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Clara,
ou sobre a conexão da natureza
com o mundo dos espíritos
Um diálogo
2ª Edição
Porto Alegre
2015
© EDIPUCRS, 2015
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Prefácio à segunda edição
Uma primeira versão desta tradução do texto de Schelling, até então inédito em português,
saiu em edição anterior pela Editora UNIJUÍ (2012), mas julguei necessário revisar o texto e o
fiz de modo radical também nas notas, aqui reduzidas, que o acompanham. A tradução de um
texto é um trabalho sem fim, como se sabe. O que busquei, portanto, nesta nova edição, não
foi ultimar meu trabalho, pois este será sempre passível de aperfeiçoamentos. O que nela me
propus foi corrigir passagens que me pareceram imprecisas e, sem agredir o texto original, dar
maior naturalidade ao traduzido. De um outro teor foram as correções introduzidas nas Notas
em razão de, por vezes, algum equívoco cometido na primeira edição, outras, em virtude da
decisão de abreviar ou (raramente) estender um e outro comentários ao texto. Acrescentei,
além disso, à presente edição – em trecho deixado em branco no manuscrito original –, uma
passagem escrita pela então mulher de Schelling, Caroline. Trata-se de passagem considerada
pela crítica como sendo aquela que o filósofo teria pretendido incluir no espaço em branco, se
houvesse publicado o Diálogo.
Para a realização desta tradução, eu tive, desde o início e em mais de uma ocasião, apoio e
auxílio dos professores Wolfdietrich Schmied-Kowarzik (Kassel/Alemanha) e Wolfgang Neuser
(Kaiserslautern/Alemanha), aos quais deixo aqui meu muito obrigada. Ao professor Walter
Ehrhardt (Hannover/Alemanha), meu agradecimento especial pela atenção que, com auxílio de
tradutores, deu às Notas contidas na primeira edição deste livro, alertando-me do equívoco
quanto ao nome de uma cidade referida e a algumas distrações bibliográficas, além de, com
trabalhos seus, ter-me proporcionado o importante e inédito acréscimo da passagem indicada
acima ao texto atual desta tradução.
Agradeço também aos responsáveis pela EDIPUCRS, por terem aberto sua programação à
publicação desta edição revisada do fragmento Clara, assim como à equipe de editoração, pelo
cuidadoso trabalho realizado.
Por fim, e não por último, agradeço a meu marido, Hans. Tens minha gratidão pela
compreensão e o incondicional apoio em mais esse período de tempo que passei debruçada
sobre o texto de Schelling.
O trabalho que investi neste livro o ofereci, na primeira edição, e volto a fazê-lo nesta, pelo
que representaram na minha decisão de realizá-lo, a Camila Moreno, minha ex-aluna da
UFRGS, e ao professor Wolfdietrich Schmied-Kowarzik, meu Doktorvater em
Kassel/Alemanha.
Muriel Maia-Flickinger
Introdução ao Fragmento “Clara”
Wolfgang Neuser
Clara foi-nos deixado como fragmento, do qual até agora não sabemos quando teve origem
(1). Não sabemos sequer se esse texto não contém passagens originadas em tempos diversos.
Para o texto principal, a data de 1803 parece ser uma hipótese adequada. (2) Esse texto está
configurado enquanto diálogo. Parece que, por volta de 1810, Schelling escreveu uma
introdução1 a um tratado, a qual só foi acrescentada ao Diálogo por equívoco do primeiro
editor do mesmo.
O Diálogo descreve o encontro de quatro personagens: um teólogo pastoral, que entra
também em cena como Eu narrador, um teólogo dogmático, um médico e Clara, a heroína. O
Diálogo é estruturado enquanto descrição de um passeio, o qual se dá, entretanto, em
diferentes estações do ano; tais estações – tal como as descrições de paisagens, o tempo ou as
sensações – correspondem aos conteúdos filosóficos discutidos.
No texto, falta obviamente uma passagem, e o diálogo não tem final algum; falta o termo.
No mais, o texto parece contínuo, porque a argumentação avança de modo em si conclusivo.
O fim, que falta ao diálogo, deixa-se constatar sobretudo na inexistência de uma conclusão
para o argumento anteriormente exposto por Schelling. Ao mesmo tempo, deixa-se
perfeitamente depreender como o argumento de Schelling deveria prosseguir.
A recepção desse Diálogo foi muito discreta. Alexander Grau descreve os motivos, como
segue: “De fato, aqui Schelling não busca mostrar nada além da existência de uma vida após a
morte e de como temos de imaginá-la. Busca mostrar, também, que a ‘alma’” é o laço
iniludível, o qual, segundo a doutrina da Identidade, torna idênticos corpo (natureza) e
espírito. Enquanto tal, ela é simultaneamente o fundamento lógico da autoconsciência e a base
da individualidade existencial. Mantém-se, após a morte, um estado enfático de pura
intencionalidade e com isso um reino ideal, não falsificado de comunicação das almas. Com
isso, o fragmento de Schelling encontra-se, por um lado, em um campo de interesse localizado
entre argumentos irracionalistas, obscurantistas e considerações altamente questionáveis
também no âmbito da história das ideias e, por outro lado, ao menos no que diz respeito à
forma de ler mais moderna, com provocações estimulantes no âmbito da Filosofia do sujeito
(3).
Já no contexto das ponderações epistemológicas da ilustração, o que se encontra por trás
dessas filosofias do sujeito dá sempre ocasião de perguntar se existe um mundo por trás do
mundo visível, que, influenciando-o, poderia por meio disso perturbar seu conhecimento. Essas
ponderações provocam, ao mesmo tempo, investigações abundantes acerca do tema
“espíritos”, por exemplo, como ocorre com Kant, Jung-Stilling ou Wieland (4).
O tema do Diálogo é a questão de por que natureza e matéria deveriam ser vistas como algo
inteiramente oposto ao espírito e se espírito e natureza não apresentariam, pelo contrário, cada
um uma outra forma de aparecer ou um estado de desenvolvimento do outro. Por que natureza
e espírito não poderiam ser entendidos como se interpenetrando um ao outro?
Schelling toma com isso duas esferas de problemas, que resultam das concepções do
pensamento ocidental: por um lado, desde a Antiguidade e Antiguidade tardia, o conceito de
natureza tomou um desenvolvimento no qual, nos tempos modernos, a semântica do conceito
de natureza não diferencia mais muito bem entre o perene – o imutável, o ser – e o mutável.
Na modernidade, essa diferença vê-se como que submersa.
A segunda esfera de problemas é a separação entre sujeito e objeto, iniciada com a
modernidade (5). Essa separação implica o “mal-entendido” de que o sujeito enquanto
princípio livre ativo “qua” espírito é agente interlocutor, enquanto o objeto é o manejado, a
saber, a natureza ou também a matéria (6). A cisão sujeito-objeto, na Filosofia da
modernidade, advém da fundamentação cartesiana de um saber seguro, conquistada mediante
um ceticismo universal. Com isso, Descartes introduz simultaneamente um novo conceito de
sujeito. Ele focaliza sua fundamentação do saber no desempenho cognitivo do eu pensante, isto
é, de um sujeito. O saber só pode ser seguro quando se vê fundamentado a partir do
pensamento do eu enquanto sujeito espiritual. Isso implica uma cisão substancial do mundo:
naquilo sobre o que se pode saber algo, os objetos, e naquilo que sabe algo, o sujeito. Nos seus
primeiros trabalhos, Schelling interpreta por vezes essa separação entre sujeito e objeto
enquanto uma culpa originária, vinda ao homem com a expulsão do paraíso. Ele retoma, com
isso, um motivo que Francis Bacon já havia utilizado para justificar o experimento como
instrumento de asseguramento do saber. Francis Bacon era de opinião que, com a expulsão do
paraíso, se teria perdido, para o homem, a capacidade originária de diferenciar, a cada
pensamento, o verdadeiro e o falso um do outro. Por isso, ele precisaria conhecer o mundo,
sondando-o de modo sistemático experimental.
Para Schelling, a diferença entre sujeito e objeto manifesta-se (em especial na primeira
década do século XIX) enquanto diferença entre espírito e natureza. Se atentamos aos
domínios do saber correspondentes a sujeito e objeto, constatamos que o espírito está para o
sujeito, assim como a natureza está para o domínio do cognoscível, para o reino dos objetos.
Se fosse possível construir uma ponte entre esses dois domínios, eis que estaria reposto o
estado paradisíaco originário do homem. O homem teria então presente de modo originário,
no espírito, o domínio dos objetos, além de que se encontraria munido, por seu lado, da
capacidade originária de diferenciar o verdadeiro do falso. Embora não seja possível reverter a
história da humanidade, pode-se, entretanto, perguntar se não haveriam outros domínios do
mundo além dos que submetemos ao nosso conhecimento, nos quais espírito e natureza não
estariam separados.
Lançando mão de G.-L. L. de Buffon, John Brown e Swedenborg, Schelling desenvolve no seu
diálogo Clara um modelo de mundo segundo o qual a natureza e o espírito se interpenetram
num contínuo, mostrando presenças diversas em partes do mundo cunhadas diferentemente.
Ele discute aí, prioritariamente, a relação de “natureza” e “espírito”, tal como a separação
entre sujeito e objeto, procurando suspender não só essa separação, mas também aquela entre
natureza e espírito. Nessa altura, Schelling dá a impressão de ainda pensar o sujeito e o objeto
existindo separadamente. Isso pode ser uma indicação de que o texto teria sido escrito ao
tempo da “Filosofia negativa”, quando a Filosofia da revelação e do mito, na qual o sujeito
recebe uma função também receptiva, não tinha sido ainda trabalhada pelo filósofo.
No texto Clara, Schelling utiliza-se das possibilidades do diálogo para levar os seus
participantes a discutir posições diversas, sendo que todos os quatro representam tanto
abordagens teorético-cognitivas diferentes quanto dão à natureza (respectivamente à matéria) e
mesmo ao espírito modos de prioridade distintos, em uma relação comum de espírito e
natureza. De modo que eles representam posições diversas de um materialismo ou de um
idealismo. A verdade é que, finalmente, o teólogo pastoral ou o “Eu narrador” no Diálogo
tentará apresentar o conceito da unidade de “espírito” e “natureza”, mas isso só acontece na
medida em que o tema vem à fala nesse Diálogo, o qual fica igualmente não concluído
tematicamente.
1. Schelling volta-se contra uma contraposição de natureza e espírito. Pelo contrário – diz
ele – é preciso pensar um e o outro de modo abarcador e, na verdade, em ambas as
direções, do espírito para a natureza e da natureza para o espírito. Tem de haver uma
correspondência mútua de espírito e natureza, que vai até o detalhe em ambos os
domínios e significa que não se pode dizer convenientemente o que fundamenta o que.
Que percebamos, entretanto, a um ou ao outro, natureza ou espírito, como um domínio
próprio, tem a ver com que natureza e espírito aparecem gradativamente diferenciados. O
mundo é inteiramente espírito e natureza. Quando ele nos aparece como natureza, isso
ocorre porque, em suas manifestações, o espírito recua para trás daquelas da natureza.
Inversamente, há manifestações do espírito que não parecem ser “naturais”, porque a
natureza retrocedeu, como na morte.
Por certo, espírito e natureza não são diretamente um só. O homem ocupa o ponto
intermediário, no qual espírito e natureza existem com peso igual ou quase igual.
Diferenças entre os homens devem-se a que, na mediação entre natureza e espírito, há
pequenas diferenças de grau. A liberdade torna-se a categoria fundamental do ser humano,
porque o homem pode decidir-se entre natureza e espírito e acentuar um ou outro lado de
seu desenvolvimento.
Esse modelo de mundo lembra a visão do além, de Swedenborg (1758) (13): “É que
também o homem tem um fundo, um centro e um extremo, posto que, quando de sua
criação, nele foram postos todos os níveis da ordem divina, de modo que ele se tornou
uma forma da ordem divina e um céu em configuração diminuta. Por causa disso, com
seus domínios interiores, o homem também está em comunidade com o céu e, mesmo
após sua morte, chega entre os anjos” – os mediadores entre o céu e a Terra, Deus e o
homem. No céu, segundo Swedenborg, o fora e o dentro comportam-se enquanto
entendimento e vontade. Nisso, homens e anjos são iguais. A única diferença está em que
os anjos só podem mostrar presença espiritual, mas o homem pode pôr livremente o seu
ponto de gravidade na natureza ou no céu. O homem pode, portanto – também em outros
planetas –, decidir-se por orientar sua existência de modo mais espiritual, ou então mais
terreno (SWEDENBORG, 30, 32).
O homem encontra-se como que fazendo a mediação entre céu e mundo: “O que o
homem tem a mais do que os anjos está em que seu aparecer é copiado à imagem do
mundo e que, nele, o mundo é subordinado ao céu e o serve na medida em que ele está no
Bem” (SWEDENBORG, 57). “Nele, as menores coisas são uma cópia das maiores”
(SWEDENBORG, 58). “Um mistério ainda desconhecido no mundo consiste em que o
céu, em toda sua extensão, representa um único homem” (SWEDENBORG, 59).
Schelling toma esse aspecto de Swedenborg, para compreender o homem enquanto
instância mediadora entre natureza e espírito. Segundo Swedenborg, a correspondência
homem-céu diz respeito a ambos, espírito e corpo, ousia e physis. E ele torna claro: “O
que constitui o homem pertence a seu entendimento e sua vontade, e esses têm também a
mesma forma que o homem, porque eles agem nas partes mais singulares de seu corpo,
como o interior no exterior” (SWEDENBORG, 60).
Em sentido inverso, a correspondência é a seguinte: “O céu é, porém, um tal homem em
figura maior e mais perfeita” (SWEDENBORG, 60). “Porque o céu inteiro apresenta um
único homem e ele é, ao mesmo tempo, o homem divino-espiritual em feição maior e
também como imagem, por isso o céu é igualmente diferenciado em membros e partes,
como o homem” (SWEDENBORG, 65).
A unidade de céu e homem não se deduz, por certo, do pensamento, mas tem de vir “a
partir de iluminação interior e daquele pressentimento que se encontra plantado em cada
um, porque o sensível do homem exterior abarca nada além do natural, por conseguinte,
nada do mundo espiritual” (SWEDENBORG, 74). “Porque o homem é tanto um céu
quanto um mundo em forma diminuta, eis porque se encontra nele tanto o mundo
espiritual quanto também o natural: os domínios interiores, que pertencem ao seu ânimo e
se referem a entendimento e vontade, formam seu mundo espiritual; os domínios
exteriores, porém, que pertencem ao seu corpo e se referem aos sentidos e às ações do
mesmo, constituem o seu mundo natural” (SWEDENBORG, 90). “No homem, pode-se
diagnosticar em sua face a essência da correspondência, daí que se chame a face o ‘espelho
da alma’. Expressam-se igualmente, na fala, as reflexões do entendimento e, nos
movimentos do corpo, as ebulições da vontade” (SWEDENBORG, 91).
Marcilio Ficino (1433-1499), de modo análogo, já tinha visto no homem a
correspondência entre o mundo espiritual e o terreno. Interpretando o todo do mundo
como um organismo em cujo centro está o homem, Ficino vê neste um ser que se move
livremente entre natureza, destino e providência, ganhando, mediante sua alma, influência
sobre o mundo corpóreo e chegando, pelo seu espírito, a dirigir o domínio anímico e a si
mesmo (14).
A diferença fundamental entre Swedenborg ou Ficino e Schelling está, na verdade, em
que Schelling pensa de modo dinâmico a relação entre natureza e espírito. É munido das
ideias de John Brown quanto à teoria da excitação que Schelling descreve a passagem de
natureza a espírito, a qual deve ser simetricamente pensada também de modo inverso (15).
Tal como na teoria browniana da excitação, o princípio ativo da excitação do corpo
produz permanentemente vida, ao mesmo tempo em que a doença é compreendida como
uma carência de excitação do corpo para a vida, assim também, na interpretação dada por
Schelling da passagem de natureza a espírito, deve-se pensar essa passagem enquanto uma
autoexcitação da natureza. Com isso, a excitação é como que o ato espiritual da natureza
ativa.
É a excitação que empurra a natureza para além de si mesma, em direção ao espírito. O
homem é, porém, a instância na qual ambos os lados encontram-se relacionados um ao
outro em permanente mediação. Schelling introduz aqui a teoria da evolução da Terra de
Buffon (16) (tal como a teoria de um Vulcanismo, contida na doutrina de Werner, quanto
à formação da Terra), para mostrar que uma excitação da natureza faz parte de um
mecanismo originário específico de atuação da mesma (17), evocando seu
desenvolvimento. Mesmo o desenvolvimento da História da humanidade é tributário desse
processo de excitação da natureza. Com isso, o desenvolvimento bloqueado (18) da
natureza originária é um traço característico da natureza. A natureza tem a ver com o
acaso, que se junta por meio disso a ela, porque o desenvolvimento, que transcorre
permanentemente “qua” excitação, vê-se bloqueado pelas interações com outros domínios
da mesma. Schelling reporta-se aqui a sua fundamentação filosófica da natureza na
“Filosofia da natureza” de 1797/1998.
2. A passagem da natureza ao espírito e, inversamente, do espírito à natureza tem sempre,
da perspectiva de Schelling, algo a ver com o homem ou a humanidade (19). De modo que
é preciso compreender a própria criatura homem, mediatizadora entre espírito e natureza,
como equipada de dois componentes: com o espírito humano e com o corpo humano (20).
O que abarca esses dois lados do homem é a alma, a “consciência unificadora” de corpo e
espírito (21). A alma é o “propriamente humano no homem” (22). O homem torna-se um
todo próprio enquanto uma organização (23).
O modelo espírito-homem-natureza repete-se agora, para Schelling, analogamente a
espírito-alma-corpo, sendo que espírito-alma-corpo é uma transcrição para “homem”, e
espírito-homem-natureza uma transcrição para “mundo”. “Alma” e “homem” descrevem,
portanto, uma espécie mais elevada do que as duas outras determinações na relação
respectiva.
Também o “homem” contém, analogamente ao “mundo” – que encerra a natureza
física, desenvolvida do mesmo modo que o perene na ousia –, dois gérmens (24), os quais
se desenvolvem e desdobram enquanto ultrapassagem do corpo para o espírito e,
inversamente, do espírito para o corpo. A passagem do “corpo ao espírito” é, nesse caso,
o bom avanço (25), porque não constitui bloqueio algum do desenvolvimento total.
Também aqui Swedenborg, como Ficino ou Bruno, podem ter servido como modelo.
Ao fim e ao cabo, o conceito de Schelling vem marcado essencialmente pela ideia de
uma Alma do mundo (26). No seu livro Sobre a causa, o princípio e o uno (1584) (27),
Giordano Bruno qualificou a Alma do mundo como “forma universal do cosmo”, e, numa
discussão diferenciada, designou a relação de matéria e espírito como um “intelecto
universal” (28), o qual atua no sentido da “geração dos produtos do pensamento” (29).
Schelling especifica adiante esse modelo, quando a própria alma conhece uma cota de
“alma corpórea” e de “alma espiritual” (30). “Assim, muito existe já agora que arrasta o
homem àquele mundo mais elevado” (31). Fecha-se assim o círculo do mundo terreno,
respectivamente de natureza e espírito, enquanto constituintes das almas e do mundo
celeste, como seu espaço de vida.
3. Ambas as ideias da já sempre existente penetração de natureza e espírito, no homem, e
de corpo e natureza, na alma, são explicadas por Schelling por meio da ideia cusana de
implicação (32). Com Nicolau de Cusa (1401-1464), a matéria – ou aqui: a natureza – é a
“plia”, a dobra, na qual está embrulhado o conceito inteiro em sua semântica plena.
Schelling interpreta isso como segue: a natureza contém em si todo o espírito. Para o
desdobramento do espírito, é preciso que espírito, corpo e alma sejam expostos em uma
relação de explicação tríplice, quando o interior torna-se exterior e o exterior interior,
constituindo ambos um só: “Pois você lembra ainda agora por certo aquele discurso de
nosso amigo quanto a que a Terra e assim também o corpo, que foi dela tomado, não
estariam destinados a ser meramente exteriores, senão que exterior e interior deveriam ser
um só em ambos; que o aparecer meramente exterior do todo era a consequência de um
desenvolvimento detido, o qual, não podendo aniquilar a essência interior, tinha podido,
no entanto, envolvê-la, amarrá-la e submetê-la assim ao exterior. Não é então natural
que, quando se desagrega aquela determinada forma do corpo, na qual o interior havia
sido aprisionado pelo exterior, a outra torne-se em contrapartida livre e nela o exterior
seja desamarrado do interior e como que por ele dominado?” (33).
O desenvolvimento do homem em liberdade pode seguir duas direções. Schelling afirma
que dois gérmens estão plantados no mundo: a saber, enquanto passagem para o natural e
enquanto passagem para o espiritual (34). Aqui ele toma a ideia dos spermaticoi logos da
Stoa ou dos neoplatônicos tardios. “Para mim, ela (a vantagem) parece ser a de podermos
cultivar e educar em nós já aqui aquele gérmen divino e assim gozar, em parte já aqui, a
felicidade daquela outra vida” (35). Cada homem, enquanto indivíduo, pode reforçar seu
desenvolvimento em uma ou outra direção. Em correspondência a isso, será mais leve o
seu encontro com a morte se já na vida terrena ele estiver espiritualmente engajado. O
gérmen contém em si (mesmo para além da morte) um desenvolvimento contínuo, mas
nenhuma destruição (36).
Nesse contexto, a criação vê-se interpretada por Schelling como um processo de
separação do não separado originalmente (espírito e natureza) (37). Quanto ao
desdobramento do mundo, ele o descreve como uma evolução gradativa no sentido da
suspensão dessa separação originária. Com isso, o afastar-se do paraíso vê-se elevado a
um processo de retorno do mundo ao espírito (38).
4. Nesse processo, as categorias “tempo” e “espaço” são essenciais para Schelling, que as
vai esclarecendo em interpretações interconectadas, quando da descrição de natureza e
espírito. O tempo representa algo assim como o in-fólio, no qual são pensáveis a
passagem ou a dinâmica de natureza e espírito (39). O lugar é um in-fólio para a presença
cunhada de modo gradualmente diverso de natureza e espírito. Na medida em que o
espírito recua diante da natureza, nós estamos no mundo terreno, “visível”; na medida em
que a natureza recua diante do espírito, estamos no mundo celeste, “invisível” (40).
A dialética do “dentro” e “fora”, que Schelling utiliza para compreender a mútua
passagem de natureza a espírito, permite-lhe descrever acentos graduais de um ou de outro
lado, no mundo terreno. Na morte, manifesta-se a passagem de um mundo marcado e
talvez até mesmo determinado pela natureza, a uma esfera do mundo do espírito e dos
espíritos. Schelling menciona até mesmo um estado apenas “bem mais espiritual” na
morte (41). A “consciência mais profunda” desse mundo mais elevado no mundo terreno
deixa “passado, presente e futuro” concentrarem-se como em “um ponto focal” (42). A
lembrança, que parece perder-se na morte (43), abre agora um lance de olhos para o
futuro. Na lembrança, nós construímos uma ideia de pessoa, e a natureza, enquanto lugar
da lembrança, torna-se o lugar da personalidade (44).
Segundo o modelo schellinguiano, o decurso do mundo – que, pensado temporalmente,
culmina na presença espiritual universal e atemporal do espírito – dá-se no in-fólio de um
lugar. O lugar encontra-se primeiramente ligado à natureza. Tudo que se passa no mundo
terreno dá-se no mundo submetido à influência natural, logo, no seu lugar no mundo
natural; em uma pessoa singular, o que constitui sua personalidade é também uma
presença gradualmente diferenciada da natureza (45). Mesmo a passagem para uma outra
vida espiritual está, para Schelling, ligada ao lugar. Com isso, o lugar no qual as
personalidades terrenas, cunhadas pela natureza e pelo espírito, consumam a passagem
para o reino espiritual aparece como um reino das sombras que lembra Dante (e Platão)
(46). Onde, precisamente, encontra-se a fronteira entre o lugar puramente espiritual e o
mundo terreno permanece em dúvida para os interlocutores do Diálogo. É preciso
(logicamente) que haja uma fronteira, a qual é, entretanto, difícil de precisar e vê-se, por
fim, determinada categorialmente: “Deus Ele Mesmo seria o céu e o lugar dos espíritos”
(47). Sendo assim, os espíritos têm um lugar; mas essa determinação funda-se “no que há
de misterioso no lugar e no espaço em geral” (48), de modo que os interlocutores
concordam entre si.
Mesmo a questão de se esse mundo espiritual não teria de ser também físico, vê-se aí
discutida e vinculada à astronomia (49). Na discussão sobre gravidade (50), sobre força
(51) ou sobre a ordem dos planetas (52), Schelling recorre à crítica de Giordano Bruno à
doutrina aristotélica do espaço.
Os planetas são interpretados no sentido (antecipado historicamente) de um princípio
antrópico, como criados em relação ao homem. O lugar de morada da natureza (terrena)
tem seu centro posto no planeta central do sistema planetário, na Terra.
O lado físico do mundo espiritual, Schelling o obtém muito claramente na língua, pois
“mesmo a língua contém uma essência espiritual e um elemento corpóreo” (53). Ele
discute assim, por um lado, a língua (originária) enquanto meio de expressão (sem signos)
do espírito, do qual nós aqui só podemos apropriar-nos por meio de imagens (54), as
quais fornecem o verdadeiro fundo para os conceitos. Nessa associação (epistemológica) à
ideia de línguas originárias, Schelling adere ao verbum interior de Agostinho (55) e seus
seguidores, entre eles Bruno (56), até Herder (57).
Schelling descreve o lugar dos mortos enquanto um lugar no qual “cada um” pode viver
“sua crença” (58). Sua reflexão termina, afinal, numa cristologia: esse lugar da morte vê-
se transformado em um lugar da vida, quando Deus, o espírito mais perfeito e abarcador,
torna-se a si mesmo um espírito atado à natureza. Eu cito: “a morte se havia tornado
realmente um poder. Quando, como você diz, o homem recorreu à natureza exterior e
suspendeu o desenvolvimento para dentro da natureza espiritual, ele excitou aquela força
terrível que Deus havia destinado a ser o mero suporte da criatura, chamando-a para
dentro da realidade. Destruí-lo ela não podia, mas ela o segurou mesmo na morte, com
exceção daqueles que Deus retirou dali. Só quando Aquele, mediante o Qual todas as
coisas haviam sido feitas no início, concedeu em descer até a natureza decaída e agora
tornada mortal e passageira, para tornar-se também nela outra vez um laço entre a vida
espiritual e a natural, só aí o céu, o verdadeiro mundo dos espíritos, abriu-se de novo para
todos e, pela segunda vez, foi selada a União entre a Terra e o céu”(59).
Também aqui Schelling faz referência a Swedenborg (60): “Na verdade, após a morte,
também o espírito do homem aparece na forma em que estava ocultado em seu corpo, que
o tinha vestido durante sua vida terrena” (SWEDENBORG, 99). Swedenborg descreve a
correspondência céu-homem à base de conversas pretensamente tidas com pessoas “dois
dias após o falecimento das mesmas”: “Muitas daquelas, que só há pouco tinham
falecido, sentiam nova alegria ao verem que viviam aqui como tinham vivido
anteriormente enquanto homens, encontrando-se em um estado semelhante”
(SWEDENBORG, 312).
“Uma prova para o fato de que o céu provém do gênero humano, encontra-se também
em que os ânimos (Gemüter) de anjos e homens são semelhantes. Ambos são capazes de
entender, perceber e querer, ambos foram criados para receber o céu, pois o ânimo
humano é capaz de acolher a mesma sabedoria que um anjo. Só no mundo ele não alcança
a mesma sabedoria, por estar metido em um corpo terreno” (SWEDENBORG, 355).
“Após a morte o homem tem todos os sentidos, memória, pensamento e inclinação,
como antes; ele só deixa seu corpo para trás”. Tudo que o homem adquire no mundo
permanece, na verdade, e ele o leva consigo após a morte. Isso se multiplicará e será
levado à plenitude, ainda que só na medida em que o grau de sua inclinação e de seu
anseio alcança o Verdadeiro e o Bem” (SWEDENBORG, 349).
A ideia swedenborguiana da continuidade da alma tanto na natureza como também no
espírito, a qual é mediatizada pelo homem, Schelling a interpreta enquanto uma
continuidade para além da vida, na morte.
A ideia da unidade da natureza com o espírito, defendida por Schelling, serve-se
primeiro da ideia de Buffon, de que a natureza estaria submetida a um desenvolvimento
permanente; e após, da ideia browniana, de que tudo que vive é mantido em vida por
meio de uma excitação interna e de que ocorrem bloqueios mediante a superexcitação, ou
de que desenvolvimentos despropositados dão-se por intermédio de excitações
erroneamente conduzidas. Por fim, Schelling interpreta cada atividade do espírito como
uma atividade da alma, a qual deve ser compreendida como uma tal excitação natural.
Schelling integra aí a ideia de que o desenvolvimento do puramente material progride na
direção do puramente espiritual; para o que Swedenborg lhe fornece as ideias. Assim
sendo, essencialmente, a concepção schellinguiana encontra estímulos em Buffon, Brown e
Swedenborg.
1
Essa introdução a que Neuser se refere foi publicada equivocadamente (segundo entendimento atual da maioria dos intérpretes
do filósofo) na primeira edição do Diálogo pelo filho de Schelling. O filósofo, segundo ele mesmo, a escreveu para um “tratado”
e não para um “diálogo”, como o salienta o próprio editor no prefácio à primeira edição do fragmento (In: SCHELLING, F. W.
J. Sämtliche Werke in 14 Bden., hg.v. K.F.A. Schelling, Stuttgart/Augsburg, 1856 ff., Bd.9). N.T.
1. O Outono
No dia de Finados
O Pastor narra (1)
No dia de Finados, o médico e eu fomos até a cidade, para voltar à noite com Clara que, em
companhia de minhas duas filhas, para ali tinha viajado dias antes. Ao depararmos com a bela
cidade a nossa frente, situada mais ou menos a meia altura da montanha, exatamente na
abertura de uma clareira e voltada à vasta planície, vimos uma multidão de pessoas que se
movia aos bandos na direção de um outeiro suave, situado lateralmente. Adivinhamos logo
para onde se dirigia o cortejo e a ele nos juntamos, a fim de assistir uma vez pessoalmente à
festividade tocante em memória dos mortos, celebrada nesse dia em cidades católicas. Nós
encontramos o espaço todo já repleto de gente. Era um espetáculo singular ver a vida sobre as
sepulturas, que o sol mortiço do outono iluminava cheio de presságios. Como nos
distanciássemos dos caminhos trilhados, topamos logo com belos agrupamentos em torno às
tumbas individuais: aqui moças em flor, de mãos dadas com os irmãos e irmãs menores, a
enfeitar com guirlandas o túmulo de sua mãe; lá a mãe imóvel no sepulcro de filhos
prematuramente perdidos, sem necessidade de água benta para substituir as lágrimas que,
escorrendo tranquilas e santificadas de doce melancolia, iam refrescar os túmulos. Aqui e ali,
sérios e pensativos, homens em pé diante de sepulturas individuais, que encerravam, talvez, um
amigo cedo partido ou uma amiga inesquecível. Todas as relações destroçadas pela vida
renovavam-se aí para o espectador familiarizado com pessoas e circunstância; irmãos vinham
de novo para os irmãos, filhos para os pais e eram de novo nesse instante uma família. Só a
amante, a que a morte roubara o homem amado, não podia mostrar-se nessa multidão; tinha
escolhido talvez a hora mais matinal para, com o orvalho da manhã e sem testemunhos, regar
com suas lágrimas o sítio querido. O belo monumento de um jovem aí falecido como
estrangeiro encontrava-se ornado com flores de modo tão terno, tão sensível, que só mãos
amantes poderiam tê-lo feito. “Como é tocante esse costume”, disse meu companheiro, “e
quão significativo esse adereço de flores tardias sobre as sepulturas. Não é justo dedicar aos
mortos essas flores de outono, a eles que, na primavera, estendem-nos desde suas câmaras
obscuras a alegria daquelas flores, como testemunho eterno da continuidade da vida e da
ressurreição eterna?”
No meio da praça erguia-se uma pequena capela, incapaz de acolher a multidão. Logo após
nossa chegada, ela se havia enchido tanto que uma longa fila se estendia para além da porta
sobre as sepulturas. Nós sentamos ao lado, sobre uma velha lousa musgosa cujas inscrições há
muito tinham-se tornado ilegíveis, e escutamos o Ofício solene cujo andamento só pudemos
acompanhar a partir dos movimentos daqueles que estavam do lado de fora. Ali sentados,
mergulhamos em funda melancolia. “Quantos dos que aqui passeiam sobre essas tumbas”,
pensávamos, “jazerão eles mesmos lá embaixo no próximo ano?”
Onde se encontraria nossa amiga? Tínhamos acreditado vê-la de longe, por vezes, mas sem
realmente identificá-la ou dela poder aproximar-nos na multidão. Lembramos que ainda
tínhamos um longo caminho a fazer. Ela nos havia indicado o mosteiro beneditino (2) situado
em um outeiro do outro lado da cidade, onde a deveríamos encontrar, em todo caso, no
momento da partida. Vimos que era chegado o tempo e nos afastamos em silêncio.
Na cidade, achamos tudo vazio e desolado; detivemo-nos por curto tempo para tomar algum
alimento e subimos então para o belo mosteiro. Ali chegados, fomos conduzidos à sala da
biblioteca, onde nos aguardava um padre jovem e bem-educado cuja função pareceu-nos ser a
de recepcionar os estranhos e entretê-los de modo cortês. Logo soubemos, por ele, que o
príncipe recém-falecido o havia enviado em viagens, mas que seria agora o curador desse
acervo de livros e, ao mesmo tempo, professor de ciências filosóficas no mosteiro. Ele
mostrou-nos várias raridades confiadas a sua custódia. Mais do que esses tesouros mortos,
porém, atraiu-nos a vista deslumbrante, que se estendia a partir das janelas até a planície
distante, a qual, salpicada de cidades e aldeias, vinha até a montanha em que nos
encontrávamos; através da planície, a correnteza poderosa do rio, visível só aqui e acolá,
serpeava como estreito fio prateado.
Ele nos tinha dito, já de início, que nós precisaríamos esperar por Clara, a qual ainda teria
de falar sobre certas questões com o prior do mosteiro; vários bens do mosteiro estariam
cercados daqueles de sua família, além disso, este contaria com alguns de seus antepassados
entre seus principais benfeitores. Alguns retratos, que se encontravam pendurados na sala,
esclareceu-nos ele, seriam dos mesmos; o próprio irmão de um desses estava representado em
hábito monástico. Ficamos sabendo que este realmente havia professado os votos, tendo aí
morrido e sido enterrado. Da verdade de sua declaração nos teria convencido a semelhança
notável entre ele e nossa amiga, se tivéssemos dela minimamente duvidado. Não pudemos
conter nosso espanto a essa semelhança ressurgida após 200 anos, e o padre ponderou que, a
um tal aspecto, poder-se-ia bem acreditar em transmigrações das almas.
“O que é ainda mais esquisito”, disse eu, “é que, talvez, entre os destinos desses dois
parentes distantes exista uma semelhança tão grande quanto a de sua aparência exterior,
segundo a qual seria preciso tomá-los no mínimo por irmão e irmã. Quem sabe o que conduziu
esse irmão de outrora (pois é assim que preciso chamá-lo) a esses muros solitários e o impeliu
a terminar sua vida aqui, no isolamento. Circunstâncias talvez similares às que fizeram nossa
amiga preferir a tal ponto a calma de nosso vale silente à vida no mundo, ou mesmo àquela em
uma cidade maior. Nós a exortamos, ambos, com frequência, a buscar uma cidade maior, por
acreditarmos que a solidão, que preserva todas suas lembranças sempre com a mesma
intensidade, virá com o tempo a minar-lhe a saúde.”
“Ela então ainda habita”, disse o padre, “aquela casa isolada onde eu a visitei seis anos
atrás?”
“A mesma”, eu respondi. “Anos antes, também um estrangeiro havia comprado as terras e
edificado a casa; ela a encontrou vazia há seis anos, quando em fuga, comprou-a por um preço
relativamente baixo, com o jardim e as vinhas a ela pertencentes e hoje a habita outra vez,
porque de novo foi expulsa das propriedades paternas.”
“Naquela época”, disse o padre, “ela não estava em relação alguma com nosso mosteiro; a
visita, a que me levou uma curiosidade mesclada de secreta admiração, eu precisei fazê-la
clandestinamente e às ocultas. Eram por certo dolorosas as circunstâncias em que ela se
encontrava; e o falecido prelado de nosso mosteiro, que havia tido sempre muita influência
sobre a família, como toda realeza católica da vizinhança, fora particularmente contrário ao
casamento com um protestante, posto que, como última herdeira, por intermédio dela todas as
belas propriedades passavam para o outro lado. Esta de hoje é a primeira visita que ela faz ao
nosso mosteiro, o qual, como me lembro bem, ela pisou só alguma vez, em criança, com os
pais. A posse exclusiva de bens tão respeitáveis, que ela agora reassume, terá talvez mudado
muitas coisas; além disso, o atual regedor tem uma forma menos acanhada de pensar sobre
muitos assuntos e ajuíza mais corretamente esses tempos, nos quais todos deveriam pensar na
preservação mútua, ao invés de alimentar querelas locais.”
O médico, que até o momento se havia ocupado sempre com os diversos quadros,
interrompeu-nos com as seguintes palavras: “A diferença entre os nossos e os tempos
anteriores parece-me poder concretizar-se melhor do que tudo através de uma tal coleção de
retratos. Que sólidas, cultivadas e desenvolvidas em todas as direções são as cabeças desses
príncipes da Guerra dos Trinta Anos e de tempos anteriores; que testas, que olhos os desses
generais e de outras personagens insignes por seus atos, os que aqui vemos agora lado a lado!
Eu gostaria de saber se um só dos últimos descendentes masculinos dessas famílias carregou
em si, como esta cabeça, uma tal expressão de elevada sensibilidade espiritual ligada à força de
caráter; e se, no apagar da estirpe, os traços elevados dos antepassados não terão reaparecido
ainda apenas em forma feminina?”
Naquele exato momento, extremamente serena, Clara entrou na sala e só agora a
semelhança tornou-se tão notável a ponto de assustar, de modo que todos precisamos conter-
nos para ocultar a sensação. Pois eu não sei por que cada um de nós evitou comunicar-lhe o
observado ou deixá-la sequer suspeitá-lo. Com os olhos, ela atraiu-me logo à janela aberta e
assim que divisou, ao longe, as montanhas azuis, o seu olhar fundiu-se em lágrimas e ela disse:
“Lá atrás daquelas montanhas, sobre as quais o sol está agora prestes a afundar e as quais vão
ficando cada vez mais azuis, lá jaz enterrado quem é tudo para mim. Ó Alberto, Alberto, foi-
nos preciso assim abandonar o calmo refúgio que nos tinha unido deste lado só para, por
longo tempo, sermos separados – ah, por quanto ainda, talvez? Mal te perdi, vejo-me de novo
expulsa e arrancada até a última coisa que me havia restado de ti, ao pequeno pedaço de terra
que te cobre. Ladrões profanam as tumbas de meus antepassados; tu dormitas, porém, junto a
eles. Hoje, o mais pobre dos homens vai visitar a sepultura de seus queridos; só eu não pude
ornar a tua; mas que corram, aqui, serenas e puras as minhas lágrimas, seja qual for a parte da
terra que as receba, elas penetrarão por mágico poder até ti e te refrescarão na tua cova”.
Assustei-me ao ver essa paixão tão súbita e inesperada e quis interrompê-la, procurando
dirigir a conversa para assuntos gerais. “Eu confesso a vocês”, disse eu, “esta festa em
memória dos mortos tocou-me profundamente. Tornou-se-me tão claro outra vez como a vida
que agora vivemos é uma vida inteiramente unilateral, e se completaria apenas quando aquela
espiritual mais elevada a ela pudesse ligar-se; quando aqueles que chamamos falecidos não
cessassem de viver conosco, mas constituíssem apenas como que uma outra parte da grande
família. O costume dos antigos egípcios tem em si algo de apavorante, mas contém ao fundo
uma ideia em si verdadeira e justa (3). Nós deveríamos conservar todas as festas e usos,
mediante os quais somos lembrados de uma conexão com o mundo do além.”
“Desculpem-me”, interrompeu aqui o padre, que nesse meio-tempo se havia aproximado e
escutado as últimas palavras, “mas sou de outra opinião acerca disso. Assim, por exemplo, a
festa de Finados, comemorada hoje, tem certamente algo de tocante em si; se ela devesse,
porém, alimentar a ideia de que poderíamos estar em ligação com os habitantes daquele outro
mundo, eu a declararia até mesmo nociva e admitiria que fosse abolida na Igreja de vocês,
como o foram tantas outras.” Como ninguém lhe respondesse, ele prosseguiu: “Nós, os vivos,
fomos afinal destinados a este mundo; devemos fazer aqui todo bem possível, demonstrando
amor e fidelidade àqueles ligados a nós enquanto ainda estivermos com eles a caminho. E
cumpriríamos, por certo, esse dever uns para com os outros com muito mais rigor e escrúpulo,
se nos lembrássemos constantemente que eles são mortais e que fica suspensa, para nós, com
sua morte, toda ligação com eles; que eles tornam-se, então, inalcançáveis tanto para a paixão
de nosso amor quanto para aquela de nosso ódio e de nossa mesquinhez.”
“O inferior”, replicou Clara, “talvez não possa agir sobre o superior, mas é tanto mais certo
que o superior possa fazê-lo sobre o inferior; e, assim, a ideia de uma ação de lá para cá não
seria tão disparatada.”
“A saber”, prosseguiu o padre, “se compreendidos ambos em um mesmo mundo, como na
vida atual, nosso espirito e corpo pertencem a um mundo. O falecido está, porém,
completamente morto para este mundo dos sentidos e lhe é impossível produzir efeitos em
uma região, para a qual ele não tem as ferramentas nem tampouco a receptividade.”
“Sua fala”, disse-lhe eu, “lembra-me a explicação que nos dão hoje em dia acerca do milagre
os nossos teólogos filosofantes, segundo os quais este seria um efeito extraordinário de Deus
no mundo dos sentidos, sem considerar o quanto deste mundo sensível é ele mesmo
inteiramente não sensível.”
“Não obstante”, ele revidou, “temos de honrar essas velhas fronteiras. Só com pesar, uma
pessoa sensata poderia vê-las serem removidas, porque então tudo, sem diferenciação, se
interpenetraria e nós em breve não nos sentiríamos mais em casa nem neste nem no outro
mundo.”
“Contudo, o senhor mesmo admite”, disse Clara, “que, ao menos em nós, viva ainda uma
outra essência além da meramente sensorial: o espírito. Terá também de conceder, portanto,
que por meio deste estamos realmente em relação com aquele mundo e que, mesmo admitido o
corte entre o sensível e o espiritual, não há prova nenhuma contra uma possível conexão do
espiritual em nós com as forças de um outro mundo.”
“Eu o concederia”, respondeu ele, “se nosso espírito pudesse, de fato, jamais elevar-se à pura
espiritualidade; isto é, se devido a sua ligação com a matéria, ele não estivesse totalmente
separado da integridade daquele mundo, para o qual está destinado a elevar-se só após a
dissolução desse laço.”
“Admitindo uma separação tão completa entre os dois domínios”, eu repliquei, “o senhor
precisaria rejeitar também qualquer conceito daquele mundo mais elevado.”
“Assim é, de fato”, ele respondeu: “qualquer conceito que o entendimento ou a razão
quisessem forjar para si. Temos em nós um único ponto aberto, através do qual o céu brilha
no interior. Este é o nosso coração ou, para ser mais preciso, nossa consciência moral. Nós
encontramos nesta uma lei e uma determinação, que não podem ser deste mundo, com o qual,
pelo contrário, ela se encontra de ordinário em luta. E ela nos serve assim como o penhor de
um mundo mais elevado, alçando aquele que aprendeu a segui-la à ideia consoladora da
imortalidade.”
“E a nada mais?”, acudiu Clara. “Esta palavra, ‘imortalidade’, é demasiado fraca para o que
sinto. O que têm a ver as frias palavras e os conceitos meramente negativos com o ardor do
anseio? Contentamo-nos acaso nesta vida, com uma existência de mera superfície? A natureza
satisfaz-nos com tais generalidades?”
“A fé é monossilábica”, respondeu ele, “como o dever de que provém.”
“O senhor afirma fundar no coração toda certeza mais elevada, mas nada concede ao
coração. Nós não podemos ver afastar-se um velho amigo, a quem o dever chama para longe,
sem o seguir em pensamento àquelas paragens remotas, sem procurar vividamente imaginar
sua situação, sua circunstância, sem o desejo de saber como terá lá alterado ou mantido os
seus hábitos de vida.”
“Uma coisa”, disse ele, “é uma separação nesta vida, uma outra a passagem a um mundo
que nada, absolutamente, tem em comum com este.”
“A mim isso aparece de outro modo”, eu falei. “O oposto é de si justamente o mais
próximo. Desertos, montanhas, terras distantes e oceanos podem separar-nos de um amigo
nesta vida; a distância da outra vida em relação a esta não é maior do que a da noite em
relação ao dia ou vice-versa. Um pensamento profundo, ligado à subtração completa de todo
exterior, desloca-nos àquele outro mundo, que nos está talvez tanto mais ocultado quanto mais
próximo de nós se encontra.”
“Eu não nego isto”, ele respondeu; “aquele mundo espiritual pode se abrir em nós, mas nós
não nos abrimos nele. Nosso olhar fica sempre restrito ao nosso interior e não pode seguir o
destino dos amigos mortos; no que vejo, aliás, uma forma egoística de amor.”
“Como assim?”, perguntou Clara.
“Nós presumimos tão facilmente, também nesta vida, que amigos e amantes seriam nossos,
quando são só de Deus, seres livres e a serviço de ninguém, a não ser Dele. Nós os possuímos
só como presente; é disto, se de nada outro, que nos lembra a morte, ainda que pareça
igualmente sábio lembrarmos também sempre em vida que a nada podemos denominar nosso
em sentido próprio; que o voto de pobreza, de privação, em especial, porém de obediência em
relação a uma vontade oculta mais elevada, é um voto que cada pessoa deveria tomar para si.
Sendo embora cuidadosos no uso de todos os bens, especialmente dos mais nobres, que nos
oferecem o amor e a amizade, tanto mais nos acautelaríamos se lembrássemos que a essência
da alma, que de bom grado atraímos a nós, dela nos apropriando com todas as forças de nosso
espírito e de nosso coração, sim, se possível gostaríamos de fundir com nossa existência – que
essa alma está só na mão de Deus, ao Qual teremos de entregá-la mais cedo ou mais tarde; que
chega o instante em que ela não mais nos pertence, em que de novo pertence ao todo, em que
volta a sua liberdade originária e inicia, talvez, segundo a vontade de Deus, um novo percurso
o qual nunca encontra o nosso outra vez e serve a alcançar desígnios totalmente outros dos
aqui por ela cumpridos, quando operava para o desenvolvimento de nosso interior e para o
enobrecimento de nosso ser.”
“O senhor então não acredita”, disse Clara, “que na amizade e no amor encontre-se algo por
sua própria natureza eterno e que um laço que Deus amarrou nem a morte, sim, nem o próprio
Deus poderiam desfazer? Que se rompam com esta vida milhares de relações; elas talvez
jamais houvessem tocado nosso íntimo, a não ser de modo hostil ou perturbador, mas o laço
de um amor verdadeiramente divino é indissolúvel como a essência da alma em que está
fundado, eterno como uma sentença divina. Que me tivessem sido dados filhos e eles todos
roubados a mim, eu jamais poderia tomar por um acaso ou um destino passageiro o ser a mãe
dessas almas; eu sentiria, sim, eu saberia que elas me pertencem para sempre e eu a elas e que
nenhum poder da Terra nem mesmo do céu poderá tirá-las de mim nem a mim delas.”
“Este é, por certo”, ele respondeu, “o verdadeiro sentimento materno; no entanto, nem
mesmo aqui é a relação natural em si que dá o sentimento eterno, senão, ao contrário, é antes
o sentimento que faz eterna a relação; pois, por que senão por isso haveriam tantas mães não
naturais? Isso nos mostra que nada existe de verdadeiramente eterno, a não ser a consciência
moral. E se não podemos considerar sem devoção aquelas relações naturais que se forjam a
despeito de nós, que são juntadas por mão invisível, que têm por si uma confirmação divina...
“O senhor não acredita, acaso”, interrompeu-o Clara, “que também outras relações mais
elevadas, de amor e amizade, sejam de natureza divina; que uma necessidade secreta,
inconsciente, mas por isso mesmo ainda mais poderosa, atraia alma para alma?”
“Eu não nego”, ele disse, “a vigência de uma tal força natural, embora não a entenda bem;
mas uma vez que o homem entrou nesse conflito e contradição com a natureza, ao que
tampouco entendo, uma vez que se instalou na natureza humana uma tão profunda perversão,
a ponto de ele não conseguir abeberar-se limpidamente nem de uma, nem de outra dessas duas
fontes da vida, e por ser quase tão perigoso remetê-lo à liberdade quanto à necessidade – em
vista dessa aberração, confesso ter enormes dúvidas acerca de todas as situações, nas quais a
vontade livre tem a mais mínima parte, e não me aventuro de bom grado nesse labirinto.
Concedo em fazer justiça ao calor de cada belo coração, guardemo-nos apenas de querer dar às
presunções de nossos sentimentos, às invenções de nossos anseios o cunho de verdades gerais;
que então não há mais limites. O ânimo tenebroso e desértico passa a ter os mesmos direitos
que o sereno e ordenado; e nós sabemos que sorte de monstros se evadiram deste impulso de
tornar reais as criaturas de um anseio desregrado ou de uma imaginação desenfreada.”
O médico, para quem essa conversa já há muito parecia inconveniente, interrompeu aqui
dizendo: “O senhor tem razão, só os ânimos mais ordenados deveriam ocupar-se com a
questão de uma vida futura, só ânimos alegres aproximar-se daquelas regiões de serenidade e
paz eternas. Ninguém que não tivesse conquistado um solo firme e inabalável na natureza
presente, para nele apoiar seus pensamentos, deveria consagrar-se a essa investigação. Só quem
compreendesse a vida presente deveria falar da morte e de uma vida futura. Todo negligenciar
de nosso estado atual, cada saber que não seja o puro desenvolvimento a partir do presente e
real e queira antecipar algo a que não foi levado pelo caminho natural do espírito, é reprovável
e leva à exaltação sentimental e ao erro.”
“Desse modo”, disse o padre, “o senhor repudiaria de fato, como eu, todo o saber sobre as
coisas futuras; pois quem poderia dizer, afinal, ter compreendido a vida?”
“Não sei”, replicou o médico, “se uma pessoa qualquer pode dizê-lo; o que sei é que não o
tenho por uma impossibilidade absoluta. Nós só não precisamos buscá-la demasiado alto, não
cortar já de início a raiz, que atrai a si a força, a vida e o suco do solo da natureza e pode
então impelir até o céu a sua floração; e de modo geral, temos de desistir da ideia de querer
compreender a vida a partir de algo mais elevado e outro que justamente ela mesma. Não de
cima para baixo, senão de baixo para cima é minha divisa, a qual, como acredito, é muito
apropriada à modéstia que, sob vários aspectos, nos convém. “Contudo”, ele acrescentou,
“vejo que o sol já desce ao encontro das montanhas e temo por nossa amiga o ar da tarde
outonal. Deixe-nos, pois, partir.”
Clara despediu-se depressa, o olhar voltado às montanhas distantes, e, após buscarmos
primeiro minhas filhas na cidade, rodamos outra vez estrada abaixo em direção à entrada da
montanha, ao encontro de nosso vale. Mudos e taciturnos, íamos sentados lado a lado, Clara
quieta e ensimesmada, até o médico levar finalmente a conversa ao tema da vida monástica:
“De onde vem que muitos costumem pensar tanta coisa agradável e bela no caso da vida
monástica? Será por que cada um gosta de adivinhar por trás do hábito monástico o ideal de
uma pessoa tranquila e clara, chegada ao pleno equilíbrio consigo mesma, um ideal que cada
um gostaria de saber realizado em si mesmo, mas não realiza? Pois as motivações exteriores
dessa classe monástica, a vida acomodada, a ausência de preocupações e coisas semelhantes só
podem mesmo influenciar a plebe.”
“A mim”, disse Teresa (4), “só poderia seduzir a bela localização desses mosteiros, as
montanhas sobre as quais são tão frequentemente construídos, os vales fecundos de que são
cercados.”
“Não é assim”, disse eu, “que cada um tem o obscuro sentimento de que a felicidade estaria
em nada possuir, porque cada posse redunda em preocupações e quefazeres; e que por serem a
pobreza e a privação sempre coisas duras e penosas, a vida monástica tem de aparecer como
um verdadeiro ideal, porque aí cada um, sem nada possuir, leva uma vida boa e comedida?”
“Parece-me”, disse Clara, “que todo imutável impõe-nos uma certa reverência, assim como
nada diminui mais o nosso respeito do que o seu oposto. O homem que vejo nas relações
ordinárias da vida mantem-se sempre para mim um ser vacilante e incerto. Quem sabe se o
mesmo que vejo agir agora com grandeza e verdade não agirá a seguir, curvado à força das
circunstâncias, de modo pusilânime e contra seu coração; o mesmo, que hoje aparece claro,
livre e puro, não será cedo ou tarde aprisionado, embotado e estraçalhado por violenta paixão.
O homem que toma uma decisão por toda sua vida e o faz de tal modo, que invoca a Deus e
ao mundo como testemunhos da mesma e sob condições que a ela imprimem o selo da
indissolubilidade, este homem há de despertar sempre o meu respeito, se eu o imaginar agindo
voluntariamente, como ser refletido. Por que se costuma dizer, senão por isso, que ninguém
seria bem-aventurado antes de sua morte, excetuando-se somente aquele que, poder-se-ia dizer,
morre ainda em vida – e que outra coisa é esse juramento solene de privação e de renúncia ao
mundo, senão uma morte em corpo vivo?”
“Admira-me”, eu disse, “que nenhum de nós mencione o efeito benfazejo que uma solidão
isenta de cuidados poderia ter sobre as artes e ciências.”
“Poderia”, respondeu o médico, “mas não o tem tido já há muito; enquanto provas disso,
precisaríamos querer apenas referir obras de erudição e do mero zelo de colecionador.”
“Todavia”, eu respondi, “nada pequena será a perda que sofrerão as artes e o saber, se
vierem a desaparecer todos esses ricos mosteiros com suas edificações magníficas, suas
consideráveis coleções de livros, suas Igrejas repletas de retábulos, afrescos e entalhes
artísticos.”
“Sim”, disse Teresa, “e com isso a região inteira ficará desértica. Nada conheço de mais belo
do que, em meio à abundância da natureza, uma construção sobressair, magnífica, com suas
torres e cúpulas, cercada por campos de espigas ondulantes, ao longe água, floresta, colinas de
videiras e, por todo lado, tudo animado de homens ativos. A mais bela das cidades não exerce
esse efeito sobre mim; ela reprime a natureza, que a gente habitualmente só volta a encontrar a
uma distância considerável. A simplicidade, a abundância indomada de uma região campesina,
misturada ao fausto e à grandeza, é sobretudo isso que dá a verdadeira impressão.”
“Então”, eu disse, “minha Teresa precisaria deixar valer também os castelos e as belas casas
de campo dos nobres.”
“Ah, não!”, ela respondeu. “Eu amo acima de tudo o duradouro, onde vejo uma consistência
e uma permanência. Nos nossos tempos, também os bens vão de mão em mão; uma família se
extingue, a nobreza desloca-se para as cidades e, saia dela uma vez, só o faz para, mediante o
contraste de seus costumes, a barulheira de seus divertimentos, ofender a quietude e a graça
desses lindos vales.”
“Tens razão, minha filha”, eu repliquei, “mas não esquece que o teu ponto de vista em
relação à coisa não pode ser o geral, menos ainda no tempo selvagem a que nos dirigimos. De
todo o significado que tinham antes, essas instituições terão conservado, talvez, só o pitoresco.
Há de achar-se, porém, mais fácil e agradável suprimi-las de todo a de um modo apropriado
ao nosso tempo, reconduzi-las ao seu sentido originário. Muitas vezes, quando, no vale abaixo,
eu enxergava um tal mosteiro silente, ou ao passar por uma colina de onde este olhava para
baixo, eu pensava comigo: ‘Tomara que, quando tiver soado, um dia, a hora derradeira de
todos esses monumentos de um tempo passado, qualquer um de nossos príncipes tenha a ideia
de preservar um ou dois desses refúgios, para, deixando juntos os bens e as edificações, fazer
deles uma instituição para artes e ciências’. Não há nenhum verdadeiro sacerdote, a não ser
aquele que vive realmente no espírito, logo, o verdadeiro sábio e artista. O mero exercício da
piedade feito negócio da vida e não ligado a uma investigação científica vital e ativa, leva ao
vazio e, por fim, àquele mecanismo sem coração e alma, que, por si só e mesmo em tempos
como os nossos, teria tornado desprezível a vida monástica. Naqueles séculos de
conhecimentos menos divulgados, visto que monges eram os únicos depositários das ciências e
do conhecimento, eram também eles os verdadeiros sacerdotes; desde que o resto do mundo os
ultrapassou tão fortemente, eles deixaram cada vez mais de o ser. As ciências têm um fim
comum com a religião; seus mais belos tempos foram e são aqueles nos quais estão em
consonância com esta. Há, entretanto, países onde, com a mudança da fé, os mosteiros foram
transformados em escolas; não foi isso porém que eu tive em mente.”
“E o que, então?”, perguntou o médico.
“Eis o que pensei: aqui, sobre esta colina, deveria ser composto o próximo grande poema dos
alemães (5), aqui, neste vale, reunir-se uma Academia Platônica como aquela em Cosentina
(6), aqui, homens de cada arte e ciência, em harmonia e libertos de preocupações, levar uma
vida verdadeiramente espiritual: eles não deveriam ser aprisionados em cidades, longe da
natureza e nas condições constritivas da sociedade. Porque o espírito alemão ama a solidão, tal
como ama a liberdade; todo o convencional o oprime. Não como o erudito ou o poeta
domesticado que, se deixando atrair pela assim dita sociedade, toma de sua mão e de seus
lábios, tal como o faz com suas necessidades físicas, o elogio e a aprovação, esse alimento da
vaidade – o espírito alemão gosta de vaguear livremente através da floresta, da montanha e do
vale, crescendo amamentado apenas nos seios da natureza. Não como um rio ordenado que,
represado, inunda só margens e terras prescritas, senão como o húmus interior da terra, cujos
caminhos secretos ninguém investiga, mas em tudo penetra e, onde quer que o queira, a tudo
vivifica e irrompe claro e livre, despreocupado se alguém a caminho nele se vem refrescar, mas
fortalecendo e aliviando aquele que não teme as trilhas solitárias das montanhas, os penhascos
e os vales remotos. Pena que, muitas vezes, eu já tendo formado isso tudo em minha mente,
precisasse dizer-me que tudo isso não passaria de um sonho agradável, posto que os alemães
parecem antes destinados a nunca serem tratados segundo sua singularidade própria. Eles
precisam deixar-se impingir normas estranhas, porque aqueles que decerto poderiam mudar
isso têm tão raramente a coragem de serem característicos nas suas atitudes – pois o que
haveria de dizer o vizinho, se se quisesse tratar os alemães enquanto alemães!” (7)
“Assim”, disse o médico, “alegremo-nos, pois, novamente de nossa situação afortunada, na
qual, sem estarmos divorciados do mundo, passamos nossos dias em contato contínuo com a
natureza. Eu vi os mosteiros mais belos do mundo; frequentemente, por exemplo, em Monte
Cassino, na floresta de Camaldoli, nos mais belos mosteiros à margem do Meno e do Reno, fui
tomado pela nostalgia da vida contemplativa, que lá parece escorrer em paz eterna. Mas voltei
sempre atrás ao perceber o quanto toda essa forma de vida leva para longe da natureza, o
quanto o embotamento, sim, a repulsa diante da mesma, são a consequência dos tormentos
autoimpostos que uma lei rígida inflige aos que a ela se submetem. De todas as ordens
religiosas possíveis, eu gostaria que uma fosse mantida, que me parece ser de alguma
necessidade para a sociedade humana. É a Ordem dos Cartuxos. Quantos os que, sob as
normas dessa Ordem, deram continuidade a uma vida que lhes teria de outro modo sido
insuportável aonde quer que fosse! Ela é o único asilo dos verdadeiramente infelizes, daqueles
que têm a lamentar uma ação precipitada a que se viram arrastados pelo arroubo da
juventude, pelas circunstâncias sociais, ou por um erro de consequências terríveis e
irreparáveis. O mundo com suas engrenagens, que aprisiona todo aquele que dele não se
separa, a própria compaixão que seu destino suscita, lhes partiria o coração; a vida, ela
mesma, seria para eles vergonha, não os acolhesse já aqui uma terra de silêncio e de
recolhimento semelhante àquela em que entramos após a morte; terra onde a dor quanto ao
irreparável resolve-se em melancolia e no reconhecimento geral de que esta vida nada mais tem
a oferecer àquele que a tenha uma vez ultrapassado, e que é triste acima de tudo o fado dos
homens mortais. Em parte alguma entabulei relações mais interessantes do que nos
monastérios dos Cartuxos, particularmente nos da França; em parte alguma aprendi a penetrar
mais intimamente a vida humana e seus enredamentos múltiplos. Que outro refúgio, além da
tumba, resta ao infeliz que, por culpa inculpada (durch unverschuldete Schuld), joga fora sua
sorte na vida, se esta sociedade benfazeja não mais lhe abre os braços. Sociedade que, sob a
aparência da maior austeridade, nutre a mais benevolente das intenções, onde a vida flui como
que atemporal e onde a existência quieta das plantas, a única na qual seus membros ainda
tomam parte ativa, põe-lhes à frente um quadro permanente de serenidade e isolamento.
Também para minha arte, eu muito aprendi com os membros dessa Ordem, os quais, mediante
longa observação, especialmente das plantas, chegaram a conhecer suas prodigiosas relações
para com o ser humano.”
“É verdade”, disse eu, “admirei-me muitas vezes do quanto o senhor conseguia fazer com
coisas de aparência ineficaz e menor, que não pareciam estar em absolutamente nenhuma
relação com a gravidade da situação.”
“E a que eu, justamente por isso”, ele acrescentou, “não teria podido recorrer em uma
cidade grande, onde as pessoas estão mais habituadas com os meios mais perigosos e não têm
fé nenhuma naquelas coisas simples.”
“Logo”, disse Clara, “o senhor teria por isso dado preferência ao domicílio em uma pequena
cidade campesina àquele em uma grande cidade?”
“Não só por isso”, ele respondeu. “O investigador da natureza pertence ao campo. Eu
aprendi mais da Física dos camponeses do que daquela das salas de aulas dos eruditos. A
observação continua sendo o mais importante. O quanto dá a observar um único longo dia de
verão, cujo fim não se pensa poder vivenciar, passado ao ar livre desde o amanhecer até a
chegada do pleno silêncio da noite. Eu fiz aí, acerca dos efeitos mais universais da natureza,
acerca da luz, do som, do jogo da água sobre a terra e nas nuvens e sobre o ir e vir de forças
naturais, sobre a vida dos animais, mas em particular acerca das plantas, observações que
erudito nenhum me teria podido comunicar. Quem não atenta permanentemente à vida da
natureza no seu todo, quem não aprende a compreender sua língua no singular e pequeno, este
não sabe em que grau é verdade que o corpo humano é uma pequena natureza na grande; uma
pequena natureza, que tem para com a grande um número inacreditável de analogias e
ligações, nas quais nenhum ser humano pensaria se a observação e o uso não as tivessem
ensinado a nós.”
“Posso frequentemente apavorar-me com essas ligações”, disse aqui Clara, “tal como com a
ideia de como tudo se refere ao homem. Sim, se um outro poder em mim não mantivesse o
equilíbrio diante desse calafrio da natureza, eu haveria de morrer ao pensamento dessa noite
eterna e fuga da luz, desse ser lutando eternamente, jamais existindo. Só o pensamento de
Deus torna de novo claro e pacífico o nosso interior.”
Naquele mesmo instante, as luzes de uma casa próxima, não longe de sua moradia,
penetraram no interior da carruagem, que se deteve minutos após. Teresa subiu com Clara;
cada um de nós outros, porém, fez seu caminho à casa.
Na natureza outonal
Desde seu regresso, tínhamos percebido em nossa amiga um forte e quase permanente desejo
de falar acerca de objetos daquele outro mundo. Os acontecimentos da época, que deixavam
adivinhar um futuro ainda mais negro, somados ao sofrimento singular que a atingia, haviam
expulso a bela alma do engaste tranquilo que nela havíamos conhecido antes. A mágoa acerca
do passado transformou-se em uma ânsia indizível do vindouro. Havia, ao mesmo tempo, algo
forçado em seu esforço de ir além da natureza e do real. Conceitos de poderes ocultos da
natureza, que ela já cedo absorvera na casa paterna, mais tarde a convivência com Alberto, a
quem um gosto apaixonado por certas operações da natureza ligava ao médico e, como sempre
supus, já havia ligado anteriormente, poderiam tê-la impregnado do sentimento da presença de
algo inominado e assustador na natureza; algo em relação ao qual, com um prazer
horripilante, ela sentia-se ora talvez atraída, ora de novo repugnada. Não podendo ocultar-
nos, os dois, o risco dessa situação, nós combinamos dar a seus pensamentos, ainda nos
próximos dias e no que fosse possível, uma orientação mais branda sem opormo-nos com
violência à inclinação presente.
“Com que indiferença”, disse eu entre outras coisas, “nós frequentemente lidamos com o
conhecimento, como se pudesse haver em nós uma ideia qualquer que não nos afetasse, que
não tivesse consequências sobre nossa vida. Quantos são aqueles, para os quais um
conhecimento que lhes contradiga a condição moral transforma-se em veneno, o qual,
mediante a excitação desagradável da massa de impurezas que neles se encontra, leva-os à
fúria e a terríveis explosões. Como vi definhar alguns outros na busca de um conhecimento
para o qual não estavam preparados. Talvez a natureza de cada um exija mesmo uma visão das
coisas afinada de modo peculiar, na qual, unicamente, ela pode sentir-se bem.”
“Eu acredito”, disse o médico, “que nossa amiga encontre-se em um tal processo, no qual
tudo depende apenas de apoiar a crise de modo benéfico e conduzi-la a um fim salutar. O
acontecido provocou um abalo violento em suas ideias anteriores; muita coisa inconsciente
nela dormitando foi despertada; a concepção de mundo tida até agora não satisfaz mais o
ânimo agitado no seu cerne; ela não irá descansar até criar para si um mundo novo, adequado
à medida de seus sentimentos. Aqui, nada se deixa deter arbitrariamente e pode-se, decerto,
confiar na robustez de sua natureza.”
Era, portanto, assim que nos representávamos o seu estado. Uma prova de ocupação anterior
com o pensamento da morte e do vindouro, embora simultaneamente em uma disposição ainda
tranquila e de serenidade inalterada quanto ao mesmo, foi encontrada após sua morte, entre
seus papéis; uma página escrita por mão ainda virginal e terna, infelizmente um fragmento,
que soa assim (8):
Ainda ontem, buscando uma divergência na forma habitual de falar, encontrei tratada de novo a mal-entendida e
inteiramente falsa frase que, desde quase 2000 anos, foi o desmancha-prazeres da humanidade: “Tudo que aí vive adverte-
nos: Pense na morte!” Não deverá ser possível mostrar aqui à humanidade, que se debate de qualquer maneira com mil
dificuldades, uma fonte de determinada paz que ela possui – mostrar, aqui, onde ensinamentos enganadores puseram-lhe
na mão, até agora, apenas um chicote, para expulsar as mansas formas da felicidade, que são seu destino tão logo siga sua
bondosa Mãe, a em geral benéfica Natureza? Não é presunção pôr sob uma luz melhor uma coisa acerca da qual os
sábios falam tão frequentemente, que parece tão próxima ao homem já desde o instante de seu nascimento e diante de cuja
verdadeira existência, injustificadamente, não só a doutrina do cristianismo, partida de um tão limitado ponto de vista,
senão mesmo os sábios mais livres dos povos antigos, ainda assim, acharam vã toda sua força investigativa. Essa simples
sequência condutora de cada nascimento, esse passo inevitável após cada primeiro passo nesse mistério sagrado – esse
acontecimento que figura em cada linha que lemos no livro fácil da sublime Natureza –, eis onde quer embrenhar-se um
espírito ainda não desviado pelo saber e o aprender, quando um simples coração feminino quer esboçar uma vez para si
mesmo o que é o resultado do entendimento e do coração, se considera a morte sem as contradições de doutrinas
aprendidas, e qual proveito ela traz à vida. Única divindade que reconheço, única divindade cujo poder eu sinto, bondosa
Mãe Natureza, deixa minha língua pintar as imagens de tuas palavras e não deixa que se perca, jamais, mediante um
saber aprendido e não sentido, o sentimento que tu formaste!
Para acalmar a mim mesma – antes de seguir adiante as investigações juvenis de meu espírito –, digo que não me
arvoro em falar algo mais correto, algo em geral mais útil do que o que tantos homens sábios disseram antes de mim. O
que sei é que posso me vangloriar de ter um coração simples, de que nunca busquei um caminho, mas que aquele que
percorri, eu o encontrei porque, repousando quieta no seio da Natureza, eu não fechei meus olhos diante dela, e o elegi
desconhecido, e a cada passo senti que meu pé seria feito para esse caminho, não para aquele, no qual sempre vaguei
como um forasteiro. O caminho geral indicado, eu o trilhei antes de entender como escolher caminhos; mas nele prossegui
como uma criança que, imperceptivelmente, ultrapassa agora a fronteira e segue o aceno amigável de um bem-
intencionado vizinho, o qual toma seu prado por melhor. Assim, a pobre criança penetra em várzeas estranhas, são-lhe
apontadas flores, essas porém são-lhe plantas estranhas, forçadas, crescem por ordem do jardineiro; este precisa pensar,
na primavera, em como as manterá no inverno, precisa protegê-las com sebes, porque se busca arruiná-las para ele a
partir de fora. A pobre criança acredita de bom grado que se tem boa intenção em relação a ela, mas, diante desses
canteiros de flores, procura inutilmente imaginar seu prado transbordante, ao invés dessa promessa de frutos mais belos
no inverno, quando, ela querendo agora renunciar aos frutos simples, gostaria de imaginar os bagos refrescantes dos
arbustos do pai; bagos que ela comia quando amadureciam, despreocupada quanto a se amadureceriam então os mais
belos frutos, que ela desejava comer ao amanhecer (?). Por fim, depois de ela longamente vagar assim tão temerosa, uma
indefinição benevolente a leva de volta às cenas de sua infância: aí está o seu prado, aí o seu arroio, aí suas sebes
silvestres, suas flores simples, lá ao longe a pequena cabana que a abrigava cada noite e onde ela agradecia ao bom pai,
que a deixava alegrar-se o dia inteiro. Lembrança das alegrias de que a infância é capaz, tu me arrebatas, fazes de minhas
considerações uma alegoria!
E eu me encontrei, assim, em um outro caminho que aquele a mim indicado com boa intenção; e eis que, sobre o pobre
prado despojado, as coisas apareceram para mim, criança, outras do que por certo tinham de aparecer a outros, porque
eles andavam por outros caminhos.
A necessidade de uma transformação na nossa existência, como na existência de cada criatura – a realidade ensina-nos
a conhecer apenas criaturas nascidas, e é só da realidade que eu falo –, não é essa necessidade que eu menciono, pois cada
um que lance um só olhar à natureza a reconhecerá. O que é a essência da morte e de que modo deverá ter influência
sobre a vida? Isso é o que, para mim, quero esforçar-me por averiguar.
Nossa doutrina popular quer, de repente, ensinar-nos duas essências separadas, das quais consistiria o nosso Selbst, e,
mais ainda, mostrar-nos essas duas essências como algo ademais separado do resto da criação e mais nobre do que todo o
resto da criação. Nosso corpo seria pó e teria de dissipar-se, e o apodrecimento seria o aniquilamento desse corpo; nossa
alma seria um todo puro e ocuparia, separada do corpo, um outro domicílio. Onde? Como? E quando? Eles abrem, aí, a
porta para mil dúvidas tenebrosas, cismas sem fim, e, a partir do ponto de vista em que se encontram, fazem sem dúvida
da destinação dessa alma a ocupação mais importante do entendimento. Sem pensar naquilo que nos ensinaram, deixe-nos
observar-nos como o que nós agora parecemos ser. Nós encontramos em nossa estrutura a organização mais complicada e
fina de todas as criaturas que nos são conhecidas e a maior susceptibilidade e capacidade de prazer. Nós podemos sentir,
gozar cada parte da criação, e nosso Selbst parece ser por isso conhecido para cada um, como que aparentado. Mas
justamente por isso, porque nossa estrutura é tão delicada, tão excitável, tão capaz de prazer, ela é também acompanhada
de mais agravos e necessidades, e essas necessidades tornam-nos as mais dependentes de todas as criaturas, submetem-nos
muito mais a elas do que cada outro membro singular está submetido ao todo. Essas são nossas qualidades, elas nos
mostram simultaneamente a nossa destinação. Como nosso gozo pode ser tão multíplice, assim devemos gozar também
mais complexamente do que cada outra criatura; e não gozemos, eis que falhamos em nossa destinação. O que atrapalha
nosso calmo prazer precisa ser afastado, e precisamos saber então o que promove o nosso prazer. Como precisamos de
tantas coisas, eis que temos de esperar, exigir, solicitar – para ganhar tanto, precisamos dar tanto –, para gozar do todo,
precisamos velar pelo todo. Tão logo eu cuide de mim no singular, isto é, parta de mim nos meus esforços e retorne a mim,
eis que estraçalho o todo, torno-me um ser singular e me desvio assim daqueles dos quais preciso receber. Se o todo sofre,
eu tenho necessariamente de estragar; se guardo para mim toda capacidade do gozo, preciso necessariamente privar-me
de toda satisfação. Um só sem o outro não é possível, e aquele que está aberto a cada prazer, que anseia por cada prazer,
procurará preservar também o todo com o maior cuidado. Não tenho em mente, com isso, o prazer limitado de um lascivo
em um ou no outro gozo – este não conhece mil formas de prazer, que tem diariamente o filho da Natureza. A mais ínfima
planta, cada mirada do sol, cada semblante alegre, cada agradecimento pela menor dádiva, cada consciência de ter
merecido agradecimento, cada árvore distante que dá suave proteção a uma criatura estranha, o ramo próximo, a cujos
frutos ela convida o caminheiro exausto, cada pássaro que ela vê gozar da fonte fresca, cada pequena criatura a que ela
estende alimento, são para ela ramos de prazer, que nenhum lascivo limitado conhece. É assim que podemos gozar,
quando permanecemos fiéis à natureza.
Com o primeiro instante de nossa existência, inicia-se nossa destinação de morrer. O que faz tão apavorante a morte? É
o pensamento de que cessamos de viver, ou a ideia das cenas que seguem nossa morte?
Nada mais havia além disso. Vindo buscá-la, então, nos próximos dias daquele belo verão
tardio, para um longo passeio ao ar livre, ela insistiu em tomar uma trilha que segue uma
espécie de vale estreito entre duas colinas, até um ponto onde sobem ainda só duas veredas
separadas, uma até esta, a outra até aquela elevação.
Quando estávamos a caminho, ela disse:
“Sinto-me melhor aqui, no pequeno vale familiar. Dele o outono não pôde roubar muito. Ele
conserva mais o calor do sol e poderia antes fazer-nos crer que se estaria ainda no bom tempo.
Aqui ainda viceja o tomilho cheiroso, que fortalece a memória; no prado, abana há muito a
flor temporã e alude, no seu fraco azul, à pálida cor da lembrança, na qual tudo se perde por
fim. Consta ser uma planta venenosa. Por toda parte é o fim, e o que a natureza tinha ao início
tem de por certo mostrar-se ao final. Ela mesma parece conter em si um veneno secreto e
corrosivo; mas por que o reparte com seus filhos, para que estes também sejam por ele
consumidos?” (9)
“Sua queixa parece-me injusta”, falou então o médico. “Na sua opinião, sofre ela mesma de
um veneno oculto que gostaria de superar ou expelir, mas não pode. Não se enluta ela
conosco? Nós podemos queixar-nos, ela porém sofre calada e só pode falar-nos mediante
sinais e mímicas. Que surda melancolia encontra-se em certas flores no sereno da manhã e no
empalidecer das cores ao anoitecer. Poucos são os fenômenos em que ela se mostra assustadora
e sempre só de passagem. Tudo retorna logo às cancelas usuais, e em sua vida corrente ela
aparece sempre como uma força flectida, que nos comove mediante o belo que gera nesse
estado”
“É verdade”, disse ela em resposta; “eu não sei, por exemplo, que doce mágoa existe, para
mim, na fragrância de certas flores, de modo que preciso sempre, também, depreender igual
mágoa na flor, como causa do aroma.”
“A mim também”, disse eu, “o ser inteiro da natureza parece atestar que ela não está
voluntariamente submetida a esse estado e anseia por ser salva da transitoriedade.
Precisamente isso, que nada dure, essa necessidade interior, segundo a qual tudo será
finalmente destruído – necessidade que é tanto mais horrenda quanto mais silenciosa se mostra
–, precisamente isso é o mais assustador na natureza. De onde vem essa violência geral e
incessante da morte? Filósofos podem muito bem dizer: ‘não há morte alguma, em si nada
perece’; eles põem de antemão aí uma explicação arbitrária da morte e do perecer. O que
porém nós outros assim chamamos permanece e deixa-se tampouco eliminar com palavras
quanto ser desse modo esclarecido.”
“Essa”, disse o médico, “é também sempre uma saída ruim. Mas essa realidade terrível da
morte não dá ao homem de maneira alguma o direito de por isso acusar a natureza; antes
acuse a si mesmo!”
“Que ideia!”, disse Clara a isso.
“Uma ideia”, ele respondeu, “que espero tornar-lhe evidente, se você me responder só
algumas perguntas.”
“Com muito prazer”, ela respondeu.
“Pois bem”, perguntou ele, “o que pensa você no puro conceito de natureza? Sem dúvida,
uma força essencialmente produtiva?”
“Com certeza”, disse ela.
“Uma força, portanto, que, segundo a sua essência, tende apenas a produzir?”
“Naturalmente”, ela respondeu.
“A qual, portanto, também por si mesma jamais pode tender a destruir?”
“Por que não?”, objetou ela. “Pois parece que a mesma força que produz seria também a
destrutiva.”
“Eu perguntei”, respondeu ele, “se aquela força jamais por si mesma tenderá a destruir, o
que tenho por impossível. Pelo contrário, enquanto for desimpedida e livre, ela satisfará
continuamente o puro prazer de produzir. Se topasse, contudo, também com material
resistente, que se deixasse formar só até certo ponto, que limitasse, portanto, o seu prazer
produtivo, a este ela abandonaria ou até destruiria intencionalmente, só para continuar a gozar
o prazer de produzir mesmo se ela também soubesse que, com a nova criatura, chegaria de
novo ao mesmo ponto.”
“Pode-se pensar assim”, disse ela.
“Por conseguinte”, ele prosseguiu, “a causa, pela qual a força produtiva se teria tornado
destrutiva, logo também a causa da destruição, não estaria nela mesma, na força produtiva,
senão em algo estranho a ela advindo, em um bloqueio ou limitação?”
“Sim, por certo”, ela respondeu.
“Logo”, disse ele, “a natureza em si seria inocente da destruição?”
“Assim o parece, sem dúvida”, falou ela em resposta.
“Pois bem”, disse ele, “Deus poderia ser, acaso, jamais por Si Mesmo e de acordo com Sua
natureza o autor da morte, e não vale para Ele, em um sentido muito mais elevado do que para
a natureza, que Seu prazer, Ele o tem em produzir, não em aniquilar, em formar, não porém
em destruir?”
“É inegável”, disse ela.
“Mas além de Deus e da natureza, o que mais resta?”, perguntou ele adiante.
“Eu vejo bem onde o senhor quer chegar”, disse ela; “ao que se encontra no meio entre Deus
e a natureza, ao homem. O senhor sabe, no entanto, que tais inferências nunca me
tranquilizam. O que não vejo gestar-se e vir à presença, aí, diante dos meus olhos, não tem
para mim nenhum sentido.
“Que seja!”, disse ele, “Quero então prosseguir de modo narrativo, após ter feito só mais
duas perguntas. Nós contrapomos decerto à natureza o mundo dos espíritos?”
Ela o confirmou.
“E nós podemos considerar o homem como o ponto de transição (Wendepunkt) entre os dois
mundos?”
Também com isso ela concordou.
“Logo”, ele prosseguiu, “não deveríamos poder supor que seria uma determinação divina
que essa natureza se elevasse primeiro até o homem, para encontrar precisamente nele o ponto
de unificação dos dois mundos; e que, a seguir, mediante o homem, devesse acontecer uma
passagem imediata de um para o outro mundo, a planta do mundo exterior continuando a
crescer sem interrupção no mundo interior ou dos espíritos? Pois acontece agora, é verdade,
também uma passagem, quando tudo ou ao menos o homem, ao morrer, vai para o mundo dos
espíritos. Mas essa passagem dá-se só indiretamente por meio da morte e de uma ruptura
completa com a natureza, de modo que nem esta nem aquela vida pode chamar-se um todo,
senão cada uma só um lado da vida total ou indivisa. Assim não fosse, na minha opinião, não
teria ocorrido morte alguma. O homem teria vivido já aqui uma vida ao mesmo tempo
espiritual e corpórea; nele e com ele, a natureza inteira ter-se-ia elevado para o céu ou para
uma vida imorredoura e eterna. Deus não queria um laço morto ou necessário, senão um laço
livre e vivo entre ambos (entre o mundo exterior e o interior), e a palavra dessa ligação, o
homem a trazia no seu coração e em seus lábios. Da liberdade do homem dependia, pois,
também a elevação de toda a natureza. Dependia de que ele esquecesse o que lhe estava atrás, e
lançasse mão do que lhe estava à frente. Mas o homem lançou mão (como isso aconteceu e por
que Deus o permitiu, eu não pergunto aqui) do que lhe bastou ao desejo; ansiou voltar atrás, a
este mundo exterior, e com isso perdeu o celeste, detendo não apenas o seu próprio avanço,
senão o de toda natureza. Quem jamais viu com os próprios olhos as consequências terríveis
que tem sobre o corpo humano um desenvolvimento bloqueado, ao qual a natureza desejou
com veemência tal como a crise que, detida na doença por intervenção desajeitada ou tornada
impossível pela debilitação já existente, causa imediatamente o rebaixamento das forças até o
enfraquecimento mortal e, infalivelmente, a morte este poderá fazer uma ideia aproximada dos
efeitos destrutivos que deve ter tido sobre a natureza inteira, em sua evolução, a obstrução a
ela sobrevinda de súbito mediante o homem. As forças que haviam emergido, plenas e
poderosas, prontas a guindar-se a um mundo mais alto e alcançar seu ponto de transfiguração,
recaíram de volta no mundo presente e sufocaram assim o impulso interior da vida; o qual
com certeza ainda atua como um fogo aprisionado, mas, em razão de a elevação originária não
ser mais possível, o faz como um fogo de tormento e angústia, a buscar por todo lado uma
saída. Cada degrau que leva para cima é ameno, mas aquele alcançado na queda é terrível.
Não anuncia tudo uma vida decaída? Cresceram assim essas montanhas, como aí estão?
Originou-se o chão que nos suporta por elevação ou por rebaixamento? De mais a mais, aqui
não operou uma ordem fixa e permanente, senão, após bloqueada uma vez a regularidade do
desenvolvimento, o acaso também irrompeu. Ou quem acreditará que as inundações
verificadas tão obviamente por toda parte, separando esses vales e deixando para trás tantas
criaturas lacustres nas nossas montanhas, que tudo isso ocorresse em consequência de uma lei
interna; quem suporá que uma mão divina tivesse armazenado pesadas massas de rochas sobre
barro escorregadio, para a seguir deslizarem, sepultando vales tranquilos, semeados de
moradas humanas e andarilhos alegres no meio do caminho sob ruínas horrendas? (10) Ó, não
aqueles escombros do antiquíssimo esplendor humano, por causa dos quais o curioso procura
os desertos da Pérsia ou as solidões da Índia são as verdadeiras ruínas; a Terra inteira é uma
grande ruína, onde animais habitam quais fantasmas, homens quais espíritos e na qual muitas
forças e tesouros ocultos encontram-se aprisionados como que por poderes invisíveis ou pelo
encanto de um mágico. E a essas forças encadeadas nós quereríamos acusar, ao invés de antes
pensar em primeiro libertá-las em nós? O homem, na sua espécie, não está, na verdade, menos
encantado e metamorfoseado. Eis porque o céu enviou à Terra, de tempos em tempos, seres
mais elevados, para que, por meio de cânticos maravilhosos e fórmulas mágicas, desfizessem o
encanto, abrindo-lhe de novo o olhar para o mundo mais elevado. A maioria está, porém,
totalmente cativa do aspecto exterior e acredita que haveria de, neste, encontrar aquele mundo
mais elevado. Como camponeses que, com sua vara bifurcada na mão (11), andam às
furtadelas em torno a um velho castelo destruído ou enfeitiçado, ou iluminam com suas
lamparinas o interior das câmaras subterrâneas entulhadas, servindo-se até mesmo de alavanca
e pé de cabra na esperança de encontrar ouro ou outra coisa preciosa: assim vai o homem em
torno à natureza e para dentro de algumas de suas câmaras ocultas, chamando a isso de
investigação da natureza. Mas os tesouros não estão só encobertos de escombros; mesmo eles
estão encerrados nas ruínas e rochas através de um encanto, que só uma outra fórmula mágica
pode desfazer.”1
Assim falando, alcançamos o ponto onde a trilha acabava. Clara parecia cansada e sentou-se
no solo, em um banco de pedra que escultor habilidoso até aí deslocara da pedreira próxima.
Até então o sol havia estado as nossas costas; agora, como nos voltássemos, ele já estava de
viés para a abertura do pequeno vale, e um dos lados veio a ficar na sombra, enquanto a
iluminação cortante do outro intensificava a maravilhosa impressão das massas irregulares da
rocha, da qual o arbusto espesso, com suas folhas vermelho-outonais e cinza-amareladas,
aflorava em profusão. Das macieiras, que se encontravam atrás do banco e a subir como um
bosque a elevação escarpada, o movimento do ar deslocava aqui e ali uma folha murcha,
pousando-a docemente no regaço de Clara ou em seus cabelos. Ela não parecia atentar a isso e
ocorreu-me o quão outra, na primavera do ano anterior, ela havia sentado sob essas árvores,
que despejavam sobre ela a sua floração.
O médico, que tinha escalado a ourela a buscar alguns bagos silvestres, que só ganham certa
doçura com o frio e a geada das noites de outono, entretempos voltara. Clara virou-se para ele
e disse: “O senhor deu-me uma luz desejada. Eu já há muito pressentia uma tal conexão
mágica entre o homem e a natureza. Os olhos de todas as criaturas estão por isso voltados
para ele, porque tudo contava com ele. Tudo parece recriminá-lo com suspiros mudos ou
precipita-se sobre ele como o inimigo geral. Com razão, apontam para ele todas as setas da
natureza. Com razão, arremessa-se contra ele aqui o vento frio e destrutivo do norte, enquanto
ergue-se ali um vento envenenado do deserto, consumindo-lhe as forças vitais. Com razão,
desabam sobre ele as suas moradias, quando, movida pela força do fogo nela aprisionado, a
terra treme; com razão, a lava vomitada dizima com dente feroz o trabalho penoso de sua
diligência. Reprimida no interior, a força, pronta a desenvolver-se no animal, transmuda-se em
fúria chamejante ou veneno e volta-se, com razão, antes de tudo, contra o homem.”
“Recorde-se, porém”, disse o médico, interrompendo-a, “das muitas forças serenas e
benéficas da natureza. Ela ainda não esqueceu que deveria continuar a ser elevada e libertada
através do homem, que mesmo agora ainda se encontra nele o talismã, através do qual ela
deverá de ser salva. Eis porque ela vem, grata, ao encontro do homem quando ele deita
sementes na terra fazendo brando e rico o solo inculto e árido e o recompensa com efusiva
abundância. Seu sentimento essencial para com o homem parece-me ser de amizade e com
frequência de compaixão...”
“Não obstante”, ela o interrompeu, “ela passa tão insensível junto às cenas de dor e
desespero! Aqui jaz a pobre criatura, esgotada em febre alta e a suplicar pelo refrigério e
socorro que uma brisa refrescante poderia trazer-lhe; mas o sol impiedoso dardeja para baixo
os seus raios mais fortes, e o ar e a terra os condensam num ardor sufocante. Lá, um
desterrado abandona a casa e o lar, onde a mulher com filhos o lamenta cheia de desespero; o
céu manda-lhe tempestade e chuva, pedras e granizo atingem a cabeça nua do proscrito.”
“O infeliz”, disse o médico, interrompendo aqui outra vez, “achará a natureza mais de
acordo consigo justamente nesse caso do que se ela o lisonjeasse com uma atmosfera serena e
um Sol propício. Ele pode, entretanto, enganar-se como aquele que acredita que a natureza
sorriria ao seu dia de alegria; pois, no seu passo largo e voltado ao geral, ela talvez só
raramente possa tomar parte no destino e no humor do ser singular; mas talvez nunca se
tenham dado grandes mudanças, atingindo povos inteiros, sem movimentos simultâneos da
natureza geral. Todos os livros de História estão repletos disso, e quantos sinais no céu, no ar
e sobre a terra pressagiaram esses tempos fatídicos. Tudo nos fala e de bom grado gostaria de
se nos tornar compreensível. Muito é favorável ao homem e tem a vontade óbvia de anunciar-
lhe o seu futuro próximo – se ele o quisesse ouvir. A propósito disso, eu poderia referir
algumas talvez inacreditáveis observações.”
“Isso é por demais verdadeiro”, replicou ela, “tudo se lança para o homem de modo hostil
ou amigável, tudo procura só a ele e dele gostaria de apossar-se. Eis porque ele não resiste ao
feitiço do ouro, aos engodos do mundo, aos encantos da beleza terrena. Nada o deixa
indiferente, tudo mexe com ele...”
“Porque ele deveria mover tudo”, interrompeu aqui o médico, “porque não se torna
consciente da força no seu interior, por meio da qual ele poderia dominar tudo e de tudo ser
livre. Inércia e desânimo são os piores inimigos do homem e uma consequência daquela
primeira queda. Quem não possui a si mesmo, deste toma posse em breve algo outro. Quem
não quer prosseguir, retrocede. Em que consiste ainda agora o mal, a não ser em uma marcha
regressiva da natureza humana que, ao invés de querer elevar-se a sua própria essência, sempre
se apega e busca realizar o que deveria ser só a condição de sua atividade, a base calma e
inativa de sua vida? De onde vem a doença, a não ser da má vontade para com o
desenvolvimento, de que a força singular não queira prosseguir com o todo, perecer para o
todo, senão, obstinadamente, queira ser por si mesma? Eis porque a nada deveríamos
combater mais em nós do que a esse estado. O homem que se mexe não está perdido. Deus
ajuda o ativo e muito lhe desculpa. É inacreditável o quanto já se encontra no ser ativo em e
por si.” (12)
“Eu conheço aquela força do interior”, disse Clara, levantando para tomar o caminho de
volta, “e sei por experiência que ela nos pode elevar acima de todo exterior; mas sei também
em que contradição o interior melhor, frequentemente antes de dar-se por isso, vê-se enredado
com o mundo exterior.”
“Também isso”, disse o médico, “é a consequência necessária daquele primeiro retrocesso.
Esse mundo uma vez fixado enquanto um mundo exterior, todo o elevado e divino pode por
certo erguer-se dele, como a flor sobe da terra; mas resta nele algo estranho, de que é o mero
suporte, sem poder acolhê-lo em si mesmo. A lei vigente visa apenas à preservação dessa base;
todo o outro é para ela acidental e é preciso que o seja.”
“Assim é, pois, para ela”, disse Clara, “antes de tudo mais o homem. A mais sagrada
necessidade de meu interior não é lei alguma para a natureza. Nela mesmo o necessário divino
assume a cor e o brilho do acaso, e o que era inicialmente acidental, uma vez presente, opera
com a força irresistível de uma necessidade assustadora. Fosse ao menos possível manter nosso
interior livre dessa contradição! Mas justamente aqui ela mostra o seu maior poder. Ela nos
força a desconfiar dos sentimentos mais ternos de nosso próprio coração, nós somos seres que
não amam impunemente; e, ao contrário, a lei de nosso interior seria capaz de fomentar ações
que cada coração humano sensível precisaria abominar. Já nas coisas mais simples,
fundamentais e irrecusáveis, vejo matéria suficiente para tornar verdade a minha sensação de
que o terrível não só acontece e acontecerá, senão precisa acontecer.”
“Reconhecer precisamente isso”, disse o médico, “é nosso dever. De nada adianta desviar o
olhar, tapar os olhos para com isso apenas não ver esse estado. Humanamente, podemos
lamentar o declínio das coisas mais belas e mais amáveis no mundo; mas deveríamos, ao
mesmo tempo, considerar cada um desses casos com uma espécie de alegria silenciosa, pois
cada um contém uma confirmação da ideia que precisamos conceber deste mundo e a
referência mais imediata a um mundo outro mais alto. Como seria mais feliz a maioria,
quanto anseio frustrado cessaria, quão mais fácil seria suportar e abandonar a vida se todos
mantivessem continuamente presente para si que, aqui, todo divino é fenômeno apenas, não
realidade, que mesmo o mais espiritual não é livre, senão só vem à tona sob condições – que
ele é flor, aqui e lá também fruto, mas não tronco e raiz.”
“Isso é o que diz, porém, a maioria, ou dizem todos”, falou Clara em resposta.
“Eles decerto o dizem”, ele replicou, “mas pensam que poderia ser de outro modo e por isso
incriminam o homem, do qual, por esse motivo, gostariam também de cortar toda conexão
com a natureza. E com isso confundem-se então em seus sistemas e opiniões, tal como em suas
doutrinas morais. Começam pelo que há de mais geral e mais espiritual e, por isso, jamais
podem descer ao particular e à realidade. Envergonham-se de começar pela terra, subir nas
criaturas como em uma escada e extrair os pensamentos sobressensíveis primeiro à terra, ao
fogo e ao ar; também por isso, eles não chegam a nada, e as malhas de seus pensamentos são
plantas sem raiz que em nada se apoiam – ao contrário das teias de aranhas, que apoiam-se a
arbustos ou muros –, senão flutuam no ar e no azul, como esses tênues fios a nossa frente. E
eles pensam, contudo, poder fortalecer, com isso, os homens, sim, até mesmo ajudar a erguer
esta época, a qual sofre justamente porque, enquanto uma parte afunda de todo na lama, a
outra atreveu-se tão alto que não pode mais achar o chão abaixo de si. Se queremos ter já
neste mundo todo espiritual, o que nos resta então para um mundo futuro? E a mim parece
que os homens de tempos anteriores tinham conceitos totalmente outros e muito mais
determinados daquela outra vida, quando, ainda nesta, apoiavam-se à terra com ossos firmes e
medulosos. Só é capaz de encarar diretamente o espiritual aquele que antes conheceu
plenamente o seu contrário; tal como só pode ser dito livre aquele que conhece o necessário e
as condições sob as quais pode agir. Também para a liberdade o homem tem de primeiro
crescer, também ela ergue-se neste mundo a partir da escuridão da necessidade e só em sua
última aparição irrompe enquanto inexplicável, divina, como um raio da eternidade que rasga
a treva deste mundo; mas mesmo em seu efeito esse raio é de novo imediatamente engolido
pela treva.”
“Muitas vezes pensei para comigo”, disse Clara, “que a vista da liberdade – não daquela
assim dita, senão da verdadeira, autêntica – teria de ser insuportável para os seres humanos,
que a têm na boca o tempo todo e dela se vangloriam. Eles dão-se por satisfeitos em
determinar todas as suas ações segundo causas ou até princípios e pintam, então, para si
mesmos, essa servidão de seus corações enquanto liberdade. Pois eu não sei se me engano, mas
essa espécie de liberdade parece-me, de todas, ser no mínimo a mais subordinada. Uma amiga
costumava dizer: ‘O céu é liberdade’; mas se liberdade é o céu, eis que precisa ser também
ilimitada, total, liberdade divina.”
“Concordo plenamente com essa opinião”, respondeu o médico. “A maioria das pessoas tem
medo da liberdade, como tem medo da magia, de todo inexplicável e em particular do mundo
dos espíritos. A liberdade é a rigor a verdadeira manifestação dos espíritos; eis porque sua
aparição prostra o homem. O mundo curva-se a ela. Mas quão poucos sabem lidar com esse
delicado mistério; eis porque vemos descontrolar-se aqueles que chegam a fazer uso desse
direito dos deuses e, tomados pela loucura do arbítrio, buscar provar a liberdade naquelas
ações, às quais falta todo o cunho de necessidade interna, sendo por isso as mais casuais.
Necessidade é o interior da liberdade; não se deixa por isso indicar causa nenhuma da ação
verdadeiramente livre; ela é assim, porque assim é, ela é, pura e simplesmente, é
incondicionada e por isso necessária. Enquanto tal, porém, a liberdade não é deste mundo. Por
isso, aqueles que se ocupam do mundo só podem exercê-la raramente ou de maneira alguma.
Eles deveriam render-se à arte ao invés de se render ao mundo; pois, quando do domínio
decisivo do exterior, é preciso que o mais interior, e na verdade tanto mais quanto mais
interior o for, assuma a aparência do exterior, parecendo até mesmo servi-lo, de modo a ser
tolerado (13). Deus o queria assim, é o que parece, a fim de que tudo se tornasse primeiro tão
exterior quanto possível, e a vida interior abrisse caminho e chegasse ao fenômeno mediante a
luta mais acirrada e a mais poderosa resistência. Quanto mais nós reconhecermos a limitação
deste mundo, tanto mais sagrada será para nós cada manifestação de um mundo mais elevado
e melhor dentro dele. Nós não a exigiremos nunca apaixonadamente, mas lá onde essa
manifestação se encontrar por si mesma – onde acharmos um coração que tenha o céu em si,
uma alma que seja um templo silencioso de revelação celeste, uma ação ou uma obra, na qual
exterior e interior mostrem-se reconciliados como por benevolência divina –, a essa nós
abraçaremos com força amorosa, guardando-a como sagrada e venerando-a como sinal de um
mundo em que o exterior encontra-se subordinado ao interior, tal como aqui o interior
submete-se ao exterior.”
“Ó”, Clara exclamou voltando-se mais uma vez para o sol quase afundado no horizonte,
“deixe que nosso olhar se volte a essas regiões; pois para mim aquele reino elevado e sagrado
dos espíritos está agora mais próximo que a natureza, o mundo e a vida.”
Calados atravessamos o portão e a escoltamos pela rua curta na direção do outro portão, até
a frente de sua residência.
1
Um mundo inteiramente outro do que suspeitamos enterrado lá dentro. Odisseia do Espírito (observação escrita à margem do
Manuscrito de Schelling).
2. O Inverno
Na noite de Natal
Os dias tornavam-se agora rapidamente inóspitos, não permitindo mais longos passeios. Eu
observava nossa amiga e via muito bem que se ocupava sempre com aquele único tema.
Em falas isoladas, traía-se nela uma maravilhosa profundidade do sentimento, que podia
alcançar a intuição; o que, todavia, lhe faltava era a aptidão de, desembrulhando-as, tornar
para si mesma claras as próprias intuições. Conheço os efeitos benfazejos que tem sobre nós o
encadeamento ordenado dos próprios pensamentos; a alma sente-se bem quando consegue
entrever o que sentiu interiormente como mediante inspiração ou numa espécie de intuição
divina, agora também ordenado externamente, no entendimento, como em um espelho.
Ânimos profundos temem esse desenvolvimento, que lhes aparece como um sair de si mesmos;
querem sempre voltar ao próprio fundo e continuar gozando a felicidade do Centro.
Decidi contrapor-me, em primeiro lugar, a essa tendência em nossa amiga e aproveitar para
isso a primeira oportunidade, convicto de que, uma vez decididos a desembrulhar nossa
intuição, costumamos achar tudo ainda mais magnífico e prodigioso do que o julgávamos ter
visto nela.
Ela mesma, entretanto, antecipou-se a mim com o seu próprio anseio.
Aconteceu na noite de Natal, para a qual ela havia convidado minhas filhas, no intuito de
alegrá-las mediante a distribuição inesperada de presentes e, na medida do possível, substituir
nesse dia a mãe perdida.
A noite inteira havia no seu ser algo transfigurado e uma espécie de serenidade indescritível,
que nela há muito não tínhamos percebido. Passado o primeiro júbilo das pequenas, as
meninas mais velhas sentadas à parte – uma com as poesias há tanto desejadas, a outra com os
modelos de desenhos a ela presenteados –, Clara se recolheu para o fundo da sala e, após
instalar-nos ali, começou a falar:
“A vista dessas crianças bem-educadas evoca em vocês e em mim a imagem da mãe, que não
conheci, e dá-me a mais clara certeza de que ela é, de que vive, de que toma parte na nossa
alegria. Para mim, é como se esse dia nos trouxesse mais perto os falecidos; pois não é verdade
que esse dia uniu outrora uma outra vez a Terra ao céu?”
“Sem dúvida”, disse eu; “por isso os anjos precisaram festejar esse nascimento e anunciar a
glória de Deus nas alturas e a paz na Terra, porque, chegado de novo o que está em cima ao
que está embaixo, a cadeia de há muito rompida estava novamente fechada.”
“Em instantes como estes”, continuou ela, “a minha convicção não necessita de razões. Eu
vejo tudo como se estivesse presente; sinto-me como se a vida dos espíritos já envolvesse a
mim também, como se eu ainda vagasse na Terra, mas como um ser inteiramente outro,
sustentado por um elemento suave, brando, sem necessidade, sem dor – por que não podemos
deter esses instantes?”
“Talvez”, respondi, “esse grau de profundidade não seja compatível com a limitação da vida
atual, cujo destino parece ser o de que se conheça tudo separadamente e aos pedaços. E não é
verdade”, acrescentei, “que, você estando em tal estado, todo o seu ser parece-lhe como se
unificado em um ponto focal, tal uma luz, uma chama?”
“É bem assim que me sinto”, disse ela.
“E quando você sai desse estado, sente-se infeliz?”
“Ao menos nem de longe tão feliz”, ela disse.
“E você não pode impedir-se de sair desse estado?”, eu prossegui.
Ela disse que isso se daria contra sua vontade.
“É preciso, portanto”, disse eu, “haver uma necessidade na alternação desses estados, como
em outras alternações do gênero. Aquela intuição central, que nos inunda com um sentimento
do mais elevado bem-estar, não parece adequada à sobriedade da vida presente. Temos de
considerá-la como um privilégio extraordinário, mas sem por isso desdenhar o estado regular.”
“Mas com quê”, ela reagiu, “haveremos de preencher o vazio que nós sentimos neste estado
em comparação com aquele?”
“Mediante afazeres”, eu respondi, “ou, no fundo, assegurando-nos também para este estado,
dos bens daquele mais elevado.”
“E como isso seria possível?”, ela perguntou.
“Não é impossível”, disse eu, “que, precisamente isso que intuímos como que imediatamente
de um modo unitário, nós o coloquemos de novo à nossa frente, também parcialmente e assim
de um conhecimento que é fragmento em cada parte isolada, nós geremos por fim um todo
semelhante àquele sobretudo sentido, e ao qual mesmo então podemos gozar quando privados
daquela ventura da intuição. E justamente esse desdobramento do conhecimento, o qual é sua
elevação à ciência, parece-me ser a verdadeira determinação espiritual do homem para esta
vida.”
“Diante da ciência”, ela disse então, “eu senti sempre a reverência que alguém tem por algo
a ele mesmo recusado e do qual vê, no entanto, os efeitos magníficos. Pois o senhor mesmo
sabe com quanta confiança eu sempre o procurei como a um homem de ciência, junto ao qual,
eu estava firmemente convicta, nunca me poderia faltar conselho espiritual. Uma determinada
segurança, confiabilidade e constância parecem-me só poder existir com a ciência. Mas haverei
de respeitá-la duplamente se tem a força mágica de fixar a felicidade do estado
contemplativo.”
“Que ela o possa”, eu repliquei, “é justamente o que eu não digo. A sensação que a ciência
proporciona é uma outra, mais calma, mais equilibrada, mais constante; o que eu disse, no
entanto, foi que aquele conhecimento, o qual é só mostrado à alma de passagem na intuição
espiritual, se bem que com a máxima clareza e realidade indescritível, a ciência o conservaria
por assim dizer como uma lembrança fiel e o faria só então nosso no verdadeiro sentido.”
“E de que modo”, ela voltou a perguntar, “se há de efetuar essa conservação?”
“Mediante conceitos distintos”, eu respondi, “nos quais o conhecido de modo indivisível vê-
se decomposto ou separado, e da separação levado de novo à unidade.”
“Logo, uma separação precisa mesmo acontecer aí?”, disse ela.
“Certamente”, eu respondi; “e veja você mesma o quanto esta nos é necessária para
assegurar-nos também do imediatamente conhecido como de um bem permanente. Pois seria
decerto insensato querer ainda submeter a certeza imediata da continuidade da vida após a
morte, que você assegura ter em si, ao recurso de provas, que geram sempre uma compreensão
meramente mediata. Mas você mesma não disse uma vez que exigiria a imortalidade do
homem inteiro?”
“Foi o que eu disse”, ela respondeu.
“O quanto é necessário, portanto, diferenciar em partes o que pertence ao homem inteiro e
colocá-lo, por assim dizer, a nossa frente, a fim de sabermos o que pensar da sentença: o
homem inteiro. Você gostaria que explicitássemos isso uma vez?”
Ela aquiesceu.
“Pois bem”, disse eu, “para o homem inteiro você conta decerto também o corpo?”
“Certamente”, ela falou.
“Mas além do corpo, também o espírito?”
“Com certeza”, respondeu ela.
“E você supõe que este seria igual ao corpo, ou que seria diferente dele e até oposto?”
“O último”, respondeu ela.
“Mas como você supõe que esses dois opostos possam, contudo, ser unificados em um todo
singular?”
“Isso só me parece possível por meio de um laço verdadeiramente divino”, ela respondeu.
“Não deveríamos buscar agora também a expressão para esse laço? Ele tem de existir em
nós, já que temos junto o homem inteiro?”
“Sem dúvida”, disse ela.
“Logo, ser-nos também conhecido?”
“Naturalmente.”
“E, enquanto o que liga, participar igualmente na natureza dos dois ligados?”
“Assim o parece.”
“Logo, ser um intermediário entre espírito e corpo?”
“Com certeza.”
“E não tão rudemente oposto ao corpo como o espírito, senão como que uma essência mais
amena, que com sua parte superior toca, por assim dizer, o espírito, mas com a inferior desce
até o corpo e passa à matéria?”
Também isso pareceu a ela esclarecedor.
“Bem, e a essa essência de natureza intermediária e amena presente em nós, como a
designaremos?”
Ela achou não poder adivinhá-lo.
“Estranho”, disse eu, “já que tão próxima a nós! Não é verdade”, eu continuei então, “que a
algumas pessoas nós atribuímos espírito em sentido máximo?”
“Por certo.”
“E a quais?”
“Àquelas”, ela opinou, “que se ocuparam essencialmente com assuntos espirituais,
comprovando nisso uma grande força.”
“No entanto”, eu continuei, “o espírito é jamais em e por si aquilo pelo qual nós sentimos
amor, que ganha a confiança de nosso coração?”
“A mim parece que não”, disse ela, “visto que o espírito por si tem muito frequentemente
algo antes repulsivo em si, algo que embora reconhecendo com respeito, dele não nos
acercamos confiantes.”
“Não é precisamente o humano no homem”, eu prossegui, “aquilo que nos toca mais o
coração?”
“Certamente”, disse ela.
“Logo, o espírito não seria o propriamente humano no homem?”
“Não me parece”, ela disse.
“O que seria isso, então?”
“Eu confesso”, disse ela, “não ver onde o senhor quer chegar com suas perguntas.”
“Lembre-se, porém, de termos dito que algumas pessoas teriam espírito em alto grau, tal
como, pelo contrário, de outras poderíamos dizer que seriam corpóreas em alto grau. Ora, não
há uma terceira classe?”
“Sim, claro”, falou ela, “agora eu compreendo. De outras pessoas dizemos que teriam
alma.”
“E estas são na verdade as que mais amamos, que nos atraem a si como que magicamente,
de modo que, em relação a pessoas às quais nesse sentido atribuímos alma, ganhamos uma
confiança muito peculiar e imediata.”
Assim o seria, ela asseverou.
“A alma, portanto, seria também no homem o propriamente humano?”
“Com certeza”, ela disse.
“E por isso decerto também aquela essência branda, intermediária entre corpo e espírito?”
Ela reconheceu também isso.
“E o homem inteiro seria pois, na verdade, um todo feito dos três: corpo e espírito e alma?”
“Assim é”, ela falou.
“No entanto”, eu prossegui, “como imaginarmos então a ligação desses três em um só
todo?”
“Isso”, ela falou, “há de ser sem dúvida difícil de responder”.
“Vejamos”, eu disse. “Isso que une autonomamente dois opostos deveria ser, por certo, de
uma espécie mais elevada que esses dois?”
“Assim o parece.”
“A alma, portanto, ser de um gênero superior a espírito e corpo?”
Ela confirmou também isso.
“Contudo”, disse eu, “ela parece, por sua vez, colocar-se mais abaixo em relação ao espírito,
porquanto está de certo modo mais próxima ao corpo do que ele.”
Isso pareceu também a ela.
“Poderíamos dizer”, perguntei adiante, “que um dos três, sozinho e com exclusividade, seria
aquele que liga os outros, e não se torna acaso cada um a seu turno o meio de ligação para o
outro? O espírito passa ao corpo através da alma, mas o corpo é também por sua vez elevado
ao espírito através da alma; a alma está ligada ao espírito só na medida em que aí se encontra
simultaneamente um corpo, e com o corpo só na medida em que se encontra simultaneamente
o espírito; pois, se faltasse um dos dois, seria impossível a ela estar presente enquanto unidade,
isto é, enquanto alma. O todo do homem representa assim uma espécie de circulação viva, em
que um sempre se agarra ao outro, nenhum pode desistir do outro, um exige o outro.”
“Uma ideia prodigiosa”, ela disse a seguir, “com a qual não obstante eu preciso concordar.”
“Todavia”, disse eu, “entre esses três, a alma tem uma vantagem.”
“E qual?”, perguntou Clara.
“Se o corpo”, eu respondi, “fosse posto de modo inteiramente puro e por si, estaria por isso
necessariamente posto também junto o espírito?”
“Parece que não”, disse ela, “uma vez que são ambos opostos.”
“E se posto o espírito, então necessariamente também o corpo?”
“Tampouco”, disse ela.
“Mas se a alma fosse posta, estariam necessariamente postos então também corpo e
espírito?”
“Assim é”, disse ela.
“Logo, a alma seria o mais nobre entre os três1, porque somente ela encerra em si os dois
outros; destes, porém, nenhum, por si mesmo, encerra em si nem seu oposto nem a ela?”
Ela concedeu também isso.
“Se nós, portanto, falássemos acerca de uma continuação da existência do homem inteiro”,
disse eu, “eis que não nos satisfaríamos com uma continuação apenas do corpo?”
“Certamente não”, respondeu ela.
“Nem com uma continuação do mero espírito?”
“Também não.”
“Mas se alguém pudesse dar-nos a certeza inabalável da continuação da existência da alma,
nós assim ficaríamos tranquilos?”
“Parece, ao menos, que o poderíamos”, ela respondeu.
“Eu por minha parte”, disse eu a seguir, “o ficaria com toda certeza e lhe responderia mais
ou menos assim: ‘Se, nos meus 20 anos, uma vidente me tivesse dito que eu haveria de viver
mais 30 anos, eu não teria entendido isso como se meu corpo de então devesse permanecer o
mesmo por mais 30 anos, por saber que já ao cabo dos 20 anos de sua existência ele se havia
tornado materialmente outro, inteiramente diferente do que fora ao início; eu tampouco teria
acreditado que meu espírito permaneceria o mesmo, o qual já ao cabo do curto tempo que eu
tinha vivido havia ganho convicções inteiramente outras e mesmo muito diversas das
anteriores; pelo contrário, eu teria pensado que, no que tange ao corpo e espírito, sucederiam
ainda até múltiplas alterações. Isso, porém, que desde o início tenho sido eu próprio; isso que
fez com que eu aparecesse, até agora, sempre como o mesmo para mim e outros, o que eles
amaram ou odiaram em mim sob todas as modificações haveria de permanecer sempre o
mesmo sob todas as alterações de 30 anos. Tu me dizes, porém, que minha alma haveria de
viver eternamente; e eu não entendo isso como se não pudessem dar-se as maiores alterações
tanto com meu corpo quanto com meu espírito, senão que justamente aquele Centro, meu
verdadeiro Selbst, que seria nem corpo nem espírito, senão a consciência unificadora de
ambos, logo, o que era alma haveria de viver eternamente’. E já não é ter ganho muito”,
continuei a falar dirigindo-me a ela, “que tenhamos identificado o que seria ao fundo isso, do
qual é dito que continuaria a existir, quando se diz que haveria uma continuação após a morte,
a saber, que isso (o gérmen propriamente mais íntimo da vida) nada mais é do que a alma?”
“Indiscutivelmente”, ela respondeu.
“E não vemos que nada mal fizeram os filósofos quanto a isso, preferindo falar sempre
acerca da imortalidade da alma como se com isso tudo estivesse ganho, ainda que eles talvez
não soubessem muito bem por que falavam assim.”
“Contudo” ela respondeu, “eu tenho ainda algumas dúvidas”.
“Bem”, disse eu, “cabe agora a você perguntar, que já o venho fazendo há quase demasiado
tempo.”
“O que me causa dúvidas”, ela iniciou, “é inicialmente isso. Se salvamos a alma do declínio,
eis que parece, decerto, como se corpo e espírito devessem por si mesmos acompanhá-la,
porque a alma, segundo o supusemos, é a unidade de ambos. Temo, porém, que alguém
pudesse inverter isso e dizer: ‘se espírito e corpo são separados na morte – e isso seria,
necessariamente, de supor –, eis que será desfeito, após, por si mesmo, o laço entre ambos,
quando os anteriormente ligados, ou não sobrevivem mais de modo algum, ou sobrevive
apenas um deles, ou mesmo ambos, mas totalmente separados’. Ainda mais difícil, porém,
parece-me o seguinte: a saber, que nós disséssemos que o verdadeiro sobrevivente seria a alma,
embora todos, inclusive nós mesmos, segundo acordo geral, chamemos ‘mundo dos espíritos’ o
mundo, para dentro do qual acontece a passagem deste mundo após a morte, logo,
consideremos os falecidos, sobretudo, enquanto espíritos.”
“Deveras”, disse eu em resposta, “notável como você sentiu tudo isso! Possa eu, igualmente,
desfazer toda obscuridade inerente à coisa! E é bem verdade que falamos de modo confuso
acerca da alma enquanto o laço entre espírito e corpo, em especial porque uma vez supusemos
que pudesse haver, em um tempo qualquer, um corpo por si e um espírito por si. Pois, fosse
isso possível, a separabilidade de seu laço seria irrefutável. Mas não reconhecemos logo de
saída, ao nomearmos aqueles três, que cada um dos mesmos precisaria do outro, nenhum
poderia prescindir do outro, e que, portanto, estando uma vez juntos, eles estariam encadeados
um ao outro por um laço inteiramente indissolúvel?”
“Certamente”, ela respondeu.
“E não imaginamos”, perguntei ainda, “a sua relação recíproca como uma circulação viva,
na qual um sempre se agarra ao outro, de modo que, ou todos têm de deixar de ser ao mesmo
tempo, ou, se um deles sobrevive, todos necessariamente sobrevivem?”
“Assim foi, sem dúvida”, ela disse.
“Mas eles não estão, agora, ao menos para a presente circulação da vida, encadeados uns aos
outros?”
“Com certeza”, disse ela.
“E não de maneira casual, senão essencialmente, posto que nenhum pode ser retirado sem
que sejam retirados todos?”
Ela aquiesceu.
“E agora, a partir desse encadeamento”, eu perguntei adiante, “eu não poderia apresentar,
para a sobrevivência, uma prova inteiramente outra daquela que os filósofos costumam dar,
extraída da simplicidade da alma? A saber, se se tratasse para nós aqui de uma prova.”
“Assim pareceria”, disse ela, “se por demais obviamente a morte não retirasse um membro
da circulação; com o que, se tudo só pode subsistir junto, tudo precisa também sucumbir
junto.”
“A isso, justamente, eu queria chegar, querida”, disse eu. “Pois, veja bem se isso que você
admite aqui será mesmo assim tão certo, tão irrefutável, quanto aparenta ser à maioria, que
por isso considera a morte enquanto uma total ruptura e separação do espírito e da alma em
relação ao corpo, e do corpo em relação àqueles. Pois, posto que se desse mesmo assim ao
final, eis que, enquanto filosofantes, nós não o deveríamos admitir tão imediatamente e
segundo a aparência. E assim deveríamos, pois, perguntar antes de tudo o que seria a morte e
que mudança se haveria de efetuar por meio dela na circulação da vida presente. Nessa direção
aponta também o que você disse ainda há pouco, como segundo ponto, a saber, que, como a
alma seria o propriamente dito sobrevivente, pareceria estranho que todos falassem da outra
vida enquanto uma vida dos espíritos. Ou não foi assim?”
“Foi assim mesmo”, disse ela.
“E isso parece sem dúvida estranho não só devido à razão apontada, senão em geral pelo
modo como fomos levados, quase como se por acordo ou por um sentimento natural, a
imaginar o estado que segue o atual enquanto um estado espiritual. Pois, se eles quisessem
admitir uma continuação da existência, nada lhes custaria deixar a alma escapada passar
imediatamente de novo a um outro corpo, nem mesmo necessariamente a um corpo animal,
como fazem aqueles que ensinam a transmigração das almas, ou ao corpo de um novo ser
humano, senão a um corpo a ela adequado e sem a perda da personalidade. Qual poderia ser,
portanto, a causa desse modo quase universal de ver a morte? Pois, poderíamos sem dúvida
tomar essa opinião como dando um conceito afirmativo da morte, ao invés do meramente
negativo, segundo o qual ela deveria consistir numa separação da alma em relação ao corpo.”
“Já isso parece-me uma grande conquista”, disse ela, “a saber, que a morte seja apresentada
como uma passagem positiva a um estado espiritual e não apenas enquanto o cessar de um
estado presente. Eu, contudo, não sei qual poderia ser a causa da generalidade daquele
conceito, se não quisermos buscá-la nos ensinamentos de nossa religião; ter-se-ia então de
dizer que seria natural ao homem pensar cada estado para o qual acontece uma passagem
mediante o abandono do anterior, como o oposto deste.”
“E a mim”, disse eu a seguir, “parece plenamente justificado esse esclarecimento. Por
conseguinte, eles supunham também que o estado atual do homem seria o estado corpóreo?”
“Com certeza.”
“E nesse estado corpóreo estaria, contudo, presente o homem inteiro, não meramente o
corpo, senão também o espírito e a alma?”
“Naturalmente.”
“E mesmo nessa corporeidade, a essência do ser humano ou o propriamente humano no
homem seria a alma?”
“Também isso foi tomado assim”, disse ela.
“Mas, a partir desse estado, o homem passaria ao estado contrário e, portanto, a um estado
espiritual?”
“Sem dúvida.”
“E mesmo nesse estado espiritual, o homem seria ainda o homem inteiro?”
“Eu não sei”, disse ela, “se eles o entenderam assim.”
“Mas, sim”, eu respondi, “eles tinham de entendê-lo assim”. “Pois se a morte, segundo sua
ideia, nada mais era do que a passagem do estado corpóreo para um espiritual, e se naquele,
independentemente da corporeidade, estava presente o homem inteiro, logo, corpo, espírito e
alma, não havia motivo algum para que nessa passagem se devesse perder algo do homem
inteiro. Ou o que é mais espantoso: que mesmo no estado de espiritualidade ele se mantenha
unido, enquanto corpo, alma e espírito, logo, como homem inteiro, ou que no estado corpóreo
ele não seja apenas corpo, senão simultaneamente espírito, logo, também alma?”
“Em si, sem dúvida”, disse ela, “aquele não é mais espantoso do que este.”
“Você se lembra decerto”, eu prossegui, “do que nosso amigo ainda outro dia tornou muito
plausível, ao menos para mim, a saber, que na vida presente a alma estaria enfeitiçada pela
matéria?”
“Lembro-me muito bem”, ela respondeu.
“Bem”, eu continuei, “se isso acontece à alma já na vida presente, que, a despeito de ser o
essencial do homem, ela esteja todavia inteiramente aprisionada pelo corpo, o quanto mais lhe
poderá acontecer de ser enfeitiçada e aprisionada pelo espírito?”
“Isso é sem dúvida bastante evidente”, disse ela; “só que com isso a própria transposição do
corpóreo para o espiritual ainda não se tornou compreensível”.
“Talvez”, disse eu em resposta, “ela deva mesmo permanecer um mistério para nós, até a
termos experimentado nós mesmos. Incompreensível, contudo, eu não posso dizê-la, uma vez
que tais transposições sucedem continuamente mesmo no círculo estreito do presente.”
“E quais seriam elas?”, perguntou ela.
“Bem”, disse eu, “logo na passagem do estar acordado ao sono e vice-versa; porque a
circulação da vida, ela mesma, não é suspensa no sono, senão transposta apenas de um meio
para o outro. Ou como podemos concluir a partir de muitos vestígios, não é o espírito que
está, no sono, ocupado em pensar, inventar e outras atividades que lhe são de preferência
atribuídas, mesmo que a seguir não lembremos? Assim também a alma que, mesmo no sono,
não perde a capacidade de querer, de amar ou de execrar.”
“Aqui, meu amigo”, disse ela, “o senhor parece-me estar a esclarecer o obscuro através de
algo, se não tão obscuro ao menos quase.”
“Sim, você tem razão”, eu respondi, “mas para mim trata-se mesmo de uma só coisa: de
mostrar como aquela circulação, que é posta por corpo, espírito e alma, poderia, sem extinção,
ser transposta de um mundo para o outro.”
“Sua ideia deve ser, portanto, também esta”, ela a seguir prosseguiu, “de que na morte a
alma seria elevada a alma espiritual?”
“Com certeza”, disse eu.
“E que na vida presente ela teria sido apenas alma corpórea?”
“Sem dúvida.”
“Mas como o senhor pode afirmar isso”, ela disse, “visto que a alma já agora relaciona-se a
coisas sobreterrestres e celestes?”
“Ah”, eu respondi, “tudo decerto está contido em tudo! O nível mais baixo contém profecias
dos mais elevados, e eis porque permanece sendo o mais baixo. Mesmo o animal quer ir para
além de si mesmo; é com entendimento similar ao humano que o castor constrói para si o seu
palácio na água; outros animais vivem em condições semelhantes às humanas e em relações
domésticas. Assim, muito existe já agora que arrasta o homem àquele mundo mais elevado; há
mesmo alguns que, conscientes e de livre vontade, morrem já agora para o que têm de
abandonar na morte, buscando viver tanto quanto possível uma vida espiritual. Vige, porém,
aqui, a determinação do nível geral desta vida, e este não pode ser tomado àqueles que se
distinguem justamente por abandonar esse nível.”
“Mas o corpo?”, ela disse então. “Se a alma torna-se espiritual naquela outra vida, também
assim o corpo, por certo?”
“Sem dúvida”, eu disse; “no entanto, esta não me parece ser a expressão mais correta e só
agora percebo que, mesmo no que diz respeito à alma, nós nos deveríamos ter expressado de
outro modo.”
“E como, então?”, ela perguntou.
“Não deveríamos ter dito que a alma se tornaria espiritual após a morte, como se ela não o
tivesse sido já antes; senão que o espiritual, que já está nela e que aparece aqui mais amarrado,
seria liberto e predominaria sobre a outra parte, mediante a qual ela se encontra mais próxima
ao corpóreo, e a qual é a dominante nesta vida. Assim, não deveríamos dizer então que o
corpo se tornaria espiritual naquela vida mais elevada, como se ele não o tivesse sido desde o
início; senão que o lado espiritual do corpo, o qual era aqui o ocultado e o subordinado,
tornar-se-ia lá o manifesto e dominante.”
“Assim sendo”, ela disse, “não apenas a alma teria dois lados, senão talvez também o
espírito, mas com toda certeza o corpo?”
“Indiscutivelmente”, eu repliquei. “Pois você lembra ainda agora por certo aquele discurso
de nosso amigo, quanto a que a Terra e assim também o corpo, que foi dela tomado, não
estariam destinados a ser meramente exteriores, senão que exterior e interior deveriam ser um
só em ambos; que o aparecer meramente exterior do todo era a consequência de um
desenvolvimento detido, o qual, não podendo aniquilar a essência interior, tinha podido, no
entanto, envolvê-la, amarrá-la e submetê-la, assim, ao exterior. Não é então natural que,
quando se desagrega aquela forma do corpo, na qual o interior havia sido encadeado pelo
exterior, a outra torne-se em contrapartida livre e nela o exterior seja desamarrado do interior
e como que por ele dominado?”
“Seria assim necessário também”, ela disse, “que essa forma espiritual do corpo já tivesse
existido e estado presente na forma meramente exterior?”
“Certamente”, eu respondi, “mas como gérmen, que embora com frequência buscando fazer-
se sentir, contido pela violência da vida exterior, pode apenas em parte e só em circunstâncias
especiais mostrar sua presença.”
“Lembro-me”, disse Clara, “de ter ouvido antes muitas vezes falar de um corpo sutil, que
estaria contido no mais grosseiro e dele se separaria na morte; só que não sei por que essa
ideia dava-me sempre tão pouca satisfação.” (1)
“Este”, disse eu, “é o caso de todas as opiniões encontradas por mero acaso. O que não
chega a nós em um contexto necessário não consegue jamais infiltrar-se direito na alma.”
“Mas também o sentido dessa opinião era decerto inteiramente outro”, ela disse.
“Sem dúvida, pois aquela essência intermediária foi pensada apenas como uma essência
corpórea mais sutil, não porém como forma realmente espiritual.”
“Mas esse gérmen celeste da vida”, ela prosseguiu, “deveria estar só em nós, ou apenas em
todos os seres orgânicos, não porém nos inorgânicos – ou como se comporta isso?”
“Eu não vejo por que”, eu respondi, “o gérmen de uma vida mais elevada não deveria estar
sem limitação em cada coisa, só mais aberto em uma, mais ocultado na outra. Porque a
natureza inteira estava destinada a representar o exterior e o interior em completa harmonia e,
como diz a Escritura Sagrada, toda criatura anseia conosco e tal como nós pela vida mais
elevada, a qual só em nós está já aqui mais desenvolvida.”
“Não se deveria então”, ela disse, “poder realmente descrever a presença daquele gérmen em
todas as coisas?”
“Não sei”, eu disse após, “se deveríamos dar aos fenômenos agora conhecidos da vida dos
corpos, às alternâncias elétricas de forças ou às transmutações químicas uma designação tão
elevada, e não considero impossível que se nos abrisse uma série inteiramente nova de
fenômenos, se conseguíssemos não mais apenas modificar seu exterior, senão agir diretamente
sobre aquele gérmen interior da vida. Pois eu não sei se é engano ou a qualidade peculiar de
meu modo de ver, mas todas as coisas, mesmo as mais corpóreas, parecem-me como se
estivessem prontas a ainda dar de si sinais de vida inteiramente outros que os agora
conhecidos.”
“Mas então morreriam também todas as coisas?”, ela perguntou ainda.
“Assim o parece”, eu disse, “mas eu lhe peço que o esclareça você mesma adiante.”
“Não é a morte”, disse ela, “a libertação da forma interior da vida em relação à exterior,
que a mantém reprimida?”
“Excelente”, disse eu.
“E a morte não é necessária, porque, visto que após a lenta queda da natureza na mera
exterioridade aquelas duas formas de vida não puderam ser simultâneas, elas precisaram ser
uma depois da outra?”
“Inteiramente correto”, disse eu, “e você o expressou de modo esplêndido.”
“Mas as duas formas da vida estão em cada coisa?”
“Foi o que nós supusemos”, eu respondi.
“Bem”, ela disse, “assim todas as coisas, sem distinção, precisam morrer.”
“Essa necessidade”, eu disse, “parece também a mim inegável.”
“Mas nós não vemos também”, ela prosseguiu, “realmente uma tal morte, sobretudo em
algumas alterações químicas?”
“Não sei”, eu disse.
“Eu nunca esquecerei”, ela continuou, “como, vendo pela primeira vez a desagregação dos
metais em água ácida, eu não queria acreditar que só líquidos transparentes e incolores, como
água de poço, contêm prata diluída, que uma água azul celeste contém cobre e assim por
diante, até ser finalmente convencida por meus próprios olhos.”
“Isso é mesmo bastante estranho”, disse eu, “e dá muito a pensar sobre a essência da
corporeidade.”
“Não são chamados, com razão, espíritos”, ela continuou, “aqueles líquidos diluentes, e esse
desaparecer dos corpos mais densos e duros não é uma real dissolução do corpóreo no
espiritual, a dizer, portanto, uma morte?”
“Há algo de semelhante aqui, por certo”, eu respondi, “e vemos de que elevação são capazes
as coisas mais corpóreas, quando um espírito mais elevado como que delas se apodera; mas
você convenceu-se também da possível reconstituição de todas essas coisas em seu estado
corpóreo inicial?
“Sem dúvida”, ela respondeu.
“Bem”, eu disse, “não sei se o que acontece aqui é uma transformação diferente da que afeta
uma parte de nosso corpo, a qual vê-se acidentalmente queimada e se restabelece
gradativamente por meios externos.”
“Contudo”, ela prosseguiu, “não mostram todas as coisas corpóreas o impulso de se
espiritualizarem? O que é o perfume de uma flor, e quão espirituais têm de ser as emanações
de corpos cheirosos, que sobrevivem por anos sem se consumir? Não quer tornar-se ar tudo o
que existe, para ligar-se àquele puro elemento sagrado, que eu gostaria antes de ter por uma
essência autônoma indivisível cuja força transmuda todo absorvido por mais diverso que possa
ser e o torna em pouco tempo semelhante a si?”
“Isso tudo”, disse eu, “comporta-se assim mesmo e prova que todas as coisas aspiram por
uma existência mais livre e solta, suportando indignadas as cadeias em que estão aprisionadas.
Contudo, quem gostaria de nomear ‘um morrer’ a mera metamorfose em ar? A mim, a morte
parece ser algo muito mais sério!”
“Por conseguinte”, ela disse, “nós não vemos exemplo algum de morte nos demais seres
além dos orgânicos?”
“Eu não sei”, respondi, “mas isso parece-me ser assim. Nós, seres orgânicos, podemos todos
morrer, por sermos um todo próprio. As demais coisas são, no entanto, apenas membros de
um todo mais alto, da Terra, e podem ser decerto misturadas e modificadas de vários modos
no interior do mesmo, dependendo do que o desenvolvimento da vida do planeta permita; mas
o benefício da morte ou da plena libertação da forma espiritual da vida não lhes acontece antes
que o planeta alcance o seu fim estabelecido e morra.”
O médico entrou na sala naquele instante e interrompeu por um momento a conversação. Eu
lhe expliquei acerca do que acabávamos de falar e, tendo ouvido o essencial e refletido algum
tempo a respeito, ele disse: “Portanto, na morte acontecia mesmo uma separação?”
“Em que medida?” Eu questionei.
“Bem, pelo visto, aquela do corpo.”
“Certamente”, eu disse, “mas não da essência interior do corpo, senão do corpo na medida
em que ele é algo superficial e uma parte da mera natureza exterior.”
“Durante a vida atual, porém”, ele perguntou, “aquela essência espiritual do corpo estava já
presente no meramente exterior?”
“Como gérmen, ao menos”, eu respondi.
“Parece, contudo, resultar disso”, ele continuou, “que a vida presente teria uma perfeição a
mais em relação à futura.”
“Como assim?”, eu perguntei.
“Isso me parece inteiramente claro”, ele respondeu. “Porque à vida atual acrescenta-se
ainda, além daquela essência espiritual do corpo, também o corpo exterior, o qual falta à
futura: daí que ela tenha obviamente algo a mais do que esta.”
“O que eu poderia responder a isso”, eu disse, “parece-me tão claro que nem me agradaria
dizê-lo.”
“Diga-o, porém”, ele respondeu, “pois algo de obscuro ainda se encontra aqui, em um ponto
qualquer.”
“Bem, o que penso é que você não chamaria rico aquele que, embora possuindo uma enorme
quantidade de coisas, fossem todas de pouco valor; nem, pelo contrário, pobre aquele que,
embora possuindo apenas poucas coisas ou uma só, esta única fosse de valor incalculável, tal
como uma pedra preciosa que superasse em muito todas as outras.”
“Certamente não”, disse ele, “só que eu não acredito que você tome o corpo exterior por
uma imperfeição ou por uma coisa de pouco valor.”
“Basta que nos entendamos”, eu respondi, “e isso se esclarecerá. Pois uma diferença de valor
entre o interior e o exterior nós dois decerto admitimos; a saber, o exterior parece-me ser o
mero ser do interior (das blosse Sein des Inneren); o interior, porém, ser o existente nesse
exterior (das Seiende in diesem Äusseren). Ou não é assim?”
“Estou plenamente satisfeito com isso”, ele disse.
“E o existente”, continuei, “conhece o ser; não porém ao inverso, o existente é conhecido
pelo ser?”
“Eu admito também isso”, ele disse.
“Mas todo conhecer não é um pôr?”
“Com certeza”, ele disse.
“E o ser é então também um pôr?”
Ele pareceu hesitar acerca disso.
“Bem”, eu disse, “ao menos um pôr de si mesmo.”
“Até aí, certamente”, ele disse.
“Mas um pôr que, por sua vez, não se reconhece, pois nós dissemos que ele seria conhecido
só pelo existente.”
Ele admitiu isso.
“Esse, portanto”, eu prossegui, “o existente, é por sua vez o que põe naquele pôr?”
“É o que se segue, indiscutivelmente...”
“É algo, pois, mais elevado ou mais determinado e – como ao menos a mim o parece – seria
plenamente cabível nomeá-lo a mais elevada potência daquele pôr?”
Ele o admitiu.
“Por conseguinte”, eu continuei, “uma diferença entre potência superior e inferior seria
aquela entre interior e exterior. Mas não por isso eu tomaria o exterior em si nem por uma
imperfeição nem por uma coisa de menor valor. Porque o existente necessita do ser, como o
ser do existente. Sim, eu consideraria possível que mesmo essa diferença pudesse desaparecer
por completo.”
“E como?”, perguntou Clara, que tinha escutado atentamente essas falas.
“Se”, disse eu, “o exterior estivesse tão completamente penetrado do interior, a ponto de ter
em si mesmo tanto o cognitivo quanto o conhecido, e se por outro lado o interior tivesse posto
em si o exterior, de tal modo que o cognitivo contivesse em si também o conhecido e que esses
dois, um tal exterior mais um tal interior, fossem simultâneos, eis que isso seria decerto de
chamar a vida mais sagrada e perfeita, não mais havendo diferença alguma entre exterior e
interior, porque em ambos estaria contido o mesmo.”
Os dois concordaram com isso.
“Pois bem”, eu disse, “em nós, tal como somos agora, e em parte também nos outros seres
vivos, embora de forma muito mais imperfeita, o exterior parece estar tão amplamente
formado a ponto de conter em si também o cognitivo, ganhando com isso uma certa
autonomia. Pois mesmo os animais, aos quais não podemos atribuir nenhum verdadeiro
interior, e pessoas, às quais precisamos considerar quase do mesmo modo, conhecem, porém
ininterruptamente, por uma sorte de necessidade externa, como prova de que neles o próprio
exterior contém o cognitivo.”
Ambos consentiram.
“Mas quanto ao outro”, eu prossegui, “a saber, que o interior contenha posto em si do
mesmo modo o exterior, falta ainda muito para que isso se cumpra?”
“Certamente”, disse Clara.
“Porque, se fosse assim”, disse eu, “o exterior não contradiria de modo tão geral o interior;
para chegar ao conhecimento das coisas não lhe seriam necessárias a experiência e a penosa
investigação, o ato interior possível seria imediatamente também exterior e, em uma palavra, a
vida seria plenamente bem-aventurada, sim, semelhante à divina. Do mesmo modo, se o
exterior estivesse tão originariamente posto no interior como o interior no exterior não haveria
necessidade nem da educação nem do ensino. Pois aquele interior perfeito haveria de faltar
inteiramente àqueles que não tivessem gozado nenhuma educação humana e desde cedo caído
entre os animais, como mostraram alguns exemplos?”
Ele reforçou isso.
“E não depende muito também, por sua vez, da forma de trato em que o homem vive desde a
infância?”
Isso também foi confirmado.
“Esse interior não é, portanto, nada que aí esteja à mão, mas é criado e cultivado, como uma
flor em terra a ela estranha?”
“Sem dúvida”, foi a resposta.
“Mesmo todo aspirar por conhecimento é, porém, algo outro que um esforço de pormos em
nós tanto quanto possível o exterior enquanto interior?”
“Nada outro”, eles disseram.
“E esse esforço seria necessário se aquele interior perfeito já existisse em nós?”
“Impossível”, disse Clara.
O médico interveio aqui, porém, e disse: “Nós aqui parecemos estar exatamente no ponto
certo. Pois aquele aspirar por conhecimento e o multifacetado outro, no qual nós buscamos
tornar tanto quanto possível interior todo exterior, não é um esforço inteiramente livre?”
“Certamente”, eu respondi.
“E para a força livre em nós não é possível já aqui subordinar também o corpo ao interior, a
ponto de vivermos uma vida pura e sem mácula?”
Eu confirmei também isso.
“Nós podemos, portanto, já aqui, em certo grau, dar andamento ao que nos acontecerá na
outra vida, a saber, a subordinação do exterior sob o interior. Todos os discursos dos filósofos
não estão repletos de tais sentenças, segundo as quais o amante da verdade vagaria já aqui
como um morto? Temos aqui, porém, ainda por cima o corpo: veja, pois, você mesmo se a
vida presente não teria obviamente uma vantagem sobre a futura.”
“Caro amigo”, eu respondi, “cada coisa por certo tem suas próprias vantagens que a outra
não tem, sem ser talvez por isso mais valiosa do que esta. A riqueza, por exemplo, tem certas
vantagens sobre a pobreza; mas se precisamente ela tornasse em geral mais difícil ou até
impossível o acesso ao reino da verdade, ao passo que a pobreza o facilitaria, homem sábio
nenhum teria dúvidas em eleger a pobreza. Quem pode desconhecer as vantagens da vida
presente? Se esta não as tivesse, quem a suportaria? Pergunta-se, contudo, sempre qual de suas
vantagens seria em si mesma a maior. Para mim, ela parece ser a de podermos cultivar e
educar em nós já aqui aquele gérmen divino e assim gozar, em parte já aqui, a felicidade
daquela outra vida. Pois sem esse interior perfeito, mesmo a vida exterior perderia seu
verdadeiro e próprio estímulo, que não consiste na satisfação dos desejos sensuais, senão no
sentimento da beleza e do verdadeiro interior em todo exterior; porque o bruto ou corrupto
não extrai prazer algum da natureza, o espiritual o extrai porém no maior grau.”
“Este último”, ele disse, “perderia, portanto, mais mediante a morte, aquele menos.”
“Sem dúvida”, eu disse, “como quando da queda de granizo, aquele que tem devastadas mil
jeiras perde mais que o que tem devastada uma só, sendo este, no entanto, o mais infeliz com
isso. Mas a questão aqui é inteiramente do perder. De fato, este é somente o discurso daqueles
que, ficando aqui para trás, não se habituaram a olhar na direção daquele mundo; mais ou
menos como quando alguém que trabalha com o arado ou com o rebanho fosse guindado a
uma posição de domínio, e seus companheiros de antes dissessem agora que ele teria perdido o
arado ou o seu rebanho. Nós deveríamos, portanto, perguntar, parece-me, o que ganharia na
morte aquele que viveu já aqui espiritualmente; e isso não me parece duvidoso, a saber, a
perfeição justamente daquilo pelo qual ele mais se esforçou nesta vida, e o qual tem por isso de
ser necessariamente algo mais elevado do que este presente. Pois não é assim que, enquanto o
exterior for aqui mais perfeito por conter em si também o interior, ao passo que o interior
nem de longe contém do mesmo modo em si o exterior, o exterior precisaria ter uma grande
superioridade sobre o interior? E não se segue que mesmo esse exterior, por não se dar bem
com o mais perfeito interior, ainda não poderia ser o mais perfeito; pois se o fosse, não
poderia mais haver por toda parte contradição nenhuma entre ele e o interior?”
“Isso resulta com certeza do anterior”, ele disse.
“Não se segue, portanto, também”, eu prossegui, “que interior e exterior não sejam ainda
aqui de modo algum idênticos, senão desiguais entre si, não só na medida em que o perfeito
interior não existe ao mesmo tempo que o perfeito exterior, senão também no próprio
exterior?
“Também isso é necessário”, ele disse, “pois, fossem eles no exterior perfeitamente um, eis
que este se dissolveria imediatamente no interior, e o interior por sua vez naquele.”
“O exterior não é, portanto, aqui, também um exterior subordinado, que se comporta em
relação ao interior perfeito como o inferior em relação ao superior?”
“Por certo”, ele disse.
“E nesta esfera da vida, em vista da superioridade alcançada pelo exterior, nunca será
possível o interior perfeito?”
Ele disse que não.
“Tampouco o mais perfeito exterior?”
“Tampouco”, ele disse.
“Para alcançar, portanto, o mais perfeito interior, precisaríamos abandonar esta esfera da
vida?”
“Necessariamente”, ele disse.
“E passar a uma mais elevada?”
“Com certeza”, ele disse.
“E a morte não seria, pois, uma mera inversão da situação, a saber, que através dela o
exterior ficasse subordinado ao interior e o estado a seguir fosse apenas o inverso do atual;
senão embora sendo também isso, a morte seria ao mesmo tempo a elevação a uma potência
superior, a um mundo efetivamente outro e mais elevado?
“Era precisamente aí que eu queria chegar”, ele disse.
“E o sábio e justo não relutaria em abandonar este estado presente por aquele mais elevado;
senão, com aquele elemento divino, que ele teria cuidadosamente cultivado e desenvolvido em
si a ponto de, ao atingir sua perfeita maturidade, poder abrir as asas, ele deixaria atrás de si a
terra imperfeita, de que se havia erguido, com o mesmo sentimento daqueles pássaros
delicados e coloridos, nos quais, segundo a fábula, metamorfoseiam-se as flores de uma certa
árvore, na Índia, voando para longe dela?”
Ele disse que tudo isso seria muito bonito.
Mas eu respondi: “Ainda não foi tirado tudo a limpo, pois você atribuiu à vida presente a
vantagem de que, sendo embora uma vida inferior, encerraria em si ao mesmo tempo o gérmen
de uma vida superior e conteria assim, de certo modo, ainda mais do que esta superior. Ou
não foi assim?”
“Assim foi, com certeza”, ele respondeu.
“Bem, quando a planta aí está na sua plenitude”, eu disse, “ela não tem mais necessidade do
gérmen como tal, e o seu desaparecimento não é, nesse caso, perda alguma. Mas eu não sei se
também para isso não seria possível uma outra resposta.”
“Você deveria dar-nos também esta”, ele falou.
“Não agora”, eu disse, pois havia notado que nossa amiga estava há muito perdida nos
próprios pensamentos, parecendo escutar nossa conversa só a meio ou de modo algum. Como
agora calássemos, ela voltou subitamente a si e disse, como se ainda estivéssemos em um
ponto anterior da conversa: “Com tudo isso, voltei a pensar que seria uma coisa muito
desejável saber como se sentiria o falecido nele mesmo; e esta, segundo me parece, seria a
melhor resposta àquela pergunta (provavelmente aquela acerca das vantagens da vida futura).
Nós dois concordamos com isso.
“De onde vem, no entanto”, disse ela após, “que a morte seja apresentada tão comumente
como um adormecer? Ela não deveria ser antes um despertar?”
“Talvez”, eu falei.
“Contudo”, ela disse, “é uma ideia tão doce pensar os mortos como adormecidos que
descansam de seu trabalho.”
“Sem dúvida”, eu disse.
“Nem sei”, ela prosseguiu, “o quanto parecem-me exteriores o brilho e o esplendor do dia, e
só quando ele desaparece abre-se o verdadeiro interior; mas por que tem de ser noite?”
“Isso mostra”, eu respondi, “quero dizer, a noite, que aquele interior verdadeiro em nós
ainda não está cumprido, que para nós ele pertence ao que é secreto e vindouro.”
“Se na própria noite se abrisse uma luz”, ela prosseguiu, “de modo que um dia noturno (Ein
nächtlicher Tag) e uma noite amanhecendo (Eine tagende Nacht) nos abraçassem a todos, só aí
estaria o termo derradeiro de todos os desejos. Será por isso, ela acrescentou, que a noite de
lua clara toca o nosso interior de modo tão estranhamente doce e atravessa-nos o peito com
um calafrio à suspeita de uma vida próxima dos espíritos?”
“Seguramente”, eu disse. “A mim ocorre a sentença de um homem muitas vezes mal-
entendido, que mais de uma vez me disse: ‘aquele que pudesse fazer desperto o que tem de
fazer dormindo, só este seria o perfeito filósofo’. Ao que eu sempre dizia: ‘Este seria o perfeito
bem-aventurado’. E acredito também firmemente que uma tal sorte caiba aos bem-aventurados
entre os nossos falecidos, que por isso são ditos escapados ao sono e não adormecidos; de
alguma maneira como tais, que, no sono escapados ao sono outra vez e através dele instados a
acordar, são antes, contudo, escapados ao sono que acordados, porque o dormir já aqui está
mais próximo à vida interior do que o acordar.” (2)
“A mim”, continuou Clara, “contou, muitas vezes, um clérigo famoso (3), conhecido de nós
todos e ao qual não pode ser negado o dom da observação, como no instante do
adormecimento uma serenidade indescritível se derramaria sobre todo seu ser, enquanto a
alma ficaria simultaneamente na mais sutil atividade moral e espiritual; todos seus erros
estariam então de modo extremamente embaraçoso à sua frente e, pelo contrário, quanto mais
puro se sentisse o seu coração, tanto mais feliz seria esse estado intermediário entre dormir e
acordar. Tão infinitamente diferente de tudo que se chama sonho seria esse estado, que sua
clareza ultrapassaria de longe até as mais vívidas representações do estar acordado, e cada
modo habitual de existir, comparado a este, pareceria ser apenas sonho, cochilo, morte. Ele
seria então deslocado a pontos de vista inteiramente novos, a uma forma de intuição sem
imagens, na qual, porém, tudo estaria minuciosamente diferenciado e inteiramente isento de
confusão. Esse estado, porém, duraria habitualmente apenas um segundo (como ele o saberia a
partir de vários sinais, ainda que o mesmo não lhe parecesse tão breve); ele desapareceria
mediante um súbito movimento convulsivo, deixando para trás, na alma, o anseio triste de sua
continuidade. Logo após, teria lugar o completo adormecimento.”
“Aquele movimento convulsivo”, disse o médico, “é dado em geral também como sinal do
adormecer acordado (als Zeichen des wachen Einschlafens).” (4)
“Não deveria ser justamente esse movimento”, eu disse, “o golpe, mediante o qual a
natureza extingue a luz ou visão interior que está querendo subir à superfície e a transforma
em mero sono?”
“Ao menos”, ele respondeu, “não há prova maior da prepotência da natureza exterior sobre
nossa vida atual do que o fato de ela transformar em sono o nosso estado mais profundamente
interior.”
“Se, porém, é verdade”, eu continuei, “o que asseguram tantos homens dignos de crédito,
médicos em particular, a saber, que seres humanos sob influência de outras pessoas – tendo os
sentidos externos inteiramente apagados e comportando-se como mortos em relação a tudo o
mais, excetuando-se aquele que age sobre eles – passariam à mais elevada claridade interior e a
uma consciência de si mesmos com a qual aquela do estar acordados não é nem de longe
comparável, eis que teríamos, creio eu, a experiência de um estado que, com razão,
poderíamos chamar mais elevado, e considerar como um dormir acordado (wachendes
Schlafen) ou um estar acordado dormindo (schlafendes Wachen). E eu o compararia por isso
não à morte, senão ao estado que a sucede, o qual, como acredito, será o da mais elevada
vidência, não interrompida por nenhum despertar.”
“A propósito”, disse o médico, “as aproximações àquele sono mais elevado têm extrema
semelhança com as aproximações à morte.”
“Isso é necessário”, disse eu, “pois uma espécie de morte tem de anteceder também lá o
estado mais elevado.”
“Eu muito tenho ouvido sobre esses fenômenos obscuros”, falou Clara, “os quais, porém, na
minha proximidade maior, foram mantidos para mim ocultos. Mas a aparência disso não me
atrai e gostaria antes de conhecer o próprio sentimento de tais adormecidos (5) quanto a seu
estado.”
“Se nós quisermos depreender esse sentimento apenas de seu aspecto exterior”, respondeu o
médico, “posso dizer que se encontram em um estado de indescritível bem-estar. Toda tensão
doentia dos traços do rosto relaxa, eles parecem mais alegres, mais ricos de espírito, com
frequência mais jovens; todos os vestígios de paixão apagam-se do semblante serenado, tudo se
torna, ao mesmo tempo, mais espiritual, especialmente a voz.”
“Ó, benfazeja mão da morte”, interveio aqui Clara, “é nisso que te reconheço! Deixe-me
evocar a amiga transfigurada prematuramente, que foi o anjo protetor de minha vida, e como
isso tudo chegou para ela; como, quando as sombras da morte dela se aproximavam, uma
transfiguração celeste irradiou através de todo seu ser, a ponto de eu acreditar jamais tê-la
visto tão bela quanto no instante do apagar-se que se aproximava e nunca teria acreditado
haver uma tal graça na morte; como, a seguir, os tons sempre melodiosos de sua voz
tornaram-se música divina, sons espirituais que ecoam ainda hoje mais profundamente no meu
interior do que o primeiro acorde dos sinos de uma harmônica docemente afinada.” (6)
“Que se pergunte àqueles sonâmbulos eles mesmos”, prosseguiu o médico, “acerca de seu
estado, e eles asseguram que seria o mais feliz, que nada sentiriam do corpo nem da dor
anterior e que uma claridade celeste, uma luz reconfortante inundaria o seu íntimo.”
“Sim, mesmo antes da morte”, disse Clara, “as tormentas da doença silenciam, as dores
cessam e muitos, além disso os melhores, partem em um êxtase divino.”
“E, no entanto”, o médico prosseguiu, “aquele estado é a mera aproximação do mais
elevado, eles ainda são tocados pelas coisas exteriores; se bem que de olhos fechados, eles
enxergam tudo que se encontra fora deles, sim, muitos de seus sentidos parecem estar ainda
muito mais aguçados.”
“E o que é, então, aquele estado mais elevado?”, perguntou Clara.
“É aquele”, ele disse, “em que os sonâmbulos ficam inteiramente desligados do mundo dos
sentidos, conectando-se ainda às coisas fora deles só mediante aquele que os influencia (der
Einwirkende) (7); só então comportam-se como inteiramente mortos para o mundo exterior.
Porque, se antes sensíveis ao som mais sutil, sim, aos tons mais remotos que nenhum outro
ouvido percebe a não ser chegando mais perto, eles agora não acordam nem com o estrépito
dos carros, nem com detonações de canhões e fala humana nenhuma os alcança a não ser a
daquele com o qual estão em relação.”
“E só então”, perguntou Clara, “nasce também a mais elevada vidência?”
“Por certo”, disse o médico. “Precisamente aqui mostra-se a vida interior mais elevada.
Tudo anuncia neles a consciência mais profunda; é como se todo seu ser estivesse comprimido
em um ponto focal que unifica em si passado, presente e futuro. Longe de perderem a
lembrança, o passado mais remoto torna-se claro para eles, como o futuro em uma distância
muitas vezes considerável.”
“Não resulta de todos esses fenômenos”, disse eu a seguir, “que a essência espiritual de
nossa corporeidade, que nos acompanha na morte, está presente em nós já antes, que não
nasce só então, senão torna-se apenas livre e avança em sua singularidade tão logo os sentidos
e outros laços da vida não mais a encadeiam ao mundo exterior?”
O médico reforçou isso e acrescentou: “Durante a vida, um grande número de fenômenos,
que não podemos derivar nem da alma nem do corpo enquanto tal, atesta a presença daquela
essência.”
“Para mim”, disse Clara, “é a intimidade da consciência o que mais amo naquele estado. Eu
nunca pude compreender como tantas pessoas podem desalentadamente acreditar que a
consciência se extinguiria ou apagaria após a morte. Pois para mim a morte sempre pareceu
antes reunir que dispersar, interiorizar, não exteriorizar.”
“É, entretanto, explicável”, disse eu, “aquele modo duvidador de falar, pois, para a maioria,
a morte era e é ainda agora uma separação completa de todo o físico, e este (o físico) parece,
ao menos a mim, ser a base de todo consciencial (Grundlage aller Bewusstheit).”
“Como assim?”, perguntou Clara.
“Minha querida”, eu disse, “para a consciência contínua, você conta antes de tudo com a
mesmice contínua do existente consciente, ou não?”
“Sem dúvida”, ela disse.
“E com que esse existente consciente se diferencie de todos os outros enquanto o que sempre
permanece o mesmo (immer das Nämliche Bleibende)?”
“Certamente.”
“Ora, mas então não existe, em parte alguma, a não ser no físico”, eu disse, “um isso e um
aquilo, exigido para cada diferenciação? – Ou”, eu acrescentei após um momento, “porquanto
isso não parece suficientemente claro a você, quando você se considera enquanto si mesma e,
por conseguinte, enquanto pessoa diferente de tudo, não sente então que ao fundo de sua
consciência encontra-se algo que não se resolve em conceito algum, sim, algo obscuro como
que enquanto apoio a sua personalidade?”
“A escuridão, eu a sinto por certo”, disse Clara, “mas justamente essa escuridão eu gostaria
que desaparecesse, ela perturba a pureza da essência.”
“Bem, uma vez suscitada”, eu disse, “não se pode levá-la a sumir, querida, e ela não deve
mesmo sumir, porque com ela desapareceria simultaneamente a personalidade; ela pode,
porém, ser transformada, a fim de tornar-se luz ela mesma, a saber, como suporte mudo da luz
mais alta e preservando a singularidade apenas para esta, a fim de que tenha raiz e base; não,
porém, para si mesma.”
“Assim como o diamante”, ela perguntou, “aí está como que só para a luz, a fim de que esta
nele transpareça e se espelhe, e seja algo em que ela se possa apanhar?”
“Exatamente assim”, eu disse.
“Devemos então dizer”, eu continuei, “que essa escuridão em si nos viria da natureza, ou de
onde mais?”
“Da natureza, sem dúvida.”
“Que cada pessoa traria, pois, em si desde o início esse gérmen obscuro, ou que ele seria
talvez uma excrescência inteiramente casual?”
“Seria impossível pensar isso”, ela disse.
“E que esse gérmen seria capaz de uma transformação contínua, embora de nenhuma
destruição, ou que ele seria tanto transformável quanto destrutível?”
“Necessariamente”, ela disse, “é de supor a primeira alternativa.”
“Mas ele tem algo físico em si?”, eu perguntei de novo.
“Sem dúvida”, ela disse, “se ele nos vem da natureza.”
“Então, algo de físico precisa acompanhar-nos também na morte?”
“Necessariamente, se esse gérmen realmente nos acompanha...”
“E se resta a consciência de nós mesmos enquanto nós mesmos?”, eu acrescentei.
Ela confirmou também isso.
“Bem”, eu perguntei, “não deveria ser justamente aquela essência espiritual de nossa
corporeidade o gérmen que nos acompanha?”
“É o que parece”, ela disse.
“O qual desenvolveu-se a partir do próprio corpóreo para a espiritualidade?”
“Certamente”, ela disse.
“Que preserva, porém, sempre as relações para com o físico?”
“Sem dúvida”, ela respondeu, “porque ele ainda continua sendo a essência da corporeidade.”
“E ele não poderá jamais perder o parentesco para com aquilo do qual foi originalmente
tomado?”
“Nunca, é o que parece.”
“Não é então bem natural”, eu prossegui, “que aqueles, os quais, embora admitindo que o
espiritual aja de muitas maneiras dentro do mundo físico, mas não querendo entender que o
físico também, por sua vez, alcance a outra banda do mundo espiritual, que esses – eu digo, se
a morte na sua opinião separa e suprime por inteiro a ligação entre alma e corpo – temam que
possa então desfazer-se e diluir-se também a consciência pessoal como se desfaz no ar o
perfume das flores apodrecidas, sem que dele reste um traço sequer?”
“Isso é muito natural”, ela disse.
“No entanto, só uns poucos decerto conseguem ainda nesta vida”, eu continuei, “alcançar
aquela metamorfose em luz do gérmen obscuro neles? Pois, para mim ao menos, dentro da
multidão, apareceram quase só aqueles que teimosamente insistem em sua especificidade
(Eigenheit) e têm como principal o fazer-se valer e afirmar-se enquanto si mesmos.”
“Com certeza”, disse ela.
“E que também pensam e ajuízam de acordo com isso, orientando nesse sentido todas suas
atividades espirituais; que são, por exemplo, incapazes de esquecer a si mesmos no seu
pensamento e perder-se na contemplação do eterno e do divino, senão anseiam sem cessar por
um exterior que possam colocar diante de si e manipular como bem lhes apraza, repudiando de
todo até mesmo o divino, ao perceberem que este não se deixa manejar assim. Deveriam agora
ser capazes daquela consciência mais elevada aqueles que só pensam estar conscientes de si
quando possuem um fora-de-si? Ou não são eles bem antes os inimigos jurados de toda
vidência?”
“Provavelmente o último”, ela disse.
“Por isso, quando se diz que precisamente aquela interioridade mais elevada da consciência
seria o estado a que os melhores acedem após a morte, eles não precisariam acreditar e
procurar fazer acreditar também a outros, que dessa maneira toda consciência pessoal
desapareceria na morte?”
“Parece”, disse ela, “que eles teriam de fazê-lo.”
“Mas então”, eu disse, “quando aquele gérmen inicial e obscuro em nós estiver
completamente transmudado em luz, haverá em nós ainda algo mediante o qual nos
diferenciaremos de Deus, ou não?”
“Eu não entendo bem a pergunta”, ela respondeu.
“Ela está mesmo muito imprecisa”, eu disse. “Tentemos, pois, acercar-nos disso por outro
lado. Todas as coisas ou ao menos nós homens, estamos em Deus?”
“Mesmo isso”, ela falou, “não está claro, e pode ser tomado de mais de uma maneira.”
“Pois bem”, eu disse; “ao menos dos bem-aventurados diz-se em geral que vão para Deus,
que estão diante de Deus, também que descansam em Deus. Ou deveremos tomar tudo isso
por meras formas de falar bonito, às quais nada corresponde de real?”
“De modo nenhum”, ela disse.
“Mas que eles, na morte, vão para Deus, como se fala, indica que antes não estavam com Ele
senão Dele separados, não na verdadeira terra natal, senão em terra estranha.”
“Sem dúvida”, ela disse.
“Bem, mas eles não podiam estar separados de Deus mediante o verdadeiro existente, a
perfeição neles?”
“É o que em geral se admite”, falou ela.
“Logo, só mediante o falso existente neles?”
“É o que parece”, disse ela.
“De tal sorte”, eu prossegui, “que embora Deus estivesse no que neles era perfeito, eles, por
sua vez, não estavam em Deus com sua imperfeição?”
“Isso parece evidente”, ela disse.
“O imperfeito deve, no entanto, perecer, ou, se não isso, ser transmudado no perfeito; ele
deve, portanto, continuar existindo, mas só no tanto que necessário, para fazer do próprio ser
o portador do mais elevado.”
“Com certeza.”
“E essa transmudação tem já aqui o seu início, ao menos para os bons.”
“Por toda parte.”
“Quanto mais eles, porém, progridem na perfeição, tanto menos estão necessariamente
separados de Deus.”
“Por certo”, disse ela.
“De tal modo que, tornando-se cada vez mais perfeitos, eles acabam por passar
completamente para dentro de Deus e n’Ele até desaparecem, por fim.”
“Isso parece resultar muito naturalmente”, disse ela.
“Porém”, eu disse, “não é também muito geral esse temor em tantos, a saber, que se
inquietem de que, quando uma vez inteiramente transfigurados, neles completamente
ultrapassada a vontade própria (Eigenwille), poderiam dissolver-se então por inteiro e nunca
mais e em lugar algum ser encontrados, senão desvanecer-se em Deus? E não existem outros,
por sua vez, que sabem verdadeiramente imaginá-lo com amor, como se fosse assim, a saber,
que a alma então em Deus desapareceria como uma gota no oceano ou como um raio de luz no
sol?”
“Coisa semelhante eu li também, por certo”, ela disse.
“No entanto, há algo necessário nesta ideia”, eu prossegui, “pois que a bem-aventurança só
seria possível na perfeita unidade com Deus é o que dizem todos e nós também.”
“Certamente”, ela respondeu.
“Só que não vejo de maneira alguma”, eu continuei, “que aquilo resulte necessariamente, a
saber, que para nós toda a existência particular estaria perdida se nos tivéssemos tornado
inteiramente um com o divino. Pois a gota no oceano continua a ser essa gota, se bem que não
diferenciada, a pequena centelha singular no fogo, ou o raio singular no sol (se um tal raio
existisse), continuam a ser, aquela a pequena centelha, e este o raio singular, ainda que não
sejam vistos como particulares. Por isso, mesmo imaginando que na morte os devotos fossem
arrebatados por Deus em um feliz encantamento como que por magneto universal, para o qual
tudo se volta, de modo que estariam agora inteiramente penetrados por Ele, só n’Ele intuindo,
sentindo e querendo – mesmo assim, eu não vejo por que estaria com isso ao mesmo tempo
perdida toda sua singularidade (Eigentümlichkeit). Ou, se na morte eles viessem a ter para
com Deus a relação em que se encontram os magnetizados para com o seu médico ou salvador
(8), isto é, que estando embora mortos para tudo o mais, para com Ele, porém vivos e
receptivos em alto grau, n’Ele sentindo tudo o mais e sem ter outra vontade além da Sua – eu
bem que gostaria de saber, se então, toda existência própria estaria completamente perdida, ou
se, pelo contrário, ela não seria guindada à interioridade mais elevada? Não deveria quase
parecer por isso que aqueles que afirmam temer o aniquilamento de sua particularidade
(Besonderheit) naquele perfeito tornar-se um com o divino só temam ao fundo aquele
arrebatamento e entrega total, como temem já aqui toda embriaguez – mesmo a espiritual –
considerando enquanto um louco aquele que se encontra repleto das coisas mais elevadas e o
estar morto para a própria vontade como a morte real ou algo pior que a morte?”
“Parece-me”, ela disse a seguir, “que aí se encontra contudo algo ainda não discutido.”
“Talvez”, eu respondi, “e o que, então?”
“Precisamente isso”, disse ela, “que no exemplo acima cada um dos muitos grãozinhos de pó
que se lançam para o magneto e para dentro dessa liga está, decerto, penetrado por inteiro de
sua força e não gostaria de sair dessa cadeia vivificadora mesmo que o pudesse (tão agradável
lhe parece ser lá dentro), embora ainda tenha algo em si, que não lhe vem do magneto. Do
mesmo modo, os magnetizados no outro exemplo.”
“Excelente”, eu disse, “e, como se costuma dizer, vai direto ao ponto! Por conseguinte,
aqueles acreditam então que o homem nada levaria consigo para o outro lado além da
moralidade, mediante a qual, caso ele se haja esforçado por isso já nesta vida, poderá unir-se
completamente ao divino?”
“Eles, decerto, precisam acreditar nisso”, ela falou.
“Portanto”, eu disse, “nada de físico o acompanharia até lá?”
“Nada, é o que parece.”
“Não, por conseguinte, aquele gérmen obscuro inicial2 que só aos poucos, mediante uma
espécie de transmudação divina, acolhe a luz dentro de si?”
“Também não esse.”
“E o qual, mesmo inteiramente transmudado, não renega jamais sua primeira natureza?”
“Tampouco, parece-me”, ela disse, “como o mais translúcido diamante cessa por isso de ser
pesado ou de modo geral corpóreo.”
“Essa mancha escura de nossa existência”, eu prossegui, “que mesmo inteiramente desfeita e
transfigurada, deixa sempre algo restante em nós, que não era de Deus.”
“De que então?”, perguntou Clara.
“Você mesma não disse que ela viria só da natureza?”
“Sem dúvida”, ela disse. Mas aqueles que doutrinam o desaparecimento de toda
singularidade em Deus dizem também da natureza que ela seria Deus.”
“É bem possível”, eu respondi, “que, como se costuma dizer no provérbio, eles tenham
ouvido o sino bater e esquecido quantas badaladas. A saber, eles talvez tenham ouvido alguém
dizer que Deus estaria na natureza e esquecido apenas essa palavrinha minúscula na; ou o
entendem como se a natureza fosse o interior de Deus e dizem então em geral que a natureza
seria Deus.
“Ó meu amigo”, ela exclamou, “quantas vezes ouvi o senhor mesmo dizer que tudo
pertenceria a Deus e nada estaria fora de Deus?”
“Sem dúvida”, eu disse, “assim como muito pertence a nós, sem ser por isso nós mesmos;
há, sim, mesmo em nós certas coisas, que, se falamos em nós de modo geral e amplo, não
pertencem ao nosso verdadeiro Selbst.”
Eu esperava que ela respondesse e por isso a encarei. Mas ela disse: “Continue falando,
chega até mim a luz de um velho tempo; uma conversa quase esquecida revive em mim outra
vez.”
Eu prossegui, portanto, e disse: “Dá-se o mesmo com aquela essência espiritual que se
desenvolve a partir de nossa corporeidade e é a sede do pressentimento, um órgão do futuro,
nossa companheira fiel nesta vida e que nos acompanha na futura; mas infeliz daquele que a
tomasse por seu verdadeiro Selbst, que só habita no espírito. E assim também ou mais ainda o
corpo e o que é em nós a sede do desejo e da paixão, que, embora nos pertença, não é,
contudo, nós mesmos. Pois nós em geral não exigimos que nosso verdadeiro Selbst domine esse
outro e inautêntico Selbst?”
“Sem dúvida”, disse ela.
“E nós diferenciamos, portanto, aquele deste?”
“Até muito”, foi sua resposta.
“Assim, se a natureza pertence a Deus, como com certeza ocorre, ela não pode então
pertencer-Lhe enquanto Sua essência autêntica e primeira, senão como inautêntica e outra,
como uma essência, que, em relação à Sua essência interior – o verdadeiro existente – é um
não existente. Mas nós já havíamos antes”, eu prossegui, “diferenciado entre um interior e um
exterior. Não dissemos que o interior seria no exterior o verdadeiro existente, o exterior
porém só o ser daquele?”
“Eu me lembro”, ela disse.
“Não podemos, pois, dizer que Deus seria o existente na natureza, a natureza, no entanto, só
o ser de Deus?”
“Certamente.”
“Só que esse ser de Deus é, por sua vez, ele mesmo um ser suprema e ubiquamente vivo, tal
como os artistas adornam com vida mesmo as plantas dos pés do Júpiter olímpico. E embora
falemos assim, isso não quer dizer de modo algum que Deus e a natureza seriam um e o
mesmo.”
“De modo nenhum”, ela respondeu.
“Bem, se Deus nos extrai ou cria a partir dessa parte menor de Sua essência, daquela que não
é Ele mesmo, então nossa essência inicial, segundo a sua base, é uma essência diferente de
Deus?”
“Sem dúvida.”
“A qual também, justamente por isso, pode alçar-se à própria autoprodutividade
(Selbstthätigkeit), para, ou transfigurar-se no existente, segundo o espírito, ou a ele se opor?
Mais ou menos assim como a flor, que se elevando embora apenas mediante a força
vivificadora do sol, o faz, no entanto, por impulso próprio e a partir de um fundo obscuro
independente dele. E ela mesma, por fim, transfigurando a sua obscuridade inata em luz,
permanece, contudo, algo diverso da luz e do sol, que provindo de uma outra raiz, embora
reconciliado com a luz, não é luz ele mesmo.”
“Eu o compreendo”, ela disse.
“De tal modo, que se mesmo depois da morte, nós submersos então no deleite dos espíritos e
inteiramente penetrados da presença divina, não querendo sair do mundo bem-aventurado
ainda que o pudéssemos, resta em nós, não obstante, algo que é diferente de Deus e que
embora aí repouse permanece, porém, eternamente, como a primeira possibilidade, seja de
separar-nos d’Ele enquanto o existente, seja de sermos n’Ele enquanto seres independentes.”
“Isso se segue, por certo”, ela disse.
“E só agora, com a completa transfiguração da escuridão inata em nós, emerge a consciência
mais clara e íntima de nós mesmos e de todo nosso estado, não apenas do presente, senão
também do passado; e longe de dever dissolver-se como gelo na água, ela se torna só agora
consciência perfeita, em relação à qual a consciência presente, continuamente obscurecida e
limitada pela recalcitrante inconsciência, comporta-se apenas como sonho e crepúsculo.”
Ela admitiu ainda mais isso.
Mas eu estava agora decidido a partir, porque já desde longo tempo as crianças menores
tinham-se posto a dormir sobre seus brinquedos; as mais velhas, porém, nada mais tendo com
que se pudessem entreter, haviam chegado uma depois da outra à sala interna e se aninhado
junto a Clara. Mas o médico tinha pronta mais uma pergunta, que me lançou de modo breve e
à qual busquei também rapidamente responder; só que, como conversas acerca de tais coisas
são de preferência travadas em momentos noturnos e, devido ao calafrio secreto que
provocam, servem a manter mais longamente juntos os participantes, eis que também aqui
vimo-nos de improviso envolvidos por mais tempo do que o havíamos querido em uma tal
conversação. O médico disse que só não lhe agradaria, no exposto, que o estado de vidência
tivesse sido tomado tão universalmente como o que seguiria a morte, pois se teria dito
simultaneamente que em e por si, este seria um estado bem-aventurado: contudo, poucos por
certo poderiam passar a um estado tão beatífico logo depois de ter deixado a vida,
inteiramente impossível, porém, seria que todos pudessem fazê-lo.
Eu respondi, pois, brevemente e disse: “Lembro-me de ter também dito ao menos uma vez
que aquilo só aconteceria com os melhores; quanto ao que toca aos outros, porém, nós não o
examinamos de maneira alguma.”
Clara achou que sem isso a conversa ficaria incompleta, que todos estaríamos afinal reunidos
e eu, como o expressou, no lance.
Eu, no entanto, lhe disse: “Você então acredita ser fácil falar satisfatoriamente acerca disso?
Pois se eu quisesse falar unicamente do extremo oposto àquele estado bom, daquele que
aguarda os que são inteira e perfeitamente maus, isso seria fácil; mas, assim como nesta vida
encontram-se incontáveis graus intermediários entre bom e ruim, assim também se os encontra
naquela outra vida entre felicidade e desgraça. E lá, no reino invisível, não há de parecer tão
simples como muitos pensam, senão até prodigiosamente variado, se é verdade o provérbio:
que a cada um será dado segundo tenha agido e intencionado durante a vida do corpo. Mas
quem gostaria de ousar fundamentar e expor os prodígios daquele mundo interior, já que para
nós os deste mundo exterior, que vemos diariamente com os olhos, são ainda tão
impenetráveis? Este, na verdade, como aquele armênio de Platão (9), deveria ter estado morto
e voltado da vida do além para a presente, ou, como se deu com visionário sueco (10), o seu
interior precisaria ter-se aberto a ele de outro modo, para poder mirar dentro daquele mundo,
do qual precisamente aqui nos atreveríamos a falar.”
O médico opinou, porém, que se alguém tivesse os dois extremos de uma coisa, eis que se
deixaria melhor imaginar o encontrado no meio.
Eu respondi: “Nem sempre há de ser este o caso; e o difícil então seria justamente encontrar
o outro extremo. Pois, veja bem, se não precisaríamos voltar ainda mais atrás e se aquilo já
não foi afirmado muito rápida e incondicionalmente, a saber, que a morte de um modo geral
seria um deslocamento para dentro do espiritual; porque, a partir da corporeidade presente de
uma pessoa até a espiritualidade, hão de haver tantos níveis intermediários que ela, na morte,
poderia decerto ser arrancada à corporeidade, sem por isso passar para o nível espiritual e
deixar por inteiro o mundo exterior corpóreo. Mesmo aquele no qual se encontra o gérmen
bom do progresso pode só gradativamente tornar-se espiritual; ao passo que naquele que já
aqui estava dominado por vontade regressiva ou má, quando se vir agora, com a perda do
corpo, obrigado a partir, será excitada a mais vívida indignação e um forte anseio de voltar
atrás, para o corpo, em especial naquela essência espiritual-corpórea, que estava habituada a
receber todas as impressões a partir de baixo ou do corpo, mas não de ser subordinada à alma
nem ver-se dirigida por influxos de um mundo mais elevado. Essa essência permanecerá, pois,
mesmo agora sendo a dominante e, como se um peso na alma, se esforçará continuamente por
trazê-la de volta à corporeidade; e que isso seja uma necessidade é o que comprovam as sagas
de todos os povos, concordantes entre si sem qualquer plano prévio, acerca de aparições
frequentes de tais almas junto às pedras sepulcrais ou em campos de batalhas. Nós podemos
agora tomar essas sagas como verdadeiras, ou ao modo de hoje, repudiá-las como inteiramente
falsas.”
Aqui, como costuma acontecer quando essa matéria é abordada em um círculo íntimo, a
discussão ampliou-se animadamente e com a participação de todos sobre toda a amplitude do
objeto. Clara, em particular, declarou-se inteiramente contrária a todas as narrativas do
gênero.
“Já com sua habitual vulgaridade”, ela disse, “elas ofendem todo o bom senso e indicam
com isso de modo bastante claro a sua origem; coletâneas desse tipo, ao invés de provocarem a
crença nessas coisas, como talvez o intencionem, pelo contrário, provocam a mais determinada
aversão contra elas. E quem pode acreditar no que lhe parece ordinário e repulsivo?”
O médico, que se tinha de repente arvorado em defensor, replicou-lhe em parte brincando,
dizendo que os desgraçados consistiriam, sim, naturalmente, na pior escória da sociedade e
seriam o verdadeiro fermento da espécie humana; em parte com a observação de que
existiriam por certo também narrativas mais finas do gênero, dentre as quais aludiu a algumas,
principalmente ao acontecimento da Clairon (11).
“Pois justamente para essas histórias”, ela disse, “eu não posso encontrar sentido algum. Ou
como deverei achar possível que reste tanto arbítrio aos falecidos, para poder produzir
qualquer sorte de efeitos em nosso ambiente, sim, como naquelas histórias, de poder até
vingar-se de uma frágil criatura mesmo depois da morte? Nem ouso decidir se deveríamos
tomar tais histórias por moralmente possíveis.”
“Se é, entretanto, verdade”, ele disse em resposta, “o que, impelidos pela experiência, dizem
tantos investigadores da natureza acerca de uma esfera espiritual de influência de cada ser vivo
e da espécie de liberdade, com a qual é possível dispor sobre ela, não deveria ser então também
possível agir imediatamente por meio dessa essência, quando liberada, sobre a essência
idêntica das coisas e produzir assim alterações de um modo inteiramente outro que o de hábito
empregado por nós? Pois, para suscitar um som ou qualquer coisa do tipo, nós produzimos
primeiro uma mudança no exterior das coisas por meio de golpe ou empurrão, ou de outro
modo similar qualquer, mediante o qual o interior vê-se movido apenas de forma mediata –
exceto em nosso próprio corpo, no qual a vontade inquestionavelmente estimula de imediato e
em primeiro lugar o interior, e só por meio deste o exterior. Não pode parecer, portanto,
impossível que aquela essência, uma vez desobrigada de seu próprio corpo, possa agir com
maior liberdade sobre outras coisas, enquanto um meio, por assim dizer desagregador, para
também nelas libertar a essência análoga; e talvez seja precisamente o som, que parece aliás
tão intimamente aparentado àquelas essências, o mais fácil de ser desencadeado desse modo,
uma vez que mesmo na natureza ele não parece, em certos casos, ser liberado por intermédio
de abalo físico, senão de um modo espiritual. Em geral, porém”, ele prosseguiu, “aquela
essência espiritual-corpórea é por certo já agora o verdadeiro órgão do arbítrio ou o meio pelo
qual nós, em alguns casos, produzimos alterações mediante a mera vontade. O que é a essência
inapreensível e, entretanto, visível que se derrama no olho ao entusiasmo do amor ou da ira, e
de onde esse poder de encantamento no bem e no mal, que exerce justamente a mais espiritual
de todas as ferramentas? De onde a inegavelmente grande influência da própria vontade sobre
a eficácia dos meios, a ponto de eles muitas vezes parecerem de fato meros meios, mediante os
quais se efetiva a intenção de quem aí opera (12)? Que enorme poder sobre aquela essência
espiritual-sensível demonstram certas pessoas em estado de transe, sendo capazes de retirá-la
completamente não só do corpo, como aquele padre, que era capaz de arrancar-se a todas
sensações físicas, ali ficando como um morto, indiferente mesmo a dores intensas, sim, de
conter o sentido da audição, que na morte é o que mais dura, até o grau de ele na verdade
perceber as vozes dos que falavam, mas como se vindas de enorme distância! Sim, mesmo o
separar essa essência de si e enviá-la a distância não parece impossível aos que sentem saudade.
Com que frequência observei, em hospitais franceses, os pobres moços suíços, que, doentes de
saudade do lar, e cujos corpos de fato presentes, mas como que desalmados a meio ou de todo,
sem fala, quase sem sintomas, os olhos fixos presos a um ponto, enquanto talvez (assim
pensava eu comigo) o seu espírito estaria a vagar entre os rochedos e as montanhas da terra
natal, lá tendo podido ser visto por alguém! Desde então tornou-se também para mim bastante
plausível o que recordo ter ouvido ou lido, a saber, que mesmo para aqueles na outra vida a
chegada próxima de um amigo ou parente faz-se saber em função de eles avistarem seu vulto
um tempo já antes no círculo dos habitantes celestes.”
“Prefiro acreditar nessas aparições do além”, disse Clara, “do que nas deste mundo, pois o
certo é que a alma não se encontra onde está, senão onde ama, e a nostalgia mais verdadeira é
sem dúvida aquela da outra vida.”
“Não deveria ser em todo caso raro”, eu prossegui após um momento, “o uso arbitrário da
essência espiritual-corpórea após a morte? Não existem também entre a vidência e o sono
propriamente dito um ou mais estados intermediários? A mim o sonho parece ser um deles e,
ao fundo, uma tentativa imperfeita de produzir o despertar no sono e, portanto, a vidência.”
“Pelo menos”, ele respondeu, “a experiência testemunharia a favor de que sonâmbulos não
sonham; em contrapartida, ao perderem aquela característica, eles começam a ter sonhos, e de
fato proféticos.”
“Assim seria, portanto, concebível”, eu disse, “que pessoas que na morte revertem quase
completamente à natureza exterior sejam tomadas de uma espécie de sono, no qual são
sacudidas por uma tempestade de ideias semelhantes às do sonho; e com isso concordam
também plenamente algumas sagas. Ou há algo mais doloroso já na vida do corpo do que
errar em sonho por um vale sinistro ou floresta sem conseguir achar o caminho certo, procurar
e sentir a impossibilidade de encontrar, estar encerrado e não poder escapar, sim, semelhante
ao que frequentemente ocorre a cada um que sonha? Se, de um modo geral, a imaginação é o
instrumento com o qual são cometidos pecados, não deveria ser também precisamente esta
mediante a qual se puniria mais, e as torturas que aguardam os pecadores no outro mundo não
deveriam consistir principalmente em torturas da fantasia, cujo objeto seria em especial o
mundo corpóreo anterior?”
O médico disse que também para ele isso seria muito verossímil.
“No entanto”, eu prossegui, “se o estado universalmente necessário após a morte fosse
também um estado de vidência, ao menos porque os falecidos só estão conectados ao mundo
dos corpos por meio daquela essência espiritual-corpórea, eis que um estado oposto ao do bem
seria ainda concebível. Pois você não conheceu doentes, para os quais aquele estado trazia a
sensação do maior bem-estar, libertação do sofrimento e cura, mas outros também que,
intimados a isso, sentiam dores violentas, recaindo muito mais profundamente no seu mal?”
Ele confirmou isso.
“Não deveria ser então possível”, eu continuei, “algo semelhante após a morte, sim, que
para aqueles que já aqui tivessem vivido de modo mais interior do que exterior, o estado de
vidência fosse o mais beatífico precisamente mediante sua intimidade e a libertação do
meramente exterior, ao passo que para aqueles que se tivessem relacionado às coisas exteriores
sempre apenas com o corpo e através do mesmo, estando inteiramente enfeitiçados pela
sensualidade da essência exterior, esse estado causasse tortura, por terem já aqui fugido dele
com todas as forças e resistido à interioridade, levando a calar em si o divino, sim, procurando
matá-lo, se isso tivesse sido possível e, em uma palavra, buscando viver tanto quanto possível
exteriormente? Pois eles aqui até podiam suportar isso, em parte porque a natureza exterior,
apesar de sua degeneração, contém sempre muito da indulgência divina, que se instilou
também neles como um bálsamo; em parte porque eles podiam preencher completamente sua
alma com coisas exteriores, e, como acertadamente o qualificam, distrair-se através delas. Lá,
porém, onde todo exterior desapareceu para eles e onde não lhes restou estado algum além
daquele mais íntimo, eles por certo oscilarão entre ser e não ser; incapazes de guindar-se ao
verdadeiro existente e privados agora, mediante a morte, do não existente, que eles tomavam
pelo existente, farão de tudo para minimizar esse tormento, ora querendo elevar-se e caindo
irresistivelmente atrás, ora recaindo de novo neste mundo em suas fantasias, até descobrirem
que a nada chegam com isso e que esses são desvios do caminho certo; felizes, quando uma
ajuda mais elevada ou o chamado de um bem-aventurado que os antecedeu leva-os, por fim, à
pista certa: a esse estado, eu o tomo por aquele propriamente dito de purgação das almas, de
que tanto falaram antigos e novos. Porque só uns poucos vão para o outro lado tão limpos e
libertos de todo amor pelo mundano a ponto de poderem ser imediatamente absolvidos e
chegar ao lugar mais elevado. Mesmo aqueles, porém, nos quais nunca se enraizou uma
vontade má, mas em quem o gérmen originário do bem, embora muitas vezes ocultado sob os
espinhos do mundo e reprimido em seu desdobramento, nunca se viu mutilado ou aniquilado
de todo, vão para o outro lado ainda pesados de tanta vaidade, falsa intenção, presunção e
outras impurezas, que lhes é impossível chegar imediatamente à companhia dos santos, dos
perfeitamente felizes e saudáveis, senão mesmo eles têm de passar primeiro um tempo nesse
caminho, através de muitas purificações, alguns todavia por meio de mais, outros de menos e
por um tempo mais curto ou mais longo, segundo sua índole. E decerto sem dores não pode
acontecer uma tal depuração. Pois como haveriam de ser arrancadas de uma alma tantas raízes
da perversidade, como haveriam de ser levadas à correção tantas sinuosidades, sem uma
sensação inexprimível do conflito e da adversidade infinitos que se encontram entre o reto e o
torto, entre a luz da integridade de Deus, que se quer afundar na alma, e as condições
habituais da alma, que lhe são inteiramente opostas? Ou todo o impuro e mau deveria poder,
sem intervenção profunda e dolorosa, ser movido, apalpado, subjugado pelo seu contrário,
assassinado e expulso de seu lugar em uma alma afetada por ele não apenas superficialmente,
senão de todo perpassada, sim, com ele misturada e intimamente entremeada – tanto mais que,
quando no estado de vidência e mesmo no que dele se vai aproximando, a alma fica muito
mais sensível do que no estado anterior e costumeiro? E estarei enganado ou também ouvi isso
de você, a saber, que a mera presença de pessoas impuras seria sentida muito mais
intensamente naquele estado, perturbando-o de várias maneiras, sim, até mesmo tolhendo?”
Certamente, ele disse, isso seria assim e ele o saberia a partir de muitos exemplos.
“Quão torturante”, eu disse, “há de, portanto, ser a própria presença para o impuro, que
após a morte passa a um estado semelhante ou aproximado, quando está agora a sós consigo
mesmo e a colher o que semeou em si; sim, quando cada mau desejo e pretensão pode assumir
uma espécie de personalidade e cada ato pecaminoso fica morando no homem como um mau
espírito, quão ferino há de ser para a alma esse séquito impuro com o qual ela parte daqui?
Seria isso, creio eu, que se deixaria muito provavelmente dizer dos estados opostos depois da
morte. Muito limitado, porém, pareceria ao menos a mim aquele que quisesse falar de apenas
dois estados opostos, porque, a depreender do último argumento mencionado, é até
fisicamente necessário que os puros e impuros sejam separados em lugares totalmente
diferentes, opostos, na verdade. Já aqui, porém, a partir deste mundo visível, tantos degraus
conduzem ao invisível! Os corpos e a luz são na verdade visíveis, mas o eco apenas audível e
invisível (a não ser que alguém dissesse que ele teria sido feito visível agora); de todo, porém, o
que os outros dois sentidos, olfato e gosto, distinguem no mais íntimo das coisas não pode ser
levado à intuição externa por qualquer outro meio, menos ainda o que age nas diversas
qualidades do ar, as quais, a concluir de nossas ferramentas exteriores, deveriam permanecer
sempre idênticas a si mesmas; o que então atua nas doenças daí provindas e estende sua
influência sobre todo o reino das plantas e animais: como tudo isso, digo eu, embora estando
no mundo visível, é-nos inteiramente invisível e oculto, e como cada essência dessa espécie, por
exemplo, o som, parece possuir um reino próprio, que permanece inteiramente para si e não se
mistura com nenhum outro, eis que nós deveríamos ter ainda menos pudor de acreditar que no
reino invisível, no qual entramos após a morte, poderiam encontrar-se muitos reinos singulares
e formas totalmente diversas de mundos, dos quais cada um poderia ser o lugar de paragem de
uma ou de determinadas linhagens; sim, que se encontrariam ainda muitos de tais lugares
prodigiosos no âmbito do assim chamado visível, se, de outro modo, é verdade o que se nos
apresentou como tão verossímil, a saber, que após a morte nem toda alma será logo
inteiramente inocentada e declarada livre desta região inferior da Terra, senão talvez só
chegará ao propriamente dito suprassensível mediante uma espiritualização gradativa. E
também isso não seria admissível, a saber, que todas as almas ficassem para trás, como
punição ou em um estado em si penoso, nos lugares mais baixos; ou aqueles, os quais, tendo
embora vivido apenas segundo a lei da natureza exterior, mas em real conformidade com esta,
como homens retos, corajosos e refletidos, não deveriam ser acolhidos por um mundo
qualquer de paz, por uma ilha dos bem-aventurados, de tal modo que o que os antigos dizem
do Elísio não seria mera fábula como tampouco sua mitologia inteira? Pois é difícil acreditar
que eles passem imediatamente para o mundo espiritual; ainda mais difícil, porém, acreditar
que eles fiquem para trás em um estado penoso. É bem mais justo que cada um viva também lá
a sua crença; aqueles, portanto, os quais, como Sócrates, morrem ansiando pelo Deus bom e
sábio, ou aqueles a quem o Deus chama, porque só uma mão divina os pode curar, como
aquele Édipo iluminado na morte, esses haverão de chegar também lá a esse Deus. Aqueles,
porém, que até aí tinham mais em comum com a natureza exterior, sem por isso viverem na
abjeção ou de todo esquecidos de Deus, serão talvez mantidos em uma terra de silêncio e sem
tormento, ainda que em uma vida semelhante à das sombras, até que acorde o impulso por
uma existência mais elevada, como o sentiu, em Homero, a alma nobre de Aquiles, embora
ainda como vão desejo de retornar a esta vida, quando diz que teria preferido antes cultivar o
campo como diarista para um homem pobre, sem herança e sem bens, a reinar sobre todas as
hordas desaparecidas dos mortos. O que me leva, porém, especialmente a acreditar em tais
estados não é apenas o espetáculo da grande multidão, que vive sem inspiração e sem a ideia
de uma vida realmente mais elevada e que por isso só pode viver outra vez esta vida, ainda que
em outra forma enquanto mera vida de sombra, senão também aquelas falas obscuras dos Pais
da Velha Aliança, acerca de um lugar de recolhimento embaixo da terra, onde tudo repousa
junto, acerca do inferno enquanto um poder, um lugar de detenção, que não permite
roubarem-lhe a presa, ainda que irrompa, aqui e acolá, um raio de esperança de que o justo
não permanecerá nesse lugar; falas que nós, porém, se temos algum respeito pelo caráter
sagrado das velhas tradições, não deveríamos deixar passar, todas elas, por meras fábulas.
Sim, não é mais digno de crédito que, na medida em que o espiritual transparece mais nesta
vida exterior, também o poder do mundo infernal sobre os mortos fica mais e mais abalado?
Ou deveremos tomar por modos gerais, inteiramente vazios de falar, também aquelas falas
acerca da vitória alcançada por Cristo sobre o antiquíssimo reino dos mortos? Pelo contrário,
eu acredito que a morte se havia tornado realmente um poder. Quando, como você diz, o
homem recorreu à natureza exterior e suspendeu o desenvolvimento para dentro da natureza
espiritual, ele excitou aquela força terrível que Deus havia destinado a ser o mero suporte da
criatura, chamando-a para dentro da realidade. Destruí-lo ela não podia, mas ela o segurou
mesmo na morte, com exceção daqueles que Deus tirou dali. Só quando Aquele, mediante o
Qual todas as coisas haviam sido feitas no início, concedeu em descer até a natureza decaída e
agora tornada mortal e passageira, para tornar-se também nela outra vez um laço entre a vida
espiritual e a natural, só aí o céu, o verdadeiro mundo dos espíritos, abriu-se de novo para
todos, e, pela segunda vez, foi selada a União entre a Terra e o céu. Como Ele veio a morrer,
extinguiu-se a luz da natureza exterior, a única ainda restada ao homem, como sinal da
suprema violência agora praticada pela morte; mas mal tinha Ele mesmo penetrado naquela
região sombria, eis que a Terra tremeu, a cortina no Templo, a imagem do divórcio entre este
mundo e o Santuário, no qual temos agora a esperança de entrar após a morte, rasgou, e
aparições frequentes de Santos escapados à morte (13) anunciaram a toda Cidade Santa que o
poder da morte havia sido superado. E assim, meus queridos, nós estaríamos de volta outra
vez à doce festa que hoje comemorávamos, e a qual é a verdadeira festa do nascimento de toda
natureza e do homem para a vida eterna; das consequências desse dia tem início a idade
espiritual da Terra, pois também ela tem de atravessá-las todas.
Mas agora, crianças, deixem-nos também partir sem demorar-nos para além da meia-noite;
pois já temo que alguém que nos tivesse ouvido, dissesse que teríamos chegado a ideias que só
a noite desculpa. Ainda que assim não seja, nós agora queremos parar.”
E assim partimos, indo cada um para sua casa.
No topo da montanha
Durante essa conversa, tínhamos percebido uma mulher, que, caminhando lá embaixo sob as
árvores, passeava em torno da igreja e parecia buscar a caixa de doações, na qual a vimos
jogar a seguir alguma coisa. Ela subia agora em nossa direção, mas ao ver-nos parou no meio
do caminho parecendo indecisa quanto a se não deveria regressar. Controlou-se, porém, e
subiu até nós; eu a reconheci como a mulher de um merceeiro de outra pequena cidade, três
horas distante dali. Quando ela nos saudou, perguntei-lhe o que a havia trazido até ali; ela
hesitava em falar, até eu lhe dizer que tinha notado a doação que fizera lá embaixo e que devia
ter, portanto, um propósito qualquer.
“Ó, não”, ela então respondeu, “e quero confessá-lo sinceramente ao senhor; sei que é um
cavalheiro bem-intencionado, incapaz de fazer violência ao coração. No último Ano-Novo, o
meu filho mais novo, um garoto, a quem meu marido ama mais que a todos seus filhos, caiu
em uma febre escaldante, que se tornou mais e mais perigosa. Justamente naquele momento o
pai encontrava-se ausente, na feira, e eu em angústia mortal. ‘Ah’, disse eu, ‘haverei de perder
o filho mais querido e justamente agora que estou sozinha! Como haverei de receber o pai,
como ir-lhe ao encontro com a notícia: não haverá talvez de acreditar que algo teria sido
desconsiderado e amargurar-se duplamente?’ Estando a lamentar-me assim, tomou-me à parte
um vizinho e me disse: ‘Quero notificar-lhe algo em confiança, faça uma promessa a Santo
Walderico, em...; ele já tem atendido muitas e feito verdadeiros milagres’; contou-me
simultaneamente um grande número de histórias e que ele mesmo, uma vez em grande
dificuldade, teria sido ajudado assim. Eu lhe disse: ‘O que estaria ele pensando, eu, uma
mulher protestante, deveria fazer uma promessa a um santo católico? Deus me haverá de
ajudar mesmo sem isto, se Ele quiser’. Todavia, a coisa ficou-me na mente, particularmente
porque ele me contou que um grande número de protestantes de toda a região, do mesmo
modo que os católicos, depositaria sua confiança em Santo Walderico; porque sua capela aí se
encontrasse desde tempos imemoriais e por ter sido a primeira da região, os protestantes não
se teriam deixado impedir, fazendo anualmente uma grande doação à igreja, se bem que a
deixando sem cuidados e nela celebrando a missa ainda só umas poucas vezes, durante o verão.
Mas eu fiquei sempre irredutível, embora o homem trouxesse mais outras pessoas, que
insistiam comigo em fazer a promessa, e uma até dissesse: ‘Não deixe de fazê-lo; a senhora
assume uma grande responsabilidade; o seu marido, se estivesse aqui, com certeza o faria ele
mesmo’ – o que me pesou muito no coração. Veio, por fim, a tarde terrível em que o doutor
me disse estar ali pela última vez e eu deveria ter coragem, pois naquela noite a criança
morreria. Eu me encontrava agora completamente desamparada, e como a criança piorasse a
olhos vistos e nada mais parecesse ajudar, nesse instante eu cedi e fiz interiormente, do fundo
do coração, a promessa de um grande sacrifício a Santo Walderico, se ele me quisesse ajudar
na minha aflição. E veja o senhor”, ela prosseguiu, “não havia passado sequer meia hora e a
criança caiu em um sono sereno, continuando a dormir até o amanhecer, quando mandei
informar o doutor. Este chegou muito espantado de a criança ainda viver, examinou-a quando
esta acordou e disse que estaria agora salva; isto seria, porém, um verdadeiro milagre, foi
assim que falou, sem saber da minha promessa! Alguns dias depois veio meu marido, que se
alegrou não menos do que eu, doando imediatamente todo o seu ganho de um ano e ainda
mais, para cumprir o prometido. Bem, hoje estive lá embaixo, na pequena cidade, a coletar
uma parte do dinheiro junto a um outro merceeiro que ainda devia ao meu marido, e agora
vou para casa, atravessando a montanha.”
Eu disse a ela: “Deus por certo a ajudou, porque Ele enxerga o coração. Vá para casa
confortada e saúde por mim seu marido e seus filhos.”
A narrativa havia tocado maravilhosamente a todos, de modo que ainda ficamos um
momento sentados em silêncio, antes de partir. “Como é reconfortante”, disse eu ao
partirmos, “encontrar nesses tempos uma forma qualquer de fé. Pois, porque a fé faz parte de
tudo, do menor como do maior, quando da falta da mesma, é óbvio que as coisas de nosso
interesse reduzam-se mais e mais.”
“Não seria, porém, realmente de supor”, disse então Clara, “que espíritos em relação aos
quais mostre-se durante longo tempo em determinados lugares uma certa veneração, venham,
mediante a magia dessa fé, a tornar-se espíritos efetivamente protetores de tais regiões? Não é
natural que aqueles, que primeiro trouxeram a luz da fé a essas florestas, que plantaram com
vinhas essas colinas, esses vales com grãos, tornando-se assim os fundadores de uma vida mais
humana em regiões antes selvagens e quase inacessíveis, que esses, digo eu, participem também
continuamente nos destinos das terras e dos povos que por eles foram edificados e levados a
unificar-se em uma crença? Os pais esquecem acaso, no céu, os seus filhos na Terra? E aqueles
espíritos, não são eles acaso verdadeiros pais espirituais? A mim ao menos enternece a vista de
um povo que ainda possui um santo protetor, ao qual pode voltar-se na necessidade geral e do
qual pode esperar auxílio e consolo.”
“Um mistério singular”, disse o médico, “encontra-se também oculto na localidade. Certas
concepções, modos particulares de ver o mundo e as coisas são nativos de certas regiões desde
tempos imemoriais, e não só em países de populações imensas, como no Oriente, senão em
áreas minúsculas, em meio à massa dos que pensam de outro modo. Mas também aquele órgão
mais elevado, que aliás só dá entrada nesta vida enquanto fenômeno passageiro, é mais
constante em algumas regiões e não apenas em reinos maiores, como as assim ditas aparições
(das andere Gesicht) nas Terras Altas da Escócia, senão, como o sei por experiência, em
comarcas minúsculas. Não estavam também os Oráculos dos antigos vinculados a certas
regiões, sim, a determinados lugares, e não deveríamos extrair daí a conclusão geral de que o
local não é de maneira alguma tão indiferente assim em relação às coisas superiores como
suposto comumente? Sim, não sentimos em cada paisagem uma certa presença espiritual, que
nesta nos atrai e na outra repele? O mesmo vale também para períodos isolados de tempo.”
“Como nos haveríamos de surpreender muitas vezes”, eu disse, “se, não habituados a
considerar apenas o exterior dos acontecimentos percebêssemos que as circunstâncias, as quais
havíamos tomado por causas, eram meramente meios e condições, sim, que, enquanto talvez
menos atentássemos a isso, espíritos estariam atarefados a nossa volta, os quais, conforme
seguíssemos a este ou àquele outro, nos conduziriam à boa ou má fortuna.”
“Mas por que isso acontece tão raramente”, disse Clara, “e parece ser tão difícil que se abra
ao homem o seu interior, mediante o qual contudo ele está em permanente relação com um
mundo mais alto?”
“Com esse dom”, disse eu, “dá-se como com outros, que são distribuídos sem merecimento,
ao bel-prazer, e por meio dos quais Deus com frequência eleva o baixo e tido por desprezível.
Em especial, porém, um segredo em particular a maioria não quer entender: que um tal dom
nunca será concedido a quem o queira, que a primeira condição para isso é a serenidade e o
repouso da vontade. Eu conheci muitas pessoas, de resto ricas de espírito, que ensaiaram todos
os meios, sem deixar a imaginação descansar nem de dia nem de noite, para, como
acreditavam, mediante um êxtase entrar em contato com mortos queridos; mas nunca puderam
ver cumprido esse desejo; em contrapartida, parece que em todos os tempos, pessoas que nada
buscavam de semelhante, mas que eram piedosas e simples, foram julgadas dignas de receber
notificações do outro mundo. Eu considero por isso boa e justa em todos os sentidos a
prescrição de que o homem jamais deveria buscar qualquer contato com espíritos.”
“Todo desejo violento é repreensível, e um tal anseio não parece possível sem violência”,
disse Clara.
“Não deveríamos observar, em geral, para com os falecidos uma delicadeza ainda maior do
que a que acreditamos dever aos vivos? Quem sabe se eles não participam mais intimamente
em nós do que pensamos; se a dor sentida intensamente, se o excesso das lágrimas vertidas por
eles não são capazes de perturbá-los?”
Naquele instante nós deixamos o abrigo das árvores em torno à igreja e a região inteira
estendeu-se de novo a nossa frente em doce transfiguração luminosa.
Após um momento de muda contemplação, Clara disse: “De onde nos há de vir aquela
profunda lealdade à Terra, independentemente de todo gozo naquilo que chamamos alegrias
terrestres e com o sentimento pleno da nulidade em que consistem? Por que, ainda que nosso
coração esteja morto para todo o exterior e só o considere ainda com prazer enquanto signo e
imagem do interior, por que, junto à vívida convicção de que o outro mundo ultrapassa de
longe o mundo presente em todos os aspectos, o sentimento de que é duro separar-se da Terra,
o calafrio secreto que sentimos a esse divórcio, mesmo se não em nossa própria alma, ao
menos em outra?”
“Deixe-nos reconhecer também nesse traço humano”, eu disse então, “a sabedoria da mão
que o colocou em nossa alma. Um sentimento secreto não nos disse, mesmo depois de nossa
avaliação desta vida ver-se rebaixada a sua medida adequada, que devemos a essa Terra uma
certa afeição e que ela ficará sempre próxima de nosso coração, não só como mãe, senão
também na medida em que divide conosco um destino e uma esperança? Ou, não nos tivesse o
Eterno recusado aquele certo olhar para a outra vida, quem haveria de aguentar, aqui, o tempo
a ele disposto por Deus, sem esforçar-se por sair mais cedo deste mundo, onde, por melhor que
a vida transcorra, nunca será alcançada segurança, nunca estabilidade, nunca satisfação real,
onde mesmo a mais pura alegria deixa em nós um ferrão, e onde um coração raramente
tranquilo extrai mesmo às doçuras da vida um veneno refinado, que afinal nos enterra? E eu
acredito assim que seria até intenção divina que mesmo depois da morte restasse no interior do
homem uma certa simpatia para com a Terra, da qual ele era uma parte, que esta separação
dela fosse efetivamente sentida, porque senão a morte não seria morte; e eu acredito que esse
sentimento esteja realmente submerso nas profundezas de nosso ser, porque Deus sabe sem
dúvida fazer mesmo do maciço e grosseiro que deixamos para trás, na Terra, um uso melhor
que os filósofos.”
“Parece”, disse o médico, “que o rebaixamento da Terra a um nível tão moderado altera
também algumas coisas nas concepções religiosas.”
“Não concordo com isso”, revidei. “É verdade que a Terra foi expulsa do centro. Só que, se
ao menos uma intenção divina final for a de que o interior seja representado tanto quanto
possível no exterior, eis que ambos os extremos – aquele em que o mais interior é preservado
em seu estado mais puro, e aquele onde este se encontra mais plenamente corporificado e
exteriorizado – são em certa medida igualmente importantes; e se pudermos imaginar a criação
viva contínua como uma circulação, na qual o corpóreo vê-se permanentemente elevado ao
espiritual, o espiritual rebaixado ao corpóreo, até que os dois elementos se tenham mais ou
menos interpenetrado e tornado um, eis que essa circulação só teria alcançado o seu verdadeiro
desígnio quando o mais alto e mais espiritual houvesse descido até o mais corpóreo, ao passo
que o mais baixo e mais grosseiro tivesse sido elevado até o mais espiritual e transfigurado.
Portanto, no decorrer dos tempos, justamente nessa mais extrema fronteira do mundo, onde o
rebento da criação como que entra de todo na massa e na corporeidade, teria sido necessário o
aparecimento do mais puro e do mais espiritual; e, ao contrário, isso que vem do mais baixo e
mais grosseiro, precisamente o homem, portanto, de acordo com sua destinação final, terá de
ser guindado à mais elevada e delicada espiritualidade. Porque a criação não pode repousar
antes de o mais alto ter chegado de novo ao mais baixo, e vale também aqui que os primeiros
precisariam tornar-se os últimos, e os últimos os primeiros.”
“Eu em geral concordo até muito com isso”, ele disse após. “Mas mesmo isso nós não
podemos afirmar, a saber, que a Terra seja o ponto mais baixo e mais corpóreo do universo; o
que aliás, de acordo com tudo que conhecemos, chega a ser improvável. Suponhamos agora
que a natureza dos planetas se tornaria tanto mais livre e desligada do corpóreo quanto mais
distantes eles estivessem do sol, ou atenhamo-nos meramente às determinações das densidades
como indicadas pelos astrônomos; em caso algum constitui-se na Terra um extremo.”
“A minha opinião”, eu respondi, “não é bem a de que aquele ponto extremo caia justamente
em um planeta, mas é inegável que os planetas mais baixos sejam a região da mais dominante
corporeidade. O homem por si só me convenceria disso. Nele, a essência mais fugidia e
delicada parece estar ligada a um elemento tão resistente e duro que, já por isso, eu o colocaria
muito alto na escala dos seres; e compreenderia por que ele teria sido favorecido até perante
aquelas criaturas, as quais Deus teria criado, ou como a partir de Si mesmo, sem tomar algo
do outro elemento que entrou junto na nossa mistura, ou que ao menos teriam sido formadas
só a partir da cota mais delicada desse outro material e rapidamente acabadas.”
“Em relação a isso”, disse Clara, “parece dar-se com o homem como com a obra de arte.
Também aqui o delicado e espiritual só ganha o seu maior valor mediante o fato de, estando
embora infectado com um elemento conflitante e até mesmo bárbaro, afirmar ainda assim a
sua natureza. Onde o brando torna-se mestre do forte, só aí nasce a mais alta beleza.”
“Lembro-me”, eu disse, “de, em tempos passados, ter também ouvido falar justamente
acerca disso o visionário nórdico (22) cujos discurso sobre esse ponto foram os que mais me
agradaram. De fato, ele pensava que o Senhor teria preferido nascer nessa Terra devido à
palavra; porque só aqui ela teria podido ser materialmente reproduzida, escrita e preservada
tal qual por escrito. Nós, ele dizia, concluímos depressa demais em função de semelhanças.
Seria em si improvável que, em todos os outros astros do mundo, o gênero dos seres racionais
estivesse em uma ligação tão ativa e diversificada – mediante o comércio e a mudança,
mediante a língua e as leis, mediante a guerra e a paz – quanto o está aqui o gênero humano.
Ele afirmava até que em outros mundos os gêneros viveriam só em famílias, muito longe
daquelas relações artificiais e extremamente complicadas, para as quais a necessidade, o desejo
de ação e um impulso social amplamente generalizado teriam trazido os seres humanos; lá
também teriam lugar apenas revelações orais mediante espíritos e anjos, as quais, por não
estarem atadas a um meio tão fixo como entre nós, se evaporariam e perderiam facilmente
outra vez. De um modo geral, os habitantes dos diversos mundos deveriam ser tomados como
membros diferentes de um ser humano maior, entre os quais o homem da nossa Terra
representaria o sentido natural ou externo. Este homem seria o último, no qual o interior da
vida desembocaria e no qual repousaria como em sua essência comunitária. Do mesmo modo,
a palavra expressa e escrita seria o alvo e o ponto final de toda revelação divina, onde ela teria
passado inteiramente para o exterior e onde o verbo, em sentido próprio, se teria tornado
carne. E também isso, penso eu, poder-se-ia acrescentar, que já a fala, tal como a conhecemos,
seria algo em especial para a Terra. Pode ser que em outros mundos ela seja mais amplamente
elementar e bem mais musical, que incite sensações mais fugidias do que comunique
pensamentos, e afunde no abismo do coração. Competiria, pois, agora aos investigadores da
natureza ver se mesmo a outros respeitos caberia à Terra o grau determinado de vitalidade, no
qual irrompe a palavra viva; tal como não o mais nobre de todos os metais, senão um já
menos nobre é o mais reluzente, e tal como aquele sentido, para o qual eram necessários os
órgãos fortes e mais corpóreos, é simultaneamente o mais interior, assim também, por sua vez,
o sentido exteriormente mais interior e espiritual parece ser, ao contrário, interiormente o
mais exterior. Porém, isso parece levar a enredamentos por demais esquisitos do interior e do
exterior, para que eu ouse continuar expondo agora esse discurso.”
“No entanto, mesmo tomada a coisa pelo aspecto meramente exterior, como de ordinário, a
saber, segundo relações numéricas, não deveria ser impossível”, revidou o médico, “achar
significativos a posição e o lugar da Terra. Pois eu não sei qual o pressentimento secreto que
me impele, mas estou firmemente convicto de que a Terra precisaria ter uma destinação
especial entre os planetas, mesmo abstraindo da crença de que ela teria sido o palco da mais
evidente e mais perfeita revelação divina. Porém, a maior parte das tentativas feitas até agora
no sentido de encontrar a lei de uma série entre os diversos mundos pareceram-me em parte
não suficientemente científicas, em parte saídas de pressupostos não naturais e falsos.”
“Se se quisesse voltar ao velho modo de contar”, eu disse então, “que é decerto o que tem
mais a seu favor, e ao número sagrado que o tem ainda mais: eis que – porquanto é de esperar
que este venha a ser continuamente ultrapassado por descobertas ulteriores –, nada impediria
de supor um septenário autorrepetitivo, onde a Terra ocuparia então, no sítio mais baixo,
precisamente a posição do meio. Seja lá, porém, como for que isso se comporte, parece-me que
um ser (23) que foi alçado de uma noite tão profunda a uma luz tão alta tem o direito às
maiores expectativas. Ao encontro de metamorfoses, diante das quais não entram em
consideração nem mesmo os maiores acontecimentos de sua vida interior e exterior no mundo
presente, parece-me ir um ser que aparenta estar destinado a unificar em si, como Deus, os
termos mais extremos da existência...”
1
O gérmen mais íntimo de todos que quer, ao fundo, chegar ao dia através dos dois outros (Observação à margem do
Manuscrito de Schelling).
2
O existente excitado permanece sempre (observação à margem do Manuscrito de Schelling).
3
Pensées Diverses, 41. (Fragmento n. 29, edição Brunschwicg (1897). Nota na publicação de K. F. A. Schelling).
3. A Primavera
1
Entre colchetes estão alguns acréscimos e cortes do próprio Schelling ao texto, tal como se encontram na edição de Surkamp por
Manfred Frank.
Esquema feito por Schelling às pressas no lado avesso de “A Primavera” (1)
a. Em contraste à Ciência; tudo imediato, nada mediato; talvez algo da sequência de graus das ciências entre si. Tudo no
sentimento imediato.
b. Sem luta – O longo repouso; mesmo o pecado sumiu.
c. Nenhuma lembrança das coisas enquanto ausentes. Nenhum passado.
d. Interioridade da comunidade a partir da última parte.
I. O OUTONO
1. O diálogo Clara, como ademais e em larga medida a obra de maturidade de Schelling, é conhecido apenas a partir da publicação de
suas obras póstumas, extraídas dos manuscritos do filósofo por seu filho, Karl Friedrich August Schelling. Foi publicado pela primeira vez
nas Obras Completas (ver Schelling, F.W.J. Sämtliche Werke, hrg. v. K.F.A. Schelling, Stuttgart/Augsburg 1856 ff, Bd. IX), contendo
também uma Introdução de Schelling a um tratado desconhecido. Nessa primeira publicação não se encontra ainda o fragmento
intitulado “A primavera”. A publicação completa do Diálogo ou do que dele restou – incluindo, portanto, a última parte (“A primavera”)
– recebeu de K. F. A. Schelling duas edições separadas, uma em 1862 e outra em 1865, sendo que em ambas ele introduziu no título o
nome “Clara”. É importante registrar que o título original dado pelo filósofo (“Conexão da natureza com o mundo dos espíritos”) não
continha o nome da heroína; este só foi introduzido por seu filho – o primeiro editor das Obras Completas –, quando da publicação de
uma primeira edição especial do Diálogo, em 1862, mantendo-o na segunda edição especial, de 1865. Nessas duas edições especiais, o
editor também optou por não incluir a Introdução que tinha anexado à edição original do Diálogo, nas Obras Completas, acrescentando,
porém, em ambas as edições especiais, o fragmento de “A primavera” (não constante na edição das Obras Completas). Em 1948,
Manfred Schröter publicou o fragmento também separadamente (in Clara: oder über den Zusammenhang der Natur mit der
Geisterwelt, in F.W.Schelling, hrg. v. Manfred Schröter. München. Leipniz, 1948), acreditando ser o primeiro a juntar-lhe tanto o nome
“Clara” ao título quanto o capítulo final de “A primavera”, embora o filho de Schelling já o tivesse feito setenta anos antes. Schröter foi,
entretanto, o primeiro editor a publicar o “Esquema” rabiscado por Schelling no avesso de “A Primavera”. Bem, isso com relação às
primeiras edições do diálogo Clara. Para a tradução presente, tomei por base a publicação dos “Escritos escolhidos” de Schelling, por
Manfred Frank (ver Schelling, F.W.J. Ausgewählte Schriften in 6 Bden., Vol. 4, hrg. v. Manfred Frank, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am
Main, 1985), que tiveram por base as edições de K. F. A. Schelling e de M. Schröter. É preciso notar que há um forte desacordo entre os
intérpretes quanto à verdadeira data em que teria sido escrito esse texto, uma vez que o próprio Schelling calou a respeito, sequer
mencionando o escrito, ou, se o fez, não se pode afirmar que se estivesse referindo ao mesmo. Houve, em geral, maior acordo quanto à
data entre 1809 e 1810, após a morte da primeira mulher do filósofo, Caroline, em 7 de setembro de 1809. Temos hoje em W. Ehrhardt
um defensor muito bem fundamentado da data de 1803 para a escrita da maior parte do Diálogo (ver: W. Ehrhardt, Schelling. Über
Fortdauer und künftiges leben. Neue Belege über die Falsche Datierung des Clara-Gesprächs und deren Fatale Folgen, in Berliner
Schelling Studien Internationale Tagung, p. 89-101, hrsg. von Elke Hahn, Total Verlag, Berlin, 2009). A presente tradução é a primeira
em língua portuguesa. Existem três traduções anteriores para outras línguas, a saber: a) Clara: ou du lien de la nature aux monde des
ésprits, tradução de Elisabeth Kessler, Ed. L’Erbe, Mayenne 1984; b) Clara: Ovvero sulla connessione della natura con i mondo degli
spiriti, tradução e notas de P. Necchi e M. Ophälders, Editioni Gerini e Associati, Milano 1987; c) Clara, or, On Nature’s Connection to the
Spirits world, traduzida e introduzida por Fiona Steinkamp. State University of New York, 2002.
2. Xavier Tilliette supõe que poderia tratar-se aqui do Mosteiro Wessobrunn, próximo ao pico do monte Peissenberg (988 m.), a
sudoeste do Ammersee, na atual Bavária (ver: X. Tilliette, in Schelling biographie, Klett-Cota Verlag, Stuttgart, 2004, p. 277 et. seq.). O
cenário natural remete antes, porém, às cercanias de Murrhardt, onde Schelling e Caroline casaram em 1803. Na verdade, o cenário do
diálogo Clara há de ter nascido bem mais de uma região interior, embaralhando realidade e fantasia a partir de cenários reais. É da mistura
mágica dessas duas dimensões na teia da vida interior do filósofo, que ele parece emergir segundo “leis” aparentadas às do sonho.
3. Nessa passagem, Schelling usa o termo “costume” no singular; deve estar-se referindo ao embalsamamento dos mortos pelos antigos
egípcios ao serem cercados de tudo o que teriam precisado também materialmente, em vida, o que remete à crença em uma ressurreição
mesmo material do corpo após a morte.
4. Além de Clara e Alberto (já morto), Tereza é a única figura que recebe um nome no Diálogo. X. Tilliette, biógrafo de Schelling, supõe
que o nome ocultaria Pauline Gotter, a segunda mulher de Schelling, filha de uma íntima amiga de Caroline, sua primeira mulher (ver X.
Tilliette, in Schelling. Biographie, Klett-Cota Verlag, Stuttgart, 2004, p. 232). Schelling se aproximou de Pauline por meio de
correspondência iniciada após a morte de Caroline; correspondência esta na qual ambos trabalham o luto pela esposa e amiga.
5. Schelling está provavelmente remetendo ao “Fausto” de Goethe.
6. Segundo W. Ehrhardt, Schelling teria em mente aqui a Academia de Telesius, situada em Cosentina (não a de Florença, como em geral
se interpreta), como consta efetivamente no fragmento Clara. Essa Academia ficava próxima a Nápolis, tendo-se tornado famosa
devido a Giordano Bruno e ganhado grande importância para a “Filosofia da Natureza”. Ehrhardt lembra que Schelling planejava uma
viagem com Caroline à Itália, em 1803, cujo objetivo era justamente Nápolis (ver W. Ehrhardt, in Fachgespräch zu F.W.J. Schellings
Clara oder Über den Zusammenhang der Natur mit der Geisterwelt, Wessobrunn, 26-28.11.2004, p. 4).
7. Schelling, tanto quanto Caroline, foi um entusiasta da Revolução Francesa e de seus ideais. Os tempos, porém, eram outros, e para ele
agora, à diferença de Hegel e Goethe, Napoleão representa a própria encarnação do gênio do mal. Nessa passagem, diz Tillette, Schelling
se “reconcilia internamente” com Fichte na busca de uma identidade, de um ser alemão culturalmente autêntico. Essa coloração de um
inicial conservantismo e tradicionalismo em suas posições e atitudes, essa defesa do “alemão” – uma palavra que ele passou a usar com
frequência – não têm, no entanto, uma conotação patriótica (o filósofo nunca se posicionou pela guerra de libertação, como o fez
Fichte), nem nunca o levou a extremos nacionalistas, como o que se conhece daquelas “Ligas patrióticas de estudantes alemães”
(culminando na festa no castelo de Wartburg); nacionalismo este ao qual Schelling certamente repudiaria (in X. Tillette, Schelling.
Biographie, Klett-Cota Verlag, Stuttgart, 2004, p. 283-284).
NA NATUREZA OUTONAL
8. O texto que vem a seguir, nesta passagem do Diálogo, não consta no manuscrito original de Schelling; há aí um vazio à espera do
escrito anunciado pelo narrador. Nesta edição revisada de minha tradução, eu introduzo uma alteração no manuscrito original do
filósofo, preenchendo esse vazio com um fragmento escrito por Caroline, sua primeira mulher. Alteração esta que alguns julgarão
temerária, porque nem mesmo em língua alemã alguém a introduziu no Diálogo até hoje. Trata-se aqui de fragmento encontrado entre
os papéis de Caroline pelo historiador Georg Waitz. Este foi aluno de Schelling e marido de uma de suas filhas, chamada Clara (Schelling
teve três filhos e três filhas com sua segunda esposa, Pauline Gotter). Waitz investigou durante anos a vida de Caroline, tendo publicado
(em 1871 e 1882) uma coleção de cartas trocadas entre ela e seus amigos; segundo ele, Schelling, seu sogro, teria tido a intenção de,
nesse espaço ficado em branco no Diálogo, inserir o referido fragmento “escrito pela mão de Caroline”, no qual esta reflete acerca da
morte. Tal fragmento encontra-se até hoje em Berlim, entre as obras póstumas de Schelling, em envelope azul intitulado Fortdauer und
künftiges Leben (Continuação e vida futura). W. Ehrhardt concorda com Waitz (como o fazem outros intérpretes do filósofo), quanto
a que Schelling pensava inserir esse escrito de Caroline na passagem a seguir – ficada em branco em seu Diálogo; e Ehrhardt observa ainda
que tal fragmento poderia ter sido escrito por Caroline em parceria com Schelling, quando da elaboração do diálogo Clara (ver: W.
Ehrhardt, Schellings Clara, in Die Wahrheit meiner Gewissheit suchen. Theologie vor dem Forum der Wirklichkeit, p. 127-142, hrg. v.
Ulrike Irrgang und W. Baum, Würzburg 2012, p.133/4; os mesmos argumentos encontram-se em outro ensaio de W. Ehrhardt,
intitulado: Goethe und Auguste Böhmer. War sie vielleicht Goethes natürliche Tochter?, in Vernunft und Glauben. Ein philosophischer
Dialog der Moderne mit dem Christentum, p. 277-295, hrg. von S.Dietzsch und G.F.Frigo, Akademie Verlag, Berlin, 2006, p. 292/3).
Seja lá como for, ao inserir o referido escrito de Caroline no ensaio indicado acima (Schellings Clara), Walter Ehrhardt dá-nos a
oportunidade de avaliarmos, nós mesmos, se o fragmento pode/deve ou não encontrar seu lugar nesta obra de Schelling. A mim parece
que sim, e o traduzo na íntegra, embora se discuta quanto a se o filósofo teria a intenção de aproveitar todo fragmento, ou só uma curta
passagem do mesmo.
9. Schelling refere-se, nesse caso, às consequências da degeneração do ser humano na sua evolução; levado pelo arbítrio, este opõe-se ao
processo de desdobramento do divino no mundo real, vertendo na natureza o “veneno” que a corrói, e que se volta agora contra ele.
10. Em 1812, Schelling passou a registrar em seu diário os desastres naturais de que tinha notícia; fato este que se poderia talvez remeter
a suas reflexões sobre a ligação essencial entre natureza e homem e sobre a responsabilidade deste em relação àquela. Para o filósofo, a
natureza estaria ou reagindo às atitudes humanas (em espécie de alerta ao homem), ou espelhando na matéria o desdobramento dos
atos humanos na História, como vemos ao longo deste capítulo (ver F. Steinhamp, cap. II, p. 91, bibl. nota 1 deste capítulo).
11. Esses experimentos na busca de água e de minerais e metais preciosos, os quais já haviam sido mencionados por Paracelso (De Re
Metallica, 1546), eram comuns na época, e Schelling tinha perfeito conhecimento deles, não só por intermédio do amigo Ritter (1776-
1810), químico e físico que investigava o método. Ritter conseguiu provar a conexão do galvanismo com os processos químicos e
descobriu os raios ultravioleta (1801). Identificando o galvanismo à fricção elétrica, passou a designar como “eletrômetros vivos” ou
como “eletromagnéticas” as pessoas capazes de detectar essas jazidas no solo, identificando o fenômeno como “siderismo” (ver R. Huch
Die Romantik, Rowohlt-Verlag, Hamburg, 1985, p. 442 et. seq.).
12. Essa ideia do “ser ativo” ou do agir humano como “curador” é de central importância na Filosofia do Idealismo alemão. É agindo que o
indivíduo se emancipa das cadeias naturais, espiritualizando-se ou tornando-se livre. Schelling concebe desde o início a natureza como “o
mais inerte dos animais”, um animal que detesta a separação dos sexos a que a natureza orgânica vê-se forçada a submeter-se passando a
mover-se apenas no intuito de ultrapassar essa contradição, sem jamais consegui-lo. Toda a ação da natureza é, pois, forçada e se faz
apenas para se sacudir da pressão que a partir de fora a empurra a mover-se. É justamente essa separação e essa contradição no cerne da
existência o que a leva ao seu ápice, em oposição à inércia natural, que anseia retomar a identidade inicial (ver Einleitung zu dem Entwurf
eines Systems der Naturphilosophie (1799), in Ausgewählte Schriften in 6 Bden., hrg.v. Manfred Frank, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am
Main, 1985, p. 392-393, Nota 4).
13. A concepção schellinguiana dessa luta infinita entre tendências ou forças – tanto no cenário cósmico quanto histórico-social e
psíquico – somada à ideia do jogo de máscaras a que as forças precisam submeter-se não só para prevalecerem umas sobre as outras,
senão também e, principalmente, para, mesmo na sombra, subsistirem, teria um eco extraordinário na Filosofia contemporânea, desde
Schopenhauer e Nietzsche, com suas interpretações muito particulares da mesma.
II. O Inverno
NA NOITE DE NATAL
1. O tema do corpo sutil, corrente à época, fascinava os Românticos em torno a Schelling e foi muito debatido em suas reuniões. A
seguir, no texto, o médico aponta ao fenômeno da aparição de um “duplo” mais sutil do corpo, referindo-se a soldados internados em
Lazaretos distantes da terra natal (Clara, 153). Schelling, porém, ao contrário do modo popular de tratar essa ideia, a elabora de modo
sistemático a partir de um mundo da natureza, que se desdobra paralelamente a um mundo dos espíritos cuja separação é só aparente e
transitória, o sono, o sonho e a morte assinalando a passagem possível de um ao outro mundo.
2. Schelling utiliza-se aqui de um verbo substantivado, “Entschlafene”, para expor de modo muito singular a sua concepção da morte ou
do que se passa com o homem nesse estado. Enquanto verbo (“entschlafen”), o termo foi compreendido, ao menos até Goethe (in
Hermann Paul, Deutsches Wörterbuch, Holle-Niemeyer, 1961), também enquanto “adormecer” em sentido estrito; era empregado,
além disso, de modo eufemístico enquanto sinônimo de “morrer” (“sterben”), mas hoje designando apenas o estado propriamente dito
da morte. O sentido aqui arrancado por Schelling ao termo não seria, no entanto, possível se atentássemos à correta aplicação do prefixo
alemão “ent”: este é um prefixo verbal, uma pré-sílaba, que pode indicar, segundo o verbo a que esteja precedendo, algo que “se afasta”,
“sai”, “vai embora”, “vai para fora” ou “busca o contrário de algo”. Ex.: ent-hüllen (des-velar), ent-decken (des-cobrir) ou ent-gehen,
ent-kommen (escapar de, salvar-se de). O prefixo não tem, entretanto, os significados indicados, quando se trata do verbo “schlafen”
(conf. em Hermann Paul, referência anterior, assim como em “Wahrig, Gerhardt, Deutsches Wörterbuch”, Mosaik Verlag, 1984; e em
“Duden, das Bedeutungs-Wörterbuch”, hrsg. von W. Müller, Duden Verlag, das Bibliog. Institut, 1985, Bd. 10). Ainda assim, neste texto,
Schelling faz valer para o verbo em questão os significados indicados anteriormente, interpretando “entschlafen” como um “ir para fora”,
um “escapar”, um “fugir” do sono; ele toma, portanto, para o verbo “schlafen” (dormir) o prefixo “ent” como expressando a busca do
seu contrário. Se o faz por ignorância, descuido ou licença é-nos aqui impossível decidir. Eu mesma tendo à última alternativa: o filósofo
se teria conscientemente permitido essa licença, no intuito de expor a muito original interpretação da morte que temos no Diálogo,
segundo a qual o morrer seria um “ir para fora” um “escapar” ao sono da morte dentro da própria morte. E é importante ainda notar que
esse misterioso movimento de abandonar, de escapar ou de fugir ao sono da morte não significa absolutamente um “acordar”, isto é, um
buscar o “contrário” do sono (o contrário de dormir) no sentido da vigília normal, que remeteria ao mundo exterior habitual ou mundo
empírico. Schelling pensa esse “escapar” ao sono da morte enquanto uma vitória sobre o aprisionamento que ela pode significar dentro
do universo espiritual interior. Pois é, sobretudo ao mergulhar por meio da morte na interioridade espiritual do mundo, que o indivíduo
tem de encontrar o caminho de sua libertação, e não apenas “lá fora”, no mundo objetivo. É também nesse processo que a capacidade da
“vidência” ganha seu pleno significado; é aqui que ela se investe do sentido de uma espécie de lucidez visionária, permitindo à alma o
elevar-se a dimensões de espiritualidade mais e mais acuradas. Procurei por isso, ao longo da tradução, manter-me fiel a essa
interpretação surpreendente dada à morte por Schelling, não só no capítulo presente, mas no texto como um todo. Agradeço aqui ao
professor doutor Christian Hamm (UFSM Santa Maria/RS), que teve a bondade de ler essa passagem de minha tradução, alertando-me
quanto à peculiaridade do verbo em questão e ao, segundo ele, provável equívoco do filósofo, além de indicar-me bibliografia a respeito.
3. O clérigo de que se trata aqui poderia ser, segundo os intérpretes de Schelling, tanto Lavater (1741-1801), teólogo, filósofo e escritor
suíço, em obra de 1778, intitulada Vistas para a eternidade (ver J.C. Lavater, Aussichten in die Ewigkeit”, Ausgewählte Werke in
historische-kritische Ausgabe, Bd. II, hrg. v. Ursula Calfisch-Schnetzler, NZZ Verlag, Zürich, 2001), na qual, em uma série de cartas, este
discute a transição da vida para a morte e da qual Schelling se ocupava no início de 1810, quanto o teólogo e pastor protestante
Schleiermacher, cujo texto “A festa de Natal”, de janeiro de 1806, recebeu de Schelling uma recensão (ver F. Schleiermacher, Die
Weihnachtsfeier. Ein Gespräch, Manesse-Verlag, Zürich, 1989). A conversação travada na noite de Natal é, sem dúvida, a mais
importante do Diálogo e, nesse contexto, me parece possível que, em se tratando do conteúdo discutido, Lavater representasse um
papel ao menos tão importante quanto Schleiermacher.
4. Por meio da expressão “adormecer acordado” Schelling remete, aqui, ao fenômeno do sono magnético ou hipnótico. O termo
“hipnose” é bem posterior ao período em que foi escrito este Diálogo e é sinônimo de “sono magnético”.
5. Schelling utiliza-se, nesta passagem, da expressão “Schlafenden” (aqueles que dormem), para designar os magnetizados (indivíduos
que se encontram sob influência do magnetizador ou hipnotizador. Tratava-se de fenômeno novo à época, introduzido na Alemanha por
Lavater (bibl. na nota 3 acima). O fenômeno tornou-se moda, atraindo as melhores cabeças da época. Além de Schelling e do grupo dos
Românticos em Jena, fizeram experimentos nesse sentido também Fichte, Schleiermacher, W. von Humboldt, Schubert, Ritter etc.; um
dos únicos a ficar distante do fenômeno foi Hegel. Ligado à descoberta do “magnetismo animal” por A. Mesmer (1773-1815), o
fenômeno passou a ser investigado e aplicado, sobretudo, quando do tratamento de doentes psíquicos. O próprio Mesmer defendia o
valor terapêutico de sua descoberta mais em âmbito físico do que psicológico, não aceitando qualquer interpretação oculta ou
paranormal da mesma. Foram os Românticos que, reinterpretando Mesmer, compreenderam o estado de consciência dos magnetizados
como uma amplificação da consciência empírica normal, a qual permitiria uma intuição outra, interior do mundo, que não aquela
atribuída aos sentidos externos. Tal como acontece no sonho – no qual abre-se um novo palco à consciência, bem outro daquele do
sistema cerebral e fisicamente ligado aos nervos do sistema ganglionar –, no sono magnético ou sonambulismo (dito de uma consciência
ganglionar), o indivíduo humano atingiria a região inconsciente dos pressentimentos, previsões etc., religando-se à natureza por meio
dos nervos simpáticos ou vegetativos (ver R. Huch. Die Romantik, Rowohlt-Verlag, Hamburg, 1985, p. 608 et. seq.).
6. Mesmer empregava música nas suas sessões; teria descoberto que a harpa eólica e a harmônica seriam bons transportadores da força
magnética, sendo esta última o seu instrumento favorito (ver R. Huch, Die Romantik, Rowohlt-Verlag GmbH, Reinbeck bei Hamburg,
1985, p. 608). Esta passagem torna evidente a intimidade de Schelling com o “mesmerismo”, além de nela se perceber a convicção do
filósofo quanto à proximidade entre este estado e aquele da morte.
7. Schelling utiliza-se, aqui, do verbo substantivado “der Einwirkende” ( do verbo “einwirken” = agir, operar, influenciar) para designar o
“magnetizador”, a saber, o agente que opera sobre o sonâmbulo, influenciando-o. As novas descobertas científicas da época, como a
força magnética, os fenômenos elétricos, os raios infravermelhos etc., testemunhavam a existência de fenômenos reais não perceptíveis
pelos sentidos humanos comuns e vinham comprovar, para os Românticos e filósofos da natureza, uma dimensão invisível da realidade,
na qual tais fenômenos operariam. Eles viam no magnetismo animal o meio de acesso a essa dimensão invisível, na qual se movimentaria a
vida psíquica inconsciente.
8. O termo aqui empregado por Schelling para designar o magnetizador é “Heiland” (salvador, redentor, aquele que cura, que torna
saudável). Trata-se, nesse caso, do médico capaz de proceder curas magnéticas, não raro à época. Temos também aqui o tema
romântico do filósofo enquanto “médico da natureza” (ver O. Marquard, Transzendentaler Idealismus, Romantische Naturphilosophie,
Psychoanalyse, Verlag für Philosophie Jürgen Dinter, Köln, 1987, p. 169 ff.). A Medicina sofreu um enorme impulso sob a égide da
Filosofia da natureza; foi quando os médicos-filósofos passaram a ser respeitados e consultados como autoridades quanto aos problemas
gerais da existência. O sonho desse punhado de investigadores da natureza era uma medicina universal, como já o tinha querido
Paracelso. A Medicina foi tratada por eles não só como arte, senão também como “religião”. O que tentavam, neste último caso, era
unificar a arte de curar com a Filosofia cristã, vendo na cura a realização do que se encontra no Evangelho acerca da “imposição das
mãos”, que levaria os doentes a sentir-se bem. Sem ser sacerdote, o médico deveria fazer a mediação entre o doente e Deus, porque, em
última análise, ao médico competiria sempre buscar despertar o divino adormecido no doente (ver R. Huch, Die Romantik, Rowohlt-
Verlag GmbH, Reinbeck bei Hamburg, 1985, p. 614 et seq.).
9. Trata-se do mito escatológico de Er na “República” de Platão, o qual remete à crença na punição da alma após a morte e em sua
reencarnação nesta vida talvez mesmo depois de séculos, em processo de aprendizado e purificação contínuo, a cada nova existência
(ver Platon, Politeia, Bd. X (613e-615d), über. v. F. Schleiermacher. in Werke in 8 Bde., Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt,
1990).
10. Emanuel Swedenborg (Estocolmo 1688 – Londres 1772). Cientista conceituado na Europa da época, ele vivenciou, aos 56 anos de
idade, uma crise existencial-religiosa cuja experiência em forma de sonhos passou a descrever em um perturbador diário pessoal (Diário
dos sonhos), qualificando-a como um permanente “êxtase acordado” (ver E. Swedeborg, Das Traumtagebuch 1743/44, Swedenborg-
Verlag, Zürich, 1978, p. 9). Tendo concluído esse primeiro relato de seu abalo espiritual, Swedenborg iniciou um outro Diário espiritual,
onde continua a narrar suas experiências interiores, os sonhos e as visões, sem, entretanto, “o caos e a dor” do escrito anterior, como diz
seu biógrafo, Olof Lagenkratz (ver O. Lagercrantz, Vom Leben auf der anderen Seite. Ein Buch über Emanuel Swedenborg, Suhrkamp-
Verlag, Frankfurt am Main, 1997, p. 19). Foi aliás desse segundo diário que Swedenborg extraiu o livro que o tornaria conhecido no
mundo inteiro (para chacota de uns e admiração de outros), a saber, Céu e inferno segundo o ouvido e o visto. O livro foi publicado em
Londres, em língua latina, em 1758. Além das descrições das regiões do invisível pelo vidente, que certamente impressionaram e
influenciaram Schelling, deve também ter sido importante para o filósofo a concepção swedenborguiana da natureza enquanto um
organismo vivo, no qual o divino trabalha com a luz e o amor, que a vão iluminando gradativamente. Também a afirmação (por
Swedenborg) de que o despertar do homem após a morte se daria em um corpo espiritual, não reduzindo assim o céu à pura
espiritualidade desencarnada, vinha ao encontro da concepção da matéria do universo por Schelling. Para o filósofo, deve ter sido
também de muita importância a concepção do vidente acerca da liberdade individual. Segundo Swedenborg, o homem escolhe o seu
destino livremente, tanto para o bem quanto para o mal; uma interpretação a que faz eco aquela de Schelling no seu Escrito sobre a
liberdade, de 1809 (ver E.W.J. Schelling, A essência da liberdade humana, Editora Vozes, Petrópolis, 1991). Swedenborg fala além disso
em duas formas de amor, uma espiritual não egoística, a outra carnal voltada ao próprio indivíduo e seus prazeres imediatos; que o
homem viva uma ou outra dessas formas de amor, eis que se cristaliza nesta vida o que cada um virá a ser na outra. “Após a morte”,
escreve Swedenborg, “o homem é o seu amor, respectivamente, a sua vontade” (ver E. Swedenborg, Über das Leben nach dem Tode,
eine christliche Jenseitsschau, tradução de Dr. F. Horn Visionen & auditionen, Swdenborg Verlag, Zürich, p. 212). Pode-se reconhecer aí
perfeitamente a afinidade com a concepção tanto do amor quanto do egoísmo na obra do Schelling maduro.
11. Trata-se da atriz francesa Claire Legris de la Tude (1723-1803), festejada por Voltaire e Marmontel. É a própria atriz que, nas suas
Memórias, faz um relato (do qual consta haver registro comprovador nos arquivos da polícia parisiense), no qual teria sido assombrada
de modo muito material por um admirador recusado em vida e agora morto. Esses fenômenos teriam sido observados por muitas pessoas
e, avaliando-os, a polícia não teria conseguido chegar à conclusão nenhuma sobre sua origem. Publicada na França em 1794, a narrativa
recebeu versão oficial em língua alemã em 1798. Não poucos foram os artistas e intelectuais que dela se ocuparam, tal como Goethe (ao
qual a história já fora relatada em 1794 pelo príncipe Augusto de Gotha, entre outros), o qual utilizou a narrativa em sua História da
cantora Antonelli (ver E. Mattiesen, Das persönliche Überleben des Todes, 3 Bände, Verlag Walter de Gruyter, Berlin, 1987, vol.1, p.190
ss.).
12. Nesta passagem, Schelling indica como das Darreichende (que traduzo por “quem aí opera”), o agente que deixa agir essa essência
misteriosa quando liberta de sua prisão na matéria. Segundo todo esse parágrafo, trata-se aí de uma ação da vontade individual sobre
uma essência espiritual (o “órgão do arbítrio”) interior ao corpo; a vontade excita e libera essa essência de sua prisão no corpo, e age por
meio dela sobre o exterior, sem atentar aos entraves (limites) da matéria corpórea. Nessa mesma passagem, temos que essa essência é
“já agora, o verdadeiro órgão do arbítrio ou o meio, pelo qual nós, em alguns casos, produzimos alterações mediante a mera vontade”
(Clara, 152).
13. Traduzo a expressão entschlafener Heiligen por “santos escapados da morte”; e o faço em consequência do sentido dado pelo
filósofo ao verbo alemão entschlafen, como exposto na nota 2 deste capítulo. O santo é o homem purificado de todo, liberto do sono da
morte; é aquele, enfim, que não precisa mais vestir o corpo opaco, sombrio, meramente exterior que encadeia o ser humano às regiões
inferiores de sua evolução espiritual. É preciso insistir que, para Schelling, a própria matéria física vai se iluminando e transfigurando no
processo evolutivo da natureza; logo, vencida a morte (no caso do santo), o corpo, que não deixa de existir, faz-se também imortal
enquanto aquilo que carrega a personalidade ou alma – agora liberta da morte ou das vidas e mortes sucessivas.
NO TOPO DA MONTANHA
22. Schelling está novamente remetendo a Swedenborg (ver nota 10 de “O inverno”).
23. A palavra “ser” remete-se aqui à pessoa ou ao ser humano, na mescla que este representa entre a luz (o divino que trabalha nele) e
um “fundo” ou “base” natural rebelde a ela (que se pode esclarecer/purificar até um certo limite).
III. A Primavera
Esboço para continuação do diálogo “Clara”
1. Este último fragmento do diálogo Clara foi publicado pela primeira vez em 1862, pelo filho de Schelling, L. F. A. Schelling, em edição
especial. O manuscrito original desse fragmento foi destruído por bombas nos ataques aéreos de 11, 12 e 13 de julho, de 1944, quando
da destruição da Universidade de Munique. Manfred Schröter, que talvez tenha sido a última pessoa a tê-lo nas mãos, initulou-o “A
primavera”, e o fez, segundo Ehrhardt (ver W. Ehrhardt, Schellings Clara, in Die Wahrheit meiner Gewissheit suchen, Würzburg, 2012,
p. 140/1), fiel ao título existente no texto original. O filho de Schelling, por sua vez, não deu título algum nem numerou os capítulos em
suas publicações do Diálogo; na primeira edição especial, a que acrescentou ao título o nome da heroína, Clara, ele separou este último
fragmento da parte anterior com três estrelas apenas. No prefácio ao volume IX de sua primeira publicação do Diálogo, em 1861 – sem o
nome Clara no título e sem o fragmento de “A primavera” –, K. F. A. Schelling depreendeu das anotações feitas por seu pai no final do
manuscrito (Esquema), que o filósofo teria tido a intenção de trabalhar adiante o Diálogo segundo plano contido nas notícias por ele
rabiscadas (ver Schellings Werke. Nach der Originalausgabe in neuer Anordnung heg. v. M. Schröter, Vierter Ergänzungsband, C.H.
Bec‘sche Verlagsbuchandlung, München 1989, Vorwort von K. F. A Schelling zum IX. (Orig.) Band, s. VII.)
1
As referências postas entre parênteses nesta Introdução para o texto “Clara”, de Schelling, referem-se à tradução presente.
Fora dos parêntesis, o autor remete ao original em alemão.
Cronologia