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1. Introdução
Nos tempos atuais, a consulta de meios de informação e comunicação encontra-
se cada vez mais facilitada. E isso arrasta um risco para os direitos de personalidade. Na
verdade, assiste-se a uma tendência crescente para ocorrerem violações de direitos de
personalidade, sobretudo pela imprensa, com o objetivo de explorar a curiosidade do
público.
Muitas vezes, poderá mesmo haver ofensas a pessoas já falecidas. O legislador
português fez constar no Código Civil um artigo específico que regula estas mesmas
ofensas. No entanto, o preceito está longe de gerar consenso entre os autores. Isto porque
enquanto vários autores admitem o acionamento do instituto da responsabilidade civil,
outros recusam a possibilidade de ele operar, afirmando que o que está em causa é apenas
a possibilidade de as pessoas elencadas no número 2 do artigo 72º do Código Civil
poderem requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, de modo a evitar
a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
Questiona-se, porém, se as ditas “providências adequadas” afiguram uma tutela
bastante de direitos de tamanha importância.
Assim, nas páginas que se seguem procuraremos encontrar uma solução que se
adeque aos interesses em jogo, tomando posição sobre a aplicabilidade do instituto da
responsabilidade civil no caso de ofensas a pessoas já falecidas.
1
Assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
2
Vd. Jorge Reis Novais, Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa, 1ª edição
(reimpressão), Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pág. 51.
3
Vd. Jorge Reis Novais, Os Princípios, ob. cit., pág. 52.
4
Cfr. Jorge Reis Novais, Os Princípios, ob. cit., págs. 52 e 53.
5
A sistematização positiva dos Direitos, Liberdades e Garantias (Título II da CRP) compreende
os direitos, liberdades e garantias pessoais (Capítulo I), de participação política (Capítulo II) e dos
trabalhadores (Capítulo III). Para mais desenvolvimentos vd. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teria da Constituição, 7ª edição (11ª reimpressão), Coimbra, Almedina, 2003, págs. 398 e ss.
6
Vd. Joaquim de Sousa Ribeiro, A Tutela de Bens da Personalidade na Constituição e na
Jurisprudência Constitucional Portuguesas (algumas notas), in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. III, Coimbra Editora, 2012, págs. 837 a 839.
7
Para uma distinção entre Direitos Fundamentais e Direitos de Personalidade, vd. Gomes
Canotilho, Direito Constitucional, ob. cit., pág. 396.
8
Neste sentido, vd. Jorge Reis Novais, Os Princípios, ob. cit., pág. 59; e João Cura Mariano, O
Artigo 71.º do Código Civil e a Tutela de Direitos Fundamentais Após a Morte, in Estudos em Memória do
Conselheiro Artur Maurício, 1ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pág. 581.
9
Cfr. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e
Paulo Mota Pinto (2ª reimpressão), Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pág. 201 (vd. também págs. 98 e ss.).
10
Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, 1ª edição (reimpressão),
Coimbra Editora, 2011, pág. 189.
11
Rabindranath Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, ob. cit., págs. 189 a 192; e
João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 583.
“ Artigo 6.º
§ 1.º - A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita à sua
personalidade. Esta norma abrange as ofensas simplesmente receadas, se o receio for
bastante sério para legitimar a necessidade de tutela jurídica.
§ 3.º - Estas acções não prejudicam a responsabilidade civil a que possa haver
lugar. A título de reparação do dano moral causado pode o juiz condenar o responsável
numa soma pecuniária, ainda que de valor insignificante, ou estatuir outras determinações
que se revelem apropriadas às circunstâncias do caso concreto.
12
Manuel de Andrade, Esboço de um Anteprojecto de Código das Pessoas e da Família: na
parte relativa ao começo e termo da personalidade jurídica, aos direitos de personalidade, ao domicílio,
in Boletim do Ministério da Justiça, nº 102, 1961, págs. 155 e 156.
13
Negrito nosso.
“Artigo 71.º
(Ofensa a pessoas já falecidas)
1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte
do respectivo titular.
2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2
do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão,
sobrinho ou herdeiro do falecido.
3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que
o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer
providências a que o número anterior se refere.”
Como veremos nos próximos capítulos, a redação deste artigo origina vários
problemas, problemas esses relacionados com a titularidade dos bens jurídicos tutelados,
com a admissibilidade do recurso à responsabilidade civil e à legitimidade para o recurso
a esse mesmo instituto e às providências adequadas a fazer cessar ou atenuar os efeitos
da ameaça.
14
Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., pág. 366.
15
Vd. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., págs. 366 e 367. Vd. também
do mesmo autor Lições de Direitos das Sucessões, Vol. I, 4ª edição renovada, Coimbra Editora, 2000, págs.
309 e ss. O autor afirma que há certos direitos pessoais de natureza civil ou processual, não avaliáveis
pecuniariamente e que não visam satisfação de necessidades económicas são objeto de devolução
sucessória (para a distinção entre os conceitos de vocação sucessória e devolução sucessória vd. Capelo de
Sousa, Lições de Direitos das Sucessões, ob. cit., págs. 280 a 282). Como exemplos de direitos civis
pessoais transmissíveis sucessoriamente temos os direitos morais de autor, o direito de resposta por ofensas
nos órgãos de comunicação social e os demais direitos de personalidade (pág. 310). Capelo de Sousa
defende que “os direitos de personalidade protegidos depois da morte do respectivo titular subsistem nas
esferas jurídicas das pessoas referidas no 71.º, n.º 2, do Código Civil, com a sua estrutura (em matéria, v.g.,
do objecto juridicamente tutelado, do conteúdo dos poderes e deveres jurídicos e das garantias
juscivilísticas, mas sem prejuízo da mudança de titularidade subjectiva operada com a sucessão especial) e
a sua dinâmica (v.g., em matéria de colisão de direitos) próprias e autónomas. Não são substituídos por
novos direitos materiais, com o mesmo conteúdo, atribuídos às pessoas mencionadas no art. 71.º, n.º 2, do
Código Civil nem se confundem com os direitos de personalidade destas pessoas, decorrentes da sua
específica ligação com o defunto”: Cfr. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., pág.
367, nota 916. Vd. também, Lições de Direitos das Sucessões, ob. cit., págs. 310, nota 793.
16
Vd. Fernando Cunha de Sá, Abuso do Direito, Lisboa, Almedina, 1973, págs. 146 e ss., nota
171.
17
Vd. Fernando Cunha de Sá, Abuso do Direito, ob. cit., págs. 147 e 148, nota 171.
18
Vd. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e
atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 105.
19
Cfr. Diogo Leite Campos, Lições de Direitos da Personalidade, 2ª edição (reimpressão), in
Separata do Vol. LXVI (1990) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1995,
pág. 45. No que ao direito de imagem diz respeito, o autor afirma que existe um “direito à imagem do
próprio, «embora» falecido, exercido em nome deste pelos seus familiares próximos” (pág. 75). Vd.
também do mesmo autor, A Indemnização do Dano da Morte, in Separata do Vol. I (1974) do Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1975, págs. 53 e ss.
20
Cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 2000, pág. 101.
21
Vd. Oliveira Ascensão, Direito Civil, ob. cit., pág. 101.
22
Vd. Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito
Civil, 11ª reimpressão da edição de 1992, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 261.
23
Cfr. Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil, ob. cit., pág. 259.
24
Vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 586.
25
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 587.
26
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 587.
27
Vd. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pág. 205.
28
Cfr. Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, 5ª edição (revista e
atualizada), Lisboa, Universidade Católica de Lisboa, 2009, pág. 211.
29
Vd. Paulo Mota Pinto, O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, in Separata
do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXIX, Coimbra, 1993, pág. 554,
nota 184.
30
Cfr. Paulo Mota Pinto, O Direito à Reserva, ob. cit., pág. 555, nota 184.
31
Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8ª edição (reimpressão),
Almedina, 2019, pág. 51; e Direito de Personalidade, reimpressão da edição de novembro de 2006,
Coimbra, Almedina, 2017, págs. 120 e 121.
32
Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pág. 51; e Direito de
Personalidade, ob. cit., pág. 121.
33
Vd. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., págs. 51 e 82; e Direito
de Personalidade, ob. cit., pág. 121.
34
Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, Comentário aos Artigos 70.º a 81.º do Código Civil (Direitos
de Personalidade), Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, pág. 147.
35
Vd. Orlando Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora,
2012, pág. 258.
36
Menezes Cordeiro é também da mesma opinião: “A manutenção da personalidade do falecido
não pode ser admitida. A pessoa é sempre destinatária ou beneficiária de regras, numa prerrogativa que o
falecido não pode, infelizmente, ter. A alternativa seria construir uma pessoa colectiva: nada, na lei, aponta
para tal derivação. Tanto basta para rejeitar a teoria do prolongamento da personalidade”. Cfr. Menezes
Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. IV, 4ª edição (revista e atualizada), Almedina, 2017, pág. 548.
37
Neste sentido, vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 586.
38
Cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit., pág. 225.
39
Cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit., pág. 225.
40
Carvalho Fernandes invoca também um argumento sistemático. O autor afirma que mors
omnia solvit, sendo que isso é imposto pelo artigo 68º CC. Vd. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit.,
pág. 210.
41
João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 585.
42
Vd. supra 3.1.
43
Cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil, ob. cit., págs. 101 e 102.
44
Vd. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, ob. cit., pág. 211.
45
Cfr. Heinrich Hörster, A Parte Geral, ob. cit., pág. 261, nota 58.
46
Vd. Heinrich Hörster, A Parte Geral, ob. cit., pág. 261, nota 58.
47
Vd. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, ob. cit., pág. 196.
48
Vd. Ana Filipa Morais Antunes, Comentário aos Artigos, ob. cit., págs. 148 e 149.
49
Vd. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pág. 51; e Direito de
Personalidade, ob. cit., págs. 121 e 122.
50
Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. IV, ob. cit., pág. 545.
51
Vd. Filipe Albuquerque Matos, Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom
Nome, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 387.
52
Cfr. Filipe Albuquerque Matos, Responsabilidade Civil, ob. cit., pág. 388.
53
Vd. Filipe Albuquerque Matos, Responsabilidade Civil, ob. cit., pág. 388 (vd. também pág.
389).
54
Em crítica, vd., p.e., Fernando Pinto Bronze sobre o objeto (norma-problema e não norma-
texto) e objetivo de interpretação, a mudança de sentido dos fatores/elementos da interpretação jurídica
tradicionais (elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico), bem como dos resultados da
interpretação: Fernando Pinto Bronze, Lições de Introdução ao Direito, 3ª edição, Coimbra, Gestlegal,
2019, pág. 877.
55
Vd. Nuno Pinto Oliveira, Direitos de Personalidade: Contributo para a Revisão das
Disposições do Código Civil Português, in Themis, Edição Especial, 2008, págs. 216 e ss.
56
Cfr. Nuno Pinto Oliveira, Direitos de Personalidade, ob. cit., pág. 217.
57
Cfr. Nuno Pinto Oliveira, Direitos de Personalidade, ob. cit., pág. 218 e 219.
58
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., págs. 591 e 592.
59
Cfr. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 592.
60
Vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., págs. 593 e 594.
61
Vd. João Cura Mariano, O Artigo, ob. cit., pág. 592 e 594.
62
Vd. Pedro Pimenta Mendes, Restituição do Lucro Ilícito Pela Violação de Direitos de
Personalidade, in Revista de Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, págs. 358 e ss.
63
Para mais desenvolvimentos sobre o tema, vd. Pedro Pimenta Mendes, Restituição do Lucro
Ilícito, ob. cit., págs. 371 e ss.
64
Vd. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, ob. cit, págs. 544 e 545. Vd. também Ana
Filipa Morais Antunes, Comentário aos Artigos, ob. cit., pág. 150. A autora distingue duas situações: “no
caso de a ilicitude não se fundar na falta de consentimento, deve ser reconhecida legitimidade para actuar,
conjunta ou isoladamente, a qualquer das pessoas referidas no n.º 2 do artigo 71.º e sem que haja lugar a
qualquer escala de precedência. (...) Diversamente, se a ofensa resultar da falta de consentimento, têm
legitimidade para actuar, conjunta ou separadamente, as pessoas que o deveriam prestar, em respeito pela
escala de precedência eventualmente prescrita pelo legislador, nas disposições particulares que regulem o
procedimento de tutela em caso de ofensa a direitos de personalidade depois da morte do respectivo titular”;
e Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, ob. cit., págs. 102 e 103: “se depende de consentimento,
a legitimidade cabe às pessoas que o deveriam prestar (art. 71/3). Essas pessoas são as fixadas no art. 71/2,
e segunda a ordem da enumeração (arts. 76/2 e 79/1). Se não depende, todas têm logo legitimidade (arts.
73 e 75)”.
65
Mafalda Miranda Barbosa, Reflexões em torno da Responsabilidade Civil. Teleologia e
Teleonomologia em Debate, in Separata do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2005, págs. 551 e
552.
66
Mafalda Miranda Barbosa, Reflexões, ob. cit., pág. 552.
67
Mafalda Miranda Barbosa, Reflexões, ob. cit., págs. 552 e 553.