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I – PONTO DE PARTIDA
Qualquer afirmação a respeito do desenvolvimento futuro pressupõe
que nos orientemos por pontos de partida que caracterizem a situação atual,
com base na qual ele deve se desenvolver. Estes pontos de partida possuem
duas características – que para a observação científica são oportunas: eles
* Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva (Professor de Direito Penal e Processual Penal da
Univates e da Ulbra), do artigo “Absehbare Entwicklungen in Strafrechtsdogmatik und
Kriminalpolitik”, publicado originariamente em Prittwitz/Manoledakis (Hrsg.) Strafrechtsprobleme
an der Jahrtausendwende, 1. Aufl., 2000, p. 17-25.
** Catedrático de Direito Penal, Direito Processual Penal, Teoria do Direito e Sociologia do Direito da
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1 – Concordâncias Européias
Na parte continental da Europa Ocidental o “moderno” Direito Penal2
traçou, nas últimas décadas, linhas de desenvolvimento que se conjugam
umas com as outras de forma surpreendentemente intensa e concentrada.
Estas linhas referem-se não só ao Direito Penal material, mas também ao
Direito Processual Penal, às teorias do Direito Penal e da Pena, assim como
ao “clima” social e político em geral que se forma da e na relação com o
sistema jurídico-penal.
Concentro-me no desenvolvimento na República Federal da
Alemanha e afirmo que este desenvolvimento grosso modo também se pode
verificar em outros países da parte continental da Europa ocidental. Até este
ponto se estendem as minhas avaliações e teses.
2 N. do T.: Para uma análise minuciosa daquilo que o autor caracteriza como sendo o “moderno”
Direito Penal, em contraposição ao Direito Penal “clássico”, compare HASSEMER, Winfried.
Características e Crises do Moderno Direito Penal, in Revista de Estudos Criminais, [Tradução de
Pablo Rodrigo Alflen da Silva, de Kennzeichen und Krisen des modernen Strafrechts], n.º 08,
2003, p. 54 a 66, também publicada em Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n.º 18,
2003, p. 144-157.
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3 N. do T.: Sobre a proteção de bens jurídicos universais como decorrência das exigências da
moderna Política Criminal veja, além da indicação na nota anterior (supra 2), também HASSEMER,
Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, [Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva,
de Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 2.ª edição, 1990], 2005, Porto Alegre: Fabris
Editor, p. 360 e ss.
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4 – O Clima Político-Criminal
Sem um “clima” de proteção e de apoio o moderno Direito Penal não
pode se manifestar de forma tão poderosa, equilibrada e tranqüila. Este
clima favorece o Direito Penal como instrumento efetivo na assimilação dos
4 N. do T.: O autor, aqui, faz uma paráfrase à polícia secreta do Estado nacional-socialista, chamada
geheime Staatspolizei (Gestapo).
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5 – As Teorias da Pena
Atualmente o debate sobre os fins da pena na República Federal da
Alemanha é cunhado pela expressão “prevenção geral positiva”. O que se
quer dizer concretamente com isso e quais variantes determinam os fins da
pena que se reúnem sob esta bandeira, aqui pode permanecer em aberto.
Para o nosso contexto há apenas uma tendência ao estabelecimento de
um significado que caracteriza de maneira consentânea todas as variantes
desta teoria: a renúncia a uma determinação empiricamente precisa da
prevenção direta. Nesta tendência seguem as teorias predominantes, com o
clima político-criminal geral e o favorecimento do Direito Penal como um
instrumento para a solução dos grandes problemas sociais (supra I.4.):
As teorias da prevenção geral positiva vêem o efeito desejado da pena
cominada e da sua execução não mais na intimidação (“negativa”) do
tendente ao crime (como em FEUERBACH e seus sucessores), senão na
manutenção (“positiva”), a longo prazo, da confiança de todos os cidadãos
5 N. do T.: Como instrumento simbólico, o autor caracteriza um Direito Penal que “simplesmente
transmite a aparência de efetividade e proteção social e demonstra à opinião pública que o
legislador satisfez uma ‘necessidade de ação’ rápida e eficaz” (compare HASSEMER, Winfried.
Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, Trad. de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, 2005, p. 115;
análise aprofundada em HASSEMER, Winfried. Direito Penal, Trad. e org. Carlos Eduardo
Vasconcelos, 2008, p. 209 e ss.).
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2 – Particularidades
a. O princípio fundamental do Direito Penal material correspondente
ao princípio geral da proporcionalidade é o princípio da culpabilidade, o qual
limita a espécie e a medida da pena à gravidade do injusto e da
culpabilidade. Este princípio está particularmente ameaçado em um sistema
jurídico-penal que está preso ao efeito preventivo e por isso está interessado
em obter no caso concreto, através da ênfase e do abalo, efeitos benéficos –
não só em relação aos envolvidos, senão também em relação ao público
informado na mídia.
b. Em todo caso, enquanto o sistema jurídico-penal impuser a
supressão da liberdade (prisão preventiva, pena privativa de liberdade), a
imputação individual do injusto e da culpabilidade será um elemento
irrenunciável do Direito Penal do Estado de Direito. Esta imputação não
pode ser estabelecida de forma global, porque ela já é flagrantemente injusta
inter personas. Sobretudo no âmbito de competências de decisão complexas,
como por exemplo no Direito Penal econômico, recomenda-se na verdade já
uma imputação coletiva, porque em tais situações somente ela representa o
instrumento aplicável. Esta recomendação transcende o Direito Penal.
c. O princípio processual penal fundamental no Estado de Direito é o
do processo justo – um princípio com muitos significados e conclusões
concretas.
Entre as condições iniciais dadas (supra I.) discutiu-se este princípio
em um sistema jurídico penal futuro, antes de tudo porque o acusado não
pode ser convertido em objeto do processo. Os novos métodos de
investigação (supra I.3.) consistem no primeiro passo em direção a uma
forma de processo no qual o acusado perde uma parte das garantias, que
constituem pressupostos imprescindíveis para uma participação ativa e
responsável no Processo Penal. Também o direito a uma defesa eficiente e a
garantia do direito ao silêncio são aquisições do processo penal do Estado
Direito, as quais futuramente podem ceder ante a pressão de adaptação.
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1 – Espécie de Conflito
Em face das exigências político-criminais de aumento da eficácia
preventiva do Direito Penal e à custa de sua segurança jurídica-estatal, os
defensores de um Direito Penal de um Estado Direito na República Federal
da Alemanha adotam uma tradicional atitude defensiva-negativa: eles
rechaçam estas exigências com bons fundamentos, mas que quanto ao
resultado são em regra infrutíferos (e, conseqüentemente, aguardam por
outras propostas de efetivação, em relação as quais eles devem proceder da
mesma forma).
Esta atitude é incorreta. Um Direito Penal de um Estado de Direito
não é um castelo que deve ser defendido, senão uma concepção de ação
teórico-prática de controle formal da conduta desviante, que precisa ser
aperfeiçoada teoricamente e referir-se a circunstâncias práticas jurídico-
políticas e gerais socialmente transformadoras. Não é a defesa que é
questionada, mas o ataque. Isto pressupõe que, em face da pressão pela
solução dos problemas que se exerce sobre o Direito Penal, sejam
elaboradas e oferecidas alternativas que em um Estado de Direito sejam
menos questionáveis do que o uso do Direito Penal como prima ou sola ratio.
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3 – Direito de Intervenção
Eu denomino os instrumentos que podem responder – melhor que o
Direito Penal – à pressão de solução dos problemas atuais e futuros (supra
I.) com o conceito genérico de “Direito de Intervenção”. Estes instrumentos
existem apenas em suas bases, eles ainda devem ser amplamente
desenvolvidos – inclusive teoricamente:
Eles devem ter as seguintes características:
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5 – Internacionalização
a. A europeização do Direito Penal em muito setores já iniciou, e ela
progredirá, mesmo que o penalista, como até agora, mal a perceba. Ela
exigirá e favorecerá a reflexão e novas experiências. O Direito Penal dispõe
em todas as culturas jurídicas de um alto grau de provincianismo, o que
tem suas boas razões. Em virtude da europeização, a ciência do Direito
Penal terá, sobretudo, a chance de estudar esta situação e talvez minimizá-
la. Os cientistas do Direito Penal alemão tem a tarefa de fornecer suas boas
tradições no processo de europeização do Direito Penal, tanto quanto os
demais cientistas.
b. Sob a minha ótica, mais importante é a chance de desenvolver, ao
menos em parte, um Direito Penal Internacional que não só transponha as
proibições materiais de violação aos direitos humanos para o Direito Penal
vigente, mas que também implante – tanto teórica como praticamente –
condições processuais de persecução de tais violações. Esta possibilidade se
desenvolve atualmente e promete caracterizar de forma mais intensa o
futuro sistema jurídico-penal do que até então. Os penalistas devem
participar de forma mais intensa destes processos.
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CRÍTICA DO SENTIDO PÓS-MODERNO
DE GLOBALIZAÇÃO *
F ABIO C APRIO L EITE DE C ASTRO **
INTRODUÇÃO
Nossa análise parte da instanciação estética e de uma primeira
descrição do pós-modernismo. Trata-se de uma expressão que se utiliza
*
Comunicação apresentada na sessão de 18 abril de 2008 no Séminaire Interuniversitaire
Mondialisation et Cosmopolitisme (Université de Liège e Université Libre de Bruxelles), promovido
na ULg (Bélgica).
**
Bacharel em Direito. Mestre (PUCRS). Doutorando (Un. Louvain) em Filosofia.
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atualmente aos exageros, sem nenhum critério de definição clara. Essa falta
de convergência nos discursos e de um consenso mínimo a respeito do
próprio pós-modernismo é a polêmica preferida dos pós-modernos.
Todavia, um tal relativismo que se mostra aparentemente construtivo é
destrutivo de si mesmo, uma anti-razão que tem a sua própria Razão. Na
experiência estética buscaremos os exemplos mais evidentes, as
características mais marcantes e os principais motivos estéticos que nos
levaram a definir o pós-modernismo. Estabelecendo uma descrição intuitiva
provisória, faremos a apreciação crítica do que dizem os pós-modernos, na
tentativa de realizar uma síntese entre eles. Esse passo nos permitirá
sobretudo retornar o pensamento de NIETZSCHE, HEIDEGGER e DERRIDA
contra os pós-modernos (a fim de renunciar a avalanche de interpretações
que ligam esses autores ao pós-modernismo). Em seguida, estaremos
preparados para desvelar os paradoxos do mundo contemporâneo segundo
o Imperativo de Manutenção que os sustenta. Isso posto, poderemos
determinar o fenômeno da globalização pós-moderna e encarar a
possibilidade de superá-lo.
1
JENCKS, Charles. Late-modern Archicteture. New York: Rizzoli, 1980, p. 06-10.
2
Id. ibidem, p. 20.
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Royce Grill on Wall Street, também em Nova York, de HANS HOLLEIN (1966).
Doze anos depois da construção desse último prédio, o mesmo arquiteto
concebeu o projeto Austrian Travel Bureau, em Viena (1978). Destacamos
nesse último exemplo a mistura desprovida de sentido entre os horizontes
culturais mais afastados: a ruína grega, a cúpula indiana e as palmeiras
marroquinas3. Ele não vê nessas construções a menor preocupação com o
emprego de convenções artísticas da arquitetura. Bem ao contrário: a união
de símbolos os mais diversos e a distorção dos significados são explícitas.
Trata-se de mostrar que em um universo arquitetural particular não
importa quais imagens podem ser misturadas.
Tomemos um outro exemplo no domínio da pintura. Segundo o
geógrafo DAVID HARVEY, no livro The condition of postmodernity,
RAUSCHENBERG foi o pioneiro do pós-modernismo com Persimmon (1964) e
outras colagens4. De fato, nós percebemos nas telas desse pop artist a ruptura
fundamental da distinção clássica entre pintura e escultura, entre foto e
pintura. Ademais, assinalamos o uso de materiais pouco convencionais. A
pintura torna-se escultura e vice-versa; o universo da foto é misturado com
o da pintura. A esta ambigüidade acrescentamos portanto um outro
atributo, a indefinição. Em rigor, nós não podemos decidir se certas telas
pós-modernas são verdadeiramente telas ou esculturas, ou os dois ao
mesmo tempo. No entanto, é necessário reforçar que a questão é muito mais
complexa. Parece-nos mais honesto falar em motivos pós-modernos do que
em telas ou esculturas pós-modernas. Esses motivos nos são dados
sobretudo pelo pop art de WARHOL ou de JONES, o neo-dadaísmo de JASPER
JOHNS, o novo realismo francês, o futurismo ou o minimalismo. Nós
consideramos que há uma profunda relação entre essas escolas artísticas e o
pós-modernismo, porque elas lhe deram a fonte e os instrumentos
necessários, preparando o terreno para a ambigüidade estética, para o
anonimato ou impersonalização do artista manual.
Mas isso não nos parece ainda suficiente. Tornemo-nos um pouco em
direção à literatura e à arte dramática. Também na ficção percebemos a
transição do moderno ao pós-moderno. No livro Postmodernist fiction, BRIAN
MCHALE apresenta esse fato na obra de SAMUEL BECKETT, CARLOS FUENTES
e VLADIMIR NABOKOV5. Todos os instrumentos lingüísticos são permitidos;
3
Id. ibidem, p. 20.
4
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 57.
5
MCHALE, Brian. Postmodernist fiction. London: Methuen, 1986, p. 219-222.
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6
Id. ibidem, p. 222.
7
RAMUT-CHEVASSUS, Béatrice. Musique et postmodernité. Paris: Presses universitaires de France, 1998,
p. 30-33. Mais precisamente, a ópera Votre Faust, de Pousseur, apresentada em Milão (1969); o
Mantra, de Stockhausen (1970), e a Troisième Symphonhie, de Pärt (1971).
8
Id. ibidem, p. 29-82.
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9
LIPOVETSKY, Gilles. L’Ere du Vide – Essais sur l’Individualisme Contemporain. Paris: Gallimard,
1983, p. 89-151.
10
SARTRE, Jean-Paul. L’Idiot de la famille – Gustave Flaubert, de 1821 a 1857. Vol. II. Paris: Gallimard,
1988, p. 1287.
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2 – O Q UE D IZEM OS P ÓS -M ODERNOS ?
Descobrimos no ponto anterior que o artista pós-moderno nos mostra
a sua intenção estética quando ele recusa toda intenção. Mas isso não é mais
do que uma primeira descrição do pós-modernismo, a mais acessível e
imediata. Se nós queremos, no entanto, ir mais longe para examinar o
fenômeno em termos mais amplos (para identificar o sentido de uma
sociedade pós-moderna), é necessário inicialmente considerar a
legitimidade desta questão. Nós tentaremos fazê-lo segundo os próprios
pós-modernos. O que eles dizem a propósito do pós-modernismo.
Não há um consenso entre os teóricos pós-modernos. Estamos de
acordo com YVES BOISVERT, segundo o qual “ninguém se entende sobre a
exata composição discursiva do corpus pós-moderno”11. Todavia, ele tentou
encontrar alguns traços comuns entre os pós-modernistas, e nós retomamos
aqui essa tarefa, a fim de encontrar as idéias fundamentais partilhadas por
eles. Na França, La Condition Postmoderne, de JEAN-FRANÇOIS LYOTARD, já é
uma referência para os pós-modernistas. Nesse texto, que originalmente era
um rapport sobre o saber proposto junto ao governo do Québec, o autor
define o pós-modernismo como “a incredulidade em relação às
metanarrações”12. Nós concordamos com o fato de que atualmente há uma
desconfiança à propósito da metanarração, mas vejamos melhor o que ele
acrescenta a esta constatação. Ela é uma conseqüência do progresso
científico e ao mesmo tempo este a supõe: o pós-modernismo e a ciência se
condicionam mutuamente. Sem recurso à metafísica e à legitimação
metanarrativa, a única legitimação do saber viria da troca. Vemos, portanto,
a primeira conseqüência explícita do seu pensamento: o saber tornando-se
saber-mercadoria. O fim da metanarração implica uma nova concepção da
linguagem. Para compreender melhor o seu pensamento, parece-nos
essencial a retomada do conceito de différend: “Diferentemente de um litígio,
um différend seria um caso de conflito entre duas partes (ao menos) que não
poderiam ser divididas eqüitativamente por falta de uma regra de
11
BOISVERT, Yves. Le Monde Postmoderne – Analyse du discours sur la postmodernité. Paris: Éditions
L’Harmattan, 1996, p.14.
12
LYOTARD, Jean-François. La Condition Postmoderne. Paris: Les Editions de Minuit, 1979, p.07.
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Idem. Le Différend. Paris: Les Editions de Minuit, 1983, p. 09. Optamos por não traduzir o conceito.
Ver ainda na p.24: “Eu gostaria de chamar différend o caso no qual o querelante é desprovido dos
meios de argumentar e se torna por esse fato uma vítima”.
14
Id. ibidem, p. 29.
15
Id. ibidem, p. 17.
29
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16
BELL, Daniel. Les contradictions culturelles du capitalisme. Paris: Presses Universitaires de France,
1979, p. 157 et suivants, p. 206.
17
LYOTARD, Jean-Fraçois. La Condition Postmoderne. Paris: Les Editions de Minuit, 1979, p. 14.
18
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 157.
19
GORZ, André. Adieux au prolétariat – au-delà du socialisme. Paris: Editions Galilée, 1980, p. 123-
124.
20
BAUDRILLARD, Jean. La Société de Consommation – ses mythes et ses structures. Paris: Editions
Denoël, 1970, p. 270 et suivantes.
30
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21
LIPOVETSKY, Gilles. Le Bonheur Paradoxal: Essai sur la société d’hyperconsommation. Paris:
Gallimard, 2006.
22
DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 1992, p. 22 et 44. O livro foi publicado em
1967.
23
BATAILLE, Georges. La Part Maudite. Paris: Editions de Minuit, 1967, p. 28.
31
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24
Id. ibidem, p. 62 e seguintes.
25
SARTRE, Jean-Paul. Critique de la Raison dialectique, Tome I – Théorie des Ensembles Pratiques.
Paris: Gallimard, 1960, p. 210-212.
26
LIPOVETSKY, Gilles. L’Ère du Vide – Essais sur l’Individualisme Contemporain. Paris: Gallimard,
1983, p. 90-151.
27
BAUDRILLARD, Jean. La Transparence du Mal – Essai sur les phénomènes extrêmes. Paris: Galilée,
1990, p. 11.
28
VATTIMO, Gianni. La Fine della modernità. Milan: Garzanti, 1999.
29
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 340.
30
BELL, Daniel. Les contradictions culturelles du capitalisme. Paris: Presses Universitaires de France,
1979, p. 206.
32
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31
MAFFESSOLI, Michel. Le Temps de Tribus – Le déclin de l’individualisme dans les sociétés de masse.
Paris: Meridiens Klincksieck, p. 07-20.
33
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32
VATTIMO, Gianni. La Fine della modernità. Milan: Garzanti, 1999, p. 28.
33
Em Le nihilisme et la nostalgie de l’Être, Mathieu Kessler apresenta as diferentes modalidades de
niilismo segundo NIETZSCHE: 1) nihilisme larvé ou implicite, dans le judéo-christianisme ou le
platonisme, par exemple; 2) nihilisme incomplet, dans le positivisme ou le criticisme, par exemple;
3) nihilisme complet, dans le matérialisme mécaniste, par exemple; 4) nihilisme actif, dans le
processus de généalogie ou dans le terrorisme des nihilistes russes, par exemple; 5) nihilisme passif,
dans l’hédonisme, l’individualisme mercantile, le consumérisme, par exemple; 6) nihilisme
extatique (ekstatischer nihilismus), dans l’affirmation de l’éternel retour comme pensée sélective et
Krisis par excellence (KESSLER, Mathieu. Le nihilisme et la nostalgie de l’Être, in NIETZSCHE et le
temps des nihilistes. Paris: Presses Universitaires de France, 2005, p. 33).
Todavia, há uma grande diferença entre o último tipo de niilismo e todos os outros: Cet extatisme
signifie le fait de pousser à l’extrême les implications du nihilisme pour se ‘tenir debout hors de’
(étymologie de ‘ex-stase’) c’est-à-dire ‘sortir tout droit’ du nihilisme (Id. ibidem, p. 34).
34
NIETZSCHE, Friedrisch. La Généalogie de la Morale. Paris: Editions Ferdinand Nathan, 1981, p. 169.
35
Id. ibidem, p. 203.
36
Idem. Also sprach Zarathustra. Œuvres complètes. Vol. 5. München: Verlag, 1980, p. 334. “Diess ist
der Mensch ohne Ekel, diess ist Sarathustra selber, der überwinder des grossen Ekels, diess ist das
Auge, diess ist der Mund, diess ist das Herz Zarathustra’s selber”.
34
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niilismo porque este era já uma decadência vivida na sua época, o último
movimento pelo qual o homem inverte sua vontade de potência contra ele
mesmo. Para NIETZSCHE, a aposta filosófica consiste absolutamente no
inverso disso: ir além do niilismo negativo pela afirmação da vida. Nós
poderíamos, ao contrário, acrescentar que a vontade de no sens do pós-
moderndo é apenas um novo avatar desta vontade de nada, no fundo
partidária do “plebeísmo do espírito moderno”37.
No que concerne HEIDEGGER, a questão é igualmente complexa,
sobretudo porque o filósofo alemão mudou manifestamente de método
para realizar a passagem da compreensão do ser ao ser da compreensão.
Mesmo levando em conta essa mudança, a idéia fundamental da diferença
ontológica, sempre afirmada no seu pensamento, não nos parece autorizar a
considerá-lo como niilista. Em A ultrapassagem da Metafísica (1938/39),
HEIDEGGER argumenta que o niilismo, enquanto aniquilação da verdade, é o
último triunfo do espírito. Ele nos remete assim a sua interpretação sobre
NIETZSCHE, cuja “metafísica” seria a realização da metafísica. Em outras
palavras, a antimetafísica é ainda metafísica38. Em Ser e Tempo, o sentido do
ser se através da temporalidade e a compreensão do ser está sempre em
relação com o nada. O culto pós-moderno do imediatismo não passa de
uma nova obsessão pelo presente, na perspectiva daquilo que HEIDEGGER
chama “a compreensão vulgar do tempo”. A temporalidade horizontal-
ekstática se temporaliza pelo porvir39. Em realidade, se nós relemos
HEIDEGGER é possível afirmar que esse gosto pós-moderno pelo imediato só
pode ser vivido na inautenticidade. A crítica do niilismo também é colocada
por SARTRE em termos de temporalidade: “Não ser nada é negar o tempo,
dissolve o porvir”40. A propósito do que VATTIMO escreveu, nós lembramos
37
Idem. La Généalogie de la Morale. Paris: Editions Ferdinand Nathan, 1981, p. 88.
38
HEIDEGGER, Martin. Metaphysik und Nihilismus. 1. Die Überwindung der Metaphysik
(Gesamtausgabe). Frankfut: Vittorio Klostermann, 1999, p. 45-47. “10. Der Nihilismus als
Vernichtung der Wahrheit (...). 11. Der Nihilismus als der höchste Triumph des‚ Geistes’ (...). Und
auβerdem: anti-metaphysische Denkweise ist immer noch, ja erst recht anti-metaphysisch, so zwar,
daβ sie Metaphysik – sie umkehrend un auskehrend – vollendet”.
39
Idem. Sein und Zeit. Tübingen: Verlaf, 1972, p. 426. “Die ekstatisch-horizontale Zeitlichkeit zeitigt
sich primär aus der Zukunft. Das vulgäre Zeitverständnis hingegen sieht das Grundphänomen der
Zeit ist Jetzt und zwar dem in seiner vollen Struktur beschnittenen, puren Jetzt, das man
‘Gegenwart’ nennt”.
40
SARTRE, Jean-Paul. L’Idiot de la famille – Gustave Flaubert, de 1821 a 1857. Vol. II. Paris: Gallimard,
1988, p. 1658. Dans un passage postérieur, le philosophe décrit le sens du immuable qui tient
Flaubert après la crise de Pont-l’Évêque. Cette remarque vaut d’ailleurs pour tout choix de
l’instant: Choisir l’instant, infime suspens, où l’avant et l’après se neutralisent, image temporelle
35
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de l’Éternité, c’est s’accrocher au présent, affirmer qu’au-delà du moment vécu, il n’y aura rien
d’autre que la restitution de ce même moment. (p. 1882).
41
TAYLOR, Victor; WINQUIST, Charles. Encyclopedia of Postmodernism. Routledge: New York, 2003, p.
92. “Though Derrida is highly critical of any ‘posts’ and ‘isms’, what is more, of any attempt to
stabilize under a label what he perceives in terms of a movement (a ‘jet/ty’) his work needs to be
appreciated within the wider postmodern critique of the western enlightenment tradition, a
critique which is primarily the dialogue of this tradition with itself. Indeed, it is in his
interrogation of constitutive limits of enlightenment and his insistence on forcing it to take
responsibility for its discourse that his major contribution as a postmodern thinker lies”.
42
HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Blackwell, 1990, p. 49. “Deconstructionism
(a movement initiated by Derrida’s reading of Martin Heidegger in the late 1960s) here enters the
picture as a powerful stimulus to postmodernist ways of thought. Deconstructionism is less a
philosophical position than a way of thinking about and ‘reading’ texts”.
36
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43
Id. ibidem, p. 53. “The effect of such a breakdown in the signifying chain is to reduce experience to
a ‘series of pure and unrelated presents in time’. Offering no counterweight, Derrida’s conception
of language colludes in the production of a certain schizophrenic effect, thus, perhaps, explaining
Eagleton’s and Hassan’s characterization of the typical postmodernist artefact as schizoid.”
44
DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967, p. 26.
45
GASCHE, Rodolphe. Le Tain du miroir, Derrida et la philosophie de la réflexion. Paris: Galilée, 1995, p.
126.
37
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46
FROW, John. Time & Commodity Culture – Essays in cultural theory and postmodernity. Oxford:
Clarendon Press, 1997, p. 218. “One way of describing the imaginary object named postmodernity
is to say that is the name of a fall from memory into history, or from history into amnesia”.
38
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47
MARCUSE, Herbert. Le vieillissement de la psychanalyse in Culture et société. Paris: Éditions de Minuit,
1970. Traduction de Gérard Billy, Daniel Bresson et Jean-Baptiste Grasset, p. 265.
39
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48
VIRILIO, Paul. Cybermonde, la politique du pire – entretien avec Philipe Petit. Paris: Editions Textuels,
1996, p. 22-23.
49
Id. ibidem, p. 14-16.
40
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enquanto negação, tira a sua força do nada. Mas se trata de uma negação
que se inverte contra ela mesma: em lugar de dinamizar, ela estabiliza. A
vivência de uma tal vontade só poderia ser passivizante. Aquilo que SARTRE
escreve no L’Idiot de la Famille, a respeito do jovem Flaubert, é também
válido para a atividade passiva do pós-moderno. “A vontade de aniquilação
vale inicialmente para ela mesma, e a sua significação mais aparente é a
expressão do ressentimento e a passividade”50.
O que nós chamamos aqui de “pós-modernismo normativo” é,
portanto, um imperativo de manutenção de um status quo da sociedade
ocidental contemporânea. Ele funda a possibilidade de afirmar e de viver a
contradição pós-moderna, pela qual se faz aparecer a ilusão de uma
realidade múltipla sobre a base de uma unidade serial do sincrônico, do
diacrônico e do discurso. Sabemos portanto qual é o sentido do imperativo,
interiorizado por cada um nas diversas estruturas da sociedade. Isso não se
faz em tensão e sem jogo de forças. Exatamente por esta razão há uma
intenção complementar de expansão do imperativo, até tratar o mundo
como uma totalidade fechada. Para ser eficaz é necessário que o imperativo
seja total e valha para a totalidade. Assim, cada tensão dialética particular
remete perpetuamente à nova metafísica do mesmo. Esta é a fonte da
unidade serial do mundo contemporâneo e ao mesmo tempo das
numerosas inegalidades sociais51.
50
SARTRE, Jean-Paul. L’Idiot de la famille – Gustave Flaubert, de 1821 a 1857. Vol. II. Paris: Gallimard,
1988, p. 1657.
51
A propósito da inegalidade social entre os países: “The economist Stanley Fischer has drawn
attention to two separate but contradictory trends in international inequality (Fischer, 2003). First,
he points to the fact that international inequality between countries was increasing over the
period 1980-2000. In order for between-country inequality to have decreased, countries that were
poor in 1980 would have had to experience higher rates of growth than rich countries”
(THOMPSON, Grahame F. Global Inequality, the ‘Great Divergence’ and Supranational
Regionalization. HELD, David et KAYA Ayse (coordination). Global Inequality. Cambridge: Polity,
2007, p. 178).
41
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52
VINDT, Gérard. 500 ans de capitalisme – la mondialisation de Vasco da Gama à Bill Gates. Paris:
Éditions Mille et une nuits, 1998, p. 07. O autor apresenta a globalização distribuída nas seguintes
etapas: “a) 1500-1765 (Antuérpia- Amsterdão); b) 1765-1873 (Triunfo e a industrialização); c) 1873-
1914 (2e Revolução industrial, colonização e fim da hegemonia inglesa); d) 1914-1945
(Globalização da grande crise dos países capitalistas; e) 1945-1973 (Liberalismo das trocas e a
hegemonia americana); f) 1973 até o presente (Queda do bloco soviético, desenvolvimento do
capitalismo nos países do ‘terceiro mundo’, liberalização crescente do fluxo de bens, de serviços e
de capitais)”.
53
O autor sustenta a existência de cinco modelos de capitalismo na atualidade: 1) Capitalismo
liberal de mercado (EUA e Reino-Unido); 2) Capitalismo asiático; 3) Capitalismo europeu
continental; 4) Capitalismo social-democrata; 5) Capitalismo mediterrâneo (AMABLE, Bruno. Les
cinq capitalismes: diversité des systèmes économiques et sociaux dans la mondialisation. Paris:
Seuil, 2005, p. 221-290).
42
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54
AMMANATI, Laura. Le marché et l’État à l’heure de la mondialisation – les privatisations. THIRION,
Nicolas (Coordination). Le Marché et l’État à l’heure de la mondialisation. Bruxelles: De Boeck &
Larcier, 2007, p. 103-124. As três categorias de privatização são apresentadas e analisadas pela
autora nos seus diversos aspectos reguladores e orçamentários.
55
ARNAUD, André-Jean. Critique de la raison juridique 2 – Gouvernants sans frontières. Entre
mondialisation et post-mondialisation. Paris: Librairie Général de Droit et de Jurisprudence, 2003,
p. 94.
43
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56
Id. ibidem, p. 183-270. O autor designa as globalizações em inglês: “above”, “below”, “alongside”,
“through” and “beyond”.
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57
OST, François. Le Temps du Droit. Paris: Éditions Odile Jacob, 1998, p. 293.
58
Id. ibidem, p. 294.
59
Id. ibidem, p. 312-313.
60
THOMAS, Yan. Le sujet de droit, la personne et la nature – Sur la critique contemporaine du sujet de
droit in Le Débat, n. 100, maio-agosto 1998, p. 93.
45
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61
Id. ibidem, p. 93.
62
Id. ibidem, p. 88.
63
SANTOS, Boaventura de Souza. Vers un Nouveau Sens Commun Juridique – Droit, science et politique
dans la transition paradigmatique. Paris: Libraire Générale de Droit et de Jurisprudence, 2004, p.
60-70.
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CRIMINOLOGIA, PSICOLOGIA E
PSICANÁLISE: CONTRIBUTIVOS À ANÁLISE
DAS VIOLÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS
P EDRO J OSÉ P ACHECO *
N EUZA M ARIA DE F ÁTIMA G UARESCHI **
*
Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica pelo CFP, mestre em Psicologia Social e Institucional
pela UFRGS, doutorando do PPG em Psicologia da PUCRS. Professor do Curso de Psicologia da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões.
**
Psicóloga, doutora em Educação pela University of Wisconsin – Madison. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.
1
CANGUILHEM, G. O que é a Psicologia? In: Impulso. Revista de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba/SP, Volume 11, Número 26, pág. 11 – 26, 1999.
Citação da pág. 26
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52
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2
MATOS, O. Filosofia e polifonia da razão: filosofia e educação. São Paulo: Scipione, 1997. Citações da
pág. 120.
53
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3
BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1999.
4
BERNARDES, A. G.; GUARESCHI, N. M. & MEDEIROS, P. F. O conceito de saúde e suas implicações nas
práticas psicológicas. Citação da pág. 264.
5
FOUCAULT, M. Os Anormais: curso no Collège de France (1974 – 1975). São Paulo: Martins Fontes,
2001.
54
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6
BERNARDES, A. G.; GUARESCHI, N. M. & MEDEIROS, P. F. O conceito de saúde e suas implicações nas
práticas psicológicas. Citação da pág. 266.
7
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Cadernos da PUC-Rio, 1974.
8
ELBERT, C. A. Manual Básico de Criminologia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003. Citação da pág.173.
55
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9
BERNARDES, A. G.; Guareschi, N. M. & Medeiros, P. F. O conceito de saúde e suas implicações nas
práticas psicológicas. Citação da pág. 266 e 267.
10
RAUTER, C. Clínica e Estratégias de Resistência: perspectivas para o trabalho do psicólogo em
prisões. Citação da pág. 05
11
HOENISCH, J. & PACHECO, P. A Psicologia e suas transições: desconstruindo a “lente” psicológica
na Perícia. In: CARVALHO, S. Crítica à Execução Penal – Doutrina. Jurisprudência e Projetos
Legislativos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. Citação das págs. 191 e 192.
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Quando até então se pensava que a razão fosse a existência humana e que o
ser fosse cognocente e racional (ideal cartesiano), a psicanálise, ao reiterar
que é onde o sujeito não pensa que ele é, introduz a importância do
desconhecimento e da ambivalência na constituição do sujeito, contrastando
o sujeito cognocente com a noção de sujeito do desejo e problematizando
questões sobre verdade e previsibilidade do comportamento, já que, “na
perspectiva psicanalítica, não é a história real que importa: não há uma
preocupação com a veracidade dos fatos narrados pelo cliente”. Nessa
perspectiva, “a fala do indivíduo é tomada enquanto tal, não se levando em
conta se falseia ou não a realidade dos fatos”12. Neste sentido ainda, a
perspectiva das teorias pós-estruturalistas que incorpora a virada
lingüística, entende o sujeito produzido pelas práticas de significação, as
quais constituem os modos de ser e se pensar no mundo, desprovido, de
qualquer essência, ou de algo que é naturalmente da interioridade do
indivíduo, tratando-se, assim, sempre do sujeito do discurso.
Em termos de concepção epistemológica de sujeito, tal inovação
introduz a noção de ser faltante, ambivalente e paradoxal, inserindo a noção
de loucura e de problematização do conflito humano como constitutivo do
sujeito, este inserido num mal-estar cultural e lingüístico que faz com que o
sintoma seja não exclusivamente individual, mas cultural. Assim, as
agressões, violências e criminalizações são expressões de uma subjetividade
produzida pelos diversos dispositivos de dominação das estruturas da
sociedade, caracterizando modos diversificados de inserção no laço social
produzido pelas relações de poder e saber institucional e cultural que não
são da ordem do indivíduo. Ou seja, o laço social passa por práticas de
significações na cultura que produzem os modos de o sujeito relacionar-se
com a norma.
Porém, mesmo dentro das teorias que se dizem influenciadas pela
psicanálise, a corrente norte-americana denominada de psicologia do ego
tenta resgatar a lógica individualizante e capturante da subjetividade
humana, trazendo para o ideal da modernidade as idéias de ordem e razão
regulando as relações sociais. Com isso, novamente busca-se um
intercruzamento que naturaliza a relação entre a Psicologia e a criminologia.
Com esse ideal de ordenação positivista e racionalização cartesiana,
determinadas práticas psicológicas tentam explicar e compreender os
12
Diagnóstico Psicológico do Criminoso: Tecnologia do Preconceito. In: RAUTER, C. Criminologia e
Subjetividade no Brasil. Rio Revan, 2003. Citação da pág. 88 e 89.
57
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58
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14
ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Nunca fomos humanos – nos
rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. Citação da pág. 176.
15
Ibidem. Citações da pág. 189.
59
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16
BARROS, Fernanda Otoni. Psicologia Jurídica na Reforma do Direito da Família – Legalidade da
Subjetividade. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Repensando o Direito de Família. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. Citação da pág. 432.
17
BRAUNSTEIN, N. Mídia On Line: <http://www.edupsi.com/culpabilidad.>
18
RAUTER, C. Clínica e Estratégias de Resistência: perspectivas para o trabalho do psicólogo em
prisões. Citação da pág. 04.
60
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19 TIMM, Ricardo de S. Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2000. Citação da pág. 191 e 192.
20
FILHO, N. A. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Revista de Saúde Coletiva, II (1/2), 1997.
Citação da pág. 13.
21
RAUTER, C. Clínica e Estratégias de Resistência: perspectivas para o trabalho do psicólogo em
prisões. Citação da pág. 07.
61
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22
Ibidem, citação da pág. 10.
23
BRANDÃO, E. P. & GONÇALVES, H. S. (orgs.). Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU Ed.
2004. Citação da pág. 7.
62
POR FAVOR, ME AJUDA A PODER SENTIR...
OU SOBRE A PSICOPATOLOGIA DO
CONTEMPORÂNEO
L IANE P ESSIN *
*
Psicóloga, psicanalista, professora da UNISINOS, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
1
Nome fictício
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que lugar está o mundo para ela? Em que lugar ela está no mundo? Que
mundo? Quem ela?
Clara procura um lugar para acontecer, para ser.
Os tempos são outros. Havia aquele tempo em que havia os lugares.
Aqueles que chegavam aos consultórios de psicoterapia vinham cheios de
conflitos, frustrações, desilusões, desejos mal colocados, contraditórios;
enfim, traziam a angústia da batalha entre partes ou campos de si. Além
disso, essas batalhas eram carregadas de idolatria, de mitos, de tentativas de
ser melhor.
Os tempos são outros. Neste tempo, a maioria daqueles que chegam
ao consultório traz consigo angústias de privação e de desamparo. Mostra-
se com pouca experiência de embate e muito desespero e desesperança.
Mas, o que se passa com Clara para que ela não consiga sentir?
A leitura que se possa fazer sobre a produção dos processos
psíquicos, modos de experimentar a vida, ou até mesmo da psicopatologia é
sempre balizada por escolhas; tanto no campo das teorias quanto dos
recortes ou perspectivas desde onde se apreende o lugar sobre o qual se
coloca luz. Iluminar-se-á a demanda de Clara a partir de um olhar
psicanalítico sobre o sujeito contemporâneo.
Clara viaja para o exterior para trabalhar e aprender inglês. Segundo
ela, sente-se muito bem lá porque está identificada com as pessoas com as
quais convive. Contata diariamente, pela internet, com sua melhor amiga
que permanece no Brasil. De repente esta amiga começa a tornar-se
melancólica e planeja o seu suicídio por diferentes lugares da rede. Clara
tenta dissuadi-la de seu propósito, mas de alguma forma percebe-se
seduzida pelo projeto tão heróico da amiga2. Quando se dá conta de que a amiga
iria realmente se suicidar tenta entrar em contato com a família dela, mas é
tarde demais. A amiga se suicida. Clara segue sua vida como se nada
tivesse acontecido porque segundo ela: ninguém lhe avisou nada; a família e os
amigos não lhe avisaram nada... Ela só parou de falar comigo, apenas isto.
Pouco tempo depois do episódio do suicídio da amiga, Clara começa
a ter dores agudas nas costas que a impedem de continuar trabalhando
como garçonete. Fica só estudando, o que para sua família se torna inviável
2
Palavras de Clara. A partir daqui colocaremos as palavras de Clara em itálico para se destacarem
do texto.
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As moradas eram tão sólidas... Tão sólidas que daí produzia-se o mal-
estar moderno. Como diz CAETANO VELOSO “a dor e a delícia de ser o que
é”. Sentir era bom e era pecado. E a culpa para se enfrentar a transgressão?
Não se quer mais ser escravo, se quer ser livre da opressão! Ser bom e ser
justo de alguma maneira salva.
Hoje as moradas são tão frágeis. Nunca se foi tão autônomo e tão
frágil. Quanta precariedade de força para se iludir e, ao mesmo tempo, para
enfrentar a desilusão. Se as realidades não são fatos, mas interpretações3,
para produzir realidades e sentir-se real se tem que interpretar e interpretar
pressupõe um lugar desde onde se arremessa a enunciação. O homem
moderno vive a experiência limite do questionamento de todos os
elementos que colocam em cheque a propriedade mais básica do indivíduo,
a saber, a condição de indiviso. Aquilo que cimentava uma suposta unidade
de si e dava lugar para o acontecer se esvai. Desde aí surge o homem
contemporâneo ou, pelo esgarçamento da modernidade, hipermoderno4.
Clara, aqui, expressão pontual da subjetividade contemporânea,
constrói uma envergadura interior precária. As fronteiras internas de seu
ser são frouxas. Aqueles acontecimentos que precisavam ser guardados ou
escondidos em prol do esquecimento necessário para enfrentar a vida –
constituindo uma ilusão relativamente estável sobre o devir – não ficam
preservados de um contato direto com seu corpo. Não vêm em ondas
criando desvios, destinos ou sentidos para uma expansão de si. Perfuram,
irrompem, ameaçam o tempo inteiro. Parodiando WINNICOTT5, Clara sofre
de excesso de realidade.
O sujeito enfrenta e cria um nível de transcendência do real do corpo
se aqueles que falam pelo mundo supõem que ele possa sair desta condição,
que ele possa ser criado e criar-se. O sujeito torna-se capaz de ser, se aqueles
que falam pelo mundo supõem, nele, uma fantasia de controle sobre o seu
devir. Trata-se, então, da possibilidade de construção de uma ilusão de um
vir a ser. Em se consolidando esta ilusão se pode supor, também, que este
sujeito é forte o suficiente para enfrentar os percalços da caminhada, ou as
desilusões. Assim, cria-se um lugar paradoxal – porém capaz de enunciação
– que poderia chamar-se de morada interior, território destas suposições,
lugar desde onde se pode ser.
3
Como nos dizia NIETZSCHE.
4
Conforme GILLES LIPOVETSKY.
5
Psicanalista inglês.
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6
Pode-se citar aqui os paradoxos do homem hipermoderno de LIPOVETSKY.
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PSICANÁLISE E REDUÇÃO DE
DANOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
M ARTA C ONTE *
*
Doutora em Psicologia e Professora da Unisinos.
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para ser acessado precisa situar-se em relação a sua existência para chegar a
demandar algo.
Para diminuir a eficácia da droga e propor alternativas de promoção
da vida muitos recursos da coletividade precisam ser mobilizados, evitando
a pedagogia do “terror” e do combate às drogas e os procedimentos de
amedrontamento e intimidação” (Ministério da Educação e do Desporto,
1994) priorizando o estabelecimento de redes de solidariedade, a qualidade
nas relações interpessoais, a comunicação nas relações humanas, enfim, os
valores essenciais ao desenvolvimento do indivíduo na sua rede social.
Considera-se que o Estado em conjunto com a sociedade devem
buscar prover as condições indispensáveis, por meio de políticas
econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doença e de outros
agravos e ao estabelecimento de condições que assegurem acesso universal
e igualitário às ações e serviços voltados para a problemática do uso
indevido de drogas.
O grande desafio em termos de rede de atendimento ao usuário de
drogas é a falta de recursos humanos e infra-estrutural material voltados
aos adolescentes, seja ambulatório, CAPS ou hospital, na perspectiva da
interdisciplinaridade, integralidade e na composição de recursos
intersetoriais. A base impulsionadora de um atendimento de qualidade é a
formação de recursos humanos que deve ser permanente e na ótica da
descentralização valorizando os recursos regionais.
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1
“Brets” na linguagem do campo trata-se do local onde o gado é encaminhado para ser vacinado ou
morto.
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C ASO D
Por causa de um baseado que passou adiante acabou no presídio
central. Já na rua consumia crack, depois de preso com o acesso facilitado no
presídio passou a consumir diariamente. A condição psíquica ficou
alterada, altos e baixos, momentos de depressão profunda. Não conseguia
elaborar a experiência da prisão e nem tirar algum proveito do
confinamento. Precisava de atendimento psicológico e não havia.
Ao ser procurada para ajudá-lo, através do Centro de Referência em
Redução de Danos da ESP, trabalhou-se no sentido de referenciar a família
para a busca de saídas através da ONG IAJ (Instituto de Acesso à Justiça).
Essa ofereceu o respaldo jurídico necessário levando os princípios da
redução de danos como defesa, facilitando o diálogo com o juiz e a saída do
presídio e a reabilitação psicossocial, não sem deixar danos difíceis de serem
administrados. No entanto, a rede de apoio estabelecida com familiares, IAJ
e Centro de Referência em Redução de Danos foi fundamental na
perspectiva de debate no sentido da defesa dos direitos humanos dos
usuários de drogas.
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D IÁLOGO E Q UESTIONAMENTOS
A Redução de Danos como uma concepção que flexibiliza as
abordagens voltadas ao sujeito envolvido com as drogas não promete um
objeto harmônico ou a recuperação de um sujeito ideal. Ao contrário,
valoriza a singularidade e o tempo não impondo ideais pré-formatados ou
impossíveis.
Para a Redução de Danos a direção do tratamento é resultante de um
processo, que inicia muito antes de o sujeito chegar a um tratamento
propriamente dito, já que a aproximação dos redutores de danos com esta
população vulnerável trabalha as condições da existência que permitirão ao
sujeito toxicômano demandar tratamento ou outras formas de auxílio ou
inclusão social. Este trabalho preliminar tenta recuperar a palavra, a
história, as marcas e a memória do sujeito toxicômano, reconhecendo sua
existência e escutando suas queixas, necessidades e demandas.
Um problema que esta concepção pode oferecer é de deixar o sujeito
mais livre ainda do que se encontra, sem sinalizadores que sirvam de
obstáculo a uma entrega servil ao grande Outro. No entanto, a proximidade
e pouca exigência inicial dos redutores de danos com os toxicômanos
facilita o vínculo, porque respeita a distância que o toxicômano precisa
manter com o Outro para não se sentir invadido. Há um grande cuidado,
também, em não cair em uma apologia ao uso de drogas, mesmo que
muitos pratiquem a RD nestes termos.
A escuta analítica tem uma importante função na clínica das
toxicomanias e para efetivar esta função precisa-se reconhecer as
especificidades quanto à linguagem, à transferência, ao sintoma e ao gozo
implicados. Esta escuta pode abrir vias, escavar algo entre a “necessidade” e
a demanda que vislumbre um lugar para o sujeito (CONTE, 2003).
Considerando as especificidades citadas ressalta-se a importância do
trabalho analítico estar articulado a uma equipe interdisciplinar, além da
flexibilidade da posição do analista e da importância em referenciar outros
recursos de suporte, na direção do tratamento das toxicomanias.
Talvez um dos problemas que se possa refletir aqui é sobre a difícil
vinculação do toxicômano em análise, sem o trabalho sobre a demanda. É
justamente antes que o sujeito emerja que há um trabalho preliminar que
pode estar compreendido no campo da psicanálise e como responsabilidade
do analista.
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R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Saúde. (2001) Coordenação Nacional de DST e Aids. Manual de
Redução de Danos. Ministério da Saúde, Coordenação Nacional de DST e Aids. Brasília:
Ministério da Saúde.
CONTE, Marta. (2000) A Clínica Psicanalítica com Toxicômanos: o “Corte & Costura” no
enquadre institucional, Tese de Doutorado, PUC-SP.
CONTE, Marta. (2003) Necessidade, Demanda e Desejo: os tempos lógicos na direção do
tratamento nas toxicomanias. Revista da APPOA, ano XI, nº 24, maio.
LE POULICHET, Sylvie.(1990) Toxicomanías y psicoanálisis – Las narcoses del deseo. Buenos
Aires: Amorrortu editores.
MELMAN, Charles. (1992) Alcooolismo, delinqüência e toxicomania – uma outra forma de gozar.
São Paulo: Escuta.
TENÓRIO. Fernando. (2001) A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro:
Rios Ambiciosos.
WAKS, Claudio E.M. (1995) A clínica psicanalítica da toxicomania – o lixo clínico. São Paulo:
PUC-SP, abril. 1995. (Trabalho apresentado no II Congresso de Psicopatologia
Fundamental da PUC-SP).
80
DESVIO, LOUCURA E TOXICOMANIAS:
LEITURAS DESDE A FILOSOFIA, A
PSICOLOGIA E A PSICANÁLISE
M ARTA C ONTE *
P ATRÍCIA G ENRO R ÓBINSON **
M ONICA D ELFINO ***
M ARGARETH K UHN M ARTTA ****
*
Doutora em Psicologia e professora da Unisinos.
**
Mestre em Psicologia e professora da ESP/SES e FATO.
***
Psicóloga e Mestre em Ciências Criminais.
****
Mestre em Psicologia e professora da UCS.
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é alguém que pode nomear o que lhe falta. É por isso que se diz
que na toxicomania o objeto é real, e corresponde ao que
anestesia a dor de viver, corrige (ainda que em flashes) o mal-
estar de algo que escapa. Este objeto, a droga, indica um prazer
que não mais necessita passar pelo tortuoso caminho das
palavras, sempre aproximativo.
Palavras-Chave: Toxicomanias – felicidade – consumo – falta –
mal-estar
Com esta fala, desejamos trazer um mote que sinaliza a adição como
um imperativo importante de nosso tempo. Nesta perspectiva, a
toxicomania é um sintoma possível e em consonância com os discursos
vigentes, o discurso produzido numa cultura de consumo e o discurso da
ciência com sua promessa de bem-estar e felicidade, através da solução de
toda impossibilidade.
Nestes discursos, uma produção comum: um homem reificado, que
transformou os objetos em valor central de sua constituição. Este homem
tem como encargo ganhar a corrida pelo gozo acreditando encontrar nos
objetos a possibilidade de se obturar a falta, a falta esta que nos constitui,
que nos dá o mundo, mas que nos cobra 1 libra carne: não há gozo absoluto
(Mercador de Veneza).
Para não deixar de situar de onde falo, desde que leitura minha fala se
autoriza, lembro que FREUD em O mal-estar na civilização cita o uso de drogas
como uma das estratégias colocadas em ato pela humanidade para escapar
ao caráter transitório da felicidade. Importante sublinhar que a felicidade é
um ideal, e todos nós sabemos o quanto o ideal se relaciona com a morte.
Um amor ideal é um amor eterno, e um amor eterno é um amor morto,
posto que vivê-lo é consumá-lo e consumi-lo, colocar-se diante de suas
fraturas nada ideais. Um filho ideal é um filho morto....
Uma curta digressão para logo retornar a um pouco mais do mesmo,
a toxicomania. Felicidade nas grandes línguas européias, nas suas formas
mais arcaicas, tem uma raiz que significa sorte, fortuna. Felicitas significa
ventura, sua raiz é felix, aquilo que é fecundo, fértil, favorecido. É assim que,
originalmente, a felicidade não era algo que pudesse ser almejado, buscado
por todos os homens, mas algo que cabia amiúde a um outro.
Evidentemente a percepção do que seria felicidade sofreu uma série de
mudanças que diziam respeito aos movimentos vividos em cada época.
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Na Grécia antiga era feliz aquele que tinha boa saúde, força, boa sorte
na vida, êxito na formação individual; em suma, os correlatos de uma alma
bem formada.
Já o cristianismo retirou a felicidade do escopo de possibilidades que
a vida neste mundo poderia oferecer e a postergou para a vida a ser vivida
após a morte.
O renascimento e, logo, o iluminismo defendem que se pode obter
felicidade e, radicalizando a idéia, postulam-na como um direito inalienável
do homem, um sentimento a que se deve aspirar e pelo qual se deve lutar,
mas a via para obtê-la ganha opacidade.
E aqui um ponto importantíssimo, perdeu-se a clareza com que a
felicidade era definida: seja através de um destino da fortuna, ou de uma
recompensa pela virtude, ou ainda como uma graça a ser vivida em vida
póstuma, a felicidade era um estado possível através de alguma via. A
modernidade faz crer então que a felicidade é um direito humano ao
alcance da mão de qualquer um que se coloque a buscá-la e parece mostrar
que todas as vias de obtenção da felicidade são possíveis, não elegendo
nenhuma em especial.
Passamos a ter uma definição incerta do que é a felicidade, mas,
paradoxalmente, estamos submetidos a um esmagador imperativo de
sermos felizes.
CONTARDO CALLIGARIS vai chamar a isso de um imperativo
enigmático e vai afirmar que essa é uma peça essencial da nossa
organização social. Lembremos de um exemplo de DIANA e MARIO CORSO.
A chave do enigma é oferecida pelos dois grandes discursos que
permeiam a atualidade. O discurso capitalista – sobretudo em sua dinâmica
liberal – e o discurso científico. Ambos detêm o passaporte para a felicidade
instantânea e sem mediação. Ambos nos fazem crer que há um objeto na
medida exata do desejo para gozar como Deus.
Retornamos então ao ponto exato onde tinha proferido a primeira
frase de que a adição é um imperativo importante na modernidade e que,
portanto, a toxicomania é um sintoma legítimo deste tempo.
Mas atenção: estamos todos organizados segundo a adição, mas uma
adição de objetos simbólicos, representantes de algo inominável e que nos
mantêm vivos e falantes enquanto buscamos este inominável. Dele,
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CRIMINOLOGIA E PSICANÁLISE:
POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO
S ALO DE C ARVALHO *
*
Professor Titular de Direito Penal (Graduação) e Criminologia (Mestrado em Ciências Criminais)
da PUCRS.
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tudo’, mas porque cada vez mais é possível afirmar que o Direito não tem
salvação sem as luzes do discurso psicanalítico”1.
Se o direito e a psicanálise possuem discursos evidentemente diversos
e qualquer aproximação deve ser realizada com extremo cuidado
(COUTINHO), a criminologia, ao realizar este desafio, não se inscreve no
universo das disciplinas propriamente jurídicas; sequer poderia ser referida
desde o ponto de vista dos modelos integrados de ciências criminais
tradicionais (ROCCO e LISZT) ou críticos (HASSEMER, FERRAJOLI e
ZAFFARONI).
É que a criminologia, diferentemente da dogmática do direito (penal),
possui natureza interdisciplinar, logo inegável a facilidade em promover
diálogos não ortodoxos, distantes da rigidez formal do jurídico. Se no plano
epistemológico, apesar das dificuldades, é possível identificar o local da
ciência jurídica e estabelecer os horizontes de discussão possíveis com a
psicanálise, no que diz respeito à criminologia as imprecisões são
amplificadas. Sobretudo porque a criminologia, a partir de séria
problematização sobre questões epistemológicas, passa a ser percebida
como locus de fala e de escuta no qual se encontram inúmeros e distintos
saberes acerca do crime, da violência, do criminoso, da vítima, da
criminalidade, dos processos de criminalização e das formas de controle
social. Assim, a própria identificação da criminologia como ciência resta
prejudicada ou, no mínimo, seriamente questionada.
A constituição da criminologia como espaço de convergência de
discursos não apenas possibilita o encontro de olhares plurais – inclusive
não científicos, como o olhar artístico –, mas fomenta a abertura e a
autocrítica destes saberes interseccionados. Trata-se, pois, de local de
encontro e de (auto)reflexão.
A história das idéias criminológicas permite verificar empiricamente
esta construção ímpar, mormente se a criminologia for pensada como
disciplina jurídico-penal. Em sua formulação primeira (criminologia
etiológica), estabelecida no campo jurídico como ciência auxiliar, ganha
autonomia e identidade própria ao se aproximar da medicina (em especial
da psiquiatria), da psicologia, da antropologia e da sociologia, ciências que
passam a ser adjetivadas pelo rótulo criminal. O processo de autonomização
objetivou, inegavelmente, a identificação da criminologia como ciência.
1
COUTINHO, O Estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro?, p. 69.
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2
“Somente quando o discurso freudiano se desgarrou do ideal cientificista – promovendo o luto
trágico de não pretender mais ser uma ciência – é que se constituiu a condição de possibilidade
para que uma leitura crítica do mal-estar da modernidade pudesse ser realizada com
radicalidade. Somente então a psicanálise pôde se apresentar como discurso crítico sistemático
sobre a cultura” (BIRMAN, Mal-Estar na Atualidade, p. 40).
3
BIRMAN, Mal-Estar..., p. 46.
90
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4
NIETZSCHE, Genealogia da Moral, p. 62.
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5
BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 60.
6
SUTHERLAND, El Delito de Cuello Blanco, p. 307.
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R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan,
1997.
BIRMAN, Joel. A Psiquiatria como Discurso da Moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
__________. Mal-estar na Atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
COUTINHO, Jacinto. O Estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro?. in Direito e
Psicanálise: intersecções a partir de ‘O Estrangeiro’ de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.
7
BIRMAN, A Psiquiatria como Discurso da Moralidade, p. 28.
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NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral (uma Polêmica). São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
SUTHERLAND, Edwin. H. El Delito de Cuello Blanco. Madrid: La Piqueta, 1999.
94
CRIME E CASTIGO: A QUESTÃO DA CULPA E
AS LEGALIDADES (DIREITO & PSICANÁLISE) *
A LEXANDRE M ORAIS DA R OSA **
*
Discurso proferido na Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, em atividade do Programa
de Mestrado em Ciências Criminais, no dia 22 de junho de 2007.
**
Pós-Doutorando em Direito (Faculdade de Direito de Coimbra – Portugal – e Unisinos – RS).
Doutor em Direito (UFPR). Mestre em Direito (UFSC). Professor do Programa de Mestrado em
Direito da UNIVALI (SC). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito
(SC).
1
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Obras psicológicas completas. Trad.
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 17-219, v. VIII
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AURY LOPES JR., NEREU GIACOMOLLI, NEY FAYET JÚNIOR, dentre outros. Cabe
marcar, também, que devo muito, junto com SALO DE CARVALHO, ao que
JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO2 nos legou, especialmente no
campo da Psicanálise. Vamos atravessados, então, ao Crime esperando o
julgamento e eventual, quem sabe, Castigo, porque a culpa se sustenta.
2. BORGES dizia que o livro é o instrumento mais assombroso do
homem por proporcionar a extensão da memória e da imaginação, e que, no
caso de DOSTOIEVSKI, toda sua obra3 não poderia ser resumida em uma
página, dado o conjunto impactante, o qual nos lança sempre numa cidade
desconhecida. O que afronta, todavia, é que o estranhamento, no caso de
Crime e Castigo, é de uma normalidade lancinante. Uma normalidade que é
anormal, e de muitos. Muito mais normal do que parece a nós mesmos.
Talvez por isso FREUD tenha afirmado que “o estranho que é aquela
categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há
muito familiar”4.
3. Parece inevitável o risco de querer estabelecer o que o autor, no
caso, DOSTOIEVSKI, quis transmitir ao escrever Crime e Castigo, isto é,
enunciar a “verdade última” do texto. Isto seria deslizar no Imaginário que,
contudo, satisfaz a muitos. Rejeito esta maneira de pensar, até porque nem
mesmo o autor poderia, no discurso consciente, dizer o que pretendia,
tomado que é pelo que se articula na cadeia de significantes, depois, sem
controle... Para além da consciência, uma outra cena atravessa: o
inconsciente. Seria uma pretensão extremamente arriscada e, digamos,
pedante, dizer o que DOSTOIEVSKI quis dizer, sob pena de se cair num
equívoco metafísico. Por isto, neste momento, a partir da minha mirada,
porque é preciso enunciar desde algum lugar, a coisa vai para uma possível
interlocução entre Direito & Psicanálise, metaforizando, via Literatura –
estratégia do Núcleo de Direito & Psicanálise da Universidade Federal do
2
MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Jurisdição, Psicanálise e o Mundo Neoliberal.. In: Direito e
Neoliberalismo: Elementos para uma Leitura Interdisciplinar. Curitiba: EdiBEJ, 1996..., p. 41-42:
“Ficou patente, por exemplo, que se não pode fazer um discurso psicanalítico do direito e muito
menos um discurso jurídico da psicanálise. (...) Os elementos dos campos (direito e psicanálise),
por outro lado, não têm a mesma estrutura e não podem ser tomados como lugar-comum.
Arriscar a identidade é ceder à comodidade, mas incorreto, para não dizer falso. Atitude
empulhadora, deslumbra na primeira aparência pelas fórmulas fáceis, mas oferece o cadafalso no
momento seguinte.
3
TROYAT, Henri. Dostoievski. Trad. Irene Andresco. Barcelona: Vergara, 2004.
4
FREUD, Sigmund. O ‘estranho’. In: Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1997, v. XVII, p. 238.
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5
MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (org.) Direito e Psicanálise: Interseções a partir de ‘O
Estrangeiro’ de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; Direito e Psicanálise.
6
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. Legalidade e subjetividade. In: PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. Legalidade e
subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 161-207. Especialmente: “Aqui se explicita
a construção peculiar da subjetividade que circula nas avenidas legais das Cidades do Bem: o
espelho que reflete o amigo do homem de bem como um outro eu... A lei, enfatiza Aristóteles,
deve estimular os seres humanos à virtude e instigá-los com motivos nobres para que os sensíveis
a essas influências se reconheçam em um reflexo especular e, através dessa constatação, estejam
igualmente habilitados a banir – com justiça – da cidade e, até mesmo (por que não dizer?) da
espécie – aqueles que não conseguem progressos consideráveis, mercê da formação dos hábitos
em função de pertencerem a uma natureza inferior... A lei do bem congrega os homens bons,
desvela, assim, o seu verdadeiro mandato: a segregação daqueles que, em razão de certas
imposições legais, não se adequam à imagem dos virtuosos... O vínculo estabelecido entre o bem
supremo e o bem-estar – fundado na suposição segundo a qual há inscrita na natureza e na
psyché uma finalidade que leva a essa concordância – converteu-se, nessa via, em um fator de
política e das suas obras de arte – as leis –, no qual os mestres de plantão encontram-se sempre
numa base de legitimidade, dizendo-se representantes desse suposto laço que promove o
interesse da polis e a felicidade daqueles que sabem reconhecê-lo.”
97
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7
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: UNICAMP,
1997, p.23: “Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da
linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante.”
8
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei: uma abordagem a partir da leitura cruzada entre direito e
psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 19: “O equilíbrio precário estabelecido entre as
forças equivalentes no registro do simbólico expõe as vicissitudes de um ser que, em virtude de
sua própria constituição, está, por assim dizer, predisposto a cair nas armadilhas de um outro
qualquer, capaz de lhe indicar as coordenadas de um bom caminho, quer dizer, aderir ao cruel
discurso de um Outro da espécie mais absoluta, responsável pela estabilização de um certa
concepção do mundo através da qual os seres e as coisas são cristalizados em imagens eternas, em
simulacros.”
9
ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 63-64: “De maneira mais precisa, poderíamos dizer que a fantasia
ideológica vem tapar o buraco aberto pelo abismo, pelo cunho infundado da lei social. Esse
buraco é delimitado pela tautologia ‘a lei é a Lei’, fórmula que atesta o caráter ilegal e ilegítimo da
instauração do reino da lei, de uma violência fora da lei, real, em que se sustenta o próprio reino
da lei. (...) A violência ilegítima em que se sustenta a lei deve ser dissimulada a qualquer preço,
porque essa dissimulação é a condição positiva do funcionamento da lei: ela funciona na medida
em que seus subordinados são enganados, em que eles vivenciam sua autoridade como
‘autêntica, eterna’, e não sentem ‘a verdade da usurpação’.
98
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10
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 19.
11
LEGENDRE, Pierre. O amor do censor. Trad. Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
12
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei …, p. 170: “Reconhecendo à inteligência humana a faculdade de
compreender a lei e suas nuances complexas, Tomás de Aquino concede um valor singular à
legalidade imanente, a lex obrigatória para todos – que, a partir desse momento, passa a adquirir
gradativamente o sentido de norma imposta por aqueles que detêm o poder sobre uma
determinada jurisdição – e, com isso, lança as bases de sustentação da ordem jurídica dos estados
modernos, onde o perfil dos seus destinatários continuará obedecendo o padrão estabelecido para
comunhão dos que desenvolvem a predisposição natural para virtude, cujos postulados são
ordenados pela lei que, proveniente do pai, sabe reconhecer os seus como também segregar
aqueles que se distanciam, em função de um ato de vontade, dos limites da pertinência divina...”
13
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei …, p. 179: “A significação dessa asserção não pode ser outra:
toda autoridade [na perspectiva kantiana] vem de deus, que não representa, certamente, um
fundamento histórico da constituição civil, mas uma idéia, um princípio prático da razão que diz:
o indivíduo deve obedecer ao poder soberano, qualquer que seja ele. (...) O senhor supremo e
infalível que dita a lei nos textos kantianos, ao contrário daquela divindade, revela-se como idéia
da razão, a qual modifica, sem alterar, o caráter transcendente outorgado ao lugar último, do qual
emana a lei que passa, a partir de então, a representar a própria autoridade que se impõe –
independentemente das pessoas que a pronunciam – a todos os seres racionais.”
99
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14
ZIZEK, Slavoj. Arriesgar lo imposible. Madrid: Trotta, 2006, p. 39: “La idea básica del funcionamiento
cínico de la ideología: que para funcionar, la ideologia no debe tomarse a sí misma muy en serio.”
15
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Trad.
José Luís Bolzan de Morais. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995, p. 68.
16
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 339-340.
17
PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção. Campinas: Millennium, 2003, p. 18.
18
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade..., p. 79:
“E as instituições também funcionam paternamente como produtoras da subjetividade. A
paternidade opera, então, como um significante todo-poderoso, que permite evocar um relato
legendário co-legitimador de uma inquestionável sabedoria do comentário. Isto permite situar a
lei como um lugar vazio, por onde circulam significações e alegorias, que fazem a lei falar.”
19
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 168-195.
20
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 238-324.
100
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21
SAFOUAN, Moustapha. Lacaniana: los seminarios de Jacques Lacan 1953-1963. Buenos Aires:
Paidós, 2003.
22
LACAN, Jacques. Escritos..., p. 866: “Assim, é antes a assunção da castração que cria a falta pela
qual se institui o desejo. O desejo é o desejo de desejo, desejo do Outro, como dissemos, ou seja,
submetido à Lei.”
23
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Sujeitos Coletivos de Direito: pode-se considerá-los a partir
de uma referência à Psicanálise? In: CARVALHO, Amilton Bueno. Revista de Direito Alternativo, São
Paulo, n. 3, p. 79-92, 1994.
101
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24
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 81-82, v. IX.
25
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 51: “O tabu é uma proibição primeva forçadamente imposta
(por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos
os seres humanos. O desejo de violá-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu
têm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu
baseia-se na capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos são
contagiosos e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma coisa para outra. O fato
de a violação de um tabu poder ser expiada por uma renúncia mostra que esta renúncia se acha
na base da obediência ao tabu.”
26
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 51.
27
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado: psicanálise do vínculo social. Trad. Teresa Cristina
Carreteiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 31: “O pai, enquanto tal, não existe a não ser
morto realmente ou simbolicamente; que nos leva a uma noção fundamental: o pai não existe a
não ser como ser mítico. (...) Mas o pai, em sua função mítica, é aquele que provoca reverência,
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terror e amor ao mesmo tempo, o pai é aquele que sufoca, castra e que deve então ser morto ou,
no mínimo, vencido; ele é, além disso, o portador e depositário das proibições. Seu assassinato é
acompanhado de culpa e veneração. Não existe mais o pai real. O pai real é sempre um pai morto,
e o pai morto é sempre um pai mítico. A partir do momento em que a função paterna é
reconhecida, os filhos são oprimidos.”
28
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 31.
29
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 32: “O banquete coletivo, durante o qual são
incorporados as virtudes e os poderes daquele que imagina possuí-los, é o momento em que o
grupo vive um sentimento coletivo, no transe e na excitação, em que cada um pode ver no olhar
do outro o mesmo ódio e o mesmo contentamento, se identificar ao outro na medida em que este
se torna seu semelhante pela incorporação de uma potência, de uma carne e de um sangue único.
O sangue do onipotente corre na veia de todos.”
30
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 33.
31
FREUD, Sigmund. Totem e tabu..., p. 83-84.
103
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simbólico decorre da culpa32 que advém do luto pelo crime partilhado entre
os irmãos, momento a partir do qual a força do Pai é mitificada e congrega
uma dimensão simbólica que não tinha em vida33, reeditada pela
instauração da Civilização34.
32
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 135 p. 73-148, v. XXI: “Mas, se o sentimento
humano de culpa remonta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de contas, de um caso de
‘remorso’. Porventura não devemos supor que [nessa época] uma consciência e um sentimento de
culpa, como pressupomos, já existiam antes daquele feito? Se não existiam, de onde então proveio
o remorso? Não há dúvida de que esse caso nos explicaria o segredo do sentimento de culpa e
poria fim às nossas dificuldades. E acredito que o faz. Esse remorso constituiu o resultado da
ambivalência primordial de sentimentos para com o pai. Seus filhos o odiavam, mas também o
amavam. Depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para o primeiro plano,
no remorso dos filhos pelo ato. Criou o superego pela identificação com o pai; deu a esse agente o
poder paterno, como uma punição pelo ato de agressão que haviam cometido contra aquele, e
criou as restrições destinadas a impedir uma repetição do ato. E, visto que a inclinação à
agressividade contra o pai se repetiu nas gerações seguintes, o sentimento de culpa também
persistiu, cada vez mais fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida e
transferida para o superego. Ora, penso eu, finalmente podemos apreender duas coisas de modo
perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a fatal
inevitabilidade do sentimento de culpa. Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é,
realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir culpa, porque o
sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta
entre Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se
defrontem com a tarefa de viverem juntos.”
33
DOR, Joël. O pai e sua função em psicanálise. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1991, p. 13.
34
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado..., p. 34: “Os irmãos, como o pai, se transformam em ‘o que
é bom para matar’. Impossível ser diferente, pois o poder não foi desmistificado nem mesmo
socializado, pelo contrário, ele se tornou sagrado e, enquanto tal, seu aspecto fascinante perdura e
se amplifica. O homicídio do pai institui a possibilidade constante do assassinato. A civilização não
somente se inicia com o crime, mas se mantém através dele.” (...) Esta criação social é
acompanhada (precedida/seguida) pela expressão de sentimentos complexos: amor, veneração,
amizade, culpa. O nascimento do grupo é inconcebível sem o surgimento correlativo de
sentimentos.”
104
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12. De sorte que FREUD aponta ser o supereu35 formado a partir dos
restos do Complexo de Édipo, materializados pela voz que adverte e o olhar
que vigia, é o portador de uma tripla função, consubstanciada pela I) auto-
observação, II) consciência moral e III) função de ideal, forjada a partir da
admiração de perfeição que a criança possuía pelos que exercem a função
paterna na infância. LACAN, por sua vez, indica que o eu ideal está investido
de uma função imaginária em constante relação com o ideal do eu, agindo
na função simbólica, empurrando o sujeito no campo social: “O fim do
complexo de Édipo é correlativo da instauração da Lei como recalcada no
inconsciente, mas permanente. É nessa medida que existe algo que
responde no simbólico. A Lei não é simplesmente, com efeito, aquilo sobre o
que nos perguntamos por que, afinal, a comunidade dos homens nela é
introduzida e implicada. (...) Esse supereu tirânico, fundamentalmente
paradoxal e contingente, representa por si só, mesmo entre os não-
neuróticos, o significante que marca, imprime, impõe o selo no homem de
sua relação ao significante. Há no homem um significante que marca sua
relação ao significante, e a isso se chama o supereu. Existem, mesmo, muito
mais que um deles, e a isso se chama sintomas”36. Destarte, o ideal do eu
traz consigo a equação das identificações simbólicas do eu, possibilitando a
transcendência da agressividade remanescente do Complexo de Édipo, da
imagem do Pai substituída no contexto social por novos ideais do eu,
autorizando a compreensão das relações em grupo. O sentimento de culpa
35
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 139: “O superego é um agente que foi por nós
inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos a esse agente. A função
consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las, exercendo sua
censura. O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade
da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da
tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente crítico
(medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma
manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um
superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela do instinto voltado para a destruição interna
presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego. Não devemos falar
de consciência até que um superego se ache demonstravelmente presente. Quanto ao sentimento
de culpa, temos de admitir que existe antes do superego e, portanto, antes da consciência também.
Nessa ocasião, ele é expressão imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da
tensão existente entre o ego e essa autoridade. É o derivado direto do conflito entre a necessidade
do amor da autoridade e o impulso no sentido da satisfação instintiva, cuja inibição produz a
inclinação para a agressão.”
36
LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995. (Livro 4).
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37
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 130-131.
38
MELMAN, Charles. O Homem sem Gravidade: gozar a qualquer preço. Trad. Sandra Regina
Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
39
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização..., p. 127: “Podemos estudá-lo na história do
desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo seu desejo de
agressão? Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua
agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de
onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego,
que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está
pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de
satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a
ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade
de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do
indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar
dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.”
40
LACAN, Jacques. Escritos..., p. 273: “Ninguém deve desconhecer a lei: essa fórmula transcrita do
humor de um Código de Justiça, exprime no entanto a verdade que nossa experiência se
fundamenta e que ela confirma. Nenhum homem a desconhece, com efeito, já que a lei do homem
é a lei da linguagem.”
41
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 197: “Mesmo antes de nascer, o homem já faz parte de um
mundo de palavras que o distinguem enquanto lugar de desejo.”
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42
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 208-209: “Sucintamente, essa operação pode ser descrita nos
seguintes termos: todo o terceiro que responder pela mediação da relação dual mãe/filho institui,
por sua incidência, o alcance legalizador correspondente à interdição do incesto. O pai, ao qual se
refere essa metáfora, distingue-se, então, a partir da apelação genérica ao pai simbólico, da
existência concreta e histórica de um ser encarnado, designado como pai real, e da entidade
fantasmática – o pai imaginário, sem o qual nenhum pai real poderia receber a investidura do pai
simbólico. Essa última representação, no entanto, antes de remeter ao agente da paternidade,
evoca um operador simbólico, aistórico, um significante, designado por Lacan como nome-do-
pai.”
43
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 200-201: “Cada vez que o homem imagina alguém no seu
lugar, ama e se submete aos seus mandamentos. Dorme, enquanto ele vela por todos. O guia
espiritual, o grande líder, o Führer, o mercado (quem sabe?) assume, nessas condições, o
mandato, sempre por delegação, daqueles que irão servi-lo, uma vez que nada – a não ser a
crença compartilhada de que está autorizado pelo Outro – o torna habilitado a esse mando que
arroga para si.”
44
LA BOÉTIE, Étiene de. Discurso sobre a servidão voluntária. Trad. J. Cretella Jr. São Paulo: RT, 2003., p.
28: “São, portanto, os próprios povos que se deixam, ou antes, se fazem governar, pois cessando
de servir estarão livres; é o povo que se sujeita, que se corta a garganta, que, podendo escolher
entre ser subjugado ou ser livre, abandona a liberdade e toma o jugo, que consente no mal, ou
antes, o persegue.”
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45
PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei..., p. 221-223.
46
SAURET, Marie-Jean. A criança, o amor, o sintoma. In: Revista Marraio: Formações Clínicas do
Campo Lacaniano, Rio de Janeiro, n. 1, p. 21, 2002.
108
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47
FREUD, Sigmund. A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos..., p. 114: “Os
senhores, em sua investigação, podem ser induzidos a erro por um neurótico que, embora
inocente, reage como culpado, devido a um oculto sentimento de culpa já existente nele e que se
apodera da acusação. (...) Pode ser que, embora não tenha realmente praticado a falta de que a
acusam, tenha cometido uma outra que permanece ignorada e que não lhe foi imputada.”
48
STÄHELIN, Lucélia Santos. O Homicídio a partir do conceito psicanalítico de supereu. Florianópolis,
2007. 128f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina.
49
ZAFFARONI, Raúl Eugenio. La cultura del riesgo. In. DOBÓN, Juan; RIVERA BEIRAS, Iñaki (comp.).
La cultura del riesgo: derecho, filosofía y psicoanálisis. Buenos Aires: Del Porto, 2006, p. 3-12. p. 3: “El
encuentro entre el derecho y el psicoanálisis nunca fue pacífico, ya desde que Freud golpeara, uno
de los pilares en los que se pretenden asentar casi todos los discursos que nutren el campo
jurídico: la pretendida racionalidad del ser humano.”
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50
FERRAZ, Flávio Carvalho. Normapatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
51
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das
Letras, 1999, p. 60. A autora afirma que os monstros nazistas não eram a encarnação do mal, mas
muitos deles eram apenas homens incapazes de pensar e que acreditavam cumprir seus papéis
sociais cumprindo as leis. A “falha mais específica, e também mais decisiva, no caráter de
EICHMANN era sua quase total incapacidade de olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro.”
E hoje será que acontece algo similar no Judiciário?
52
KAFKA, Franz. A colônia penal. Trad. Modesto Carone. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996.
110
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gente capaz e fora do processo judicial, porque não é o lugar para tanto.
Deixa antever, talvez, que pode ser o sintoma de um sujeito que pretende se
fazer ver! O que se fará com ele? Não se sabe; como não se sabe, também, os
enigmas singulares de cada um de nós. Uma coisa, todavia, pode ser dita: a
culpa, se tivermos sorte, nos acompanha até o desate.
21. Caso tudo que falei tenha sido apenas uma projeção sem sentido
para os outros, terei pelo menos a companhia imaginária de BARTHES que
disse: “A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.
111
CENTAUROS NO CENTRAL: ANÁLISE
DOS PRÉ-CONCEITOS MORAIS NO
IMAGINÁRIO DOS JURISTAS
M ARCELO M AYORA A LVES *
A LEXANDRE P ANDOLFO **
J OSÉ A NTÔNIO G ERSON L INCK ***
M ARCELO L UCCHESE C ORDEIRO ****
*
Advogado. Pós-Graduando em Ciências Penais – PUCRS.
**
Acadêmico da Faculdade de Direito da PUCRS. Bolsista PIBIC/CNPq.
***
Advogado. Mestrando em Ciências Criminais – PUCRS.
****
Acadêmico da Faculdade de Direito da PUCRS. Bolsista FAPERGS.
1
DÍAZ, Esther. La Brujería: un invento moderno. In: Manuscrito. Revista Internacional de Filosofía,
(v. 11, nº 2). Campinas: UNICAMP, 1989, p. 65.
115
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2
Idem, p. 69.
3
VATTIMO, Gianni. Metafísica, violencia, secularización. In: VATTIMO, Gianni. La secularización de la
filosofía. Hermenéutica y posmodernidad. Barcelona: Gedisa, 1992, p. 81.
116
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4
Manuel Atienza, ao analisar decisão que buscava fundamentos na “personalidade [perigosa] do
delinqüente” e na “gravidade do fato”, faz a seguinte consideração: “Essa última premissa não
enuncia uma norma do Direito vigente e nem supõe a constatação de que se produziu um
determinado fato, mas sim que o fundamento da mesma são, antes, juízos de valor, pois
“gravidade do fato” e “personalidade do delinqüente” não são termos que se refiram a fatos
objetivos ou verificáveis de algum modo; no estabelecimento dessa premissa, poderíamos dizer
que o arbítrio judicial desempenha um papel fundamental” (As razões do direito. Teorias da
argumentação jurídica. 3ª ed., SP: Landy, 2003, p. 36)
5
ATIENZA, Manuel. Ob. cit., p. 13.
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6
Sobre a teoria agnóstica da pena, concebida por EUGENIO ZAFFARONI, conferir o artigo de SALO DE
CARVALHO: “Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo”. In:
CARVALHO, Salo (org.). Crítica à execução penal. RJ: Lumen Juris, 2002, em especial pp. 32-39.
7
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2006, pp. 508/509.
8
Ibidem, p. 512.
118
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9
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. RJ: Revan, 1991.
10
Eis aqui duas decisões do TJRS que bem demonstram como a periculosidade vem sendo usada
irresponsavelmente como principal argumento para a decretação de prisões preventivas:
“O roubo qualificado pelo concurso de pessoas e, principalmente, pelo emprego de arma, revela,
induvidosamente, a periculosidade e a ousadia do agente, por presentes ao ato a grave ameaça e a
violência. Tanto assim que o delito é inafiançável. Estas circunstâncias não recomendam a
liberdade provisória prevista no artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal,
quando o indiciado-acusado foi preso em flagrante delito. Ela (liberdade) só deve ser deferida, se
a situação mostrar, por sua excepcionalidade, que haverá induvidoso constrangimento ao detido”
(HC 70018770545, Relator Desembargador Marcelo Bandeira Pereira).
“Não merece concedida a ordem postulada. Os fatos delituosos imputados ao paciente, apesar de
desprovido de emprego de violência ou ameaça, possui especial gravidade,mormente
considerando o contexto circunstancial. Pelos que consta nos autos o paciente foi detido após
perseguição policial que teve início com a informação de pedestres sobre uma tentativa de furto
de veículo. Outrossim, com o paciente foram apreendidos vários instrumentos utilizados para a
prática de furtos de veículos, como chaves falsas, bem como o veículo que o apelante se
encontrava estava com os sinais identificadores alterados. Como se constata, todos os elementos
até agora presentes indicam o envolvimento do paciente em grupo organizado voltado à
consecução de ilícitos, o que, por certo, evidencia sua periculosidade, determinando a constrição
cautelar para tutela da ordem pública. Vale ponderar, noutro norte, que condições pessoais não
lhe são favoráveis, pois possui condenação por delito de homicídio e está respondendo outro feito
pelo delito de receptação. Diante desse quadro, não verifico ocorrência e constrangimento ilegal,
estando mantido o despacho (fl. 45, autos do processo-crime). Com tais aportes, voto pela
denegação da ordem postulada” (HC 70018041780, Relator Desembargador Roque Miguel Fank)
119
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11
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. RJ: Lumen Juris, 2º ed., 2003, p. 140.
12
AURY LOPES JR refere que tal diagnóstico é impossível de ser feito, salvo para os casos de vidência
e bola de cristal. Para o autor, “esse tipo de decisão é dotada de um elevado de grau de
charlatanismo e um altíssimo grau de prepotência” (LOPES JR. Aury. Introdução crítica ao processo
penal – fundamentos da instrumentalidade garantista. RJ: Lumen Juris, 2004, p. 204).
13
ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos. A Cartomante. Biblioteca ZH, 98., pp. 132/140
14
BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal. Trad. Fernando Zani. RJ: Lumen Juris,
2003, p. 151.
120
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15
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. SP: Cia das Letras,
1998, p. 109.
121
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16
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Cabeça de Porco. RJ: Objetiva, 2005, p. 172.
17
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Ob. cit, p. 172
18
Ibidem.
19
Idem, pp. 179/186.
122
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20
SOUZA, Ricardo Timm de. Ainda Além do Medo: filosofia e antropologia do preconceito. Porto Alegre,
Dacasa, 2002, pp. 17 e 19, respectivamente.
21
CARVALHO, Salo de. Criminologia e transdisciplinaridade. In: Sistema Penal e Violência. Gauer,
Ruth. RJ: Lumen Juris, 2006.
22
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Ob. cit., p. 175.
123
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23
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes,
1987, p. 22/23.
24
Idem. Ibidem. p. 23.
25
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado e outros. RJ: Nau
Editora, 2005, p. 85.
26
FOUCAULT. Vigiar e Punir. p. 151.
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27
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima: códigos da violência
na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 26.
28
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. SP: Martins Fontes, 1992, p. 98.
29
ANDRADE. Op. cit., p. 38.
30
Idem. Ibidem. pp. 36/7.
31
Idem. Ibidem. p. 38.
32
Interpretação devida a Ricardo Timm de Souza, no livro Metamorfose e Extinção: sobre Kafka e a
patologia do tempo. Caxias do Sul: EDUCS, 2000.
33
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Ob. cit., p. 184
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V – C ENTAUROS NO C ENTRAL
Não é mais possível atualmente crer na neutralidade do juiz que
aplica a lei penal. Isso porque não há neutralidade em qualquer tipo de
atividade intelectual, pois o saber é produzido por humanos, por
angelmonios, que projetam a subjetividade no discurso. Crer na
neutralidade é ingenuidade inadmissível, pois significa desconsiderar toda
a desconstrução do sujeito efetivada principalmente pela psicanálise. Já
estamos muito distantes do cartesiano “penso, logo existo”34.
Ciente de que o juiz não é neutro, cumpre ao direito elaborar regras
que limitem o exercício do poder, sabendo que a limitação será sempre
frágil e incompleta. A limitação do poder punitivo exercida dentro de um
processo penal se dá através da principiologia garantidora. Um desses
princípios é o da motivação das decisões judiciais, pois o poder será
exercido através do discurso, que deverá ser racional. Então, admite-se que
o “eu” não é (apenas) racional, mas não se abdica de tentar racionalizar a
prática jurídica.
Nesse contexto, FERRAJOLI, auxiliado pela teoria referencial do
significado de GOTLOB FREGE, elabora no terceiro capítulo de sua obra
Direito e Razão, uma teoria que tenta dar conta do problema da utilização de
termos vagos, de juízos virtuais despidos de referencial empírico. Assim,
são verificáveis ou falseáveis apenas as afirmações dotadas de significado
ou de referência empírica, que descrevem fatos ou situações determinadas a
partir do ponto de vista da observação. Por exemplo, “Caio violou o limite
de velocidade de 50km/h ao andar pelo centro de Roma a 60km/h”. Por
outro lado, não são verificáveis os juízos de valor e as afirmações de fato ou
situações a partir do ponto de vista da observação. Por exemplo: “Caio é
socialmente perigoso”35.
A partir disso, o autor constrói regras semânticas meta-legais de
formação da linguagem legislativa (legalidade estrita ou taxatividade das
leis penais), bem como regras semânticas metaprocessuais de formação da
linguagem jurisdicional (estrita jurisdicionaridade). A estrita
34
Nesse sentido, leciona BIRMAN: “A concepção psicanalítica de que existiria um psiquismo
inconsciente e que a subjetividade transcenderia em muito os registros do eu e da consciência,
implicou efetivamente no descentramento do sujeito. Essa tese colocou em questão uma longa
tradição que se constituiu com Descartes e que foi denominada de filosofia do sujeito” (BIRMAN,
Joel. Freud e a Filosofia. RJ: Jorge Zahar, 2003, p. 55).
35
FERRAJOLI. Direito e Razão, p. 114.
126
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36
CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito: postulados garantistas.
In CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. “Aplicação da Pena e Garantismo”. RJ:
Lumen Júris, 2004, p. 54.
37
FERRAJOLI. Direito e Razão, p. 114.
38
FERRAJOLI. Ob. cit., p. 116.
127
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tentativa de limitação de danos, pois a fatalidade dos fatos não deve nos
impedir de seguir resistindo. Nesse sentido, obstaculizar a utilização de
termos vagos e empiricamente inconstatáveis é medida de extrema
importância. Admitir que centauros não existem, mas que criminalizados
sim, de maneira violenta e arbitrária, por motivos que ultrapassam o
cerrado âmbito de compreensão daqueles que enxergam centauros. Antes,
talvez, tenhamos “que renunciar a tudo o que nos foi ensinado sobre o Bem
e sobre o Mal”39.
R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos; A Cartomante. RS: Biblioteca ZH, 98.
ATIENZA, Manuel. As razões do Direito. 3ª ed., SP: Landy, 2003.
BINDER, Alberto. Introdução ao direito processual penal. Trad. Fernando Zani. RJ: Lumen
Juris, 2003.
BIRMAN, Joel. Freud e a Filosofia. RJ: Jorge Zahar, 2003.
CARVALHO, Salo de. A teoria agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder
punitivo. In: CARVALHO,, Salo (org.). Crítica à execução penal. Doutrina, jurisprudência
e projetos legislativos. RJ: Lumen Juris, 2002.
________. Pena e Garantias. RJ: Lúmen Juris, 2º ed., 2003.
________. Criminologia e transdisciplinaridade. In Sistema Penal e Violência. Gauer, Ruth.
RJ: Lumen Juris, 2006.
DÍAZ, Esther. La brujería: un invento moderno. In: Manuscrito. Revista Internacional de
Filosofia (v. 11, nº 2). Campinas: UNICAMP, 1988.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica
et al. SP: RT, 2ª ed., 2006.
LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da instrumentalidade
garantista. RJ: Lumen Juris, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. SP:
Cia das Letras, 1998.
SOARES, Luis Eduardo; ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Cabeça de Porco. RJ: Objetiva, 2005.
VATTIMO, Gianni. Metafísica, violencia, secularización. In: VATTIMO, Gianni (comp.). La
secularización de la filosofía: hermenéutica y posmodernidad. Barcelona: Gedisa, 1992.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. RJ: Revan, 1991.
39
ATHAÍDE, Celso; MV Bill. Falcão: meninos do tráfico. RJ: Objetiva, 2006, p. 10.
128
A EXCLUSÃO DO OUTRO: SINTOMA DA
SOMBRA COLETIVA E MECANISMO DE
EXPIAÇÃO DA CULPA JUDAICO-CRISTÃ
A NDRÉA B EHEREGARAY *
M ARISA F ERNANDA DA S ILVA B UENO **
INTRODUÇÃO
A punição nas sociedades contemporâneas ocidentais passa por um
processo de reflexão e questionamento, característico da atualidade.
*
Psicóloga. Especialista em Ciências Penais e Mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS.
**
Advogada. Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Direito Penal Empresarial
(PUCRS). Bolsista do Programa de Bolsas de Mestrado e Doutorado da PUCRS –
PROBOLSAS/PUCRS.
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do fim de século, fazem com que os seres humanos se voltem para uma
questão essencial: a natureza humana1.
A partir do Iluminismo, a existência real dos deuses passou a ser
negada e, começou a ser considerada como uma projeção. O fim dos deuses
não eliminou, porém, sua função psíquica correspondente, que fica
reprimida no inconsciente, e a libido, antes aplicada à imagem divina, passa
a exercer enorme influência sobre a consciência através de conteúdos
arcaicos coletivos2. Entretanto, a quebra dessa identificação3 com o divino
não significa que o homem deixou de buscar algo que o salve e lhe ofereça a
redenção.
É neste momento, de “carência” de um objeto com quem possa se
identificar, que o inconsciente busca algo ou alguém para identificar e
projetar conteúdos que buscam reconhecimento consciente. E neste
momento também podemos pensar que, em termos psíquicos, o indivíduo e
o coletivo estão mais vulneráveis a figuras como Hitler.
JUNG apontava Hitler como um reflexo da histeria do povo alemão,
um receptáculo para um sentimento comum e que ansiava por encontrar
local. No caso dos alemães, esse receptáculo era uma pessoa, que, investida
de projeção maciça, perdeu suas características humanas e foi envolta por
uma participacion mystique4. Em outras situações, esse receptador pode ser
um grupo, uma instituição, uma nação. O que é certo é que, tanto no nível
individual quanto no coletivo, a projeção busca alívio para a tensão gerada
por conteúdos inconscientes inaceitáveis5.
O local ocupado pela figura de Hitler na Segunda Guerra é
semelhante ao local em que está o direito penal atualmente. Na psique
inconsciente, ambos têm uma representação divina. Não foram poucos os
que viram, na figura de Hitler, a imagem do salvador.
1
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Volume II. Séculos XIX e XX. Vila Nova de
Gaia: Edições 70, 1990.
2
JUNG. C,G. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987.
3
Processo psicológico de dissimilação, total ou parcial, da personalidade em favor de um objeto que
esta assume.
4
Vinculação psicológica singular entre sujeito e objeto. Relação de transferência onde o objeto
obtém certa influência mágica sobre o sujeito.
5
JUNG, C.G. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1990.
131
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6
O fato da projeção é inconsciente, autônoma e já existe de antemão. Isso faz com que a relação real
com o mundo exterior fique prejudicada, o que passa a existir é uma relação ilusória e que, por
isso, prejudica qualquer julgamento moral por parte do indivíduo.
7
Significa transferir para um objeto conteúdos subjetivos.
8
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 15.
9
JUNG, CG. AION. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 7.
10
Para JUNG, a função da análise é trazer o inconsciente pessoal à consciência, o que torna o
indivíduo consciente de coisas que, em geral, só conhecia nos outros, mas não em si mesmo.Tal
descoberta o torna menos original e mais coletivo.
132
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11
Idem, 11.
12
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,
2004, p. 72.
133
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A BR ./J UN . 2008
13
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 97.
14
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal Ferreira. 2
ed. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996, p. 12.
134
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15
CARVALHO, Salo. Memória e esquecimento nas práticas punitivas. In: Estudos Ibero-americanos. Revista
do Departamento de História. Porto Alegre: PUCRS, 2006, p. 63.
16
OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Piaget, 1999, p. 131.
17
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
135
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18
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 27.
19
Idem, p. 58.
20
Segundo CARVALHO, “a fase inquisitorial compreende o período que se inicia com os Concílios de
Verona (1184) e Latrão (1215) e que ganha subsistência com as Bulas Papais de Gregório IX (1232)
e Inocêncio IV (1252), somente receberá incisiva crítica e reconhecida deslegitimação ao fim do
século XVII e início do século XVIII, quando a casta intelectual teórica e prática estrutura uma
abordagem desqualificadora do aparato gótico” (CARVALHO, Salo. Revisita à desconstrução do
modelo jurídico inquisitorial. In: Fundamentos da história do direito. WOLKMER, Antônio Carlos. 3 ed.
Belo Horizonte: Del Rey. 2005, pp. 4-31.
21
Ou seja, no aparelho inquisitorial, não era permitida qualquer forma de manifestação do outro,
do diferente, que colocasse em risco o poder da Igreja.
22
CARVALHO, Salo. Op. cit., p. 6/31.
23
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 26ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
136
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24
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. Introdução: Microfísica do poder. FOUCAULT,
Michel. 21ed. São Paulo: Graal, 2005, p. XXI.
25
LEGENDRE, Pierre. O Amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1983.
26
JAKOBS, Günther; CANCIO-MELIÁ, Manuel. Derecho penal del inimigo. Madrid: Civitas, 2003.
137
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27
SAMUELS, Andrew. A política no divã: cidadania e vida interior. [Tradução Felipe José Lindoso]. São
Paulo; Summus, 2002, p. 193.
28
JUNG, CG. AION. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 7.
138
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R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998.
BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno. Volume II. Séculos XIX e XX. Vila
Nova de Gaia: Edições 70, 1990.
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.
_________________. Memória e esquecimento nas práticas punitivas. In: Estudos Ibero-
americanos. Revista do Departamento de História. Porto Alegre: PUCRS, 2006.
_________________. Revisita à desconstrução do modelo jurídico inquisitorial. In: Fundamentos
da História do Direito. WOLKMER, Antônio Carlos. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 26 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
JAKOBS, Günther; CANCIO-MELIÁ, Manuel. Derecho penal del inimigo. Madrid: Civitas, 2003.
JUNG, C.G. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1990.
_________________. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988.
_________________. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987.
LEGENDRE, Pierre. O Amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1983.
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. Introdução: Microfísica do poder.
FOUCAULT, Michel. 21 ed. São Paulo: Graal, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
_________________. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Editora Escala.
_________________. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Piaget, 1999.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal
Ferreira. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
SAMUELS, Andrew. A política no divã: cidadania e vida interior. [Tradução Felipe José
Lindoso]. São Paulo: Summus, 2002.
SILVA, Hélio R. A língua-geral da violência. In: A fenomenologia da violência. GAUER,
Gabriel; GAUER, Ruth M. Chittó (org). Curitiba: Juruá, 1999.
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah. Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.
139
QUEBRA-CABEÇAS – SOBRE EPISTEMOLOGIA,
CRIMINOLOGIA CRÍTICA E (VERDADEIRA)
RUPTURA DE PARADIGMAS
G ABRIEL A NTINOLFI D IVAN *
*
Mestrando em Ciências Criminais pelo PPGCCrim da PUC-RS. Especialista em Ciências Penais.
Advogado.
1
CARVALHO, Salo de. “Criminologia e Transdisciplinaridade”. In: GAUER, Ruth Maria Chittó
(coord.) Sistema Penal e Violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 35-37.
141
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2
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva. 1978, p. 144.
3
“(...) no solo la estructura autoritaria se repite a lo largo de los siglos, sino que también se reitera la
estructura crítica del derecho penal autoritario, o sea que también se mantiene una estructura
originaria común a todas las críticas liberales al derecho penal autoritario”. ZAFFARONI, Eugenio
Raul. Origen y Evolucion del discurso critico en el Derecho Penal. Lectio Doctoralis. Universidad
Nacional de Rosario: EDIAR, 2006, p. 29.
4
“Com a ampliação da estrutura normativa incriminadora (direito penal máximo), a sofisticação
dos aparatos de controle da criminalidade e o aparecimento de novas técnicas e justificativas de
punição, fundamentalmente aquelas divulgadas pelos movimentos de lei e ordem e ‘tolerância
zero’ que compartilham, do ponto de vista ideológico, os mesmos ideais do positivismo
criminológico, o trabalho crítico se esvai. Encontra-se a criminologia crítica, em meio aos
mecanismos da punição a qualquer tipo de alteridade, em local de difícil acesso à sociedade”.
CARVALHO. Op. cit., p. 33.
142
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5
LARRAURI, Elena. La Herencia de la Criminologia Crítica. Madrid: Siglo Veintiuno de España, 2000.
6
ZAFFARONI. Criminología..., p. 9.
7
KUHN. Op. cit., p. 24.
143
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8
NASIO, Juan David. Os 7 conceitos cruciais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 130.
9
LACAN, Jacques. O seminário - livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, 2 ed. reimp., p. 122. (“A
imagem espetacular, funcionando como ideal inalcançável, constituirá o sujeito e suas relações de
amor e ódio - amódio – com os outros, numa tensão entre o conforto de sua imagem e a
agressividade decorrente de seu efeito dissonante”. MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a
Bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 15).
10
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005,
p. 48.
144
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11
“A distância que medeia entre a timidez original grega e a ousadia moderna é a tradução do
impulso original do espírito ocidental em processo de trofismo: a redução do des-conhecido ao
conhecido, do diferente que se torna uma espécie entre outras espécies: modelo que, claro na
Modernidade, aponta para uma determinada direção do futuro. A História do Ocidente tem
consistido, em suas linhas mais amplas, na história dos processos utilizados para neutralizar o
poder desagregador do Diferente”. SOUZA, Ricardo Timm de. “O Século XX e a Desagregação da
Totalidade. A composição do Século XX filosófico: aproximações” in Totalidade & Desagregação.
Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p 18.
12
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Introdução à sociologia do Direito
Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002, pp. 112-114.
13
BEIRAS, Iñaki Riveira. “História e legitimación del castigo. Hacía donde vamos?”. In: BERGALLI,
Roberto (Coordinador y Colaborador). Sistema Penal y problemas sociales. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2003, pp. 115-115.
14
ZAFFARONI. Criminología..., p. 3.
145
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15
BARATTA. Op. cit., p. 32.
16
REOLON, Liliane Christine. PLETSCH, Natalie Ribeiro. “O perverso entrelaçamento entre forma e
reforma: estude de caso”. In: A Crise do Processo Penal e as novas formas de Administração da Justiça
Criminal. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. CARVALHO, Salo de. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006,
p. 90.
17
“La teoria debe explicar las diferentes formas en que las exigencias estruturales son objecto de
interpretación, reacción o uso por parte de hombres ubicados en diferentes niveles de la
estructura social, de tal modo que hagan una elección esencialmente desviada”. TAYLOR, Ian,
WALTON, Paul, YOUNG, Jock. La nueva criminologia.Buenos Aires: Amorrortu editores, 1990, p.
287
18
LARRAURI. Op. cit., p. 168.
19
“Sigais com boa fé, por critério, o temor do culpado; por indício, os caracteres físicos e morais do
criminoso nato; e tereis a solução do problema relativo à tentativa, em termos da inércia culpável
seguida de morte que se deve punir quando se trata de um desses miseráveis”. GAROFALO,
Raffaele apud LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinqüente – tradução, atualização, notas e
comentários. Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Corbo Garcia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001,
p. 43
146
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20
“Tudo aquilo que entendemos por violência, em todos os níveis, do mais brutal e explícito à
violência coercitiva e socialmente sancionada do direito positivo, e, inclusive, a violência auto-
infligida, repousa no fato exercido de negação de uma alteridade”. SOUZA, Ricardo Timm de.
“Três teses sobre a violência: violência e alteridade no contexto contemporâneo – algumas
considerações filosóficas”. In: CIVITAS. Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001,
ano 1, número 2, p. 8
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21
MAFFESOLI, Michel. O Instante Eterno. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo:
Zouk, 2003, p. 58.
22
“Por qué es crítico recuperar la pregunta causal? Se afirma, em primer lugar que no existe
ninguna pregunta ilegítima em el ámbito de las ciências sociales, por conseguiente es lícito
interrogar-se el por qué la gente realiza determinados comportamientos”. LARRAURI. Op. cit., p.
204.
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23
ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político.Uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997, p. 132.
24
CARVALHO. Op. cit., p. 26.
25
ANSELL-PEARSON. Op. cit., p. 110.
149
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eis que ela precisa ser afirmada de algum modo: uma análise mais drástica
pode identificar nessa pretensão um verdadeiro emaranhado caótico e
impraticável, e sentenciar que, no momento em que a Criminologia é –
epistemologicamente – tudo, é o mesmo que dizer que ela não é nada. Ou
ainda: que ela simplesmente não é.
A pergunta quanto à possibilidade ou não de existirem condições de
implemento de uma lógica transdisciplinar e eminentemente assistemática
parece ser a mesma pergunta sobre a condição (ou não) da própria
existência autônoma de uma criminologia.
B IBLIOGRAFIA
ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político. Uma introdução. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1997.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Introdução à sociologia
do Direito Penal, 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Revan, Instituto Carioca de
Criminologia, 2002
BEIRAS, Iñaki Riveira. “História e legitimación del castigo. Hacía donde vamos?”. In:
BERGALLI, Roberto (Coordinador y Colaborador). Sistema Penal y problemas sociales.
Valencia: Tirant lo blanch, 2003.
CARVALHO, Salo de. “Criminologia e Transdisciplinaridade” in GAUER, Ruth Maria
Chittó (coord.) Sistema Penal e Violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2004. 20 ed.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva. 1978.
LACAN, Jacques. O seminário - livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, 2 ed. reimp.
LARRAURI, Elena. La Herencia de la Criminologia Crítica. Madrid: Siglo Veintiuno de
España, 2000.
LOMBROSO, Cesare O Homem Delinqüente – tradução, atualização, notas e comentários.
Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Corbo Garcia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.
MAFFESOLI, Michel. O Instante Eterno. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São
Paulo: Zouk, 2003.
MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a Bricolage de significantes. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.
NASIO, Juan David. Os 7 conceitos cruciais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
REOLON, Liliane Christine. PLETSCH, Natalie Ribeiro. “O perverso entrelaçamento entre
forma e reforma: estude de caso”. In: A Crise do Processo Penal e as novas formas de
Administração da Justiça Criminal. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. CARVALHO, Salo
de. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006
150
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A EMERGÊNCIA NO CORAÇÃO DA
NORMALIDADE: SOBRE O CONCEITO DE
INIMIGO CONSTRUÍDO NAS FENDAS DO
ESTADO DE DIREITO
M OYSÉS DA F ONTOURA P INTO N ETO *
I – APRESENTAÇÃO DO TEMA
A publicação de GIORGIO AGAMBEN, Estado de Exceção, tem gerado
significativas e relevantes discussões, especialmente nos meios filosóficos e
jurídicos. Ao propor, na esteira de WALTER BENJAMIN, que o estado de
exceção perdeu seu caráter de emergência e passou a se constituir, na
realidade, a normalidade, AGAMBEN problematiza uma série de questões
que ainda não foram tratadas no âmbito jusfilosófico.
A sistematização do Direito Penal do Inimigo, formulada por GÜNTHER
JAKOBS, representa, de certa forma, sintoma de que as ponderações de
AGAMBEN encontram eco na situação atual. A partir de uma cisão conceitual
entre cidadão e inimigo, Jakobs pretende a criação de dois Direitos Penais,
um dirigido ao cidadão – com as devidas garantias e direitos
constitucionalmente assegurados –, outro destinado aos inimigos, a quem
*
Especialista e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do RS.
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1
As novas perspectivas abertas por AGAMBEN, ao prosseguir o estudo da biopolítica a partir do
ponto em que MICHEL FOUCAULT parou, na realidade, abrem um leque de problemas que
poderiam convergir para uma análise da teoria do Direito Penal do Inimigo. Bastaria, para tanto,
pensar na relevância da questão do homo sacer, enquanto matável e insacrificável, vida nua que
vive na indeterminação constitutiva do estado de exceção e se apresenta como o objeto da
soberania, cujas imbricações, por óbvio, remetem ao conceito de Inimigo. Da mesma forma, a
perspectiva do “campo” enquanto paradigma biopolítico, “localização deslocante”, seria útil para
perceber em que consistiria a “sociedade funcional” percorrida por um Direito Penal do Inimigo
(AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004, pp.
89-94 e 173-183). Tais considerações, embora absolutamente pertinentes, extrapolariam os limites
desse paper, que se limita a indagar onde juridicamente procurou JAKOBS uma fratura no
ordenamento, de forma a poder jogar, nesse preciso intervalo, o Direito Penal do Inimigo.
2 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 18.
154
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3
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 14. Ver, ainda: CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de
Drogas no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006, pp. 63-77 e AGAMBEN, Giorgio. Bodies
without words: against the biopolitical tatoo. Disponível em: <http://www.germanlawjournal.com.>
Acesso em 08.06.2007.
4
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 11.
5
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 24.
6
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 39. “A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso
singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza a exceção é que aquilo que é
excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta
se mantém em relação com aquela na forma de suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-
se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a
situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o
étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída” (AGAMBEN, G. Homo Sacer, p. 25).
7
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 54.
8
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, pp. 56-7.
155
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9
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 58.
10
Nesse ensaio, o dado fundamental trazido por JACQUES DERRIDA parece ser o “fundamento
místico” do Direito, que se dá na origem da lei, pois esta não pode se apoiar senão na violência
fundadora, o que não significa que seja “injusta” ou “ilegal”, mas que não é nem um nem outro no
momento da sua fundação, excedendo, na realidade, essas circunstâncias. Isso, no entanto, não nos
remete à irracionalidade, mas a uma possibilidade de desconstrução permanente do Direito, dada
sua natureza contingente. É no intervalo entre a desconstrutibilidade do Direito e
indesconstrutibilidade da justiça que se daria a desconstrução. Ver: DERRIDA, Jacques. Força de Lei.
Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 24-28. Conferir, ainda: SOUZA,
Ricardo Timm de. Razões Plurais: itinerários da racionalidade ética no Século XX. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004, pp. 130-166.
11
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 60. “O particular ‘vigor’ da lei consiste nessa capacidade
de manter-se em relação com uma exterioridade. Chamemos de relação de exceção a esta forma
extrema da relação que inclui agora alguma coisa através de sua exclusão” (AGAMBEN, Homo
Sacer, p. 26).
12
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 61.
156
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13
Tachado.
14
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 61.
15
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 63.
16
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 76.
17
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 84.
18
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, pp. 86-7.
157
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19
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, pp. 88-89.
20
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 90.
21
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 91.
22
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, p. 92.
158
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23
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. In: Direito Penal do Inimigo:
Noções e Críticas. JAKOBS, Günther & MELIÁ, Manuel Cancio.Trad. Nereu Giacomolli e André
Callegari. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 22-23.
24
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, p. 37.
25
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, p. 42-44.
159
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26
Um curioso paralelo da limitação do conceito “normativo” de pessoa na releitura kantiana de
Jürgen Habermas para dar conta dos problemas suscitados pela biopolítica contemporânea
encontra-se em PONTIN, Fabrício. Biopolítica, Eugenia e Ética: uma análise dos limites da intervenção
genética em Jonas, Habermas, Foucault e Agamben. Dissertação apresentada no PPG em Filosofia da
PUCRS. Porto Alegre, 2007, pp. 52-57.
27
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa. Trad. Maurício Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003,
pp. 10-11.
28
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, pp. 14-15. Do que, diga-se de passagem, não se
discorda de JAKOBS. É inviável retornar-se à idéia de “sujeito em grau zero” inaugurado,
fundamentalmente, pelo Cogito cartesiano. O horizonte é completamente distinto no Dasein
heideggeriano, que se constitui a partir de mundo, está lançado (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.
Trad. Maria Schuback, Petrópolis: Vozes, 2006, pp. 106-109); ou, por exemplo, na reconstrução das
relações entre sociedade e indivíduo demonstrada por NORBERT ELIAS (ELIAS, Norbert. A Sociedade
dos Indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar, 1994, pp. 13-59). O que não nos leva, contudo, a
concordar com as conclusões que Jakobs retira dessa premissa.
29
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 20.
30
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 30.
160
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31
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 54.
32
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, pp. 55-56.
33
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa, p. 57.
34
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, pp. 47-48.
35
JAKOBS, Günther. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, p. 42.
36
É aqui, propriamente, que começaríamos nossa análise para demonstrar o verso da moeda que
alimenta o estado de exceção, conforme AGAMBEN: o homo sacer. É no poder biopolítico de dizer
quem é matável e insacrificável que esbarram as concepções normativas de pessoa. A
problemática ganha ainda maior densidade – e exige estudos futuros – se analisarmos
propriamente quem poderia desempenhar o papel de homo sacer nas sociedades contemporâneas,
ainda mais se adotarmos a conceito normativo-comunicacional de pessoa de JAKOBS. Procuramos
161
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V – C ONTRAPONDO R ACIONALIDADES
“A exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de
todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras
que creio não ser possível nem necessário justificá-la” (THEODOR
ADORNO, “Educação após Auschwitz”).
Diante do conceito de pessoa proposto por JAKOBS, verifica-se que o
discurso constitucional, por si só, não é suficiente para rebater seus
argumentos. Jakobs, provavelmente, ao ler o inciso III do art. 1º da
Constituição Brasileira, que afirma a dignidade da pessoa humana, não
hesitaria em afirmar que o inimigo não se trata de “pessoa”.
Cuida-se, como já expusemos atrás, de uma “fenda” construída nas
bordas do Estado de Direito. Ao propor um conceito normativo de pessoa,
que perde seu sentido concreto e passa a funcionar apenas como elemento
de um sistema, JAKOBS esvazia o texto constitucional, criando um
“intervalo” onde o Direito Penal do Inimigo é construído. Se adotado, esse
“ordenamento” diferenciado constituiria, na realidade, a própria exceção
mergulhada no coração da normalidade.
A proposta de JAKOBS, portanto, muito se assemelha à descrição de
Agamben: mantendo-se a vigência formal das normas (constitucionais ou
abordar parte da problemática em NETO, Moysés da F. Pinto & BINATO JR., Otávio. Da Exclusão ao
Inimigo: o Direito Penal do Inimigo enquanto estratégia de engenharia social contemporânea. Porto
Alegre: Mimeo, 2007.
162
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37
Trata-se da questão que levou vários ensaios a considerar que o Direito Penal do Inimigo não
pode ser “Direito”. Aliás, se aceitarmos a observação de FARIA COSTA no sentido de que o Direito
é “ordem de paz”, é impossível encontrarmos espaço para que, ele próprio, Direito, seja a guerra
declarada. Ver: SOUZA, Ricardo Timm de. The Thinking of Levinas and the Political Philosophy: Global
state of exception and ethical challenges. Inédito.
38
O que não significa estarmos afirmando uma possível constitucionalidade do Direito Penal do
Inimigo. Trata-se, apenas, de criticar a insuficiência argumentativa da retórica de índole jurídico-
positivista, ainda que a partir de normas constitucionais.
39
Nesse sentido, confira-se D’ÁVILA, Fábio Roberto. O Inimigo no Direito Penal Contemporâneo:
algumas aproximações desde o contributo crítico de um Direito Penal de base onto-antropológica. In:
Sistema Penal e Violência. Org; GAUER, Ruth M. C. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. O artigo
contrapõe a racionalidade instrumental do funcionalismo do Direito Penal do Inimigo a uma
racionalidade de fundamento onto-antropológico do cuidado-de-perigo, que inviabilizaria a
construção daquele sistema. O fundamento onto-antropológico, aliás, poderia ser descrito com as
seguintes palavras de Faria Costa: “A relação onto-antropológica do cuidado-de-perigo
desempenha o papel e é uma estrutura capaz de dar sentido à pena. Se a relação do ‘eu’ para com
os outros é desvirtuada ao ponto do aniquilamento ou violação dos valores essenciais, a relação
primária e original que o ‘eu’ estabelece com a comunidade, erigida em Estado e detentora do ius
puniendi, impõe a agressão à esfera personalíssima do ‘eu’, pois só assim se refaz aquela relação
primitiva de ‘eu’ para com os outros. Todavia, na tensão que ininterruptamente se estabelece
entre o ‘eu’ infrator e o detentor do ius puniendi, é preciso salientar que aquele ‘eu’ em caso algum
pode ser degradado à condição de res. Aquilo que nunca lhe pode ser retirado é a sua qualidade
de ser-aí diferente responsável para com o cuidado de si – porque qualquer violação do cuidado
originário para com os outros é também ruptura para com o cuidado que originalmente temos
para com o nosso existir individual e coletivo – como também responsável para com o cuidado
dos outros” (FARIA COSTA, José Francisco de. O Perigo em Direito Penal (contributo para a sua
fundamentação e compreensão dogmáticas). Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 384-5).
40
É nesse sentido que estamos trabalhando na Dissertação de Mestrado a ser apresentada,
confrontando o pensamento lógico-funcional de JAKOBS, formado a partir de uma racionalidade
instrumental, com a exigência do reconhecimento e não-indiferença em relação à alteridade,
mediante uma racionalidade ética. Para tanto, nosso trabalho se apóia, fundamentalmente, na
utilização da desconstrução de J. DERRIDA, a fim de expor os elementos logocêntricos e a violência
de redução do Outro na obra de JAKOBS, seguindo-se uma proposição de reconstrução das
relações corrompidas (cidadão/inimigo) pela ética da alteridade de EMMANUEL LÉVINAS, no
horizonte da hospitalidade.
163
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B IBLIOGRAFIA
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG,
2004.
_______. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
_______. Bodies without words: against the biopolitical tatoo. Disponível em:
<http://www.germanlawjournal.com>. Acesso em 08.06.2007.
CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.
D’ÁVILA, Fábio Roberto. O Inimigo no Direito Penal Contemporâneo: algumas aproximações
desde o contributo crítico de um Direito Penal de base onto-antropológica. In: Sistema Penal e
Violência. Org; GAUER, Ruth M. C. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006
DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar, 1994.
FARIA COSTA, José Francisco de. O Perigo em Direito Penal (contributo para a sua
fundamentação e compreensão dogmáticas). Coimbra: Coimbra Editora, 2000.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Maria Schuback, Petrópolis: Vozes, 2006.
JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa. Trad. Maurício Ribeiro Lopes. Barueri:
Manole, 2003.
41
Ver, fundamentalmente, SOUZA, Ricardo Timm de. Por uma Estética Antropológica desde a Ética da
Alteridade: do ‘estado de exceção’ da violência sem memória ao ‘estado de exceção’ da excepcionalidade do
concreto. Veritas, vol. 51, n.º 2, junho/2006. “Porém, como tudo na história humana, também esta
anti-memória tem uma história muito particular: não surgiu por geração espontânea, mas
paulatinamente, pela incapacidade de sentir intensamente a realidade do particular. Quando tudo
é redutível a um conceito qualquer ou a causalidades fáceis, tudo é aplainado sob a égide da
irrelevância, está pronto o momento da pequena grande metamorfose, quando causalidade se
transforma em mera casualidade. Ainda a mais deslavada mentira, a mais abjeta hipocrisia, o mais
agudo sofrimento e injustiça acabam na vala comum das casualidades, dos acasos mutuamente
intercambiáveis porque pretensamente irrelevantes em sua incapacidade de paralisar a roda do
mundo” (pp. 134-5).
164
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_______ & MELIÁ, Manuel Cancio.Trad. Nereu Giacomolli e André Callegari. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
NETO, Moysés da F. Pinto & BINATO JR., Otávio. Da Exclusão ao Inimigo: o Direito Penal do
Inimigo enquanto estratégia de engenharia social contemporânea. Porto Alegre: Mimeo,
2007.
PONTIN, Fabrício. Biopolítica, Eugenia e Ética: uma análise dos limites da intervenção genética
em Jonas, Habermas, Foucault e Agamben. Dissertação apresentada no PPG em Filosofia
da PUCRS. Porto Alegre, 2007.
SOUZA, Ricardo Timm de. Razões Plurais: itinerários da racionalidade ética no século XX.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
______. Por uma Estética Antropológica desde a Ética da Alteridade: do ‘estado de exceção’ da
violência sem memória ao ‘estado de exceção’ da excepcionalidade do concreto. Veritas, vol. 51,
n.º 2, junho/2006.
______. The Thinking of Levinas and the Political Philosophy: Global state of exception and
ethical challenges. Inédito (texto de Palestra proferida em 2006).
165
A VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR
E O SIGNIFICADO DO INCESTO DIANTE
DO MULTICULTURALISMO
L UCIANE P OTTER B ITENCOURT *
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Inserida num contexto histórico-social e com raízes culturais, a
violência sexual, uma das facetas do fenômeno violência, atinge todas as
faixas etárias, classes sociais e pessoas de ambos os sexos. Ocorre
universalmente, estimando-se que produza cerca de 12 milhões de vítimas
mulheres anualmente, atingindo desde recém-natos até idosos1.
Centralizada nossa pesquisa na violência sexual infanto-juvenil
intrafamiliar, pode-se dizer que a violência sexual cometida contra crianças
e adolescentes não é um fenômeno novo. Registros da violência sexual são
encontrados na Bíblia Sagrada e na mitologia, onde verificamos relação de
poder, fantasias e impulsos incestuosos. LIPPI comenta que: “nos
*
Mestre em Ciências Criminais da PUCRS
1
RIBEIRO, Márcia Aparecida; FERRIANI, Maria das Graças Carvalho; REIS, Jair Naves dos. Violência
Sexual contra crianças e adolescentes: características relativas à vitimização nas relações
familiares. Cadernos de Saúde Publica. Vol. 20 n. 2 Rio de Janeiro. Março/Abril de 2004.
167
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2
Apud SCHERER,Carmem Cabral; MACHADO, Débora Silva; GAUER, Gabriel J. Chittó. Uma violência
Obscura: Abuso sexual. In GAUER, Gabriel J. Chittó; MACHADO, Débora Silva (Orgs.). Filhos e
Vítimas do tempo da violência. Curitiba: Editora Juruá, 2003, p. 33.
3
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<hhtp://www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.
168
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4
BRAUN, Suzana. A Violência Sexual Infantil na Família. Do silencio à revelação do segredo. Porto Alegre:
AGE, 2002, p. 44.
5
SAFFIOTI, Heleieth I.B. Introdução. A síndrome do pequeno poder. In: AZEVEDO, Maria Amélia;
GUERRA, Viviane N.de A. (Orgs.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. Violência física e
sexual contra crianças e adolescentes. 2 ed. São Paulo: Iglu, 2000, p. 13.
6
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo
(Orgs.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000, pp.
212, 213.
169
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7
FREUD cita WUNDT que descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem.
O tabu, refere FREUD, é uma proibição primeva forçadamente imposta (por alguma autoridade)
de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O
desejo de violá-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma atitude
ambivalente quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu baseia-se na
capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos são contagiosos
e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma coisa para outra. O fato de a
violação de um tabu poder ser explicada por uma renúncia mostra que esta renúncia se acha na
base da obediência ao tabu. In: FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Órizon Carneiro
Muniz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2005, p. 28, 44. FREUD coloca a proibição do incesto como um
estruturador mental, pois é através da repressão dos desejos incestuosos que se estrutura o
aparelho mental em suas três instancias: id, ego e superego.
8
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
www.violenciasexual.org.br. Acesso em : 20.02.2007.
170
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9
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http://www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.
10
FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança. Uma Abordagem Multidisciplinar. Tradução de Maria
Adriana V. Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 22.
11
HAMON, Hervé. Abordagem Sistêmica do Tratamento Socio Judiciário da Criança Vítima de
Abusos Sexuais Intrafamiliares. In: GABEL, Marceline(org.). Crianças vítimas de abuso sexual. 2ª ed.
Tradução Sonia Goldfeder. São Paulo: Summus, 1997, p. 175.
12
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http:www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.
171
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13
Para exemplificar, as funções familiares podem ser alteradas pois o pai passa a ser pai- marido, a
mulher perde a função de esposa e mãe para a filha que se torna a esposa do pai e mãe dos seus
irmãos.
14
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de A. Infância e
Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000. P. 217.
15
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http:www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.
16
COHEN, Claudio; GOBBETTI, Gisele Joana. O Incesto: O Abuso Sexual Intrafamiliar. Disponível em:
<http:www.violenciasexual.org.br>. Acesso em: 20.02.2007.
172
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17
PADILHA, Maria da Graça Saldanha; GOMIDE, Paula Inês Cunha. Descrição de um processo
terapêutico em grupo para adolescentes vítimas de abuso sexual. Disponível em:
<http:/www.scielo.br>. Acesso em: 05.09.05.
18
STEIN, Robert. O Incesto e Amor Humano. A traição da alma na psicoterapia. Tradução de Claudia
Gerpe Duarte. São Paulo: Paulus, 1999, p. 83.
173
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19
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2005, p. 127.
20
Apud FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 2005, p. 128.
174
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21
LÉVI-STRAUSS explica que a troca recíproca de mulheres assegura a circulação contínua das
esposas e filhas que o grupo social possui. Portanto, a casa não se firma na terra, mas na mulher.
In: LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3
ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, pp. 89, 90, 91.
22
Exogamia é o casamento fora do grupo familiar primordial.
23
CENTURIÃO, Luiz R.M.; GAUER, Ruth M. Chittó. Cumplicidade entre Antropologia, Psiquiatria e
Psicanálise. In: GAUER, Gabriel Chittó. Agressividade – uma leitura biopsicossocial. Curitiba: Juruá
Editora, 2001, p. 72.
24
Apud PAZ, Otavio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo. São Paulo: Editora Perspectiva,
1977, p. 17.
175
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mais precoces excitações sexuais dos seres humanos muito novos são
invariavelmente de caráter incestuoso e que tais impulsos quando
reprimidos desempenham um papel que pode ser considerado uma força
motivadora de neuroses na vida adulta, levando LÉVI-STRAUSS28 a afirmar
que Totem e Tabu não é admissível como interpretação da proibição do
incesto e de suas origens, assim como diante da reflexão sociológica, o
incesto aparece como um terrível mistério.
CLÁUDIO COHEN29, a partir do pensamento de LÉVI-STRAUSS, explica
que a ambigüidade existente frente ao tabu do incesto se deve ao fato de
que o ser humano é ao mesmo tempo um ser biológico (produto da
natureza) e um ser social (produto da cultura), sendo que esta ambigüidade
25
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 533.
26
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 531.
27
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
2005, p. 129.
28
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, pp. 49, 531.
29
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo
(Orgs.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000, pp.
212, 213.
176
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30
COHEN, Claudio. O Incesto. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo
(Orgs.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2000, pp.
212, 213.
31
PAZ, Otávio. Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p.
15.
32
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 47.
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aplicação variável, de acordo com o modo como cada grupo define o que se
entende por parente próximo. Mas esta proibição, sancionada por
penalidades sem dúvida variáveis, podendo ir da imediata execução dos
culpados até a reprovação difusa, e às vezes somente até a zombaria, está
sempre presente em qualquer grupo social”.
A proibição do incesto definitivamente, não é uma proibição igual às
outras, é uma proibição universal, assim como universal é a linguagem, no
entanto, deve-se buscar compreender a lógica e os significados destes
valores e práticas dentro de um contexto social, histórico e cultural mais
amplo.
33
GABEL, M. Algumas observações preliminares. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas de
abuso sexual. Tradução Sonia Goldfeder e Maria C. C. Gomes. São Paulo: Summus Editorial Ltda.
1997, p. 12.
34
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. 3 ed.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 50.
178
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NATHAN35 que “só uma cultura permite ver o outro, e não possuí-lo”. Diz
esse autor36 que os psicanalistas impedem a reelaboração e uma nova
reatualização da questão da proibição do incesto, que, no entanto, se
mostram indispensáveis desde que foram feitas inúmeras descobertas
antropológicas, etiológicas, sociológicas e clínicas e que “quando os
antropólogos falam da proibição do incesto, não evocam os mesmos fatos
que os psicanalistas. Para eles, trata-se de leis que organizam uma forma de
contratar uma aliança – um casamento – e não regras que gerem o
estabelecimento de relações sexuais lícitas. É por isso que os africanos
pensam e dizem de bom grado que os brancos, limitando a noção de incesto
somente aos parentes biológicos (pai, mãe, irmão, irmã), cometem
necessariamente o incesto com seus parentes “culturais” (primos, primas,
membros de um mesmo clã, confraria ou congregação)”37.
Dessa forma, NATHAN38 refere que a proibição do incesto talvez
pareça natural, que talvez pudéssemos pensar que se todos os homens
criaram explicitamente uma lei proibindo a união incestuosa, é porque essa
lei correspondia a um tipo de natureza humana, mas ele mesmo refere que
uma série de fatos torna mais complexo esse raciocínio. Entende que se a
regra de proibição do incesto está presente em todo lugar, o mesmo
acontece com suas transgressões, e que não se deve tirar conclusões
precipitadas sobre as uniões consangüíneas, pois em primeiro lugar deve-
se saber qual a definição de incesto em determinada cultura, assim, o
casamento do tio-avô com sua sobrinha-neta não é considerado incestuoso
pelos australianos, trata-se de uma aliança preferencial. Enfim, diz o autor,
“as sociedades definem o incesto, sem levar em conta as regras genéticas, e
nem mesmo qualquer consideração psicológica; além disso, é necessário que
a definição cultural do incesto afaste explicitamente os dados biológicos e
psicológicos para que seja culturalmente eficaz”.
Em cada cultura encontra-se uma realidade, não existe um ‘humano
universal’, existem, sim, diversidades culturais, pluralidades culturais, de
35
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, p. 21.
36
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, p. 21.
37
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, p. 22.
38
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, pp. 23, 24.
179
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4 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS
Fazendo uma releitura sobre o fenômeno incestuoso a partir do que
foi exposto, deve-se levar em conta que, apesar de estarmos inseridos em
uma sociedade complexa, existem modos de vida diferentes, dinâmicas
familiares com diferenças culturais e tradições próprias que envolvem
39
CASSIRER, Ernest. O Mito do Estado. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003, p. 272.
40
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, pp. 63, 64.
41
NATHAN. Tobie. Há algo de podre no reino de Édipo. In: GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas
de abuso sexual, pp. 27, 28.
180
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42
DORA, Denise Dourado (Org.). Feminino, Masculino: igualdade e diferença na justiça. Porto Alegre:
Sulina, 1997, p. 132.
43
O incesto ou abuso sexual intrafamiliar encontra-se na categoria dos transtornos sexuais, na busca
pela satisfação sexual inadequada, ou seja, através de crianças e adolescentes como objeto sexual,
conforme orientação de JORGE, Miguel R. (Coord.). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais. DSM-IV. 4ª ed. Rev. Porto Alegre: Artmed, 2002, pp. 511, 538, 553. Cabe ressaltar que
abuso sexual da criança, no DSM-IV encontra-se na seção Problemas relacionados ao Abuso ou
Negligência, consistindo de severos maus tratos de um indivíduo por outro através de abuso
sexual.
44
DORA, Denise Dourado (Org.). Feminino, Masculino: igualdade e diferença na justiça. Porto Alegre:
Sulina, 1997, p. 136.
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