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CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

UFPE – 1º semestre/2023
Disciplina: O direito processual em transformação
Professor: Doutor Leonardo Carneiro da Cunha
Aluna: Lafaelle N. Oliveira

8º QUESTIONÁRIO
1) Existe litispendência entre ação coletiva e ação individual? Por quê? Explique. Havendo
uma ação coletiva que possa beneficiar os integrantes de um grupo e uma ação individual de
um dos integrantes desse mesmo grupo contra o mesmo réu, o que existe? O que deve ser
feito? Explique.
O instituto da litispendência nada mais é do que a pendência do processo, da lide. O Código
de Processo Civil ao mencioná-la trata não propriamente do instituto, mas de seus efeitos. Dentre os
efeitos processuais da litispendência destacamos o principal, que é o de impedir a propositura de
demanda idêntica1.
O aludido efeito do impedimento, segundo Dinamarco, tem duplo objetivo: o primeiro de
proibir que uma demanda pendente seja reproposta enquanto pender; e segundo de impor que se isso
acontecer, o segundo processo seja extinto sem julgamento de mérito. O intuito desta vedação é de
evitar que se deem decisões que na prática sejam contraditórias para as mesmas partes2.
Ao tratar da relação entre as ações individuais e coletivas um dos pontos cruciais é se há ou
não litispendência entre tais demandas. Cabe, portanto, identificar os elementos de ambas. Quanto ao
aspecto objetivo, pedido e causa de pedir, é pacífica a origem comum da causa de pedir, no entanto,
os pedidos nem sempre são iguais, mas similares. Quanto aos aspectos subjetivos devemos atentar
não para os legitimados, mas para os substituídos (representados), que processualmente podem ser os
mesmos3.
A doutrina majoritária entende que não se opera litispendência entre tais demandas. Neste
sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso4 considera a possibilidade do trâmite concomitante entre
ações coletivas e individuais em virtude não haver a identificação dos elementos da ação.
Cumpre salientar, que a disciplina processual estabelece na hipótese do reconhecimento de
demandas idênticas que o segundo processo seja extinto sem julgamento do mérito. Por óbvio, o
reconhecimento da total identificação das demandas obsta o prosseguimento da que foi

1 DE ARAÚJO GUIMARÃES, Amanda. Ação coletiva como meio de molecularização de demandas. 2018.

2 Idem, ibidem.

3 Idem, ibidem.

4 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, 2ª Ed. Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada - Teoria Geral das Ações Coletivas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 669.
posteriormente proposta. Apesar de ser possível a identificação da causa de pedir e até mesmo do
pedido entre as ações coletivas e individuais que pleiteiam direitos individuais homogêneos não há
total identificação que justifique a extinção da ação, sob pena de prejuízos ao direito de ação e à
garantia da inafastabilidade do judiciário 5.
Havendo uma ação coletiva que possa beneficiar os integrantes de um grupo e uma ação
individual de um dos integrantes desse mesmo grupo contra o mesmo réu, o autor tem a faculdade de
pedir a suspensão da ação individual no prazo de 30 (trinta) dias para que seja beneficiado com os
efeitos da ação coletiva.

2) O que significam os sistemas opt in e opt out no processo coletivo? Explique.


Quando falamos ação coletiva que tenha por objeto direitos individuais homogêneos, é
preciso compreender que os efeitos da coisa julgada aos membros desse grupo são sujeitos a regras
distintas daquelas aplicadas aos direitos coletivos e difusos, já que estes tratam-se de direitos
indivisíveis.
Já os direitos individuais homogêneos – por natureza, divisíveis –, tem por titulares pessoas
identificadas, que foram reunidas em um processo por questões de economia processual. Isto é, não
há óbice, nesses casos, para que a pessoa lesada ingresse judicialmente de maneira individual, mas
como há um número determinado de pessoas na mesma situação, os casos podem ser reunidos em
um único processo.
Ferraresi6 afirma, no entanto, que “a demanda para a defesa coletiva de direitos individuais homogêneos
não se confunde com a técnica do litisconsórcio, porque neste há uma pluralidade subjetiva de demandas, ao passo que
naquela existe uma única demanda, que defende o direito de todos os titulares”.
De maneira a ilustrar o conceito, podemos citar como exemplos de direitos individuais
homogêneos aqueles que decorrem de relação consumerista, onde uma empresa causa dano a
determinado grupo de pessoas por comercializar determinado produto de maneira defeituosa e
também aquelas ações propostas por associação ou sindicato pleiteando vantagens a determinada
categoria profissional.
Partindo dessas diferenças, chegamos ao sistema de exclusão (opt-out) e ao sistema de inclusão
(opt-in). No sistema de exclusão, todos os membros de determinado grupo são considerados
integrantes da ação coletiva pelo ente que o representa. Os integrantes, nesses casos, podem pleitear
sua exclusão.

5
DE ARAÚJO GUIMARÃES, Amanda. Ação coletiva como meio de molecularização de demandas. 2018.

6 FERRARESI, Eurico. Ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo: instrumentos processuais
coletivos. Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 52.
Neste sistema, todos os substituídos sofrem os efeitos da coisa julgada produzida pela ação
coletiva, independentemente de o julgamento ser procedente ou improcedente. É possível observar
que esse sistema busca extrair o máximo possível da ação coletiva, já que inclui todos os substituídos.
No entanto, há grandes riscos de violação a direitos fundamentais, já que, havendo problemas
na comunicação a todos os membros integrantes da ação coletiva, muitos podem figurar na ação sem
sequer saber disso, sem que lhes tenha sido dada oportunidade de manifestar-se e, podem, inclusive,
sofrer os efeitos da improcedência em uma ação da qual não tinham conhecimento.
Neste sentido, Owen Fiss7 afirma que “o fato verdadeiramente perturbador em se tratando de class
action é que ela cria uma situação na qual posso ser representado em processos sobre os quais nada sei, por alguém que
não escolhi e nem ao menos conheço”.
De qualquer maneira, num possível ponto de equilíbrio, é importante ponderar o caso de
países como Dinamarca, Israel e Noruega, onde o sistema opt-out é utilizado de maneira residual. Isto
significa que, ao invés de, indiscriminadamente, pessoas fazerem parte de quaisquer demandas
coletivas sem tomar conhecimento disso, nesses locais a utilidade do sistema dá-se em causas com
ínfimo valor econômico, que dificilmente seriam propostas de maneira individual, como, por
exemplo, o pedido de condenação de uma instituição bancária a restituir tarifa cobrada de forma
abusiva.
Por seu turno, o sistema opt-in, também chamado de sistema de inclusão, apresenta um
modus operandi totalmente oposto. Neste sistema, o membro do grupo deve expressamente
manifestar-se no sentido de integrar o polo da ação coletiva.
Aqueles membros que, após notificados, não manifestarem sua vontade de inclusão no
processo coletivo dentro do prazo determinado, ao contrário, restarão excluídos do âmbito de
abrangência daquela coisa julgada, não podendo ser prejudicados ou beneficiados por ela8.
O sistema opt-in, ao contrário do sistema opt-out, parece resguardar os direitos fundamentais do
processo, de maneira que todos os integrantes expressam sua vontade de participar de determinada
ação coletiva e estão cientes das possibilidades da ação.
Por esse motivo, há de se pensar que esse seria um ideal de modelo, imune a críticas, mas é
preciso lembrar que, nesse caso, o que pode ocorrer é um esvaziamento do processo coletivo.
Isto porque naquelas causas que versem sobre direitos individuais homogêneos de ínfimo
valor econômico, dificilmente os membros substituídos se sentirão estimulados a envidar esforços em
favor da causa. Além disso, outro fator que pode levar ao esvaziamento do processo coletivo reside

7 FISS, Owen. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre Jurisdição, Constituição e sociedade/Owen Fiss;
coordenação da tradução Carlos Alberto de Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silva, Melina de Medeiros Rós. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. P. 239.

8 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e
common law: uma análise de direito comparado. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. P. 235.
na publicidade conferida à causa, já que, nos casos de comunicação insuficiente, muitos membros não
terão oportunidade de integrar a ação por sequer saber da existência delas.

3) Qual o regime da coisa julgada coletiva? A coisa julgada coletiva beneficia a todos? Em
que medida? Explique. A coisa julgada da questão prejudicial decidida incidentemente
(CPC, art. 503, §§ 1º e 2º) também é produzida no processo coletivo? Em que medida?
Explique.
O processo coletivo é aquele em que se postula um direito coletivo lato sensu (situação jurídica
coletiva ativa) ou se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres individuais
homogêneos, p. ex.). Observe-se, então, que o núcleo do conceito de processo coletivo está em seu
objeto litigioso: coletivo é o processo que tem por objeto litigioso uma situação jurídica coletiva ativa
ou passiva9.
Para Didier Jr e Zaneti Jr10 não parece correto atribuir ao processo coletivo um regime
especial de coisa julgada. Em outras palavras, dizer que a coisa julgada vinculará a coletividade, em
processo coletivo, não acrescenta nada ao conceito, já que, sendo a situação jurídica litigiosa
pertencente à coletividade, obviamente eventual coisa julgada a ela dirá respeito.
Além disso, nada impede que o legislador crie uma disciplina de coisa julgada coletiva que, em
certos casos, não vincule a coletividade - por exemplo, a coisa julgada penal somente ocorre nos casos
de sentença absolutória, ou ainda, o regime da extensão dos efeitos da coisa julgada secundum eventum
litis apenas para beneficiar os titulares dos direitos individuais, disciplinado no Código de Defesa do
Consumidor (art. 103 da Lei Federal nº 8.078/1990)11.

4) O que são ações pseudocoletivas e ações pseudoindiviuduais? Explique.


A demanda coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos visa ao exercício de uma
pretensão para a fixação de uma tese jurídica geral, referente a determinados fatos (e não à questão
jurídica), que pode aproveitar determinadas pessoas12.
Para que a demanda seja considerada como pseudocoletiva é imprescindível a predominância
das questões comuns sobre as individuais, e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto:

9 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. “Conceito de processo jurisdicional coletivo”. Revista de Processo. São
Paulo: RT, 2014, vol. 229, p. 273.

10 Idem, ibidem.

11 Idem, ibidem.

12 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de
Janeiro: Forense, 2000.
Há de atentar o leitor para o risco de tratar molecularmente as ações para
tutela de direitos meramente individuais, aqueles desprovidos das
características de ‘predominância das questões comuns sobre as individuais’ e
da ‘utlidade da tutela coletiva no caso concreto’ que denotam e caracterizam
os direitos individuais homogêneos (art. 26, §1º. CBPC-IBDP e art. 30
CBPC-UERJ/UNESA), e possibilitar a formação dessas ações
13
pseudocoletivas .

Em outras palavras, as ações pseudocoletivas consistem em ações ajuizada por entidade


possuidora de legitimidade ativa, tal qual da Lei de ACP e CDC. Com vistas à tutela de direitos de
apenas um indivíduo, a causa de pedir será fundamentada em direito individual indisponível, o pedido
buscará tutelar apenas um indivíduo ou alguns indivíduos em litisconsórcio e os efeitos da sentença
serão inter partes.
Já as ações pseudoindividuais consistem em ações meramente individuais, lastreadas em
direito eminentemente individual, mas que geram efeitos ultra partes, ou até mesmo, erga omnes,
conforme o caso concreto14. Exemplos: uma ação individual para derrubada de um muro ou para
cessar a poluição de uma fábrica.
Outros casos em que a demanda é, a princípio, individual também podem ter
natureza estruturante, como a pretensão da profissional mulher por
tratamento isonômico dentro de determinada empresa, ou como a pretensão
do detento não católico por assistência religiosa específica ou por respeito
aos seus costumes (alimentares, por exemplo) dentro do estabelecimento
prisional.
Observe que, nesse exemplo, tem-se ação individual cujo resultado pode ter alcance coletivo.
A promoção da acessibilidade requerida pelo indivíduo autor naturalmente não vai servir apenas a ele,
mas a tantos quantos utilizem os mesmos espaços nos quais pleiteou houvesse a intervenção
estruturante.
O autor afirma uma situação jurídica que é coletiva, embora ele a considere individual. É o
caso de indivíduo que pede a decretação de inconstitucionalidade de lei ou pede para invalidar
integralmente edital de concurso público – se pedisse para que a lei ou o edital não incidissem em sua

13 DIDIER, Jr., Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil, processo coletivo, vol. 4. Bahia: Edições
Juspodivm, 2007, p. 94.

14 BASTOS, Fabrício Rocha. A interface entre as demandas coletivas e as demandas individuais que geram repercussões
coletivas: análise das ações individuais com efeitos coletivos e as ações pseudoindividuais. Revista Acadêmica Escola Superior
do Ministério Público do Ceará, 2017, 9.2: 107-126.
esfera jurídica, apenas, a ação seria individual. Não sendo caso de ação popular (para o qual o
indivíduo é legitimado), está-se diante de flagrante ilegitimidade ativa.15

5) As ações repetitivas podem ser inseridas no conceito de processo coletivo? Por quê?
Explique.
Diante da existência de várias causas repetitivas, instaura-se um incidente coletivo, no qual a
cognição judicial é limitada às questões comuns a todos os casos similares, vindo o resultado a
vincular todos os casos que ficaram sobrestados16.
Há de se concordar, portanto, que o processo coletivo vem a tentar resolver a situação das
ações repetitivas, de maneira a estimular a economia processual. Dito isto, um conceito não pode se
confundir com o outro, sendo ambos os institutos, de certa maneira, complementares.

6) Há semelhanças entre as ações de controle concentrado de constitucionalidade e as ações


coletivas? Se sim, quais? Por quê? É possível compará-las? A legitimidade ativa para as
ações coletivas é concorrente e disjuntiva. O que significa isso? E nas ações de controle de
constitucionalidade? Como se verifica? Explique.

7) Que é um processo estrutural? Como se caracteriza? Quais seus elementos essenciais?


Um processo estrutural é sempre um processo coletivo? Uma ação de recuperação judicial é
um processo estrutural? Uma ação de família pode ser considerada como processo
estrutural? Por quê? Explique.
O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada
– uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que
não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas
considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de
coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação)17.
É preciso frisar que o ‘estado de desconformidade’ não necessariamente significa um estado
de coisas ilícito, mas sim uma situação de desorganização estrutural, isto é, de rompimento com o

15 Idem, ibidem.

16 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. As causas repetitivas e a necessidade de um regime que lhe seja próprio. Revista da
Faculdade Direito Sul de Minas, Pouso Alegre, v.25, p. 235-268, jul./dez. 2009.

17 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Elementos para uma teoria do processo
estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 75, p. 101-136,
jan./mar. 2020.
estado ideal (normal) das coisas, que demanda uma intervenção (re)estruturante. Essa desorganização,
no entanto, pode, ou não, ser consequência de um conjunto de atos ou condutas ilícitas 18.
Tomando como base o conceito de problema estrutural, podemos dizer que o processo
estrutural é aquele através do qual se veicula um litígio estrutural, pautado num problema estrutural, e
em que se pretende alterar esse estado de desconformidade, substituindo-o por um estado de coisas
ideal.
O processo estrutural apresenta características típicas e variáveis, ou seja, podem ou não estar
presentes de maneira integral, de forma que existem processos estruturais onde apenas parte das
características a seguir encontram-se presentes, sem que se perca a qualidade de processo estrutural.
São elas:
a) pautar-se na discussão sobre um problema estrutural, um estado de coisas ilícito, um estado
de desconformidade, ou qualquer outro nome que se queira utilizar para designar uma
situação de desconformidade estruturada;
b) buscar uma transição desse estado de desconformidade para um estado ideal de coisas (uma
reestruturação), removendo a situação de desconformidade, mediante decisão de
implementação escalonada;
c) desenvolver-se num procedimento bifásico, que inclua o reconhecimento e a definição do
problema estrutural e estabeleça o programa ou projeto de reestruturação que será seguido;
d) desenvolver-se num procedimento marcado por sua flexibilidade intrínseca, com a
possibilidade de adoção de formas atípicas de intervenção de terceiros e de medidas
executivas, de alteração do objeto litigioso, de utilização de mecanismos de cooperação
judiciária;
e) e, pela consensualidade, que abranja inclusive a adaptação do processo (art. 190, CPC).
O processo estrutural também apresenta algumas características típicas, mas não essenciais: a
multipolaridade, a coletividade e a complexidade19.
O objetivo imediato do processo estrutural é alcançar o estado ideal de coisas20 – um sistema
educacional livre de segregação, um sistema prisional em que sejam asseguradas a dignidade do preso
e a possibilidade de ressocialização, um sistema de saúde universal e isonômico, e, também, por
exemplo, a preservação da empresa recuperanda. Nesses casos, busca-se remover o estado de
desconformidade, promovendo uma transição para o estado de conformidade.

18 Idem, ibidem.

19 Idem, ibidem.

20 GALDINO, Matheus Souza. Breves reflexões sobre as consequências de uma compreensão teleológica dos fatos para a
teoria do processo estrutural. Processos estruturais. Sérgio Cruz Arenhart e Marco Félix Jobim (org). 2 ed. Salvador:
Juspodivm, 2019, p. 698-704.
Podemos dizer que são exemplos de processos estruturais aqueles deflagrados por: (i)
demanda que visa à concretização do direito de locomoção das pessoas portadoras de necessidades
especiais, por meio de um plano de adequação e acessibilidade das vias, dos logradouros, dos prédios
e dos equipamentos públicos de uma determinada localidade; (ii) demanda que visa assegurar o direito
à saúde e que, considerando o crescimento do número de casos de microcefalia numa determinada
região e da sua possível relação com o zika vírus, pugna seja estabelecido impositivamente um plano
de combate ao mosquito aedes aegypti, prescrevendo uma série de condutas para autoridades
municipais; (iii) demanda que, buscando salvaguardar direitos de minorias, pede que se imponha a
inclusão, na estrutura curricular do ensino público, de disciplinas ou temas relacionados à história dos
povos africanos ou dos povos indígenas; (iv) demanda que pretende resguardar a dignidade, a vida e a
integridade física da população carcerária e, para tanto, pleiteia a adoção de medidas de adequação dos
prédios públicos em que essas pessoas se encontram encarceradas21.
Diante das características acima expostas, há de se observar que não é propriedade essencial
do processo estrutural que ele seja coletivo. “Coletivo é o processo que tem por objeto litigioso uma
situação jurídica coletiva ativa ou passiva” 22.
Normalmente o processo estrutural é coletivo, por discutir uma situação jurídica coletiva, e é
possível que um processo que veicule demanda individual esteja pautado num problema estrutural e
tenha que, por isso, ser tratado como processo estrutural. Isso acontece especialmente quando ocorre
o fenômeno da múltipla incidência, que se caracteriza quando o mesmo fato pode “afetar a esfera de
situações jurídicas individuais e de situações jurídicas coletivas”23. Portanto, nem sempre um processo
estrutural será um processo coletivo.
Imagine que um sujeito, portador de deficiência ou com mobilidade reduzida, ingresse com
ação individual para, com base nos direitos que lhe são assegurados pela Lei nº 10.098/200029, exigir
que determinados edifícios públicos ou privados, de uso coletivo, aos quais precisa ele
recorrentemente ter acesso (como sua faculdade, o hospital do seu bairro, o banco no qual possui
conta corrente etc.), sejam obrigados a promover reformas para garantir a acessibilidade prevista em
lei.

21 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Elementos para uma teoria do processo
estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 75, p. 101-136,
jan./mar. 2020.

22
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. “Conceito de processo jurisdicional coletivo”. Revista de Processo. São
Paulo: RT, 2014, vol. 229, p. 273.

23
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Comentários ao art. 333 do CPC-2015. WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim;DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (Coord.). Breves comentários ao novo Código de
Processo Civil. 3ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 958.
As ações concursais – como, por exemplo, a falência e a recuperação judicial – também se
baseiam em problemas estruturais. Elas partem de uma situação de desorganização, em que há
rompimento da normalidade e do estado ideal de coisas, e exigem uma intervenção (re)estruturante,
que organize as contas da empresa em recuperação ou que organize os pagamentos devidos pela
massa falida. Essa desorganização pode advir do cometimento de ato ilícito, como no caso da
falência, ou não necessariamente, como no caso da recuperação judicial24.
Felipe Vieira Batista25 também vê a recuperação judicial como um processo estrutural:
“Embora a Lei nº 11.101/2005 exija que a petição inicial indique as causas da crise, o objetivo não é imputar o
referido fato a um determinado sujeito processual e/ou lhe impor qualquer tipo de reparação ou sanção pelo ocorrido –
não há litígio afirmado. A perspectiva é outra, de natureza muito mais prospectiva: pede-se a intervenção/ reforma
estatal no sentido de viabilizar/facilitar a resolução de um problema social grave por meio de uma negociação de um
plano de reestruturação da atividade (e não com a imposição de uma forma de reparação e/ou sanção)”.
Tomando como base os conceitos trazidos sobre o processo estrutural, é possível afirmar que
as causas de família tratam-se de processos estruturais, haja vista que seu desenrolar acaba por
organizar um anterior estado de desorganização, de maneira que todos os atores envolvidos são
abrangidos pelos seus efeitos, direta ou indiretamente.

8) Há quem diga que as ações coletivas são multipolares. Quem é que diz isso? O que
significa essa expressão? Os processos estruturais também são multipolares? Por quê?
Explique. Uma ação de inventário e partilha é multipolar? É um processo estrutural? Por
quê? Explique.
Como visto, o processo estrutural apresenta certas características típicas, mas não essenciais.
Quer isso dizer que tais características sugerem que se trata de um processo estrutural, mas não
necessariamente precisam todas estar presentes para que o processo seja considerado estrutural – o
processo estrutural pode existir sem elas.
(i) A multipolaridade é uma característica típica do processo estrutural. Para Sérgio Cruz
Arenhart, “o conflito estrutural trabalha com a lógica da formação de diversos núcleos de posições e
opiniões (muitas delas antagônicas) a respeito do tema a ser tratado”26.
Nesses casos, a lógica binária do processo individual – que contrapõe os interesses de dois
polos (autor e réu), sob a premissa de que esses interesses são sempre antagônicos e de que os

24 Idem, ibidem.

25 BATISTA, Felipe Vieira. A recuperação judicial como processo coletivo. Dissertação de Mestrado. Salvador:
Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2017, p. 118.

26 ARENHART, Sérgio Cruz. Processo multipolar, participação e representação de interesses concorrentes. In:
ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org). Processos estruturais. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 800.
interesses dos litisconsortes que eventualmente ocupem cada um desses polos são sempre
convergentes – dificilmente se aplica aos processos estruturais. Neles, pela natureza estrutural do
problema, é comum que haja multiplicidade de interesses envolvidos, que se polarizam a depender da
questão discutida: um mesmo grupo de pessoas pode alinhar-se aos interesses de outro grupo quanto
a determinada questão, mas não quanto a outras.
Imagine uma ação civil pública em que o Ministério Público pretenda impor a
determinada concessionária de rodovia federal o dever de realizar múltiplas obras na
malha rodoviária e no seu entorno, exatamente como previstas no contrato de
concessão firmado uma década antes. Imagine que, se implementadas nos exatos
termos previstos no contrato, essas obras terminariam por segregar um bairro
inteiro, que floresceu nos últimos 10 anos ao redor de certo trecho da rodovia; a
implantação de guard rails na rodovia, que corta o bairro ao meio, associada à
inexistência, no projeto inicial do contrato, de vias de acesso para veículos, de
passarelas para pedestres e de retornos, tudo isso terminaria por impedir – ou, ao
menos, por tornar muito difícil – o trânsito de moradores locais de um lado para o
outro, segregando famílias e vizinhos. Embora o Ministério Público seja, por lei,
legitimado a dar voz à vontade coletiva, é bem possível que haja, entre o Ministério
Público que formulou a demanda e a comunidade do bairro em questão, severa
dissintonia de interesses; e entre eles e a concessionária, outras tantas divergências; e
ainda entre eles, a concessionária e a agência de regulação (no caso do exemplo, a
ANTT), mais tantas discordâncias. São inúmeras as questões potencialmente
envolvidas com inúmeras possibilidades de acomodação dos diversos interesses.

No entanto, como dito acima, a multipolaridade não é uma característica essencial do


processo estrutural, nem tampouco é uma característica determinante. É possível que o processo seja
estrutural e seja bipolar – isto é, envolva apenas dois polos de interesses; também é possível que, a
despeito da multipolaridade, o processo não seja estrutural.

9) Deve haver, nas ações coletivas, audiência de mediação ou conciliação? É possível haver
autocomposição nas ações coletivas? Por quê? Explique. E nos processos estruturais? Por
quê? Explique.
Uma das possíveis técnicas que podem ser utilizadas para dar cumprimento a decisões
estruturais é a criação de entidades de infraestrutura específica para resolução de conflitos coletivos
(claim resolution facilities)73 – isto é, terceiros responsáveis pela implementação, total ou parcial, da
decisão judicial ou da autocomposição, muito embora tenham natureza privada ou mista.
Exemplos: a) a Fundação Renova, a entidade constituída a partir do termo de ajustamento de
conduta firmado entre as empresas Samarco, Vale do Rio Doce e BHP Billiton com a União, Estados
de Minas Gerais e Espírito Santo e suas autarquias; o TAC firmado em 2002 entre a Companhia
Energética de Minas Gerais – CEMIG, o MPF, o Estado de Minas Gerais e a Fundação Estadual do
Meio Ambiente, com a intervenção de outras entidades, para mitigar os impactos socioambientais
decorrentes da implantação da Usina Hidrelétrica de Irapé. O TAC previa medidas que caberiam à
própria CEMIG, mas também estipulava que a empresa deveria firmar convênio com a Empresa de
Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais – EMATER, que seria responsável por dar
suporte técnico e executar inúmeras outras medidas, como as de reassentamento dos atingidos. Além
disso, previa-se destinação de “verba temporária de manutenção”, a ser gerida por associações criadas
em cada reassentamento, de acordo com um plano pré-definido; b) projetos realizados por grupos
privados a partir da provocação de entidades públicas para resolver questões como os deslizamentos,
inundações e desalojamentos em função das chuvas no Rio de Janeiro; c) a contratação pelo grupo
Oi, no curso do processo de recuperação judicial, de uma fundação para criar uma plataforma digital a
fim de viabilizar a mediação com milhares de credores em todo o país.74
Essa prática não é nova no direito comparado. Nos EUA, há pelo menos duas décadas, tem
sido frequente a constituição das chamadas claims resolutions facilities. Elas têm um potencial
transformador na prática da tutela dos problemas estruturais, e significam uma nova forma de pensar
diversos institutos do direito processual: são uma nova modalidade de participação de terceiros no
processo; podem ser constituídas por convenções processuais (arts. 190 e 200 do CPC) ou por
delegação de funções jurisdicionais por atos conjuntos (art. 69 do CPC), dois temas que estão nas
últimas fronteiras de pesquisa acerca das fontes das normas processuais e das funções da jurisdição no
mundo contemporâneo.

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