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DESENVOLVIMENTOS PREVISÍVEIS

NA DOGMÁTICA DO DIREITO PENAL


E NA POLÍTICA CRIMINAL *
W INFRIED H ASSEMER **

Resumo: O artigo analisa, de modo geral, os influxos da Política


Criminal contemporâneo sobre o desenvolvimento futuro do
Direito Penal e do Direito Processual Penal, bem como os
problemas que possuem surgir disso no que diz respeito à
flexibilização das garantias penais materiais e processuais.
Analisa, por conseguinte, os elementos irrenunciáveis do
Direito Penal e do Direito Processual Penal do Estado Direito.
Por fim, apresenta alternativas que permitam a manutenção do
Direito Penal e suas garantias e que, diferentemente, possam
absorver as situações que não devem ser abarcadas pelo Direito
Penal1.

Palavras-Chave: Direito Penal, Política Criminal, alternativas ao


Direito Penal, Direito de Intervenção

I – PONTO DE PARTIDA
Qualquer afirmação a respeito do desenvolvimento futuro pressupõe
que nos orientemos por pontos de partida que caracterizem a situação atual,
com base na qual ele deve se desenvolver. Estes pontos de partida possuem
duas características – que para a observação científica são oportunas: eles

* Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva (Professor de Direito Penal e Processual Penal da
Univates e da Ulbra), do artigo “Absehbare Entwicklungen in Strafrechtsdogmatik und
Kriminalpolitik”, publicado originariamente em Prittwitz/Manoledakis (Hrsg.) Strafrechtsprobleme
an der Jahrtausendwende, 1. Aufl., 2000, p. 17-25.
** Catedrático de Direito Penal, Direito Processual Penal, Teoria do Direito e Sociologia do Direito da

Universidade de Frankfurt a.M. e Vice-Presidente do Tribunal Constitucional Federal (Alemanha)


1 N. do T.: O resumo não integra a versão original do artigo, tendo sido elaborado pelo tradutor.

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não só são claros em seu objeto como também generalizáveis em sua


validade internacional.

1 – Concordâncias Européias
Na parte continental da Europa Ocidental o “moderno” Direito Penal2
traçou, nas últimas décadas, linhas de desenvolvimento que se conjugam
umas com as outras de forma surpreendentemente intensa e concentrada.
Estas linhas referem-se não só ao Direito Penal material, mas também ao
Direito Processual Penal, às teorias do Direito Penal e da Pena, assim como
ao “clima” social e político em geral que se forma da e na relação com o
sistema jurídico-penal.
Concentro-me no desenvolvimento na República Federal da
Alemanha e afirmo que este desenvolvimento grosso modo também se pode
verificar em outros países da parte continental da Europa ocidental. Até este
ponto se estendem as minhas avaliações e teses.

2 – Direito Penal Material


Há décadas a Política Criminal do Direito Penal material apresenta
estes mesmos elementos. Estes elementos são, portanto, estáveis e, em todo
caso, a médio prazo pode-se contar com seu reconhecimento.
a. As reformas no Direito Penal material não se concentram na Parte
Geral, mas na Parte Especial e não conduzem à simplificação, ao
abrandamento do Direito Penal ou à descriminalização, senão, justamente
ao contrário, elas acentuam as determinações penais existentes e as penas
cominadas, elas estendem o Direito Penal a novos setores e ao mesmo
tempo se expandem nas tradicionais e nas novas áreas (há exceções, como
por exemplo os crimes de aborto, que estão sujeitas a condições
constitutivas especiais; elas são residuais e não pertencem ao “moderno”
Direito Penal; por isso delas não se pode colher nenhuma tendência).
b. Os novos setores são: o meio ambiente; as drogas; a economia; o
processamento eletrônico de dados; o terrorismo; a criminalidade
organizada; a corrupção.

2 N. do T.: Para uma análise minuciosa daquilo que o autor caracteriza como sendo o “moderno”
Direito Penal, em contraposição ao Direito Penal “clássico”, compare HASSEMER, Winfried.
Características e Crises do Moderno Direito Penal, in Revista de Estudos Criminais, [Tradução de
Pablo Rodrigo Alflen da Silva, de Kennzeichen und Krisen des modernen Strafrechts], n.º 08,
2003, p. 54 a 66, também publicada em Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n.º 18,
2003, p. 144-157.

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c. A moderna Política Criminal afasta-se da forma tradicional de


cometimento (do crime de lesão ou fraude) e da determinação normal do
bem jurídico do Direito Penal tradicional (bem jurídico individual como,
por exemplo, a integridade física). Sua forma típica de delito é a do delito de
perigo abstrato (por exemplo, a fraude à subvenção), sua determinação
normal de bem jurídico é a do bem jurídico universal concebido de forma
ampla (como a saúde popular no Direito Penal das Drogas)3. De acordo com
isso, dissolve-se a determinação legal do injusto punível, aumentam e
flexibilizam-se as possibilidades de aplicação da lei, diminuem as chances
de defesa e também a crítica à ultrapassagem dos limites instituídos pelo
legislador.

3 – Direito Processual Penal


a. Também no Direito Processual Penal o moderno desenvolvimento
segue a tendência ao agravamento e à desformalização dos instrumentos
tradicionais. As reformas por meio de recurso aos princípios do Estado de
Direito já não existem mais desde os anos setenta.
Onde o moderno legislador de iure trata, por exemplo, da proteção de
dados no processo penal – e, portanto, da garantia de um direito
fundamental –, leva-se em consideração o aumento de possibilidades de
introduzir o moderno processamento de dados também no processo penal;
mas para isso é necessário justamente uma lei formal como fundamento da
intervenção. Os princípios diretivos da legislação não são as limitações no
combate ao crime, senão, ao contrário, a sua efetivação e a redução dos
custos do sistema da justiça criminal.
b. Três pontos de vista merecem especial consideração:
aa. No procedimento investigatório de inquérito há uma série de novas
possibilidades de intervenções: monitoramento das telecomunicações;
observação por longo período; investigador oculto; serviços de investigação;
monitoramento acústico e visual de residências particulares. Estes tipos de
intervenção modificam o tradicional procedimento investigatório em dois
pontos centrais:

3 N. do T.: Sobre a proteção de bens jurídicos universais como decorrência das exigências da
moderna Política Criminal veja, além da indicação na nota anterior (supra 2), também HASSEMER,
Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, [Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva,
de Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 2.ª edição, 1990], 2005, Porto Alegre: Fabris
Editor, p. 360 e ss.

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– eles se estendem (de forma técnica, necessariamente normativa e


também relativamente ampla) não só à pessoa do suspeito, mas também a
terceiros desinteressados; de acordo com isso o clássico pressuposto para a
intervenção, a saber, a suspeita da prática do fato, perde sua justificação e
também seu efeito limitador da intervenção.
– para serem eficazes de um modo geral, eles precisam ser
promovidos secretamente, pelas costas dos envolvidos e sem o seu
conhecimento atual; com isto reduzem as chances de se adaptarem à
situação, de se defenderem em tempo hábil, e afasta-se o princípio nemo
tenetur seipsum prodere.
bb. Tem-se desformalizado, em inúmeros processos criminais –
sobretudo nos mais graves –, as tradicionais formas de resolução dos
processos. Sobretudo os grandes processos criminais referentes a crimes
econômicos e de drogas sequer chegam à instauração do processo principal
e a um julgamento, senão encerram prematuramente através de um acordo
entre grupos parciais dos necessariamente interessados e da suspensão do
processo em virtude de uma certa colaboração do acusado. Esta práxis
facilita o processo, aumenta as possibilidades de resolução e de
“condenações” e para isso coloca em jogo princípios fundamentais do
tradicional Direito Processual Penal.
cc. Tem-se desformalizado também os limites entre o Direito
Processual Penal e o Direito Policial, bem como o Processo Penal e os
serviços secretos. Face ao interesse no amplo e prematuro (“preventivo”)
combate ao crime estes limites se tornaram um óbice. Para fins preventivos
a polícia pode se utilizar de conhecimentos que se concentram no
esclarecimento repressivo do crime; o Processo Penal também procura se
servir, no caso de criminalidade mais grave, de conhecimentos obtidos por
meio de investigações secretas. Para isso a “divisão de poderes” entre
autoridades policiais e autoridades investigadoras, que limitava a
ingerência, torna-se obsoleta e no horizonte surge o espectro de uma
“polícia secreta” (“geheimen Polizei”4).

4 – O Clima Político-Criminal
Sem um “clima” de proteção e de apoio o moderno Direito Penal não
pode se manifestar de forma tão poderosa, equilibrada e tranqüila. Este
clima favorece o Direito Penal como instrumento efetivo na assimilação dos

4 N. do T.: O autor, aqui, faz uma paráfrase à polícia secreta do Estado nacional-socialista, chamada
geheime Staatspolizei (Gestapo).

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modernos problemas, desde a destruição do meio ambiente e o abuso do


sistema social até à dependência de drogas. Em face dos grandes e
tormentosos problemas sociais, no atual discurso político o Direito Penal
vige não mais como ultima, senão como prima ou até mesmo sola ratio.
Se se observa de forma mais precisa, vêem-se de modo manifesto
atitudes paradoxais quanto às chances de solução jurídico-penal dos
problemas – que na verdade, ao final, não deixam fortalecer a confiança no
Direito Penal e na sua “eficácia”:
Não se encontra mais refletida a esperança, e os problemas são
dominados com penas mais rigorosas (atualmente, por exemplo, abuso
sexual contra crianças ou atos de violência neonazista). Mas também se
encontra o interesse em utilizar o Direito Penal, incondicionalmente, como
um ‘eficiente’ instrumento simbólico (atualmente, por exemplo, no caso de
corrupção ou de violência doméstica)5. A diferença entre ambas as posturas
está justamente na intensidade dos respectivos níveis de reflexão e não na
confiança no Direito Penal”.

5 – As Teorias da Pena
Atualmente o debate sobre os fins da pena na República Federal da
Alemanha é cunhado pela expressão “prevenção geral positiva”. O que se
quer dizer concretamente com isso e quais variantes determinam os fins da
pena que se reúnem sob esta bandeira, aqui pode permanecer em aberto.
Para o nosso contexto há apenas uma tendência ao estabelecimento de
um significado que caracteriza de maneira consentânea todas as variantes
desta teoria: a renúncia a uma determinação empiricamente precisa da
prevenção direta. Nesta tendência seguem as teorias predominantes, com o
clima político-criminal geral e o favorecimento do Direito Penal como um
instrumento para a solução dos grandes problemas sociais (supra I.4.):
As teorias da prevenção geral positiva vêem o efeito desejado da pena
cominada e da sua execução não mais na intimidação (“negativa”) do
tendente ao crime (como em FEUERBACH e seus sucessores), senão na
manutenção (“positiva”), a longo prazo, da confiança de todos os cidadãos

5 N. do T.: Como instrumento simbólico, o autor caracteriza um Direito Penal que “simplesmente
transmite a aparência de efetividade e proteção social e demonstra à opinião pública que o
legislador satisfez uma ‘necessidade de ação’ rápida e eficaz” (compare HASSEMER, Winfried.
Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, Trad. de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, 2005, p. 115;
análise aprofundada em HASSEMER, Winfried. Direito Penal, Trad. e org. Carlos Eduardo
Vasconcelos, 2008, p. 209 e ss.).

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na inviolabilidade da ordem jurídico-penal. Com esta mudança a teoria da


pena se afasta (integralmente ou pelo menos em uma boa parte) da
verificação empírica e da crítica a respeito dos efeitos preventivos
concretamente esperados da pena; se os aludidos fins de manutenção da
confiança na norma são “realmente” alcançados especificamente pela pena
cominada e sua execução, é algo que não se pode operacionalizar e
considerar como falso.
Nesse sentido as teorias da prevenção geral positiva, apesar deste
déficit na operacionalização, insistem em que a pena preventiva é útil (e
pode-se assegurar que elas devem uma parte de seu poder de convicção à
esta potência restabelecedora da pena), elas assentam no clima de uma
confiança incontestada na eficácia do Direito Penal como um instrumento
de solução dos problemas.

II – ELEMENTOS IRRENUNCIÁVEIS EM UM DIREITO


PENAL FUTURO NO ESTADO DE DIREITO
Quem não quiser apenas esperar passivamente um Direito Penal
futuro, senão colaborar ativamente, deve, em primeiro lugar, insistir e então
defender aquelas características que este Direito Penal futuro deve
conservar em meio a todas as circunstâncias.
Mencionarei a seguir apenas aqueles elementos que são colocados
concretamente em questão pelos desenvolvimentos atuais (supra I.). De
modo algum eles são os únicos que um Direito Penal deve preservar, se
quiser ser de um Estado de Direito, mas são os atuais.

1 – A Pressão pela Solução dos Problemas e a


Orientação pelos Princípios
De modo geral vige o fato de que um sistema jurídico-penal, ceteris
paribus, será tanto menos orientado por princípios, quanto maior for a
pressão pela solução dos problemas que atualmente recai sobre ele. No
sistema de um direito de intervenção, como apresenta antes de tudo o
Direito Penal, os princípios do Estado de Direito tem tipicamente a função
de vincular as intervenções e sua intensidade a pressupostos, de minimizá-
las e de torná-las controláveis. O princípio central neste contexto é o da
proporcionalidade das intervenções; elas precisam ser adequadas para atingir
os seus fins e para isso precisam ser exigíveis e necessárias no caso concreto.
A vinculação à medidas fora da intervenção mesma, a minimização
da intensidade da intervenção no marco do possível e a exigência e

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controlabilidade da intervenção estão em princípio em uma relação de


tensão principalmente com a intensidade da intervenção e sua efetividade
(a curto prazo); são limites e obstáculos. Estes limites e obstáculos são cada
vez menos evidentes no atual clima político-criminal (supra I.4.). Portanto,
de modo geral não interessa para um Direito Penal futuro tornar plausível o
valor da orientação pelos princípios: não apenas para o “sistema” e o
“Estado de Direito”, senão, sobretudo, para os homens que vivem neste
sistema.

2 – Particularidades
a. O princípio fundamental do Direito Penal material correspondente
ao princípio geral da proporcionalidade é o princípio da culpabilidade, o qual
limita a espécie e a medida da pena à gravidade do injusto e da
culpabilidade. Este princípio está particularmente ameaçado em um sistema
jurídico-penal que está preso ao efeito preventivo e por isso está interessado
em obter no caso concreto, através da ênfase e do abalo, efeitos benéficos –
não só em relação aos envolvidos, senão também em relação ao público
informado na mídia.
b. Em todo caso, enquanto o sistema jurídico-penal impuser a
supressão da liberdade (prisão preventiva, pena privativa de liberdade), a
imputação individual do injusto e da culpabilidade será um elemento
irrenunciável do Direito Penal do Estado de Direito. Esta imputação não
pode ser estabelecida de forma global, porque ela já é flagrantemente injusta
inter personas. Sobretudo no âmbito de competências de decisão complexas,
como por exemplo no Direito Penal econômico, recomenda-se na verdade já
uma imputação coletiva, porque em tais situações somente ela representa o
instrumento aplicável. Esta recomendação transcende o Direito Penal.
c. O princípio processual penal fundamental no Estado de Direito é o
do processo justo – um princípio com muitos significados e conclusões
concretas.
Entre as condições iniciais dadas (supra I.) discutiu-se este princípio
em um sistema jurídico penal futuro, antes de tudo porque o acusado não
pode ser convertido em objeto do processo. Os novos métodos de
investigação (supra I.3.) consistem no primeiro passo em direção a uma
forma de processo no qual o acusado perde uma parte das garantias, que
constituem pressupostos imprescindíveis para uma participação ativa e
responsável no Processo Penal. Também o direito a uma defesa eficiente e a
garantia do direito ao silêncio são aquisições do processo penal do Estado
Direito, as quais futuramente podem ceder ante a pressão de adaptação.

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Elas pertencem ao círculo de elementos irrenunciáveis de um Direito Penal


do Estado de Direito.

III – CONSEQÜÊNCIAS E ALTERNATIVAS


Se se aceita o fato de que as condições inicialmente descritas do
moderno Direito Penal (supra I.) são tão estáveis, de que elas também
determinarão os desenvolvimentos futuros do sistema jurídico-penal e de
que, com isso, se terá compreendido quais elementos um Direito Penal
futuro – como sempre procurou fazer – deve apresentar (supra II.), então as
conseqüências para o desenvolvimento futuro dar-se-ão quase que
automaticamente.
As mais importantes delas eu mencionarei a seguir:

1 – Espécie de Conflito
Em face das exigências político-criminais de aumento da eficácia
preventiva do Direito Penal e à custa de sua segurança jurídica-estatal, os
defensores de um Direito Penal de um Estado Direito na República Federal
da Alemanha adotam uma tradicional atitude defensiva-negativa: eles
rechaçam estas exigências com bons fundamentos, mas que quanto ao
resultado são em regra infrutíferos (e, conseqüentemente, aguardam por
outras propostas de efetivação, em relação as quais eles devem proceder da
mesma forma).
Esta atitude é incorreta. Um Direito Penal de um Estado de Direito
não é um castelo que deve ser defendido, senão uma concepção de ação
teórico-prática de controle formal da conduta desviante, que precisa ser
aperfeiçoada teoricamente e referir-se a circunstâncias práticas jurídico-
políticas e gerais socialmente transformadoras. Não é a defesa que é
questionada, mas o ataque. Isto pressupõe que, em face da pressão pela
solução dos problemas que se exerce sobre o Direito Penal, sejam
elaboradas e oferecidas alternativas que em um Estado de Direito sejam
menos questionáveis do que o uso do Direito Penal como prima ou sola ratio.

2 – Alternativas ao Direito Penal


Com a espécie de conflito relacionam-se também novas perspectivas
substanciais. Se não é suficiente no futuro considerar o Direito Penal de
modo “puramente” teórico e se, ao contrário, é necessário à Política
Criminal uma atitude positiva-prospectiva (supra III.1.), então uma tarefa
dos penalistas que atuam teoricamente será preocupar-se com alternativas

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ao Direito Penal – com a expressão “penalistas” eu caracterizo o grande


círculo da “Ciência Global do Direito Penal”; também os criminólogos e os
especialistas em execução penal aí estão incluídos.
Não se pode esperar que em um futuro previsível se reduza a pressão
de solução dos problemas sobre o Direito Penal – ao contrário; tanto a
percepção social dos grandes problemas como também as esperanças no
Direito Penal (supra I.) se manifestam de forma extraordinariamente
estáveis e vigorosas. Não é pragmaticamente, nem teoricamente sensata a
atitude de considerar ambas como “irracionais” ou “exageradas” e de dar-
se por satisfeito com esta decisão. Uma Política Criminal Racional consiste
não em estigmatizar a irracionalidade social como tal e desprezá-la como
irracional, senão em manejá-la de forma racional.
Portanto, devem ser elaboradas alternativas ao Direito Penal
(exemplo disso infra III.3), que sejam mais apropriadas que o Direito Penal
para responder de forma preventivamente efetiva aos problemas que se
esperam. Na verdade, a elaboração de alternativas pressupõe de antemão
duas coisas:
A ciência do Direito Penal (novamente: incluindo a Criminologia)
precisa certificar-se de forma precisa e segura das possibilidades de solução dos
problemas pelo sistema jurídico-penal e demarcar os limites destas
possibilidades. A defesa de exigências injustificadas ao Direito Penal por
parte da Política Criminal começa com uma análise precisa da capacidade
do sistema jurídico-penal.
A ciência do Direito Penal (novamente: incluindo a Criminologia)
precisa determinar de forma bem fundada, se e quais funções simbólicas o
sistema jurídico-penal pode apresentar, bem como responder. Este discurso
já iniciou. Verifica-se com a experiência, que a cominação de pena e a
execução penal também possuem efeitos simbólicos, e isso conduz ao
problema de quais fins simbólicos e instrumentais podem ser normativa e
empiricamente respondidos através do Direito Penal.

3 – Direito de Intervenção
Eu denomino os instrumentos que podem responder – melhor que o
Direito Penal – à pressão de solução dos problemas atuais e futuros (supra
I.) com o conceito genérico de “Direito de Intervenção”. Estes instrumentos
existem apenas em suas bases, eles ainda devem ser amplamente
desenvolvidos – inclusive teoricamente:
Eles devem ter as seguintes características:

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– aptidão para a solução de problemas antes de ocorrerem danos


(capacidade preventiva);
– dispor de e atuar com meios de controle e fiscalização, e não somente
com meios de intervenção;
– cooperar ao máximo com diferentes âmbitos de competência como,
por exemplo, o Direito Administrativo e dos ilícitos administrativos; o
Direito das Contravenções; o Direito da Saúde e dos Recursos Médicos; o
Direito Fiscal e do Trabalho; dos Serviços Públicos;
– um ordenamento processual cujas garantias sejam empírica e
normativamente adequadas às possibilidades operacionais do Direito de
Intervenção.
Também um Direito de Intervenção dispõe de possibilidades de
sancionamento, e inclusive empregará meios jurídico-penais – mas na
verdade para a realização de fins preventivos e não repressivos como
resposta ao injusto e à culpabilidade. Assim, o fabricante de produtos
perigosos poderá ser compelido, inclusive pelo uso da força, por exemplo, a
respeitar seu dever de comunicar e de preservar.
Um Direito de Intervenção não pode substituir sistematicamente o
Direito Penal. Assim o referido fabricante será responsabilizado por lesão
corporal ou homicídio, se existirem os pressupostos da responsabilidade
penal – na verdade, somente se os meios preventivamente eficazes da
intervenção protetora do bem jurídico falharem e se ocorrer a lesão ao bem
jurídico.
O desenvolvimento de um Direito de Intervenção pressupõe para os
penalistas justamente que eles estejam conscientes dos limites do seu ramo e
realmente iniciem a cooperação com o seu meio. Ele terá por conseqüência o
fato de que o sistema jurídico-penal a longo prazo se desobrigará de tarefas
que ele não pode cumprir.
Bons exemplos para a racionalidade de um Direito de Intervenção são
todos aqueles âmbitos dos grandes problemas modernos, tais como: a
corrupção; a dependência e o tráfico de drogas; a venda de produtos
perigosos; o auto-encobrimento organizado; a crescente disposição à
violência e a criminalidade de crianças e adolescentes.

4 – Direito Penal Nuclear


a. Na medida em que se conseguir desenvolver um bom Direito de
Intervenção, nós poderemos então, futuramente, desobrigar o Direito Penal

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de esperanças na prevenção que ele não pode proporcionar e que a longo


prazo o arruinariam. Com isso o Direito Penal pode se concentrar em servir
por longo prazo aos seus elementos irrenunciáveis: uma resposta
proporcional, constante e justa às lesões mais graves aos bens jurídicos, na
esfera fundada de que esta resposta confirme e certifique publicamente, na
percepção de todos os cidadãos, que nós perseveraremos nas normas
fundamentais que foram violadas através do crime (supra I.5.). Isto é
expresso em um breve conceito: eficácia preventiva do Direito Penal a longo
prazo, como resultado da resposta justa e orientada pelos princípios à
violação da norma no respectivo caso concreto.
b. Tal Direito Penal nuclear não está limitado aos bens jurídicos
individuais como a vida, a liberdade, a saúde, a honra ou o patrimônio.
Abrange – como também já é tradição no Direito Penal – aqueles bens
jurídicos universais, que ao fim e ao cabo representam os interesses dos seres
humanos, porque nós não podemos viver uns com os outros em sociedade
sem sua proteção: assim a autenticidade das moedas, a segurança das
usinas nucleares ou o funcionamento do aparato público. Porém, o
especialista do ramo é afastado da tarefa de responder diretamente com
suas possibilidades aos tipos de subvenção ou à saúde popular.

5 – Internacionalização
a. A europeização do Direito Penal em muito setores já iniciou, e ela
progredirá, mesmo que o penalista, como até agora, mal a perceba. Ela
exigirá e favorecerá a reflexão e novas experiências. O Direito Penal dispõe
em todas as culturas jurídicas de um alto grau de provincianismo, o que
tem suas boas razões. Em virtude da europeização, a ciência do Direito
Penal terá, sobretudo, a chance de estudar esta situação e talvez minimizá-
la. Os cientistas do Direito Penal alemão tem a tarefa de fornecer suas boas
tradições no processo de europeização do Direito Penal, tanto quanto os
demais cientistas.
b. Sob a minha ótica, mais importante é a chance de desenvolver, ao
menos em parte, um Direito Penal Internacional que não só transponha as
proibições materiais de violação aos direitos humanos para o Direito Penal
vigente, mas que também implante – tanto teórica como praticamente –
condições processuais de persecução de tais violações. Esta possibilidade se
desenvolve atualmente e promete caracterizar de forma mais intensa o
futuro sistema jurídico-penal do que até então. Os penalistas devem
participar de forma mais intensa destes processos.

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6 – Orientação pela Vítima


O Direito Penal europeu continental é orientado pelo autor. Começou
historicamente – como desafio estatal – já com a neutralização da vítima no
processo de controle do crime; e em nossas representações dos fins da pena
a vítima encontra-se novamente e cada vez mais à margem. Isto tudo tem
muitas razões, das quais a maioria é assente e com certeza também
sobreviverá em um Direito Penal futuro. Em princípio não há alternativas
para a orientação pelo autor no moderno Direito Penal.
Entretanto, dá a entender que um Direito Penal futuro levará (e deve
levar) mais em consideração a vítima; há acentuações legais dos direitos de
intervenção da vítima no processo penal, a reparação é um componente
moderno e atrativo das teorias da pena, da determinação da pena e da
práxis da execução penal, e em público a vítima sempre se manifesta de
forma mais enérgica do que os políticos criminais interessados.
A teoria do Direito Penal e as teorias da Pena devem colocar a vítima
mais no centro de suas concepções. Em todo caso, elas devem ter duas
coisas em vista: impedir que a tensão dos pólos entre as posições jurídicas
sobre o autor e a vítima leve a um jogo de soma de zeros, no qual somente
se pode dar a um aquilo que antes se retirou ao outro; e deixar claro que a
vítima essencialmente mais ao centro da Política Criminal ingressará tão só
como a pessoa lesada: ou seja, como qualquer um de nós.

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CRÍTICA DO SENTIDO PÓS-MODERNO
DE GLOBALIZAÇÃO *
F ABIO C APRIO L EITE DE C ASTRO **

Resumo: O “pós-modernismo” não possui aparentemente uma


definição. A indefinição ela mesma é defendida pelos assim
ditos pós-modernos. Mas não seria possível defini-lo? Fazendo
uso de uma descrição fenomenológica da estética pós-moderna,
ou seja, da intencionalidade produtiva do artista pós-moderno;
bem como de uma aproximação dialética do discurso pós-
moderno, desvela-se o sentido do pós-modernismo: o
imperativo de manutenção. O relativismo, o niilismo e o
diferencialismo não se sustentam por si mesmos, com base no
ser, pois eles apelam a uma contradição: é necessário que um
imperativo (dever-ser) velado se imponha para garantir a
manutenção de um estado de coisas paradoxal. Há uma tensão
entre um lado afirmado e reivindicado pelos pós-modernos e
um outro velado, que o sustenta imperativamente e guarda o
seu sentido. Entre esses dois níveis, pode-se visualizar três
paradoxos: a) o paradoxo sincrônico (da singularidade na
massividade); b) o paradoxo diacrônico (da velocidade pela
inércia); c) o paradoxo discursivo (o no sens e a vontade de no
sens). Ao final, caberá analisar de que modo o pós-modernismo
se projeta em termos de totalidade mundial, ou seja, o seu
mecanismo de expansão, para questionar a possibilidade de
superá-lo.
Palavras-chave: Pós-modernismo – No sens – Imperativo de
manutenção – Globalização.

INTRODUÇÃO
Nossa análise parte da instanciação estética e de uma primeira
descrição do pós-modernismo. Trata-se de uma expressão que se utiliza

*
Comunicação apresentada na sessão de 18 abril de 2008 no Séminaire Interuniversitaire
Mondialisation et Cosmopolitisme (Université de Liège e Université Libre de Bruxelles), promovido
na ULg (Bélgica).
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Bacharel em Direito. Mestre (PUCRS). Doutorando (Un. Louvain) em Filosofia.

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atualmente aos exageros, sem nenhum critério de definição clara. Essa falta
de convergência nos discursos e de um consenso mínimo a respeito do
próprio pós-modernismo é a polêmica preferida dos pós-modernos.
Todavia, um tal relativismo que se mostra aparentemente construtivo é
destrutivo de si mesmo, uma anti-razão que tem a sua própria Razão. Na
experiência estética buscaremos os exemplos mais evidentes, as
características mais marcantes e os principais motivos estéticos que nos
levaram a definir o pós-modernismo. Estabelecendo uma descrição intuitiva
provisória, faremos a apreciação crítica do que dizem os pós-modernos, na
tentativa de realizar uma síntese entre eles. Esse passo nos permitirá
sobretudo retornar o pensamento de NIETZSCHE, HEIDEGGER e DERRIDA
contra os pós-modernos (a fim de renunciar a avalanche de interpretações
que ligam esses autores ao pós-modernismo). Em seguida, estaremos
preparados para desvelar os paradoxos do mundo contemporâneo segundo
o Imperativo de Manutenção que os sustenta. Isso posto, poderemos
determinar o fenômeno da globalização pós-moderna e encarar a
possibilidade de superá-lo.

1 – A S O RIGENS DO P ÓS -M ODERNISMO NO C AMPO E STÉTICO


Indo diretamente ao ponto que será o motor desta exposição, se existe
alguma coisa, um movimento ou mesmo uma intenção pós-moderna, será
mais claro e preciso de tomá-lo inicialmente por alguns exemplos. Esse
método terá por fim apresentar uma primeira elucidação do fenômeno pós-
moderno através de sua origem estética. O exemplo mais limpo nos parece
aquele dado por CHARLES JENCKS no livro Late-modern architecture. O autor
distingue a arquitetura do último modernismo e a arquitetura do pós-
modernismo. Segundo sua opinião, por exemplo, o Centre Pompidou faz
parte de um último modernismo, ligado mais ao movimento de Art
Nouveau1. Ao contrário desse prédio, o pós-modernismo, cuja expressão é,
aliás, rejeitada por alguns arquitetos, como CHARLES MOORE ou ROBERT
VENTURI2, é caracterizado pela ambigüidade formal e pela mistura de
códigos arquiteturais. Esse primeiro atributo do pós-modernismo é
ilustrado pelo autor por meio de algumas fotos. A primeira concerne ao AT
& T Building em Nova York, de PHILIP JOHNSON e JOHN BURGEE (1982). A
perceptível recorrência à imagem de templos fora anunciada pelo Rolls

1
JENCKS, Charles. Late-modern Archicteture. New York: Rizzoli, 1980, p. 06-10.
2
Id. ibidem, p. 20.

24
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Royce Grill on Wall Street, também em Nova York, de HANS HOLLEIN (1966).
Doze anos depois da construção desse último prédio, o mesmo arquiteto
concebeu o projeto Austrian Travel Bureau, em Viena (1978). Destacamos
nesse último exemplo a mistura desprovida de sentido entre os horizontes
culturais mais afastados: a ruína grega, a cúpula indiana e as palmeiras
marroquinas3. Ele não vê nessas construções a menor preocupação com o
emprego de convenções artísticas da arquitetura. Bem ao contrário: a união
de símbolos os mais diversos e a distorção dos significados são explícitas.
Trata-se de mostrar que em um universo arquitetural particular não
importa quais imagens podem ser misturadas.
Tomemos um outro exemplo no domínio da pintura. Segundo o
geógrafo DAVID HARVEY, no livro The condition of postmodernity,
RAUSCHENBERG foi o pioneiro do pós-modernismo com Persimmon (1964) e
outras colagens4. De fato, nós percebemos nas telas desse pop artist a ruptura
fundamental da distinção clássica entre pintura e escultura, entre foto e
pintura. Ademais, assinalamos o uso de materiais pouco convencionais. A
pintura torna-se escultura e vice-versa; o universo da foto é misturado com
o da pintura. A esta ambigüidade acrescentamos portanto um outro
atributo, a indefinição. Em rigor, nós não podemos decidir se certas telas
pós-modernas são verdadeiramente telas ou esculturas, ou os dois ao
mesmo tempo. No entanto, é necessário reforçar que a questão é muito mais
complexa. Parece-nos mais honesto falar em motivos pós-modernos do que
em telas ou esculturas pós-modernas. Esses motivos nos são dados
sobretudo pelo pop art de WARHOL ou de JONES, o neo-dadaísmo de JASPER
JOHNS, o novo realismo francês, o futurismo ou o minimalismo. Nós
consideramos que há uma profunda relação entre essas escolas artísticas e o
pós-modernismo, porque elas lhe deram a fonte e os instrumentos
necessários, preparando o terreno para a ambigüidade estética, para o
anonimato ou impersonalização do artista manual.
Mas isso não nos parece ainda suficiente. Tornemo-nos um pouco em
direção à literatura e à arte dramática. Também na ficção percebemos a
transição do moderno ao pós-moderno. No livro Postmodernist fiction, BRIAN
MCHALE apresenta esse fato na obra de SAMUEL BECKETT, CARLOS FUENTES
e VLADIMIR NABOKOV5. Todos os instrumentos lingüísticos são permitidos;

3
Id. ibidem, p. 20.
4
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 57.
5
MCHALE, Brian. Postmodernist fiction. London: Methuen, 1986, p. 219-222.

25
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as fusões de estilos, de ações e os ritmos são deliberadamente aleatórios.


Uma vez mais nós caímos na dificuldade de identificar a separação entre o
moderno e o pós-moderno. Todos esses materiais eram já empregados pelos
modernistas. A idéia de criação de zonas intertextuais, por exemplo, já era
praticada por JAMES JOYCE, na primeira metade do Século XX. O que nos
parece mais correto é visualizar o pós-modernismo como uma radicalização
desses instrumentos. Todavia, acentuando uma “libertinagem” literária, o
pós-moderno acaba por celebrar o irreal, como sublinha MCHALE6. No
cinema, o fenômeno é parecido. Vejamos, por exemplo, Mulholland Drive
(2001), de DAVID LYNCH. Há uma livre passagem da vigília ao sonho, da
realidade à imaginação, a ponto de o espectador não saber mais quais são os
seus limites. Na música, observamos o mesmo fenômeno. Depois de toda a
complexidade da música dodecafônica, das melodias atonais e do silêncio
de JOHN CAGE, qualquer gratuidade sonora ou vazio tornou-se música. De
acordo com BÉATRICE RAMAUT-CHEVASSUS, as obras de POUSSEUR,
STOCKHAUSSEN e PÄRT são os símbolos de uma virada pós-moderna7. Ela
considera que as características da música pós-moderna são o retorno à
melodia tonal com a utilização de notas pólo, a repetição e o minimalismo; a
nova simplicidade; a colagem; a citação metafórica – tudo isso colocando em
relação diversos elementos (por uma espécie de ecletismo) e colocando em
evidência um “processo”8. É necessário acrescentar a aparição e a moda da
Rave party, uma degradação musical onde o músico vira um DJ, ou seja, um
gestor de sonoridades mecânicas pré-programadas. Essas análises juntam-se
às impressões estéticas relevadas anteriormente. Nós podíamos apresentar
outros exemplos e analisá-los mais minuciosamente, o que não é a
finalidade desta exposição. Os casos citados parecem-nos suficientes para
tentar uma primeira síntese.
Todos os exemplos escolhidos concernem ao campo estético, porque
através dele visualizamos toda uma nova série de atributos, de processos
artísticos, de instrumentos e técnicas, permitindo a identificação perceptiva
de uma intenção pós-moderna. Destacamos algumas características
preliminares mais ou menos presentes em todos os domínios: a mistura
desprovida de sentido, a fusão de estilos, a recusa das convenções estéticas,

6
Id. ibidem, p. 222.
7
RAMUT-CHEVASSUS, Béatrice. Musique et postmodernité. Paris: Presses universitaires de France, 1998,
p. 30-33. Mais precisamente, a ópera Votre Faust, de Pousseur, apresentada em Milão (1969); o
Mantra, de Stockhausen (1970), e a Troisième Symphonhie, de Pärt (1971).
8
Id. ibidem, p. 29-82.

26
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a ruptura com as divisões clássicas da arte, a ambigüidade, a indefinição, o


universo onírico e irreal, o anonimato e o vazio. Esse conjunto de atributos
revela duas marcas da estética pós-modernista. O pós-moderno, o fim da
vanguarda, não passa de uma continuação do moderno, a sua conseqüência
íntima e o seu esgotamento – nesse ponto estamos de acordo com
LIPOVETSKY9. Em oposição à absurdidade explícita da obra pós-modernista,
há uma coerência explícita que a sustenta. Não há verdadeiramente uma
ruptura entre o pós-moderno e o moderno, de preferência uma mudança de
orientação e de intenção. Todas as características agrupadas acima estão de
alguma maneira em relação com a arte moderna. Entretanto, o modernista
estava engajado em uma atividade produtiva, provida de sentido e de
criatividade, a fim de romper com os limites acadêmicos e de afirmar a
particularidade da sua obra. O artista pós-moderno, com freqüência muito
desconfiado da criatividade e da possibilidade mesma de dar um sentido
estético à sua obra, faz um uso explícito do no sens e do absurdo. Mas se nós
adotamos a perspectiva do artista – e não a do espectador – torna-se
possível captar a sua intencionalidade e uma coerência escondida atrás do
no sens. Olhando mais de perto, a mistura desprovida de sentido não tem,
no fundo, nenhum conteúdo, a complexidade da fusão de horizontes se
resume a uma simplicidade conceitual. A liberdade estética conquistada
pelos modernistas é conduzida ao extremo, a ponto de se inverter, nós
recaímos muitas vezes na banalidade, no quotidiano de consumo, na alusão
ao imediato, na figuração. O livre vai-e-vem entre o real e o imaginário é ele
mesmo ilusório: nós sabemos que a cena estética mais real ou a mais onírica
não são mais do que uma cena imaginária.
Descobrimos, portanto, um gosto particular do pós-moderno para a
banalidade e pelo no sens. Pelas novas ferramentas artísticas, o homem
torna-se cada vez mais anônimo e mais inessencial atrás da mecanização e
da plastificação da arte. A intenção é clara: lembremos de ANDY WARHOL e
do seu “I want to be a machine”. O artista pós-moderno quer se perder, é o
sujeito querendo-se inerte. Para retomar uma expressão de SARTRE, ao
proveito do no sens nós encontramos a intenção clara de uma “l’abolition de
l’ordre pratique”10. Esses desvios nos mostram que a particularidade, o
imediatismo e o no sens aparentes nos remetem a uma intenção

9
LIPOVETSKY, Gilles. L’Ere du Vide – Essais sur l’Individualisme Contemporain. Paris: Gallimard,
1983, p. 89-151.
10
SARTRE, Jean-Paul. L’Idiot de la famille – Gustave Flaubert, de 1821 a 1857. Vol. II. Paris: Gallimard,
1988, p. 1287.

27
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surpreendente, cuja verdade estética mais profunda é absolutamente


contraditória – o artista pós-moderno está mergulhado na massividade, na
inércia e no vazio.

2 – O Q UE D IZEM OS P ÓS -M ODERNOS ?
Descobrimos no ponto anterior que o artista pós-moderno nos mostra
a sua intenção estética quando ele recusa toda intenção. Mas isso não é mais
do que uma primeira descrição do pós-modernismo, a mais acessível e
imediata. Se nós queremos, no entanto, ir mais longe para examinar o
fenômeno em termos mais amplos (para identificar o sentido de uma
sociedade pós-moderna), é necessário inicialmente considerar a
legitimidade desta questão. Nós tentaremos fazê-lo segundo os próprios
pós-modernos. O que eles dizem a propósito do pós-modernismo.
Não há um consenso entre os teóricos pós-modernos. Estamos de
acordo com YVES BOISVERT, segundo o qual “ninguém se entende sobre a
exata composição discursiva do corpus pós-moderno”11. Todavia, ele tentou
encontrar alguns traços comuns entre os pós-modernistas, e nós retomamos
aqui essa tarefa, a fim de encontrar as idéias fundamentais partilhadas por
eles. Na França, La Condition Postmoderne, de JEAN-FRANÇOIS LYOTARD, já é
uma referência para os pós-modernistas. Nesse texto, que originalmente era
um rapport sobre o saber proposto junto ao governo do Québec, o autor
define o pós-modernismo como “a incredulidade em relação às
metanarrações”12. Nós concordamos com o fato de que atualmente há uma
desconfiança à propósito da metanarração, mas vejamos melhor o que ele
acrescenta a esta constatação. Ela é uma conseqüência do progresso
científico e ao mesmo tempo este a supõe: o pós-modernismo e a ciência se
condicionam mutuamente. Sem recurso à metafísica e à legitimação
metanarrativa, a única legitimação do saber viria da troca. Vemos, portanto,
a primeira conseqüência explícita do seu pensamento: o saber tornando-se
saber-mercadoria. O fim da metanarração implica uma nova concepção da
linguagem. Para compreender melhor o seu pensamento, parece-nos
essencial a retomada do conceito de différend: “Diferentemente de um litígio,
um différend seria um caso de conflito entre duas partes (ao menos) que não
poderiam ser divididas eqüitativamente por falta de uma regra de

11
BOISVERT, Yves. Le Monde Postmoderne – Analyse du discours sur la postmodernité. Paris: Éditions
L’Harmattan, 1996, p.14.
12
LYOTARD, Jean-François. La Condition Postmoderne. Paris: Les Editions de Minuit, 1979, p.07.

28
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julgamento aplicável às duas argumentações”13. Ou seja, trata-se de


descrever conflitos de linguagem na ausência de uma metanarração.
Primeiramente, podemos acreditar que partindo desse problema o autor
gostaria de expressar o que é um différend para retirá-lo de sua condição de
vítima: “Fazer justiça ao différend é instituir novos destinatários, novas
significações, novos referentes para que o erro consiga se expressar e que o
querelante cesse de ser uma vítima”14. Mas é absolutamente o contrário o
que se passa. Se ele quer fazer cessar a condição de vítima é porque ele
mesmo colocou o que ele chama de différend como uma postulação
condicionada pela idéia de vítima na sua teoria da linguagem: há
inicialmente uma vitimização. Para LYOTARD, a linguagem e a verdade
dependem do referente, resultado do que ele chama de protocolo15. O grande
problema é que nós não temos necessidade de testemunhas ou de vítimas
para discutir uma verdade histórica. Tomemos o exemplo colocado por ele.
A falta de vítimas de câmaras de gás (porque eles foram mortos) seria um
caso de différend. No entanto, não temos necessidade de ser uma vítima ou
mesmo um testemunho desse escândalo histórico para saber que esse
terrível genocídio ocorreu na metade do Século XX. De fato, uma verdade
histórica não se subordina à discussão pública; a verdade e o horror das
câmaras de gás não dependem de um protocolo. E não esqueçamos que para
sustentar o fim das metanarrações é necessário pelo menos tocar a filosofia e
cair numa metanarração. Como poderíamos falar de um différend sem
nenhum critério? Ao querer negar as metanarrações, cada vez que
estivéssemos frente ao différend, nós apelaríamos à metafísica da
comunidade para tentar compreender como o différend se torna acessível ao
discurso. Subordinando a realidade ao referente (aquilo sobre o qual
falamos) e este ao procedimento, nós não podemos escapar a uma outra
metafísica, a do referente protocolar.
Além da desconfiança contra as metanarrações – embora ela possa ser
reveladora de uma nova metafísica – os pós-modernos aceitam a idéia de
que nós estamos em período pós-industrial. O sociólogo americano DANIEL
BELL sustentou essa idéia em 1974, quando de uma conferência intitulada
Toward the Great Instauration: Religion and Culture in a Post-Industrial Age,

13
Idem. Le Différend. Paris: Les Editions de Minuit, 1983, p. 09. Optamos por não traduzir o conceito.
Ver ainda na p.24: “Eu gostaria de chamar différend o caso no qual o querelante é desprovido dos
meios de argumentar e se torna por esse fato uma vítima”.
14
Id. ibidem, p. 29.
15
Id. ibidem, p. 17.

29
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publicada no livro Les Contradictions Culturelles du Capitalisme alguns anos


mais tarde. Segundo o autor, “pós-industrial” designa a concentração das
atividades sobre os serviços – profissionais e técnicos – como um “jogo entre
pessoas”, período de informação e de saber intensivo16. LYOTARD e DAVID
HARVEY são dois dos partidários desta hipótese. Efetivamente, o primeiro
baseia-se em estatísticas nacionais dos Estados Unidos17, confirmadas por
outras pesquisas de escala mundial apresentadas por HARVEY18, segundo as
quais há uma mudança de composição das categorias de trabalhadores. É
verdade que a categoria dos profissionais liberais e dos técnicos
empregados aumentou, enquanto que a dos operários de usina ou agrícolas
diminuiu. No entanto, esse êxodo não se deve ao fim da industrialização –
já que a sociedade de consumo é cada vez mais dependente da indústria –,
mas à automação, um fenômeno particular e interno daquela. A migração
do campo à cidade, das usinas à prestação de serviços técnicos é uma
conseqüência direta de um novo tipo de industrialização. Em todo caso, isso
é apenas uma questão de denominação: a constatação do êxodo e da
transformação social fundada para além dos teóricos pós-modernos. ANDRÉ
GORZ chega a afirmar mesmo a existência de um neoproletariado pós-
industrial. Ele sustenta a mesma premissa, segundo a qual “o trabalho
torna-se um meio para alargar a esfera do não-trabalho”19, mas tirando disso
outras conclusões. A extensão do tempo livre marca a inversão de uma
relação de subordinação e o fim da economia política com o advento de um
socialismo pós-industrial. Nós retomaremos esse tema ao final.
Há uma terceira característica mais ou menos acentuada e partilhada
pelos pós-modernistas: estamos numa sociedade de consumo. JEAN
BAUDRILLARD foi um dos primeiros a empregar essa expressão e a ver nesse
fenômeno o alimento quotidiano de uma sociedade guiada pelos mitos e
estruturas fundadas na mass media20. Mais recentemente, LIPOVETSKY retoma
essa mesma questão para mostrar a contradição entre a felicidade projetada
pelo consumo e a insatisfação cotidiana na nossa “sociedade de

16
BELL, Daniel. Les contradictions culturelles du capitalisme. Paris: Presses Universitaires de France,
1979, p. 157 et suivants, p. 206.
17
LYOTARD, Jean-Fraçois. La Condition Postmoderne. Paris: Les Editions de Minuit, 1979, p. 14.
18
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 157.
19
GORZ, André. Adieux au prolétariat – au-delà du socialisme. Paris: Editions Galilée, 1980, p. 123-
124.
20
BAUDRILLARD, Jean. La Société de Consommation – ses mythes et ses structures. Paris: Editions
Denoël, 1970, p. 270 et suivantes.

30
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hiperconsumo”21. Mas bem antes dessas constatações pós-modernistas (ou


hipermodernas como prefere dizer LIPOVETSKY, o nome não muda nada da
idéia), por exemplo, a fetichismo do produto e da propriedade foram
assinalados por MARX e por SARTRE. O produto torna-se mercadoria, o
proprietário toma seu ser-inerte da propriedade, do seu interesse. A
industrialização da cultura e a massificação da arte foram largamente
denunciadas por ADORNO e pela Escola de Frankfurt. Nós descobrimos com
ele o poder industrial sobre a cultura, que conduz o consumo ao
entretenimento, ou seja, à exclusão de toda novidade. Sublinhamos ainda a
perspectiva de GUY DEBORD, em La Société du Spectacle, segundo a qual: “O
espetáculo se submete aos homens vivos na medida em que a economia lhes
submeteu totalmente” e “o consumidor real torna-se consumidor de
ilusões”22. Tudo isso foi dito antes dos pós-modernos. Estes ao menos
expuseram outros aspectos do consumo na sociedade atual. Para
BAUDRILLARD, o consumo tornou-se um terreno de solicitude e de
repressão, de paz e de violência. A expressão “alimento cotidiano” nos dá
uma bela elucidação. Tudo isso se arranja no nível da necessidade em
sentido largo: o consumo visa à satisfação de um desejo. Todavia, numa
sociedade de consumo, ocorre que esse desejo já é imposto e orientado de
fora, há um alargamento artificial do conceito de necessidade para fazer
aumentar o consumo e, por conseqüência, o lucro.
Ainda a respeito do consumo, BATAILLE introduziu uma distinção
muito importante: “A primeira, redutível, é representada pelo uso de um
mínimo necessário, pelos indivíduos de uma sociedade dada, à conservação
da vida e à continuação da atividade produtora. A segunda é representada
pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os lutos, as guerras, os cultos,
as construções de monumentos de luxo, os jogos, os espetáculos, as artes, a
atividade sexual perversa (ou seja desviada da finalidade genital)
representam do mesmo modo atividades que, ao menos nas condições
primitivas, têm o seu fim nelas mesmas”23. Essa constatação lhe permite
criticar a concepção clássica de utilidade e de colocar em evidência a noção
de dispêndio (sobretudo improdutivo). Assim, o autor mostra a relação entre

21
LIPOVETSKY, Gilles. Le Bonheur Paradoxal: Essai sur la société d’hyperconsommation. Paris:
Gallimard, 2006.
22
DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 1992, p. 22 et 44. O livro foi publicado em
1967.
23
BATAILLE, Georges. La Part Maudite. Paris: Editions de Minuit, 1967, p. 28.

31
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o consumo de riquezas e a maldição do excesso de energia24. Porém, nós


devemos acrescentar a tudo isso que o excesso de energia natural não prova
que nós estamos em um universo de abundância de meios para satisfazer
nossas necessidades. Parece-nos que mesmo o conceito de dispêndio
improdutivo pressupõe o de escassez, que é sempre subjacente às relações
de produção, como disse SARTRE na Critique de la Raison dialectique25, e nós
podemos também afirmar que eles estão na base das relações de consumo.
No que concerne ao campo estético, já examinamos no capítulo
anterior a que o pós-modernismo estético se refere, seja do ponto de vista
do espectador, seja do artista. Retomamos o mesmo fenômeno, agora para
saber como os próprios pós-modernistas explicam esse movimento. Fica
sempre a questão de saber se o pós-modernismo é a conseqüência mesma
do modernismo ou uma ruptura paradigmática. Em todo caso, a passagem
da modernidade a uma pós-modernidade é unanimidade entre eles.
LIPOVETSKY afirma essa passagem enquanto esgotamento do modernismo26.
BAUDRILLARD apresenta nosso estado de coisas atual por uma dúvida: “o
que fazer depois da orgia (moderna)?”27. VATTIMO apresenta o advento do
pós-moderno pela mobilidade de interpretação28. O caráter ressonante nos
textos desses três autores é o aspecto do vazio, ou como um aspecto do
esgotamento, ou como um sentimento que segue à agitação moderna, ou
ainda como a afirmação do niilismo.
O individualismo é também um aspecto bastante reforçado pelos pós-
modernistas. DAVID HARVEY assinala o movimento e a interpretação da
Fordist modernity e da flexible postmodernity29, reservando um lugar para o
sujeito. Podemos dizer a mesma coisa para a concepção pós-industrial de
DANIEL BELL, caracterizada pela “ação entre indivíduos”, uma relação que
não se afirma mais contra a natureza (pré-industrial), ou contra a natureza
fabricada (industrial)30. Tal idéia de individualismo também está muito

24
Id. ibidem, p. 62 e seguintes.
25
SARTRE, Jean-Paul. Critique de la Raison dialectique, Tome I – Théorie des Ensembles Pratiques.
Paris: Gallimard, 1960, p. 210-212.
26
LIPOVETSKY, Gilles. L’Ère du Vide – Essais sur l’Individualisme Contemporain. Paris: Gallimard,
1983, p. 90-151.
27
BAUDRILLARD, Jean. La Transparence du Mal – Essai sur les phénomènes extrêmes. Paris: Galilée,
1990, p. 11.
28
VATTIMO, Gianni. La Fine della modernità. Milan: Garzanti, 1999.
29
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 340.
30
BELL, Daniel. Les contradictions culturelles du capitalisme. Paris: Presses Universitaires de France,
1979, p. 206.

32
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presente no pensamento de LIPOVETSKY, mas aqui ela nos conduz ao vazio e


ao amorfismo. MICHEL MAFFESSOLI, mais otimista e holista, reage à idéia de
individualismo. Ele sugere que apesar da desumanização e do
desencantamento do mundo moderno, nós podemos encontrar uma lógica
de fusão nas redes de solidariedade na base de um processo de
desindividualização nas sociedades pós-modernas31. Ele nos parece mais
próximo ao que a sociedade pós-moderna nos propõe em aparência como
um resultado (o fim do indivíduo pela relação entre a massa e as tribos).
Isso pode mesmo se tornar o ideal do pós-moderno: o anonimato. Mas nós
sublinhamos que, de todo modo, é o indivíduo que se submete
intencionalmente à massa. A tribo é apenas uma relação residual dessa
operação serial. Portanto, para os pós-modernos, ou o indivíduo se encontra
relativizado e vazio, ou não há mais indivíduos.
Esses são os conceitos essenciais retomados ou criados pelos pós-
modernos, mais ou menos distribuídos entre eles: o período pós-industrial,
o fim das metanarrações, a sociedade de consumo, o esgotamento do
modernismo e um novo individualismo. Vemos bem do que se trata: uma
empresa de constatação e de justificação de um estado de coisas, muito mais
do que uma reforma ou questionamento. Doravante, nós tentaremos
compreender o sentido do pensamento hemorrágico pós-moderno.

3 – A H EMORRAGIA DO D ISCURSO E O P ÓS -M ODERNISMO


N ORMATIVO
A recepção pós-modernista de NIETZSCHE, HEIDEGGER e DERRIDA dar-
nos-á uma primeira chave da hemorragia do discurso. Veremos como os
pós-modernos operam uma distorção intencional de seus pensamentos.
Evidentemente, nossa finalidade não é sustentar os conceitos desses
filósofos, ela se limita a retornar os seus discursos contra os pós-modernos
ou contra o seu uso equivocado. Por certo, esse assunto mereceria uma
análise mais aprofundada e rigorosa, que nós não podemos realizar aqui e
tampouco é nosso objetivo. Proporemos simplesmente uma ilustração a
partir de alguns problemas particulares concernentes ao niilismo, ao
relativismo e ao diferencialismo pós-modernos. Essa escolha não é fruto do
acaso; nós entendemos que a deformação do pensamento desses filósofos
transformou-se na essência mesma do pós-modernismo. No livro La fine de

31
MAFFESSOLI, Michel. Le Temps de Tribus – Le déclin de l’individualisme dans les sociétés de masse.
Paris: Meridiens Klincksieck, p. 07-20.

33
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la modernità, GIANNI VATTIMO afirma: “Para NIETZSCHE todo o processo do


niilismo é resumível à morte de Deus, ou também na ‘desvalorização dos
supremos valores’. Para HEIDEGGER, o ser se aniquila enquanto se
transforma completamente no valor. Esta caracterização do niilismo é
elaborada por HEIDEGGER de modo a incluir também NIETZSCHE, o niilista
completo que é NIETZSCHE; ademais, para HEIDEGGER pareça haver um
possível e desejável além do niilismo, enquanto que para NIETZSCHE o
advento do niilismo é tudo o que devemos esperar e augurar”32. Não se trata
aqui de retomar o pensamento de VATTIMO como um todo, mas nessa
passagem, vejamos a que ponto ele conduz sua interpretação de NIETZSCHE
e de HEIDEGGER para sustentar sua “apologia do niilismo”. É necessário
imediatamente lembrar que o niilismo em NIETZSCHE é uma questão
complexa, sem resposta unívoca. Podemos inicialmente associá-lo à filosofia
de SCHOPENHAUER33, trata-se de uma má consciência, da consciência infeliz
de ser: “esta coisa sinistra entre todas: a ‘última vontade’ do homem, a sua
vontade de nada, o niilismo”34. Na terceira dissertação da Genealogia da
Moral, NIETZSCHE apresenta o processo de formação do ideal ascético,
criticando a moralização na arte, na filosofia, na religião e na ciência. Eis a
última frase dessa obra: “O homem prefere ainda ter a vontade de nada do
que não ter nenhuma vontade”35. Leiamos ainda uma definição no Assim
falava Zaratustra: “Eis aqui o homem sem desgosto, Zaratustra o próprio, o
vencedor do grande desgosto”36. Ou seja, o homem que venceu a vontade de
nada. Ora, ele não quer de nenhuma forma dizer que o homem chegará ao

32
VATTIMO, Gianni. La Fine della modernità. Milan: Garzanti, 1999, p. 28.
33
Em Le nihilisme et la nostalgie de l’Être, Mathieu Kessler apresenta as diferentes modalidades de
niilismo segundo NIETZSCHE: 1) nihilisme larvé ou implicite, dans le judéo-christianisme ou le
platonisme, par exemple; 2) nihilisme incomplet, dans le positivisme ou le criticisme, par exemple;
3) nihilisme complet, dans le matérialisme mécaniste, par exemple; 4) nihilisme actif, dans le
processus de généalogie ou dans le terrorisme des nihilistes russes, par exemple; 5) nihilisme passif,
dans l’hédonisme, l’individualisme mercantile, le consumérisme, par exemple; 6) nihilisme
extatique (ekstatischer nihilismus), dans l’affirmation de l’éternel retour comme pensée sélective et
Krisis par excellence (KESSLER, Mathieu. Le nihilisme et la nostalgie de l’Être, in NIETZSCHE et le
temps des nihilistes. Paris: Presses Universitaires de France, 2005, p. 33).
Todavia, há uma grande diferença entre o último tipo de niilismo e todos os outros: Cet extatisme
signifie le fait de pousser à l’extrême les implications du nihilisme pour se ‘tenir debout hors de’
(étymologie de ‘ex-stase’) c’est-à-dire ‘sortir tout droit’ du nihilisme (Id. ibidem, p. 34).
34
NIETZSCHE, Friedrisch. La Généalogie de la Morale. Paris: Editions Ferdinand Nathan, 1981, p. 169.
35
Id. ibidem, p. 203.
36
Idem. Also sprach Zarathustra. Œuvres complètes. Vol. 5. München: Verlag, 1980, p. 334. “Diess ist
der Mensch ohne Ekel, diess ist Sarathustra selber, der überwinder des grossen Ekels, diess ist das
Auge, diess ist der Mund, diess ist das Herz Zarathustra’s selber”.

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niilismo porque este era já uma decadência vivida na sua época, o último
movimento pelo qual o homem inverte sua vontade de potência contra ele
mesmo. Para NIETZSCHE, a aposta filosófica consiste absolutamente no
inverso disso: ir além do niilismo negativo pela afirmação da vida. Nós
poderíamos, ao contrário, acrescentar que a vontade de no sens do pós-
moderndo é apenas um novo avatar desta vontade de nada, no fundo
partidária do “plebeísmo do espírito moderno”37.
No que concerne HEIDEGGER, a questão é igualmente complexa,
sobretudo porque o filósofo alemão mudou manifestamente de método
para realizar a passagem da compreensão do ser ao ser da compreensão.
Mesmo levando em conta essa mudança, a idéia fundamental da diferença
ontológica, sempre afirmada no seu pensamento, não nos parece autorizar a
considerá-lo como niilista. Em A ultrapassagem da Metafísica (1938/39),
HEIDEGGER argumenta que o niilismo, enquanto aniquilação da verdade, é o
último triunfo do espírito. Ele nos remete assim a sua interpretação sobre
NIETZSCHE, cuja “metafísica” seria a realização da metafísica. Em outras
palavras, a antimetafísica é ainda metafísica38. Em Ser e Tempo, o sentido do
ser se através da temporalidade e a compreensão do ser está sempre em
relação com o nada. O culto pós-moderno do imediatismo não passa de
uma nova obsessão pelo presente, na perspectiva daquilo que HEIDEGGER
chama “a compreensão vulgar do tempo”. A temporalidade horizontal-
ekstática se temporaliza pelo porvir39. Em realidade, se nós relemos
HEIDEGGER é possível afirmar que esse gosto pós-moderno pelo imediato só
pode ser vivido na inautenticidade. A crítica do niilismo também é colocada
por SARTRE em termos de temporalidade: “Não ser nada é negar o tempo,
dissolve o porvir”40. A propósito do que VATTIMO escreveu, nós lembramos

37
Idem. La Généalogie de la Morale. Paris: Editions Ferdinand Nathan, 1981, p. 88.
38
HEIDEGGER, Martin. Metaphysik und Nihilismus. 1. Die Überwindung der Metaphysik
(Gesamtausgabe). Frankfut: Vittorio Klostermann, 1999, p. 45-47. “10. Der Nihilismus als
Vernichtung der Wahrheit (...). 11. Der Nihilismus als der höchste Triumph des‚ Geistes’ (...). Und
auβerdem: anti-metaphysische Denkweise ist immer noch, ja erst recht anti-metaphysisch, so zwar,
daβ sie Metaphysik – sie umkehrend un auskehrend – vollendet”.
39
Idem. Sein und Zeit. Tübingen: Verlaf, 1972, p. 426. “Die ekstatisch-horizontale Zeitlichkeit zeitigt
sich primär aus der Zukunft. Das vulgäre Zeitverständnis hingegen sieht das Grundphänomen der
Zeit ist Jetzt und zwar dem in seiner vollen Struktur beschnittenen, puren Jetzt, das man
‘Gegenwart’ nennt”.
40
SARTRE, Jean-Paul. L’Idiot de la famille – Gustave Flaubert, de 1821 a 1857. Vol. II. Paris: Gallimard,
1988, p. 1658. Dans un passage postérieur, le philosophe décrit le sens du immuable qui tient
Flaubert après la crise de Pont-l’Évêque. Cette remarque vaut d’ailleurs pour tout choix de
l’instant: Choisir l’instant, infime suspens, où l’avant et l’après se neutralisent, image temporelle

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que em O que é a metafísica?, HEIDEGGER afirma claramente que não é o ser


que se aniquila, é o nada que se nadifica em relação ao ser dos entes. A idéia
que ele desenvolve mais tarde, sobre a mudança de épocas da visão do
mundo (Die Zeit des Weltbildes), não parece implicar que o ser possa se
reduzir ao valor. O valor aqui não quer dizer outra coisa que um valor de
mudança paradigmático: o fato que o ser foi modificado na história pelas
mudanças paradigmáticas de cada época. Assim, a redução do Ser a um
valor de troca nos parece o contrário do que HEIDEGGER pensou.
Mas os mal-entendidos não param aí. Ainda é preciso ver como os
pós-modernos interpretam a obra derridiana. O filósofo da desconstrução e
da différance não foi pós-moderno. Notamos que na Encyclopedia of
Postmodernism, TAYLOR e WINQUIST tiveram o louvável cuidado de
salvaguardar que DERRIDA critica fortemente todos os “pós” e os “ismos”,
como tentativas de estabilizar sob uma etiqueta o que ele percebe em termos
de movimento. Em seguida, eles dizem que o seu trabalho devia ser
apreciado dentro da crítica pós-moderna mais larga à tradição da
Aufklärung41. Eles fazem uma distinção, mas tentam relacionar DERRIDA ao
pensamento pós-moderno. O geógrafo DAVID HARVEY considera a
desconstrução como um “potente estímulo aos pós-modernos”. Ela seria
“menos uma posição filosófica que uma maneira de pensar ou de ler os
textos”42. Ele ainda diz mais: “O efeito de uma tal pane na cadeia
significante deve reconduzir a experiência a uma ‘série de presentes puros e
independentes do tempo’. Não oferecendo qualquer contrapeso, a
concepção de linguagem derridiana se estende à produção de um certo
efeito esquizofrênico, explicando por esse fato, talvez, a caracterização
D’EAGLETON e de HASSAN do artefato típico do pós-modernista como

de l’Éternité, c’est s’accrocher au présent, affirmer qu’au-delà du moment vécu, il n’y aura rien
d’autre que la restitution de ce même moment. (p. 1882).
41
TAYLOR, Victor; WINQUIST, Charles. Encyclopedia of Postmodernism. Routledge: New York, 2003, p.
92. “Though Derrida is highly critical of any ‘posts’ and ‘isms’, what is more, of any attempt to
stabilize under a label what he perceives in terms of a movement (a ‘jet/ty’) his work needs to be
appreciated within the wider postmodern critique of the western enlightenment tradition, a
critique which is primarily the dialogue of this tradition with itself. Indeed, it is in his
interrogation of constitutive limits of enlightenment and his insistence on forcing it to take
responsibility for its discourse that his major contribution as a postmodern thinker lies”.
42
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 49. “Deconstructionism
(a movement initiated by Derrida’s reading of Martin Heidegger in the late 1960s) here enters the
picture as a powerful stimulus to postmodernist ways of thought. Deconstructionism is less a
philosophical position than a way of thinking about and ‘reading’ texts”.

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esquizóide”43. Portanto, não nos espantemos se certos filósofos analíticos


nos Estados Unidos partilhem dessa estranha leitura para dizer que o
método da desconstrução não é filosófico ou que DERRIDA é irracionalista.
Para além dessa incrível confusão, nós tentaremos retornar o pensamento
derridiano contra os pós-modernos. Na sua obra central, De la
Grammatologie, DERRIDA propõe uma nova concepção da escritura, fora dos
moldes do logocentrismo e da racionalidade ocidental. Essa tarefa complexa
exige uma desconstrução do conceito de signo no que diz respeito à
différance. Por esse meio, ele chega a mostrar que o fonocentrismo da
história da metafísica se confunde com a determinação historial do sentido
do ser em geral como presença. Mas a desconstrução não quer dizer
destruição, tampouco a différance conduz ao relativismo. Ela consiste em se
servir de um sistema metafísico de dentro dele mesmo para determinar a
metaforicidade da escritura como seu sentido próprio. Em outras palavras,
o seu método mostra como a escritura no sentido próprio (metáfora) resta
impensada pelo metafísico, designando porém a escritura sensível. Contra
as más interpretações, DERRIDA precaveu-se escrevendo: “Para perceber
convenientemente o gesto que nós esboçamos aqui, será necessário entender
de uma maneira nova as expressões ‘época’, ‘fechamento de uma época’,
‘genealogia histórica’ e inicialmente subtraí-los a todo relativismo”44. Contra
as alusões pós-modernas que nós citamos, nós afirmamos que a obra
derridiana não tem necessidade de ser situada junto ao pós-modernismo.
Assinalamos também que a crítica da Aufklärung não pode de nenhum
modo ser reduzida a esse último. Além disso, como disse RODOLPH GASCHÉ,
“o pensamento de DERRIDA é uma pesquisa propriamente filosófica que
leva muito a sério as regras clássicas da filosofia”45. Ou seja, a descontrução
é um método complexo que inaugura uma nova posição filosófica. Enfim, a
concepção da linguagem em DERRIDA não leva a nenhuma “pane” ou a um
irracionalismo; bem ao contrário, ela nos revela o sentido de toda
racionalidade.

43
Id. ibidem, p. 53. “The effect of such a breakdown in the signifying chain is to reduce experience to
a ‘series of pure and unrelated presents in time’. Offering no counterweight, Derrida’s conception
of language colludes in the production of a certain schizophrenic effect, thus, perhaps, explaining
Eagleton’s and Hassan’s characterization of the typical postmodernist artefact as schizoid.”
44
DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967, p. 26.
45
GASCHE, Rodolphe. Le Tain du miroir, Derrida et la philosophie de la réflexion. Paris: Galilée, 1995, p.
126.

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Parece-nos evidente que os pós-modernos operaram uma hemorragia


do discurso: a vontade ou a temporalidade tornam-se niilismo; a
relatividade se reduz ao relativismo; a diferença recai em diferencialismo.
Essa metamorfose não é um acaso, a hemorragia do discurso é provocada
tanto quanto é um objeto de volição, ela é ao mesmo tempo um resultado do
discurso pós-modernista e a finalidade dos pós-modernos em relação a
todos os discursos. Mas nós não nos contentamos em definir o discurso pós-
moderno como a hemorragia do discurso. É necessário captar o seu sentido
respondendo à questão – a que(m) ele serve? Nós o diremos sem demora: o
sentido do amorfismo discursivo é a salvaguarda de um estado de coisas, e
ele só pode se sustentar por um imperativo de sustentação. As afirmações de
que tudo é relativo e de que não há verdade é logicamente auto-destrutiva,
ela só pode se afirmar pela força inerte de um imperativo conservador. Este
imperativo não é apenas o fundamento do discurso pós-modernista, ele é
também o fundamento da sociedade ocidental atual. Nós consideramos que
o pós-modernismo não é apenas uma manifestação cultural ou um
movimento intelectual, nós estamos no movimento histórico pós-moderno,
instaurado simbolicamente depois da queda do Muro de Berlim e colocado
em fase aguda depois da queda das Twin Towers. É verdade que a expressão
é ambígua, uma vez que o significado do moderno continua sempre em
questão. Mas a precisão ou a adequação do nome não importa no instante,
pois ele poderá mudar depois da onda, ou depois da consumação total
desta moda. Em período histórico pós-moderno, que concepção histórica
podemos esperar de um pensamento hemorrágico e amorfo? JOHN FROW
nos responde bem explicitamente. “Uma maneira de descrever o objeto
imaginário chamado pós-modernismo é dizendo que ele é o nome de uma
queda da memória na história, ou da história na amnésia”46. Evidentemente,
não se trata do fim da história, é a história amnésica. Nós a chamaremos de
uma história doente de si mesma. Seu significado mais profundo é a nova
globalização, e seu sintoma é o imperativo de sustentação (o que é deve ser,
deve se manter). A forma mais eficaz de manter a nova ordem mundial se dá
roubando o sentido próprio da História e substituindo-o por uma
hemorragia imaginária. Já podemos intuir o sentido último desse
imperativo, mesmo sem conhecer todas as suas facetas, os seus fatores e as
suas conseqüências reais a longo termo: a conservação de uma estrutura

46
FROW, John. Time & Commodity Culture – Essays in cultural theory and postmodernity. Oxford:
Clarendon Press, 1997, p. 218. “One way of describing the imaginary object named postmodernity
is to say that is the name of a fall from memory into history, or from history into amnesia”.

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social controlada em rede, como o mercado, a internet e a mídia, ao fundo


de uma hemorragia discursiva superficial. Longe de alargar a liberdade
individual, essas redes controlam o indivíduo como diria MARCUSE. “Esse
reforço do controle social é adquirido não pelo terror, mas graça à
produtividade dos bens mais ou menos úteis do aparelho social”47.
A afirmação do niilismo e do relativismo não se faz sem
conseqüências. Nós vimos que essa afirmação só pode se manter por um
imperativo, porque ela se volta contra ela mesma. Assim, é o imperativo de
sustentação que vai manter uma sociedade rasgada pela contradição
relativista. Mas se queremos visualizar um estado de coisas pós-moderno,
um movimento ou um período histórico, será necessário precisar no
concreto quais são os fenômenos paradoxais essenciais desta sociedade.
Tanto quanto o relativismo – por si mesmo contraditório – depende do
imperativo escondido (a sua condição de possibilidade para sustentar mundo
prático), as “constatações” dos pós-modernos que expusemos no ponto
precedente também dele dependem. Os pós-modernos limitam-se a uma
empresa de constatação (em termos de justificação), sem perguntarem pelas
condições de possibilidade desta última. A contradição do relativismo nos
permitiu descobrir seu sentido profundo, ancorado no imperativo de
sustentação, do mesmo modo como a constatação pós-moderna. Concebemos
três paradoxos entre um nível aparente – o mundo e o discurso hemorrágico
pós-moderno que o justifica – e um nível velado: que garante o seu sentido
mais interno por meio de um imperativo: a) o paradoxo sincrônico (da
singularidade na massividade); b) o paradoxo diacrônico (da velocidade
pela inércia); c) o paradoxo discursivo (o no sens e a vontade de no sens).
Toda a promessa pós-moderna de heterogeneidade se resolve na
homogeneidade do mesmo. O maior escândalo da sociedade atual é que
toda revolta é proibida. Isso não diz, nós não temos sequer necessidade de
ouvi-lo: toda revolta atualmente tende à dispersão. Toda novidade tende a
mergulhar no oceano de informações. Toda reformulação tende a se calar,
ineficaz no sistema. Nós vemos portanto o sentido do diferencialismo: é a
afirmação absoluta da diferença homogeneizada e o seu limite bem
institucionalizado. Ora, a diferença é afirmada não para fazer justiça a ela
mesma, mas tão simplesmente enquanto pura iteração: a mistura amorfa, as
relações sem interiorização e as simples colagens são bem-vindas ao pós-

47
MARCUSE, Herbert. Le vieillissement de la psychanalyse in Culture et société. Paris: Éditions de Minuit,
1970. Traduction de Gérard Billy, Daniel Bresson et Jean-Baptiste Grasset, p. 265.

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moderno. Se uma verdadeira diferença se impõe contra a ordem concreta


das coisas, ela deve tão logo se adaptar à massificação. É evidente que a
sociedade de consumo onde tudo se torna re-produção não escapa à
diferença massificada. Para melhor examinar o consumo, passemos ao
segundo paradoxo.
A velocidade de produção e de consumo é ela própria inerte e
automática. Ela é manipulada em direção a uma estabilidade do
desenvolvimento e a uma hierarquização fundada na institucionalização.
Na esteira de PAUL VIRILIO, a velocidade é o poder mesmo, ela faz parte da
economia e designa a passagem da geopolítica a cronopolítica48. Ele vê na
informática um meio de controle das populações. A internet e as tecnologias
de satélite tinham inicialmente finalidades militares. Ademais, a cibernética
é uma ameaça para a democracia pelo ilusionismo da publicidade. De fato,
o progresso da velocidade nos conduz a uma divisão da sociedade em
“classes de velocidade”49. A lógica da instantaneidade é o alimento
cotidiano da mídia, sobretudo da televisão e da internet. Sem dúvida, trata-
se de um controle institucionalizado, até mesmo militar. Mas tudo isso só
mostra a sua face em último caso. Inicialmente, o controle vem da própria
inércia do mundo de velocidade. Sua eficiência advém do fato que a inércia
é interiorizada pela cultura através da afirmação da velocidade. Se
olharmos bem, o sentido dos paradoxos diacrônico e sincrônico é o mesmo.
De fato, eles aparecem conjuntamente numa relação espaço-temporal.
No domínio estético, nós passamos rapidamente pela questão do
sentido, o último paradoxo. O no sens tão explícito na estética pós-moderna
revela justamente uma intenção embaladora: a negação absoluta do sentido
(de um movimento de totalização vivido na temporalidade) é apenas uma
totalização invertida, uma totalização por negação. Assim, há um sentido na
afirmação do no sens, que é ao mesmo tempo seu fundamento e a sua
contradição: a vontade de no sens. Em verdade, esse paradoxo não concerne
apenas ao domínio estético, mas a todo discurso que visa ao no sens ou ao
vazio. A estética é apenas a sua clara manifestação. Nós identificamos esta
vontade de no sens ao último niilismo, como uma última forma aparente da
vontade de nada, que havia sido descrita por NIETZSCHE. O nada aqui não é
desejado diretamente, mas obliquamente, já que a negação do sentido,

48
VIRILIO, Paul. Cybermonde, la politique du pire – entretien avec Philipe Petit. Paris: Editions Textuels,
1996, p. 22-23.
49
Id. ibidem, p. 14-16.

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enquanto negação, tira a sua força do nada. Mas se trata de uma negação
que se inverte contra ela mesma: em lugar de dinamizar, ela estabiliza. A
vivência de uma tal vontade só poderia ser passivizante. Aquilo que SARTRE
escreve no L’Idiot de la Famille, a respeito do jovem Flaubert, é também
válido para a atividade passiva do pós-moderno. “A vontade de aniquilação
vale inicialmente para ela mesma, e a sua significação mais aparente é a
expressão do ressentimento e a passividade”50.
O que nós chamamos aqui de “pós-modernismo normativo” é,
portanto, um imperativo de manutenção de um status quo da sociedade
ocidental contemporânea. Ele funda a possibilidade de afirmar e de viver a
contradição pós-moderna, pela qual se faz aparecer a ilusão de uma
realidade múltipla sobre a base de uma unidade serial do sincrônico, do
diacrônico e do discurso. Sabemos portanto qual é o sentido do imperativo,
interiorizado por cada um nas diversas estruturas da sociedade. Isso não se
faz em tensão e sem jogo de forças. Exatamente por esta razão há uma
intenção complementar de expansão do imperativo, até tratar o mundo
como uma totalidade fechada. Para ser eficaz é necessário que o imperativo
seja total e valha para a totalidade. Assim, cada tensão dialética particular
remete perpetuamente à nova metafísica do mesmo. Esta é a fonte da
unidade serial do mundo contemporâneo e ao mesmo tempo das
numerosas inegalidades sociais51.

4 – S OBRE A G LOBALIZAÇÃO P ÓS -M ODERNA E A


P OSSIBILIDADE DE S UA U LTRAPASSAGEM
Chegamos ao ponto decisivo de nosso ensaio. É necessário descrever
concretamente o processo de expansão, esse mecanismo que assegura o
movimento totalitário do imperativo de sustentação, para questionarmos
em seguida sobre as possibilidades de ultrapassá-lo. Esse processo é a
dimensão profunda da “globalização”; em outras palavras, uma expansão

50
SARTRE, Jean-Paul. L’Idiot de la famille – Gustave Flaubert, de 1821 a 1857. Vol. II. Paris: Gallimard,
1988, p. 1657.
51
A propósito da inegalidade social entre os países: “The economist Stanley Fischer has drawn
attention to two separate but contradictory trends in international inequality (Fischer, 2003). First,
he points to the fact that international inequality between countries was increasing over the
period 1980-2000. In order for between-country inequality to have decreased, countries that were
poor in 1980 would have had to experience higher rates of growth than rich countries”
(THOMPSON, Grahame F. Global Inequality, the ‘Great Divergence’ and Supranational
Regionalization. HELD, David et KAYA Ayse (coordination). Global Inequality. Cambridge: Polity,
2007, p. 178).

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em escala global. É evidente que a globalização não é um movimento


recente; segundo GÉRARD VINDT, ela começou no Século XVI e passou por
seis etapas52. Porém, sem esquecer as origens, o sentido diacrônico e as
formações sincrônicas anteriores da globalização (essenciais no seu
horizonte compreensivo), nós relevaremos apenas a globalização atual, essa
radicalização da globalização, que chamaremos de globalização pós-
moderna. Para tomar o sentido de tal processo pós-moderno, nós
visualizaremos seus aspectos centrais, de ordem econômico-política e
jurídica.
O sistema econômico mundial predominante é o capitalismo com
uma estrutura absolutamente nova e particular. Em um modelo de
concorrência sem um modelo concorrente, apenas as estratégias e as regras
secundárias são discutidas, não o jogo ele mesmo (ou seja, a formação de
um mercado universal). Os valores do liberalismo clássico são reafirmados e
radicalizados: a proteção da propriedade, a livre concorrência, a igualdade
entre os mercadores e o Estado mínimo. Tudo isso é potencializado por
fatores intrínsecos ao mercado (pelas novas relações de produção e de
consumo, pelo aumento progressivo de velocidade e pela criação de novas
redes de comunicação, em proporção mundial), tanto quanto por fatores
extrínsecos ao mercado, mas que servem para constituí-lo como uma
realidade fechada (o medo de uma hecatombe nuclear mundial). É verdade
que a prática do capitalismo é diferente entre as diversas regiões do globo.
BRUNO AMABLE, por exemplo, sustenta a existência de cinco modelos de
capitalismo atualmente. E nós ainda acrescentamos que ele esqueceu na sua
análise dos mercados particulares da América do Sul e da África53. Mas isso
não muda nada o nosso raciocínio, trata-se sempre de estratégias
capitalistas, de uma pluralidade que se dá num mesmo jogo. O

52
VINDT, Gérard. 500 ans de capitalisme – la mondialisation de Vasco da Gama à Bill Gates. Paris:
Éditions Mille et une nuits, 1998, p. 07. O autor apresenta a globalização distribuída nas seguintes
etapas: “a) 1500-1765 (Antuérpia- Amsterdão); b) 1765-1873 (Triunfo e a industrialização); c) 1873-
1914 (2e Revolução industrial, colonização e fim da hegemonia inglesa); d) 1914-1945
(Globalização da grande crise dos países capitalistas; e) 1945-1973 (Liberalismo das trocas e a
hegemonia americana); f) 1973 até o presente (Queda do bloco soviético, desenvolvimento do
capitalismo nos países do ‘terceiro mundo’, liberalização crescente do fluxo de bens, de serviços e
de capitais)”.
53
O autor sustenta a existência de cinco modelos de capitalismo na atualidade: 1) Capitalismo
liberal de mercado (EUA e Reino-Unido); 2) Capitalismo asiático; 3) Capitalismo europeu
continental; 4) Capitalismo social-democrata; 5) Capitalismo mediterrâneo (AMABLE, Bruno. Les
cinq capitalismes: diversité des systèmes économiques et sociaux dans la mondialisation. Paris:
Seuil, 2005, p. 221-290).

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hipermercado global tornou-se um fim em si mesmo, uma entidade


metafísica, uma fonte de crença e de imaginação, uma nova religião. Esse
fim deve ser dirigido, é necessário que os interesses econômicos tenham
uma política de interesse. Nós consideramos a tentativa de controle da
inflação e as privatizações como uma ilustração mais ou menos explícita
desta tendência neoliberal para todos os países do globo, na esteira de
HAYEK. A privatização é pensada aqui de uma maneira larga,
compreendida nela o deslocamento dos direitos de propriedade (do setor
público ao setor privado); a redução da sobrecarga governamental; a
redefinição das relações entre o Estado e a sociedade civil pela
subsidiariedade horizontal54. Essas três categorias são a especificação de um
só movimento que pretende diminuir o papel do Estado, redistribuindo a
prestação de serviços à esfera privada e engendrando novos mecanismos de
regulação como, por exemplo, as Agências Reguladoras. Nesse horizonte
mercante e pela decadência relativa do papel do Estado, nós
compreendemos o sentido econômico e político do imperativo de sustentação
de um status quo pós-moderno. Precisamos definir o que é o direito em
período pós-moderno e como os conceitos jurídicos são formulados em
consonância com o imperativo pós-moderno.
Inicialmente, visualizaremos a forma tomada pela expansão eficaz do
imperativo de manutenção, ou seja, a tendência de globalização do direito
para assegurar e regular o mercado e as novas redes internacionais.
Segundo a doutrina neoliberal, o próprio mercado tem uma função
reguladora mais capaz de organizar as relações humanas que o Estado.
Como disse ANDRÉ-JEAN ARNAUD: “As estruturas jurídicas são, assim,
levadas a ser adaptadas à interação econômica e à nova constituição social,
a ser colocadas em coerência com elas”55. Para o autor, a razão jurídica não
constitui a priori o seu objeto, este se dá ao observador. Ele tenta recuperar
através deste método a categoria jurídica do mercado e mostrar a
reconfiguração dos lugares de regulação. Nesse contexto, ele distingue cinco

54
AMMANATI, Laura. Le marché et l’État à l’heure de la mondialisation – les privatisations. THIRION,
Nicolas (Coordination). Le Marché et l’État à l’heure de la mondialisation. Bruxelles: De Boeck &
Larcier, 2007, p. 103-124. As três categorias de privatização são apresentadas e analisadas pela
autora nos seus diversos aspectos reguladores e orçamentários.
55
ARNAUD, André-Jean. Critique de la raison juridique 2 – Gouvernants sans frontières. Entre
mondialisation et post-mondialisation. Paris: Librairie Général de Droit et de Jurisprudence, 2003,
p. 94.

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tipos de globalização no quadro jurídico56. Ela nos servirá como constatação


de um direito pós-moderno. A primeira é a globalização pelo alto, referente
às intentes e aos blocos econômicos regionais, como o NAFTA, o
MERCOSUL, o ASEAN, o APEC ou a União Européia. É também a
globalização das instâncias internacionais como a ONU, a UNESCO, a OMC
ou das instituições como o FMI, o Banco Mundial e o G7. A globalização por
baixo seria uma contrapartida, uma desconcentração, permitindo a formação
de uma democracia global. Os exemplos trazidos pelo autor são as
autoridades reguladoras (as autoridades administrativas ou as agências de
regulação) que tratam da regulação das tecnologias, da Bolsa ou das
atividades do setor privado. A globalização através é representada pela
internet (abolindo as fronteiras e homogeneizando os modos de vida), pelas
empresas transnacionais, pelos mercados financeiros e pelo controle da
criminalidade transnacional. A globalização pelas bordas é apresentada seja
como alternativa no quadro do direito do Estado (como as vias parajudiciais
de regulação dos litígios), seja fora deste quadro (como o uso alternativo do
direito). A globalização para além é a dos direitos humanos, de uma parte, e
do meio ambiente e do clima (o “patrimônio comum da humanidade”), de
outra parte. Os blocos econômicos, as instâncias internacionais, as
autoridades reguladoras têm os objetivos precisos de criar, administrar e
controlar os direitos a partir da ordem reguladora jurídica. Mesmo se nós
considerarmos as vias parajudiciais, a internet ou as atividades do setor
privado, veremos que eles se organizam sob a forma normativa, seja
jurídica, seja não jurídica. Salvo naquilo que ANDRÉ-JEAN ARNAUD chama
de “uso alternativo do direito”, que nós não consideramos como um fruto
da globalização massifiante, mais, ao contrário, como manifestação de um
protesto em relação à inefetividade de um direito fundado absolutamente
na norma.
Essas estruturas normativas e institucionais globalizantes nos
apresentam uma nova ordem estabelecida. É preciso tentar captar o sentido
dessa “nova” ordem através do imperativo de manutenção. Coloquemos
em evidência a tendência de “desinstitutionalização do direito”, tal como
FRANÇOIS OST presenta em Le Temps du Droit e com a qual acorda a nossa
análise anterior. O filósofo mostra que o risco da precarização do tempo e
de desligamento das relações sociais são colocados à prova em três setores

56
Id. ibidem, p. 183-270. O autor designa as globalizações em inglês: “above”, “below”, “alongside”,
“through” and “beyond”.

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sensíveis do sistema jurídico: o familial, pelo teatro de uma privatização do


lar; o social, revelando a precariedade da condição salarial; e o penal, pelo
declínio dos ideais de reabilitação e pela tentação de um reforço securitário,
ou uma “sobrepenalização”57. Há dois índices dessas mudanças: de um lado,
a individualização forçada nas relações sociais; de outro, o declínio das
instituições e o retorno do estado de natureza (sob a forma de mercado)58. O
autor nos esclarece: “Com o mercado, a desinstitucionalização é
explicitamente erigida em projeto político; a desregulação que a acompanha
faz dela uma figura arquetípica do tempo da reconsideração. [...] Resulta daí
um tempo subdeterminado, desengajado, entregue unicamente à vontade
do instante: o tempo de uma sociedade reconduzida às dimensões do
mercado”59.
Tais considerações parecem ter estabelecido as disposições jurídicas
em relação aos fenômenos pós-modernos. Se nós olharmos bem para a
globalização e para a desinstituição aparente, notaremos que a tarefa
reguladora do direito não foi em nada colocada em questão. De fato, essas
duas características nos mostram bem a contradição: uma desintegração
totalizadora (em proporção global). Dito de outra maneira, o direito
adaptou-se ao pós-modernismo, mas o seu papel normativo não foi jamais
modificado. O sentido das normas mudou (privatização das ligações,
precarização do trabalho e declínio do ideal de reabilitação), bem como
houve uma criação de outras entidades reguladoras ao lado dos Estados.
Assim, o papel normativo continua intacto.
Mas é necessário olhar mais de perto essas estranhas conseqüências.
Uma desintegração que se faz totalizadora e global não é absolutamente
uma desintegração. Ela guarda sob novos modelos normativos o status quo
de uma certa ordem. As tendências de privatização e de desmantelamento
dos laços de socialização são estabelecidos sobre a forma do dever ser, como
se elas fossem a manifestação da ordem das coisas. É surpreendente que as
idéias concernentes ao sujeito de direito atual não sejam mais do que o eco
das categorias jurídicas mais antigas. Para escapar ao circuito mercantil, os
sujeitos de direito são considerados como objetos para poderem ser
considerados como não-mercadorias60. A personificação, subterfúgio

57
OST, François. Le Temps du Droit. Paris: Éditions Odile Jacob, 1998, p. 293.
58
Id. ibidem, p. 294.
59
Id. ibidem, p. 312-313.
60
THOMAS, Yan. Le sujet de droit, la personne et la nature – Sur la critique contemporaine du sujet de
droit in Le Débat, n. 100, maio-agosto 1998, p. 93.

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jurídico existente desde o direito romano e a Idade Média61, continua


servindo a tradição jurídica mais pós-moderna, acentuando o papel
demiúrgico do sujeito de direito em relação à natureza. Como diz
brilhantemente YAN THOMAS: “Tal seria o novo sujeito de direito: o sujeito
de um desejo ilimitado que se imporia como crédito; o sujeito capaz de
realizar seus apetites unicamente a título de uma capacidade jurídica
imprudentemente introduzida pela ciência jurídica moderna”62. Eis como a
lógica do mercado forçou a própria natureza a entrar no regime da
propriedade mercantil, como a natureza adquire uma personalização; ou
como as demandas pessoais aparecem por uma falsa atribuição de uma
validação legal do desejo. No fundo, só há aqui uma força inerte, um
conformismo engendrado por um imperativo de manutenção, um desejo
vazio que, no entanto, é suficiente para sustentar a ordem estabelecida.
Evidentemente que tomando consciência de tudo isso, nós
consideramos como uma tarefa filosófica de primeira ordem a
ultrapassagem do pós-modernismo. Mas é necessário saber qual é o sentido
de uma ultrapassagem. O pós-modernismo coloca em jogo o sentido, e nós
não podemos ultrapassá-lo se aceitamos esse jogo. Uma ultrapassagem não
se efetua se a noção mesma de sentido é desfeita e nós assumimos isso por
um conformismo. Para ultrapassar o pós-moderno, não é necessário negá-
lo. Toda negação tende aqui à hemorragia do discurso para a manutenção
do status quo. Ademais, nós não podemos fazer nada contra a globalização,
só podemos mudar o seu sentido. Então, a chave para a ultrapassagem do
pós-modernismo é a retomada do sentido. Por meio dele que nós
encontraremos o fim daquele, ou seja, no seu sentido velado. O sentido mais
profundo da manutenção ou da conservação é a inação, e o conceito mesmo
de engajamento hoje em dia não pode evitar o de pós-modernismo.
BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS sustenta que houve uma mudança de
paradigma, bem como uma configuração de um lugar comum pela
emancipação. É o que ele chama de novo sentido comum solidário, político
(participante) e estético (re-encantado)63. Embora o autor utilize a expressão
“pós-moderno”, nós sublinhamos que ele elabora uma diferença entre os
pós-modernos conservadores (entre eles, os escritores que nós abordamos

61
Id. ibidem, p. 93.
62
Id. ibidem, p. 88.
63
SANTOS, Boaventura de Souza. Vers un Nouveau Sens Commun Juridique – Droit, science et politique
dans la transition paradigmatique. Paris: Libraire Générale de Droit et de Jurisprudence, 2004, p.
60-70.

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aqui, como LYOTARD e LIPOVESTSKY) e os pós-modernos contestadores.


Certamente, devemos interpretar essa segunda posição como sendo a do
sociólogo português e mesmo a de ANDRÉ GORZ, acrescentando que, de
fato, ela ultrapassa o próprio pós-modernismo enquanto contestadora da
situação. O movimento emancipador dispõe do direito, da política e da
economia de outra maneira. A sua validade nasce do engajamento e da
participação social, de um movimento de baixo em direção ao alto. É a única
maneira eficaz de permitir uma conscientização e de conceder a voz a todos.
É a única maneira de repensar o desequilíbrio social e de curar a hemorragia
do discurso.

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CRIMINOLOGIA, PSICOLOGIA E
PSICANÁLISE: CONTRIBUTIVOS À ANÁLISE
DAS VIOLÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS
P EDRO J OSÉ P ACHECO *
N EUZA M ARIA DE F ÁTIMA G UARESCHI **

“... é de forma muito vulgar que a Filosofia interroga a


Psicologia e diz: para aonde ides, para que eu saiba quem sois?
Mas o filósofo também pode dirigir-se ao psicólogo sob a forma
de um conselho – uma única vez não cria o hábito – e dizer:
quando se sai da Sorbonne pela rua Saint-Jacques pode-se subi-
la ou descê-la; quando se sobe, chega-se ao Panteão, o
Conservatoire de alguns grandes homens, mas quando se desce,
certamente se chega à delegacia de polícia”1. GEORGES
CANGUILHEM (1904 – 1995).
Resumo: A fim de se compreender o saber/fazer psicológico na
contemporaneidade, busca-se neste texto uma análise das
possibilidades de articulação das ciências psicológicas e
psicanalíticas com a área jurídica e, mais especificamente,
criminológica. Concomitantemente, problematiza-se, através de
uma perspectiva epistemológica que visa a aprofundar a
história das idéias e das ciências durante o século XIX, onde se
funda a pretensa cientificidade desse saber/fazer. Esta análise
transita por um talvez possível campo de intersecção e
interlocução da Psicologia com as ciências jurídicas. Porém,
considera-se que esta articulação mostra-se extremamente
problemática do ponto de vista de concepções de sujeito, já que
também através historicamente das demandas jurídicas e
criminais é que as ciências psicológicas irão se autodenominar

*
Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica pelo CFP, mestre em Psicologia Social e Institucional
pela UFRGS, doutorando do PPG em Psicologia da PUCRS. Professor do Curso de Psicologia da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões.
**
Psicóloga, doutora em Educação pela University of Wisconsin – Madison. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.
1
CANGUILHEM, G. O que é a Psicologia? In: Impulso. Revista de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba/SP, Volume 11, Número 26, pág. 11 – 26, 1999.
Citação da pág. 26

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como ciência do próprio sujeito que conhece, do sujeito


cognocente, e tendo por pretensão formular, descobrir e
explicar a “verdade interna” sobre a complexidade da alma
humana. É sob esse ideal de ordenação positivista e
racionalização cartesiana, que ocorreria pretensamente o
intercruzamento da Psicologia com a criminologia, buscando
explicar, compreender e prever os desvios por meio da criação
de métodos quantitativos de aferição do interno humano. Com
a ruptura epistemológica proposta pela psicanálise, a concepção
de sujeito do desejo, instável, plural, paradoxal e complexo
explicita a incompatibilidade de saberes e discursos sobre o
homem para dar conta das multiplicidades da manifestação
humana, colocando para as ciências criminológicas a
impotência de fornecer respostas objetivas, neutras e
mensuráveis. Com isso, contemporaneamente, o convívio e a
hibridização teórico-epistemológica do Direito e da psicanálise
ocasionam um embate entre o sujeito do direito iluminista (o
cidadão portador da razão, ser moral, independente, com livre
arbítrio, enfim, uma unidade) e o sujeito do inconsciente, que é
descentrado, não-unitário, não tão livre e responsável por si
quanto se almeja e se deseja.
Palavras-Chave: Criminologia – Psicologia – Psicanálise

Para se compreender o saber/fazer psicológico na


contemporaneidade, busca-se neste texto uma análise das possibilidades de
articulação das ciências psicológicas e psicanalíticas com a área jurídica e,
mais especificamente, criminológica. Concomitantemente, problematiza-se,
através de uma perspectiva epistemológica que visa a aprofundar a história
das idéias e das ciências durante o Século XIX, onde se funda a pretensa
cientificidade desse saber/fazer. Esta análise transita por um talvez possível
campo de intersecção e interlocução da Psicologia com as ciências jurídicas.
Tais relações, apesar de cada vez mais presentes e fundadas na sociedade
contemporânea, não são nada novas em termos de produção de
conhecimento e práticas discursivas. A fim de iniciar esta construção,
quando as ciências psicológicas se dispõem a dialogar com o campo jurídico
e até mesmo com outros campos do saber humano, remetemo-nos às
perguntas de CANGUILHEM: o que e quem é a Psicologia? Por que está aqui?
Quais suas intenções? A quem se propõe?
A Psicologia, como ciência, foi sendo construída em um entre lugares
epistemológicos, ou seja, seu campo de conhecimento foi sendo objetivado

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por questões sobre a vida humana que a Matemática, a Física, a Biologia e a


Medicina, entre outras ciências, não conseguiam visualizar, concretizar ou
quantificar até meados do Século XIX. É nesse aparente vazio, naquilo que
até então não tinha sido explicado, classificado ou desvelado ainda, isto é, a
mente e/ou a alma humana, que o sujeito/objeto psicológico vai surgir a
fim de iluminar a escuridão que ainda se abatia sobre a incógnita alma
humana, tão desconhecida até então, se comparada à natureza humana.
Assim, na segunda metade do Século XIX, a Psicologia constitui-se como
uma das “ciências da subjetividade” (ou ciências psi), propondo-se a se
autodenominar como ciência do próprio sujeito que conhece, do sujeito
cognocente, e tendo por pretensão formular, descobrir e explicar a “verdade
interna” sobre este, de quem até aquele momento pouco ou nada se sabia do
ponto de vista da racionalidade científica e técnica hegemônica da época.
Era necessário adotar o legado do iluminismo do Século XVIII que
pretendia abranger “...todos os segmentos do Saber na filosofia, na ciência,
na política, nas artes...” e “... que traçaria o projeto de um saber universal,
uma racionalidade capaz de “esclarecer”, “clarificar”, “iluminar”2 tudo que
seja da ordem da natureza e do homem.
Dentro desse cientificismo característico das ciências matemáticas,
físicas, biológicas e químicas, a única forma de se conhecer o mundo ou a
alma era através de um realismo exacerbado e onipresente, afirmando-se
que o que funda o conhecimento é somente a realidade objetiva e
observável do objeto em estudo. Sendo assim, para se chegar a tais
explicações da mente humana, as ciências psicológicas necessitariam inserir-
se no método cartesiano das ciências físico-naturais, buscando desvelar
(revelar) a interioridade humana por meio de um claro direcionamento à
objetividade, neutralidade, controle, medição e previsão, a fim de que
fossem formuladas leis gerais e universais sobre as regularidades do
funcionamento dessa estrutura “interna”. Nessa perspectiva metodológica,
tudo o que não é observável é considerado primitivo, especulativo e
metafísico.
Concomitantemente, além dessa realidade científica, a lógica
positivista de controle social, de ordenação de condutas e de fim das
ambivalências sempre esteve presente nos direcionamentos científicos e

2
MATOS, O. Filosofia e polifonia da razão: filosofia e educação. São Paulo: Scipione, 1997. Citações da
pág. 120.

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intervencionistas das ciências3 psicológicas, pautando as práticas dos


profissionais dessa área sob uma perspectiva individualista e quase
exclusivamente racional, por onde a Psicologia construiu suas técnicas,
métodos e muitos dos conceitos até hoje vigentes. Assim, a Psicologia volta-se
para a consciência e institui um domínio da razão, dos processos conscientes e
cognitivos que permitem ao ser humano saber quem é, de que maneira age e por que
age de determinadas formas e não de outras para governar a si mesmo e tornar-se
humano, sujeito da razão que difere daquilo que foi o solo de comparação: a espécie
humana4.
Tais direcionamentos almejaram “descobrir”, explicar, classificar e
estruturar os comportamentos, estilos de vida, atitudes, crenças, desejos e
fantasias humanas, a fim de separar maniqueistamente o joio do trigo,
como, por exemplo, os homens de bem e os bandidos ou os banidos.
Conseqüentemente, a ciência psicológica passa a naturalizar e objetivar um
lugar que entendia ser seu dever ocupar, bem como a responder a
determinadas demandas, oriundas de outras ciências, tais como as ciências
jurídicas e, especificamente, criminológicas, as quais também,
arbitrariamente, julgavam ser o campo de saber/fazer psicológico capaz de
responder às suas demandas. As demandas jurídicas sempre solicitaram
definições e delimitações claras sobre (in)imputabilidade, periculosidade,
moralidade, prognose de reincidência, alterações em funções mentais
“normais” e (im)possibilidades de “cura” que subsidiassem posições
jurídicas mais repressivas, punitivas e/ou os tipos de tratamentos psi que
deveriam ser impostos ao sujeito “criminoso”.
Considera-se que as demandas criminológicas à Psicologia por
explicitação de “verdades internas” são compreensíveis e explicáveis, pois é
exatamente no intuito de acabar com as ambivalências da conduta
manifesta e da racionalidade humana que as ciências criminais se
constituiriam. Com isso, demarca-se uma tipificação binária de
comportamentos como estrutural e naturalmente esperados, normais e
racionais e outros, ainda, desviantes, patológicos e irracionais5.

3
BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1999.
4
BERNARDES, A. G.; GUARESCHI, N. M. & MEDEIROS, P. F. O conceito de saúde e suas implicações nas
práticas psicológicas. Citação da pág. 264.
5
FOUCAULT, M. Os Anormais: curso no Collège de France (1974 – 1975). São Paulo: Martins Fontes,
2001.

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Sob essa perspectiva de desvio de conduta, a apropriação da


concepção de sujeito cartesiano de um eu todo poderoso, livre e controlador
das vontades e ações vai marcar, até a atualidade, as concepções de sujeito
jurídico contemporâneo, bem como as concepções de sujeito psicológico na
modernidade. É nessa articulação da perspectiva cartesiana moderna de eu
que ocorrerá a possibilidade de diálogo entre a criminologia e a Psicologia,
já que seus alvos serão encontrar as causas da criminalidade na
interioridade humana, manifesta nas condutas e confissões humanas.
Assim, “quando a Psicologia volta-se para os fenômenos de normalidade e
anormalidade, funda uma interioridade em que se encontram as condições
para a produção da saúde e da origem da doença”6.
Diante disso, sob esse ideal de ordenação positivista e racionalização
cartesiana, ocorreria o intercruzamento da Psicologia com a criminologia,
buscando explicar, compreender e prever os desvios por meio da criação de
métodos quantitativos de aferição do interno humano, como, por exemplo,
os testes psicológicos. Assim, as práticas psicológicas desencadeadas nesse
cenário e demandas se constituiriam exclusivamente através das avaliações
psicológicas, cujas definições têm pretensões objetivas que sustentam a
busca de “verdades internas” produzidas a fim de subsidiar decisões
judiciais, em que se almeja chegar “à verdade”7 de um fato real (realismo)
em conexão direta com a representação psíquica. Ou seja, nesse saber/fazer
avaliativo, pressupõe-se a possibilidade de manifestação da subjetividade
humana pela objetivação na linguagem e na conduta humana, captada pelo
clássico processo de investigação das ciências naturais, que é o de
observação e experimentação, método este fundamental para as ciências
criminais, tal como afirma CARLOS ALBERTO ELBERT: é evidente, e está
praticamente fora de discussão, que a criminologia se constituiu como ciência
proclamando possuir um objeto e um método próprios, apresentados de tal modo,
que puderam ser admitidos no modelo das ciências naturais, dominante ao final do
Século XIX e primórdios do XX8.
Nessa articulação, percebem-se preocupantes similaridades e
congruências epistemológicas com os famosos experimentos lombrosianos
de buscar, de forma objetiva e experimental, as causas do crime no sujeito

6
BERNARDES, A. G.; GUARESCHI, N. M. & MEDEIROS, P. F. O conceito de saúde e suas implicações nas
práticas psicológicas. Citação da pág. 266.
7
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Cadernos da PUC-Rio, 1974.
8
ELBERT, C. A. Manual Básico de Criminologia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003. Citação da pág.173.

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criminoso, mais especificamente nas suas características hereditárias,


fenotípicas e naturais. Agora, há o reforço da Psicologia do testemunho e
confessional, bem como das avaliações do “interno” humano, com o
objetivo de encontrar os desvios psicológicos que direcionariam inevitável e
patologicamente o sujeito a cometer atos criminais – Essas ações, tecnologias
inventadas pela Psicologia como modo de materializar uma interioridade, vão desde
as maneiras de protocolar a subjetividade por meio de nosografias, pareceres,
avaliações, até os exercícios comportamentais, como falar de si privadamente ou em
grupo, atentar para as próprias condutas, controlar os excessos, responsabilizar-se
por seus atos e assim por diante9.
Assim, à Psicologia é “solicitado fazer previsões de comportamento
através de laudos que instruem a concessão de benefícios e a progressão de
regime, exercendo uma espécie de futurologia científica sem qualquer
respaldo teórico sério”10.
Contrastando diretamente com essa concepção exclusivamente
racional e natural de normalidade, o conceito de loucura mostra-se
fundamental ao contrapor binariamente, na outra extremidade, a desrazão,
ou uma forma relativa da razão, uma figura paradoxal e ambivalente ao
lado do sonho e do erro. Assim, interfere-se não somente na ordem racional
de entendimento, como também na ordem geográfica de intervenção, pois a
internação torna-se a forma como o Estado, com seu afã positivista e
regulatório, reage ante ao louco, marginal, desviante – “sendo o
insensato/miserável visto como o efeito da desordem e obstáculo da ordem
‘pública’, se reclui o louco, sem idéia médica alguma, em salvaguarda da
razão e da moralidade”11.
É a partir de uma crítica ao positivismo e ao racionalismo cartesiano
que vai surgir, em fins do século XIX, dentro das chamadas “ciências da
subjetividade”, uma clara separação de sujeito/objeto/métodos de estudos
nas ciências psicológicas, marcadas pela experimentação e objetividade, e as
ciências psicanalíticas. Nestas, Freud vai ao encontro da concepção de
centramento do sujeito ao introduzir a noção de sujeito do inconsciente.

9
BERNARDES, A. G.; Guareschi, N. M. & Medeiros, P. F. O conceito de saúde e suas implicações nas
práticas psicológicas. Citação da pág. 266 e 267.
10
RAUTER, C. Clínica e Estratégias de Resistência: perspectivas para o trabalho do psicólogo em
prisões. Citação da pág. 05
11
HOENISCH, J. & PACHECO, P. A Psicologia e suas transições: desconstruindo a “lente” psicológica
na Perícia. In: CARVALHO, S. Crítica à Execução Penal – Doutrina. Jurisprudência e Projetos
Legislativos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. Citação das págs. 191 e 192.

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Quando até então se pensava que a razão fosse a existência humana e que o
ser fosse cognocente e racional (ideal cartesiano), a psicanálise, ao reiterar
que é onde o sujeito não pensa que ele é, introduz a importância do
desconhecimento e da ambivalência na constituição do sujeito, contrastando
o sujeito cognocente com a noção de sujeito do desejo e problematizando
questões sobre verdade e previsibilidade do comportamento, já que, “na
perspectiva psicanalítica, não é a história real que importa: não há uma
preocupação com a veracidade dos fatos narrados pelo cliente”. Nessa
perspectiva, “a fala do indivíduo é tomada enquanto tal, não se levando em
conta se falseia ou não a realidade dos fatos”12. Neste sentido ainda, a
perspectiva das teorias pós-estruturalistas que incorpora a virada
lingüística, entende o sujeito produzido pelas práticas de significação, as
quais constituem os modos de ser e se pensar no mundo, desprovido, de
qualquer essência, ou de algo que é naturalmente da interioridade do
indivíduo, tratando-se, assim, sempre do sujeito do discurso.
Em termos de concepção epistemológica de sujeito, tal inovação
introduz a noção de ser faltante, ambivalente e paradoxal, inserindo a noção
de loucura e de problematização do conflito humano como constitutivo do
sujeito, este inserido num mal-estar cultural e lingüístico que faz com que o
sintoma seja não exclusivamente individual, mas cultural. Assim, as
agressões, violências e criminalizações são expressões de uma subjetividade
produzida pelos diversos dispositivos de dominação das estruturas da
sociedade, caracterizando modos diversificados de inserção no laço social
produzido pelas relações de poder e saber institucional e cultural que não
são da ordem do indivíduo. Ou seja, o laço social passa por práticas de
significações na cultura que produzem os modos de o sujeito relacionar-se
com a norma.
Porém, mesmo dentro das teorias que se dizem influenciadas pela
psicanálise, a corrente norte-americana denominada de psicologia do ego
tenta resgatar a lógica individualizante e capturante da subjetividade
humana, trazendo para o ideal da modernidade as idéias de ordem e razão
regulando as relações sociais. Com isso, novamente busca-se um
intercruzamento que naturaliza a relação entre a Psicologia e a criminologia.
Com esse ideal de ordenação positivista e racionalização cartesiana,
determinadas práticas psicológicas tentam explicar e compreender os

12
Diagnóstico Psicológico do Criminoso: Tecnologia do Preconceito. In: RAUTER, C. Criminologia e
Subjetividade no Brasil. Rio Revan, 2003. Citação da pág. 88 e 89.

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desvios por meio da criação de métodos quantitativos de aferição do


“interno”, deixando de lado a ambigüidade e as complexidades da
produção social sobre o inconsciente e prometendo uma certeza consciente,
racional, determinista e reducionista bastante conveniente para a
criminologia clínica. As práticas desencadeadas a partir dessa concepção de
sujeito são as avaliações psicológicas, pautadas na ciência da conduta, ou as
psicotécnicas, que tomam um conceito de normalidade mediante a análise
das funções mentais de nível superior e buscam um comparativo entre tipos
de manifestação subjetiva que possam denotar uma aproximação com essa
suposta normalidade ou com a patologia. Definem-se, assim, diagnósticos
nosográficos que fundamentam manuais psiquiátricos, tais como DSM IV –
R e CID 10, com o intuito de naturalizar e igualar as manifestações humanas
em princípios gerais e universais. Tal tendência à homogeneização dos
sujeitos a fim de se saber mais sobre o objeto em estudo, nesse caso, a
violência e a criminalidade, define uma determinada norma para garantir
maior certeza nas decisões judiciais e nas regulações das relações sociais
permitidas ou aceitas pelas leis.
É com as ciências jurídicas demandando questões à Psicologia e esta
afirmando poder respondê-las que a última passa a ser utilizada pela
“justiça”, estabelecendo com esta área uma promessa de dar explicação para
tudo que é da ordem do subjetivo. Nessa relação de subserviência,
abdicando da compreensão, incompletude e impossibilidade do humano
em lidar com conflitos inerentes à condição de sua existência na sociedade,
a Psicologia insere-se em um processo de judicialização das suas práticas.
Com as noções contemporâneas de fluidez das identidades, sujeito
plural, diverso e disperso, paradoxal, contraditório e líquido13, colocam-se
novas questões sobre a subjetividade humana. A compreensão do conceito
de eu torna-se mais mutável e transformável, ampliando-se a noção de
corpo, não só biológico ou natural, como também cultural, relacional e
lingüístico, ao mesmo tempo em que se questionam as separações binárias
entre interno/externo, dentro/fora, indivíduo/coletivo. Sendo assim, esse
eu não está dado, determinado e/ou fechado, tal como é proposto na lógica
naturalista da já referida psicologia do ego, mas é processual e constituído a
partir das práticas de subjetivação concebidas como “complexas
interconexões, técnicas e linhas de força que se estabelecem entre
componentes heterogêneos, incitando, tornando possíveis e estabilizando

13 BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

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relações particulares conosco mesmos, em locais e lugares específicos”14.


Diante disso, “o eu é produzido no processo de praticá-lo, produzido,
portanto, como uma interioridade que é complexa e contestada”, sendo esta
uma interioridade fraturada, definida “por meio da intersecção da
multiplicidade de atividades e julgamentos que fazemos incidir sobre nós
mesmos no curso de confrontar nossa existência sob diferentes descrições e
em relação a diferentes imagens ou modelos”15.
Assim, na contemporaneidade, a articulação entre a Psicologia e a
criminologia não é capaz de prometer algo que não pode ser entendido
como dado; não deve caber à Psicologia encontrar “verdades internas”
sobre o sujeito, pois não consegue explicar aquilo que não é explicável. É
justamente no sentido de reconhecer a impossibilidade daquilo que
algumas psicopatologias descritivas e nosológicas afirmam conseguir
diagnosticar e prognosticar e de algumas práticas psicológicas de educação
e moralização de condutas que a Psicologia está incorrendo em um
reducionismo sobre a compreensão da subjetividade e cooperando com
procedimentos normativos e punitivos de outros campos de saberes e
profissões que se colocam em consonância com a filosofia da ordem e da
“higiene social”. Além disso, nas demandas jurídico-criminológicas, a
Psicologia, ao longo dos anos, somente fomentou um processo social de
redução e simplificação da complexidade criminal à mera condição de sua
administração e controle, sem se ater ao que lhe compete realmente nessa
interlocução: problematizar os efeitos das diversas práticas violentas sobre
os sujeitos, ou seja, promover um questionamento direto à lógica punitiva
prisional reinante há mais de dois séculos nos dispositivos penais, que se
tornaram o que há de mais mortífero para a constituição subjetiva de
qualquer sujeito.
Nessa junção pragmática e problemática, ocorre uma formação de
compromisso no intuito de manter a já citada ordem social vigente,
denotando, por vezes, eficácia. Porém, ao mesmo tempo, gera conflitos e
contradições epistemológicas e empíricas, principalmente nas práticas
diárias dos profissionais.
Portanto, contemporaneamente, o convívio e a hibridização teórico-
epistemológica do Direito e da psicanálise ocasionam um embate entre o

14
ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Nunca fomos humanos – nos
rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. Citação da pág. 176.
15
Ibidem. Citações da pág. 189.

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sujeito do direito iluminista (o cidadão portador da razão, ser moral,


independente, com livre-arbítrio, enfim, uma unidade) e o sujeito do
inconsciente, que é descentrado, não-unitário, não tão livre e responsável
por si quanto se almeja e se deseja. Assim, “o sujeito da Psicologia Jurídica
não é o mesmo sujeito do Direito, e sim o sujeito do inconsciente, de
impossível apreensão na sua totalidade, pois ele só aparece quando
desaparece a razão”16: a lógica do Direito seria a da razão, a do dia claro, a do
texto escrito, sistemático e sem faltas, a da consciência; já a da psicanálise seria a do
capricho, da fantasia, da noite, do sonho, da quebra da lógica. A cordura jurídica dos
códigos e decretos do poder frente à imprevisibilidade da loucura, do anárquico
desejo inconsciente que não conhece os silogismos, seqüências temporais,
contradições e controles, frente à pura desmesura de uma pretensa “ciência” que
não pára de distinguir o fantasma da razão e a razão do fantasma17.
Diante disso, onde a Psicologia pode contribuir para a promoção da
vida neste mundo contemporâneo e, especificamente, junto às práticas
criminais? Com certeza, a resposta está em um lugar de escuta e
acolhimento das complexidades, ambigüidades e diversidades humanas,
produzindo possibilidades de resistências e lutas contra as práticas
discursivas violentas e mortíferas que tolhem a capacidade simbólica,
principalmente daqueles que se mostram dominados pelos poderes e
saberes instituídos como verdades. Como preconiza a psicóloga CRISTINA
RAUTER: os psicólogos que atuam em prisões podem estar ameaçados caso não se
proponham a reproduzir a engrenagem da instituição carcerária através de sua
atuação. Por outro lado, estes profissionais estão colocados num lugar estratégico no
sentido de produzir focos de resistência à rede de poder institucional. Mas para isso
eles terão que se desprender de suas atribuições formais e formular outros modos de
atuação direcionados no sentido oposto ao da mortificação institucional18.
Uma das questões centrais acerca dessa temática é questionar não
somente sobre o que a Psicologia deve fazer, mas também por que ou quem
diz, ou de que lugar diz o que a Psicologia deve fazer. Ao fazerem-se tais
perguntas, há uma tendência à homogeneização e generalização de
respostas e diretrizes a fim de igualar sujeitos e generalizar práticas, no

16
BARROS, Fernanda Otoni. Psicologia Jurídica na Reforma do Direito da Família – Legalidade da
Subjetividade. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Repensando o Direito de Família. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. Citação da pág. 432.
17
BRAUNSTEIN, N. Mídia On Line: <http://www.edupsi.com/culpabilidad.>
18
RAUTER, C. Clínica e Estratégias de Resistência: perspectivas para o trabalho do psicólogo em
prisões. Citação da pág. 04.

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intuito de amenizar angústias referentes ao desconhecimento, ao não-saber


e às ambigüidades. Porém, tal direcionamento ocasiona uma
impossibilidade de intervenção social nas relações sociais sobre as
singularidades e idiossincrasias humanas, sendo por meio do processo de
diferenciação e heterogeneidade que a condição humana se torna possível,
como afirma TIMM: “para além de qualquer fabulação ou imaginação, antes
de toda síntese e organização mental, dá-se a diferença”, pois “a diferença é
a questão propriamente dita do pensar; é sua condição, como é o
impedimento de sua completação”19.
Tal como para existir a ênfase na razão, há o olhar voltado para a
desrazão, há a necessidade de a Psicologia marcar uma diferença, trazendo
para o campo jurídico a discussão epistemológica existente no campo da
saúde e inserindo nas suas concepções a perspectiva transdisciplinar.
Segundo NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, essa perspectiva “significa uma
radicalização da interdisciplinaridade, com a criação de um campo teórico,
operacional ou disciplinar de tipo novo e mais amplo”20. Para tanto, uma
possibilidade de a Psicologia marcar essa diferenciação no campo criminal
é, ao invés de importar o método das ciências físico-naturais para tratar de
um objeto que advém de um outro lugar que não o laboratório, dialogar
com as ciências filosóficas, sociológicas e psicanalíticas a fim de romper com
as pretensões cientificistas de unificar as ciências, negando suas
incongruências e diferenciações dentro e fora de seus campos de saberes.
Uma psicologia direcionada à “construção de estratégias de resistência
frente ao dispositivo de criminalização” e, “caso possa o(a) psicólogo(a)
escapar à prisionização da qual também é alvo, poderá se voltar para
estratégias de resistência e não para a reprodução da engrenagem
carcerária. O trabalho com grupos pode ser uma direção”21.
Tais práticas devem estar pautadas na escuta das singularidades
humanas no que denotam de possibilidades de diferenciações e resistências,
que são princípios básicos para a constituição da vida humana. Cabe à
Psicologia ser uma ciência que auxilia na amenização do sofrimento
humano, mas para isso tem que ter maior atenção às políticas de

19 TIMM, Ricardo de S. Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2000. Citação da pág. 191 e 192.
20
FILHO, N. A. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Revista de Saúde Coletiva, II (1/2), 1997.
Citação da pág. 13.
21
RAUTER, C. Clínica e Estratégias de Resistência: perspectivas para o trabalho do psicólogo em
prisões. Citação da pág. 07.

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atendimento dentro da seara jurídica a fim de produzir autonomia aos


sujeitos por meio da escuta aberta às inúmeras possibilidades de
manifestação subjetiva. Com isso, “a construção de estratégias de resistência
frente à mortificação passará freqüentemente pela arte, pelo trabalho com
grupos ou por estratégias de atendimento individual que possam
intensificar os processos vitais”22.
Dessa forma, diante da importância política e social que a questão da
violência e da criminalidade vem tomando na sociedade contemporânea, é
de fundamental importância que sejam aprofundadas as reflexões
epistemológicas e éticas sobre as práticas psicológicas no campo da justiça,
seja no âmbito da perícia criminal, na elaboração de laudos e pareceres, na
mediação de depoimentos “sem danos” ou litígios familiares, nas definições
de conjugabilidade, paternidade, maternidade e parentalidade, nas “regras”
de adoção, na imposição de práticas ou justiças “terapêuticas”, nas questões
de adolescência e medidas sócio-educativas, nas investigações dos
múltiplos danos (morais, psicológicos, etc.) pleiteados, nas funções juntos
aos órgãos de segurança pública, programas de proteção à testemunha,
dentre outros mais. Enfim, cabe uma provocação a fim de fomentar uma
discussão acerca da posição política dos atores sociais responsáveis pelas
demandas sociais que se mostram cada vez mais complexas e muitas vezes
vazias de explicitação mais criteriosa e rigorosa por parte dos discursos psi.
Para que tal silêncio mostre-se compreensível, já que a Psicologia Jurídica
surgiu de um chamamento ao ingresso do psicólogo em áreas originalmente
destinadas às práticas jurídicas. Essa demanda coloca exigências específicas, ditadas
pelo Direito, mas é mister admitir que o ingresso da Psicologia no mundo jurídico
precisa encontrar seu motor próprio, já que sua impulsão advém de um
compromisso com o sujeito que é, por excelência, de outra ordem23.
Diante disso, uma postura acrítica da Psicologia pode, em certa
medida, gerar ou manter processos de exclusão e discriminação social e
contribuir para a produção de racionalidades higienistas e eugênicas na
sociedade.

22
Ibidem, citação da pág. 10.
23
BRANDÃO, E. P. & GONÇALVES, H. S. (orgs.). Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU Ed.
2004. Citação da pág. 7.

62
POR FAVOR, ME AJUDA A PODER SENTIR...
OU SOBRE A PSICOPATOLOGIA DO
CONTEMPORÂNEO
L IANE P ESSIN *

Resumo: Este artigo trata da psicopatologia do mundo


contemporâneo a partir de uma perspectiva psicanalítica. As
formas de vida e/ou a sintomatologia em questão são
apresentadas desde um recorte clínico que se anuncia como
“lente de aumento” da subjetivação contemporânea.
Palavras-Chave: Psicopatologia – contemporaneidade –
psicanálise

Clara1 chega a um Centro de Formação em Psicoterapia, para


atendimento. Cabelos lilás, piercings, tatuagens... Olhos muito azuis numa
pele pálida, lívida. Clara, muito clara. Roupas escuras, cara de boneca triste.
Linda, triste, boneca arrancada de um filme tipo Blade Runner.
Após um afável bom-dia da terapeuta, ao qual ela responde quase
que em slow motion – tal uma gata manhosa – se dá um silêncio. Ela se mexe
na poltrona, um pouco ansiosa, esfregando as mãos de dedos longos,
também lívidos. Uma olha para a outra e sai a primeira frase de Clara:
“Por favor, me ajuda a poder sentir”.
Quando se escuta Clara parece que se está frente à
contemporaneidade apresentada num sujeito. Clara é lente de aumento do
contemporâneo em pessoa. Clara pede ajuda, pede poder, quer poder, não
consegue poder, poder de sentir, força para sentir, quer sentir, não consegue
sentir, pede força para sentir. Onde está a sua força? Onde está o seu
querer? Onde está o seu sentir? Em que lugar está a terapeuta para ela? Em

*
Psicóloga, psicanalista, professora da UNISINOS, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
1
Nome fictício

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que lugar está o mundo para ela? Em que lugar ela está no mundo? Que
mundo? Quem ela?
Clara procura um lugar para acontecer, para ser.
Os tempos são outros. Havia aquele tempo em que havia os lugares.
Aqueles que chegavam aos consultórios de psicoterapia vinham cheios de
conflitos, frustrações, desilusões, desejos mal colocados, contraditórios;
enfim, traziam a angústia da batalha entre partes ou campos de si. Além
disso, essas batalhas eram carregadas de idolatria, de mitos, de tentativas de
ser melhor.
Os tempos são outros. Neste tempo, a maioria daqueles que chegam
ao consultório traz consigo angústias de privação e de desamparo. Mostra-
se com pouca experiência de embate e muito desespero e desesperança.
Mas, o que se passa com Clara para que ela não consiga sentir?
A leitura que se possa fazer sobre a produção dos processos
psíquicos, modos de experimentar a vida, ou até mesmo da psicopatologia é
sempre balizada por escolhas; tanto no campo das teorias quanto dos
recortes ou perspectivas desde onde se apreende o lugar sobre o qual se
coloca luz. Iluminar-se-á a demanda de Clara a partir de um olhar
psicanalítico sobre o sujeito contemporâneo.
Clara viaja para o exterior para trabalhar e aprender inglês. Segundo
ela, sente-se muito bem lá porque está identificada com as pessoas com as
quais convive. Contata diariamente, pela internet, com sua melhor amiga
que permanece no Brasil. De repente esta amiga começa a tornar-se
melancólica e planeja o seu suicídio por diferentes lugares da rede. Clara
tenta dissuadi-la de seu propósito, mas de alguma forma percebe-se
seduzida pelo projeto tão heróico da amiga2. Quando se dá conta de que a amiga
iria realmente se suicidar tenta entrar em contato com a família dela, mas é
tarde demais. A amiga se suicida. Clara segue sua vida como se nada
tivesse acontecido porque segundo ela: ninguém lhe avisou nada; a família e os
amigos não lhe avisaram nada... Ela só parou de falar comigo, apenas isto.
Pouco tempo depois do episódio do suicídio da amiga, Clara começa
a ter dores agudas nas costas que a impedem de continuar trabalhando
como garçonete. Fica só estudando, o que para sua família se torna inviável

2
Palavras de Clara. A partir daqui colocaremos as palavras de Clara em itálico para se destacarem
do texto.

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do ponto de vista financeiro, até porque ela também necessitava despender


dinheiro com tratamento médico. Clara se vê obrigada a voltar para o Brasil.
Quando retorna entra num estado melancólico grave: não sai da cama, não
consegue comer, não consegue dormir e no pouco tempo que dorme tem
pesadelos horríveis de perseguição e de morte iminente. Segundo ela: Eu
não queria morrer, eu não conseguia era viver. Viver até hoje é muito difícil... As
coisas não são o que parecem ser por isso não têm sentido. As pessoas não são
verdadeiras, para existirem têm que ser falsas.
Clara relata que naquele momento sentia uma dor profunda dentro
dela; algo muito insuportável: a dor era uma dor de dentro, uma dor de quem
não tem nada por dentro para segurar a dor, para poder senti-la. Nunca senti nada
parecido na minha vida, nada tão precário. Acho que um prematuro numa UTI se
sente assim.
Neste momento a mãe de Clara busca ajuda psiquiátrica. A partir de
então o quadro se modifica: ela sai da crise e se torna, como se diz no
mundo psi, estável. Estabilidade esta que, atualmente, cria a demanda
psicoterápica de Clara: eu não estou tranqüila, esta estabilidade não vem de
dentro. É como se eu estivesse monitorada, trancada sem trancas.
Que se coloque, agora, em suspenso, os recortes da vida de Clara para
que se possa analisar a produção da subjetividade contemporânea. Para tal,
pretende-se manter iluminados alguns vetores, que são, sem dúvida,
profundamente contemporâneos, também, quais sejam: a dor profunda, a
dificuldade para sentir (anestesia), o desamparo e a medicalização.
Do ponto de vista psicanalítico os acontecimentos são sempre o
conjunto de experiências que se apresentam num sujeito quando do
impacto com o mundo. Os acontecimentos, então, não são factuais nem
objetivos, não têm causas nem conseqüências pontuais e previsíveis, são
formas de existência. Portanto, quando se trata de pensar o sofrimento de
Clara é importante que se dirija o olhar para a complexidade do que
acontece com ela e não exatamente para os fatos que ocorreram na sua
história, seja pregressa ou atual. O que se faz questão, portanto, é: Quais são
as formas que se fazem para que Clara viva o que se passa com ela? Como
os acontecimentos se dão em Clara? Como a vida acontece dentro de Clara?
Agora a dimensão da interioridade – lugar do acontecer – se impõe
para esta reflexão. Do processo de construção desta morada interior se pode
observar as condições para experimentar a vida.

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As moradas eram tão sólidas... Tão sólidas que daí produzia-se o mal-
estar moderno. Como diz CAETANO VELOSO “a dor e a delícia de ser o que
é”. Sentir era bom e era pecado. E a culpa para se enfrentar a transgressão?
Não se quer mais ser escravo, se quer ser livre da opressão! Ser bom e ser
justo de alguma maneira salva.
Hoje as moradas são tão frágeis. Nunca se foi tão autônomo e tão
frágil. Quanta precariedade de força para se iludir e, ao mesmo tempo, para
enfrentar a desilusão. Se as realidades não são fatos, mas interpretações3,
para produzir realidades e sentir-se real se tem que interpretar e interpretar
pressupõe um lugar desde onde se arremessa a enunciação. O homem
moderno vive a experiência limite do questionamento de todos os
elementos que colocam em cheque a propriedade mais básica do indivíduo,
a saber, a condição de indiviso. Aquilo que cimentava uma suposta unidade
de si e dava lugar para o acontecer se esvai. Desde aí surge o homem
contemporâneo ou, pelo esgarçamento da modernidade, hipermoderno4.
Clara, aqui, expressão pontual da subjetividade contemporânea,
constrói uma envergadura interior precária. As fronteiras internas de seu
ser são frouxas. Aqueles acontecimentos que precisavam ser guardados ou
escondidos em prol do esquecimento necessário para enfrentar a vida –
constituindo uma ilusão relativamente estável sobre o devir – não ficam
preservados de um contato direto com seu corpo. Não vêm em ondas
criando desvios, destinos ou sentidos para uma expansão de si. Perfuram,
irrompem, ameaçam o tempo inteiro. Parodiando WINNICOTT5, Clara sofre
de excesso de realidade.
O sujeito enfrenta e cria um nível de transcendência do real do corpo
se aqueles que falam pelo mundo supõem que ele possa sair desta condição,
que ele possa ser criado e criar-se. O sujeito torna-se capaz de ser, se aqueles
que falam pelo mundo supõem, nele, uma fantasia de controle sobre o seu
devir. Trata-se, então, da possibilidade de construção de uma ilusão de um
vir a ser. Em se consolidando esta ilusão se pode supor, também, que este
sujeito é forte o suficiente para enfrentar os percalços da caminhada, ou as
desilusões. Assim, cria-se um lugar paradoxal – porém capaz de enunciação
– que poderia chamar-se de morada interior, território destas suposições,
lugar desde onde se pode ser.

3
Como nos dizia NIETZSCHE.
4
Conforme GILLES LIPOVETSKY.
5
Psicanalista inglês.

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Frente à tamanha desagregação de formas, de verdades, de valores,


que tornam tudo tão incerto e volátil, como supor? Desde que lugar, agora
supor? Quais são os lugares suficientemente capazes de supor, na
contemporaneidade?
Certamente este assunto pode ser tema de tantos outros
desdobramentos teóricos que neste ensejo não caberiam. Pode-se
desenvolver a partir daqui, inclusive, apontamentos sobre a clínica
psicanalítica, o que, neste momento, também não é o caso já que o propósito
deste texto é apresentar uma reflexão a respeito das formas do sujeito
contemporâneo. Vale o atravessamento à guisa de sedução para escritos
posteriores.
Bem, retornando então à Clara... Não foi suposto que ela pudesse se
constituir no embate com a vida. Não lhe deram certezas ilusórias de que
ela conseguiria enfrentar o que emerge do mundo. Portanto, também não
lhe foi permitido enfrentar, desde um lugar seguro, a frustração e
sobreviver, depois, a ela. Vive o desamparo, estado essencial da condição
humana, de forma direta e cruel, num corpo que não se sente forte para
acolhê-lo na pulsação de sua dor. Por isto se esvai: em dor, em fragilidade,
em demanda de amor incondicional, em crises graves de psoríase: as feridas
do meu corpo doem muito.
Mas se tudo dói muito porque a dificuldade para sentir? Dor é uma
coisa, sentimento é outra. Sentir implica poder afetar-se com aquilo que
desestabiliza, implica a sustentação de um lugar onde possa haver um
deslizamento de linguagem que produz um sentir e não simplesmente uma
dor na carne. Sentir requer visualizar, guardar, esconder, recordar e assim
construir sentido, criar metáforas. É poder ter-se como forte suficiente para
experimentar a pulsação das forças e nomeá-las para si. Trata-se,
novamente, de uma experiência que requer uma morada interior para
acontecer. Moradas frágeis desencadeiam, como defesa, dificuldades ou até
impedimentos para o sentir. O processo de produção do sentimento impõe
para o sujeito uma inflexão sobre si que eventualmente desestabiliza tanto
ou mais do que a dor pura e simplesmente. A desestabilização, neste caso,
provém do fato de que o sentimento é tecido num campo representacional
e, portanto, ao constituir-se, no elo entre as representações, constrói-se um
saber de si com implicações, significados e devires. E agora, o que fazer com
isto que se está sentindo? A dor por si só não se desdobra desta forma.
Quando a envergadura interior é precária pode ser menos desestabilizador

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experimentar a dor do que elaborá-la enquanto uma história sentimental.


Observa-se em Clara, sujeito contemporâneo, sintomas importantes destas
dificuldades para sentir, como por exemplo: vazio interior, anestesia, falta
de sentido e de desejo.
Buscando referências nas teorizações a respeito do homem
contemporâneo observa-se em diferentes autores6 o reconhecimento de uma
subjetivação paradoxal, que se expressa, por um lado num sentimento de
vazio e fragilidade e, por outro, numa considerável capacidade de análise e
de crítica. Curioso pensar numa capacidade de análise que prescinde de
implicação, que não cria existência, que não tira do vazio. Quem sabe o
exercício da objetividade científica tenha se potencializado na direção de
um projeto humano asséptico, desumanizando para poder prever e
controlar. Enfim, a análise e a crítica tendem a se apartar do sentimento de
si criando-se campos que operam em separado. Daí dificuldade para sentir,
porém capacidade para analisar.
Clara tem uma capacidade de crítica invejável, uma perspicácia
aguçada. No entanto, neste momento, isto não lhe arremessa para alguma
direção, funciona como um conhecimento intelectualizado que lhe coloca
como espectadora da vida.
Em se tratando, ainda, da dificuldade para sentir, é oportuno que se
retome a conjuntura em que se coloca a demanda psicoterápica de Clara. Ela
procura psicoterapia após a saída da fase aguda de um estado melancólico
com o auxílio de medicação psiquiátrica. A medicação reduz a angústia,
estabiliza o humor e lhe proporciona uma experiência de estabilidade. No
entanto, sua dificuldade para sentir permanece ou quiçá se amplia de
forma, agora, monitorada quimicamente. Clara continua não se sentindo
capaz, nem feliz, somando-se a esta condição a sensação de estar
monitorada, robotizada. A situação de Clara é desafiadora: qual é o espaço
que pode existir para que ela se sinta vivendo em meio, apesar ou para além
da medicação? O que está em questão, aqui, não é nem a indicação, nem a
importância da medicação no tratamento do sofrimento psíquico e, sim, a
problematização do lugar que ela ocupa no ambiente contemporâneo. Na
sociedade do espetáculo, da fluidez do consumo, do pragmatismo da
mercadoria, a funcionalidade adaptativa está em alta. O que se apresenta
como alternativa hegemônica para o enfrentamento das vicissitudes

6
Pode-se citar aqui os paradoxos do homem hipermoderno de LIPOVETSKY.

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existenciais é o princípio da funcionalidade institucional – sofrimento zero. Para


tal se têm um arsenal tecnológico altamente qualificado na produção
química do psicológico. Mas as perguntas que insistem em retornar são as
seguintes: Funcionar para quê e para quem? Há como constituir uma
envergadura interior sem algum nível de percepção de um sofrimento
genuíno, algo que da dor pode se transformar em sentimento marcando
uma história? Sujeitos sem a percepção de profundidade não se sentem
sujeitos, se sentem operadores da vida, ou, robôs. A situação de Clara, do
ponto de vista clínico é desafiadora: quais são os limites da medicação e da
psicoterapia neste tratamento? Este questionamento só será feito se a
alternativa hegemônica apresentada anteriormente não for colocada como
balizadora. Portanto, desde outro princípio, Clara só vai poder sentir se lhe
for permitido acessar a dor e o sofrimento que processado pela linguagem
enunciada num espaço seguro de escuta possa operar como um
instrumento de significação de um lugar de si. Ela merece ter autorização e
acolhimento para sofrer; ser escutada e nomeada na sua dor, ou seja, ser
apresentada para si. A palavra reapresentada tece um tecido que pode
tornar-se aquilo que chamamos de pano de fundo, morada interior, lugar
do sentir e, portanto, do existir.
Mas haverá aqueles que continuarão perguntando: Para quê sofrer? O
que vai se ganhar com isto? Perguntas típicas do mundo contemporâneo
que não suporta a dimensão trágica da vida e foge dela como se
conseguisse. O sofrimento é cada vez mais entendido como disfunção e não
como algo inevitável que constitui. Por isto o sujeito torna-se cada vez mais
fragilizado para sofrer e para viver.
Clara... Subjetivação típica da desagregação e da desesperança do
contemporâneo deseja sentir, tem medo de sofrer, mas prefere sofrer.
Espera ajuda, espera conseguir – com todo o desespero que isto carrega –
espera poder... Um dia. Espera e fala. Quer ser escutada, quer que o mundo
espere algo dela. Enfim, quer ter esperança. Quem sabe a esperança esteja
na escuta do outro. Isto é o que Clara-contemporânea enuncia. Por que não
levar a sério esta enunciação? Por que não a escutar mais e mais? Por que
não nos escutarmos mais e mais?...

69
PSICANÁLISE E REDUÇÃO DE
DANOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
M ARTA C ONTE *

“Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me


como posso, entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim
e o Deus” (Um sopro de vida, de Clarice Lispector).
Resumo: O texto procura aproximar as formulações da
psicanálise com a perspectiva da redução de danos, na tentativa
de implicação do sujeito toxicômano no seu discurso, em seus
atos e no laço social. A redução dos danos subjetivos auxilia a
romper com o ideal de cura sem, no entanto, decretar ausência
de cura como um pressuposto.
Palavras-Chave: Toxicomanias – Psicanálise – Redução de Danos

Do sujeito toxicômano muito se fala, mas pouco se escuta. Muito


freqüentemente não o escutamos porque há consensos em torno do uso e do
usuário que se reproduzem em diferentes instâncias como a escola, os
serviços de saúde e a justiça. O fato de se considerar determinados
consensos como verdades tem resultado no ensurdecimento e
engessamento de possibilidades de acolhimento digno. Não há muita
disponibilidade para ouvir as histórias, êxitos e fracassos, pois os
toxicômanos estão investidos de um imaginário social que remete suas
práticas ao gozo, à irresponsabilidade, à delinqüência e a uma afronta aos
hábitos e costumes valorizados socialmente. O sofrimento e o mal-estar que
vivem, muitas vezes, ficam invisíveis. A droga toma a cena e assume um
poder que gera impotência tanto para quem a usa como para quem escuta.
Se o toxicômano nos diz “eu sou o cara”, as várias instâncias que o abordam
confirmam esta posição na medida em que se curvam ao poder mágico de

*
Doutora em Psicologia e Professora da Unisinos.

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potência da droga, fixando a posição de que “não há saída”, deixando de


mobilizar recursos e posicionamento crítico no sujeito que escolhe a droga.
Este é o aspecto mais difícil de sustentar: apostar nas possibilidades de
construção de saídas dos sujeitos aos quais se voltam nossas ações.
Sobre os saberes que se ocupam das toxicomanias, não é possível
pensá-las no interior de um campo conceitual homogêneo, sendo necessário
compor diferentes saberes através da transdisciplinaridade, permitindo,
assim, através de alguns pressupostos compartilhados, dar contorno ao
tema em sua complexidade, sem reducionismos.
O campo das toxicomanias é heterogêneo tanto pelas disciplinas que
se ocupam delas bem como pelas diferentes relações de uso de drogas e
diferentes lugares que a droga ocupa na vida psíquica de cada toxicômano
(como defesa primária ou secundária).
A psicanálise oferece uma visada ampla sobre o tema com
formulações voltadas à clínica dos sujeitos toxicômanos numa perspectiva
transdisciplinar, como também aos imperativos sociais de consumo que
incitam a estilos toxicomaníacos de viver e, ainda, tem contribuído para
problematizar a forma como as diferentes instâncias, citadas anteriormente,
se dirigem ao sujeito em questão.
Há um discurso social do flagelo das drogas, de um imaginário em
torno do usuário e das drogas, sua periculosidade, sua responsabilidade
sobre a sustentação da rede de tráfico, enfim um discurso a propósito de
uma entidade autônoma e perversa que não se submeteria aos efeitos de
uma escuta analítica (CONTE, 2000).
É preciso situar-se neste entrecruzamento de saberes e verdades para
vislumbrar os obstáculos e os avanços a empreender no campo da clínica e
políticas públicas e rever pressupostos para que nossas ações possam
efetivamente marcar este processo histórico e cultural, com contribuições
que façam diferença e auxiliem no questionamento de consensos e
provoque o surgimento do sujeito nos coletivos, especialmente no contexto
da sociedade de consumo e de seus imperativos de felicidade.

A S AÚDE P ÚBLICA E AS T OXICOMANIAS


Durante muito tempo investiu-se na idéia de que a solução para tratar
das conseqüências do uso e abuso de drogas na sociedade se dava através

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da erradicação das drogas. Acreditava-se como possível retirar o produto-


droga de circulação, eliminando a possibilidade de uso no cenário social.
No início do século passado a perspectiva dominante em termos de
política pública era a higienista que se utilizava de métodos impositivos em
nome da saúde coletiva, resultando em contra-reações populares, sem
atingir os objetivos propostos. Esta visão de saúde compreendia a doença de
maneira preconceituosa, pois a erradicação do “mal”, se dava com a
exclusão do “doente” do convívio social.
Esta perspectiva fundamentou-se em modelo repressivo, que elege a
droga como inimigo do povo e apregoa o discurso antidroga. Este discurso
“deve ser questionado não apenas pela sua comprovada ineficácia em
diminuir o consumo de drogas e em contribuir significativamente para
resolver as questões de saúde pública que levanta, mas também por impor
um sistema de intervenção injusto e freqüentemente desumano” (BUCHER,
1996, p. 42). A conseqüência mais direta do combate às drogas é o combate e
a retaliação dirigida ao usuário.
Em torno de 1945, outra perspectiva começa a se delinear. É o
Sanitarismo, que passa a compreender as doenças a partir de um contexto
multifatorial, em que a sua determinação social é fortemente considerada. O
método utilizado passa a ser o da colaboração, através do estabelecimento
da confiança e do vínculo para alcançar os objetivos de saúde da
coletividade.
As ações de Saúde Pública voltadas para o uso prejudicial de álcool e
outras drogas acompanhou os avanços promovidos pela Reforma
Psiquiátrica e pelo movimento da luta antimanicomial em nosso país, o que
significou o reconhecimento de direitos e deveres dos “loucos” e, junto a
eles, o dos toxicômanos. Neste sentido, passa-se a dar maior visibilidade ao
sujeito toxicômano, como um cidadão de direitos e coloca-se em debate
aspectos fundamentais, como: responsabilidade individual,
responsabilidade penal, liberdade de escolha, descriminalização,
diversificação das modalidades de atendimento e de tratamento, objetivos
dos tratamentos, direção do tratamento, qualificação na interface da saúde e
da lei, dispositivos intersetoriais (esporte, lazer, cultura, trabalho), entre
outros.
Historicamente, o movimento da Reforma Psiquiátrica deslocou a
clínica de um lugar central em relação à loucura e centrou-se na luta pela
cidadania. Na saúde pública há uma referência predominante aos cuidados

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psicossociais que visam formas de auxílio para viver, como proposta de


transição entre a instituição total e o necessário trabalho para uma
reinserção social, no qual o manejo de circunstâncias extraclínicas se faz
necessário, como nos indica TENÓRIO (2001).
A confusão que pode ocorrer quando se mescla clínica e política
define-se pela idéia de acesso aos direitos entendido como dever do Estado.
Ao invés de um trabalho que crie condições para que o sujeito venha a
exercitar o cuidado de si e a desejar um projeto de vida, o Estado impõe-lhe
o acesso a seus direitos como um dever.
A respeito disto que relevância teve ou tem a psicanálise em relação a
este tema?
É a partir dos debates entre profissionais e comunidade e o
compartilhamento e reflexão sobre os efeitos das práticas, potencialidades,
limites e angústias que importantes contribuições têm se delineado. Neste
sentido, uma forte influência da psicanálise tem auxiliado a problematizar
práticas de anulamento subjetivo, ideais de abstinência e as formas de
abordar as toxicomanias quando essas recrudescem o sofrimento psíquico e
aumentam a vulnerabilidade psíquica. Ao falar-se de abstinência na
perspectiva psicanalítica trata-se de remeter a posição que o próprio analista
ocupa e que coloca em jogo na direção do tratamento (MELMAN, 1992;
WAKS, 1995; CONTE, 2000). Isto é, o psicanalista ou terapeuta ao disputar
com a droga impondo ou o tratamento ou o consumo, colocando o usuário
em um impasse, fácil de se prever o resultado. Somente o vínculo
terapêutico oferece respaldo para que o lugar da droga tome menos espaço
na vida do sujeito.
Fazendo esta primeira aproximação entre a Reforma Psiquiátrica e a
psicanálise considera-se que há aspectos comuns (recusa ao achatamento do
sujeito a uma passividade que pede assistencialismo, ou a um sujeito-corpo
que pede solução medicamentosa, ou, ainda, a um sujeito ideal que apela
por felicidade no reencontro com um objeto harmônico, ao preço de não se
envolver com seus conflitos psíquicos) e as diferenças que ficam por conta
da ética, dos objetivos das intervenções e a que sujeito se destina. No campo
da Reforma Psiquiátrica prioriza-se a ética do cuidado voltada
especialmente a um sujeito psicossocial e de cidadania, visando, entre
outros objetivos, à sustentabilidade de uma existência, reconhecimento em
uma reinserção social, como resgate de direitos. Para a Psicanálise, o que
rege é a ética do desejo, voltada ao sujeito do inconsciente que, no entanto,

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para ser acessado precisa situar-se em relação a sua existência para chegar a
demandar algo.
Para diminuir a eficácia da droga e propor alternativas de promoção
da vida muitos recursos da coletividade precisam ser mobilizados, evitando
a pedagogia do “terror” e do combate às drogas e os procedimentos de
amedrontamento e intimidação” (Ministério da Educação e do Desporto,
1994) priorizando o estabelecimento de redes de solidariedade, a qualidade
nas relações interpessoais, a comunicação nas relações humanas, enfim, os
valores essenciais ao desenvolvimento do indivíduo na sua rede social.
Considera-se que o Estado em conjunto com a sociedade devem
buscar prover as condições indispensáveis, por meio de políticas
econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doença e de outros
agravos e ao estabelecimento de condições que assegurem acesso universal
e igualitário às ações e serviços voltados para a problemática do uso
indevido de drogas.
O grande desafio em termos de rede de atendimento ao usuário de
drogas é a falta de recursos humanos e infra-estrutural material voltados
aos adolescentes, seja ambulatório, CAPS ou hospital, na perspectiva da
interdisciplinaridade, integralidade e na composição de recursos
intersetoriais. A base impulsionadora de um atendimento de qualidade é a
formação de recursos humanos que deve ser permanente e na ótica da
descentralização valorizando os recursos regionais.

R EDUÇÃO DE D ANOS (RD)


É a dimensão humana que está no cerne desta concepção e isto exige a
adoção de desenhos tecno-assistenciais que estimulem a valorização da
qualidade de vida, a integralidade e o exercício pleno da cidadania da
população em geral.
A Redução de Danos que no princípio estava voltada para a
prevenção de doenças de transmissão sanguínea entre UDI, e que pela
natureza de seus propósitos chegou a ser identificada apenas como uma
prática de trocas de seringas, progressivamente passou a ser vista pela
essência de seus princípios: o respeito aos usuários de drogas, sua demanda
e seu tempo.
O que melhor a caracteriza é a flexibilidade no contato com o usuário e
sua rede. Significa estabelecer vínculo, facilitar o acesso a informações e

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orientações, estimular a ida ao serviço de saúde, utilizando propostas


diversificadas e construídas com cada usuário e sua rede social. Considera-
se o que é pedido e as possibilidades para compor um acompanhamento
com combinações em comum acordo, chamado de plano de ação
terapêutico.
A RD nos levou mais próximos da voz dos usuários em condições de
exclusão, problematizando fatores de risco como: os imperativos sociais de
consumo, a influência da publicidade que referenda identidades standart,
“de parecer ser”, o rompimento de laços, o moralismo, o preconceito social
e a criminalização.
Através da RD tem sido possível retomar um olhar e um desejo de
investimento voltado aos sujeitos toxicômanos, contrapondo com rigidez
das exigências por uma sociedade livre de drogas. A Redução de Danos
apresentada como uma estratégia em saúde pública tem sua importância
como contribuição ao campo social pelo fato de questionar consensos
colocados de antemão em torno do usuário e das drogas, reconhecer
diferentes relações de uso de drogas, uma vez que há a disposição de
escutar quem permanece envolvido com as drogas, e propõe um diálogo
com outras instâncias, permeando-as.
A RD permite uma mobilidade que nos coloca em outra forma de
relação com o social, servindo-nos, muitas vezes, de referência, de ponte,
entre o sujeito e o laço social do qual está apartado. Lembra o trabalho do
acompanhante terapêutico.
São várias as formas de estar orientado pela RD. O trabalho do
redutor de danos é ativo, isto é, ele vai ao campo, ao local onde o usuário
utiliza drogas em grupos, “brets”1. Insere-se no grupo e orienta o uso limpo
além de acolher diferentes pedidos de encaminhamento para testagem,
consultas, documentos, relação com a justiça, etc.
Quanto a RD entre profissionais de saúde tenta marcar uma diferença
com a posição médica, acompanhando os toxicômanos, menos pelo ideal de
saúde e mais por aquilo que é viável para o paciente. Constrói-se com o
interessado e de acordo com a necessidade, esquemas de proteção, sem
necessariamente exigir abstinência a não ser que o uso intenso apresente
situações de risco de vida.

1
“Brets” na linguagem do campo trata-se do local onde o gado é encaminhado para ser vacinado ou
morto.

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O que parece ser um recurso valioso é que as estratégias de RD


permitem um diálogo maior com diferentes instâncias, ressituando o debate
das drogas pautado pela ética, pelo respeito à subjetividade, entre outros.
Por exemplo, quando um juiz se referencia pela Redução de Danos
consegue fazer uma interlocução com uma equipe interdisciplinar e
problematizar caso a caso, inclusive a situação dos usuários ou dependentes
que fazem pequenos tráficos para sustentar o uso, sem compulsoriamente
enquadrá-los no art. 12 – tráfico de drogas, crime hediondo.
Uma constatação bastante produtiva na perspectiva da redução de
danos e da psicanálise foi analisar a extensão do que ocorria nas trocas entre
redutores de danos e usuários. O que iniciou pela troca de seringas tomou
significações de laço. Junto com a troca de seringas os usuários, ao sentirem-
se investidos, passaram a trocar olhares, cuidados, investimentos, pedidos
de informações e outros. Estas trocas permitem, muitas vezes, a entrada de
um terceiro que venha a romper com a relação dual, intensa, exclusiva e
mortífera com as drogas. Um circuito libidinal/pulsional se restabelece e se
atualiza respaldado por uma remontagem fantasmática. Neste ponto, o
redutor de danos se presentifica, há um maior cuidado com o toxicômano
por esta vulnerabilidade na relação mortífera com o Outro. O sujeito
barrado recoloca-se em relação ao objeto a.
Na clínica psicanalítica, a redução de danos tem uma contribuição,
especialmente, em relação às toxicomanias mais graves, que se apresentam
com uma desorganização psíquica significativa e perdas em vários aspectos
de vida. Nestas toxicomanias, amparar o sujeito de cidadania, psicossocial
ou de direitos anda junto com o trabalho sobre as condições do psiquismo,
por isto a importância da interdisciplinaridade.
Nas situações de maior miséria subjetiva empresta-se nosso desejo
para que o toxicômano tenha porque e por onde reconstruir sua existência,
constituindo um campo de troca e reduzindo danos conseqüentes da
relação mortífera com a droga e com o grande Outro.
Para além do atendimento individual, são necessárias as entrevistas
com familiares, o acompanhamento terapêutico, a inclusão em atividades
diversificadas e outros esquemas de proteção que são construídos a partir
das demandas dos pacientes, de acordo com suas necessidades, interesses e
desejos.

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Quanto a abordagem da abstinência há uma aproximação entre


Redução de Danos e a clínica psicanalítica, na reafirmação de que a
abstinência está do lado do analista, dos nossos ideais, permitindo a escuta
do sujeito toxicômano, auxiliando-o na direção do tratamento a posicionar-
se em relação a um cuidado de si, ao Outro, cuidado dos outros, seus atos e
ao mundo em que vive.
Algo nos surpreendeu na aproximação com esta realidade que as
pesquisas constatam: o dependente de drogas quando orientado sem
preconceitos consegue assumir um cuidado de si, de forma responsável no
uso de drogas. 60% dos usuários de drogas injetáveis pararam de
compartilhar agulhas e seringas, apesar de não pararem de usar drogas
injetáveis. Isto assinala o quanto é fundamental desenvolver políticas sociais
e de investimento voltadas aos usuários e/ou dependentes de drogas. Atos
políticos podem promover atos clínicos.
Apresento uma situação de um usuário de drogas e como a concepção
de redução de danos auxiliou o acolhimento do ponto de vista jurídico, de
direitos humanos, de saúde e rede social.

C ASO D
Por causa de um baseado que passou adiante acabou no presídio
central. Já na rua consumia crack, depois de preso com o acesso facilitado no
presídio passou a consumir diariamente. A condição psíquica ficou
alterada, altos e baixos, momentos de depressão profunda. Não conseguia
elaborar a experiência da prisão e nem tirar algum proveito do
confinamento. Precisava de atendimento psicológico e não havia.
Ao ser procurada para ajudá-lo, através do Centro de Referência em
Redução de Danos da ESP, trabalhou-se no sentido de referenciar a família
para a busca de saídas através da ONG IAJ (Instituto de Acesso à Justiça).
Essa ofereceu o respaldo jurídico necessário levando os princípios da
redução de danos como defesa, facilitando o diálogo com o juiz e a saída do
presídio e a reabilitação psicossocial, não sem deixar danos difíceis de serem
administrados. No entanto, a rede de apoio estabelecida com familiares, IAJ
e Centro de Referência em Redução de Danos foi fundamental na
perspectiva de debate no sentido da defesa dos direitos humanos dos
usuários de drogas.

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D IÁLOGO E Q UESTIONAMENTOS
A Redução de Danos como uma concepção que flexibiliza as
abordagens voltadas ao sujeito envolvido com as drogas não promete um
objeto harmônico ou a recuperação de um sujeito ideal. Ao contrário,
valoriza a singularidade e o tempo não impondo ideais pré-formatados ou
impossíveis.
Para a Redução de Danos a direção do tratamento é resultante de um
processo, que inicia muito antes de o sujeito chegar a um tratamento
propriamente dito, já que a aproximação dos redutores de danos com esta
população vulnerável trabalha as condições da existência que permitirão ao
sujeito toxicômano demandar tratamento ou outras formas de auxílio ou
inclusão social. Este trabalho preliminar tenta recuperar a palavra, a
história, as marcas e a memória do sujeito toxicômano, reconhecendo sua
existência e escutando suas queixas, necessidades e demandas.
Um problema que esta concepção pode oferecer é de deixar o sujeito
mais livre ainda do que se encontra, sem sinalizadores que sirvam de
obstáculo a uma entrega servil ao grande Outro. No entanto, a proximidade
e pouca exigência inicial dos redutores de danos com os toxicômanos
facilita o vínculo, porque respeita a distância que o toxicômano precisa
manter com o Outro para não se sentir invadido. Há um grande cuidado,
também, em não cair em uma apologia ao uso de drogas, mesmo que
muitos pratiquem a RD nestes termos.
A escuta analítica tem uma importante função na clínica das
toxicomanias e para efetivar esta função precisa-se reconhecer as
especificidades quanto à linguagem, à transferência, ao sintoma e ao gozo
implicados. Esta escuta pode abrir vias, escavar algo entre a “necessidade” e
a demanda que vislumbre um lugar para o sujeito (CONTE, 2003).
Considerando as especificidades citadas ressalta-se a importância do
trabalho analítico estar articulado a uma equipe interdisciplinar, além da
flexibilidade da posição do analista e da importância em referenciar outros
recursos de suporte, na direção do tratamento das toxicomanias.
Talvez um dos problemas que se possa refletir aqui é sobre a difícil
vinculação do toxicômano em análise, sem o trabalho sobre a demanda. É
justamente antes que o sujeito emerja que há um trabalho preliminar que
pode estar compreendido no campo da psicanálise e como responsabilidade
do analista.

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Para finalizar esta tentativa de aproximação, interessou-me,


especialmente, evidenciar que está presente tanto nas formulações da
psicanálise como na redução de danos a tentativa de implicação do sujeito
toxicômano no seu discurso, em seus atos e no laço social – enfim na direção
do tratamento. Reduzir danos subjetivos auxilia a romper com o ideal de
cura sem, no entanto, decretar ausência de cura como um pressuposto.
Na medida em que a Redução de Danos passou a circular no âmbito
público como uma diretriz, propôs um amplo debate, como assinalei.
Especialmente refletindo sobre a forma de acesso ao tratamento não como
um dever, mas como uma escolha. Esta discussão tem ressituado a
potencialidade de um trabalho em rede, resultando em maior
disponibilidade dos profissionais da saúde pública para uma clínica
ampliada com toxicômanos.

R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Saúde. (2001) Coordenação Nacional de DST e Aids. Manual de
Redução de Danos. Ministério da Saúde, Coordenação Nacional de DST e Aids. Brasília:
Ministério da Saúde.
CONTE, Marta. (2000) A Clínica Psicanalítica com Toxicômanos: o “Corte & Costura” no
enquadre institucional, Tese de Doutorado, PUC-SP.
CONTE, Marta. (2003) Necessidade, Demanda e Desejo: os tempos lógicos na direção do
tratamento nas toxicomanias. Revista da APPOA, ano XI, nº 24, maio.
LE POULICHET, Sylvie.(1990) Toxicomanías y psicoanálisis – Las narcoses del deseo. Buenos
Aires: Amorrortu editores.
MELMAN, Charles. (1992) Alcooolismo, delinqüência e toxicomania – uma outra forma de gozar.
São Paulo: Escuta.
TENÓRIO. Fernando. (2001) A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro:
Rios Ambiciosos.
WAKS, Claudio E.M. (1995) A clínica psicanalítica da toxicomania – o lixo clínico. São Paulo:
PUC-SP, abril. 1995. (Trabalho apresentado no II Congresso de Psicopatologia
Fundamental da PUC-SP).

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DESVIO, LOUCURA E TOXICOMANIAS:
LEITURAS DESDE A FILOSOFIA, A
PSICOLOGIA E A PSICANÁLISE
M ARTA C ONTE *
P ATRÍCIA G ENRO R ÓBINSON **
M ONICA D ELFINO ***
M ARGARETH K UHN M ARTTA ****

“Mais foi a primeira palavra que eu me repeti intensamente na


minha infância. ‘– Maise, mamãe, maise, mamãe’. Fosse
guaraná, fosse coca-cola, fosse coca, fosse cola, fosse amor ou
desamor ou qualquer outra espécie de dor. Eu quero mais ser
imortal, quero ser meu futuro ancestral, quero mais tabacaria,
mais pessoa, mais maria, mais vinho, mais poesia” (ANGELA RO
RO, abertura da canção Quero mais!, no CD Ângela Ro Ro ao
vivo, 2003).
Resumo: O presente trabalho entende a toxicomania como um
sintoma em consonância com o imperativo de gozo presente no
discurso da contemporaneidade. Descreve ainda as
transformações engendradas na percepção do sentimento de
felicidade em cada época e a indicação de que este sentimento
chega à atualidade sob a forma de um “imperativo enigmático”
já que é o próprio sujeito, longe de qualquer transcendência,
quem deve descobrir como prover a si de mesmo tal
sentimento. Afirma a atualidade como promotora das
toxicomanias na medida que a sociedade de consumo promete
que a felicidade virá com os objetos consumidos, mas como
nunca é verdade que um objeto seja conclusivo, a droga faz esta
função: a promessa de uma satisfação final já que o toxicômano

*
Doutora em Psicologia e professora da Unisinos.
**
Mestre em Psicologia e professora da ESP/SES e FATO.
***
Psicóloga e Mestre em Ciências Criminais.
****
Mestre em Psicologia e professora da UCS.

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é alguém que pode nomear o que lhe falta. É por isso que se diz
que na toxicomania o objeto é real, e corresponde ao que
anestesia a dor de viver, corrige (ainda que em flashes) o mal-
estar de algo que escapa. Este objeto, a droga, indica um prazer
que não mais necessita passar pelo tortuoso caminho das
palavras, sempre aproximativo.
Palavras-Chave: Toxicomanias – felicidade – consumo – falta –
mal-estar

Com esta fala, desejamos trazer um mote que sinaliza a adição como
um imperativo importante de nosso tempo. Nesta perspectiva, a
toxicomania é um sintoma possível e em consonância com os discursos
vigentes, o discurso produzido numa cultura de consumo e o discurso da
ciência com sua promessa de bem-estar e felicidade, através da solução de
toda impossibilidade.
Nestes discursos, uma produção comum: um homem reificado, que
transformou os objetos em valor central de sua constituição. Este homem
tem como encargo ganhar a corrida pelo gozo acreditando encontrar nos
objetos a possibilidade de se obturar a falta, a falta esta que nos constitui,
que nos dá o mundo, mas que nos cobra 1 libra carne: não há gozo absoluto
(Mercador de Veneza).
Para não deixar de situar de onde falo, desde que leitura minha fala se
autoriza, lembro que FREUD em O mal-estar na civilização cita o uso de drogas
como uma das estratégias colocadas em ato pela humanidade para escapar
ao caráter transitório da felicidade. Importante sublinhar que a felicidade é
um ideal, e todos nós sabemos o quanto o ideal se relaciona com a morte.
Um amor ideal é um amor eterno, e um amor eterno é um amor morto,
posto que vivê-lo é consumá-lo e consumi-lo, colocar-se diante de suas
fraturas nada ideais. Um filho ideal é um filho morto....
Uma curta digressão para logo retornar a um pouco mais do mesmo,
a toxicomania. Felicidade nas grandes línguas européias, nas suas formas
mais arcaicas, tem uma raiz que significa sorte, fortuna. Felicitas significa
ventura, sua raiz é felix, aquilo que é fecundo, fértil, favorecido. É assim que,
originalmente, a felicidade não era algo que pudesse ser almejado, buscado
por todos os homens, mas algo que cabia amiúde a um outro.
Evidentemente a percepção do que seria felicidade sofreu uma série de
mudanças que diziam respeito aos movimentos vividos em cada época.

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Na Grécia antiga era feliz aquele que tinha boa saúde, força, boa sorte
na vida, êxito na formação individual; em suma, os correlatos de uma alma
bem formada.
Já o cristianismo retirou a felicidade do escopo de possibilidades que
a vida neste mundo poderia oferecer e a postergou para a vida a ser vivida
após a morte.
O renascimento e, logo, o iluminismo defendem que se pode obter
felicidade e, radicalizando a idéia, postulam-na como um direito inalienável
do homem, um sentimento a que se deve aspirar e pelo qual se deve lutar,
mas a via para obtê-la ganha opacidade.
E aqui um ponto importantíssimo, perdeu-se a clareza com que a
felicidade era definida: seja através de um destino da fortuna, ou de uma
recompensa pela virtude, ou ainda como uma graça a ser vivida em vida
póstuma, a felicidade era um estado possível através de alguma via. A
modernidade faz crer então que a felicidade é um direito humano ao
alcance da mão de qualquer um que se coloque a buscá-la e parece mostrar
que todas as vias de obtenção da felicidade são possíveis, não elegendo
nenhuma em especial.
Passamos a ter uma definição incerta do que é a felicidade, mas,
paradoxalmente, estamos submetidos a um esmagador imperativo de
sermos felizes.
CONTARDO CALLIGARIS vai chamar a isso de um imperativo
enigmático e vai afirmar que essa é uma peça essencial da nossa
organização social. Lembremos de um exemplo de DIANA e MARIO CORSO.
A chave do enigma é oferecida pelos dois grandes discursos que
permeiam a atualidade. O discurso capitalista – sobretudo em sua dinâmica
liberal – e o discurso científico. Ambos detêm o passaporte para a felicidade
instantânea e sem mediação. Ambos nos fazem crer que há um objeto na
medida exata do desejo para gozar como Deus.
Retornamos então ao ponto exato onde tinha proferido a primeira
frase de que a adição é um imperativo importante na modernidade e que,
portanto, a toxicomania é um sintoma legítimo deste tempo.
Mas atenção: estamos todos organizados segundo a adição, mas uma
adição de objetos simbólicos, representantes de algo inominável e que nos
mantêm vivos e falantes enquanto buscamos este inominável. Dele,

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encontramos sempre a sombra, porque quando acreditamos tocá-lo, ele


escapou e já está ali mais adiante.
Do que estamos falando? De que operamos dentro de um sistema de
elementos – chamados significantes – que remetem uns aos outros, não
significando nada em si mesmos. No momento em que se é capturado pela
linguagem, o desejo vai se organizar em torno do que é uma perda, num
deslizar infinito. Nenhum objeto é suscetível de preencher e satisfazer o
desejo, na mesma proporção em que nenhuma palavra pode ser senão o
representante de uma coisa. Nesta medida, somos estruturalmente adictos.
Nós esperamos que a felicidade venha dos objetos que consumimos,
mas descobrimos repetidamente que não é bem assim: nenhum objeto de
consumo é conclusivo. Ao contrário, cada objeto nos remete ao seguinte,
como uma bebida que, em lugar de apaziguar, aumentasse a sede,
exemplifica CALLIGARIS.
A droga parece prometer uma satisfação final: graças a ela,
dispensaremos todos os outros objetos – seu consumo nos apaziguará,
enfim. Em realidade, ela transforma a frustração nossa de cada dia, nossa
frustração consumista banal, numa privação dolorosa, mas que tem a
vantagem de ser absolutamente unívoca: o drogado, ao menos, sabe o que
lhe falta.
É por isso que se diz que na toxicomania o objeto é real e corresponde
ao que anestesia a dor de viver, corrige (ainda que em flashes) o mal-estar
de algo que escapa. Este objeto, a droga, indica um prazer que não mais
necessita passar pelo desfiladeiro das palavras, caminho tortuoso, sempre
apenas aproximativo.
O efeito das drogas provoca a ilusão de que o prazer não requer a
passagem pelos significantes e, assim, pode ser perene e constante. Um
bálsamo para a maior falha da criação, como nos lembra DURVAL FILHO.
Diante deste bálsamo, o sujeito paralisa numa relação dual com a droga. O
toxicômano não vai mais ao espelho, ele não dirige nenhuma pergunta ao
oráculo: ele detém a resposta.
É importante dizer que, do ponto de vista subjetivo, o problema não
está exatamente em querer consumir a droga, mas em se montar um
funcionamento em que se viva quase que exclusivamente para isso, ou seja,
consumir-se na droga. O problema não é exatamente a droga, mas a relação
com a droga, um tipo de relação que se sobrepõe a todas as outras relações

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possíveis com outros objetos e as paralisa. E aqui o que é mais drástico é


que subjetivamente fica-se caracterizado pela perda da liberdade, pela
perda de possibilidade de escolha de outros objetos de amor.
Fundamental repetir, há uma superestrutura cultural para sustentar
tudo isso. E esta superestrutura não está mais restrita ao discurso
underground, contracultural, soixante-huitard. O próprio uso das drogas
mudou, e creio que a relação com elas e aquilo que se espera delas como
resposta mudou. Nos anos 60, a maconha e os alucinógenos eram
concebidos como auxílios para descer “mais fundo” no autoconhecimento
ou numa pretensa comunhão mística com o mundo. Drogar-se era fazer
uma viagem iniciática ou interior, era abrir as “portas da percepção”
(HUXLEY).
O ecstasy dos anos 90, ao contrário, promete “estase”, uma
diminuição do fluxo. Serve para nada dizer enquanto o corpo se agita ao
som da música eletrônica até que a pilha termine.
Vemos muitos autores afirmando que a cultura moderna é uma
cultura toxicomaníaca. Mas é fundamental ponderar que não existe uma
estrutura, uma “personalidade” – se isso torna mais inteligível a idéia –
específica da toxicomania. MELMAN dirá que qualquer um pode se tornar
toxicômano. Isto quer dizer que o encontro acidental com a droga é
suscetível de provocar transformações psíquicas que chegam a uma
toxicomania.
Isto quer dizer também que o toxicômano em si não existe pelo menos
não mais que os psicóticos, os perversos, os neuróticos que consomem
drogas. Ou seja, não se encontra uma explicação para o uso das drogas no
passado edípico ou bioquímico dos sujeitos: a toxicomania parece ser
resultante de uma história que visa ao futuro e não ao produto de um
passado mal resolvido. O encontro com a droga é casual e se há um
significante específico que predispõe à toxicomania ele vai ser encontrado
na neurose, na psicose, na perversão.
Parada obrigatória: se toxicômano não existe enquanto estrutura
como sustentar uma terapêutica dos doze passos, aquela dos narcóticos
anônimos por exemplo?
Não se duvida de sua intenção de favorecer ao adicto a palavra. Mas,
de fato, exige dele que a palavra comece sob a forma de um enunciado
específico “Eu sou toxicômano”. Triste armadilha que se retroalimenta, já

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que parte do princípio de que não há desvencilhamento possível de tal


condição.
Parece-me que começamos pelo fracasso na medida em que ratifica a
posição do toxicômano de que ele realmente detém um saber sobre o gozo e
que este saber prescinde do Outro. A idéia de uma incurabilidade presente
no discurso dos grupos de mútua ajuda e na medicina acabou criando uma
situação paradoxal: o ponto de partida e o ponto de chegada são o mesmo:
eu sou toxicômano. Na partida: eu uso drogas.
Na chegada mantém-se a mesma frase mas sem uso de drogas e se
cria um paradoxo interessante, passa a existir a toxicomania sem droga. Não
está aqui contemplada a possibilidade do sujeito simplesmente deixar de
usar as drogas ou ter algum grau de domínio sobre o uso. O que estas
terapêuticas defendem é que o toxicômano deve reconhecer o horror e o
fascínio das drogas e jamais delas se aproximar numa atitude quase fóbica.
A psicanálise, nas palavras de DURVAL, por outro lado tem um
comprometimento ético de se manter no campo da palavra, de investigar as
condições da toxicomania naquele sujeito singular, sem antecipar o
resultado, sem punir as recaídas, sem gratificar as abstinências. E ele
continua:
“A luta pelo bem-estar do toxicômano é, paradoxalmente, nada
mais do que a luta para que o mal-estar da civilização seja
reconhecido e que o gozo do corpo possa receber algum obstáculo.
É, portanto, uma batalha contra o prazer sem mediação, o prazer
com o qual todos nós devaneamos... Não há como dizer que o
toxicômano não cumpra a nossa fantasia”.

86
CRIMINOLOGIA E PSICANÁLISE:
POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO
S ALO DE C ARVALHO *

Resumo: O artigo procura encontrar pontos de intersecção entre


a psicanálise e a criminologia (crítica) e sua harmonização na
qualidade de discursos de desconstrução da pureza do projeto
civilizatório delineado na Modernidade. O espaço de
aproximação é construído a partir do entendimento que em
ambas há radical ruptura com a figura angelical do humano
civilizado a partir da contundente afirmação da permanência
latente do bárbaro, obtendo, como efeito deste processo a
humanização da figura do criminoso, visto apontar sua
presença em todos nós.
Palavras-Chave: Criminologia – Psicanálise – Modernidade –
Civilização – Barbárie

1. As investigações que realizam aproximações entre os campos do


Direito e da Psicanálise vêm ganhando espaço na academia nacional. Nos
últimos anos, inúmeras coletâneas e monografias foram publicadas –
grande parte fruto de trabalhos de pós-graduação (dissertações de
mestrado, teses de doutoramento e ensaios pós-doutorais) –, grupos de
pesquisa foram formados e vários seminários realizados, fato que denota
evidente interesse da comunidade de cientistas (KHUN) pelo diálogo
interdisciplinar.
A reflexão de JACINTO COUTINHO parece sintetizar os motivos deste
affaire: “sigo com uma grande preocupação em relação à intersecção Direito-
Psicanálise, e não pelo imenso prazer que as novas fronteiras abrem, passo a
passo, dando sabor e cor àquilo que, desgastado, tem-se mostrado ‘sem-

*
Professor Titular de Direito Penal (Graduação) e Criminologia (Mestrado em Ciências Criminais)
da PUCRS.

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tudo’, mas porque cada vez mais é possível afirmar que o Direito não tem
salvação sem as luzes do discurso psicanalítico”1.
Se o direito e a psicanálise possuem discursos evidentemente diversos
e qualquer aproximação deve ser realizada com extremo cuidado
(COUTINHO), a criminologia, ao realizar este desafio, não se inscreve no
universo das disciplinas propriamente jurídicas; sequer poderia ser referida
desde o ponto de vista dos modelos integrados de ciências criminais
tradicionais (ROCCO e LISZT) ou críticos (HASSEMER, FERRAJOLI e
ZAFFARONI).
É que a criminologia, diferentemente da dogmática do direito (penal),
possui natureza interdisciplinar, logo inegável a facilidade em promover
diálogos não ortodoxos, distantes da rigidez formal do jurídico. Se no plano
epistemológico, apesar das dificuldades, é possível identificar o local da
ciência jurídica e estabelecer os horizontes de discussão possíveis com a
psicanálise, no que diz respeito à criminologia as imprecisões são
amplificadas. Sobretudo porque a criminologia, a partir de séria
problematização sobre questões epistemológicas, passa a ser percebida
como locus de fala e de escuta no qual se encontram inúmeros e distintos
saberes acerca do crime, da violência, do criminoso, da vítima, da
criminalidade, dos processos de criminalização e das formas de controle
social. Assim, a própria identificação da criminologia como ciência resta
prejudicada ou, no mínimo, seriamente questionada.
A constituição da criminologia como espaço de convergência de
discursos não apenas possibilita o encontro de olhares plurais – inclusive
não científicos, como o olhar artístico –, mas fomenta a abertura e a
autocrítica destes saberes interseccionados. Trata-se, pois, de local de
encontro e de (auto)reflexão.
A história das idéias criminológicas permite verificar empiricamente
esta construção ímpar, mormente se a criminologia for pensada como
disciplina jurídico-penal. Em sua formulação primeira (criminologia
etiológica), estabelecida no campo jurídico como ciência auxiliar, ganha
autonomia e identidade própria ao se aproximar da medicina (em especial
da psiquiatria), da psicologia, da antropologia e da sociologia, ciências que
passam a ser adjetivadas pelo rótulo criminal. O processo de autonomização
objetivou, inegavelmente, a identificação da criminologia como ciência.

1
COUTINHO, O Estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro?, p. 69.

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Todavia sua consolidação restou inconclusa, face aos desdobramentos


das pesquisas e à pluralidade dos discursos (criminológicos) produzidos. A
explicação possível para a interrupção do primeiro projeto científico foi a
sua marcante interdisciplinaridade, situação que inviabilizou qualquer
amarra epistemológica, apesar de renovadas tentativas de enclausuramento
através do adestramento proposto por disciplinas que reproduzem a
imagem e o rótulo da auxiliaridade do discurso criminológico.
2. Na atualidade podem ser apresentadas duas distintas versões da
criminologia. A primeira, denominada criminologia dramática, de perspectiva
idealista e metafísica, buscaria associar-se a outros saberes, na condição de
saber menor, para qualificar-se como ciência, e, inserida no ideal cientificista
moderno, fragmentar o estudo do seu objeto para melhor conhecê-lo e
alcançar suas finalidades – v.g. erradicação da criminalidade, regeneração
dos delinqüentes, etc. Esta perspectiva, contudo, acaba por reproduzir o
antigo estigma da auxiliaridade, confundindo a criminologia com o próprio
saber ao qual se propõe auxiliar, possibilitando seja colonizada por
discursos alienígenas. Veja-se, a título de exemplificação, o que ocorre com a
neurocriminologia – versão criminológica das neurociências voltada ao
estudo da etiologia individual – e a sociologia criminal – saber criminológico
capacitado pelas ciências sociais que direciona o estudo do delito para as
técnicas de controle social (formal ou informal).
A segunda, intitulada criminologia trágica, intentaria romper com a
tradição idealizadora das ciências e, ao abdicar de quaisquer pretensões
epistemológicas, procuraria produzir discursos problematizadores dos
sintomas sociais contemporâneos, com a específica perspectiva de reduzir
os danos e os sofrimentos provocados pelas violências, públicas
(institucionais) ou privadas (interindividuais).
Neste ponto é que se entende possível o diálogo entre psicanálise e
criminologia, ou seja, na convergência dos discursos para a análise crítica do
mal-estar contemporâneo que se traduz de inúmeras formas na reprodução
das violências. Note-se que não se está procurando criar novo discurso,
disciplinar e totalizador, a partir da compilação de categorias da
criminologia e da psicanálise. O desejo é apenas possibilitar o encontro
entre os saberes, porque tanto criminologia como psicanálise carecem de
identidade epistemológica. E talvez esta seja a principal circunstância que
lhes possibilita dialogar.

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A condição de possibilidade da criminologia trágica passa, portanto,


por assumir e identificar dois predicados diagnosticados por BIRMAN que
sustentam a psicanálise, neste espaço devidamente adaptado ao problema
criminológico: a) abdicar do ideal cientificista e b) eximir-se da narcísica
tarefa de reforma do homo (criminalis). BIRMAN ensina que o discurso
freudiano somente conseguiu certa organicidade como discurso crítico da
cultura quando primeiramente se desgarrou da pretensão científica2 e,
posteriormente, quando rejeitou projetos moralizadores de salvação ou de
conversão dos sofredores.
Nesta linha de argumentação, da mesma forma que o analista não
tem condições de manejar a terapêutica das enfermidades, o criminólogo
não é capaz de gerir e de controlar, como se manuseasse fármacos, o
comportamento delitivo. A primeira reflexão possível deste incipiente
diálogo, portanto, é sobre as possibilidades de ação do criminólogo e a
consciência dos seus limites frente ao fenômeno crime. Neste aspecto as
figuras do criminólogo e do analista se aproximam: “(...) é necessário que o
analista [criminólogo] não tenha a pretensão e a arrogância de universalizar
seus ideais, mesmo suas escolhas no campo psicanalítico [criminológico],
para empreender a conversão e a salvação das almas dos sofredores
[criminosos] que lhe demandam cuidados por não suportar a dor de existir.
A figura do analista [criminólogo] não é, pois, um remédio, tampouco um
fármaco capaz de promover a salvação das almas sofrentes. Isto porque a
psicanálise [criminologia] não é um saber médico [jurídico, sociológico,
psiquiátrico] capaz de gerir a terapêutica das enfermidades”3.
3. No interior do discurso jurídico, regulador da ordem e o garantidor
da segurança, ao civilizado é concedido estatuto que lhe permite gozar
licitamente dos bens da vida: o Código Civil. No entanto ao bárbaro, que
usurpa o gozo alheio ou que reivindica a possibilidade de transformar em
ato o desejo latente, são resguardadas as esferas de ilicitude regradas pelo
Código Penal, cuja gestão das sanções será exercida pelas agências
inquisitórias de punitividade. O direito penal, representado pela estrutura
normalizadora e moralizadora do Código, e os aparelhos repressivos,

2
“Somente quando o discurso freudiano se desgarrou do ideal cientificista – promovendo o luto
trágico de não pretender mais ser uma ciência – é que se constituiu a condição de possibilidade
para que uma leitura crítica do mal-estar da modernidade pudesse ser realizada com
radicalidade. Somente então a psicanálise pôde se apresentar como discurso crítico sistemático
sobre a cultura” (BIRMAN, Mal-Estar na Atualidade, p. 40).
3
BIRMAN, Mal-Estar..., p. 46.

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visualizados nos sujeitos que exercem diretamente a coação repressiva


(agências policiais, judiciárias e carcerárias), instrumentalizam os processos
formais de culpabilização.
O sistema de justiça criminal, ao adquirir a qualidade de sujeito
externo de exposição dos sentimentos individuais de culpa, reforça e
reproduz o ressentimento, motivo pelo qual se institui como tipo ideal de
justiça vindicativa. Desta forma, constata NIETZSCHE que não surpreende
ver surgir tentativas sempre renovadas de “(...) sacralizar a vingança sob o
nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do
sentimento de estar-ferido (...)”4.
Os discursos críticos ao projeto civilizatório como ápice da evolução
do homem, presentes na literatura (SADE), na filosofia (NIETZSCHE) e na
psicanálise (FREUD), desnudaram não apenas a pretensão asséptica do agir
humano civilizado mas a natureza ressentida do sistema de (in)justiça
criminal.
Assim, se a cultura vê a violência como transgressiva aos valores
morais civilizados e como conduta inerente ao ser do homo criminalis, os
discursos de ruptura demonstrarão exatamente o oposto, ou seja, que a
violência não é qualidade intrínseca de seres bárbaros, pré-civilizados, que
tende a ser suprimida pelo gradual e constante desenvolvimento das ordens
sociais. Ademais, evidenciarão que as agências de punitividade não se
constituem como sistemas racionais e puros que, ao atuar de forma
homogênea, operam na proporcional distribuição dos castigos aos sujeitos
que cometeram faltas.
No âmbito da criminologia, se a hipótese do causalismo etiológico
está harmonizada à perspectiva moderna e ilustrada de evolução social do
humano à plenitude da espécie (criminologia positivista), apenas a partir
dos resultados das investigações advindas da sociologia do desvio poderão
ser recepcionadas, e posteriormente reforçadas e densificadas, as críticas
contraculturais realizadas por SADE, NIETZSCHE e FREUD.
Conforme sustenta BARATTA, as teorias sociológicas interacionistas
estadunidenses, a partir dos anos 30 do século passado, estabelecem série
de premissas que possibilitará a ruptura com o modelo determinista da
criminologia biopsicológica. Embora desenvolvido sob a orientação teórica
do positivismo científico, ou seja, apesar de não ser propriamente estudos

4
NIETZSCHE, Genealogia da Moral, p. 62.

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de cisão com o paradigma científico da modernidade, o resultado das


teorias estrutural-funcionalistas da anomia de DURKHEIM e de MERTON, das
teorias das subculturas criminais de SUTHERLAND e de COHEN e das teorias
das técnicas de neutralização de SYKER e de MATZA prepara de forma
consistente a viragem criminológica (criminological turn) que ocorrerá com o
Labeling Approach.
Ao se constatar que o delito e/ou o desvio são fenômenos normais (e
inclusive necessários) em todas as estruturas sociais, e que o
comportamento desviante não é expressão de conduta dirigida contra
valores universalmente aceitos, pois nas sociedades plurais coexistem
inúmeros valores, o problema central da criminologia é redefinido.
DURKHEIM demonstra ser o delinqüente não membro doente no interior de
sociedade sã, mas elemento catalizador e agregador, agente regulador da
vida social. Assim, “o delito faz parte, enquanto elemento funcional, da
fisiologia e não da patologia da vida social”5.
Portanto o crime, o desvio e a violência, em sentido amplo, não são
restos bárbaros da ordem primeva em vias de extinção ou de supressão pelo
processo civilizatório, mas constantes do agir demasiado humano, presentes
em sua primeira natureza e mantidas na cultura.
Neste quadro, o determinismo causal que sustenta a criminologia
positivista sofre sua primeira e mais profunda ofensa. E agregada à
perspectiva de DURKHEIM, as conclusões de SUTHERLAND sobre os white
collar crimes destitui da criminologia tradicional seu objeto mais precioso: a
patologização do delito e do delinqüente – “(...) las hipótesis de que el delito
es debido a patologías personales y sociales no se aplica a los delitos de
‘cuello blanco’, y si las patologías no explican estos delitos no son factores
esenciales en los delitos en general, y, por lo tanto, no son factores
esenciales en los delitos que ordinariamente confrontan los departamentos
policiales y los tribunales penales y juveniles”6.
Se as condutas adjetivadas como delitos possuem diferenças
significativas decorrentes dos distintos resultados lesivos e da pluralidade
dos personagens (autores e vítimas), e se as hipóteses de determinação
biológica, psicológica, sociológica ou antropológica não se aplicam ao
universo dos fenômenos definidos como crime, conseqüentemente não são

5
BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 60.
6
SUTHERLAND, El Delito de Cuello Blanco, p. 307.

92
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estas patologias fatores fundamentais para identificar, sob o mesmo rótulo


(delitos), condutas assimétricas.
Outrossim, como variável das conclusões da sociologia criminal, a
criminologia demonstra o equívoco da leitura conjugada entre os
fenômenos crime e violência, estabelecendo a necessária desvinculação.
A mania classificatória e a obsessão pela origem (causal), heranças
nosológicas do conhecimento psiquiátrico do Século XIX, apropriadas do
modelo da Botânica7, demonstram-se, definitivamente, inadequadas para
análise do crime, não apenas em decorrência da ausência de
comprovabilidade das hipóteses etiológicas, mas, sobretudo, pela redução
da complexidade das condutas delitivas à simplicidade dos vínculos causais
definidos em patologias individuais ou sociais.
4. Possível concluir, portanto, de forma preliminar, que a psicanálise e
a criminologia (crítica) podem ser harmonizadas na qualidade de discursos
de desconstrução da pureza do projeto civilizatório delineado na
Modernidade. Em ambas há radical ruptura com a figura angelical do
humano civilizado a partir da contundente afirmação da permanência
latente do bárbaro. A importante conseqüência deste processo é a
humanização da figura do criminoso, visto apontar sua presença em todos
nós.
Todavia, além de conjuntamente densificar a crítica à cultura, a
psicanálise proporcionará importante análise das estruturas do direito
penal, fundamentalmente em relação ao sistema de culpabilizações. Desde
este local estranho ao saber dogmático alinha-se novamente à criminologia
na qualidade de referencial externo.

R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan,
1997.
BIRMAN, Joel. A Psiquiatria como Discurso da Moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
__________. Mal-estar na Atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
COUTINHO, Jacinto. O Estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro?. in Direito e
Psicanálise: intersecções a partir de ‘O Estrangeiro’ de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.

7
BIRMAN, A Psiquiatria como Discurso da Moralidade, p. 28.

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NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral (uma Polêmica). São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
SUTHERLAND, Edwin. H. El Delito de Cuello Blanco. Madrid: La Piqueta, 1999.

94
CRIME E CASTIGO: A QUESTÃO DA CULPA E
AS LEGALIDADES (DIREITO & PSICANÁLISE) *
A LEXANDRE M ORAIS DA R OSA **

“Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem


de depor suas armas” (FREUD).
Resumo: A categoria culpa é discutida na fusão de horizontes
entre o Direito Penal e a Psicanálise a partir da leitura de Crime
e Castigo de Dostoievski.
Palavras-Chave: Direito, Psicanálise e Legalidade

1. Quando SALO DE CARVALHO convidou-me para falar sobre Crime e


Castigo, imediatamente lembrei-me de DOSTOIEVSKI e, sem perguntar a ele,
entendi que era para falar do livro e sua articulação com o Direito e a
Psicanálise. Eis um grande equívoco! Talvez por isso FREUD se referisse
tanto aos chistes, equívocos e lapsos1, dos quais pode surgir algum discurso
que enuncie uma verdade (desubstancializada, claro). Enfim, deste fato –
que somente descobri ao chegar agora – segue o que posso enunciar sobre
Crime e Castigo articulado com a culpa na leitura cruzada entre os campos
do Direito e Psicanálise. Por estas coincidências da vida, mais uma vez, sou
grato ao Programa de Mestrado da PUC – Ciências Criminais – porque ele,
de fato, é sério. Busca discutir o que há de mais sofisticado neste campo.
Conta com gente engajada e competente: SALO DE CARVALHO, RUTH GAUER,

*
Discurso proferido na Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, em atividade do Programa
de Mestrado em Ciências Criminais, no dia 22 de junho de 2007.
**
Pós-Doutorando em Direito (Faculdade de Direito de Coimbra – Portugal – e Unisinos – RS).
Doutor em Direito (UFPR). Mestre em Direito (UFSC). Professor do Programa de Mestrado em
Direito da UNIVALI (SC). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito
(SC).
1
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Obras psicológicas completas. Trad.
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 17-219, v. VIII

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AURY LOPES JR., NEREU GIACOMOLLI, NEY FAYET JÚNIOR, dentre outros. Cabe
marcar, também, que devo muito, junto com SALO DE CARVALHO, ao que
JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO2 nos legou, especialmente no
campo da Psicanálise. Vamos atravessados, então, ao Crime esperando o
julgamento e eventual, quem sabe, Castigo, porque a culpa se sustenta.
2. BORGES dizia que o livro é o instrumento mais assombroso do
homem por proporcionar a extensão da memória e da imaginação, e que, no
caso de DOSTOIEVSKI, toda sua obra3 não poderia ser resumida em uma
página, dado o conjunto impactante, o qual nos lança sempre numa cidade
desconhecida. O que afronta, todavia, é que o estranhamento, no caso de
Crime e Castigo, é de uma normalidade lancinante. Uma normalidade que é
anormal, e de muitos. Muito mais normal do que parece a nós mesmos.
Talvez por isso FREUD tenha afirmado que “o estranho que é aquela
categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há
muito familiar”4.
3. Parece inevitável o risco de querer estabelecer o que o autor, no
caso, DOSTOIEVSKI, quis transmitir ao escrever Crime e Castigo, isto é,
enunciar a “verdade última” do texto. Isto seria deslizar no Imaginário que,
contudo, satisfaz a muitos. Rejeito esta maneira de pensar, até porque nem
mesmo o autor poderia, no discurso consciente, dizer o que pretendia,
tomado que é pelo que se articula na cadeia de significantes, depois, sem
controle... Para além da consciência, uma outra cena atravessa: o
inconsciente. Seria uma pretensão extremamente arriscada e, digamos,
pedante, dizer o que DOSTOIEVSKI quis dizer, sob pena de se cair num
equívoco metafísico. Por isto, neste momento, a partir da minha mirada,
porque é preciso enunciar desde algum lugar, a coisa vai para uma possível
interlocução entre Direito & Psicanálise, metaforizando, via Literatura –
estratégia do Núcleo de Direito & Psicanálise da Universidade Federal do

2
MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Jurisdição, Psicanálise e o Mundo Neoliberal.. In: Direito e
Neoliberalismo: Elementos para uma Leitura Interdisciplinar. Curitiba: EdiBEJ, 1996..., p. 41-42:
“Ficou patente, por exemplo, que se não pode fazer um discurso psicanalítico do direito e muito
menos um discurso jurídico da psicanálise. (...) Os elementos dos campos (direito e psicanálise),
por outro lado, não têm a mesma estrutura e não podem ser tomados como lugar-comum.
Arriscar a identidade é ceder à comodidade, mas incorreto, para não dizer falso. Atitude
empulhadora, deslumbra na primeira aparência pelas fórmulas fáceis, mas oferece o cadafalso no
momento seguinte.
3
TROYAT, Henri. Dostoievski. Trad. Irene Andresco. Barcelona: Vergara, 2004.
4
FREUD, Sigmund. O ‘estranho’. In: Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1997, v. XVII, p. 238.

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Paraná, capitaneado por JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO5 – um dos


sentidos (im)possíveis. Quem sabe uma fusão de horizontes entre o texto e o
ser-aí (GADAMER e BARTHES). Assim, o sentido vai fragmentado, cortado por
um cravejamento de significantes que surgem ao falar, procurando, de
algum forma, promover um diálogo entre o texto – Crime e Castigo – com o
que se passa, atualmente, no contexto do processo penal brasileiro.
4. JEANINE NICOLAZZI PHILIPPI aponta que a noção de lei, no mundo
ocidental apresenta uma vinculação idealizada a partir da compreensão
aristotélica e platônica, isto é, da “Cidades do Bem” e da “Repúblicas do
Dever”, pela qual a construção de subjetividade resta colonizada. A
“felicidade” como valor absoluto, para a qual todos tendem, desde uma
diretriz tendencialmente para o “bem”, imputa uma responsabilidade social
de adestramento. Aristóteles (Ética à Nicômaco) indica que se a consegue
pela virtude intelectual e moral. A primeira possível mediante o ensino,
enquanto a segunda decorre do hábito. Platão, por sua vez, em “A
República”, estrutura uma sociedade ideal capaz de fomentar as virtudes.
Neste contexto, caberia ao terceiro a mediação das virtudes e eventuais
punições, na linha de uma construção social capaz de garantir o “bem
comum”, em nome da “felicidade” e, portanto, retoricamente legitimada6.
No Direito Moderno o Estado ocupa esta função de mediador de

5
MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.) Direito e Psicanálise: Interseções a partir de ‘O
Estrangeiro’ de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; Direito e Psicanálise.
6
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. Legalidade e subjetividade. In: PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. Legalidade e
subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 161-207. Especialmente: “Aqui se explicita
a construção peculiar da subjetividade que circula nas avenidas legais das Cidades do Bem: o
espelho que reflete o amigo do homem de bem como um outro eu... A lei, enfatiza Aristóteles,
deve estimular os seres humanos à virtude e instigá-los com motivos nobres para que os sensíveis
a essas influências se reconheçam em um reflexo especular e, através dessa constatação, estejam
igualmente habilitados a banir – com justiça – da cidade e, até mesmo (por que não dizer?) da
espécie – aqueles que não conseguem progressos consideráveis, mercê da formação dos hábitos
em função de pertencerem a uma natureza inferior... A lei do bem congrega os homens bons,
desvela, assim, o seu verdadeiro mandato: a segregação daqueles que, em razão de certas
imposições legais, não se adequam à imagem dos virtuosos... O vínculo estabelecido entre o bem
supremo e o bem-estar – fundado na suposição segundo a qual há inscrita na natureza e na
psyché uma finalidade que leva a essa concordância – converteu-se, nessa via, em um fator de
política e das suas obras de arte – as leis –, no qual os mestres de plantão encontram-se sempre
numa base de legitimidade, dizendo-se representantes desse suposto laço que promove o
interesse da polis e a felicidade daqueles que sabem reconhecê-lo.”

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subjetividades, submetido a fatores ideológicos que não comparecem no


discurso manifesto, mas vagam no silêncio que sempre diz (ORLANDI)7.
5. Por outro lado, cabe destacar a influência cristã (SANTO AGOSTINHO
e TOMÁS DE AQUINO), pela qual o discurso revelado por seus legítimos
portadores seria capaz de conceder a verdade, a redenção, o caminho para a
salvação dos homens de boa vontade. Seguidores da vontade Divina,
materializada pela lei, cabe a cada um, na sua medida, o irrestrito
cumprimento, pena o cometimento de pecado. O bem retorna como
finalidade última de todos: fazer o bem e evitar o mal. Por não possuir a
dimensão de sua situação no mundo, de onde está o seu desejo, o sujeito
acede ao discurso que lhe promete o conforto, a tranqüilidade de
convivência, sem se dar conta de que esse discurso lhe transforma em
simulacro, sem capacidade de discussão de seu destino, cujo papel de
coadjuvante representado na cena da vida é estancado e balizado pelos
interditos impostos pelos detentores do poder. Tudo sem que se dê conta8,
como bem aponta ZIZEK na seguinte tautologia: “a lei é a Lei”9. A lei
advinda não se sabe bem de onde ou de quem – Ausente –, traz consigo a
legitimidade inscrita no registro do Simbólico como a absolutamente
necessária para organização da existência e sem a qual se estaria fadado ao
desterro. Neste movimento a lei humana surge como uma benesse do Outro

7
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: UNICAMP,
1997, p.23: “Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da
linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante.”
8
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei: uma abordagem a partir da leitura cruzada entre direito e
psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 19: “O equilíbrio precário estabelecido entre as
forças equivalentes no registro do simbólico expõe as vicissitudes de um ser que, em virtude de
sua própria constituição, está, por assim dizer, predisposto a cair nas armadilhas de um outro
qualquer, capaz de lhe indicar as coordenadas de um bom caminho, quer dizer, aderir ao cruel
discurso de um Outro da espécie mais absoluta, responsável pela estabilização de um certa
concepção do mundo através da qual os seres e as coisas são cristalizados em imagens eternas, em
simulacros.”
9
ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 63-64: “De maneira mais precisa, poderíamos dizer que a fantasia
ideológica vem tapar o buraco aberto pelo abismo, pelo cunho infundado da lei social. Esse
buraco é delimitado pela tautologia ‘a lei é a Lei’, fórmula que atesta o caráter ilegal e ilegítimo da
instauração do reino da lei, de uma violência fora da lei, real, em que se sustenta o próprio reino
da lei. (...) A violência ilegítima em que se sustenta a lei deve ser dissimulada a qualquer preço,
porque essa dissimulação é a condição positiva do funcionamento da lei: ela funciona na medida
em que seus subordinados são enganados, em que eles vivenciam sua autoridade como
‘autêntica, eterna’, e não sentem ‘a verdade da usurpação’.

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“reinventado, ao longo da história, para manter os mitos primordiais que


embalam os sonhos humanos mais arcaicos”10.
6. Ainda que tenha havido a separação entre o Direito e a Igreja, o
lugar da lei se manteve, na estrutura, cativo, como se deixa ver no Direito
da Modernidade. Desde esta herança, a lei irá apontar as virtudes
realizáveis e vedar as práticas viciosas, com sanções. Imputa o lugar de
mau, criminoso, corrupto aos que não se alinham a esta diretriz e, em nome
do coletivo, os penaliza, para sua salvação. Ao padecerem do bem, são
punidos em seu mesmo nome. O “amor ao censor” de que fala PIERRE
LEGENDRE11 se articula por este lugar de submetimento irrestrito a palavra
revelada, pela autoridade, em nome do bem comum12. Nestas bases se
assenta a categoria “sujeito de direito”, portador de liberdade, razão,
igualdade, a caminho da felicidade, assujeitado aos mandamentos de uma
ordem concedida pelo Outro13, ausente, instituída para sua própria
proteção. Portanto, cumprir a lei é o dever na medida de sua
responsabilidade moral pessoal.
7. Daí o surgimento de predicados legais, adjetivações jurídicas,
atributos legislativos que imputam a cada função e lugar um contexto de
direitos e deveres. A compreensão destes direitos e deveres, por sua vez,
está manietado, ainda hoje, pelo positivismo lógico e seu paraíso de
conceitos e naturezas jurídicas, incapazes, por básico, de dizer o Real. O
Direito, por seus especialistas, pretende possuir as chaves do céu e da

10
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 19.
11
LEGENDRE, Pierre. O amor do censor. Trad. Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
12
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei …, p. 170: “Reconhecendo à inteligência humana a faculdade de
compreender a lei e suas nuances complexas, Tomás de Aquino concede um valor singular à
legalidade imanente, a lex obrigatória para todos – que, a partir desse momento, passa a adquirir
gradativamente o sentido de norma imposta por aqueles que detêm o poder sobre uma
determinada jurisdição – e, com isso, lança as bases de sustentação da ordem jurídica dos estados
modernos, onde o perfil dos seus destinatários continuará obedecendo o padrão estabelecido para
comunhão dos que desenvolvem a predisposição natural para virtude, cujos postulados são
ordenados pela lei que, proveniente do pai, sabe reconhecer os seus como também segregar
aqueles que se distanciam, em função de um ato de vontade, dos limites da pertinência divina...”
13
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei …, p. 179: “A significação dessa asserção não pode ser outra:
toda autoridade [na perspectiva kantiana] vem de deus, que não representa, certamente, um
fundamento histórico da constituição civil, mas uma idéia, um princípio prático da razão que diz:
o indivíduo deve obedecer ao poder soberano, qualquer que seja ele. (...) O senhor supremo e
infalível que dita a lei nos textos kantianos, ao contrário daquela divindade, revela-se como idéia
da razão, a qual modifica, sem alterar, o caráter transcendente outorgado ao lugar último, do qual
emana a lei que passa, a partir de então, a representar a própria autoridade que se impõe –
independentemente das pessoas que a pronunciam – a todos os seres racionais.”

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produção de subjetividade. Os únicos aptos a revelar a palavra, o sentido


oculto. LEGENDRE demonstra que diante da construção da subjetividade
pela palavra revelada da Igreja e suas Escolas, o exercício intelectual é
indissociavelmente político – de pastoreiro – e, por sua vez, sacerdotal. O
estratagema manejado para construção dessa ilusão coletiva – as verdades
sociais – é marcado pelo poder14. E a emissão deste discurso não pode ser
efetuada por qualquer um; existem regras claras de assunção desse locus.
WARAT afirma que: “Nenhum homem pronuncia legitimamente palavras de
verdade se não é filho (reconhecido) de uma comunidade ‘científica’, de um
monastério de sábios”15 Resultado disso são os discursos jurídicos com
pretensão de plenitude, que vendem a idéia de respostas corretas e
seguras16, prometendo a ilusão da segurança jurídica, “afinal, busca-se a
segurança no substituto do pai, no Juiz Infalível, o qual vai determinar, de
modo seguro, o que é justo e o que é injusto”17. Nesta ordem de idéias e
seguindo o mandato originário, a imposição da lei humana teria a pretensão
de privar, tal qual o Pai, a plena satisfação do gozo, mediante recursos
retóricos jurídicos18.
8. Falar do inconsciente (dos atores envolvidos no e pelo discurso
jurídico) necessita de um retorno a FREUD, já que foi ele quem franqueou
sua abertura/construção19. Este dito acontece, pois, em bases freudianas e
lacanianas, com especial relevo para esta, que deu um passo a mais (sempre
fiel à matriz freudiana, diga-se en passant) no que se refere ao inconsciente
freudiano, indicando os registros – Imaginário, Simbólico e Real (LACAN) –
unidos pelo quarto elemento, a ‘metáfora paterna’, no ‘nó de borromeu’.
Então, o inconsciente, na perspectiva lacaniana, possui uma tripartição
estrutural composta por ‘Real-Simbólico-Imaginário’20. Desde esta mirada

14
ZIZEK, Slavoj. Arriesgar lo imposible. Madrid: Trotta, 2006, p. 39: “La idea básica del funcionamiento
cínico de la ideología: que para funcionar, la ideologia no debe tomarse a sí misma muy en serio.”
15
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Trad.
José Luís Bolzan de Morais. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995, p. 68.
16
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 339-340.
17
PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção. Campinas: Millennium, 2003, p. 18.
18
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade..., p. 79:
“E as instituições também funcionam paternamente como produtoras da subjetividade. A
paternidade opera, então, como um significante todo-poderoso, que permite evocar um relato
legendário co-legitimador de uma inquestionável sabedoria do comentário. Isto permite situar a
lei como um lugar vazio, por onde circulam significações e alegorias, que fazem a lei falar.”
19
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 168-195.
20
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 238-324.

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lacaniana21, então, a linguagem passa a ter um papel de destaque no seu


ensino, dado que é no Simbólico que o sujeito é sacado do Imaginário –
‘Estádio do Espelho’ – e promove sua ligação ao laço social, bem onde
aparecem os sintomas, verificáveis a partir de uma outra escuta. Com efeito,
LACAN propõe que o inconsciente é o capítulo censurado, mas não apagado,
marcado por um branco e ocupado por uma mentira, o qual irrompe no
Simbólico, e a função do analista é a de decifrador do sintoma que está na
linguagem. O inconsciente do sujeito clivado, pois, é o Outro como se
linguagem fosse, ou seja, o ‘tesouro de significantes’. Desta forma, o sujeito
do inconsciente é movido por um desejo que é antes de tudo um desejo de
reconhecimento (LEGENDRE – Amor), e como o desejo é o desejo do Outro22,
situado no Real, de impossível acesso, o sujeito resta cindido e não pode
conseguir a unidade. Está condenado a isso. Assevera MARQUES NETO que
“o sujeito não se confunde com o eu, não se confunde com o indivíduo, com
sua inteligência, com sua excelência. Sua posição a tudo isso é de
excentricidade”23.
9. O sujeito é um ser da linguagem, banhado por significantes que lhe
dão sentido. A linguagem, registro do Simbólico, é onde o ser humano irá se
instalar, se tiver sorte, claro. Tudo ganha um significado que não é pré-
dado, mas depende fundamentalmente do entorno, do que é bem-dito e
mal-dito, silenciado, porque a atribuição de sentido sempre acompanha os
momentos da vida, condicionados pelo trilhamento do Complexo de Édipo
e sua posição subjetiva em face do Nome-do-Pai. Tudo sempre possui um
significado que acompanha o sujeito durante a vida. Modificado ou
rejeitado, o sentido está lá. Aflora onde menos se espera, acionado por algo
que na maioria das vezes, de fato, não se sabe e não se quer saber. Assim é
que o sujeito, falado desde antes do nascimento, permanece sendo
cravejado de significantes que lhe constituem. É pela linguagem que o
sujeito será distinguido da mãe, poderá rivalizar com a função paterna,
submeter-se à Lei-do-Pai, descobrir-se um outro, enfim, um sujeito sujeitado
ao desejo do Outro.

21
SAFOUAN, Moustapha. Lacaniana: los seminarios de Jacques Lacan 1953-1963. Buenos Aires:
Paidós, 2003.
22
LACAN, Jacques. Escritos..., p. 866: “Assim, é antes a assunção da castração que cria a falta pela
qual se institui o desejo. O desejo é o desejo de desejo, desejo do Outro, como dissemos, ou seja,
submetido à Lei.”
23
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Sujeitos Coletivos de Direito: pode-se considerá-los a partir
de uma referência à Psicanálise? In: CARVALHO, Amilton Bueno. Revista de Direito Alternativo, São
Paulo, n. 3, p. 79-92, 1994.

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10. FREUD reconstrói o advento do social em face do mito – fundador –


do crime praticado em conjunto contra o Pai da Horda. O atributo Totem –
antepassado comum ao grupo – é um animal, podendo assumir mais
raramente as feições de um vegetal ou mesmo um fenômeno da natureza, o
qual mantém, todavia, uma relação peculiar com o grupo, constituindo-se,
assim, como objeto de Tabu. Além de venerar o Totem, o grupo tem a
obrigação sagrada de não o destruir, advindo daí as obrigações/restrições
da sociedade. Em síntese: constitui o aspecto identificatório do Totem e do
Tabu. Os diversos povos primitivos erigiam proibições sexuais próprias,
com suas peculiaridades, mantendo, contudo, a proibição de incesto,
independentemente dos laços de sangue. O importante é que onde há uma
interdição há um desejo limitado, consoante explica FREUD: “Visto que os
tabus se expressam principalmente em proibições, a presença subjacente de
uma corrente positiva de desejo pode ocorrer-nos como algo de bastante
óbvio e que não exige provas exaustivas baseadas na analogia das neuroses,
porque, afinal de contas, não há necessidade de se proibir algo que ninguém
deseja fazer e uma coisa que é proibida com a maior ênfase deve ser algo
que é desejado”24. Como tal, a lei jurídica impõe uma proibição à realização
do desejo humano. Advém daí a funcionalidade do ordenamento jurídico
penal, eis que somente se proíbe o que se manifesta como propensão
humana25, ou, como diz FREUD, “porque o desejo proibido no inconsciente
desloca-se de uma coisa para outra”26. E esse modelo de contenção, de
renúncia, ato fundante do desejo, protrai seus efeitos até os dias atuais,
submetido ou não à Lei.
11. Mediante o crime perpetrado contra o Pai terrível da Horda e
partilhado pelos irmãos, estes podem reconhecer em si27 o mesmo ódio

24
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 81-82, v. IX.
25
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 51: “O tabu é uma proibição primeva forçadamente imposta
(por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos
os seres humanos. O desejo de violá-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu
têm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu
baseia-se na capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos são
contagiosos e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma coisa para outra. O fato
de a violação de um tabu poder ser expiada por uma renúncia mostra que esta renúncia se acha
na base da obediência ao tabu.”
26
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 51.
27
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado: psicanálise do vínculo social. Trad. Teresa Cristina
Carreteiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 31: “O pai, enquanto tal, não existe a não ser
morto realmente ou simbolicamente; que nos leva a uma noção fundamental: o pai não existe a
não ser como ser mítico. (...) Mas o pai, em sua função mítica, é aquele que provoca reverência,

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dirigido ao Pai, constituindo esse momento como a tomada da potência


originária, pois “o desejo deles é de conjurar a impotência e de escapar à
fascinação mortífera à qual se submetem, bem como à admiração e ao temor
frente ao onipotente”28. Ao assassinato segue-se o banquete29, no qual,
afirma ENRIQUEZ “ao comerem juntos da mesma carne, os irmãos se
reconhecem definitivamente como tal, isto é, em igualdade, repartindo os
despojos, unidos pelo mesmo sangue”30. De modo que o sangue do Outro
passa a correr em suas veias e o reconhecimento da culpa – que mesmo
censurada e reprimida – pelo assassinato partilhado retorna. Entretanto,
com o fantasma de seu regresso na figura de um dos filhos-irmãos, estes
renunciam à força e instituem o Totem, personificado na figura paterna. A
partir de então, abandonando o estado de natureza e constituindo o poder
da comunidade, materializado pelo mecanismo do castigo, erigem a
‘Civilização’, e seu ‘Mal-Estar’: “O que está em questão é o medo do
exemplo infeccioso, da tentação a imitar, ou seja, do caráter contagioso do
tabu. Se uma só pessoa consegue gratificar o desejo reprimido, o mesmo
desejo está fadado a ser despertado em todos os outros membros da
comunidade. A fim de sofrear a tentação, o transgressor invejado tem de ser
despojado dos frutos de seu empreendimento e o castigo, não raramente,
proporcionará àqueles que o executam uma oportunidade de cometer o
mesmo ultraje, sob a aparência de um ato de expiação. Na verdade, este é
um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida
corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se
presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga. Nisto, a
psicanálise apenas confirma o costumeiro pronunciamento dos piedosos:
todos nós não passamos de miseráveis pecadores”31. A edificação do Pai

terror e amor ao mesmo tempo, o pai é aquele que sufoca, castra e que deve então ser morto ou,
no mínimo, vencido; ele é, além disso, o portador e depositário das proibições. Seu assassinato é
acompanhado de culpa e veneração. Não existe mais o pai real. O pai real é sempre um pai morto,
e o pai morto é sempre um pai mítico. A partir do momento em que a função paterna é
reconhecida, os filhos são oprimidos.”
28
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 31.
29
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 32: “O banquete coletivo, durante o qual são
incorporados as virtudes e os poderes daquele que imagina possuí-los, é o momento em que o
grupo vive um sentimento coletivo, no transe e na excitação, em que cada um pode ver no olhar
do outro o mesmo ódio e o mesmo contentamento, se identificar ao outro na medida em que este
se torna seu semelhante pela incorporação de uma potência, de uma carne e de um sangue único.
O sangue do onipotente corre na veia de todos.”
30
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 33.
31
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 83-84.

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simbólico decorre da culpa32 que advém do luto pelo crime partilhado entre
os irmãos, momento a partir do qual a força do Pai é mitificada e congrega
uma dimensão simbólica que não tinha em vida33, reeditada pela
instauração da Civilização34.

32
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 135 p. 73-148, v. XXI: “Mas, se o sentimento
humano de culpa remonta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de contas, de um caso de
‘remorso’. Porventura não devemos supor que [nessa época] uma consciência e um sentimento de
culpa, como pressupomos, já existiam antes daquele feito? Se não existiam, de onde então proveio
o remorso? Não há dúvida de que esse caso nos explicaria o segredo do sentimento de culpa e
poria fim às nossas dificuldades. E acredito que o faz. Esse remorso constituiu o resultado da
ambivalência primordial de sentimentos para com o pai. Seus filhos o odiavam, mas também o
amavam. Depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para o primeiro plano,
no remorso dos filhos pelo ato. Criou o superego pela identificação com o pai; deu a esse agente o
poder paterno, como uma punição pelo ato de agressão que haviam cometido contra aquele, e
criou as restrições destinadas a impedir uma repetição do ato. E, visto que a inclinação à
agressividade contra o pai se repetiu nas gerações seguintes, o sentimento de culpa também
persistiu, cada vez mais fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida e
transferida para o superego. Ora, penso eu, finalmente podemos apreender duas coisas de modo
perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a fatal
inevitabilidade do sentimento de culpa. Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é,
realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir culpa, porque o
sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta
entre Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se
defrontem com a tarefa de viverem juntos.”
33
DOR, Joël. O pai e sua função em psicanálise. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1991, p. 13.
34
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 34: “Os irmãos, como o pai, se transformam em ‘o que
é bom para matar’. Impossível ser diferente, pois o poder não foi desmistificado nem mesmo
socializado, pelo contrário, ele se tornou sagrado e, enquanto tal, seu aspecto fascinante perdura e
se amplifica. O homicídio do pai institui a possibilidade constante do assassinato. A civilização não
somente se inicia com o crime, mas se mantém através dele.” (...) Esta criação social é
acompanhada (precedida/seguida) pela expressão de sentimentos complexos: amor, veneração,
amizade, culpa. O nascimento do grupo é inconcebível sem o surgimento correlativo de
sentimentos.”

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12. De sorte que FREUD aponta ser o supereu35 formado a partir dos
restos do Complexo de Édipo, materializados pela voz que adverte e o olhar
que vigia, é o portador de uma tripla função, consubstanciada pela I) auto-
observação, II) consciência moral e III) função de ideal, forjada a partir da
admiração de perfeição que a criança possuía pelos que exercem a função
paterna na infância. LACAN, por sua vez, indica que o eu ideal está investido
de uma função imaginária em constante relação com o ideal do eu, agindo
na função simbólica, empurrando o sujeito no campo social: “O fim do
complexo de Édipo é correlativo da instauração da Lei como recalcada no
inconsciente, mas permanente. É nessa medida que existe algo que
responde no simbólico. A Lei não é simplesmente, com efeito, aquilo sobre o
que nos perguntamos por que, afinal, a comunidade dos homens nela é
introduzida e implicada. (...) Esse supereu tirânico, fundamentalmente
paradoxal e contingente, representa por si só, mesmo entre os não-
neuróticos, o significante que marca, imprime, impõe o selo no homem de
sua relação ao significante. Há no homem um significante que marca sua
relação ao significante, e a isso se chama o supereu. Existem, mesmo, muito
mais que um deles, e a isso se chama sintomas”36. Destarte, o ideal do eu
traz consigo a equação das identificações simbólicas do eu, possibilitando a
transcendência da agressividade remanescente do Complexo de Édipo, da
imagem do Pai substituída no contexto social por novos ideais do eu,
autorizando a compreensão das relações em grupo. O sentimento de culpa

35
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 139: “O superego é um agente que foi por nós
inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos a esse agente. A função
consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las, exercendo sua
censura. O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade
da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da
tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente crítico
(medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma
manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um
superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela do instinto voltado para a destruição interna
presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego. Não devemos falar
de consciência até que um superego se ache demonstravelmente presente. Quanto ao sentimento
de culpa, temos de admitir que existe antes do superego e, portanto, antes da consciência também.
Nessa ocasião, ele é expressão imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da
tensão existente entre o ego e essa autoridade. É o derivado direto do conflito entre a necessidade
do amor da autoridade e o impulso no sentido da satisfação instintiva, cuja inibição produz a
inclinação para a agressão.”
36
LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995. (Livro 4).

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manifesta-se sob duas fontes: o medo de uma autoridade e do superego37. Se


inexistem... não há limites, MELMAN38 bem demonstra.
13. O superego impõe os limites ao ego, recriminando-o e instalando
o sentimento de culpa e a conseqüente punição. Por esse estratagema a
Civilização costura o laço social, impedindo o gozo desenfreado, numa voz
inscrita no sujeito e que lhe impõe interditos de consciência. O inconsciente
não pode ser entendido, pois, como um locus a ser racionalizado, dado que é
constituído por representações que movem o sujeito, que está ali, mas não é
propriedade racional do ser. Assim, o superego primário, da infância, uma
vez sublimado pelas imagens paternas vai, no decorrer da vida, sendo
ocupado pela dos professores, magistrados do Tribunal, ídolos, juristas
reconhecidos pelo senso comum teórico, ícones, exemplos ideais do eu,
transbordando os limites familiares no nível do eu; remanescendo no
trilhamento do superego, contudo, a inscrição primeva, os restos do
Complexo de Édipo, não só constituidor da civilização, mas do seu mal-
estar39. Mas o ego não dá conta do seu desejo, tamponando a situação com
representações temporais que sempre vazam, reiterando a falta constitutiva.
14. O ser, então, é arremessado num mundo de linguagem40,
Simbólico, desejante, instituído socialmente e repassado pelos circundantes,
pelo e no qual travará suas relações41, sem que esses mesmos circundantes

37
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 130-131.
38
MELMAN, Charles. O Homem sem Gravidade: gozar a qualquer preço. Trad. Sandra Regina
Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
39
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 127: “Podemos estudá-lo na história do
desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo seu desejo de
agressão? Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua
agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de
onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego,
que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está
pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de
satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a
ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade
de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do
indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar
dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.”
40
LACAN, Jacques. Escritos..., p. 273: “Ninguém deve desconhecer a lei: essa fórmula transcrita do
humor de um Código de Justiça, exprime no entanto a verdade que nossa experiência se
fundamenta e que ela confirma. Nenhum homem a desconhece, com efeito, já que a lei do homem
é a lei da linguagem.”
41
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 197: “Mesmo antes de nascer, o homem já faz parte de um
mundo de palavras que o distinguem enquanto lugar de desejo.”

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tenham o domínio de sua instituição no registro Simbólico compartilhado e


regido pelo Outro, necessário à manutenção do laço social e de sua inserção
no discurso42. Esse movimento de reconhecimento, de mandato autorizado a
partir do Outro, reflete-se na inscrição do Nome-do-Pai no supereu, única
instância capaz de garantir o laço social do ser sujeito-sujeitado. E esse
espaço é preenchido por alguma palavra significante que irá gerar na cadeia
de significantes a legitimidade do mandato delegado pelo Outro43, como se
verifica no ‘discurso sobre a servidão voluntária’ de LA BOÉTIE44.
15. A relação do gozo com a perda decorre da impossibilidade deste e
sua busca demonstra que o sujeito encontra-se excluído do paraíso da
unidade, sendo que a única possibilidade dessa plenitude se materializa
pela morte, o fim do desejo (ALBERTI). Ao não poder fugir da onisciência
desse Outro, o sujeito se culpa, encontrando-se num beco. A pretensão de
gozar tudo é impossível, como num tiro que não sai nunca, masca, e o
sujeito aperta o gatilho novamente.... adiando-se o gozo pleno e gozando-se
o possível.
16. A lei jurídica editada, pois, em Nome-do-Pai, traz inscrita em si a
legitimidade emanada deste Outro total, exercida por mandato por aqueles
que se reconheceram como os procuradores autorizados a expedir o
discurso jurídico em nome do Pai originário (terrível), mascarada pela
colocação de palavras na cadeia de significantes: Deus, Razão,

42
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 208-209: “Sucintamente, essa operação pode ser descrita nos
seguintes termos: todo o terceiro que responder pela mediação da relação dual mãe/filho institui,
por sua incidência, o alcance legalizador correspondente à interdição do incesto. O pai, ao qual se
refere essa metáfora, distingue-se, então, a partir da apelação genérica ao pai simbólico, da
existência concreta e histórica de um ser encarnado, designado como pai real, e da entidade
fantasmática – o pai imaginário, sem o qual nenhum pai real poderia receber a investidura do pai
simbólico. Essa última representação, no entanto, antes de remeter ao agente da paternidade,
evoca um operador simbólico, aistórico, um significante, designado por Lacan como nome-do-
pai.”
43
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 200-201: “Cada vez que o homem imagina alguém no seu
lugar, ama e se submete aos seus mandamentos. Dorme, enquanto ele vela por todos. O guia
espiritual, o grande líder, o Führer, o mercado (quem sabe?) assume, nessas condições, o
mandato, sempre por delegação, daqueles que irão servi-lo, uma vez que nada – a não ser a
crença compartilhada de que está autorizado pelo Outro – o torna habilitado a esse mando que
arroga para si.”
44
LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntária. Trad. J. Cretella Jr. São Paulo: RT, 2003., p.
28: “São, portanto, os próprios povos que se deixam, ou antes, se fazem governar, pois cessando
de servir estarão livres; é o povo que se sujeita, que se corta a garganta, que, podendo escolher
entre ser subjugado ou ser livre, abandona a liberdade e toma o jugo, que consente no mal, ou
antes, o persegue.”

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Legitimidade, as quais regerão a circulação das Verdades e dos indivíduos


no mundo. E o ‘Cumpra, é seu dever de obediência!’, ressoa nítido pela
inscrição no registro do Simbólico dessa transcendência do sujeito único, da
qual o sujeito não tem a perfeita noção, mas se subjuga. O que está em jogo
é a lei (simbólica), sua aplicação (imaginária), com o Poder Legislativo
agindo em Nome-do-Pai e o juiz como o Pai ideal. Sob pena de se reeditar a
força do chefe da horda, os sujeitos em comunhão aderem à legalidade sob
o fantasma da espada da violência, assentindo em oferecer suas pulsões em
nome do laço social, cumprindo a lei que lhe pode dar a plenitude numa
compulsão de salvação do crime originário, dando a tez dos ardorosos
defensores do legalismo hermenêutico45. Mesmo tendo eliminado o
opressor, os irmãos co-autores do crime originário erigiram o Totem,
representado pela Lei, e apropriado pelo discurso capitalista, consoante
sustenta SAURET: “O gozo perdido, eis aí um antecedente freudiano desse
objeto a que causa o desejo. A psicanálise retirou daí uma tese forte: a
incompatibilidade entre o laço social e o gozo. Precisamente, o laço social se
faz ao preço da subtração de gozo, que ele regula ao reconstituir em torno
de um tipo de gozo permitido. Mas nós podemos mostrar como o laço social
contemporâneo sabe explorar o fato de que os sujeitos são desejantes, quer
dizer, faltantes, lhes fazendo crer que a ciência fabricará o que lhes falta e
que o mercado capitalista o porá à sua disposição. Caso eles faltem, isso é
culpa de um gozador que se serve às suas custas: o pai primordial não está
morto, ele toma a figura do Outro, o estrangeiro, a mulher (Argélia,
Afeganistão), o juiz, o homossexual, até a criança (agitada, assassina, etc.)”46.
De sorte que somente tendo inscrito no registro do Simbólico o dever de
submetimento ao Nome-do-Pai o sujeito está apto a aderir à obediência à lei
jurídica, uma vez que o significante da Lei-do-Pai se protrairá na cadeia de
significantes. Sua posição subjetiva diante da metáfora paterna será decisiva
para suas relações com o Simbólico, com a lei e a cultura.
17. O que DOSTOIEVSKI antecipa é que tanto a culpa como a demanda
por punição não se ligam, necessariamente, à efetiva realização de um ato
criminoso. É constitutiva do sujeito em sua tentação de existir. Pode ser uma
das saídas para aplacamento da angústia que se instala desde sempre, caso

45
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 221-223.
46
SAURET, Marie-Jean. A criança, o amor, o sintoma. In: Revista Marraio: Formações Clínicas do
Campo Lacaniano, Rio de Janeiro, n. 1, p. 21, 2002.

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seja um neurótico47, claro. A ambivalência que a culpa inscreve no sujeito


precisa, muitas vezes, de uma saída reconfortadora48. Ainda que não se
possa universalizar a afirmativa, é possível dizer que o sentimento de culpa
antecede em muitos casos do nosso dia-a-dia e não se pode acreditar,
sempre, no discurso manifesto. Potencializa-se com a perda de Referências
do mundo (sem limites) atual descrito por MELMAN. A categoria crime é
apresentada como independente, “como se” não houvesse um sujeito
implicado e sempre com responsabilidade por suas ações. Este sujeito, por
sua vez, não é mais o sujeito herdado da Modernidade, controlador
absoluto de suas ações, justamente porque há uma Outra Cena que
contracena no ato49. Este sujeito, para a Psicanálise, é sempre responsável
por seus atos, uma vez que o atravessamento do inconsciente não o
desresponsabiliza. Há sempre um sujeito implicado e com responsabilidade
por seus atos.
18. Com base nisto cabe voltar ao livro, invocando-se um pequeno
fragmento, de muitos possíveis. O pai de RASKÓLNIKOV está morto. Dele
pouco se fala, nem se conta como morreu. De um significante não se escapa,
nunca: Do Desejo de Mãe. Claro que não a Real, mas a da função. No caso
ela é enunciada, ao contrário, pelo final da obra (cap. 7, da Quarta Parte), na
qual a mãe, na mesma frase, diz que chora desde a morte do pai e desliza o
significante para o querido filho que deve se sentar perto dela: “Mas,
embora eu seja ignorante, tenho, todavia, a convicção de que dentro de
muito pouco tempo ocuparás um dos primeiros lugares, senão o primeiro,
no nosso mundo literário.” E segue: “De resto, como poderiam
compreender tão alta inteligência? (...) Teu falecido pai também mandou,
por duas vezes, matérias aos jornais...” Continua: “Efetivamente, com o teu
espírito e o teu talento facilmente conseguirás o que quiseres.”. É ingênuo

47
FREUD, Sigmund. A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos..., p. 114: “Os
senhores, em sua investigação, podem ser induzidos a erro por um neurótico que, embora
inocente, reage como culpado, devido a um oculto sentimento de culpa já existente nele e que se
apodera da acusação. (...) Pode ser que, embora não tenha realmente praticado a falta de que a
acusam, tenha cometido uma outra que permanece ignorada e que não lhe foi imputada.”
48
STÄHELIN, Lucélia Santos. O Homicídio a partir do conceito psicanalítico de supereu. Florianópolis,
2007. 128f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina.
49
ZAFFARONI, Raúl Eugenio. La cultura del riesgo. In. DOBÓN, Juan; RIVERA BEIRAS, Iñaki (comp.).
La cultura del riesgo: derecho, filosofía y psicoanálisis. Buenos Aires: Del Porto, 2006, p. 3-12. p. 3: “El
encuentro entre el derecho y el psicoanálisis nunca fue pacífico, ya desde que Freud golpeara, uno
de los pilares en los que se pretenden asentar casi todos los discursos que nutren el campo
jurídico: la pretendida racionalidad del ser humano.”

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acreditar que não se encontra presente, na ausência. O silêncio, há muito,


sabe-se, diz, bem aponta ENI ORLANDI. Isto porque o apagamento Simbólico
do pai de Raskólnikov, no livro, aparece depois. Implica na sua sustentação
Simbólica, cujo retorno será no Real. Ademais, há a noiva que morre; a irmã
que casa sem que ele consinta. Em resumo, o lugar em que o romance
familiar o coloca, como objeto de amor, não é fácil de sustentar. Nem para
ele, nem para nós.
19. Sem mais espaço para divagar, com base no que foi brevemente
articulado, pode-se dizer que o nosso protagonista de Crime e Castigo
apresenta uma normalidade anormal, própria, quem sabe, de uma
“normolpatia”50, reiterada por diversos sujeitos “normais” na história51 e na
literatura52, no qual a culpa contracena com o ato, não necessariamente
realizado, mas desde sempre culpado.
20. Para finalizar, no periódico Zero Hora de hoje, há a notícia de que
Fernando Cardoso de Campos, de 35 anos, pintor, com quatro filhos e a
mulher grávida, ligou “desesperado” para o 190 da Polícia Militar,
precisando de ajuda para ser preso, já que foragido do regime semi-aberto.
Consta da matéria: “Por que você decidiu buscar ajuda com a polícia? –
Pelas dificuldades. Pelo fato de que eu estou vivendo uma droga de vida.
Eu não posso trabalhar, não posso tirar documento nenhum. Não agüento
mais essa vida de ficar me escondendo. Eu quero pagar, né? Mas voltar para
aquele inferno... – O inferno a que se refere é a prisão? – No Central
(Presídio Central), ou tu te cuidas ou tu morres mais rápido... Eu não sou
bandido, sou um cidadão. Não sou correto, mas todo mundo tem falhas. –
Mas sua pena era no semi-aberto. Por que você fugiu de lá? – Ah, estava
longe da família... trabalhando, mas ganhando muito pouco. No Miguel
Dário (albergue), eu me sentia muito isolado... – E desta vez, como vai ser? –
Ah, vai ter de ser até o final. Não adianta ficar correndo, me escondendo. Eu
tinha vontade de me internar.” Este discurso manifesto, por certo, esconde
um encadeamento simbólico cuja singularidade precisaria ser escutada por

50
FERRAZ, Flávio Carvalho. Normapatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
51
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das
Letras, 1999, p. 60. A autora afirma que os monstros nazistas não eram a encarnação do mal, mas
muitos deles eram apenas homens incapazes de pensar e que acreditavam cumprir seus papéis
sociais cumprindo as leis. A “falha mais específica, e também mais decisiva, no caráter de
EICHMANN era sua quase total incapacidade de olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro.”
E hoje será que acontece algo similar no Judiciário?
52
KAFKA, Franz. A colônia penal. Trad. Modesto Carone. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996.

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gente capaz e fora do processo judicial, porque não é o lugar para tanto.
Deixa antever, talvez, que pode ser o sintoma de um sujeito que pretende se
fazer ver! O que se fará com ele? Não se sabe; como não se sabe, também, os
enigmas singulares de cada um de nós. Uma coisa, todavia, pode ser dita: a
culpa, se tivermos sorte, nos acompanha até o desate.
21. Caso tudo que falei tenha sido apenas uma projeção sem sentido
para os outros, terei pelo menos a companhia imaginária de BARTHES que
disse: “A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.

111
CENTAUROS NO CENTRAL: ANÁLISE
DOS PRÉ-CONCEITOS MORAIS NO
IMAGINÁRIO DOS JURISTAS
M ARCELO M AYORA A LVES *
A LEXANDRE P ANDOLFO **
J OSÉ A NTÔNIO G ERSON L INCK ***
M ARCELO L UCCHESE C ORDEIRO ****

Resumo: O objeto trabalhado é a relação existente entre a prisão


preventiva e o discurso do homem perigoso. Desde uma
perspectiva dogmática crítica apontamos a ilegitimidade e a
incoerência da prisão preventiva, identificando-a como atitude
preventiva violenta, derivada de pré-conceitos morais que
fazem um indivíduo ser rotulado como perigoso.
Palavras-Chave: periculosidade; prisão preventiva; imaginário
jurídico

I – AS VISÕES DO PERIGO E O FRACASSO DA


SECULARIZAÇÃO
Aqueles que perdem a palavra, aqueles que estão obrigados a calar,
aqueles que só podem se expressar com a linguagem do outro, ou com as
contorções de seu corpo, aqueles que não podem, ou não querem, aceitar os
códigos estabelecidos, estes, são dignos de ser excluídos. O seu território é a
desrazão, que não somente inclui os loucos, como também os pobres e os
desocupados, os degenerados, os dissipadores, os homossexuais e as
prostitutas, os blasfemadores, os hereges e os feiticeiros1. A sociedade
européia moderna dos Séculos XVII e XVIII criou e difundiu pelo ocidente a

*
Advogado. Pós-Graduando em Ciências Penais – PUCRS.
**
Acadêmico da Faculdade de Direito da PUCRS. Bolsista PIBIC/CNPq.
***
Advogado. Mestrando em Ciências Criminais – PUCRS.
****
Acadêmico da Faculdade de Direito da PUCRS. Bolsista FAPERGS.
1
DÍAZ, Esther. La Brujería: un invento moderno. In: Manuscrito. Revista Internacional de Filosofía,
(v. 11, nº 2). Campinas: UNICAMP, 1989, p. 65.

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cultura de confinar no cárcere os desarrazoados – potenciais produtores da


desordem social. Ontem, as bruxas, hoje, os homens perigosos.
No medievo, coexistiam duas visões opostas sobre a loucura, e o
perigo representado pela bruxaria. A visão cósmico-trágica e a visão crítico-
moral. Na primeira, o louco era escutado, tinha voz e o seu discurso era
possuidor de uma sabedoria profunda. A loucura, que estava no cosmos,
ocasionalmente poderia ser encontrada no coração do homem (bruxo). Já na
visão crítico-moral, o louco perde sua voz, não só não é escutado como
também eliminado, neutralizado, transforma-se no fantoche e objeto dos
preconceitos e juízos morais. A desrazão foi então submetida ao manto da
culpa2. Se as baterias da inquisição estavam apontadas contra as bruxas, nos
Estados modernos as baterias do sistema penal estão apontadas contra os
homens perigosos e ameaçadores à brutal “ordem social” existente. E assim
como existiam duas visões sobre a bruxaria, é possível afirmar que hoje co-
incidem essas duas visões sobre o homem perigoso. A visão crítico-moral
(apenas “uma” visão possível e não “a” visão), aperfeiçoada pelos séculos,
produz hoje o discurso do homem perigoso.
O mito do homem perigoso pode ser encarado como uma
conseqüência do fracasso da secularização do saber científico em geral, e do
saber jurídico em particular. A pretensão iluminista de separação entre o
direito e a moral – cuja expressão máxima no Direito está no positivismo
jurídico, paradigma ainda hoje dominante no cenário jurídico ocidental –
apenas revestiu com uma nova máscara a estreita relação existente entre a
Razão e a Moral metafísica, ou em outras palavras, o problemático “vínculo
entre o logos filosófico ocidental e a escatologia bíblica”3. Os reflexos desta
verdadeira secularização abortada aparecem no Direito e no Processo Penal
contemporâneos, a demonstrar isso, o discurso jurídico que legitima a
enorme quantidade de presos sem condenação definitiva que superlotam os
cárceres brasileiros, sob a justificativa da “acentuada periculosidade”, eis
que oferecem risco à “ordem social”.
A questão que nos interessa aqui partiu de uma constatação obscura:
as teorias jurídico-constitucionais contemporâneas consideram incorretas,
do ponto de vista da argumentação jurídica, as referências aos juízos
virtuais correspondentes a fatos que não podem ser verificáveis

2
Idem, p. 69.
3
VATTIMO, Gianni. Metafísica, violencia, secularización. In: VATTIMO, Gianni. La secularización de la
filosofía. Hermenéutica y posmodernidad. Barcelona: Gedisa, 1992, p. 81.

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empiricamente4. E, no entanto, é cada vez mais freqüente a referência a essa


espécie de seres estranhos – os perigosos – que habitam não os presídios,
mas sim o imaginário jurídico e o senso comum teórico dos atores do
sistema penal brasileiro, em especial dos magistrados. O nosso objeto é, em
última análise, a relação existente entre a prisão preventiva e o discurso do
homem perigoso.
Vamos sustentar ao longo de nosso artigo três argumentos que
podem contribuir para desmistificar a violência preventiva, traço marcante
das prisões cautelares. Em primeiro lugar, desde uma perspectiva dogmática
crítica, eis que interna ao sistema, apontamos a ilegitimidade e a incoerência
da prisão preventiva, o que a desqualifica como instrumento jurídico válido
no âmbito do Estado Democrático de Direito. Em segundo lugar,
identificamos a prisão preventiva como uma atitude preventiva violenta
diante dos pré-conceitos morais que fazem um indivíduo ser rotulado como
perigoso. Em terceiro lugar, demonstramos que o sistema penal instaurou
um discurso da periculosidade que é decorrente tanto de pré-conceitos
morais que habitam o imaginário dos juristas, quanto das peculiaridades do
direito penal consagrado nas letras jurídicas.
Apenas mais uma consideração que nos parece interessante como
forma de introdução. É que abordamos a temática da prisão preventiva não
somente desde uma visão interna (dogmática) ao sistema jurídico-
constitucional, mas principalmente a partir de um viés filosófico que “deve
cumprir uma função de intermediação entre os saberes e as práticas
jurídicas, por um lado, e o resto das práticas e saberes sociais, por outro”5.
Além disso, optamos pela perspectiva agnóstica da pena (e, portanto, da
prisão cautelar, que ônticamente é pena), segundo a qual, as práticas
punitivas institucionalizadas devem ser encaradas como um fenômeno
político semelhante à guerra, um fato de poder ausente de justificativas e

4
Manuel Atienza, ao analisar decisão que buscava fundamentos na “personalidade [perigosa] do
delinqüente” e na “gravidade do fato”, faz a seguinte consideração: “Essa última premissa não
enuncia uma norma do Direito vigente e nem supõe a constatação de que se produziu um
determinado fato, mas sim que o fundamento da mesma são, antes, juízos de valor, pois
“gravidade do fato” e “personalidade do delinqüente” não são termos que se refiram a fatos
objetivos ou verificáveis de algum modo; no estabelecimento dessa premissa, poderíamos dizer
que o arbítrio judicial desempenha um papel fundamental” (As razões do direito. Teorias da
argumentação jurídica. 3ª ed., SP: Landy, 2003, p. 36)
5
ATIENZA, Manuel. Ob. cit., p. 13.

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que, diante das condições estruturais brasileiras, caracteriza-se como um


genocídio em ato6.

II – D A I LEGITIMIDADE J URÍDICA DA P RISÃO P REVENTIVA


NO C ONTEXTO F ÁTICO -J URÍDICO A TUAL

Segundo a matriz garantista de direito e processo penal, a prisão


preventiva é juridicamente ilegítima, pois não se coaduna de maneira
alguma com a principiologia fundadora do processo penal. LUIGI FERRAJOLI,
após analisar a legitimação discursiva desse tipo de prisão por parte dos
autores clássicos e de sua conseqüente consagração mediante a positivação
na maioria das cartas constitucionais atuais, dispõe que devemos aceitar
todas as conseqüências lógicas do princípio da presunção de inocência e
questionar os argumentos que justificam a prisão preventiva como uma
injustiça necessária, perguntando se não se trata apenas de conveniência de
um processo de matriz inquisitória.
Esta pergunta dever ser enfrentada tanto do ponto de vista externo à
Constituição – sem submeter-se à falácia segundo a qual aquilo que a
Constituição permite é justo e incontestável – como do ponto de vista
interno, tensionando a principiologia garantista da Constituição com as
normas que prevêem a prisão preventiva, para daí extrair a ilegitimidade7.
Analisar a prisão preventiva desde a sua ilegitimidade, também
impõe abandonar – enquanto fator legitimante – a idéia que lhe incumbe
função instrumental, ao mesmo tempo em que lhe retira o caráter de pena.
Isso quer dizer que a prisão preventiva é ônticamente uma pena, ou seja,
uma dolorosa medida que restringe direitos. É o que ressalta FERRAJOLI: “é
um mísero paralogismo dizer que o cárcere preventivo não contradiz o
princípio nula poena sine iudicio – ou seja a submissão da jurisdição em seu
sentido lato –, pois não se trata de uma pena, mas de outra coisa: medida
cautelar, ou processual ou, seja como for, não penal”8.
Se para ZAFFARONI “pena é qualquer sofrimento ou privação de
algum bem ou direito que não resulte racionalmente adequado a algum dos

6
Sobre a teoria agnóstica da pena, concebida por EUGENIO ZAFFARONI, conferir o artigo de SALO DE
CARVALHO: “Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo”. In:
CARVALHO, Salo (org.). Crítica à execução penal. RJ: Lumen Juris, 2002, em especial pp. 32-39.
7
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2006, pp. 508/509.
8
Ibidem, p. 512.

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modelos de solução de conflitos dos demais ramos do direito9”, não há


como negar o caráter de pena à prisão preventiva. Não sendo possível,
desde a concepção agnóstica, encontrar qualquer fundamento jurídico da
pena, também não é possível encontrar qualquer fundamento jurídico da
prisão preventiva. Ambas são, portanto, fatos de poder.
Ocorre que, não obstante a ilegitimidade jurídica, prolifera por todo
país a decretação de prisões preventivas, legitimadas “de fato” pela
demanda pública que exige punição rápida, desconsiderando o necessário
tempo do processo e tornando ainda mais violento o sistema penal
brasileiro. Nesse contexto, cumpre ao direito (processual) penal, partindo da
deslegitimação, limitar a violência punitiva ao máximo possível.
A irracionalidade aqui apontada pode ser considerada, então, uma
‘irracionalidade plus’, em relação à racionalidade garantista. Exemplos
jurisprudenciais são fartos. Utilizando principalmente a expressão
“periculosidade”, delineada principalmente enquanto possibilidade de
reiteração delituosa, que serve de fundamento da constrição cautelar10.
Desta maneira o poder torna-se, no mínimo, duplamente arbitrário, dada a
ilegitimidade da segregação preventiva e, principalmente, a extensão

9
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. RJ: Revan, 1991.
10
Eis aqui duas decisões do TJRS que bem demonstram como a periculosidade vem sendo usada
irresponsavelmente como principal argumento para a decretação de prisões preventivas:
“O roubo qualificado pelo concurso de pessoas e, principalmente, pelo emprego de arma, revela,
induvidosamente, a periculosidade e a ousadia do agente, por presentes ao ato a grave ameaça e a
violência. Tanto assim que o delito é inafiançável. Estas circunstâncias não recomendam a
liberdade provisória prevista no artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal,
quando o indiciado-acusado foi preso em flagrante delito. Ela (liberdade) só deve ser deferida, se
a situação mostrar, por sua excepcionalidade, que haverá induvidoso constrangimento ao detido”
(HC 70018770545, Relator Desembargador Marcelo Bandeira Pereira).
“Não merece concedida a ordem postulada. Os fatos delituosos imputados ao paciente, apesar de
desprovido de emprego de violência ou ameaça, possui especial gravidade,mormente
considerando o contexto circunstancial. Pelos que consta nos autos o paciente foi detido após
perseguição policial que teve início com a informação de pedestres sobre uma tentativa de furto
de veículo. Outrossim, com o paciente foram apreendidos vários instrumentos utilizados para a
prática de furtos de veículos, como chaves falsas, bem como o veículo que o apelante se
encontrava estava com os sinais identificadores alterados. Como se constata, todos os elementos
até agora presentes indicam o envolvimento do paciente em grupo organizado voltado à
consecução de ilícitos, o que, por certo, evidencia sua periculosidade, determinando a constrição
cautelar para tutela da ordem pública. Vale ponderar, noutro norte, que condições pessoais não
lhe são favoráveis, pois possui condenação por delito de homicídio e está respondendo outro feito
pelo delito de receptação. Diante desse quadro, não verifico ocorrência e constrangimento ilegal,
estando mantido o despacho (fl. 45, autos do processo-crime). Com tais aportes, voto pela
denegação da ordem postulada” (HC 70018041780, Relator Desembargador Roque Miguel Fank)

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semântica do termo “periculosidade” – que impossibilita sua apreensão


empírica. Tal fato acaba por violar toda a principiologia garantista do
direito e do processo penal. Consoante SALO DE CARVALHO, “os juízos de
periculosidade descritos estabelecem uma situação de fato inverificável e
processualmente incomprovável pela impossibilidade empírica de
experimentação. No interior do modelo de garantias, as hipóteses
processuais devem ser baseadas em juízos verdadeiros e/ou falsos,
propriamente demonstrados e passíveis de negação(contraditoriedade)11.
Daí dizermos que a atribuição do termo “perigoso” ao réu ganha
contornos de exercício de ‘futurologia’ por parte do juiz que tenta prever
condutas a partir das características pessoais do acusado – o que é
impossível de ser realizado/comprovado, a não ser que o juiz acumule
também funções de cartomante12, o que é vedado (podem ser apenas
professores, diz a Constituição). Ocorre que como o personagem de
MACHADO DE ASSIS, que é morto pelo marido traído após crer nas palavras
da cartomante13, também aqui os efeitos são danosos, pois tais juízos virtuais
violam toda a cadeia de princípios garantidores. Violam a presunção da
inocência, pois presumem culpabilidade em fatos que sequer existem.
Fulminam a ampla defesa e o contraditório, pois se tratam de juízos
incontestáveis. Como refutar a previsão de fatos futuros? Nesse sentido,
ALBERTO BINDER, referindo-se à periculosidade enquanto fundamento da
prisão preventiva, leciona: “(...) estes, além de serem critérios puramente
subjetivos – pois qualquer apreciação sobre o futuro é, em última análise,
não demonstrável – implicam a utilização da prisão preventiva como
medida de segurança”14
Desnecessário seguir analisando todas as violações aos direitos e
garantias que decorrem da utilização de termos vagos, de juízos virtuais
despidos de base empírica, pois são evidentes, desde o prisma processual.
Cumpre, por outro lado, pensar criminologicamente como se dá o
preenchimento desse vazio, no qual o juiz encontra caminho livre para

11
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. RJ: Lumen Juris, 2º ed., 2003, p. 140.
12
AURY LOPES JR refere que tal diagnóstico é impossível de ser feito, salvo para os casos de vidência
e bola de cristal. Para o autor, “esse tipo de decisão é dotada de um elevado de grau de
charlatanismo e um altíssimo grau de prepotência” (LOPES JR. Aury. Introdução crítica ao processo
penal – fundamentos da instrumentalidade garantista. RJ: Lumen Juris, 2004, p. 204).
13
ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos. A Cartomante. Biblioteca ZH, 98., pp. 132/140
14
BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal. Trad. Fernando Zani. RJ: Lumen Juris,
2003, p. 151.

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descarregar sobre alguns selecionados toda a paranóia Moderna e


contemporânea que nos faz temer o Outro, que faz com que algumas
pessoas sejam invisíveis, ou visíveis apenas enquanto “perigosas”.

III – P RISÃO P REVENTIVA : A TITUDE P REVENTIVA F RENTE A


A LGO A MEAÇADOR
Ao liberar-se das amarras disciplinares e metodológicas impostas pela
concepção moderna de ciência, torna-se possível admitir a parcialidade da
visão e o perspectivismo do conhecimento, bem como a influência que o
discurso sofre dos nossos afetos e sentimentos. Na 3ª dissertação da
Genealogia da Moral, NIETZSCHE, ao realizar a crítica à razão pura, ao
conhecimento em si que separa sujeito e objeto, imaginando um sujeito de
conhecimento desprovido de vontade, alheio a dor e ao tempo, dispõe:
“existe apenas uma visão perspectiva, apenas um conhecer
‘perspectivo’; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma
coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para
essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa
‘objetividade’. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os
afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? –
não seria castrar o intelecto?”15
Admitir o perspectivismo de maneira alguma deprecia o
conhecimento, muito pelo contrário, tal concepção proporciona a
possibilidade de pensar o complexo, ampliando o espectro de compreensão
dos fenômenos desde uma fusão de horizontes que também subjetiva o
saber ao abrir espaço para a transdisciplinaridade, para as vivências e para a
arte.
Então, não existe um objeto em si a ser observado e um sujeito puro
que o observa. Isso porque ver é relacionar-se, ou seja, não vemos aquilo
que olhamos, mas a relação com aquilo que olhamos. Sendo assim,
“a pessoa ou o objeto que se olha é também – além de ser objeto
ou pessoa – um espelho para nosso espírito, nosso estado
psicológico, nossa educação, valores, emoções, conhecimento,

15
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. SP: Cia das Letras,
1998, p. 109.

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compromissos profissionais, responsabilidades sociais (...) enfim,


tudo aquilo que faz a gente ser o que é”16.
Assim, a mesma imagem olhada por diferentes pessoas, é vista de
diferentes maneiras. A questão é que a partir de alguns processos a pessoa
pode não ser vista, tornar-se invisível, ou vista somente a partir da etiqueta
que lhe é atribuída, o que significa a mesma coisa. Quando se aplica um
estigma a alguma pessoa, dissolve-se sua identidade, anula-se o sujeito, e o
que enxergamos nele é apenas a classificação que lhe impusemos a priori.
Não vendo a pessoa que existe atrás do estereótipo, não existe qualquer
possibilidade de relacionamento, o que impede a convivência e potencializa
a violência17.
Não raras vezes, confundimos grupos de jovens – cujo estereótipo já
conhecemos – conversando em uma roda ou pedindo esmolas nas
sinaleiras, e imediatamente pensamos se tratar de uma situação onde possa
haver perigo. E também não raras vezes, essa situação culmina com uma
intervenção policial abordando esses “seres perigosos”. “Quem está ali na
esquina não é o Roberto ou a Maria, com suas respectivas idades e histórias
de vida, seus defeitos e qualidades, suas ambições e desejos. Quem está ali é
o ‘moleque perigoso’ ou a ‘guria perdida’, cujo comportamento passa a ser
previsível18. A única violência que costuma ocorrer nesse exemplo é aquela
decorrente do preconceito que às vezes torna invisível certas pessoas, ou
visível apenas enquanto perigoso, enxergando-se nelas apenas o reflexo de
nosso medo e de nossa intolerância.
Não se trata de criticar singularmente uma atitude particular de
invisibilidade. É algo muito maior que isso, pois estamos todos inseridos
nesse tipo de neurose contemporânea, efetivamente temos medo, e tal medo
é real19. Mas torna-se imperioso compreender o fato, entender o sentido da
prevenção ante a presunção de violência e que tipo de violência tal atitude
preventiva pode desencadear. Nesse sentido, RICARDO TIMM DE SOUZA
afirma que “o preconceito é um fenômeno fundamental, de fundamentos,
de origens” que expressa a tradução de uma violência construída sobre o
terreno totalitário das certezas que tem no medo a base da ação
preconceituosa – a negação do Outro na base do preconceito e o preconceito
como fruto da totalidade: “a pretensão, acorde com uma tradição longa no

16
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Cabeça de Porco. RJ: Objetiva, 2005, p. 172.
17
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Ob. cit, p. 172
18
Ibidem.
19
Idem, pp. 179/186.

122
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Ocidente, de parar o tempo, de reduzir infinitamente o espaço a um foco


único e definitivo de sentido, de impedir a mudança e constituir o presente
perpétuo, conhecido e tautológico, sem sobressaltos, sem surpresas, sem
diferenças, sem vida – sem o Outro20.
Se o preconceito é violência, o estereótipo também o é, e se manifesta
na parte constitutiva da criminalização, mantendo-se presente no momento
judicial. E o que seria a atribuição de periculosidade senão a expressão de
um estereótipo? Sabemos que as meta-regras (second-code) perpassam
todos os momentos da persecução penal, o que torna estruturalmente
seletivo o sistema penal. O processo analisado culmina na negação da
alteridade, na impossibilidade de existir relacionamento entre “Um” e
“Outro” – “Outro é alguém que deve ser apartado, contido, consumido, não
olhado”21. Tal impossibilidade de relacionamento determina a atitude
preventiva frente a algo que é ameaçador. Violência preventiva ante
violência presumida em razão do estereótipo: “Prever seu comportamento
estimula e justifica a adoção de atitudes preventivas. Como aquilo que se
prevê é ameaçador, a defesa antecipada será a agressão ou a fuga, também
hostil. Quer dizer, o preconceito arma o medo que dispara a violência,
preventivamente”22.
Parece possível situar a prisão preventiva decretada em razão da
periculosidade do acusado nessa problematização. Decretar uma
segregação cautelar com base na meta-regra analisada significa, portanto,
tomar uma atitude preventiva (defender a sociedade?) diante de uma
ameaça. Trata-se de antecipar preventivamente a violência punitiva, em
razão da ameaça proveniente do Outro que é invisível, sendo visível apenas
o estigma. Não se está mais a julgar um sujeito que possui uma identidade,
mas uma essencialização que o elimina: “perigoso”.

IV – A P ERICULOSIDADE E A L ÓGICA M ANIQUEÍSTA DO


S ISTEMA P ENAL
Nota MICHEL FOUCAULT que na passagem do Século XVIII para o
Século XIX, o “novo sistema penal (...) levou os juízes a julgar coisa bem
diferente do que crimes (...) A operação penal inteira carregou-se de

20
SOUZA, Ricardo Timm de. Ainda Além do Medo: filosofia e antropologia do preconceito. Porto Alegre,
Dacasa, 2002, pp. 17 e 19, respectivamente.
21
CARVALHO, Salo de. Criminologia e transdisciplinaridade. In: Sistema Penal e Violência. Gauer,
Ruth. RJ: Lumen Juris, 2006.
22
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Ob. cit., p. 175.

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elementos e personagens extrajurídicos” cujo objetivo também era “escusar


o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga”23. Nesse contexto é
que entre em cena o psiquiatra como conselheiro de punição, cabendo-lhe
dizer se o indivíduo é “perigoso”. A legitimação do saber jurídico, diante
deste “novo regime da verdade” se dá desde o discurso clínico, isto é, “a
justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua
referência a outra coisa que não é ela mesma, por essa incessante reinscrição
nos sistemas não jurídicos. Ela está voltada a essa requalificação pelo
saber”24 que obedece a uma lógica marcadamente maniqueísta.
Daí que “toda a penalidade do Século XIX passa a ser um controle,
não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou
não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de
fazer (...) do que estão na iminência de fazer”. Trata-se de uma virtualidade
que projeta uma penalidade que procura punir/corrigir ao nível do perigo e
que proporcionou, para a criminologia do final do Século XIX a grande e
escandalosa noção de periculosidade – “A noção de periculosidade significa
que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas
virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas
a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas
representam”25.
A questão é que “opera-se uma diferenciação que não é a dos atos,
mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de suas virtualidades, de seu
nível ou valor,” cuja “qualificação dos comportamentos e dos desempenhos
[se dá] a partir de dois valores opostos do bem e do mal”26 e,
principalmente, na crença da superioridade do “bem” sobre o “mal”.
Esse maniqueísmo da cultura penal demonstra algo que está arraigado
nas entranhas do sistema penal, algo que está antes da lógica do seu
discurso e que se projeta para fora dele, no seu exercício genocida: a ligação
do direito penal com o sagrado. Trabalhando com as noções de culpa e

23
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes,
1987, p. 22/23.
24
Idem. Ibidem. p. 23.
25
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado e outros. RJ: Nau
Editora, 2005, p. 85.
26
FOUCAULT. Vigiar e Punir. p. 151.

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salvação, o sistema penal se apresenta como caminho único27 da mesma


forma como o cristianismo atribui-se a finalidade da salvação do homem28.
A criminologia positivista pode ser um exemplo dessa aproximação.
O paradigma positivista da criminologia, assim como toda vontade de
verdade edificada na passagem do XVIII para o XIX, laborou com a
categoria que FOUCAULT chamou de exame e que, desde a vigilância,
propiciaria a correção. “Instaura-se, dessa forma, o discurso do combate
contra a criminalidade (o “mal”) em defesa da sociedade (o “bem”)
respaldado pela ciência”29.
Desenvolvendo a antropologia lombrosiana, FERRI ampliou as causas
ligadas ao crime e, assim, pode sustentar que ele não é decorrência do livre
arbítrio, mas resultado de “fatores que conformam a personalidade de uma
minoria de indivíduos como ‘socialmente perigosa’”. Dessa forma, o crime
seria “revelador da personalidade mais ou menos perigosa de seu autor,
para a qual se deve dirigir uma adequada ‘defesa social’”30. É por isso que
desde a linearidade/causalidade explicativa do positivismo criminológico
fundamentou-se uma “luta científica contra a criminalidade”: “a um
passado de periculosidade confere-se um futuro: a recuperação”31.
Vemos, portanto, que a utilização do termo “perigoso” remonta a
uma série de questões jamais olvidadas no plano criminológico. Assim
como n’A Metamorfose, de KAFKA, em que Gregor Samsa não vira um
inseto, ele já é um inseto32, o perigoso não se torna um perigoso, ele é
perigoso e por isso é possível dizer que “a irrealidade da causa não nega a
realidade de seus efeitos”33. O sistema penal precisa do “mal” (do que ele
atribuí como mal) para preservar suas condições idealizadoras e
preconceituosas de “bem” (do que ela atribuí como bem). Isso quer dizer
que a constante adjetivação de periculosidade serve, no judiciário e no senso
comum, para sustentar o que é latente e genocida: a visão boa de mundo.

27
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima: códigos da violência
na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 26.
28
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. SP: Martins Fontes, 1992, p. 98.
29
ANDRADE. Op. cit., p. 38.
30
Idem. Ibidem. pp. 36/7.
31
Idem. Ibidem. p. 38.
32
Interpretação devida a Ricardo Timm de Souza, no livro Metamorfose e Extinção: sobre Kafka e a
patologia do tempo. Caxias do Sul: EDUCS, 2000.
33
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Ob. cit., p. 184

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V – C ENTAUROS NO C ENTRAL
Não é mais possível atualmente crer na neutralidade do juiz que
aplica a lei penal. Isso porque não há neutralidade em qualquer tipo de
atividade intelectual, pois o saber é produzido por humanos, por
angelmonios, que projetam a subjetividade no discurso. Crer na
neutralidade é ingenuidade inadmissível, pois significa desconsiderar toda
a desconstrução do sujeito efetivada principalmente pela psicanálise. Já
estamos muito distantes do cartesiano “penso, logo existo”34.
Ciente de que o juiz não é neutro, cumpre ao direito elaborar regras
que limitem o exercício do poder, sabendo que a limitação será sempre
frágil e incompleta. A limitação do poder punitivo exercida dentro de um
processo penal se dá através da principiologia garantidora. Um desses
princípios é o da motivação das decisões judiciais, pois o poder será
exercido através do discurso, que deverá ser racional. Então, admite-se que
o “eu” não é (apenas) racional, mas não se abdica de tentar racionalizar a
prática jurídica.
Nesse contexto, FERRAJOLI, auxiliado pela teoria referencial do
significado de GOTLOB FREGE, elabora no terceiro capítulo de sua obra
Direito e Razão, uma teoria que tenta dar conta do problema da utilização de
termos vagos, de juízos virtuais despidos de referencial empírico. Assim,
são verificáveis ou falseáveis apenas as afirmações dotadas de significado
ou de referência empírica, que descrevem fatos ou situações determinadas a
partir do ponto de vista da observação. Por exemplo, “Caio violou o limite
de velocidade de 50km/h ao andar pelo centro de Roma a 60km/h”. Por
outro lado, não são verificáveis os juízos de valor e as afirmações de fato ou
situações a partir do ponto de vista da observação. Por exemplo: “Caio é
socialmente perigoso”35.
A partir disso, o autor constrói regras semânticas meta-legais de
formação da linguagem legislativa (legalidade estrita ou taxatividade das
leis penais), bem como regras semânticas metaprocessuais de formação da
linguagem jurisdicional (estrita jurisdicionaridade). A estrita

34
Nesse sentido, leciona BIRMAN: “A concepção psicanalítica de que existiria um psiquismo
inconsciente e que a subjetividade transcenderia em muito os registros do eu e da consciência,
implicou efetivamente no descentramento do sujeito. Essa tese colocou em questão uma longa
tradição que se constituiu com Descartes e que foi denominada de filosofia do sujeito” (BIRMAN,
Joel. Freud e a Filosofia. RJ: Jorge Zahar, 2003, p. 55).
35
FERRAJOLI. Direito e Razão, p. 114.

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jurisdicionaridade é dirigida aos juízes, que não poderão utilizar em suas


decisões termos vagos, indeterminados, indetermináveis e por isso,
irrefutáveis. Por isso que SALO DE CARVALHO afirma, ao dissertar sobre
aplicação da pena e motivação, que “o critério personalidade, presente no
corpo do artigo 59 do Código Penal (...) não apresenta, desde o modelo
acusatório, possibilidades de verificabilidade processual”36.
Conforme FERRAJOLI, “é fácil compreender como esta teoria do
significado é também uma teoria das condições de uso do termo verdadeiro,
quer dizer, da verificabilidade. A locução ‘denota’, referida a um sujeito ou
a um predicado, é fungível, na realidade, como ‘verdadeiro para’, no
sentido de verdadeiro para (ou denota) vários objetos, um só objeto ou
nenhum objeto: assim, o termo ‘mesa’ é verdadeiro para todo objeto que
seja uma mesa; o termo ‘satélite natural da terra’ é verdadeiro para um só
objeto, que é a lua; o termo ‘centauro’ não é verdadeiro para nenhum objeto,
já que não existe qualquer centauro”37.
Então, termos que não são verdadeiros para nenhum objeto (como
centauro) não podem ser utilizados em decisões judiciais, eis que
irrefutáveis. Daí a aproximação entre periculosidade e centauro. Ocorre que,
atualmente, existem milhares de centauros no Presídio Central de Porto
Alegre e em todos os presídios do Brasil. Afirmar em uma decisão judicial
que uma pessoa deve restar segregada em razão de sua periculosidade é o
mesmo que dizer que existem centauros. Trata-se de um juízo virtual,
fictício, alucinado: inverificável. O termo ‘perigoso’ não é verdadeiro para
nenhum objeto, pois é valorativo, exprime “valorações subjetivas de quem
as pronuncia”38.
Podemos notar que o sistema penal sempre recorreu à existência de
centauros (fadas? Gnomos?). No contexto atual, quando a função explícita
do sistema penal passa a ser a de contenção e eliminação, o status de seres
imaginários é concretizado na figura dos excluídos, daqueles que não têm
espaço na sociedade do consumo.
Deste modo, cientes que a seletividade do sistema penal é estrutural e
que o direito penal igualitário é um mito, cremos que é possível ao menos a

36
CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito: postulados garantistas.
In CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. “Aplicação da Pena e Garantismo”. RJ:
Lumen Júris, 2004, p. 54.
37
FERRAJOLI. Direito e Razão, p. 114.
38
FERRAJOLI. Ob. cit., p. 116.

127
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tentativa de limitação de danos, pois a fatalidade dos fatos não deve nos
impedir de seguir resistindo. Nesse sentido, obstaculizar a utilização de
termos vagos e empiricamente inconstatáveis é medida de extrema
importância. Admitir que centauros não existem, mas que criminalizados
sim, de maneira violenta e arbitrária, por motivos que ultrapassam o
cerrado âmbito de compreensão daqueles que enxergam centauros. Antes,
talvez, tenhamos “que renunciar a tudo o que nos foi ensinado sobre o Bem
e sobre o Mal”39.

R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos; A Cartomante. RS: Biblioteca ZH, 98.
ATIENZA, Manuel. As razões do Direito. 3ª ed., SP: Landy, 2003.
BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal. Trad. Fernando Zani. RJ: Lumen
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BIRMAN, Joel. Freud e a Filosofia. RJ: Jorge Zahar, 2003.
CARVALHO, Salo de. A teoria agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder
punitivo. In: CARVALHO,, Salo (org.). Crítica à execução penal. Doutrina, jurisprudência
e projetos legislativos. RJ: Lumen Juris, 2002.
________. Pena e Garantias. RJ: Lúmen Juris, 2º ed., 2003.
________. Criminologia e transdisciplinaridade. In Sistema Penal e Violência. Gauer, Ruth.
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DÍAZ, Esther. La brujería: un invento moderno. In: Manuscrito. Revista Internacional de
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FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica
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LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da instrumentalidade
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NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. SP:
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SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Cabeça de Porco. RJ: Objetiva, 2005.
VATTIMO, Gianni. Metafísica, violencia, secularización. In: VATTIMO, Gianni (comp.). La
secularización de la filosofía: hermenéutica y posmodernidad. Barcelona: Gedisa, 1992.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. RJ: Revan, 1991.

39
ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Falcão: meninos do tráfico. RJ: Objetiva, 2006, p. 10.

128
A EXCLUSÃO DO OUTRO: SINTOMA DA
SOMBRA COLETIVA E MECANISMO DE
EXPIAÇÃO DA CULPA JUDAICO-CRISTÃ
A NDRÉA B EHEREGARAY *
M ARISA F ERNANDA DA S ILVA B UENO **

“Quem deve enfrentar monstros, deve permanecer atento para


não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado
tempo para dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar
dentro de ti”. (FRIEDRICH NIETZSCHE)
Resumo: O presente trabalho pretende demonstrar a forma
como o sistema penal funciona como mecanismo de exclusão
do outro para expiar a culpa inserida no contexto judaico-
cristão e, assim, possibilitar aos demais indivíduos a libertação
desse sentimento para o livre gozo dos prazeres mundanos. No
mesmo sentido, funciona o movimento de projeção, em que
determinadas pessoas ou grupos, referidos como sombras,
passam a carregar os conteúdos negativos da natureza humana,
servindo de “bodes expiatórios” para o sistema penal,
intitulado como o único capaz de resolver os problemas da
violência e, com isso, eximindo todos os indivíduos dessa
responsabilidade.
Palavras-Chave: Sistema Penal – Exclusão do Outro – Culpa –
Punição – Projeção – Sombra

INTRODUÇÃO
A punição nas sociedades contemporâneas ocidentais passa por um
processo de reflexão e questionamento, característico da atualidade.

*
Psicóloga. Especialista em Ciências Penais e Mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS.
**
Advogada. Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Direito Penal Empresarial
(PUCRS). Bolsista do Programa de Bolsas de Mestrado e Doutorado da PUCRS –
PROBOLSAS/PUCRS.

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Visualiza-se uma crise de paradigmas em meados da revolução científica,


que, apesar de ter origem no início do século passado, não se sabe quando
vai terminar e, tampouco, quais serão todos os seus desdobramentos. O que
se pode afirmar é que o momento social é de crise e instabilidade, é o caos,
necessário para possibilitar a evolução do espírito e do pensamento
científico.
Partindo do raciocínio de que não se concebe um discurso legitimador
da pena de prisão, seja ele fundamentado na função preventiva, geral ou
especial, ressocializadora, reparadora, ou, ainda, retributiva, buscar-se-á,
neste trabalho, desenvolver um pensamento acerca da (real) necessidade de
punição e da necessidade de o suplício ser explícito, desencadeando uma
desenfreada produção legislativa de tipos penais e aumento das penas, no
sentido de acalmar o anseio da população, que pede a punição daqueles que
cometem delitos e, com isso, são eleitos pela sociedade para serem os
“bodes expiatórios”. Através das respostas à violência, apresentadas pelo
sistema penal, é possível pensar a excessiva criminalização de condutas
como resultado de um movimento psíquico coletivo.
O problema da sombra coletiva sempre esteve presente na dinâmica
dos povos e a forma como essa se manifesta tem relação direta com o nível
de desenvolvimento pessoal dos indivíduos. Aqueles que decidem trilhar
os caminhos da violência devem estar atentos para a perigosa armadilha de
atribuir ao outro o mal que lhes pertence.

1 – O D IREITO P ENAL E A P SICOLOGIA DAS M ASSAS


O homem moderno perde o senso de direção: tudo o que antes era
certeza hoje se tornou dúvida. Podemos pensar em um homem fragilizado,
diante de uma era de insegurança e perigos de aniquilamento. A promessa
de salvação colocada na ciência não se cumpriu. Temos um homem que
antes estava identificado com o divino e que, agora, além de perder essa
poderosa identificação, depara-se com as grandes catástrofes originadas na
maldade humana.
O homem do fim do Século XIX e do início do XX tem sua visão de si
e do mundo profundamente alterada. A perda da fé na transcendência e a
quebra da imagem do homem como uma extensão do divino, características

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do fim de século, fazem com que os seres humanos se voltem para uma
questão essencial: a natureza humana1.
A partir do Iluminismo, a existência real dos deuses passou a ser
negada e, começou a ser considerada como uma projeção. O fim dos deuses
não eliminou, porém, sua função psíquica correspondente, que fica
reprimida no inconsciente, e a libido, antes aplicada à imagem divina, passa
a exercer enorme influência sobre a consciência através de conteúdos
arcaicos coletivos2. Entretanto, a quebra dessa identificação3 com o divino
não significa que o homem deixou de buscar algo que o salve e lhe ofereça a
redenção.
É neste momento, de “carência” de um objeto com quem possa se
identificar, que o inconsciente busca algo ou alguém para identificar e
projetar conteúdos que buscam reconhecimento consciente. E neste
momento também podemos pensar que, em termos psíquicos, o indivíduo e
o coletivo estão mais vulneráveis a figuras como Hitler.
JUNG apontava Hitler como um reflexo da histeria do povo alemão,
um receptáculo para um sentimento comum e que ansiava por encontrar
local. No caso dos alemães, esse receptáculo era uma pessoa, que, investida
de projeção maciça, perdeu suas características humanas e foi envolta por
uma participacion mystique4. Em outras situações, esse receptador pode ser
um grupo, uma instituição, uma nação. O que é certo é que, tanto no nível
individual quanto no coletivo, a projeção busca alívio para a tensão gerada
por conteúdos inconscientes inaceitáveis5.
O local ocupado pela figura de Hitler na Segunda Guerra é
semelhante ao local em que está o direito penal atualmente. Na psique
inconsciente, ambos têm uma representação divina. Não foram poucos os
que viram, na figura de Hitler, a imagem do salvador.

1
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Volume II. Séculos XIX e XX. Vila Nova de
Gaia: Edições 70, 1990.
2
JUNG. C,G. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987.
3
Processo psicológico de dissimilação, total ou parcial, da personalidade em favor de um objeto que
esta assume.
4
Vinculação psicológica singular entre sujeito e objeto. Relação de transferência onde o objeto
obtém certa influência mágica sobre o sujeito.
5
JUNG, C.G. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1990.

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2 – C ICLO V ICIOSO : I NSEGURANÇA , C LAMOR S OCIAL E O


D IREITO P ENAL
Tanto no nível individual quanto no coletivo, podemos identificar
conteúdos que permanecem inconscientes para os envolvidos, mas são
visíveis aos olhos estrangeiros. Hitler é sempre um exemplo tentador de ser
analisado quando se busca discutir psicologia dos grupos e seu
funcionamento.
O que hoje parece óbvio ao povo alemão, não o era na Segunda
Guerra para a grande maioria, salvo exceções6. Diante da breve discussão do
estado do homem moderno e de algum conhecimento sobre a situação
calamitosa da Alemanha naquele período, podemos imaginar por que
Hitler ganhou tanta força.
O movimento da psique realizado através da projeção7, percebido no
nível individual e no coletivo, realiza-se entre pequenos grupos ou, no caso
das guerras, entre nações. O conteúdo projetado é denominado por Jung de
sombra.
A sombra consiste naqueles elementos, sentimentos, emoções, idéias e
crenças com os quais não conseguimos nos identificar, conteúdos
reprimidos pela educação, cultura ou sistema de valores8. Por ser composta
de traços da personalidade, desconhecidos pela consciência, isto lhe confere
certa autonomia e, conseqüentemente, é de tipo possessivo9.
A sombra pessoal contém todos os tipos de potencialidades não
expressas e não desenvolvidas pelo ego. Geralmente é composta por
conteúdos vergonhosos ao eu, tais como inveja, raiva, etc., emoções ocultas
e temidas, com as quais, nos defrontamos em contato com o outro10.

6
O fato da projeção é inconsciente, autônoma e já existe de antemão. Isso faz com que a relação real
com o mundo exterior fique prejudicada, o que passa a existir é uma relação ilusória e que, por
isso, prejudica qualquer julgamento moral por parte do indivíduo.
7
Significa transferir para um objeto conteúdos subjetivos.
8
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 15.
9
JUNG, CG. AION. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 7.
10
Para JUNG, a função da análise é trazer o inconsciente pessoal à consciência, o que torna o
indivíduo consciente de coisas que, em geral, só conhecia nos outros, mas não em si mesmo.Tal
descoberta o torna menos original e mais coletivo.

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Já a sombra coletiva pode ser observada mais facilmente em grupos


que exercem o lado socialmente rejeitado e negado pela maioria11 e que, por
isso, tornam-se alvo de projeções.
A história é repleta de exemplos de sociedades que elegem outro
grupo como alvo de projeções negativas. O mais recente exemplo vem dos
Estados Unidos, que elegeram os mulçumanos para esse papel. Segundo o
presidente GEORGE W.BUSH, trata-se de uma luta do bem contra o mal.
E é exatamente do mal e da sua projeção no outro que se trata aqui.
Podemos explicar a crescente insegurança voltando-nos para as grandes e
velozes transformações, ameaças terroristas e nucleares que aumentam a
sensação de insegurança, pois já não sabemos de onde ele vem, e todos nos
tornamos seu alvo em potencial. Esses fatores, sem dúvida, intensificam a
sensação de insegurança que se reflete através do clamor social por justiça,
alimentando, com isso, um perigoso ciclo.
A população, através do clamor social, cobra providências contra o
avanço da violência. O direito penal se intitula como capaz de solucionar a
questão, tentando dar uma resposta efetiva a ela. Contudo, não sendo
eficiente no que se propõe, acaba intensificando ainda mais a sensação de
insegurança, que, por sua vez, gera mais agitação e, conseqüentemente,
mais cobranças. Estabelece-se, então, um ciclo vicioso.
A crescente sensação de insegurança, que alimenta esse tipo de
engrenagem, ou é por ele alimentada, é intensificada pela projeção da
sombra coletiva, onde o sistema penal representa os “justos”. Por outro
lado, a sociedade se vale, de forma inconsciente, desse tipo de mecanismo
como forma de se eximir da responsabilidade.

2 – A E LEIÇÃO DO O UTRO P ARA E XPIAR A C ULPA J UDAICO -


C RISTÃ
Em A Genealogia da Moral. Uma polêmica, NIETZSCHE desenvolve a
idéia de que o cristianismo, através da morte do filho de Deus, que ocorreu
em nome da humanidade, cria um sentimento de culpa e dever de pagar
uma dívida impagável12. É, nesse sentido, que SIGMUND FREUD representa o
sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento

11
Idem, 11.
12
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,
2004, p. 72.

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da civilização, referindo que o preço que pagamos por nosso avanço em


termos de civilização, é uma perda de felicidade pela intensificação do
sentimento de culpa, no sentido de que a consciência faz de nós covardes13.
Nesse contexto, outro mecanismo de exclusão do outro, que se revela
no sistema penal, é a expiação da culpa. Os condenados pelo sistema penal
são eleitos os representantes dos seres humanos, entregues para serem
sacrificados em nome dos demais, para que alguns possam gozar os
prazeres mundanos sem a tão dolorosa culpa inserida no contexto judaico-
cristão. Essa culpa aparece como forma de autopunição, ou seja, ela é a
representação da mais profunda dor do pecado original trazida pela Igreja
Católica, dirigida para alguns seres escolhidos como os redentores dos
demais.
O direito penal e o processual penal funcionam, pois, como
mecanismos de expiação da culpa inserida na sociedade ocidental de
origem judaico-cristã. Com efeito, através da escolha de indivíduos
marginalizados no contexto social, livra-se a sociedade dos pecados,
retirando-se esses indivíduos do todo, pois já não mais interessam a essa
sociedade globalizada economicamente.
Desse modo, a pena, na medida em que nos livra de toda a culpa, é
requerida pelos meios de comunicação e exigida pela comunidade, pois
representa uma forma de retribuição ao sacrifício do filho de Deus.
Tendo como base o conceito de linearidade do tempo, a ciência
jurídico-penal se desenvolveu fundamentada em uma visão mecanicista de
mundo, já há muito tempo questionada. Nesse sentido, o sistema penal,
baseado no mito da verdade absoluta, teve seus paradigmas abalados, pois,
conforme explica PRIGOGINE, a ciência clássica unia conhecimento completo
e certeza: desde que fossem dadas condições iniciais apropriadas, elas
garantiam a previsibilidade do futuro e a possibilidade de retroagir ao
passado14. Neste aspecto, ocorre uma mudança estrutural com relação à
finalidade e à capacidade de resolução dos conflitos pelas ciências penais.
Quando o acaso passa a ser parte integrante da natureza dos fenômenos, e
não mais algo estranho e exterior, a visão da violência também é deslocada,
passando a ser algo constitutivo da sociedade, o qual deve ser mitigado,
mas não extirpado.

13
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 97.
14
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal Ferreira. 2
ed. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996, p. 12.

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Porém, o sistema penal, baseado no paradigma da física clássica e no


conceito de linearidade de tempo, fundamenta a pena com uma perspectiva
do passado, na cruz que foi carregada pela nossa libertação e no passado do
delito cometido. Carvalho lembra que “a veneração romântica do passado,
aliada à sua universalização e conseqüente transposição ao presente,
incapacita o novo, sobretudo pela mortificação do futuro”15. As ciências
jurídico-penais primam pelo antigo, impedindo o novo das ciências ditas
duras de influenciar nos conceitos e estruturas do sistema penal. Conforme
OST, o sentido da vingança, inserido no contexto do sistema punitivo penal,
funciona como um aprisionamento do passado, como se os relógios
tivessem parado no instante do crime e o futuro não tivesse outro sentido,
senão a revivicação neurótica do fato e a esperança da sua anulação
simbólica16.
Assim, a pena está reforçando a idéia da presentificação do passado,
intensificando a imagem ilusória da segurança proporcionada pelo Estado.
Isso só é possível com o emprego da dor e do sofrimento, os quais servem
como mecanismos de instigação da memória dos seres humanos.

3 – O D IREITO P ENAL C OMO I NSTRUMENTO DA S OMBRA


JOEL BIRMAN17 aborda a questão da violência originada pela violência
do Estado e dos segmentos dominantes da sociedade. Essa cultura narcisista
é marcada pela impossibilidade de admirar o outro na sua singularidade,
enquanto o indivíduo está apenas preocupado com a sua própria exaltação.
Dessa forma, aparece um movimento quase canibalístico, fazendo sucumbir
a alteridade, sendo visualizada uma sociedade cada vez mais mimética, com
medo de reconhecer suas diferenças. Essa prática de totalização das massas,
ou seja, de submeter os homens aos desígnios de uma minoria,
desconsiderando suas individualidades, gera uma violência popular, que o
autor coloca como legítima, pois é uma característica de sobrevivência
frente à institucionalidade dos dispositivos de justiça e de polícia, que não
reconhecem os direitos de cidadania desses grupos.

15
CARVALHO, Salo. Memória e esquecimento nas práticas punitivas. In: Estudos Ibero-americanos. Revista
do Departamento de História. Porto Alegre: PUCRS, 2006, p. 63.
16
OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Piaget, 1999, p. 131.
17
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.

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Pode-se pensar, a partir de FOUCAULT, que a necessidade de poder é


inerente ao ser humano, sendo inevitável a submissão de uns em função dos
demais. Sob esse prisma, a lei funciona como instrumento de dominação
das massas, desconsiderando as individualidades e potencialidades de cada
ser. É exatamente isso que as ciências devem pensar e discutir, ou seja,
formas de mitigar essa aniquilação do outro e de reconhecer a existência de
diversas formas de ser e de viver.
Segundo BAUMAN, todas as sociedades produzem estranhos18, que são
considerados os responsáveis pela desorganização da rotina ordenada da
coletividade, os responsáveis pelo mal-estar da civilização, de forma que o
ordenamento penal lança seus olhares com intenção de retirar do convívio
social tais seres, causadores da poluição estética da “pureza”. Nesse sentido,
destaca o autor que, “quanto mais poderosos se tornavam os demônios
interiores, mais insaciável se fazia o desejo daquela maioria de ver o crime
punido e a justiça distribuída”19, referindo ser essa criminalidade a grande
preocupação dos bem-sucedidos economicamente, enquanto os demais,
marginalizados do mercado, ficam aquém da sociedade de consumo.
Um exemplo da anulação dos estranhos, referida por BAUMAN,
ocorreu de maneira intensa na fase inquisitorial20, quando o exercício do
poder, com intenção de controlar, conjuntamente, criminalidade comum e
heresia (crime de consciência), englobando, em suas tipificações, qualquer
oposição ao saber oficial21, aparece, principalmente, sob a forma da tortura
(considerada mecanismo idôneo para a obtenção de informações e,
principalmente, de confissão)22. Essa situação, bem como as punições e os
suplícios estudados por MICHEL FOUCAULT em “Vigiar e Punir”23, representa
a centralização do poder no corpo do indivíduo, materializado sob a forma
de grandes espetáculos de horror e mutilação.

18
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 27.
19
Idem, p. 58.
20
Segundo CARVALHO, “a fase inquisitorial compreende o período que se inicia com os Concílios de
Verona (1184) e Latrão (1215) e que ganha subsistência com as Bulas Papais de Gregório IX (1232)
e Inocêncio IV (1252), somente receberá incisiva crítica e reconhecida deslegitimação ao fim do
século XVII e início do século XVIII, quando a casta intelectual teórica e prática estrutura uma
abordagem desqualificadora do aparato gótico” (CARVALHO, Salo. Revisita à desconstrução do
modelo jurídico inquisitorial. In: Fundamentos da história do direito. WOLKMER, Antônio Carlos. 3 ed.
Belo Horizonte: Del Rey. 2005, pp. 4-31.
21
Ou seja, no aparelho inquisitorial, não era permitida qualquer forma de manifestação do outro,
do diferente, que colocasse em risco o poder da Igreja.
22
CARVALHO, Salo. Op. cit., p. 6/31.
23
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 26ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

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O exercício do poder é visível na tentativa dos segmentos dominantes


de impor uma ordem em conformidade com seus interesses, como muito
bem se verificou nos Estados totalitários, onde a intolerância à alteridade
atingiu, de forma direta, seu estágio máximo. É evidente, também, na atual
conjuntura do regime capitalista, utilizado como estratégia para maior
arrecadação de frutos e de capital. Conforme destaca FOUCAULT, as relações
de poder e de saber estão correlacionadas, de modo que os mecanismos de
produção, característicos das sociedades capitalistas, remetem-nos a
questionar sobre o poder e o saber instituídos de acordo com o melhor
proveito econômico para determinados blocos da sociedade24.
Mas por que a idéia de salvação é projetada sobre o Judiciário? E por
que essa projeção pode se tornar tão poderosa a ponto de impedir o
indivíduo de pensar outras soluções ao problema da violência que não a
punição aplicada pela pena?
LEGENDRE25 nos oferece uma direção quando analisa, em
profundidade, a história do Direito e o lugar que esse ocupa no inconsciente
coletivo. Sua análise faz pensar que se trata de algo maior que uma luta por
poder: trata-se do local ocupado pelo direito canônico, enquanto
representante de uma verdade sagrada e absoluta. Assim, aqueles por ele
autorizados a falar, os papas, falavam em nome do divino, e todos os
símbolos utilizados para consagração da verdade marcaram, no
inconsciente coletivo, o lugar do direito como algo sagrado, uma
representação numinosa na mente coletiva.
Portanto, mais intensa é a projeção, pois o local ocupado fica envolto
pelo sagrado, pelo mágico, pela participacion mistyque, forças que a mente
consciente não consegue combater.
Poderíamos pensar a questão como um jogo de luz e sombras entre
justos e criminosos, entre os que estão ao lado do Estado e seus
representantes e os que estão contra eles. Esta cisão é alimentada pelo
direito penal, sendo a exagerada criminalização de condutas um sintoma da
projeção da sombra coletiva. Os “justos” anseiam por identificar, punir e
afastar o inimigo, e desse anseio vemos surgir um direito penal do inimigo26.

24
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. Introdução: Microfísica do poder. FOUCAULT,
Michel. 21ed. São Paulo: Graal, 2005, p. XXI.
25
LEGENDRE, Pierre. O Amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1983.
26
JAKOBS, Günther; CANCIO-MELIÁ, Manuel. Derecho penal del inimigo. Madrid: Civitas, 2003.

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O direito penal atua em nossa sociedade como instrumento na


identificação de um inimigo, de um “bode expiatório”, em quem a projeção
de nossa sombra irá encontrar morada e, quanto mais intensa for a projeção
de um grupo em outro, mais intensas serão as reações.
O objetivo inconsciente da sociedade, através de leis mais severas e
uma maior criminalização de condutas, é o de identificar e afastar o
“inimigo”, colocando em um local seguro aquele que carrega nossas
projeções. E mais ainda: colocando-o em um local, em que, com certeza, esse
outro não terá oportunidade de modificar o papel que lhe é imposto pelo
grupo. A intenção seria então a manutenção da cisão e sedimentação do
local desse outro, que tem a função de aliviar o grupo de sua pesada sombra
coletiva.
Porém esse outro não desaparece, ao contrário, retorna sempre,
apresentando-se como algo onipresente e indestrutível. Rejeitando as
distorções, volta sempre ao conflito27, pois, sem esse outro, os “justos” não
existiriam.
As respostas excessivas apresentadas pelo direito apresentam-se
como um sintoma importante da sombra coletiva que encontra uma válvula
de escape. Quanto mais ela ameaça manifestar-se na psique individual,
mais pressão o coletivo exerce sobre o direito penal, para que ele ofereça
alívio às poderosas forças inconscientes.
Não soluciona o problema obviamente, porque, além de realizar essa
tarefa com ferramentas antigas e modelos ultrapassados, o direito penal
apenas oferece uma medida temporária de alívio. A sombra exige
reconhecimento, e a sua forma de manifestação se dá, em um primeiro
momento, pela projeção. Porém conhecê-la exige, no nível individual, que
ela possa ser reconhecida nesse outro e introjetada novamente, agora como
algo meu.
Quanto mais projeções se interpõem entre o sujeito e o mundo
exterior, tanto mais difícil para ele se torna perceber suas ilusões28. O direito
penal vive a ilusão de ser capaz de solucionar problemas que vão muito
além de sua compreensão e, com isso, acaba mantendo o coletivo

27
SAMUELS, Andrew. A política no divã: cidadania e vida interior. [Tradução Felipe José Lindoso]. São
Paulo; Summus, 2002, p. 193.
28
JUNG, CG. AION. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 7.

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infantilizado, em uma dependência que o exime das responsabilidades


sociais, uma forma perigosa de manutenção do poder.

R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998.
BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno. Volume II. Séculos XIX e XX. Vila
Nova de Gaia: Edições 70, 1990.
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.
_________________. Memória e esquecimento nas práticas punitivas. In: Estudos Ibero-
americanos. Revista do Departamento de História. Porto Alegre: PUCRS, 2006.
_________________. Revisita à desconstrução do modelo jurídico inquisitorial. In: Fundamentos
da História do Direito. WOLKMER, Antônio Carlos. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 26 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
JAKOBS, Günther; CANCIO-MELIÁ, Manuel. Derecho penal del inimigo. Madrid: Civitas, 2003.
JUNG, C.G. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1990.
_________________. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988.
_________________. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987.
LEGENDRE, Pierre. O Amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1983.
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. Introdução: Microfísica do poder.
FOUCAULT, Michel. 21 ed. São Paulo: Graal, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
_________________. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Editora Escala.
_________________. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Piaget, 1999.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal
Ferreira. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
SAMUELS, Andrew. A política no divã: cidadania e vida interior. [Tradução Felipe José
Lindoso]. São Paulo: Summus, 2002.
SILVA, Hélio R. A língua-geral da violência. In: A fenomenologia da violência. GAUER,
Gabriel; GAUER, Ruth M. Chittó (org). Curitiba: Juruá, 1999.
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.

139
QUEBRA-CABEÇAS – SOBRE EPISTEMOLOGIA,
CRIMINOLOGIA CRÍTICA E (VERDADEIRA)
RUPTURA DE PARADIGMAS
G ABRIEL A NTINOLFI D IVAN *

“Este juego de aproximaciones siempre parciales recuerda la


imagen de aquella milenaria leyenda india, en que a varios
ciegos se les pedía una definición de ‘elefante’ y cada uno de
ellos, tocando una parte distinta del cuerpo del animal, daba las
respuestas más extrañas: una pared con pelos, un tubo, una
cuerda, etc.” E. R. ZAFFARONI
Resumo: O presente trabalho visa estabelecer alguns pontos
iniciais de debate para uma discussão epistemológica da
Criminologia, a partir da indagação sobre sua (im)possibilidade
de se caracterizar enquanto reunião sistemática de saberes
díspares. Uma verdadeira perspectiva transdisciplinar se
impõe, acima de tudo, como frente de superação das lógicas
enraizadas no modelo moderno de completude meta-narrativa:
tanto o discurso dominante quanto as correntes críticas que até
hoje ganharam vazão terminam por se igualar no porte de uma
teleologia dramático-redentora e um determinismo analítico
diante do fenômeno criminal. A dificuldade na busca de meios
plausíveis para sistematizar essa transdisciplinaridade, contudo, a
enfraquece epistemologicamente e tende a lançá-la em um
vácuo discursivo.
Palavras-Chave: Criminologia crítica, epistemologia, sistema,
alteridade, paradigma científico

A verificação da existência de uma espécie de inconstância


epistemológica perene1, a pairar sobre a reunião de conceitos e teses que

*
Mestrando em Ciências Criminais pelo PPGCCrim da PUC-RS. Especialista em Ciências Penais.
Advogado.
1
CARVALHO, Salo de. “Criminologia e Transdisciplinaridade”. In: GAUER, Ruth Maria Chittó
(coord.) Sistema Penal e Violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 35-37.

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delineiam aquilo que se entende por Criminologia, já se encontra há muito


abandonada de sua condição de ponto nevrálgico para assumir a forma de
lugar comum.
Contrariamente a outros campos do saber, nos quais se pode
identificar com clareza, ou ao menos com certa nitidez, a dança dos
estamentos discursivos2, que, na ótica de KUHN, se deslocam entre a
condição de ciência normal (aquela passivamente aceita e imbricada na
cosmovisão que informa o modus vigente de “fazer” científico), ciência pré-
revolucionária (quando rupturas do modelo vão abrindo espaço para
significativas guinadas de rota) e ciência revolucionária (quando se torna
técnica e metodologicamente insuficiente a prática científica atrelada ao
modelo anterior, e se passa à aceitação do novo modelo, que se constituirá
em ciência normal dali para diante), na seara da Criminologia essa diretriz
parece ter deliberadamente abandonado o prumo.
A história dos mecanismos paradigmáticos, no que diz para com a
compreensão do fenômeno criminal e seu trato político criminal correlato,
prima por obedecer a uma lógica curiosa e diversa. Verifica-se uma
estagnação da normalidade científica nas mãos de uma estrutura de
autoritarismo emergencial-repressivo de ares medievalescos. Esta, por sua
vez, vai golpeada de forma cíclica por frentes antitéticas de crítica3, que,
jamais sendo realmente suficientes para alterar fatalmente o rumo do senso
comum teórico, contentam-se, por fim, em servir de aprimoramento e
bagagem técnica para a próxima leva crítica, assistindo à mantença do
controle discursivo pelo irrefreável impulso repressor4, cuja sina é o
perpetuar.

2
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva. 1978, p. 144.
3
“(...) no solo la estructura autoritaria se repite a lo largo de los siglos, sino que también se reitera la
estructura crítica del derecho penal autoritario, o sea que también se mantiene una estructura
originaria común a todas las críticas liberales al derecho penal autoritario”. ZAFFARONI, Eugenio
Raul. Origen y Evolucion del discurso critico en el Derecho Penal. Lectio Doctoralis. Universidad
Nacional de Rosario: EDIAR, 2006, p. 29.
4
“Com a ampliação da estrutura normativa incriminadora (direito penal máximo), a sofisticação
dos aparatos de controle da criminalidade e o aparecimento de novas técnicas e justificativas de
punição, fundamentalmente aquelas divulgadas pelos movimentos de lei e ordem e ‘tolerância
zero’ que compartilham, do ponto de vista ideológico, os mesmos ideais do positivismo
criminológico, o trabalho crítico se esvai. Encontra-se a criminologia crítica, em meio aos
mecanismos da punição a qualquer tipo de alteridade, em local de difícil acesso à sociedade”.
CARVALHO. Op. cit., p. 33.

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A partir do panorama traçado por LARRAURI5, sobre a caminhada da


Criminologia de matriz eminentemente crítica, desde seu estopim
acadêmico, nas décadas de 60 e 70 do século passado, podemos, facilmente,
perceber que tanto a estrutura normal quanto as extraordinárias - até hoje
tidas como tais - parecem confinadas na mesma moldura e reeditam em
meio a ela um conflito que, no fundo, ganha contornos de simulacro teórico.
Primeiramente, se faz saliente considerar que, ao que parece, grande
parte das propostas epistemológicas consideráveis para a Criminologia, ao
longo dos últimos 40 anos, se caracteriza enquanto declaradamente
contraparadigmática. Há uma notada facilidade para a deslegitimação
teorética do establishment, muito embora isso vá de encontro ao fato de que o
discurso do poder apenas vislumbra o diálogo acadêmico quando lhe
convém, e pode prescindir do aval dele quando quiser, uma vez que a
oxigenação kuhniana dos modelos científicos não abrange a fala
criminológica. Fora isso, salta aos olhos o contraste com a dificuldade
extrema em se viabilizar concretamente estruturas que ponham em prática
alguma mudança na práxis, ficando clara a contribuição da base crítica para
a manutenção do discurso oficial na condição dominante: sob a lógica
binária do prefixo anti6, que promove uma destruição artificial das
entranhas do poder, os prismas dissonantes transmutam-se em mera
perfumaria político-ideológica e terminam por fortalecer o sistema, dado o
contraponto necessariamente derrotista que empregam.
A questão pende por um fio de ganhar contornos psicanalíticos, vez
em que nos deparamos com um panorama crítico que destila uma fúria
severa contra o modelo normal, do mesmo modo que o idolatra por vias
transversas, quando não admite destroná-lo, sob pena do colapso interno de
seu núcleo utópico-ideal e de uma fuga completa de toda sua base: a
implementação crítica simplesmente não pode chegar ao topo e sabe disso.
Propostas alternativas e prismas emergentes, angariados como
possibilidades de otimização da visão defasada, não tardariam a
transmutar-se em dogmas cogentes, e a tendência à totalização parece ser o
mal latente de que sofre qualquer discursividade científica que porventura
atinja a instância superior da alternância tão bem enfatizada por KUHN7. O
enraizamento imobilizante sem dúvida nenhuma se revela um local

5
LARRAURI, Elena. La Herencia de la Criminologia Crítica. Madrid: Siglo Veintiuno de España, 2000.
6
ZAFFARONI. Criminología..., p. 9.
7
KUHN. Op. cit., p. 24.

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presumivelmente cômodo para o discurso coligado ao autoritarismo, mas


notadamente insuportável em relação à perspectiva crítica e aos propósitos
que lhe animam o sustento, apenas reforçando a tese de que ela nasce para a
não-concretização, de uma forma ou outra. A Criminologia extraordinária é
pródiga em respeitar o nome do seu Pai castrador vivificando a dinâmica
psicanalítica do supereu, que indica a renúncia ao gozo proibido e a
paradoxal mantença do desejo quanto ao objeto vetado como
condicionantes de movimento da engrenagem vital8.
Aliás, o resultado de um possível implemento sequer precisa ser
sugerido. Pode ser verificado in vitro: basta uma análise das diretrizes de
qualquer “escola” crítica do percurso para que se perceba que as derivações
contraparadigmáticas mais ferrenhas se portam como um simulacro de
discurso oficial. Carregam consigo os mesmos vícios insanáveis da
pretensão de completude própria da lógica dominante, materializando-se
porém, como uma espécie de negativo ou versão underground da teoria
standard em um processo neurótico silencioso de identificação com o
repressor, inebriadas, talvez pela mescla indissolúvel de ódio e amor da
hainamoration (prodigioso neologismo que aglutina os termos francófonos
de “ódio” - haine - e “amor”9). As nuances discursivas de pretensão de
superação inatingida(gível) e reprodução assemelham-se por demais à
concepção clássica de uma estrutura psíquica infantil marcada por uma
inafastável sombra edipiana.
Em outro aspecto, a comparação paternal pode ser abandonada e uma
metáfora de irmandade bastarda tem perfeito emprego: ambos discursos
sempre andaram lado a lado sob o manto do imperativo pensar causal10 e da
necessidade de farejar o rastro original do fenômeno criminal para abarcar
suas possibilidades e delas dar conta, na encenação das falaciosas
promessas do mundo newtoniano. Pontos de partida e chegada uniformes,
onde tanto as críticas que até agora emergiram como o discurso dominante
por elas pretensamente combatido deságuam no mesmo leito. A maquinaria

8
NASIO, Juan David. Os 7 conceitos cruciais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 130.
9
LACAN, Jacques. O seminário - livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, 2 ed. reimp., p. 122. (“A
imagem espetacular, funcionando como ideal inalcançável, constituirá o sujeito e suas relações de
amor e ódio - amódio – com os outros, numa tensão entre o conforto de sua imagem e a
agressividade decorrente de seu efeito dissonante”. MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a
Bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 15).
10
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005,
p. 48.

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da crítica como a conhecemos falhou grosseiramente na intenção de


promover qualquer dobra, eis que jamais procurou demover um dos lastros
modernos que a aprisionam junto à discursividade normal: a pretensão de
totalidade explicativa e a abrangência categórica universal que termina por
domesticar o diferente em prol de forçosos encaixes sistêmicos11. Já quanto à
construção dominante que (ainda) vigora, não há maiores dúvidas: não lhe
é preciso abandonar essa plataforma. Ali é o seu lugar por excelência, é sua
casamata invulnerável e eticamente despreocupada.
Ao crer estrondosa e retumbante a declarada “irreversibilidade” do
sumo das conclusões finais da agenda teórica da “reação social”12, as
correntes críticas transmutam a assertiva em sua pedra filosofal e assumiram
o papel de rei sem trono representante de um cataclismo que nunca causou
os prometidos abalos extra-acadêmicos, portando, sem saber, o vírus da
utopia meta-narrativa bem própria das fileiras adversárias. Diz-se que o
interacionismo simbólico proporcionou um “novo enfoque dramatúrgico”13
para a questão do desvio. Faltou aos seus profetas, talvez, a devida
importância a ser conferida ao núcleo da propositura: o termo enfoque. É
desesperador o modo como a busca pela superação estereotipada se perde
em meio a novos estereótipos e traz à baila, de forma perpétua, uma lógica
atraída para a busca por diretrizes de discussão criminológica
universalista14, sem se dar conta de que tudo o que é possível quanto ao
tema são modestas aproximações repletas, para cada micro-realidade, de um
número insuportável de variáveis de cunho social, cultural, político e
mesmo econômico.
Para todos os efeitos, no entanto, o tema se restringe
epidermicamente em múltiplas reedições da querela entre a ideologia

11
“A distância que medeia entre a timidez original grega e a ousadia moderna é a tradução do
impulso original do espírito ocidental em processo de trofismo: a redução do des-conhecido ao
conhecido, do diferente que se torna uma espécie entre outras espécies: modelo que, claro na
Modernidade, aponta para uma determinada direção do futuro. A História do Ocidente tem
consistido, em suas linhas mais amplas, na história dos processos utilizados para neutralizar o
poder desagregador do Diferente”. SOUZA, Ricardo Timm de. “O Século XX e a Desagregação da
Totalidade. A composição do Século XX filosófico: aproximações” in Totalidade & Desagregação.
Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p 18.
12
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Introdução à sociologia do Direito
Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002, pp. 112-114.
13
BEIRAS, Iñaki Riveira. “História e legitimación del castigo. Hacía donde vamos?”. In: BERGALLI,
Roberto (Coordinador y Colaborador). Sistema Penal y problemas sociales. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2003, pp. 115-115.
14
ZAFFARONI. Criminología..., p. 3.

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libertária da contracultura dos anos 60 frente à “perversidade” etiológica da


escola positiva15 e seus evidentes filhotes neo-defensivistas, que apregoam
artefatos bio-psicológicos para mascarar um direito penal do autor em seu
estado mais bruto16. Ao fim e ao cabo, a crítica típica e tristemente previsível
de que dispusemos até o instante não fez mais do que plagiar a
discursividade dominante, no momento em que pretende se imbuir de um
caráter respaldado exclusivamente por situar o mal do lado oposto.
Em meio a dezenas de revoluções que não destronam ninguém,
fanáticos postulantes de uma espécie de cadeira cativa teórica de contra-
golpe perdem tempo emulando, sorrateiramente, sua própria versão para o
delírio determinista. Seja invocando as estruturas sociais enquanto
coordenadoras do joguete do desvio (apregoando a falácia da opção única da
delinqüência para alguns indivíduos infra-estruturalmente localizados17), ou
mesmo estipulando uma virada de mesa inconseqüente e repleta de
contradições (para apregoar uma quixotesca lógica de conspiração das
agências de controle social focalizadas em uma convergente direção
criminalizadora coordenada18), vão reforçados os pilares de uma concepção
que verá nascer um criminoso nato19 em nova versão. Segue imperante uma
etiologia inconseqüente, em inúmeras concepções cujos traços
supostamente divergentes se mostram perfeitamente unívocos em carregar
em baixo do braço seu modelo particular de ator delinqüente tal um fantoche
sem voz prévia, que não é capaz de movimentos voluntários, e atua
somente em um cenário idealizado dentro das rígidas fronteiras da cartilha
que a tudo explica e ao mundo dá sentido.

15
BARATTA. Op. cit., p. 32.
16
REOLON, Liliane Christine. PLETSCH, Natalie Ribeiro. “O perverso entrelaçamento entre forma e
reforma: estude de caso”. In: A Crise do Processo Penal e as novas formas de Administração da Justiça
Criminal. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. CARVALHO, Salo de. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006,
p. 90.
17
“La teoria debe explicar las diferentes formas en que las exigencias estruturales son objecto de
interpretación, reacción o uso por parte de hombres ubicados en diferentes niveles de la
estructura social, de tal modo que hagan una elección esencialmente desviada”. TAYLOR, Ian,
WALTON, Paul, YOUNG, Jock. La nueva criminologia.Buenos Aires: Amorrortu editores, 1990, p.
287
18
LARRAURI. Op. cit., p. 168.
19
“Sigais com boa fé, por critério, o temor do culpado; por indício, os caracteres físicos e morais do
criminoso nato; e tereis a solução do problema relativo à tentativa, em termos da inércia culpável
seguida de morte que se deve punir quando se trata de um desses miseráveis”. GAROFALO,
Raffaele apud LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinqüente – tradução, atualização, notas e
comentários. Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Corbo Garcia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001,
p. 43

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Para uma verdadeira perspectiva de ruptura efetiva com as meta-


narrativas de caráter causalista e pretensioso, fundamental é,
primeiramente, a consciência de que tudo o que podemos são aproximações
(ZAFFARONI) ausentes de definitividade. E tudo do que temos em mãos é um
verdadeiro arsenal de partículas de saber, como se da visualização do
problema pudesse ser feito um jogo de quebra-cabeças que jamais formará
alguma imagem completa e provida de (inteiro) sentido, senão que estamos
fadados a conseguir resolver apenas recortes do enigma, sendo obrigados a
pequenos desmanches para que algumas das peças sejam utilizadas na
visualização de algo diverso no canto oposto da tela. Ao contrário da
funcionalidade usual do brinquedo, não dispomos de um número métrico
de peças capazes de, ajeitadas do modo correto, integralizarem a serena
fotografia de um castelo às margens do Reno, ou de um moinho holandês
cercado de tulipas.
Mister que, para um projeto de verdadeiro rompimento,
comprometido técnica, acadêmica, e sobretudo eticamente, abandonemos
essa histeria que pulsiona grosseiras reviravoltas teóricas para forçar
entendimentos conflitantes e amansá-los dentre linhas de pensamento que
não aceitam componentes transgressores em suas fileiras: é preciso se
acostumar com a idéia de que a magnitude facetária do fenômeno criminal
não permite um conhecimento teórico-geral, de nenhuma espécie. Isso
apenas reverberaria em limitação epistemológica se seguirmos raciocinando
de forma tributária ao caduco imperativo sistêmico moderno, que prefere
abandonar a prudência em prol de um conformismo mal-disfarçado, que
mitiga, tolhe perspectivas e procura uma inebriante tranqüilidade sedativa
na dissolução de diferenças20: assumir a debilidade de um projeto total abre
as portas para que se trabalhe com perspectivas que trazem como marca a
afirmação da complexidade.
A questão gira em torno da busca epistemológica por um local de
tangência entre os saberes, a ponto de manter os mesmos distintos e livres
tal e qual no seu exercício rotineiro e desmembrado, para que brindem um
arcabouço reconhecidamente criminológico com contributos resultantes de

20
“Tudo aquilo que entendemos por violência, em todos os níveis, do mais brutal e explícito à
violência coercitiva e socialmente sancionada do direito positivo, e, inclusive, a violência auto-
infligida, repousa no fato exercido de negação de uma alteridade”. SOUZA, Ricardo Timm de.
“Três teses sobre a violência: violência e alteridade no contexto contemporâneo – algumas
considerações filosóficas”. In: CIVITAS. Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001,
ano 1, número 2, p. 8

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um funcionamento a pleno vapor. Tarefa de elaboração teórica das mais


penosas, por certo.
Não se trata apenas uma novel opção em termos epistemológicos,
mas uma hipótese de movimento condizente com um desprender gradual
da onipotência da cosmovisão dramática da modernidade, em prol de uma
assunção criminológica da tragicidade que, assustadora (em sua
inapreensibilidade) ou não, permeia a vida. O paralelismo factível definitivo
entre os discursos críticos e ordinários com os quais convivemos, se dá,
acima de tudo, na similitude extrema com que ambos, de forma ingênua,
encaram suas próprias possibilidades: são ideários marcados pela “obsessão
do futuro, do projeto, da ação, em síntese, do domínio sobre a vida” dando
as costas à “aceitação do destino, o reconhecimento da existência pelo que é:
precária, finita, sempre submetida à inexorável lei da morte de tudo e de
todos”21.
A necessidade de ruptura com as forjas defasadas passa, inclusive,
por um próprio exame de consciência da perspectiva transdisciplinar, para
sedimentar a utilização e recepção de todo e qualquer aparato teórico com
possibilidade de utilidade como ferramenta, sob pena de uma postura
científica reacionária e incompatível com a propositura: não há como se
furtar de uma revisita a conceitos empoeirados, mesmo aqueles que
simbolizam instrumentais geralmente referentes às lógicas mais
inaceitáveis, eis que, diante de novas luzes, reside a possibilidade da
descoberta de novos contornos22.
Logicamente, não estamos olvidando e muito menos ignorando toda
a gama de dificuldades que aguarda uma proposta como essa logo à
próxima curva da estrada. Talvez como estratagema de recuo diante das
diminutas possibilidades da presente contribuição, implicando um misto de
humildade e covardia, vai reservado para o momento final da reflexão o seu
ponto mais tormentoso.
A sanha sistêmica é nosso vício filosófico. Como conseqüência de
nossa moldagem intelectual na matriz da causalidade e do fanatismo

21
MAFFESOLI, Michel. O Instante Eterno. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo:
Zouk, 2003, p. 58.
22
“Por qué es crítico recuperar la pregunta causal? Se afirma, em primer lugar que no existe
ninguna pregunta ilegítima em el ámbito de las ciências sociales, por conseguiente es lícito
interrogar-se el por qué la gente realiza determinados comportamientos”. LARRAURI. Op. cit., p.
204.

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mecanicista, incubamos, no âmago de nossa visão das coisas, uma idéia


inafastável de busca romântica por um final redentor para todas nossas
empresas23. Somos permeados por um estratagema inato que simplesmente
não se mostra apto a digerir a idéia da incerteza. Cedo ou tarde nosso sim
trágico (MAFFESOLI) pende para a desestabilização insuportável e tornamos
a buscar nosso sedativo nas metas calculadoras e garantidoras de resultados
linearmente estáveis: o sistema se impõe.
Fugir à lógica sistêmica parece ser o grande atestado de
impossibilidade de implemento de uma proposta transdisciplinar. Já aderir
a uma sistemática implicaria em um aparar de arestas fundamentalmente
esterilizante para com os saberes tratados, para uma acoplagem cooperativa
farsante dos mesmos, ou, ainda, resultaria na prevalência de um saber
sistematicamente mais consistente, que agiria suplantando as pontas-de-
lança que lhe são mais flagrantemente contrárias dos outros saberes
conjuntos, sob a fictícia preocupação de integrar seus elementos.
CARVALHO24 sintetiza o panorama na expressão “dogmatização da
transdisciplinaridade”.
A análise da questão sob a influência dos ventos nietzscheanos,
fundamentalmente no que diz para com sua concepção de “vontade de
sistema” (uma crítica epistemológica aguda do paradigma da ciência
moderna encurralado pela sistemática) só traz mais apreensão quanto às
possibilidades de vislumbrar uma saída para o problema: a vida é
permeada por uma total ausência de universalidade ético-valorativa25, o que
faz com que toda e qualquer pretensão sistêmica esbarre em um voluptuoso
aprisionamento, ou, mais claramente, em uma grossa absorção de alguns
valores por outros, na medida em que o tornar-se o que se é de uns
invariavelmente anula os demais, em um certo aspecto. Acastelar
pretensões díspares sob a justificativa de alcançar vetores comuns é fonte
presumível de geração e incubação de problemas teóricos notáveis. Não há
como ignorar as brutais diferenças entre os aparatos epistemológicos que
compõem ou ajudam a compor o que entendemos por Criminologia.
Em não havendo sistema, há, pois, o que? A (mera) noção de
Criminologia como campo de confluência de saberes não parece se bastar em si,

23
ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político.Uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997, p. 132.
24
CARVALHO. Op. cit., p. 26.
25
ANSELL-PEARSON. Op. cit., p. 110.

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eis que ela precisa ser afirmada de algum modo: uma análise mais drástica
pode identificar nessa pretensão um verdadeiro emaranhado caótico e
impraticável, e sentenciar que, no momento em que a Criminologia é –
epistemologicamente – tudo, é o mesmo que dizer que ela não é nada. Ou
ainda: que ela simplesmente não é.
A pergunta quanto à possibilidade ou não de existirem condições de
implemento de uma lógica transdisciplinar e eminentemente assistemática
parece ser a mesma pergunta sobre a condição (ou não) da própria
existência autônoma de uma criminologia.

B IBLIOGRAFIA
ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político. Uma introdução. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1997.
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150
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SOUZA, Ricardo Timm de. “O Século XX e a Desagregação da Totalidade. A composição


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_______________________“Três teses sobre a violência: violência e alteridade no contexto
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Doctoralis. Universidad Nacional de Rosario: EDIAR, 2006.

151
A EMERGÊNCIA NO CORAÇÃO DA
NORMALIDADE: SOBRE O CONCEITO DE
INIMIGO CONSTRUÍDO NAS FENDAS DO
ESTADO DE DIREITO
M OYSÉS DA F ONTOURA P INTO N ETO *

Resumo: O presente paper trava uma investigação acerca do


local onde Günther Jakobs procurou o intervalo na ordem
jurídica para então lançar seu Direito Penal do Inimigo,
enquanto uma espécie de Estado de Exceção. Procura-se
demonstrar, nesse sentido, que é no conceito de pessoa que se
situa essa fenda, expondo a limitação do discurso estritamente
jurídico-constitucional para enfrentar a problemática.
Palavras-Chave: Inimigo – Constituição – Estado – Exceção –
Pessoa – Força – Lei – Racionalidade

I – APRESENTAÇÃO DO TEMA
A publicação de GIORGIO AGAMBEN, Estado de Exceção, tem gerado
significativas e relevantes discussões, especialmente nos meios filosóficos e
jurídicos. Ao propor, na esteira de WALTER BENJAMIN, que o estado de
exceção perdeu seu caráter de emergência e passou a se constituir, na
realidade, a normalidade, AGAMBEN problematiza uma série de questões
que ainda não foram tratadas no âmbito jusfilosófico.
A sistematização do Direito Penal do Inimigo, formulada por GÜNTHER
JAKOBS, representa, de certa forma, sintoma de que as ponderações de
AGAMBEN encontram eco na situação atual. A partir de uma cisão conceitual
entre cidadão e inimigo, Jakobs pretende a criação de dois Direitos Penais,
um dirigido ao cidadão – com as devidas garantias e direitos
constitucionalmente assegurados –, outro destinado aos inimigos, a quem

*
Especialista e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do RS.

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seria conferido tratamento de guerra. Segundo JAKOBS, estes não disporiam


do caráter de “pessoa”, sem fazer jus, por isso, aos direitos e garantias
assegurados nas legislações.
Ao propor a criação de um Direito Penal do Inimigo, a meu ver, JAKOBS
está a admitir a existência de uma “duplicidade” permanente no
ordenamento jurídico, permitindo que funcionem, simultaneamente, um
Estado de Direito e um Estado de Exceção. O Direito Penal do Inimigo,
assim, seria a emergência instalada – paradoxalmente, de forma permanente
– no “coração” da ordem jurídica.
Como, no entanto, pode legitimar JAKOBS um Direito Penal do Inimigo
diante da imperatividade dos textos constitucionais no mundo ocidental,
que garantem a universalidade dos direitos humanos? Ou, por outro lado,
como instalar a exceção no coração de normalidade, tornando
indistinguíveis uma e outra? Por fim: será que o discurso jurídico-
constitucional é suficiente para impedir o avanço do Direito Penal do
Inimigo? Essas são as perguntas que, a partir de uma leitura ainda inicial da
obra de GIORGIO AGAMBEN, se pretende responder1.

II – O E STADO DE E XCEÇÃO E A F ORÇA DE L EI


WALTER BENJAMIN, na sua Oitava Tese sobre a História, ao afirmar que o
estado de exceção deixou de ser exceção e passou à condição de regra,
abriu, segundo GIORGIO AGAMBEN, a possibilidade de repensarmos o estado
de exceção não apenas enquanto técnica de governo, em contraposição à
idéia de uma medida extrema, mas também enquanto elemento constitutivo
da ordem jurídica2. A problemática se torna atual e intensa se
considerarmos medidas como, por exemplo, o USA Patriot Act, promulgado

1
As novas perspectivas abertas por AGAMBEN, ao prosseguir o estudo da biopolítica a partir do
ponto em que MICHEL FOUCAULT parou, na realidade, abrem um leque de problemas que
poderiam convergir para uma análise da teoria do Direito Penal do Inimigo. Bastaria, para tanto,
pensar na relevância da questão do homo sacer, enquanto matável e insacrificável, vida nua que
vive na indeterminação constitutiva do estado de exceção e se apresenta como o objeto da
soberania, cujas imbricações, por óbvio, remetem ao conceito de Inimigo. Da mesma forma, a
perspectiva do “campo” enquanto paradigma biopolítico, “localização deslocante”, seria útil para
perceber em que consistiria a “sociedade funcional” percorrida por um Direito Penal do Inimigo
(AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004, pp.
89-94 e 173-183). Tais considerações, embora absolutamente pertinentes, extrapolariam os limites
desse paper, que se limita a indagar onde juridicamente procurou JAKOBS uma fratura no
ordenamento, de forma a poder jogar, nesse preciso intervalo, o Direito Penal do Inimigo.
2 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 18.

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em 2001, que confere ao Executivo uma série de poderes de forma a,


inclusive, anular o estatuto jurídico dos “combatentes inimigos”, numa
espécie de dominação fora da lei e do controle judiciário, puramente fática,
comparável apenas ao estatuto dos judeus durante o nazismo3.
O Estado de Exceção representa, assim, um ponto de desequilíbrio
entre o jurídico e o político, uma “franja ambígua e incerta”4, cujo problema
central seria o significado jurídico de uma ação em si extrajurídica5.
Consistindo em uma suspensão da norma, esta não se vê abolida e a zona
de anomia instaurada não é destituída de conotação jurídica – trata-se, em
síntese, de uma “zona de indiferença” em que o dentro e fora não se
excluem, mas se indeterminam6.
A tentativa mais rigorosa de construir uma teoria do Estado de
Exceção veio de CARL SCHMITT. Seu objetivo fundamental era, segundo
AGAMBEN, a inscrição do estado de exceção num contexto jurídico. Tratar-
se-ia de uma inscrição paradoxal, à medida que se pretende inscrever no
Direito algo externo a ele; algo que significa nada menos que a suspensão
da própria ordem jurídica7.
O operador fundamental, em Politische Theologie, para efetivar a difícil
ligação que Schmitt pretendia concretizar era a distinção entre dois
elementos: a norma (Norm) e a decisão (Entscheidung, Dezision). Mesmo
suspendendo a norma, o estado de exceção manteria intacto, na mais
absoluta pureza, um elemento formal jurídico: a decisão. Os dois elementos,
norma e decisão, manteriam autonomia. O espaço topológico do estado de
exceção, por isso, é um “estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer”8.

3
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 14. Ver, ainda: CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de
Drogas no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 63-77 e AGAMBEN, Giorgio. Bodies
without words: against the biopolitical tatoo. Disponível em: <http://www.germanlawjournal.com.>
Acesso em 08.06.2007.
4
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 11.
5
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 24.
6
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 39. “A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso
singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza a exceção é que aquilo que é
excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta
se mantém em relação com aquela na forma de suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-
se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a
situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o
étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída” (AGAMBEN, G. Homo Sacer, p. 25).
7
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 54.
8
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, pp. 56-7.

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A partir dessa distinção, é possível perceber uma fenda entre a norma


e sua aplicação. Na leitura de CARL SCHMITT, o estado de exceção expõe o
momento de maior oposição entre a vigência formal e aplicação real. Nessa
zona extrema, ou em virtude dela, os dois elementos mostrariam sua íntima
coesão9.
É nesse momento que AGAMBEN, com as ponderações de SCHMITT,
pode referir as reflexões de JACQUES DERRIDA no seu seminário “Force de
loi: le fondement mystique de l’autorité”10.
A força de lei seria distinguida, tecnicamente, da mera eficácia.
Enquanto esta revelaria apenas a produção de efeitos jurídicos, a força de
lei, ao contrário, significaria a posição da lei em relação a outros atos do
ordenamento jurídico, dotados de força superior (p.ex., a Constituição) ou
inferior (p. ex., Decretos) a ela. O determinante, no entanto, é que a
expressão “força de lei”, tecnicamente, refere-se não à própria lei, mas
àqueles decretos que o Poder Executivo pode, em alguns casos, promulgar,
com - como diz a própria expressão - “força de lei”. Ou seja: há uma
separação entre a aplicabilidade da norma e sua essência formal, à medida
que os decretos, embora formalmente não tenham partido do Poder
Legislativo, ganham uma excepcional “força”11.
Assim, do ponto de vista técnico, o essencial no estado de exceção não
é a confusão entre os Poderes, Legislativo e Executivo, porém especialmente
a separação entre lei e “força de lei”. Essa força é isolada, definindo um
quadro em que a lei formal, embora ainda em vigor, não tem aplicabilidade;
e, de outro lado, atos não-legislativos adquirem idêntica “força”12.

9
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 58.
10
Nesse ensaio, o dado fundamental trazido por JACQUES DERRIDA parece ser o “fundamento
místico” do Direito, que se dá na origem da lei, pois esta não pode se apoiar senão na violência
fundadora, o que não significa que seja “injusta” ou “ilegal”, mas que não é nem um nem outro no
momento da sua fundação, excedendo, na realidade, essas circunstâncias. Isso, no entanto, não nos
remete à irracionalidade, mas a uma possibilidade de desconstrução permanente do Direito, dada
sua natureza contingente. É no intervalo entre a desconstrutibilidade do Direito e
indesconstrutibilidade da justiça que se daria a desconstrução. Ver: DERRIDA, Jacques. Força de Lei.
Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 24-28. Conferir, ainda: SOUZA,
Ricardo Timm de. Razões Plurais: itinerários da racionalidade ética no Século XX. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004, pp. 130-166.
11
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 60. “O particular ‘vigor’ da lei consiste nessa capacidade
de manter-se em relação com uma exterioridade. Chamemos de relação de exceção a esta forma
extrema da relação que inclui agora alguma coisa através de sua exclusão” (AGAMBEN, Homo
Sacer, p. 26).
12
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 61.

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Trata-se, portanto, de um espaço anômico: o que está em jogo é uma


força de lei sem lei, ou, como grifa AGAMBEN, “força de lei13”. Utilizando as
expressões aristotélicas, “potência” e “ato” estão separados radicalmente,
por uma espécie de elemento místico, uma ficção que na qual o direito
atribui a si próprio sua anomia14.
A distância que separa, por isso, a norma da sua aplicação é mediada
pelo estado de exceção. Para aplicar uma norma, é necessário suspender sua
aplicação, produzindo uma exceção. Cuida-se, por isso, de “uma violência
sem logos”15, produzida no interior da ordem jurídica sem que tenha se
maculado a vigência formal das normas emanadas do Poder Legislativo. É
nesse espaço anômico que, por exemplo, nazismo e fascismo se construíram,
à medida que HITLER e MUSSOLINI não podem ser considerados ditadores,
pois não romperam com as Constituições então vigentes, apenas fazendo-as
acompanhar uma estrutura dual, não formalizada juridicamente, mas
justificada por meio do estado de exceção16.

III – A E XCEÇÃO TORNADA R EGRA : A C RÍTICA DE B ENJAMIN


A S CHMITT

Enquanto a tese de SCHMITT pretendia capturar a violência para o


interior do Direito, que se aplicaria na sua exclusão, WALTER BENJAMIN, em
direção oposta, visava a perceber uma violência (Gewalt) “fora” ou “além”
do Direito, quebrando a dialética entre a violência que funda e a que o
conserva17.
O caráter particular dessa violência seria o de depor o Direito,
inaugurando, assim, uma nova época histórica. Enquanto SCHMITT
procurava inscrever a violência na ordem jurídica, mediante o estado de
exceção, BENJAMIN trata o fato como violência pura, propugnando pela
indecidibilidade geral dos problemas jurídicos. A função do soberano, para
BENJAMIN, não seria a de inscrever o estado de exceção na ordem jurídica;
mas sim excluí-lo18.

13
Tachado.
14
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 61.
15
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 63.
16
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 76.
17
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 84.
18
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, pp. 86-7.

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Dessa forma, a alteração de BENJAMIN resulta substancial em relação à


tese de SCHMITT: na distância entre a norma e sua aplicação, que antes dava
lugar à decisão, existe uma fratura que divide o corpo do Direito e o torna
irrecuperável, situando-o no limiar da indecidibilidade. Com isso, o estado
de exceção não se situa mais na articulação de um “dentro” e “fora”. Ele é,
ao contrário, uma região de absoluta indeterminação entre anomia e Direito,
em que as esferas de criação e da ordem jurídica são arrastadas na mesma
catástrofe19.
Finalmente, na Oitava Tese sobre a História, BENJAMIN afirma que a
tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de emergência” em que
vivemos é a regra, devendo-se chegar a um conceito de história que
corresponda a isso20. Isso seria algo que SCHMITT não poderia admitir, pois,
quando a exceção se torna a regra, a máquina não pode mais funcionar21.
Exceção e regra, por isso, se tornam indiscerníveis; não há senão uma zona
de anomia em que age uma violência sem roupagem jurídica. Nas palavras
de AGAMBEN, “a tentativa do poder estatal de anexar-se à anomia por meio
do estado de exceção é desmascarada por BENJAMIN por aquilo que ela é:
uma fictio iuris por excelência que pretende manter o direito em sua própria
suspensão com força de lei”22.

IV – O D IREITO P ENAL DO I NIMIGO ENQUANTO E XCEÇÃO


P ERMANENTE
A tese de GÜNTHER JAKOBS, hoje em dia, é amplamente conhecida.
Segundo JAKOBS, a manutenção da sociedade tal como configurada
depende, essencialmente, de um cumprimento razoável das “expectativas
normativas”. Dessa forma, o indivíduo que se comporta de modo
totalmente contrafático, voltando-se constantemente contra o ordenamento
jurídico, não pode receber o mesmo tratamento dos demais. Um déficit
muito significativo de “segurança cognitiva” poderia pôr em xeque a
vigência da própria norma. Nesse caso, o indivíduo ameaça a própria

19
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, pp. 88-89.
20
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 90.
21
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 91.
22
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 92.

158
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estrutura social, eliminando das expectativas cognitivas dos demais em


relação à norma23.
Por isso, o Direito Penal deveria contar com dois “pólos”: de um lado,
o tratamento concedido ao cidadão, orientando-se pela culpabilidade; de
outro, as medidas que seriam aplicadas contra o inimigo, baseadas na sua
periculosidade, em pé de guerra, tratando-se de “eliminação de perigo”24.
Os direitos humanos, pondera ainda JAKOBS, não seriam óbice para a
implementação do Direito Penal do Inimigo: é preciso ver que nenhum
Estado conseguiu estabelecer de forma integral esses direitos. Assim, na
realidade, o inimigo representaria um obstáculo ao exercício dos direitos
humanos. Logo, diante do estado de insuficiente “pacificação interna”,
legitimar-se-ia que, diante daqueles que se orientam de forma puramente
contrafática, o Estado atuasse belicamente, interceptando-os pela sua
periculosidade, já25.
Vê-se, portanto, que a tese de G. JAKOBS pode ser vista como tentativa,
tal como ocorrera com SCHMITT, de inscrição no jurídico da ordem da
exceção. Ao estabelecer uma constante tensão entre “cidadão” e “inimigo”,
JAKOBS pretende estabelecer, no interior de um ordenamento jurídico
constitucional, uma fissura que provocaria um tratamento de suspensão do
direito quando se estaria diante do Inimigo.
Onde estará localizado o termo que permite a JAKOBS propor – apesar
da estrutura constitucional em que está historicamente situado – a
(re)introdução do conceito de Inimigo? É necessário que haja um intervalo
onde a distância entre Inimigo e Cidadão se inscreve no Direito, sem, com
isso, abdicar da vigência formal da Constituição. Onde se poderia
identificar essa “saída”?
Na nossa leitura, é precisamente o conceito de pessoa que permite a
JAKOBS propor esse intervalo entre Direito Penal do Inimigo e as normas
constitucionais, deixando-as em suspenso. A ficcional “necessidade”, que
AGAMBEN identifica não ser o traço determinante do estado de exceção, é
justificada na “ausência de pacificação interna”. Mas essa digressão deverá
passar, exatamente, por como é possível “esvaziar” o significado do termo

23
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. In: Direito Penal do Inimigo:
Noções e Críticas. JAKOBS, Günther & MELIÁ, Manuel Cancio.Trad. Nereu Giacomolli e André
Callegari. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 22-23.
24
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, p. 37.
25
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, p. 42-44.

159
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“pessoa”, previsto no texto constitucional, para, nesse espaço entre norma e


aplicação, fundar-se um Direito Penal do Inimigo.
A “pessoa”, segundo JAKOBS, passa a ser um conceito normativo26. A
sociedade seria um arranjo configurado, construída a partir de um contexto
comunicacional. A identidade desse contexto seria mantida, por isso, não
como um “estado”, mas simplesmente por meios das regras de
comunicação27. Rechaçando as construções que oporiam subjetividade
concreta e socialidade, JAKOBS afirma que é equivocado contrapor-se as
condições de constituição de subjetividade às condições de constituição da
socialidade (“aqui liberdade” versus “aqui socialidade”), pois sem uma
sociedade em funcionamento não há condições empíricas da subjetividade28.
A perspectiva da sociedade funcional, por isso, seria “neutra”: não há como
se objetar, a priori, que ela possa formar um Direito Penal do Terror; ela
apenas dá conta do funcionamento da autoconservação do sistema social29.
Nesse contexto, a pessoa entra enquanto um papel a ser
desempenhado. Segundo ele, “pessoa é a mascara, vale dizer, precisamente
não é a expressão da subjetividade do seu portador, ao contrário é a
representação de uma competência socialmente compreensível”30. Assim, a
pessoa não se identifica com a sua subjetividade; é no arranjo de
expectativas sociais institucionalizadas que ela se forma.
JAKOBS ainda argumenta que, na relação de “comunicação pessoal”,
que supera a “comunicação instrumental” por pressupor a constituição
formada em sociabilidade, o mundo se forma – do eu ao outro – com base

26
Um curioso paralelo da limitação do conceito “normativo” de pessoa na releitura kantiana de
Jürgen Habermas para dar conta dos problemas suscitados pela biopolítica contemporânea
encontra-se em PONTIN, Fabrício. Biopolítica, Eugenia e Ética: uma análise dos limites da intervenção
genética em Jonas, Habermas, Foucault e Agamben. Dissertação apresentada no PPG em Filosofia da
PUCRS. Porto Alegre, 2007, pp. 52-57.
27
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa. Trad. Maurício Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003,
pp. 10-11.
28
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, pp. 14-15. Do que, diga-se de passagem, não se
discorda de JAKOBS. É inviável retornar-se à idéia de “sujeito em grau zero” inaugurado,
fundamentalmente, pelo Cogito cartesiano. O horizonte é completamente distinto no Dasein
heideggeriano, que se constitui a partir de mundo, está lançado (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.
Trad. Maria Schuback, Petrópolis: Vozes, 2006, pp. 106-109); ou, por exemplo, na reconstrução das
relações entre sociedade e indivíduo demonstrada por NORBERT ELIAS (ELIAS, Norbert. A Sociedade
dos Indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar, 1994, pp. 13-59). O que não nos leva, contudo, a
concordar com as conclusões que Jakobs retira dessa premissa.
29
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 20.
30
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 30.

160
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em normas sociais em sentido estrito, que, se infringidas, representam a


tomada de posição em uma configuração de mundo que exonera o outro31. É
na relação de normas, por isso, que se constitui a relação entre sujeitos; elas,
na realidade, são o “mundo objetivo”. Nesse – e a partir desse – cenário, os
sujeitos aparecem como portadores de funções, ou pessoas. Do ponto de
vista da sociedade, portanto, não são as pessoas que fundamentam a
comunicação pessoal a partir de si mesmas, mas a comunicação pessoal que
define os indivíduos enquanto pessoas32.
A construção de JAKOBS, por isso, chega à sua síntese na seguinte
frase: “O correspondente complexo de normas é o que constitui os critérios
para definir o que se considera uma pessoa”33.
Ora, uma vez definida a pessoa enquanto “complexo de normas”,
cujos critérios de definição cabe ao poder político definir, JAKOBS está
certamente abrindo uma fenda por onde se infiltra o estado de exceção. É
com base na idéia de que o “inimigo não é pessoa”, pois se orienta de forma
totalmente contrafática, que recusa a aplicação de quaisquer direitos a ele34.
Sua tese pode ser resumida à seguinte passagem:
“Portanto, o Estado pode proceder de dois modos com os
delinqüentes: pode vê-los como pessoas que delinqüem, pessoas
que tenham cometido um erro, ou indivíduos que devem ser
impedidos de destruir o ordenamento jurídico, mediante coação.
Ambas perspectivas têm, em determinados âmbitos, seu lugar
legítimo, o que significa, ao mesmo tempo, que também possam
ser usadas em um lugar equivocado”35.
Jakobs, portanto, infiltra mediante um “esvaziamento” do conceito de
pessoa, normatizado, a possibilidade de instauração de um regime de
exceção, no qual caberá ao soberano distinguir entre quem deve e quem não
deve ser tratado como pessoa36. Com isso, visivelmente estamos diante da

31
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 54.
32
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, pp. 55-56.
33
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 57.
34
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, pp. 47-48.
35
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, p. 42.
36
É aqui, propriamente, que começaríamos nossa análise para demonstrar o verso da moeda que
alimenta o estado de exceção, conforme AGAMBEN: o homo sacer. É no poder biopolítico de dizer
quem é matável e insacrificável que esbarram as concepções normativas de pessoa. A
problemática ganha ainda maior densidade – e exige estudos futuros – se analisarmos
propriamente quem poderia desempenhar o papel de homo sacer nas sociedades contemporâneas,
ainda mais se adotarmos a conceito normativo-comunicacional de pessoa de JAKOBS. Procuramos

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antevisão de Benjamin: o estado de exceção torna-se regra, à medida que a


distância entra a lei (direitos fundamentais) e a aplicação (definição de
quem é inimigo) passa apenas por uma decisão com “força de lei” do
soberano que instaura, no coração da normalidade, a exceção. Mesmo a
decisão que cataloga o indivíduo como “pessoa” ou “cidadão” igualmente
passa pelo estado de exceção, que tem o efeito duplo e, com isso, se torna
regra. Na medida em que existente a cisão entre Direito Penal do cidadão e
Direito Penal do Inimigo, inexoravelmente se instaura a exceção total, à
medida que toda e qualquer decisão em torna da aplicação de uma lei
estatuída passará pelo crivo do soberano, a quem incumbe aplicar a lei. E,
como mostrou AGAMBEN, é exatamente nessa distância que se instaura o
estado de exceção.

V – C ONTRAPONDO R ACIONALIDADES
“A exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de
todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras
que creio não ser possível nem necessário justificá-la” (THEODOR
ADORNO, “Educação após Auschwitz”).
Diante do conceito de pessoa proposto por JAKOBS, verifica-se que o
discurso constitucional, por si só, não é suficiente para rebater seus
argumentos. Jakobs, provavelmente, ao ler o inciso III do art. 1º da
Constituição Brasileira, que afirma a dignidade da pessoa humana, não
hesitaria em afirmar que o inimigo não se trata de “pessoa”.
Cuida-se, como já expusemos atrás, de uma “fenda” construída nas
bordas do Estado de Direito. Ao propor um conceito normativo de pessoa,
que perde seu sentido concreto e passa a funcionar apenas como elemento
de um sistema, JAKOBS esvazia o texto constitucional, criando um
“intervalo” onde o Direito Penal do Inimigo é construído. Se adotado, esse
“ordenamento” diferenciado constituiria, na realidade, a própria exceção
mergulhada no coração da normalidade.
A proposta de JAKOBS, portanto, muito se assemelha à descrição de
Agamben: mantendo-se a vigência formal das normas (constitucionais ou

abordar parte da problemática em NETO, Moysés da F. Pinto & BINATO JR., Otávio. Da Exclusão ao
Inimigo: o Direito Penal do Inimigo enquanto estratégia de engenharia social contemporânea. Porto
Alegre: Mimeo, 2007.

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não, pois a ruptura com a ordem jurídica é integral37), coloca-se em suspenso,


distanciando a lei da lei que na realidade é aplicada (o que, sem sutilezas, é
proposto como guerra).
A contraposição ao Direito Penal do Inimigo, por isso, deve ser
confrontada em um nível meta-constitucional38, ou seja, a partir da “forma de
racionalidade”39 que orienta o escrito de GÜNTHER JAKOBS40. A lógica
funcionalista – produto de um pensamento tecnicista ao extremo e sem
qualquer preocupação com uma razão ética – não passa, em absoluto, por
um crivo crítico que contraponha suas premissas, demonstrando que se

37
Trata-se da questão que levou vários ensaios a considerar que o Direito Penal do Inimigo não
pode ser “Direito”. Aliás, se aceitarmos a observação de FARIA COSTA no sentido de que o Direito
é “ordem de paz”, é impossível encontrarmos espaço para que, ele próprio, Direito, seja a guerra
declarada. Ver: SOUZA, Ricardo Timm de. The Thinking of Levinas and the Political Philosophy: Global
state of exception and ethical challenges. Inédito.
38
O que não significa estarmos afirmando uma possível constitucionalidade do Direito Penal do
Inimigo. Trata-se, apenas, de criticar a insuficiência argumentativa da retórica de índole jurídico-
positivista, ainda que a partir de normas constitucionais.
39
Nesse sentido, confira-se D’ÁVILA, Fábio Roberto. O Inimigo no Direito Penal Contemporâneo:
algumas aproximações desde o contributo crítico de um Direito Penal de base onto-antropológica. In:
Sistema Penal e Violência. Org; GAUER, Ruth M. C. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. O artigo
contrapõe a racionalidade instrumental do funcionalismo do Direito Penal do Inimigo a uma
racionalidade de fundamento onto-antropológico do cuidado-de-perigo, que inviabilizaria a
construção daquele sistema. O fundamento onto-antropológico, aliás, poderia ser descrito com as
seguintes palavras de Faria Costa: “A relação onto-antropológica do cuidado-de-perigo
desempenha o papel e é uma estrutura capaz de dar sentido à pena. Se a relação do ‘eu’ para com
os outros é desvirtuada ao ponto do aniquilamento ou violação dos valores essenciais, a relação
primária e original que o ‘eu’ estabelece com a comunidade, erigida em Estado e detentora do ius
puniendi, impõe a agressão à esfera personalíssima do ‘eu’, pois só assim se refaz aquela relação
primitiva de ‘eu’ para com os outros. Todavia, na tensão que ininterruptamente se estabelece
entre o ‘eu’ infrator e o detentor do ius puniendi, é preciso salientar que aquele ‘eu’ em caso algum
pode ser degradado à condição de res. Aquilo que nunca lhe pode ser retirado é a sua qualidade
de ser-aí diferente responsável para com o cuidado de si – porque qualquer violação do cuidado
originário para com os outros é também ruptura para com o cuidado que originalmente temos
para com o nosso existir individual e coletivo – como também responsável para com o cuidado
dos outros” (FARIA COSTA, José Francisco de. O Perigo em Direito Penal (contributo para a sua
fundamentação e compreensão dogmáticas). Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 384-5).
40
É nesse sentido que estamos trabalhando na Dissertação de Mestrado a ser apresentada,
confrontando o pensamento lógico-funcional de JAKOBS, formado a partir de uma racionalidade
instrumental, com a exigência do reconhecimento e não-indiferença em relação à alteridade,
mediante uma racionalidade ética. Para tanto, nosso trabalho se apóia, fundamentalmente, na
utilização da desconstrução de J. DERRIDA, a fim de expor os elementos logocêntricos e a violência
de redução do Outro na obra de JAKOBS, seguindo-se uma proposição de reconstrução das
relações corrompidas (cidadão/inimigo) pela ética da alteridade de EMMANUEL LÉVINAS, no
horizonte da hospitalidade.

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trata, na realidade, de um projeto que poderia redundar em circunstâncias


já vividas – e cuja repetição é dever de todos evitar.
Tanto no ponto de partida – de uma racionalidade fechada, sistêmica
e desvinculada da concretude do tempo e do Outro –, quanto no ponto de
chegada – os efeitos concretos que seriam gerados, especialmente se aplicada
no nosso contexto brasileiro –, a construção de JAKOBS padece de
consistência, representando apenas a assunção de uma posição inaceitável -
lançada no mundo real e não no das abstrações teóricas –, perante a qual
esperamos que o nosso dever de memória41 seja capaz de nos resguardar.

B IBLIOGRAFIA
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG,
2004.
_______. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
_______. Bodies without words: against the biopolitical tatoo. Disponível em:
<http://www.germanlawjournal.com>. Acesso em 08.06.2007.
CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.
D’ÁVILA, Fábio Roberto. O Inimigo no Direito Penal Contemporâneo: algumas aproximações
desde o contributo crítico de um Direito Penal de base onto-antropológica. In: Sistema Penal e
Violência. Org; GAUER, Ruth M. C. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006
DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar, 1994.
FARIA COSTA, José Francisco de. O Perigo em Direito Penal (contributo para a sua
fundamentação e compreensão dogmáticas). Coimbra: Coimbra Editora, 2000.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Maria Schuback, Petrópolis: Vozes, 2006.
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa. Trad. Maurício Ribeiro Lopes. Barueri:
Manole, 2003.

41
Ver, fundamentalmente, SOUZA, Ricardo Timm de. Por uma Estética Antropológica desde a Ética da
Alteridade: do ‘estado de exceção’ da violência sem memória ao ‘estado de exceção’ da excepcionalidade do
concreto. Veritas, vol. 51, n.º 2, junho/2006. “Porém, como tudo na história humana, também esta
anti-memória tem uma história muito particular: não surgiu por geração espontânea, mas
paulatinamente, pela incapacidade de sentir intensamente a realidade do particular. Quando tudo
é redutível a um conceito qualquer ou a causalidades fáceis, tudo é aplainado sob a égide da
irrelevância, está pronto o momento da pequena grande metamorfose, quando causalidade se
transforma em mera casualidade. Ainda a mais deslavada mentira, a mais abjeta hipocrisia, o mais
agudo sofrimento e injustiça acabam na vala comum das casualidades, dos acasos mutuamente
intercambiáveis porque pretensamente irrelevantes em sua incapacidade de paralisar a roda do
mundo” (pp. 134-5).

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A BR ./J UN . 2008

_______ & MELIÁ, Manuel Cancio.Trad. Nereu Giacomolli e André Callegari. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
NETO, Moysés da F. Pinto & BINATO JR., Otávio. Da Exclusão ao Inimigo: o Direito Penal do
Inimigo enquanto estratégia de engenharia social contemporânea. Porto Alegre: Mimeo,
2007.
PONTIN, Fabrício. Biopolítica, Eugenia e Ética: uma análise dos limites da intervenção genética
em Jonas, Habermas, Foucault e Agamben. Dissertação apresentada no PPG em Filosofia
da PUCRS. Porto Alegre, 2007.
SOUZA, Ricardo Timm de. Razões Plurais: itinerários da racionalidade ética no século XX.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
______. Por uma Estética Antropológica desde a Ética da Alteridade: do ‘estado de exceção’ da
violência sem memória ao ‘estado de exceção’ da excepcionalidade do concreto. Veritas, vol. 51,
n.º 2, junho/2006.
______. The Thinking of Levinas and the Political Philosophy: Global state of exception and
ethical challenges. Inédito (texto de Palestra proferida em 2006).

165
A VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR
E O SIGNIFICADO DO INCESTO DIANTE
DO MULTICULTURALISMO
L UCIANE P OTTER B ITENCOURT *

Resumo: A partir do entendimento de que não existe um


‘humano universal’ e sim diversidades culturais, problematiza-
se a questão do incesto como abuso sexual ou não, suas origens
e significados às vítimas, que advindas de dinâmicas familiares
com tradições próprias, podem não perceber a situação como
abusiva. A partir desse ponto de vista, a interação dos
operadores jurídicos em processo penal judicial com vítimas
deve ser revestida de uma ampla perspectiva multicultural.
Palavras-Chave: incesto, abuso sexual intrafamiliar,
multiculturalismo

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Inserida num contexto histórico-social e com raízes culturais, a
violência sexual, uma das facetas do fenômeno violência, atinge todas as
faixas etárias, classes sociais e pessoas de ambos os sexos. Ocorre
universalmente, estimando-se que produza cerca de 12 milhões de vítimas
mulheres anualmente, atingindo desde recém-natos até idosos1.
Centralizada nossa pesquisa na violência sexual infanto-juvenil
intrafamiliar, pode-se dizer que a violência sexual cometida contra crianças
e adolescentes não é um fenômeno novo. Registros da violência sexual são
encontrados na Bíblia Sagrada e na mitologia, onde verificamos relação de
poder, fantasias e impulsos incestuosos. LIPPI comenta que: “nos

*
Mestre em Ciências Criminais da PUCRS
1
RIBEIRO, Márcia Aparecida; FERRIANI, Maria das Graças Carvalho; REIS, Jair Naves dos. Violência
Sexual contra crianças e adolescentes: características relativas à vitimização nas relações
familiares. Cadernos de Saúde Publica. Vol. 20 n. 2 Rio de Janeiro. Março/Abril de 2004.

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primórdios da raça humana predominavam os impulsos incestuosos. Os


príncipes incas mantiveram sua linha pura, casando-se irmãos e irmãs por
14 gerações. Os Ptolomeus do Egito, após vários casamentos entre irmãos,
produziram Cleópatra. Temos também, Édipo, herói da mitologia grega,
que mata o pai e casa com sua mãe. Este mito proporcionou a Freud criar - a
partir da sua imagem e para compreensão da conduta humana - o famoso
Complexo de Édipo”2.
A história de violência das crianças e adolescentes acompanha a
história da humanidade ao longo do processo civilizatório, e tem sido
permeada por várias formas de violência. O incesto pode ser a forma mais
extrema de abuso sexual, envolvendo relações sexuais de um adulto com
uma criança ou adolescente em âmbito familiar.
Tendo-se em vista que cada agrupamento social possui a sua própria
cultura, valores, crenças, costumes, estes afetam diretamente o modo de
viver de determinada sociedade. Por isso, quanto mais se retroage na
história, (e até atualmente em alguns povos) maiores são as chances de
observarmos que a violência contra crianças e adolescentes e a falta de
proteção jurídica eram (e são) comuns.
Não podemos deixar de reconhecer que famílias não estruturadas,
monoparentais ou ainda a presença de crises conjugais, falta de amor dos
genitores ou responsáveis, pai ou mãe sexualmente perturbado, subversão
de normas, valores e expectativas sociais, acabam fragilizando as relações
familiares e propiciando a violência que amotina os membros da família, em
especial os mais vulneráveis. A disfuncionalidade na estrutura familiar,
dessa forma, pode levar ao incesto.
O que importa é que antes de ser considerada abusiva, a família é
vista como um lar sagrado, o mito da família como um lar, doce lar. A
sociedade ainda tem dificuldade em aceitar o fato de que o ambiente
familiar pode ser destrutivo, não configurando sempre um ambiente
seguro3.
Na família incestogênica impera um grande silêncio, onde a criança –
vítima se cala em virtude de seus diversos medos, os demais membros

2
Apud SCHERER,Carmem Cabral; MACHADO, Débora Silva; GAUER, Gabriel J. Chittó. Uma violência
Obscura: Abuso sexual. In GAUER, Gabriel J. Chittó; MACHADO, Débora Silva (Orgs.). Filhos e
Vítimas do tempo da violência. Curitiba: Editora Juruá, 2003, p. 33.
3
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<hhtp://www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.

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familiares se negam, não conseguem ou não podem imaginar o que está


acontecendo dentro de casa. “A casa” que deveria ser o reduto de proteção
das crianças e adolescentes. Nessa situação o agressor está acomodado,
alimenta seu “eu” doentio através de seu objeto, “a criança”, o seu objeto de
desejo erótico. Essa estrutura dificulta o desenvolvimento dos membros
familiares em geral. Assim como o segredo é mantido no reduto familiar, a
própria sociedade tem dificuldade para reconhecê-lo e de lidar com essa
violência, pois sendo um tabu, não se fala dele. Conforme SUZANA BRAUN4,
“as relações incestuosas implicam um afeto erotizado, cuja finalidade é
sempre buscar o prazer sensual do adulto, que deve ser considerado como o
único responsável pelas práticas sexuais abusivas infringidas à criança e/ou
adolescente vítima, mesmo que possa ocorrer a este alguma estimulação
sexual” .
HELEIETH SAFFIOTI5 estabelece uma visão político-social crítica do
pacto do silêncio sobre o abuso sexual de crianças. Para a autora não é difícil
compreender o motivo da conspiração do silêncio em torno do abuso, pois
“a publicização do fato comprometeria a imagem do adulto que a criança
vitimizada virá a ser, condicionando negativamente suas possibilidades de
formar uma nova sagrada família. Convém lembrar que a família constitui o
único locus legítimo para o exercício da sexualidade legítima, com a finalidade
de gerar a prole legítima. A sexualidade exercitada com vistas à obtenção do
prazer é, via de regra, considerada sexo ilegítimo, e tende a ocorrer do lado
de fora da família, isto é, num locus ilegítimo, podendo gerar uma prole
ilegítima. Isto posto, fica patente a razão do silêncio que se forma em torno
da vitimização sexual de crianças, tenha ela lugar no seio da família ou fora
dela”.
O abuso sexual intrafamiliar também é conhecido como incesto na
literatura especializada brasileira. A palavra incesto deriva do latim
“incestus” que significa impuro, manchado, intimamente ligado ao
proibido. CLÁUDIO COHEN6 define o incesto como “um abuso sexual

4
BRAUN, Suzana. A Violência Sexual Infantil na Família. Do silencio à revelação do segredo. Porto Alegre:
AGE, 2002, p. 44.
5
SAFFIOTI, Heleieth I.B. Introdução. A síndrome do pequeno poder. In: AZEVEDO, Maria Amélia;
GUERRA, Viviane N.de A. (Orgs.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. Violência física e
sexual contra crianças e adolescentes. 2 ed. São Paulo: Iglu, 2000, p. 13.
6
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo
(Orgs.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000, pp.
212, 213.

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intrafamiliar, com ou sem violência explícita, caracterizado pela estimulação


sexual intencional por parte de algum dos membros do grupo que possui
um vínculo parental pelo qual lhe é proibido o matrimônio. Portanto, as
características do incesto são: o abuso sexual e o vínculo familiar” e refere
sobre a dificuldade em fazer uma avaliação real da ocorrência do fenômeno
incestuoso nas famílias, gerando a “cifra negra”. O autor acredita que a não
denúncia dessa violência ocorra por vários motivos, como para manter a
aparência da sagrada família, temor pela reação da família, por conivência
entre os membros familiares, pela idéia de que sobre “isso” não se sabe o
que fazer e nada pode ser feito.
A proibição do incesto, presente em quase todas as suas definições,
parece estender-se à proibição de se falar no assunto, tornando-se o mesmo
um tabu7, escapando um esclarecimento mais profundo do tema.
Condenável na cultura ocidental, não é explicitado expressamente em
nossos Códigos8. À exceção, O Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406/2002,
no artigo 1521, e incisos, que estabelece os impedimentos matrimoniais,
limitando o casamento entre parentes consangüíneos ou civis até o terceiro
grau inclusive.
O artigo 61 do Código Penal Brasileiro estabelece as circunstâncias
agravantes genéricas quando o delito sexual é praticado contra ascendente,
descendente, irmão ou cônjuge (letra “e”), com abuso de autoridade ou
prevalecendo-se das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade
(letra “f”) e contra criança, maior de 60 anos, enfermo ou mulher grávida
(letra “h”). Essas situações sempre agravam a pena. No artigo 226, inciso II,
do CP é estabelecido aumento de pena (de metade) aos crimes contra os
costumes, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão,

7
FREUD cita WUNDT que descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem.
O tabu, refere FREUD, é uma proibição primeva forçadamente imposta (por alguma autoridade)
de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O
desejo de violá-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma atitude
ambivalente quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu baseia-se na
capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos são contagiosos
e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma coisa para outra. O fato de a
violação de um tabu poder ser explicada por uma renúncia mostra que esta renúncia se acha na
base da obediência ao tabu. In: FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Órizon Carneiro
Muniz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2005, p. 28, 44. FREUD coloca a proibição do incesto como um
estruturador mental, pois é através da repressão dos desejos incestuosos que se estrutura o
aparelho mental em suas três instancias: id, ego e superego.
8
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
www.violenciasexual.org.br. Acesso em : 20.02.2007.

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cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima


ou por qualquer outro título tenha autoridade sobre ela, portanto considera
o grau de parentesco como situação de aumento, majoração de pena.
No entanto, refere COHEN9 que estes aspectos ligados à organização
social parecem não abranger as conseqüências de uma “relação incestuosa”
(pois a dinâmica e as conseqüências de uma relação incestuosa são distintas
das de um crime sexual único) ainda que a Constituição Federal Brasileira
de 1988 diga que a família é a base da sociedade e que o Estado deve criar
mecanismos para coibir a violência intrafamiliar, conforme o artigo, 226,
parágrafo 8º: “ O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no
âmbito de suas relações”. Salienta TILMAN FURNISS10, que negar a questão
intergeracional no abuso sexual da criança muitas vezes nos leva a igualar o
abuso sexual da criança na família com o estupro de mulheres. Existem
diferenças cruciais. A necessária diferenciação entre o estupro de mulheres
como um súbito ataque por um homem desconhecido e o prolongado abuso
sexual da criança na família possuem dinâmicas muito diferentes e
requerem formas diferentes de intervenção.
No sistema das famílias incestuosas, a lei moral e social é
transgredida, mas não anulada, e é substituída por uma lei familiar que se
reduz e se resume ao respeito pelo segredo. HERVÉ HAMON11 resume as
características do sistema familiar das famílias de transação incestuosa em:
“uma grande confusão, ao nível das fronteiras através das gerações, dos
papéis e das identidades no interior do próprio sistema; uma fronteira
organizacional muito pouco permeável ao exterior; uma organização
fundada em torno do segredo, às vezes por várias gerações”.
COHEN e GOBBETTI12 percebem a relação sexual incestuosa como
sintoma de uma dinâmica familiar não estruturada, na qual todos os
indivíduos encontram-se envolvidos, pois os indivíduos e os complexos

9
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http://www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.
10
FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança. Uma Abordagem Multidisciplinar. Tradução de Maria
Adriana V. Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 22.
11
HAMON, Hervé. Abordagem Sistêmica do Tratamento Socio Judiciário da Criança Vítima de
Abusos Sexuais Intrafamiliares. In: GABEL, Marceline(org.). Crianças vítimas de abuso sexual. 2ª ed.
Tradução Sonia Goldfeder. São Paulo: Summus, 1997, p. 175.
12
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http:www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.

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modos de se relacionarem socialmente estabelecem a dinâmica familiar.


Características como a longa duração destas relações levam a crer o
envolvimento de toda a família, significando mudanças no tipo de
relacionamentos existentes dentro do grupo familiar, a troca de papéis. A
compreensão do funcionamento psicossocial da família incestuosa deve
levar em conta não só o abuso sexual genital relatado, mas a dinâmica
afetiva da família como um todo, dificuldade da não diferenciação das
funções familiares13.
As formas de relacionamentos incestuosos são bastante variadas.
CLAUDIO COHEN14 separa o incesto propriamente dito, que é consumado na
família nuclear, dos incestos menos graves, que se dão entre parentes afins,
sobrinhos e cunhados, por exemplo. Dessa forma, além dos incestos
consangüíneos, COHEN classifica duas outras formas de relação incestuosa,
os para-incestos que são os verificados entre pessoas que poderiam ser
considerados parentes, como padrasto- enteada e os incestos polimorfos em
que alguém se aproveita do cargo ou função que exerce para se impor
sexualmente a um subordinado. Deixa claro, o autor, que a gravidade e as
conseqüências sobre as vítimas nos três tipos de incesto são bastante
diferenciadas.
Na ampla perspectiva de CLÁUDIO COHEN e GISELE J. GOBBETTI15 as
formas de relação incestuosa podem ser entre: pai-filha(o), mãe-filho(a),
avô-neta(o), padrasto-enteada(o), irmão-irmão(ã), tio-sobrinha(o), primo-
prima(o), irmã-irmã, cunhado-cunhado(a), padrinho-afilhada(o),
companheiro da avó- neta(o).
Os autores16 fazem referência a uma avaliação qualitativa de dados
obtidos em atendimento no CEARAS, Centro de Estudos e Atendimento
Relativos ao Abuso Sexual, no Departamento de Medicina Legal, Ética
Médica e Medicina Social e do Trabalho da faculdade de Medicina da USP,
no período de junho de 1993 a dezembro de 1999. Ressaltam que a forma

13
Para exemplificar, as funções familiares podem ser alteradas pois o pai passa a ser pai- marido, a
mulher perde a função de esposa e mãe para a filha que se torna a esposa do pai e mãe dos seus
irmãos.
14
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de A. Infância e
Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000. P. 217.
15
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http:www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.
16
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http:www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.

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mais comum de incesto consangüíneo foi entre pai-filha e que quando a


vítima está na adolescência, a forma de abuso sexual encontrada foi
padrasto-enteada, e a maioria das relações da amostra foram permeadas
por atos libidinosos diversos da conjunção carnal, salientando que assim
como o estupro, os toques e carícias também estão constituídos numa
ampla definição de relação sexualmente abusiva, pois o fato de não
oferecerem provas objetivas da ocorrência não diminui necessariamente a
gravidade das conseqüências emocionais a seus participantes. Na amostra
foi pequeno o índice de crianças e adolescentes do sexo masculino como
vítimas, mas creditam o fato em função de que os meninos têm mais
dificuldades em denunciar as relações sexuais abusivas do que as meninas.
No entender de PADILHA e GOMIDE o incesto é antinatural e não uma
relação prazerosa. O abusador desencadeia um afeto ambíguo quando inicia
na vítima sensações de prazer sexual, ao mesmo tempo em que a coage
mostrando que a própria relação abusiva é socialmente inaceitável. Os
sentimentos de carinho e raiva coexistem para a vítima, que desculpa o
abusador, afirmando que o afeto recebido é mais importante do que a raiva.
Na realidade, a emoção básica da vítima de abuso é a raiva, maquiada pelo
abusador com o afeto que este lhe proporciona17.

2 – O RIGENS E S IGNIFICADOS : O N ÃO À N ATUREZA


As origens da proibição do incesto são desconhecidas, mas algumas
teorias tentam explicá-la. Teorias que estabelecem causas biológicas ou
socioculturais para essa proibição entendida como universal ganham relevo,
pois a idéia de que o tabu e o desejo do incesto poderiam ter raízes
instintivas foi bastante criticada. Refere ROBERT STEIN18 que “pouca atenção
foi dedicada à idéia de que tanto o tabu quanto o desejo do incesto podem
ter raízes instintivas, de que tanto a natureza quanto a cultura são
responsáveis por essa característica unicamente humana. Isso é
compreensível na civilização ocidental, visto que o materialismo científico
exclui a possibilidade de que os instintos desempenhem qualquer papel no
singular desenvolvimento espiritual e cultural do homem. A razão é

17
PADILHA, Maria da Graça Saldanha; GOMIDE, Paula Inês Cunha. Descrição de um processo
terapêutico em grupo para adolescentes vítimas de abuso sexual. Disponível em:
<http:/www.scielo.br>. Acesso em: 05.09.05.
18
STEIN, Robert. O Incesto e Amor Humano. A traição da alma na psicoterapia. Tradução de Claudia
Gerpe Duarte. São Paulo: Paulus, 1999, p. 83.

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considerada o único fator responsável pelo desenvolvimento humano. O


homem é único somente porque consegue controlar seus instintos”.
FREUD19 cita e critica WESTERMARCK, pois este procurou explicar o
horror do incesto baseando-se em que “há uma aversão inata às relações
sexuais entre pessoas que vivem juntas com muita intimidade desde a
infância e que, como essas pessoas são, na maioria dos casos, aparentadas
pelo sangue, esse sentimento naturalmente apareceria no costume e na lei
como um horror à relação sexual entre parentes próximos”. A crítica de
FREUD repousa em que WESTERMARCK procurou explicar a raiz da
exogamia pela existência de uma antipatia instintiva pelas relações sexuais
com os parentes consangüíneos, o que é para Freud insatisfatório, “porque a
experiência social mostra que, a despeito desse suposto instinto, o incesto
não é um fato fora do comum mesmo em nossa sociedade atual e a história
nos fala de casos em que o casamento incestuoso entre pessoas privilegiadas
era na realidade a regra”. FREUD concorda com FRAZER20 que refere não ser
fácil perceber porque qualquer instinto humano profundo deva,
necessariamente, ser reforçado pela lei. “Não há lei que ordene aos homens
comer e beber ou os proíba de colocar as mãos no fogo. Os homens comem e
bebem e mantém as mãos afastadas do fogo instintivamente por temor e
penalidades naturais, não legais, que seriam acarretadas pela violência
aplicada a esses instintos. A lei apenas proíbe os homens de fazer aquilo a
que seus instintos os inclinam; o que a própria natureza proíbe e pune, seria
supérfluo para a lei proibir e punir. Por conseguinte, podemos sempre com
segurança pressupor que os crimes proibidos pela lei são crimes que muitos
homens têm uma propensão natural a cometer. Se não existisse tal
propensão, não haveria tais crimes e se esses crimes não fossem cometidos,
que necessidade haveria de proibi-los? Desse modo, em vez de presumir da
proibição legal do incesto que existe uma aversão natural a ele, deveríamos
antes pressupor haver um instinto natural a seu favor e que se a lei o
reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os
homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses
instintos naturais é prejudicial aos interesses gerais da sociedade”.

19
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2005, p. 127.
20
Apud FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 2005, p. 128.

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Tanto LÉVI-STRAUSS em As Estruturas Elementares do Parentesco,


como FREUD em Totem e Tabu propuseram-se a decodificar o grande
enigma, afirmando a existência de um evento originário fundador da
sociedade humana, portanto, nas raízes da sociedade humana, que para
LÉVI-STRAUSS seria o da proibição do incesto com a conseqüente
regulamentação da troca21 de mulheres, necessária pela exogamia22 que a
troca impõe, para o estabelecimento de alianças entre os grupos humanos,
base de todas as modalidades da instituição matrimonial. Essa necessidade
de troca constitui o momento da passagem da natureza à cultura, pois o
laço de afinidade com uma família diferente assegura o domínio do social
sobre o biológico, do cultural sobre o natural. Com o tabu do incesto, e a
conseqüente troca de mulheres, a família estaria marcando a passagem da
natureza à cultura. Portanto o tabu do incesto constitui o vínculo originário
que une a esfera biológica à social, situando-se entre ambas, sem pertencer
integralmente a uma ou outra, mas o ponto de encontro e articulação entre
natureza e a cultura, ponto no qual se assenta a ordem social construída
pelo homem. Por meio dos mecanismos de troca (onde as mulheres
constituem propriamente o objeto dessa troca), todo o sistema social funda-
se, para LÉVI-STRAUSS, num complexo sistema de comunicação em três
níveis: comunicação através das mulheres, pois as regras de parentesco e
matrimônio servem para assegurar a comunicação de mulheres entre os
grupos, de bens e serviços pois as regras econômicas garantem a
comunicação desses bens e serviços e as regras lingüísticas que permitem a
comunicação de mensagens. Dessa forma todo o sistema cultural seria um
sistema de comunicação23.
Procurando decodificar a estrutura não aparente do incesto, o não à
natureza, LÉVI-STRAUSS24 verificou a universalidade da proibição do incesto como
análoga à universalidade da linguagem, como fenômenos tão arraigados que
não se ensina a proibição, ela é arraigada no pensamento ocidental.

21
LÉVI-STRAUSS explica que a troca recíproca de mulheres assegura a circulação contínua das
esposas e filhas que o grupo social possui. Portanto, a casa não se firma na terra, mas na mulher.
In: LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3
ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, pp. 89, 90, 91.
22
Exogamia é o casamento fora do grupo familiar primordial.
23
CENTURIÃO, Luiz R.M.; GAUER, Ruth M. Chittó. Cumplicidade entre Antropologia, Psiquiatria e
Psicanálise. In: GAUER, Gabriel Chittó. Agressividade – uma leitura biopsicossocial. Curitiba: Juruá
Editora, 2001, p. 72.
24
Apud PAZ, Otavio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo. São Paulo: Editora Perspectiva,
1977, p. 17.

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Para LÉVI-STRAUSS, a linguagem atualiza todos os elementos


passados, a linguagem é o fundamento da cultura. Refere o autor25 que “a
marcha de nossa análise é portanto vizinha da seguida pelo lingüista
fonólogo. Porém, há mais. Se a proibição do incesto e a exogamia tem uma
função essencialmente positiva, se sua razão de ser consiste em estabelecer,
entre os homens, um vínculo sem o qual não poderiam elevar-se acima da
organização biológica para atingir a organização social, então é preciso
reconhecer que lingüistas e sociólogos não somente aplicam os mesmos
métodos mas se dedicam ao estudo do mesmo objeto. Deste ponto de vista,
com efeito, a ‘exogamia e linguagem tem a mesma função fundamental, isto
é, a comunicação com o outro e a integração do grupo’”.
Em Totem e Tabu, FREUD tentou decodificar o enigma da proibição do
incesto. No entanto, afirma LÉVI-STRAUSS26 que “FREUD explica com êxito
não o início da civilização mas seu presente. Tendo partido à procura da
origem de uma proibição, consegue explicar não por que o incesto é
conscientemente condenado, mas como acontece que seja
inconscientemente desejado”, pois em Totem e Tabu, FREUD refere que as
27

mais precoces excitações sexuais dos seres humanos muito novos são
invariavelmente de caráter incestuoso e que tais impulsos quando
reprimidos desempenham um papel que pode ser considerado uma força
motivadora de neuroses na vida adulta, levando LÉVI-STRAUSS28 a afirmar
que Totem e Tabu não é admissível como interpretação da proibição do
incesto e de suas origens, assim como diante da reflexão sociológica, o
incesto aparece como um terrível mistério.
CLÁUDIO COHEN29, a partir do pensamento de LÉVI-STRAUSS, explica
que a ambigüidade existente frente ao tabu do incesto se deve ao fato de
que o ser humano é ao mesmo tempo um ser biológico (produto da
natureza) e um ser social (produto da cultura), sendo que esta ambigüidade

25
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 533.
26
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 531.
27
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2005, p. 129.
28
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, pp. 49, 531.
29
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo
(Orgs.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000, pp.
212, 213.

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gera os conflitos existenciais e que frente ao parentesco biológico, a


proibição do incesto serviria apenas para evitar a possibilidade de
homozigose de genes com defeito recessivo, portanto para os autores é
frente ao parentesco cultural que a proibição do incesto possui um efeito
estruturante, pois permite o convívio familiar, tornando possível ao filho
diferenciar simbolicamente o pai. É a função de pai que permitirá ao
indivíduo sair do mundo de fantasias, onde tudo é possível, podendo entrar
no mundo factual, onde existem limites e proibições, proporcionando ao
indivíduo uma nova estrutura no nível psicológico e social. COHEN30 diz que
“no âmbito psicológico, a proibição dos desejos edípicos (incestuosos), o
não é um ordenador mental e emocional (afetivo-cognitivo) e permite ao
indivíduo estruturar o superego e desenvolver o ego. O ego mais
enriquecido permite ao indivíduo uma noção de limites, fornecendo-lhe
uma maior autonomia; a estruturação do superego permite a simbolização
da função paterna, podendo então conhecer e aceitar a lei da cultura. No
âmbito social, esta proibição permite alcançar a exogamia”.
Mas os termos de parentesco são elementos de significação. Como os
sistemas fonológicos os sistemas de parentesco são elaborações do espírito
ao nível do inconsciente31. No incesto, como uma relação de parentesco, o
significante é da origem e ao mesmo tempo da função. O significado se
relaciona com a fórmula, é o conceito, é posterior e extrapola, pode sempre
resignificar. A norma que cria as estruturas do parentesco é da ordem do
significante (tabu do incesto), que se constitui na absoluta igualdade do humano.
A diferença é da ordem do significado, ou seja, cada cultura lê o significado à
sua maneira. O significante pode ser relido, reinterpretado, reatualizado. Não
há perda do significante com a flexibilização da releitura, pois a norma
permanece. O surgimento da norma é o ponto inicial da passagem natureza-
cultura.
LÉVI-STRAUSS32 salienta que não há necessidade de demonstrar que a
proibição do incesto constitui uma regra. Bastará lembrar, diz ele, “que a
proibição do casamento entre parentes próximos pode ter um campo de

30
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo
(Orgs.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000, pp.
212, 213.
31
PAZ, Otávio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p.
15.
32
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 47.

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aplicação variável, de acordo com o modo como cada grupo define o que se
entende por parente próximo. Mas esta proibição, sancionada por
penalidades sem dúvida variáveis, podendo ir da imediata execução dos
culpados até a reprovação difusa, e às vezes somente até a zombaria, está
sempre presente em qualquer grupo social”.
A proibição do incesto definitivamente, não é uma proibição igual às
outras, é uma proibição universal, assim como universal é a linguagem, no
entanto, deve-se buscar compreender a lógica e os significados destes
valores e práticas dentro de um contexto social, histórico e cultural mais
amplo.

3 - P ARA A LÉM DA P ERSPECTIVA U NIFOCAL : A D IVERSIDADE


C ULTURAL EM Q UESTÃO
Dessa forma uma questão nos leva a seguinte indagação. A relação
incestuosa tem, necessariamente, relação com a violência sexual contra
crianças e adolescentes? Visto isto a partir de perspectivas culturais
diversas, considerando-se a identidade cultural de cada povo, o incesto é
uma violência sexual? Como devemos (enquanto sociedade civil e jurídica)
enfrentar tal realidade?
A doutrina brasileira em geral entende que o abuso sexual infanto-
juvenil intrafamiliar ocorre contra seres em desenvolvimento, psicológica e
moralmente imaturos, e que não conseguem resistir a um familiar adulto
que lhes impõe sua autoridade transformando-os em objetos sexuais.
No entanto, a abordagem que uma sociedade faz dos abusos sexuais
está necessariamente ligada às mudanças nas relações entre os interesses do
Estado, da família e das crianças e adolescentes em particular, ao papel
atribuído a elas numa sociedade determinada33. O incesto é sempre definido
de maneira cultural e assim deve-se perguntar o que as práticas sexuais
familiares significam para determinadas culturas, pois o sistema cultural é o
único sistema capaz de explicar e gerir as relações entre as pessoas. Para
LÉVI-STRAUSS34 a proibição do incesto está ao mesmo tempo no limiar da
cultura, na cultura, e em certo sentido, é a própria cultura. Refere TOBIE

33
GABEL, M. Algumas observações preliminares. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas de
abuso sexual. Tradução Sonia Goldfeder e Maria C. C. Gomes. São Paulo: Summus Editorial Ltda.
1997, p. 12.
34
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 50.

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NATHAN35 que “só uma cultura permite ver o outro, e não possuí-lo”. Diz
esse autor36 que os psicanalistas impedem a reelaboração e uma nova
reatualização da questão da proibição do incesto, que, no entanto, se
mostram indispensáveis desde que foram feitas inúmeras descobertas
antropológicas, etiológicas, sociológicas e clínicas e que “quando os
antropólogos falam da proibição do incesto, não evocam os mesmos fatos
que os psicanalistas. Para eles, trata-se de leis que organizam uma forma de
contratar uma aliança – um casamento – e não regras que gerem o
estabelecimento de relações sexuais lícitas. É por isso que os africanos
pensam e dizem de bom grado que os brancos, limitando a noção de incesto
somente aos parentes biológicos (pai, mãe, irmão, irmã), cometem
necessariamente o incesto com seus parentes “culturais” (primos, primas,
membros de um mesmo clã, confraria ou congregação)”37.
Dessa forma, NATHAN38 refere que a proibição do incesto talvez
pareça natural, que talvez pudéssemos pensar que se todos os homens
criaram explicitamente uma lei proibindo a união incestuosa, é porque essa
lei correspondia a um tipo de natureza humana, mas ele mesmo refere que
uma série de fatos torna mais complexo esse raciocínio. Entende que se a
regra de proibição do incesto está presente em todo lugar, o mesmo
acontece com suas transgressões, e que não se deve tirar conclusões
precipitadas sobre as uniões consangüíneas, pois em primeiro lugar deve-
se saber qual a definição de incesto em determinada cultura, assim, o
casamento do tio-avô com sua sobrinha-neta não é considerado incestuoso
pelos australianos, trata-se de uma aliança preferencial. Enfim, diz o autor,
“as sociedades definem o incesto, sem levar em conta as regras genéticas, e
nem mesmo qualquer consideração psicológica; além disso, é necessário que
a definição cultural do incesto afaste explicitamente os dados biológicos e
psicológicos para que seja culturalmente eficaz”.
Em cada cultura encontra-se uma realidade, não existe um ‘humano
universal’, existem, sim, diversidades culturais, pluralidades culturais, de

35
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, p. 21.
36
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, p. 21.
37
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, p. 22.
38
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, pp. 23, 24.

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moralidade, de sexualidade, pois como refere ERNEST CASSIRER39 “a raça é


um fator importante na história humana; que diferentes raças originaram
diferentes formas de cultura; que essas formas não se encontraram todas no
mesmo nível; que variam todas elas no seu caráter e no seu valor...”.
No entanto, o próprio o multiculturalismo não pode ser entendido de
forma linear, nesse sentido salienta HOMI BHABHA40 que a diversidade
cultural é também a representação de uma retórica radical separação de
culturas totalizadas e, portanto, o conceito de diferença cultural concentra-se no
problema da ambivalência da autoridade cultural: a tentativa de dominar
em nome de uma supremacia cultural; é a própria autoridade da cultura
como conhecimento da verdade referencial que está em questão. É
introduzida uma quebra no presente performativo da identificação cultural,
uma quebra entre a exigência culturalista tradicional de um modelo, uma
tradição, uma comunidade, um sistema estável de referência, e a certeza da
articulação de novas exigências, significados e estratégias culturais no
presente político como prática de resistência.
Conclui NATHAN41 que a proibição do incesto não é estruturante nem
por suas implicações psicológicas (não se deve copular com a mãe, a irmã, a
prima...) nem por suas implicações culturais (deve-se dar a irmã ao primo,
ao vizinho, ao tio-avô...), mas, sim, pelo elo estrutural entre ambas as
dimensões, expondo, então, um paradoxo: pensar um sujeito, uma família, um
grupo, a partir de uma proibição universal do incesto não é outorgar-lhe o estatuto
de semelhante, mas recusar-lhe uma humanidade concreta, pois, pelo menos no
estágio atual de nossos conhecimentos, podemos afirmar que uma proibição
universal tem conseqüências desumanas, porque fundamentalmente não é humana.

4 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS
Fazendo uma releitura sobre o fenômeno incestuoso a partir do que
foi exposto, deve-se levar em conta que, apesar de estarmos inseridos em
uma sociedade complexa, existem modos de vida diferentes, dinâmicas
familiares com diferenças culturais e tradições próprias que envolvem

39
CASSIRER, Ernest. O Mito do Estado. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003, p. 272.
40
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, pp. 63, 64.
41
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, pp. 27, 28.

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valores e maneiras particulares de viver. Nesse sentido CLAUDIA FONSECA42


diz que devemos procurar entender as dinâmicas culturais calcadas em
distintas trajetórias históricas que animam padrões de comportamento
desses grupos. Entra na agenda do pesquisador investigar quais os valores,
qual a lógica que subjaz as práticas sociais em determinado lugar,
particularmente, dos grupos populares no Brasil. Assim, estaremos
preparados para pensar a diferença, e, especialmente, trazer o debate sobre
a diferença e igualdade na justiça.
O incesto pode ser entendido tanto como uma psicopatologia43 quanto
como uma questão de diferença cultural.
Não podemos apagar ou não reconhecer as diferenças, as diferentes
categorias familiares dentro do modelo social que se pretende hegemônico.
O reconhecimento das diversas dinâmicas familiares, refere CLAUDIA
FONSECA44, seria essencial para controlar o moralismo classificador e
normatizador das ciências, principalmente das ciências jurídicas. Interessa
definir aqui o lugar desde onde se olha a questão do incesto como abuso
sexual intrafamiliar, deplorado pelo ocidentalismo cristão.
Nesse sentido fazemos a releitura crítica do incesto enquanto
fenômeno jurídico de abuso sexual intrafamiliar e sua apreciação pelos
operadores do Direito ou por aqueles que operam no mundo do Direito.
Ainda que considerado, o abuso sexual intrafamiliar, um ato criminoso ao
serem envolvidas crianças e adolescentes aos olhos da sociedade ocidental
em geral, da doutrina e da legislação brasileira, deve-se interpretar os fatos
a partir de perspectivas culturais diversas. Deve-se considerar o enfoque do
que significa ou significou o incesto para a vítima criança ou adolescente
que vive ou viveu a dinâmica familiar incestuosa sem ter conhecido outra
dinâmica familiar, pois nem todas as vítimas de abuso sexual intrafamiliar
percebem a situação pela qual passam como abusiva. A abordagem sobre

42
DORA, Denise Dourado (Org.). Feminino, Masculino: igualdade e diferença na justiça. Porto Alegre:
Sulina, 1997, p. 132.
43
O incesto ou abuso sexual intrafamiliar encontra-se na categoria dos transtornos sexuais, na busca
pela satisfação sexual inadequada, ou seja, através de crianças e adolescentes como objeto sexual,
conforme orientação de JORGE, Miguel R. (Coord.). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais. DSM-IV. 4ª ed. Rev. Porto Alegre: Artmed, 2002, pp. 511, 538, 553. Cabe ressaltar que
abuso sexual da criança, no DSM-IV encontra-se na seção Problemas relacionados ao Abuso ou
Negligência, consistindo de severos maus tratos de um indivíduo por outro através de abuso
sexual.
44
DORA, Denise Dourado (Org.). Feminino, Masculino: igualdade e diferença na justiça. Porto Alegre:
Sulina, 1997, p. 136.

181
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essa dinâmica familiar incestuosa, quando passa do privado ao jurídico


deve ter especial cuidado sob o risco de causa de grandes traumas às
vítimas. Tentemos pensar que coisa pode ter significado aos olhos de uma
criança ou adolescente ao saber, durante o processo penal judicial, que o
que viveu, e normalmente por muito tempo, foi um ato de violência
perpetrado por aquele ou aquela que deveria ter sido seu/sua cuidador(a) e
protetor(a), uma situação anormal, imoral, ilegal e reprimida portanto, pelo
mundo adulto do direito, pelo Estado – Sociedade.
O processo penal prosseguirá, independentemente de a criança ou
adolescente ter sido ou não afetada psicologicamente pelo abuso,
independentemente do significado que o abuso sexual tem ou teve para ela.
No entanto, são fatores importantes e que devem ser levados em conta pelos
interlocutores, pelas pessoas que irão fazer abordagens às vítimas,
procurando ressaltar com isso a importância do lugar e das pessoas desse
lugar, desde onde se produz a interpretação dos atos sexuais sob pena de
revitimização ou equivocada abordagem para comprovar o fato delituoso,
sem esquecer que cada pessoa sente a vitimização a partir da sua
representação sócio-cultural do delito, variando de vítima para vítima
porque o tipo delituoso é, enfim, uma construção social baseada na cultura.

5 – R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo (Orgs.). Infância e
violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de
Lima Reis, Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
BRAUN, Suzana. A Violência Sexual Infantil na Família. Do silêncio à revelação do
segredo. Porto Alegre: AGE, 2002.
CASSIRER, Ernest. O Mito do Estado. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003.
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar.
Disponível em: <http://www.google.com.br>. Acesso em : 20.02.2007.
DORA, Denise Dourado (Org.). Feminino, Masculino: igualdade e diferença na justiça.
Porto Alegre: Sulina, 1997.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro:
Imago Ed., 2005.
FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança. Uma Abordagem Multidisciplinar. Tradução
de Maria Adriana V. Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
GABEL, Marceline (org.) . Crianças vítimas de abuso sexual. Tradução Sonia Goldfeder e
Maria C.C.Gomes. São Paulo: Summus Editorial Ltda. 1997.

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A BR ./J UN . 2008

GAUER, Gabriel Chittó. Agressevidade- uma leitura biopsicossocial. Curitiba: Juruá


Editora, 2001.
GAUER, Gabriel J. Chittó; MACHADO, Débora Silva(Orgs.). Filhos e Vítimas do tempo da
violência. Curitiba: Editora Juruá, 2003.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano
Ferreira. 3 ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003.
PADILHA, Maria da Graça Saldanha; GOMIDE, Paula Inês Cunha . Descrição de um
processo terapêutico em grupo para adolescentes vítimas de abuso sexual . Disponível
em: http:/www.scielo.br/. Acesso em: 05.09.05.
PAZ, Otávio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1977.
RIBEIRO, Márcia Aparecida; FERRIANI, Maria das Graças Carvalho; REIS, Jair Naves dos.
Violência Sexual contra crianças e adolescentes: características relativas à vitimização
nas relações familiares. Cadernos de Saúde Publica. Vol. 20 n. 2 Rio de Janeiro.
Março/Abril de 2004.
STEIN, Robert. O Incesto e Amor Humano. A traição da alma na psicoterapia. Tradução
de Claudia Gerpe Duarte. São Paulo: Paulus, 1999.

183
R ESENHA B IBLIOGRÁFICA *

LOPES JR., AURY. DIREITO PROCESSUAL


PENAL E SUA CONFORMIDADE
CONSTITUCIONAL. RIO DE JANEIRO:
LUMEN JURIS, 2007, VOL. I.
P EDRO A RAGONESES A LONSO **

En el volumen correspondiente al año 2006, en esta Revista de


Derecho Procesal, con ocasión de la reseña de dos trabajos del Prof. AURY
LOPES JR., Introdução critica ao processo penal. Fundamentos da
instrumentalidade constitucional (4.ed., 2006), y su Sistemas de Investigação
Preliminar no Processo Penal (4.ed. 2006) tuve la oportunidad de recordar
cómo conocí al joven, pero ya brillante procesalista AURY LOPES JR., con
motivo de sus estudios en un Curso del Doctorado, impartido en la
Facultad de Derecho de la Universidad Complutense de Madrid, cuya
tesis doctoral sobre Sistemas de instrucción preliminar en los Derechos
Español y brasileño (con especial referencia a la situación deI sujeto pasivo deI
proceso penal), tuve la satisfacción de dirigir.
Un año después, nos sorprende con la publicación de este nuevo
libro: extenso (675 páginas) y documentado (1702 notas), que concluye
con una relación bibliográfica que comprende la mención de 375
trabajos, de los cuales 58 corresponden a autores españoles, 31 a autores
italianos, 11 a autores alemanes y el resto, a procesalistas o penalistas
iberoamericanos, con predominio, claro es, de autores brasileños. He
llevado a cabo las anteriores acotaciones, al modo en que solía realizar
sus reseñas el Profesor ALCALÁ-ZAMORA, para destacar un aspecto de la
obra del Prof. AURY LOPES JR., que la hace especialmente grata para el
lector español.

* Texto publicado originariamente na Revista de Derecho Procesal, Madrid, 2007.


** Profesor Emérito de Derecho Procesal de la Universidad Complutense de Madrid Director de la
Revista de Derecho Procesal.

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A B R ./J UN . 2008 N A C IO N A L

En efecto, tanto los Profesores Doctores JACINTO NELSON DE


MIRANDA COUTINHO y CEZAR ROBERTO BITENCOURT en sus Prefacios,
como el propio autor en la Nota preliminar, señalan la importancia que
han tenido en la formación y vocación del Profesor LOPES JR. los estudios
de Doctorado en nuestra Universidad Complutense de Madrid.
Nos encontramos, por ello, con que este magnífico fruto del
proceso penal que es, lógicamente, un producto de la espléndida Escuela
brasileña, tuvo su enraizamiento en los años que Aury pasó entre
nosotros, con motivo de sus estudios.
Debemos destacar que el Prof. AURY LOPES JR. dedica su atención
nuevamente a un tema primordial del Derecho Procesal Penal. El libro,
según señala su autor, se sustenta en dos pilares básicos: en una
búsqueda constante para la constitucionalidad del Derecho procesal
penal, y en la utilización, a tal efecto, de las categorías jurídicas propias
de la doctrina clásica más relevante, que se ha ocupado de esta rama del
Derecho Procesal, estableciendo las peculiaridades que la diferencian de
la rama que ha tenido, hasta el momento, un mayor desarrollo científico:
el Derecho Procesal Civil.
La necesidad de afrontar este estudio se justifica con solo recordar
que el Código de Proceso Penal brasileño se promulgó en 1941, y que la
nueva Constitución de 1988, como dice el Doctor GERALDO PRADO, es
fruto de un proceso histórico de ruptura, en grado bastante significativo,
con las bases autoritarias que siempre dominaron en Brasil, y que en el
campo del Derecho constituían los fundamentos para la formación de
los profesionales del área jurídica.
Para proceder a la que debe ser una acomodación del Código
procesal penal a la Constitución, el autor, en los trece capítulos que
componen la obra, trata: del fundamento de la existencia del proceso
penal; de su naturaleza jurídica; de los sistemas inquisitivo, acusatorio y
mixto; de la pretensión acusatoria; de los principios constitucionales del
proceso penal; del proceso penal en el tiempo y en el espacio; de los
sistemas de investigación preliminar; de la acción procesal penal; de la
jurisdicción y de la competencia penal; de las cuestiones incidentales; de
la teoría general del proceso penal; y de las pruebas.
Todo un programa cuyo desarrollo es analizado aunando todas
sus figuras en un sistema lógico, en el que tiene en cuenta las
investigaciones que, sobre tales cuestiones, han llevado a cabo los

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B IB LIO G R Á FIC A A B R ./J UN . 2008

Maestros más significativos de nuestra especialidad, adoptando sobre la


misma su adhesión o rechazo con plena objetividad, y sin caer en el
reduccionismo acientífico tan habitual, por otra parte" en los tiempos
que corren.
Por todo lo que significa el Prof. AURY LOPES JR., tanto en su
proyección humana como científica, quiero expresarle aquí mi profunda
admiración y reconocimiento por sus esfuerzos en pro de un proceso
penal que ofrezca las mayores garantías para el imputado, y la mayor
protección para las víctimas de cualquier delito.

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