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Direito Processual Civil I

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Direito Processual Civil I

Aulas teóricas e aulas práticas do Prof. Dr. Luís Miguel Andrade Mesquita

*Com agradecimento especial ao Tomás Cunha

Ano Letivo 2021/2022

Marta Lima e Silva

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Direito Processual Civil I

® Nota muito importante: Diz-se “interpor um recurso” e “intentar uma ação”; nunca
“interpor uma ação” ou “intentar um recurso”.

1ª lição – O sentido e a natureza do Direito Processual Civil

1. Introdução

O objetivo da primeira lição é responder a três questões básicas:


1) Qual é a origem de um processo/ação civil/cível?
2) O que é um processo civil?
3) Qual a natureza jurídica do Direito Processual Civil?

Para tal, mencionam-se três pequenas histórias que correspondem a três casos reais:

® Pombal, séc. XXI:


Em outubro de 2001, em Pombal, o condutor de um veículo ligeiro, ao proceder a uma
manobra, atropelou mortalmente uma raríssima catatua australiana, que tinha sido
importada, a muito custo, por um casal que muito a estimava. Este mesmo casal quis
obter uma indemnização da seguradora do veículo causador do acidente. Porém, apesar
de o condutor ter sido advertido para que tomasse as devidas precauções na presença
da ave rara, a seguradora entendeu que não tinha de indemnizar os proprietários da
ave, uma vez que o atropelamento ocorreu num quintal particular (e, portanto, fora da
via pública) e com o argumento de que a catatua deveria estar numa gaiola e não à solta
no quintal. Este caso deu origem a um Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de
18 de novembro de 2008, relatado pelo Sr. Desembargador Arlindo Oliveira, estando
relacionado com a matéria da responsabilidade civil.

® Algarve, finais de 2017:


No Algarve, um cão que andava à solta entrou na casa de um indivíduo que lhe era
estranho, sendo que este indivíduo não se apercebeu da entrada do cão. O cão destruiu
uma série de coisas pertencentes ao dono da casa, destruindo bens no valor aproximado
de 50.000€ (v.g., um sofá da marca Versace que tinha custado 16.000€, tapeçarias
persas no valor de 22.000€ e cristais no valor de 8.000€). Ora, o dono da casa queria
uma indemnização, mas o dono do cão não queria indemnizá-lo, argumentando que ele
deveria ter a porta de casa fechada. Este caso deu origem a um Acórdão do Tribunal da
Relação de Évora, de 22 de outubro de 2020, relatado pela Sra. Desembargadora Emília
Costa (juíza de segunda instância).

® Califórnia, EUA:
Russel, residente no Estado da Califórnia dos EUA e funcionário público num liceu, ao
fazer as suas compras numa loja de conveniência de São Francisco, reparou que uma
fotografia sua estava a ser usada, sem a sua autorização, nos rótulos de um certo
produto comercializado pela multinacional Nestlé. A empresa, perante a imediata
reação extrajudicial de Russel, reconheceu a culpa e ofereceu ao senhor uma
indemnização de 100.000 dólares. Porém, Russel, considerando que a sua imagem valia
muito mais do que isso, recusou a oferta e levou o caso para tribunal. O caso decorreu
no tribunal de primeira instância de Los Angeles, que acabou por atribuir uma
indemnização de 15 milhões de dólares a Russel.

1.1. Qual é a origem de um processo/ação civil/cível?

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Todos estes três casos deram origem a um processo de natureza civil, sendo que todos eles
estão relacionados com o Direito Privado. Isto significa que o Processo Civil está relacionado
com o Direito Privado. Ora, no Direito Privado encontra-se o Direito Civil (que ocupa um lugar
de destaque), o Direito Comercial e o Direito do Trabalho. O Direito Processual Civil é como uma
disciplina satélite do universo do Direito Privado. O Direito Privado, através de normas materiais,
substantivas ou até primárias, regula os vários Direitos existentes.

Nesta medida, em princípio, os nossos direitos são defendidos e nunca violados. Porém,
anormalmente e excecionalmente, estes direitos regulados pelo Direito Privado (v.g., direitos
de personalidade, de personalidade, reais, de crédito, etc) podem ser ameaçados ou até mesmo
violados. É precisamente quando há uma ameaça ou violação de um direito que surge um
conflito de interesses ou um litígio – é isto que está na base do Direito Processual Civil e,
consequentemente, na origem de um processo cível.

Contudo, basta haver um litígio para nascer um processo? Não. Também é necessário que a
pessoa que alegadamente sofreu uma violação afetiva ou afetiva do seu direito recorra a
tribunal e exerça o seu direito de ação perante o tribunal competente (art. 3º/1 CPC) – é o
chamado princípio do pedido, que está na base do processo civil.

Note-se que é verdade que, na base dos processos cíveis, estão litígios (conflitos de interesses)
entre pessoas. Porém, também é verdade que, em alguns raros casos, não há litígio por detrás
dos processos cíveis. Há processos em que há dificuldade ou até impossibilidade de descortinar
o litígio aberto entre duas pessoas (iremos estudá-los mais adiante).

1.2. O que é um processo civil? (remissão para o ponto 6)

Em suma e em regra, um processo cível é um litígio (um conflito de interesses) que foi levado a
tribunal porque não foi resolvido pacificamente. Este litígio pode traduzir-se numa violação
efetiva ou numa violação potencial (ameaça) de um direito.

Quando existe uma violação efetiva de um direito, o titular desse direito vai a tribunal buscando
uma tutela reparatória, que repare o prejuízo que sofreu. Porém, a verdade (esquecida em
muitos manuais de Direito Penal) é que, muitas vezes, a violação do direito é meramente
potencial (e não efetiva) e que se pode ir para tribunal pese embora a violação ainda não seja
efetiva. Nestes casos, a tutela já não é reparatória, mas antes inibitória, pois visa travar
comportamentos suscetíveis de afetarem, no futuro, o direito em questão. Este ponto está ainda
mal estudado em Portugal.

O processo cível tem por objeto o estudo científico das normas reguladoras – quer da
propositura da ação, quer da atividade a desenvolver pelo tribunal e pelos demais
intervenientes – nas diversas fases em que se desenvolve um dado feito introduzido em juízo,
até à emissão da decisão final apreciadora do respetivo mérito.

1.3. Qual a natureza jurídica do Direito Processual Civil? (remissão para o


ponto 8)

O vocábulo processo compõe-se na raiz etimológica do prefixo pro e do verbo cedere, o que
significa “caminhar para a frente”. Em sentido jurídico, o processo constitui um verdadeiro

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procedimento, traduzido numa cadeia lógico-sequencial de atos jurídicos articulados entre si,
com vista ao decretamento, no seu terminus, de uma dada e concreta providência jurisdicional.

2. Princípio da proibição da autotutela ou autodefesa

Quando surge um conflito, surge também a possibilidade (não o dever) de recorrer ao tribunal
para resolver o litígio – possibilidade conferida pelo princípio do pedido. Ora, tudo isto assenta
noutro princípio fundamental, que se relaciona com outros conflitos de interesses e que é basilar
do Estado de Direito, explicando a necessidade de haver tribunais e juízes: o princípio da
proibição da autotutela ou da autodefesa.

Ninguém pode recorrer à força (à autotutela/autodefesa). Este princípio é tão importante que
está consagrado no art. 1º CPC, pois, no fundo, é ele que ilumina todo o processo civil. Este
artigo é baseado no mais famoso jurista romano da humanidade (e um génio, na opinião do Dr.
Mesquita), Marco Cícero, que dizia: “que as armas cedam perante as togas”.

® Nota: Nem sempre o princípio da proibição da autotutela foi alvo de aplicação, como é
possível perceber através do estudo do Direito Romano, onde se verificava a aplicação
do Princípio de Talião.

2.1. Justificação da importância deste princípio

A autodefesa implica o recurso à força e, por sua vez, o recurso à força implica:
® Por um lado, a afetação direta da paz, um dos valores supremos do Estado de Direito;
® Por outro lado, a não valorização da justiça, por dois motivos:
• O mais fraco, que não tem força, não consegue fazer valer os seus direitos;
• O mais forte, mesmo quando dotado de direito, acaba, normalmente, por
exceder-se, o que leva à prática de atos desproporcionais.

É pelo que implica o recurso à força (supramencionado) que é tão importante o princípio da
proibição da autotutela. Nesta medida, a via para obter a justiça não será, por via de regra, o
caminho do recurso à força, mas sim a do recurso ao tribunal.

Através do recurso ao tribunal, obtido através do direito à ação, é possível alcançar a paz. Trata-
se de uma engrenagem inventada pela humanidade para resolver os litígios de forma pacífico.
Contudo, tal não significa que haja necessariamente paz em todos os casos – basta pensar nas
situações em que quem perdeu um caso resolve vingar-se pelo recurso à força depois da
pronúncia do tribunal.

2.2. Desvios ao princípio da proibição da autodefesa

Ao recorrer à força para exercer um direito, o indivíduo está a praticar um ato ilícito tanto à luz
do Direito Civil como do Direito Penal – porque está a violar o art. 1º CPC. Há sanções, tanto civis
como penais, para quem desrespeita o princípio da proibição da autotutela ou autodefesa.

No entanto, o nosso ordenamento jurídico prevê algumas situações em que não é desejável e
prático obrigar um indivíduo recorrer a tribunal, podendo esse mesmo indivíduo recorrer à força
para tutelar os seus direitos – são os chamados desvios ao princípio da proibição da autodefesa,
que são três:

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1) Ação direta (art. 336º CC) – não se trata de uma reação direta/imediata (como na
legítima defesa), pois verifica-se a existência de um tempo entre a violação do direito e
o uso da força para tutela do mesmo.
Exemplo: a A foi-lhe roubada uma bicicleta. Passado uns dias, vê a sua bicicleta
“estacionada” na rua, presa com cadeado. Através da força, decide cortar o cadeado e
levar a sua bicicleta.

2) Legítima defesa (art. 337º CC) – é uma reação imediata (“a quente”) que visa afastar
uma ofensa à pessoa ou ao seu património, sendo que ato se torna lícito. Tem reflexos
no direito privado, civil e penal.
Exemplo: A está, em cima da sua bicicleta, parado num semáforo, quando um indivíduo
lhe tenta roubar a bicicleta. A defende-se do ladrão, com o intuito de evitar que este lhe
roube a bicicleta.

3) Estado de necessidade (art. 339º CC) – é uma situação que implica, para além do recurso
à força, que esta seja usada para destruir ou danificar uma coisa alheia, com o intuito
de afastar um perigo.
Exemplo: existe um incêndio de grandes proporções e há um helicóptero que, para
evitar um incêndio, desce sobre uma piscina privada para recolher água com o fim de
despejá-la sobre o fogo.

Estas situações encontram-se previstas na lei e não são passíveis de recurso ao tribunal. São
situações em que o recurso à força se torna legítimo e lícito.

3. Direito de Ação

O Estado retira com uma mão a possibilidade do recurso à força (art. 1º CPC), mas entrega, com
outra, algo de fundamental:
® Por um lado, o Direito de Ação, previsto no art. 20º CRP;
® Por outro lado, o serviço dos tribunais.

O processo como sequência de atos inicia-se com a petição inicial. Qualquer cidadão, utilizando
os meios facultados pela Lei Processual Civil, pode propor, em juízo, ações para fazer valer os
seus direitos ou interesses tutelados pelo direito material. A lei ordinária concretiza este direito
ao processo no art. 2º/2 CPC, ao postular o princípio da correspondência entre qualquer direito
e ação adequada. Dessa forma, o legislador exclui o sistema da justiça privada assente no
princípio da autotutela e repudiado pelas atuais exigências civilistas.

Proibindo aos particulares o recurso à própria força, o Estado assegura, através de órgãos seus
e vocacionados para tal (dotados de soberania e independência), as providências necessárias a
todos os titulares de direitos violados. Este sistema de justiça pública, onde a função jurisdicional
se encontra monopolizada no Estado, atribui um direito subjetivo público (irrenunciável) de
levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão jurisdicional, solicitando a abertura de
um processo, com o consequente dever de pronúncia desse órgão mediante decisão
fundamentada.

4. Estrutura da tutela jurisdicional portuguesa

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A CRP (nos seus arts. 202º e segs.) prevê, genericamente, os tribunais que existem. Na disciplina
de Direito Processual Civil importam os arts. 209º e, sobretudo, os arts. 210º e 212º CRP.

Existem três tipos de tribunais judiciais, que julgam casos de natureza civil:

Supremo Tribunal de
Justiça (sediado em
Lisboa)

Tribunais da
Relação/Tribunais de 2ª
Instância

Tribunais de Comarca/Tribunais de 1ª
Instância

Nestes tribunais, podemos exercer o nosso Direito de Ação. Existem tribunais de 1ª e 2ª


instâncias precisamente para possibilitar à parte que perdeu o processo a interposição de
recurso, se se preencherem determinados requisitos técnicos. No limite, pode levar-se a
questão ao Supremo Tribunal de Justiça. Então, desta forma é possível evitar que a decisão
esteja canalizada apenas num só juiz, abrindo a porta a que existam vários recursos –
garantindo-se, assim, uma maior justiça.

® Nota: A Lei 62/2013 de 26 de agosto é a Lei da Organização Judiciária.

Fora desta estrutura, existem ainda os Julgados de Paz e os Tribunais Arbitrais:

1) Os Julgados de Paz

Previstos na Lei 78/2001 de 13 de julho, os Julgados de Paz são tribunais suigeneres (diferentes
dos demais). São tribunais estaduais de 1ª instância, sendo tribunais alterativos/paralelos à
pirâmide judiciária. Sendo bastante recentes, estes tribunais, que se caracterizam por serem
mais rápidos e menos formais, têm dois limites principais à sua ação:
® Só podem julgar causas que não ultrapassem os 15.000€;
® Só podem julgar determinadas matérias, nos termos do art. 9º da Lei 78/2001.

2) Os Tribunais Arbitrais

Os tribunais arbitrais são tribunais à parte porque os juízes não têm um vínculo ao Estado – são,
por isso, juízes privados (não estaduais). O tribunal arbitrário é, portanto, um tribunal privado,
composto, normalmente, por três juízes (normalmente, Professores de Faculdades de Direito).

Existem uma série de regras que regulam o recurso a este tipo de tribunais, designadamente, o
Estado permite que determinados litígios relacionados com questões unicamente patrimoniais
sejam apreciados por tribunais arbitrais. Ao permitir isto, o Estado está a permitir, portanto, que
certos litígios sejam julgados por tribunais privados, em que os juízes são juízes não estaduais.

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Porém, para se levar um litígio a um tribunal arbitral, as partes têm de estar de acordo em
desviá-lo dos tribunais estaduais para os tribunais privados. A isto se chama Convenção de
Arbitragem: ambas as partes manifestam a sua vontade de levar o litígio a juízes privados. Se
uma das partes não concordar, a outra tem de levar o caso para o tribunal estadual.

5. Imparcialidade – a importância deste conceito no processo civil

O Estado postula o recurso aos tribunais para a resolução dos litígios. Ora, de que serve o Estado
fazê-lo se não há garantias de imparcialidade de quem nos vai julgar? A imparcialidade é uma
condição essencial da justiça, sendo essencial que a pessoa que vai julgar o litígio o faça com
isenção e objetividade. Se não acreditamos na justiça, vamos recorrer à autotutela e à força
(coisa que o Estado não quer). Por isto, o Estado tem de garantir a imparcialidade do julgador.

Exemplos:
® Pode um juiz julgar alguém que o assaltou? Não.
® Pode o juiz, que é afilhado de casamento do senhor A, julgar um caso em que é parte o
senhor A? Não.
® Pode uma juíza, que tem uma relação de namoro com o advogado do senhor B, julgar
um caso em que é parte o senhor B? Não.
® Pode um juiz, que é sócio de um clube de futebol, julgar um caso em que é parte esse
mesmo clube? Não.

A lei processual regula as garantias de imparcialidade, nos arts. 115º a 129º CPC, através de
dois mecanismos específicos: o regime de impedimento e o regime da suspeição. Os tribunais
são independentes e estão sujeitos apenas à lei, como estabelece o art. 203º CRP. Assim, além
da consagração constitucional das garantias de imparcialidade, a própria lei ordinária plasma
diversas garantias de imparcialidade relativas aos diferentes intervenientes processuais.

Para além da existência de um direito a um processo justo e equitativo diretamente imposto


pela CRP (art. 20º/5), a DHDH, a CEDH e o PIDCP postulam a necessidade de os tribunais, para
além de serem criados por lei, serem independentes e imparciais.

Esta necessidade resulta do facto de a imparcialidade ser sinónimo de isenção e objetividade. A


imparcialidade é fundamental para alcançar a igualdade, como estabelece o art. 4º CPC. É
fundamental atingir a igualdade substancial das partes, sendo que só um juiz imparcial garante
a confiança na justiça.

Nesta medida, a imparcialidade é uma condição essencial de quem julga – o que justifica a
existência de dois mecanismos específicos para garantir a imparcialidade do juiz (CPC). Desta
forma se assegura a transparência e eliminação da opacidade e potenciais fatores geradores de
desconfiança no sistema judicial (mais uma vez, a ideia de confiança na justiça).

É claro que existem determinadas situações que a lei não consegue propriamente resolver.
Qualquer juiz tem uma determinada mentalidade e uma série de pré-juízos, o que pode, no
limite, afetar essa sagrada imparcialidade. Ora, a lei não consegue garantir, em absoluto, a
imparcialidade. Um juiz, como qualquer pessoa, tem um conjunto de valores culturais (de
natureza política, social, religiosa, etc) e uma maneira própria de ver o mundo. É natural que os
valores do juiz possam, no limite, afetar a sua imparcialidade. É mau que tal aconteça, mas a
verdade é que ninguém consegue garantir a máxima imparcialidade.

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Os dois mecanismos (aplicados aos tribunais de comarca), garantias consagradas no nosso


ordenamento jurídico com vista a garantir, quase em absoluto, a imparcialidade do juiz, são o
regime do impedimento (art. 115º CPC) e o regime da suspeição (art. 119º CPC). Em ambas as
normas, o legislador prevê situações que afetam a imparcialidade, identificando situações em
que o juiz tem o dever de se afastar do caso (situações de impedimento) e situações em que se
pode levantar uma nuvem de suspeição sobre o juiz, podendo este afastar-se do caso se assim
o entender (situações de suspeição).

5.1. Regime do impedimento

O CPC prevê, nos arts. 115º e ss., as circunstâncias em que um juiz tem o dever de se afastar
do caso que lhe foi distribuído. Essas circunstâncias são as situações previstas no art. 115º (lista
taxativa), que se traduzem em causas óbvias para o afastamento do juiz. Designadamente,
quando o litígio tem diretamente a ver com o juiz que vai julgar o caso (com ele próprio, com
familiares seus, etc), ele tem de se afastar.

® Exemplo: Um juiz foi vítima de viação de um acidente de viação sobre o qual nenhuma
culpa teve. Este avança para um processo contra o causador do acidente e contra a
seguradora, pedindo uma indemnização. Ora, o próprio não pode julgar este caso, pois
seria um juiz em causa própria.

E se o juiz não se excluir do caso mesmo perante uma das situações previstas no art. 115º CPC?
Caso o juiz não se afaste, i.e., se houver uma violação do dever de recusa do caso, a parte que
se sente prejudicada poderá apresentar um pedido de afastamento do juiz, ao abrigo do
disposto no art. 116º/1. Este pedido de afastamento encontra-se sustentado num princípio
fundamental: o princípio nemo iudex in causa sua – i.e., ninguém pode ser juiz em causa própria.

Quem deve apreciar esse pedido? No ordenamento jurídico português, é o próprio juiz. O juiz
pode, então, decidir uma de duas coisas: deferir o pedido ou indeferir o pedido. Na segunda
hipótese, a parte não conseguiu afastar o juiz, verificando-se a possibilidade de interpor recurso
para o tribunal superior. O tribunal superior irá decidir, nos termos do art. 116º/5 CPC, se o juiz
deve ou não ser afastado do caso.

Esta regra é alvo de críticas no seio da doutrina portuguesa, nomeadamente, por parte do
próprio Dr. Miguel Mesquita. Na opinião de vários autores, deveria ser outro juiz a decidir este
pedido nas situações em que o próprio juiz não teve capacidade para exercer o seu dever de
afastamento. Esta solução é, aliás, a solução consagrada no ordenamento espanhol.

5.2. Regime da suspeição

Previsto nos arts. 119º e ss. do CPC, o regime da suspeição prevê (não taxativamente) que
possam existir certas circunstâncias menos graves e menos óbvias do que as que caracterizam
o regime do impedimento, mas que, não obstante, podem ser suficientes para se levantar sobre
o juiz uma nuvem de suspeição. Esta nuvem, apesar de não ser tão tenebrosa como a que se
levanta nos casos de impedimento, pode afetar a imagem do juiz.

® Exemplos: Um juiz recebe um caso e, quando o lê, percebe que o autor ou o réu do
processo é um grande amigo, um grande inimigo ou a sua empregada doméstica.

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Nestas situações, que solução apresenta a lei? Ora, nas situações de suspeição, o juiz não tem
de se afastar do caso, mas pode fazê-lo, apresentando um pedido de escusa, previsto no art.
119º/3 CPC. Este pedido de escusa, que tem de ser fundamentado, é apresentado pelo juiz que
se quer afastar do processo ao Tribunal Superior, nomeadamente, ao Presidente do Tribunal da
Relação, sendo este último a decidir se o juiz se afasta ou não, sem possibilidade de recurso.

® Exemplo: Recentemente, aconteceu um juiz pedir escusa do processo dos emails do


Benfica por ser benfiquista desde os 8 anos.

O que acontece se o juiz não apresenta o pedido de escusa? A parte que se sente em perigo com
a situação pode levantar o incidente da suspeição, nos termos do art. 120º CC. Quem vai decidir
esta questão é o Presidente do Tribunal de Relação, com vista ao afastamento ou à manutenção
do juiz no caso. Isto acontece bastantes vezes.

Nota: O regime do impedimento parece estar um pouco mal feito devido ao facto de ser o
próprio juiz a avaliar se deve ou não ficar no caso, enquanto, no regime de suspeição, será o
Presidente da Relação a tomar essa decisão.

6. O que é um processo?

A palavra processo tem origem no latim: o prefixo PRO significa para diante e CEDERE significa
caminhar para diante (para a frente). Este é um caminhar para a frente que, no processo civil,
começa necessariamente com o exercício de um direito por parte de uma pessoa que quer
resolver um litígio e que dá um pontapé de saída, exercendo um direito de ação.

Um processo nasce, então, com o exercício do direito de ação. Este direito de ação exerce-se
perante os tribunais (judiciais, julgados de paz ou arbitrais). Como fruto simultâneo do exercício
deste direito e do funcionamento da função jurisdicional, nasce o processo.

® Nota: De acordo com a noção do Prof. Francesco Carnelutti, a ação e a jurisdição são
termos correlativos, pois não pode haver ação sem jurisdição nem jurisdição sem ação.

Noção de processo: O processo é um conjunto sequencial de atos (fases do processo)


praticados pelas partes – que, no processo declarativo, se chamam autor e réu ou demandante
e demandado –, pelo juiz, exercendo a função jurisdicional, e por outros intervenientes ou
sujeitos (v.g, o MP, as testemunhas, a polícia), com vista à resolução de um litígio. É, portanto,
um instrumento de resolução de litígios.

6.1. O processo como um jogo e o processo como uma engrenagem

Durante muito tempo, o processo foi visto como um jogo: o resultado do exercício do direito de
ação e da correspondente defesa (como uma moeda). Esta conceção do processo como um
jogo, associada ao séc. XIX e inícios do séc. XX, vê no processo, fundamentalmente, uma
competição entre o autor e o réu, em que ganha o mais astuto, com uma certa dose de álea.

Hoje, não vemos o processo como um jogo. Apesar de, prima facie, o Dr. Miguel Mesquita
admitir que o processo parece um jogo, em rigor, a partir de finais do séc. XX e inícios do séc.
XXI, o processo passou a ser mais do que um jogo. A palavra “jogo” não é, no entender do Dr.
Mesquita, a mais adequada para descrever o processo.

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O Dr. Miguel Mesquita andava, há muito tempo, à procura de uma palavra (como “jogo”) que
realmente descrevesse o processo, sendo que só a encontrou o ano passado. Segundo ele, o
processo pode ser definido através da palavra “engrenagem” (um conjunto de três rodas que
se fazem mover umas às outras): o exercício da ação (1) faz mover a oposição/defesa (2) e, assim,
move-se a jurisdição (3).

7. Finalidades do processo

De acordo com o art. 6º CPC, o processo tem dois grandes objetivos:

1) Obter a justa e eficiente composição do litígio – há dois passos fundamentais para se


alcançar a justa composição do litígio (qualquer tipo de litígio e não apenas o cível – v.g.,
penal, administrativo), que é uma finalidade muito importante do processo civil:
• Resolver a questão de facto – através da apuração dos factos, i.e., através dos
meios de prova, descobrir a verdade acerca do litígio concreto em questão;
• Resolver a questão de Direito – interpretar e aplicar o Direito, de maneira
correta e mais perfeita possível, aos factos que se apuraram.

Nota: Para o Dr. Miguel Mesquita, faz sentido adicionar a “e eficiente” à “justa composição do
litígio” porque, se esta última for justa, mas não for eficiente, não é ideal (v.g., um juiz demorar
15 anos a proferir uma sentença – a sentença pode ser justa, mas não é eficiente).

2) Alcançar a segurança jurídica – a segurança jurídica é alcançada, essencialmente,


através de dois mecanismos:
• A sentença – a sentença é o caminho que anula o caminho da autotutela da
força (caminho este que é barrado pelo nosso ordenamento jurídico, salvo nos
casos previstos na lei);
• O caso julgado (significa que o assunto está encerrado) – de facto, a certa
altura, uma sentença em processo civil transita em julgado, ou seja, a solução
para aquele litígio torna-se imodificável (art. 619º/1 CPC). Só em situações

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excecionais (e limite) é que a lei permite que, por força da justiça, uma decisão
transitada em julgado possa ser alterada por recurso extraordinário de revisão
da sentença que já transitou em julgado.

Não é o jogador mais hábil, mas que não tem qualquer razão à luz dos factos e à luz do Direito,
que ganha o “jogo” – isso seria uma má formação ou deturpação da engrenagem (Dr. Mesquita).

7.1. Uso anormal do processo

O legislador sabe perfeitamente qual é a finalidade do processo cível, tal como também sabe
que a imaginação humana não tem limites e que, por vezes, há pessoas malévolas que usam o
processo para finalidades diferentes das finalidades nobres, apontadas no Código. O art. 612º/1
CPC demonstra precisamente que o legislador tem consciência de que o processo pode ser
utilizado para a concretização de finalidades anormais.

Estes são, portanto, fins anormais, seguidos através do uso anormal do processo (art. 612º/1),
havendo até uma perversão do processo, uma vez que ele é utilizado como forma de não se
alcançar a justa composição do litígio. O art. 612º/1 CPC traduz, assim, um conluio entre o autor
e o réu para distorcer a engrenagem tão pura que é o processo civil.

Existem fenómenos de processo simulado e fenómenos de processo fraudulento – as duas


espécies de uso anormal do processo:

1) O processo simulado visa enganar terceiros, sendo que o resultado que o autor e o réu
visam alcançar através do processo não é desejado pelas próprias partes – elas têm
apenas o desejo de enganar terceiros.

Exemplo: A tem um valioso terreno, mas tem também muitas dívidas, havendo uma
série de credores que o perseguem. A não quer pagar as dívidas e sabe que, mais cedo
ou mais tarde, os credores vão tentar penhorar o seu terreno. A, com o intuito de salvar
a sua propriedade, combina com B, seu grande amigo, que este último proponha, o mais
rapidamente possível, uma ação de reivindicação do terreno contra A. O objetivo é que
B ganhe a ação de reivindicação, mas A continue a ser o proprietário do terreno,
afastando, assim, os outros credores. Isto é um processo simulado, que visa afastar o
património da esfera patrimonial do devedor.

2) O processo fraudulento que, não sendo propriamente simulado, assenta numa mentira,
sendo que as partes querem efetivamente alcançar o resultado do processo, que não
seria possível alcançar sem essa mentira.

Exemplo: C e D são casados e querem pôr termo ao casamento, mas, por razões íntimas
e ideológicas, não querem o divórcio. Então, C e D combinam propor uma ação de
anulação do casamento, em vez de pedirem o divórcio. Assim, C propõe uma ação de
anulação do casamento contra D, alegando que o casamento foi celebrado por ter
havido coação moral exercida D, sendo que D não se opõe.

Quanto ao regime aplicável ao uso anormal do processo, o CPC estabelece que, se o juiz se
apercebe, na pendência da ação, que as partes estão a utilizar o processo para conseguirem um
fim proibido por lei, deverá, à luz do art. 612º CPC, parar imediatamente com aquela
“farsa/encenação” e terminar com o processo em questão. O juiz deve, ainda, condenar as
partes como “litigantes de má-fé”, aplicando multas pesadas ao autor e ao réu.

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Direito Processual Civil I

® Nota: O art. 8º CPC consagra o dever de boa-fé processual.

Caso o juiz não se aperceba que está perante um processo fraudulento, a sentença por si
proferida pode vir a ser destruída através de um recurso extraordinário de revisão, previsto no
art. 696º/g) CPC. Quanto à legitimidade para interpor este recurso que visa atacar uma sentença
que já tem força de caso julgado, rege o art. 631º/3 (estudaremos esta matéria mais à frente).

8. Natureza do Direito Processual Civil

No centro da ação, jurisdição e processo encontra-se o Direito Processual Civil – uma disciplina
jurídica constituída por normas-regra técnico-jurídicas e princípios orientadores (sendo que as
primeiras traduzem os segundos) –, que trata da tramitação do processo (as várias fases do
processo), regula o exercício do direito de ação e regula o exercício da jurisdição.

Além disto, hoje, o campo do Direito Processual Civil alarga-se a normas que constam de
diplomas avulsos, que regulam os meios alternativos de resolução de conflitos, para além do
exercício do direito de ação (a forma clássica de resolução de litígios, consagrada no CPC).

Classicamente, o Direito Processual Civil tem três características que o definem:

1) É um direito instrumental pois regula os instrumentos/meios/remédios, consagrados


no CPC, que existem para a tutela dos nossos direitos e interesses quando estes estão
em crise. Estes instrumentos são as célebres ações, os procedimentos cautelares e os
recursos, que são apresentados perante um juiz e perante os tribunais.

2) Justamente por ser um direito instrumental, é um direito adjetivo (e não material), uma
vez que, para se conseguir tutelar os nossos direitos, há que juntar às normas de direito
privado/material (v.g., as que regulam os direitos de personalidade e de crédito) as
normas de Direito Processual Civil. As normas de direito privado não chegam para a
resolução dos litígios, pelo que as normas de Direito Processual Civil gravitam à volta
das normas de direito privado.

O Prof. Dr. Antunes Varela considera (e muito bem, segundo o Dr. Miguel Mesquita) que
não são as normas do Direito Processual Civil que dão a solução material do litígio. Na
opinião deste ilustre civilista, a solução jurídico-material do litígio é encontrada no
direito privado, apesar de ser através do Direito Processual Civil que se alcança a
sentença. Nesta medida, o Direito Processual Civil não dá a solução do litígio, mas o
processo é o caminho que se deve seguir para alcançar a sentença. O Direito Processual
Civil é meramente instrumental.

Nas palavras do Dr. Miguel Mesquita, o Direito Processual Civil está “ao serviço” do
direito privado. Nas palavras de um grande professor processualista espanhol, Oliver
Santos, “o Direito Processual Civil foi criado para servir”. Porém, o Dr. Miguel Mesquita
ressalva que o Direito Processual Civil não é menor do que o direito privado, por uma
simples razão: “se não fosse o Direito Processual Civil, o direito privado findava num dia”.

À PARTE: História contada pelo Professor: “Ainda há juízes em Berlim” – François Andrieux
em O Conto “O Moleiro de Sans-Souci”

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Direito Processual Civil I

No séc. XVIII, Frederico II reinava no reino da Prússia (que não existe hoje), cuja capital era
Berlim. Muito inspirado na cultura francesa, Frederico II quis ampliar um dos palácios que tinha.
Porém, para o Rei ampliar o seu palácio, teria de estender a obra para um terreno alheio,
propriedade de um pobre velho moleiro. O Rei Frederico II convidou o moleiro à corte com o
intuito de lhe comprar a terra, mas o moleiro respondeu-lhe que a terra não estava à venda.
Frederico II diz ao moleiro que tem o poder de forçar a venda e até de lhe tomar a terra sem
sequer a pagar. A resposta do pobre moleiro ao Rei, que ficou para a história, foi: “Ainda há
juízes em Berlim”.

Esta frase é, aos olhos do Dr. Miguel Mesquita, genial, por várias razões, designadamente: foi
espontânea, veio de um homem do povo e pôs o poderoso Rei Frederico II da Prússia na ordem,
uma vez que este já não expandiu o seu palácio. O velho moleiro tinha consciência de que o seu
direito de propriedade era tutelado pelo Código Civil da Prússia, que era um Estado de Direito.
Esta frase emblemática demonstra a força do Direito Processual Civil.

3) É um direito público (e não direito privado, apesar de estar ao serviço do último),


essencialmente por duas razões:
• Por um lado, porque estamos perante normas que regulamentam o polo da
jurisdição, que é exercida por juízes. Ora, o papel do juiz no processo é uma
atividade que se traduz em soberania, estando este numa posição supra
relativamente às partes (posição supra partis). Assim sendo, as normas do
Direito Processual Civil espelham precisamente a posição supra partis dos juízes
(v.g., art. 150º CPC).
• Por outro lado, as normas do CPC têm uma natureza imperativa ou absoluta (e
não dispositiva). Significa isto que, provando a natureza pública do processo,
estas normas são inafastáveis pelas partes (são normas inderrogáveis) – algo
que caracteriza o direito público e não o direito privado (v.g., art. 40º CPC –
obrigação das partes de constituírem um advogado).

2ª Lição – O Direito de Ação e o Interesse Processual

1. Breve evolução histórica do conceito de Direito de Ação

Um célebre Professor de Forense afirmou, no séc. XX, que “as teorias sobre o Direito de Ação,
como as noites da lenda, são 1001 e todas maravilhosas”. A imaginação dos juristas levou, de
facto, à construção de imensas teorias à volta do conceito de Direito de Ação.

O conceito de Direito de Ação sofreu uma evolução tremenda no último século. Por isso, é
importantíssimo analisar a evolução histórica deste conceito, sobretudo durante os séculos XIX
e XX. Ao longo do séc. XIX, o Direito de Ação era visto à luz de uma teoria que já vinha de séculos
anteriores e que vigorou durante muito tempo: a tese clássica. O Direito de Ação foi, durante
séculos, visto à luz de uma tese clássica/privatística.

Os autores da tese clássica defendiam que o Direito de Ação era o poder de agir perante os
tribunais, sendo um dos poderes que fazia parte do núcleo dos direitos subjetivos materiais.
O Direito de Ação estaria adormecido até que o direito subjetivo material fosse violado – se o
direito subjetivo material fosse violado ou posto em causa, então, poder-se-ia exercer o poder
que integra o direito subjetivo material latente: o Direito de Ação.

® Exemplo: Vitória é dona de uma casa (direito de propriedade), pelo que tem um direito
subjetivo sobre ela. No núcleo deste direito encontram-se uma série de poderes ativos:

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usar, emprestar, vender, doar, etc. De acordo com os autores clássicos, dentro dos
poderes sobre a coisa está o Direito de Ação – faz parte do direito de propriedade.

Þ Nota: O Direito de Ação inseria-se dentro do núcleo do direito subjetivo material (v.g.,
direito de propriedade), mas não era um poder ativo como os outros (v.g., usar,
emprestar, doar). Era um poder dormente/adormecido (ver supra).

Não se fazia, portanto, até ao séc. XIX e durante o séc. XIX, a distinção entre os direitos
subjetivos materiais e o Direito de Ação – eles eram, no fundo, a mesma coisa. O Direito de
Ação não tinha autonomia, sendo um poder ínsito nos direitos subjetivos materiais. Esta tese foi
defendida com diferentes roupagens por diversos juristas de renome, como Savigny (Professor
de Direito Romano Privado), Windscheid e Demolombe.

A tese clássica tinha como base o Direito Romano Clássico. Os juristas romanos não distinguiam
o ius da actio e foi precisamente esta confusão que esteve na base da tese clássica. Ora, a
confusão efetuada pelos juristas romanos só é ultrapassada no final do séc. XIX, com a refutação
da teórica clássica. Atualmente, verifica-se uma superação total desta teoria.

De facto, a teoria clássica foi ruindo aos poucos, começando a ser desvalorizada nas primeiras
décadas do séc. XX. Esta teoria deixa de ser defendida quando a realidade torna evidente a falta
de coerência da tese com a prática. Pode mesmo falar-se de uma clara superação da prática
sobre a teórica. O séc. XX traz um incremento do estudo do Direito Processual Civil, assistindo-
se, em vários polos da Europa, ao seu repensamento. Foi neste período fundamental, em que
apareceram juristas geniais no ramo da ciência processual civil (processualistas), que surgiu a
teoria moderna.

Um dos argumentos que serviam de escrutínio à tese clássica foi a base da teoria moderna:
muitas vezes, por detrás do exercício do Direito de Ação nos tribunais, não está nenhum ou
qualquer direito subjetivo material na retaguarda. Isto significa que, de facto, o Direito de Ação
transcende os direitos subjetivos materiais, separando-se deles. Está errado dizer que o Direito
de Ação está no núcleo dos direitos subjetivos materiais. Tanto assim é que é possível exercer o
Direito de Ação sem haver um direito subjetivo material.

O Direito de Ação não é um mero poder ínsito a todo e qualquer direito subjetivo material (v.g.,
direito de personalidade, direito de propriedade, direito à imagem) – ele está para além desse
direito subjetivo, sendo diferente dele. O Direito de Ação tem autonomia, pelo que pode ser
exercido sem existir um direito subjetivo material.

É fundamental perceber que É POSSÍVEL EXERCER O DIREITO DE AÇÃO SEM HAVER UM


DIREITO SUBJETIVO MATERIAL

Exemplo: Em Portugal, em 2013, no Tribunal da Comarca do Porto, uma senhora intentou uma
ação contra a Santa Casa da Misericórdia, pedindo uma indemnização com o fundamento de
que estava viciada em raspadinhas, culpando a Santa Casa pelo vício que tinha. A senhora
exerceu o Direito de Ação, mas não era titular de nenhum direito subjetivo material.

Exemplo 2: Uma jovem intentou uma ação contra a Universidade que frequentou, afirmando
que lá frequentou um curso e que estava há 10 anos sem conseguir encontrar emprego. Nessa
medida, queria uma indemnização da Universidade. Ela exerceu o Direito de Ação, mas não tem
qualquer direito subjetivo material de beneficiar de uma indemnização.

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Exemplo 3: Um indivíduo viu, num país europeu, a sua equipa de futebol favorita ser eliminada
da Liga dos Campeões. Num Tribunal de Comarca desse mesmo país europeu, o indivíduo pediu
uma indemnização por danos morais. Ele exerceu o Direito de Ação, mas não é titular de nenhum
direito subjetivo material.

Exemplo 4: Em 2019, num Tribunal de Comarca holandês, um indivíduo propôs uma ação
afirmando que a idade do seu bilhete de identidade (69) estava incorreta, e que a sua idade
biológica verdadeira era 49 – com fundamento no facto de que tinha nascido há 69 anos, mas
que se sentia com 49 anos. Este indivíduo exerceu o Direito de Ação sem ser titular de nenhum
direito subjetivo material de mudar a idade.

Exemplo 5: A 3 de março de 2021, em Milão, um jovem de 25 anos faleceu num acidente. Os


seus pais queriam ter acesso ao seu iPhone e, para tal, propuseram uma ação. Ganharam a ação,
tendo o tribunal entendido que, hoje, se pode falar na chamada “herança digital”. Os pais do
falecido exerceram o Direito de Ação sem serem titulares de um direito subjetivo material, mas
a jurisprudência adaptou-se à realidade prática e acabou por lhes conceder, efetivamente, o
direito subjetivo material que, no início do processo, eles nem sequer tinham.

Em suma, hoje, a engrenagem civil está construída de outra maneira: o particular tem o Direito
de Ação (que lhe é concedido pelo art. 20º da CRP) e pode exercê-lo, mas basta-lhe alegar que
tem o direito subjetivo material. No limite, ele pode efetivamente não ter esse direito.

“Nunca se pôs, nem poderia pôr, como condição para o exercício do Direito de Ação que o autor
seja realmente titular do direito subjetivo material de que se arroga. Seria, na verdade, absurdo
que se enunciasse esta regra: só pode demandar quem tem razão. Só no momento em que o
tribunal lavra a sentença é que vem a saber-se se a pretensão do autor é realmente fundada.” –
Prof. Dr. José Alberto dos Reis.

2. Caracteres do Direito de Ação

Podem enumerar-se, essencialmente, seis características do Direito de Ação:

1) O Direito de Ação consiste, antes de tudo, numa garantia constitucional. É um direito


fundamental, sendo, hoje, impossível definir o Direito de Ação sem ter em conta o art.
20º da CRP. Nos termos deste preceito, estamos perante uma garantia:
• Universal – porque todos os indivíduos são titulares deste direito, sendo que se
trata de um direito totalmente independente da condição social-económica.
Inclusive, os indivíduos e as empresas com rendimentos baixos podem exercer
este direito através da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais (Lei nº34/2004
de 29 de julho), que estabeleceu o chamado apoio judiciário que, por sua vez,
através dos serviços da Segurança Social, garante o acesso universal à justiça.
• Permanente – porque o Estado/o legislador não o pode retirar a nenhum
indivíduo.
• Irrenunciável – a doutrina e a jurisprudência são claras: são proibidos os
chamados pactos de renúncia ao Direito de Ação (pactos de non petendo), i.e.,
ninguém se pode comprometer a, no futuro, não exercer o seu Direito de Ação.
No entender do curso, a renúncia ao Direito de Ação é inválida e inadmissível
porque coloca em causa a CRP e normas legais dos Códigos de Direito Privado.

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2) O Direito de Ação é um direito de exercício não oficial ou não oficioso – nos termos do
art. 3º do CPC, o tribunal não pode resolver o litígio que a ação pressupõe sem que a
resolução lhe seja pedida por uma das partes (pelo autor que exerce o Direito de Ação).

3) O Direito de Ação é um direito subjetivo, mas não é um direito subjetivo de natureza


material, muito menos se confunde com os direitos subjetivos materiais. Logo, quando
um indivíduo exerce o Direito de Ação, tem o direito subjetivo processual de obter uma
decisão – o tribunal tem o dever de proferir uma decisão. Caso não o faça, resulta do
art. 152º/1 CPC que os juízes têm o dever de decidir o caso e do art. 3º/2 EMJ que os
magistrados não podem abster-se de decidir, pelo que qualquer indivíduo tem o poder
(conferido pelo direito subjetivo processual Direito de Ação) de exigir uma decisão/uma
sentença – caso contrário, o juiz pode ser acusado de crime de degradação da justiça.

4) O Direito de Ação é um direito autónomo relativamente aos direitos subjetivos


materiais, estando para além deles, uma vez que não pressupõe a efetiva existência de
um direito subjetivo material. Não obstante, isto nem sempre aconteceu: no séc. XIX, o
Direito de Ação não era autónomo devido à já referida inexistência de diferenciação
entre ius e actio que remontava ao Direito Romano.

5) O Direito de Ação é um direito de conteúdo abstrato, pois confere a todos os indivíduos


o direito a uma decisão justa e célere (em prazo razoável), mas jamais o direito a uma
decisão favorável. É claro que o autor do processo terá sempre a expectativa de ter uma
sentença favorável, mas não tem o direito a tal – apenas a expectativa. O autor conta a
sua versão, o réu defende-se e, à parte deles, o juiz decide.

Esta característica está relacionada com a Lei do Regime da Responsabilidade Civil


Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (Lei nº67/2007, de 31 de
dezembro). Para além de prever o direito a uma célere e justa decisão, esta Lei prevê,
nos arts. 12º e 13º, a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício
da função jurisdicional. Assim, o mau exercício da função jurisdicional (v.g., a decisão
não ser célere; haver um erro grosseiro na averiguação dos pressupostos de facto e de
direito) pode atribuir, a uma parte num processo, o direito a uma indemnização.

6) O Direito de Ação é um direito complexo, ultrapassando até o mero direito de obter


uma decisão (favorável ou não) do juiz. Ele é complexo porque encerra, dentro dele,
inúmeros podres, i.e., o Direito de Ação é o “Direito-mãe” do qual derivam outros
poderes (v.g., o direito a produzir prova). Aliás, o Direito de Ação é tão complexo que
parte da doutrina (na qual se insere o Prof. Dr. Mesquita) defende que o direito de
interpor recurso ao tribunal superior é uma emanação do Direito de Ação.

O Direito de Ação está ao serviço dos direitos subjetivos materiais, mas não se confunde com
eles. Em relação a este ponto, é importante recordar o Prof. Francesco Carnelutti – um dos
maiores processualistas italianos do séc. XX e um dos maiores professores de Roma. Este
professor está por detrás do Direito Processual Civil moderno, sendo que foi graças aos seus
trabalhos que, nos anos 50 (+/- 1956), se chegou à conclusão de que o Direito de Ação é um
direito próprio com características próprias. Chegou-se a esta conclusão através da já referida
distinção entre a actio e o ius (a ação e o direito).

A grande dificuldade passava por fazer a distinção entre o direito que se faz valer em juízo
(perante o tribunal) – o chamado direito subjetivo material – e o direito através do qual o
primeiro se faz valer – o Direito de Ação como direito subjetivo processual. Esta descoberta está

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Direito Processual Civil I

por detrás da autonomia científica do Direito Processual Civil. Se o Direito de Ação tem
autonomia própria, então, o Direito Processual Civil deve ser uma disciplina autónoma.

3. Interesse processual em agir

A doutrina e a jurisprudência mais atentas e mais avançadas (em que se inclui o Dr. Mesquita)
consideram que, não obstante a ser evidente que não é necessário existir um direito subjetivo
material para que se exerça o Direito de Ação, é indispensável que o autor, quando exerce o
Direito de Ação, seja manifestamente, à partida, titular de um requisito chamado interesse
processual/interesse em agir, para que o tribunal julgue o caso. Apesar de este ser um requisito
estritamente processual, hoje, em Portugal, os nossos tribunais estão-lhe muito atentos.

Não há, porém, nenhuma norma do nosso CPC que se refira a este requisito ou que o consagre
– ao contrário do que sucede no CPC italiano (art. 100º), onde o legislador consagrou a regra de
que, para colocar uma ação, é necessário interesse processual ou, aliás, do que sucede mesmo
em Portugal, no ramo do Direito Administrativo, onde o legislador tipificou, no art. 39º/3 CPTA,
a necessidade de existência de interesse em agir de forma expressa.

Þ Na opinião do Dr. Mesquita, o legislador português não sentiu segurança para avançar
com um artigo sobre o interesse processual em agir no CPC. O Dr. defende que este
requisito deveria estar consagrado, como já está noutros ordenamentos jurídicos.

Não existindo uma regra taxativa de pressupostos processuais, recorre-se aos trabalhos da
doutrina e da jurisprudência. Existe, contudo, uma norma no CPC que, no fundo, é uma
semente que nos permite falar neste interesse em agir: o art. 130º. Este artigo diz,
genericamente, que “não é lícito praticar atos inúteis”. Ora, talvez esteja aqui a semente para o
entendimento de que é exigível que quem exerce o Direito de Ação tenha interesse processual.

Este requisito estritamente processual deve aferir-se através de duas questões de natureza
processual. Para se poder concluir que o autor tem interesse em agir, exige-se uma resposta
positiva a ambas as questões.

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Direito Processual Civil I

O interesse em agir ou interesse processual, como pressuposto processual ligado ao exercício


do Direito de Ação, envolve, portanto, duas questões – que se colocam para concretizar a sua
existência:

1) O interesse no resultado ou no efeito – À luz da história contada pelo autor, o exercício


do Direito de Ação é objetivamente e, à partida, útil para si mesmo? Há manifesta
utilidade no recurso aos tribunais, perante a história que conta o autor?

É o juiz quem aferirá o interesse no resultado (ou no efeito). Se, para o juiz, é óbvio que o
exercício do Direito de Ação não é útil para o autor do processo, então, entende-se que o último
não tem interesse em agir. Ele tem o direito, claro, mas não tem interesse em exercer o Direito
de Ação – o autor não tem, portanto, interesse processual no exercício do Direito de Ação.

Nesta medida, é necessário que, de forma clara, o exercício do Direito de Ação seja objetivo para
o autor. Por outras palavras, é necessário que o autor prove que a ação é processualmente útil
(proveitosa) para si próprio.

® Exemplo: Em Portugal, um indivíduo foi a tribunal (exerceu o seu Direito de Ação) e disse:
“eu, autor desta ação, sou proprietário de um terreno e quero que o senhor juiz declare,
através de uma sentença, que eu sou o proprietário desse terreno”. Porém, não explica
ao tribunal o porquê de querer que se declare o seu direito de propriedade.
Aparentemente, ele não está em conflito com ninguém nem está em litígio com um
vizinho, pelo que o tribunal não consegue compreender a necessidade da ação. Ele pode
ser o proprietário, claro, mas não tem interesse em exercer o Direito de Ação – é
necessário alegar factos que traduzem a utilidade no recurso ao Direito de Ação.

2) O interesse no meio – O exercício do Direito de Ação é, no caso, um meio adequado e


apropriado? É a via própria para fazer valer o direito subjetivo e resolver o litígio?

O juiz terá de aferir o interesse no meio, sendo que o meio é a ação, objetivamente. Se a
resposta for positiva, há interesse em agir; se a resposta for negativa, não há interesse em agir
e o autor da ação deveria ter utilizado outro meio (que não a ação).

® Exemplo: Um empregador tem vários trabalhadores na sua empresa e um deles pratica


atos de forma culposa, que justificam o seu despedimento – trabalha num supermercado
e furta objetos. O empregador, que já não tolera a situação, pretende despedir o
trabalhador. Assim, o empregador propõe uma ação no tribunal e conta tudo o que se
passou, pedindo ao tribunal que despeça o trabalhador por sentença. Porém, o
empregador tem o direito potestativo de despedir o trabalhador. O meio não é
adequado para o despedir. O empregador exerceu o Direito de Ação, claro, mas o juiz
não julga o caso não porque o trabalhador não possa ser despedido, mas porque não há
interesse em agir. O empregador, antes de ir para tribunal, tinha outros meios,
justamente porque tem o direito potestativo de despedir o trabalhador.

Para o Dr. Antunes Varela, “Há casos em que o direito potestativo subjacente à ação constitutiva
(como na constituição da servidão legal de passagem ou de aqueduto) não tem necessariamente
de ser exercido por ação judicial, podendo sê-lo também por via extrajudicial. Nestes casos, não
se torna necessário, para haver interesse processual, que o autor alegue, na petição inicial, ter
tentado, sem êxito, o acordo extrajudicial da contraparte: são variadas e ponderosas as razões
capazes de justificar o recurso direto à via judiciária e não parece razoável exigir do autor a
explicação determinante da sua opção.”

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Direito Processual Civil I

4. Princípio da boa-fé processual

O princípio da boa-fé processual é, hoje, um princípio fundamental do Processo Civil. No séc.


XIX, ele não tinha importância alguma, mas, a partir do séc. XX, este princípio passa a ser
essencial, estando expressamente consagrado no art. 8º CPC.

A boa-fé significa ter uma conduta honesta, correta e leal. O autor tem liberdade de alegar
factos, tal como, por força do princípio do dispositivo, o réu também tem a oportunidade de
contar a sua versão da história. Porém, hoje, o princípio do dispositivo é limitado pelo princípio
da boa-fé: não vale tudo para ganhar um caso – é preciso respeitar determinadas regras, que
resultam justamente do princípio da boa-fé.

É importante atentar no art. 542º CPC (um artigo que concretiza o princípio consagrado no art.
8º CPC), que consagra a concretização dos deveres que derivam para o autor e para o réu. Há
certas coisas que as partes não podem fazer num processo, designadamente:
1) O réu não pode apresentar defesas que manifestamente não tenham fundamento;
2) Alegar factos falsos ou omitir factos;
3) Uso reprovável dos meios processuais (para fim ilegal ou para atrasar o processo).

® Exemplo: A intenta uma ação contra B, alegando que B ocupava, ilegitimamente, um


terreno que lhe pertencia. Porém, no decurso da ação, ficou provado que, entre o autor
e o réu, havia um acordo escrito que estabelecia que B podia ocupar legitimamente
aquele terreno. Assim, o autor estava a apresentar uma ação sem fundamento – ele
litigiou de má-fé.

O que acontece ao autor ou ao réu quando litigiam de má-fé e violam a boa-fé processual? À
luz dos arts. 524º e 8º CPC, o tribunal vai atribuir uma multa à parte que litigiou. Além disso, a
parte contrária, que estava de boa-fé e que teve de litigar alguém que estava de má-fé, pode
(não é obrigatório) pedir uma indemnização.

Quanto às custas processuais, o art. 27º/3 das Custas Processuais estabelece que, havendo
litigância de má-fé, pode ser fixada uma quantia entre 2 UC até 100 UC. A multa é determinada
caso a caso. Ademais, o regulamento das Custas Processuais estabelece, ainda, que a multa deve
ter em conta o ato violador da boa-fé e a situação económica do agente.

O que acontece se a litigância de má-fé foi conseguida e levada a cabo apenas e unicamente
pelo advogado? Ora, o art. 545º CPC prevê a responsabilidade do advogado pela litigância de
má-fé. Nos termos deste preceito, quando o juiz se apercebe de que o advogado é responsável
pela litigância de má-fé, apenas comunica o comportamento do mesmo à Ordem dos Advogados
e é esta que vai tomar as devidas providências e, eventualmente, aplicar sanções.

3ª Lição – Espécies de Ações

1. Tutela declarativa, tutela executiva e tutela cautelar

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Direito Processual Civil I

Existem três tipos de tutela processual (princípio da triplicidade da tutela processual cível) –
que se encontram previstas de forma abstrata e genérica no art. 2º/2 CPC, mas que são, depois,
reguladas em pormenor pelo mesmo Código –, nomeadamente:

1) A tutela declarativa alcança-se nos tribunais, mediante o exercício do Direito de Ação.


Com a tutela declarativa, a ação chama-se declarativa e o processo chama-se processo
declarativo. Quando o autor intenta/propõe/instaura esta ação declarativa, ele
pretende obter a tutela declarativa, que consiste em obter uma sentença (que é o
resultado de um processo mais ou menos complexo), que tutela os seus direitos. Há três
espécies de sentenças, i.e., as ações declarativas podem ser:
• De simples apreciação;
• De condenação;
• Constitutivas.

O símbolo que o Dr. Mesquita associa à tutela declarativa é a balança porque, de facto,
na tutela declarativa, o juiz vai ter de pesar, nos dois pratos da balança, argumentos de
facto do autor e réu (as provas que ambos apresentam) para, no fim, averiguar quem
tem razão – o prato da razão tende para um certo lado e a sentença refletirá esse
balancear da balança.

2) A tutela executiva é obtida através das ações executivas, que pressupõem o título
executivo (art. 703º CPC – lista taxativa) do autor da ação (aqui, o credor não precisa
comprovar o seu direito a uma prestação – ele já está certificado pelo título executivo).
A tutela executiva alcança-se através do requerimento do credor das providências
adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida (art. 10º/4 CPC).

O que o autor da ação executiva pretende é, portanto, que o Estado realize, através da
força coercitiva, o seu direito a uma prestação. O fim da execução, para o efeito do
processo aplicável, pode consistir em uma de três espécies. O CPC prevê, portanto, nos
termos do art. 10º/6, uma triplicidade na tutela executiva:
• Ação executiva para pagamento de quantia certa (talvez a mais importante) –
arts. 724º a 758º CPC;
• Ação executiva para entrega da coisa certa – arts. 759º a 867º CPC;
• Ação executiva para prestação de facto, quer negativo quer positivo – arts.
868º e ss. CPC.

O símbolo que o Dr. Mesquita associa à tutela executiva é a espada, pois a justiça tem
uma espada na mão e é através da ação executiva que o Estado vai usar a espada para
conseguir a realização coerciva (forçada) do direito de alguém.

Þ Exemplo: Uma execução de despejo é uma execução especial para entrega de


uma coisa – há um título executivo que obriga o inquilino a deixar a casa. Se a
pessoa não deixa a casa, vai lá o agente de execução acompanhado da PSP ou
da GNR e o homem vai sair daquela casa à força – isto é a justiça em todo o seu
esplendor.

3) A tutela cautelar, que vai ser objeto de forte análise nesta disciplina, é absolutamente
crucial no nosso ordenamento jurídico. Esta tutela consegue-se através da proposição
ou instauração de procedimentos cautelares (não se chamam ações cautelares,
precisamente como forma de os distinguir das ações), regulados no art. 362º e ss CPC.
Ao instaurar este procedimento, o autor pretende obter um despacho que lhe conceda

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Direito Processual Civil I

uma providência cautelar/um despacho (nota: não se interpõe uma providência


cautelar), de maneira célere e provisória.

O símbolo que o Dr. Mesquita associa à tutela cautelar é o cronómetro, porque a nossa
justiça, quando tem a balança na mão para decidir (tutela executiva), é lenta e morosa,
ao passo que, na tutela cautelar, é ultrarrápida. A tutela cautelar é prioritária e exige
uma grande rapidez por parte do juiz, associando, por isso, o Dr. Mesquita, esta tutela
a uma outra expressão: “primeiros socorros”.

2. Tutela declarativa

A tutela declarativa é obtida através da proposição das chamadas ações declarativas, que dão
origem a processos declarativos. O símbolo desta tutela é a balança justamente porque o seu
objetivo é que o juiz profira uma sentença. Quem instaura/intenta/propõe (nunca interpõe)
uma ação declarativa quer obter uma decisão por parte do juiz.

O juiz vai dizer, em primeira mão, quais os factos daquela história que considera provados e os
que considera não provados. Ele faz, portanto, uma espécie de trabalho de investigação ou
verificação, com base nas provas levadas pelas partes e em provas que ele próprio pode
procurar (testemunhas, documentos, fotografias, relatórios de peritos, etc).

Ora, o juiz coloca o que está provado e o que não está provado num dos pratos da balança. No
outro prato da balança, ele vai colocar as normas de direito substantivo ou material que regulam
a matéria em questão no caso concreto. Com base nos dois pratos da balança, o juiz vai lavrar
a sentença, julgando a ação procedente (i.e., dando razão ao autor) ou não.

® Nota: É importante distinguir claramente a ação declarativa da ação executiva.

A sentença é o objetivo da ação declarativa. A ação declarativa não visa realizar algo através
da força (como a ação executiva). Importa destacar, neste âmbito, o art. 10º CPC – é um artigo
central, que trata dos remédios para os nossos direitos subjetivos e fala-nos das ações, quer
declarativas quer executivas (ainda que, no âmbito desta disciplina, estudemos
aprofundadamente apenas as ações declarativas), como meio de tutela dos nossos direitos.

2.1. Tipos de ações declarativas – art. 10º/3 CPC

O art. 552º/1/e) CPC estabelece que quem propõe uma ação declarativa tem de fazer uma
petição inicial. Isto significa que, à luz da nossa lei, podemos fazer pedidos de mera ou simples
apreciação, de condenação ou de constituição/destruição/modificação de uma relação jurídica.

2.1.1. Ação declarativa de mera ou simples apreciação

As ações declarativas de simples apreciação, previstas no art. 10º/3/a) CPC, nem sempre
existiram no ordenamento processual, sendo que foram consagradas pela primeira vez, entre
nós, por obra do ilustre Professor Dr. José Alberto dos Reis (Professor de Coimbra), no célebre
Código do Processo Civil de 1939 – o primeiro grande Código do Processo Civil Português. Estas
ações, de mera administração puras, não são ação que invadam os nossos tribunais, mas vão
sendo propostas.

Marta Lima e Silva 21


Direito Processual Civil I

Estas ações existem de uma dupla forma. Perante uma situação tornada duvidosa ou posta em
crise, resultante de um facto ou ocorrência externa, que impede o sujeito de beneficiar do pleno
efeito útil normalmente proporcionado pela relação jurídica ou que lhe causa um dano
apreciável, o autor pretende obter, do tribunal, uma simples ou mera declaração da:

1) Existência de um certo direito ou de um facto juridicamente relevante – casos em que


estaremos perante uma declaração de simples apreciação positiva, tendo o autor
instaurado uma ação de mera apreciação positiva.

Exemplo: A propõe uma ação, faz a petição inicial e diz ao juiz “eu sou proprietário de
uma terra nos arredores de Viseu e peço que declare uma sentença em como eu sou
efetivamente o proprietário dessa terra porque eu já a adquiri por usucapião”.

Caso verídico: Na Comarca de Lisboa, um indivíduo que vivia num condomínio propôs
uma ação para que o tribunal declarasse, em sentença, o direito de transformar uma
varanda numa marquise.

2) Inexistência de um certo direito ou de um facto juridicamente relevante – casos em


que estaremos perante uma declaração de simples apreciação negativa, tendo o autor
instaurado uma ação de mera apreciação negativa.

Exemplo: B espalha pela cidade que é credor de C, dizendo que C lhe deve uma larga
quantia de dinheiro. C propõe uma ação de mera apreciação negativa, pedindo ao juiz
que declare que B não tem qualquer direito de crédito sobre si e que, portanto, não lhe
deve dinheiro algum, alegando que tal rumor está a afetar a sua honra.

Nestas ações, em que o autor visa obter a declaração da existência ou inexistência de um direito
ou de um facto, tem de estar necessariamente, por detrás delas, um interesse processual. O
autor tem sempre de ter interesse em agir quando propõe uma ação, i.e., a ação tem de ter
utilidade para o seu autor. Além disto, é evidente que as ações declarativas de simples
apreciação não são o remédio para pedir ao juiz a declaração de existência de factos que são
neutrais para o direito – o facto tem de ser relevante para o direito.

Quanto à questão do ónus da prova:


1) Na ação de mera apreciação positiva, é o autor que tem de provar a existência do
direito ou do facto juridicamente relevante – i.e., o ónus da prova recai sobre o autor;
2) Na ação de mera apreciação negativa, o legislador faz recair sobre o réu o ónus da prova
(art. 343º/1 CC), sendo o último que tem efetivamente de provar o direito – há uma
inversão do ónus da prova.

2.1.2. Ação declarativa condenatória

Na prática judiciária, as ações declarativas de condenação são aquelas que aparecem em maior
número nos nossos tribunais – são as “ações-rainha”. A lei explica, de forma sintética, para que
servem estas ações. O que o autor pretende é mais do que uma simples declaração do seu
direito – vai para além disso: o autor quer que o tribunal faça uma intimação ao réu.

Esta serve para que o réu, ao abrigo dessa ordem, realize (coisa que não fez até à data) uma
prestação, que pode ser positiva ou negativa. Estas ações servem, portanto, para fazer valer o
alegado direito a uma prestação. A sentença vai conter uma ordem judicial que vai no sentido
de o réu ser intimado, em benefício do autor.

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Direito Processual Civil I

® Exemplo: A vai a tribunal e pede ao juiz que condene B, seu vizinho, a abster-se de fazer
ruídos a partir das 22h da noite, alegando que não consegue dormir.

Em suma, nos termos do art. 10º/2 e 3 CPC, as ações declarativas condenatórias têm por fim
exigir a prestação de uma coisa ou de um facto.

Qual é a importância prática de uma sentença de condenação? Há duas grandes vantagens


provenientes de uma sentença declarativa de condenação:
1) Num grande número de situações, o réu (que, até aí, foi rebelde), uma vez condenado
pelo tribunal a realizar a prestação (positiva ou negativa) através de uma ordem judicial
e com receio das consequências do não cumprimento daquela sentença, decide adotar
o comportamento por ela prescrito. A sentença serve de estímulo para a adoção do
comportamento devido por parte do réu.
2) Se, porventura, o réu não cumprir aquela sentença de condenação, essa mesma
sentença constitui, nos termos do art. 703º/1/a) CPC, um título executivo, pelo que o
autor pode instaurar, posteriormente e autonomamente, uma ação executiva, pedindo
ao tribunal que recorra à força e à coerção para a realização dos seus direitos.

Na conceção tradicional, a ação condenatória serve para reagir contra a violação efetiva de um
direito. Todavia, a verdade é que a ação de condenação também serve para se afastar,
precisamente através da condenação, um comportamento futuro suscetível/previsível de
ofender/afetar um direito (art. 10º/3/b) CPC – “prevendo”). Neste caso, a sentença traduzir-se-
á na condenação do réu a abster-se de um determinado comportamento.

Ora, a esta ação de condenação chama-se ação inibitória – serve para inibir comportamentos
contrários ao direito que ainda não ocorreram, mas que é previsível que venham a ocorrer.
Nesta medida, o autor faz um pedido inibitório de condenação, pressupondo que tenha
interesse em agir/interesse processual (i.e., tem de já haver comportamentos por parte do réu
que indiciam a violação futura do direito do autor do pedido inibitório).

2.1.3. Ação declarativa constitutiva

As ações declarativas constitutivas, que têm uma natureza bem diversa das anteriores, são
muito importantes, sendo que aparecem todos os dias nos nossos tribunais. Numa ação
constitutiva, o autor pede ao juiz que, através de sentença, decrete a constituição, a extinção
ou a modificação de uma relação jurídica material.

Nesta medida, nos termos do art. 10º/2 e 3/c) CPC, as ações constitutivas têm por fim autorizar
uma mudança na ordem jurídica existente. Através delas, o autor pretende obter, com a
colaboração e intervenção da autoridade judicial, um novo efeito jurídico material que altere
ou modifique a esfera jurídica do demandado, independentemente da vontade deste. Este
novo efeito jurídico material tanto pode consistir na constituição de uma nova relação jurídica
como na modificação ou extinção de uma relação jurídica já existente.

Na prática, esta ação tem tanta importância porque o juiz cria direitos. O autor pede ao juiz que
garanta um efeito novo, uma vez que o último vai decretar a constituição (nascimento), a
extinção (morte) ou a modificação de uma relação jurídica.

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Direito Processual Civil I

É através da ação declarativa constitutiva que se exercem os direitos potestativos perante a


justiça. É este o tipo de ações especialmente ajustado à exercitação dos direitos potestativos –
i.e., quando, para a produção de um efeito jurídico, é necessário recorrer a uma decisão judicial.

Þ Um direito potestativo é um direito subjetivo/material, regulado pelo Direito Privado,


que faz nascer, se se preencherem certos requisitos, um efeito que inelutavelmente se
impõe a outra pessoa.

Uma vez julgada a ação procedente, o tribunal decreta o efeito (constitutivo, extintivo ou
modificativo), que se impõe por si mesmo, sem necessitar de ser executado – impõe-se pelas
meras palavras do juiz, que constam da sentença. Assim, quando o autor vence uma ação desta
natureza, da sentença do juiz brota um efeito novo independentemente da colaboração do réu,
que não é necessária para que aquele efeito surja na ordem jurídica. O efeito surge e o réu tem
de agir na linha do mesmo, não podendo lutar contra um efeito que foi declarado.

1) Exemplos de ações através das quais o autor faz valer um direito potestativo
constitutivo:
• Uma ação declarativa constitutiva destinada a constituir uma servidão de
passagem;
• Uma ação para constituição de um vínculo de filiação, i.e., uma ação de
investigação de paternidade;
• Uma ação de execução específica de um contrato-promessa.
2) Exemplos de ações através das quais o autor faz valer um direito potestativo extintivo:
• Uma ação de divórcio;
• Uma ação de despejo;
• Uma ação de impugnação de perfilhação ou paternidade;
• Uma ação de anulação de um negócio jurídico (v.g., um contrato).
3) Exemplos de ações através das quais o autor faz valer um direito potestativo
modificativo:
• Uma ação através da qual o titular de um direito de servidão de passagem
pretende alterar o local da servidão de passagem (art. 1568º CC).

Nota curiosa: No Brasil, quando esta ação visa extinguir uma relação jurídica já existente, ela
chama-se ação desconstitutiva.

2.1.4. Ação declarativa mista

Não raras vezes a ação declarativa configura-se, em rigor, como uma ação mista e não pura –
i.e., não como uma ação puramente de condenação, constituição ou apreciação. De facto, nos
termos do art. 555º, numa ação declarativa, o autor pode fazer vários pedidos, o que vai fazer
com que a ação perca a natureza pura prevista no art. 10º.

Exemplos:
® Numa ação de despejo, pede-se a resolução do contrato de arrendamento, mas pode
pedir-se também a condenação do inquilino no pagamento de indemnização por este
ter, p.e., deteriorado o apartamento – ação declarativa mista: condenatória e
constitutiva extintiva/desconstitutiva.
® Numa ação de divórcio, pode pedir-se simultaneamente a condenação ao pagamento
de uma prestação de alimentos – ação declarativa mista: condenatória e constitutiva
extintiva/desconstitutiva.

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4ª Lição – Os procedimentos cautelares

As questões mais importantes relativamente a esta matéria são:


® O que é um procedimento cautelar?
® Quais são os requisitos genericamente exigíveis para o decretamento da tutela cautelar?
® Que espécies de procedimentos cautelares estão previstos no nosso CPC de 2013?

1. O que se pretende com a tutela cautelar?

Caso verídico: Em Itália, em 2004, um jornal famoso italiano publicava, todos os domingos,
cartas íntimas que um célebre autor teria escrito – Italo Calvino, já falecido. A sua viúva, não
tendo dado autorização para tais publicações e nem sequer sabendo qual a fonte das cartas,
quis reagir judicialmente, uma vez que o jornal se recusava a abdicar da publicação das
respetivas cartas.

Em causa estará uma ação declarativa de condenação, em que a viúva invocará o seu direito,
pedindo a condenação do jornal ao pagamento de uma indemnização (espécie de sanção
pecuniária compulsória, pois sempre que publicasse uma carta, pagaria uma multa). Acontece
que, quando a sentença proviesse, já todas as cartas teriam sido publicadas, pois a tutela
declarativa implica alguma morosidade. Assim, o efeito útil da sentença que poderia condenar o
jornal a não publicar as cartas seria um efeito útil quase nulo.

Nesta medida, há que compreender que a espera pela sentença faz com que a última seja quase
inútil (se não se pudesse recorrer a outros meios) – uma sentença sem preço real. Seria, nas
palavras de Antunes Varela, uma “sentença declarativa meramente platónica”. Assim, foi
necessária a previsão de outros meios, prevendo-se uma tutela urgente e rápida.

O que a viúva de Italo Calvino fez foi recorrer a uma tutela cautelar, i.e., foi pedir que o tribunal
decretasse a imediata paragem de publicação das cartas enquanto não se averiguasse melhor o
que estava por detrás da história. Assim, foi através da tutela cautelar que ela conseguiu a
travagem das publicações das cartas.

É no art. 2º/2 in fine CPC que se preveem estes meios. Neste preceito, o nosso legislador refere-
se genericamente aos procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação. Depois,
esta matéria está regulada com muito pormenor e de forma muito cuidada (tendo já sofrido,
porém, várias alterações, mas todas num bom sentido) do art. 362º ao art. 409º CPC.

Þ O tempo, muitas vezes, é inimigo do Direito, sendo que, por vezes, quando a situação é
endireitada já é tarde demais. Os procedimentos tutelares visam combater a
morosidade dos processos.

2. Em que consiste um procedimento cautelar?

Os procedimentos cautelares são, de acordo com a definição do Dr. Mesquita, instrumentos ou


meios processuais (1) urgentes, (2) em princípio dependentes e (3) não influentes, que visam
alcançar, através de uma providência provisória (também em princípio):
® A conservação de uma realidade (o requerente visa, tão-somente, assegurar o efeito útil
da ação principal) – providência conservatória;
® A antecipação de um direito – providência antecipatória.

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Direito Processual Civil I

Þ São procedimentos que, desde a Revisão Constitucional de 1997, encontram guarida


constitucional no nº5 do art. 20º da CRP.

Estes meios processuais, de caráter expedito, têm como objetivo prevenir a inutilidade da
sentença: quer por infrutuosidade (i.e., perda definitiva do beneficiário almejado no processo
principal), quer por retardamento da respetiva execução. Assim, este procedimento
consubstancia dois vetores em permanente tensão: o do interesse da ponderação e o do
interesse da celeridade. Face ao seu caráter urgente (correndo os respetivos prazos, inclusive,
durante as férias judiciais – art. 138º/1 CPC), os procedimentos cautelares possuem uma
estrutura agilizada e simplificada.

Notas importantes que ressalvam deste conceito, segundo o Dr. Mesquita:

1) Nota da urgência

A nota/força da urgência encontra-se consagrada no art. 363º CPC. Em termos gerais, os


procedimentos cautelares são meios rápidos, ao contrário das ações, que são meios ou remédios
lentos, que atuam, por isso mesmo, de forma mais lenta. O procedimento cautelar é um meio
que deve atuar com rapidez e imensa celeridade – se assim não for, não tem sentido.

® Nota: O Dr. Mesquita considera que, em Portugal, os processos cautelares são, de facto
(e bem), rápidos.

O objetivo passa pelo decretamento, por parte do tribunal, de determinadas providências


judiciárias cautelares destinadas à regulação provisória de uma determinada situação de facto,
até que se conheça o desfecho de uma dada ação declarativa ou executiva já instaurada ou a
instaurar (ações essas que são mais lentas).

Quanto ao art. 363º CPC:


® Nº1 – o juiz deve dar prioridade ao julgamento dos procedimentos cautelares, i.e., se
o juiz estiver com ações nas mãos, vai ter de pôr de lado aquelas ações e trabalhar com
a máxima urgência nos processos cautelares. O Dr. Mesquita crê que, nos tribunais,
deveria haver juízes que apenas tratassem de procedimentos cautelares, considerando
que deveria existir, portanto, um serviço de urgência.
® Nº2 – a urgência é tão grande que o prazo máximo para ser decretada a providência é
de apenas 2 meses. Aliás, em certos procedimentos em que o réu não é citado, o tribunal
tem de decidir em apenas 15 dias (estudaremos estes procedimentos mais tarde).

2) Nota da dependência

A nota de dependência encontra-se consagrada no art. 364º CPC. Dada a sua natureza
instrumental relativamente ao processo ou ação principal, os procedimentos cautelares não se
propõem a realizar direta e principalmente o seu objetivo, evitando o periculum in mora.

Em princípio, na esmagadora maioria dos casos, o procedimento cautelar depende de uma


ação principal – ele gravita em volta de uma ação declarativa principal, sendo um satélite que
visa dar vida ao direito, não o deixando morrer. De facto, o processo cautelar depende da
proposição da ação principal. É verdade que se pode propor uma providência antes de se propor
a ação principal, mas também se podem prever casos em que a providência é posterior,
designadamente, um autor pode propor uma ação declarativa, mas, apercebendo-se de que o
seu direito está em perigo, lançar mão de um procedimento cautelar.

Marta Lima e Silva 26


Direito Processual Civil I

Þ Não obstante, chama-se procedimento cautelar e não ação por, em regra, carecer de
autonomia e depender de uma ação já pendente ou que deve ser seguidamente
proposta pelo requerente.

Porque se diz, então, “em princípio”? Porque há um regime de inversão do contencioso (art.
369º CPC – depois de 2003) que permite que o autor requeira que a providência cautelar seja
decretada e se transforme em medida definitiva sem que seja necessário propor uma ação
principal ou definitiva – há uma transformação de uma medida provisória em definitiva, sendo
que a primeira passa a valer por si só. Note-se, todavia, que, em princípio não é assim – em regra,
o procedimento cautelar está dependente de uma ação principal.

3) Nota da não influência

A nota da não influência resulta do art. 364º/4 CPC, significando que o facto de se obter êxito
na tutela cautelar não significa necessariamente que se vai ganhar o processo principal – não
há, portanto, influência de uma coisa na outra. Pode, inclusive, acontecer o inverso – i.e., não
se conseguir a providência cautelar, mas ganhar-se o processo principal. Não há mesmo
quaisquer vasos comunicantes. O resultado da providência cautelar não tem influência decisiva
na sentença final.

Normalmente, segundo a experiência prática do Dr. Mesquita, na grande maioria dos casos,
quando um juiz decreta ao abrigo de um procedimento cautelar uma providência cautelar, é
porque, no fim, havia de facto razões para a decretar. Nessa medida, normalmente, a pessoa
que intentou o procedimento cautelar acaba por ganhar a ação principal. Inversamente,
normalmente, quando o juiz não decreta a providência cautelar, a pessoa que viu a providência
ser negada não vai ganhar a ação principal.

Porém, isto não tem necessariamente de ser assim, uma vez que as providências cautelares são
decretadas de forma urgente. Por isso mesmo, muitas vezes, o juiz apercebe-se
posteriormente, com o largo tempo que tem para avaliar o caso, que o autor da providência
cautelar concedida vai perder a ação principal ou, inversamente, que o autor da providência
cautelar negada vai ganhar a ação principal.

Exemplo verídico: Há uns tempos, Filipe La Feria instaurou um procedimento cautelar contra a
RTP, que teria anunciado, nos seus intervalos publicitários, que iria avançar com um programa
televisivo chamado “Música no Coração”. La Feria considerava que a RTP não podia fazer uso
daquele título que julgava só ele próprio, exclusivamente, poder utilizar, sendo que venceu, de
facto, o procedimento cautelar. Todavia, La Feria perdeu, posteriormente, a ação principal, pois
o tribunal percebeu que o primeiro não tinha um direito exclusivo sobre o título, podendo a RTP
usá-lo se assim o entendesse.

Þ Nota: Vai sair um caso prático no exame sobre procedimentos cautelares (DE CERTEZA)
– atenção: definir o procedimento cautelar no início da resposta ao caso, mencionando
especialmente as três notas da definição do Dr. Mesquita e os requisitos gerais da tutela
cautelar (próximo ponto).

3. Requisitos gerais da tutela cautelar

Marta Lima e Silva 27


Direito Processual Civil I

Quais são os requisitos gerais que têm de estar verificados para que se alcance esta tutela
urgente? De acordo com o Dr. Miguel Mesquita, existem três requisitos para que possa ser
decretada uma providência cautelar:

1) Fumus boni iuris – probabilidade séria da existência de um direito do requerente que


tenha por fundamento o direito tutelado. Este requisito resulta de normas do domínio
do procedimento cautelar comum, valendo também para os procedimentos especiais
(art. 365º/1/1ª parte e art. 368º/1/1ª parte). Traduzida literalmente, esta expressão
significa “o fumo do bom direito” – o que interessa é que o juiz vislumbre o fumo, não
tendo de ir verificar se há mesmo fogo. Há que, portanto, perceber se há “bom direito”.

Não é assim nas ações principais. Aqui, o requerente faz a prova sumária do seu direito
e não a prova cabal que fará na ação principal, bastando isso para que o juiz confie que
o direito existe efetivamente – assim, basta que o direito seja verosímil para o juiz,
sendo suficiente que o requerente prove apenas a provável existência do seu direito.
Ora, parece de facto um pouco estranho que o juiz decida sem averiguar efetivamente
a existência do direito. Todavia, se se exigisse, no domínio da tutela cautelar, a prova
cabal dos direitos, então, a própria tutela cautelar perder-se-ia numa natural ação
principal. Como tal, compreende-se que o regime seja diferente, até porque, se assim
não fosse, o procedimento cautelar perderia a sua celeridade. Pode dizer-se que o juiz
utiliza, aqui, o seu “sexto sentido” através do “fumo”: “onde há fumo, há fogo”.

2) Periculum in mora – perigo da demora (art. 365º/1 in fine e art. 368º/1 in fine). Este
requisito significa que o juiz só decreta a providência cautelar quando verifica que a
situação do requerente está em perigo, i.e., há o perigo de que a sentença do processo
principal seja tardia e o direito em causa morra ou fique maltratado. O perigo da demora
(morosidade) é o que leva os juízes a decretarem, todos os dias, providências
cautelares: o juiz baseia-se na aparência do direito, aplicando-se, aqui, os “primeiros
socorros” aos nossos direitos.

3) A providência requerida tem de respeitar o princípio da proporcionalidade – é preciso


efetuar, nos termos do art. 368º/2, uma ponderação relativa dos interesses em jogo, de
forma casuística. O juiz deve decretar a medida cautelar com a consciência de que a
mesma é proporcional. Não deve a providência cautelar causar um dano maior do que
o prejuízo que ela visa evitar (“uma providência cautelar traduz-se num pequeno mal
que é decretado para proteger um grande bem”).

4. Espécies de procedimentos cautelares

No sistema jurídico português, a lei consagra procedimentos cautelares nominados ou


especificados, que também se podem dizer especiais, pois o juiz atribui-lhes um nome próprio
e regulamenta-os per si – estes procedimentos estão previstos no art. 377º e ss. Para além dos
que estão especificados, o ordenamento processual português consagra ainda um
procedimento cautelar comum ou geral, regulado do art. 362º ao art. 376º.

Num caso em que seja necessário recorrer a esta matéria:


® Em primeiro lugar, há que averiguar se, no caso, faz sentido o recurso à tutela cautelar,
i.e., se há uma situação de urgência em que um direito corre o risco quase certo de
“morrer”;
® Em segundo lugar, há que averiguar qual o método de aplicação: se se tratar de um dos
sete procedimentos especiais, escolhe-se aquele que seja adequado para o caso; se não

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Direito Processual Civil I

houver nenhum procedimento cautelar especificado que se mostre adequado ao caso,


então, recorre-se ao procedimento cautelar comum, pedindo-se a providência mais
adequada para a tutela provisória do direito que está em risco.

A nossa lei começa por regular o procedimento cautelar comum, mas só lançamos mão deste
se não pudermos aplicar nenhum dos procedimentos especiais ao caso.

4.1. Características do procedimento cautelar comum

O procedimento cautelar tem algumas características próprias que o definem:

1) É um meio residual (art. 362º/3), uma vez que é utilizado nos casos em que não é
possível recorrer a um dos sete procedimentos especificados na lei, i.e., quando não há
um procedimento especificado que se adeque ao caso, recorre-se ao procedimento
cautelar para proteger o direito que está em risco.

2) É um meio aberto (art. 362º/1), pois pode pedir-se qualquer providência (“o limite é a
imaginação”) que se acha ser mais adequada ao caso, dependendo do próprio caso.
Aliás, o procedimento cautelar comum é tão aberto que resulta do regime especial do
art. 376º/3 que o juiz pode decretar outra medida para o caso diferente daquela que foi
pedida para o requerente no domínio de um procedimento cautelar comum, i.e., o juiz
não está vinculado nem limitado, nesta matéria, ao princípio do pedido, podendo
considerar que há uma medida cautelar mais adequada ao caso.

Exemplo: Foi publicado um livro que atentava contra os direitos de personalidade de


várias pessoas, pondo a descoberto os seus segredos íntimos. Avançou-se com um
procedimento cautelar comum, pedido à editora da obra a destruição daqueles livros. O
juiz, em vez de decretar a medida drástica da destruição dos livros, decretou que estes
fossem apreendidos e fechados num armazém – o juiz, ao aperceber-se que a destruição
dos livros seria uma medida drástica que não ajudaria ao processo principal, determinou
antes que se fechassem os livros num armazém enquanto não pudesse determinar o
caso a fundo, justamente para, depois, averiguar melhor o caso (no processo principal).

Marta Lima e Silva 29


Direito Processual Civil I

3) É um meio integrador – nos termos do art. 376º/1, as normas que regulamentam o


procedimento cautelar comum são muito importantes, uma vez que não regulamentam
apenas este procedimento, mas também as lacunas que podem surgir na aplicação de
um dos sete procedimentos cautelares especiais. Assim, o procedimento cautelar
comum é integrador porque integra os problemas que não estão regulados nos
procedimentos cautelares específicos (qualquer um destes sete é igualmente
importante na prática), suprimindo as lacunas que possam decorrer da sua aplicação.

4.2. Procedimentos cautelares especificados previstos no CPC

Como já sabemos, são sete os procedimentos cautelares especificados, previstos no CPC:


1) A restituição provisória de posse (arts. 377º a 379º);
2) A suspensão de deliberações sociais (arts. 380º a 383º);
3) Os alimentos provisórios (arts. 384º a 387º);
4) O arbitramento de reparação provisória (arts. 388º a 390º);
5) O arresto (arts. 391º a 396º);
6) O embargo de obra nova (arts. 397º a 402º);
7) O arrolamento (arts. 403º a 409º).

Todos estes procedimentos são regulados por uma quantidade de normas que nos parece
reduzida, mas a verdade é que o legislador foi inteligente. Ele não tem de estar a dizer tudo
sobre cada um dos procedimentos cautelares e, justamente para não se estar sempre a repetir,
remete-nos várias vezes para as normas do procedimento cautelar comum. De facto, estas
últimas, para além de conterem o regime do procedimento cautelar comum, também servem
para colmatar as lacunas dos diversos procedimentos cautelares especificados.

4.2.1. Procedimento da restituição provisória de posse (arts. 377º a 379º)

® Para além das normas do CPC, o próprio Código Civil refere-se a esta situação nos arts.
1279º e 1282º.

A restituição provisória de posse – o primeiro procedimento cautelar especificado no CPC –


constitui um meio de defesa posto à disposição do possuidor de coisa nos casos em que este
ficou privado da mesma de forma violenta, sendo que pode ser proposto antes ou na
pendência de uma ação principal. A finalidade deste procedimento é a restituição rápida de
uma coisa imóvel ou móvel. Nesta medida, no âmbito da restituição provisória de posse, o que
se pede é a restituição imediata de uma coisa móvel ou imóvel (que está em perigo) – é este o
pedido que deve constar do requerimento que dá origem a este procedimento cautelar.

O que temos de alegar para fundamentar este pedido? Temos de alegar factos juridicamente
relevantes, i.e., factos que façam ativar este remédio. Os factos que estão a sustentar o pedido
e que traduzem no “porquê” do pedido chamam-se, em termos técnicos, “a causa de pedir”
(conceito processual de grande importância). Nesta medida, há que alegar a verdade do caso,
de forma sumária – para tal, temos de apresentar:
1) Os factos que traduzem a existência de posse por parte do requerente sobre uma coisa
móvel ou imóvel;
2) Os factos que traduzem a ocorrência, num passado recente, de um esbulho;
3) Os factos que – narrados/descritos – traduzem a violência que foi empregue naquele
esbulho levado a cabo pelo requerido contra o requerente (aquele que está a instaurar
o processo cautelar).

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Direito Processual Civil I

Significa isto que é necessário que o esbulhado prove a existência de uma posse digna de tutela
jurídica e a respetiva privação por esbulho violento. Se assim o fizer, o tribunal ordenará ao
esbulhador a respetiva restituição, sem prévia audiência do mesmo, nos termos do art. 378º
CPC e do art. 1279º CC. Pode concluir-se, assim, que este procedimento vale apenas para os
casos em que o esbulho foi levado a cabo por meio violento.

® Nota importante: Esbulhar significa agir desonestamente, apossando-se do que não lhe
pertence – traduz-se na apropriação ilegal de algo, i.e., na ação de usurpar alguém de
alguma coisa que lhe pertencia ou que estava na sua posse.

Importa mobilizar, neste âmbito, um conceito fundamental do Direito Civil: o conceito de posse
(art. 1251º CC). A posse é um conceito jurídico muito trabalhado ao longo dos séculos,
traduzindo-se no exercício de poderes de facto sobre uma coisa. Para se ser possuidor, na
retaguarda destes poderes de facto tem de estar um direito de natureza real, designadamente,
o direito de propriedade.

Porém, a nossa lei acaba por, de certo modo, estender este meio da restituição provisória de
posse a certos titulares de direitos pessoais de gozo, i.e., a determinadas pessoas que não são
titulares de direitos reais e que, nessa medida, não têm posse, mas sim detenção – é o caso do:
® Arrendatário (art. 1037º/2 CC) – se o senhorio do arrendatário A o expulsa de casa,
colocando todos os seus pertences na rua, A, apesar de não ser possuidor (ele é apenas
detentor da casa), pode recorrer à restituição provisória de posse.
® Comodatário (art. 1133º/2 CC) – i.e., a pessoa a quem se empresta determinada coisa
(v.g., se A empresta um carro a B e C rouba o carro, B pode lançar mão da restituição
provisória de posse, apesar de não ter posse do carro – a posse continua a ser de A).
® Promitente-comprador – se, quando há traditio, o promitente-comprador for alvo de
esbulho, ele pode deitar mão à restituição provisória da posse.

Para além disto, é necessário alegar factos que traduzam a ocorrência de esbulho, i.e., o
requerente tem de alegar factos que demonstrem que houve subtração da coisa sob a qual tem
posse, mas não basta, porém, alegar uma perturbação na posse da coisa: é preciso um esbulho
que tenha sido levado a cabo de forma violenta. Se o esbulho não foi levado de forma violenta,
este procedimento não é adequado. É imprescindível que tenha havido violência.

O que é a violência? Ora, este ponto não é totalmente pacífico. É certo que, na perspetiva do
Dr. Mesquita, a violência se traduz no uso, por parte do esbulhador, de coação física ou coação
moral. Todavia, a grande dúvida que se coloca (porque o nosso CPC não é claro) é: será que
podemos, fundadamente, propor este procedimento cautelar quando a violência caiu
unicamente sobre a coisa móvel ou imóvel, não se tendo alargado à pessoa do esbulhado, ou
será que apenas podemos, fundadamente, instaurar este procedimento cautelar quando a ação
incidiu sobre a pessoa que perdeu a coisa?
® Há uma corrente minoritária (Menezes Cordeiro) que defende que não se poderá
instaurar este procedimento nos casos em que a violência incidiu apenas sobre a coisa,
não se estendendo à pessoa do esbulhado.
® Todavia, a doutrina, na sua maioria (Antunes Varela, Pires de Lima, etc), entende que
este procedimento cautelar pode fundadamente ser instaurando mesmo nos casos em
que a violência versou apenas sobre a coisa, entendendo que a pessoa que violentou a
coisa deve ser castigada. Esta é a posição do Dr. Miguel Mesquita (e, por conseguinte,
do curso). Assim, não podemos dizer que este procedimento não se aplica nestes casos.

Marta Lima e Silva 31


Direito Processual Civil I

® Exemplo: A vive em Coimbra e é possuidor de uma garagem em Lisboa. B, sabendo que


A raramente vai a Lisboa, arromba a porta da sua garagem e começa a utilizá-la ele
próprio. Pode A recorrer à restituição provisória de posse, sendo que B violentou apenas
a coisa? Nas palavras do Dr. Mesquita: “claro que pode” – basta que a violência seja
exercida apenas sobre a coisa.

E se o esbulho não for violento? Se o esbulho não for violento, não se pode recorrer à restituição
provisória (não é este o remédio adequado – art. 379º), pelo que se segue o procedimento
cautelar comum.

Quais são as particularidades do processo cautelar da restituição provisória de posse?

1) Tem-se entendido que, no âmbito deste processo, o requerente não tem de provar
explicitamente o periculum in mora – isto porque o art. 377º não exige isso. Existe, neste
procedimento, uma presunção de que quem perde algo de forma violenta vai sofrer
danos, agravados pelo decurso do tempo.

2) A inclusão da fase executiva no procedimento (art. 378º) – se o juiz determina, num


despacho, a restituição provisória da posse ao requerente, então, no próprio âmbito
desse procedimento cautelar, abrir-se-á, de forma automática, a fase da execução
daquele despacho. Assim, uma vez decretado pelo juiz o despacho de restituição
provisória da posse, abre-se, no âmbito daquele processo, a fase executiva de
apreensão da coisa móvel ou imóvel. A justiça pega na “espada” e vai tentar obter a
coisa (se necessário, usando a força) para, de imediato, restituí-la ao requerente – não
é preciso que o último peça uma ação executiva.

O despacho judicial de decretamento é cumprido, então, se necessário, com o auxílio


das autoridades policiais, pois a execução da ordem de restituição pode, em caso de
resistência, legitimar uma imposição coerciva ao requerido (uso da força), já que terá
de consubstanciar-se numa entrega material e efetiva.

Se, no decurso da vigência da providência, ocorrer nova violação feita pelo próprio
requerido inicial, este poderá ser criminalmente responsabilizado como autor material
de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido nos termos do art. 348º/1
e 2 CP e aplicável por força do art. 375º CC. Se, por acaso, no decurso da vigência da
mesma providência, ocorrer uma violação, mas por terceiro, deverá ser contra este
requerida outra providência.

3) O contraditório retardado ou diferido (art. 378º in fine) – nestes termos, o que acontece
neste procedimento cautelar é, nas palavras do Dr. Mesquita, “uma coisa magnífica”.
Ora, ao requerente que foi vítima de esbulho é concedida a providência bastando que o
juiz verifique o “fumus boni iuris”. Nesta medida, o juiz decreta a restituição provisória
da posse sem ouvir previamente o requerido, bastando, para o primeiro, “vislumbrar o
fumo do direito”.

Questiona-se, então, se não está a ser violado o princípio do contraditório (art. 378º).
Considera-se que não. Este procedimento é um caso raro de suma urgência, traduzindo-
se num contraditório retardado (um desvio na justiça ao princípio do contraditório): a
coisa vai ser apreendida e só depois se vai ouvir o requerido (i.e., só depois de ser
apreendida a coisa é que há lugar ao princípio do contraditório). Nas palavras do Prof.
José Alberto dos Reis, este contraditório retardado funciona como um “castigo severo
para quem levou a cabo um esbulho violento”.

Marta Lima e Silva 32


Direito Processual Civil I

Nota: O procedimento de restituição provisória de posse sai MUITAS vezes em exame.

4.2.2. Procedimento de suspensão de deliberações sociais (arts. 380º a


383º)

® Em termos “sociais”, este procedimento remete-nos para o mundo das sociedades e


associações, mas o facto é que ele é muito usado para suspender deliberações na área
dos condóminos (assembleias de condóminos) – quando os condóminos ficam revoltados
com certas deliberações, tentam suspender a eficácia dessas deliberações.

Tecnicamente, trata-se de um procedimento cautelar de caráter conservatório, que assume,


todavia, laivos de caráter antecipatório, uma vez que, no fundo, se surtir êxito, antecipa os
efeitos de uma eventual decisão anulatória a ser tomada no seio do processo principal.

A vontade das sociedades, associações e assembleias de condóminos manifesta-se através de


deliberações, que são tomadas pelos sócios, associados e condóminos. O ponto fulcral nesta
matéria é a deliberação: uma deliberação é uma resolução, i.e., é uma decisão tomada por um
grupo de pessoas em plenário, após um debate, que reflete a vontade da maioria.

Qual é a finalidade deste procedimento? O procedimento de suspensão de deliberações sociais


visa uma coisa muito simples: travar/bloquear determinada deliberação com a máxima
rapidez. A pessoa que instaura este procedimento cautelar não quer que certa deliberação seja
executada, pelo que avança para tribunal precisamente para travar essa deliberação.

Qual o pedido que se faz no requerimento inicial? O requerente (sócio, associado ou


condómino) pede que a execução da deliberação não seja concretizada, i.e., que seja suspensa,
sendo a execução da deliberação paralisada por ordem do juiz. Todavia, antes de fazer este
pedido inicial, há que explicar o porquê do pedido: “causa de pedir”. Não basta ir a tribunal e
fazer o pedido: é necessário que o pedido tenha uma base de fundamentação.

Assim, neste domínio, o que é a “causa de pedir”?


1) Alegar, com a máxima clareza possível, factos reveladores de que aquela deliberação é
inválida/anómala, explicando o porquê;
2) Alegar e provar sumariamente que há perigo de dano apreciável (art. 380º/1 in fine) –
i.e., não basta, face à relevância dos interesses socioeconómicos normalmente em
equação, um juízo meramente assertório de mera verosimilhança ou aparência: é
necessário provar que a execução que levará a cabo aquela deliberação anómala vai
causar graves prejuízos à sociedade/associação/condomínio (a um dano apreciável).

Exemplo de caso prático que sai MUITO nos exames: Uma deliberação de uma sociedade sobre
uma matéria que não constava da ordem do dia. Ora, segundo a lei, se uma deliberação é
tomada sobre uma matéria que não estava na ordem do dia, essa deliberação é inválida (ver
lições do Dr. Mesquita). Nessa medida, se se entender que tal deliberação é perigosa e que vai
conduzir a um dano apreciável, pode lançar-se mão deste procedimento cautelar.

4.2.3. Procedimento de alimentos provisórios (arts. 384º a 387º)

® Este é um procedimento cautelar cada vez mais frequente nos dias de hoje.

Marta Lima e Silva 33


Direito Processual Civil I

A finalidade genérica do procedimento de alimentos provisórios é alcançar uma


rápida/urgente condenação do requerido no pagamento de uma pensão de alimentos ao
requerente – uma quantia que, mensalmente, permita à pessoa pagar aquilo a que chamamos
de “alimentos” (daí que se chame procedimento de alimentos provisórios). Este procedimento
tem, por detrás, a necessidade urgente de obter uma pensão de alimentos.

® O conceito de alimentos é, para o Direito, um conceito muito amplo/lato, nos termos


do art. 2003º/1 CC, sendo que o nº2 do mesmo preceito acrescenta ainda a educação
dos filhos menores. De facto, nas palavras do Dr. Mesquita, para o Direito, “tudo é
alimento” (v.g., roupas, livros).

Então, que pedido se faz no domínio deste procedimento cautelar? Pede-se precisamente a
condenação do requerido no rápido pagamento de uma quantia mensal a título de alimentos.

Tenha-se atenção ao art. 2007º/1: quando estão em causa menores, o juiz pode oficiosamente
decretar alimentos provisórios para os mesmos. Isto vai contra o princípio do pedido, traduzindo-
se num dos seus mais conhecidos desvios legais. Neste âmbito, o juiz pode tomar a defesa dos
menores, tomando ex officio a decisão de lhes decretar alimentos provisórios.

A “causa de pedir” neste procedimento cautelar é bastante curiosa, segundo o Dr. Mesquita.
Assim, no requerimento inicial, o requerente tem de alegar:
® Factos reveladores de que o requerente tem direito àquela pensão de alimentos
(designadamente, o direito a alimentos tem, muitas vezes, por fonte: a relação
matrimonial, a relação de filiação, a relação de adoção, a relação de união de facto, etc).
® Factos de vida concretos e essenciais que traduzam a necessidade de receber aquela
quantia, i.e., factos reveladores do periculum in mora, que convençam o juiz de que a
vida daquela pessoa será colocada em risco se aqueles alimentos provisórios não forem
decretados através da providência cautelar.

Assim, não basta invocar apenas o direito a alimentos, sendo necessário também que se
invoquem factos que convençam o juiz de que, se os alimentos não forem atribuídos
rapidamente, o requerente corre um risco na sua sobrevivência. O requerente tem de provar,
portanto, que necessita de uma quantia mensal que lhe permita sobreviver, tendo sempre em
conta o perigo da demora (periculum in mora).

A pensão de alimentos é fixada numa quantia: o requerido está obrigado a pagar determinado
montante ao requerente, sendo esta uma condenação que resulta de um procedimento
cautelar. Mas é esta quantia uma quantia rígida? Não pode ser alterada? O art. 2012º CC
estabelece precisamente a possibilidade de alteração desta quantia, podendo os alimentos ser
reduzidos ou aumentados conforme os casos. A decisão da fixação da quantia está sempre em
aberto, podendo alterar-se de acordo com as circunstâncias da vida (v.g., nova fonte de
rendimentos; desemprego).

Por fim, coloca-se uma última questão: se alguém for, no âmbito deste procedimento cautelar,
condenado a pagar uma pensão de alimentos a certa pessoa, e se, na ação principal de alimentos
definitivos, o tribunal chegar à conclusão de que aquela mesma pessoa não tinha, afinal, direito
a receber alimentos, tem a pessoa que recebeu a quantia de a restituir?

Marta Lima e Silva 34


Direito Processual Civil I

Em princípio, diríamos que sim, porque a pessoa em questão lucrou com uma pensão de
alimentos indevida. Porém, nos termos do art. 2007º CC, a lei estabelece que não há lugar, em
caso algum, à restituição dos alimentos provisórios recebidos. O legislador optou por afastar
esta restituição para evitar que as pessoas tivessem receio de pedir os alimentos provisórios –
se soubessem que poderiam ter de os restituir, poderiam ter medo em avançar com a sua
pretensão.

Não obstante, isto não é bem assim, porque temos de conjugar o CC com o CPC, que consagra
uma solução que difere do art. 2007º CC: nos termos do art. 387º CPC, em algumas situações,
pode haver responsabilidade do requerente – solução que agrada ao Dr. Mesquita. Nas palavras
no Dr., “isto não é uma festa”, uma vez que, de facto, o CPC prevê a responsabilidade daquele
que lucrou com uma pensão de alimentos provisórios e depois vê a ação definitiva naufragar.
Designadamente, haverá responsabilidade do requerente nos casos em que este tenha agido
de má-fé (v.g., mentindo sobre os rendimentos que tem ou sobre os rendimentos que tem o
requerido). Aos olhos do Dr. Mesquita, o requerente de má-fé tem de ser responsabilizado.

4.2.4. Procedimento de arbitramento de reparação provisória (arts. 388º a


390º)

® No âmbito deste procedimento, a ideia de arbitrar significa fixar uma quantia, sendo
que o conceito de reparação se prende com o conceito de indemnização.

Este procedimento cautelar não existia em Portugal, tendo surgido apenas com a reforma do
CPC de 1995/96, com vista a antecipar os créditos de natureza pecuniária emergentes de
responsabilidade civil, em situações de grave carência, enquanto não se decida a ação principal.
Entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 1997.

Qual é a finalidade deste procedimento cautelar? O procedimento de arbitramento de


reparação provisória destina-se à rápida obtenção de uma indemnização antecipada –
indemnização essa que reveste a forma de uma renda mensal a que a pessoa alegadamente
tem direito. Assim, a pessoa recebe, todos os meses, esta quantia a título de indemnização.

Então, a ideia é a seguinte: a pessoa que tem direito a obter uma indemnização, em vez de
esperar meses ou mesmo anos por ela, pede, através deste procedimento cautelar, para ir
recebendo fatias daquela quantia indemnizatória. Assim, ao avançar para este procedimento
cautelar, a pessoa que tem o direito a obter a indemnização vai obter uma parcela da mesma.
Isto pode ser muito proveitoso, pois não vai ter de esperar imenso tempo para que o tribunal
condene o réu – em vez disso, condena-se o requerido ao pagamento de uma quantia mensal,
sendo que esta se trata de uma indemnização a título provisório.

Todavia, não se pode recorrer a este procedimento em qualquer caso. A lei é taxativa e clara ao
explicitar os casos em que se pode lançar mão do procedimento de arbitramento de reparação
provisória. Assim, coloca-se uma questão fundamental: qual é o pressuposto fundamental deste
procedimento? Como resposta a esta questão, o legislador prevê, no art. 388º/1 e 4 CPC, as
situações em que se pode recorrer a este procedimento numa lista taxativa:

1) Quando houve um facto que gerou a morte/falecimento de alguém – os familiares têm


direito a obter uma indemnização por causa da morte dessa pessoa (art. 496º CC), sendo

Marta Lima e Silva 35


Direito Processual Civil I

que também podem requerer esta indemnização as pessoas que recebiam alimentos da
pessoa que faleceu (art. 388º/1 CPC).

2) Quando há um facto que gerou uma lesão corporal de alguém – a pessoa que sofreu
uma lesão física pode lançar mão deste meio, sendo que a quantia mensal que receberá
poderá até fazer face às despesas mensais que tem decorrentes da lesão.

Exemplo: A, senhor de muita idade, ao passar lentamente numa passadeira, foi


atropelado por B. A ficou paraplégico no seguimento do atropelamento. Carecendo de
cuidados médicos, A lançou mão deste procedimento cautelar contra B, para poder
receber a quantia mensal da indemnização provisória e poder, assim, pagar os cuidados
médicos de que necessitava.

3) Quando há um facto que causa um prejuízo/dano no sustento ou na habitação do


lesado (art. 388º/4 CPC) – nestes casos, o lesado tem direito a receber uma
indemnização, podendo pedir logo uma renda mensal a título de indemnização. Note-
se, todavia, que a quantia mensal a arbitrar a favor do requerente será em função do
estritamente necessário para o respetivo sustento ou habitação.

Exemplo: Um veículo pesado de mercadorias atropelou um rebanho de um pastor por


excesso de velocidade, dizimando o rebanho. O pastor, ficando sem fonte de
sobrevivência, pode lançar mão deste procedimento cautelar.

É facto que estas três situações são pressupostos fundamentais para recorrer ao procedimento
de arbitramento de reparação provisória, mas, todavia, não basta a reunião de um destes
requisitos para se vencer este procedimento cautelar. É necessário, ainda, no requerimento
inicial, convencer o juiz de que o lesado ficou numa situação de necessidade em consequência
dos danos sofridos (art. 388º/2), para que o primeiro decrete a providência cautelar.

A prestação arbitrada é passível de alteração ou cessação no seio do mesmo processo se, após
a sua fixação, deixar de substituir a sua necessidade, mediante requerimento e produção de
prova nesse sentido (art. 386º/2 e art. 282º/2 CPC).

A prolação de sentença final (no processo principal) que julgue improcedente a obrigação de
pagamento de renda mensal ou que, embora procedente, venha a arbitrar montante inferior à
quantia entretanto antecipada, gera a caducidade da providência, com inerente condenação do
lesado na obrigação de restituição (do devido) ao respetivo requerente, nos termos previstos
para o enriquecimento sem causa.

4.2.5. Procedimento de arresto (arts. 391º a 396º)

® Nota muito importante: o art. 601º CC diz-nos que, pelo cumprimento das nossas
dívidas, respondem os nossos bens.

Noção de arresto: Apreensão judicial dos bens do devedor a decretar mediante solicitação do
credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do crédito.

Este conceito de perder a garantia patrimonial do crédito é desenvolvido pelos autores Pires de
Lima e Antunes Varela. Para estes conhecidos civilistas, para que haja justo receio de perda de
garantia patrimonial basta que, com a expectativa da alienação de determinados bens ou a sua
transferência para o estrangeiro, o devedor torne consideravelmente difícil a realização coativa

Marta Lima e Silva 36


Direito Processual Civil I

do crédito, ficando o seu património apenas com bens que, pela sua natureza, dificilmente
encontrem comprador numa venda judicial.

Qual é a finalidade do arresto? O arresto visa a rápida apreensão dos bens do devedor, i.e.,
visa o congelamento do património do devedor, conservando-se, assim, a garantia patrimonial
do mesmo. O arresto visa precisamente garantir que os bens do devedor, uma vez apreendidos,
permanecem na sua esfera jurídica até ao momento da realização da respetiva penhora. Assim,
o que se pede no domínio deste procedimento? Nos termos do art. 391º/2, pede-se a
apreensão dos bens do devedor.

Qual é a “causa do pedido”? A causa do pedido é, neste processo cautelar, uma causa dupla,
pois reparte-se em dois aspetos fundamentais. O pedido traduz-se em factos juridicamente
relevantes:

1) Para o juiz poder julgar o pedido de arresto, é fundamental, em primeiro lugar, justificar
factos reveladores de que nos pertence um direito de crédito (seja qual for – v.g., que
derive de um contrato, de uma responsabilidade extracontratual, etc). Esta prova deve
ser sumária/breve: temos de convencer o juiz da titularidade do direito de crédito,
alegando os factos indiciadores da existência de crédito.

2) Em segundo lugar, nos termos do art. 392º/1, temos de alegar factos reveladores de
que há perigo fundado de que os bens/o património do devedor desapareçam para
sempre. Não basta mostrar ao tribunal que há justo receio de perda de garantia
patrimonial: há que alegar os factos que justificam esse receio objetivo.

Exemplo verídico: Uma senhora que trabalhava num cabeleireiro em Coimbra e foi
despedida sem justa causa pela proprietária do salão propôs uma ação contra a entidade
patronal. O tribunal condenou a proprietária ao pagamento de 17.000€ de
indemnização, mas ela nunca pagou. A trabalhadora soube que a proprietária do
cabeleireiro começou a anunciar no OLX uma série de bens valiosos existentes no salão
– estava a vender bens para não responder pela dívida.

Estes factos reveladores do perigo fundado de que o património do devedor desapareça


são, portanto, factos concretos e objetivos e não factos aéreos. Não se pode alegar
factos de que o devedor está a tentar esconder o património: tem também de se explicar
ao tribunal que, com essa lapidação de bens, o devedor vai ficar sem património para
pagar as dívidas. Isto tem de ser provado em tribunal.

O arresto deve ser uma medida justa, respeitando o princípio da proporcionalidade (art. 393º/2
e 3). O arrestado não pode ser privado de rendimentos indispensáveis. “O Direito tem de ser
sempre equilibrado e a justiça tem de ter sempre uma balança na mão”.

Quanto à tramitação deste procedimento cautelar, há uma nota muito curiosa: a semelhança
com a restituição provisória de posse no que toca ao contraditório retardado. Nos termos do
art. 393º/1, se o juiz se convencer de que o requerente é credor e há periculum in mora, ele
pode, através de um despacho, decretar o arresto, que vai ser levado à prática pela justiça sem
audiência prévia do devedor. O devedor não vai ser ouvido antes da execução do arresto, i.e.,
a justiça não vai notificar previamente o devedor. O juiz vai executar o arresto sem audiência da
parte contrária e o devedor só se vai defender depois de a medida ser executada. O legislador
optou por esta opção porque, dando tempo ao devedor para que se defendesse, este poderia,
nesse espaço temporal, vender os seus bens para que não respondesse pela dívida.

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Direito Processual Civil I

É verdade que, se o devedor se defender bem, o juiz pode levantar o arresto. Todavia, na prática,
quando há arresto, ele nunca é levantado – em 90% dos casos, o requerente tem razão. Não
obstante, caso a providência de arresto seja considerada injustificada ou vier a caducar por
facto imputável ao requerente, o arrestante responderá pelos danos que culposamente causar
ao arrestado, quando não tenha agido com a prudência normal (art. 374º/1).

Efeitos jurídicos do arresto:


1) O devedor/arrestado perde, em princípio, a disponibilidade material sobre os seus bens
que são alvo de arresto – quanto aos bens imóveis rege o art. 756º; quanto aos bens
móveis rege o art. 764º. Note-se que, nos termos do art. 767º/2, a pessoa que, no
âmbito da apreensão de bens, ocultar uma coisa com fim de a subtrair, fica sujeito às
sanções de litigância de má-fé.
2) Além da disponibilidade material, há também perda da disponibilidade jurídica do
devedor sobre aqueles bens (art. 622º CC) – os atos de alienação ou de oneração que o
devedor venha a praticar eventualmente sobre os bens que foram alvo de arresto são,
à luz da lei, ineficazes perante o requerente do arresto.
3) Após o arresto, o requerente desta medida cautelar passa a ser titular de um direito
real de garantia (art. 822º/1 CC). Assim, o credor (arrestante) tem o direito de se pagar
à custa daquela coisa, como prioridade relativamente aos demais credores sem
garantias reais temporalmente requeridas.

Nota: Conta o Ricardo Salgado e contra a Isabel dos Santos foram decretados arrestos.

4.2.6. Procedimento de embargo de obra nova (arts. 397º a 402º)

Por via do procedimento de embargo de obra nova, o interessado (i.e., o requerente) pode
solicitar a rápida suspensão de uma obra, trabalho ou serviço novo que seja ofensivo dos seus
direitos de proprietário, de comproprietário ou de outro direito real de gozo (usufruto,
habitação ou servidão).

® Exemplo: A é titular de uma servidão de passagem pelo prédio de B. B começou, na


sexta-feira passada, a construir uma pequena garagem para guardar as alfaias
agrícolas. Para esse efeito, começou a abrir alicerces que, na prática, conduzem à
destruição da servidão de passagem de A. Este embargo de obra nova visa
travar/suspender uma obra que já teve início.

A pessoa que está a ser ofendida e prejudicada tem 30 dias, a partir do momento em que tem
conhecimento da situação, para intentar a ação. Subjaz à providência cautelar uma obrigação
(proibição) de não fazer/erigir uma qualquer obra, trabalho ou serviço novo, que possa alterar
o statu quo ante. Assim, a obra, serviço ou trabalho tem de possuir natureza inovatória, pelo
que apenas poderão ser embargadas obras consistentes numa alteração substancial da coisa.

® Nota: Não podem, contudo, ser embargadas as obras do Estado e demais pessoas
coletivas públicas se o litígio contiver subjacente uma relação jurídico-administrativa –
nesse caso, o processo cai na esfera do Direito Administrativo e, por conseguinte, na
esfera dos tribunais administrativos.

O que se pede ao juiz é, portanto, que a obra – que está a causar prejuízo ou a ameaçar de forma
eminente um direito do requerente – seja suspensa/embargada. Por isto mesmo, relativamente
à “causa de pedir”, é necessário para querer este procedimento:

Marta Lima e Silva 38


Direito Processual Civil I

1) Alegar a titularidade de um direito (normalmente, é o direito de propriedade, mas


podem ser outros – v.g., direito de servidão de passagem, direito de usufruto) que está
a ser ofendido pela obra nova que está a ser feita.

2) Alegar que está a ser levada a cabo uma obra nova – pode ser uma construção, uma
edificação, um restauro, uma escavação, etc: o conceito “obra” tem de ser entendido
em sentido amplo. Todavia, tem sempre de ser uma obra nova. No requerimento, o
requerente tem de alegar que e trata de uma obra que já nasceu, que já está a ser feita
– não pode ser uma obra que esteja apenas projetada, nem uma obra já terminada. A
novidade da obra é um requisito indispensável, não podendo decretar-se, assim, p.e.,
o embargo de obra que se traduza na simples reconstrução de um edifício destruído por
um incêndio.

3) Alegar um a existência de um prejuízo atual ou potencial, sendo que existem, aqui,


respetivamente, duas hipóteses:
• Embargo de obra nova repressivo – aquela obra já está a causar um prejuízo no
direito em questão (prejuízo atual);
• Embargo de obra nova preventivo – visa evitar um dano provável no direito em
questão, i.e., a obra já começou e não está a causar um prejuízo no direito, mas
tudo indica que o vai fazer (casos de prejuízo eventual).

Há, no nosso ordenamento jurídico, duas modalidades no âmbito deste procedimento cautelar:

1) Embargo de obra nova judicial (art. 397º/1) – aqui, a pessoa que quer embargar a obra
(representada ou não por advogado), invocando direitos de natureza derivada, dirige-
se ao tribunal competente através de requerimento a um juiz (o tribunal competente é,
normalmente, o tribunal da região – v.g., para um litígio em Coimbra, será o Tribunal da
Comarca de Coimbra).

Coloca-se a questão: o juiz ouve a pessoa que está a realizar a obra previamente ou só
depois de decretar a medida cautelar? O legislador esqueceu-se deste aspeto, pelo que
utilizamos o art. 366º – uma norma do procedimento cautelar comum que é aqui
utilizada como mecanismo para colmatar uma lacuna de um regime especial. Este
preceito diz-nos que depende do caso: se o tribunal acha que tem tempo, ouve a pessoa
que está encarregue da obra nova; se achar que não tem tempo para tal e que há
urgência na medida, só haverá audiência retardada.

O juiz lavra o despacho no sentido de aquela norma ser embarga, mas não basta o
despacho do juiz – o despacho tem de ser executado/materializado por um funcionário
do tribunal (que não o juiz). Assim, recorre-se ao art. 400º, que nos diz como se
materializa o despacho: tem de se lavrar o auto no terreno, i.e., descrever o está a ser
feito, intimando o requerido para parar imediatamente a obra (v.g., tirando fotos à
obra). Se o requerido não respeitar essa injunção, o art. 402º resolve o problema,
estabelecendo que o embargante pode requerer a destruição da parte inovada.

2) Embargo de obra nova extrajudicial (art. 397º/2 e 3) – consiste no facto de a pessoa


que está a ser afetada por obra nova optar por, num primeiro momento, acompanhada
por duas testemunhas, ir ao local onde a obra está a ser feita e fazer uma intimação
verbal ao dono da obra. Esta intimação verbal particular é feita no sentido de a pessoa
parar a obra imediatamente.

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Direito Processual Civil I

O art. 397º/3 estabelece que a pessoa tem o prazo de 5 dias para se dirigir ao tribunal
competente, apresentar o requerimento, contar aquilo que fez extrajudicialmente e
pedir ao juiz que faça a ratificação judicial daquele embargo judicial (ratificação significa
validar algo à luz do ordenamento jurídico).

Qual é a vantagem? Em primeiro lugar, a pessoa pode estar de boa-fé e parar a obra,
resolvendo-se tudo da melhor maneira possível. Em segundo lugar, depois de obter a
ratificação judicial, se a pessoa não respeitou o embargo extrajudicial e continuou a
obra, o requerente pode, nos termos do art. 402º, requerer a destruição daquela obra
a partir do dia em que foi feito o embargo extrajudicial.

Nota: O embargo judicial é a modalidade usada normalmente, sendo o embargo extrajudicial


(que só existe em Portugal, “curiosamente”) raramente utilizado.

4.2.7. Procedimento de arrolamento (arts. 403º a 409º)

De natureza tipicamente conservadora, o procedimento cautelar de arrolamento visa assegurar


a subsistência de determinados bens enquanto se discute a sua titularidade ou garantir a
persistência de certos documentos necessários à prova da titularidade de um direito. Assim, é
um meio tipicamente conservador justamente porque visa conservar bens – v.g., as palavras da
lei (art. 403º), o extravio/desvio, a ocultação, a dissipação (vender, doar, etc) de bens móveis e
documentos que se encontrem em poder do requerido, etc. Nesta medida, pede-se ao tribunal
que faça uma lista dos bens: um inventário – é isto que significa a palavra “arrolar”.

® Exemplo típico: A é vítima de maus-tratos por parte do marido e, não aguentando mais
a situação, abandonou o lar conjugal e quer pedir o divórcio. Receia, contudo, que o
marido proceda à dissipação e à ocultação dos bens móveis que existem na casa de
morada da família, sendo que alguns desses bens são comuns e outros pertencem em
exclusivo a A. A pode instaurar um procedimento cautelar de arrolamento – art. 409º.

Quem pode pedir o arrolamento?


® O grande princípio por detrás deste procedimento cautelar é o de que quem o instaura
não se apresenta como credor do requerido, i.e., não vem alegar que tem o direito de
se pagar à custa dos bens arrolados por ter um direito de crédito sobre eles – para isso
existe o arresto. Este procedimento não serve, portanto, em princípio, para os titulares
de direitos de crédito.
® O requerente apresenta-se, aqui, como titular de um direito à entrega/restituição dos
bens que estão no poder do requerido por existir um perigo de o último os fazer
desaparecer/dissipar. O arrolamento visa garantir a futura entrega ou restituição de
bens ao requerente, pelo que a pessoa que requer um arrolamento tem um direito
certo ou eventual sobre determinado bem móvel ou imóvel.

Só há um desvio a esta ideia principal, previsto no art. 404º/2 in fine. Há uma situação prevista
na lei em que os credores podem pedir o arrolamento, designadamente, quando haja
arrecadação da herança.

® Exemplo: A faleceu e não se sabe ao certo quem são os seus herdeiros, pelo que sua
herança se diz jacente (art. 2046º CC). Os credores de A podem, nestes termos, requerer
o arrolamento dos bens de A para que se saiba ao certo os bens que o falecido tem, uma
vez que têm receio de que os mesmos desapareçam – aqui, os credores de A invocam um
direito de crédito sobre o falecido.

Marta Lima e Silva 40


Direito Processual Civil I

O que se pede no âmbito deste procedimento? Nos termos do art. 406º/1, depois de apresentar
a “causa de pedir”, pede-se o arrolamento. Mais do que um simples inventário, o arrolamento
traduz-se em três coisas: descrição, avaliação e depósito dos bens. O arrolamento é uma
medida complexa, traduzindo-se em muito mais do que o mero inventário dos bens.

® Quem fica como depositário dos bens (art. 408º) – quer no âmbito do arresto quer no
âmbito do arrolamento – tem de ter muito cuidado, porque se os destruir ou danificar
comete um crime, nos termos do art. 355º CP.

Para se conseguir o arrolamento, têm de se alegar sumariamente factos demonstrativos e


reveladores da existência do fundamentado/fundado receio de extravio/perda dos bens – i.e.,
tem de se fundamentar o periculum in mora.

Todavia, isto não é assim nos casos de arrolamento especial (art. 409º). Nos termos do nº3 do
art. 409º, nestes arrolamentos, o requerente não tem de justificar, através de factos da vida, o
justo receio de ocultação de bens que recai sobre o requerido. A lei liberta o requerente
(cônjuge) deste ónus da prova, desonerando-o, pois o legislador previu que, numa situação
destas, o requerido faça isso mesmo. Se o cônjuge requerente tivesse ainda de alegar factos que
convencessem o tribunal de que há justificado receio, tal seria “incendiar” ainda mais a situação.

® Nota: O arrolamento é muito usado por cônjuges que chegam ao fim da sua relação
matrimonial e muito usado em casos de heranças jacentes.

Ao contrário do que sucede no arresto – em que a lei diz, de forma expressa, que o tribunal
decreta o arresto dos bens que estão na posse do devedor, não ouvindo previamente o
requerido –, no arrolamento a lei não diz nada, pelo que temos de recorrer ao regime geral para
sabermos se o contraditório é normal ou retardado. Assim, nos termos do art. 366º, em
princípio, o tribunal vai ouvir o requerido, exceto quando essa audiência colocar em risco o fim
o a eficácia da providência – tudo depende do caso concreto (contraditório normal).

4.3. Procedimento cautelar comum – art. 362º e ss.

O art. 366º estabelece que, sempre que exista periculum in mora e, para o ultrapassar, não exista
nenhum procedimento cautelar especial, recorre-se ao procedimento cautelar comum – “a
última tábua de salvação”, nas palavras do Dr. Mesquita. A ver do Dr., o procedimento cautelar
comum é “genial”, porque vai cobrir todos os casos de periculum in mora que não têm resposta
em nenhum dos sete procedimentos cautelares especificados no CPC.

® Clássico exemplo verídico: A, que tem um terreno cheio de oliveiras, sempre passou pelo
terreno de B para chegar ao seu. Porém, no mês passado, B passou a não deixar A passar
para o seu terreno, pelo que A não tinha maneira de tratar das suas oliveiras. A instaura
em tribunal, de imediato, uma ação declarativa constitutiva de servidão de passagem.
Porém, até o processo principal ser decidido, as oliveiras de A iriam morrer, facto que se
traduz em periculum in mora – há perigo de que, na pendência da ação principal, as
oliveiras de A morram. Assim, a par da ação principal, A vai instaurar também um
procedimento cautelar comum (porque não há nenhum procedimento cautelar especial
previsto para a sua situação), pedindo ao juiz que lhe conceda uma autorização judicial
rápida que lhe permita passar pelo terreno de B e tratar das suas oliveiras.

Marta Lima e Silva 41


Direito Processual Civil I

Para se requerer um procedimento cautelar comum, o requerente tem de alegar o fumus boni
iuris e o periculum in mora, podendo pedir ao juiz qualquer medida conservatória ou
antecipatória que seja adequada e proporcional ao caso.

O que se pede, normalmente, quando se instaura um procedimento cautelar comum? A lei


não especifica, sendo muito genérica no art. 362º/1. Porém, pode dizer-se que, com base na
jurisprudência e na prática forense, ao abrigo deste procedimento pede-se ao tribunal, na
maioria das vezes, a intimação do requerido, sendo que essa ordem pode consistir num:
® Facere – v.g., quando se pede que o requerido seja intimado a restituir uma coisa em
situações em que houve um esbulho, mas não foi violento; quando se pede a apreensão
judicial de uma coisa (v.g., um livro); quando se pede a autorização judicial para a prática
especial de um ato (v.g., uma servidão de passagem).
® Non facere – v.g., quando se pede ao tribunal que obrigue o requerido a não fazer
barulho/ruído no prédio depois das 22h.

A tutela cautelar, ao contrário da tutela declarativa, é uma tutela reforçada – seja ela
proveniente dos procedimentos especiais ou do procedimento cautelar comum:

1) O primeiro reforço é a sanção pecuniária compulsória (art. 365º CC) – a pessoa, além
de ser intimada a uma prestação de non facere, é intimada a, sempre que não cumprir
a sentença, pagar uma quantia (a sanção pecuniária compulsória). Foi o caso do inspetor
Amaral no caso Maddie McCann, que teve de pagar ao casal McCann 1000€ de todas as
vezes que vinha a público alegar, perante os jornalistas, que a criança estava morta.

2) O segundo reforço prende-se com facto de a infração de uma providência cautelar


declarada (quer ao abrigo de um procedimento cautelar especial, quer ao abrigo do
procedimento cautelar comum) desencadear, nos termos do art. 375º CP, um crime de
desobediência civil qualificada, com pena de prisão até dois anos ou de multa até 240
dias (art. 348º/2 CP). Esta garantia, mais especificamente designada de garantia penal,
surgiu na reforma cautelar de 1995/96 – como as providências cautelares visam afastar
o perigo da demora, que afeta os nossos direitos e pode mesmo implicar a sua extinção,
o legislador reforçou a tutela cautelar com esta nova garantia para evitar tais violações.

Levanta-se, assim, uma questão muito importante (e muito perguntada em orais pelo Dr.
Mesquita): não haverá uma incongruência no sistema jurídico? Ora, uma sentença de uma ação
declarativa principal que não seja respeitada pelo réu não o torna criminoso, não tendo como
consequência qualquer sanção penal. Todavia, se o desrespeito incidir sobre uma providência
cautelar (que, pelo seu caráter, é decidida pelo juiz “em cima do joelho”), o requerido/réu do
procedimento cautelar já incorre na prática de um crime (desobediência civil qualificada). Por
outras palavras: numa sentença declarativa principal cujo processo é normalmente de longa
duração, o agente não é considerado criminoso, mas já o é no âmbito de um procedimento
cautelar (processo de curta duração por excelência).

Resposta dada a esta questão pelo Dr. Mesquita: o Dr. menciona que, apesar de existir
divergência na doutrina quanto a esta questão, a seu ver, a tutela cautelar não foi exagerada
porque “as providências cautelares visam evitar, no limite, a morte dos nossos direitos e a morte
dos nossos direitos pode corresponder, por vezes, à nossa própria morte”.

® Nota muito importante: Ler as Lições do Dr. Mesquita, especialmente a 4ª lição (que foi
dada muito à pressa).

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Direito Processual Civil I

Casos Práticos

Caso Prático 1

A construiu um muro alto de blocos de cimento à volta da sua propriedade, tornando


absolutamente encravado um terreno vizinho pertencente a B e C, um casal de agricultores. Ora,
estes têm dentro deste terreno um barracão com animais domésticos que necessitam de ser
alimentados diariamente. Confrontados o referido muro, B e C decidiram derrubar uma parte
dos blocos de cimento, abrindo assim uma passagem para o referido barracão.

1) Que comentário lhe merece, à luz dos princípios do ordenamento processual civil, o
comportamento de B e de C?

O nosso ordenamento jurídico é baseado no princípio da proibição do recurso à força – art. 1º


CPC (falar sobre TUDO do princípio da proibição do recurso à força, inclusive sobre as razões que
levaram o legislador a consagrá-lo). No entanto, há situações em que é possível recorrer à força,
sendo que se preveem três desvios ao princípio da proibição da autodefesa (falar sobre TUDO
destes desvios). Nestas situações, o recurso à força não produz um ato ilícito, i.e., não é
censurável (arts. 336º, 337º e 339º CC).

Ora, de facto, B e C destruíram o muro feito por A. Todavia, podemos considerar que o
comportamento do casal de destruir o muro foi lícito porque eles atuaram ao abrigo do desvio
do estado de necessidade (art. 339º CC). O estado de necessidade é caracterizado por existir um
direito em perigo, i.e., um direito que está a ser ameaçado por uma pessoa – in casu, as pessoas
têm, dentro do terreno, animais que precisam de alimento e, com a atitude de A, não podiam
alimentar os animais que, consecutivamente, morreriam (prejuízo patrimonial e moral).

A situação é justificável mesmo tendo o casal destruído algo que não era deles, porque o seu
objetivo era o de afastar um perigo iminente/o de evitar a consumação de algo maior: vale mais
a vida dos animais. Teria o casal de indemnizar o dono do muro? Normalmente sim, porque
destruíram coisa alheia, mas somente se o perigo fosse causado por culpa exclusiva do casal.
Ora, não foi somente o casal que levou àquela situação – foi o sujeito A que, não sendo racional,
lhes impediu a passagem. Seria um crime de dano? Não, pois o estado de necessidade exclui a
ilicitude a nível do Direito Civil e a nível do Direito Penal.

2) Poderia um juiz, conhecedor da situação, fazer uma sentença que obrigasse A a deixar
passar B e C?

O juiz não pode conhecer oficiosamente o caso e lavrar uma sentença para resolver um litígio,
porque é preciso que tenha havido um pedido – princípio do pedido (art. 3º/1 CC): o tribunal
não pode resolver litígios sem que lhe seja requerida a solução por uma das partes (por exemplo,
mesmo que o juiz fosse vizinho do casal e conhecesse a situação, não a poderia resolver). O
processo civil é um processo destinado a resolver litígios do direito privado e, no direito privado,
vale o grande princípio da autonomia privada/autonomia da vontade. É a pessoa que decide se
leva o caso ao tribunal – só aí o juiz terá o dever de resolver o seu caso. O juiz não se substitui a
ninguém – ele espera que o procurem para resolver a questão.

Caso Prático 2

D, criador de gado, para encurtar caminho, passa de trator pelo terreno do vizinho E, sem que o
último algum dia tenha consentido tal comportamento. Este terreno é murado, mas tem uma

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Direito Processual Civil I

entrada aberta, ou seja, sem qualquer portão. No passado dia 24 de setembro, D, ao tentar
passar de novo pelo terreno de E, deparou-se com um cadeado, na véspera, pelo vizinho E. D
decidiu, então, proceder ao corte do cadeado, facto que originou um grave litígio entre os dois
vizinhos.

1) Que comentário lhe merece o comportamento de D?

O comportamento de D é censurável, pois ele cometeu um facto ilícito. D não atuou dentro de
uma das exceções ao princípio da proibição do recurso à força. Assim, se a sua atuação não se
enquadra dentro de uma dessas exceções, é considerada crime – passar por terreno alheio é
ilícito. Se o proprietário colocou uma corrente, é como se tivesse colocado um portão – se ele
colocou a corrente é porque não queria que ninguém passasse. À luz do Direito Penal e do
Direito Civil, o comportamento de D é ilícito e o tribunal pode condená-lo, obrigando-o,
inclusive, a pagar uma indemnização.

Caso Prático 3

António é dono de um terreno onde construiu a sua casa de habitação (terreno 1) e dono de
outro terreno próximo onde tem uma abundante nascente de água (terreno 3). António quer
canalizar, através de um tubo subterrâneo, esta água para sua casa. Porém, entre os terrenos 1
e 3, existe o terreno 2, que pertence a Joaquim. Ora, é por este terreno 2 que tem de passar o
referido tubo, mas Joaquim não autoriza essa passagem, atitude esta que está a gerar um grave
litígio entre António e Joaquim. Este último afirma, aliás, que a colocação de qualquer
canalização teria os dias contados, pois depressa procederia ao corte da mesma.

1) Que espécie de ação poderá ser intentada por António? E parece-lhe que António tem
interesse em agir (processual)?

In casu, não estaria em caso uma servidão de passagem regular porque o que António pretende
não é fazer uma passagem pelo terreno, mas sim apenas fazer passar um tubo subterrâneo para
voltar a tapar. Podemos concluir que, no fundo, o que A quer é adquirir uma servidão de
passagem pelo prédio de Joaquim, mas uma servidão de passagem diferente – seria para fazer
passar o tubo pelo terreno do vizinho. Isso não causará prejuízo para o Joaquim.

Concluímos que ele quer criar uma servidão de passagem – um direito real sobre coisa alheia –
limitado ao gozo, i.e., ele não tem a servidão, mas quer criar (art. 1543º CC). O António quer
criar na sua esfera jurídica um direito, mas pode adquiri-lo? Sim, se tiver uma servidão de
passagem. O que é uma servidão? Responde o artigo 1543º do CC: “Servidão predial é o encargo
imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se
serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.

A lei dedica uma norma à servidão de passagem: o art. 1561º CC, que podemos dizer que parece
pensado para este caso, i.e., para situações idênticas a este caso. Assim, António pode, provando
que existe essa água, criar o direito. Todavia, apesar de não prejudicar o Joaquim, não seria
preferível usar a água pública? Não, existe muita gente que usa água privada e António poderia
passar o tubo pelo terreno – servidão de aqueduto (art. 1547º CC), em que vale a servidão de
passagem para passar líquidos como água, águas residuais, etc. Estas servidões de passagem
podem ser constituídas por contratos, testamentos, sentenças judiciais, etc (tudo o que a lei
prevê). Se António e Joaquim se entendessem, poderiam fazer uma escritura no notário e já não
se levaria a questão para o tribunal, mas visto que Joaquim não concorda com a servidão de
aqueduto, António vai ter de intentar uma ação.

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Direito Processual Civil I

Que espécie de ação António terá de intentar? Ele tem o direito potestativo, pelo que, uma vez
produzidos os requisitos do art. 1561º CC e provando tudo o que está lá, o juiz decretará na
esfera jurídica de António o direito real de gozo – seria uma ação declarativa constitutiva, pois,
através das palavras do juiz, nasce um direito na esfera jurídica da pessoa.

António teria um interesse em agir? À partida, não se exige a titularidade do direito, sendo que
António teria apenas de alegar que existe esse direito. Importa aqui, explicar o que é o interesse
em agir: a pessoa tem de mostrar que a ação é o meio certo para ela exercer o seu direito e a
forma correta. Nos termos do art. 1547º CC, a servidão pode ser constituída por outra via, mas,
aqui, estando A e J em desacordo, seria impossível resolver a questão senão com a ação. Em
Portugal, não é necessário que, na petição inicial (que o advogado prepara), se mostre que não
havia outro meio para resolver a questão, pois entende-se que quando se recorre ao tribunal é
porque não se conseguiu resolver o litígio de outra forma (isto é subentendido/presumido).

2) Nessa ação, poderia o juiz atribuir uma indemnização a Joaquim?

O art. 1561º CC diz-nos que o Joaquim tem direito a uma indemnização, pois é mais valioso um
terreno sem servidões, uma vez que um terreno com servidões é um terreno invadido. Por este
facto, o beneficiário é obrigado a pagar ao proprietário do prédio uma indemnização. O juiz
poderia atribuir uma indemnização justa ao Joaquim pelos seus prejuízos, se ele a pedisse.

É preciso uma ação autónoma para ter essa indemnização? Não, porque o réu pode deduzir
pedidos contra o autor aquando do pedido da servidão de passagem do último – podem ambos
pedir o que pretendem: a isto se chama uma reconvenção (art. 266º e art. 583º CPC).

Nesta ação, um bom advogado, para além de pedir a servidão de passagem, podia fazer um
pedido inibitório de condenação – ação inibitória (que visa evitar comportamentos previsíveis e
futuros do réu), prevista no art. 10º/3/b) CPC. Esta ação visa prevenir uma violação de um direito
contra o qual pode existir uma ameaça. In casu, existiria razão e interesse em agir, porque o réu
tinha proferido ameaças e pretende-se que ele se abstenha desses comportamentos que afetam
o direito do requerente. Assim, a ação não seria uma ação puramente constitutiva, mas sim uma
ação mista, designadamente, uma ação constitutiva e condenatória.

Caso Prático 4

Eduardo é proprietário exclusivo, desde 1980, de uma casa de férias na praia do Mindelo. Em
novembro deste ano, Maria, com quem Eduardo foi casado entre 1982 e 2010 (em regime de
separação de bens) ocupou a referida casa, tendo, para o efeito, auxiliada por um terceiro,
retirado e trocado o canhão da fechadura da porta principal da referida casa de praia. Eduardo
encontra-se totalmente privado da utilização do imóvel e do recheio.

1) A que meios processuais poderá Eduardo recorrer para tutelar o seu direito sobre a
mencionada casa?

Eduardo pode, se quiser, intentar contra a ex-mulher uma ação para ter a casa de volta, i.e., a
restituição da sua casa – in casu, seria uma ação declarativa condenatória, pois ele já tem o
direito de propriedade. Assim, Eduardo tem de provar que a casa é dele e mostrar que a sua ex-
mulher entrou na casa. Todavia, as ações principais (inclusive, uma ação declarativa
condenatória, como no caso) levam tempo, pelo que se coloca a questão: haverá um meio mais
rápido/urgente para Eduardo obter o resultado pretendido?

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Direito Processual Civil I

Podemos dizer que se pode aplicar, no presente caso, uma providência cautelar de restituição
provisória de posse. Não é porque Eduardo foi viajar que ele não é proprietário. Ele exerce os
direitos de facto ligados ao seu direito de propriedade. Houve esbulho? Houve! A Maria
subtraiu-lhe uma coisa imóvel, privando-o da coisa e, inclusive, ainda o ameaçou. Assim, há
posse e há esbulho.

Foi o esbulho praticado com violência? É necessário que haja violência neste âmbito,
nomeadamente, coação física, coação moral ou ambas. Maria retirou o canhão da fechadura e
trocou-o, o que é considerado um ato violento sobre a coisa. Entendendo que existe violência
sobre a coisa, pode deitar-se mão a este procedimento (doutrina e jurisprudência dominante).

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