução a
condicionada a um, senão a outros objetos de referência, vinculados à viola- que chega ROXIN, embora com outro fundamento, não difere daquela an-
ção à norma de cuidado, quando, então, a lesão do bem jurídico assume uma teriormente proposta. Na comparação entre dirigir em excesso de velocidade
diversidade material, influente sobre a conduta do motorista e reorientando-a e perder o controle do veículo, por exemplo, pela proposta de ROXIN, a
a cada momento. Aqui pode ter relevância a distinção entre culpa consciente solução final ficaria a cargo do domínio sobre a causalidade e não da forma
e inconsciente, pois conforme atue o agente, respectivamente, com ou sem como a norma de cuidado fora violada. Quando o motorista perde o controle
conhecimento acerca da relação entre a violação à norma de cuidado e a lesão do veículo, isso não significa, ademais, que tenha violado a norma de cuida-
dos jurídicos dos transeuntes, poderá encará-los separada ou conjuntamente. do. Pode ser que isso seja obra do puro acaso. Mas, por outro lado, pode ser
Caso os visualize separadamente, na hipótese, portanto de atuar com culpa que a perda do controle do veículo resulte mesmo do excesso de velocidade.
consciente, cada um deles desempenhará distinta função na determinação de Se se der esta última hipótese, a afirmação sobre a unidade ou a pluralidade
sua conduta, o que poderá implicar pluralidade de ações, porque, então, já não de ações dependeria, pela solução de ROXIN, de como a causalidade fora
se pode dizer que a lesão dos bens jurídicos desses transeuntes impusera àquela conduzida pelo agente, ou seja, se o agente ainda mantivesse controle sobre
conduta tão-só um sentido. Analisando o fato em seu conjunto, a mesma solu- o veículo e viesse a atropelar, em sequência, várias pessoas, a decisão acerca
ção poderia ser obtida também pelo critério da jurisprudência alemã, embora da pluralidade de ações estaria fundada exclusivamente no modo como o
sob outro fundamento.952 agente manobrava o veículo, com controle ou sem controle. Se manobrasse
Postura particularmente interessante para delimitar o âmbito de sem controle, haveria unidade de ação; se manobrasse com controle, haveria
incidência da violação à norma de cuidado assume ROXIN, para quem a pluralidade de ações. A questão poderia ser resolvida de outro modo, se, por
exemplo, se passasse a entender que haveria pluralidade de ações porque, ao
952. Assim tem decidido o Supremo Tribunal alemão, reconhecendo, por exemplo, unidade de ação em uma
sequência de omissões, quando todas essas estiverem vinculadas à violação de uma mesma norma de manter o controle de seu veículo, estaria também orientando sua atividade
cuidado (BGHSt 37, 106). Neste caso específico, tratava-se de uma seqüência de omissões de diversos
dirigentes de uma empresa que deixaram de retirar do mercado um produto destinado à limpeza e con- em função de como os objetos de referência (a norma que proíbe a velocida-
servação de couros e do que resultaram diversas lesões aos consumidores (Ledersprayfall). O Tribunal de excessiva e a lesão dos bens jurídicos dos transeuntes) influenciaram ou
entendeu que, quando em uma seqüência de omissões e resultados se verifica que a violação da norma
de cuidado se manteve constante, haverá unidade e não pluralidade de ações. Em outras ocasiões, com
base no critério instituído pelo Supremo Tribunal, os demais tribunais alemães vêm caracterizando
continuavam a influenciar sua direção.
como unidade de ação a conduta de, continuamente, se haverem violado os limites permitidos de ve- Se, por exemplo, o motorista dirige em excesso de velocidade e vem
locidade, com resultado de lesões em várias pessoas (Por exemplo, OLG Zweibrücken 2003, 02-20;
OLG Düsseldorf, NZV 1994, 42; OLG Hamm, ZfS 1994, 187). No Brasil, não é estranho este posicio- a atropelar, em sequência, várias pessoas, a decisão em favor da pluralidade
namento. Por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (APCrim 6060/2002) e o Tribunal de
Alçada Criminal de S. Paulo (JTACrim 95, 221) já consideraram nestas duas decisões que, conforme de ações não poderá ficar resumida à conclusão de que, depois do primeiro
o contexto, a pluralidade de vítimas não implica pluralidade de ações, mas unidade de ação, pelo que,
neste caso, haveria concurso formal e não material de delitos culposos. No campo doutrinário, ainda atropelamento, poderia ele retomar a velocidade adequada, mas sim que o
que em contexto genérico, é elucidativa a observação de CONDEIXA DA COSTA, Da natureza formal
dos crimes culposos, 1989, p. 69, de que as chamadas por ele situações-limite, que estão na base da primeiro atropelamento alterou sua relação funcional para com os objetos de
norma de cuidado como formas concretas de execução (como ocorre com o trânsito de veículos), só
poderão ser demarcadas dentro de uma totalidade e não, fisicamente, com segmentos separados e soma- referência de condução contrária ao cuidado, de modo que, de agora em diante,
dos sucessivamente. Isso implica que a lesão de bem jurídico se processa, aqui, de conformidade com o
sentido imprimido à atividade e não em face de seu simples desdobramento físico. 953. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 817.
542 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 543

essa condução se tenha que novamente orientar pela presença ou atitudes dos receber. Não importa, aqui, se o agente adquire do ladrão algumas merca-
demais transeuntes, em face da lesão de seus bens jurídicos. Neste caso, portan- dorias e recebe outras: haverá unidade típica de ação e, consequentemente,
to, a condução em excesso de velocidade não está mais orientada em função da unidade de delito. No crime de desastre ferroviário culposo (art. 260, § 2º,
norma de cuidado e dos bens jurídicos de todos os transeuntes em conjunto, CP) são descritas várias condutas, como, por exemplo, a destruição ou o de-
mas de cada um deles, individualmente. Uma vez que isso ocorra, haverá, sarranjo de linha férrea, material rodante ou de tração, de obra ou instalação,
então, uma sequência de violações de normas de cuidado e uma sequência de ou ainda de colocação de obstáculo na linha, ou outras semelhantes, as quais
atropelamentos, o que levaria à afirmação de uma pluralidade de ações. configuram, independentemente se tenham sido todas elas praticadas ou
não, unidade de ação e apenas um delito culposo. Ainda que a norma do art.
3. A UNIDADE JURÍDICA DE AÇÃO 260, § 2º, CP não se refira, expressamente, àquelas condutas, está claro que
Independentemente da qualificação da unidade de ação a partir do con- todas devem servir de referência para a determinação da norma de cuidado.
ceito de ação comunicativa ou dos postulados da teoria naturalista, subsistem,
(2) A UNIDADE DE AÇÃO EM IDENTIDADE PARCIAL
na ordem jurídica, e por força de suas normas, igualmente, modalidades es-
peciais de unidade de ação. A importância do tratamento dessas modalidades Normalmente, na progressão criminosa, os atos que se desenvolvem nas
especiais de unidade de ação está em que sua afirmação implica a corresponden- diversas fases de execução do delito alinham-se em uma mesma identidade
te unidade de delito, quer dizer, o reconhecimento acerca da unidade de ação quanto à lesão ou ao perigo de lesão do bem jurídico. Por exemplo, no delito
delimita a imputação, de modo que o agente só poderá ser responsabilizado de homicídio, as lesões que precedem à morte se desencadeiam dentro de um
por apenas um delito. Estas modalidades especiais de unidade de ação, que mesmo sentido e de mesma unidade, todas se acrescentam para culminarem
decorrem exclusivamente do direito, podem ser classificadas em três grupos: em único resultado. Daí se dizer que se trata de unidade típica de ação em
a unidade típica de ação, a unidade de ação em identidade parcial e o crime face da identidade de todos esses atos quanto à produção do resultado. Mas
continuado. Aqui serão tratadas, inicialmente, as duas primeiras modalidades. será possível reconhecer-se também a unidade de ação nos casos em que esses
O crime continuado terá apreciação no âmbito do concurso de crimes. atos expressem entre si apenas uma identidade parcial, conforme resultem da
descrição típica. Isto se dá, por exemplo, no delito de estelionato (art. 171
(1) A UNIDADE TÍPICA DE AÇÃO CP), no qual poderá haver uma sequência de fraudes distintas, mas prati-
A este grupo pertencem aqueles casos nos quais a realização do próprio cadas no mesmo contexto, de modo a induzir com isso a vítima em erro e
tipo, tal como se apresenta a descrição legal da conduta, exprime várias ações, obter a vantagem patrimonial. Não importa que os meios fraudulentos sejam
até mesmo diferenciadas, sem que, no entanto, a prática de cada uma delas distintos, por exemplo, a simples persuasão ou o uso de técnicas mais apura-
implique a configuração de delito distinto, ou porque não se produz lesão das, como ocorre no conto do bilhete premiado ou da máquina de fabricar
de novo bem jurídico, ou porque os bens jurídicos lesados estão incluídos moedas, cuja apresentação é precedida sempre de uma argumentação convin-
no próprio dispositivo penal. Isto ocorre, normalmente, nos tipos mistos, cente. A relativa identidade dos atos não impede que todos se congreguem
nos delitos permanentes e nos delitos habituais. Fala-se ainda de unidade em um mesmo sentido, com vistas à produção do resultado patrimonial em
típica de ação naqueles casos de progressão criminosa, nos quais o agente vai favor do agente. Mas além dos casos de progressão criminosa, haverá ainda
passando, gradativamente, de uma fase a outra de execução do delito. Todas unidade de ação nos delitos complexos, nos quais a lesão de bens jurídicos
essas hipóteses são, em geral, relacionadas aos delitos dolosos. distintos está sedimentada em um mesmo conteúdo de injusto. Por exemplo,
no roubo (art. 157, CP), a ameaça e a violência, embora de identidades dis-
Nos delitos culposos, dadas as características da norma de cuidado, a
tintas e praticadas em sequência, conduzem-se dentro da unidade do próprio
unidade típica de ação se dá nos tipos mistos (alternativos ou cumulativos).
tipo, o que implica constituir apenas um delito. Para o reconhecimento da
No crime de receptação culposa (art. 180, § 3º, CP), por exemplo, o tipo é
unidade típica de ação e a consequente unidade de delito não importa a
misto alternativo e engloba em unidade tanto as ações de adquirir quanto de
identidade ou a unidade dos bens jurídicos lesados. Os crimes culposos de
544 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 545

perigo comum envolvem, quase sempre, no tipo de injusto, perigo de lesão comparada àquela que seria imposta a um delito de muito maior gravidade.955
a distintos bens jurídicos. Por exemplo, no desabamento (art. 256, parágrafo Em relação aos crimes culposos, haverá concurso material quando o
único, CP), em que as ações podem provocar, seguidamente, perigo à vida, à agente, mediante infração de duas ou mais normas de cuidado, tenha rea-
integridade física e ao patrimônio de outrem. Ainda que essas ações tenham lizado dois ou mais delitos culposos. Mas o concurso material só deve ser
produzido perigo de lesão a bens jurídicos diversos, haverá aqui unidade de afirmado quando os respectivos delitos tenham sido praticados por meio das
ação e apenas um delito de desabamento. respectivas infrações às normas de cuidado, tomadas separada e independen-
Pela descrição dos casos em que se manifestam essas duas primeiras temente uma das outras, quer dizer, cada delito resultante deve corresponder
modalidades especiais de unidade de ação, pode-se observar que elas se desen- a uma determinada violação do risco autorizado, sem que esta violação esteja
volvem sempre na mesma zona de ilícito, ou seja, as lesões de bens jurídicos em função de outra. Caso os delitos resultantes decorram de infrações às
se processam no mesmo conteúdo de injusto. Uma vez que as delimitações normas de cuidado, tomadas conjugadamente, não haverá concurso material,
típicas do ilícito não foram ultrapassadas, da constatação dessa unidade só porque, então, a violação do risco de cada um deles, tomada em separado,
pode resultar uma modalidade de infração normativa, ou seja, unidade de não se materializou no resultado típico que lhe deveria corresponder. Poderia
delito, ainda que as ações possam produzir distintas lesões de bens jurídicos haver, conforme o caso, crime continuado ou até mesmo unidade de delito,
e pudessem constituir, separadamente, outra série de ilícito, caso não hou- caso se tratar de unidade jurídica de ação.
vesse a figura típica que as englobasse. Mediante uma argumentação analítica
adequada da relação entre os bens jurídicos lesados ou postos em perigo e IV. O CONCURSO FORMAL
as delimitações típicas do ilícito, podem ser solucionados inúmeros casos O Código Penal brasileiro distingue, em seu art. 70, duas formas de
controvertidos, sem a invocação das normas do concurso de crimes ou dos concurso formal, o concurso formal próprio e o concurso formal impróprio,
critérios relativos ao concurso de leis. Justamente por não atentar para essas este último equiparado em seus efeitos ao concurso material. Nos delitos
particularidades dos próprios tipos, os tribunais vêm maltratando, às vezes, culposos, porém, não é admissível o concurso formal impróprio, que só
essa matéria, ora reconhecendo concurso formal, ora concurso material de poderá ocorrer quando os crimes forem dolosos e resultarem de desígnios
infrações, em fatos nos quais as respectivas ações, embora diversas, se reali- autônomos, ou seja, quando, além do dolo, estiverem presentes finalidades
zaram e se contiveram nos limites da mesma zona de ilícito. diversas orientadas a resultados distintos.
Haverá concurso formal de delitos culposos, quando o agente, me-
III. O CONCURSO MATERIAL diante infração a uma ou mais normas de cuidado, houver obrado em
O concurso material se caracteriza pela realização de duas ou mais ações, unidade de ação e, assim, realizado dois ou mais delitos culposos. É irre-
que conduzem ao preenchimento de dois ou mais tipos de delito. De con- levante, portanto, para caracterizar o concurso formal, que o agente tenha
formidade com o art. 69 do Código Penal, adota-se, no direito brasileiro, violado apenas uma ou mais de uma norma de cuidado. Em se tratando de
o sistema da cumulação de penas, ou seja, pela realização desses tipos apli- unidade de ação, esta pode ocorrer, como já se demonstrou acima, ainda
cam-se as penas separadamente a cada um deles. Este sistema está em franca que o agente tenha violado mais de uma norma de cuidado. Tudo depende
decadência, porquanto implica muitas vezes grave violação do princípio da de como as violações se relacionaram com a realização dos respectivos tipos.
proporcionalidade.954 Por exemplo, pela prática de dois ou mais crimes de Na medida em que a realização de dois ou mais tipos culposos corresponda
pequeníssima gravidade pode o agente ser condenado a uma pena altíssima, se ao mesmo sentido da violação do risco autorizado, ou seja, a violação dos
954. Embora melhores, outros sistemas têm também seus defeitos ao deixarem ao arbítrio judicial a fixação diversos riscos se conduz de forma unificada a se realizar em dois ou mais
da pena final. Na Alemanha, por exemplo, para o concurso material vigora o sistema da pena unificada
ou da exasperação (§§ 53 e 54). Admitida a pluralidade de ações e a correspondente pluralidade de tipos, haverá concurso formal e não concurso material.
delitos, se houver concorrência entre a pena de prisão perpétua e outra privativa de liberdade, esta será
unificada naquela; em se tratando de penas privativas de liberdade, será aplicada a pena de qualquer um
deles ou a mais grave, aumentada segundo arbítrio judicial. Em qualquer caso, não pode a pena exaspe- 955. Por exemplo, o agente que realiza em concurso material 5 (cinco) furtos poderá ser condenado à pena
rada ser igual ou superior à pena que resultaria da soma de cada uma delas. máxima de 20 anos, igual à pena máxima do homicídio.
546 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 547

Deve-se fazer aqui uma importante distinção entre as hipóteses de uni- desde a importância de uma limitação do poder de punir, a partir da elaboração
dade de ação como delito único e como concurso formal de delitos. Haverá dos glosadores e pós-glosadores, até sua configuração moderna sob panora-
delito único quando a violação de uma ou mais normas de cuidado conduzir ma puramente normativo. Várias teorias buscaram, no entanto, defini-lo em
à realização de uma mesma violação de bem jurídico. Para a caracterização função de sua relação para com a realidade ou seus efeitos, para afirmar tratar-se
da unidade de violação de bem jurídico não importa a unidade de vítimas. de unidade natural de ação (teoria da unidade real), ou de criação artificial
Normalmente, quando se trate de lesão a bens jurídicos personalíssimos, (teoria da ficção), ou de criação jurídica (teoria da unidade jurídica). Por outro
como a vida e a integridade corporal, a pluralidade de vítimas acarretará lado, frente à sua configuração positiva, ora se deu exclusiva relevância aos seus
também a pluralidade de lesão de bens jurídicos. Por exemplo, o motorista elementos objetivos (teoria objetiva), ora aos subjetivos (teoria subjetiva).
em unidade de ação mata dois transeuntes. Haverá, então, concurso formal Embora o Código Penal tenha adotado a teoria objetiva, isto é irrelevante
de delitos culposos. Já em relação a bens jurídicos patrimoniais, a pluralidade para os delitos culposos. Ainda que se adotasse a teoria subjetiva, os delitos cul-
de vítimas dentro de um contexto de unidade de ação não acarretará a exis- posos poderiam integrar o âmbito do crime continuado, em virtude da própria
tência de concurso formal, mas apenas delito único. Por exemplo, alguém estrutura de sua constituição como unidade jurídica de ação. Uma vez que nos
adquire culposamente algumas coisas furtadas pertencentes a pessoas distin- delitos culposos a resolução para o agir é indiferente, pois, caso contrário, se
tas. Haverá apenas um delito de receptação culposa. trataria de delitos dolosos e não culposos, não caberia aqui qualquer indagação
Como efeito do concurso formal, aplica-se a pena mais grave, se diver- de ordem subjetiva, como elemento determinante da continuidade.
sas, ou qualquer delas, se idênticas, aumentadas de um sexto até a metade. A continuidade pode ocorrer nos crimes culposos, quando mediante duas
Tem lugar aqui regra semelhante (embora não idêntica) do direito alemão de ou mais infrações a normas de cuidado forem cometidos dois ou mais crimes
que, em nenhum caso, poderá a pena exasperada exceder a pena que resulta- da mesma espécie, de tal modo que, em virtude de condições semelhantes
ria da soma de cada uma delas (art. 70, parágrafo único). Na determinação relacionadas ao tempo, lugar, meio, modo de execução e outros elementos con-
do aumento da pena em quantidade fixa de um sexto até a metade, deverá textuais, as subsequentes se apresentarem como consequência ou continuação
o juiz considerar não apenas o número de violações às normas de cuidado das antecedentes. Isto poderá ser equacionado de forma mais explícita, quando
e o número de delitos culposos realizados, como também o modo dessas as violações ao risco autorizado se referirem às mesmas normas de cuidado. Por
violações. Como nos delitos culposos a violação das normas de cuidado não exemplo, salvo na hipótese de unidade de ação, o motorista dirige em excesso
é apenas elemento do tipo, mas também parâmetro de referência da culpa- de velocidade e vem com isso a atropelar, em sequência, vários transeuntes;
bilidade, é essencial que, nessas violações, sejam atendidas ainda as relações ou o médico realiza várias operações no mesmo dia ou em dias seguidos, sem
do agente para com essas normas de cuidado e o resultado, ou seja, se atuara atender em cada uma delas às condições adequadas de higiene, e produz com
com culpa consciente ou inconsciente. Tendo em vista a menor gravidade da isso a morte de vários pacientes por infecção hospitalar. Nestes casos, haverá
culpa inconsciente, para o efeito de dosar a evitabilidade do perigo da ação crime continuado, porque, em face das condições contextuais, cada ação pos-
concretamente praticada para com a lesão de bem jurídico, a exasperação terior pode ser considerada continuação da anterior.
tem que se limitar, neste caso, ao mínimo legal, porque sempre haverá a pos-
sibilidade de até mesmo ser excluída a imputação, em face da qualidade da É de se ressaltar, ademais, que a existência de pluralidade de condutas
conduta, ou a culpabilidade pela inevitabilidade da lesão por parte do agente. e pluralidade de eventos culposos não pode impedir que se possa reconhecer,
no caso concreto, a sua irrelevância em face do princípio da culpa leve, ou da
V. O CRIME CONTINUADO insignificância da lesão produzida. Embora entre culpa leve e princípio da
O crime continuado constitui uma espécie de unidade jurídica de insignificância subsista uma certa diferença, ambos têm como efeito excluir o
ação. A fundamentação acerca de sua natureza tem seguido vários caminhos,
956 processo de imputação. A culpa leve exclui a imputação com base na forma e
no modo como fora violada a norma de cuidado, e deverá ser apreciada como
956. STREE/STEMBERG-LIEBEN. Schönke-Schröder Strafgesetzbuch, Kommentar, 2006, p. 812.
548 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 549

limitação da causalidade em face da qualidade da conduta. Já o princípio ou modos de execução semelhantes. Igualmente seriam da mesma espécie
da insignificância, como princípio geral da ordem jurídica, afetará especial- os delitos nos quais a lesão de determinado bem jurídico tivesse como pres-
mente a avaliação da lesão de bem jurídico e excluirá a imputação por não se suposto a lesão de outro bem jurídico, ou quando a lesão de bens jurídicos
haverem formado suficientemente os pressupostos normativos da imputação distintos se situasse na mesma zona do ilícito. Os delitos de perigo, portanto,
culposa, nos quais se inclui a demonstração e a relevância empírica da lesão. serão da mesma espécie dos delitos de dano que lhe correspondam, assim
O processo de imputação, portanto, não é apenas uma expressão da causa- como serão da mesma espécie os delitos consumados e tentados em relação
lidade ou da afirmação de vinculações empíricas entre conduta e resultado, à lesão do mesmo bem jurídico, ou os delitos que violem o mesmo bem
mas o complexo de demonstrações empíricas e de limitações normativas, que, jurídico, mas com formas de execução diferenciada. Assim, por exemplo,
sob o ângulo do aumento do risco, integram a tipicidade culposa. Assim, por seriam da mesma espécie todos delitos contra a pessoa. Igualmente seriam
exemplo, se o motorista comete pequenos deslizes na condução e vem com da mesma espécie os delitos exclusivamente patrimoniais, ou todos os delitos
isso a causar vários eventos lesivos, poder-se-á excluir sua imputação em face de perigo que se expressassem com idênticas formas de execução, os delitos
da irrelevância da lesão de cuidado verificada, ou seja, a irrelevante qualidade contra a liberdade sexual, ainda que a execução seja diversa. Em relação aos
da conduta impede que o processo causal possa representar um aumento do crimes culposos, seriam, portanto, da mesma espécie todos os delitos contra
risco do resultado ou nele exaurir-se. Se as lesões produzidas foram, além a pessoa, ou todos os delitos de perigo a ela relacionados.
disso, de pequeníssima gravidade, a questão não está em analisar-se a qua- Aplica-se ao crime continuado o critério da exasperação, pelo qual será
lidade da conduta, mas que os resultados assim verificados são insuficientes imposta ao agente a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave,
para fundar empiricamente a base normativa da conduta culposa sobre a qual se diversas, aumentada em ambos os casos de um sexto a dois terços (art. 71).
deverá formar-se o processo de imputação, ou seja, a insuficiência da lesão Ainda que se trate de vítimas diferentes e de lesão a bens personalíssimos, não
que impede ou dificulta a demonstração de que o bem jurídico fora por ela se estende aos delitos culposos o aumento especial de pena previsto no pará-
afetado desconstrói os fundamentos do sistema de responsabilidade que a grafo único do art. 71 do Código Penal. As causas de especial aumento só se
ordem jurídica deve instituir a partir de uma limitação do poder de punir. estendem aos delitos culposos, quando estiverem legalmente previstas as con-
Uma vez que haja, portanto, qualquer dificuldade na apreciação empírica da dições mais graves de lesão aos deveres de cuidado. O quantum da exasperação
lesão, ou quando a insignificância dessa lesão conduzir à sua irrelevância para deverá atender não apenas ao número de infrações às normas de cuidado e ao
afetar o bem jurídico, não estarão preenchidos os pressupostos normativos número de tipos realizados, mas também à relação do agente para com essas
do tipo culposo e, portanto, as bases do processo de imputação. violações, se com culpa consciente e inconsciente, procedendo-se ao mínimo
A exigência contida no Código Penal de que os crimes sejam da mesma da exasperação quando se tratar de culpa inconsciente. Valem aqui, portanto,
espécie tem conduzido a perplexidades e a interpretações divergentes. Na os mesmos argumentos traçados quanto ao concurso formal de delitos.
determinação do que se poderiam constituir crimes da mesma espécie não
se pode partir unicamente da posição sistemática ocupada pelos respectivos VI. O CONCURSO DE LEIS
delitos na lei penal, nem unicamente da descrição típica da conduta incrimi- 1. CARACTERÍSTICAS
nada. Está claro que delitos contidos nos mesmos dispositivos penais serão
da mesma espécie. Mas o parâmetro delimitador dessa categoria de crimes A doutrina quer atribuir importância extraordinária ao concurso de
deverá ser dado pela análise do conteúdo do injusto penal, conforme a relação leis, fazendo derivar de seus critérios toda a conclusão relativa ao concurso de
de parentesco dos bens jurídicos lesados e da forma e do modo de execução crimes. Parece, porém, que a melhor orientação deve partir de algumas consi-
da ação em face dessa relação. Assim, seriam da mesma espécie os delitos derações de DÍEZ RIPOLLÉS, pelas quais se pode concluir que o concurso de
que tivessem como pressuposto a lesão ou o perigo de lesão do mesmo ou de leis terá como parâmetros o seguinte: a) juridicamente deve estar configurada
idêntico bem jurídico, bem como aqueles que se materializassem em formas uma hipótese de unidade de delito; b) sobre esta unidade de delito pode incidir
550 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 551

mais de um preceito normativo; c) em face de princípios de coerência da ordem aplicação da pena aquém do mínimo daquela cominada na lei excluída. Esta
jurídica, só um desses preceitos, afinal, deverá incidir sobre aquela unidade de cláusula visaria a evitar que o agente se beneficiasse duplamente, isto é, com
delito.957 Portanto, no concurso de leis ou concurso aparente de normas, se trata a exclusão de uma das leis incidentes sobre o fato e ainda com uma atenua-
de determinar sob que lei se deva processar a imputação, quando se reconheça, ção especial. Mas o objetivo desta cláusula está completamente divorciado
simultaneamente, a unidade de delito e a pluralidade de leis. Não cabe aqui, do sentido da ordem jurídica. Quando se verifica a exclusão de uma das
portanto, decidir acerca da unidade ou pluralidade de delitos. Esta matéria leis, isto não significa benefício ao agente, mas simplesmente a aplicação de
já foi objeto de discussão nos verbetes anteriores, relativamente às questões algum princípio geral da própria ordem jurídica, que não pode ser incoe-
quanto à unidade jurídica de ação e ao concurso de crimes. Havendo unidade rente. Assim, não há fundamento para este impedimento. Ademais, desde
jurídica de ação, haverá unidade de delito; havendo pluralidade de delitos, que se observe estritamente o princípio da culpabilidade, que muitas vezes
haverá concurso de delitos. As regras do concurso de leis valem tanto nos delitos poderá impor, inclusive, a aplicação da pena aquém do mínimo legal para
dolosos quanto nos culposos e têm por objetivo indicar, definitivamente, a lei atender ao princípio da proporcionalidade, esta cláusula impeditiva seria
que irá reger a unidade de delito. absolutamente inválida, até mesmo porque a pena mínima cominada na lei
A solução final do concurso de leis implicará, portanto, a aplicação de excludente não seria em tese afetada. Por outro lado, isto resta mais evidente
uma só das leis em detrimento das demais que incidiriam sobre o fato. Esta nos casos em que a lei excludente prevê uma causa de especial diminuição
exclusão das demais leis se poderá efetuar porque a lei excludente disciplina de pena, não prevista na lei excluída.
o fato com algum outro elemento a mais do que a lei excluída (especialida- Por exemplo, alguém registra filho alheio como próprio, com o fim de
de), ou porque a lei excludente consome as outras (consunção), ou porque evitar que este seja expulso do Brasil e, consequentemente, entregue a outro
a lei excludente está relacionada às demais na condição de lei principal e país, no qual será submetido, supostamente, à pena de morte. A ação do
leis subsidiárias (subsidiariedade). Na relação entre essas diversas leis, e com agente preencheu aqui dois tipos legais: o art. 299 (falsidade ideológica) e
evidência nos casos de consunção e subsidiariedade, também se pode falar o art. 242 (parto suposto) do Código Penal. Tendo em vista o princípio da
das hipóteses de antefatos e pós-fatos impuníveis ou copuníveis. Uma vez especialidade, será aplicado ao caso somente o art. 242, que prevê, ademais,
aplicado um desses critérios, só subsistirá uma lei, sendo vedada, portanto, a o perdão judicial para a hipótese de haver sido o crime cometido por motivo
combinação dessas leis. Todos esses critérios visam a satisfazer alguns princí- de reconhecida nobreza, condição esta que não consta da norma excluída
pios, notadamente, ao da unidade normativa (cada delito deve corresponder (art. 299). Neste caso, não há como impedir a exclusão da pena por força do
a uma infração normativa), ao da unidade comunicativa (cada delito deve parágrafo único do art. 242. Isto se aplica também às hipóteses de prescrição.
estar relacionado ao mesmo processo de comunicação) e ao do non bis in Por exemplo, alguém obtém redução do imposto de renda, indicando paga-
idem (uma mesma infração normativa não pode ser avaliada duas vezes para mentos a médicos inexistentes. Embora incidentes sobre o fato as normas dos
caracterizar o mesmo delito). Em função de como se manifesta a unidade de arts. 1º, I, da Lei 8.137/90 e 299 do Código Penal, igualmente pelo prin-
delitos, pode-se classificar o concurso de leis em duas espécies: formal e ma- cípio da especialidade, só incidirá definitivamente a primeira. Caso o delito
terial. Há concurso formal de leis quando uma só lei deva ser aplicada a uma remanescente, que é a sonegação fiscal, não puder mais ser perseguido em
manifestação de unidade de delito. Haverá concurso material de leis quando face da prescrição, isto também abarca o delito de falsidade ideológica (art.
uma só lei deva ser aplicada à pluralidade de manifestações de unidade de 299), ainda que, individualmente, a prescrição não o alcançasse. Nos delitos
delito, como ocorre nos antefatos e pós-fatos impuníveis.958 culposos, é ainda mais evidente a impropriedade de tal cláusula, quando haja
Diversamente do direito alemão, não vigora, no direito brasileiro, diversidade de violação entre as leis, se com culpa consciente e inconsciente, se
a chamada cláusula impeditiva (Sperrwirkung), pela qual estaria vedada a com culpa grave ou leve. Uma vez que a culpa inconsciente é menos grave do
que a consciente, o cometimento do fato por aquela deve influir também na
957. RIPOLLÉS, José Luís Díez. Derecho penal español, parte general, Tirant lo Blanch: Valencia, 2007, p. 545.
958. RIPOLLÉS, José Luís Díez. Derecho penal español, pg, p. 546. avaliação desta. Igualmente, se o sujeito atua com culpa grave em relação à lei
552 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 553

excluída e leve quanto à lei remanescente, pode ter excluído o próprio processo antecedente, ou da pré-pendência, quando se dá sentido oposto, ou seja, o
de imputação, com base na qualidade da conduta. O que vale aqui não é a gra- fato antecedente está esclarecido, mas não esclarecido o fato subsequente.
vidade da culpa da primeira infração, mas o parâmetro de gravidade revelado Dada a incerteza quanto a essas relações, a pós-pendência (ou pré-pendência)
na lei excludente. Por exemplo: o agente, ao realizar um churrasco no interior não pode implicar concurso de crimes, devendo-se reconhecer apenas um
de um parque nacional, acaba provocando, culposamente, um incêndio na delito, justamente aquele cuja tipicidade esteja esclarecida.961
mata mais próxima. Sobre seu comportamento incidem, conjuntamente, os
arts. 40 e 41 da Lei Ambiental,959 mas, pelo princípio da consunção, apenas 2. ESPECIALIDADE
lhe será imputada a conduta prevista no primeiro daqueles dispositivos, que Haverá especialidade quando uma lei disciplinar o fato de modo mais
trata do dano a elementos naturais existentes em um parque nacional, aqui específico do que aquela promovida por outra lei ou, segundo uma formula-
considerado como Unidade de Conservação,960 e não apenas de incêndio em ção clássica endossada por ROXIN, “quando uma disposição penal se refere a
qualquer mata ou floresta. Independentemente de a pena mínima cominada todos os elementos de uma outra, mas dela se diferencia porque contém, pelo
ao delito culposo ser menor no caso do art. 40 do que no art. 41, pode ela menos, alguns outros elementos a mais”.962 A especialidade implica a exclusão
ser aplicada, uma vez atendidos os indicadores do art. 6º da Lei Ambiental, da lei geral em benefício da lei especial. Nos delitos culposos, a especialidade
combinado com o art. 59 do Código Penal. pode se dar tanto frente a modalidades diversas de resultados, quanto à forma
O concurso de leis deve ser resolvido com alguns critérios que foram e ao modo como a atividade fora realizada, ou seja, como uma lei disciplina a
desde há muito formulados, primeiramente, ao que parece, por FEUERBA- violação da norma de cuidado. Caso uma lei discipline a violação à norma de
CH, e depois desenvolvidos pela doutrina subsequente, principalmente, por cuidado com maior especificidade ou com algum outro elemento a mais do
MEZGER e demais penalistas. Os critérios, tradicionalmente, são agrupados que outra, haverá especialidade. A especialidade pode implicar, por outro lado,
em quatro categorias: especialidade, consunção, subsidiariedade e alterna- violação do mesmo bem jurídico ou de bens jurídicos diversos. Por exemplo, as
tividade. Este último critério, na verdade, não implica dar uma solução ao normas dos arts. 302 e 303 do Código de Trânsito excluem, respectivamente,
concurso de leis, mas apenas colocar à disposição do julgador duas ou mais a aplicação dos arts. 121, § 3º, e 129, § 6º, do Código Penal.
leis, ou duas ou mais formas de conduta típica, pelas quais ele mesmo possa Alguns autores, entre os quais JAKOBS e PUPPE, resumem, na espe-
basear, alternativamente, sua decisão. Normalmente, a alternatividade se ex- cialidade, todas as hipóteses do concurso de leis. Na verdade, essa conclusão
pressa no próprio desenvolvimento do processo de argumentação, como, não chega a ser incoerente, porque, em qualquer caso, há sempre uma lei
por exemplo, nos tipos mistos alternativos ou nas hipóteses de dificuldade que melhor descreva a conduta a ser imputada. Por sua parte, quase todas as
na apreciação dos fatos. No primeiro caso, a solução é operada mediante o hipóteses de subsidiariedade ou consunção, salvo nas relativas aos antefatos
reconhecimento de unidade típica de ação. No segundo caso, deve a decisão e pós-fatos impuníveis, podem ser solucionadas mediante uma correta in-
fundar-se no princípio in dubio pro reo, escolhendo a lei que mais beneficie terpretação dos respectivos tipos de injusto, sem necessidade da invocação
o agente. Fora da alternatividade, pode-se associar a esses critérios a hipótese de critérios especiais. No entanto, diante da complexidade do fato e ainda
de pós-pendência, que relaciona delitos em função de que tenham sido pra- da dubiedade dos procedimentos interpretativos, parece ser adequado a uma
ticados pelo mesmo agente, quando não esclarecida a subsistência do fato argumentação delimitativa que se proceda a uma diferenciação do critério
da especialidade propriamente dita, que seleciona a lei aplicável segundo as
959. Lei 9.065/98, “Art. 40: Causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que
particularidades da configuração típica do injusto, daqueles outros casos, de
trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização: Pena
– reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos.” “§ 3º. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade”;
subsidiariedade e consunção, nos quais fatos diversos se integram ao mesmo
“Art. 41: Provocar incêndio em mata ou floresta: Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa. conteúdo de injusto em face, respectivamente, da gradação na violação do
Parágrafo único – se o crime é culposo, a pena é de detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.”
960. Lei nº 9.605/98, “Art. 40, § 1º. Entende-se por Unidades de Conservação de Proteção Integral as Esta-
ções Ecológicas, as Reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios 961. WESSELS-BEULKE. Strafrecht, AT, 42ª edição, 2012, p. 330.
de Vida Silvestre.” 962. ROXIN, Claus. Nota 895, p. 848.
554 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 555

bem jurídico ou do sentido imprimido à realização da conduta e do resultado. subsidiariedade e de unidade jurídica de ação. Na unidade jurídica de ação,
opera-se, no âmbito do tipo, uma identificação do processo de imputação
3. SUBSIDIARIEDADE como unidade de delito, ou seja, na medida em que a violação à norma de
Diz-se que há subsidiariedade quando a incidência de uma lei ao fato cuidado se desenvolve no sentido de produzir, gradativamente e no mesmo
está em função de outra lei, que igualmente o disciplina de modo mais grave, sentido, a lesão do bem jurídico, se delimita juridicamente o injusto do
ou seja, a primeira lei, chamada subsidiária ou subordinada, só é aplicável fato de conformidade com a estrutura do respectivo tipo de delito. Já pelo
se a segunda lei, chamada de principal ou subordinante, não o for. Distin- critério da subsidiariedade, o que se pretende é dar significado político-cri-
guem-se duas espécies de subsidiariedade: expressa e tácita. A subsidiariedade minal a essa delimitação, a fim de subordinar o julgador aos princípios de
expressa vem consignada, via de regra, no preceito secundário, indicando sua coerência da ordem jurídica, quando um delito não possa ter significado
subordinação a outra lei mais grave. Para tanto, o próprio legislador vale-se, sem a prévia realização de outro. Como se passa com os demais critérios,
geralmente, de expressões como “se o fato não constitui crime mais grave” o da subsidiariedade constitui, assim, mais um elemento interpretativo de
(art. 132, 163, p. único, II, 238, 307, 308, CP) ou “se o fato não constitui que se deve valer o julgador para, definitivamente, demarcar os limites do
elemento de crime mais grave” (art. 239, CP), ou “se o fato não constitui ilícito do fato.
elemento de outro crime” (art. 249, CP), ou “se o fato não constitui crime
contra a economia popular” (art. 177, CP) e outras semelhantes. Por sua vez, 4. CONSUNÇÃO
a subsidiariedade tácita resulta de uma argumentação analítica dos disposi- Haverá consunção quando o processo de imputação, embora se ma-
tivos legais que disciplinem o fato, ao reconhecer entre ambos uma relação nifeste em campos tipicamente diferenciados, se situar no mesmo âmbito
de subordinação e a proceder à exclusão da lei subsidiária em favor da lei da zona de ilícito. Praticamente, considera-se que há consunção quando um
principal. A característica básica da subsidiariedade reside em que a lei subor- fato constituir meio, etapa ou forma comum, mas não necessária, de come-
dinada e a lei subordinante tratam o conteúdo de injusto do fato conforme timento de outro, de tal modo que sua execução se tenha exaurido em um
os graus de agressão ao bem jurídico, mas dentro de um mesmo processo de mesmo resultado final. Por exemplo, o uso de documento falso como meio
imputação. Nos delitos dolosos, isto se dá nas relações de tipos consumados fraudulento no estelionato. A conclusão será a aplicação apenas da norma
e tentados, de tipos de dano e de perigo, de tipos qualificados e simples. do estelionato (fim), que consome (ou absorve) a norma do falso documen-
Uma vez que o fato se desenvolva, portanto, no âmbito de correspondência tal (meio). Tendo em vista esta relação entre meio e fim, a doutrina tem-se
desses tipos, os tipos consumados excluem os tipos tentados, os tipos de dano confundido muito na caracterização da consunção. Enquanto a doutrina
excluem os tipos de perigo, e os tipos qualificados excluem os tipos simples. alemã entende que a consunção só se dá quando o meio empregado for
Nos delitos culposos, a subsidiariedade se verifica em função da gradação apenas usual, mas não necessário para a prática de outro,963 a doutrina ita-
que se processa no âmbito da relação entre norma de cuidado e resultado. liana estende a consunção também às hipóteses clássicas de subsidiariedade,
Por exemplo, se alguém produz em outrem, culposamente, uma lesão e, em admitindo-a inclusive na progressão criminosa.964 Neste particular, ficam
sequência, sua morte, só responderá por homicídio culposo. Embora se possa divididas as doutrinas brasileira965 e espanhola.966
obter, aqui, o mesmo resultado de exclusão, mediante uma argumentação
963. HAFT, Fritjof. Strafrecht, AT, 2004, p. 277; JESCHECK-WEIGEND. Nota 7, 1996, p. 736; KÜHL,
analítica do próprio tipo de homicídio, que congrega entre seus elementos a Kristian. Strafrecht, AT, 2005, p. 715; TIEDEMANN, Klaus. Die Anfängerübung im Strafrecht, 1999,
lesão corporal, a importância do critério da subsidiariedade está em situar o p. 93; WARDA, Heinz Günter. JuS 1964, 90; WESSELS-BEULKE, Strafrecht. AT, 2006, p. 301.
964. BETTIOL, Fiandacca-Musco; MANTOVANI, Ferrando.
processo de imputação sob os princípios da ordem jurídica e evitar, portanto, 965. Seguindo a orientação italiana no Brasil: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 9ª
edição, 2004, volume 1, p. 179; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal, 2ª edição,
que o procedimento argumentativo possa ser usado, indevidamente, para 1992, volume 1, p. 27; GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, 4ª edição, volume I, tomo II, p.
ampliar e não para delimitar a zona do ilícito. 509; HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, 1958, volume I, tomo I, p. 139; PRADO, Luiz
Regis. Nota 198, p. 220. Seguindo a orientação alemã: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal,
parte geral, 2006, p. 420.
Em função disso, há que se fazer uma distinção entre as hipóteses de 966. Na doutrina espanhola, atrelando-se à concepção alemã: SANTIAGO MIR PUIG. Seguindo a italiana:
556 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO O CONCURSO DE CRIMES CULPOSOS 557

A correta interpretação parece estar, porém, com a doutrina alemã. integram o mesmo conteúdo de injusto. Por exemplo, o agente subtrai
O processo de imputação na subsidiariedade é delimitado por força de antecedentemente a chave do veículo, que depois será usada para também
uma gradação de intensidade em relação à lesão ou ao perigo de lesão ao subtraí-lo, ou danifica, previamente, o sistema de alarme de uma residência
bem jurídico, de tal sorte que a solução quanto à lei aplicável não depende e depois nela penetra para subtrair-lhe os bens. Em ambos casos, em função
exclusivamente da forma como o fato é concretamente praticado. A própria de que tanto a subtração da chave quanto o dano no alarme só têm sentido
interpretação do tipo legal conduzirá o julgador à solução do conflito para se vinculadas, respectivamente, ao furto do automóvel ou da casa, o agente
excluir a lei menos grave em favor da lei mais grave. Por exemplo, o delito só responde pelo delito final. É o que se dá, igualmente, com o porte ilegal
de homicídio exclui o delito de lesão, realizado como etapa da produção da de arma e o homicídio subsequente. Nestes casos, aplica-se o princípio da
morte. Já na consunção, como o conteúdo típico é diferenciado quanto ao consunção, porque se entende que o fato antecedente está também incluído
delito-meio e ao delito-fim, a conclusão só poderá ser obtida mediante uma no âmbito de imputação do fato consequente, o que conduz à unidade de
avaliação de como se relacionam, concretamente, esses delitos frente aos injusto e de punibilidade. Já nos pós-fatos impuníveis, a realização de uma
respectivos conteúdos de injusto. A consunção será reconhecida, quando conduta complementar àquela já consumada não implica nova imputação,
a relação concreta entre esses delitos indicar que o conteúdo de injusto quando se situar como seu exaurimento ou quando sirva apenas de reforço
de cada um está comprometido com o do outro, de modo a impor uma da posição alcançada pelo agente. Por exemplo, a destruição do cadáver
avaliação conjunta de ambos e exaurir-se, portanto, em único processo de realizada depois do homicídio, ou a destruição da coisa subtraída, depois
imputação a fim de evitar o bis in idem. É o que se verifica no exemplo antes do furto. Da mesma forma, pelo princípio da consunção, o delito de ho-
citado do dano promovido culposamente em um parque nacional por haver micídio absorverá o delito subsequente de destruição de cadáver, o delito
o agente posto fogo, inadvertidamente, em sua mata. Neste caso, aplica-se de furto absorverá o de dano.
apenas o art. 40 e não também o art. 41 da Lei Ambiental, porque o in- Nos crimes culposos, a produção de um resultado mais grave absorverá
cêndio, tomado como meio produtor do dano, estará consumido por este. o delito antecedente, que decorra da própria violação da norma de cuidado
Aqui não se pode proceder a um concurso de delitos, sob pena de violação (relação de antefato). Por exemplo, o delito de homicídio culposo no trânsito
da proibição de bis in idem, porquanto o injusto do incêndio está de tal (art. 302, CTB) absorverá o de embriaguez ao volante (art. 306, CTB). Da
forma imbricado naquele do dano que só pode ser avaliado em conjunto mesma forma, o delito antecedente absorverá o consequente, quando este
com ele. Daí implicar único processo de imputação. Usando outra termi- apenas reforçar a posição do agente ou constituir seu exaurimento. Por exem-
nologia, poder-se-ia dizer que a violação da norma de cuidado relacionada plo, o delito de homicídio culposo no trânsito (art. 302) absorverá o delito
à proibição de atos que conduzam ao incêndio exauriu-se concretamente de omissão de socorro subsequente (art. 304). Não se descaracteriza aqui a
no resultado de dano ao parque nacional. relação de pós-fato impunível pela consignação legal (art. 304, p. único) de
5. ANTEFATOS E PÓS-FATOS IMPUNÍVEIS que o socorro deva ser prestado ainda quando se trate de morte instantânea,
nem que o fato posterior seja doloso. Por seu turno, independentemente de
Nos antefatos e pós-fatos impuníveis, há pluralidade de ações que se se tratar de obrigação impossível e, portanto, não suscetível de atendimento
desenvolvem no âmbito da mesma zona de ilícito. A doutrina tem tratado (art. 124, CC), a omissão de socorro se situa no âmbito do mesmo conteúdo
esse casos ora como subsidiariedade, ora como consunção.967 Nos antefatos de injusto do homicídio e, portanto, implica unidade de imputação e de pu-
(também chamados de fatos copunidos), a realização da conduta ante- nibilidade. Aqui tampouco interessa o elemento subjetivo do agente, mas sim
cedente se vincula de tal forma à consequente que sua avaliação só pode a relação de identidade de injusto frente à lesão e ao perigo de lesão ao bem
ser feita em conjunto com esta, o que implica a conclusão de que ambas jurídico. Em se tratando de delito de perigo antecedente ou consequente,
será absorvido pelo delito de dano correspondente, doloso ou culposo. Não
DÍEZ RIPOLLÉS e CEREZO MIR.
967. KÜHL, Kristian. Strafrecht, AT, p. 716; WESSELS-BEULKE. Nota 234, p. 304. muito diferente será a solução quando o homicídio e a omissão de socorro
558 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

não decorrerem do trânsito. Para tanto, como o Código Penal prevê um


aumento de pena já para esta omissão (art. 121, § 4º), não há lugar para sua
punição como delito doloso subsequente
6. A IDENTIDADE DE AUTOR E A PÓS-PENDÊNCIA
BIBLIOGRAFIA GERAL
O reconhecimento da unidade de delito ou do concurso de leis, por
se tratar de unificação que se processa no âmbito da imputação, estende
seus efeitos também aos respectivos autores. Isto significa que o agente do ABBAGNANO, Nicola. Dicionario de filosofia, México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
1966.
delito antecedente não pode responder pelo delito consequente, quando
ADORNO, Theodor, et al. La sociedade. Lecciones de sociología, tradução de Floreal Mazía e Irene
seja o autor de ambos. Esta conclusão, embora, na prática, gere, às vezes, Cusien, Buenos Aires: Proteo, 1971.
controvérsias, é bastante óbvia. Se o conteúdo de injusto do fato está rela- ALIMENA, Bernardino. La colpa nella teoria generale del reato, Palermo: Priulla, 1947.
cionado à imputação, esta só poderá ser multiplicada para o agente quando ALIMENA, Bernardino. Principi di diritto penale, Pierro: Napoli, 1910.
implique uma pluralidade de delitos. Havendo unidade de delitos, ora ALTAVILLA, Enrico. La colpa, Roma: Ateneo, 1950.
por força da unidade jurídica de ação, ora por aplicação dos princípios da ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Coação irresistível por violência, S. Paulo: Bushatsky, 1974.
especialidade, subsidiariedade e consunção, haverá igualmente unidade de ANTOLISEI, Francesco. Manuale di diritto penale, Milano: Giuffrè, 1969.
imputação. Por exemplo, se o agente furta um objeto e depois o destrói, BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal, parte general, 2ª edição, Buenos Aires: Hammurabi, 1999.
o reconhecimento do pós-fato impunível por aplicação do princípio da BACIGALUPO, Enrique. Hacia el nuevo derecho penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2006.
consunção impõe, também, ao agente a unidade de imputação. Esta regra, BARATA, Alessandro. “Das Theater des Rechts und die Dramaturgie des Lebens. Zur Zurechnung
von Verantwortlichkeit im Strafprozeß”, Das Recht und die schönen Künste, Heinz Müller-Dietz zum 65.
porém, não vigora em dois casos: para o coautor do delito consequente, ou Geburtstag, Heike Jung (Organizadora), Baden-Baden 1998.
na hipótese da chamada pós-pendência.968 Esta última ocorre quando for BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, 4ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
incerta ou imprecisa a imputação pelo delito antecedente, de tal sorte que BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal, Rio de Janeiro: Revan, 2001.
só reste a imputação pelo delito consequente. Neste caso, o agente respon- BATTAGLINI, Giulio. Direito penal, parte geral, trad. brasileira de Paulo José da Costa Jr. e Ada P.
de apenas pelo delito consequente. Nos delitos de trânsito, por exemplo, Grinover, S. Paulo: Saraiva, 1964.
havendo dúvidas acerca da imputação pelo homicídio culposo (art. 302, BAUMANN, Jürgen. Strafrecht, Allgemeiner Teil, Bielefeld: Gieseking, 1975.

CTB), mas estando certa a imputação pelo delito de embriaguez ao volante BAUMGARTEN, Arthur. Aufbau der Verbrechenslebre, Tübingen: Mohr, 1913.

(art. 306, CTB), o agente responderá apenas por este último. BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, Tübingen: Mohr, 1906
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Leipziger Universitätsverlag 1995. Animus auctoris 496
e resultado 252 Animus socii 496
Ação e omissão 260 Anselmo de Canterbury 372
Ação esperada Antefatos e pós-fatos impuníveis 557
em Muñoz Conde 193
Antijuridicidade
Ação individual antecipação e tipicidade 313
e ação de outrem 251 antecipação pelo risco permitido 420
Ação natural 534 caráter indiciário em Jescheck 147
Ação socialmente adequada com juízo de valor 314
e risco permitido 419 e bem jurídico 284
Ação típica e elementos subjetivos de justificação 431
como conduta descuidada 322 em Fiandaca-Musco 179
como conduta voluntária 317 em Fragoso 90
e processo de comunicação 318 em H. Mayer 141, 167
em Jescheck 136, 146
Acaso 327 em Niese 70
Actio libera in causa 462 em Regis Prado 93
crítica dos modelos 465 em Roxin 205
e autoria mediata 465 na teoria causal 57
e culpa consciente 467 no crime culposo 429
e culpa inconsciente 467
Antijuridicidade culposa
e imputação 468
em Muñoz Conde 215
hipóteses metodológicas 462
modelo de exceção 464 Antijuridicidade e culpabilidade
modelo do tipo 464 em von Weber 70
572 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 573

no finalismo 69 limitação temporal 403 Berner 29, 35, 47 como condição suficiente 383
Antijuridicidade e tipo Ausência de ação 256, 266 Bettiol 47, 50, 58, 111, 135, 136, 142, Causa eficiente 51, 368, 372
no finalismo 105 Ausência de realização do risco não 150, 156, 170, 179, 180, 181, 184, 276, Causa final 372
Antolisei 55 permitido 407 346, 361, 441, 555 Causa formal 372
Anton Oneca 300 Ausência do aumento do risco 401 Binavince 142, 173, 337, 360 Causa inicial, primitiva 372
Art. 6º CP 553 e o Código Penal 402 Binding 57, 58, 123, 154, 235, 274, 335, causalidade 244
Art. 13 Autocolocação em perigo 410 397 Causalidade
estrutura lógica 304 Autor Birnbaum 162 caráter argumentativo 368
implicações teleológicas 308 doloso e culposo 499 caráter nomológico 368
Bitencourt 75, 96, 97, 103, 105, 394,
Art. 13 § 1º CP 380 Autoria como critério limitativo da intervenção
426, 436, 510, 555 367
Art. 13 § 2º, “C” do CP 439 no crime culposo 499
Blei 59, 65, 75, 82, 341, 358, 449 critério limitador 376
Art. 13 § 2º CP 526, 528 Autorresponsabilidade
Bockelmann 111, 112, 113, 115, 116, critérios limitativos 367
Art. 13 CP 367, 503, 527 critérios delimitadores 409
118, 119, 126, 138, 358, 395, 505, 507 direito e ciências naturais 376
Art. 14, II CP 428 e comportamento alternativo 370
Boldt 35, 59, 287, 515
Art. 18 B Bottke 502
e idoneidade 384
implicações sistemáticas 309 em Davidson 364
Bacigalupo 188, 194, 195, 255, 302 Brenner 344 em Mach 375
Art. 18, parágrafo único CP 519 Barata 454 Brentano 88 em Stratenwerth 78
Art. 19 CP 513, 518 Bartlett 269 em Zaffaroni 85
Art. 21 CP 480 Bruno 50, 53, 55, 57, 58, 59, 61, 62, 107,
Batista 324, 325 e órgãos empresariais 362
Art. 22 CP 489, 491 162, 426, 464 e racionalidade 246
Battaglini 54, 60 Brusa 47 e regresso infinito 365
Art. 24 CP 436 Baumann 54, 55, 59, 60, 61, 62, 131, Bunge 368, 371, 374, 390 e tipo culposo 311
Art. 25 CP 433, 434 168, 170, 217, 276, 300, 394, 488, 496 intervenção de terceiro 403
Art. 26 CP 275, 481 Busato 487
Baumgarten 58 limitação pelo comportamento alternativo
Art. 29 CP 504, 505 Busch 70 371
Behrendt 188, 198 Bustos Ramírez 235, 388 na filosofia aristotélica 372
Art. 31 CP 510 Beling 368 princípio da eliminação hipotética 369
Art. 42 CP de 1940 422, 461 bem jurídico 339, 445, 455 princípio da exclusão 363
Art. 59 CP 461 Bem jurídico 288
C sentido empírico e jurídico 396
Art. 61, II,1 CP 468 como objeto de limitação 277 Carmignani 175, 233 subjetiva 56
Art. 63 CConsum 525 conceito 277 Carpzov 514 Causalidade adequada
Art. 68 Lei Ambiental 525 delimitador da ação 252 Carrara 47, 48, 50, 57, 175, 233, 332, e previsibilidade 390
e conceito de conduta 230, 241 Causalidade contrafática 365
Art. 129 §§ 1º e 2º CP 520 e crime culposo 73
456
Art. 129, §§ 1º e 2º CP 518 Carvalho, Erika 388 Causalidade funcional 371
e crime omissivo 294 e ação descuidada 377
Art. 132 CP 437 e disponibilidade 442 Caso da banheira 497 e velocidade excessiva 377
Aschrott 153 em Fiandaca-Musco 176 Caso da montadora de automóveis 413 exemplo do motorista 377
e objeto de referência 263
Atos automatizados 266 Caso do ciclista 397 Causalidade natural
e proibição ou determinação 287
Atos impulsivos, ou automatizados 255 e valor abstrato 282 Caso do fabricante de pinceis 397, 407 e causalidade típica 368
Ato volitivo e valores ético-sociais 66 Caso do farmacêutico 200, 354, 397 Causalidade superveniente 384, 402
e causalidade 262 finalidade protetiva 277 Caso do médico plantonista 486 e ausência de realização do perigo 407
Atuação dolosamente distinta 511 importância 227 e risco habitual 422
Caso do psiquiatra 357
pressupostos 283 Causalidade típica 367
Auffangtatbestand 520 Caso dos dois operários suíços 503
Bem jurídico pessoal 442 e dever de cuidado 369
Aumento do risco Caso fortuito 54, 65, 68, 69, 221 e processoas causais anormais 369
ausência 401 Bens jurídicos e embriaguez 470
e bem jurídico 202 processo de formação 283 Causa material 372
em Fiandaca-Musco 178
exemplo do lojista 402 Beristain 343 Causas de exculpação
Causa
574 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 575

no crime culposo 489 Concausas 397 e bem jurídico 42, 44 498


particularidades 490 Conceito cibernético de ação 71 e causalidade 42 teoria do dolo 496
Causas de justificação Welzel 163 e culpabilidade 452 teoria do domínio do fato 497
e devida investigação 429 e delimitação do poder de punir 230 teoria do interesse 496
Conceito crítico de ação 231 e dogmática penal 41, 241 teoria formal-objetiva 495
e elementos subjetivos 431
elementos subjetivos 92
conceito de ação 196 e imputação 266 teoria subjetiva 496
em Cirino dos Santos 95 Conceito de ação e legalidade 239 Concurso de crimes
em Fragoso 90 avaliação da norma 240 em Wessels 149 nos delitos dolosos 495
como conceito de relação 252 e norma penal 43, 283
Causas de justificação em espécie 432 Concurso de crimes culposos
como condicionante da norma 248 enunciado 271
Causa suficiente 51 normas gerais 533
conclusão 270 e ontologia 42
Cecchi 48, 49 crítica à concepção de H. Mayer 167 e orientação normativa 250 Concurso de leis 549
e comunicação 254, 260 e pessoa humana 42 antefatos e pós-fatos impuníveis 556
Cerezo Mir 75, 93, 94, 426
e culpa inconsciente 259 e poder de punir 251 consunção 555
Chan Mora 347 especialidade 553
e evitabilidade 197, 209 e prática social 260
Cirino dos Santos 67 e imputação 191 e processo de comunicação 232 subsidiariedade 554
Cláusula ceteris paribus 378 elementos empíricos 240 e processo de imputação 42 Concurso formal
Coautoria em Bacigalupo 195 e proibição ou determinação 42, 232 e culpa inconsciente 546
no crime doloso 495 em Bettiol 179 e realidade objetiva 245 e delito único 546
Código Civil alemão 389 em Bettiol 180 e tipicidade 230 exemplo do motorista 546
em Cirino dos Santos 94 e vida de relação 246 nos crimes culposos 545
Código Criminal brasileiro de 1830 281 em Fiandaca-Musco 176 importância 44 Concurso material
Código de Processo Penal alemão 133 em Haft 139 natureza 230 nos crimes culposos 545
Código de Trânsito 382 em H. Mayer 140 parâmetros 248 Conduta
Código de Trânsito Brasileiro 472 em Jakobs 189, 190, 209 pressupostos 241 como atividade volitiva 254
em Jescheck 136 relevância 258 e racionalidade 245
Código do Consumidor 316 em Mantovani 182 Conceito de pessoa e regra determinante 255
Código Penal 50, 63, 88, 102, 103, 111, em Marinucci 183 e entidade comunicativa 247 estrutura e poder de punir 239
128, 130, 162, 166, 173, 201, 234, 236, em Muñoz Conde 192 em Jakobs 211
em Regis Prado 93 Conduta cuidadosa
297, 315, 316, 333, 436, 481, 506 Conceito de simbólico 37 critério correto de aferição 328
e conceito de ação 304 em Roxin 189
em Schmidhäuser 113 Conceito de vontade 261 execução 337
e o sistema adotado 304
em Stratenwerth 79 conceito dogmático de ação 243 Conduta e finalidade 259
Código Penal alemão 133, 228, 344,
e mundo objetivo 245 Conceito dogmático de ação Conduta humana
445, 495, 496, 504, 505, 507, 521 em Zaffaroni 83 e pessoa humana 244, 247 como atividade consciente 257
Código Penal espanhol 233 e o Código Penal 304 fases de elaboração 243 como conduta sócio-racional 262
Código Penal italiano 49, 177, 186, 422 e performatividade 252 pressupostos 242 como matéria da proibição 67
Código Penal militar 316, 435 e poder de punir 230 Conceito material de ação 167 em Jescheck 160
e proibição ou determinação 241 em Muñoz Conde 193
Código Penal português 237 e relevância social 159 Conceito negativo de ação 196
e reações físicas 253
Cognição da execução 478 e resultado 84 crítica 222
no finalismo 71
Cognição do resultado 478 importância 124 Conceito normativista de ação 112 problemas na teoria social 164
Colisões em cadeia 426 limites 248 Conceito significativo de ação 194, 260 relevância 254
pressupostos 243 Conceitos jurídicos Conduta perigosa
Commelerán y Gomez 234 pressupostos de validade 244
Compensação de culpas 426 e juízos aléticos 242 abstenção 336
problemas na teoria social 164 e prática social 292
e causalidade funcional 427 proposta de formulação 239 Conceito superior de conduta 65, 68,
Comportamento alternativo teoria funcional 188 139 Conexão de dever de cuidado 366
exemplo do motorista 371 teoria social 134 Concurso aparente de normas 550 Congruência 67, 76, 79
Comportamento alternativo conforme Conceito de ação”e discurso 258 Concurso de agentes e tipo subjetivo 333
no crime culposo 493, 498 no tipo doloso 318
ao direito 370 Conceito de conduta
defeitos da doutrina tradicional 230 princípio da planificação e organização Consciência da antijuridicidade
Concausa 402
576 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 577

e a esfera do leigo 484 desvalor da ação 72 concurso formal 545 475


e desconhecimento da lei 481 e ação socialmente adequada 73 concurso material 544 características 450
na omissão 532 e autoria mediata 504 de mesma espécie 548 caráter limitativo 450
Consentimento do ofendido e bem jurídico 32 e delitos de dever 295 causas de exculpação 489
no crime culposo 441 e co-autoria 501 proibição ou determinação 288 como defeito permanente do processo
e comportamento 247 Crimes culposos de dano e de perigo volitivo 74
Consentimento presumido
e conteúdo omissivo 232 como elemento negativo da pena 459
em Roxin 206 317
e crime omissivo 209, 232 como pressuposto da pena, crítica 229
no crime culposo 441 Crimes culposos de mera atividade 316
e delito de dever 228 concepção de Arthur Kaufmann 153
Consunção 555 e direitos humanos 52 Crimes de domínio 494 concepção normativa 58
e subsidiariedade 556 e dogmática da conduta 33 Crimes de mão própria 494 concepção psicológica 57
conteúdo de injusto 344 e estrutura da conduta 29 Crimes dolosos e acessibilidade normativa 208
Conteúdo de injusto e fim de agir 321 e lesão de bem jurídico 286 e conduta contrária ao valor 130
e proporcionalidade 521 e futebol 203 proibição ou determinação 288 e conduta injusta 451
importância 225 e imputação 202 e culpa inconsciente 153, 155
e legitimação 32 Crimes dolosos e culposos e desconhecimento da lei 481
Conteúdo do injusto 159 divisão 297
em Bettiol 180 e elemento subjetivo 58
em Jescheck 137 Crimes omissivos
e meios antijurídicos 50 e estrutura da conduta 458
em Jescheck 145 no finalismo 72
em Fiandaca-Musco 177 e evitabilidade 476
e processo de imputação 39
em Jakobs 208 Crimes qualificados pelo resultado 513 e legitimidade em Jakobs 211
evolução 35
em Jescheck 143 Critério da causa relevante 372 elemento psicológico-normativo 59
Continuidade da contribuição causal em Mantovani 182 elementos 455
383 em Muñoz Conde 213 Critério da evitabilidade 394 e liberdade de vontade 225
deficiências 396 e livre arbítrio 452
Contribuição causal insignificante 403 em Roxin 198
em Schmidhäuser 119 Critério da idoneidade 383 em Arthur Kaufmann 169
Copi 307
e natureza da norma 241 exemplo do motorista 383 em Bockelmann 115
Costa, Alvaro Mayrink 518 e participação 504 Critério da previsibilidade 389 em Cirino dos Santos 95
Costa, Condeixa da 69, 76, 540 e processo de imputação 29, 297 Cuidado em Feuerbach 514
Costa e Silva 45, 433 e resolução para o fato 502 e sentido ôntico 293 em Fragoso 90
Costa Júnior, Heitor 75, 91, 92, 93, 103, estado de necessidade 435 medida do 323 em Heitor Costa Júnior 92
estrutura da norma 291 em H. Mayer 167
311, 333, 340, 389, 431, 501, 504, 510 Cuidado externo 334, 336 em Jescheck 136
estrutura da norma no tipo 312
Costa Júnior, Paulo José da 555 abstenção da conduta perigosa 336 em Maurach 77
fases de realização 428
Costa, Newton C. A. da 246 dever de atenção, controle e guarda e em Mestieri 87
natureza 231
dever de prévia informação e prepa-
Cramer 79, 427, 519 no finalismo 74 em Regis Prado 94
ração 336
no normativismo 117 em Roxin 206
Criação do risco 400 execução da ação cautelosa 336
perspectivas metodológicas 229 em Schmidhäser 121
Crime continuado posição sistemática 34 Cuidado interno 334 em Schmidhäuser 116
nos delitos culposos 547 teorias objetivas 45, 48 Cuidado objetivo em Stratenwerth 79
Crime culposo teorias subjetivas 46 em Muñoz Conde 214 em Zaffaroni 85
ação típica 317 tipo subjetivo 332 Culpa e objeto de referência 451
antijuridicidade 428 Crime culposo e crime doloso como forma de culpabilidade 54 e padronização 485
as fórmulas da imprudência, negligência e autonomia 289 elementos na teoria causal 57 e processo de comunicação 452
imperícia 235 distinção 33 elemento volitivo 57 e reprovabilidade 59
autoria 493 em Arthur Kaufmann 153 e responsabilidade 207
como delito de conteúdo omissivo 295
Crime culposo e crime omissivo 293
e presunção legal 49 exclusão em Jakobs 212
concepção de Arthur Kaufmann 152 Crime doloso exclusão por amnésia 270
posição sistemática na teoria causal 55
concepção de Haft 156 congruência 67 fundamentos 453
concepção de H. Mayer 151 e crime culposo 63 culpabilidade 233
inexigibilidade de outra conduta 488
concurso de agentes 493 no finalismo 67 Culpabilidade 170 na teoria causal 57
consentimento do ofendido 441 Crimes culposos capacidade de evitar a realização do tipo no crime culposo 449
contribuição de Engisch 162 classificação 315 475 nos crimes omissivos culposos 531
denominação 232 cláusula impeditiva 550 capacidade de reconhecimento do cuidado tendência dominante 228
578 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 579

tipos de 138 em Schmidhäuser 120 Delitos qualificados pelo resultado 91, Dogmática penal
Culpabilidade culposa responsabilidade objetiva 153 100, 172, 291, 513 e conceito de acão 40
em Fiandaca-Musco 179 Culpa lata 47 e conteúdo de injusto 514 e conceito de conduta 241
em Jakobs 210, 212 Culpa leve 422 e omissão 531 em Fiandaca-Musco 176
em Jescheck 148 em Duttge 423 e unidade jurídica 518 e política criminal 34
em Muñoz Conde 215 e normas de trânsito 423 legitimidade 516 objetivos 41
Culpabilidade de vontade limites 425 limites 520 Dohna 105
conteúdo 174 Culpa leve, média ou grave origens 513 Dold 464
e culpa inconsciente 174 diferenciação 424 Delitum culposum e crimen culpae 519 dolo 333, 422, 456
e culpa inconsciente 457 Denominação
Cursos causais hipotéticos 402 Dolo
em Arthur Kaufmann 172, 174 finalidade prática 238 e culpa 153
significado 456, 457
Descartes 262 e desígnios 536
Culpabilidade e culpa inconsciente D Desconhecimento da lei 481 estrutura 301
no finalismo 74 Dahm 506 e vontade 264
Culpabilidade e responsabilidade Desvalor da ação 71, 72, 74, 82, 93, 96
Dallmeyer 243, 246 Desvalor do ato e desvalor do resultado Dolo de perigo 172
em Roxin 207 e culpa 173
Davidson 364, 373 286
Culpabilidade jurídica e moral 170 e culpa consciente 174
Decisionismo 30, 37, 322, 332 Desvalor do resultado 67, 74, 82, 93, e culpa consciente 437
Culpabilidade moral 169 e homem prudente 325
culpa consciente 456 96, 166, 218 Dolo direto 301
Defeito de caráter em Cirino dos Santos 95
Culpa consciente 95, 106 no finalismo 75 Dolo e culpa
em Roxin 202 combinação 514
conceito 455 Defeito de congruência 67 em Roxn 205
e consciência do fato 132 diferenciação 300
e determinação da gravidade 460 Degener 379, 380 Dever de atenção, controle e guarda distinção em H. Mayer 151
e dolo de peigo 172 Del Grande 169 338 distinção em Jakobs 209
e dolo de perigo 81, 153, 172, 174 Delimitação do poder de punir Dever de cuidado etapas de diferenciação 303
e dolo de perigo 437 e causalidade 368 delimitação do conteúdo 333 na teoria causal 54, 63
e dolo eventual 173 Delito culposo 303 e conduta perigosa 290 Dolo eventual 301
e erro de fato 49 Dever de prévia informação e prepara- e culpa consciente 173, 302
e inconsciente 132 Delito doloso
em Mantovani 182 ção 339 Dolo eventual e culpa consciente
em Arthur Kaufmann 153 limites 519
e produção do perigo 436 e norma de trânsito 346 Dever de realizar conduta cuidadosa
limites 519 Delitos culposos 336 Dolo no tipo 161
Culpa consciente e inconsciente e delitos de dever 500 Dever de reconhecimento do perigo Dolus generalis e dolus indirectus 514
em Haft 157 excepcionalidade 518 Donatsch 135
para o bem jurídico 334, 335
Culpa dolo determinata 514 Delitos de ação e delitos de dever 199 Dörner 473, 474
Dever de se abster da ação perigosa 334
Culpa imprópria 428 Delitos de dever 493 Dotti 510
Dias, Aguiar 461
Culpa inconsciente 106, 267 Delitos de domínio 494 Doutrina italiana 175
Díez Ripollés 549, 550, 556
argumentos contrários 260 Delitos de mão própria 494 concepção de Bettiol 179
Dilling/Mombour/Schmidt 276, 561 concepção de Fiandaca-Musco 175
conceito 455 Delitos de perigo abstrato 286
e actio libera in causa 155 e concreto 287
Diminuição do risco concepção de Mantovani 182
e atribuição de responsabilidade 458 característica 400 concepção de Marinucci 183
e presunção 287
e bem júridico 154 Delitos omissivos culposos 523 Direito e moral concepção de Padovani 183
e caso concreto 460 em Pufendorf 169 crítica 184
situação típica 525
e conceito de ação 259 Direito e Moral Dreher 394
e concurso formal 546 Delitos omissivos impróprios culposos
em Thomasius 169 Dubber 399
e consciente 132 316
e situação típica 526 Direito natural 35 Durkheim 187
e erro de fato 49
e liberdade de vontade 119 Delitos omissivos próprios culposos Direito penal de garantia 231 Duttge 423, 424
em Arthur Kaufmann 155 316 Direito subjetivo 35
em Roxin 205 Di Tullio 60
580 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 581

E Estrutura da conduta
importância 239
em Mestieri 87
em Schmidhäuser 122
Finalidade potencial e finalidade real
78
Ellscheid 450 Estrutura jurídica Experiência geral da vida 328 Finalidade protetiva da norma
Embriaguez condições de validade 283 Experiência geral da vida e teoria da em Muñoz Conde 214
caso fortuito 470 Estruturas imputação 108 Finalismo
e caso fortuito 469 e formação social 280 Explanandum 374 concepção de Armin Kaufmann 80
e imputabilidade 468
Evitabilidade 108 Explanans 374 concepção de Bitencourt 96
e inimputabilidadeCódigo Penal 474
critérios 395 concepção de Blei 82
Embriaguez culposa 470 e actio libera in causa 468 Explicação nomológica-dedutiva da concepção de Cirino dos Santos 94
Embriaguez voluntária 469 e culpabilidade 396 causalidade 374 concepção de Fragoso 89
Engelmann 47 e culpa leve 424 concepção de Heitor Costa Júnior 91
Engels 35 e injusto 103
em Bacigalupo 195
F concepção de Luisi 88
concepção de Maurach 76
Engisch 79, 111, 134, 135, 142, 159, em Jakobs 191, 192 Fabricius 450 concepção de Mestieri 86
217, 300, 360 em Roxin 201 Faticidade e validade 284 concepção de Mestieri 86
Erro de mandato 532 em Stratenwerth 78 concepção de Regis Prado 93
Fegert 276, 561
Erro de permissão 480 em Wessels 149 concepção de Stratenwerth 78
em Zaffaroni 84 Feijóo 426 concepção de Struensee 80
Erro de proibição 148, 175 e previsibilidade 166 Ferri 233 concepção de Zaffaroni 83
e validade da norma 482 na teoria social da ação 166 concepção de Zielinski 81
Fetichização da mercadoria 38
Erro de proibição direto 480 no finalismo 69 e Bettiol 179
no crime culposo 485
Feuerbach 35, 47, 57, 58, 59, 456, 514,
Evitabilidade do resultado 150 e Jescheck 160
Erro de proibição inevitável 481 552 modelo conclusivo 71
nos crimes culposos 396
Erro de subsunção 481 Fiandaca-Musco 111, 176, 177, 178, política criminal 100
Evitabilidade subjetiva 151
179, 186, 463 teoria do injusto pessoal 284
Erro de tipo permissivo 480 em Maurach 77
variantes 76
no crime culposo 487 Excepcionalidade do crime culposo 63 Figueiredo Dias 170, 236
Fim de proteção da norma 379 Fins de política criminal 216
Esclerose Excepcionalidade dos delitos culposos
e previsibilidade 479 exemplo do motorista 385 Fischer 53, 375
518
Esfera leiga Finalidade 99 Fischer, Sigrid 154
Excesso do risco autorizado e ilícito 81
e conhecimento da norma de cuidado 484 Florian 48
e norma de cuidado 418 em Bettiol 180
Especialidade 553 Exemplo da enfermeira 70, 72, 101 formação social 285
em Fragoso 89
Espécies de culpa Exemplo da espingarda 68 em Mantovani 182 Formação social 38, 272, 278, 279
consciente e inconsciente 455 em Niese 69 e experiência geral da vida 329
e gradação da culpabilidade 460 Exemplo do controlador de vôo 475 e interesse 281
em Stratenwerth 78
Esquecimento Exemplo do estande de tiros 379 em Zaffaroni 83 e norma penal 51
e ausência de ação 270 Exemplo do fabricante de automóveis e referência 264 Fragoso 38, 67, 68, 71, 75, 76, 89, 90,
e culpabilidade 154 384 e sentido da atividade 66 91, 100, 111, 114, 162, 171, 174, 261,
processos de 268 Exemplo do guarda-vidas 347 e vontade 265 267, 276, 312, 324, 325, 333, 340, 346,
Estado de necessidade 489 investigação negativa 78 361, 433, 436, 437, 439, 518, 536
Exemplo do médico 330
e omissão 438 irrelevância 254
Exemplo do motorista 60, 78, 99, 109, negação 99 Franco, Alberto Silva 471, 518
e produção do perigo 436
inexigibilidade de sacrifício do bem 440 153, 178, 195, 213, 226, 227, 255, 256, no crime doloso 69 Frank 45, 53, 58, 64, 111, 174, 228, 300,
justificante e exculpante 435 302, 318, 348, 353 Finalidade consciente 78 394, 450, 452
no crime culposo 435 Exemplo dos empresários 377 Finalidade da ação culposa Frankfurt, Harry 262
perigo provocado volitivamente 440 Exemplo do vaso na janela 379 crítica 99 Freund 111, 112, 113, 114, 115, 389,
Estado de necessidade justificante Exigibilidade Finalidade extratípica 87 496, 501
no crime culposo 433 na culpabilidade culposa 488 Finalidade potencial 71, 100 Frisch 388, 431
Estatuto da Criança e do Adolescente Exner 48, 327, 394 em Luisi 88 Fuga culposa de preso 310
316 Experiência geral 151 em Maurach 76
582 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 583

Funcionalismo Hettinger 465 no crime culposo 274 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 170,
origem 187 Hipnose e sonambulismo 256 Imputação normativa 171, 270, 275, 284, 285, 335, 339, 354,
Futebol Hirsch 464, 515 critérios 366 356, 418, 419, 443, 452, 480, 515, 526
e crime culposo 203 Imputação objetiva do resultado 388 Jescheck-Weigend 34, 54, 55, 58, 63, 99,
Hoffmann 368
Holzkamp 250, 251, 501 Imputatio facti 55 101, 110, 111, 134, 136, 137, 138, 143,
G homem médio 324 Imputatio juris 55 144, 145, 146, 148, 149, 170, 171, 443,
Gallo 177 Homem médio 61, 228, 325 Incongruência 87, 92 514, 526, 555
crítica 325 no tipo culposo 318 Jesus 229, 433
Garcia Arán 35, 192, 193, 194, 213,
e Jakobs 209 Induzimento ao suicídio 412 Jiménez de Asúa 47, 49, 111, 169
214, 215, 260, 311
em Fiandaca-Musco 178 Infrações à ordem 344
Garcia, Basileu 54, 55, 234, 471, 555 Joecks 519
em Jescheck 144 Ingelfinger 531
Garraud 233, 456 em Stratenwerth 79 Jolivet 257, 268
Injusto Juízo de antijuridicidade
Geppert 429, 444 Homem prudente 89, 108, 109, 228 em Schmidhäuser 121 antecipação 64
Germann 98 crítica 102, 103, 163, 164, 222
crítica 324 Injusto da ação Juízos aléticos 242
Gesinnung em Jescheck 144
ânimo adverso ao direito 121 e Heitor Costa Júnior 91
e Jakobs 209 Injusto do resultado
Giles 160 em Bitencourt 97 em Jescheck 145 K
Gilson 372 em Bockelmann 119 Injusto e culpabilidade Kadecka 154, 155
Göhler-König-Seitz 344 em Cirino dos Santos 95 distinção 227 Kant 374
Gomes 461 em Haft 157 em H. Mayer 141
em Roxin 203 no finalismo 71
Kaufmann, Armin 34, 75, 80, 165
Gomez de Liaño 233 e previsibilidade temporal 393 Kaufmann, Arthur 48, 58, 98, 105, 111,
Gómez Rivero 404 Intencionalidade
e Regis Prado 93 em Bettiol 180 126, 129, 130, 135, 150, 152, 153, 154,
Greco, Luís 325, 370, 380, 382, 388, refutação do conceito 325 em Luisi 88 155, 156, 159, 169, 170, 171, 172, 173,
398, 404, 415 suposto conceito empírico 325
Interesse 174, 175, 340, 360, 395, 437, 457, 524
Grispigni 70 Homo medius 60, 62, 63, 74, 228, 341, e bem jurídico 280 Kaufmann. Arthur 154
Gropp 36, 389, 463, 501 440, 485 e valor 281
em Bitencourt 96
Kelsen 111, 169, 278
Grünhut 64 e valor concreto 282
em Fragoso 90 Kim 262
Günther, Hans-Ludwig 432 Interesse e norma 278
em Hungria 62 Klein 154
Günther, Klaus 188, 476 Interesse social
Horn 165 e formação social 280 Kluge 235
Hume 371, 373, 374 Intervenções cirúrgicas proibidas 446 Koffka 267, 268, 269
H Hund 405 Investigação devida Köhler 154
Habermas 188, 244, 245, 253, 257, 258, Hungria 45, 50, 51, 53, 55, 57, 59, 60, e elemento subjetivo 430 Kohlrausch 48, 58, 98, 135, 153, 172,
284 61, 62, 107, 162, 358, 433, 434, 436, 174, 422, 457, 561
Haft 126, 135, 139, 150, 156, 409 440, 456, 461, 471, 488, 555
Hybris e nemesis 169
J Kohlrausch-Lange 55
Hardwig 217 Köstlin 35, 496
Jakobs 79, 99, 165, 188, 189, 190, 191,
Hassemer 37, 277, 363, 365, 450 Kraatz 502
192, 204, 208, 209, 210, 211, 212, 213,
Haus 233 I 218, 220, 221, 228, 254, 255, 267, 340,
Kraatz, 503
Hegel 170 Identidade de autor e pós-pendência Kühl 336, 366, 395, 501
348, 349, 365, 388, 389, 449, 453, 464,
Hegler 53, 228 558 497, 498, 515, 538, 553
Hempel 370, 374 Impallomeni 47, 332 Jannitti di Guyanga 49 L
Herzberg 188, 196, 197, 465 Impulso Jescheck 34, 54, 55, 58, 63, 79, 99, 101, Lackner 336, 366, 501
Heterocolocação em perigo consentida e referência 264 110, 111, 134, 135, 136, 137, 138, 143, Lamer-Kroh 169
414 Imputabilidade 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 159, Lauenstein 268
na omissão 531
584 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 585

Lefebvre 305, 321 Lyra Filho 281 Memorização declarativa 269 e culpa leve 423
legítima defesa 433 Memorização procedimental 270 e excesso de velocidade 346
e exercício da medicina 348
Legítima defesa
e abuso de direito 434
M Mendes 388 eficácia 525
MacCann 263 Menoridade 43 e imputação do resultado 360
exemplos práticos 435
Mach 375 Merkel 274 em Cirino dos Santos 94
no crime culposo 432
Mestieri 75, 86, 87, 88, 91, 100, 102, em Fragoso 90
Legítima defesa e crime culposo Machado, Raul 50 em Jescheck 148
em Roxin 205 108, 109, 165, 328
Mackie 370 em Maurach 77
Lei Ambiental 316 Mezger 30, 53, 55, 57, 58, 59, 60, 62, 65, em Roxin 201
Maia Gonçalves 236
Lei seca 471 145, 147, 162, 170, 284, 285, 372, 552 em Stratenwerth 80
Maihofer 79, 111, 135, 142, 159
Mill, John Stuart 378 em Zaffaroni 84
Leite 487 Malamud Goti 63, 104, 199, 218, 233,
Miranda, Pontes de 461 em Zaffaroni 85
Lenckner 346 479 e norma incriminadora 526
Le Ny 267 Miricka 173 e previsibilidade 87
Malinowski 187
Lesão corporal Moares, Benjamim 111 e risco autorizado 296
Mallet 413
e qualificação 521 Modo de produção capitalista 35 e risco habitual 418
Mantovani 54, 142, 182, 184, 555 essência 300
Lesão da norma de cuidado Moraes Filho, Benjamim 114
Manzini 49, 50, 92, 165, 360, 464 limitação da extensão 381
em H. Mayer 151 Moraes Filho, Evaristo 38
Marinucci 52, 176, 183, 185 na teoria causal 55
Lesão do dever de cuidado 333 Müller 379 no finalismo 68, 71
e normas de trânsito 343 Marques, José Frederico 55, 57, 59, 60,
107, 162, 361, 374, 433, 436, 478 Münch 188 Norma de garantia
precursores 59
Martins, Antonio 41, 465 Munhoz Netto 481 e conceito de ação 248
Leviandade
Muñoz Conde 35, 188, 192, 193, 194, Norma de trânsito
em Haft 158 Martins, Salgado 45, 107 e segurança 384
Lewin 267 213, 214, 215, 216, 219, 222, 260, 277,
Marx 35 Norma na omissão imprópria culposa
311, 363
Liberdade de vontade 107, 109, 115, Matéria da determinação 67 526
122, 131, 137, 169, 219 Matéria da proibição 67, 90, 91, 145 Norma na omissão própria culposa 524
e ânimo adverso ao direito 129 Mattes 343, 344 N norma penal 216, 278
e Cirino dos Santos 96
Maturana 188 Nagel 378
e culpa 98 Norma penal
e culpabilidade 453 Maurach 59, 66, 67, 68, 71, 75, 76, 77, Nagel, Ernst 365, 378 bilateralidade no crime culposo 290
e culpabilidade jurídica 171 78, 82, 87, 100, 102, 107, 134, 155, Negligência característica 230
e culpa inconsciente 119 171, 174, 175, 229, 264, 277, 300, 301, lado negativo 120 conteúdo 283
e Haft 126 307, 333, 335, 336, 343, 344, 346, 352, lado positivo 120 dialetização 299
e moral 171 Negt 329 e bem jurídico 38, 43, 277
em Roxin 208 358, 394, 431, 433, 441, 449, 456, 468, e conceito de conduta 230, 283
489, 490, 507, 514, 519 Neumann 465
em Schmidhäser 122 e delitos de perigo abstrato 286
e Schmidhäser 117 Maxwell 365 Neves 43 e função ideológica 471
importância 219, 220 Mayer, Hellmuth 111, 140, 142, 150, Niese 70 e matéria da proibição 283
na culpa 121 Noma de cuidado e motivação 215
340
Lima 38 e norma mandamental 524 e norma regulamentar 347
crítica a 167
Norma e ordem jurídica 283
Liszt-Beling 53, 60, 64, 114, 304 Mayer, Max Ernst 53, 58, 64, 87, 129,
e delimitação do poder de punir 369 e perigo 290
Liszt-Schmidt 134 147, 162, 274, 300, 340, 428 e processo de comunicação 42
Löffler 47 norma de cuidado 332, 393, 424 e risco autorizado 290
Mead 188
Lopes 536 Norma de cuidado e valor 282
Medida do cuidado
como objeto de referência 292 interpretação 125
Lorenz 368 e causalidade 331
como objeto de referência 334 processo de formação 279
Luhmann 39 Medida do cuidado externo 340 e atividade de conduzir 291 Norma penal determinativa
Luisi 75, 88, 89, 262, 267, 269 Memorização e bem jurídico 173 em Mezger 145
Luna 58, 111, 136, 156 modalidades 269 e causalidade 376
586 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 587

Norma penal imperativa e finalidade 247 Previsibilidade 108 participação culposa em ação de outrem
em Jescheck 146 Pessoa humana conceito 390 353
Norma penal valorativa e conduta 244 critérios objetivos e subjetivos 392 Princípio da exclusão 363
em Mezger 145 e prática social 250 e explicação de um fenômeno 390 Princípio da intangibilidade do risco
e sociabilidade 245 e juízo de valor 63
Normas de trânsito 342 408
Pierangelli 441 em Baumann 60
natureza jurídica 343 Princípio da probabilidade 371
em Bettiol 181
Normas regulamentares Plog 473, 474 em H. Mayer 168 Princípio de autorresponsabilidade 351
em Roxin 202 Poder agir de outro modo 97, 107, 108, em Jakobs 209, 210 Princípio do desconhecimento do risco
Normativismo 208, 220, 222 em Maurach 77
para o bem jurídico 126
concepção de Bockelmann 115 Poder atuar de outro modo 171 em Mezger 62
concepção de Schmidhäuser 116 em Roxin 199, 201 Princípio do encadeamento 372
culpabilidade 115 Poder de punir em Schmidhäser 122 Princípio in dubio pro reo
tipo de injusto 115 delimitação 31, 41 e actio libera in causa 466
em Zaffaroni 85
delimitação 313 no crime culposo omissivo 527
Noronha 45, 47, 50, 59, 61, 234, 433, e norma de cuidado 87
e conceito de ação 230
456 e tipo subjetivo 332 Processo causal atípico
e estrutura da conduta 239
insuficiência 356, 357 exemplo do motorista 370
Nowakowski 172 legitimação 45
na culpabilidade 64
política criminal 507 Processo de comunicação
na culpa inconsciente 58
e conduta 251
O Política criminal
e causalidade 363
na teoria causal 54, 60
no finalismo 68, 74
e norma penal 252
Obediência hierárquica 490 e conteúdo de injusto 51 origem 389 Processo de imputação 37, 241
ordem vinculante 490 e decisionismo 219 delimitação 43
Previsibilidade do nexo causal 479 e conceito de ação 40
Objeto de referência 256 e dogmática penal 41 Previsibilidade e evitabilidade
e fato 107 e conceito de conduta 42
Objetos de referência 256 em Fiandaca-Musco 178 e dever de impedir o resultado 529
exemplo do motorista 540 em Zaffaroni 84
e os clássicos 45 Previsibilidade estatística 390 e gravidade da culpa 424
Omnimodo facturus 358 e experiência da vida 393 e grupos de delitos 517
e relações capitalistas de produção 35
Oppenheim 374 e sociedade industrial 36 Previsibilidade estrutural 391 em Bacigalupo 195
Ortolan 233 e teorias da ação 40 em Jakobs 190
Previsibilidade fenomenológica 391
fins de 133 e norma mandamental 524
Otto 79, 340, 449 Previsibilidade objetivo e norma penal 40
Política criminal funcional 216 e medida do cuidado 341 e risco autorizado 40
P Polkinghorne 33, 324
Pomares Cintas 431
Previsibilidade pessoal
e culpabilidade 478
e risco permitido 418
e sentido da atividade 40
Padovani 183, 185, 422, 464 Previsibilidade subjetiva 148, 151, 228, e tipo subjetivo 332
Popper 262
Parâmetros de referência 260 229 nos delitos omissivos culposos 527
Posição de garantidor 528 nos delitos qualificados pelo resultado
Parâmetros, ou objetos de referência e bem jurídico em Herzberg 197 em Fiandaca-Musco 179
531
256 Posição sistemática em Wessels 150
Previsibilidade taxonômica 390 Processo de imputação subjetiva
Parsons 188 na teoria causal 55 em Haft 157
Pawlowski 253, 279 Pós-pendência 558 Previsibilidade temporal 392
e homem prudente 393
Processo negativo de comunicação 43
Perigo por ação de outrem 351 Poulantzas 280
Princípio causal e leis causais Processo produtivo 35
Perigo produzido por forças naturais Prado, Luiz Regis 75, 93, 94, 102, 107, e experiência geral da vida 329
em Hume 373
350 162, 170, 171, 506, 536 Processos causais anormais ou atípicos
Perigosidade Princípio da autorresponsabilidade 409
Prática social 369
em Fiandaca-Musco 178 conceito 250 Princípio da causa eficiente 50
Prognose posterior objetiva 77, 166,
e norma de cuidado 338 Preisendanz 135 Princípio da confiança 348
e probabilidade de dano 48 e conduta contrária ao dever 352 371, 390
Preterintencionalidade e dever especial de controle 352 Proibição do excesso de velocidade 383
Pessina 47, 332 e responsabilidade objetiva 156
em Fiandaca-Musco 179 Proibição e comando
Pessoa 388 Preuss 284 limitações 351 relação 323
588 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 589

Proibição ou determinação particularidades 516 em Roxin 419 152, 277, 313, 343, 345, 389, 464, 465
delimitação pela conduta 241 Relação tipo-antijuridicidade 284 em Wessels 150 Schmidt/Brüggemeier 535
refutação 240 em Jescheck 145, 147, 162 e norma de cuidado 420
e norma regulamentar 419
Schmidt, Eberhard 111, 134, 135, 142
Proibições e comandos 285 importância 314
Schönke-Schröder 538, 546
nos crimes culposos 147 evolução doutrinária 418
Projeto Alcântara Machado 51 importância 217 Schönke-Schröder-Cramer 79
Projeto Alternativo 450 Renzikowski 503
modelos de conduta 421 Schönke-Schröder-Cramer-Sternberg-
Projeto Eduardo Correia 236 Reprovabilidade
Rissing-van Saan 538 -Lieben 427
e fins de proteção da norma 229
Projeto Sá Pereira 236 em Fragoso 90 Ritler 450 Schönke-Schröder-Lenckner 111, 409,
Psicologismo 53, 55 em Jakobs 222 Rocco 48, 49, 123, 279 464
Pufendorf 169, 170 em Maurach 77 Rodríguez Devesa 111, 114, 142 Schroeder, FC 389
Puppe 51, 352, 370, 383, 384, 516, 517, no finalismo 71, 74
Romeo Casabona 426 Schubart, 514
553 Responsabilidade e culpabilidade Roth 253, 269
em Roxin 207 Schulz 365
Roxin 30, 37, 95, 96, 99, 100, 116, 119, Schünemann 528
Responsabilidade objetiva 45
Q Responsabilidade pelo fato 51, 77, 107,
124, 126, 164, 166, 188, 189, 190, 192, Searle 302
Quasi delictum 35 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205, Seiler 335
229
Queiroz Filho 57, 65, 162, 478 206, 207, 208, 215, 216, 217, 218, 219, Sentido da atividade
Resta, Eligio 187
220, 221, 222, 229, 267, 289, 290, 295, e prática social 251
Resultado de dano e de perigo 359
312, 353, 369, 370, 380, 388, 397, 400, Serrano Neves 38
R Righi, Esteban 538
402, 404, 410, 411, 419, 422, 434, 445, Setor da criação do risco 400
Racionalidade Risco autorizado 295 456, 460, 464, 482, 493, 494, 495, 496,
e bem jurídico 42 Setor da realização do risco 406
em Habermas 245 497, 503, 505, 506, 508, 540, 553
e realidade empírica 246 e classificação dos delitos 316 Silva Sanchez 404
sentido 246 e conduta 259 Rubinstein 248, 257 Sistema simbólico de orientação 188
e culpa 265 Rümelin 390 Sociabilidade
Radbruch 54, 56, 89, 111, 142, 196
e dever 294 Russel 267
Reale Júnior, Miguel 162, 170, 284, 506 e ação 250
elementos 242
Reale, Miguel 244, 257, 278, 368 em Cirino dos Santos 94 Ryle 263 Soler 57
Realidade empírica em Fiandaca-Musco 178 Soyer 55, 233
e linguagem 246 em Jakobs 209
em Muñoz Conde 214
S Squire 269
Realização do risco 406 Samson 79, 449 Stoppato 49, 50, 51
em Roxin 202
Regresso infinito 365 e norma de cuidado 296 Sancinetti 81 Stratenwerth 67, 75, 78, 79, 80, 91, 92,
e risco habitual 422 e norma determinativa 288 102, 103, 104, 106, 165, 171, 203, 204,
Santos, Juarez Cirino dos 67, 75, 94, 95,
Regulamentos laborais 387 e norma penal 290 228, 275, 277, 313, 333, 340, 346, 348,
96, 103, 109, 222, 233, 247, 312, 324,
Regulamentos médicos 385 e tipo culposo 311 350, 351, 352, 355, 356, 358, 389, 429,
extensão 337 325, 333, 339, 433, 436, 441, 501, 510,
Reincidência 133 531, 536, 538, 555, 560 431, 444, 449, 466, 479, 488, 498, 503,
Relação de antefato 557 Risco desautorizado 524, 528, 529, 532
ausência 407 Sauer 47, 300
Relação de causalidade Stree/Sternberg-Lieben 538, 546
Risco habitual Schaffstein 165, 172, 431
como forma lógica de deduções 374 Struensee 75, 80, 99, 100, 205, 333
como liame de acontecimentos 374 características 421 Scheffler 450
Risco permitido 91, 94, 331 Subsidiariedade
como relação funcional 375 Scheibe 327, 367, 375, 405
características 418 e unidade jurídica de ação 555
e demonstração empírica 365 Schewe 99, 267
e desequilíbrio do sistema 405 como critério limitador 418 Sujeito incapaz
e cuidado 337 Schild 464 em Roxin 204
e necessidade 368
nas ciências naturais 373 e execução cautelosa 337 Schlüchter 464 Suppes 371
no crime culposo 362 em Jakobs 209 Schmidhäuser 48, 111, 112, 113, 114,
em Jescheck 148 115, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 125,
Relação dolo e culpa
grupos de delitos 516 em Roxin 199, 201
127, 128, 129, 130, 131, 132, 142, 149,
T
590 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO INDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO 591

Tavares 53, 64, 65, 229 concepção de Bacigalupo 194 Tipo de injusto 310
Teoria causal concepção de Behrendt 198 como indício de antijuridicidade 428 tipo subjetivo 69
autores modernos 59 concepção de Herzberg 196 crítica no finalismo 102
concepção de Jakobs 189
Tipo subjetivo 67, 69, 76, 93
crítica 61, 226 e capacidade individual 204
em Bockelmann 119
e finalismo 66 concepção de Roxin 188 e elementos da culpabilidade 227
em Haft 157
em H. Mayer 168 crítica 216 e excesso do risco autorizado 227
em Jakobs 208, 210
Teoria limitada da culpabilidade 487 e liberdade de opção 266
Teoria causal-naturalista 40 em Mestieri 87
Teoria negativa de ação em Bockelmann 115, 118
características 53 em Muñoz Conde 214
em Herzberg 197 em Bockelmann 113
Teoria da causalidade 49 em Roxin 205
em Cirino dos Santos 94
Teoria normativista em Zaffaroni 85
Teoria da equivalência das condições em Fragoso 89
crítica 123 e previsibilidade 393
362, 363 em Heitor Costa Júnior 91
teorias funcionais 187 no crime culposo 332
Teoria da imputação objetiva em Jescheck 144
Teorias funcionais 40, 187 em Maurach 76 Tipo subjetivo de justificação
e causalidade típica 369 em Cirino dos Santos 95
Teoria social em Mestieri 87
Teoria da infração às normas de polícia em Regis Prado 93 Tipo subjetivo funcional
conceito de ação 134
e disciplina 49 em Roxin 199 crítica 218
Teoria da perigosidade da conduta 48 Teoria social da ação 40 em Stratenwerth 79
características 110 Toledo 277
Teoria da prevenibilidade 47 em Wessels 149 Tölle 474
concepção de Haft 139 em Zaffaroni 85
Teoria da previsibilidade 46 concepção de H. Mayer 140 e norma de cuidado 225 Tomás de Aquino 372
Teoria da renúncia do interesse 442 concepção de Jescheck 143 e norma de cuidado 331 Tórtima 309
Teoria do agir comunicativo 40 concepção de Wessels 138, 149 e processos causais anormais 341
conseqûências 161
Tosti 47
e consenso 258 e resultado 358 Tribunal do Reich 53, 397, 407, 497
crítica 158 e risco permitido 331
Teoria do aumento do risco 397 fundamentos da culpa 142 e tipo de culpa 138
Teoria do consentimento 173
Teoria do defeito de apreciação do bem
metodologia 134
Teoria subjetiva extrema 496
importância 226 U
na teoria causal 54
jurídico 48 Teoria subjetiva limitada 496 no finalismo 67, 71, 73, 104 Ulsenheimer 394
Teoria do defeito de atenção 47 Terradillos Basoco 387 normativo e empírico 368 Unidade de ação
nos crimes culposos e dolosos 298 em Roxin 540
Teoria do dolo 496 Thomasius 169, 170 exemplo do motorista 538
relação de causalidade 362
Teoria do domínio do fato 497 Tipicidade nos crimes culposos 538
Tipo de injusto culposo
Teoria do erro de fato 49 aferição concreta 323 Unidade de ação em identidade parcial
como tipo aberto 311
Teoria do injusto penal 41, 64, 65, 187, e conceito de conduta 230
em Muñoz Conde 215 543
e conduta humana 258
300, 314, 442 e homem prudente 232
em Roxin 200, 201 Unidade de delitos 533
Teoria do interesse 496 estrutura 311
tendência dominante 227 Unidade e pluralidade de ações 534
Teoria do negócio jurídico 442 Tipo doloso
Tipicidade conglobante 85, 105 Unidade jurídica de ação 542
fim do agir 320
Teoria do risco Tipicidade culposa Unidade naturalística de ação 535
característica 399 tipo legal 236
pressupostos 322 Unidade normativa de ação 537
Teoria dos fins da norma 146 Tipo legal
Tipicidade e antijuridicidade e dolo 265
e ação comunicativa 535
em Jescheck 146 análise seqüencial 313 Unidade típica de ação 542
Teoria dos papéis Tipo omissivo
tipo aberto 311 cláusula da correspondência 530
em Jakobs 190
Teoria do vício da inteligência 47
Tipo aberto 89 e capacidade de agir 527 V
Tipo culposo Tipo omissivo culposo
teoria finalista 267 como tipo fechado 313 Valor de troca 35
elementos 527
Teoria finalista 40, 269 e conduta 319 processo de imputação 527 Valor de uso 36
características 65 e proibição 320 Tipos abertos 312 Vannini 165
crítica 97 Tipo de culpa Velocidade excessiva 78, 109
Tipos culposos derivados e autônomos
Teoria funcional em Jescheck 138 e imputação 40
592 TEORIA DO CRIME CULPOSO - 5ª EDIÇÃO

em Padovani 183 Wessels-Beulke 32, 34, 63, 110, 111,


Vergez 268 134, 135, 139, 149, 150, 160, 166, 170,
Versari in re illicita 50, 154, 156, 172, 171, 277, 334, 335, 340, 348, 349, 358,
514, 515 359, 362, 395, 396, 410, 434, 435, 449,
em Arthur Kaufmann 156 463, 475, 480, 484, 490, 497, 498, 526,
Vidal 536 534, 535, 555, 556
Villavicencio 328 Wieseler 393
Vives Antón 188, 260 Wittgenstein 237
Volk 363 Wolf, Erik 343
von Buri 496 Wolff, Ernst Amadeus. 135
von Ferneck 47 Wolter 393
von Liszt 54, 55, 56, 57, 58, 60, 63, 153, Wundt 263
182, 276, 450 Württenberg 135
von Restorff 268
Vontade
características 261
Z
e ato falho 268 Zaffaroni 75, 83, 84, 85, 86, 99, 101,
e atos automatizados 267 102, 103, 105, 108, 109, 165, 186, 311,
e comunicação 265 450, 465, 501
e voluntariedade 265
exame do conteúdo 264
Zielinski 75, 81, 82, 92, 101, 165, 360,
431
Vontade de realização 72
Zima 264
Vulnerabilidade 86
esforço 86 Zonas do lícito e do ilícito
delimitação 290
e bem jurídico 277
W e bem jurídico 361
e conceito de conduta 241
Warda 555
e unidade jurídica de ação 544
Weber 496 importância 31, 39
Weinberger 253
Welzel 30, 35, 63, 65, 66, 67, 68, 69, 70,
71, 72, 74, 75, 76, 77, 79, 81, 82, 83,
86, 87, 88, 97, 100, 101, 102, 105, 106,
108, 109, 116, 130, 137, 142, 145, 146,
155, 160, 165, 170, 182, 186, 213, 228,
250, 259, 270, 285, 299, 324, 335, 337,
346, 347, 351, 360, 362, 394, 395, 419,
431, 441, 449, 488, 505, 507, 510, 524
Wessels 32, 34, 63, 98, 99, 110, 111,
134, 135, 136, 138, 139, 149, 150, 159,
160, 161, 163, 164, 165, 166, 170, 171,
270, 277, 334, 335, 340, 348, 349, 358,
359, 362, 395, 396, 410, 434, 435, 449,
452, 463, 475, 480, 484, 490, 497, 498,
526, 534, 535, 555, 556

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