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Aula Magna 03 - Bloco 00 - Precedentes e modulação

PROFESSORA TERESA ARRUDA ALVIM


1. Introdução: visão geral acerca dos precedentes

O objetivo da presente aula é discorrer sobre o aspecto histórico, sistemático e conceitual dos
precedentes.

De início, cumpre observar que o Código de Processo Civil de 2015 não inventou a temática de
precedentes. Além disso, o sistema do Civil Law (isto é, aquele em que o juiz julga de acordo com a lei)
sempre se utilizou de tal fonte, com frequências distintas conforme o decorrer dos anos. De toda sorte,
a esfera jurídica brasileira constantemente trabalhou com jurisprudências pacíficas e afirmadas de um
Tribunal ou dos Tribunais Superiores. Portanto, os precedentes igualmente têm papel importante na
formação do Direito no sistema do Civil Law.

Partindo-se de sua acepção, os precedentes são a forma natural de disciplinar situações. O juízo, ao
decidir, cria um precedente, motivada por uma ratio decidendi. A ratio decidendi é o sentido essencial
do precedente, ou seja, a estrutura fundamental do raciocínio jurídico que gerou a decisão.

1.1. O sistema Common Law

Os países de Common Law (como, por exemplo, a Inglaterra, os Estados Unidos e a Austrália)
disciplinam a sociedade a partir de decisões. Os temas desse sistema são regidos por precedentes,
doutrina (legal writing) e leis. A importância da doutrina no Common Law, aliás, é recente.

Em síntese, o Common Law extrai a ratio decidendi de casos concretos, aplicando o núcleo da ratio às
circunstâncias subsequentes que são, sob o ponto de vista fático, semelhantes (e não idênticas).

Ademais, os precedentes por vezes são extremamente antigos, diferentemente do sistema brasileiro, a
título de exemplo, que se mostra apegado às decisões recentes.

Ato contínuo, vejamos exemplos práticos para ilustrar a sistemática de Common Law:

 Caso 1: em uma determinada estrada, havia um caminhão que transportava grãos. O veículo de
grande porte estava coberto por uma lona, todavia, tal cobertura não foi bem ajustada. Sendo
assim, os grãos caíram no chão e as crianças que ali se encontravam passaram a pegá-los.

 Caso 2: determinado proprietário de um imóvel armazenava trilhos de trem enferrujados no


fundo de sua casa. As crianças pularam o muro da residência e brincaram com os trilhos; por
consequência, contraíram tétano.

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Os casos são análogos, pois versam sobre o duty of care (dever de cuidar) em relação à
trespassers (invasores). Instauram-se as seguintes dúvidas: teria o motorista de caminhão
responsabilidade por não embalar sua carga de forma correta, a despeito das crianças não
poderem furtar os grãos? O proprietário teria responsabilidade de manter pedaços de ferro
enferrujados que geram perigo à saúde, apesar de, a rigor, as crianças não poderem invadir casas
alheias?

Além das circunstâncias acima mencionadas, temos mais dois exemplos práticos:

 Caso 1: uma prostituta comprou uma carruagem para exercer o meretrício. Contudo, ela
interrompeu os pagamentos da carruagem e o construtor do referido veículo entrou com uma
ação em face dela (precedente, aproximadamente, de 1700).

 Caso 2: determinada empresa comprou um aço para fabricar armas destinadas ao mercado
clandestino. Todavia, ao parar de fazer os pagamentos à empresa vendedora, esta entrou com
uma ação contra a empresa devedora (precedente, aproximadamente, de 1990).

Apesar do transcurso temporal, os casos novamente são análogos, e, na prática, os autores


perderam as ações. Entendeu-se que o recebimento de dinheiro é de atividade ilícita ou imoral.

Note que as situações são diferentes sob o ponto de vista fático e igualmente distintas temporalmente.

Logicamente, não pode haver desprezo integral dos fatos, mas os contornos fáticos precisos são
absolutamente afastados. O que importa no Common Law é o núcleo substancial jurídico do precedente.

A título de curiosidade, as decisões inglesas costumam ter 150 páginas, com a citação de todos os
precedentes nos quais irão apoiar a decisão do juiz. Entretanto, não há iura novit curia, ou seja, máxima
legal latina que expressa o princípio de que “o tribunal conhece a lei”. O magistrado de Common Law se
apoia somente nos precedentes trazidos pelas partes, não tendo a obrigação de procurá-los ou
conhecê-los.

Ademais, as finalidades do Common e Civil Law são exatamente as mesmas: gerar previsibilidade,
segurança jurídica, isonomia e harmonia (consistency).

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1.2. O sistema Civil Law

Historicamente, o Civil Law foi submetido a um movimento racional de organização, em que se


concebeu um sistema para conter o poder e arbitrariedade dos juízes. Podemos citar os seguintes países
sob essa sistemática: Itália, França e Alemanha.

Em um primeiro momento, na Bolonha – Itália, os italianos passaram a criar o soft law a partir da leitura
de textos romanos. O soft law era um Código não vinculante, servindo de modelo e inspiração. Tal
movimento atraiu os estudiosos e juristas do mundo inteiro, que se reuniram na Itália para prosseguir
com a organização. Vale ressaltar que os textos romanos eram unanimemente reconhecidos por seus
valores clássicos, além de terem sido construídos através de julgados sem lei pré-existente.

Diante disso, os estudiosos, com culturas filosóficas, teológicas e pensamentos pré-renascentistas,


passaram a organizar os textos para transformá-los no Corpus Juris Civilis. O Corpus Juris Civilis uniu
normas, pareceres e fragmentos de decisões judiciais por vezes conflitantes entre si, julgadas caso a
caso. Em razão da imensa dificuldade de se imprimir coerência a textos não harmônicos, esse referido
documento não foi concebido para integrar um Código. Na realidade, a intenção era de que os
operadores do Direito tivessem uma pauta segura para os casos concretos.

Já na Revolução Francesa, foi decidido, sob cunho sociológico e político, que o Poder Judiciário estava
sendo arbitrário ao favorecer apenas a nobreza e o clero, com regras excludentes aos burgueses. Assim,
a partir do desejo de igualdade e segurança jurídica, determinou-se que o magistrado só poderia julgar
com base na literalidade da lei, sem interpretações – o que foi questionado posteriormente, pois é
necessário o mínimo de subjetividade para compor a dicção do legislador.

Na atualidade, o legislador do CPC de 2015 teve nítida preocupação em criar condições para se ter um
direito harmônico, coeso e uno, de forma a se sentir segurança jurídica e previsibilidade, com respeito
ao princípio da isonomia, um dos basilares da Constituição Federal. Afinal, é inútil se dizer que a lei é
uma só para todos se ela comporta várias interpretações e as pessoas estão sujeitas ao conteúdo legal
nessas diversas considerações.

A professora trouxe o exemplo de mães adotivas que buscam benefício previdenciário. Uma mãe obteve
o benefício, pelo fato do magistrado considerar que o termo “mãe”, exposto na lei, se estende à mãe

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adotiva. A outra, por sua vez, não teve sucesso na demanda, uma vez que o juiz entendeu que o termo
“mãe” é restrito à mãe biológica. Mesmo em se tratando de um termo que não é vago (exemplo de
termos vagos: hipossuficiente, marca notória, bom pai de família), houve o resultado de uma decisão
com duas normas diferentes.

O sistema da Separação de Poderes, aperfeiçoado pela Revolução Francesa, é mais possível de ser
concretizado em uma configuração simples de sociedade, com poucas disciplinas sobre a vida fática, e
com o acesso à justiça restrito à parcela da população.

Todavia, o Direito, hoje, exerce um movimento tentacular, com diversas regulamentações (a mesma
pessoa tem vários papéis: idoso, pessoa com deficiência, consumidor, contribuinte, locatário, etc). Com
isso, o legislador não pode prever de antemão tudo o que irá ocorrer no mundo fático. A seu turno, o
juiz não terá sempre respaldo no dispositivo de lei literalmente considerado, e, assim, deve haver a
interpretação.

Diante da insegurança e até inexistência quanto à isonomia jurídica (isto é, as pessoas não estão sendo
tratadas de forma isonômica pelo Direito), o CPC de 2015 se prestou a regular diversos veículos,
institutos e regimes diferenciados de julgamento de recurso, que tem por objetivo uniformizar a
jurisprudência. Podemos citar os seguintes:

 Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR)

 Incidente de assunção de competência (IAC)

 Repetitivos (Recurso Especial e Extraordinário)

 Recurso Extraordinário avulso

Enfim, o processo civil, do modo como está em vigor, tem a função constitucional de criar um Direito
uno, através do movimento de proporcionar uma uniformização da jurisprudência e uma imposição de
precedentes em determinados contextos, auxiliando o Brasil a ser o Estado de Direito e com potencial
de diminuir a sobrecarga do Judiciário.

2. Regime dos repetitivos (Recurso Especial e Extraordinário) e o Incidente de resolução de demandas


repetitivas (IRDR)

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O sistema dos repetitivos e do IRDR é engendrado para solucionar problemas idênticos (e não análogos)
que afetam milhares de pessoas.

A simplicidade do procedimento inibe discussões futuras, além de gerar isonomia e previsibilidade.

Por que o legislador criou os Repetitivos e os aperfeiçoou no Código Processual Civil de 2015?
Pretendeu-se resolver casos que se multiplicam aos milhares de modo idêntico. É por essa razão que se
criam teses. As teses são decisões a respeito de determinados casos que se repetem de forma idêntica e
são aplicadas quase que automaticamente aos processos que ficaram suspensos.

A tese no caso dos Repetitivos terá os seguintes efeitos: (i) se aplicará a todos os demais recursos cujo
procedimento tenha sido suspenso e a todos os demais processos no país que discutem a tese; (ii)
prejudicará todos os recursos interpostos contra acórdão que coaduna com a tese; (iii) irá adequar os
acórdãos que discordaram do disposto na tese e foram objeto de recurso.

O legislador de 2015 não se inspirou no Common Law para criar essa sistemática, embora haja um
parentesco longínquo. São situações diferentes: tese e ratio. Vejamos as diferenças:

 Civil Law (Brasil) - A tese é pequena, sendo um caso concreto de aplicação da ratio. Nessa
hipótese, não se coaduna com a complexidade e o iter (caminho) necessário para se encontrar a
ratio do precedente. Funciona, em verdade, para gerenciar a litigância de massa (casos idênticos),
sendo marcada pela simplicidade do procedimento e pela impossibilidade de se suspender, a
priori, todos os casos que vão ser decididos com a mesma ratio.

Por exemplo: “Tese: cláusula X utilizada em massa pelos bancos é inconstitucional” – não
engloba a cláusula Y. Qualquer discussão sobre a cláusula Y estará fora do regime de repetitivos
e precisará haver a interpretação de cada magistrado (ratio).

Outra ilustração: “Tese: cobrar matrícula de Universidade Pública é inconstitucional” – não


engloba cobrança de curso de especialização pelas Universidades Públicas.

 Common Law - A ratio é uma estrutura fundamental do raciocínio jurídico que embasa a decisão.
Ela é, ademais, uma ação conjunta de identificação do que o juiz anterior pensou e a
interpretação que o juiz posterior irá aplicar. Trata-se de um caminho complexo.

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Citemos um exemplo de como a busca pela ratio funciona: foi fixado o entendimento de que
cobrar matrícula de Universidade Pública é inconstitucional. Seria possível, então, aplicar a
cobrança aos cursos de especialização oferecidos por Universidades Públicas?

A decisão anterior fundamentou que a gratuidade do ensino significa que deve se proporcionar
ao estudante meios de exercer sua profissão sem cobrança. Assim, não se pode cobrar matrícula,
expedição de diploma, prova substitutiva, etc. Diante disso, uma das interpretações poderia ser
que o curso de especialização não é meio necessário para exercer a profissão, logo, é possível
haver a cobrança.

Em conclusão, nos precedentes à brasileira no regime dos repetitivos, o que vincula não é a ratio, e sim
a tese.

2.1. Tribunais Superiores e o movimento de abertura das regras de precedentes

A possibilidade de criação de uma tese por vezes não tem sido bem compreendida pelos Tribunais
Superiores.

Em determinadas circunstâncias, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), além de resolver o caso concreto
com aplicação da tese, fixa entendimento mais abrangente, determinando, por exemplo, que o
precedente se aplique a casos não idênticos (ou seja, não abrangidos pela tese). Citemos exemplos:

 Em conflito envolvendo um consumidor e uma empresa de telefonia, o Superior Tribunal de


Justiça fixou a tese de que a devolução em dobro do valor cobrado indevidamente do
consumidor não depende da comprovação de que o fornecedor do serviço agiu com má-fé
(EAREsp 676.608 - paradigma). Todavia, fora dos limites do caso concreto e do conflito trazido
pelo recurso (empresa de telefonia), o STJ sedimentou que a tese se aplica às relações bancárias.

 Ao concluir o julgamento do Recurso Especial 1.704.520, sob o rito dos recursos repetitivos, o STJ
definiu o conceito de taxatividade mitigada do rol previsto no artigo 1.015 do Código de Processo
Civil (CPC), abrindo caminho para a interposição do agravo de instrumento em diversas hipóteses
além daquelas listadas expressamente no texto legal. Todavia, o conflito trazido à Corte versava
unicamente se caberia o agravo de instrumento de decisão sobre competência. Demais
hipóteses deveriam ser analisadas por cada juiz (ratio), uma vez que fora da tese do sistema de
repetitivos. Não foi, contudo, o que ocorreu, uma vez que o entendimento do STJ ultrapassou o

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limite da tese (cabimento de agravo de instrumento em relação à decisão sobre competência),
fixando o conceito da taxatividade mitigada.

 A tendência de abertura também ficou demonstrada com a potencial perda de aplicação do


Recurso Repetitivo Extraordinário. O legislador de 2015, na última reforma por via da Lei
13.256/2015, equiparou o sistema do recurso extraordinário avulso ou no regime de repercussão
geral em precedente vinculante (vide art. 1.030, inciso I). Não há diferença substancial, portanto,
entre o Recurso Repetitivo Extraordinário e Recurso Extraordinário avulso. No entanto, o recurso
extraordinário avulso nem sempre trata de casos idênticos, o que fará a necessidade de se
buscar a ratio.

Por outro lado, há posicionamentos nos STJ que respeitam o regime dos repetitivos. No Tema 938 do
sistema de recursos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), entendeu-se que é válida a cláusula
contratual que transfere ao consumidor a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos
de compra e venda de imóveis, desde que ele seja previamente informado do preço total da aquisição
da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão. Ato contínuo, o Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino afetou outro recurso, que estava fora do regime dos repetitivos, para discutir a
possibilidade de cobrança de corretagem nos casos em que envolver o programa “Minha Casa, Minha
Vida”.

2.2. Tribunais Superiores e o movimento de fechamento de julgamento

É o movimento oposto ao acima referido, observada na Lei 13.256/2015, em seu art. 988, § 5º, inciso II.
O referido dispositivo legal postergou o cabimento da reclamação quando envolver observância de
precedente vinculante do STJ e do STF, admitindo-a apenas quando estiverem exauridas as vias
ordinárias. Proibiu-se, assim, a reclamação per saltum.

Na opinião da professora, não há fundamento jurídico que justifique esse posicionamento legal, apenas
sociológico, em razão da sobrecarga do Judiciário.

Ademais, em decisão recente dada pelo Ministro Luiz Fux (Agravo Regimental na Reclamação 39.567/RJ),
foi reafirmado o posicionamento de que não cabe reclamação quando não houver demonstração da
teratologia da decisão reclamada. Ou seja, a reclamação revela-se incabível para discutir ratio, somente

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sendo admitida quando para discussão de tese. A reclamação é aceita quando o precedente for violado
ictu oculi, com clareza.

3. Modulação

Em uma certa medida, o juiz cria direitos, ou, em outras palavras, o Poder Judiciário desempenha papel
relevante na construção da norma jurídica. É uma atuação conjunta do legislador (lei), magistrado
(jurisprudência) e doutrina. Vejamos exemplos:

 A situação da concubina no Direito de Família é um exemplo da suscitada afirmação. Esse antigo


caso foi disciplinado totalmente pela jurisprudência. Por exemplo, quando a concubina vivia em
união estável, após o rompimento, inicialmente não fazia jus a nada. Posteriormente, passou a
ter direito a um salário mínimo por mês de convivência. Depois, concebeu-se a tese da situação
de fato. No fim, o legislador regulou a figura da união estável.

 O Supremo Tribunal Federal decidiu equiparar as relações entre pessoas do mesmo sexo às
uniões estáveis entre homens e mulheres (ADI 4.277 e ADPF 132). Não há leis sobre essa
temática.

 O Superior Tribunal de Justiça ampliou o conceito de bem de família, para abranger, também, o
imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas, entendimento cristalizado no
enunciado de Súmula n. 364.

Com efeito, usar conceitos vagos é legislar para o futuro, deixando espaço para a subjetividade e
liberdade do juiz. Justamente por isso, é possível haver mudanças de posicionamento.

Portanto, há a necessidade de se criarem normas de direito intertemporal pelo direito criado pelo
próprio juiz, pois a mudança de jurisprudência tem, em regra, efeito retroativo. Por exemplo:
determinado contribuinte não efetuou o recolhimento de determinado tributo considerado
inconstitucional. Com a mudança de posicionamento do STF, haverá a cobrança. A pauta de conduta do
jurisdicionado é substancialmente alterada.

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Por isso, o legislador de 2015, apercebendo-se dessas barbaridades, criou a possibilidade dos Tribunais
modularem efeitos de suas alterações de orientação: (i) firme e pacificada, (ii) contida em súmula, (iii)
expressada através de recurso repetitivo ou (iv) precedente vinculante.

Anote-se que o art. 927 do CPC é meramente exemplificativo. Qualquer Tribunal pode alterar a
jurisprudência, tal como, por exemplo, o de segundo grau, dado que muitas vezes é o último a dar a
palavra.

No mais, a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido atingem somente a lei, e não a
jurisprudência. Quando o posicionamento jurisprudencial muda, só não poderá afetar a coisa julgada – o
que ainda pode ser questionado em ação rescisória, quando a decisão não modular efeitos.

Enfim, a modulação dos efeitos é uma forma do particular defender-se do Estado. A função do Estado é
gerar tranquilidade, e não tumulto. Assim, quando o Tribunal muda sua jurisprudência de repente, antes
pacificada e que gerava confiança no jurisdicionado (a ponto de ele planejar sua vida em função de
como o Tribunal decidiu a questão), é de fato um venire contra factum proprium (vedação ao
comportamento contraditório), ou seja, uma conduta de má-fé objetiva que prejudica o jurisdicionado.

Quando os Tribunais Superiores devem modular? Embora a jurisprudência tenha vocação retroativa, é
possível analisar determinados requisitos. São critérios que devem ser julgados em conjunto e de forma
relativa, em razão de seus nuances. Assim, a modulação deve ocorrer nas seguintes hipóteses
cumulativas:

1. Deve haver uma pauta de conduta anterior firme, que tenha gerado confiança no jurisdicionado.
Afinal, a razão de ser da modulação é o princípio da proteção à confiança (é a segurança jurídica
em seu aspecto subjetivo).

2. Quando a mudança ocorrer no campo de um direito rígido, deve haver modulação. O Direito
pode ser dividido em dois tipos de ambientes: flexíveis (Direito Contratual, de Família...) ou
rígidos (Direito Penal, Direito Tributário, direitos reais...). O ambiente dos direitos rígidos é
aquele em que se privilegia de forma acentuada a segurança jurídica e a previsibilidade (por
exemplo, no campo penal, há o art. 1º do CP: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não
há pena sem prévia cominação legal”). O ambiente dos direitos flexíveis, por sua vez, veicula
situações em que a segurança jurídica não é prevalente, e sim o acerto da decisão.

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3. Quando a nova posição, nos processos em que envolvem o Estado, for desfavorável ao indivíduo.
Exemplo: a criação de um tipo penal, exigibilidade um tributo, aumento de uma alíquota...

O Tribunal não precisa modular necessariamente, porém, a manifestação sobre a modulação é


obrigatória, sob pena da decisão ser omissa. Afinal, o instituto da modulação tem reflexo no país inteiro,
pois é a eficácia da decisão enquanto precedente, ou, ainda, enquanto pauta de conduta para toda a
sociedade.

LEITURAS RECOMENDADAS

 ALVIM, Teresa Arruda. Reflexões a respeito do tema “precedentes” no Brasil do século 21.
Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.78, jun. 2017. Disponível em:
<https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao078/Teresa_Arruda_Alvim.html>.

 FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017.

 BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a
ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Disponível em:
<https://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/854>.

 Notícias STF. Supremo reconhece união homoafetiva. 2011. Disponível em:


<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931>.

 Portal STF. STF conclui que direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal.
2021. Disponível em:
<https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=460414&ori=1>.

JURISPRUDÊNCIAS

 DECISÃO (em sede de embargos de declaração): O Tribunal, por maioria, acolheu, em parte, os
embargos de declaração para [...] b) propor a alteração na redação da tese de repercussão geral
fixada, para evitar qualquer contradição entre os termos utilizados no acórdão ora embargado,
devendo ficar assim redigida: “4. Foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “(i) [é]
constitucional a vedação de continuidade da percepção de aposentadoria especial se o
beneficiário permanece laborando em atividade especial ou a ela retorna, seja essa atividade

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especial aquela que ensejou a aposentação precoce ou não; (ii) nas hipóteses em que o segurado
solicitar a aposentadoria e continuar a exercer o labor especial, a data de início do benefício será
a data de entrada do requerimento, remontando a esse marco, inclusive, os efeitos financeiros;
efetivada, contudo, seja na via administrativa, seja na judicial, a implantação do benefício, uma
vez verificada a continuidade ou o retorno ao labor nocivo, cessará o pagamento do benefício
previdenciário em questão.”; c) modular os efeitos do acórdão embargado e da tese de
repercussão geral, de forma a preservar os segurados que tiveram o direito reconhecido por
decisão judicial transitada em julgado até a data deste julgamento; d) declarar a irrepetibilidade
dos valores alimentares recebidos de boa-fé, por força de decisão judicial ou administrativa, até
a proclamação do resultado deste julgamento, nos termos do voto do Relator, vencido
parcialmente o Ministro Marco Aurélio, que divergia apenas quanto à modulação dos efeitos da
decisão. Plenário, Sessão Virtual de 12.2.2021 a 23.2.2021. (STF, RE 791961, Relator(a): DIAS
TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2020, Tema 709).

 EMENTA: Direito de família e processual civil. União entre pessoas do mesmo sexo (homoafetiva)
rompida. Direito a alimentos. Possibilidade. Art. 1.694 do CC/2002. Proteção do companheiro em
situação precária e de vulnerabilidade. Orientação principiológica conferida pelo STF no
julgamento da ADPF 132/RJ e da ADIn 4.277/DF. Alimentos provisionais. Art. 852 do CPC.
Preenchimento dos requisitos. Análise pela instância de origem. 1. No STJ e no STF, são
reiterados os julgados dando conta da viabilidade jurídica de uniões estáveis formadas por
companheiros do mesmo sexo, sob a égide do sistema constitucional inaugurado em 1988, que
tem como caros os princípios da dignidade da pessoa humana, a igualdade e repúdio à
discriminação de qualquer natureza. 2. O STF, no julgamento conjunto da ADPF 132/RJ e da ADIn
4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do CC/2002 interpretação conforme à Constituição para dele
excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito
de família; por conseguinte, “este reconhecimento é de ser feito segundo as mesmas regras e
com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”. 3. A legislação que regula a
união estável deve ser interpretada de forma expansiva e igualitária, permitindo que as uniões
homoafetivas tenham o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais heterossexuais,

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trazendo efetividade e concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da não
discriminação, igualdade, liberdade, solidariedade, autodeterminação, proteção das minorias,
busca da felicidade e ao direito fundamental e personalíssimo à orientação sexual. 4. A igualdade
e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à autoafirmação e a um
projeto de vida independente de tradições e ortodoxias, sendo o alicerce jurídico para a
estruturação do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inseparável e
incontestável da pessoa humana. Em suma: o direito à igualdade somente se realiza com
plenitude se for garantido o direito à diferença. 5. Como entidade familiar que é, por natureza ou
no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros,
constituindo-se no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas
relações humanas de índole privada, o que a credenciaria como base da sociedade (ADIn
4277/DF e ADPF 132/RJ), pelos mesmos motivos, não há como afastar da relação de pessoas do
mesmo sexo a obrigação de sustento e assistência técnica, protegendo-se, em última análise, a
própria sobrevivência do mais vulnerável dos parceiros. 6. O direito a alimentos do companheiro
que se encontra em situação precária e de vulnerabilidade assegura a máxima efetividade do
interesse prevalente, a saber, o mínimo existencial, com a preservação da dignidade do indivíduo,
conferindo a satisfação de necessidade humana básica. O projeto de vida advindo do afeto,
nutrido pelo amor, solidariedade, companheirismo, sobeja obviamente no amparo material dos
componentes da união, até porque os alimentos não podem ser negados a pretexto de uma
preferência sexual diversa. 7. No caso ora em julgamento, a cautelar de alimentos provisionais,
com apoio em ação principal de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva, foi
extinta ao entendimento da impossibilidade jurídica do pedido, uma vez que “não há obrigação
legal de um sócio prestar alimentos ao outro”. 8. Ocorre que uma relação homoafetiva rompida
pode dar azo ao pensionamento alimentar e, por conseguinte, cabível, em processo autônomo,
que o necessitado requeira sua concessão cautelar com a finalidade de prover os meios
necessários ao seu sustento durante a pendência da lide. 9. As condições do direito de ação
jamais podem ser apreciadas sob a ótica do preconceito, da discriminação, para negar o pão
àquele que tem fome em razão de sua opção sexual. Ao revés, o exame deve-se dar a partir do
ângulo constitucional da tutela da dignidade humana e dos deveres de solidariedade e
fraternidade que permeiam as relações interpessoais, com o preenchimento do binômio

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necessidade do alimentário e possibilidade econômica do alimentante. 10. A conclusão que se
extrai no cotejo de todo ordenamento é a de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares
homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à
formação de uma autonomizada família (ADIn 4277/DF e ADPF 132/RJ), incluindo-se aí o
reconhecimento do direito à sobrevivência com dignidade por meio do pensionamento
alimentar. 11. Recurso especial provido. (REsp 1302467/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJe 25/03/2015).

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