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A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE POST-MORTEM –

ADMISSIBILIDADE DE UMA PRETENSÃO INDEMNIZATÓRIA?

Pedro Pimenta Mendes1

1. Introdução
Nos tempos atuais, a consulta de meios de informação e comunicação encontra-
se cada vez mais facilitada. E isso arrasta um risco para os direitos de personalidade. Na
verdade, assiste-se a uma tendência crescente para ocorrerem violações de direitos de
personalidade, sobretudo pela imprensa, com o objetivo de explorar a curiosidade do
público.
Muitas vezes, poderá mesmo haver ofensas a pessoas já falecidas. O legislador
português fez constar no Código Civil um artigo específico que regula estas mesmas
ofensas. No entanto, o preceito está longe de gerar consenso entre os autores. Isto porque
enquanto vários autores admitem o acionamento do instituto da responsabilidade civil,
outros recusam a possibilidade de ele operar, afirmando que o que está em causa é apenas
a possibilidade de as pessoas elencadas no número 2 do artigo 72º do Código Civil
poderem requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, de modo a evitar
a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
Questiona-se, porém, se as ditas “providências adequadas” afiguram uma tutela
bastante de direitos de tamanha importância.
Assim, nas páginas que se seguem procuraremos encontrar uma solução que se
adeque aos interesses em jogo, tomando posição sobre a aplicabilidade do instituto da
responsabilidade civil no caso de ofensas a pessoas já falecidas.

1
Assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 334


2. Exigências de Proteção dos Direitos de Personalidade após a Morte

Segundo o artigo 1º da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP,


“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na
vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
Como se pode constatar, a dignidade da pessoa humana é um dos princípios estruturantes
do nosso sistema jurídico, impondo ao Estado um conjunto de tarefas ou obrigações
jurídicas e constituindo, também, limite e parâmetro da sua atividade2.
O Estado, na sua atuação, deve respeitar as exigências da dignidade da pessoa
humana, servindo esta como critério último da legitimidade dos seus atos. Ora, qualquer
ato violador deste princípio estruturante será reportado como desvalioso. Mas não é só
uma obrigação de respeito a que o Estado está adstrito. O Estado deve também
desenvolver uma atividade de prevenção e proteção da dignidade da pessoa humana
contra todas as intervenções suscetíveis de a colocar em risco3. Assim afirma desde logo
o preâmbulo da CRP – “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português
de (...) garantir os direitos fundamentais dos cidadãos” – e o seu artigo 2º: “A República
Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado (...) no respeito e na garantia de
efetivação dos direitos e liberdades fundamentais”. Como nos diz Jorge Reis Novais, “a
consagração constitucional de um elenco de direitos fundamentais de que o Estado não
dispõe, mas que respeita, garante e promove, corresponde ao desenvolvimento e
atribuição de uma força normativa, vinculativa e concretizada, a essa ideia de República
baseada na dignidade da pessoa humana. (...) Em última análise, é a dignidade da pessoa
humana que confere unidade de sentido explicativo ao chamado sistema constitucional
de direitos fundamentais e orienta as margens de abertura e actualização do respectivo
catálogo”4.
Deste modo, a Constituição da República Portuguesa de 1976 incluiu um leque
extenso de direitos fundamentais, nomeadamente os direitos pessoais, que, juntamente
com as liberdades e garantias pessoais, preenchem todo um capítulo destinado aos

2
Vd. Jorge Reis Novais, Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa, 1ª edição
(reimpressão), Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pág. 51.
3
Vd. Jorge Reis Novais, Os Princípios, ob. cit., pág. 52.
4
Cfr. Jorge Reis Novais, Os Princípios, ob. cit., págs. 52 e 53.

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direitos, liberdades e garantias5. No entanto, esta inserção em norma constitucional não
originou alterações radicais nos enunciados civilísticos, uma vez que o Código Civil de
1966 já consagrava uma Secção destinada aos Direitos de Personalidade6 7.
Neste sentido, a vinculação do Estado ao dever de respeito e garantia da
dignidade da pessoa humana deve estender-se também à proteção da dignidade humana
após a morte, independentemente da sua não titularidade subjetiva nestas circunstâncias8.
A personalidade jurídica, segundo o artigo 66º/1 do Código Civil (doravante
CC), “adquire-se no momento do nascimento completo e com vida” e define-se como a
aptidão para ser titular autónomo de relações jurídicas. Segundo Carlos Mota Pinto, “nas
pessoas singulares esta qualidade é uma exigência do direito à dignidade e ao respeito
que se tem de reconhecer a todos os seres humanos e não uma mera técnica organizatória.
A dimensão ética do irrecusável reconhecimento da personalidade jurídica de todos os
indivíduos resulta de nascerem livres e iguais em dignidade e em direitos”9. No entanto,
é o próprio artigo 68º/1 CC que afirma que a personalidade jurídica de uma pessoa cessa
com a morte. Porém, diz Capelo de Sousa10 que existem “bens da personalidade física e
moral de um defunto que continuam a influir no curso social”, carecendo de proteção.
Temos como exemplos o cadáver do defunto, a sua identidade, imagem, honra, bom
nome, vida privada, entre outros11. O Direito não pode alhear-se destas situações a partir
do momento em que a personalidade jurídica de uma pessoa deixe de existir.
Há uma exigência de que os direitos fundamentais e os direitos de personalidade,
por decorrerem do princípio da dignidade da pessoa humana, sejam tutelados para além
da morte do seu titular, na medida em que o conteúdo desses direitos o permita.

5
A sistematização positiva dos Direitos, Liberdades e Garantias (Título II da CRP) compreende
os direitos, liberdades e garantias pessoais (Capítulo I), de participação política (Capítulo II) e dos
trabalhadores (Capítulo III). Para mais desenvolvimentos vd. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teria da Constituição, 7ª edição (11ª reimpressão), Coimbra, Almedina, 2003, págs. 398 e ss.
6
Vd. Joaquim de Sousa Ribeiro, A Tutela de Bens da Personalidade na Constituição e na
Jurisprudência Constitucional Portuguesas (algumas notas), in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. III, Coimbra Editora, 2012, págs. 837 a 839.
7
Para uma distinção entre Direitos Fundamentais e Direitos de Personalidade, vd. Gomes
Canotilho, Direito Constitucional, ob. cit., pág. 396.
8
Neste sentido, vd. Jorge Reis Novais, Os Princípios, ob. cit., pág. 59; e João Cura Mariano, O
Artigo 71.º do Código Civil e a Tutela de Direitos Fundamentais Após a Morte, in Estudos em Memória do
Conselheiro Artur Maurício, 1ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pág. 581.
9
Cfr. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e
Paulo Mota Pinto (2ª reimpressão), Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pág. 201 (vd. também págs. 98 e ss.).
10
Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, 1ª edição (reimpressão),
Coimbra Editora, 2011, pág. 189.
11
Rabindranath Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, ob. cit., págs. 189 a 192; e
João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 583.

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3. O Código Civil de 1966

Nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, Manuel de Andrade


inseriu um preceito onde admitia a proteção dos direitos de personalidade após a morte
do seu titular. Atentemos12:

“ Artigo 6.º
§ 1.º - A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita à sua
personalidade. Esta norma abrange as ofensas simplesmente receadas, se o receio for
bastante sério para legitimar a necessidade de tutela jurídica.

§ 2.º - A parte directamente interessada pode exigir, independentemente de


culpa, a eliminação do acto ofensivo. Pode exigir também, quando for caso disso, que a
outra parte seja condenada a abster-se de renovar a ofensa ou de a consumar, sob a
cominação de sofrer uma pena se, culpadamente, desacatar a sentença.

§ 3.º - Estas acções não prejudicam a responsabilidade civil a que possa haver
lugar. A título de reparação do dano moral causado pode o juiz condenar o responsável
numa soma pecuniária, ainda que de valor insignificante, ou estatuir outras determinações
que se revelem apropriadas às circunstâncias do caso concreto.

§ 4.º - Se a ofensa se referir directamente a uma pessoa já falecida13, serão as


partes legítimas para as acções previstas nos parágrafos anteriores os herdeiros imediatos,
o cônjuge sobrevivo, os descendentes até ao terceiro grau, os ascendentes, os irmãos e
seus descendentes até ao segundo grau, e os irmãos de ascendentes.

§ 5.º - Se a ilicitude da ofensa depender do consentimento dos interessados, será


aplicável o disposto no art. 13.º, § 2.º. Havendo desacordo entre as pessoas chamadas a
prestar o seu consentimento, resolverão os tribunais com audiência do Miniet´rio Público.
Só essas pessoas terão legitimidade para os efeitos do § 4.º.”

12
Manuel de Andrade, Esboço de um Anteprojecto de Código das Pessoas e da Família: na
parte relativa ao começo e termo da personalidade jurídica, aos direitos de personalidade, ao domicílio,
in Boletim do Ministério da Justiça, nº 102, 1961, págs. 155 e 156.
13
Negrito nosso.

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A versão definitiva do Código Civil dispõe de diferente modo:

“Artigo 71.º
(Ofensa a pessoas já falecidas)
1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte
do respectivo titular.
2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2
do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão,
sobrinho ou herdeiro do falecido.
3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que
o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer
providências a que o número anterior se refere.”

Como veremos nos próximos capítulos, a redação deste artigo origina vários
problemas, problemas esses relacionados com a titularidade dos bens jurídicos tutelados,
com a admissibilidade do recurso à responsabilidade civil e à legitimidade para o recurso
a esse mesmo instituto e às providências adequadas a fazer cessar ou atenuar os efeitos
da ameaça.

4. A Titularidade dos Bens Jurídicos Tutelados

4.1. As divergências na doutrina portuguesa


Neste capítulo iremos abordar o problema, para o qual não existe concordância
na doutrina portuguesa, de saber quem é o sujeito visado pela ofensa, ou seja, se é a
própria pessoa falecida ou se são as pessoas elencadas no número 2 do artigo 71º CC.
Capelo de Sousa afirma que a letra e o espírito do número 1 do artigo 71º CC,
“ao salientarem a permanência dos «direitos» de personalidade «igualmente» para depois
da morte do «respectivo titular», parecem querer distinguir os continuados a actuar
direitos de personalidade do defunto dos direitos de personalidade dos vivos que se ligam
ao morto. Isto é, segundo o autor, o nosso artigo 71.º do Código Civil distingue entre os
direitos materiais, substantivos, aos bens da personalidade do defunto e as acções

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destinadas a fazer reconhecer tais direitos em juízo”14. Estas ações pertencerão às pessoas
elencadas no nº 2 do artigo 71º CC, sendo estas as titulares dos direitos materiais em
causa, face à cessação da personalidade do falecido e à correspondência entre o direito e
a ação. Existe, neste caso, uma sucessão de direitos pessoais, ou melhor, uma aquisição
derivada translativa mortis causa de direitos pessoais, que se rege por regras diferentes
do Livro das Sucessões15.
No mesmo sentido se pronuncia Fernando Cunha de Sá16. Para o autor, a nossa
lei resolve o problema nos termos de uma verdadeira sucessão ou transmissão por morte,
uma vez que o número 1 do supramencionado artigo diz expressamente que são os
mesmos direitos de personalidade que gozam igualmente de proteção depois da morte do
respetivo titular, e o número 2 desse mesmo artigo reduz o problema à questão da
legitimidade para requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso. O artigo
73º CC também segue essa direção, colocando a perspetiva no campo da legitimidade.
Além de que os artigos 75º/2, 76º/2, 77º e 79º/1 CC apontam ainda para o facto de os
direitos de personalidade subsistirem para além da morte da pessoa falecida e não para
que sejam substituídos por novos direitos atribuídos a pessoas que são ligadas ao de
cujus17.
Por outro lado, autores como Pires de Lima e Antunes Varela afirmam que a
proteção dos direitos de personalidade depois da morte constitui um desvio à regra do
artigo 68º que preceitua que a personalidade jurídica de uma pessoa cessa com a sua

14
Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., pág. 366.
15
Vd. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., págs. 366 e 367. Vd. também
do mesmo autor Lições de Direitos das Sucessões, Vol. I, 4ª edição renovada, Coimbra Editora, 2000, págs.
309 e ss. O autor afirma que há certos direitos pessoais de natureza civil ou processual, não avaliáveis
pecuniariamente e que não visam satisfação de necessidades económicas são objeto de devolução
sucessória (para a distinção entre os conceitos de vocação sucessória e devolução sucessória vd. Capelo de
Sousa, Lições de Direitos das Sucessões, ob. cit., págs. 280 a 282). Como exemplos de direitos civis
pessoais transmissíveis sucessoriamente temos os direitos morais de autor, o direito de resposta por ofensas
nos órgãos de comunicação social e os demais direitos de personalidade (pág. 310). Capelo de Sousa
defende que “os direitos de personalidade protegidos depois da morte do respectivo titular subsistem nas
esferas jurídicas das pessoas referidas no 71.º, n.º 2, do Código Civil, com a sua estrutura (em matéria, v.g.,
do objecto juridicamente tutelado, do conteúdo dos poderes e deveres jurídicos e das garantias
juscivilísticas, mas sem prejuízo da mudança de titularidade subjectiva operada com a sucessão especial) e
a sua dinâmica (v.g., em matéria de colisão de direitos) próprias e autónomas. Não são substituídos por
novos direitos materiais, com o mesmo conteúdo, atribuídos às pessoas mencionadas no art. 71.º, n.º 2, do
Código Civil nem se confundem com os direitos de personalidade destas pessoas, decorrentes da sua
específica ligação com o defunto”: Cfr. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., pág.
367, nota 916. Vd. também, Lições de Direitos das Sucessões, ob. cit., págs. 310, nota 793.
16
Vd. Fernando Cunha de Sá, Abuso do Direito, Lisboa, Almedina, 1973, págs. 146 e ss., nota
171.
17
Vd. Fernando Cunha de Sá, Abuso do Direito, ob. cit., págs. 147 e 148, nota 171.

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morte18. Em sentido próximo se pronuncia Diogo Leite Campos que nos diz que “os
parentes e herdeiros do falecido exercem tais direitos no interesse e em nome do falecido.
Assim a personalidade jurídica prolonga-se, é «empurrada», para depois da morte”19.
Por seu turno, Oliveira Ascensão sustenta que não está em causa a demonstração,
pelas pessoas que têm legitimidade para requerer as providências adequadas, de que a
personalidade do requerente foi atingida. Está sim em causa a demonstração de que a
memória do falecido foi lesada. O valor aqui tutelado é a personalidade do falecido e a
legitimidade conferida pelo número 2 do artigo 71º CC “não atribui ao requerente a
titularidade dos interesses em causa, mas uma mera legitimação processual”20. Apesar de
a personalidade jurídica não cessar com a morte, a proteção do valor pessoal prolonga-se
para além desta. No entanto, não pode falar-se da tutela de direitos de personalidade. O
bem jurídico em causa passa a ser a memória do falecido21.
Em sentido próximo, Heinrich Hörster afirma que a proteção de direitos de
personalidade depois da morte visa a tutela do falecido, visando apenas indiretamente os
interesses dos familiares. Estes, ao requererem as providências adequadas, exercem,
contudo, um direito próprio22. Assim, segundo o autor, o artigo 71º CC garante a
“integridade moral da pessoa falecida”23.
João Cura Mariano é de opinião de que, perante a lesão de bens jurídicos não
titulados, nada impede a atribuição a determinados sujeitos jurídicos com especial ligação
com o bem lesado do direito a acionarem os mecanismos de proteção desse bem. Neste
raciocínio, o artigo 71º CC atribui às pessoas elencadas no seu número 2 os direitos de
defesa dos bens da personalidade da pessoa falecida, como direitos próprios, da mesma
forma que o artigo 496º/2 CC atribui às pessoas aí mencionadas o direito de indemnização
pelo dano da morte do seu familiar24. Segundo o autor “o nome, o pseudónimo, a honra,

18
Vd. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e
atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 105.
19
Cfr. Diogo Leite Campos, Lições de Direitos da Personalidade, 2ª edição (reimpressão), in
Separata do Vol. LXVI (1990) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1995,
pág. 45. No que ao direito de imagem diz respeito, o autor afirma que existe um “direito à imagem do
próprio, «embora» falecido, exercido em nome deste pelos seus familiares próximos” (pág. 75). Vd.
também do mesmo autor, A Indemnização do Dano da Morte, in Separata do Vol. I (1974) do Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1975, págs. 53 e ss.
20
Cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 2000, pág. 101.
21
Vd. Oliveira Ascensão, Direito Civil, ob. cit., pág. 101.
22
Vd. Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito
Civil, 11ª reimpressão da edição de 1992, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 261.
23
Cfr. Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil, ob. cit., pág. 259.
24
Vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 586.

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a imagem, ou a intimidade são bens da personalidade do de cujus, mas o direito a defendê-
los de ofensas, face ao desaparecimento daquele, é legalmente atribuído aos familiares e
herdeiros referidos no n.º 2, do artigo 71.º, do Código Civil. Estes, ao reagirem contra
ofensas à pessoa falecida, embora exerçam um direito próprio, fazem-no no interesse do
de cujus, agindo em sua defesa”25. João Cura Mariano remata afirmando que “esta é a
leitura que melhor se harmoniza com os imperativos de defesa dos direitos de
personalidade que continuam a necessitar de protecção, mesmo após a morte da pessoa,
e com as opções do nosso direito civil no domínio da responsabilidade civil”26.
Outra corrente da doutrina defende a coincidência entre a titularidade dos
direitos e interesses e a legitimidade para reagir às ofensas às pessoas já falecidas.
Carlos Mota Pinto entende que a tutela fornecida pelo artigo 71/1º CC assenta
na proteção de interesses e direitos das pessoas vivas (que são elencadas no número 2 do
mesmo artigo) que seriam afetadas por atos ofensivos da memória (da integridade moral)
da pessoa falecida27.
Na mesma linha se pronuncia Carvalho Fernandes. O autor afirma que os
preceitos respeitantes à proteção de direitos de personalidade depois da morte atribuem
“protecção jurídica ao interesse que certas pessoas (justamente as referidas no n.º 2 do
art. 71.º) têm na integridade da personalidade moral do falecido. São, pois, protegidos
interesses de pessoas vivas – embora em função da dignidade moral da pessoa defunta.
Por isso, a razão de ser dessa tutela reside no facto de as pessoas em causa poderem ainda
ser atingidas, indirecta ou mediatamente, pelas ofensas feitas à integridade moral do
falecido”28.
Paulo Mota Pinto também conclui que, quanto aos aspetos atinentes à vida
privada da pessoa falecida, a questão se deve resolver tendo em conta as consequências
práticas da solução de reconhecimento da proteção dos interesses das pessoas elencadas
no número 2 do artigo 71º CC e da solução do desvio à cessação da personalidade jurídica
com a morte. Ao dizer-se que a negação da sobrevivência do direito da pessoa falecida
depois da sua morte impediria a tutela dos seus interesses quando não fossem também
interesses das pessoas enumeradas no mencionado artigo, exigindo-se assim a ofensa

25
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 587.
26
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 587.
27
Vd. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pág. 205.
28
Cfr. Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, 5ª edição (revista e
atualizada), Lisboa, Universidade Católica de Lisboa, 2009, pág. 211.

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destas pessoas, estaria a colocar-se em causa uma verdadeira tutela post mortem da vida
privada29. No entanto, o autor defende que “se pode reconhecer às pessoas referidas no nº
2 do art. 71.º um interesse próprio na tutela da vida privada do falecido” e nos casos em
que esse interesse não seja afetado ficará resultará “simplesmente de não haver ninguém
vivo que pretenda reagir por se sentir lesado”30.
Pedro Pais de Vasconcelos pronuncia-se em sentido semelhante. Para o autor “o
que se protege neste preceito do Código Civil é objetivamente o respeito pelos mortos,
como valor ético, e subjetivamente a defesa da inviolabilidade moral dos seus familiares
e herdeiros. Não se trata de reconhecer ou de tutelar a personalidade dos mortos, que a
não têm, mas sim de defender, no âmbito do direito subjetivo de personalidade, o direito
que os vivos têm a que os seus mortos sejam respeitados”31. O autor prossegue afirmando
que “também aqui (...) há uma simbiose do direito objetivo e do direito subjetivo de
personalidade. O direito objetivo de personalidade tutela o respeito pelos mortos, como
valor ético fortemente enraizado na Moral; o direito subjetivo de personalidade que está
na titularidade de pessoas vivas e tem no seu conteúdo a tutela do respeito devido aos
seus mortos”32. Ora, no caso de existirem ofensas a familiares já falecidos, como injúrias
ou difamação, é normal que afete gravemente a dignidade dos seus parentes ou herdeiros,
causando-lhes danos. Assim, o direito subjetivo de personalidade de cada um (das pessoas
elencadas no artigo 72º/2 CC) contém o poder de reação contra ofensas à dignidade de
pessoas já falecidas33.
Ana Filipa Morais Antunes reconhece, igualmente, que os titulares dos poderes
e dos interesses são as pessoas referidas no número 2 do artigo 71º CC. Assim, “o
legislador garante, por esta via, a intangibilidade da memória da pessoa falecida,
conferindo aos respectivos familiares e herdeiros meios jurídicos de reacção perante actos
ofensivos da memória do falecido, que afectem as suas esferas jurídicas34.

29
Vd. Paulo Mota Pinto, O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, in Separata
do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXIX, Coimbra, 1993, pág. 554,
nota 184.
30
Cfr. Paulo Mota Pinto, O Direito à Reserva, ob. cit., pág. 555, nota 184.
31
Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8ª edição (reimpressão),
Almedina, 2019, pág. 51; e Direito de Personalidade, reimpressão da edição de novembro de 2006,
Coimbra, Almedina, 2017, págs. 120 e 121.
32
Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pág. 51; e Direito de
Personalidade, ob. cit., pág. 121.
33
Vd. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., págs. 51 e 82; e Direito
de Personalidade, ob. cit., pág. 121.
34
Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, Comentário aos Artigos 70.º a 81.º do Código Civil (Direitos
de Personalidade), Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, pág. 147.

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4.2. Posição Adotada
A nosso ver, a situação sobre a qual que ora nos debruçamos não constitui uma
exceção à regra segundo a qual a personalidade jurídica se extingue com a morte (artigo
68º CC). Como bem diz Orlando Carvalho, a Pessoa reivindica do Direito três notas
fundamentais, sendo uma delas a “essencialidade da personalidade jurídica: não há
personalidade jurídica sem personalidade humana. Por isso a morte é o termo de uma e
de outra. Não há personalidade jurídica supérstite”35 36.
Para além de que, possuindo uma natureza de carácter pessoal, inerentes que são
à pessoa jurídica, os direitos de personalidade são intransmissíveis, pelo que também não
podemos concordar com as posições de Capelo de Sousa e de Fernando Cunha de Sá.
Tendo em conta a ligação tão estreita com o seu titular, não se pode admitir a sua
transmissão para a esfera jurídica de terceiros37. Nesta lógica, Carvalho Fernandes afirma
que se à nota de intransmissibilidade se acrescentar a de, “em regra, os direitos da
personalidade manterem uma estreita ligação à pessoa que deles é titular, o que envolve
o corolário de também não admitirem, em geral, exercício representativo, traça-se um
quatro que explica a sua integração na categoria de direitos pessoalíssimos”38. O autor
mais aduz que “embora a formulação seja defeituosa e criticável (...), o regime estatuído
no nº 1 do art. 71.º do C.Civ. não constitui excepção à característica da
intransmissibilidade mortis causa dos direitos da personalidade, quando afirma que «os
direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo
titular»”39.
Na verdade, os prejuízos resultantes das ofensas a direitos de personalidade de
pessoas já falecidas não serão efetivamente sofridos ou suportados por elas. Atingirão, ao
invés, os familiares do defunto ou as pessoas que a ele eram mais próximos. Admitindo
este raciocínio, pensamos que o legislador elencou no número 2 do artigo 71º CC as
pessoas que têm legitimidade para requerer as providências adequadas com o fim de evitar

35
Vd. Orlando Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora,
2012, pág. 258.
36
Menezes Cordeiro é também da mesma opinião: “A manutenção da personalidade do falecido
não pode ser admitida. A pessoa é sempre destinatária ou beneficiária de regras, numa prerrogativa que o
falecido não pode, infelizmente, ter. A alternativa seria construir uma pessoa colectiva: nada, na lei, aponta
para tal derivação. Tanto basta para rejeitar a teoria do prolongamento da personalidade”. Cfr. Menezes
Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. IV, 4ª edição (revista e atualizada), Almedina, 2017, pág. 548.
37
Neste sentido, vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 586.
38
Cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit., pág. 225.
39
Cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit., pág. 225.

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a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. A tutela conferida
é, assim, direcionada aos interesses e direitos de pessoas vivas (embora em função da
dignidade moral da pessoa falecida)40.
E nem por isso se pode criticar afirmando que “a protecção civilista dos bens
que integram a personalidade da pessoa que entretanto faleceu se resume à tutela do
interesse dos seus familiares (...), sem reconhecimento de uma tutela autónoma daqueles
bens, não só não os sinaliza como bens juridicamente relevantes como, ao optar por uma
mera tutela indirecta, coloca a efectividade da sua protecção na dependência da
verificação de interesses reflexos”41. A tutela conferida pelo preceito civilístico vai de
encontro às referidas exigências constitucionais e, como bem diz Paulo Mota Pinto42, nos
casos de nenhum interesse próprio das pessoas elencadas ser afetado, por não haver, por
exemplo, prejuízos com a intromissão ou divulgação da vida privada do defunto, então a
ausência de tutela resultará do simples facto de ninguém vivo pretender reagir por se
sentir lesado. Por esta ordem de ideias, talvez o legislador também tenha alargado (via
artigo 72º/2 CC) a legitimidade ao herdeiro para reagir por direito próprio. Deste modo,
alargou-se ao máximo a proteção conferida à pessoa falecida.

5. Admissibilidade de Recurso ao Instituto da Responsabilidade Civil

5.1. Posições na doutrina


Questão controversa na doutrina portuguesa diz respeito à admissibilidade de
recurso à responsabilidade civil para a situação ora analisada.
O número 2 do artigo 71º do Código Civil dispõe que “tem legitimidade, neste
caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o cônjuge
sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido”.
Por sua vez, o artigo para o qual esta norma remete preceitua o seguinte:
“independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou
ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim
de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.

40
Carvalho Fernandes invoca também um argumento sistemático. O autor afirma que mors
omnia solvit, sendo que isso é imposto pelo artigo 68º CC. Vd. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit.,
pág. 210.
41
João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 585.
42
Vd. supra 3.1.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 344


Tendo em conta a redação da lei, fica aberta a discussão sobre se os meios
colocados à disposição das pessoas elencadas no número 2 do artigo 71º CC são apenas
as providências adequadas para evitar ou atenuar os efeitos da ofensa, ou se também é
possível recorrerem ao instituto da responsabilidade civil e receberem a respetiva
indemnização.
Defendendo, como vimos supra, que o bem jurídico em causa é a memória do
falecido, Oliveira Ascensão diz que a lei limitou a tutela às providências cautelares que
enuncia. Para o autor, o sujeito passivo não é o morto, uma vez que nenhuma
indemnização se poderá atribuir a ele, pois a função satisfatória neste caso não se poderia
cumprir. Do mesmo modo o requerente também não é o sujeito passivo, sendo deslocado
pedir uma indemnização alegando a lesão de um interesse próprio. Segundo o insigne
civilista a lei “foi bem expressa em cingir a intervenção dos familiares e herdeiros ao
requerimento das providências cautelares, nos n.º 2 e 3. Se quisesse uma tutela integral,
bastaria dizer que tinham legitimidade, sem a restringir a seguir às providências que
contempla”43.
Em sentido próximo pronuncia-se Luís Carvalho Fernandes. O direito de
indemnização não pode ser atribuído nem ao falecido nem às pessoas elencadas no artigo
71º/2 CC, pois este é considerado em função da dignidade moral do defunto, retirando
fundamento a uma indemnização a favor das últimas44.
Heinrich Hörster, apesar de afirmar que não se pode recorrer à responsabilidade
civil, discorda da solução de iuri constituendo, uma vez que “as ofensas post mortem
est[ão] sujeitas a sanções mais leves”45. Com o intuito de prevenir que as pessoas
legitimadas possam fazer “negócio” à custa da personalidade do falecido, o legislador
poderia ter previsto uma indemnização a ser paga a uma instituição de solidariedade
social. Deste modo, prevenir-se-ia também a situação privilegiada de quem procede a
ofensas a pessoas já falecidas46.
Em sentido contrário, outro lado da doutrina comunga pela admissibilidade do
recurso ao instituto da responsabilidade civil.
Capelo de Sousa é de opinião que, mesmo do ponto de vista literal, a referência
às “providências previstas no número 2 do artigo anterior” permite abranger a

43
Cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil, ob. cit., págs. 101 e 102.
44
Vd. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit., pág. 211.
45
Cfr. Heinrich Hörster, A Parte Geral, ob. cit., pág. 261, nota 58.
46
Vd. Heinrich Hörster, A Parte Geral, ob. cit., pág. 261, nota 58.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 345


responsabilidade civil que é mencionada no artigo 70º/2 CC. Se se atender ao espírito da
lei, o autor afirma também que é de igual modo possível a obtenção de uma compensação
por perdas e danos, pois “a indemnização ou a compensação dirige-se aqui ao dano
ocasionado no bem jurídico constituído pela personalidade física e moral do falecido,
perfeitamente enquadrável no art. 483.º do Código Civil, pese embora a falta de
personalidade jurídica do defunto”47.
Ana Filipa Morais Antunes não vê razões para excluir o direito à indemnização
aos familiares e herdeiros atingidos pela ofensa à pessoa falecida. Para a autora, apesar
de o elemento literal do artigo apontar no sentido da restrição às providências adequadas,
não parece ter sido intenção do legislador afastar o acionamento do mecanismo da
responsabilidade civil, pelo que deve interpretar-se em sentido amplo o termo
“providências”, de forma a incluir o instituto da responsabilidade civil48.
Pedro Pais de Vasconcelos afirma que não deve ser negada a atribuição aos
familiares e herdeiros de uma indemnização por danos morais e materiais causados.
Muitas das ofensas a pessoas já falecidas podem causar sofrimento nestas pessoas.
Afigura-se justo que este sofrimento possa ser indemnizado. Conjugando o artigo 71º/1
CC com o 483º CC, encontra-se base suficiente para a aplicação do instituto da
responsabilidade civil49.
Menezes Cordeiro admite que uma interpretação literal do artigo 71º/2, primeira
parte, parece apontar para a exclusão do pedido de indemnização. E de facto já nada pode
incomodar o falecido. No entanto, a tutela post mortem é uma defesa de vivos. Não se
trata, pois, de atribuir uma indemnização ao falecido, mas sim de direito próprio aos
familiares e herdeiros. O autor mais aduz que “quanto à responsabilidade civil: ela tem
fins retributivos e de prevenção geral e especial. Por muito que custe, a nossa sociedade
é sensível, antes de mais, a condenações em dinheiro. Além disso, os autores de ações
suportam custos incómodos, mal parecendo contemplá-los com meros consolos morais.
Nos países que mais longe têm levado a tutela post mortem, são arbitradas indemnizações.
(...). Propendemos, pois, para uma remissão, em bloco, do artigo 71.º/2 para o artigo

47
Vd. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., pág. 196.
48
Vd. Ana Filipa Morais Antunes, Comentário aos Artigos, ob. cit., págs. 148 e 149.
49
Vd. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pág. 51; e Direito de
Personalidade, ob. cit., págs. 121 e 122.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 346


70.º/2: as «providências adequadas» são sempre possíveis «independentemente da
responsabilidade civil a que haja lugar»”50.
Filipe Albuquerque Matos, quanto aos danos decorrentes das ofensas ao bom
nome, afirma que há direito a uma indemnização. Sendo os danos decorrentes de ofensas
ao bom nome suportados do ponto de vista emocional e afetivo pelas pessoas elencadas
no número 2 do artigo 71º CC, tender-se-á a concluir que são essas pessoas os titulares
do direito à indemnização previsto neste preceito de iure próprio. Porém, segundo o autor,
o legislador prolonga a personalidade jurídica para além do facto jurídico da morte, razão
por que a indemnização pelas ofensas pode continuar a ser considerada na titularidade da
pessoa falecida51. “Encontrar-nos-emos então perante um direito à indemnização
adquirido pelo falecido, e transmitido aos conviventes referidos no n.º 2 do art. 71.º, a
título sucessório. Normalmente, o núcleo dos danos provocados pelas ofensas dirigidas
aos direitos de personalidade das pessoas já falecidas traduz-se basicamente em prejuízos
de índole não patrimonial”52. No entanto, não se pode colocar de parte a ocorrência dos
chamados danos patrimoniais indiretos. Nestas situações, na opinião do autor, será
possível às pessoas indicadas no referido artigo exigir uma indemnização por danos
emergentes e lucros cessantes53.

5.2. Posição adotada


Como se viu anteriormente, o Anteprojeto do Código Civil de 1966 de Manuel
de Andrade dava uma resposta a este problema. O parágrafo quarto do seu artigo 6º
possibilitava aos herdeiros imediatos, ao cônjuge sobrevivo, aos descendentes até ao
terceiro grau, aos ascendentes, aos irmãos e seus descendentes até ao segundo grau, e aos
irmãos de ascendentes, serem partes legítimas das “acções previstas nos parágrafos
anteriores”. Isto é, as pessoas aí elencadas teriam legitimidade para propor ações de
eliminação da ofensa ilícita ou da abstenção da renovação ou consumação da mesma e
para propor ações de responsabilidade civil.

50
Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. IV, ob. cit., pág. 545.
51
Vd. Filipe Albuquerque Matos, Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom
Nome, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 387.
52
Cfr. Filipe Albuquerque Matos, Responsabilidade Civil, ob. cit., pág. 388.
53
Vd. Filipe Albuquerque Matos, Responsabilidade Civil, ob. cit., pág. 388 (vd. também pág.
389).

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 347


Acontece que esse preceito não ficou consagrado na versão final do Código
Civil. Ora, poderia levantar-se este argumento histórico para defesa da posição que
impede o recurso à responsabilidade civil.
Se o legislador não adotou a redação segundo a qual se admitia expressamente o
recurso ao instituto da responsabilidade civil poderá concluir-se que não quis atribuir a
possibilidade de uma indemnização às pessoas elencadas no artigo 71º/2 CC.
No entanto, os argumentos históricos são sempre falíveis. Será que o legislador
não trouxe para a versão final a admissão expressa do recurso à responsabilidade civil por
ser um facto assente que não iria originar qualquer dúvida?54
Por poder tender para qualquer lado, preferimos procurar outros argumentos que
nos ajudem a resolver a questão.
Conforme afirma Nuno Pinto Oliveira55 e como vimos no ponto anterior, o texto
do número 2 do artigo 71º do Código Civil consente duas interpretações.
Fazendo uma interpretação declarativa exclui-se a responsabilidade civil das
“providências previstas no nº 2 do artigo anterior”. O artigo 70º/2 CC afirma o seguinte:
“independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou
ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim
de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”. Ora,
tomando partido de uma interpretação declarativa, compreender-se-á que a expressão
“providências mencionadas no nº 2 do artigo anterior” (71º/2 CC) apenas remete para as
providências adequadas a cessar ou atenuar os efeitos da ameaça (70º/2 CC). Assim, a
proteção das pessoas já falecidas não abrangia o recurso à responsabilidade civil.
Por outro lado, uma interpretação extensiva conduz à inclusão da
responsabilidade entre as “providências [aí] admitidas”56.
Vistas que estão as propostas de soluções para o problema, qual a solução que,
para nós, se afigura mais adequada?
Começamos o presente artigo referindo as exigências constitucionais de
proteção e respeito pela dignidade da pessoa humana. Vimos que o Estado está também

54
Em crítica, vd., p.e., Fernando Pinto Bronze sobre o objeto (norma-problema e não norma-
texto) e objetivo de interpretação, a mudança de sentido dos fatores/elementos da interpretação jurídica
tradicionais (elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico), bem como dos resultados da
interpretação: Fernando Pinto Bronze, Lições de Introdução ao Direito, 3ª edição, Coimbra, Gestlegal,
2019, pág. 877.
55
Vd. Nuno Pinto Oliveira, Direitos de Personalidade: Contributo para a Revisão das
Disposições do Código Civil Português, in Themis, Edição Especial, 2008, págs. 216 e ss.
56
Cfr. Nuno Pinto Oliveira, Direitos de Personalidade, ob. cit., pág. 217.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 348


vinculado a esta proteção mesmo após a morte de uma pessoa. Ora, nas palavras de Nuno
Pinto Oliveira, “a interpretação declarativa do n.º 2 do art. 71.º do Código Civil coloca a
protecção da personalidade física e moral da pessoa falecida abaixo do nível mínimo
constitucionalmente exigido (...); a interpretação extensiva coloca-a acima desse nível
mínimo”57.
E lembremos que se deve sempre seguir o princípio da interpretação conforme à
constituição, sendo que, neste caso, a leitura que mais se coaduna com os desígnios
constitucionais é aquela que admite o recurso à responsabilidade civil.
Por outro lado, as ofensas às pessoas já falecidas originam danos não
patrimoniais aos sujeitos elencados no artigo 71º/2 CC. Qual a razão para excluir o
ressarcimento destes danos provocados? Se a função principal da responsabilidade civil
é a função ressarcitória, existindo danos e preenchidos os pressupostos da sua aplicação,
por que impedir o seu funcionamento?
João Cura Mariano acrescenta ainda que “a não admissão do pagamento duma
indemnização compensatória da ofensa ilícita dos bens da personalidade da pessoa
falecida, nas áreas plenamente desprotegidas, resulta (...) num défice de protecção que
viola o princípio da suficiência de tutela, pela ausência de oferta de meios jurídicos que
defendam suficientemente os bens jurídicos da personalidade de pessoa falecida. Para
evitar essa insuficiência tutelar deve a responsabilidade civil poder intervir, estendendo-
se essa intervenção não só aos domínios que escapam ao direito penal, ma também, então
por maioria de razão, quando a ofensa à memória da pessoa falecida é punida
penalmente”58. Mais aduz que estes danos também poderiam ser considerados
obrigatoriamente indemnizáveis, tendo em conta o princípio estruturante do Estado de
direito democrático, do qual se colhe um direito geral à reparação dos danos59.
No entanto, não concordamos com o Autor quando nos diz que em última
instância, na falta de pessoas que mantivessem especial relação com o bem lesado,
poderia o beneficiado do direito à indemnização ser o Estado em representação da
comunidade onde se inseriu a pessoa falecida60. Isto porque, do ponto de vista do Autor,
a responsabilidade civil, na questão de indemnização de danos não patrimoniais, cumpre
uma finalidade preventiva, assumindo esta finalidade um papel principal. A

57
Cfr. Nuno Pinto Oliveira, Direitos de Personalidade, ob. cit., pág. 218 e 219.
58
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., págs. 591 e 592.
59
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 592.
60
Vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., págs. 593 e 594.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 349


responsabilidade civil teria, assim, uma finalidade de natureza mista: compensação e
punição61. Tivemos já oportunidade de nos pronunciar sobre as finalidades da
responsabilidade civil62. Para nós, a função punitiva da responsabilidade civil (de qual a
função preventiva anda em paredes-meias) no que toca à ressarcibilidade dos danos não
patrimoniais, é sempre acessória à função compensatória, não assumindo, como defende
João Cura Mariano, um papel principal63.
Mas olhemos mais atentamente para o preceituado no artigo 70º/2 do Código
Civil (artigo para o qual remete o 71º/2). Este artigo diz-nos que as pessoas ameaçadas
podem requerer as providências adequadas “independentemente da responsabilidade civil
a que haja lugar”. Será que o legislador quis excluir o recurso à responsabilidade civil,
não remetendo para este segmento? Ou será antes que o segmento em causa é meramente
indicativo? Vejamos. Para nós, caso o legislador não tivesse colocado este segmento na
1ª parte do número 2 do artigo 70º CC, a responsabilidade civil podia ser também
acionada se preenchidos os pressupostos da sua aplicação. O aditamento deste segmento
serve apenas como uma mera explicitação ou esclarecimento. Se o legislador pretendesse
verdadeiramente excluir a responsabilidade civil subjacente às ofensas a pessoas já
falecidas devia reconhecê-lo expressamente, tratando-se de uma exceção à regra da
indemnização.
Assim, não sendo necessário fazer uma remissão em bloco como pretende
Menezes Cordeiro do artigo 71º/2 para o artigo 70º/2, aplicar-se-á o instituto da
responsabilidade civil com base no artigo 483º CC. Segundo este artigo, “aquele que, com
dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigada a indemnizar o lesado pelos danos
resultantes da violação”.

6. A Hierarquização da legitimidade das pessoas elencadas no


art. 71º/2 CC
Como vimos, as pessoas com legitimidade para requerer as providências
adequadas a fazer cessar ou atenuar os efeitos da ameaça e a acionarem o mecanismo da

61
Vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 592 e 594.
62
Vd. Pedro Pimenta Mendes, Restituição do Lucro Ilícito Pela Violação de Direitos de
Personalidade, in Revista de Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, págs. 358 e ss.
63
Para mais desenvolvimentos sobre o tema, vd. Pedro Pimenta Mendes, Restituição do Lucro
Ilícito, ob. cit., págs. 371 e ss.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 350


responsabilidade civil são os familiares mais próximos do falecido e herdeiros. Questão
que ora nos debruçamos é se existe alguma ordem de precedência entre estas pessoas no
acionamento dos meios indicados.
Esta questão mais relevante se torna quando nos confrontamos com o artigo
496º/2 CC que preceitua o seguinte: “por morte da vítima, o direito à indemnização por
danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e
aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por
último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”. Esta disposição consagra uma
hierarquia entre os diversos sujeitos aí elencados. Pelo contrário, o artigo 71º/2 utiliza a
conjugação “ou”, ou seja, segundo o seu elemento literal, parece consagrar uma
alternativa: “tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º
2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão,
sobrinho ou herdeiro do falecido”. Além de que, ao existir o citado número 3 do artigo
496º CC com uma redação em tudo diferente no que respeita ao tema, argumenta-se que
se pretende ter um regime diferente.
Como bem atenta Menezes Cordeiro, se o preceito consagrasse uma hierarquia
iria equivaler, por exemplo, à paralisação dos filhos quando o cônjuge sobrevivo nada
fizesse. Além disso, segundo as palavras do autor, a legitimidade do cônjuge teria de
cessar perante a separação judicial de pessoas e bens. Ora, não pretendendo os sujeitos
das “classes anteriores” atuar, a legitimidade deve ser deferida aos sujeitos que integram
as classes seguintes64.

64
Vd. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, ob. cit, págs. 544 e 545. Vd. também Ana
Filipa Morais Antunes, Comentário aos Artigos, ob. cit., pág. 150. A autora distingue duas situações: “no
caso de a ilicitude não se fundar na falta de consentimento, deve ser reconhecida legitimidade para actuar,
conjunta ou isoladamente, a qualquer das pessoas referidas no n.º 2 do artigo 71.º e sem que haja lugar a
qualquer escala de precedência. (...) Diversamente, se a ofensa resultar da falta de consentimento, têm
legitimidade para actuar, conjunta ou separadamente, as pessoas que o deveriam prestar, em respeito pela
escala de precedência eventualmente prescrita pelo legislador, nas disposições particulares que regulem o
procedimento de tutela em caso de ofensa a direitos de personalidade depois da morte do respectivo titular”;
e Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, ob. cit., págs. 102 e 103: “se depende de consentimento,
a legitimidade cabe às pessoas que o deveriam prestar (art. 71/3). Essas pessoas são as fixadas no art. 71/2,
e segunda a ordem da enumeração (arts. 76/2 e 79/1). Se não depende, todas têm logo legitimidade (arts.
73 e 75)”.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 351


7. Conclusão
Ao longo deste trabalho foram analisados diversos problemas controversos na
doutrina nacional. No que ao instituto da responsabilidade civil diz respeito, concluímos
que este se poderá aplicar aos casos de ofensas a pessoas já falecidas.
Apesar das opiniões contrárias à posição defendida, continuamos seguros de que
a aplicação do instituto da responsabilidade civil é a única orientação sustentável. As
exigências (constitucionais) de proteção dos direitos de personalidade após a morte não
estaria plenamente cumprida caso a tutela se bastasse com as “providências adequadas às
circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos
da ofensa já cometida”. Apesar das palavras pouco claras do legislador, este nunca quis
excluir o recurso à responsabilidade civil, pelo que, caso se verifiquem os pressupostos
do artigo 483º do Código Civil, não há qualquer razão para não fazer funcionar o
mecanismo da responsabilidade civil.
O Direito Civil procura, em primeira linha, e no que à responsabilidade civil diz
respeito, estabelecer critérios que reponham a situação material anterior à lesão. Mas
como bem nota Mafalda Miranda Barbosa, “ao fazê-lo, não parte de qualquer formalismo,
antes surgindo entretecido pela materialidade que lhe é comunicada pelo concreto modo
de ser jurídico. E nesse sentido convoca a liberdade da pessoa humana, fundada na sua
ineliminável dignidade”65. Ora, ao responsabilizar o sujeito, estamos a afirmar que ele é
pessoa e a recusar o seu tratamento como objeto. A finalidade última da responsabilidade
civil passa pela reafirmação da pessoalidade de cada um66. A responsabilidade assume-se
como uma forma de cumprimento da liberdade. Daqui resulta que, “embora não esteja
em causa a punição pelo desrespeito experimentado pela esfera jurídica alheia, delimitada
no cotejo com a sua própria, está presente uma eventual sanção pela não assunção de
determinados deveres de solidariedade que, radicando na dialéctica liberdade versus
responsabilidade, informam a matriz da pessoalidade e sustentam a obrigação
ressarcitória”67.
Dúvidas não restam que o instituto da responsabilidade civil é aplicável às
ofensas a pessoas já falecidas ou, melhor dizendo, consideramos até que a sua atuação
decorre de exigências constitucionais.

65
Mafalda Miranda Barbosa, Reflexões em torno da Responsabilidade Civil. Teleologia e
Teleonomologia em Debate, in Separata do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2005, págs. 551 e
552.
66
Mafalda Miranda Barbosa, Reflexões, ob. cit., pág. 552.
67
Mafalda Miranda Barbosa, Reflexões, ob. cit., págs. 552 e 553.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 2 - 2020 352

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