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PARA UM PROCESSO

PENAL DEMOCRÁTICO:
Crítica à Metástase do
Sistema de Controle Social
ALEXANDRE MORAIS DA ROSA
Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de
Direito de Coimbra, Portugal e UNISINOS, Brasil.
Doutor em Direito do Estado pela UFPR.
Mestre em Direito pela UFSC.
Professor do Curso de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI.
Juiz de Direito (TJSC).
E-mail: alexandremoraisdarosa@gmail.com

SYLVIO LOURENÇO DA SILVEIRA FILHO


Especialista em Direito Penal e Criminologia (ICPC/UFPR).
Professor de Direito Processual Penal
da UniBrasil (Curitiba/PR).
Advogado.
E-mail: sylviofilho.adv@gmail.com

PARA UM PROCESSO
PENAL DEMOCRÁTICO:
Crítica à Metástase do
Sistema de Controle Social

12X20.5 • 125 págs

EDITORA LUMEN JURIS


Rio de Janeiro
2007
Prefácio

É com especial satisfação que tenho a


honra de apresentar essa obra, escrita a quatro
mãos, por dois grandes amigos, que conheci
em diferentes momentos e que, por indetermi-
nações de um futuro aberto, acabaram se
encontrando.
Antes de entrar na obra dos autores, gosta-
ria de falar-lhes um pouco sobre autores da obra.
Bauman escreveu com muita propriedade
sobre o “arrivista”, uma espécie de nômade,
cuja fluidez gera um mal-estar, pois evidencia
a inércia dos que lá estão. Esse é, sem dúvida,
o desafio a ser enfrentando pelo arrivista, gen-
te como Sylvio e Alexandre, seres em constan-
te movimento, que encontram seu locus no
entre-lugar.
É incrível sua capacidade de, em não
sendo de lugar algum, sentir-se ambientando
em todos os lugares. Como bom arrivista, é
alguém que não sendo do lugar, está inteira-
mente no lugar. Mas, ao contrário do constata-
do por Bauman, Sylvio e Alexandre conseguem
superar o mal-estar inerente ao arrivista, fazen-
do-se queridos por onde passam.
E não foi diferente do que ocorreu em Rio
Grande com Sylvio. Eu voltava do doutorado em
Madri para continuar lecionando na Fundação
Universidade Federal do Rio Grande e, lá che-
gando, encontro esse arrivista chegado do Rio
de Janeiro, cujo convívio com Nilo Batista e jurista. Para além disso, é uma pessoa fantásti-
Afranio Silva Jardim lhe renderam uma baga- ca, que demonstra seu raro valor ao estender a
gem cultural e científica peculiar. Imaginem mão para alguém que dá seus primeiros passos.
minha surpresa em encontrar um carioca boa- Sylvio teve muita sorte nessa relação que
praça, como esses “antecedentes”, lá na pe- estruturou com Alexandre, mas acima de tudo,
quena FURG, no interior do Rio Grande do Sul! fez por merecer essa chance.
Sem dúvida uma pessoa única, cujo caris- Interessante que nesse vinculo, não se
ma decorre da sua postura humilde, tranqüila, estabeleceu o recorrente cinismo interesseiro
de quem não é dado a verborragias inúteis, que sói permear as relações geradas no am-
pois conhece o valor da palavra. Foi meu aluno, biente acadêmico, especialmente na pós-gra-
estagiário, bolsista, orientando, mas, acima de duação, onde os phdeuses flutuam (sim, pois a
tudo, um grande amigo. Foi e continua sendo, inflação do ego lhes dá esse incrível poder de
sem prejuízo da distância. levitar), rodeados de servis discípulos. Feliz-
Mas, arrivistas não ficam inertes. Depois
mente não precisei passar por essa experiência
de 10 anos na FURG, pedi minha exoneração e
no meu doutoramento. Eis uma das muitas
fui para Porto Alegre. Pouco depois, Sylvio foi
vantagens de estudar numa instituição com
para Curitiba, onde acabou se aproximando de
mais de 500 anos de tradição, orientado por um
outros grandes amigos, como Luiz Antonio
catedrático de verdade, avesso a essas medio-
Câmara, Juarez Cirino dos Santos, Jacinto
cridades.
Coutinho e claro, Alexandre Rosa.
E fico mais feliz de ver que não foi esse
Paralelo a isso tudo, Alexandre Morais da
Rosa era um nome recorrente nos eventos que tipo de relação que aqui se estabeleceu. Daí
participava, até que tive o prazer de conhecê-lo porque, fortalecidos saem os dois e maior a
pessoalmente. O contato foi rápido, mas com minha admiração e carinho.
suficiente empatia para fundar ali as bases de Já falei um pouco dos autores. Agora veja-
uma grande amizade. Mas foi lendo que perce- mos esse pequeno-grande-livro.
bi “com quem estava falando”. Simplesmente O tamanho reduzido é um fato relevante a
brilhante. É assim que considero Alexandre e ser considerado. Quando conferi o número de
suas duas obras primas, “Introdução Crítica ao páginas, imediatamente me veio a cabeça a
Ato Infracional” e “Decisão Penal”. Com uma idéia de democratizar o conhecimento, de
base invejável de conhecimento jurídico, mas, quem escreve para ser acessível a muitos, no
principalmente, com rara capacidade de articu- tempo e no custo. Isso é fundamental num país
lá-lo com o muito que sabe de psicanálise e filo- em que muitos optam pela escrita hermética e
sofia, Alexandre desponta como um grande as longas (e enfadonhas) exposições.

vii
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

Noutra dimensão, pode ser visto como A leitura é fluída, aguçando a capacidade
uma conseqüência da narcose dromológica na de recusa-requestionamento do leitor, com uma
qual estamos imersos, impondo seu ritmo. Para rara habilidade de encantar e desvelar as falá-
ser lido, deve-se tomar pouco tempo de quem cias do senso comum teórico.
já não dispõe de tempo. Ou ainda, só a acelera- Não farei antecipações do mérito, de modo
ção salva. Nenhum inconveniente nisso, desde que, a partir daqui, só nos resta gozar o que
que, como fazem os autores, não se sacrifique a temos nas mãos...
seriedade da análise. Eis o valor da obra deles. Boa leitura!!
Breve, mas jamais superficial.
Aury Lopes Jr.
Gosto deste formato, pois me remete as Doutor em Direito Processual Penal pela
prazerosas leituras que fiz, inúmeras vezes, de Universidad Complutense de Madrid.
Professor do Programa de Pós-Graduação
pequenas-grandes obras. em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade
Carnelutti escreveu preciosidades em pou- Católica do Rio Grande do Sul PUCRS.
Pesquisador do CNPq.
cas páginas (sem desprezar os tratados, é Advogado.
claro), basta ler “Las Misérias del Proceso www.aurylopes.com.br
Penal” ou “Como se hace el Proceso”. Chio-
venda, em 1903, marca época com pouco mais
de 40 páginas ao publicar “La Acción en el sis-
tema de los derechos”, fruto de “la prolusión de
Bolonha”. Da genialidade de Goldschmidt nas-
ceu “Problemas Juridicos y Politicos del Proceso
Penal”, fruto das palestras que ministrou na
Universidad Complutense de Madrid em 1935.
E, por aí vão as boas lembranças as quais me
remetem os “libros de bolsillo”.
E os autores começam bem quando par-
tem da noção de processo penal como limite-
garantia, ou seja, limite em relação ao poder
punitivo, talvez nossa última esperança de
recusa à banalização operada em relação ao
(ab)uso do direito penal; e, por outro lado, uma
garantia do sujeito, um lugar de reconstrução
da democracia.

viii ix
Sumário

xi
Introdução

Este texto decorre de um esforço paralelo


e que se abriu para um diálogo. O resultado da
pós-graduação em Direito Penal e Criminologia
realizado por Sylvio, no âmbito do ICPC/UFPR
foi debatido com as pesquisas recentes de
Alexandre. Desde o concurso de idéias surgiu o
interesse em (re)colocar o processo penal como
limite, barreira, ao discurso totalitário em voga
no campo do Direito e do Processo Penal. Para
tanto, o trabalho foi dividido entre os autores.
Nos três primeiros capítulos apresenta-se um
panorama atual dos discursos e se promove
aproximação com a Criminologia Crítica, des-
velando-se, ademais, o fundamento economi-
cista das propostas. Finaliza-se com a (re)colo-
cação do Processo Penal como instrumento de
garantia do sujeito em face dos arroubos totali-
tários do momento, neste verdadeiro momento
de metástase-inquisitória do processo penal.
Os autores esperam que o texto possa
contribuir para o debate das propostas legisla-
tivas em tramitação no Congresso Nacional,
nos meios de comunicação, nas academias de
direito e, fundamentalmente, para que os ato-
res jurídicos anônimos, não componentes do
senso comum teórico (Warat), possam refletir
sobre o papel que acabam exercendo (in)cons-
cientemente com suas práticas diárias. Enfim,

1
Alexandre Morais da Rosa e
Sylvio Lourenço da Silveira Filho

acreditam que o processo pode ser um lugar de Capítulo 1


reconstrução da democracia.
O pensamento crítico deve agradecer a
Meios de Comunicação:
estes dois homens: João Luiz da Silva Almeida Violência Simbólica e a
e João de Almeida, Editores da Lumen Juris. É Construção dos Esteriótipos
o canal por onde se respira (ainda) um pouco
de oxigênio (jurídico) democrático.

Nos sistemas penais do capitalismo tardio


ocorre uma especial vinculação entre os meios
de comunicação e o sistema penal. Esta vincu-
lação faz com que seja transformada (ideologi-
camente) a mera função comunicativa da mí-
dia, a tornando verdadeira agência do sistema
penal. A mídia procede a mobilização dos apa-
ratos de punição,1 seja através de mensagens
explícitas, como nos mais variados programas
policias atualmente existentes, ou mesmo im-
plícitas, em diversos níveis de expressões.2 Seu
papel de protagonista da “seleção” é inescon-
dível, com interesses nem sempre manifestos.
O tema alcança ainda mais valor no atual
contexto da era da informação instantânea.
Argumenta Aury Lopes Jr. que estamos viven-
do o mundo da presença virtual, da telepresen-
ça, que não se resume apenas à telecomunica-

1 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tar-


dio, p. 01.
2 Vera Regina Pereira de Andrade alerta para os mecanis-
mos de controle social informal, como os desenhos ani-
mados e os brinquedos bélicos que reproduzem a lógica
do “mocinho x bandido” (ANDRADE, Vera Regina Pereira
de. Sistema penal máximo x cidadania mínima, p. 29).

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

ção, compreendendo, ademais, a “teleação po que ultrapassados, foram substituindo-se


(trabalho e compra a distância) e até em teles- frente a uma falta de referência. Extrapolou-se
senssação (sentir e tocar a distância)”.3 Obser- uma cultura, uma idoneidade. Nesse vácuo vir-
va Maria Lúcia Karam que “nas sociedades tual, subtraiu-se a essência, em troca de uma
atuais, a apreensão da realidade se faz, cada satisfação efêmera, que nem ao menos nos mos-
vez mais, através dos meios massivos: as expe- tra o verdadeiro; acostumados que estamos, cul-
riências diretas da realidade cedem espaço e tuamos o falso, e, por que não dizer, o nosso pró-
passam a ser experiências do espetáculo da rea- prio cadafalso”.6
lidade, que é passado pelos meios massivos de Doravante, os meios de comunicação indi-
informação, da mesma forma que a própria reta da atual mídia terciária têm o poder de
comunicação entre as pessoas se refere muito construir a realidade (entendida como limites
mais às experiências apreendidas através do simbólicos) através da representação de um
espetáculo do que às experiências vividas”.4 espectro simbólico e efêmero de um duplo do
Superados os contextos da mídia primária mundo, na medida em que a (in)existência da
(corpo) e da mídia secundária (impressos), o “realidade” está relacionada ao grau em que é
triunfo da mídia terciária denota um verdadeiro comunicado, veiculado e transmitido, com velo-
processo paradoxal que, se por um lado elimi- cidade (Virilio7). A isso Eugênio Raúl Zaffaroni
na os limites espaciais da comunicação, permi- logrou chamar de fábrica da realidade.8 Não se
tindo uma interação instantânea entre diversas deve olvidar que os meios de comunicação de
culturas distintas, por outro, reduz a complexi- massa fazem parte da socialização dos indiví-
dade humana, ao forçar a abdicação da comu- duos em um processo contínuo que vai desde a
nicação primária, ou seja, da experiência direta infância até a morte na (con)formação dos valo-
com as pessoas.5 res sociais necessários à construção de “laço
Nesse contexto, corre-se o risco do pro-
gresso tecnológico acarretar o esvaziamento 6 ESTIVALLET, Jaqueline; FONTOURA MACHADO, Maris-
da condição humana, a razão desintegrar o tela da. Algumas indagações sobre a violência. In:
pensar, sistematizando-o em meras técnicas: GAUER, Ruth M. Chittó; GAUER, Gabriel J. Chittó. A
fenomenologia da violência, p. 170.
“os contatos entre pessoas, na versão da máqui- 7 VIRILIO, Paul. El cibermundo, la política de lo peor. Trad.
na, apresenta-nos assim: destituídos de ser. Mónica Poole. Madrid: Catedra, 1999; El procedimiento
Certos valores, antes cultivados, ao mesmo tem- silencio. Trad. Jorge Fondebrides. Buenos Aires: Paidós,
2005; Ciudad pánico: el afuera comienza aquí. Trad. Iair
Kon. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2006; La bomba
informática. Trad. Mónica Poole. Madrid: Catedra, 1999;
3 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal, p. 26. Velocidad y Política. Trad. Víctor Goldstein. Buenos Aires:
4 KARAM, Maria Lúcia. De Crimes, penas e fantasias, p. 199. La Marca, 2006.
5 CONTRERA, Malena Segura. Mídia e pânico, pp. 53 e 69. 8 ZAFFARONI, E. Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 128.

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

social”. Assim sendo, explícita ou implicita- No âmbito do sistema penal, os meios de


mente “as mensagens que são transmitidas comunicação exercem um importante papel
passam a integrar a maneira de ser da popula- ideológico, pois sem eles não seria possível
ção que está submetida a sua influência”.9 induzir os medos no sentido desejado, nem
Nossa época vivencia a transmissão de reproduzir os fatos conflitivos interessantes de
uma imagem codificada do mundo, capaz de serem reproduzidos em cada conjuntura, ou
alterar o significado e conteúdo da realidade. seja, no momento em que são favoráveis ao
Em várias ocasiões aquilo que é transmitido poder das agências do sistema penal.13
não reflete a realidade, porém, efetivamente, Atualmente, experimenta-se a era do
realiza uma permanente intervenção sobre a expansionismo penal(izante). Há verdadeira
mesma, ou seja, a realidade não mais é reco- sobreposição do discurso alarmista (de terror e
nhecida senão quando mediatizada, talvez do risco – Beck) acerca da ameaça da crimina-
como o “duplo perfeito” de Orwell (1984).10 lidade sobre a ótica substancialmente demo-
Configura-se uma situação, na qual a “mistura crática na solução dos inevitáveis conflitos
do real e do imaginário traz um processo de sociais. O combate aos crimes e aos criminosos
intervenção que transmite à realidade cenas do parece – ilusoriamente – encerrar o grande de-
próprio imaginário, além de fazer com que o safio da sociedade contemporânea.
imaginário se influencie pelo real”.11 Cada vez mais se crê (ou se faz crer) na
Esse fenômeno pode ser identificado como solução penal: o sistema penal, intensamente
um verdadeiro processo da sucumbência do presente no cotidiano das pessoas, acaba por
real frente ao virtual, vislumbrando-se uma se constituir como objeto de discussão fora dos
possível vitória do duplo equivalente ao mínimos parâmetros científicos (uma espécie
mundo, o virtual, pois este “não é mais real em de every day theories14), formando um senso
potência, como foi o caso em outros tempos. comum penal forjado pelos meios de comunica-
Doravante sem referência, orbital e exorbital, ção de massa, através do grande espaço dis-
não está nunca mais destinado a recortar o pensado na divulgação de notícias relaciona-
mundo real”,12 mas se prestes a substituí-lo. das à criminalidade e ao seu respectivo comba-
te – que, de preferência, deve ser o mais efi-
ciente possível, bem ao gosto neoliberal.
9 SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Mídia e crime. In: CORRÊA
JR, Alceu. Teoria da pena, p. 378.
10 ORWELL, George. 1984. Trad. Wilson Velloso. São Paulo:
Nacional, 1983. 13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdi-
11 SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Mídia e crime. In: CORRÊA das, p. 128.
JR, Alceu. Teoria da pena, p. 380. 14 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do
12 BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível, p. 20. direito penal, p. 42.

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Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

Percebe-se, assim, a vertente ideológica do dis- insegurança e, conseqüentemente, proceder


curso. cada vez mais à legitimação do poder punitivo.
O horror de cada esquina das grandes Reiteradamente (nos) é insinuada a idéia se-
metrópoles e dos mais variados cantões invade gundo a qual a violência e a insegurança se
os lares, contribuindo decisivamente para a esgotam na criminalidade (convencional), idéia
difusão do medo e da insegurança,15 produzin- essa que estabelece o consenso acerca da
do espasmos de irracionalidade, criando mons- necessidade de endurecimento do sistema
tros e obstaculizando qualquer proposta de penal e, assim, abrindo espaço para mitigação
solução pacífica, racional e democrática dos de garantias e direitos fundamentais.
conflitos. Fomenta-se uma verdade única: É facilmente perceptível que, nos mais
repressão a qualquer custo (inclusive a despei- variados espaços de discussão, é lugar-comum
to das regras do jogo democrático). a idéia de que uma almejada “paz social” só
Evidentemente, não há como – e nem se adquiriria possibilidade através da radizaliza-
pretende – negar o desassossego provocado ção penal(izante).
pela violência no cotidiano social. Entretanto, Entretanto, os menos avisados não perce-
não se pode olvidar que se trata de um fenôme- bem que os enunciados criminológicos que
no imanente à vida em sociedade, presente em emergem dos meios de comunicação de massa
toda e qualquer civilização ou agrupamento estabelecem, também, uma espécie de violên-
humano. Ensina Ruth M. Chittó Gauer que, cia: a chamada violência simbólica. Como se
vista sob esse prisma, “a violência é um ele- depreende das lições de Pierre Bourdieu “a vio-
mento estrutural, intrínseco ao fato social e não lência simbólica é uma violência que se exerce
o resto anacrônico de uma ordem bárbara em com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e
vias de extinção”.16 também, com freqüência, dos que a exercem, na
A problemática apontada situa-se, contu- medida em que uns e outros são inconscientes
do, em outro plano: a exploração dos casos de exercê-la ou de sofrê-la”.17 Harry Pross a
extremos como forma de difundir o medo, a define “como el poder de hacer que la validez de
significados mediante signos sea tan efectiva
que otra gente se indentifique con ellos”.18
15 Há tempos Francesco Carnelutti já alertava que “os jor-
nais ocupam boa parte das suas páginas para as crônicas
A violência simbólica, além de criar o con-
dos delitos e dos processos. Quem as lê, aliás, tem a senso em torno do sistema penal (que, por esse
impressão de que tenha muito mais delitos do que não viés, é sempre carente de severidade, inócuo,
boas ações neste mundo” (CARNELLUTI, Francesco. As
misérias do processo penal, p.12).
16 GAUER, Ruth M.Chittó. Alguns aspectos da fenomenolo-
gia da violência. In: GAUER, Ruth M. Chittó; GAUER, 17 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão, p. 22
Gabriel J. Chittó. A fenomenologia da violência, p. 13. 18 Apud CONTRERA, Malena Segura. Mídia e pânico, p. 100.

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estimulante de uma suposta impunidade), o (...). Quem tem a palavra constrói identidades
serve como verdadeiro instrumento, pois repre- pessoais ou sociais”.21
senta um substituto da violência física e da A partir dos estigmas criados22, está aber-
força bruta. Estas últimas são exercidas to o espaço para a orientação seletiva das
somente no caso de falhar o controle da primei- agências de criminalização. Fomenta-se um
ra, pois “sempre é mais econômico e eficaz colo- esquema de cunho deliberadamente bélico, de
car a instância de controle, a polícia, na mente incessante combate aos “indesejados”, aos
dos indivíduos do que manter e utilizar corpos “diferentes”, enfim, aos outsiders. Com extre-
de repressão física”.19 ma propriedade, Zygmunt Bauman observa
Por isso, torna-se imperativa uma inversão – que a produção social de estranhos ocupa uma
ou, pelo menos, um desvelamento – do senso função específica nas sociedades: “Se os estra-
comum para se trazer à tona a violência exerci- nhos são as pessoas que não se encaixam no
da pelo poder do sistema punitivo e sua insti- plano cognitivo, moral ou estético do mundo –
tuições, como leciona Vera Regina Pereira de num desses mapas, em dois ou em todos três; se
Andrade: “os códigos da violência têm que ser eles, portanto, por sua simples presença, dei-
urgente e vitalmente submetidos a outras lupas xam turvo o que deve ser transparente, confuso
e holofotes que não os da tecnologia midiática, o que deve ser uma receita para ação, e impe-
cujo flash não ultrapassa a cena da dor – san- dem a satisfação de ser totalmente satisfatória;
gue é lágrimas – para radiografar os braços que (...). Ao mesmo tempo que traça suas fronteiras
se armam muito aquém do humano”.20 e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e
É não há dúvidas em se afirmar que uma morais, ela não pode senão gerar pessoas que
das manifestações mais cruéis da violência encobrem limites julgados fundamentais para
simbólica exercida pela mídia é identificada no sua vida ordeira e significativa, sendo assim
processo de “etiquetamento”, de rotulação e acusadas de causar a experiência do mal-estar
na criação do estereótipo criminoso, pois como como a mais dolorosa e menos tolerável”.23
ensina Pedrinho Guareschi “os que detêm a Constata-se, assim, a simbolização de
comunicação chegam até a definir os outros, uma (anti)estética, na qual o sujeito (dito)
definir determinados grupos sociais como sendo
melhores ou piores, confiáveis ou não confiáveis
21 GUARESCHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação.
In: GUARESCHI, Pedrinho A Comunicação e controle
social, p. 15.
19 ROMANO, Vicente. “Apresentação”. In: CONTRERA, 22 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre pre-
Malena Segura. Mídia e pânico, p. 17. conceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
20 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi- 23 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade,
mo x cidadania mínima, p. 28. p. 27.

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“delinqüente” é exposto como o avesso dos queísta do bem e do mal: simbolizam-se os out-
padrões adequados à sociedade de consumo siders. Afirma Vicente Romano, que “a violência
(os não consumidores ou consumidores falhos): e a contraviolência representam na comunica-
expõem-se símbolos, linguagens, (des)valores ção estereotipada dos chamados “meios de
e rotinas dos grupos marginalizados de forma massa” a luta épica entre o bem e o mal, a luz e
que acabam pautando a orientação seletiva as trevas, a democracia e o totalitarismo, a civi-
das demais agências do sistema penal, que, lização e a anarquia, a ordem e o caos. A maior
por sua vez, confirmam o estereótipo criado,24 parte do conhecimento público acerca da violên-
de acordo com o conceito sociológico da profe- cia, dessa luta baseia-se nas imagens, definições
cia que se auto-realiza. e explicações proporcionadas pelos meios. A
O estigma difundido no “imaginário coleti- esse respeito convém lembrar que na tecnificada
vo”, via “violência simbólica”, passa a ser sufi- sociedade atual a imensa maioria de aventuras e
ciente para se presumir a periculosidade do eti- experiências não são diretas, mas sim mediadas
quetado, bem ao estilo lombrosiano, que carre- e indiretas”.26
ga consigo – numa espécie de pena perpétua – Com relação ao estereótipo criminoso, a
a contingência de ser diferente: são “eles”, os “- Criminologia Crítica desloca, em oposição à
outros”, intolerantemente, diferentes de “nós” Criminologia positivista, o objeto de estudo da
e dos “nossos”.25 Impõe-se a fronteira mani- ciência. Enquanto na Criminologia Positivista
(paradigma etiológico) pretende-se desvendar
as causas da criminalidade, encarada como da-
24 Esta (anti)estética é muito bem percebida por Vera do ontológico, pré-constituído – ou seja, seu
Malaguti Batista: “O esteriótipo do bandido vai-se consu- objeto é criminalidade –, a Criminologia Crítica
mando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de
(paradigma da reação social27), por seu turno,
favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis,
boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de
poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cená- partir da interioridade da consciência do outro, criando
rio de miséria e fome que o circunda. A mídia, a opinião evidências e adesões, que interiorizam e introjetam nos
pública destacam o seu cinismo, a sua afronta. São came- grupos destituídos a verdade e a evidência do mundo
lôs, flanelinhas, pivetes e estão por toda a parte, até em dominador, condenando e estigmatizando a prática e a
supostos arrastões na praia. Não merecem respeito ou tré- verdade do oprimido como prática anti-social”. (GUARES-
gua, são sinais vivos, os instrumentos do medo e da vulne- CHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação. In: GUA-
rabilidade, podem ser espancados, linchados, extermina- RESCHI, Pedrinho A Comunicação e controle social, p.
dos ou torturados. Quem ousar incluí-los na categoria 19). A propósito ver o excelente SOARES, Luiz Eduardo;
cidadã estará formando fileiras com o caos e a desordem, BILL, Mv; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco, especial-
e será também temido e execrado”. (MALAGUTI BATIS- mente p. 95 e seguintes.
TA, Vera. Difíceis ganhos fáceis, p. 28). 26 ROMANO, Vicente. “Apresentação”. In: CONTRERA,
25 Sustenta Pedrinho A. Guareschi que “a posse da comuni- Malena Segura. Mídia e pânico, p. 16.
cação e a informação tornam-se instrumento privilegiado 27 Segundo Vera Regina Pereira de Andrade, “por reação ou
de dominação, pois criam a possibilidade de dominar a controle social designa-se pois, em sentido lato, as formas

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mostra o crime como qualidade atribuída a dução da mesma”.29 A criminalização primária


comportamentos ou pessoas pelo sistema de se refere à decisão política de sancionar deter-
justiça criminal – seu objeto é, portanto, não a minada conduta ilícita com uma pena (elabora-
criminalidade, mas a criminalização: a crimina- ção de tipos penais pelo Poder Legislativo). A
lidade é um fato socialmente construído pela criminalização secundária, por seu turno, é a
distribuição de cargas negativas a fatos ou pes- ação punitiva sobre pessoas que infringem as
soas, através do processo de criminalização.28 normas penais, ou seja, o programa penal
Segundo Eugênio Raúl Zaffaroni, Nilo posto em prática.30
O modus operandi para levar a cabo os pro-
Batista, et. al., o sistema penal “é o conjunto
cessos de criminalização é norteado pela atua-
das agências que operam a criminalização (pri-
ção seletiva, “por meio de fatos burdos ou gros-
mária e secundária) ou que convergem na pro-
seiros (cuja detecção é mais fácil) e de pessoas
que causem menos problemas (por sua incapaci-
com que a sociedade responde, informal ou formalmente, dade de acesso positivo à comunicação de mas-
difusa ou institucionalmente, a comportamento e a pes-
soas que contempla como desviantes, problemáticas,
sas)”.31 Desse modo, a criminalidade é consti-
ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de outra e, tuída por “processos seletivos fundados em este-
nesta reação, demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) reótipos, preconceitos e outras idiossincrasias
o próprio desvio e a criminalidade como uma forma espe-
cífica dele. Daí a distinção entre o controle social infor-
pessoais, desencadeados por indicadores sociais
mal ou difuso e controle social formal ou institucionaliza- negativos de marginalização, desemprego,
do. O primeiro é controle exercido por instâncias que não pobreza, moradia em favelas etc”.32 Aquilo que
têm uma competência específica para agir e são exem-
plos típicos dele: a Família,a Escola, a Mídia, a Religião, a Criminologia positivista tratava – através do
a Moral, etc. O segundo é precisamente o controle insti- método etiológico – como causas da criminali-
tucionalizado no sistema penal (Constituição – Leis dade eram, na verdade, conseqüências da cri-
Penais, Processuais Penais e Penitenciárias – Polícia-
Ministério Público – Justiça – sistema penitenciário – minalização, pois, “uma conduta não é criminal
Ciências criminais e ideologia) e por ele exercido, com “em si” (qualidade negativa ou nocividade ine-
atribuição normativa específica. Daí a denominação de
rente) nem seu autor um criminoso por concretos
sistema de controle penal, espécie do gênero controle
social que, por isso mesmo, atua em interação com ele.
Em suma, a unidade funcional do controle é dada por um
princípio binário e maniqueísta de seleção; a função do 29 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; et. al. Direito penal
controle social, informal e formal é selecionar entre os brasileiro, p. 60.
bons e maus, os incluídos e os excluídos, quem fica den- 30 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; et. al. Direito penal
tro e quem fica fora do universo em questão” (ANDRA- brasileiro, p. 60.
DE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x 31 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; et. al. Direito penal
cidadania mínima, p. 42). brasileiro, p. 60.
28 SANTOS, Juarez Cirino.Criminologia crítica e a reforma 32 SANTOS, Juarez Cirino.Criminologia crítica e a reforma
da legislação penal, p. 01. da legislação penal, p. 01.

14 15
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

traços de sua personalidade ou influências de minal oficial oferece dados somente acerca do
seu ambiente. A criminalidade se revela, princi- total da criminalização, porém nunca dados
palmente, como um status atribuído a determi- reais do total da criminalidade.
nados indivíduos mediante um duplo processo: a A importância da Criminologia Crítica no
“definição” legal de crime, que atribui à conduta desvelamento do significado e da projeção de
o caráter criminal, e a “seleção” que etiqueta e imagens ou de símbolos pelos meios de comu-
estigmatiza um autor como criminoso entre nicação na psicologia popular é notável: pelo
todos aqueles que praticam tais condutas”.33 teorema de Thomas – através do qual situações
A criminalização, portanto, é formada pela definidas como reais produzem efeitos reais –
seleção de estereótipos, preconceitos e outras constatou-se que ações sobre a “imagem da cri-
idiossincrasias e, conseqüentemente, isso minalidade” para a criação de alarma social são
importa reconhecer que a diferença entre o necessárias para produzir o desencadeamento
comportamento desviante e o comportamento das campanhas repressivas e de alargamento
conforme a lei “depende menos de uma atitude do poder punitivo. De acordo com Juarez Cirino
interior intrinsecamente boa ou má, social ou dos Santos “o estudo de percepções e atitudes
anti social, valorada positiva ou negativamente projetadas na opinião pública permitiu à
pelos indivíduos do que a definição legal que, Criminologia Crítica revelar efeitos reais de ima-
em um dado momento distingue, em determina- gens da criminalidade difundidas pelos meios
da sociedade, o comportamento criminoso do de comunicação de massa, que disseminam
comportamento lícito”.34 representações ideológicas unitárias de luta con-
A quantidade de condutas tipificadas (o tra o crime – apresentado pela mídia como inimi-
programa legal da criminalização primária) é go comum da sociedade – e, desse modo, intro-
tão imensa que é inviável ser posta na prática duzem divisões nas camadas sociais subalter-
em sua totalidade ou mesmo em parcela consi-
derável. Daí, o funcionamento do aparelho
punitivo se dirigir a um número deveras delimi- conhecimento e às estatísticas das agências recebeu a
denominação da criminologia de “cifras ocultas” ou “-
tado de sujeitos, por meio da orientação seleti- cifras negras” do sistema penal. Observa Vera Regina
va da criminalização:35 qualquer estatística cri- Pereira de Andrade que “a conclusão de que a cifra negra
é considerável e de que criminalidade real é muito maior
que oficialmente registrada permitiu concluir que, desde o
33 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi- ponto de vista das definições legais, a criminalidade se
mo x cidadania mínima, p. 41. manifesta como o comportamento da maioria, antes que
34 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do de uma minoria perigosa da população e em todos os
direito penal, p. 86. estratos sociais, mas a criminalização é, com regularidade,
35 A inevitável discrepância entre o número de condutas cri- desigual ou seletivamente distribuída” (ANDRADE, Vera
minalizadas que diariamente são consumadas em deter- Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania
minada sociedade e aquela ínfima parcela que chega ao mínima, p. 50)

16 17
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

nas, infundindo na força de trabalho ativa atitu- concernentes nos direitos e garantias indivi-
des de repúdio contra a população marginaliza- duais e coletivas, doravante empecilhos na luta
da do mercado de trabalho, por causa de poten- da “sociedade de bem”. Tudo com propósitos
cialidades criminosas estruturais erroneamente bem definidos pela pauta política. Assim, a
interpretadas como defeitos pessoais”.36 política criminal, enquanto programa de con-
Entretanto, a mudança de paradigma ope- trole do crime e da criminalidade, no Brasil,
rada não perpassa o âmbito acadêmico para influenciada pelo modelo norte americano, con-
alcançar o espaço público, provocando a neces- figura-se como mera “política penal despoliti-
sária transformação cultural no senso comum zada”, pois, como afirma Juarez Cirino dos San-
acerca da criminalidade e do sistema penal,37
tos “exclui políticas públicas de emprego, salá-
pois o caminho único é traçado pelo discurso
rio, escolarização, moradia, saúde e outras
midiático da expansão penal.38
medidas complementares, como programas ofi-
Desse modo, pela exploração do medo e
da insegurança, adota-se o discurso da uma ciais capazes de alterar ou de reduzir as condi-
reforma radical da legislação penal e da políti- ções sociais adversas da população marginali-
ca criminal pelo viés do terror, ao mesmo tempo zada do mercado de trabalho e dos direitos de
em que se desprezam conquistas históricas cidadania, definíveis como determinações estru-
turais do crime e da criminalidade”.39 Dito de
outra forma: exclui-se imaginariamente o fator
36 SANTOS, Juarez Cirino.Criminologia crítica e a reforma político da esfera do controle social. O jurídico
da legislação penal, pp. 03 e 04.
37 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi- é transformado, assim, numa esfera técnica
mo x cidadania mínima, p. 34. despolitizada, balizada pelo saber científico
38 Observa Joe Teninyson Velo: “A despeito da maioria da
população ver o crime apenas como atitude de alguns des-
dos especialistas e adubado ideologicamente.
graçados, moralmente perversos, ou dignos de novas e
oportunas exclusões, olhar mais esclarecido desconfia das
intenções políticas que a criminalização por vezes escon- 39 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena. Fundamentos
de. A propósito da cifra reservada aos considerados “per- políticos e aplicação judicial, p. 01. Ensina Alessandro
versos”, não raro ela tem sido matéria-prima de setores Baratta que deve ser distinguida, de forma programática,
bem definidos de manifestação de poder, onde o crime é a política penal da política criminal, “entendendo-se a pri-
fato social anormal, por isso categoria bastante disponível meira como uma resposta à questão criminal circunscrita
a instrumentalizar o serviço de propagando política – ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado (lei
oportuna superestrutura baseada em certo modo de pro- penal e sua aplicação, execução da pena e das medidas de
dução jornalística e motivo fundante de um discurso qual- segurança), e entendendo-se a segunda, em sentido
quer. Naturalmente, como corrupção do espírito crítico, o amplo, como política de transformação social e institucio-
tagarelar “jornalístico” é tanto pernicioso quanto o des- nal (...). Entre todos os instrumentos de política criminal o
viance”. (VELO, Joe Tennyson. “Postura criminológica: direito penal é, em última análise, o mais inadequado”
entre a etnometodologia e o mito de Hermes”. In: Revista (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do
de Ciências Penais. nº 02,.pp. 114 e 115). direito penal, p. 201).

18 19
Alexandre Morais da Rosa e
Sylvio Lourenço da Silveira Filho

Na seqüência, procurar-se-á situar a expan- Capítulo 2


são punitiva em face da globalização neoliberal
tendo em conta a orquestração jurídica, política
A Ideologia Repressiva Neoliberal:
e midiática que prega o Estado mínimo no âmbi- Movimento da Lei e aa Ordem
to social ao mesmo tempo em que exige um e Tolerância Zero
Estado máximo no campo penal, de acordo com
o fundamentalismo punitivo do movimento da
Lei e da Ordem e da política de tolerância zero40
incubados nos Estados Unidos da América.
O tema em questão pressupõe o des-cobri-
mento de uma relação de poder, tendo em vista
que o discurso criminológico encontra-se “sem-
pre presente no marco histórico do poder mun-
dial, seja na revolução mercantil, seja na revolu-
ção industrial, e depois na tecnologia exercida
como globalização”.1 Nesse sentido, afirma
Eugenio Raúl Zaffaroni que “o mero enunciado
das principais funções dos meios de comunicação
de massa, como aparato de propaganda do siste-
ma penal e sua dedicação quase exclusiva a tal
propaganda, revela o alto grau de empenho da
civilização industrial e dos albores da civilização
tecnocientífica para preservar a ilusão e fabricar
a realidade do sistema penal e a função-chave
que este sistema cumpre na manutenção do
poder planetário desta civilização industrial”.2
Há, portanto, um paralelo entre o discurso
da repressão à delinqüência – capitaneado
pelos meios de comunicação de massa – e a
nefasta política econômica neoliberal. O regime

40 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; CARVALHO,


Edward. Teoria das janelas quebradas: E se a pedra vem 1 MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de
de dentro?. In: Revista de estudos criminais. !TEC/PUC- Janeiro – Dois tempos de uma história, p. 95.
RS, nº 11. Sapucaia do Sul: Notadez, 2003. 2 ZAFFARONI, E. Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 131.

20 21
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

fundado pela “Société du Mont Pelérin” e pelos Miranda Coutinho “é nesse espaço que entra a
financistas do “Consenso de Washington” noção de ação eficiente, no lugar daquela
impõe o receituário econômico global, mesmo causa-efeito, da falibilidade humana na previ-
para os países que sequer passaram alçaram as são dos fins. Com isso, combatia-se – e comba-
vantagens da modernidade: abertura dos mer- te-se – o construtivismo, ou seja, as instituições
cados, onda de privatizações, taxas de juros deliberadamente criadas (pense-se, antes de
exorbitantes, regime cambial vulnerável, redu- tudo, no processo como objeto cultural), frutos
ção das verbas orçamentárias sociais, recessão da razão (falha por natureza) e da crença em
econômica, desemprego, índices elevados de resultados não raro impossíveis. No seu lugar,
inadimplência civil e empresarial, sucateamen- ordens naturais espontâneas seriam eleitas,
to do aparelho estatal, além da servilização dos após os erros dos atores sociais, tudo mirado no
Parlamentos e subjugação do Poder Judiciário.3 mercado, a principal delas e sua balizadora.
Como conseqüência, o aumento da complexida- Não foi por outro motivo que o mercado acabou
de dos problemas sociais ante o desemprego glorificado; e o pensamento em torno dele o
estrutural e a radicalização da pobreza. supra-sumo da intelectualidade, ao ponto de,
No vácuo da crise principiológica do Es- para quem tem alguma memória, todos os que
tado, o discurso da globalização e de sua ma- se colocaram em seu caminho serem taxados de
triz economicista, o neoliberalismo, capitanea- neoburros e/ou neobobos”.7
do por Friedrich Hayek4 e Milton Friedman5 – se A idéia da rede de segurança do Estado de
incumbiu de propor um câmbio espistemológi- Bem-Estar Social8 – que tinha que arcar com os
co, abandonando a relação causa-efeito para
configurar a eficiência (relação custo/ benefí-
cio) como balizamento de atuação, doravante 7 MIRANDA COUTINHO, Jacinto N. Efetividade do Pro-
cesso Penal e Golpe de Cena: Um Problema às Reformas
integrada na principiologia constitucional (art. Processuais. In. WUNDERLICH, Alexandre (org.). Escritos
37, CR/88), (con)fundindo efetividade (fins) com de direito e processo penal em homenagem ao Professor
eficiência (meios).6 Segundo Jacinto Nelson de Paulo Cláudio Tovo, p. 144.
8 Ressalta-se, desde logo, que não se pretende aqui – como
pode parecer – de propor um endeusamento do Estado de
3 POTTES DE MELLO, Aymoré Roque. A política neoliberal Bem-Estar Social, mas da constatação do câmbio estrutu-
de endividamento e exclusão e instrumentos para o exer- ral ocorrido no âmbito econômico que produz a conse-
cício da cidadania e da democracia. In Revista da Ajuris, qüente conformação do campo penal à nova estrutura,
nº 84, p. 35. tomando-se por base o alerta de George Rusche e Otto
4 HAYEK, Friedrich A. Direito, legislação e liberdade. Vol. I, Kirchheimer, segundo os quais “todo sistema de produção
II e III. Trad. Anna Maria Capovilla. São Paulo: Visão, 1985. tende a descobrir formas punitivas que correspondem às
5 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Trad. suas relação de produção (RUSCHE, Geoge; KIRCHHEI-
Luciana Carli. São Paulo: Abril, 1984. MER, Otto. Punição e estrutura social, p. 20). A propósito
6 ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao ato dessa relação no Estado de Bem-Estar Social: CARVA-
infracional. Princípios e garantias constitucionais, p. 19. LHO, Salo de. As feridas narcísicas do Direito Penal (pri-

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

custos marginais da corrida do capital pelo lucro cidadão é sinônimo de consumidor, o individua-
– é esvaída sob o argumento de que não mais se lismo apresentado na forma de consumismo,
conseguia cumprimento de suas promessas, sendo que “eficiência, flexibilização, produtivi-
além das teses cínicas de que os cortes dos gas- dade e competitividade são as características do
tos assistenciais eram plenamente justificados mercado sem fronteiras, onde os países se divi-
porque desestimulavam a vontade de trabalhar dem em produtores e consumidores”.10
de seus beneficiários, alimentando uma cultura Como destaca Zygmunt Bauman, no
de dependência: deixemos, de agora em diante, Estado de Bem-Estar Social, havia o controle da
tudo aos cuidados do deus-mercado!9 conduta disciplinada dos seus membros atra-
Assim, o neoliberalismo dita o ritmo da vés dos seus respectivos papéis produtivos e a
globalização, visando criar um mercado mun- sociedade incitava forças combinadas e busca-
dial voltado (somente) para quem possui o po- va avançar mediante esforços coletivos. A dou-
der de consumir (homo economicus): doravante trina neoliberal promove uma guinada desse
papel a ser desempenhado: de produtores os
indivíduos passam a ser encarados como con-
meiras observações sobre as (dis)funções do controle
sumidores, restando evidente que ao contrário
penal na sociedade contemporânea. In: GAUER, Ruth M.
Chittó. A qualidade do tempo: para além das aparências do processo produtivo, o processo de consumo
históricas, pp. 182-187). é uma atividade inteiramente individualista e
9 De acordo com Zygmunt Bauman, “poucos de nós se lem-
que coloca as pessoas em campos marcada-
bram hoje de que o estado de bem-estar foi, originalmen-
te, concebido como um instrumento manejado pelo estado mente distintos e opostos: a exacerbação do
a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular conflito é inevitável, mormente através do pro-
os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo- cesso de sedução do mercado consumidor. 11
os do medo de perder a aptidão no meio do processo... Os
dispositivos da previdência eram então considerados uma
rede de segurança, estendida pela comunidade como um
todo, sob cada um de seus membros... A comunidade assu- 10 BERBERI, Marco Antonio Lima. Reflexos da pós-moderni-
mia a responsabilidade de garantir que os desempregados dade no sistema processual penal brasileiro (algumas
tivessem saúde e habilidades suficientes para se reempre- considerações básicas). In MIRANDA COUTINHO, Jacin-
gar e de resguardá-los dos temporários soluços e caprichos to N. de Miranda. Crítica à Teoria geral do Direito Proces-
das vicissitudes da sorte(...). Hoje, com um crescente setor sual Penal, p. 63.
da população que provavelmente nunca reingressará na 11 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p.
produção e que, portanto, não apresenta interesse presen- 54: “Quanto mais elevada a “procura do consumidor” (isto
te ou futuro para os que dirigem a economia, a “margem” é, mais eficaz a sedução do mercado), mais a sociedade de
já não é marginal e o colapso das vantagens do capital consumidores é segura e próspera. Todavia, simultanea-
ainda o faz parecer menos marginal – maior, mais inconve- mente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que
niente e embaraçoso – do que o é. A nova perspectiva se desejam e os que podem satisfazer os seus desejos, ou
expressa na frase da moda: “Estado de bem-estar? Já não entre os que foram seduzidos e passam a agir de modo
podemos custeá-lo”...” (BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar como essa condição leva a agir e os que foram seduzidos
da pós-modernidade, p. 51). mas se mostram impossibilitados de agir do modo como se

24 25
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

Ademais, é certo que as diretrizes neolibe- Assim, o modelo neoliberal expõe sua face-
rais, pregando a austeridade orçamentária e o ta numa equação que implica: a) a supressão do
fortalecimento dos direitos do capital, acompa- Estado econômico; b) o enfraquecimento do
nhado da contenção dos gastos públicos e Estado social; e c) o fortalecimento e glorificação
redução da cobertura social, necessitam englo- do Estado penal: “à atrofia deliberada do Estado
bar o tratamento punitivo como forma de conter social corresponde a hipertrofia distópica do
a insegurança e a marginalidade: ao lado da Estado penal”.13 Em outros termos, ao Estado
mão-invisível do mercado no âmbito econômico, social mínimo deve corresponder um Estado
há que se utilizar a mão-de-ferro do Estado no penal máximo, que dê respostas às desordens
campo penal, para o contenção dos deserdados, provocadas pela desregulamentação econômi-
excluídos, indesejados, não consumidores.12 ca, pela pulverização do trabalho assalariado e
alarmante aumento da pobreza. De acordo com
Nilo Batista, “(...) prover mediante criminaliza-
espera agirem os seduzidos. A sedução do mercado é,
simultaneamente, a grande igualadora e a grande diviso- ção é quase a única medida de que o governan-
ra. Os impulsos sedutores, para serem eficazes, devem ser te neoliberal dispõe: poucas normas ousa ele
transmitidos em todas as direções e dirigidos indiscrimi- aproximar do livre mercado – fonte de certo jus-
nadamente a todos aqueles que os ouvirão. No entanto,
existem mais daqueles que podem ouvi-los do que daque-
naturalismo globalizado, que paira acima de
les que podem reagir do modo como a mensagem seduto- todas as soberanias nacionais – porém, para
ra tinha em mira fazer aparecer. Os que não podem agir garantir o “jogo limpo” mercadológico a única
em conformidade com os desejos induzidos dessa forma
são diariamente relegados com o deslumbrante espetácu-
política pública que verdadeiramente se mante-
lo dos que podem fazê-lo” ve em suas mãos é a política criminal”.14
12 Segundo Eduardo Galeano “em muitos países do mundo,
a justiça social foi reduzida à justiça penal. O Estado vela
pela segurança pública: de outros serviços já se encarrega o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma
o mercado, e da pobreza, gente pobre, regiões pobres, cui- maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerá-
dará Deus, se a polícia não puder” (GALEANO, Eduardo. vel da população que não é necessária à produção e para
De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso, p. 31). a qual não há trabalho “ao qual se reintegrar.” ”(BAU-
Nesse sentido explica Zygmunt Bauman que “outrora MAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências huma-
ansioso em absorver quantidade de trabalho cada vez nas, pp. 119-120).
maiores, o capital hoje reage com nervosismo às notícias 13 WACQUANT. Loic. As prisões da miséria, pp. 18 e 80.
de que o desemprego está diminuindo; através dos pleni- 14 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tar-
potenciários do mercado de ações, ele premia as empresas dio, p 05. No mesmo sentido aduz Maria Lúcia Karam que
que demitem e reduzem postos de trabalho. Nessas condi- “dentro do Estado mínimo da pregação neoliberal faz-se
ções, o confinamento não é nem escola para o emprego presente um simultâneo e incontestado Estado máximo,
nem um método alternativo compulsório de aumentar as vigilante e onipresente, que se vale de ampliadas técnicas
fileiras de mão-de-obra produtiva quando falham os méto- de investigação e de controle, propiciadas pelo desenvolvi-
dos “voluntários” comuns e preferidos para levar à órbita mento tecnológico, que manipula o medo e a insegurança,
industrial aquelas categorias particulares de rebeldes e para criar novas e dar roupagem pós-moderna a antigas
relutantes de “homens livres”. Nas atuais circunstâncias, formas de intervenção e de restrições sobre a liberdade

26 27
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

A importância do discurso criminológico bilidade individual em torno dos conflitos esta-


do modelo neoliberal se mostra presente, por belecidos. Assim como se apóia na comparti-
um lado, na necessidade da despolitização dos mentalização entre o campo econômico (pre-
conflitos sociais e, por outro, na politização da tensamente dirigido por mecanismo neutro,
questão criminal.15 Observa Jacinto Nelson de fluido e eficiente do mercado) e o campo social
Miranda Coutinho que a lógica da ação eficien- (povoado pela arbitrariedade imprevisível das
te, de forma paulatina, toma corpo no cotidia- paixões e dos poderes), estabelece uma doxa
no, “e projeta-se como um raio no fundamento penal que “postula uma cesura nítida e definiti-
ético da sociedade. Afinal, a deificação do mer- va entre as circunstâncias (sociais) e o ato (cri-
cado, quando vista pelo eficientismo, glorifica o minoso), as causas e as conseqüências, a socio-
consumidor (Homo Economicus, que substitui o logia (que explica) e o direito penal (que legisla
Homo faber), mas, naturalmente, toma o não- e pune)”.17 Segundo Vera Regina Pereira de
consumidor (excluído, ou homo famelicus?) Andrade “a chave decodificadora desse senso
como um empecilho. Ora, para ele resta o desa- comum radica no livre arbítrio ou na liberdade
mor de seu semelhante, em um mundo de com- de vontade, tão cara aos liberalismos do passa-
petição, aético em seus postulados e antiético do e do presente. Se tudo radica no sujeito, se
em seus mecanismos e efeitos”.16 sua bondade ou maldade são determinantes de
Na visão desse modelo, é imperativa a dis- sua conduta, as instituições, as estruturas e as
sociação entre os fatores sociais e a responsa- relações sociais podem ser imunizadas contra
toda culpa”.18
individual” (KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do siste- Tal política, no âmbito penal, é pautada
ma penal. In PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionis-
mo penal, p. 71) pela pregação totalitária dos seguidores do
15 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tar- movimento da Lei e da Ordem. Por se tratar de
dio, p. 14. um movimento e não de um corpo de doutrina
16 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. “Atualizando o
discurso sobre direito e neoliberalismo no Brasil”. In: estável, o discurso é cambiante, mas sempre
Revista de Estudos Criminais. !TEC, nº4, p.29. O novo com o propósito de endurecimento do sistema
modelo do Direito, como explica Marco Antonio de Lima penal nos momentos e nos locais difundidos.
Berberi, “caracteriza-se pela falta de preocupação ética
(que ética pode existir no deus-mercado?), no qual não há O surgimento das bases do Law and Order
espaço para qualquer preocupação social – ou ela é secun- remonta à década de setenta, nos Estados Uni-
dária –, até porque o entendimento da das demandas
dos, configurando-se como reação ao cresci-
oriundas dos movimentos sociais não decorre de uma pos-
tura distributiva, mas apaziguadora” (BERBERI, Marco
Antonio Lima. Reflexos da pós-modernidade no sistema
processual penal brasileiro (algumas considerações bási- 17 WACQUANT. Loic. As prisões da miséria, p. 61.
cas). In MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica 18 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máxi-
à Teoria geral do direito processual penal, p. 63). mo x cidadania mínima, p. 21.

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Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

mento da taxa de criminalidade no período Estado-Providência, na medida em que os pro-


mencionado, mas, principalmente, uma respos- gramas voltados ao contingente populacional
ta aos intensos conflitos raciais que vinham pobre – os negros, em sua maioria – eram limi-
ocorrendo nos grandes guetos das metrópoles tados, fragmentários e apartados das demais
norte-americanas. ações estatais.21
Após a escravidão, o chamado sistema A partir dos anos setenta, a política de
Jim Crow19 e o gueto, a sociedade estaduni- ação caritativa é progressivamente substituí-
dense encontra na prisão uma nova forma de da por uma política de ação repressiva, inician-
contenção das populações marginalizadas, do o avanço do Estado penal a partir de duas
mormente as afro-americanas: “estas políticas frentes: a) a primeira, transformando os servi-
apontavam para uma outra instituição capaz ços sociais em instrumento de controle moral
de confinar e controlar, senão a comunidade das classes socialmente hipossuficientes,
afro-americana em seu conjunto, pelo menos “condicionando o acesso à assistência social à
aqueles dentre seus membros que se mostra- adoção de certas normas de conduta (sexual,
vam demasiados disruptivos, desviantes ou familiar, educativa, etc.) e ao cumprimento de
perigosos: a prisão”.20 obrigações burocráticas onerosas ou humi-
De acordo com Loïc Wacquant, nos lhantes”; e b) a segunda, recorrendo de forma
Estados Unidos, ao contrário da Europa, não vultuosa e sistemática ao aprisionamento, pois
eram implementadas políticas realmente con- após experimentar uma diminuição “em 12%
dizentes com o conjunto de sistemas de prote- durante a década de 60, a população carcerá-
ção e de transferência universalista do Welfare ria americana literalmente explodiu, passando
State, mas sim programas dirigidos à popula- de menos de 200 mil detentos em 1970 a cerca
ção realmente dependente da caridade do
Estado. Assim, o autor entende que, ao contrá-
21 De acordo com o autor, “o princípio que guia a ação públi-
rio da experiência européia, não havia na ca americana não é a solidariedade, mas a compaixão; seu
América do Norte um Estado de Bem-Estar objetivo não é fortalecer os laços sociais (e ainda menos
Social, mas um Estado caritativo ou um semi- reduzir as desigualdades), mas no máximo aliviar a misé-
ria mais gritante” (WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres, p.
20). A respeito, são valiosas as lições de Eduardo
Galeano, quando afirma que “diferentemente da solida-
19 O sistema Jim Crow se constituiu num “sistema legal de riedade, que é horizontal e praticada de igual para igual,
discriminação e de segregação do berço à tumba que a caridade é praticada de cima para baixo, humilha quem
ancorava a sociedade agrária do Sul [dos EUA] do fim da a recebe e jamais altera um milímetro as relações de
Reconstrução até a Revolução dos Direitos Civis, que o poder: na melhor das hipóteses, um dia poderá haver jus-
derrubou um longo século depois da abolição da escrava- tiça, mas lá no céu. Aqui na terra, a caridade não pertur-
tura” (WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres, p. 99). ba a injustiça. Só se propõe a disfarçá-la” (GALEANO,
20 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres, p. 107. Eduardo. De pernas pro ar, pp. 319 e 320).

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

de 825 mil em 1991, ou seja, um crescimento eram alheios por completo à conflituosidade cri-
nunca visto em uma sociedade democrática, minalizada”.24
de 314% em vinte anos”.22 Na década de noventa, o avanço das cam-
Esta política criminal fundou-se na tradi- panhas de Lei e Ordem se intensificaram com a
ção hegeliana de direita cuja tese consiste em implementação da política de tolerância zero,
considerar realizado ou consumado o projeto conduzida pelo prefeito de Nova York, Rudolph
da modernidade (ficção da modernidade con- Giuliani, ganhando ares de cientificidade, com
sumada). Desse modo, encontrando-se o esta- a difusão da teoria das janelas quebradas.25
do racional realizado, o poder não possuiria ele- A referida teoria tem origem nos estudos de
mentos criminógenos. Portanto, o delito deve- James Q. Wilson e George L. Kelling, autores do
ria ser encarado como fruto de uma decisão artigo “Broken windows: the police and neigh-
individual que, no mínimo, implicaria em sua borhood safety”, publicado na edição de março
retribuição.23 de 1982, no periódico Atalantic Monthly,26 onde
Nesta linha teórica rudimentar destaca- sustentavam que se a janela de uma proprieda-
ram-se, nos anos setenta, o novo realismo de de fosse quebrada e não reparada imediatamen-
Ernest van der Haag, identificando a ordem e a te, denotaria a inexistência de uma autoridade
utilidade como valores supremos, mesmo em responsável pela manutenção da ordem.
face da solidariedade e da justiça e, nos anos Assim, passou-se a trabalhar com a hipóte-
oitenta, o pragmatismo burocrático de Richard se (absurda e inverificável) de que pessoas
J. Herrnstein, cuja proposta limitava-se a esta-
belecer pragmaticamente como reprimir de
24 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal
modo eficaz (denotando o eficientismo neolibe- brasileiro, p. 632.
ral). Segundo E. Raúl Zaffaroni, Nilo Batista et. 25 “Em julho de 1994, o prefeito recém-eleito de Nova Iorque,
al., esses autores “não fizeram parte da crimi- RUDOLF GIULIANI, e seu chefe de polícia, WILLIAN
BRANTON, começaram a implantar uma estratégia de
nologia estadunidense tradicional; eles foram policiamento baseada na manutenção da ordem, enfati-
apenas ideólogos oportunistas, que obtiveram zando o combate ativo e agressivo de pequenas infrações –
notoriedade justamente por causa de suas a grande maioria, quando muito, meros atos desviantes,
como estudados na criminologia – contra a qualidade de
racionalizações insólitas, fruto de sua tática vida, como pichação, urinar nas ruas, beber em público,
consistente em colocar entre parênteses o esta- catar papel, mendicância e prostituição” (MIRANDA COU-
do, supondo que este e seu exercício de poder TINHO, Jacinto Nelson de; CARVALHO, Edward. Teoria
das janelas quebradas: E se a pedra vem de dentro?. In:
Revista de estudos criminais. !TEC/PUC-RS, nº 11, p. 23)
26 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; CARVALHO,
22 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres, p. 28. Edward. Teoria das janelas quebradas: E se a pedra vem
23 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal de dentro?. In: Revista de estudos criminais. !TEC/PUC-
brasileiro, p. 632. RS, nº 11, p. 23.

32 33
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

começariam a atirar pedras para quebrar as Entretanto, esta política se apresenta


demais janelas, até que todas estivessem que- como verdadeira criminalização das conse-
bradas. Desta forma, os indivíduos que por ali qüências da miséria do Estado mínimo neoli-
passassem concluiriam pela inexistência de beral, sendo caracterizada pela “tática policial
qualquer responsável pela ordem daquele prédio de realizar busca e perseguições aos inconve-
ou rua em que se localizava. Desse modo, toda nientes sociais, vadios, ébrios, desordeiros,
“janela quebrada” (comportamento desviante), cujos atos representariam um acinte à qualida-
deve ser consertada (punição), sob pena de se de de vida da sociedade estabelecida e respon-
estabelecer a decadência da rua e da comunida- sável”.28 Tanto assim que o slogan “tolerância
de como um todo (aumento da criminalidade). zero” (a qual pode ser lida como “intolerân-
Ou seja, realizando um paralelismo ilógi- cia”, porque a tolerância chegou a zero) foi
co, essa tese foi conduzida para o âmbito do praticamente abandonado nos Estados Unidos
sistema punitivo, passando a broken windows sendo substituído pelo termo “iniciativa de
theory a fundamentar a política de punir as qualidade de vida” (quality-of-life initiative),
pequenas infrações como forma de conter a por considerá-lo menos ofensivo.29 De Nova
violência em sua raiz, de modo a evitar a “pri- York, a “doutrina” ganhou o mundo.
meira janela quebrada”. Em outras palavras, os
seus sequazes sustentam (sem qualquer com-
provação) que o combate à grande criminalida- grande tiragem Atlantic Monthly (...). E que desde então
não recebeu o menor início de prova empírica”. (WAC-
de deveria iniciar-se através da austera repres- QUANT, Loïc. Sobre a “janela quebrada” e alguns outros
são e perseguição dos pequenos delitos.27 contos sobre segurança vindos da América. In: Revista
brasileira de ciências criminais. IBCCRIM. nº 46, p. 244).
28 REALE JR., Miguel. Insegurança e tolerância zero. In:
27 Segundo Loïc Wacquant a teoria da janela quebrada “pos- Revista de estudos criminais, !TEC/PUC-RS, nº 09, p. 68.
tula que a repressão imediata e severa de menores infra- De acordo com Miguel Reale Jr., estas políticas são iden-
ções e desentendimentos em via pública abarca o desen- tificadas no Brasil no início da República, logo após o des-
cadeamento dos grandes atentados criminais, (r)estabele- monte da escravidão quando “os negros e mulatos, viven-
cendo um clima sadio de ordem – em outras palavras, que do em situação de subemprego, nas margens das cidades
prender ladrões de ovos permite frear, ou mesmo simples- ou nos cortiços centrais, vieram a ser os clientes preferen-
mente parar, os potenciais matadores de bois, pela reafir- ciais da polícia, detidos por infração cotravencional, mor-
mação da norma e dramatização do respeito à lei. Ora, mente vadiagem, embriaguez, desordem, em proporção
essa autodenominada teoria é tudo menos científica, pois mais de duas vezes superior ao percentual que represen-
foi formulada vinte anos atrás pelo cientista político ultra- ta[va]m na cidade de São Paulo”. (REALE JR., Miguel.
conservador James Q. Wilson e seu acólito George Kelling Insegurança e tolerância zero. In: Revista de estudos cri-
(antigo chefe da polícia de Kansas City, reconvertido minais. !TEC/PUC-RS, nº 09, p. 67).
depois em Senior fellow no Manhattan Institute) sob a 29 O Estado norte-americano é definido por Loïc Wacquant
forma de um curto texto de nove páginas publicado, não como um Estado-centauro, eis que “guiado por uma cabe-
em uma revista de criminologia, submetido à avaliação de ça liberal, montada sobre um corpo autoritarista, aplica a
pesquisadores competentes, mas no seminário cultural de doutrina do “laissez-faire, laissez-passer” a montante em

34 35
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

Isso, em grande medida, denota que na mesmice, diante da aceitação de fórmulas e de


globalização neoliberal é verificada a intensifi- teorias que acabam sendo encaradas como
cação de um fenômeno de igualação, uniformi- “verdades naturais”.
zação, padronização e homogeneização das O lugar-comum alcança os operadores
idéias e dos costumes das sociedades contem- jurídicos que, formados com o intuito de buscar
porâneas. As práticas características da cultu- soluções razoáveis para os conflitos sociais,
ra dominante eliminam a diversidade, impon- bem como “neutralizar o ímpeto de vendeta em
do-se como modelo universal, forçando-nos a massa e sublimar a retaliação, acabam por
contemplarmos-nos “num único espelho, que internalizar e intermediar o ódio comunitário,
reflete os valores da sociedade de consumo”.30 sendo cooptados por disciplina social extrema-
De um extremo a outro do planeta “mes- mente autoritária, legitimadora de verdadeira
mos filmes, mesmas séries de televisão, mesmas ‘política criminal do terror’”.33
informações, mesmas canções, mesmos slogans Assim, empreende-se “um condiciona-
publicitários, mesmos objetos, mesmas roupas, mento sutil das mentalidades em escala plane-
mesmos carros, mesmo urbanismo, mesma tária”:34 a pseudocientificidade das “teses” da
arquitetura, mesmo tipo de apartamento (...)”31. tolerância zero, especialmente a broken win-
Os campos econômico e político (englobando, dows theory, difunde-se pelo globo, apresen-
obviamente, o viés penal32) não escapam da tando-se como fundamento de experiências
bem-sucedidas no combate à violência urbana
relação às desigualdades sociais, mas mostra-se brutal- e à criminalidade local.
mente paternalista a jusante no momento em que se trata Contudo, a falácia é desmistificada por
de administrar suas conseqüências” (WACQUANT, Loïc.
diversos fatores: em primeiro plano, a diminui-
Punir os pobres, p. 21).
30 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar, p. 26. ção dos índices de violência criminal em Nova
31 RAMONET, Ignácio. Geopolítica do caos, p. 47. York ocorreu três anos antes de Giulianni se
32 Constata Zygmunt Bauman que “cresce rapidamente em estabelecer no poder, no fim de 1993, seguindo
quase todos os países o número de pessoas na prisão ou
que esperam prováveis sentenças de prisão. Em quase a tendência de baixa no curso de seu mandato.
toda parte a rede de prisões está se ampliando intensa-
mente. Os gastos orçamentários do Estado com as “forças
da lei e da ordem”, principalmente os efetivos policiais e os qual há uma crescente necessidade de disciplinar impor-
serviços penitenciários, crescem em todo o planeta. Mais tantes grupos sociais e segmentos populacionais” (BAU-
importante, a proporção da população em conflito com a MAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências huma-
lei e sujeita à prisão cresce num ritmo que indica uma nas, pp. 122)
mudança mais que meramente quantitativa e sugere uma 33 CARVALHO, Salo de. “Execução da pena e sistema acu-
“significação muito ampliada da solução institucional satório: leitura desde o paradigma do garantismo jurídi-
como componente da política criminal – e assinala, além co-penal”. In: Direito penal e processual penal: uma visão
disso, que muitos governos alimentam a pressuposição, garantista. (Org. Gilson Bonato), p. 213.
que goza de amplo apoio na opinião pública, segundo a 34 RAMONET, Ignácio. A tirania da comunicação, p. 08.

36 37
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

Ademais, o refluxo da criminalidade violenta foi por outro, no fomento da indústria carcerária,38
alcançado em cidades onde não foram aplica- além de produzir um campo fértil para a dema-
das as doutrinas do “tolerância zero” (incluin- gogia política, pela dramatização e clamor que
do cidades com políticas absolutamente opos- envolve o tema “violência urbana”.
tas: Boston, San Francisco, San Diego, etc.)35 E neste viés, há uma espécie de consenso
Acrescente-se, ainda, ao grande cresci- entre as tendências políticas conservadoras e
mento econômico, de cunho amplo e durável,
experimentado pelos Estados Unidos nas últi- cos do sexo masculino e 7% dos homens negros estavam
mas décadas. Desse modo, o rei fica nu quando atrás das grades em 1994. Em probabilidade acumulada,
se constata que “o espantoso aumento do 9% do conjunto dos homens do país estarão, no curso de
suas vidas, confinados nas prisões federais ou estaduais”
número de encarcerados não correspondeu a (WESTERN, Bruce; BECKETT, Katherine; HARDING,
nenhuma alteração relevante na incidência cri- David. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados
minal, estabilizada nos anos noventa graças ao Unidos. In: Discursos sediciosos. ICC. nº 11, p. 43). Do
mesmo modo, explica Loïc Wacquant que “o sistema
pleno emprego e a uma redução demográfica da penal contribui diretamente para regular os segmentos
população jovem, deixando em aberto o real inferiores do mercado de trabalho – e isso de maneira infi-
objetivo desse encarceramento massivo”.36 nitamente mais coercitiva do que todas as restrições
sociais e regulamentos administrativos. Seu efeito aqui é
O sentido dessa política criminal se con- duplo. Por um lado, ele comprime artificialmente o nível do
substancia, por um lado, em mascarar os índi- desemprego ao subtrair-se à força de milhões de homens
ces de desemprego (regulação da miséria e da “população em busca de um emprego” e, secundaria-
mente, ao produzir um aumento do emprego no setor de
armazenamento dos refugos do mercado37) e, bens e serviços carcerários, setor fortemente caracteriza-
do por postos de trabalho precários (e que continua ele-
vando mais ainda a com a privatização da punição).
35 Segundo Loïc Wacquant, em San Francisco “uma política Estima-se assim que, durante a década de 90, as prisões
sistemática de “diversão” dos jovens delinqüentes para tiraram dois pontos do índice do desemprego americano”
programas de formação, de aconselhamento e de trata- (WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria, pp. 96 e 97).
mento social e médico permitiu reduzir o número de entra- 38 Explica Loïc Wacquant que “dezessete firmas, quinze
das em delegacias em mais da metade, diminuindo, ao americanas e duas britânicas, oferecem a gestão completa
mesmo tempo, a criminalidade violenta em 33% entre 1995 (full-scale management) de estabelecimento de detenção.
e 1999 (contra 26% em Nova York, onde os volumes dos Sete dentre elas estão cotadas em bolsa, no mercado
aceitos em detenção aumentou em um terço no mesmo Nasdaq: Correction Corporation of America, Correctional
intervalo)” (WACQUANT, Loïc. Sobre a “janela quebrada” Services Corporation, Securicor (sediada em Londres),
e alguns outros contos sobre segurança vindos da Wackenhut, Avalon Community Services, Cornell
América. In: Revista brasileira de ciências criminais. IBC- Corrections e Correctional Systems. Estas sete empresas
CRIM. nº 46, p. 238). controlam 82% dos efetivos do setor comercial e totalizam,
36 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal sozinhas, um capital superior a 500 milhões de dólares (...).
brasileiro, p. 632. Com uma taxa de crescimento global de 45% ao ano duran-
37 De acordo com Bruce Western, Katherine Beckett e David te a década passada, a maioria destas firmas duplicaram
Harding, os EUA intervêm diretamente na área do empre- seu volume de prisioneiros e suas vendas de um ano para o
go pelo viés penal: “Aproximadamente 1% dos adultos bran- outro”. (WACQUANT, Loïc. Punir os pobres, pp. 33 e 86).

38 39
Alexandre Morais da Rosa e
Sylvio Lourenço da Silveira Filho

progressistas. O discurso penal(izante) alcança Capítulo 3


unanimidade, seduzindo setores (até então)
comprometidos com a mudança de paradigma
Política Repressiva Global:
social, denotando o surgimento do que Maria Institucionalização de Medidas
Lúcia Karam logrou chamar “esquerda puniti- Típicas do Estado de Polícia.
va”.39 Assevera Manuel Cancio Meliá, referindo-
se ao âmbito político espanhol que “a esquerda Direito Penal do Inimigo?
política tem aprendido o quanto rentável pode Não, Obrigado
resultar o discurso da law and order, antes
monopolizado pela direita política. Esta se soma,
quando pode, a habitualidade político-criminal
que caberia supor, em princípio, pertencente-
mente à esquerda, uma situação que gera uma A faceta penal da globalização neoliberal se
escala na qual ninguém está disposto a discutir,
expressa de forma evidente pela maximização
verdadeiramente, questões de política criminal
do direito penal e pela supressão das garantias
no âmbito parlamentar e na qual a demanda
processuais, ajustada e fomentada de acordo
incriminadora de maiores e “mais efetivas” penas
com a opinião pública(da). Apresenta-se com as
já não é tabu político para ninguém”.40
seguintes peculiaridades: a) é própria de um
Na continuação busca-se descrever a ins-
titucionalização de medidas tendentes ao contexto político-econômico b) fomenta a repres-
Estado de Polícia, denotando a ideologia penal são de cunho autoritário, especialmente para
global de (re)produção de um Direito Penal sim- com a criminalidade rua; c) estimula a diversifi-
bólico, derivando a recente formulação do cação e a extensão de sanções jurídicas, sejam
denominado “Direito Penal do inimigo”, que penais ou extrapenais; d) pretende a mitigação
vai de encontro às conquistas históricas con- dos direitos e garantias individuais e coletivos.1
cernentes nos direitos e garantias individuais e A transição do Estado providência para o
coletivos, fruto do empreendimento democráti- Estado penitência2 denota o claro objetivo de
co do Estado de Direito. gestão penal da pobreza da política criminal
neoliberal. Este tráfico internacional das cate-
gorias da concepção neoliberal – utilizando-se a
39 CLEINMAN, Betch A esquerda punitiva: entrevista com
Maria Lúcia Karam. In: Revista de estudos criminais.
!TEC. nº 01, pp. 11 a 15. 1 A propósito, conferir: TAVAREZ, Juarez. A globalização e
40 MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo? In: os problemas da segurança pública. In: Ciências penais,
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito pe- ABPCP. nº 00, p. 134.
nal do inimigo, p. 62. 2 WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres, p. 140.

40 41
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

expressão de Loïc Wacquant – é acolhido, par- leiro é emblemático nesse sentido, pois ao
cial ou integralmente, consciente ou incons- mesmo tempo em que não foram consolidadas
cientemente em diversos países “requerendo as promessas do Estado Social no plano subs-
um trabalho mais ou menos elaborado de adap- tancial, o intervencionismo foi devidamente
tação ao idioma cultural e às tradições de instaurado no viés penal (substituição da pers-
Estado, próprios aos diferentes países recepto- pectiva absenteísta pela intervenciosnista),5
res, por parte dos funcionários que, em seguida
os colocam em prática, cada um em seu domínio
de competência”.3 “Evidentemente, a minimização do Estado em países que
A situação é ainda mais grave nos países passaram pela etapa do Estado Providência ou welfare
state tem conseqüências absolutamente diversas da
periféricos, que não experimentaram os benefí- minimização do Estado em países como o Brasil, onde não
cios do Estado social, ou se experimentaram, houve Estado Social.” (STRECK, Lenio. Hermenêutica
foi em grau tal, que o mesmo não passou de um jurídica e(m) crise, p. 24) Explica Ana Lúcia Sabadell que
“mesmo naqueles países que nunca passaram pela expe-
simulacro, não sendo suficiente a galgar relati- riência de um Estado de bem-estar social, como é o caso
vo nível de justiça social pela adoção de políti- do Brasil, constatamos a criação de um Estado penal, mui-
cas públicas necessárias para distribuição de tas vezes atuando no limite entre a legalidade e a ilegali-
dade. Essa política tem levado à propagação, por meios
renda e erradicação da miséria.4 O caso brasi- formais e informais, de uma cultura do pânico, que permi-
te legitimar como única solução viável para a efetivação
da cidadania (segurança!), a segregação de parcelas cada
3 WACQUANT. Loic. As prisões da miséria, p. 66: “É por vez maiores da população e, principalmente, sua estigma-
intermédio das trocas, intervenções e publicações de cará- tização como ‘bandidos’”. (SABADELL, Ana Lúcia.
ter universitário, real ou simulado, que os “transmissores” Prefacio. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema
intelectuais reformulam essas categorias em uma espécie penal máximo x cidadania mínima, p. 02).
de pidgin politológico, suficientemente concreto para 5 Salienta Salo de Carvalho que “ao ser chamado a operar
atrair as esferas de decisão políticas e os jornalistas preo- políticas preventivas – no que tange à prevenção dos ris-
cupados em “ater-se à realidade” (tal como projetada pela cos imanentes à sociedade industrial e aos instrumentos
visão autorizada do mundo social), mas suficientemente de garantia de efetivação dos direitos dela decorrentes – o
abstrato para livrá-los das marcas demasiado flagrantes controle penal (direito penal, processo penal, criminologia
que devem às particularidades do seu contexto nacional e política criminal) foi instigado a ampliar seu espectro de
de origem. De tal maneira que essas nações tornam-se incidência, adaptando-se aos novos bens jurídicos. Tal
lugares-comuns semânticos para onde convergem todos assertiva é perceptível se verificarmos o incremento da
aqueles que, para além das fronteiras do ofício, de organi- tutela penal ao trabalho (crimes contra a organização do
zação e de nacionalidade, e mesmo de filiação política, trabalho), à previdência social (crimes previdenciários), ao
pensam espontaneamente a sociedade neoliberal avança- transporte público (crimes contra a segurança dos meios
da como ela gostaria de sê-lo”. de transporte), à saúde (crimes contra a saúde pública e
4 CARVALHO, Salo de. As feridas narcísicas do Direito leis de entorpecentes), à economia (crimes contra a econo-
Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do mia popular) et coetera. (....) No entanto, ao mesmo tempo
controle penal na sociedade contemporânea. In: GAUER, em que o direito penal normativo responde positivamente
Ruth M. Chittó. A qualidade do tempo: para além das apa- às expectativas criminalizantes, ou seja, chama para si a
rências históricas, p. 190. No mesmo sentido Lênio Streck: responsabilidade de tutelar as demandas da era da indus-

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

fundando as bases da atual hipertrofia legisla- Zaffaroni quando afirma que, ao contrário do
tiva penal e, conseqüentemente, instaurando que ocorre nos países centrais, na região mar-
no imaginário dos juristas a crença na adequa- ginal latino-americana as campanhas do movi-
ção do processo (penal) às finalidades do Esta- mento da Lei e da Ordem são executadas na
do de Bem-Estar (narcisismo).6 vigência de governos constitucionais progres-
Desse modo, o espaço do tratamento sistas, uma vez que nos regimes ditatoriais ha-
penal avançou no vácuo deixado pela ausência veria o impedimento, ou pela censura oficial ou
de políticas públicas de fomento da melhoria pela auto-censura dos próprios meios de comu-
de vida da população em geral e, atualmente, nicação de massa. De acordo com o autor isso
através do receituário do movimento da Lei e possui um duplo efeito: “sitiar o setor político
da Ordem, o Estado se vendo atingido pela pró- progressista para impedir o enfraquecimento da
pria impotência econômica frente à mão-invisí- máquina repressiva que, a curto prazo, será
vel do mercado, é adaptado a implementação aplicada no próprio setor político e gerar uma
da penalização (ainda mais) agressiva. Aduz sensação de “ordem e segurança” nas ditaduras
Gevan Almeida sobre o movimento da Lei e da (mediante a desaparição de notícias) e de
Ordem que “os reflexos dessa política criminal “desordem e insegurança” nos regimes mais ou
não tardaram a alcançar o Brasil, que, (...) de menos democráticos”.8
repente, sob a égide de uma constituição demo- O primeiro grande passo tomado no senti-
crática, começou a introduzir na sua Legislação, do da institucionalização brasileira dessa políti-
medidas típicas do novel movimento”.7 ca criminal do terror foi a criação da Lei dos
A adoção desta política justamente sob a Crimes Hediondos, como se depreende das
égide constitucional é explicada por E. Raúl lições de Aury Lopes Jr, ao afirmar que “o Brasil
já foi contaminado por esse modelo repressivista
há mais de 10 anos, quando a famigerada Lei
trialização, prevenindo a lesão aos direitos sociais via dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90), seguida de
ameaça penal, sua instrumentalidade começa a ser colo- outras na mesma linha, marcou a entrada do sis-
cada à prova, visto que genealogicamente não fora conce-
bido para tais funções. (CARVALHO, Salo de. As feridas tema penal brasileiro na era da escuridão, na
narcísicas do Direito Penal (primeiras observações sobre ideologia do repressivismo saneador. A idéia de
as (dis)funções do controle penal na sociedade contem- que a repressão total vai sanar o problema é
porânea. In: GAUER, Ruth M. Chittó. A qualidade do
tempo: para além das aparências históricas, pp. 184-185). totalmente ideológica e mistificadora”.9
Portanto, não se pretendeu até aqui – como pode parecer
– de um endeusamento do Estado de Bem-Estar Social,
mas da constatação do câmbio estrutural 8 ZAFFARONI, E. Raúl. Em busca das penas perdidas, p. 130.
6 Tema que será objeto de críticas no Capítulo 4. 9 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal, p.
7 ALMEIDA, Gevan. Modernos movimentos de política cri- 15. Explicam E. Raúl Zaffaroni, Nilo Batista et. al. que a
minal e seus reflexos na legislação brasileira, p. 97. famigerada lei descumpriu o mandamento constitucional

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Os meios de comunicação de massa se da política penal neoliberal que “pretende


encarregam de introjetar na consciência da remediar com um “mais Estado” policial e peni-
população que a criminalidade é o problema tenciário o “menos Estado” econômico e social
mais significativo da sociedade contemporâ- que é a própria causa da escalada generalizada
nea10 ofuscando, assim, o verdadeiro objetivo de insegurança objetiva e subjetiva” dos países
reféns dessa política econômica. 11
que determina apenas definição em lei dos crimes A regulação de sentimentos de medo, de
hediondos: “O texto constitucional obrigava o legislador insegurança e de ameaça constante represen-
a, escolhendo alguns critérios discursivamente legitima-
dos (bem jurídico ofendido, meios e modos de execução, tada pela exacerbada exibição da criminalida-
graduação do dolo, variáveis vitimológicas, etc.) estabele- de opera a canalização de reivindicações de
cer previamente requisitos cuja presença nos casos con-
cretos – sugerindo alguma análise com os demais delitos
(imediato) arrocho dos meios coercitivos,
selecionados pelo constituinte – implicassem nas restri- demarcando o simbolismo necessário para edi-
ções impostas pela Constituição. Ao invés disso, o legisla- ção de mais e mais leis penais severas, incre-
dor abriu o código penal e, perpassando-lhe as páginas ele-
geu alguns delitos – os quais outros se acrescentaram, à mentando verdadeira legislação de terror.
flor das vagas do noticiário (o homicídio de uma atriz da Assim, cria-se a ilusão de que a repressão,
TV Globo produz a Lei nº 8.930, de 06.set.94), ou de cam-
panhas políticas (um ministro da saúde com aspirações
com severo aumento das penas e cerceamento
presidenciais produz as leis nº 9.677, de 02.jul.98, e 9.695, de garantias fundamentais na persecução cri-
de 20.ago.98) – para considerá-los “hediondos” e pois sub- minal e na execução das condenações conterão
metê-los ao regime especial e mais severo. Aí está a ques-
tão, no caráter arbitrário dessa legislação, que contrariou o avanço da criminalidade. Observa Winfried
o preceito constitucional: o constituinte pediu que aquelas Hassemer que a institucionalização do discur-
restrições fossem impostas a ilícitos “definidos como crime
hediondos”, e o legislador, ao invés de empreender a tare-
so punitivo dos arautos do Law and Order pres-
fa definidora, apresentou um cardápio; a Constituição supõe que “se criem tipos penais novos, apesar
pediu-lhe uma definição, ou seja, uma declaração da dos existentes serem suficientes; que se elevem
essência-significado dos “crimes hediondos” e ele respon-
deu com uma seleção arbitrária, é dizer, uma rotulação as penas ao máximo, apesar de que todos, que
sem método e critério” (ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, sejam bem informados, saibam que não compor-
Nilo et. al. Direito penal brasileiro, p. 323).
10 Sustenta Maria Lúcia Karam que “tais campanhas mani-
tam efeito especial algum; que se suprimam, em
pulam emoções, selecionando e propagando alguns cri- geral, os direitos dos detidos e processados, ape-
mes mais cruéis, para, assim, produzir e generalizar uma sar de que somente se queira afetar a um redu-
indignação moral contra os que são identificados como
criminosos. Ao mesmo tempo, atemorizam a população, zido número de suspeitos; que se introduzam
fazendo com que esta perceba como ameaça maior a sua leis especiais para os terroristas e medidas espe-
segurança, como perigo maior de mortes e danos corpo-
rais, a ação de estupradores, seqüestradores e, principal-
mente, assaltantes”.(KARAM, Maria Lúcia. De crimes,
penas e fantasias, p. 198). 11 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria, p. 07.

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Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

ciais que oferecem sérias reservas de constitu- Penal, pois utilizados – de forma excessiva e
cionalidade”.12 reiterada – para fins que não lhe são próprios.
Produz-se, então, um direito penal e pro- Constata-se a utilização do direito penal e
cessual penal de emergência, meramente sim- processual penal de uma forma promocional,
bólico, sendo que os efeitos simbólicos são difusora de ideologia, pois, abrandando a
verificados a partir do objetivo ou da função de ansiedade em torno da (in)segurança, acarreta
“transmitir à sociedade certas mensagens ou o induzimento da população a acreditar que
conteúdos valorativos, e sua capacidade de inexistem riscos em torno das medidas adota-
influência ficaria confinada às mentes ou às das.15Ressalta Maria Lúcia Karam que “o dis-
consciências, nas quais produziram as emoções curso demonizador que, hoje, se vale especial-
ou, quando muito, representações mentais”13, mente das ocas expressões como “criminalidade
causando a impressão tranqüilizadora de um organizada” e “narcotráfico”, para viabilizar
legislador atento e decidido, porém adotando legislações de exceção, outrora já se valeu das
medidas que carecem de fundamento legiti- expressões “bruxaria” e “heresia”, que, na sua
mante, pois representadas por puro exercício época, eram igualmente apresentadas como um
de poder14 e, além disso, operando a distorção “mal universal”, a ser enfrentado com medidas
da sistemática do Direito Penal e Processual excepcionais”..16
A legislação de pânico busca tão só um
12 Apud FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: notas
efeito sedativo, procurando direcionar sua efi-
sobre a Lei 8.072/90, p. 39. cácia em torno da tranqüilização da opinião
13 RIPOLLÉS, José Luiz Diéz. O direito penal simbólico e os pública(da), ao mesmo tempo em que manifes-
efeitos da pena. In: Ciências penais. ABPCP. nº 00, p. 27.
14 Sublinhe-se, aqui, a prevalência das funções latentes
ta uma exacerbada importância do legislador
sobre as funções manifestas da atuação legislativa. na imediata aprovação das normas penais.
Lecionam E. Raúl Zaffaroni, Nilo Batista et. al. que “o
poder estatal concede às suas instituições funções mani-
festas, que são expressas, declaradas e públicas. Trata-se 15 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal
de uma necessidade republicana; um poder orientador brasileiro, p. 631. Assevera Aury Lopes Jr que no contex-
que não se expresse para que é exercido não pode subme- to da atual complexidade social o velho Direito é pauta-
ter-se ao juízo da racionalidade. Porém, em geral, essa fun- do a acompanhar a dinâmica da urgência. Entretanto,
ção manifesta não coincide por completo com o que a ins- “os programas urgentes (...) permitem resultados rápidos,
tituição realiza na sociedade, ou seja, com suas funções visíveis e mediaticamente rentáveis, mas com certeza não
latentes ou reais. Tal disparidade deve ser sempre objeto se institui nada durável numa sociedade a partir, unica-
de crítica institucional, porque é a única maneira de con- mente, da repressão” (LOPES JR, Aury. (Des)Velando o
trolar a racionalidade do poder, pois, em caso contrário (se risco e o tempo no processo penal. In: GAUER, Ruth M.
a discussão se mantiver ao mero nível das funções mani- Chittó. A qualidade do tempo: para além das aparências
festas), o controle seria de pura racionalidade do discur- históricas, p. 168.
so”.( ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. all. Direito 16 KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In:
penal brasileiro, p. 88). PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal, p. 77.

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

Através do canal comunicação-política obser- futuro), no lugar de – como é habitual – retros-


va-se uma clara integração de propósitos: na pectiva (ponto de referência: o fato cometido).
manutenção do poder político e no estabeleci- Em segundo lugar, as penas são desproporcio-
mento de estratégias técnico-mercantis, “che- nalmente altas: especialmente, a antecipação
gando até a criação consciente na população, da barreira de punição não é considerada para
de determinadas atitudes no que tange aos reduzir, correspondentemente, a pena comina-
fenômenos penais que posteriormente são da. Em terceiro lugar, determinadas garantias
“satisfeitas” pelas forças políticas”.17 processuais são relativizadas ou inclusive
Do Direito Penal simbólico derivam con- suprimidas”.19
cepções maniqueístas do estilo “Direito Penal Percebe-se, em tal formulação, uma rígida
do inimigo”. Segundo seu principal teórico, polarização de trato (de estilo maniqueísta): de
Günther Jakobs, “quem por princípio se conduz um lado, o cidadão, o qual se espera a exterio-
de um modo desviado, não oferece garantia de rização da conduta com a finalidade de confir-
um comportamento pessoal. Por isso não pode mar a estrutura normativa da sociedade; e de
ser tratado como cidadão, mas deve ser comba- outro, o inimigo, interceptado com anteriorida-
tido como inimigo”.18 de e combatido pela sua periculosidade.20
De acordo com Manuel Cancio Meliá a for- Assim, o “Direito Penal do inimigo” cumpriria
mulação do “Direito Penal do inimigo” é carac- uma função distinta do “Direito Penal do cida-
terizada por três elementos básicos: em pri- dão”, acarretando a demonização de grupos
meiro lugar, constata-se um amplo adianta- específicos de autores: o mal eleito na figura do
mento da punibilidade, isto é, que neste âmbi- “outro” e o espaço aberto para o famigerado
to, a perspectiva do ordenamento jurídico- direito penal do autor.21 Como toda espécie de
penal é prospectiva (ponto de referência: o fato
19 MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo?. In:
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito
17 MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo?. In: penal do inimigo, p. 67.
JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito 20 CRESPO, Eduardo Demetrio. Do ‘direito penal liberal’ ao
penal do inimigo, p. 65. ‘direito penal do inimigo’. In: Ciências penais.ABPCP. nº
18 JAKOBS, Günther. Direito penal do cidadão e direito penal 01, p. 11.
do inimigo. In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, 21 “Enquanto, para alguns autores, o delito constitui uma
Manuel. Direito penal do inimigo, p. 49. Constata Eduardo infração ou lesão jurídica, para outros ele constitui o signo
Demetrio Crespo que tal concepção não é só teórica, mas ou sintoma de uma inferioridade moral, biológica ou psico-
existe efetivamente em nossa legislação penal e processual lógica. Para uns, seu desvalor – embora haja discordância
penal (em matéria de terrorismo, tráfico de drogas ou imi- no que tange ao objeto – esgota-se no próprio ato (lesão);
gração) e na prática da política internacional (...) (CRESPO, para outros, o ato é apenas uma lente que permite ver
Eduardo Demetrio. Do ‘direito penal liberal’ ao ‘direito alguma coisa daquilo onde verdadeiramente estaria o des-
penal do inimigo’. In: Ciências penais. ABPCP. nº 01, p. 11). valor e que se encontra em uma característica do autor.

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

ordem social produz certas fantasias dos peri- do pela imputação antecipada do lugar de ini-
gos que colocam em risco sua identidade22 – e migo. Assim, nem mesmo logicamente se sus-
o Direito Penal do inimigo é expressão inigualá- tenta o Direito Penal do Inimigo.
vel dessa constatação –, não é preciso – pelo Saliente-se, ainda, o caráter simbólico e
que até agora foi dito – grandes divagações legitimante do expansionismo penal agregado
para saber quem serão os inimigos eleitos na às formulações do Direito Penal do Inimigo,
sociedade dividida entre consumidores x não uma vez que “essa visão traz consigo a idéia de
consumidores. Uma questão merece reflexão, que o delito seria uma má propaganda para o
ainda. Se o inimigo era cidadão, para que ele sistema, e a pena seria a expressão através da
possa transpor os limites para o lado do inimi- qual o sistema faria uma publicidade neutrali-
zante”.23 Não é à toa que se coaduna perfeita-
go, precisa de uma decisão. E, se ele era cida-
mente com o discurso midiático do terror e
dão fazia jus ao devido processo legal, sonega-
satisfaz aos interesses políticos dominantes.
Tratam-se, portanto, de idéias e de medidas
Estendendo ao extremo esta segunda opção, chega-se a de ocasião que induzem a um deliberado fortale-
conclusão de que a essência do delito reside numa carac- cimento do Estado de Polícia em prejuízo das
terística do autor, que explica a pena (...). Este direito
penal supõe que o delito seja sintoma de um estado do conquistas democráticas do Estado de Direito.
autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas Os modelos de Estado de Direito e de
normais”. (ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Estado de Polícia são ideais, “sendo possível
Direito penal brasileiro, p. 131).
22 De acordo com Zygmunt Bauman “cada sociedade, porém,
descobrir na história uma tendência ao progres-
gera fantasias elaboradas segundo sua própria medida – so do estado de direito, mas ele sofre marchas e
segundo a medida do tipo de ordem social que se esforça contramarchas e sua realização em conformida-
em ser. De um modo geral, tais fantasias tendem a ser ima-
gens espelhadas da sociedade que a gera, enquanto a ima-
de com o modelo ideal cumpre uma função
gem da ameaça tende a ser um auto-retrato da sociedade axial”.24 Enquanto o paradigma ideal do Estado
com um sinal negativo. Ou, para expressar em termos psi- de Polícia é evidenciado pelo exercício de poder
canalíticos, a ameaça é uma projeção da ambivalência
interna da sociedade sobre seus próprios recursos, sobre a
vertical e autoritário, bem como pela adoção de
maneira como vive e seu modo de viver. A sociedade inse- medidas substancialistas (no âmbito do direito
gura de sua ordem desenvolve a mentalidade de uma for- penal) e decisionistas-inquisitivas (no âmbito do
taleza sitiada. Mas os inimigos que lhe sitiaram os muros
direito processual penal), o paradigma ideal do
são seus próprios “demônios interiores” – os medos reprimi-
dos e circundantes que lhe permeiam a vida diária e a “nor- Estado de Direito se caracteriza pelo exercício
malidade”, e que, no entanto, a fim de se tornar suportável
a realidade diária, devem ser dominados, extraídos do coti-
diano vivido e moldados em um corpo estranho, um inimi- 23 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal
go tangível com que se possa lutar, e lutar novamente, e brasileiro, p.122.
lutar até sob a esperança de vencer.(BAUMAN, Zygmunt. 24 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal
O mal-estar da pós-modernidade, pp. 52-53). brasileiro., p. 94.

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

de poder horizontal e democrático e pela con- Sendo assim, o paradigma garantista se


cretização de medidas convencionalistas (no identifica com o modelo do Estado Democrático
plano do direito penal) e cognitivistas-acusató- de Direito, “entendiendo por esta expresión un
rias (no plano do direito processual penal).25 tipo de ordenamiento en que el poder publico, y
Ao considerar a dinâmica da transmuta- específicamente el penal, está rígidamente limi-
ção do Estado de Polícia ao Estado de Direito, tado y vinculado a la ley en el plano sustancial
pode-se sustentar uma posição dialética, (o de los contenidos penalmente relevantes) y
segundo a qual “não há estados de direito reais bajo el procesal (o de las formas procesalmente
(históricos) perfeitos, mas apenas estados de vinculantes)”. O paradigma autoritário, por seu
direito que contêm (mais ou menos eficiente- turno, configura sistemas de controle penal
mente) os estados de polícia nele enclausura- típicos do Estado de Polícia, entendendo-se por
dos”.26 O Estado de Democrático de Direito faz esta enunciação “cualquier ordenamiento
parte, portanto, de um empreendimento demo- donde los poderes públicos son legibus soluti o
crático em processo de construção e, para que “totales”, es decir, no disciplinados por la ley y,
evolua, necessita conter o Estado de Polícia por tanto, carentes de limites y condiciones”.28
que pulsa em seu interior. Estes dois extremos são denominados
De acordo com Luigi Ferrajoli os sistemas direito penal mínimo e direito penal máximo,
de direito e de responsabilidade penal podem sendo referido “con ello bien a los mayores o
ser distinguidos em dois paradigmas contra- menores vínculos garantistas estructuralmente
postos: o modelo garantista e o modelo autori- internos a al sistema y la calidad de las prohibi-
tário, sendo a oscilação entre os dois opostos ciones y las penas en él establecidas”.29
identificada “no sólo con las dicotomías Portanto, tratando-se de um modelo ideal,
saber/poder, hecho/valor, o cognición/decisión, não existe nenhum Estado de Direito puro, ple-
sino también con el carácter condicionado o namente acabado, como hortus clausus:30 “o
incondicionado, o bien limitado o ilimitado, del estado de direito não passa de uma barreira a
poder punitivo”.27 represar o estado de polícia que invariavelmen-
te sobrevive em seu interior”.31 Leciona Luigi
Ferrajoli que entre os dois extremos se configu-
25 Comparar: ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al.
Direito penal brasileiro., pp. 94 e 96 e FERRAJOLI, Luigi.
Derecho y razón, pp. 33-45 bem como CIRINO DOS SAN- 28 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 104.
TOS, Juarez. Teoria da pena. Fundamentos políticos e apli- 29 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 104.
cação judicial, p. 15. 30 BATISTA, Nilo. “A criminalização da advocacia”. In:
26 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et. al. Direito penal Revista de estudos criminais. !TEC/PUC-RS, nº 20, p. 86.
brasileiro, p. 41. 31 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et al. Direito penal
27 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 103. brasileiro, p. 41.

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

ram sistemas variáveis, “hasta el punto de que Constituição Federal de 1988 projetou uma
deberá hablarse más propiamente, a propósito ingerência penal em várias esferas do direito,
de las instituciones y ordenamientos concretos, a partir da compreensão da capacidade da
de tendencia al derecho penal mínimo o de ten- tutela penal na resolução de conflitos. Nessa
dencia al derecho penal máximo”.32 perspectiva, explica Salo de Carvalho, o texto
Desse modo, o estabelecimento e a con- constitucional fundou um sistema criminaliza-
cretização de princípios e regras que possuem dor, alicerçando um modelo penal programáti-
como função a contenção e a redução do direi- co que o autor denominou Constituição Penal
to penal é um componente dialético indispen- dirigente, cujo efeito é combinar os mais diver-
sável à subsistência e ao progresso do Estado sos projetos políticos que, sob a retórica da
de Direito.33 implementação do Estado Democrático de
A Constituição da República de 1988 con- Direito, na verdade, opta pela edificação de um
sagra rigorosamente a tutela dos cidadãos Estado Penal como alternativa ao inexistente
frente ao arbítrio punitivo, conforme o modelo Estado Social.35
garantista do Estado de Direito, segundo o Sob essa ótica, a paranóia punitiva
qual “no se admite ninguna imposición de pena orquestrada pelas campanhas de Lei e Ordem
sin que se produzcan la comisión de un delito, dos meios de comunicação, com a guarida
su previsión por la ley como delito, la necesidad constitucional (e, obviamente, extrapolando
seus limites), passou a influenciar sobremanei-
de su prohibición y punición sus efectos lesivos
ra a produção legislativa brasileira a instituir
para terceros, el carácter exterior o material de
la acción criminosa, la imputabilidad y la culpa-
bilidad de su autor y, además, su prueba empí- 35 CARVALHO, Salo de. As feridas narcísicas do Direito
rica llevada por una acusación ante un juez Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do
controle penal na sociedade contemporânea. In: GAUER,
imparcial en un proceso público y contradicto- Ruth M. Chittó. A qualidade do tempo: para além das
rio con la defensa y mediante procedimientos aparências históricas, pp. 194-195. Observa Salo que “a
legalmente preestablecidos”.34 Constituição Federal de 1988 (a) recepcionou anseios
punitivos no que tange à tutela dos direitos sociais e tran-
Por outro lado, concomitantemente a essa sindividuais – v.g. a minimização de garantias proces-
fixação dos limites ao poder repressivo do suais em relação aos delitos de discriminação racial; a res-
Estado (contenção do Estado de Polícia), a ponsabilização penal nos atos praticados contra a ordem
econômica e financeira e contra a economia popular, a
tutela penal do meio ambiente, et coetera; e (b) captou
projetos de recrudescimento operados por movimentos
32 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 104. político-criminais autoritários (Movimentos de Lei e
33 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et al. Direito penal Ordem) – v.g. o projeto de elaboração da Lei dos Crimes
brasileiro, p. 41. Hediondos, a constrição de direitos nos casos de tráfico
34 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, pp. 103-104. ilícito de entorpecentes et coetera.”

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

várias figuras de responsabilidade penal36 à nos níveis normativos inferiores, gerando uma
custa do enfraquecimento das garantias bali- ineficiência tendencial dos primeiros e uma ile-
zadoras do poder punitivo, também consagra- gitimidade tendencial dos segundos.37
das no texto constitucional. Contudo, a afirmação procede apenas em
De acordo com Luigi Ferrajoli, no ordena- parte, pois nossa realidade denota que a pró-
mento dos modernos Estados de Direito, carac- pria Constituição, ao mesmo tempo em que ins-
tituiu os necessários limites ao arbítrio puniti-
terizados pela distinção de vários níveis norma-
vo, exigiu “da estrutura liberal (genealógica) do
tivos, é constatada a coexistência dos modelos
direito penal algo que dificilmente terá capaci-
garantista e autoritário. O primeiro paradigma dade resolutiva, projetando severos índices de
seria verificado nos níveis normativos superio- ineficácia. Desde esta perspectiva, pode-se afir-
res, enquanto o segundo pode ser observado mar a existência de uma ‘Constituição Penal,
idealizadora/instrumentalizadora de um Estado
36 Alguns desses diplomas legais são citados por JOSÉ A. Penal, plenamente realizada”.38
PAGANELLA BOSCHI, como “(...) a Lei 8.072/90, que veio Constata-se, assim, que a adoção das
a proibir a progressão nos regimes instituída pela Lei campanhas de Lei e Ordem, estimuladas pelo
6.416/77; a Lei 9.034/95, autorizando o juiz a realizar
investigações e julgamentos em procedimentos secretos, furor punitivo midiático, instigando e aprovei-
colocando-nos de volta à inquisição e ao sistema inquisiti- tando-se da faceta penal(izadora) da
vo da Idade Média; a Lei 7.960/89, autorizando a prisão Constituição (vg. art. 5º, XLIII, CR/88), tem
para investigar, em contraste com o princípio de que pri-
meiro investiga-se e, só depois, comprovada a autoria e gerado nefastos resultados contra os institu-
existência do crime, é que, por ordem judicial pode-se tos garantistas ante a promoção de políticas
prender...; a Lei 9.437/97, sancionado, com duras penas, a criminais voltadas a um sensível aumento da
posse e o porte da arma de fogo [Já revogada pela Lei
nº10.826/03, o Estatuto do Desarmamento, porém man-
tendo a mesma substância da anterior]; a Lei 9.099/95,
definido os crimes de menor potencial ofensivo e, desse 37 Afirma Luigi Ferrajoli que “la tendencia hacia el derecho
modo, trazendo, de volta para o sistema penal, a grande penal máximo en los planos más bajos de nuestros ordena-
clientela constituída pela população mais pobre, que dele mientos ha crecido recientemente, además de por el desar-
vinha se alforriando com base no princípio da bagatela; o rollo de un derecho penal de excepción, también por un
novo Código de Trânsito e a fantástica gama de proibi- masivo incremento cuantitativo de la intervención penal,
ções, ensejando multas e mais multas, como se o Direito llamada demasiado a menudo a suplir la carencia de ins-
penal pudesse atuar como instrumento arrecadatório, trumentos de tutela y de control político y administrativo
dentre outros diplomas legais” (BOSCHI, José A. más apropiados” (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, pp.
Paganella. “Violência e criminalidade: o resgate do pacto 104 e 115).
federativo como proposta de solução”. In: Revista de 38 CARVALHO, Salo de. As feridas narcísicas do Direito
estudos criminais. !TEC/PUC-RS, nº 12, p. 160). Entre as Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do
recentes reformas merece destaque a instituição do controle penal na sociedade contemporânea. In: GAUER,
Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que alterou – Ruth M. Chittó. A qualidade do tempo: para além das
para bem pior – a Lei de Execuções Penais. aparências históricas, p. 196.

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Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

criminalização primária (criação de leis parece chegar ao definitivo quando afirma que
penais), acompanhado do endurecimento das “os maiores perigos do crime nas sociedades
penas, da restrição dos direitos da execução modernas não vêm dos próprios crimes, mas do
penal e de uma notória diminuição das garan- fato de que a luta contra eles pode levar a gover-
tias processuais. Leciona Salo de Carvalho nos totalitários”.41
que “com a proliferação dos discursos maximi- Diante do quadro apresentado, há que se
zadores e a ‘natural’ invasão desta retórica nas resistir desde as possibilidades dos respecti-
esferas jurídica e política, tem-se, tragicamen- vos locais de fala ocupados. E, desde logo, sem
te, a ineficácia da Constituição garantista em pretender qualquer solução definitiva, é chega-
detrimento da plena efetividade da Consti- do o tempo de reconhecer (sem narcisismos) o
tuição penal(izadora)”.39 papel do Processo Penal como efetivo instru-
Depreende-se daí a consagração das mento a serviço da democracia (ou seja, como
medidas punitivas promocionais vendidas limite democrático). Nessa empreitada, as
como a panacéia de todos os males sociais e importantes lições de François Ost: “enquanto
que promovem (ideologicamente) a idéia o totalitarismo erradica o conflito e reduz toda a
absurda idéia de que por esse viés seria alcan- espécie de oposição, a democracia, pelo contrá-
çada a tão almejada convivência social pacífi- rio, baseia-se no pluralismo de opiniões e na sua
ca, mas que na verdade só têm causado retro- oposição conflitual. Doravante, a sociedade não
cesso na busca dos referenciais democráticos é totalizável, nem representável de forma orgâ-
do Estado de Direito.40 Assim, Nils Christie nica; o seu bem comum já não susceptível de ser
definido a priori, nem sem dissenção. A demo-
cracia é esse regime que, sem dúvida pela pri-
39 CARVALHO, Salo de. As feridas narcísicas do Direito meira vez na história, não se propõe eliminar os
Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do
controle penal na sociedade contemporânea. In: GAUER,
conflitos; pelo contrário, ela torna-os visíveis
Ruth M. Chittó. A qualidade do tempo: para além das instituindo a divisão social – esforçando-se ape-
aparências históricas, p. 197. nas por lhes garantir um desfecho negociável
40 Baseada na definição legal de publicidade abusiva do
Código de Defesa do Consumidor (art. 37, §§ 1º, 2º e 3º,
com a ajuda dos procedimentos aceites. A deli-
do CDC) e da tipificação deste tipo de conduta (art. 67 do beração é, pois, o seu princípio, que nenhuma
CDC), Maria Lúcia Karam chega à seguinte conclusão: conclusão vem a fechar. Nunca há uma conclu-
“Esta criminalização da publicidade enganosa ou abusiva
encerra um irônico paradoxo: na verdade, a mais eficaz e
são, mas sempre uma decisão, pois é preciso
perversa venda de um produto, através da omissão de
dados essenciais e da divulgação de informações, inteira
ou parcialmente falsas, capazes de induzir em erro a medo, é, exatamente, a “venda” do sistema penal”
respeito da natureza, características, qualidades, origens, (KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias, p. 196).
propriedades, etc., ou de incitar a violência e explorar o 41 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime, p. 05.

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Alexandre Morais da Rosa e
Sylvio Lourenço da Silveira Filho

decidir, mesmo em situação de indecidibilidade. Capítulo 4


O princípio de maioria revela esse paradoxo que
testemunha o facto de nos acomodarmos a um
O Processo Penal como Limite
acordo apenas parcial – e de resto muitas vezes Democrático: A Contribuição
revisível – sobre uma verdade aproximada”. 42 de Elio Fazzalari

4.1. Para Começar a Conversa

O lugar e a função do processo no Brasil


ainda se encontra manietado por uma concep-
ção ultrapassada, solo fértil para a aceitação a-
crítica dos modelos totalizadores do Direito
Penal antes apresentados. Talvez possa o
Processo Penal Democrático se constituir como
um verdadeiro “limite democrático”. Buscando
dialogar com a obra de Elio Fazzalari, neste
texto, são trazidos aportes de outros discursos
na pretensão de tornar o processo penal brasi-
leiro uma tarefa democrática inafastável.
Rompendo com os “escopos” hegemônicos,
aponta-se para uma nova maneira de o enten-
der, no qual o contraditório passa a ser a pedra
de toque.
As reflexões que seguem, pois, estão por
aí, abertas ao diálogo daqueles que se encon-
tram, de certa forma, incomodados pela manei-
ra exclusivamente “metodológica” – com fun-
damento ideológico – do processo. Apesar de o
processo dialogar com outros condicionantes, o
lugar democrático que ocupa é de fundamental
42 OST, François. O tempo do direito, p. 333. importância, juntamente com o critério ético

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

(Dussel1), uma vez que são as duas únicas pos- las envolvendo o conceito, acordando com
sibilidades democráticas, consoante trabalha- Chiovenda que a Jurisdição “é o poder de apli-
do alhures.2 car a lei aos casos concretos de forma vinculan-
te e cogente”,5 materializada pela coisa julga-
4.2. Articulando Jurisdição, Ação e da.6 O desenlace desse poder, ou melhor, sua
Processo constituição, já foi alinhavado na formação do
Simbólico, no discurso do Outro, a partir da
interface com a psicanálise.7 A Jurisdição,
Não se pretende reconstruir as discus-
assim, está ligada indissociavelmente ao po-
sões sobre Jurisdição, Ação e Processo. A idéia
der.8 De qualquer forma, na perspectiva de se
deste momento é reiterar noções absolutamen-
construir a alteridade (Dussel), a Jurisdição pre-
te necessárias ao encadeamento da compreen-
cisa se aproximar de La Boétie e sua proposta
são de processo como tarefa democrática ina-
de amizade. Lido a partir da psicanálise, o sub-
fastável. Esta compreensão, por sua vez, não
metimento à Jurisdição decorre do desejo de
se aproxima, em nada, da rançosa visão expli-
onipotência, de tirania, que aviva em cada indi-
cada a partir de uma impossível Teoria Geral
víduo.9 Roman Borges sustenta que se “pode
do Processo. Aliás, de causar náuseas.3 É pre-
concluir com La Boétie que o poder de um só
ciso superar Dinamarco, pelo menos, em favor
de Fazzalari.
Cumpre anotar, entretanto, que as discus- 5 ROMAN BORGES, Clara Maria. Jurisdição e amizade, um
sões sobre o conceito de Jurisdição são ainda resgate do pensamento de Etienne La Boétie. In: MIRAN-
DA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à teoria geral
vivas.4 Roman Borges faz o histórico das quere- do direito processual penal, p. 73-108.
6 CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de direito processual
civil. Trad. J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva,
1 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globali- 1965. v. 2.
zação e da exclusão. Trad. Epharaim Ferreira Alves, Jaime 7 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage
A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002. de significantes...
2 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage 8 BINDER, Alberto M. Introducción ao Derecho Penal, pp.
de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 17-32.
3 LOPES JR, Aury. Prefácio. In: COSTA, Ana Paula Motta. 9 LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntá-
As Garantias processuais e o direito penal juvenil como ria, p. 29: “Os audaciosos, para adquirir o bem que dese-
limite na aplicação da medida socioeducativa de interna- jam, não temem o perigo; os prudentes não recusam o
ção, p. 17. sacrifício; os covardes e entorpecidos não sabem nem
4 TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal, suportar o mal, nem recobrar o bem: limitam-se a desejá-
p. 20; MARTINS, Nelson Juliano Schaefer. Poderes do juiz lo e a virtude de pretendê-lo lhes é tirada pela covardia; o
no processo civil, pp. 19-87. FAZZALARI, Elio. Il cammino desejo de obtê-lo lhes é de natureza. Este desejo, esta von-
della sentenza e della cosa guidicata. In: Rivista di Diritto tade é comum aos sensatos e aos irrefletidos, aos corajosos
processuale. Padova: Cedam, 1988, v. XLIII, n. 5, (II série), e aos covardes, de querer todas as coisas que, uma vez
pp. 589-597. adquiridas, os tornariam felizes e contentes.”

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

sobre os outros foi dado ao tirano por nosso dese- como companheiros, ou antes, como irmãos. (...)
jo de sermos tiranos também. Além disso, o Para que cada qual pudesse mirar-se e como que
autor acrescenta que esse desejo de ser tirano reconhecer-se um no outro.”14 Miranda Couti-
vem do desejo de ser proprietário, de ter bens e nho lembra que: “Etienne de La Boétie tinha
riquezas e, portanto, do desprezo que temos pela razão: obedecemos a vontade de um porque que-
liberdade.”10 Então, o argumento de La Boétie remos ser que nem ele, ou seja, tiranos. Rei
de que não existe fundamento em se submeter morto, rei posto: e viva o Rei! Bastaria, contudo,
incondicionalmente a um senhor, sem garantias diz o próprio La Boétie, não dar o que ele quer
de que será bom ou mau,11 por não possuir limi- para a casa vir abaixo, ou seja, não dar a ele
tes, pode ser explicado. Não se trata de encan- nossa razão (que é só imagens) e nossa liberda-
tamento ou de feitiço, mas de desejo de ser de, isto é, nosso desejo de posse e poder.”15 A
igual (onipotente), esperando que, no futuro, partir deste reconhecimento entre iguais, a ‘ser-
detenha-se (todo) o poder12 (Pai da Horda). Sua vidão voluntária’ deixaria de ter fundamento, já
perplexidade diante da ‘servidão voluntária’, que ela foi construída. Ao invés de ser naturali-
naturalizada – introjetada – e perseguida pela zada,16 deve-se resgatar o fundamento de liber-
população, na lógica do poder e do senhor,
impõe uma postura diversa frente ao poder da para que façam o melhor que souberem fazer, que é levá-las
opressão, rompendo com a base de servidão,13 às guerras, que as conduza à carnificina, que as faça minis-
tros de sua cobiça e executoras de suas vinganças; sacrifi-
ou seja: “Nos reconheçamos uns aos outros cais vossas pessoas, para que ele possa desfrutar de suas
delícias e chafurdar nos prazeres sujos e vis; enfraqueceis-
vos, para torná-lo mais forte e rígido ao encurtar-vos as
10 ROMAN BORGES, Clara Maria. Jurisdição e amizade, um rédeas; e tantas indignidades, que os próprios animais ou
resgate do pensamento de Etienne La Boétie. In: MIRAN- não as sentiriam ou não as suportariam, podeis livrar-vos, se
DA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à teoria geral o tentardes, não de livrar-vos, mas apenas de desejar fazê-lo.
do direito processual penal, p. 101. Sede resolutos em não servir mais e eis-vos livres. Não quero
11 LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntá- que o empurreis ou abaleis, mas apenas que não o sustenteis
ria, p. 25: “Mas falando em sã consciência, é extrema infe- mais e o vereis, qual grande colosso a quem se tirou a base,
licidade estar sujeito a um senhor, do qual jamais se sabe desfazer-se debaixo do próprio peso e romper-se”.
se pode assegurar se é bom, pois está sempre em seu poder 14 LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntá-
ser mau, quando o quiser.” ria, p. 31.
12 LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntá- 15 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Ensino do
ria, p. 26: “Mas é de lamentar a servidão, ou então, não se Direito na UFPR: Voto à Esperança. In: Revista da
surpreender, nem se lamentar, mas suportar o mal pacien- Faculdade de Direito da UFPR, n. 36, p. 143.
temente e esperar melhor sorte no futuro.” 16 LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntá-
13 LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntá- ria, p. 37: “Digamos, portanto, que ao homem todas as coi-
ria, p. 30: “Semeais vossos frutos, para que deles faça sas parecem naturais, nas quais é criado e nas quais se
estrago; mobiliais e supris vossas casas, para fornecer- habitua, mas isso só o torna ingênuo, naquilo que a natu-
lhe as pilhagens; alimentais vossas filhas, para que ele te- reza simples inalterada o chama; assim, a primeira razão
nha com que saciar sua luxúria; alimentais vossas crianças, da servidão voluntária é o costume.”

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

dade e a obrigação de a defender, precisando- significante da conduta imputada, acolhida por


se, de qualquer maneira, desalienar os sujeitos, decisão fundamentada, a partir de uma visão
porque “do gosto da liberdade, de como é doce, de verdade processual decorrente de num pro-
nada sabes.”17 Roman Borges conclui: “Com cesso em contraditório e acusatório.
isso, La Boétie quis dizer que a única forma de se Apesar de o Direito Penal ainda trabalhar,
derrubar a tirania é não consentir com a servi- na sua visão hegemônica, sob a denominação
dão, não dar o tirano mais do que lhe é devi- de processo como algo mais que procedimento,
do.”18 Este conteúdo da Jurisdição com amiza- grosso modo, a maneira pela qual o processo
de (La Boétie), portanto, se constitui como con- caminha, na linha do legado de Liebman, este
dição de possibilidade da instrumentalização escrito desloca a compreensão para a proposta
da ‘Ética da Libertação’ (Dussel) no âmbito do de Fazzalari e, ao depois, conjuga, em certa me-
Direito Penal. dida, a teoria do discurso de Habermas para,
Por outra parte, não é possível, aqui, tam- então, situando o local democrático do juiz no
bém, retomar o questionamento sobre a ação,19 Processo Penal, eminentemente acusatório. Com
bem como impossível se adentrar no exame de efeito, a concepção de processo manejada pelo
sua autonomia em face do direito (dito) objeti- senso comum teórico dos juristas é a de entender
vo, reconhecendo-se, contudo, sua densidade.20 o processo como um conjunto de atos preordena-
Por isso se avança, de logo, no Processo, cuja dos a um fim, ou seja, a atividade exercida pelo
função será o acertamento do ‘caso penal’:21 juiz no exercício da Jurisdição, sendo o procedi-
cometida a conduta imputada, a pena somente mento seu aspecto puramente formal, o rito a
será executada a partir de uma decisão jurisdi- ser impresso.22 O processo, assim, acaba se
cional, presa a um pressuposto: a reconstituição burocratizando em formas, modelos e ritos, mui-
tas vezes tido como acessório do Direito Penal,
redundando em flagrantes equívocos. Dizer que
17 LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntá- o Processo Penal possui um papel acessório, de
ria, p. 36.
18 ROMAN BORGES, Clara Maria. Jurisdição e amizade, um
fazer acontecer a lei, na lição de Binder,23 é insu-
resgate do pensamento de Etienne La Boétie. In: MIRAN- ficiente e superficial, dado que o que se denomi-
DA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à teoria geral
do direito processual penal, p. 102.
19 TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal, 22 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal, p. 27. No
pp. 57-156. mesmo sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.
20 CAMARGO, Acir Bueno de. Windscheid e o rompimento Manual de processo penal. p. 479; VILAS BOAS, Marco
com a fórmula de Celso. In: MIRANDA COUTINHO, Antonio. Processo penal completo, p. 401; ROCHA, José
Jacinto Nelson. Crítica à teoria geral do direito processual de Albuquerque. Teoria geral do processo, p. 223; PORTA-
penal, pp. 111-144. NOVA, Rui. Princípios do processo civil, p. 144.
21 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o con- 23 BINDER, Alberto M. Iniciación al proceso penal acusato-
teúdo do processo penal, p. 137. rio, p. 11.

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

na de “tipo” possui reflexos inexoráveis na com- preensão de processo, já apontada por Corde-
preensão da norma processual, não se podendo ro,26 dado que o processo na contemporânea
falar em plena autonomia, havendo, ao contrá- configuração da relação jurídica, segundo
rio, uma ‘estrecha relación’ entre o “tipo” e o Fazzalari,27 é o procedimento em contraditório.
Processual Penal, até porque a atribuição de Até porque existem outros processos, como o
sentido é realizada num ambiente hermenêutico tributário, administrativo, nem sempre em con-
desprovido de metalinguagem salvadora (Lenio traditório. O contraditório é, pois, a característi-
Streck). A política criminal24 apresenta-se, tam- ca que diferencia o processo do procedimento.28
bém, como fator necessário à interpretação das Com efeito, a legitimidade na imposição de atos
normas processuais, uma vez que sempre é de cogentes, decorrentes do poder de império,
um ‘ser-aí’ (Heidegger), inserido no mundo da com conseqüências no âmbito dos jurisdiciona-
vida. Apesar de o conhecimento das formas pro- dos e, no caso do Processo Penal, dos acusados,
cessuais ser importante, o isolamento formal faz precisa atender aos princípios e regras previs-
desaparecer a estrutura democrática – eminen- tos no ordenamento jurídico de forma taxativa.
temente acusatória – do Processo Penal.25 É pre- As regras do jogo democrático devem ser
ciso mais, invertendo-se, por primeiro, a própria
garantidas de maneira crítica29 e constituciona-
compreensão de processo.
lizada, até porque com ‘Direito Fundamental’ (e
as normas processuais o são), não se transige,
4.3. Processo como Procedimento não se negocia, defende-se, deixou assentado
em Contraditório: a sua Ferrajoli. Dito de outra forma, as regras do jogo
Marca Fundamental devem ser constantemente interpretadas a par-

A visão prevalente, a la Dinamarco,


26 CORDERO, Franco. Procedimento Penal, pp. 328-337.
demonstra o desconhecimento da atual com- 27 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, pp. 85-86.
28 Neste sentido: GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica pro-
cessual e teoria do processo, pp. 102-132; CATTONI,
24 BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte:
Acusatorio, p. 26: “Sin embargo, algunas de las decisiones Mandamentos, 2002; LEAL, André Cordeiro. O contradi-
fundamentales – como el respeto a la dignidad humana, la tório e a fundamentação das decisões. Belo Horizonte:
transformación de la sociedad, la preservación de la verda- Mandamentos, 2002; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria pro-
dera igualdad y de la justicia social, etc. – están implícitas cessual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
en el texto. Empero, es importante que el estudioso inicie 29 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à teo-
un camino de reflexión y crítica personal, orientado a un ria geral do direito processual penal, p. 6-9: “A crítica
modelo proprio de Política Criminal, que lo tenga siempre honesta, sabem todos por ser primário, só pode ser reco-
presente y que aprenda a luchar por él.” nhecida quando partida de alguém que está inserido no
25 BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusa- contexto. Daí a necessidade de verificar o papel do juiz no
torio, p. 31. processo penal dentro da doutrina clássica.”

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Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

tir da matriz de validade Garantista,30 não se mais de um poder sobre a conduta da parte
podendo aplicar cegamente as normas do adversa ou mesmo de prestação, senão sobre os
Código de Processo Penal, sem que se proceda efeitos processuais da norma.34 Os atos proces-
antes e necessariamente, uma oxigenação cons- suais lícitos se mostram como poderes decor-
titucional.31 Neste caminhar procedimental, rentes do exercício da vontade, regulados por
preparatório ao ato de império, a existência efe- normas processuais, perante as quais o sujeito
tiva de contraditório consiste em sua caracterís- possui o poder de agir (confissão judicial), a
tica fundamental.32 Assim é que a teoria do pro- faculdade (arrolar testemunhas) e o ônus, (no
cesso precisa ser revista, a partir do contraditó- caso da imposição de conseqüências pelo des-
rio, implicando na modificação da compreensão cumprimento da norma). A faculdade e o poder
de diversos institutos processuais vigorantes podem, também, gerar circunstâncias desfavo-
na prática processual brasileira.
ráveis ao sujeito caso não exercidas a tempo e
Em relação ao direito subjetivo, Fazzalari
modo. O procedimento se desenvolve a partir
propõe que este seja entendido a partir da rela-
de atos jurídicos lícitos, componentes do desen-
ção entre o sujeito e o objeto do comportamen-
rolar procedimental até a decisão final, mas não
to indicado pela norma jurídica, o qual o coloca
numa compreensão de oposição aos atos ilíci-
numa posição de vantagem pelo exercício de
uma faculdade ou de um poder.33 Não se trata tos.35 Destarte, até a decisão final, o procedi-

30 ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e con- fondamentale, di secondo grado: il diritto soggettivo. Così,
trole de constitucionalidade material. Rio de Janeiro: la norma che concede al soggetto una facoltà, o un potere,
Lumen Juris, 2006. constituisce in capo a lui una posizione di preminenza
31 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de (così, il potere può indicarsi e viene indicato anche come
constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, diritto potestativo. Non altrimenti, la norma che impone
1995; SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional. ad un soggeto il dovere di prestare alcunché ad un altro
Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999. soggeto conferisce a quest’ultimo una posizione di premi-
32 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 115: “Há nenza sull’oggeto della prestazione, dunque un diritto
processo sempre onde houver o procedimento realizando-se soggetivo (si pensi al diritto di credito: la posizione di chi
em contraditório entre os interessados, e a essência deste è destinatario dell’altri obbligo di prestare). Del diritto
está na ‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que soggettivo che – a differenza di quello costituito dal dove-
preparam o provimento, daqueles que nele são interessados re di uno (o più) soggeti: perciò indicato come relativo – è
porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos.” realizzato daí doveri di tuttii i consociati (excluso il titola-
33 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, p. 51: re del diritto) ed è detto perciò assoluto, nonchè del dirit-
“Delle posizioni soggettive primarie (facoltà, potere, dove- to soggetivo reale.”
re) abbiamo fatto cenno. Mediante un altro passaggio logi- 34 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 106: “Se
co, cioè collegando l’oggeto del comportamento descritto da norma decorre uma faculdade ou um poder, para o sujei-
dalla norma al soggetto al quale essa, con la propria valu- to, sua posição de vantagem incide sobre o objeto daquela
tazione, assicura una posizione di preminenza (in ordine a faculdade ou daquele poder que a norma lhe conferiu.”
quell’oggeto, appunto), si perviene ad un’altra posizione 35 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 107.

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Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

mento, apesar de guardar uma unidade, deve rias, salvo nulidade, passível de ser discutida,
ser visto como uma sucessão de atos jurídicos inclusive em sede de Habeas Corpus. Desta
determinados por normas processuais que feita, a legitimidade do provimento judicial
regulamentam a maneira pela qual se dará a dependerá do desenrolar correto dos atos e
seqüência de atos e posições jurídicas: “O pro- posições subjetivas previstos em lei. E a perfei-
cedimento não é atividade que se esgota no ta observância dos atos e posições subjetivas
cumprimento de um único ato, mas requer toda dos atos antecedentes é condição de possibili-
uma série de atos e uma série de normas que os dade à validade dos subseqüentes. Logo, a
disciplinam, em conexão entre elas, regendo a mácula procedimental ocorrida no início do pro-
seqüência de seu desenvolvimento. Por isso se cesso contamina os demais, os quais para sua
fala em procedimento como seqüência de nor- validade precisam guardar referência com os
mas, de atos e de posições subjetivas.”.36 É a anteriores.41 O ato praticado em desconformi-
perfeita vinculação das etapas antecedentes dade com a estrutura do procedimento é inser-
que legitima o procedimento37 como condição vível à finalidade a que se destina.42 A decisão
preparatória ao provimento final,38 consoante final, preparada pelo procedimento, também se
aponta Cordero: “El antecedente inválido conta- constitui como uma parte deste, ou melhor, sua
mina a los siguientes.”39 A posição subjetiva é o parte final, o corolário. Assim é que Fazzalari
vínculo do sujeito para com a norma, a qual lhe sintetiza: “L’essenza stessa del contraddittorio
valora suas manifestações de vontade como esige che vi partecipino almeno due soggeti, un
lícitas, facultadas ou devidas, com as conse- interessado e un controinteressato: sull’uno dei
qüências daí advindas,40 verificando-se a ocor- quali l’atto finale è destinato a svolgere effetti
rência de preclusão das decisões interlocutó- facorevoli e sull’atro effetti pregiudizievoli.”43
Então, invertendo-se a lógica do senso
comum teórico dos juristas, o processo é um
36 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 108. procedimento realizado por meio do contraditó-
37 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, pp.
77-78.
rio e, especificamente no Processo Penal, entre
38 BREDA, Antonio Acir. Efeitos da declaração de nulidade no
processo penal. In: Revista do Ministério Público do Estado
do Paraná, n. 9, p. 184: “É que a declaração de nulidade 41 BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas pro-
exige a regressão do procedimento ao momento processual cessuais: elementos para uma crítica da teoria unitária
em que foi o ato nulo praticado. Daí por diante, todos os das nulidades no processo penal. Trad. Angela Nogueira
demais atos processuais são atingidos pela nulidade.” Pessoa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
39 CORDERO, Franco. Procedimento Penal, p. 328. 42 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 111:
40 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 109: “O ato praticado fora dessa estrutura, sem a observância
“Posição subjetiva é a posição de sujeitos perante a de seu pressuposto, não pode ser por ela acolhido valida-
norma, que valora suas condutas como lícitas, facultadas mente, porque não pode ser nela inserido.”
ou devidas.” 43 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, p. 85.

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Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

o Ministério Público44 e/ou querelante, e efeti- va participação daqueles que sofrerão os efei-
va presença do acusado com defesa técnica. tos do provimento final, apurando-se o melhor
Por isso a necessidade de se entender o exercí- argumento em face do Direito e do ‘caso penal’,
cio da Jurisdição a partir da estrutura do pro- na via intersubjetiva, sem perder de vista o cri-
cesso como procedimento em contraditório, com tério ético material (Dussel).
significativas modificações na maneira pela
qual ele se instaura e se desenrola, especial-
mente no tocante ao princípio do contraditório
4.4. O Novo Papel do Juiz no
e o papel do juiz na condução do feito.45 Neste Procedimento em Contraditório
pensar, o contraditório precisa ser revisitado,
uma vez que não significa apenas ouvir as ale- A figura do juiz, desde o ponto de vista de
gações das partes, mas a efetiva participação, sujeito do processo, demonstra que sua partici-
com paridade de armas, sem a existência de pação não é de mero autômato, mas está vincu-
privilégios, estabelecendo-se uma comunica- lada às decisões proferidas no curso do proce-
ção entre os envolvidos, mediada pelo Esta- dimento e no seu final, no exercício de sua fun-
do.46 Rompe-se, outrossim, com a visão de que ção jurisdicional,47 sem olvidar os princípios
a simples participação dos sujeitos (juiz, auxi-
informadores de sua atuação, mormente se
liares, ministério público, acusado, defensor)
adotada a matriz eminentemente acusatória.
do processo possa conferir ao ato o status de
contraditório. É preciso mais. É preciso a efeti- Assim é que apesar dessa participação – sujei-
to do processo –, não se pode confundir a fun-
ção do juiz com a das partes, eis que não assu-
44 LOPES JR, Aury. Prefácio. In: COSTA, Ana Paula Motta. me a condição de contraditor, a qual é exercida
As garantias processuais e o direito penal juvenil como
limite na aplicação da medida socioeducativa de interna- pelos interessados, mas de terceiro, responsá-
ção., p. 18: “Basta recordar as lições de Guarnieri: acredi- vel, todavia, pela sua regularidade na produção
tar na imparcialidade do Ministério Público é incidir no
erro de confiar al lobo la mehor defensa del cordero.” dos significantes probatórios. Sua função é
45 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 126. também a de expedir, em nome do Estado, o
46 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, p. 120:
provimento com força imperativa, atendido o
“A conotação citada como uma aproximação do conceito
atual de contraditório explica-se, pois ele exige mais do devido processo legal,48 levando em considera-
que a audiência da parte, mais do que o direito das partes
de se fazerem ouvir. Hoje, seu conceito evoluiu para o de
garantia de participação das partes, no sentido em que já
falava VON JHERING, em simétrica paridade de armas, 47 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, pp.
no sentido de justiça interna no processo, de justiça no 85-86.
processo, quando as mesmas oportunidades são distribuí- 48 CADEMARTORI, Sergio. Estado de direito e legitimidade.
das com igualdade às partes.” Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

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ção os argumentos construídos no procedimen- quação do processo às finalidades do Estado


to, em decisão motivada, mesmo.49 do Bem Estar Social. Para tanto, Dinamarco
A exteriorização do princípio do contradi- revisita a teoria processual para a adaptar aos
tório, na proposta de Fazzalari, se dá em dois resultados exigidos pela população, mediante
momentos. Primeiro com a informazione, con- a otimização do sistema rumo à efetividade do
sistente no dever de informação para que pos- processo.51 Partindo da autonomia do Direito
sam ser exercidas as posições jurídicas em face Processual, Dinamarco indica a necessidade
das normas processuais e, num segundo de, a partir da razão, ter-se a consciência da
momento, a reazione, manifestada pela possi- instrumentalidade do processo em face da con-
bilidade de movimento processual, sem que se juntura social e política do seu tempo, deman-
constitua, todavia, em obrigação.50 Logo, no dando um “aspecto ético do processo, sua cono-
caso do Processo Penal, o contraditório precisa tação deontológica.”52 Esse chamado exige
guardar igualdade de oportunidades, exigindo, que o juiz tenha os predicados de um homem
assim, a revisão de diversas regras do Código do seu tempo, imbuído em reduzir as desigual-
de Processo Penal brasileiro, mormente no dades sociais e cumprir os postulados proces-
tocante à gestão da prova e ao (dito) objeto do suais constitucionais, vinculando-se aos valo-
processo, deixando-se evidenciada qual a con- res constitucionais, em especial o valor Justiça.
duta a ser verificada, via denúncia/queixa A proposta está baseada nas modificações do
apta, os meios para sua configuração e as posi- Estado Liberal rumo ao Estado Social53, mas
ções processuais de cada envolvido, no que a vinculada a uma posição especial do juiz no
epistemologia garantista (Ferrajoli) se associa. contexto democrático, dando-lhe poderes
Acrescente-se, de outro lado, que o senso sobre-humanos,54 na linha de realização dos
comum teórico dos juristas pretende uma ade-

51 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do


49 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, pp. 121- processo, p. 13: “É preciso, em outras palavras, retornar à
122: “O juiz, perante os interesses em jogo, é terceiro, e dogmática processual, agora com o espírito esclarecido
deve ter essa posição para poder comparecer como sujeito pela visão dos objetivos a conquistar.”
de atos de um determinado processo e como autor do pro- 52 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do
vimento. Essa é uma garantia das partes, que se expressa processo, pp. 22-26.
tanto pelo princípio do juízo natural, e não pós-constituí- 53 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do
do, tanto pelas normas que controlam a competência do processo, pp. 34-35.
juiz. Investido dos deveres da jurisdição, o juiz não entra 54 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do
no jogo do dizer-e-contra-dizer, não se faz contraditor. processo, pp. 48: “Imbuído dos valores dominantes, o juiz
Seus atos passam pelo controle das partes, na medida em é um intérprete qualificado e legitimado a buscar um
que a lei lhes possibilita insurgir-se contra eles.” deles, a descobrir-lhes o significado e a julgar os casos con-
50 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual, pp. cretos na conformidade dos resultados dessa busca e
126-127. interpretação (...) Cada direito, em concreto (ou cada si-

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‘escopos processuais’, com forte influência da seu tempo, não mais pode ser acolhida demo-
superada Filosofia da Consciência, deslizando craticamente.56
no Imaginário e facilitando o surgimento de Advirta-se, por fim, que a atuação do juiz,
Juízes Justiceiros da Sociedade. Entretanto, no procedimento, não pode ser a de realizar os
este paradigma, informado pelo modelo do anseios sociais, devendo se postar de maneira
Bem-Estar Social e da jurisprudência de valores imparcial, garantindo o equilíbrio contraditório,
não mais se sustenta, como bem afirma ou seja, a verdadeira democracia processual.57
Cattoni,55 mormente em face do paradigma Todavia, no ato decisório, a pretensão haberma-
habermasiano, acolhido de forma parcial neste siana não pode ser acolhida como se mostra.
Evidente que os argumentos formulados pelas
escrito. Não se trata mais de realizar os valores
partes devem ser levados em consideração no
sociais, quer via escopos (Dinamarco) ou essen-
momento da decisão, fundamentando-se as
cialismos dicotômicos, que em certa medida
pretensões de validade, mas não se pode
concedem um conforto Metafísico, mas acolher negar, pela construção até aqui realizada, que
no campo das práticas jurídicas a viragem lin- o um-julgador esteja informado por fatores
güística, cujos efeitos retiram a carga axiológi- externos, condicionantes ideológicos, crimino-
ca do processo. O processo precisa de uma nova lógicos, midiáticos, inconscientes, enfim, subje-
postura. A pretensão de Dinamarco de que o tivos que sempre são co-produtores da decisão,
juiz deve aspirar os anseios sociais ou mesmo o mesmo que obliterados retoricamente. O
espírito das leis, tendo em vista uma vincula- importante é que sua atuação do juiz no decor-
ção axiológica, moralizante do jurídico, com o rer do processo como procedimento em contra-
objetivo de realizar o sentimento de justiça do
56 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual, pp. 68-69:
tuação em que a existência de direito é negada), é sempre “Quando Cândido Dinamarco proclama, ao se contrapor a
resultante da acomodação de uma concreta situação de Fazzalari, que a diferença entre ambos ‘é que o professor
fato nas hipóteses oferecidas pelo ordenamento jurídico: de Roma põe o Processo ao centro do sistema’ enquanto
mediante esse enquadramento e o trabalho de investiga- a proposta é que ‘ali se ponha a jurisdição’, conclui-se
ção do significado dos preceitos abstratos segundo os valo- facilmente que o insigne professor paulista e seus inúme-
res que, no tempo presente, legitimam a disposição, chega- ros discípulos, em todo o Brasil e no mundo, ainda não
se à ‘vontade concreta da lei’, ou seja, ao concreto preceito fizeram opção pelo estudo do direito democrático, pensan-
que o ordenamento dirige ao caso em exame. Por isso é do ser ainda ser o plano da DECISÃO exclusivo do decidi-
que, quando os tribunais interpretam a Constituição ou a dor (juiz) e não um espaço procedimental de argumentos
lei, eles somente canalizam a vontade dominante, ou seja, e fundamentos processualmente assegurados até mesmo
a síntese das opções axiológicas da nação. O comando con- para discutir a legitimidade da força do direito e dos crité-
creto que emitem constitui mera revelação do preexisten- rios jurídicos de sua produção, aplicação e recriação.”
te, sem nada acrescer ao mundo jurídico além da certeza.” 57 RAMOS, João Gualberto Garcez. Audiência processual
55 CATTONI, Marcelo. Direito processual constitucional, p. 12. penal, p. 19

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

ditório não deve pender para a realização ante- mento de feudos decisórios dos magistrados,
cipada de suas opções ideológicas, criminológi- inseridos desde sempre no campo comunica-
cas, sob pena de macular a legitimidade de sua cional e regulados, no caso do Processo Penal,
decisão. É somente na decisão é que elas pelas respectivas normas.
devem aparecer de maneira fundamentada. Conseqüência disso é a assunção de uma
nova postura por parte do juiz, ganhando rele-
4.5. A Validade Discursiva da Decisão vo, por conseguinte, a teoria da decisão judi-
cial. Para tanto, o ponto de partida deve se
A portentosa obra de Habermas, para os constituir na crítica à maneira pela qual o senso
fins desta pesquisa, é acolhida de maneira comum teórico a vende e a massa histérica pelo
pontual, especificamente no tocante ao discur- gozo dos atores jurídicos compra a verdade fun-
so a ser instado intra-processualmente. Como dante prometida apocalipticamente, e entre-
já se afirmou anteriormente, o Direito Proces- gue sob a tutela de uma nova dinastia, ou
sual possui balizas democráticas, não se po- ‘Monastério de Sábios’ – Warat –, os guardiães
dendo mais aceitar a decisão isolada e sem das promessas da modernidade – Garapon61 –,
fundamentação do Juiz, devendo este, neces- em especial a figura do Juiz, do Super-Juiz,
sariamente, considerar as pretensões de vali- sujeito cheio de predicados (serenidade, sabe-
dade enunciadas pelas partes no discurso doria, sapiência, moralidade, hombridade, etc),
comunicativo instaurado. Neste paradigma não um Juiz Hércules, como diria Dworkin. A dis-
há espaço para discricionariedade judicial cussão, portanto, sobre o instituto da decisão
(Hart58), como a interpretação não atende a judicial exsurge fundamental. Conquanto não
uma moldura de possibilidades (Kelsen59). Pelo se acolha o procedimentalismo habermansiano
contrário, a decisão judicial, naquilo que no que se refere à postura do Poder Judiciá-
Habermas evidencia como tensão entre fatici- rio,62 a razão comunicativa mostra-se, no âmbi-
dade e validade,60 exige uma nova postura dos to processual, importante. Para Habermas, o
atores jurídicos embrenhados no processo
(sempre) constitucional e intersubjetivo de atri-
buição de sentido. A autonomia do Direito 61 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião
das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de
Processual não pode significar o estabeleci- Janeiro: Revan, 2001.
62 STRECK, Lenio Luiz. A concretização de direitos e a vali-
dade da tese da Constituição Dirigente em países de
58 HART, Herbert L.A. O conceito de direito pp. 137-168. modernidade tardia. In: NUNES, Antônio José Avelãs;
59 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, pp. 363-371. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (orgs.).
60 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factici- Diálogos constitucionais Brasil/Portugal. pp. 301-371.
dade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de MORAIS DA ROSA, Alexandre. Garantismo jurídico e con-
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1 e 2. trole de constitucionalidade material, pp. 81-91;

82 83
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

poder da razão se fundamenta no processo de A Teoria da Ação Comunicativa parte da


reflexão, ao revés da ciência positivista e a pos- estrutura de que quem argumenta presume
tura cognitivista, sendo necessário o abandono que ela pode ser justificada em quatro níveis:
da objetividade do pensamento monológico. a) o que é dito é inteligível, por regras semân-
Essa teoria implica redefinição do caráter uni- ticas compartilhadas; b) o conteúdo do que é
versal da verdade. Assim é que Habermas pre- dito é verdadeiro; c) o emissor justifica-se por
tende que a teoria crítica cumpra os objetivos certos direitos sociais ou normas que são invo-
de uma sociedade, consistente no fim da coer- cadas no uso do idioma; d) o emissor é sincero
ção e da injustiça pelo estabelecimento de uma no que diz, não tentando enganar o receptor.
autonomia através da razão e harmonia con- Em suma, não pode ser uma comunicação dis-
sensual de interesses por uma administração torcida. O princípio ‘D’ confere à proposta
habermasiana a possibilidade de verificação da
racional da Justiça. Partindo da Teoria da
validade dos argumentos, desde que sejam sus-
Opinião Pública de Habermas, a linguagem é
cetíveis de serem justificados e obtenham o
concebida como a garantia da democracia, ten-
livre assentimento de todos os concernidos na
dente a conseguir acordos consensuais das
condição de participantes – atuais ou poten-
decisões coletivas. Com efeito, o Estado ciais – de um discurso público real, desenvolvi-
Democrático de Direito, na visão procedimenta- do conforme as normas de uma comunidade
lista, seria um projeto constante de acordos ideal de comunicação ou situação ideal da fala,
sobre os melhores argumentos, historicamente entendido este último como princípio ‘U’.65 Na
escolhidos pelos concernidos, em situação teoria da democracia habermasiana não se
ideal da fala.63 Destaca Leal que: “Nesse ponto, trata da escolha promovida pelo juiz,66 em seu
a teoria do processo como procedimento em feudo soberano, alheio e descomprometido
contraditório (Fazzalari) é que nos habilitou sal- com o debate processual argumentativo efe-
tar de uma subjetividade apofântica milenar tuado em contraditório, com ampla defesa e
para uma concepção processual expressa numa isonomia, mas o contrário, acolhendo, ademais,
relação espácio-temporal internormativa como o ‘giro lingüístico’, ou seja, é pós-metafísica. As
estruturante jurídica do agir em simétrica pari- metodologias, pois, não concedem mais a cer-
dade e instaladora do juízo discursivo prepara-
tório do provimento (decisão).”64
65 LUDWIG, Celso. Razão comunicativa e direito em
Habermas. In: A Escola de Frankfurt no Direito, p. 117.
66 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual, p. 27: “Com
63 HABERMAS, Jürgen. Acción comunicativa y razón sin Fazzalari, foi possível um salto epistemológico que retirou
trascendencia, p. 47. a decisão da esfera individualista, prescritiva e instrumen-
64 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual, p. 15. tal da razão prática do decisor.”

84 85
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

teza de antes. Com isto, as rançosas percep- mente. Enfim, diante das pretensões de valida-
ções da ‘Filosofia da Consciência’ (do sujeito de trazidas pelas partes no procedimento em
uno) são expungidas do campo processual, contraditório, que o um-juiz se legitima a emitir
abrindo-se espaço para a democracia proces- o provimento estatal, fundamentando tanto no
sual discursiva, abjurando-se, dentre outras, a acolhimento quanto na rejeição das alegações,
legitimidade formal kelseniana do juiz. não podendo buscar a legitimação apenas por
sua condição formal de emissor reconhecido. As
4.6. A Construção Discursiva da partes possuem o direito de enunciar seus
Decisão: Aproximando-se argumentos, produzirem provas e os verem
devidamente analisados pelo Estado-Juiz.68
da Psicanálise
Quanto ao Processo Penal, relativamente
Com efeito, esse processo democrático aos direitos dos acusados, a postura a ser ado-
precisa garantir a isonomia, publicidade, ampla tada é aquela professada pelos mais ferrenhos
defesa e contraditório, princípios fundamentais legalistas: respeito às regras do jogo de manei-
sem os quais a sua deslegitimidade aflora e ra transparente.69 Nada mais do que isso.
macula a decisão. No decorrer do processo os Todavia, quando as regras do jogo passam a
Direitos Fundamentais serão invocados e deba- ser o entrave para a turba sedenta pelo gozo
tidos argumentativamente (discurso proposi- sádico – mormente em tempos neoliberais de
cional e não autoritário). O processo é quem encarceramento total da pobreza –, os argu-
mediará, pelo discurso, a decisão, não mais soli- mentos jurídicos transcendentes da condena-
tária do juiz,67 mas co-produzida democratica- ção em nome da paz social, da segurança jurí-
dica, do interesse social em formatar o apenado
subvertem a lógica de garantias e se consti-
67 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual, p.. 112: “A téc-
nica do silogismo pelo jogo de premissas, com supressão tuem no fundamento retórico e deslegitimado
do processo como estrutura encaminhadora da decisão, de uma condenação.70 Não se trata, assim, de
poderá premiar o decididor pela coerência dos juízos ela- aplicar uma pena no interesse do apenado,
borativos do provimento. Entretanto, ainda que primorosa
a decisão assim obtida, é negativa do devido processo
legal, porque, no direito democrático, o acerto da decisão
não se autojustifica ante a ausência de procedimento pro- 68 CATTONI, Marcelo. Direito processual constitucional, p. 60.
cessualizado, que é o elemento teorizador de legitimidade 69 CATTONI, Marcelo. Direito processual constitucional, pp.
do sistema jurídico constitucionalmente acolhido. Isto é: 78-79.
no direito democrático, só a institucionalização constitu- 70 CORDERO, Franco. Procedimiento penal, p. 264:
cional do processo como eixo de decisão das situações “Amorfismo. Era característico del método inquisitorio,
jurídicas asseguradas no ordenamento jurídico (as chama- pues en el proceso reducido a sondeo introspectivo, las for-
das relações de direito material ou formal) é que tornam mas constituyen un dato secundario o simplemente sin
legítimas a dirimência dos conflitos normativos e a defini- importancia, pues solo cuenta el resultado, no importa
ção de direitos alegados ou exercidos.” cómo sea obtenido.”

86 87
Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

consoante o senso de Justiça71 do julgador, neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em


porque esta visão é totalitária. As regras do um lugar tão vago, por outro lado, aparecem
jogo são esquecidas por um discurso empola- facilmente os conhecidos ‘justiceiros’, sempre
do, bonito, valorativo, emitido pelos imagina- lotados de ‘bondade’, em geral querendo o ‘bem’
riamente ‘bons’, por aqueles que sabem o que dos condenados e, antes, o da sociedade. Em
é melhor para a sociedade e acusados,72 afinal, realidade, há aí puro narcisismo; gente lutando
exercem as funções de juízes na sociedade em contra seus próprios fantasmas. Nada garante,
nome do Outro. O princípio da legalidade é des- então, que a ‘sua bondade’ responde à exigên-
terrado e as concepções criminológicas e infra- cia de legitimidade que deve fluir do interesse
cionais arraigadas no inconsciente do um-jul- da maioria. Neste momento, por elementar, é
gador afloram. O problema é que, como diz possível indagar, também aqui, dependendo da
Miranda Coutinho: “O enunciado da ‘bondade hipótese, ‘quem nos salva da bondade dos
da escolha’ provoca arrepios em qualquer ope- bons?’, na feliz conclusão, algures, de Agostinho
rador do direito que freqüenta o foro e convive Ramalho Marques Neto.73 Ocupam, em uma
com as decisões. Afinal, com uma base de sus-
palavra, o lugar do canalha.
tentação tão débil, é sintomático prevalecer a ‘-
Não obstante as críticas que se possa
bondade’ do órgão julgador. O problema é saber,
fazer ao paradigma procedimentalista – cuja
simplesmente, qual é o seu critério, ou seja, o
proposta é inviável ser realizada na prática,
que é a ‘bondade’ para ele. Um nazista tinha por
abaixo do Equador, mormente numa realidade
decisão boa ordenar a morte de inocentes; e
de exclusão,74 e, também, por desconsiderar
que o inconsciente opera –, sua acolhida pode
71 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual, pp. 107-108: ocorrer de forma mitigada, sem o universalismo
“Porque, para eles, em qualquer hipótese, as decisões
serão produzidas por um senso de justiça que lhes é
comum pelo resultado de manter a ordem e a segurança
jurídica, social, moral ou ética, sem se perguntarem sobre 73 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao
as origens teórico-processuais da ordem jurídica, social, ‘Verdade, Dúvida e Certeza’, de Francesco Carnelutti,
moral ou ética que estão a preservar.” para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-
72 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Americano de Direitos Humanos (2001-2002), p. 188.
Judiciário na perspectiva da sociedade democrática: O 74 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, pp. 198-202.
Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA, n. 21, p. 50: “Uma MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel da
vez perguntei: quem nos protege da bondade dos bons? jurisdição constitucional na realização do Estado Social,
Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante, ‘a p. 54: “Daí ser incompreensível e inaceitável a posição de
priori’, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, alguns dos nossos teóricos, mordidos pela mosca azul da
mesmo que essas mãos sejam boas. (...) Enfim, é necessá- nobreza do pensamento europeu e europeizante. Por isso
rio, parece-me, que a sociedade, na medida em que o lugar que cansa o discurso; por isso que cansa o gueriguéri,
do Juiz é um lugar que aponta para o grande Outro, para cansa o blá-blá-blá. É como se ressoasse pelo país: e daí,
o simbólico, para o terceiro.” meu amigo, eu quero comer!”

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

que pretende. No caminho aqui defendido, a De maneira que o inasfastável buraco é de ser
razão comunicativa pode ser situada para se apontado com Marques Neto: “Há essa dimen-
fixar o lugar do juiz no processo em contraditó- são que ultrapassa tudo aquilo que o sujeito pode
rio (Fazzalari) como sendo aquele que no decor- pôr de intencionalidade no seu discurso. O
rer dele irá garantir as regras do jogo,75 sem inconsciente é uma referência a esse ultrapassa-
prejuízo de seu papel específico no ato decisó- mento, a isso que está para além do discurso.
rio, o qual deve se fundamentar no critério Toda a fala é acompanhada de um cortejo de
material proposto por Dussel. silêncios, que tem uma enorme eloqüência. O que
O devido processo democrático proposto não se diz é freqüentemente mais significativo do
por Habermas, entretanto, é paradoxal. Ao que o que se diz.”77 Dews,78 contrapondo a ‘ver-
mesmo tempo em que rejeita o solipsismo do jul- dade do sujeito’ em Lacan e Habermas, afirma
gador, agora envolvido pelo medium lingüístico, que para Lacan a cadeia de significantes impede
considera que o discurso consciente é seu fun- o encontro definitivo com o Real, por ser impos-
damento. Para ele, a legitimidade do Direito e da sível, sendo que, rompendo com as concepções
decisão estariam jungidas à aceitação pelos racionalistas, a (possível) representação pelo
concernidos das normas e das decisões, como significante não é a coisa; o que há é linguagem
se isso pudesse ocorrer no plano consciente do sem metalinguagem.79 A crítica formulada por
Lacan, portanto, detona com a pretensão de que
sujeito único. A crítica poderia ser formulada a
partir de Heidegger ou mesmo de Dussel, como
já se pontuou, mas para o fim deste escrito, con- 76 PRADO JR, Bento. Alguns ensaios, p. 25: “É pelo menos
curioso que alguém, que busca a verdade de Freud no que
tudo, é Lacan que será trazido à baila. Para além ele não disse, negue a idéia do inconsciente como discurso
do assentimento sincero, existem mecanismos mudo, ou como um campo prévio que (tornando possível a
inconscientes que roubam a cena, conforme linguagem) é de natureza análoga àquilo que torna possí-
vel, sem ser propriamente linguagem.”
deixa evidenciada a psicanálise. Por isso proce- 77 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder
dem as críticas de Prado Jr. acerca do projeto Judiciário na perspectiva da sociedade democrática: O
habermasiano, no sentido de que a leitura da Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA, n. 21, p. 48.
78 DEWS, Peter. A verdade do sujeito: linguagem, validade
psicanálise a partir da psicologia do eu efetuada e transcendência em Lacan e Habermas. In: SAFATLE,
por Habermas, renegou o silêncio e o inconscien- Vladimir (Org.) Um limite tenso: Lacan entre a Filosofia e
te na formulação do consenso intersubjetivo.76 a Psicanálise, pp. 75-105.
79 LACAN, Jacques. Escritos, p. 501: “Por essa via, as coisas
não podem fazer mais que demonstrar que nenhuma sig-
nificação se sustenta a não ser pela remissão a uma outra
75 CATTONI, Marcelo. Direito processual constitucional, p. significação: o que toca, em última instância, na observa-
15: “Assim é que os juízes, não devem comporta-se, embo- ção de que não há língua existente à qual se coloque a
ra tantos se comportem, como donos da verdade e guar- questão de sua insuficiência para abranger o campo do
diões das virtudes.” significado, posto que atender a todas as necessidades é

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

o ‘entendimento semântico’ possa ocorrer de te no âmbito processual, é acolhida no contexto


forma plena, fraturando, de vez, com o ‘Círculo deste escrito, especialmente nas quatro pressu-
de Viena’ – não obstante a parcial importância posições mais importantes, destacadas por
deste –, impedindo, de outra face, a identidade Habermas, consistentes no: “a) carácter público
do sujeito consciente, entre suas asserções e inclusión: no puede excluirse a nadie que, en
conscientes e o inconsciente.80 De sorte que a relación con la pretensión de validez controverti-
‘rede de significantes’ reage historicamente e da, pueda hacer una aportación relevante; b)
não é possível manter a universalidade das pre- igualdad en el ejercício de las faculdades de
comunicación: a todos se les conceden las mis-
tensões de validade do discurso habermasiano
mas oportunidades para expresarse sobre la
diante da ‘verdade do sujeito’ imbricada com o
materia; c) exclusión del engaño y la ilusión: los
inconsciente, e garantidas pelo Outro.81 Repita-
participantes deben creer lo que dicen; y d)
se que a proposta habermasiana, principalmen-
carencia de coacciones: la comunicación debe
estar libre de restricciones, ya que éstas evitan
um efeito de sua existência como língua. Se formos discer- que el mejor argumento pueda salir a la luz y pre-
nir na linguagem a constituição do objeto, só poderemos
constatar que ela se encontra apenas no nível do conceito,
determinan el resultado de la discusión.”82 E,
bem diferente de qualquer nominativo, e que a coisa, evi- ademais, não se perca de vista, que o ‘sujeito’ da
dentemente ao se reduzir ao nome, cinde-se no duplo raio psicanálise, por ser clivado e construído pelos
divergente: o da causa em que ela encontrou abrigo em
nossa língua e o do nada ao que ela abandonou sua veste
significantes que se inscreveram durante o
latina (rem). Essas considerações, por mais existentes que
sejam para o filósofo, desviam-nos do lugar de onde a lin-
guagem nos interroga sobre a natureza. E fracassaremos 81 LACAN, Jacques. Escritos, p. 529: “Se eu disse que o
em sustentar sua questão enquanto não nos tivermos inconsciente é o discurso do Outro com maiúscula, foi para
livrado da ilusão de que o significante atende à função de apontar o para-além em que se ata o reconhecimento do
representar o significado, ou, melhor dizendo: de que o sig- desejo ao desejo de reconhecimento. (...) Pois, se posso
nificante tem que responder por sua existência a título de fazer meu adversário cair no engodo com um movimento
uma significação qualquer. Pois, mesmo ao se reduzir a contrário ao meu plano de batalha, esse movimento só
esta última fórmula, a heresia é a mesma. É ela que con- exerce seu efeito enganador justamente na medida em
duz o positivismo lógico à busca do sentido do sentido, do que eu o produza na realidade, e para meu adversário.
meaning of meaning, tal como se denomina, na língua em Mas, nas proposições através das quais iniciou com ele
que se agitam seus devotos, o objetivo. Donde se constata uma negociação de paz, é num lugar terceiro, que não é
que o texto mais carregado de sentido desfaz-se, nessa nem minha fala nem meu interlocutor, que o que ela lhe
análise, em bagatelas insignificantes, só resistindo a ela os propõe se situa. Esse lugar não é senão o da convenção
algoritmos matemáticos, os quais, como seria de se espe- significante, tal como se desrevela no cômico desta queixa
rar, são sem sentido algum.” dolorosa do judeu a seu amigo: ‘Por que me dizes que vias
80 DEWS, Peter. A verdade do sujeito: linguagem, validade a Cracóvia para que eu ache que vais a Lemberg, quando
e transcendência em Lacan e Habermas. In: SAFATLE, na verdade estás indo a Cracóvia?”
Vladimir (Org.) Um limite tenso: Lacan entre a Filosofia e 82 HABERMAS, Jürgen. Acción comunicativa y razón sin
a Psicanálise, p. 91. trascendencia, p. 56.

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
Sylvio Lourenço da Silveira Filho Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social

tempo, passa sua vida questionando o sentido neste escrito, o acolhimento da proposta
de sua própria existência.83 habermasiana é contingente, como horizonte
Portanto, conquanto sua proposta de possível de assentimento dos concernidos,
democracia processual – no qual as pretensões sem que, todavia, constitua-se em algo plena-
de validade são acolhidas ‘in the long run’, por mente factível diante dos obstáculos aponta-
mecanismos de consenso discursivo –, possa dos. Sem dúvida que os pressupostos do dis-
representar uma tentativa de continuidade do curso indicados por Habermas podem e devem
projeto do sujeito da Modernidade, sua pers- nortear a atuação processual num Estado
pectiva de destranscendelizar o sujeito navega Democrático de Direito, desde que ciente de
sem a dimensão do desejo, ao arrepio da feno- que a racionalidade proposta é suscetível de
menologia heideggeriana e a barra imposta críticas intransponíveis. Possui, ademais, o
pelo sujeito clivado da psicanálise (Lacan), dei- mérito de rejeitar o solipsismo do julgador deci-
xando à descoberto os mecanismos de ligação sionista, o qual não se sustenta mais democra-
da proposta ao sujeito, dado que: “Lacan não ticamente. No entanto, nem por isso o proces-
nega, evidentemente, que esse questionamento so como eixo democrático pode tamponar o
será formulado em função do repertório simbó- que salta do insconsciente das partes nas suas
lico de uma cultura determinada, mas suas for- argumentações e do ser-aí-julgador.85 De qual-
mulações deixam implícito que o que está em quer forma, aproveita-se sua proposta para o
jogo – ao menos em parte – é a relação entre o encadeamento procedimental necessário à
sujeito e qualquer repositório simbólico em legitimidade da decisão a ser proferida, eis
geral, e portanto o problema da finitude de sua que antecedentemente já se agregou ao proje-
realização de si enquanto sujeito.”84 Por isto, to em construção a ‘viragem lingüística’, com a
conseqüente rejeição da Filosofia da
83 LACAN, Jacques. Escritos, p. 556: “Pois, certamente, os Consciência. De outra parte, é impossível que
sulcos que o significante cava no mundo real vão buscar, a proposta seja ultimada consoante Habermas
para alargá-las, as hiâncias que ele lhe oferece como ente,
a ponto de poder persistir uma ambigüidade quanto a pretende por desconsiderar fatores interve-
apreender se o significante não segue ali a lei do significa- nientes na prolação da decisão e nos próprios
do. Mas, o mesmo não acontece no nível do questionamen-
to, não do lugar do sujeito no mundo, porém de sua exis-
tência como sujeito, questionamento este que, a partir
dele, vai estender-se à sua relação intramundana com os 85 ZAFFARONI, Raúl. E. La cultura del riesgo. In: DOBÓN,
objetos e à existência do mundo, na medida em que ela Juan; BEIRAS, Iñaki Rivera (orgs). La cultura del riesgo,
também pode ser questionada para-além de sua ordem.” p. 3: “El encuentro entre el derecho y el psicoanálisis
84 DEWS, Peter. A verdade do sujeito: linguagem, validade nunca fue pacífico, ya desde que Freíd golpeara uno de
e transcendência em Lacan e Habermas. In: SAFATLE, los pilares en los que se pretenden asentar casi todos los
Vladimir (Org.) Um limite tenso: Lacan entre a Filosofia e discursos que nutren el campo jurídico: la pretendida
a Psicanálise, p. 102. racionalidad del ser humano.”

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Alexandre Morais da Rosa e Para um Processo Penal Democrático:
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argumentos lançados no processo intersubjeti- em que o contraditório deve ser garantido. É a


vo.86 É que a pretensão de sinceridade cons- partir do contraditório que se estabelece a legi-
ciente dos argumentos é vazada pelo incons- timidade do provimento judicial. Claro que o
ciente que atravessa no Simbólico. Enfim, a conteúdo da decisão estará vinculado a outros
psicanálise, com o desvelar do inconsciente fatores, dado que inexiste decisão neutra. Há
deixa à céu aberto a sinceridade pressuposta sempre a aderência – mesmo alienada – a um
por Habermas. A sinceridade, então, no máxi- modelo ideológico.
mo pode ser vista como objetivo a ser alcança- O que importa é (re)estabelecer um espa-
do na corrida, e cuja verificabilidade se mostra ço democrático no processo penal brasileiro,
impossível de ser aferida, ou seja, é pressupos- superando a visão prevalecente, na qual o
ta a sinceridade, mas impossível de a controlar. ritual e a postura inquisitória ceifam qualquer
Esses obstáculos tornam o discurso haberma- possibilidade de democracia processual, no
siano, na sua versão ideal, irrealizável no plano que Fazzalari pode ser um sendero.87 Por isto a
fático, onde o inconsciente – repita-se mais importância de seu estudo, acompanhado de
uma vez – surge. Por isso a necessidade do re- reflexões sobre a linguagem e a opção ética
conhecimento parcial do paradigma haberma- que subjaz a decisão judicial (Dussel), quer
siano, com Fazzalari, na construção da propos- consciente ou inconscientemente.
ta do processo como tarefa democrática inafas-
tável, justificando-se o aproximar deste juiz
(in)consciente, ou do inconsciente do um-juiz.

4.7. Para Marcar uma Tarefa


Democrática Fundamental

Este escrito pretendeu demonstrar que o


processo penal possui um lugar e uma função
na democracia, a saber, um espaço de diálogo

86 MUÑOZ CONDE. Francisco. La búsqueda de la verdad en


el proceso penal, p. 106: “Como advierte Habermas, las
búsqueda de la verdad en el discurso institucional tiene
unas particularidades que la distinguen de la búsqueda de
la verdad en el discurso libre de dominio, en el que precisa- 87 PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O processo,
mente por serlo, todas las partes están en un plano de a jurisdição e a ação sob a ótica de Elio Fazzalari. Vir-
igualdad y tienen el mismo interés en encontrar la verdad.” tuajus, a. 2, n. 1, agosto 2003.

96 97
Considerações Finais

Este texto procurou desvelar os condicio-


nantes do discurso neoliberal e suas teorias
contemporâneas no contexto do Direito e do
Processo Penal brasileiro. Promovendo uma crí-
tica, de frente, ao modelo importado, especial-
mente como as novidades – Movimento da Lei
e Ordem, Teoria das Janelas Quebradas, Direi-
to Penal do Inimigo – acabaram sendo acolhi-
das sem maiores reflexões sérias e ao preço da
democracia processual. Agregou-se a isto o
fato mídia e sua vinculação ideológica atual
com o discurso Neoliberal.
Assim é que rejeitando as inovações, sem
saudosismo pelo passado, buscou-se apontar
que o processo como procedimento em contra-
ditório, na linha da Fazzalari e de Ferrajoli,
pode servir de norte para práticas jurídicas
brasileiras. Desde o primado de que a demo-
cracia, no campo do controle social, está em
constante construção, acredita-se que o enga-
jamento pessoal de cada ator jurídico pode ser
o diferencial da atuação. Enfim, não existem
respostas prontas e acabadas, mas somente
possibilidades de uma opção verdadeiramente
democrática que recoloque o político no campo
do processo penal e não se seduza pelas derra-
pagens totalitárias atuais.

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