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Lições de Direito Processual Civil I

(TEORIA GERAL DO PROCESSO CIVIL DECLARATIVO)


Miguel Mesquita
Professor da Faculdade de Direito de Coimbra

Lições de Direito
Processual Civil I

2º SEMESTRE/2ª TURMA
2022/2023
PARTE I
O SENTIDO DO PROCESSO CIVIL E OS MEIOS
(JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS)
DE TUTELA PROCESSUAL CÍVEL
1ª Lição
O Sentido, os Fins e a Natureza
do Direito Processual Civil

Bibliografia principal: Almeida, Francisco Manuel Ferreira de,


Direito processual civil, vol. I, 3ª ed., Coimbra, Editora Almedina, 2019;
Andrade, Manuel Domingues de, Noções elementares de processo civil,
reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1993; Calamandrei, Piero,
Istituzioni di diritto processuale civile, 2ª ed., Cedam, Padova, 1934;
Carnelutti, Francesco, Cómo se hace un proceso, Buenos Aires, Roda-
millans SRL, 1999; Chiovenda, Giuseppe, Principii di diritto processuale
civile, 3ª ed., Napoli, Jovene e C., 1923; Freitas, José Lebre de, Introdu-
ção ao processo civil, 4ª ed., Coimbra, 4ª ed., Gestlegal, 2017; Frieden-
thal, Jack H./Kane, Mary Kay/Miller, Arthur R., Civil procedure, 4ª
ed., St. Paul, Thomson West, 2005; Guasp, Jaime/Aragoneses, Pedro,
Derecho procesal civil, t. I, 7ª ed., Navarra, Editorial Aranzadi, 2005;
Jauernig, Othmar, Zivilprozessrecht, 29 Auf, München, C.H. Beck,
2007; Mitidiero, Daniel, Processo Civil, São Paulo, Revista dos Tribu-
nais, 2021; Taruffo, Michele, La semplice verità, Editore Laterza, 2009;
Varela, Antunes/Bezerra, Miguel/Nora, Sampaio e, Manual de pro-
cesso civil, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985; .

Sumário: 1. «Cedant arma togae». 2. A origem dos processos cíveis:


o litígio ou o conflito de interesses. 3. O princípio da proibição da

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justiça pessoal ou do recurso à força. 4. Desvios ao princípio da proi-


bição da autotutela. 5. A tutela jurisdicional cível e os tribunais. 6. A
garantia de imparcialidade: os regimes do impedimento e da suspeição.
7. Conceito de processo: o processo como um «jogo»? 8. Os fins do
processo civil. 9. O uso anormal do processo: o processo simulado e
o processo fraudulento. 10. O objecto e a natureza do Direito Proces-
sual Civil.

1. «Cedant arma togae». É bem conhecida a antiquíssima máxima


latina da autoria de Cícero: Cedant arma togae. Estas três palavras,
tão secas e simples, representam, no fundo, as «pedras angulares ou
essenciais» do Estado de Direito e, por isso, estão na base do Direito
Processual Civil: traduzindo, que a toga prevaleça sobre as armas!1.
A célebre máxima agora citada faz-nos recordar outras sábias pala-
vras de P. António Vieira e escritas num texto intitulado «A igualdade
como condição da paz»: «A paz não se conquista com exércitos armados:
conquista-se com uma só espada e com dois escudos; com uma só espada, que é
a da Justiça; e com dois escudos, que são os das duas balanças»2.
Podemos desde já afirmar que a necessidade imperiosa de uma Jus-
tiça sem armas (privadas) ou sem o recurso à força privada (necessidade
resultante do instinto de sobrevivência da humanidade) justifica,

1
 No seu sentido literal: Que as armas cedam perante as togas. A expressão «toga»
pode aqui entender-se, em termos gerais, como a veste dos juízes e dos advogados.
Mas, em rigor, nos nossos dias, a palavra «beca» é a adequada para traduzir as ves-
tes solenes de um juiz (cfr. artigo 18º, nº 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Segundo o artigo 74º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 145/2015, de
9 de Setembro), a «toga» é o traje profissional dos advogados: «O uso da toga ‒
determina-se no nº 1 desta norma ‒ é obrigatório para os advogados e advogados
estagiários quando pleiteiem oralmente.»
2
 Prosa doutrinal de Autores portugueses (selecção, prefácio e notas de António
Sérgio), Lisboa, Portugália Editora, s/d, pp. 158 e s.

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portanto, a existência do Direito Processual Civil e, logo, do próprio


Código de Processo Civil3. Mas para que serve, concretamente, este
Código? Em que domínios permite afastar a resolução dos conflitos
através da força? Vamos responder, já de seguida, a estas perguntas,
abrindo o caminho pelos fundamentos da nossa Disciplina.

2. A origem dos processos cíveis: o litígio ou o conflito de interes-


ses. Num ordenamento jurídico, as normas materiais ou primárias, ou seja,
as normas que integram o vasto universo do Direito Privado ‒ consti-
tuído pelo Direito Civil, pelo Direito Comercial e pelo Direito do Trabalho
‒ regulam as nossas «posições jurídicas substantivas», ou seja, tanto
os nossos direitos subjectivos (direitos de crédito, reais, de personalidade, de
autor, de propriedade industrial, etc.), como os nossos interesses legalmente
protegidos (ora estritamente individuais, como o interesse na declaração
da nulidade de um contrato, ora supra-individuais, como, por exem-
plo, o interesse num ambiente saudável ou no património cultural
protegido)4. Note-se, pois, que o Direito Privado ‒ essa imensa «galá-
xia» repleta de densos «planetas» ‒ é o «eixo central» à volta do qual

3
 É certo que não pode haver Justiça sem a força do Estado, ou seja, sem a pos-
sibilidade do recurso à força pública. Mas esta é uma força legítima e querida pelos
cidadãos.
4
 Os interesses supra-individuais previstos no artigo 53º, nº 3, da C.R.P., como
veremos mais adiante, têm por objecto os bens da comunidade, como, por exem-
plo, a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, o ambiente ou o
património cultural. Como bem explica Mitidiero, Processo civil, São Paulo, Revista
dos Tribunais, 2021, p. 21, «os direitos individuais são aqueles que pertencem a um
indivíduo, que são subjetivamente determinados, ao passo que os transindividu-
ais são aqueles que pertencem à coletividade, que não podem ser subjetivamente
determinados. Exemplo de direito individual: o direito de alguém à obtenção
da reparação de um dano. Exemplo de direito transindividual: o direito ao meio
ambiente.»

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gira o Processo Civil. É fundamental fixar, desde já, esta simples ideia
que pode representar-se através do seguinte esquema:

Esquema 1

É sabido que a 1ª tarefa jurídica de um Estado consiste, precisa-


mente, em legislar, criando normas (materiais) que regulam os nos-
sos direitos, estabelecendo-os, fixando os seus pressupostos, os seus
efeitos e os seus limites.
Normalmente, os direitos regulados pelo Direito Privado não neces-
sitam de qualquer espécie de tutela judiciária, uma vez que não são amea-
çados ou violados por quem quer que seja. Neste sentido, o Direito
é, diríamos, respeitado, de forma espontânea e voluntária, por parte
dos indivíduos e a paz transparece nas relações humanas5. Existem
sempre, em boa verdade, diariamente, ofensas esporádicas que,
por serem irrelevantes, acabam por desculpar-se ou esquecer-se,

 Como bem observa Mitidiero, Processo Civil, São Paulo, Revista dos Tribu-
5

nais, 2021, p. 23, «normalmente, o direito concretiza-se de maneira independente


do processo.»

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cumprindo-se o instinto de sobrevivência e o espírito elevado que


caracteriza os homens razoáveis.
Por vezes, porém, as pessoas (singulares ou colectivas) vêem os
seus direitos ameaçados ou violados de uma forma gritante, nascendo
graves litígios ou conflitos relacionados com as suas «posições jurídi-
cas substantivas» reguladas pelo Direito Privado.
Importa frisar que muitos destes conflitos, apesar do atrito que
geram, resolvem-se amigavelmente, fora dos tribunais, com ou sem
a presença de um terceiro mediador6. Exemplificando, o vizinho rui-
doso, uma vez intimado a fazer menos ruído, torna-se silencioso; o
plagiador, uma vez confrontado com o flagrante plágio constante
da sua obra escrita ou musical, retira esta do mercado ou paga uma
indemnização ao autor ofendido; o condómino devedor, intimado
a saldar uma dívida do condomínio, acaba por transferir o dinheiro
para a conta da administração.
Mas os conflitos agravam-se quando não se resolvem amigavel-
mente. Exemplos não faltam e podem apresentar-se até ao infinito.
Sendo a vida tão rica e complexa, muitos litígios, originadores de
«batalhas judiciais», apresentam contornos que nem a imaginação
mais fértil poderia, algum dia, supor e descrever.
Eis um 1º exemplo verídico que deu origem ao interessante Acór-
dão da Relação de Coimbra de 18/11/2008 (Arlindo Oliveira)7: o con-
dutor de um veículo ligeiro, ao proceder a uma manobra, atropelou
mortalmente uma rara catatua pertencente a um casal. A seguradora
do veículo causador do acidente entendia que não tinha de indem-
nizar os proprietários da ave; por seu turno, os lesados defendiam o
contrário e queriam ser ressarcidos. Aos proprietários da ave assistia
o direito a uma indemnização pelo dano patrimonial e também moral
que sofreram, mas a seguradora não pretendia ressarci-los, argumen-

 O conceito de mediação será analisado numa lição autónoma.


6

 In www.dgsi.pt/.
7

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tando, por um lado, que o acidente não ocorrera na via pública e, por
outro lado, que o casal deveria ter vigiado a ave, coisa que não fez.

Apresentemos, agora, um 2º exemplo, também ele verídico: em


Abril de 2017, uma avioneta (matriculada na Suíça), que acabara
de descolar do aeródromo de Tires, em Cascais, despenhou-se, de
forma violenta e trágica, apesar das excelentes condições atmosféri-
cas, sobre as traseiras de um hipermercado, atingindo e destruindo
por completo a casa de habitação pertencente a certa pessoa. Esta,
felizmente, sobreviveu ao acidente, mas a sua casa ficou inabitável.
A Seguradora da avioneta, decorridos largos meses, teimava em não
pagar qualquer indemnização e o lesado vivia uma situação desespe-
rada porque a entidade civilmente responsável não estava interessada
em resolver, com rapidez e extrajudicialmente, o delicado litígio.
Neste exemplo, uma pessoa, fortemente prejudicada por um acidente
de aviação, pretendia ser ressarcida, mas o tempo passava e nada se
resolvia a seu favor. Não serve de consolo ao lesado a mera afirma-
ção de que o ordenamento jurídico lhe reconhece a titularidade de
direitos. É preciso ir mais longe e apontar-lhe os meios através dos
quais poderá exercê-los perante a Justiça. Analogamente, também o
paciente não se contenta com a notícia de que a sua doença tem cura:
é necessário apontar-lhe os mais eficazes remédios.

Os dois casos que acabámos de relatar ocorreram no nosso país,


mas existem, pelo mundo fora, litígios inimagináveis. Eis um caso
que teve uma divulgação planetária: certo indivíduo, residente nos
E.U.A., quando fazia compras numa loja na Califórnia, reparou que
uma fotografia sua estava a ser usada, sem autorização ou abusiva-
mente, nos rótulos de certo produto comercializado por uma famosa
multinacional («Nestlé»). A empresa, confrontada com a imediata
reacção extrajudicial do lesado, reconheceu-se culpada e ofereceu-
-lhe uma indemnização de 100.000 dólares, mas o indivíduo recusou
a quantia, acabando por demandar judicialmente a multinacional.
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Estes exemplos que acabámos de apresentar permitem identificar


a causa ou a origem comum ou universal dos processos cíveis: essa causa
é o litígio, ou seja, o conflito de interesses ou a discórdia8. Para um dos
mais célebres processualistas italianos, Carnelutti, o conflito de
interesses chama-se lide (lite)9. Ora, a lide, segundo este processua-
lista, pode definir-se como um conflito intersubjectivo (conflitto interso-
ggettivo) de interesses assente numa pretensão que se tornou objecto
de resistência ou de oposição (pretesa resistita ou contrastata, segundo
as suas palavras originais)10.
Olhando, agora, para o nosso ordenamento, vemos que o legisla-
dor, no artigo 3º, nº 1, do Código de Processo Civil, diz-nos, precisa-
mente, que o tribunal, se isso lhe for pedido pela parte interessada, tem a
tarefa de «resolver o conflito de interesses»11. Isto significa, portanto,
que a existência de um conflito está na génese dos processos. Mas, convém
dizê-lo desde já, esse conflito não basta para originar um processo,
sendo indispensável que a pessoa interessada ‒ através de uma peti-
ção inicial ‒ se dirija à Justiça, contando a sua história (ou o seu pro-
blema) e solicitando a tutela adequada à sua pretensão 12.Veremos
que o ponto acabado de explicar se relaciona com um dos princípios
mais antigos do Processo Civil: o princípio do pedido.
Importante é fixar que o exercício do direito de acção pressupõe,
portanto, em regra, a existência de um litígio: sem litígio, falta o deno-
minado interesse em agir ou interesse processual e nenhum juiz se ocupará
do caso. Mas, note-se, não estamos perante uma regra absoluta e,
portanto, pode haver processos que não assentam em litígios.

8
  O verbo litigo significa, precisamente, disputar, combater ou lutar. Cfr. Car-
nelutti, Cómo se hace un proceso, p. 15.
9
 Istituzioni del processo civile italiano, vol. I, 5ª ed., Roma, Foro Italiano, 1956, p. 6.
10
 Ob. cit., p. 7.
11
 As disposições doravante citadas, sem menção do diploma a que pertencem,
são do Código de Processo Civil.
12
 Guasp/Aragoneses, Derecho procesal civil, t. I, p. 33.

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Na verdade, a lei, excepcionalmente, autoriza o processo cível sem


litígio. Assim, por exemplo, a Lei da Nacionalidade (Lei nº 37/81, de
3/10) determina, no seu artigo 3º, nº 3 (cuja redacção provém da Lei
nº 2/2006, de 17/04), que «o estrangeiro que, à data da declaração, viva
em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir
a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a
propor no tribunal cível»13.
Veremos, em fase mais avançada das lições, que certos processos
especiais ‒ os denominados processos de jurisdição voluntária (regulados
no artigo 986º e ss.) ‒ podem fundar-se em situações não litigiosas (é o
caso do processo destinado à obtenção de uma autorização judicial para
a prática de certo acto, previsto no artigo 1014º). No fundo, existe
um problema para o qual o juiz, chamado a intervir, deverá ditar a
melhor solução possível, como se de um «gestor» ou «administrador»
se tratasse.
Outro processo especial, hoje muito falado, previsto nos artigos
891º a 904º – o «processo de maior acompanhado» –, destinado ao
decretamento de «medidas de acompanhamento» para pessoas vul-
neráveis, não assenta também, na esmagadora maioria dos casos, num
litígio ou conflito de interesses. Assenta, antes, numa situação de mais
acentuada ou menos acentuada vulnerabilidade humana a necessitar

 Ver o Acórdão da Relação do Porto de 28/09/2010, Ana Lucinda Cabral


13

(interesse em agir/aquisição de nacionalidade/união de facto), in www.dgsi.pt. Eis


o caso exposto no aresto: um cidadão búlgaro intentou uma acção contra o Estado
português, a fim de que o tribunal declarasse que o autor vivia em união de facto,
há mais de três anos, com certa pessoa de nacionalidade portuguesa. O Estado não
contestou. O juiz proferiu um despacho a julgar procedente a excepção dilatória
da falta de interesse em agir, absolvendo o réu da instância. Interposto recurso
pelo autor, a Relação do Porto revogou a decisão recorrida. Se, em princípio, o
exercício do direito de acção exige uma lesão de direitos, a verdade é que, neste
caso, à luz do regime legal, o autor, para adquirir a nacionalidade portuguesa,
necessitava de uma sentença meramente declarativa e, assim sendo, não estava des-
provido de interesse em agir.

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de resguardo ou tutela, principalmente através da nomeação pelo


tribunal de alguém que proceda ao acompanhamento dessa pessoa
fragilizada14.
Há quem defenda, é certo, contra a corrente dominante, que o pro-
cesso não é um mero mecanismo de resolução de litígios15. Vejamos o acerto
deste entendimento. O processo, na esmagadora maioria dos casos,
tem por detrás litígios e visa resolvê-los, quanto a isto não temos a
mais leve dúvida. Mas, há que reconhecer, o processo não visa ‒ para
uma visão pós-moderna do Processo Civil ‒ alcançar uma qualquer
resolução para esse conflito, mas antes e apenas uma resolução justa.
Isto não tira que, na base dos processos, esteja um litígio aceso entre
pessoas.
Ora, nos processos de jurisdição contenciosa, por detrás do litígio
existe, porém, na maior parte dos casos, a violação consumada de um
direito, pedindo-se aos tribunais uma tutela reparatória. Por vezes,
no entanto, o litígio assenta, diferentemente, numa ofensa ainda não
concretizada, ou seja, numa ofensa potencial. O processo visa, nestas
situações, impedir a ocorrência da futura e previsível violação do direito:
estamos no domínio da chamada tutela inibitória16. Eis um exemplo
ilustrativo desta última espécie de tutela: certa editora prepara-se
para lançar no mercado um livro ofensivo dos direitos de persona-
lidade de uma pessoa e esta recorre aos tribunais para travar, com
urgência, a publicação da obra, evitando um dano potencial, mas
ainda não efectivo.
Os tribunais, concluindo, existem para tutelar lesões efectivas e lesões
potenciais dos nossos direitos. Por isso, o artigo 10º, nº 3, al. b), deter-

14
 Nas palavras do Ac. da Relação do Porto de 28/02/21 (Carlos Portela), in
www.dgsi.pt, «o processo de maior acompanhado não tem em vista dirimir conflito
algum.»
15
 Alexandre Freitas Câmara, «A lide como elemento acidental da jurisdi-
ção», in Civil Procedure Review, jan./apr., 2011, vol. 2, nº 1, pp. 57-64.
16
 Cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, p. 8.

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mina que as acções de condenação «visam exigir a prestação de uma


coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito»17.

Esquema 2

3. O princípio da proibição da justiça pessoal ou do recurso


à força. Os litígios, nos Estados de Direito, não podem, em princí-
pio, resolver-se com base na força e, portanto, às pessoas é vedado
«fazer justiça por suas mãos»18. É verdade que, nas sociedades pri-
mitivas, a efectivação dos direitos fazia-se ou ainda se faz através da
denominada autotutela, com o indispensável recurso à força, mas os
ordenamentos jurídicos civilizados rejeitam esta forma primária de
resolução dos litígios.
Estes ordenamentos assentam no princípio fundamental da proi-
bição da autotutela ou da autodefesa que se encontra expressamente
consagrado no artigo 1º: «A ninguém é lícito o recurso à força com o fim
de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites
declarados na lei.»
Este princípio justifica-se por duas razões fundamentais:
1ª: A autotutela perturba a paz e, portanto, o valor supremo de um
Estado de Direito, conduzindo a sociedade a um estado de

17
 É nosso o sublinhado.
18
 Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, p. 2.

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intolerável selvajaria. É sabido que a violência, ligada ao uso da


força, gera violência e não traz nada de bom: sem paz, não se
alcança a felicidade e o progresso. Em abono da verdade, tam-
bém não é certo que o recurso aos tribunais assegure sempre,
de forma absoluta, a paz (por vezes, infelizmente, assistimos
a «ajustes de contas» relacionados com processos que alguém
«perdeu» na Justiça).
2ª: A autotutela não incrementa ou valoriza a Justiça. Desde logo, o
mais fraco ou o menos poderoso não consegue impor-se ao
mais forte e fica, para sempre, refém do ódio. E o mais forte,
mesmo tendo a razão do seu lado, é tentado a adoptar medidas
exageradas ou abusivas. Ora, a Justiça não distingue o fraco do
forte e, por natureza, é proporcional ou equilibrada.

Estamos perante uma proibição fundamental que, infelizmente,


nem sempre é respeitada, pois são frequentes, por exemplo, as deno-
minadas cobranças forçadas levadas a cabo pelos particulares. Contra
estes censuráveis comportamentos, existem sanções do foro criminal
para quem se atreve a violar este princípio: a pessoa que, através da
força ou de ameaças da mais variada índole, exigir o cumprimento
de um direito, comete um crime de coacção, previsto no artigo 154º do
Código Penal (associado a este crime podem estar outros crimes: por
exemplo, o crime de rapto).
Resta acrescentar que consideramos ilícitas as novas formas de auto-
tutela que, não passando pela coacção física propriamente dita, acabam
por basear-se em técnicas de coacção psicológica intoleráveis num
Estado de Direito: a afixação de cartazes com os nomes dos deve-
dores ou os cobradores de dívidas que, vestidos de forma ostensiva,
perseguem os devedores, vexando-os perante a família e a vizinhança.
Ora, o exercício legítimo dos direitos não pode passar, numa socie-
dade civilizada, pelo uso de meios vexatórios destinados a humilhar
o devedor, constrangendo-o a cumprir.

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4. Desvios ao princípio da proibição da autotutela. O princípio


da proibição da autotutela comporta desvios, tornando-se o recurso à
força admissível nalgumas situações excepcionais. Mas os casos de
tutela privada ‒ que assentam na ideia da inviabilidade do recurso ao tri-
bunal ‒ são muito reduzidos: a acção directa, a legítima defesa e o estado
de necessidade19.
Acção directa (artigo 336º do C.C.): traduz-se num ataque base-
a) 
ado na necessidade de realizar ou de assegurar um direito, uma vez
que se torna impossível recorrer, em tempo útil, aos tribunais. Como
exemplo de acção directa, destinada à conservação prática de
um direito, pode apresentar-se o caso da pessoa que retira
de um quintal alheio uma coisa que sabe ser sua (uma peça
de roupa ou uma bicicleta, por exemplo). Como explica Vaz
Serra, «se, por exemplo, A, dono de um objecto roubado por
B, encontra, passados dias, o ladrão com o objecto roubado,
pode acontecer que, recorrendo à polícia ou ao tribunal, venha
a recuperar esse objecto, mas pode também acontecer que,
com esse recurso, deixe escapar a ocasião de reaver o que lhe
pertence. O ladrão pode entretanto desaparecer ou fazer desa-
parecer a coisa roubada e, assim, a intervenção da autoridade
não ser já oportuna»20.
Legítima defesa (artigo 337º do C.C.): consiste numa reacção
b) 
imediata ‒ diríamos, «a quente» ‒ que visa afastar uma agressão

 Acrescente-se que o legislador, noutras disposições, vai pontualmente admi-


19

tindo a autotutela dos direitos. É o caso do direito de cortar as raízes advindas de


um prédio alheio (artigo 1366º do C.C.); o direito de entrar em propriedade alheia
para perseguir ou buscar coisa própria (artigos 1322º, nº 1, e 1349º, nº 2, do C.C.);
o direito, atribuído ao possuidor, de usar a força para afastar uma perturbação ou
um esbulho (artigo 1277º do C.C.).
20
 Responsabilidade civil, Lisboa, 1959, p. 69.

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ilícita a uma pessoa ou ao seu património21. Exemplo: o gerente de


um hipermercado reage, de imediato, contra o «furto» de car-
rinhos de compras levado a cabo por estudantes em vésperas
de um cortejo estudantil.
Estado de necessidade (artigo 339º do C.C.): trata-se de uma
c) 
figura que legitima o recurso à força e que consiste na destrui-
ção ou danificação de uma coisa alheia com o objectivo de afastar um
perigo actual ou iminente. Exemplificando, alguém quebra uma
janela para efectuar um salvamento, ou alguém, para prote-
ger a sua casa de um incêndio, procede, por sua iniciativa, ao
corte de árvores existentes num prédio rústico vizinho, evi-
tando assim a propagação do devastador fogo. Ainda para o
mesmo fim, pensemos no caso, muito frequente, em que um
helicóptero de combate aos fogos, desce sobre uma piscina
alheia para se abastecer de água. Este «furto de água» não
pode considerar-se ilícito, uma vez que é executado ao abrigo,
precisamente, do estado de necessidade, visando proteger um
bem maior22.

21
 Nas palavras de E. Betti, Diritto processuale civile italiano, Roma, Foro Ita-
liano, 1936, p. 32, a pessoa que age em legítima defesa quer afastar «um perigo
actual de uma ofensa injusta.» A «actualidade» do perigo é, como bem acentua,
fundamental.
22
 A Relação de Coimbra, no Acórdão de 21/04/21 (Elisa Sales), in www.dgsi.pt,
com fundamento na figura do «estado de necessidade», absolveu dois arguidos
(um casal) da prática do crime de dano. O caso é curioso: os arguidos destruíram
parte de um muro alheio acabado de fazer, a fim de entrarem numa propriedade
que lhes pertencia e de aí alimentarem os animais existentes num barracão. Note-
-se que o referido muro tornava «completamente encravado» o terreno agrícola
dos arguidos. Entendeu a Justiça – e parece-nos que no plano cível o problema
haveria de ter uma solução análoga – que «a necessidade de os animais serem ali-
mentados e cuidados diariamente não se compadecia com os tempos da Justiça»,
legitimando-se, assim, o uso da força em nome de salvaguardar um interesse supe-
rior em relação ao interesse sacrificado.

19
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Por detrás de todas as situações agora referidas, percebemos que


existe algo que é comum e que se traduz na necessidade de agir
rapidamente, sob pena de não se conseguir, mais tarde, alcançar
uma tutela judicial útil. É claro que a pessoa, mesmo actuando ao
abrigo destas normas excepcionais, está impedida de ultrapassar
certos limites.
Importa dizer que, naturalmente e compreensivelmente, os tri-
bunais emitem ordens cujo cumprimento, em variadas situações,
implica o uso da força (v.g., execução de um despejo ou de um arresto
de bens), mas isto nada tem a ver com o que atrás ficou dito. Nestes
diferentes casos, estamos perante o recurso legítimo à força, pois é
autorizado pelo juiz e depende da verificação de rigorosos requisitos
(artigo 757º). O uso da «espada» é uma prerrogativa do Estado que,
aliás, não seria respeitado nem sobreviveria se, como os cidadãos,
estivesse impossibilitado de fazer uso do seu «braço armado.»

5. A tutela jurisdicional cível e os tribunais. O Estado concede


e regula os nossos direitos, mas proíbe, como vimos, em regra, que
os tutelemos através da força. Ora, se o Estado nos retira, com uma mão,
a possibilidade do recurso à tutela privada, que nos «oferece» com a outra
mão? Precisamente, os tribunais e o direito fundamental de agirmos
perante eles: o direito de acção. Como já bem se observou, «a exclu-
são da autotutela no campo do direito privado é paralela à con-
cessão da tutela jurídica processual para os interesses que correm
perigo»23.
Os tribunais exercem, portanto, uma função substitutiva, pois, a
nosso pedido (artigo 3º, nº 1), agem por nós, quer dizer, fazem a jus-
tiça que nós não podemos fazer através da autotutela.
O Estado criou os tribunais ‒ os denominados tribunais estaduais ‒ e
autoriza, em certos casos, os tribunais arbitrais (privados), regulados

 A. Wach, Manual de derecho procesal civil, vol. I, p. 22.


23

20
O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

pela Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro. Tanto uns, como outros,


administram a justiça «em nome do povo» e asseguram «a defesa
dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos» (artigo
202º da C.R.P.).
Nos tribunais estaduais que tutelam os direitos e interesses regulados
pelo Direito Privado encontramos, como categoria principal, os tribunais
judiciais, previstos, de forma genérica, no artigos 210º e 211º da C.R.P.:
existem tribunais judiciais de 1ª instância (os tribunais de comarca), tri-
bunais judiciais de 2ª instância (ou Tribunais da Relação ‒ em Lisboa,
Porto, Coimbra, Guimarães e Évora) e, no topo da pirâmide judiciá-
ria, com sede em Lisboa, o Supremo Tribunal de Justiça.
Os processos, em regra, dão entrada nos tribunais judiciais de 1ª
instância e só ascendem aos tribunais superiores se a parte vencida
interpuser, dentro do prazo legal, recurso contra a decisão judicial
desfavorável.

Esquema 3

Para além dos tribunais judiciais, o Estado criou, em certos muni-


cípios, com a colaboração das autarquias, os Julgados de Paz (Lei nº
78/2001, de 13 de Julho). Estes órgãos, que apenas podem julgar
acções até ao valor de € 15000, e somente certas matérias específicas,
foram pensados para a resolução dos litígios através da mediação. As
partes, voluntariamente, sujeitam-se a uma sessão de mediação e expõem

21
M IGU EL M ESQU I TA

as suas posições, tentando, por elas, sob o olhar sempre atento do


mediador, chegar a um acordo que, posteriormente, é confirmado
pelo juiz do Julgado de Paz, evitando-se, assim, que a causa siga para
julgamento.
Iremos desenvolver, mais à frente, em lição autónoma, o pressuposto
processual da competência, pormenorizando o discurso sobre os tribu-
nais destinados ao julgamento dos processos e procedimentos cíveis.
Mas, concluindo, em que se traduz, em regra, a função dos tribu-
nais? É sabido que os tribunais exercem a função jurisdicional, consis-
tindo esta, na sua essência, na resolução de questões de facto e de questões
de direito. Explicando, e recorrendo ao 1º exemplo atrás exposto, ave-
riguar se e como o condutor atropelou a ave traduz-se na resolução
da questão de facto; já saber se a seguradora, à luz das normas da res-
ponsabilidade civil extracontratual, pode ser responsabilizada pelos
danos patrimoniais e morais sofridos é resolver a questão de direito, ou
seja, interpretar e aplicar a lei.
A questão de facto resolve-se com base nas provas (artigo 341º do
C.C.) e a essência da jurisdição reside, pois, na aplicação das normas
substantivas aos factos concretos apurados pelo tribunal.
No domínio da tutela executiva, o tribunal não exerce uma típica
função jurisdicional, uma vez que se limita a legitimar o uso da força
(pelo agente de execução) ou a exercer, ele próprio, a força como,
por exemplo, na execução do despejo.
A intervenção do juiz restringe-se aos casos em que seja necessá-
rio proferir um despacho liminar, apreciar uma oposição à execução,
verificar ou graduar créditos, julgar reclamações, impugnações e
recursos dos actos do agente de execução ou decidir questões levan-
tadas por este24.

24
 Cfr. o Preâmbulo do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de Novembro.

22
O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

6. A garantia de imparcialidade: o regime do impedimento e


o regime da suspeição. A condição essencial da Justiça, não só da
civil, naturalmente, é a imparcialidade do julgador25. É fundamental
que o tribunal aprecie com inteira isenção e objectividade o caso que
lhe é apresentado, sem estar condicionado por nada e tratando com
igualdade as partes, sem prejudicar ou beneficiar nenhuma delas.
Numa palavra, o juiz tem de ser imparcial, sob pena de não conseguir
ser justo (ou não parecer ser justo). Ora, para ser imparcial, tem de
«estar acima e alheio do conflito de interesses particular que a lide
exprime e traduz»26.
A Justiça tem de ser totalmente transparente, não pode dar azo
a que se levante a mais leve suspeita sobre a imparcialidade do juiz.
A mera aparência de parcialidade tira credibilidade a uma sentença,
algo que os nossos tribunais, por vezes, esquecem 27. Vamos analisar
os mecanismos que visam reforçar essa desejada imparcialidade, mas
torna-se praticamente impossível, na realidade, afastar certos pré-
-juízos que cada juiz tem dentro de si e que se tornam susceptíveis,
mesmo inconscientemente, de prejudicar a neutralidade da decisão.
A idiossincrasia do julgador, derivada dos seus valores culturais, polí-
ticos, religiosos, pode levá-lo a interpretar e a aplicar a lei material
de um modo que lhe é próprio. Isso é, com certeza, negativo e cada
juiz tem de esforçar-se por se elevar a um patamar de objectividade
e de distanciamento em relação a essa sua forma particular de ver o
mundo e os problemas da sociedade.

25
 Vide Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, p. 388.
26
 Alberto dos Reis, ob. cit., p. 388.
27
 A Relação de Guimarães ‒ no Acórdão de 14/6/2004, in www.dgsi.pt/ ‒ deci-
diu manter num processo um juiz que, pelo facto de ser arrendatário e amigo dos
réus, se quis, e bem, afastar do julgamento da causa.

23
M IGU EL M ESQU I TA

Em todo o caso, o Código de Processo Civil prevê dois regimes, com


grande importância prática, destinados a garantir a imparcialidade do juiz.
Vejamos, sumariamente, quais:

A) O regime do impedimento (artigo 115º e ss.): certas circunstân-


cias taxativamente previstas no artigo 115º obrigam o juiz, através de
um despacho, a declarar-se impedido de julgar o processo que lhe foi
distribuído (artigo 116º), ou seja, fazem recair sobre ele o dever de se
afastar do caso. Ora, o que sucederá se o juiz não cumprir este básico
dever? Na falta de cumprimento deste dever, qualquer das partes pode
exigir, até à sentença, perante o próprio juiz, a declaração de impedimento
(artigo 116º, nº 1, in fine)28. Confrontada com o indeferimento do pedido,
à parte assiste o direito de interpor recurso para o Tribunal da Rela-
ção, pedindo o afastamento do juiz (artigo 116º, nº 5). Este regime é
susceptível da seguinte crítica: não nos parece correcto que o pedido
de afastamento seja apreciado, à partida, pelo próprio juiz que a parte
pretende afastar e não por outro juiz, tanto mais que o legislador está
a regular um problema de imparcialidade. Ora, afigura-se-nos estra-
nho que esta não seja garantida logo no momento em que a parte quer
afastar o juiz com base numa causa de impedimento.
Concretizando, o juiz deve declarar-se impedido se for parte
directamente interessada na causa (ninguém deve ser juiz em causa
própria: nemo iudex in causa propria) ou se nesta forem partes o seu
cônjuge, os seus ascendentes (pais, avós), os seus filhos ou os seus irmãos
(parentes colaterais em 2º grau)29. Mas se o juiz não se declarar

 A lei permite que a reacção seja movida tanto pela parte que pode ser preju-
28

dicada, como pela parte que pode ser beneficiada. Vide, neste ponto, Alberto dos
Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, p. 424.
29
 Compreende-se que o parentesco (o parentesco existe entre pessoas que
descendem umas das outras ou entre pessoas que descendem de um progenitor
comum) seja causa de impedimento quanto ao exercício da função jurisdicional.
Ver, sobre este conceito, os artigos 1580º e s. do CC.

24
O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

impedido (por falta de sentido ético-profissional) ou se as partes


não requererem a declaração de impedimento, a sentença é válida.
Na eventualidade, porém, de o juiz se afastar ou vir a ser afastado, o
processo terá de ser julgado por um juiz substituto.

B) O regime da suspeição (artigo 119º e ss.): certas circunstâncias,


apesar de menos gravosas do que as previstas no artigo 115º, podem
levantar sobre o juiz uma «nuvem» de suspeição (não se trata, no
entanto, de casos flagrantes de falta de imparcialidade). Imaginemos,
para ilustrar este ponto, e atendendo às circunstâncias previstas no
artigo 120º, que certo juiz recebe um processo no qual é parte um
seu amigo, um seu inimigo ou a sua empregada doméstica. Se isto suce-
der, o juiz pode, se assim entender por bem, apresentar um pedido de
escusa ao Presidente da Relação que exerça jurisdição sobre o tribu-
nal de 1ª instância onde o problema se levanta (artigo 119º, nº 3).
E, acrescente-se, para além dos fundamentos taxativamente previs-
tos no artigo 119º, o juiz pode invocar ainda outras «circunstâncias
ponderosas» que, em seu entender, justifiquem o seu afastamento do
processo (artigo 119º, nº 1).
Adiante-se que a qualquer parte, nos termos dos artigos 120º, nº 1,
e 122º, assiste o direito de levantar o incidente da suspeição, precisa-
mente com vista ao afastamento do juiz. Este incidente terá de ser
apreciado pelo Presidente da Relação (artigo 123º). Levantado o inci-
dente, dentro dos prazos previstos no artigo 121º, que sucede ao pro-
cesso? O processo, diz a lei, «segue os seus termos», intervindo nele
um juiz substituto. Enquanto a suspeição não for julgada, o juiz fica
impedido de elaborar o despacho saneador ou de lavrar a sentença.
Quer isto dizer que o incidente em análise, em muitos casos, acaba
por ser um expediente para o advogado atrasar o processo que não
lhe corre de feição, traduzindo-se numa clara forma de litigância de
má fé que, acrescenta-se, não deverá deixar de ser sancionada (artigos
123º, nº 3 e 542º, nº 2, al. d)).

25
M IGU EL M ESQU I TA

Importa ainda notar que as causas de impedimento e de suspeição


podem também atingir um juiz da Relação (Desembargador) ou do
Supremo Tribunal de Justiça (Conselheiro). Tratando-se de um impe-
dimento, tanto o Desembargador, como o Conselheiro, têm o dever
de se afastarem do processo que lhes chega por via de recurso. Se,
porém, não o fizerem, qualquer das partes pode requerer, perante o
magistrado, o seu afastamento (artigo 116º, nº 2). O indeferimento
do pedido de declaração de impedimento é susceptível de reclama-
ção para a Conferência, ou seja, para um colectivo de magistrados (o
Desembargador ou o Conselheiro «em cheque» não podem integrar
este colectivo). A decisão proveniente da Relação pode ainda ser
impugnada através de um recurso de revista.
Tratando-se de uma causa de suspeição, a afectar um Desembarga-
dor ou um Conselheiro, o próprio magistrado ou qualquer das partes
pode dirigir-se ao Presidente do respectivo tribunal superior, que,
nos termos do artigo 124º, decide sem recurso.

7. Conceito de processo: o processo é um «jogo»? O que é, afi-


nal, o processo? Será apropriado defini-lo, hoje, como um «jogo»? Já
vimos que o Estado proíbe o recurso à força, obrigando-se a erigir tri-
bunais e a contratar juízes. Em simultâneo, concede-nos o direito de
agirmos, em situações de litígio, perante a Justiça, ou seja, atribui-nos
o denominado direito de acção (o reverso da proibição da autodefesa)30. Este
direito fundamental de agir perante a Justiça, ao qual dedicaremos a
próxima lição, encontra-se consagrado no artigo 20º da C.R.P., e nos
seguintes termos: «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais
para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo
ser denegada por insuficiência de meios económicos.»

 Pekelis, «Azione», p. 94, explica que a acção é o resultado da proibição da


30

acção física.

26
O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

O direito de acção visa obter, consoante as circunstâncias do caso,


uma das seguintes espécies de tutela: a tutela declarativa; a tutela exe-
cutiva ou a tutela cautelar31. Qualquer processo cível (em especial,
declarativo ou cautelar) resulta do exercício do direito de acção e do
subsequente funcionamento do poder jurisdicional, sendo a síntese da
actuação destes pólos dialécticos, tudo se reduzindo ao seguinte esquema:
litígio/acção/oposição/jurisdição = processo. Como certeiramente obser-
vou Carnelutti, «acção e jurisdição são termos correlativos, uma
vez que não pode haver acção sem jurisdição, nem jurisdição sem
acção»32.
Note-se a importância do termo «oposição», pois o processo é, por
natureza, dialéctico, gravitando, normalmente, em torno de alegações
opostas: por um lado, em alegações de facto não coincidentes; por outro
lado, em alegações jurídicas conflituantes33.
Há muito se comparou, por tudo o que acabámos de referir, o pro-
cesso cível declarativo a um jogo34. Na verdade, durante muito tempo,
entendeu-se que o processo estava essencialmente nas mãos das
partes, devendo o juiz comportar-se de forma distante e silenciosa.
A voz do juiz far-se-ia ouvir no momento da sentença, pouco mais do
que isso e a vitória pertenceria à parte mais hábil ou mais forte, não
importando que a razão não estivesse do lado desta. Na realidade,
o processo era, assim, uma espécie de jogo ou, à luz de uma visão

31
 O nosso discurso adequa-se à tutela declarativa e à tutela cautelar, uma vez
que a tutela executiva apresenta especificidades que exigem um estudo próprio em
Disciplina autónoma e mais avançada.
32
 «Profilo dei rapporti tra diritto e processo», in Rivista di Diritto Processuale,
1960, p. 543.
33
 Cfr. Taruffo, «Juicio: processo, decisión», in Páginas sobre justicia civil,
p. 234.
34
 Calamandrei, Il processo come giuoco, in Opere giuridiche, a cura di Cappe-
letti, vol. I, pp. 537 e ss.; Carnelutti, Giuoco e processo, Rivista di Diritto Proces-
suale, 1951, p. 102; Taruffo, «Juicio: processo, decisión», in Páginas sobre justicia
civil, p. 233.

27
M IGU EL M ESQU I TA

mais árdua, uma espécie de luta ou duelo que decorria perante o olhar
quase impassível do magistrado (concepção duelística de processo
típica do adversary model seguido nos ordenamentos anglo-saxónicos).
Pois bem, é sabido que nos jogos, em geral, assume papel de pri-
mordial importância a habilidade, a força (física ou mental) e, também
muito, a sorte. Ora, o Processo Civil moderno está nos antípodas desta
visão das coisas e a associação à palavra «jogo» parece-nos hoje ina-
propriada para caracterizar a essência dos processos cíveis. A vitória
do processo deve caber à parte que tem razão à luz dos factos e do
Direito e não à parte dotada de mais astúcia, força ou sorte. O juiz
tem de intervir permanentemente através do diálogo, a fim de alcan-
çar a justa composição do litígio, mas evitando comprometer a sua
necessária imparcialidade. A palavra gestão passou a estar associada
à atividade dos juízes (veja-se o art. 6º), reforçando o dever de estes
intervirem no sentido de se alcançar a «tutela jurisdicional efec-
tiva.» E a ideia da gestão tem transformado, aos poucos, o próprio
«modelo adversarial,» quer em Inglaterra, quer nos Estados Unidos
da América35.
Como bem observou, na Alemanha, Jauernig, «no processo não
pode vencer a parte mais ardilosa ou mais esperta, mas antes a que
tem razão. O processo não é um jogo de futebol e o juiz não se con-
funde com um árbitro que impõe as regras do jogo e, depois, no fim,
entrega o prémio a um dos jogadores»36.
Há que reconhecer, no entanto, que, apesar de certas «válvulas
de segurança» permitirem a superação de erros ou falhas cometidas
pelas partes (o convite à correcção de articulados deficientes ou a
procura oficiosa de prova, por exemplo), o bom conhecimento das
regras processuais e a forma de litigar assumem um papel por vezes

 Cfr. Friedenthal/Kane/Miller, Civil procedure, 4ª ed., Thomson/West,


35

2005, pp. 2 e s.
36
 Zivilprozessrecht, 29 Auf., München, C.H. Beck, 2007, p. 73.

28
O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

decisivo no desfecho do processo. Neste sentido, dir-se-á que o pro-


cesso se assemelha a um jogo, mas, como afirmámos, a expressão não
se nos afigura, presentemente, feliz para definir a essência dos actos
praticados no «palco» que é o tribunal.
O processo é, talvez melhor, uma engrenagem destinada à resolução
de litígios através de sentenças proferidas por terceiros imparciais.
Podemos assim comparar as fases do processo a essas «rodas denta-
das» que, uma vez postas em movimento, transmitem energia a outras
«rodas», algo que é típico numa engrenagem.
Numa visão atomística, o processo consiste num conjunto sequencial
de actos praticados pelas partes (autor e réu), pelo juiz e por outros
intervenientes (funcionários da secretaria; agentes de execução;
testemunhas; peritos), com vista à resolução de um litígio37. Só em casos
raros, como vimos, o litígio não se encontra subjacente aos proces-
sos. O processo é, portanto, um «instrumento [ou uma engrenagem]
de satisfação de pretensões»38.
É claro que os actos processuais não se apresentam desconexos,
mas, antes, se encaixam entre si de forma escalonada (lógica e pro-
gressiva), obedecendo a um fio condutor, integrando-se em fases que,
mais tarde, serão objecto da nossa análise. Hoje, graças ao princípio
da adequação formal (artigo 547º), a tramitação do processo é mais
dúctil do que no passado, ou seja, o juiz tem o poder de a adequar
ao caso concreto.
O processo é, pois, uma sequência de actos e de fases que, como vere-
mos com cuidado, origina uma relação jurídica envolvente e peculiar:
a relação jurídica processual39. Apesar de algumas vozes em sentido con-

37
 Chiovenda, Principii di diritto procesuale civile, p. 68, define o processo civil
como «o complexo de actos coordenados e destinados à finalidade da actuação da
lei, por parte dos órgãos da jurisdição ordinária.»
38
 Guasp/Aragoneses, Derecho procesal civil, t. I, p. 35.
39
 Redenti, «Atti processuali civili», in Scritti e discorsi giuridici di un mezzo
secolo, vol. I, Milano: Giuffrè, 1962, p. 428, escreve que o processo se traduz num

29
M IGU EL M ESQU I TA

trário, a teoria da relação processual é, desde há muito, dominante


entre os processualistas40. Ver o processo como um mero conjunto de
actos acaba por ser muito redutor, fazendo lembrar a compreensão
existente no século XIX.
O processo declarativo visa, numa primeira fase, a mais árdua e com-
plexa, a descoberta da verdade dos factos controvertidos; num segundo
momento, derradeiro e curto, pretende-se que o juiz declare, com base
nos factos provados e não provados, e em face do direito substantivo,
de que lado está a razão, se do lado do autor, se do lado do réu.
Descendo a um plano mais técnico, mas ainda generalista, diremos
que o processo declarativo comum passa pelas seguintes fases: 1ª) Fase dos
articulados (artigo 552º e ss.); 2ª) Fase da audiência prévia (artigos 590º e
ss.); 3ª) Fase da audiência final, comportando a fase da instrução ou da
produção de prova (artigo 599º e ss.); 4ª) Fase do julgamento (da maté-
ria de facto e da matéria de direito) ou da sentença (artigo 607º e ss.).
Na visão tradicional, e materialmente, o processo traduz-se num
conjunto de papéis escritos (petições, requerimentos, contestações,
despachos e documentos da mais variada espécie). Refira-se, no
entanto, que os processos judiciais são hoje norteados por uma ideia
de desmaterialização e, precisamente por causa disto, o artigo 132º
determina que o processo tem «natureza electrónica»41. Nos pro-
cessos cíveis, as partes praticam os actos por via electrónica, mas um
número considerável de juízes e de advogados ainda preferem traba-
lhar em processos de papel e não em processos que somente apare-
cem nos ecrãs de um computador, difíceis de anotar e de memorizar.

conjunto de actos legalmente previstos que se combinam entre si de forma pro-


gressiva. O processo é uma sequência de actos (sequela di atti). A palavra processo
deriva da conjugação do prefixo «pro» (para diante) com o verbo «cedere» (cami-
nhar).
40
 Cfr. Guasp/Aragoneses, Derecho procesal civil, t. I, p. 39.
41
 Ver a Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto.

30
O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

8. Os fins do processo civil. Quais os fins últimos do processo?


Para que serve, afinal de contas, a engrenagem que é o processo? Para
se alcançar a justiça e a segurança ou, nas palavras de Carnelutti,
a «justa composição da lide [litígio]» ou a «paz com a justiça»42-43.
No ordenamento processual norte-americano, o artigo 1º das Federal
Rules of Civil Procedure determina, de forma semelhante, que as nor-
mas do Processo Civil visam assegurar «the just, speedy, and inexpen-
sive determination of every action.» A justa composição do litígio, como
acentuou o célebre e saudoso processualista Taruffo, consegue-se
através dos seguintes passos: 1º) O respeito pelas garantias processuais
das partes (não nos esqueçamos da imparcialidade do juiz como uma
dessas garantias essenciais, mas também do contraditório e da igual-
dade); 2º) A descoberta da verdade; 3º) A correcta aplicação do Direito aos
factos apurados em juízo (artigo 607º, nº 3) 44. Uma falha clamorosa
nos primeiros passos tem como consequência a injustiça da decisão
(por exemplo, porque o tribunal não respeitou o contraditório ou
porque foi enganado pelo depoimento de testemunhas mentirosas);
uma falha no terceiro passo, mesmo que os primeiros tenham sido
dados com êxito, conduz a igual desastre.
A segurança (paz jurídica) é o outro fim do processo. Esta fica
logo assegurada na medida em que as pessoas que seguem a via
judiciária se abstêm, em regra, de trilhar o caminho da autotutela e
do recurso à força. Mas este desiderato alcança-se também através
de um mecanismo tipicamente processual: o mecanismo do caso jul-
gado que, como é sabido, torna a decisão judicial imodificável (artigo
619º, nº 1), impedindo que o litígio possa ser discutido novamente
perante os tribunais. A parte que perdeu o processo tem de se con-

42
 Istituzioni del processo civile italiano, vol. I, p. 4.
43
 Guasp/Aragoneses, Derecho procesal civil, t. I, p. 43, explicam que o processo
obedece não apenas ao princípio da justiça, mas também ao princípio da segu-
rança.
44
 La semplice verità, Editore Laterza, 2009, pp. 117 e ss.

31
M IGU EL M ESQU I TA

formar com a derrota que lhe foi infligida por um terceiro imparcial
e que, na esmagadora maioria dos processos, representa o Estado.
O efeito do caso julgado, como veremos mais tarde, ocorre quando
a decisão deixa de ser susceptível de recurso ou de reclamação
(artigo 628º).

Esquema 4

9. O uso anormal do processo: o processo simulado e o pro-


cesso fraudulento. Já se afirmou que o processo se destina, em regra,
à resolução de litígios. Mas o processo, dada a engenhosa malevolên-
cia dos homens é usado, por vezes, para fins anómalos, distorcidos
ou enviesados. Ora, o legislador, ciente do problema, tenta atacá-lo
através do regime instituído no artigo 612º 45.
Apercebendo-se, através de indícios, de que o processo não visa
a resolução de um litígio, o juiz deve anulá-lo, absolvendo o réu da
instância e condenando as partes como litigantes de má fé 46. Impe-

 Sobre este regime vide Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol.
45

V, pp. 100 e ss.


46
 O juiz tem de justificar, com muito cuidado, as razões que apontam para a
existência do conluio entre as partes. Vide o interessante Acórdão da Relação de
Coimbra de 20/11/2012 (Moreira do Carmo), in www.dgsi.pt.

32
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rioso se torna, para evitar uma decisão-surpresa, dar previamente às


partes conhecimento da drástica, mas justa, decisão. Mas quando é
que isto ocorre? Nos casos de simulação e de fraude processual, situa-
ções felizmente raras.
Desde logo, o processo pode ser simulado, no sentido de que visa
enganar terceiros. Exemplo: A intenta contra B uma acção de reivindi-
cação de uma coisa móvel. O problema é que as partes conluiaram-se
com o único objectivo de afastarem a coisa do património do réu, ten-
tando maldosamente evitar que os credores deste se venham a pagar
à custa dela. Por isso mesmo, B não contesta ou faz mesmo tudo para
perder a acção. A e B não desejam, na verdade, cumprir a sentença,
pois apenas querem enganar terceiros47.
Noutros casos, o processo pode ser fraudulento, ou seja, nasce
com vista a alcançar um fim ilegal. Eis um exemplo: A e B são casados
e, querendo pôr termo ao casamento, pensam, ardilosamente, que
a melhor solução passa por uma acção de anulação de casamento
fundada numa causa inventada pelos dois (artigos 1631º e 1638,º do
C.C.). Neste exemplo, bem conhecido da doutrina, ambas as partes
pretendem o efeito resultante da sentença. O problema é que o pro-
cesso assenta numa mentira e as partes desejam alcançar um resul-
tado que não seria possível sem esse embuste.
Pois bem, o juiz, mal se aperceba do fim anómalo do processo, deve
acabar com o «falso» processo, espécie de «teatro judicial», e absolver
o réu da instância. Não se apercebendo do desvio, profere a sentença
que somente poderá ser revogada se vier a ser interposto um recurso
extraordinário de revisão (artigos 696º, al. g) e 631º, nº 3) por alguém
prejudicado pela decisão.

47
 Qualquer um destes terceiros pode, ao abrigo do artigo 326º, constituir-se
assistente, praticando actos que evitem a perda da acção para o réu (devedor desses
terceiros).

33
M IGU EL M ESQU I TA

10. O objecto e a natureza do Direito Processual Civil. Em que


consiste o Direito Processual Civil? O Direito Processual Civil tra-
duz-se num conjunto de normas essencialmente instrumentais ou técnico-
-jurídicas ‒ constantes do Código de Processo Civil e de inumerável
legislação avulsa ‒ disciplinadoras do exercício do direito de acção e
da correspondente defesa, da competência, da organização e do funcio-
namento dos tribunais judiciais, bem como, naturalmente, da tra-
mitação dos processos (do processo comum e dos processos especiais)48.
A tudo isto acrescem, no nosso tempo, as normas que prevêem os
meios alternativos de resolução de litígios, ponto que iremos tratar mais
adiante. Note-se que estas regras podem, com mais ou menos esforço,
ser agregadas em princípios que funcionam como as traves mestras
do ordenamento processual: por exemplo, as normas reguladoras da
feitura da petição inicial (arts. 552º e ss) traduzem, num plano regu-
lamentar e técnico, os princípios do dispositivo e do pedido; as nor-
mas que tratam do regime da contestação (arts. 569º e ss) espelham,
num plano igualmente técnico, o princípio maior do contraditório.

Uma vez explicitado o objecto do Direito Processual Civil (decla-


rativo), encerremos a primeira lição fazendo uma referência à sua
natureza. Quais os seus caracteres? Em que sector do ordenamento jurí-
dico devemos situar o Direito Processual Civil: no universo do Direito
Privado ou no universo do Direito Público?
É um Direito instrumental, na medida em que cria e regula os meios
ou instrumentos destinados à tutela judicial dos direitos consagrados
pelo Direito Privado material que, como é sabido, rege as relações
entre particulares (Direito Civil, Direito Comercial). Tais meios são as
acções (declarativas e executivas), os procedimentos cautelares e os recursos,
acrescendo a todos estes instrumentos os denominados e hoje muito
falados meios alternativos de resolução de litígios. Note-se que o Direito do

 Seguimos, de muito perto, Luso Soares, Processo civil de declaração, pp. 114 e s.
48

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O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

Trabalho ‒ Direito Privado especial ‒ é provido de regras processuais


próprias, apesar de muitos aspectos do seu regime processual serem
regulados, de forma subsidiária, pelo Código de Processo Civil, como
resulta do artigo 1º, nº 2, do Código de Processo do Trabalho 49.
Sendo instrumental, o Direito Processual Civil é claramente adjec-
tivo, pois, para efectivar os direitos substantivos, em situações de
litígio, temos de juntar às normas materiais as normas processuais.
O Direito Processual Civil apresenta-se, assim, como um direito ins-
trumental e, logo, adjectivo: uma Disciplina satélite ao serviço do
Direito Privado e da realização do direito substantivo. Nas palavras
do célebre processualista Wach, o Direito Processual Civil serve
«para a aplicação do Direito Privado»50. Como bem adverte Antunes
Varela, «não são as normas do direito processual civil que facultam
a solução aplicável ao conflito de interesses suscitado entre os liti-
gantes, nem a resposta para questão da existência do direito invocado
pelo requerente»51. O Processo Civil abre a «ponte» que permite
alcançar, à luz do direito substantivo, a solução para o litígio que é
levado à Justiça.
O facto de ser instrumental não torna o Processo Civil uma Disci-
plina menor em face do Direito Privado. Se, por um lado, o Direito Pro-
cessual Civil não faria sentido se não existisse o Direito substantivo (Direito
Civil e Direito Comercial), por outro lado, sempre se poderá dizer que,
sem o Direito Processual Civil, o Direito material não poderia sobreviver:
a importância do Direito Processual Civil reside precisamente no
facto de ser através dele que, em situações de «crise», fazemos valer
os nossos direitos. Que importância teria dizer a alguém que efec-
tivamente lhe pertence certo direito (o direito de propriedade, por

49
 Consta do Decreto-Lei nº 480/99, de 9 de Novembro, alterado, recente-
mente, pelo Decreto-Lei nº 295/2009, de 13 de Outubro.
50
 Manual de derecho procesal civil, vol. I, p. 22.
51
 Manual de processo civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 7.

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M IGU EL M ESQU I TA

exemplo) se, em caso de litígio relativo a esse direito, não existisse


nenhum meio ou remédio para a respectiva tutela judicial? Para que
serviriam os direitos, então?

O Direito Processual Civil, para além de instrumental, é um ramo


do Direito Público. Este regula as relações em que intervém o Estado
enquanto titular do denominado «poder público»52. A presente nota
poderá, à partida, causar alguma estranheza, pois o Direito Proces-
sual Civil aparece como uma extensão do Direito Privado, visando a
reparação dos direitos subjectivos. Ora, perguntar-se, encontrando-se
tão ligado ao Direito substantivo, não será, por osmose, também ele
um Direito desta natureza? Realmente, não é. O Direito Processual
Civil reveste uma natureza diferente do Direito Privado.
Recordemos que a distinção entre o Direito Privado e o Direito
Público implica o recurso ao critério dos interesses e ao critério dos sujei-
tos. Que espécies de interesses o Direito Processual Civil visa proteger?
Tanto os interesses particulares, como o interesse público da paz
social (a «paz com justiça»). Através do critério dos interesses não
ficamos inteiramente esclarecidos quanto à real natureza da nossa
Disciplina.
E que sujeitos intervêm num processo? Para além das partes, o juiz.
Quer dizer, o Direito Processual Civil regula o exercício da jurisdição e
esta é uma função de soberania exercida por alguém que se situa num
plano supra partes. Ora, as normas adjectivas, na sua grande maioria,
espelham essa especial relação de subordinação das partes em relação
ao juiz (vide, por exemplo, o artigo 150º)53.
Note-se, ainda, que é comum a natureza imperativa, absoluta ou não
dispositiva das normas processuais, significando isto que as partes e o
próprio juiz não as podem derrogar (ver, por exemplo, os artigos 40º

 Cfr. Guasp/Aragoneses, Derecho procesal civil, t. I, p. 51.


52

 Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, p. 12.


53

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O SEN T I DO, OS F I NS E A NAT U R EZ A DO DI R EI TO PROCESSUA L CI V I L

e 95º, nº 1), o que claramente diferencia o Direito Processual Civil


do Direito Privado. Para além de normas de ius cogens, existem tam-
bém, na verdade, normas que conferem faculdades às partes e poderes
discricionários ao juiz, mas, em geral, insistimos, as normas processuais
revestem natureza absoluta ou não dispositiva54.
Concluindo esta lição introdutória e elementar, diremos que os
mundos do direito privado e do direito processual, apesar da sua pro-
ximidade, são inconfundíveis. Talvez melhor: o Direito Processual
Civil funciona como um “satélite” de um vasto mundo integrado
por variados territórios: os densos territórios do Direito Privado. As
próximas lições destinam-se a descrever os meios que, regulados por
este “satélite” fundamental, permitem a tutela judicial dos nossos
direitos subjectivos.

 Seguimos, de muito perto, Guasp/Aragoneses, ob. cit., p. 52.


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