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2018 1º Fórum Jurídico – Sérgio Cruz Arenhart

Ana Carolina Castro Tinelli, 08.10.2018

É fundamental que comecemos a debater técnicas processuais aptas a lidar com o problema dos
chamados “processos estruturais”, pois é uma realidade concreta do Poder Judiciário brasileiro e sobretudo
da Justiça Federal. Cotidianamente os magistrados lidam com o tema, muitas vezes sem se dar conta. O
maior exemplo diz respeito às ações de fornecimento medicamentos, que normalmente são vistas apenas
sob a ótica do direito fundamental à saúde de um único e determinado sujeito, em contraposição ao
patrimônio público. Mas, na realidade, o problema subjacente é a possibilidade (ou não) de atrair ao Poder
Judiciário a gestão da saúde pública e do orçamento brasileiro. Ações que envolvem, por exemplo, fila para
a realização de cirurgia, acabam sendo abstraídas em uma demanda individual, na qual o que se vê é
simplesmente o interesse do autor, individualmente considerado; não se analisa nesse processo a
circunstância de outras pessoas estarem na mesma condição, até com mais urgência.
Os magistrados, em razão da própria lógica tradicional do processo, são levados a trabalhar com
esses problemas como se fossem conflitos individuais tradicionais, quando a rigor não são; ao revés, são
conflitos estruturais transformados em demandas individuais. Não podem ser examinados de acordo com
as regras tradicionais dos conflitos individuais. Quem olha o problema simplesmente sob a ótica individual,
desconsiderando o todo, corre o sério risco de ver o que tem acontecido hoje em dia em matéria de saúde:
cada juiz defere sua liminar sem saber que outro colega deferiu medida semelhante em relação a outra
pessoa, de modo que o Administrador Público fica com várias decisões judiciais pendentes, sem
possibilidade de cumprimento por falta de orçamento e de leitos. Na prática, as liminares são bem
intencionadas, mas inviáveis concretamente. É necessária outra forma de abordagem.
Outro exemplo muito comum é a propositura de Ação Civil Pública para instalação de unidades da
Defensoria Pública em determinados Municípios. Sob o ponto de vista constitucional (obrigação de
atendimento aos hipossuficientes) a pretensão é pertinente, mas não é simples viabilizar toda a estrutura
necessária. E como são várias ações e, consequentemente, inúmeras decisões determinando a instalação
em cidades diferentes, o Estado acaba por não cumprir nenhuma delas ou instala apenas naquela localidade
em que foi proferida a primeira decisão, como se os recursos públicos pudessem ser distribuídos e alocados
de acordo com a anterioridade da determinação judicial.
Não será abordada a definição de processos estruturais, mas é relevante consignar que
anteriormente se utilizava a expressão “decisão estrutural”, em uma tradução quase literal da figura análoga
empregada no modelo americano “structural injunctions”. O que percebe em relação ao modelo americano
é que a ideia acaba não se ligando estritamente ou unicamente a conflitos de porte.
O tema merece ser abordado sob uma ótima mais ampla: litígios que são efetivamente complexos,
que não envolvem apenas essa situação dual (autor/réu), para os quais o CPC73 e CPC2015 não foram
pensados, tampouco a legislação coletiva. São conflitos multipolares, com vários polos diferentes de
interesses sobre a mesma situação.
Com efeito, há situações complexas que devem ser geridas, se o caso, pelo Judiciário, para que haja
solução não apenas para um problema pontual, mas para um todo. A lei brasileira não foi feita para esse
tipo de conflito, nem mesmo a legislação de processos coletivos. As ações coletivas propostas com base na
lei da ação civil pública e no CDC, por ex., tem caráter individual, pois são propostas por um legitimado e os
sujeitos atingidos sequer participam do processo. É como se o legitimado coletivo tivesse uma onisciência
daquilo que a população precisa, em ordem a solicitar um provimento jurisdicional (em nome próprio). O
grupo atingido é alijado do processo, de modo que a ação coletiva brasileira, a rigor, nada mais é do que
uma demanda individual, sendo que aquele sujeito que se apresenta na defesa do interesse metaindividual
diz o que acha que deve ser feito. A lógica é estritamente a mesma do processo individual: o legitimado
(autor) fixa os limites da demanda, aponta provas, recorre ou não, executa ou não, celebra acordo, etc. É
uma ação individual tradicional, mas que envolve direitos dos outros. Cite-se exemplo de uma ação coletiva
proposta na defesa do meio ambiente, em que o legitimado ativo celebrou acordo para doação de livros
para a biblioteca de uma determinada faculdade. Ou seja, o legitimado decidiu, individualmente, o modo de
satisfação da pretensão, de acordo com o que achava melhor.
É muito comum pensar que, uma vez judicializada a questão, a tramitação deve ser a mesma de
uma demanda individual. E embora isto até sirva para certos tipos de litígio coletivo, no tocante aos litígios
complexos é extremamente prejudicial, pois o que acontece hoje em dia é que têm sido alocadas no Poder
Judiciário discussões de politicas públicas e utilizadas ferramentas concebidas para lidar com problemas
individuais.
Não se trata de aceitar ou não o ativismo judicial (se ele é bom ou ruim) – isto até pode ser
relevante, mas é lateral. O grande problema, na verdade, é admitir o ativismo judicial em uma demanda
que não foi concebida para esse tipo de discussão. O que se tem visto é o MP e a União discutindo saúde,
educação, gestão penitenciária, etc., em processos individuais, com os limites que lhes são inerentes
(postulatórios, probatórios, recursais). Esse é um grande erro, razão pela qual surge a técnica de estudo
atinentes aos “processos estruturais”. É preciso pensar um processo judicial em que os debates de política
pública ou de conflitos complexos (que não necessariamente envolvem questões públicas) aconteçam de
maneira mais legítima; pensar na ação em sua dimensão constitucional, não apenas como o direito de
provocar o Judiciário, mas também como instrumento para construção de um procedimento adequado e
efetivo à tutela de certo tipo de interesse. O modelo de ação individual não serve para tanto.
Mas o direito brasileiro atual tem ferramentas que permitem esse outro tipo de modelo/processo?
Sim, mas em primeiro lugar há o problema de representação adequada desses interesses em juízo. Como se
faz para que realmente aquilo que é discutido no processo reflita a verdadeira discussão posta no âmbito da
sociedade? Como é que se tem certeza de que aquilo que é demandado em uma ação coletiva ou individual
reflete a questão toda que é posta na discussão social? Em relação a esse ponto, há sim situações ou
respostas dadas pelo próprio CPC15 que permitem a construção de um procedimento mais adequado a esse
objetivo. Isso já era colocado, por exemplo, em alguns projetos de lei que buscavam revisar o regime da ACP
– infelizmente não vingaram. Mas mesmo com o que há no CPC15 é possível a construção de um
procedimento capaz de recepcionar de forma mais adequada o conflito posto na sociedade em sua
inteireza. O CPC15 prevê uma série de instrumentos capazes de demonstrar que situações aparentemente
individuais não são propriamente individuais; são o que o professor Watanabe chama de demandas pseudo
individuais, pois envolvem, na realidade, uma questão coletiva, ainda que tenha sido colocada em juízo
como se fosse individual.
Alude-se especificamente a dois institutos postos no CPC15: o primeiro é o artigo 139, que, ao
tratar dos poderes do juiz, estabelece que cabe a ele provocar a atuação dos legitimados quando verificar
que uma questão veiculada como individual na realidade é coletiva. É raro de ver isso acontecer na prática,
mas é um dos grandes instrumentos do CPC15, pois não há necessidade de tratar demandas como
individuais apenas porque o autor veiculou desta forma. Elas não se tornam individuais só porque o autor
disse. Quando alguém demanda um medicamento X, trabalhar apenas sob a ótica individual é um equívoco:
percebendo que a causa tem repercussão coletiva, por envolver outros sujeitos que têm a mesma
necessidade, a primeira providência do magistrado seria aplicar o referido dispositivo do CPC, provocar a
atuação dos legitimados, para que seja ajuizada uma ação coletiva, de modo que o fármaco seja fornecido
para todos queles que precisam. Até porque normalmente a primeira pessoa que postula em juízo não é
aquela que mais precisa, pois muitas vezes quem tem maior urgência sequer sabe que tem direito a
provocar o Judiciário (hipossuficiência informacional, organizacional). Tratar a questão de maneira
minimamente adequada é permitir que o aspecto coletivo seja considerado em juízo, de modo a tratar o
problema na sua inteireza: há condições financeiras para fornecer o medicamento a todos? Seria melhor
priorizar certos casos?
O segundo instrumento que permite a recepção total do problema é também um dispositivo pouco
empregado, qual seja, o artigo 69, §3º do CPC15, que trata dos chamados “atos concertados entre os juízes
cooperantes”, figura extremamente útil mas também pouco utilizada. É a possibilidade de reunir questões
que tramitam perante juízos diversos, para tratamento conjunto (instrução, julgamento), em ordem a
visualizar a dimensão total do problema e evitar o que se vê todo dia – a perícia do caso A diz que o
remédio é fundamental, mas a perícia do caso B não. Essa disparidade de soluções, especialmente em prova
pericial, é enorme. Atualmente o Judiciário tem buscado soluções uniformes, como perícias gerais
realizadas pela mesma instituição, para subsidiar ações de medicamento.
Neste passo, é fundamental repensar a noção de representatividade adequada. Apesar de existir um
rol de legitimados para a propositura de ação coletiva, é fundamental pensar se o sujeito que está
defendendo a tese realmente representa ou não aquela coletividade. E muitas vezes não é uma questão de
má-fé: no caso das lavadeiras do vale do Jequitinhonha, o MP buscou uma determinada proteção e, na
verdade, os envolvidos desejavam outra solução. Outro exemplo real foi o caso de uma ação ajuizada pelo
MP para isentar um grupo de pessoas, residentes em determinada localidade, da cobrança de pedágio;
depois de julgada procedente a ação, verificou-se, em sede de execução, que a localidade não existia
formalmente, era uma região que não podia ser identificada de forma precisa.
Há muitos outros casos no mesmo sentido, e, portanto, não é raro que haja essa dificuldade no
tocante aos legitimados coletivos. O fato é que há necessidade de mínima aderência entre aquilo que se
postula em demanda com caráter complexo (individual ou coletiva) e o que de fato é necessário para que a
sociedade tenha um debate adequado sobre o problema específico. Não é possível que o MP, simplesmente
por vontade própria, delimite os contornos de um litígio complexo e que muitas vezes não é conhecido
pormenorizadamente. É preciso que haja uma certa abertura nos limites de discussão da causa. Não é
possível que o autor fixe os contornos que implicarão os limites da atuação jurisdicional, pois muitas vezes a
ação será julgada anos depois. É muito comum no campo coletivo que o processo tenha início com um tipo
de ideia do problema, mas ao longo do tempo aquela questão muda. Há o exemplo da ação ajuizada diante
da mudança da tomada brasileira: não foi deferida a liminar e eventual sentença de procedência, após
muitos anos, quando a população já estava adaptada, causaria muitos prejuízos. Uma melhor solução seria,
por ex., determinar que as duas tomadas convivessem, mas esse não foi o pedido inicial.
Neste contexto, o próprio CPC 15 autoriza uma certa flexibilidade quanto ao pedido, que deve ser
interpretado à luz da boa fé e do conjunto da postulação feita em juízo. Note-se que o código não fala em
conjunto da petição inicial, mas sim em conjunto da postulação, que compreende todos os atos
postulatórios que as partes formulam no decorrer do processo, assim como fatos novos que interferem na
postulação e devem, portanto, interferir no provimento jurisdicional. Logo, a ideia de pedido aberto, é
acolhida e autorizada pela legislação.
Uma terceira questão fundamental é repensar os elementos de autocomposição utilizados em juízo.
Há uma magistrada no Piauí que entende não ser suficiente convocar apenas do processo para as tentativas
de acordo; é necessário convocar todos os envolvidos no problema que podem colaborar para a solução da
controvérsia. Como exemplo, o caso de uma máquina do hospital que não funcionava adequadamente e a
juíza chamou muitas pessoas, inclusive o revendedor da máquina, e foi possível resolver o problema, que se
arrastava há anos. É a lógica de buscar não somente um diálogo mais adequado sobre o problema mas
também a solução mais adequada, que enxerga o problema como um todo.
Há ainda a questão da coisa julgada. A sistemática do CPC sobre as decisões parciais de mérito e de
um modelo diferenciado de coisa julgada sobre a questão, permite a decisão fracionada de mérito e uma
construção escalonada da coisa julgada. O que acontece muito frequentemente é que nessas demandas de
caráter estrutural o juiz tem que trabalhar com a lógica de tentativa e erro (tenta uma solução, se não der
certo tenta outra, etc.), de modo que não é possível aplicar as normas de preclusão e coisa julgada do
processo tradicional. É necessário pensar um modelo diferenciado de preclusão, que leve em conta a
necessidade da lógica de tentativa e erro, e mais, que se possa construir a solução ao longo do tempo. É a
possibilidade de construção de soluções abertas, no ambiente das soluções parciais de mérito.
Um dos exemplos mais importantes de processo estrutural é uma ação ambiental do MP em
Criciúma/SC, que só foi possível ir adiante porque o juiz deu uma solução razoavelmente aberta em termos
de sentença. Era um caso que envolvia uma bacia de carvão e a cidade era praticamente devastada em
razão da exploração. O juiz simplesmente impôs a obrigação de recuperar o meio ambiental e essa cláusula
aberta permitiu a criação de instrumentos de efetivação que hoje são hábeis a resolver o problema.
Por último, é preciso falar sobre a efetividade das decisões judiciais que tratam desse tipo de
problema. Quando se fala de processos estruturais que envolvem políticas públicas é comum a substituição
do Poder Judiciário às decisões próprias da Administração. Mas essa substituição não é necessária, nem
exigida; ao contrário, muitas vezes a solução pode ser promovida de maneira dialógica. Nada impede que o
juiz determine a obrigação de reparação ambiental e que a forma seja determinada pelo IBAMA. Há uma
decisão famosa do STF que envolve uma unidade penitenciária do RS, em que o Ministro Barroso
reconheceu a obrigação de reforma, ante a violação de direitos fundamentais dos presos, determinando ao
Estado que apresentasse em certo prazo as soluções entendidas como pertinentes. Esse tipo de diálogo é
necessário e muitas vezes é a única forma de se permitir o avanço e a própria implementação da política
pública. Da mesma maneira, a implementação escalonada de certas políticas públicas, por exemplo, o caso
da decisão judicial que determinou, no bojo de uma ACP proposta em Fortaleza, a observância de uma fila
administrativa para cirurgias ortopédicas; o objetivo era reduzir a fila em 10% no primeiro ano e depois se
verificaria como continuar com a melhoria. Não é anormal, portanto, o estabelecimento de metas de
cumprimento ao longo do tempo. Foi também o que aconteceu na ACP do carvão em Criciúma: o juiz
estabeleceu metas a serem implementadas em certos períodos e até hoje a execução está acontecendo.
Havia, inclusive, um site na internet que permitia o acompanhamento pela população do que já havia sido
realizado, de forma a dialogar com a sociedade, oferecendo respostas em relação ao litígio que é posto em
juízo.
Tais possibilidades existem na legislação brasileira. O próprio CPC autoriza o juiz a impor as medidas
necessárias à satisfação da tutela específica do direito (cláusula aberta). É possível que o juiz, por exemplo,
eleja um agente fiscalizador da implementação e melhoria da política pública, em analogia ao que acontece
nas demandas individuais, na figura do administrador judicial.
Nessa sistema aberto de efetivação das decisões judiciais há uma técnica que tem sido empregada
de forma muito útil, que é a formação de grupos de acompanhamento da decisão judicial – o que foi feito,
também na ACP do carvão, em que se criou um grupo formado por representantes de órgãos públicos, das
empresas carboníferas e da comunidade, para decidir sobre a suficiência ou não das metas impostas na
decisão judicial. Apenas quando não há acordo o juiz decide. Há solução parecida na ACP das creches de SP,
em que se formalizou um grupo que acompanha a implementação da decisão. Essa delegação de
atividades, inclusive para órgãos técnicos, é muito útil, necessária e admitida.
Assim, muito embora haja a necessidade de certa criatividade e esforço na interpretação do direito
posto, há ferramentas que permitem a construção de um processo adequado a gerir esse tipo de processo
que chamamos de estrutural, que envolve litígios complexos.
Por fim, ressalte-se que a estrutura do Judiciário brasileiro não é receptiva ao trabalho do juiz em
matéria de demandas complexas, na medida em que o CNJ e as Corregedorias impõem metas e não há,
contudo, processo estrutural que se resolva rapidamente. É fundamental que os órgãos de fiscalização do
Judiciário percebam a necessidade de que os magistrados tenham tempo e condições para administrar esse
tipo de processo e fomentar a solução do problema. O fato é que existem instrumentos para contribuir com
a discussão de políticas públicas no ambiente jurisdicional em um espaço mais adequado, democrático e
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