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Psicopatologia Geral

Psicologia Compreensiva, Explicativa e Fenomenológica


Karl Jaspers
PREFÁCIO

À 2ª EDIÇÃO BRASILEIRA
É com satisfação que a LIVRARIA ATHENEU leva ao seu público leitor
a 2.a edição brasileira da grandiosa obra do professor Karl Jaspers: PSI-
COPATOLOGIA GERAL. O livro foi traduzido com fidelidade da 9.a edição
alemã, pelo Dr. Samuel Penna Reis.
Trata-se de obra eminentemente clássica cujos conhecimentos postos
à prova dos tempos (sua 1ª edição data de 1911) cada vez mais se valori-
zam. Seja pela forma original; abrangente e profunda que imprime aos
conceitos psicopatológicos; seja pelo rigor e sistematização de seu arca-
bouço fenomenológico, seja finalmente, pela metodologia adequada, de
que se vale para instrumentar os conhecimentos e a delimitação de seu
objeto.
É, pois, livro insuperável no seu gênero; trabalho de fôlego, pouco co-
mum ao nosso tempo em que a tecnologia e a memorização prevalecem
em detrimento da criatividade e da arte.
Estamos certos que sua leitura orientará a toda uma geração de estu-
dantes, esclarecendo-a sobre a melhor maneira de se relacionar com o
universo fenomenológico, ao questionar sobre sua gênese e influenciações.
A ensinar a sistematização como atividade intelectual consciente; fruto da
pesquisa por analogias e dissemelhanças. À grupar segundo sistema de
raciocínio lógico, inteligente. E como epílogo, a expressar o conhecimento
em conceitos claros e terminologicamente precisos.
Não obstante sua metodologia, seus aspectos psicopatológicos e os da
psicologia compreensiva, o livro do professor Jaspers traz em seu bojo te-
souro maior — lição não muito atual, que o ato de pensar é o veículo co-
mum ao progresso da investigação, do conhecimento e do ensino.
Rio de Janeiro, janeiro de 1979
Dr. Paulo da Costa Rzezinski
À 1ª EDIÇÃO BRASILEIRA
Pode parecer estranho traduzir um livro médico quase sessenta anos
após a sua publicação. Casos análogos têm sucedido. A obra de Eugen
Bleuler “Demência precoce ou o grupo das esquizofrenias” só alcançou o
público de língua inglesa quarenta anos depois de seu aparecimento em
1911; e o de fala castelhana, com mais de sessenta anos de intervalo.
O presente volume é a tradução da oitava edição alemã, aparecida em
1965, como reimpressão da sétima edição, última feita em vida de Jas-
pers, quando vivia asilado em Basiléia.
O livro é, certamente, atual. Com a sua grande lucidez, Jasper lhe per-
mitiria ampliar ou refazer a obra, de modo a dar-lhe nova vitalidade.
Nos anos da segunda guerra, em Heidelberg, pudera consultar a biblio-
teca de Clínica Universitária e, assim, completar muitos aspectos, resul-
tantes do enriquecimento da psiquiatria. É esse o molde que a tradução
espanhola (aliás pouco cuidada) divulgou entre as novas gerações psiquiá-
tricas do Hemisfério.
No entanto, a aplicação do método fenomenológico e da psicologia com-
preensiva permanecem o núcleo denso e definitivo da obra, escrita em
1913, fruto da passagem, quase meteórica, de um grande espírito pela fa-
mosa clínica psiquiátrica de Heidelberg.
Que isso se tenha feito num local onde dominavam, no momento, a
presença de Nissl e o prestígio da anatomia patológica nos faz pensar na
extraordinária atmosfera espiritual da psiquiatria alemã, que permitiu a
Karl Jaspers, nos anos de mocidade, escrever essa obra-prima, que a Li-
vraria Atheneu traz, com a tradução do Dr. Samuel Penna Aarão Reis, ao
estudo dos psiquiatras de língua portuguesa.
Estou certo de que a leitura da Psicopatologia Geral fará um grande
bem ensinará com correção a importância da perspectiva fenomenológica
em Psiquiatria, colocará em seu lugar a compreensão psicológica e prepa-
rará o terreno para implantar os progressos vindos de outras áreas.
Nessa certeza, saúdo a iniciativa e espero venha a ter lugar obrigatório
na biblioteca dos estudiosos da Psiquiatria, com P grande.
J. Leme Lopes
À SÉTIMA EDIÇÃO
O presente livro nasceu na Clínica de Heidelberg. Sob a chefia de Nissl,
Wilmanns, Gruhle, Wetzel, Homburger, Mayer-Gross e outros fundaram
um círculo de investigações. No âmbito das investigações de Nissl sobre o
cérebro, nasceram, então, acompanhadas de violentas discussões, a feno-
menologia e a psicologia compreensiva. Ambas eram ao mesmo tempo rea-
lizadas e conscientizadas metodologicamente. A psicologia compreensiva
se tornou hoje, alimentada por fontes em parte frutíferas, em parte turvas,
um setor indubitável da psiquiatria. Se, no entanto, o meu livro é por ve-
zes designado como representante da corrente fenomenológica ou da cor-
rente de psicologia compreensiva, só em parte esta designação é correta,
uma vez que o seu sentido é mais compreensivo: a saber, o esclarecimento
dos métodos da psiquiatria em geral, de seus modos de concepção e de
seus caminhos de investigação. Pretende expor e analisar criticamente,
por meio de uma reflexão metodológica, todo o conhecimento das experi-
ências feitas.
Só poderia realizar uma reelaboração do livro com base nos resultados
da investigação psiquiátrica dos últimos vinte anos, se vivesse, por um
tempo como observador, numa clínica a fim de refrescar e ampliar minha
própria concepção. Mesmo se alguma clínica me facultasse, já não teria
hoje forças para fazê-lo. Não obstante, o livro, em constante saída, não foi
naturalmente superado. São necessárias sensíveis ampliações da matéria,
sobretudo no tocante às investigações somáticas e cerebrais. Todavia, os
princípios metodológicos de organização continuam largamente inaltera-
dos com o aumento da matéria. Hoje, seria de certo possível escrever um
livro melhor, mesmo sob o aspecto metodológico. Será tarefa para um jo-
vem pesquisador. Ele o conseguirá se chegar a assimilar, ampliar e talvez
transferir criticamente para um novo espaço a consciência metodológica
aqui alcançada. Receberia com alegria um livro assim. Até que apareça,
este velho livro continuará capacitado a ajudar o médico que desejar
aprender a “pensar” psicopatologicamente.
Karl Jaspers, Basiléia, maio de 1959

À QUARTA EDIÇÃO
Continua inalterado o propósito do livro. A realização, no entanto, im-
pôs uma completa reestruturação. Esta se fez necessária tanto pela quan-
tidade das investigações levadas a efeito na Psico- patologia desde há vinte
anos como pelo aprofundamento de meus próprios conhecimentos funda-
mentais.
O presente livro se propôs um alto objetivo. Pretende satisfazer, com
relação a seu objeto, a exigência de uma vontade universal de saber. Pre-
tende servir aos médicos e a todos que lidam tematicamente com o ho-
mem.
A tarefa era apropriar-se do material elaborado na investigação, obter e
expor claramente um quadro geral. O que os psiquiatras em primeira li-
nha, a seguir os internos, psicólogos, psicoterapeutas e, por fim, os biólo-
gos e filósofos produziram em conhecimentos sobre a alma enferma do ho-
mem, teve de ser pensado em suas estruturas fundamentais e unificado
num organismo conforme à realidade. O princípio de unificação foi o escla-
recimento metodológico. Em todo seu alcance, esta tarefa só será realizada
sempre c em cada caso de modo imperfeito. Espero, no entanto, haver
conseguido realizá-la melhor do que antes.
Agradeço ao professor Kurt Schneider, de Munique. Não só me estimu-
lou com críticas agudas e preciosas indicações como também encorajou
meu trabalho com uma atitude positiva e exigente.
Ao professor Oehlkers, de Friburgo, devo informações e esclarecimen-
tos em discussões sobre questões biológicas. O capítulo sobre hereditarie-
dade foi revisto e melhorado por ele.
Agradeço a meu editor, Dr. Ferdinand Springer. Sua vontade, expressa
na primavera de 1941, de ver reelaborado por mim o livro, que ele e Will-
manns encorajaram e estimularam há 30 anos, bem como a liberalidade,
com que deixou livre a magnitude da obra e o tempo do trabalho, desper-
taram meu impulso. Após algumas hesitações, vi-me progressivamente to-
mado pela tarefa de, no lugar de uma simples reelaboração, projetar nova-
mente toda a obra.
O professor Carl Schneider facilitou-me o trabalho com a autorização
de livre uso da biblioteca da Clínica Neuropsiquiátrica de Heidelberg e com
a prestimosidade, que demonstrou sempre, mesmo frente a dificuldades
na aquisição de livros. Por isso se fez credor de gratidão.
Karl Jaspers, Heidelberg, julho de 1942.
O livro terminado em julho de 1942 não pôde ser impresso. Agora apa-
rece na forma que recebeu então, sem alterações nem cortes..
Karl Jaspers, Heidelberg, março de 1946.
À SEGUNDA E TERCEIRA EDIÇÃO
... Numerosas são as generalidades difusas que arrastamos. Procurei
esclarecê-las o mais possível. Todavia as intenções profundas, muitas ve-
zes por elas expressas, não devem ser eliminadas e desaparecer, embora
com isso não se alcance perfeita clareza.
... Do lado médico se emitiu a opinião de que o livro é difícil demais
para estudantes uma vez que trata também dos problemas mais difíceis e
mais adiantados. Em oposição, atenho-me à convicção de que ou se
aprende uma ciência completamente, i. é, também em seus problemas
centrais, ou então não se aprende de forma alguma. Considero prejudicial
manter-se nos níveis baixos. Devem-se ter em conta os estudantes certos,
que estudam pela coisa em si, mesmo que sejam a minoria. O professor
tem de forçar o estudante a elevar-se ao nível de ciência. Isso não se con-
segue de forma alguma com compêndios e manuais que transmitem aos
estudantes para a prática uma aparência fragmentária e externa de co-
nhecimento, que muitas vezes é mais perigosa para a prática do que o to-
tal desconhecimento. Não se deve mostrar apenas uma fachada da ciên-
cia. Na decadência da formação e do trabalho intelectual de nossos dias, é
um dever não entrar em compromissos. O presente livro encontrou, real-
mente, o caminho dos estudantes: sinto-me, pois, justificado em desejar
que continue nas mãos de estudantes.
... No mais, o caráter metodológico permaneceu decisivo. No dilúvio da
“cascata” psicopatológica, deve se aprender a saber, o que se sabe e o que
não se sabe, como, em que sentido e dentro de que limites se sabe alguma
coisa, com que meios este saber foi adquirido e fundamentado. Pois o sa-
ber não é uma superfície lisa de exatidão igual e do mesmo valor. O saber
e um conjunto de espécies muito diferentes de validade, importância e es-
sência...
À PRIMEIRA EDIÇÃO
O presente livro pretende dar uma visão panorâmica de todo o âmbito
da Psicopatologia Geral, de seus fatos e de suas perspectivas, assim como
proporcionar ao interessado um acesso à bibliografia.
Ao invés de expor resultados dogmáticos, procura sobretudo introduzir
nos problemas, nas questões e métodos. Ao invés de um sistema fundado
numa teoria, prefere oferecer uma disposição baseada em reflexões meto-
dológicas.
Na Psicopatologia há uma série de modos de consideração, um con-
junto de caminhos paralelos, que são em si mesmos legítimos, que se
completam sem se prejudicarem. Meus esforços visam à distinção, separar
nitidamente os caminhos bem como a expor a pluridimensionalidade da
Psicopatologia. Tentou-se indicar o lugar de todas as correntes empíricas,
de todos os setores de interesse psicopatológico a fim de dar ao leitor — na
medida do possível — uma visão real de toda a Psicopatologia e não de
uma opinião simplesmente pessoal, de uma escola ou da moda.
Em muitas partes não foi possível evitar o simples registro de fatos, até
aqui constatados mas ainda desconexos, e de alguns ensaios que até
agora não passam de tentativas. Todavia, é sempre perigoso aprender só o
material: não se deve aprender Psicopatologia e sim a observar, perguntar,
analisar, pensar psicopatologicamente. Queria ajudar o estudante a assi-
milar um conhecimento ordenado, que ofereça um ponto de ligação aos
novos fenômenos observados, e lhe possibilite colocar no devido “lugar" os
novos conhecimentos a serem adquiridos.
Karl Jaspers, Heidelberg, abril de 1913.
INTRODUÇÃO

Esta introdução se propõe apresentar o espaço onde se move o conhe-


cimento psicopatológico. Não se trata de estabelecer os fundamentos em
que se há de levantar o edifício. Os fundamentos próprios dos diversos se-
tores, cada capítulo se encarregará de lançar. Também ainda não se vai
relatar experiências. O que se tentará aqui, é discutir os modos das expe-
riências e o sentido da Psicopatologia Geral.

§ 1. Delimitação Da Psicopatologia Geral

a) Psiquiatria como profissão prática e psicopatologia como ciência


A prática da profissão psiquiátrica se ocupa sempre do indivíduo hu-
mano todo. É um indivíduo humano todo que o psiquiatra tem sob sua as-
sistência, seus cuidados e tratamento ou que ele recebe para consultas.
Como é ainda de um indivíduo humano todo o laudo pericial que ele dá ao
tribunal ou a outras autoridades ou para a história. Aqui todo o trabalho
se relaciona com um caso particular. Não obstante, para satisfazer as exi-
gências decorrentes dos casos particulares, o psiquiatra lança mão, como
psicopatologista, de conceitos e princípios gerais. Na profissão é uma pes-
soa viva que compreende e atua. Para ele a ciência é apenas um dos meios
de auxílio. Enquanto para o psicopatologista a ciência é um fim em si
mesma. Ele quer apenas conhecer e reconhecer, caracterizar e analisar
mas não o indivíduo e sim o homem. Já não pergunta pela utilidade de
sua ciência como meio de auxílio — isso ocorrerá por si mesmo com o pro-
gresso dos resultados. O que o preocupa, é o conhecimento, a verdade, o
que pode ser provado com rigor ou demonstrado com clareza. Não procura
a compreensão e a empatia em si — isso para ele é só material cuja ri-
queza de desenvolvimento lhe é indispensável. Pretende o que se pode ex-
primir em conceitos, o que se pode comunicar, o que é suscetível de trans-
formar-se em princípio e se pode reconhecer em quaisquer circunstâncias.
Se, por um lado, tal propósito lhe impõe limites, que deve reconhecer para
não ultrapassá-los indevidamente, por outro, lhe permite um amplo domí-
nio de que tem o direito e o dever de tomar posse.
Seus limites consistem em jamais poder reduzir inteiramente o indiví-
duo humano a conceitos psicopatológicos. Quanto mais conceitualiza,
quanto mais reconhece e caracteriza o típico, o que se acha de acordo com
os princípios, tanto mais reconhece que, em todo indivíduo, se oculta algo
que ele não pode conhecer. Como psicopatologista, basta saber da riqueza
infinita de todo indivíduo, que nunca poderá esgotar; independente disso,
poderá, como homem, ver mais; ou quando outros veem esse “mais”, que é
algo incomparável, não deve imiscuir-se com psicopatologia. Sobretudo
avaliações, éticas, estéticas, metafísicas são de todo independentes de ava-
liações e classificações psicopatológicas.
Mas mesmo abstraindo-se dessas avaliações, que nada têm a ver com
psicopatologia, ainda desempenham um papel importante na prática pro-
fissional opiniões instintivas, uma intuição pessoal que nunca se pode co-
municar. Ressalta-se que, em muitos aspectos, a psicopatologia ainda não
alcançou o nível de ciência. É a “habilidade” que então prevalece. A ciência
requer um pensamento conceituai que seja sistemático e possa ser comu-
nicado. Só na medida em que se tenha desenvolvido um pensamento
desse tipo, pode haver psiquiatria como ciência. O que na psiquiatria for
habilidade e arte, que não se pode exprimir e sim no máximo transmitir a
pessoas receptivas através de um trato pessoal, não será tampouco objeto
de exposição num livro nem, naturalmente, se pode esperar de livros. O
ensino da psiquiatria é mais do que a transmissão de conhecimentos con-
ceituais. É mais do que ensino científico. Um livro de psicopatologia só
pode oferecer ciência e só tem valor enquanto o fizer. Sabendo claramente
da importância da habilidade para a prática e para toda análise de casos
individuais, pretendemos limitar-nos aqui conscientemente ao que se pode
tratar de modo científico.
Mas também o domínio da psicopatologia se estende a todo fenômeno
psíquico que se possa, apreender em conceitos de significação constante e
com possibilidades de comunicação. Pouco importa que o mesmo fenô-
meno, objeto de percepção estética, avaliação ética ou interesse histórico,
seja também investigado de modo psicopatológico. Trata-se de dois mun-
dos que nada têm a ver um com o outro. De resto entre habilidade e ciên-
cia não há fronteiras definidas. Ao contrário, as fronteiras da ciência sem-
pre mais invadem o terreno da habilidade. Mas com isso a habilidade não
é suprimida. Adquire antes novos horizontes. Onde, porém, é possível ci-
ência. sempre a preferimos à habilidade. Sempre que puder ser substitu-
ída pela ciência, desautorizamos a habilidade pessoal intuitiva, que, natu-
ralmente, se engana muitas vezes.
O objeto da psicopatologia é o fenômeno psíquico realmente consci-
ente. Queremos saber o que os homens vivenciam e como o fazem. Preten-
demos conhecer a envergadura das realidades psíquicas. E não queremos
investigar apenas as vivências humanas em si mas também as condições
e causas de que dependem os nexos em que se estruturam, as relações
em que se encontram, e os modos em que, de alguma maneira, se exterio-
rizam objetivamente. Mas nem todos os fenômenos psíquicos constituem
nosso objeto. Apenas os “patológicos”. Assim como, na medicina somática,
se duvida, a respeito de uma questão particular, se seu objeto é fisiológico
ou patológico, e de fato a fisiologia e patologia dependem uma da outra,
trabalham com os mesmos conceitos fundamentais e se entrelaçam mutu-
amente sem limites distintos, assim também a psicologia e a psicopatolo-
gia não estão, em princípio, separadas. Pertencem uma à outra e apren-
dem mutuamente uma com a outra. Não existem limites precisos entre
ambas e muitas questões são tratadas igualmente por psicólogos como
por psicopatologistas. Isso se deve ao fato de o conceito de doença não ser
uniforme. Há vários conceitos de enfermidade e todos aqueles que, teorica-
mente, se pode apreender de maneira precisa, têm de admitir, quando
aplicados à realidade, casos fronteiriços e transições. Não damos nenhum
valor a um conceito preciso de enfermidade mental e, na escolha do mate-
rial, atemo-nos sobretudo ao costume da divisão de trabalho até aqui em
vigor. Não damos nenhuma importância quando se diz que muitas outras
coisas também são mórbidas ou que isso ou aquilo não o é. Só na última
parte é que vamos discutir o conceito de enfermidade. Já de antemão con-
fessamos que, muitas vezes, separamos com certa arbitrariedade o mate-
rial do âmbito global da psicologia à qual a psicopatologia pertence como a
fisiologia patológica pertence à fisiologia.

b) Psicopatologia e psicologia
A psicologia estuda a vida psíquica denominada normal. Em princípio,
o estudo. da psicologia é tão necessário ao psicopatologista como o estudo
da fisiologia para o patologista somático. De fato, porém, isso não ocorre
em muitos casos. É que a psicopatologia investiga muitos fatos cujos cor-
respondentes “normais” ainda não foram estabelecidos pela psicologia e,
em muitos casos, o psicopatologista, buscando em vão conselho com o
psicólogo, tem que fazer sua própria psicologia. Dentro de uma limitação
por demais estreita, a psicologia oficial se ocupa quase só de processos tão
elementares que quase nunca apresentam distúrbios nas enfermidades
propriamente mentais. Alteram-se apenas em lesões neurológicas do cére-
bro. O psiquiatra necessita de uma psicologia de horizonte mais largo, tal
como lhe é legada pelo pensamento psicológico dos séculos e que nova-
mente começa a fazer-se estrada nas esferas oficiais.
c) Psicopatologia e medicina somática.
Dissemos que o objeto da psicopatologia eram os fenômenos psíquicos
reais, suas condições, suas causas e consequências. A investigação dos
nexos e contextos leva necessariamente à representação teórica de meca-
nismos extraconscientes e, em muitos casos, a processos palpavelmente
somáticos, como causas mais remotas dos fenômenos psíquicos. Corpo e
alma formam uma unidade indissolúvel que se estende a todos os proces-
sos. Acham-se numa relação de troca recíproca muito mais penetrante na
psicopatologia do que na psicologia normal. De um lado fenômenos somá-
ticos, que geralmente se consideram puramente somáticos, dependem
também de processos psíquicos, p.ex. os processos de digestão, a mens-
truação, todo o estado de alimentação, em certas circunstâncias até a
grande maioria das funções somáticas. De outro lado, os processos psíqui-
cos mais elevados são parcialmente causados por condições somáticas.
Estas- relações tiveram por consequência uma ligação estreita da psicopa-
tologia com a medicina somática. Mesmo abstraindo-se, de todo, do fato
de que o tratamento dos indivíduos exige evidentemente uma profunda
formação médica não é possível obter-se uma visão das causas dos pro-
cessos psíquicos sem o conhecimento das funções somáticas, sobretudo
da fisiologia do sistema nervoso. Desta maneira a neurologia, a medicina
interna e a fisiologia são as ciências auxiliares mais importantes da psico-
patologia.
Apesar da dependência entre a investigação das funções somáticas, in-
clusive as funções mais elevadas do córtex cerebral, e a investigação da
vida psíquica, não obstante a unidade íntima inegável do psíquico e do so-
mático, não se deve esquecer, porém, que ambas as séries de investigação
nunca se encontram de maneira que se pudesse falar de uma ordenação
de determinados processos psíquicos para determinados processos somá-
ticos, de um paralelismo entre fenômenos psíquicos e fenômenos somáti-
cos. É como se um continente desconhecido fosse investigado por dois la-
dos, mas as expedições de investigação nunca se encontrassem, uma vez
que haveria sempre entre elas uma larga faixa impenetrável. Das cadeias
causais entre o psíquico e o somático sempre só conhecemos os elos fi-
nais. De ambos os lados é que se avança. A neurologia descobriu que o
córtex cerebral juntamente com o tálamo constitui o órgão somático mais
subordinado ao psíquico, e chegou, na doutrina das afasias, agnosias e
apraxias às etapas mais altas no curso de suas investigações. Todavia,
quase parece que, quanto mais ela avança tanto mais dela se esquiva o
psíquico. A psicopatologia segue o psíquico até aos limites da consciência,
mas nestes limites não consegue encontrar, de forma alguma, processos
somáticos diretamente correlacionados com as ideias delirantes que sur-
gem espontaneamente, com os afetos espontâneos, com as alucinações
etc. Em inúmeros casos, que aumentam com o progresso do conheci-
mento, põe-se a causa das alterações psíquicas nas enfermidades cere-
brais, mas logo aparece que nenhuma alteração psíquica determinada se
acha vinculada com estas enfermidades cerebrais e sim, ao contrário, que
nelas ocorrem quase todas as alterações psíquicas possíveis, embora a fre-
quência varie (p.ex. na paralisia).
Em resumo, segue-se dessas observações que é absolutamente neces-
sário pensar na investigação de alterações psíquicas em causas somáticas.
Como a neurologia e a medicina interna têm que ser estudadas indepen-
dentemente por todo psicopatologista, não trataremos aqui, em poucas li-
nhas, sempre insuficientes, de questões pertinentes à neurologia e à medi-
cina interna. Serão melhor estudadas nos inúmeros livros especializados
(a investigação neurológica, a teoria dos distúrbios pupilares, dos reflexos,
da sensibilidade e motilidade). Além disso, nos libertamos em princípio da
servidão em que os conceitos, a investigação e a concepção psicopatológi-
cos se encontravam frente à neurologia e à medicina — devido ao dogma:
“enfermidades psíquicas são enfermidades cerebrais”. Nossa tarefa cientí-
fica não é construir uma sistemática nos moldes da neurologia acompa-
nhada de uma constante preocupação com o cérebro — uma construção
que sempre se tornou fantástica e superficial — mas desenvolver perspec-
tivas visando a investigar questões e problemas, conceitos e contextos a
partir dos próprios fenômenos psicopatológicos. Naturalmente surgirão em
muitos lugares nexos estreitos com problemas neurológicos (algumas defi-
ciências psíquicas particulares dependem de afecções cerebrais localizá-
veis: afasias etc. Muitas enfermidades mentais são determinadas por do-
enças cerebrais: paralisia, arteriosclerose etc., muitas outras o são hipote-
ticamente: dementia praecox).

d) Metodologia, Filosofia.
De modo especial a psicopatologia está estreitamente ligada à psicolo-
gia e à medicina somática. Mas, como toda ciência, também ela possui re-
lações mais remotas com todos os demais setores do conhecimento hu-
mano. Um dentre eles ressaltamos aqui devido à sua particular importân-
cia: a formação metodológica que se adquire no ensino filosófico.
Tanto na psicologia quanto na psicopatologia talvez não se possa afir-
mar nada ou quase nada que não seja, de alguma maneira, contestado.
Por isso, se alguém pretende estabelecer a razão de suas afirmações e des-
cobertas e elevá-las acima da onda de intuições psicológicas diárias, terá
também de empreender reflexões metodológicas. E não se contestam ape-
nas afirmações particulares, mas todo e qualquer método. Já é muito
quando dois pesquisadores concordam sobre o método e só discordam so-
bre os resultados estabelecidos, de um modo, nesse caso, produtivo. Com-
parada com essa situação a investigação somática na psiquiatria segue
hoje em dia um curso firmemente estabelecido e continuamente progres-
sivo. Numerosos colaboradores buscam os mesmos resultados na histolo-
gia do sistema nervoso central, serologia etc. Ao contrário, na psicopatolo-
gia contesta-se às vezes até sua possibilidade. Surgiram vozes que afirma-
vam não se ter feito, de há muito, nenhum progresso nem se poder fazê-lo,
visto tratar-se sempre de uma “psicologia vulgar”, útil para fins psiquiátri-
cos e já conhecida dos antigos psiquiatras. Para progredir no terreno psí-
quico, aferra-se a fenômenos somáticos recentes ou espera-se tudo de ex-
perimentos em que se revela algo mensurável, visível, uma curva. Somente
uma coisa não realizam estes críticos: nunca praticam análise psicológica
nem utilizam o esforço do pensamento, sempre considerável, de resto. Tal
esforço ainda é necessário na arte da observação psicológica a fim de se
obterem conceitos e distinções suficientemente claros, fundamento de
todo conhecimento ulterior.
Nessa situação é compreensível que todo psicopatologista se veja for-
çado a fazer metodologia. Por essa mesma razão não poderemos também
neste livro prescindir de observações metodológicas. Onde se contesta
urge defender e esclarecer. Uma ciência discutida deve mostrar-se em pri-
meiro lugar através de resultados efetivos e, especialmente quando se
trata de resultados não facilmente acessíveis, deve proceder também por
meio de fundamentações metodológicas contra objeções metodológicas.
Independente disso, um estudo mais profundo da filosofia não apre-
senta sem dúvida nenhum valor positivo para o conhecimento concreto do
psicopatologista. Evidentemente nada poderá ele apreender da filosofia
para sua ciência, nada que possa de certa forma transferir. Todavia, ó es-
tudo da filosofia tem em primeiro lugar um valor negativo. Quem se esfor-
çou por pensar a fundo a filosofia crítica, acha-se protegido contra inúme-
ros questionamentos falsos, contra discussões supérfluas e preconceitos
obsedantes que não raro na psicopatologia desempenham um papel em
mentes não filosóficas. Em segundo lugar, o estudo da filosofia possui um
valor positivo para a atitude humana do psicopatologista na prática e para
a clareza de seus motivos de conhecimento.

§ 2. Alguns Conceitos Fundamentais

Nosso tema é o homem todo em sua enfermidade. Trata-se de enfermi-


dade psíquica ou psiquicamente determinada.
Quem soubesse o que é a alma humana, de que elementos se compõe,
quais as forças que, em última instância, a movem, partiria de um projeto
da estrutura psíquica. Anteciparia, em suas grandes linhas, o que depois
seria elaborado em seus pormenores. Para quem a alma é algo de infinita-
mente vasto, porém, cuja totalidade não se pode abarcar de maneira al-
guma, na qual se penetra, investigando por várias vias, para este não ha-
verá nenhum projeto de totalidade. Não conhecemos nenhum conceito
fundamental que possa conceber o homem exaustivamente. Nenhuma teo-
ria em que se possa apreender, como um acontecimento objetivo, toda a
sua realidade. Por isso a atitude científica fundamental é estar aberto para
todas as possibilidades de investigação empírica. É resistir a toda tentativa
de reduzir o homem, por dizê-lo assim, a um denominador comum. Ao in-
vés de um projeto do todo, discutiremos previamente apenas alguns hori-
zontes em que a realidade psíquica se nos oferece.
Em primeiro lugar, nosso tema é o homem. O que significa para a do-
ença não ser o homem um animal? — Em segundo- lugar, nosso tema é a
alma do homem. Como a alma se objetiva, é, se nos torna objetiva? — Em
terceiro lugar, a alma é consciência. O que quer dizer consciência e in-
consciente? — Em quarto lugar, a alma não é urna coisa, mas um ser no
seu mundo. O que significa mundo interno e mundo ambiente? — Em
quinto lugar, a alma não é um ser estático e definitivo, mas um vir-a-ser,
um desenvolvimento, uma evolução. O que significa a diferenciação da
vida psíquica?

a) Homem e animal.
Como objeto da anatomia, fisiologia, farmacologia, patologia e terapia
somática, o homem, para o médico, mal se distingue do animal. Em psico-
patologia, ao contrário, o problema do homem está, pode-se dizer, perma-
nentemente presente. O espírito e a alma atuam em todas as enfermida-
des psíquicas.
Discute-se se há doença mental nos animais. Os animais têm doenças
nervosas e cerebrais. Assim, em coelhos, pode-se investigar a hereditarie-
dade da siringomielia. Há fenômenos como o do cavalo arisco, o da cha-
mada hipnose animal (que nada tem a ver com a hipnose humana), das
reações de medo. Encontram- se “psicoses sintomáticas’’ provocadas por
enfermidades cerebrais, orgânicas: distúrbios da percepção, da estática
nos movimentes, alterações no “ser”, no andar, no morder, apatias etc.
Um exemplo: em insuficiência das glândulas tireoide, provocadas expe-
rimentalmente, cães e gatos apresentam muitas vezes comportamentos
tais que Blum, referindo suas observações, fala de uma “zona de contacto
entre manifestações mórbidas motoras e psíquicas”. Observou “ataques de
fúria em que um gato corria, como um possesso, pelo estábulo, subia pela
parede lisa, atacava e mordia outro gato manso, para por fim cair extenu-
ado”. Observou ainda cães e gatos “manterem-se em posições estranhas
ou incômodas, para depois de, chofre moverem-se repentinamente; anda-
rem de um modo que nunca se vê em animais normais, marchando com
passo de cavalo ou de parada marcial, ou manterem por algum tempo a
cabeça em riste como um touro que arremeter, ou cambalearem até cai,
andarem ou arrastarem-se de costas mesmo quando deveriam perceber o
obstáculo da parede; — um cão- num delírio alucinatório fareja e olha fi-
xamente para onde não há nada o que se perceber. Muitas vezes escava o
metal da gaiola ou enterra o focinho num lugar vazio, latindo, e indiferente
ao inundo ambiente. o gato segue com os olhos evidentemente uma visão,
dá patadas no ar e puxa lentamente a pata”.
Uma doença mental “funcional” em sentido próprio ainda não foi des-
crita nos animais (sobretudo não tem fundamento a doutrina da histeria
dos animais). Em todas as raças humanas encontram-se casos de esqui-
zofrenia e ciclotimia, nunca, porém, entre animais. “Não está provado que
haja nos animais doenças mentais, especialmente as hereditárias”, diz Lu-
xenburger que, com razão, se opõe às “interpretações antropomórficas do
animal”. O contraste com a medicina somática é extraordinário. A questão
sobre o que há de fundamentalmente humano nas doenças mentais,
obriga a ver-se nelas não um fenômeno geral da natureza, mas um fenô-
meno natural especificamente humano. Onde o homem é homem em sen-
tido próprio, lá também não há analogia com o animal.
O homem ocupa uma posição especial. Com ele entrou no mundo algo
absolutamente diverso do animal. A questão é saber o que é esse algo.
Embora, quanto a seu corpo, possa ser enquadrado dentro das classifica-
ções zoológicas, o homem apresenta, mesmo anatomicamente, caracteres
somáticos próprios: não apenas o andar ereto e outras características par-
ticulares, mas talvez até uma constituição somática específica que, entre
todas as formas de vida, lhe conserva mais possibilidades e é menos espe-
cializada do que qualquer outra. Como expressão do ser humano, o corpo
o distingue com certeza de todos os animais. Psiquicamente o homem é
um salto completo. Os animais nem choram nem riem. A inteligência dos
macacos não é espírito. Não é pensamento verdadeiro, mas apenas aquela
atenção astuta que, no homem, é condição prévia do pensamento, nunca
o próprio pensamento. De há muito, se consideram traços essenciais do
homem a liberdade, a reflexão, o espírito. O animal tem seu destino natu-
ral, que se cumpre automaticamente pelas leis da natureza. O homem,
além disso, possui um destino cujo cumprimento é entregue a ele mesmo.
Mas o homem nunca é um ser puramente espiritual. Até às míni- mas ra-
mificações de seu espírito, é determinado pelas necessidades da natureza.
Como seres puramente espirituais, épocas passadas imaginaram e cons-
truíram a existência dos anjos. O homem não é nem anjo nem animal. Si-
tuando-se entre ambos, possui as determinações de ambos sem, no en-
tanto, poder ser nenhum dos dois.
Uma outra questão é saber como essa posição especial do homem de-
termina também a sua enfermidade. Nas doenças somáticas é tão seme-
lhante ao animal que investigações em animais ajudam sempre a compre-
ender sua vitalidade somática, embora nada possa ser transferido sem
mais, de maneira absolutamente idêntica. O conceito de enfermidade
mental, porém, recebe no homem uma dimensão inteiramente nova. O
não ser acabado, o ser aberto e livre, a possibilidade ilimitada constitui
para o homem fundamento de doença. Em comparação com os animais, é
para ele vitalmente impossível uma perfeição originária. O homem deve
conquistá-la como forma de sua vida. Não é um mero resultado. É para si
mesmo uma tarefa. No que é um simples bom resultado, está mais pró-
ximo do animal.
Em todo caso, para a psicopatologia é evidente que o objeto de todos os
seus campos de investigação é sempre o homem como homem. Observa-
ções em animais não dizem aqui nada de essencial. E há ainda um limite:
o que acontece no homem produzido por doença mental, não se esgota
com as categorias da investigação científica. O homem, como criador de
obras do espírito, como crente religioso, como ser de ações morais trans-
cende o que se possa saber e conhecer dele em pesquisas empíricas.
A psicologia e a psicopatologia animal — na medida em que existam —
são de interesse pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, ensinam a co-
nhecer os fenômenos fundamentais da vida, que se encontram também no
homem, e, em razão deste horizonte, a julgar mais objetivamente: os cos-
tumes, a aprendizagem, os reflexos condicionados, os automatismos, o
comportamento na tentativa e erro, os coeficientes particulares de inteli-
gência (W. Koehler, Intelligenzprufungen an Anthropoideri). Em segundo
lugar, ensinam o que há de próprio e especificamente diferente nos ani-
mais e nos mostram que nenhuma dessas formas animais é precursora do
homem. São todas outros tantos ramos da grande árvore da vida. Em con-
traste com elas, podemos aproximar-nos mais da concepção do que é es-
pecificamente humano.

b) A objetivação da alma.
Só podemos conceber e investigar o que se nos tornou objetivo. Como
tal, a alma não é, de forma alguma, objeto. Toma-se objeto através daquilo
em que ela se mostra perceptível no mundo: nos fenômenos somáticos
concomitantes, nas expressões inteligíveis, no comportamento, nas ações.
Mostra-se ainda nas comunicações pela linguagem, nas quais diz o que
pensa e pretende, produz obras. Em todos esses fatos, que podem ser
constatados no mundo, deparam-se-nos efeitos da alma. São fenômenos
nos quais percebemos diretamente a alma ou a partir dos quais chegamos
até ela. A alma não é para nós objeto. Experimentamos sem dúvida a alma
em novas vivências conscientes e representamos as vivências alheias seja
por manifestações objetivas ou seja pela comunicação de outros. Mas tam-
bém essas vivências são fenômenos. Sem dúvida podemos tomar a alma
objetiva através de imagens e comparações. De fato, porém, continuará
sendo o horizonte (das Umgreifende), que não se torna objeto, mas a partir
do qual todos os fatos particulares objetivados se nos apresentam. Escla-
reçamos ainda que a alma não é uma coisa e que já se falar de “alma” in-
duz a erro de observação: l.°, a alma significa a consciência mas também,
e sob determinadas perspectivas, até essencialmente, é o inconsciente. 2°,
a alma não pode ser concebida como um objeto com propriedades mas
como ser no seu mundo, como uma totalidade de mundo interior e mundo
ambiente. 3.°, a alma é vir-a-ser, desenvolvimento, diferenciação, nada de
definitivo e acabado.

c) A consciência e o inconsciente.
Consciência possui três significados: é, em primeiro lugar, a interiori-
dade de uma vivência e, como tal, se opõe à falta de consciência e ao que é
extra- consciente. É, em segundo lugar, uma consciência objetiva, um sa-
ber de alguma coisa e se opõe, como tal, a uma vivência interior como o
inconsciente que não conhece ainda a divisão em eu e objeto. É, em ter-
ceiro lugar, autorreflexão, consciência de si mesmo e se opõe, como tal, ao
inconsciente que eu vivo na divisão, sujeito-objeto, com conteúdos intenci-
onados mas de cuja vivência não tenho conhecimento expresso nem
presto atenção a isso.
A consciência é a manifestação indispensável da alma, se por consci-
ência se entende toda forma de interioridade vivida, mesmo 'quando falta a
divisão de eu e objeto e há apenas um simples sentir que não é consciente
nem do objeto nem de si mesmo. Onde não houver consciência nesse sen-
tido, não há também alma.
No entanto, não se pode compreender a vida psíquica simplesmente
como consciência e a partir dela. Para se progredir nas explicações, deve-
se acrescentar à vida psíquica realmente vivida uma infraestrutura extra-
consciente, criada teoricamente para fins de explicação. A fenomenologia e
as constatações objetivas de fatos particulares permanecem, sem qualquer
teoria, ao nível da vida psíquica realmente experienciada. Ocupam-se ape-
nas com o que é dado. As explicações, porém, não podem passar sem re-
presentações teóricas de mecanismos extraconscientes, sem instrumen-
tos, sem acréscimos. A vida psíquica imediatamente acessível, realmente
vivida é como a espuma que boia sobre as profundezas do mar. Estas pro-
fundezas são inacessíveis e só podem ser investigadas indiretamente por
rodeios teóricos. As representações teóricas nunca podem ser verificadas
em si mesmas, mas apenas em suas consequências. Nunca retiram o seu
valor somente da não- contradição e coerência, mas apenas de sua fecun-
didade para a explicação das vivências psíquicas reais e para a precisão
da observação. Toda explicação do psíquico trabalha com mecanismos ex-
tra- conscientes, com processos inconscientes que naturalmente nunca
são representados em si mesmos e somente podem ser pensados em com-
parações e imagens, segundo forem somáticos ou psíquicos.
Em oposição a um costume secular, impõe-se, com razão, há bastante
tempo uma certa recusa de todas, as teorias que, muitas vezes, são tão fá-
ceis de imaginar e levam a uma confusão insanável especialmente quando
se mesclam sem clareza com os fatos. É por isso que, em princípio, procu-
ramos ser o mais possível parcimoniosos com representações teóricas, só
nos servindo delas com inteira consciência de sua natureza de teoria e de
seus limites, sempre existentes.
Discute-se muito se há processos psíquicos inconscientes nestas ques-
tões. Deve-se, em primeiro lugar, distinguir entre processos psíquicos que,
embora não tenha sido advertidos, foram todavia realmente vividos, e pro-
cessos psíquicos que, sendo realmente extra- conscientes, não são de fato
vividos. Os processos psíquicos inadvertidos podem ser advertidos em cir-
cunstâncias favoráveis e assim estabelecidos em sua realidade enquanto
processos extraconscientes, em princípio, nunca podem ser advertidos.
É uma tarefa importante da psicologia e psicopatologia estender nosso
conhecimento até o amplo domínio da vida psíquica inadvertida, esclare-
cendo para a consciência (—saber) toda a vida da alma. Realizar em si
mesmo esse esclarecimento é condição da verdade e do amadurecimento
de todo indivíduo humano, enquanto promovê-lo adequadamente, um dos
caminhos da psicoterapia.
Os processos extraconscientes, ao contrário, não se podem jamais de-
monstrar diretamente, caso não se trate de processos somáticos que pode-
mos perceber. Todavia, é incontestável que um dos meios de explicação
mais imediatos e úteis dos fenômenos psíquicos conscientes é acrescentar
fenômenos extraconscientes como causa e efeito. São, portanto, constru-
ções teóricas do pensamento cuja conveniência e contradição se pode dis-
cutir, cuja realidade, porém, nem se pode nem se deve, de forma alguma,
provar. O extra- consciente se apresenta sob diversas formas: como dispo-
sições adquiridas da memória, hábitos e atitudes adquiridos, como predis-
posições seja de habilidade ou de caráter. Muitas vezes uma pessoa tem a
consciência de que uma vivência proveniente de suas próprias profunde-
zas extraconscientes desconhecidas se lhe opõe ou domina.
O seguinte quadro esclarecerá convenientemente a ambiguidade do
que se entende por inconsciente.
a) O inconsciente é determinado por sua origem da consciência. Como
tal, é:
• l.° o mecanizado, i.é, aquilo que uma vez se realizou consciente-
mente e agora pode ser feito de modo inconsciente, o automati-
zado, p. ex., andar, escrever, andar de bicicleta;
• 2° o não lembrado e, não obstante, eficaz (os chamados comple-
xos oriundos de vivências anteriores);
• 3° o que pode ser recordado, o disponível, como material e acervo
da memória.
b) O inconsciente é determinado pela falta de relação com a atenção.
Como tal, é:
• 1° o inadvertido mas vivido;
• 2° o não querido, não pretendido, não intencionado mas reali-
zado;
• 3° o não recordado (que antes era consciente mas logo foi esque-
cido e agora já não é entendido: muitas vezes pessoas senis já
não sabem o que há pouco pretendiam — entro num quarto, o
que queria?);
• 4° o que não foi objetivado, e que não se apreende na palavra.
c) O inconsciente é determinado, como um poder, como uma origem.
Como tal, é:
• l.° o criador, o vivo;
• 2° o refúgio, a proteção, o fundamento, e o fim. — Isto quer dizer:
tudo que é essencial, tudo que nos arrebata, que nos sustenta,
todo impulso, toda ideia, toda imaginação e elaboração, o grandi-
oso e o pernicioso advêm-nos do inconsciente — por fim toda
perfeição se converte no inconsciente a que retornamos.
d) O inconsciente é determinado com o ser. O sentido do ser é enten-
dido:
• l.° como o psiquicamente real (todavia, como não se pode identifi-
car simplesmente o psíquico com a consciência na medida em
que esta se funda, é determinada e age pelo inconsciente, tão
pouco se pode explicar a consciência como algo acidental, um
simples acréscimo, ao psiquicamente real); este já foi determi-
nado de muitas maneiras: p. ex., como um jogo autônomo dos
elementos básicos (Herbart), cuja manifestação é a vida consci-
ente da alma; como níveis do inconsciente até o inconsciente
mais profundo (Kohnstamm, Freud); como o inconsciente pes-
soal, que, oriundo da biografia, pertence ao indivíduo humano;
como o inconsciente coletivo (Jung), que, como um fundo univer-
sal da humanidade, age em todo indivíduo — sempre esse in-
consciente é entendido como um ser por si, real, pelo qual nó#
somos;
• 2° como o ser absoluto (i.é, um conceito metafísico: também para
designar o absoluto — como o ser, o nada, o dever, a substância,
a forma e quase todas as categorias — o inconsciente é usado
alegoricamente a fim de pensar o impensável. A psicologia nada
tem a ver com esse conceito).

d) Mundo interior e mundo ambiente.


Na compreensão de todo ser vivo impõem-se algumas categorias que,
até mesmo nas mais elevadas estruturas da alma, se conservam analogi-
camente, modificando muito embora o seu sentido. A estas categorias per-
tence a vida, como existência num mundo próprio. Todas as formas de
vida realizam-se como uma determinação recíproca de mundo interior e
mundo circundante (von Uxkull). Um fenômeno constitutivamente originá-
rio da vida é viver no seu mundo próprio. Assim já a própria existência so-
mática não pode ser investigada adequadamente como um corpo anatô-
mico de funções fisiológicas num espaço qualquer. Só é possível investigá-
la de forma adequada como um modo de vida no seu ambiente, para o
qual foi construída e se realiza numa adaptação ao mundo de sua percep-
ção e de sua ação. Toda essa vida originária, na forma de existência com e
num mundo próprio, se mantém presente também no ser do homem, mas
é ampliada em suas dimensões através da estruturação e elaboração
conscientes do homem em seu mundo e, principalmente, pelo saber pró-
prio do homem de seu ser no mundo. No homem a vida se projeta para
outros mundos possíveis e para além de seu próprio ser no mundo. A in-
vestigação empírica dessa referência fundamental se deve voltar, cada vez
então, para as configurações particulares e com isso para as formas indivi-
duais da relação entre interior e exterior. Por exemplo:
• 1. Na redução fisiológica permanece uma relação entre estímulo
e reação, na redução fenomenológica, a relação intencional entre
eu e objeto (sujeito e objeto).
• 2. A vida individual se desenvolve a partir de predisposições e
meio (mundo ambiente), i.é., de potencialidades inatas que, de
acordo com a natureza do meio, despertam e se formam ou se
retraem e atrofiam. Disposição e meio atuam, em primeiro lugar,
no processo biológico extraconsciente. Tentaremos conhecê-lo
numa explicação causal. Numa dimensão ulterior, disposição e
meio se estruturam, de modo psicologicamente compreensível,
na vida consciente. Aqui um mundo ambiente, como também a
origem e as condições, variáveis de vida, determinam o homem e
são por ele apreendidos e determinados. Como natureza de um
processo de desenvolvimento, o indivíduo se contrapõe com suas
disposições ao meio com o qual entra numa relação de influência
recíproca e vive o destino, a ação e o sofrimento.
• 3. De modo especial, nasce do mundo ambiente a situação na
qual o indivíduo aproveita ou perde as oportunidades em que ele
se decide. Ele mesmo provoca as situações, determinando-lhes
ou impedindo-lhes a origem numa implicação compreensível.
Obedece a estruturas normativas, regras e convenções de um
mundo e, ao mesmo tempo, as transforma em meios com que as
viola. Por fim, deparam-se-lhe “situações-limites”, fronteiras in-
transponíveis da existência — a morte, o acaso, o sofrimento, a
culpa — onde se lhe pode despertar o que chamamos de existên-
cia: uma realidade de ser ele mesmo.
• 4. Cada um em seu mundo. Mas há um mundo objetivo, um
mundo universal para todos. Este mundo universal destina-se à
“consciência em geral”, em cuja participação reside a exatidão de
nossos pensamentos e de nossas opiniões. A consciência parti-
cular é setor da universal, da simplesmente possível. Apresenta-
lhe a concretização histórica bem como as ilusões e equívocos.
• 5. A alma se encontra em seu mundo e consigo produz um
mundo. No mundo ela se expressa para outros. Cria obras no
mundo.
Destarte, a relação fundamental entre interior e exterior se modifica
tão amplamente em diversas conotações de sentido que se trata na ver-
dade de realidades inteiramente heterogêneas. No entanto, permanece a
analogia de uma referência fundamental entre interior e exterior, do ser
num mundo que se mantém comum a toda forma de vida, a toda a vida
da alma e ao homem em todas as suas realizações.

e) A diferenciação da vida psíquica.


É a realidade psíquica mais desenvolvida que possibilita o conheci-
mento mais claro. O simples e o primitivo recebe a luz de sua inteligibili-
dade do complexo e desenvolvido, e não vice-versa. Por isso o pesquisador
procura os homens de cultura mais elevada e de maior riqueza d’alma. O
que é mais diferenciado, é mais raro. Todavia, o raro não é o curioso e sim,
como caso clássico, extremo e inteiramente desenvolvido, constitui preci-
samente o ponto de orientação do conhecimento. Os casos raros, e não os
exemplos de série, são os que, psicologicamente, esclarecem e explicam
também a grande quantidade dos casos triviais. A medida da diferenciação
da vida psíquica é um fato básico que atua em todas as manifestações e
fenômenos.
A distinção entre o que é frequente e o que é raro é de certo impor-
tante, especialmente para a perspectiva prática do tratamento. Pois os ca-
sos em grande quantidade são os que se impõem e devem, ser tratados.
Mas não são nem o evidente nem, como tal, o mais -necessário segundo as
leis da natureza nem o propriamente real. Uma outra questão é saber por
que uma coisa é rara e outra é frequente, por que, p. ex., os paranoicos do
tipo que Kraepelin define são tão extraordinariamente raros embora sejam
bem claros em suas manifestações; ou por que o tipo clássico de histeria
constituía um fenômeno frequente no ambiente de Charcort quando hoje
em dia mal se constata.
A vida psíquica, como todo, varia até à riqueza de desenvolvimento das
grandes personalidades. O mesmo haxixe, que num determinado indiví-
duo provoca uma euforia embotada, uma alegria ruidosa, num outro gera
uma vivência variada, lendária, bem-aventurada. Uma mesma enfermi-
dade, p.ex., a dementia praecox, em alguns indivíduos se caracteriza por
um pobre delírio de ciúme e ideias grosseiras de "perseguição, enquanto
em Strindberg, esses mesmos conteúdos se transformaram em rara pleni-
tude e o sentimento da vida assim modificado se fez uma fonte da origina-
lidade de suas criações poéticas. Toda doença psíquica corresponde, em
suas manifestações, ao nível psíquico do paciente.
Não apenas na riqueza de conteúdo como também na forma particular
do processo, os fenómenos psíquicos só são possíveis a partir de determi-
nado estágio de diferenciação. Assim, p. ex., as ideias obsessivas, os fenô-
menos de despersonalização só existem num grau de diferenciação relati-
vamente mais elevado. Ideias obsessivas, para as quais é necessário um
grau mais alto de consciência da própria vida psíquica, ainda não foram
observadas em crianças pequenas enquanto se apresentam frequentes em
indivíduos, no mais, diferenciados. A mesma coisa se verifica também
quanto ao grande complexo das queixas de inibição subjetiva: só apare-
cem em pessoas que se observam a si mesmas e são capazes dessa do-
ença.
Deve-se analisar o conceito de diferenciação.
• Em primeiro lugar, entende-se por diferenciação o aumento dos
modos de vivência qualitativa.
• Em segundo lugar, a decomposição de modos de vivência confu-
sos em vários outros claros em razão dos quais a totalidade da
vivência se torna mais rica e profunda: um fenômeno uniforme
de uma etapa inferior se analisa numa etapa superior; um im-
pulso vago é determinado por conteúdos; o aumento da análise
significa, ao mesmo tempo, aumento da clareza e consciência.
Pressentimentos, sentimentos, pensamentos indeterminados se
fazem claros, determinados e explícitos. Em oposição ao estado
indiferenciado de inocência, surgem na vida psíquica oposições
diversificadas.
• Com isso, a diferenciação indica, em terceiro lugar, a análise e
síntese da consciência objetiva. Crescem as possibilidades de
pensar, apreender e relacionar-se, de distinguir e comparar.
• Em quarto lugar, diferenciação significa ter consciência de si
mesmo na autorreflexão. Deve-se distinguir entre a diferenciação
de fato, vivida pelo sujeito mas que não precisa ser consciente, e
a consciência da diferenciação, que se mostra na auto-observa-
ção. Alguém pode ter — embora raramente — uma ideia obses-
siva sem tentar tirar a limpo o que propriamente experimenta.
Na maioria das vezes andam paralelas a diferenciação e a consci-
ência da própria vivência. Ainda assim, uma simples considera-
ção de todos os sentimentos indiferentemente possíveis pode dar
a impressão falsa de um aumento da diferenciação.
• Em quinto lugar, é decisivo para a compreensão de uma perso-
nalidade ter-se consciência do nível de diferenciação em que se
encontra. Uma vez que à diferenciação se acrescentam ainda a
força e vivacidade, existem diferenças de níveis no tocante ao
todo da personalidade. Foram essas diferenças que Klages expri-
miu em seu conceito de nível de forma. Aqui há um limite no que
se pode alcançar conceitualmente. E, não obstante, — pelo me-
nos se quisermos compreender personalidades — temos que nos
poder mover com certa segurança fora destes limites. Não só a
escrita mas também todo o comportamento e ação de uma pes-
soa só podem ser comparados individualmente com os de outra
quando, em ambos os casos, se trata do mesmo nível de forma.
Estas distinções não bastam para se ter uma visão realmente clara e
determinada do todo. Atualmente não é possível estabelecerem-se, com
suficiente fundamento, graus e direções de diferenciação bem como graus
e direções de degeneração para fenômenos psicopatológicos. Temos de nos
contentar ainda com o ponto de vista geral que nesse terreno existe.
Podemos, no entanto, distinguir duas causas de diferenciação. Uma re-
side na predisposição individual, a outra na esfera cultural.
Nos imbecis. as psicoses apresentam um modo de manifestação relati-
vamente pobre: as vivências são menos intensas e mais primitivas, as
ideias delirantes mal são sistematizadas e as formas particulares de ideias
delirantes não ocorrem de maneira alguma abaixo de determinado grau
(p.ex., delírio do pecado). As excitações e emoções se manifestam em gritos
e urros tão monótonos como desmedidos, apatia, e torpor embotado.
É a esfera cultural, onde uma pessoa cresce e vive, que leva sua dispo-
sição individual a um grau maior ou menor de desenvolvimento. O homem
vive da história, participando do espírito objetivo através do qual chega,
então, a encontrar a si mesmo no desenvolvimento individual. Os surdos-
mudos sem instrução mantêm-se ao nível de idiotas. O que só se tratará
na parte sociológica, já se acha de fato presente em todos os capítulos de
todos os fenômenos psíquicos. Assim observa-se — isso é evidente — que
esferas de cultura superior apresentam um quadro sintomático muito
mais rico de doenças psíquicas do que esferas de cultura inferior. Por isso
o progresso da psicopatologia, que frente aos animais é estéril, depende,
numa boa parte, do material que lhe advém das esferas de alta cultura.
Por esta razão os médicos de clínicas privadas possuem em seus pacientes
um material incomparavelmente mais valioso. Por outro lado, é conhecida
a monotonia da histeria nas pessoas simples.
Naturalmente despertam o nosso interesse tanto a vida psíquica -alta-
mente diferenciada como a menos diferenciada. Uma vez que a análise da
vida psíquica diferenciada será sempre o meio através do qual poder-se-ão
esclarecer também os graus mais inferiores, o interesse dos pesquisadores
oscila tipicamente em ambas as direções. Uns, dominados pela atitude
das ciências naturais, consideram o termo médio, os fenômenos em série,
como o objeto próprio das investigações. Outros desvalorizam não menos
unilateralmente tais estudos e fazem da vida psíquica altamente desenvol-
vida o único objeto de pesquisa. No setor artístico dos “romances psicoló-
gicos”, se impôs, de maneira análoga, a mesma mudança de atitude na
evolução dos romances de costume para os romances de caráter.

f) Visão retrospectiva.
Nas perspectivas acima expostas apresentamos horizontes em que se
nos manifesta a realidade psíquica. Comum a todas é o deslocamento de
sentido em razão do qual a oposição, que cada vez se tem em mente, as-
sume configurações múltiplas. A discussão das cinco perspectivas teve por
fim fazer com que desde o início se perceba a envergadura da realidade em
causa. Ao mesmo tempo, visou a deixar claro quão pouco se diz com me-
ras categorias gerais: onde elas se aplicam, o importante é ter-se consciên-
cia e ater-se ao sentido determinado de cada caso. Em razão de seu cará-
ter indeterminado, falar nessas categorias gerais nada diz na maioria das
vezes.

§ 3. Preconceitos E Pressuposições.

Sempre que compreendemos alguma coisa, já trouxemos o princípio


que possibilita e constitui nossa compreensão. Caso tal princípio falseie a
compreensão, falaremos de preconceito; caso a favoreça e promova, falare-
mos de pressuposição.
a) Preconceitos.
É um procedimento lógico de nossa autorreflexão crítica tomarmos
consciência do que, inconscientemente, já tínhamos pensado como evi-
dente. Entre outras, são fontes de preconceitos: a tendência para uma
concepção uniforme do todo. Trata-se de uma tendência, que se satisfaz
com ideias básicas simples e conclusivas, gerando com isso a inclinação
para absolutizar pontos de vista, métodos e categorias particulares, bem
como a confusão entre possibilidade do saber e convicção de fé.
Os preconceitos pesam sobre nós inconscientemente, mas com uma
pressão paralisante. Dissipá-los constituirá em todos os capítulos uma ta-
refa essencial. Aqui anteciparemos a caracterização de alguns deles numa
forma extremada. Assim conhecidos, serão também identificados nas ca-
muflagens em que frequentemente se nos deparam.
1. Preconceitos filosóficos.
Houve tempo em que a especulação, o pensamento dedutivo a partir de
um princípio, que pretendia conhecer e explicar tudo sem muita experiên-
cia, era mais valorizado do que a investigação trabalhosa de particularida-
des. Era o tempo em que a filosofia queria realizar “de cima” o que só a ex-
periência pode dar “de baixo”. Atualmente essa tendência parece em geral
ter desaparecido; todavia mesmo hoje ainda aparece aqui e acolá em cons-
truções complicadas. Seu espírito se acha envolto, embora se possa reco-
nhecê-lo claramente, na sistematização corriqueira da psicopatologia ge-
ral. Infelizmente alia- se, muitas vezes, à recusa justificada de construções
filosóficas infrutíferas, simplesmente dedutivas, o outro -preconceito,
como se só fosse justificado colecionar experiências particulares, como se
acumular cegamente fosse melhor do que pensar. O pensamento, que si-
tua os fatos, planifica o trabalho, subministra as perspectivas para uma
visão de conjunto e possibilita uma investigação apaixonada em busca de
fins científicos compensadores, perdeu muito da estima geral.
A atitude filosófica dedutiva aliou-se, na maioria das vezes, a valoriza-
ções éticas e de outra natureza, a uma tendência moralizante e teológica,
que falava de pecados e paixões, onde as doenças mentais se originariam,
e dividia as qualidades humanas em boas e más. Na primeira metade do
século XIX Maximiliano Jakobi criticou, arrasadoramente, em seus escri-
tos, essa “filosofia no lugar errado”. Embora uma tal filosofia de concepção
de mundo tenha a maior importância, como expressão da atitude humana
frente ao mundo, não há lugar para ela na ciência. Entre concepções de
mundo, muitas vezes, só é possível uma luta sem discussão pelo poder.
Entre concepções científicas, porém, é sempre possível tanto discussão
como convicção. É, sem dúvida, difícil manter a psicologia e psicopatologia
livres de avaliações, expressivas de uma concepção de mundo. Todavia,
deve-se exigir de todo psicopatologista a separação entre conhecer e ava-
liar eticamente. Não que lhe seja vedado, como homem, emitir juízos de
valor. Ao contrário. Mas ele poderá valorar tanto mais verdadeira, clara e
profundamente quanto melhor conhecer. Necessita primeiro de se apro-
fundar tranquilamente nos fatos da vida psíquica sem tomar logo posição.
Deve poder encontrar-se livremente com as pessoas com um interesse sem
restrições nem julgamentos. Essa separação entre conhecer e valorar é,
em princípio, fácil de se compreender. Na prática, porém, requer um grau
tão elevado de autocrítica e objetividade que ainda está muito longe de ser
algo natural.
2. Preconceito teórico.
As ciências naturais se fundam em teorias amplas, bem fundamenta-
das que subministram à compreensão dos fatos uma base uniforme. A te-
oria atômica e a citologia são deste tipo. Na psicologia e psicopatologia não
há nenhuma teoria dominante dessa natureza. Por isso, em ambas, não é
possível um sistema teórico uniforme — ao menos só é possível como
construção pessoal. Ao invés de descer aos últimos elementos, mecanis-
mos e regras, a partir dos quais deve ser compreendido todo processo psí-
quico, seguimos apenas caminhos particulares, trabalhamos com métodos
particulares que nos apresentam apenas aspectos particulares da vida
psíquica. Em si mesma, esta não se nos defronta apenas como um todo
infinito, mas também como um todo que resiste a qualquer sistematização
consequente, como um oceano, que navegamos ao longo da costa e só
aqui e ali pelo alto mar e mesmo assim sempre na superfície.
Querer reduzir a vida psíquica a alguns axiomas universais e assim
dominá-la em princípio é um falso propósito, por ser impossível. As ideias
teóricas de que fazemos uso e que possuem uma semelhança formal com
as teorias das ciências naturais não são senão tentativas (hipóteses) para
fins de conhecimentos bem delimitados e não para o conhecimento da
alma no seu todo.
Um preconceito teórico prejudicará sempre a compreensão dos fatos.
Ver-se-ão sempre os dados estabelecidos dentro do esquema da teoria. Só
interessa o que tem valor para ela e a confirma. Não se percebe o que não
se relacionar com a teoria. O que depõe contra ela é transformado ou en-
coberto. Vê-se a realidade com os olhos da teoria. Será, portanto, nossa
tarefa constante aprender a abstrair sempre dos preconceitos teóricos, que
sempre atuam em nós, exercitar-nos em colher puramente os dados. Uma
vez que, porém, todo dado só pode ser percebido por força de determina-
das categorias e métodos, deve-se ter consciência a respeito de todo dado
do que se pressupôs segundo a natureza da coisa, do que “em todo dado
já é teoria”. Assim aprendemos a ver as realidades e, ao fazê-lo, saber que
elas nunca são a realidade em si nem de forma alguma toda a realidade.
3. Preconceito somático.
Pressupõe-se tacitamente que, como tudo que é biológico, a realidade
própria do homem é um processo somático. Conhece-se o homem quando
se conhece somaticamente. Falar do psíquico é um recurso provisório e
significa apenas um sucedâneo sem va7or próprio de conhecimento. Por
isso, existe a inclinação de se discutir todo fenômeno psíquico como se no
somático já se tivesse em mãos a própria coisa ou como se as ideias atuais
fossem um caminho para se chegar à descoberta somática bem próxima.
A investigação verdadeira constrói apenas projetos, que, através de acha-
dos somáticos, logo dão ensejo a investigações, verificações ou refutações
de fatos. No preconceito somático, no entanto, se valoriza a fantasia, como
uma antecipação pretensamente heurística, que, na realidade, não é se-
não a expressão incômoda de um preconceito sem valor de conhecimento.
Ou, ao menos, mantém-se o preconceito na forma de uma disposição re-
signada em toda consideração psicológica, p. ex., na pretensão de que
todo interesse psicológico pela esquizofrenia desaparecerá quando se tiver
conhecido o processo somático, que lhe serve de base.
O preconceito somático retorna sempre de novo, seja revestindo-se de
aspecto mais fisiológico ou anatômico ou de um aspecto indeterminada-
mente biológico. No princípio deste século assim se dizia: como tal, o psí-
quico não deve ser investigado. É simplesmente subjetivo. Na medida em
que se tiver de falar dele cientificamente, deve ser representado de modo
anatômico e corporal, como função somática. Nesse sentido é sempre me-
lhor dispor-se de uma construção anatômica provisória do que de uma
simples investigação psicológica. — Todavia essas construções anatômicas
se fizeram inteiramente fantásticas (Meynert, Wernicke) e foram chama-
das, com razão, de “mitologia do cérebro". Coisas, que não têm nenhuma
relação uma com a outra, tais como células dó córtex e imagens da memó-
ria, cordões cerebrais e associações psicológicas, são agrupadas. Estas
construções somáticas são destituídas de fundamento. Não se conhece ne-
nhum processo cerebral determinada que se ligasse a um determinado
processo psíquico, como manifestação paralela direta. A localização das di-
versas regiões dos sentidos no córtex cerebral, das afasias no hemisfério
esquerdo, significa apenas que estes órgãos devem estar intactos para ser
possível um determinado processo psíquico: e, em princípio, no mesmo
sentido em que o intacto funcionamento do olho, dos mecanismos moto-
res, etc., são também instrumentos necessários. Nos mecanismos neuroló-
gicos já se progrediu mais. Todavia, ainda nos encontramos infinitamente
distantes dos fenômenos que, eventualmente, possuem paralelo na vida
psíquica. De modo totalmente errôneo admitiu-se que, com a descoberta
das afasias e apraxias, se tinha entrado no domínio do psíquico em si. Por
conseguinte, não se pode resolver de maneira empírica a questão se o psí-
quico e o somático se acham num paralelismo ou numa relação de in-
fluência recíproca. Não conhecemos um único caso em que pudéssemos
constatar empiricamente uma ou outra coisa. É que o psíquico e os fenô-
menos somáticos a nós accessíveis, — na medida em que ambos se to-
mam objetos de investigação — estão separados por um setor infindo dos
processos intermediários desconhecidos. Na prática pode-se falar tanto a
linguagem do paralelismo como a da ação recíproca. De fato, na maioria
das vezes, falamos a linguagem da ação recíproca. E o podemos tanto
mais quanto, a cada instante, se pode traduzir uma pela outra. No entanto
quanto à tendência de se traduzirem fenômenos psicológicos por proces-
sos somáticos, de natureza fantástica ou real, aplica-se com razão o que
Janet diz: se sé tiver de pensar sempre anatomicamente, deve-se renun-
ciar a pensar alguma coisa quando se trata de psiquiatria.
4. Preconceito psicológico e intelectualista.
Não raro se forma da compreensão intuitiva um preconceito psicoló-
gico. Pretende-se “compreender” tudo e perde-se o senso crítico dos limites
daquilo que é psicologicamente compreensível. Isso ocorre quando se
aplica a psicologia compreensiva, como explicação causal, supondo-se que
toda vivência é universalmente determinada por um sentido. Mas, de
modo especial, são os não psicólogos e que defendem uma posição somá-
tica que se inclinam a tais preconceitos. Assim, é a má vontade, o querer
esconder-se que se deve responsabilizar por muitas coisas. Em última
análise, essa concepção não se funda na psicologia e sim em preconceitos
moralistas não analisados. Muitos médicos somáticos apresentam uma
acentuada má vontade contra os histéricos. Tornam-se intimamente irrita-
dos quando não podem encontrar nada de somático segundo as categorias
que lhes são familiares. No fundo, consideram tudo como maldade e só
quando o caso se torna agudo é que o entregam ao psiquiatra! Precisa-
mente naqueles que nada querem saber de psicologia, encontra-se a sim-
plicidade e naturalidade dos fatores psicológicos.
Há na vida psíquica contextos em que alguém age conscientemente por
motivos racionais. Existe uma tendência espalhada de se admitir em toda
a ação humana, como motivo, “razões conscientes”. Na realidade, anexos
racionalmente inteligíveis desempenham apenas um papel modesto na
vida psíquica humana. Impulsos irracionais e estados emotivos costumam
também dominar mesmo quando o indivíduo procura fazer crer a si
mesmo que age por razões conscientes e compreensíveis. O exagero na
procura de nexos racionais, esta “psicologia intelectualista”, impede a
compreensão correta do contexto da ação humana. Exorbitam-se os efei-
tos do raciocínio lógico em prejuízo da persuasão sugestiva. Recorre-se
apressadamente à constatação de “demência” quando se encontra algo ir-
racional. Não se consegue ver a riqueza infinita da vivência humana.
5. Preconceito representativo.
O psíquico se nos torna objetivo na expressão e na obra, no comporta-
mento e na ação, nos processos somáticos e nas manifestações verbais.
Todavia,' não se pode perceber objetivamente o psíquico em si mesmo se-
não em imagens e comparações. Nós o vivemos e realizamos, o representa-
mos mas não o vemos. Ao falarmos do psíquico usamos sempre imagens,
na maioria das vezes imagens espaciais. Assim, no pensamento psicoló-
gico correm, por assim dizer, esquemas psíquicos e das espécies mais di-
versas: a vida psíquica é uma corrente de consciência. — A consciência é
como um espaço no qual fenômenos psíquicos particulares vão e vêm
como figuras num palco. — O espaço se perde no infinito até desaparecer
no inconsciente. — A alma acha-se estruturada em dimensões, nas di-
mensões de consciência, vivência, funções, caráter. — Consta de elemen-
tos que se combinam e ligam variavelmente. — É movida por forças ele-
mentares, pode-se analisá-la em fatores ou componentes, é para ser des-
crita segundo propriedades, como uma coisa. — Destes recursos não se
pode prescindir. E não farão mal algum se não forem utilizados para pro-
var alguma coisa mas apenas para tornar mais facilmente apreensível o
que, de outra maneira se conseguiu estabelecer. No entanto, ocorreu com
frequência que a imagem foi esquecida como imagem e tomada por cons-
trução válida, apoderando-se, assim, de toda a vida psíquica e tornando-
se preconceito. Quanto mais era sugestiva e dava a impressão de uma ex-
posição completa, tanto mais dominava os espíritos. Destarte a análise do
psíquico em elementos à maneira de átomos, a representação dos proces-
sos psíquicos por analogia com o movimento dos corpos (mecânica da re-
presentação) ou das combinações psíquicas segundo as combinações quí-
micas (química psíquica) valeram por algum tempo não como imagens e
comparações, e sim como representações objetivas da própria realidade.
Também em outros setores existe a tendência de se fazerem das imagens
“preconceitos representativos”.
6. Preconceitos médicos, referentes à quantidade, à perceptibili-
dade e ao diagnóstico.
Das ciências exatas da natureza provém o preconceito de que apenas
constatações quantitativas são investigações científicas enquanto as inves-
tigações do simplesmente qualitativo permanecem sempre subjetivas e ar-
bitrárias. Para tal concepção, os métodos estatísticos e experimentais, que
por meio de medições, cálculos e curvas, se mostram produtivos em certas
questões, constituem a única forma de pesquisa científica. Onde estas in-
vestigações diretas não são possíveis, ainda aí se trabalha com conceitos
quantitativos, embora, com eles, já não se possa pensar mais nada. As-
sim, em construções que se pretendiam ser sérias, fez-se, com o correr do
tempo, da “intensidade” da representação a causa de ideias obsessivas, de
fenômenos histéricos, de ideias delirantes e de ilusões dos sentidos, “pro-
jetando-se para fora” representações muito intensas.
Só se queria admitir como objeto de investigação o que se pudesse per-
ceber com os sentidos. De fato, são muito valiosas as investigações dos fe-
nômenos do rendimento e da produção somática. Não obstante, só se pode
chegar ao psíquico, representando-o diretamente. Pois é sempre algo qua-
litativamente específico. Exceto na expressão, nunca se pode percebê-lo de
maneira diretamente sensível. Isso é evidente. Essa evidência traz como
consequência que toda psicopatologia, desejosa de ater-se exclusivamente
ao que é accessível aos sentidos, será necessariamente uma psicologia
sem o psíquico.
O diagnóstico é a última coisa na compreensão psiquiátrica de um
caso. (Abstraindo-se do diagnóstico dos conhecidos processos cerebrais); é
o que há de menos essencial no trabalho realmente psicopatológico.
Transformado no principal, torna-se uma antecipação de algo que se acha
no fim ideal da investigação. O importante são a análise e o fato de não se
eliminar, para o conhecimento, o caos dos fenômenos por meio de um
nome dado no diagnóstico. Urge, ao contrário, torná-lo acessível a uma vi-
são global e transparente no contexto de seus múltiplos nexos. Muitas ve-
zes em psiquiatria, diagnosticar equivale a girar esterilmente em círculos
onde só muito poucos fenômenos entram no campo de visão de um saber
consciente.

b) Pressuposições.
Em oposição aos preconceitos, devem-se manter a tarefa e o esforço de
se conhecer a realidade da vida psíquica por todos os meios e de todos os
lados. A inclinação para a realidade, própria de todo pesquisador das ciên-
cias empíricas, exige, nas partes somáticas da psiquiatria, dados histológi-
cos, serológicos, neurológicos. Rejeita construções anatômicas e pensa-
mentos sobre simples possibilidades. Na psicopatologia, o fundamento real
da investigação é constituído pela vida psíquica, representada e compreen-
dida através das expressões verbais e do comportamento perceptível. Que-
remos sentir, apreender e refletir sobre o que realmente acontece na alma
do homem. A inclinação geral para a realidade é, na psicopatologia, a incli-
nação para a vida psíquica real. Pretendemos conhecê-la em suas cone-
xões que, em parte, são tão sensivelmente perceptíveis como os objetos
das ciências naturais. Recusamo-nos a eliminar a vida psíquica real, cuja
compreensão confere plenitude a nossos conceitos, por meio de pensa-
mentos vazios oriundos de preconceitos ou a substituí-la por construções
de natureza anatômica ou de outra espécie qualquer. Sem a capacidade e
a vontade de se representar o psíquico em sua plenitude, não há possibili-
dade de se fazer psicopatologia.
O pesquisador, porém, não se faz pesquisador pelo simples fato de ser
um intelecto, que, como um receptáculo vazio, recolheria de fora tudo que
pudesse colher. Ao contrário, o pesquisador é um instrumento indispensá-
vel de conhecimento com toda a sua vida. Deve haver nele pressuposições,
sem as quais a investigação permaneceria estéril. Temos de esclarecer pre-
conceitos a fim de nos libertarmos deles, enquanto as pressuposições ne-
cessárias temos de compreendê-las. São elas: ou princípios objetivos do
pensamento, que por meio de tentativas devemos elaborar, ou são funda-
mentos em nós mesmos, movimentos provenientes dos conteúdos de
nosso próprio ser, sem os quais não poderemos ver nada de essencial.
Tais pressuposições são as ideias motrizes, a alma e a existência do pes-
quisador. Devem ser aprofundadas e esclarecidas. É necessário admiti-las.
Nunca constituem as razões da exatidão de um conhecimento, mas a ori-
gem de sua verdade e de seu caráter essencial.
Preconceitos falsos são pressuposições fixas que, erroneamente se con-
sideram absolutas, que mal se percebem e não são conscientes. O esclare-
cimento as elimina. Pressuposições verdadeiras residem. no ser do pesqui-
sador como condições de sua possibilidade de ver e compreender. Pela ex-
plicitação são apreendidas em si mesmas.
O que há de mais próprio no conhecimento do psicopatologista, advém
do trato com as pessoas. O que, então, aprende, depende do modo com
que ele se relaciona na respectiva situação e da maneira com que colabora
terapeuticamente no processo de encontro, esclarecendo, ao mesmo
tempo, a si mesmo e o outro. Não percebe indiferentemente como na lei-
tura de um dado. Exerce uma compreensão perceptiva na visão da alma.
Há um modo de estar presente no interior das outras pessoas que, por
assim dizer, consiste numa tentativa de transformar a si mesmo numa es-
pécie de arte de representação, mas carregada de substância. Há um
modo de relacionar-se que se entrega e escuta sem violência, mas também
sem desviar-se da realidade.
O psicopatologista depende do alcance, da abertura e plenitude de sua
capacidade de vivenciar e perceber. Há uma grande diferença entre as pes-
soas que andam cegas de olhos abertos pelo mundo dos doentes e a segu-
rança que a sensibilidade da participação confere a uma percepção clara.
A repercussão na própria alma do que acontece no outro, exige, então,
do pesquisador que objetive pelo pensamento suas experiências. Comover-
se ainda não é conhecer, mas apenas a fonte das intuições que trazem o
material indispensável ao conhecimento.
Frieza e empatia não se devem opor e sim completar uma a outra. So-
mente a observação fria não vê o essencial. Ambas numa ação recíproca é
que podem conduzir ao conhecimento. O psicopatologista que realmente
percebe, é uma alma vibrante, que domina constantemente suas experiên-
cias, elaborando-as racionalmente.
Diante do objeto, a crítica dos fundamentos de conhecimento existen-
tes no ser do pesquisador pergunta sempre: Com que disposição apreende
o objeto? Possui ele uma importância falsa ou verdadeira, em essência e
peso, para a compreensão da realidade? O que faço com ele? Como atua
em minha consciência do ser? Trabalhar a essência de si mesmo é neces-
sário para quem conhece. Só um conhecimento em que amadurece aquele
que conhece, é completo. Um tal conhecimento consegue crescer e não
apenas alargar-se no mesmo nível.
O pesquisador e o médico devem construir para si um mundo de con-
cepções. A recordação de quadros clínicos já vistos, de estados mórbidos
concretos, de visões biológicas globais, de experiências essenciais, numa
palavra toda a história de suas vivências pessoais deve achar-se à sua dis-
posição como objeto de comparação. Ademais, uma conceituação estrutu-
rada lhe há de possibilitar a compreensão clara do que pretende.

§ 4. Métodos

Quando se lê a bibliografia psiquiátrica, encontram-se muitos discur-


sos sobre possibilidades, muita coisa abstrata, muitas construções feitas
de imaginação sem o conteúdo de uma experiência verdadeira. Por isso,
no estudo dos trabalhos publicados como na própria investigação, temos
sempre de perguntar: qual é o acervo de fatos? O que tenho para ver?
Quais são os resultados de que se parte ou que já foram estabelecidos?
Como se interpreta e o que se acrescenta? Que experiência devo realizar
para poder seguir devidamente o pensamento? Face a pensamentos po-
bres de experiência deve-se perguntar se não são de se recusar por serem
vazios. É necessário que os pensamentos permitam novos resultados ou
que apresentem, de maneira mais' pregnante, resultados já dados ou que
os relacione de forma mais produtiva. O mais possível, não se deve perder
tempo procurando esclarecer querelas sobre pensamentos e projetos sem
seriedade. Para isso servem a reflexão e a clareza metodológica. Possibili-
tam apreender consciente e determinadamente o tema de cada caso. Ensi-
nam a ver os limites entre a investigação empírica, de um lado, e, de ou-
tro, os esforços vazios, as repetições indiferentes, as compilações sem es-
trutura.
Todo progresso no conhecimento dos fatos é sempre um progresso no
método. Muitas vezes, mas não sempre, o método é consciente. Nem todos
os grandes passos do conhecimento foram dados, a priori, com evidência
de método. Todavia, esta evidência purifica e assegura o que se adquiriu
em fatos.
O objeto da investigação metodológica é sempre um objeto definido e
não a realidade no seu todo. É algo de particular, um aspecto ou uma
perspectiva e não o processo em sua totalidade.
a) Métodos técnicos.
O objeto, que temos a investigar, nos é acessível nas clínicas, nas en-
trevistas, nos institutos, nas coleções, nos relatórios, nas instalações téc-
nicas de investigação. Nossa pesquisa depende dos pontos de enfoque que
se descobriram nos fatos. A descoberta consiste muitas vezes na indicação
de algo que se possa observar. O primeiro que contou os casos de suicídio
e, ao mesmo tempo, estabeleceu cifras comparativas (populações, estações
do ano), realizou uma descoberta, embora, a princípio, tenha encontrado
apenas um método técnico. O importante é observar alguma coisa que, até
aqui, não foi observado. É dirigir o olhar para possibilidades em que se
possam apreender tecnicamente os fatos.
1. Casuística.
A base da investigação são as entrevistas dos enfermos, a análise em
profundidade de sua conduta, de seus movimentos expressivos, de seus
relatos.
Além disso procuramos obter todo o material que nos proporcione indi-
cações sobre o estado atual e todo o passado na medida em que tudo isso
possa ser conseguido com referência ao caso particular: descrições do pró-
prio paciente, anamnese feita por ele ou parente, atas surgidas de confli-
tos com autoridade, atas pessoais, informes junto a conhecidos, superio-
res etc.
A base experimental da psicopatologia é constituída de casos singula-
res. A descrição desses casos e do histórico dos pacientes — desde a expo-
sição de fenômenos particulares até uma biografia completa — é a casuís-
tica. Os métodos casuísticos proporcionam a grande maioria de nossos co-
nhecimentos e de nossas concepções.
Além desses meios sempre usados e facilmente compreensíveis, a psi-
copatologia desenvolveu ainda métodos especiais, menos apropriados para
uma investigação regular, mas próprios para a pesquisa de contextos. São
os métodos estatístico e experimental.
2. Estatística.
Os métodos estatísticos foram utilizados pela primeira vez com uma
aplicação de técnicas sociológicas a problemas psicopatológicos. São úteis
aqui as estatísticas criminais, de suicídio etc. A seguir mostraram-se pro-
veitosas em questões particulares de psiquiatria especial os cálculos: du-
ração da paralisia, distância entre a infecção luética e o desencadeamento
da paralisia, idade dos doentes e início de suas psicoses específicas, cur-
vas anuais das entradas hospitalares. Por fim, a estatística adquiriu uma
importância excepcional na investigação da hereditariedade e no cálculo
de correlações na caracterologia, nas teorias de capacidade e dos tipos de
constituição física. A inclinação das ciências naturais para o exato, permi-
tiu também na psicopatologia calcular e medir o que parece calculável e
mensurável.
Os métodos estatísticos incluem em si mesmos um grande problema. A
esse respeito apenas algumas observações:
aa) Os resultados estatísticos nunca indicam, com referência aos casos
particulares, algo de constringente e só no máximo provável (na maioria
das vezes, de índice médio). Não se pode subsumir o caso particular sob o
conhecimento estatístico. Pelo fato de se conhecei o percentual de mortali-
dade de uma operação, ainda não se sabe como ela vai decorrer num caso
particular. Embora se reconheça a correlação entre o tipo de constituição
física e a psicose, não se pode saber num caso particular se o tipo de
constituição possui o mesmo significado. Os casos particulares podem fi-
car inteiramente à margem de um conhecimento estatístico.
bb) De início, o decisivo é a clareza do material de onde se parte. O que
não for. preciso e capaz de ser reconhecido, de maneira idêntica por. todo
pesquisador, não pode ser racionalmente computado. Um procedimento
exato construído com base em pressuposições inexatas leva aos maiores
equívocos.
cc) Onde, além do sentido imediato dos números, se utilizam métodos
matemáticos para a sua elaboração, é necessário um grau mais elevado de
crítica e de conhecimento matemático para se conservarem claros a trans-
parência dos caminhos seguidos e o sentido dos resultados e, assim, não
se cair no terreno fantasmagórico de aparentes resultados matemáticos.
dd) Constatações estatísticas possibilitam estabelecer correlações mas
de per si não significam um conhecimento causal. São indicações de pos-
sibilidades que requerem interpretação. A interpretação causal necessita
de pressuposições (teorias) com as quais se teste sua exatidão. Nestas in-
terpretações o perigo de erro é sempre tanto maior quanto mais cresce o
número das pressuposições. É preciso reconhecer quando se chegou ao li-
mite em que, dentro das suposições feitas, todo caso deve ser interpretado
por dados numéricos, em que já nenhum caso pode refutar a teoria. Ê que
os fatores admitidos não excluem nada do alcance de suas combinações
possíveis, transformando, por meio de operações matemáticas, qualquer
resultado numa confirmação da teoria, assim, p. ex., na periodicidade dos
fatos da vida construída por Friess e em sua ulterior elaboração. Mas
mesmo tratando-se de números comparativos simples, há o perigo de er-
ros de interpretação, muitas vezes, difíceis de constatar. Justamente a im-
pressão dos números quase sempre vigorosa não deve fazer esquecer a ad-
vertência, que, de uma forma exagerada, lembra: com números pode-se
provar tudo.
3. O experimento.
Durante um largo tempo, os métodos experimentais ocuparam na psi-
copatologia o centro do interesse. Distinguia-se a psicopatologia experi-
mental das demais, como o setor propriamente científico da psicopatolo-
gia. Esta distinção tem que nos parecer errônea. Em certas circunstâncias
os experimentos são meios úteis e valiosos, mas o ideal do conhecimento
não pode ser estabelecer resultados experimentais. O psicopatologista só
pode fazer bons experimentos se tiver formação psicológica, se souber per-
guntar e avaliar as respostas obtidas. A formação meramente experimen-
tal é uma habilidade técnica que não confere nenhuma capacidade para o
trabalho psicológico. É por isso que na psicopatologia se produziram tan-
tos trabalhos pseudo-experimentais. Constroem-se alguns experimentos
complicados, que produzem alguns números mas que nada ensinam, por
lhes faltarem qualquer perspectiva e toda ideia. Nas brilhantes investiga-
ções de Kraepelin sobre a curva de trabalho, nas medições da memória,
nas experiências de associação, reprodução e outras, se realizam contri-
buições valiosas. Se, de resto, se comparam os conhecimentos da psico-
patologia em geral com os resultados experimentais, será, muitas vezes,
difícil contradizer Mõbius, que escreveu: “Todo resultado é, numa expres-
são grosseira, porcaria”.
Por toda parte surge a questão: até onde, metodologicamente, se con-
segue obter com clareza, do fluxo infindo e obscuro da realidade, algo de-
terminado; até onde se podem construir gráficos, obter cifras, curvas, es-
quemas e imagens, numa palavra, representar figuras nas quais o real ve-
nha a ser concebido e articulado. A descoberta de uma técnica, que torne
possível a apreensão de fatos, de sorte que sempre possam ser reconheci-
dos de maneira idêntica, constitui sempre -o ponto de partida de novas
pesquisas.
Métodos técnicos de investigação — experimentos, medições, cálculos
— proporcionam, muitas vezes, ao pesquisador observações esporádicas
em doentes. Por isso tais processos são úteis e impressionam, embora seja
precário o seu significado específico. Testes de inteligência revelam situa-
ções de observação que demonstram mm comportamento interessante do
paciente que não consta do protocolo objetivo. Medições da constituição fí-
sica oferecem oportunidade de se analisar profundamente a forma do
corpo, encará-lo de todos os modos sem que os números tenham impor-
tância. Mas seria uma falsa avaliação deste método confundir seu sentido
objetivo com o que se percebe por ocasião de sua aplicação.

b) Métodos lógico-concretos de apreensão e pesquisa.


Na prática do conhecimento necessitamos de vários métodos simulta-
neamente. Na reflexão científica os separamos e com eles as classes fun-
damentais dos conteúdos de conhecimento. Escolhemos a divisão de três
grandes grupos: apreensão dos fatos particulares, a investigação das rela-
ções, a percepção das totalidades.
1. Apreensão dos fatos particulares.
Os fatos particulares provêm do fluxo vivo da realidade psíquica. Os
inúmeros fatos particulares se classificam em alguns grupos fundamental-
mente distintos, de acordo com o método de apreensão:
aa) O primeiro passo para a apreensão científica do psíquico é separar,
delimitar, distinguir e descrever determinados fenômenos vividos, que as-
sim são representados claramente e designados regularmente por uma de-
terminada expressão. Destarte descrevemos as espécies de ilusões, de vi-
vências delirantes, de processos obsessivos, os tipos de consciência de
personalidade, de impulsos etc. Abstraímos aqui totalmente da origem dos
fenômenos, da diferenciação dos fenômenos psíquicos, das ideias teóricas
sobre seus fundamentos e nos voltamos exclusivamente para o realmente
vivido. A representação das vivências e dos estados psíquicos, a sua deli-
mitação e estabelecimento, de sorte a poder-se entender os conceitos,
sempre da mesma maneira, é tarefa da fenomenologia.
bb) O que se apresenta na fenomenologia, só o sabemos in- direta-
mente pelas descrições próprias dos pacientes, entendidas por analogia
com nossas vivências. Tais fenômenos são denominados. subjetivos, em
oposição aos objetivos, que podem ser demonstrados diretamente em sua
existência. Os fenômenos objetivos, nós os percebemos mas segundo mo-
dos fundamentalmente diversos: como manifestações somáticas concomi-
tantes, p.ex., o ritmo do pulso nas excitações, o aumento da pupila no
medo; como expressão, p.ex., no semblante triste ou alegre; como rendi-
mento, p.ex., índice de memória, rendimento de trabalho; como ação,
comportamento; como obra realizada na linguagem e na arte. Todas essas
objetividades respondem à questão sobre os tipos fundamentais de fatos
objetivos na vida psíquica.
A distinção muito usada entre fatos subjetivos (vividos diretamente pe-
los pacientes e representados apenas indiretamente pelo observador) e fa-
tos objetivos (demonstráveis diretamente como perceptíveis no inundo)
não é uma distinção precisa. Pois múltiplo é o sentido da objetividade. O
sentido não é o mesmo na pulsação, no rendimento da memória, na mí-
mica inteligível. São as seguintes as significações que assume a oposição
entre subjetivo e objetivo:
• l.° Objetivo é tudo que aparece de modo sensivelmente perceptí-
vel: reflexos, movimentos registráveis, ações, modo de vida etc.,
todos os rendimentos mensuráveis, como trabalho, memória,
etc. Subjetivo é tudo- que se apreende, transpondo-se para den-
tro do psíquico, representando-o.
• 2° Objetivos são os conteúdos racionais, por exemplo, de ideias
delirantes, que se entendem sem transferência para o psíquico,
pela simples reflexão sobre seu conteúdo, i.é., racionalmente.
Subjetivo é o propriamente psíquico que se apreende através de
empatia e convivência, p. ex., a vivência delirante originária.
• 3.° Por fim chama-se de objetiva uma parte do que há pouco era
subjetivo: o psíquico apreendido através de uma empatia imedi-
ata dos movimentos de expressão. Assim, p. ex., o medo de um
paciente, em contraposição é subjetivo porque sabemos mediata-
mente através de suas afirmações. Assim, quando um doente,
que objetivamente não demonstra nenhum medo, nos diz estar
com medo.
• 4.° Há o fato singular de termos vivências psíquicas sem saber-
mos o seu modo. Quando um doente fica inibido, o que constata-
mos objetivamente na lentidão das reações ou subjetivamente
por empatia, ele não precisa ter subjetivamente consciência
disso. Quanto mais indiferenciada for uma vida psíquica, tanto
menos será subjetivamente consciente. Assim temos as oposi-
ções entre inibição objetiva e subjetiva, entre fuga de ideias obje-
tiva e a “obsessão, de pensamento”, sentida subjetivamente (de
uma troca de ideias sentida sem ordem nem descanso).
• 5.° Enquanto todos os fenômenos até aqui indicados, pertencen-
tes ao aspecto subjetivo tanto como os objetivos são temas de in-
vestigação científica, existe ainda um último sentido da oposição
entre objetivo e subjetivo, p. ex., quando se diz que sintomas ob-
jetivos são dados verificáveis e discutíveis e sintomas subjetivos
são dados não verificáveis nem discutíveis mas vagos e baseados
apenas em impressões sem fundamento, em caprichos pura-
mente pessoais.
2. Investigação das relações (compreender e explicar).
A fenomenologia nos põe em mãos uma série de fragmentos do psí-
quico realmente vivido. A psicologia funcional, a psicologia somática, a
psicologia da expressão, as ações e os mundos dos pacientes com suas
produções mentais apresentam cada vez um outro tipo de fatos. Pergunta-
mos então pelo contexto em que eles se encontram. Em muitos casos en-
tendemos como algo de psíquico procede com evidência do psíquico. Desta
maneira, somente possível ao psíquico, entendemos quando alguém se en-
furece ao ser atacado, quando o amante enganado se torna ciumento,
quando uma decisão e uma ação nascem de motivos. Na fenomenologia
nos apresentamos qualidades particulares, estados particulares vistos em
repouso, compreendemos esteticamente, enquanto aqui apreendemos a
inquietação do psíquico, o movimento; o contexto, uma diferenciação,
compreendemos geneticamente (psicopatologia compreensiva). Mas não
apenas os fenômenos vivenciados subjetivamente e sim também o psí-
quico visto imediatamente na expressão, o funcionamento e as manifesta-
ções, as ações e o mundo dos pacientes — tudo isso, que antes percebe-
mos esteticamente, agora compreendemos em seu contexto genético.
Dentro do sentido amplo de “compreensão”, distinguimos, inclusive
terminologicamente dois significados diversos, como compreensão estática
e genética. Nos capítulos sobre fenomenologia, psicologia da expressão etc.
seguiremos a compreensão estática, o apresentar-se de estados psíquicos,
o dar-se de qualidades psíquicas. A compreensão genética, a empatia, a
compreensão dos contextos psíquicos, do diferenciar-se psíquico é a tarefa
da segunda parte do livro. Só acrescentamos as palavras, “estático” e “ge-
nético” à palavra compreensão, quando o contexto exigir que se. acentue a
distinção para evitar mal-entendidos. Do contrário, “compreender” signi-
fica, já de per si só, de acordo com o contexto de um capítulo, a compreen-
são genética; no outro capítulo, apenas a compreensão estática.
Todavia, a compreensão genética — também se denomina de explica-
ção psicológica, contraposta com razão, como essencialmente diferente, à
explicação causal, objetiva, explicação em sentido próprio — depara-se
logo com limites, especialmente na psicopatologia. O psíquico surge como
algo novo, de um modo, para nós, inteiramente desconhecido. O psíquico
segue o psíquico de uma maneira incompreensível. Um segue o outro, mas
um não procede do outro. As etapas de evolução na vida psíquica normal,
as fases e os períodos da anormal são estas sequências temporais incom-
preensíveis. O corte temporal em longitude do psíquico não se pode com-
preendê-lo geneticamente, de modo mais completo. Deve ser explicado
causalmente, como os objetos das ciências naturais, que, em oposição aos
psicológicos, não se consideram “de dentro”, mas simplesmente “de fora”.
A fim de evitar confusões, empregamos sempre a expressão, “compre-
ender” para indicar a intuição do psíquico adquirida por dentro. Ô conhe-
cimento de conexões causais objetivas, que sempre são vistas de fora,
nunca chamaremos de compreensão mas sempre de “explicação”. Com-
preender e explicar possuem, portanto, um significado fixo que, no decor-
rer da leitura, tornar-se-á cada vez mais claro com o ampliar-se dos por-
menores. A palavra “apreender”, ao contrário, usaremos em sentido inde-
terminado para indicar ambas as coisas (nos casos duvidosos ou quando
se têm em mente tanto a compreensão como a explicação). A possibilidade
de um estudo ordenado e de uma investigação clara na psicopatologia de-
pende da capacidade de se ver a oposição fundamental entre compreensão
estática e percepção sensível externa, entre compreensão genética e expli-
cação causal. Trata-se das últimas fontes do conhecimento, inteiramente
diversas.
Há pesquisadores, que possuem a tendência de negar a existência para
a ciência das fontes de conhecimento propriamente psicológicas, que só
querem admitir como “objetivo” o que, como tal, se percebe com os senti-
dos e não o que .se compreende por entre o sensível. Contra isso não há
nada a objetar uma vez que não se pode apresentar uma prova que justifi-
que a legitimidade de uma última fonte de conhecimento. Para não se con-
tradizerem, tais pesquisadores deveriam deixar de falar no psíquico, deve-
riam deixar de pensar como cientistas, no psíquico, deveriam deixar de fa-
zer psicopatologia e limitar-se, em seus estudos, aos processos cerebrais e
aos fenômenos corporais. Coerentemente, teriam que deixar de aparecer,
como peritos, nos tribunais, pois, segundo sua própria opinião, nada sa-
bem cientificamente daquilo em que vão ser arguidos. Não podem dar pa-
recer sobre a alma mas apenas sobre o cérebro. Como peritos, só podem
falar do corpo. Para serem coerentes deveriam abandonar a maneira usual
de se escrever o histórico dos pacientes etc. Tal coerência poderia trazer-
lhes respeito e seria digna de um pesquisador. Contestar e duvidar teimo-
samente, baseados em objeções gerais, tais como: tudo isso é simples-
mente subjetivo, não é senão niilismo, o niilismo infrutífero destes pesqui-
sadores, que, desta forma, procuram convencer a si mesmos de que a in-
capacidade não está neles e sim na própria realidade.
3. Percepção das totalidades.
Toda investigação distingue, divide, toma por seu objeto algo de parti-
cular e especial e procura aí o universal. Na realidade, porém, é um todo
aquilo donde se separa o particular. No conhecimento do particular existe
um erro quando se esquece o todo no qual e pelo qual o particular sub-
siste. Todavia, esse todo não se faz diretamente objeto, mas somente atra-
vés do particular. E não se faz objeto em si mesmo e sim num esquema de
sua essência. O todo em si mesmo permanece ideia. Sobre o todo podem-
se fazer formulações' que tais: o todo precede as partes; o todo não é a
soma das partes, é mais; o todo é uma origem autônoma, é forma (Ges-
talt); por isso o todo não pode ser entendido por seus elementos; o todo
pode permanecer em sua totalidade enquanto partes desaparecem ou se
modificam. Não se pode derivar o todo dos elementos (mecanicismo) nem
os elementos do todo (hegelianismo). O que há, é, antes, uma polaridade:
deve-se ver o todo pelos elementos e os elementos a partir do todo. Não
existe nem o caminho da síntese apreensiva do todo a partir dos elemen-
tos nem o caminho da derivação apreensiva dos elementos a partir do
todo. O que subsiste é o círculo. O todo infinito é uma determinação recí-
proca do particular e do todo. Temos de analisar sem limites e referir todo
analisado a seu todo respectivo. No domínio biológico, todo processo parti-
cular-causal se mantém coeso pela ação mútua num todo vivo em si
mesmo. Na compreensão genética se aprofunda o “círculo hermenêutico”:
pelos fatos particulares é que se tem de compreender o todo que, por sua
vez, constitui a pressuposição para se compreenderem os fatos particula-
res.
Já na medicina somática existe o problema. Quando se consideravam
as doenças demônios, pensava-se que o homem ou está ou não está do-
ente. Cria-se que o homem todo tinha um demônio bem determinado, es-
tava possesso, “inteiramente” doente. Um dos progressos mais fecundos
do conhecimento se deu quando se partiu da suposição contrária: como
todo, o corpo não está, de forma alguma, doente, mas somente em alguma
parte. Em determinados órgãos anatômicos ou funções biológicas, surgi-
ram distúrbios que a partir daí exercem influência mais ou menos ampla
sobre os outros órgãos e funções, sobre o corpo inteiro. Entre o distúrbio
mórbido e o todo do corpo, que, como processo vital, é chamado de “sa-
dio”, existem relações de compensação e reação. Foi então que se pôde
distinguir entre doenças parciais, puramente localizadas, destituídas de
influência sobre o resto do corpo e por isso mesmo indiferentes — sob ou-
tro conceito de valor, talvez defeitos estéticos — e doenças de importância
para a vida devido a suas influências sobre o corpo todo, que reage contra
elas. Em lugar da série, até então conhecida de doenças, que atingiam o
corpo inteiro e eram indeterminadas, descobriram-se muitas doenças par-
ciais e determinadas, que apresentam sintomas gerais, sem terem sua
fonte na totalidade do processo vital. Restaram apenas algumas perturba-
ções da vida corpórea — embora de forma alguma insignificantes — que,
em princípio, segundo a disposição, pareciam fundar-se na totalidade do
corpo, na chamada constituição. E por fim, em todos os distúrbios parti-
culares, depois de isolados, encontram-se em alguma parte relações com
esta “constituição”, a totalidade do indivíduo vivo.
Esta oposição entre o todo e as partes existe também na apreensão da
vida psíquica: só que aqui tudo é cientificamente menos claro, mais com-
plicado e metodicamente muito mais dimensionado do que na esfera cor-
pórea. Em todos os capítulos desempenhará um papel relevante a relação
das partes com o todo. Nos pontos decisivos discutir-se-á mais profunda-
mente o sentido da totalidade. Na quarta parte tornar-se-á tema na forma
de totalidade empírica; na sexta parte, na forma de totalidade abrangente
que se esquiva à apreensão empírica. Só de uma maneira muito geral é
que, agora, anteciparemos algumas observações.
Quando falamos na “totalidade do ser do homem”, trata-se de algo infi-
nito, que não se pode conhecer como totalidade. Edifica-se sobre uma
multidão de funções psíquicas particulares. Tomemos por exemplo algo de
particular, o mais possível distante do todo: assim, o daltonismo, a falta de
memória sonora ou uma memória extraordinária para os números, seriam
distúrbios — falando-se analogicamente — em partes da alma e que, tal-
vez tenham — principalmente ao longo da vida toda — influência sobre
toda a personalidade. Dessa maneira, poderemos pensar isoladamente
muitos processos particulares: como funções particulares da alma, como
instrumentos da personalidade, cujas enfermidades, p.ex., da memória,
poderemos opor aos distúrbios, fundamentalmente, diversos que, em prin-
cípio, parecem fundar-se no todo e não provir de setores particulares da
alma. Para confrontar casos extremos: há pacientes, cujas lesões cerebrais
provocam graves defeitos de memória, distúrbios de linguagem, paralisias
motoras c, em consequência, toda a personalidade parece destruída. Uma
observação mais detalhada, no entanto, nos mostra que, em condições fa-
voráveis, a personalidade se apresenta inalterada em seu antigo caráter.
Tinha-se, por assim dizer, paralisado e se tornara incapaz de exprimir-se
mas, em potência, permanece inalterada. Em oposição, existem pacientes,
cujos “instrumentos” todos funcionam perfeitamente mas, no todo de suas
personalidades, se apresentam com alguma perturbação e, muitas vezes,
de uma forma que mal se pode definir. Os antigos psiquiatras chamavam,
por isso, as doenças mentais de “doenças da personalidade”.
Essa contraposição geral entre o ser do homem em seu todo e as par-
tes singulares da alma não representa a única direção da análise. Para a
concepção psicológica há ainda muitas outras espécies de elementos e to-
talidades. Aos elementos fenomenológicos se opõe a totalidade do estado
atual da consciência, ao rendimento particular, o rendimento total, aos
sintomas, os complexos típicos de sintomas. Totalidades abrangentes são:
a constituição da pessoa, a unidade da doença, a totalidade biográfica do
indivíduo.
Alas mesmo estas últimas totalidades empíricas são sempre relativas.
Não constituem o todo do ser do homem. Este último, o horizonte (das
Umgreifende) do ser humano, nasce de uma liberdade que não se dá como
objeto, de uma investigação empírica do homem.
O trabalho científico só fará progressos se analisar, referir uns aos ou-
tros fenômenos particulares. No entanto, se ficar nisso só, morrerá, não
podendo distinguir o essencial do não essencial. Pois, então, cairá no co-
modismo de enumerar apenas fenômenos esparsos. Ao invés, deve ser
sempre movido por ideias de totalidade sem sucumbir, porém, à tentação
de querer apreender diretamente as totalidades por meio de antecipações
fáceis. Nestas o psicopatologista se embriaga com frases e se restringe por
meio de um falso domínio do todo, de uma pretensa percepção de forças
psíquicas englobantes. Nosso trabalho de investigação deve, por fim, con-
servar, como último horizonte, a consciência da amplidão do ser humano.
Tudo que se puder investigar empiricamente no homem, é sempre parte,
aspecto, é sempre relativo, mesmo que seja a totalidade empiricamente
mais compreensiva.
Aquilo que o homem propriamente é, permanecerá a grande questão
que se impõe nos limites de todo conhecimento a seu respeito.

c) Desvios lógico-formais inevitáveis, que constantemente têm de ser


vencidos.
Para produzir conhecimento, não basta que uma investigação estabe-
leça fatos verdadeiros e siga um pensamento “correto”. Numa pesquisa
correta há falsos caminhos onde, sem saber propriamente por que, as for-
ças desfalecem e esforços extraordinários parecem não produzir nenhum
resultado. Todo pesquisador faz semelhante experiência. Deve-se aprender
a enfrentar conscientemente o perigo, localizando onde se encontra. Ten-
taremos agora indicar alguns desses perigos.
1. Ser dominado pela infinidade.
Uma experiência básica, que sempre se repete, apresentaremos, pri-
meiro, em alguns exemplos:
aa) Se, ao escrever o histórico de um paciente, se proceder segundo e
princípio de não emitir juízo mas de descrever tudo possível, de anotar
tudo, que ele disser, de recolher tudo que possa saber, caio facilmente —
sobretudo quando guiado por uma conscienciosidade e cuidado formal —
na exposição de histórias sem fim. O resultado são atas grossas que nin-
guém quer ler. Não se pode desculpar o acúmulo de dados irrelevantes, di-
zendo-se que, sob novas perspectivas, podem assumir importância para
futuros pesquisadores. Há poucos fatos que, sem um saber, ao menos ins-
tintivo, sobre seu possível sentido, podem ser recolhidos de maneira su-
gestiva e pregnante. Só quando a apreensão e apresentação dos fatos for
dirigida por uma visão originária do essencial e por ideias mestras é que
se supera o perigo de nunca acabar e não resumindo-se em esquemas de
lugares comuns.
bb) Calcular o que pode ser calculado, é uma das maneiras mais segu-
ras de se estabelecerem fatos. Mas cálculos se podem fazer sem. fim. Por
um momento, certos números podem, por si mesmos, despertar interesse
principalmente em alguém que, pela primeira vez, utiliza o cálculo. Toda-
via, só começa aparecer um sentido quando se comparam os números
dentro de determinados pontos de vista, mas mesmo estas comparações
podem nunca terminar. O importante é fazer de todo processo de cálculo
instrumento de uma ideia de conhecimento que penetre na realidade e
não a represente em números sem fim. Em vão se realizam experimentos
complicados, que fazem surgir algumas cifras mas que nada dizem se não
se colocar na base de todo o processo um pensamento que ponha fim à in-
finidade, dominando todo o cálculo por meio de uma perspectiva metodo-
lógica determinante.
cc) Um método muito usado é se estabelecer a correlação entre dois fa-
tos, correlação que oscila entre uma relação necessária (coeficiente de cor-
relação = 1) e a completa ausência de relação (coeficiente de correlação =
0). Na aplicação de testes, as qualidades do caráter, as aptidões, as unida-
des de hereditariedade, os resultados do rendimento- são examinados es-
tatisticamente quanto à medida de sua correlação- Ao se aplicarem estes
cálculos de correlação, costumam-se obter, à primeira vista, resultados ex-
traordinariamente satisfatórios. Parece se terem demonstrado convincen-
temente relações reais. Mas, ao se acumularem indefinidamente as corre-
lações, toda correlação se faz irrelevante dentro de uma quantidade in-
finda de correlações médias. É que a. correlação indica apenas um fato ex-
terno que é um efeito já derradeiro. Não diz nada sobre a relação real que
se esconde atrás das correlações construídas estatisticamente. Qua.se
tudo no mundo se acha em alguma referência com tudo. Somente quando
se delimita o significado de uma correlação por meio de um pensamento
novo e determinante e a correlação entra no contexto de um processo de
conhecimento, guiado por uma ideia e que, além da estatística, dispõe de
outras fontes, é que se consegue superar a irrelevância dos resultados.
Aqui, como em toda parte, nunca se deve deixar iludir por uma exposição
bem feita. Somente o princípio metodológico e a atitude dele decorrente na
investigação e pesquisa superam o perigo da infinidade.
dd) Estabeleceram-se elementos de uma realidade e explicarem-se ma-
nifestações concretas através de combinação e permuta destes elementos
constitui, por toda parte, um processo sem fim e por isso mesmo estéril.
Se, como simples jogo de raciocínio, pode ser correto, não nos faz conhecer
nada de essencial. A única coisa que importa é possuir as fórmulas para,
segundo a necessidade, poder deduzir sempre qualquer realização possí-
vel. Mas não tem sentido algum realizar este ou aquele exercício de per-
muta sem a consciência do sentido geral desta técnica ad hoc.
ee) Ao estudar a fisiologia dos reflexos, é tão extraordinária a aplicação
nas influências recíprocas dos reflexos elementares que, após estabelecer
alguns reflexos condicionados”, se cai num processo sem fim ao se execu-
tarem as combinações possíveis. O conhecimento da integração dos refle-
xos supera tal situação na medida em que percebe os princípios de consti-
tuição dos reflexos, realiza provas de verificação e seleciona um grupo es-
sencial de experiências, que explicam o processo sem fim e subministram,
em princípio, uma visão de seu conjunto.
ff) Em todos os domínios do conhecimento ocorre a mesma coisa de
modo análogo: podem-se expor e combinar sem fim complexos de sinto-
mas clínicos. Podem-se acumular descrições fenomenológicas de vivências
podem-se multiplicar os testes de aferição de rendimentos etc.
Sempre o pesquisador tem de fazer a mesma experiência: deve seguir
temporariamente caminhos sem fim, experimentar a infinidade para sentir
o impulso e — impregnado do material existente nestes caminhos — des-
cobrir a ideia que ordena, articula, confere uma visão global e essencial.
Cada passo de uma descoberta verdadeira é uma superação da infinidade.
Constitui erro fundamental de uma atitude de investigação preguiçosa,
apesar de todos os esforços, não perceber, depois de a continuar por um
tempo, a série infinda e permanecer em simples repetições estéreis. Deve-
se saber suspeitar e poder terminar. Sentir o aguilhão da tarefa e desco-
brir novas possibilidades na experiência da infinidade. Sem dúvida é sem-
pre necessário empenhar-se por algum tempo numa série infinda. A todo
trabalho de descoberta seguem- se os trabalhos de simples analogia que
repetem a mesma coisa com outro material, que confirmam e ampliam a
descoberta até tomarem consciência do caráter interminável das repeti-
ções. Todavia, os passos de progresso, por assim dizer o pulso no ritmo da
investigação, se processam pela consciência da situação de pesquisa, que
se tornou pregnante ao surgir a ideia, como a solução de um enigma até
então obscuramente consciente na série interminável. É aí que nasce clara
a questão com a sua resposta.
O princípio destas discussões sobre o perigo da infinidade é a seguinte
compreensão: Toda realidade, em. sua existência concreta, todo pensa-
mento em suas possibilidades não têm fim. O conhecimento é a desco-
berta de concepções em que aquilo que não tem fim se torna superável e
controlável por visões finitas, mas de sorte que o fim apreendido produti-
vamente corresponda à essência da realidade, dela provenha e não lhe
seja imposto com violência.
Dos modos de infinidade, que nos movem, apresentaremos ainda al-
guns típicos.
A infinidade das construções auxiliares. Para interpretar fatos necessi-
tamos de representações auxiliares, que, em si mesmas, não têm valor,
mas somente como meio para ampliar a experiência, possibilitando questi-
onamentos, como fio condutor do progresso. No entanto, costuma-se,
inadvertidamente, atribuir a tais representações auxiliares um sentido em
si. Elaboram-se distinções conceituais sempre mais amplas, desenvolvem-
se construções teóricas, vive-se entre simples pensamentos só por amor de
especulações. Basta procurar deliberadamente na bibliografia psiquiátrica,
nos manuais e trabalhos especializados o quanto os autores se movem em
puros pensamentos sem fundamento real na experiência, a fim de se per-
ceber logo o perigo aqui existente. As possibilidades do pensamento são
em si mesmas infindas. Desenvolvê-las é um jogo de entendimento que só
se distingue no gosto, na arte ornamental de suas linhas, na força de se-
dução. Conter esta infinidade é condição de um trabalho racional. Detém-
se este processo sem fim, exigindo-se que o pensamento se baseie na ex-
periência vivida e se demonstre verdadeiro de maneira a ajudar a experi-
ência e não envolvendo apenas a experiência existente com ideias que
nada acrescentam. Quem se afasta, sem retornar, da experiência e percep-
ção viva, constrói, num processo sem fim, um mundo imaginário. Por isso,
a respeito de todo método deve-se perguntar como amplia, aprofunda e
constitui a percepção, como aumenta o reconhecimento do que é idêntico,
alarga a experiência e estende as possibilidades — ou o que nele conduz
ao vazio da abstração, com simples conceitos, com papel e cálculos, com
esquemas enreda num mundo que não auxilia a visão do real nem favo-
rece a ação mas age a partir e no sentido do vazio.
A infinidade de tudo possível. Quando, inadvertidamente, uma explica-
ção teórica escolhe os seus recursos de maneira que a combinação dos fa-
tores e das possibilidades de variação a seu dispor possibilita apreender
todo e qualquer caso, a ponto de nenhum caso não poder jamais refutar a
teoria, é que se caiu vítima da infinidade. Da infinidade, que tudo explica e
por isso mesmo não explica nada, através de um jogo que, em quaisquer
combinações, sempre se repete. Uma teoria precisa, de início, encontra di-
ficuldades. Há realidades que a contradizem. Constroem-se então teorias
auxiliares que explicam a nova situação, até que, num limite talvez deter-
minável, se façam tantas pressuposições que todas as possibilidades ima-
gináveis já estejam explicadas a priori. É de fato o destino de todas as teo-
rias, que por algum tempo se impuseram, caírem nesta mágica estonte-
ante, onde tudo e por isso nada se explica. Seus adeptos ficam apenas
com o jogo sem fim da aplicação, das possibilidades de combinação que
tudo abarcam. Sempre que se complicam as explicações, o pesquisador
deve ficar em guarda e precatar-se contra o perigo de cair no sorvedouro
de um redemoinho de pensamento que o arrasta para a infinidade de tudo
possível, o transforma de chofre em onisciente, de sorte a já não se poder
mover senão na aparência de uma atividade tautológica.
A infinidade bibliográfica. Quem investiga quer saber o que já se inves-
tigou antes. Quem expõe um setor do saber deve conhecer a bibliografia
pertinente. Mas justamente a profundidade de uma ocupação exaustiva
pode levar aqui à infinidade, dando importância, conservando, reunindo e
agrupando puras ideias, opiniões e distinções só pelo fato de terem algum
sentido. Surge a infinidade de informação quando, sob a diversidade de
palavras e fórmulas, não se percebe a mesma coisa, quando se conserva a
obscuridade das partes, embora já se tenha alcançado clareza no todo,
quando as reflexões ao acaso dos autores integram, sem o mínimo exame,
a apresentação de uma visão geral, quando na bibliografia não se reduz o
resumo às linhas essenciais, à hierarquia real do conteúdo mas, ao invés,
tudo equipara ao nível de opiniões. Face à quantidade infinda da bibliogra-
fia é preciso adquirir um senso de distinção que não confunde esforços
baldados de Sísifo com verdadeiro conhecimento.
2. Apego a generalizações absolutas.
Quase todos os métodos e objetos de investigação possuem a tendên-
cia de se tornarem absolutos na forma dos únicos métodos e objetos cen-
trais, essenciais e próprios. Pensa-se, então, que se chegou enfim ao cami-
nho certo. Procuram-se dispor todos os dados dentro deste ponto de vista
central, que já não é entendido metodológica mas ontologicamente. Acre-
dita-se ter apreendido a própria realidade. Já não se crê mover-se numa
investigação perspectivista dentro de uma multiplicidade de métodos. De
fato, porém, o resultado é sempre transformarem-se em absolutos conhe-
cimentos parciais. Pois todo conhecimento é particular. Contra tal perigo
urge dominar todos os métodos e pontos de vista. Nunca se deve contra-
por um ao outro, a biologia às ciências do espírito ou vice-versa, a alma ao
cérebro, a nosologia à fenomenologia. É das generalizações absolutas que
nascem os preconceitos.
Também na psicopatologia e psicologia as teorias surgiram da necessi-
dade falsamente satisfeita de se dominar o todo com uma única forma de
explicação, com um número limitado de elementos. O resultado são “siste-
mas” de natureza construtiva, conceitos rudimentares de classe, elimina-
ção aparentemente definitiva do todo, que só pode ser construído em par-
ticularidades. São sempre as teorias das ciências naturais que oferecem o
modelo. Contra tudo isso, exigimos uma visão global dos métodos e pontos
de vista que não se devem misturar confusamente nem absolutizar, ultra-
passando os limites e sim aplicá-los pura e planificadamente dentro de
suas fronteiras.
Desde o início, o presente livro é inimigo declarado de todos os fanatis-
mos que, de acordo com uma tendência humana de se fazer valer, procura
tornar absoluta uma concepção. Embora, num trabalho particular, essa
tendência tenha sentido e seja quase inevitável devido ao entusiasmo do
inventor de seguir e investigar todas as possíveis consequências, deve-se
rejeitá-la inteiramente no projeto de um quadro geral. A luta contra os
próprios fanatismos — pois quem não possui essa tendência? — é a condi-
ção para se projetar um todo nascido realmente da ideia de totalidade e
não de uma generalização absoluta. Este todo nunca pode estar pronto e
acabado. Em oposição ao caráter acabado e definitivo de uma elaboração
teórica, construída a partir de um princípio objetivo pretensamente conhe-
cido, o todo indica perspectivisticamente em muitas direções, exige mover-
se em diversos níveis, impõe uma visão aberta, viva e ilimitada — e tudo
isso na posse segura da sistemática até então estabelecida e sem caos.
Não obstante, é uma tarefa, difícil pretender enquadrar num todo- a
variedade da investigação. Todo pesquisador tende a considerar que se re-
lativizaram injustamente os resultados de seu setor. Há sempre de recusar
que alguém, que não trabalha em sua especialidade, se meta a julgar. Re-
jeitará facilmente, como reflexões puramente lógicas, o- que uma visão do
todo impõe como resultado da natureza da própria, coisa. A construção do
todo seria realmente violenta se fosse ontológica. Por isso, em verdade, não
pode pretender ser a forma de um saber total do ser, mas apenas a forma
da consciência total dos métodos onde terá lugar todo possível saber do
ser. A própria consciência total dos métodos onde terá lugar todo possível
saber do ser. A própria consciência metodológica deve ser elaborada de
maneira aberta, permitindo novos métodos.
A atitude fundamental deste livro é, por conseguinte, combater' todas
as generalizações absolutas, evidenciar as infinidades, fazer ver as obscu-
ridades — mas, por outro lado, reconhecer toda experiência verdadeira,
apreendê-la segundo sua própria maneira, compreender e- assimilar todo
saber possível e atribuir-lhe um lugar, o mais possível natural, na estru-
tura dos métodos.
3. Conhecimento aparente produzido pela terminologia.
Conhecimentos claros se exprimem em termos claros. As construções
felizes ou infelizes de conceitos e termos possuem extraordinária impor-
tância para a ação e divulgação, para a boa ou má compreensão do conhe-
cimento. Todavia só quando em si mesmo- o conhecimento já é claro, é
que a terminologia pode ser essencial e adequada. Ao se exigir sempre de
novo uma terminologia, uniforme para os conceitos psicológicos e psicopa-
tológicos, a dificuldade não está nas palavras, mas nos próprios conceitos.
Se tivéssemos conceitos claros, a terminologia seria fácil. Parece de todo'
impossível elaborar-se agora, por uma comissão, uma terminologia uni-
forme. Para isso faltam inteiramente os conceitos fixos, universalmente
aceitos. Deve-se exigir apenas de quem trabalha em psicopatologia que co-
nheça os conceitos dos grandes pesquisadores, e que exprima consciente-
mente, com suas, próprias palavras, determinados conceitos. Ainda é per-
mitido hoje transferirem-se para trabalhos e discussões científicas termos
psicológicos com toda a ambiguidade da linguagem comum. Ao invés de se
investigar, tenta-se sempre de novo, mas sem sucesso algum, propor uma
quantidade de novos termos.

d) A dependência dos métodos psicopatológicos de outras ciências.


A medicina é apenas uma das raízes da psicopatologia. Com base em
concepções biológicas amplas se reconhecem, como biológicos, fenômenos
psicopatológicos, p.ex., nas teorias da hereditariedade, a fim de se ver o
que se pode apreender da realidade do homem e das doenças mentais
nestes contextos. Somente quando se tornar, como tal, claro o que se pode
apreender biologicamente, é que se evidencia o que constitui o propria-
mente humano.
Onde quer que o homem, mas não como uma espécie animal, se faça
objeto, revela-se que a psicopatologia não é, em sua própria essência, ape-
nas uma forma de biologia, mas também uma ciência do espírito. Na psi-
quiatria se encontra um mundo estranho a todas as outras disciplinas da
medicina. Enquanto o estudante de medicina adquire formação preparató-
ria para as outras especialidades na química, física, fisiologia, necessita
para a psicopatologia de uma formação preparatória inteiramente dife-
rente. Tal situação trouxe consigo que a psiquiatria feita por médicos, que
não possuem nenhuma formação nas ciências do espírito não se encontra,
como ciência, no mesmo nível de desenvolvimento. Destarte o jovem estu-
dante de medicina empreende seus estudos psiquiátricos de forma mais
ou menos casual e assim muitos psiquiatras são, do ponto de vista cientí-
fico, diletantes.
Para compreender os outros de alguma maneira metódica e segura-
mente e para poder progredir na psicopatologia exige-se por isso um es-
tudo especial. Nossa bibliografia psicopatológica está cheia de trabalhos
insuficientes. O psiquiatra oficial só é competente em problemas que di-
zem respeito à patologia cerebral, à psiquiatria somática e forense e às téc-
nicas de assistência e administração.
Para Kant, o laudo pericial sobre o estado mental pertence à competên-
cia da faculdade de filosofia. Do ponto de vista de uma consideração pura-
mente lógico-metodológica, é correto mas praticamente é errado. Ninguém,
além do médico, pode tratar de um doente mental, uma vez que para o
tratamento é indispensável a medicina somática. Em consequência, só o
médico reúne as experiências reais necessárias para o laudo pericial. No
entanto, a frase de Kant permanece verdadeira no sentido de o médico ser
competente na medida em que, por sua formação e saber, pertenceu tam-
bém à faculdade de filosofia. Para isso não basta que um psiquiatra (como
ocorreu na história da psiquiatria) aprenda de cor- e transmita (isso seria
pior do que se nada soubesse) um determinado sistema filosófico. É neces-
sário assimilar os pontos de vista e os métodos de pensamento das ciên-
cias do espírito.
De fato, convergem na psicopatologia os métodos de quase todas as ci-
ências. Biologia e morfologia, mensuração e cálculo, estatística e matemá-
tica, ciências compreensivas do espírito e métodos sociológicos, todos en-
contram aplicação. Esta dependência das outras ciências, cujos métodos e
conceitos se transferem, é constitutiva da psicopatologia. Ela se ocupa do
ser do homem em sua totalidade, mas do ser do homem doente. Este seu
objeto próprio só pode explicitar-se claramente dentro de quadros de inter-
pretação provenientes de todos os lados e aspectos. Sem dúvida, sua defi-
ciência fundamental consiste em falsificar ou piorar muitas vezes os méto-
dos importados, às vezes até em transformá-los em métodos aparentes.
Contudo, servindo-se dos métodos que, em outros setores, alcançaram
pleno desenvolvimento, a tendência da psicopatologia para com seu único
objeto, indispensável a toda concepção de mundo e de homem, é elevar-se
ao nível em que se possa conhecer propriamente o homem doente e com-
preender- lhe a significação.
O sujeito sociológico desse conhecimento é a prática dos institutos, clí-
nicas, sanatórios, das entrevistas médicas e psicoterapêuticas. De início o
conhecimento científico é uma mera consequência de necessidades práti-
cas e, em sua maior parte, a elas limitados. Mais raro, porém tanto mais
eficaz, o impulso originário de conhecimento de pesquisadores proeminen-
tes abriu novos caminhos.

e) Exigência impostas aos métodos; crítica metodológica e metodologias


inadequadas.
Resumidamente é o seguinte o que se deve exigir dos métodos: os mé-
todos nos devem proporcionar a base de determinado conhecimento, apro-
fundar nossas concepções e ampliar o mundo de nossa experiência. A se-
guir, nos devem ensinar os fatores causais que produzem a conexão dos
processos, devem proporcionar a visão de contextos inteligíveis, cuja reali-
zação depende de pressuposições psicopatológicas. Não devem, porém,
perder-se em possibilidades vazias de pensamento, que não proporcionam
nenhuma visão nem experiência. O valor dos métodos se mede pelo que,
com eles, posso ver, julgar e efetuar no trato com as pessoas. A crítica me-
todológica tem, por conseguinte, o sentido de examinar a proveniência e os
fundamentos de um conhecimento, de reconhecer a inutilidade de um
propósito por deficiência de método, de tomar consciente a ordem do co-
nhecimento na multiplicidade de métodos, de desbravar, tornar transitá-
veis ê visíveis os seus caminhos.
Como todo caminho da ciência, também a metodologia tem os seus pe-
rigos. Existe uma deturpação da metodologia que a transforma num cál-
culo vazio e formal de conceitos. Esta arte de calcular, sempre presa aos
extremos, estes simples deslocamentos de conceitos têm um efeito destrui-
dor. Fonte de nosso conhecimento, permanece sempre a percepção viva.
Ocorre que um autor, capaz de ver alguma coisa nova, não encontra for-
mulações conceituais perfeitas. Embora tenha razão, a lógica formal pode
demonstrar — de fato, porém, só externamente — contradições e incorre-
ções. Uma crítica construtiva, ao contrário, apreende o essencial e correto
e só retifica a formulação e esclarece o método. Esta retificação necessária,
embora formal, se converte num perigo quando se esquece da importância
propriamente dita da descoberta. Em casos raros pode-se dizer: para um
problema são mais perniciosos do que proveitosos conceitos claros mas
prematuros, corretos mas vazios de conteúdo.
Ademais, discussões metodológicas só têm sentido quando se realizam
sobre um material concreto e ao mesmo tempo se explicam em suas con-
sequências. Abstrações metodológicas destituídas de experiência são enfa-
donhas. Nas ciências empíricas só vale a lógica concreta. Puras argumen-
tações, sem investigação de fatos ou exposição de material, pairam soltas
no ar. Excogitar métodos, que não são ou talvez até nem possam ser apli-
cados, só produz falatórios metodológicos sem conteúdo.
Existe, por fim, uma espécie de discussões metodológicas que operam
com puras categorias a fim de negarem, de fato, numa forma puramente
racional, toda tentativa positiva de conhecimento, mas que, apesar de toda
sua aparente retidão, são estéreis. Um exemplo é a objeção típica contra'
distinções conceituais claras, dizendo-se que se separa o que constitui
uma “unidade” (corpo e alma, ciência e vida ou desenvolvimento de uma
personalidade e ’ processo mórbido ou percepção e representação etc.) ou
o que se separa acha-se ligado por “transições” que tornam pràticamente
ilusória a distinção. Todavia assim como é verdadeira a tese da unidade de
tudo, assim também costuma ser errada tal afirmação contra o processo
do conhecimento. É que o conhecimento se elabora através de distinções.
A verdadeira unidade opera, antes, como um horizonte (das Umgreifende)
inconsciente, e é sempre ideia, que exige a ligação do separado sob pontos
de vista claros. Mas, em si mesmo, o conhecimento não pode antecipar-se
à unidade que existe antes, na prática, na realidade do homem vivo. O co-
nhecimento distingue, é particular e estruturado, prenhe de oposições e
por tudo isso aberto para o movimento no sentido da unidade. Falar em
transições costuma ser o fim do pensamento e da observação. A conse-
quência dessa crítica aparente, negativa, racional, metodológica, não é, de
forma alguma, o fortalecimento da unidade real, mas a confusão. O cará-
ter amorfo do entusiasmo pela unidade provoca engarrafamento onde do-
mina a cegueira em lugar da amplidão de um conhecimento seguro de
seus recursos.
Há exigências que se devem apor à publicação de trabalhos psicopato-
lógicos: não é permitido nem se pode simplesmente raciocinar. Antes de
qualquer comunicação de investigações espera-se que se tenha familiari-
dade com as grandes concepções herdadas da tradição, que se tenham as-
similado as distinções essenciais, que se haja adquirido uma clara consci-
ência metodológica. Só assim é que alguém se torna, capaz de controlar
seu próprio trabalho, evitando apresentar coisas antigas, talvez até numa
forma pior, como novas descobertas, evitando que se perca em simples
possibilidades de pensamento, que se caia em infinidades, que, por pres-
sentimentos e sussurros se obscureçam conhecimentos já adquiridos.

§ 5. A Tarefa De Uma Psicopatologia Geral E Sinopse Do


Presente Livro.

A psicopatologia não tem de reunir todos os resultados e sim elaborar


e estruturar o conjunto. Sua tarefa é esclarecer, ordenar, formar: compete-
lhe explicar o saber segundo os tipos básicos de fatos e a variedade dos
métodos, resumi-lo em ordens naturais e por fim conferir-lhe uma consci-
ência de si mesmo na totalidade da formação humana. Com isso realiza
uma tarefa específica de conhecimento que ultrapassa as investigações
particulares. Não são suficientes classificações simplesmente didáticas de
caráter prático e úteis para a memorização. Só lhe serve uma elaboração
didática que coincida com a percepção da essência.
A psicopatologia geral está na mesma linha de continuidade das con-
cepções totais que se fizeram até agora, por elas se orienta e pode servir de
ponto de partida para novas tentativas — seja contradizendo, seja comple-
tando ou indo adiante. Passemos uma vista sobre as exposições existen-
tes.
Quando apareceu minha psicopatologia pela primeira vez (1913), havia
os livros de Emminghaus e Stõrring, depois surgiram os de Kretschmer e
Gruhle. De certo, todos têm um propósito diferente e seria injusto colocá-
los no mesmo nível quanto ao valor e finalidade. Mas cada um é a expres-
são de uma visão geral, de uma estruturação que informa um material ili-
mitado.
Uma psicopatologia geral não é apenas uma exposição didática do que
já existe. Realiza, antes, um trabalho consciente de disposição do todo.
Todo psiquiatra possui e se caracteriza pela maneira de dispor e ordenar
que lhe permite um quadro geral mais ou menos complexo, versátil ou rí-
gido. Um livro sobre psicopatologia pretende colaborar na construção
deste quadro geral ou do modo de pensar o conjunto em que todos os mé-
todos particulares encontram seu sentido e seus limites. O significado de-
cisivo de livros que procuram apresentar diretamente uma exposição geral
se mede pelo modo de verem o todo e de o explicitarem na sistemática visí-
vel e no desenvolvimento do pensamento. Tentando caracterizar numa
comparação os trabalhos existentes, espero poder evidenciar pelo con-
traste a intenção (e não a realização) de minha psicopatologia.
Emminghaus (1878) escolheu uma disposição médica, assim como se
costuma fazer em outras disciplinas clínicas. Trata sucessivamente da no-
sologia (sintomatologia, diagnóstico, processo, duração e desfecho da lou-
cura), da etiologia (predisposição, causas de desencadeamento, etc.) e por
fim da anatomia patológica e da fisiologia. O método é puramente descri-
tivo. Apresenta a visão geral evidente e não provada das ciências médico-
naturais. Em aspectos particulares, prevalecem pontos de vista psicológi-
cos bem diversos sem, no entanto, serem conscientemente criticados e de-
senvolvidos. É decisiva a psicologia natural de todos os dias, embora um
pouco empalidecida por uma terminologia aparentemente científica e pela
exterioridade da psicologia oficial de seu tempo. O valor do livro está na
maneira familiar _ aos médicos de apresentarem uma visão geral, onde
não se vê o abismo que separa sempre a psiquiatria das outras disciplinas
clínicas (enquanto uma síntese real só é possível depois de se terem escla-
recido conscientemente princípios e métodos em parte heterogêneos). Uma
outra vantagem são a exposição expressiva e muito viva, as ricas indica-
ções bibliográficas, que tornam a obra ainda hoje uma fonte de consulta
para uma bibliografia mais antiga. Outra vantagem são as perspectivas
amplas (p. ex. sobre a psicologia dos povos) possíveis apesar do contexto
médico, e que provêm da antiga formação psiquiátrica, hoje, nesta forma,
em declínio. A disposição propriamente médica, como a utiliza Emmin-
ghaus e era usada antes, continuou a ser empregada, mesmo depois, nas
partes gerais dos compêndios psiquiátricos.
O livro de Stõrring (1900) se propõe uma outra finalidade: pretende
tratar da psicopatologia em sua importância para a psicologia normal. De
saída põe no centro o interês.se teórico. São decisivas as teorias da psico-
logia de Wundt. Desempenham um papel dominante as discussões teóri-
cas sobre a gênese dos fenômenos, por meio dos recursos daquela psicolo-
gia, que hoje nos parecem fora de moda. A divisão se processa segundo o
antigo esquema: funções intelectuais, fenômenos do sentimento e da von-
tade. Todavia, utilizam-se para as funções intelectuais mais ou menos 400
páginas, para os sentimentos, 35 e para os fenômenos da vontade, 15.
Visto ser teórica a unidade do livro, o desenvolvimento do pensamento é
contínuo; todavia, o valor do livro depende em grande parte, do valor das
teorias. Embora tenha tornado novamente conhecido muito material inte-
ressante da literatura, os resultados foram tão parcos que se deixa de
lado, decepcionado, o livro, cujo título atraía tanto. Um quadro geral teó-
rico apresenta, sem dúvida, mais estruturação do que uma disposição mé-
dica como 'a de Emminghaus. Todavia a estrutura de Stõrring é estreita
em questões e respostas comparada com a realidade ingente das psicoses.
O livro de Kretschmer (1922) não se pode colocar, simplesmente, ao
lado dos dois outros. Sua finalidade é didática e inclui a psicologia na me-
dida em que é de importância para o médico, sena — com razão — separar
em princípio o normal do patológico. Também Kretschmer constrói seu
quadro geral, a estrutura do todo, através de uma teoria. Trata-se da ideia
das camadas da vida psíquica que ele descobre paralelamente na história,
filogenia e ontogenia (como sequência da evolução) e no homem já desen-
volvido (simultaneamente). A isso se ajunta uma segunda ideia: dos tipos
de personalidade e dos modos de reação. Todavia, ambas as ideias são es-
quematizadas ao máximo. Ele mesmo acentua a simplificação rígida redu-
zida a poucas fórmulas e conceitos auxiliares. Para tal se apoia nas ciên-
cias naturais que assim chegou a sua finalidade de dominar as coisas.
Propõe-se mostrar, “numa construção pautada rigorosamente pelas ciên-
cias naturais, os poucos mecanismos básicos de natureza biológica que
retornam em toda parte”. “A estes mecanismos pode-se reduzir a riqueza
estonteante da vida real”. Com isso se faz uma confusão. Por meio de uma
ação recíproca de projeto teórico e observação-verificação de maneira que
uma questão exata possibilita uma decisão exata, as verdadeiras ciências
naturais antecipam, claramente, de modo constringente, passo a passo e
às vezes em saltos, novas fundamentações. Na psiquiatria, porém, estas
teorias sempre apresentaram até agora, e também em Kretschmer, mais
ou menos o caráter de uma tentativa de articulação que propicia observa-
ções e possibilita classificações.
Kretschmer dá um novo exemplo de psicologia compreensiva que pro-
cura revestir-se de ciência natural — correspondendo ao ambiente da fa-
culdade de medicina. Isso só é possível devido ao pouco sentido para a ló-
gica das ciências exatas da- natureza e seus métodos. O espírito de suas
“simplificações”, ele mesmo exprime de maneira adequada: “a fim de inje-
tar um pouco de vida na matéria seca, às vezes me servi de expressões
algo estranhas e de fórmulas bem exageradas”. Nesta simplificação teórica
e aparente domínio da totalidade afirma-se, apesar de toda a intuição para
casos particulares, uma espécie de onisciência que, de maneira estranha-
mente apressada, distribui rubricas, utiliza conceitos classificatórios para
o expressionismo, para personalidades históricas e vive, considerada
numa perspectiva da história do espírito, do delírio gigantesco de muitos
neurologistas: “a psicologia da neurose é a psicologia do coração humano
simplesmente. Um conhecedor das neuroses é eo ipso um conhecedor dos
homens”. É característico o estilo com verniz literário. Não se sente ne-
nhum respeito pela natureza inesgotável do indivíduo, pelos problemas in-
finitos da alma, não se percebe nenhuma admiração e espanto. Para isso
oferece chavões fáceis de assimilar, cuja utilização produz a consciência
tranquila de um penetrante conhecimento humano. — Todavia, mesmo
com esse método, Kretschmer não consegue projetar uma estrutura real
da totalidade da vida psíquica. Ao contrário, fica numa seleção de proble-
mas. Na linguagem predominam mais imagens do que nitidez conceituai,
sente-se mais o impacto da expressão do que uma ideia.
O livro de Gruhle (1922) parece-me estar numa oposição completa ao
de Kretschmer. Cuidado no trabalho, concisão de estilo já são altamente
característicos. Gruhle procura uma ordem o menos possível preconce-
bida. Nenhuma teoria violenta o todo. Escolhe, ao invés, uma esquemati-
zação conceituai de todo abstrata onde agrupar a matéria. Distinguem-se
anormalidades de medida (quantidade), de tipo (qualidade), de funções
(atos); e estas últimas como atos intencionais e nexos de motivos: ajun-
tam-se só brevemente algumas observações sobre anormalidades do de-
senvolvimento psíquico. Deste modo, por meio de conceitos muito amplos,
que — como qualidade e quantidade — permitem uma divisão completa,
embora muito externa, de toda a realidade consegue Gruhle, por assim di-
zer, grandes compartimentos onde pode jogar, enumerando simplesmente,
os fenômenos. O conceito central não é elaborado metodologicamente nem
desenvolvido numa estruturação, como fermento de ideias, ao longo da
secção respectiva. Ao contrário, se estabelecem, como Gruhle, mesmo diz,
“por assim dizer”, marcos de fronteira dentro dos quais se empilham o ma-
terial psicopatológico que parece importante e pertinente ao assunto, sem
que seja possível uma elaboração sistemática e uma ordem interna”. E
Gruhle diz isso com relação a uma secção que, a meu ver, mais possui or-
dem interna. A ordem formal, amplamente externa permite, sem dúvida,
subsumir sob conceitos muito vastos e muito abstratos, mas não permite
que se elabore um quadro geral estruturado. A crítica implacável e a cla-
reza formal levaram Gruhle até ao extremo na renúncia de uma estrutura-
ção criadora. Em consequência fica prisioneiro na abundância dos fatos,
sem distinguir o importante do insignificante (o que só surge de ideias e
não de ordenações formais), e passa à margem da substância dos proble-
mas. Gruhle não camufla absolutamente nada e quase conseguiu que se
pensasse não conter o seu livro nenhuma frase “incorreta”. Apesar de todo
o propósito de ser interessante, a exposição torna excitante. É que a alta
cultura do autor, seu bom gosto e sua distância das coisas se fazem sentir
a ponto de logo se notar que lhe seria fácil um estilo literariamente ele-
gante, mas ele prefere o formalismo e a concisão. Pois nada teme mais do
que confundir literatura com ciência. Se se tomar o livro no que pretende
ser, um empilhamento de material, trata-se de um livro altamente útil.
Faz-se credor de agradecimento pela apresentação de uma bibliografia gi-
gantesca, pela utilização de trabalhos antigos, esquecidos, distantes.
O propósito de meu próprio livro (1913) se distingue de todos os outros
aparecidos antes e depois. Ao caracterizá-lo, é-me inevitável, como autor,
ver e considerar essencialmente as vantagens. Por isso queria dizer de an-
temão que, segundo minha convicção, este meu propósito não deve elimi-
nar outras tentativas. Ao contrário, é muito aconselhável a quem desejar
penetrar mais profundamente nos problemas da psicopatologia, ler, com-
parando, as diversas exposições gerais, somente na medida em que con-
trolar uma com a outra, é que ele adquirirá o domínio do todo que lhe é
possível.
Apresento o propósito de meu livro:
a) Dogmática do ser e consciência metodológica.
Em 1913 descrevi o sentido de minha sistemática metodológica: “Ao
invés de violentar toda a esfera da psicopatologia por meio de um sistema
construído com base numa teoria, devem-se tentar distinguir nitidamente
os diversos caminhos de investigação, os pontos de vista e Métodos, fa-
zendo-os assim aparecerem com clareza e deste modo expor também os
múltiplos aspectos da psicopatologia. Por isso não se deve eliminar ne-
nhuma teoria e nenhuma perspectiva. Todo quadro geral será aceito, apre-
endido e valorizado em sua importância e limites. Mas o decisivo perma-
nece sempre o pensamento indagador para quem todo quadro geral só tem
valor a partir de uma perspectiva. É esta ideia que procura dominar os
quadros gerais em sua totalidade e por fim só os consegue ordenar pelos
métodos e categorias, donde nasceram.
Indicaremos as vias em que chegamos a perceber alguns aspectos par-
ticulares da alma. Todo capítulo deste livro apresentará um destes aspec-
tos. Ao invés de encontrar um sistema de elementos e funções, que, de
maneira idêntica, nos assinale, em toda parte da psicopatologia, o cami-
nho da análise (como na química o conhecimento dos átomos e das leis de
combinação), temos de nos satisfazer com realizar diversas modalidades
de consideração. Ao invés de uma ordem teórica, só podemos ter uma or-
dem metodológica”.
Nesta autocaracterização se exprime uma oposição científica que não
se pode ver de modo bastante radical. Ou se pensa já se ter, no que se
sabe objetivamente, a própria realidade, o ser em si e na sua totalidade ou
se reconhece o caráter perspectivista, a natureza, metodologicamente fun-
damentada e, ao mesmo tempo, limitada de todo conhecimento. Ou se
procura uma satisfação no saber do ser ou se aceita o horizonte aberto de
um movimento infinito. Ou se tem o centro de gravidade numa teoria do
ser, que se acredita conhecer, ou na sistematização de métodos conscien-
tes, com os quais se ilumina a escuridão infinita. Ou se abandonam todos
os métodos, como suportes temporariamente necessários, para possuir
pretensamente a própria realidade, que se conquistou, ou se destrói toda
dogmática de ser como erro temporariamente indispensável, em favor do
movimento do conhecimento, que nunca se apresenta diretamente nem se
acaba, mas que sempre permanece aberto a uma experiência e investiga-
ção ilimitada.
A consciência metodológica nos mantém frente à realidade que deve
ser apreendida sempre de novo. A dogmática do ser nos tranca num saber
que, como um véu, se antepõe a toda nova experiência. Assim, a atitude
básica metodológica se impõe contra a atitude de absolutização, a atitude
básica de investigação contra a atitude básica de fixação.
Mas não é para se esquecer: os métodos são criadores apenas no uso e
não na reflexão sobre os mesmos. Os primeiros inventores, que alargaram
o conhecimento com a aplicação de métodos, muitas vezes não entende-
ram a si mesmos (pagaram a incompreensão com a dogmática petrificada
de suas novas opiniões). Como tal, a consciência metodológica não é, po-
rém, criadora mas apenas esclarecedora. Instaura as condições e o es-
paço, onde novos inventores podem crescer, enquanto toda dogmática pa-
ralisa novas descobertas.
O desejo de conhecimento procura logo penetrar no todo e lança mão
avidamente de teorias tentadoras, que parecem proporcionar de um golpe
a posse do todo. O conhecimento crítico, ao contrário, quer, ao mesmo
tempo, limites e amplidão, de um lado, um saber claro dos limites e da im-
portância de todo ponto de vista particular, de todo fato, e de outro, a am-
plidão alcançada pela conquista laboriosa, durante toda a vida, de todos
os caminhos possíveis do conhecimento. Pareceu-me ser possível chegar à
amplidão relativamente maior e ao mesmo tempo à maior clareza sobre o
aspecto positivo do conhecimento através de uma sistematização metodo-
lógica.
b) A ordem metodológica, como princípio de estruturação.
Ordem metodológica significa tornar conscientes todos os modos de
apreensão, todas as formas de observação, de pensamento, todos os cami-
nhos de investigação, todas as atitudes básicas do conhecimento, e
exercê-los no material de experiência próprio a cada um deles. Assim, se
distingue certamente o particular, se desenvolvem puramente os órgãos de
investigação e apreensão, se tocam os limites, revelados em cada caso, se
experimentam e, ao mesmo tempo, se relativizam as possíveis concepções
do todo. Á formação nos métodos dá o senso crítico seguro sobre o sentido
e os limites de todo saber e favorece a naturalidade no reconhecimento dos
fatos.
A realidade se nos apresenta como um todo individual, como um ho-
mem vivo. Conhecer é analisar, e é metodologicamente que todo fato real-
mente se estabelece como fato. Disso se segue, em primeiro lugar, que
todo conhecimento atinge apenas algo de particular. Antes de analisá-lo,
nunca vemos o todo e, ao vermos, já o analisamos. Em segundo lugar, fato
e método dependem intimamente um do outro. Só temos o fato através do
método. Entre fato e método não há separação radical. Um existe pelo ou-
tro.
Por isso uma articulação segundo os métodos já é também uma articu-
lação adequada do real, assim como existe para nós. Tal é a função motriz
do conhecimento em que o ser empírico se nos revela. Com a estruturação
dos métodos e a indicação do que neles se manifesta, vemos, ao mesmo
tempo, as espécies fundamentais de fatos; só assim se obtêm constatações
precisas e todo o âmbito do que é possível estabelecer. A articulação meto-
dológica introduz urna estrutura no material dos fatos. Esta estrutura cor-
responde ao modo em que os próprios fatos se acham articulados.
Num desenvolvimento claro e bem sucedido, objeto e método coinci-
dem. A divisão segundo um é simultaneamente a divisão segundo o outro.
A isso parece contrapor-se o princípio de que todo objeto deve ser conside-
rado por métodos diferentes. No entanto, com esta exigência justa se pre-
tende o seguinte: uma pessoa particular, presente como enfermidade,
como alteração da consciência, como memoria etc., é um fato que até en-
tão tinha sido apreendido, como um objeto, apenas externamente. Pois é
este lato que deve ser investigado com métodos diversos. Trata-se de um
objeto impenetrável e indeterminado em seus limites; de uma realidade
tôsca, ainda não claramente distinta em seu todo. Só no método é que se
revela a realidade objetiva deste fato. Só por um método específico se de-
termina com clareza cabal se em que medida o- objeto, a ser investigado
por muitos métodos, é realmente um objeto bem como o modo dessa uni-
dade.
Muito mais fácil parece uma estruturação do saber onde impera uma
teoria do ser. Poucos princípios e elementos proporcionam a posse do
todo. Tenho em mãos a própria realidade. Daí o sucesso efêmero de siste-
mas sugestivos, onde parece apreender-se a própria coisa em seus funda-
mentos. Quem chega pode logo dominar o todo. Pensa já ter tomado pé no
meio da realidade. Sua tarefa consiste em desenvolver um pensamento,
que simplesmente repete, confirma, aplica e completa o sistema, e assim
parece realizar um trabalho de ciência. Mais difícil, porém mais verda-
deiro, é a estruturação metodológica. Não é sugestiva nem cômoda. Não é
fácil de se adquirir nem permite um domínio grandioso do todo. Mas, por
outro lado, realiza um conhecimento real, desperta impulsos de pesquisa,
exige uma capacidade própria. Mostra o que se conquistou, faz ver o que
se revela nos caminhos particulares de investigação e mantém-se aberta
para o existir humano em sua totalidade.
Assim nunca se conclui o trabalho da estruturação e ordenação meto-
dológica dentro de uma exposição global. Não indica o projeto de um es-
quema pronto e sim o esforço contínuo de extrair das pesquisas dos fatos
as ideias estruturais, torná-las conscientes e integrá-las num contexto.
c) A ideia do todo.
A ordem metodológica propicia uma armação, mas não basta. Nela e
com ela se procura algo que se encontra além, o todo. Neste sentido deve-
se formular a tarefa de uma exposição global de várias maneiras.
Os tipos fundamentais de fatos têm que ser explicitados com muito
tato. Devem-se estabelecer concepções densamente estruturadas e abrir
os espaços para a experiência através de orientações específicas.
Deve-se separar o que, até agora, só se tinha unido de modo externo.
Deve-se unificar o que pertence reciprocamente um ao outro; devem-se es-
clarecer as características próprias através das quais o que se pertence re-
ciprocamente, se mantém unido. Para isso é necessário encontrarem-se
estruturas básicas, de sorte que as divisões da exposição se tornem cons-
trutivas. Deve haver uma concentração nos princípios que em exposições
muito extensas desaparecem facilmente do campo de visão. Devem-se tra-
çar as linhas mestras e procurar concentrar-se no essencial. O mais ele-
vado e fundamental tem que ser o decisivo.
Há algo de uma descoberta — sem por isso haver necessidade de se ter
adquirido um novo conhecimento particular — ao se estabelecerem ordens
e disposições básicas. E por suas incorreções todas elas se convertem
num estímulo, de aprofundamento. Realizam-se experiências específicas
quando se procura certeza quanto ao todo. O problemático, que se acha
no conjunto do saber, deve- se mostrar mediante a execução real de uma
concepção global. A atitude básica de um pensamento despreconcebido
procura perceber criticamente os limites e chegar através da ordem e dis-
posição a uma evidência a respeito da sua ação.
d) A importância objetiva das divisões.
Se as divisões básicas e as estruturações forem essencialmente objeti-
vas, nascerá um quadro que se grava no leitor de modo cada vez mais
convincente com o progresso e retrospecto da exposição, porquanto não
brotam de meras antecipações lógicas, mas da própria realidade.
Uma estruturação esteticamente satisfatória e didaticamente cômoda
só é verdadeira ao mostrar-se prática conforme à realidade. O critério de
sua verdade é o aumento da visão concreta. Assim, uma divisão inclui em
si um juízo objetivo, caso não seja um agrupamento arbitrário. Significa já
uma tomada de posição do conhecimento.
A estruturação deve explicitar as linhas mestras, o principal e o secun-
dário, a hierarquia no movimento mediante diversos pontos de vista. Atra-
vés de uma localização correspondente deve dar importância a uma desco-
berta, até então talvez desvalorizada. Por outro lado tem também de relati-
vizar, da mesma maneira, todo valor. Deve conservar espaço para tudo
aquilo que for ainda possível de ser experimentado, de sorte a poder en-
contrar seu lugar.
Na realização concreta nem sempre é sem forçar que os diversos capí-
tulos apresentam um método específico e o mundo de percepção corres-
pondente, que se impõem sucessivamente as formas básicas de concepção
e investigação, as imagens do homem. Sempre que se integram sem vio-
lência coisas pertinentes, realizou-se o propósito de uma estruturação;
sempre que se revela a violência de uma dessintonia, é indício de erro na
estruturação. A intenção é sempre advertirem-se tais erros e através deles
progredir. Com seu impulso, um pesquisador só vai até onde alcançam
seus limites. Aqui para, por já nada lhe ocorrer. Os sucessores devem
aproveitar-se dele e ultrapassá-lo.
Assim, a divisão geral e particular de meu livro não é acidental, e sim
proposital. Peço ao leitor para aprofundar-se no sentido de suas estrutu-
ras, examiná-las na sequência dos capítulos e não desfalecer na percepção
da ideia básica até à última parte. Só através do conjunto do livro é que se
mostra todo o espaço a partir do qual os diversos capítulos extraem pers-
pectivas particulares.
e) Sinopse do livro.
Esboçamos aqui, numa antecipação geral, as partes principais:
Na primeira parte aparecem os fatos empíricos particulares da vida
psíquica. Serão aproveitados sucessivamente as vivências subjetivas e os
dados somáticos, os rendimentos objetivos e os fatos dotados de sentido
na expressão, no mundo e na obra. Toda esta parte põe em exercício, por
assim dizer, os órgãos de apreensão do psicopatologista e expõe os dados
imediatos.
Na segunda e na terceira parte nos voltamos para as conexões da vida
psíquica. Na segunda, para as conexões compreensíveis, na terceira para
as causais. Não se conhecem conexões diretamente ao apreenderem-se os
fatos, mas indiretamente, na pesquisa, mediante verificação dos fatos. Es-
tas duas partes põem em exercício, por assim dizer, os órgãos de investi-
gação do psicopatologista. Visto que o homem, entre espírito e natureza, é,
ao mesmo tempo, ambas as coisas, são igualmente necessárias a seu co-
nhecimento todas as ciências. O que se investiga na segunda parte, supõe
um conhecimento das ciências do espírito e o que se investiga na terceira,
pressupõe um conhecimento da biologia.
Na quarta parte, seguem-se as partes predominantemente analíticas,
uma parte sobretudo sintética. Trata-se de como se pode apreender a tota-
lidade da vida psíquica. O que aqui aparece, nasce da concepção geral do
clínico. É ele que vê a pessoa individual no seu todo. É ele que reflete so-
bre a unidade da doença em seu diagnóstico, a constituição? que tudo
sustenta, e a biografia em cujo contexto geral se revela todo ser individual.
A quinta parte considera a vida psíquica anormal na história e do
ponto de vista sociológico. A psiquiatria se distingue do resto da medicina
também pelo fato de a alma do homem receber sua característica global da
circunstância de o homem não ser apenas um ser simplesmente natural,
mas um ser cultural. Em seu conteúdo e em sua forma, os fenômenos psí-
quicos mórbidos dependem e agem sobre a esfera cultural. A quarta parte
põe em exercício a visão histórica da realidade humana.
Na sexta parte chegamos então a uma discussão conclusiva sobre o
todo do ser humano. Aqui já não se encontrarão constatações empíricas.
Realiza-se, antes, uma reflexão filosófica. As totalidades específicas, que ti-
nham, em cada capitulo, um sentido decisivo, são todas relativas. Tam-
bém a concepção global do clínico não apreende empiricamente a totali-
dade do homem. Sempre o homem é algo mais do que se pode conhecer. A
discussão final, por conseguinte, não amplia nosso saber. Esclarece nossa
atitude filosófica fundamental, na qual construímos todo saber e todo co-
nhecimento do homem.
O tema do livro é mostrar o que sabemos. Só no apêndice é que se ca-
racterizam fundamentalmente as tarefas práticas. Lança- se um breve
olhar sobre a história da psicopatologia, enquanto, ciência.
f. Observações sobre a sinopse.
1. Empirismo e filosofia.
Espero ser, nas primeiras cinco partes, empirista radical, desenvolver
uma luta, não sem vitórias, contra a vacuidade de considerações especu-
lativas, contra toda, dogmática teórica e contra todo saber absoluto do.
ser. Na sexta parte (e na introdução), ao contrário, discutirei questões filo-
sóficas. Parece indispensável ao psicopatologista ter alguma clareza sobre
elas. Não apenas o empirismo descompromissado leva a limites verdadei-
ros onde se inicia a reflexão filosófica, como também só uma consciência
filosófica torna possível uma atitude de investigação empírica segura. As
relações entre filosofia e ciência não são de molde a permitirem uma apli-
cação dos estudos filosóficos, na ciência — um esforço sempre infrutífero,
embora sempre de novo repetido, de traduzir filosoficamente fatos empíri-
cos. As relações entre filosofia e ciência são constituídas de maneira a per-
mitir que a filosofia provoque uma atitude interna proveitosa para a ciên-
cia, por traçar os limites, por guiar internamente, por subministrar o fun-
damento propulsor de um desejo de saber sem limites. Uma lógica filosó-
fica deve-se afirmar como lógica concreta na apreensão estruturante de fa-
tos. Não é pelo fato de lhe. ensinar em sua ciência algo de. positivo que o
psicopatologista necessita preocupar-se com filosofia, mas pelo fato de lhe
abrir internamente um espaço livre para suas possibilidades de saber.
2. O entrelaçamento recíproco dos capítulos.
Ao descrever os fenômenos vivenciados, recorrer-se-á por vezes às co-
nexões causais e compreensíveis em que se encontram; na maioria dos
outros capítulos, far-se-á aqui e ali fenomenologia. Assim, a ideia delirante
terá de ser encarada fenomenologicamente, do ponto de vista da psicologia
do rendimento e em conexões compreensíveis. O suicídio é um fato pre-
ciso, tão eterno que se pode: contar sua ocorrência; deve-se investigá-lo
com muitos métodos segundo motivos compreensivos, segundo a idade,
sexo e época do ano, segundo suas relações com as psicoses, com situa-
ções sociológicas etc. Assim os mesmos fatos ocorrem em diversos capítu-
los onde o que é “a mesma coisa”, se revela sempre mais exterior, com o
crescer do conhecimento etc. Também movimentos científicos (p.ex. a psi-
canálise, a teoria da constituição corpórea de Kretschmer) aparecem em
vários lugares e sempre de maneira essencial, quando incluem em si me-
todologicamente diferentes elementos (seja numa unidade com sentido,
seja numa mescla mais confusa). Assim, há entre os capítulos um múlti-
plo entrelaçamento. Deve-se compreender a necessidade de existência
desse entrelaçamento, e em que sentido é pertinente.
Em cada capítulo predomina apenas um método e a visão se dirige ao
que se manifesta neste método. Mas os diversos métodos dos capítulos já
utilizam outros métodos, deixam entrever princípios que foram tratados
em outros capítulos e que aqui já não são ou ainda não serão tematizados
(p.ex., a fenomenologia de uma paramnésia só pode ser constatada
quando se encara o fenômeno também do ponto de vista da psicologia do
rendimento. Só se analisa a deficiência de rendimento da memória junta-
mente com a fenomenologia da vivência). Em outros termos: todo método
tem uma ligação com os seus objetos pertinentes, mas o que nele se mos-
tra, possui logo relações com outros objetos, apreendidos com outros mé-
todos, e lhes faz alusão. Assim, o que se considera o mesmo fato, tem de
ocorrer em vários capítulos que se completam. Mas sob outros pontos de
vista, o fato logo se diversifica. O isolamento de um método só se dá por
um momento. Nenhum método permite que seu objeto se feche em si
mesmo. Daí ser natural fazer-se referência nos diversos capítulos, seja de
fato, seja explicitamente, a outros métodos. Toda separação é de algum
modo artificial. O contexto das coisas exige que se tornem perceptíveis as
relações entre os métodos.
De modo especial atua o fato básico de que todo homem é, em algum
sentido, uma unidade; é a totalidade das relações possíveis entre os fatos
que se podem investigar. Para se compreender um homem, são necessá-
rias as perspectivas de todos os capítulos. Em nenhum capítulo a compre-
ensão se acha acabada.
A separação dos capítulos é necessária para a clareza, a unificação,
para a verdade e integridade da concepção. Assim, os temas dos capítulos
estão em relação uns com os outros, nunca numa sequência mecânica.
Todavia, cada capítulo segue um caminho específico, um modo próprio de
visão, de apresentação e de fundamentação.
3. O isolamento dos métodos e o quadro global.
Expresso de modo exagerado, em todo capítulo se toca todo o campo
dos fatos psicológicos, mas só sob urna única perspectiva. Todavia, não há
um fato global completo, que seria encarado apenas diferentemente. A
todo método se revela algo especificamente próprio e, além disso, dentro
de limites indeterminados. Algo que para os referidos fatos é menos essen-
cial. A totalidade do que se revela em todos os métodos, não se ordena
como uma realidade total uniforme. Tampouco como esta, não há um mé-
todo universal, onde se manifeste tudo o que existe. Destarte, só se podem
apreender, de maneira clara e precisa, realidades particulares. com méto-
dos particulares.
Portanto, o desejo de conhecer depara sempre com limites pelo fato de
seguir cada vez um caminho, de ser pressionado num momento por suas
consequências, enquanto há ainda muitos outros caminhos cujo domínio
é também condição de um saber crítico. O quadro geral, no entanto, visto
ser apenas uma totalidade de métodos e estruturas, permanece sempre
inacabado; não se arredonda. Não só fica aberto o que no futuro sobrevi-
verá como novos fatos, mas também o que depois poderá explicitar-se
como novos métodos de pensamento e novas perspectivas. Por isso a defi-
ciência provável do meu livro é o fato de seus diversos capítulos serem
ainda impuros, o fato de conterem algo que talvez seja algum dia explici-
tado, por originar-se de um outro princípio autônomo que ainda não se
tornou consciente. É ainda um defeito o fato de a totalidade dos capítulos,
dos quais cada um pretende mostrar uma última perspectiva na elabora-
ção do material, não apresentar nenhuma garantia de ser exaustiva. Ao
contrário, provavelmente são possíveis e por isso necessários outros capí-
tulos. Por fim, sempre ficará aberto o propósito de desenvolver todos os ca-
pítulos não como uma enumeração, mas como um contexto metodológico.
Tal contexto daria o quadro geral propriamente dito de dimensões infin-
das. Este não pode ser alcançado como sistema de realidade, mas so-
mente como sistemática dos métodos.
É um mal-entendido designar-se meu livro como “a obra principal da
corrente fenomenológica”. A atitude fenomenológica é uma perspectiva, e
num capítulo deste livro foi desenvolvida de modo especialmente extenso
por constituir, então, uma novidade. Todavia, a ideia do livro é justamente
de que se trata apenas de uma perspectiva e, como o livro ensina, até de
uma perspectiva subordinada.
g) Princípios técnicos da exposição.
1. Evidência pelos exemplos.
No fundo só se pode fazer experiências pessoalmente. Um livro só pode
fomentar ou completar essas experiências, nunca, porém, substituí-las. O
que. se pode captar com um olhar, o que se pode vivenciar no trato e na
conversa, o que se pode averiguar em investigações de fatos, isso a exposi-
ção mais circunstanciada de um livro não pode transmitir. Todavia,
quando se fazem experiências próprias, pode-se compreender as alheias,
representá-las na fantasia, utilizá-las para o conhecimento próprio. Será
sempre incompleto substituir a experiência por descrições expressivas. To-
davia, a reprodução de exemplos concretos é o único caminho para chegar
aonde é possível. Por isso, segundo o objeto, se reproduzem exemplos con-
cretos, de modo mais ou menos extenso. Todos os exemplos de experiên-
cias pessoais de minha juventude, permaneceram. Ademais, tomei aos
trabalhos de outros pesquisadores exemplos característicos e fceis de
guardar.
Deve-se ajudar o leitor a reunir um acervo de experiências. Embora
um tal acervo só seja digno de confiança quando construído através da vi-
são própria, um tal acervo pode ser preparado e confirmado mediante rela-
tórios e interpretações de um livro.
Permanece a exigência de se realizar intuitivamente todo pensamento.
Numa boa exposição não deve haver nem intuição, que não seja apreen-
dida pelo pensamento, nem pensamentos que não- recebam seu sentido
da intuição. O que importa são intuições plásticas em estruturas claras,
que não contêm nem de mais nem de menos. As intuições deverão ser o
ponto de apoio firme da fantasia interna, a fim de, orientando-se em for-
mas claras, poder encontrar-se nas coisas obscuras. Este apoiar-se em in-
tuições e conceitos deve permitir sempre se poder saber e dizer o que se
tem em mente intuitivamente.
2. Forma de exposição.
Uma forma de exposição do todo deve-se poder ler continuamente e
não existir simplesmente como obra de consulta. O esforço consiste na
condução das linhas e na concentração que destaca o essencial. Sempre
se deve tender para determinações conceituais concisas, até à brevidade
jurídica da formulação.
No entanto, o que foi estruturado, extraiu-se do que é de fato infindo e
ocasional. Embora não devam, o mais possível, prevalecer simples enume-
ração, incidências e casualidades, todavia tudo isso deve aparecer no
ponto de partida e ser sempre perceptível. Assim como no estudo se tem
de recuperar-se sempre da infinidade, em que se entrou, assim também a
exposição não deve fazer desaparecer, mas aparecer vivamente o que não
se dominou, sempre por toda parte presente. O incidental conserva-se
também na comunicação de fatos de alguma maneira interessante, que à
primeira vista não mais significam do que a constatação com aspecto de
que é assim. Todavia não se deve esquecer que a infinidade, incidentali-
dade são características da falta de conhecimento. O que entendemos
ainda não conhecemos.
Em todo capítulo aparece em primeiro plano uma perspectiva. O leitor
deve assimilar antes de tudo a série destas perspectivas. Nos diversos ca-
pítulos particulares poderá ele, segundo seu interesse, utilizando-se do ín-
dice da matéria, pular muitas coisas na leitura.
3. A bibliografia.
É uma questão, como dominar a bibliografia, a ampla corrente, em
contínuo fluxo, de publicações. Mesmo abstraindo-se as repetições infin-
das, a maré turva de uma confusão de ideias escolhidas ao acaso, a falta
de estruturação, do que se relata de modo indiferente, as fórmulas de lin-
guagem, ainda resta uma massa de proporções gigantescas. Se se deseja
assimilar o positivo, deve-se atender principalmente para o seguinte: em
primeiro lugar, para os fatos, os casos, as biografias, as descrições pró-
prias, os relatórios e outros materiais-, em segundo lugar, para os conhe-
cimentos reais, para as visões, que permanecem; em terceiro lugar, para o
visto plasticamente, as imagens projetadas, as; formas, os tipos, as fórmu-
las pregnantes-, em quarto lugar, para as atitudes básicas em que os co-
nhecimentos foram assimilados; a “disposição”, que se oculta no estilo e
no julgamento. Esta última é a atitude básica cognitiva de uma concepção
global não refletida, a filosofia escondida, ou é a determinação sociológica
imposta pela profissão e pelas tarefas, ou é a atitude básica prática no agir
e no querer ajudar. Quais publicações se devem agora mencionar explici-
tamente? É de todo impossível indicar, mesmo só aproximadamente, a bi-
bliografia completa. Nosso propósito é diferente da tarefa dos manuais,
que aumentaram extraordinariamente. Visto que não pretendemos ser
completos nos fatos e sim nos tipos de fatos, temos de selecionar a biblio-
grafia.
Em primeiro lugar devem-se indicar trabalhos que fizeram época; que
instauraram uma corrente de investigação; trabalhos originais, clássicos.
Em segundo lugar, devem-se indicar, o mais possível, resumos recentes,
que, por meio de indicações bibliográficas, tornam acessível determinado
setor. Em terceiro lugar devem-se citar, como exemplos de muitos outros
semelhantes, trabalhos especializados de investigação. A escolha é arbitrá-
ria e não implica nenhum julgamento.
Mal se há esboçado a grande tarefa de um exame real da bibliografia.
Nas ciências particulares existe o mesmo problema que há em maior es-
cala nas grandes bibliotecas. Deve-se estabelecer uma hierarquia dos tra-
balhos, deve-se conhecer as preciosidades sem com elas confundir a tor-
rente de escritos. Deve-se eliminar o que não for essencial e sem embargo
conservá-lo catalogado ao alcance dos especialistas. Não é possível um jul-
gamento definitivo nem uma depuração de tudo através de um tribunal
cultural. No que se eliminou, pode-se encontrar algo de valor, útil para um
pesquisador posterior. Até hoje, em quase todos os setores da psicopatolo-
gia, dispomos apenas de catálogos bibliográficos niveladores.
h) A tarefa da formação psicopatológica.
Uma exposição geral trabalha em algo mais do que um simples saber.
Lida com a formação dos psicopatologistas. Procura e pretende exercitar o
pensamento psicopatológico dentro de um saber estruturado, dentro de
uma concepção disciplinada, dentro de uma experiência metodológica.
Formando psicopatologistas, pretende servir e conservar uma grande tra-
dição. Nesse sentido, o conhecimento só é relevante quando se converte
em formação do pensamento e da visão.
Meu livro quer ajudar o leitor a adquirir uma formação psicopatológica.
Sem dúvida, é mais fácil aprender simplesmente um esquema e aparente-
mente dominar tudo com alguns chavões. A formação, no entanto, nasce
do conhecimento dos limites dentro de um saber ordenado e de uma capa-
cidade intuitiva de pensar capaz de mover-se em todas as direções. À for-
mação psiquiátrica pertencem a experiência pessoal e a posse sempre
pronta da intuição — isso nenhum livro pode dar. Mas à formação psiqui-
átrica pertencem também a clareza dos conceitos e a maleabilidade vari-
ada da concepção — isso é o que meu livro pretende promover.
PARTE 1.
OS FATOS PARTICULARES DA VIDA PSÍQUICA

Os fatos são o terreno de nosso conhecimento. Procurá-los em toda


sua extensão é a atitude fundamental da investigação empírica. Só neles é
que se verificam nossos pensamentos.
Apreensão de fatos é sempre apreensão de fatos particulares. Estes
não são de uma só espécie. A clareza exige uma ordem de seus tipos bási-
cos. Esta ordem pode ser exterior, segundo o material que constitui o
ponto de partida: históricos de pacientes, protocolos de investigação, foto-
grafias, escritos, atas de diversas autoridades, boletins escolares, estatísti-
cas, protocolos de experiências etc. Mas só é essencial uma ordem que
apreender os princípios da perceptibilidade, os quais conferem seu caráter
aos fatos básicos. Neste sentido fundamental devem-se distinguir quatro
grupos de fatos: fenômenos vividos-, rendimentos objetivos; fenômenos so-
máticos concomitantes-, objetividades de sentido (expressão, ações,
obras):
• 1. Um dos fenômenos da alma é a vivência. Numa imagem, deno-
mina-se a corrente da consciência, a corrente única de um pro-
cesso indivisível, que, em inúmeros indivíduos, corre de um
modo sempre diverso. O que fazemos dela, quando a conhece-
mos? Os processos sempre em fluxo se estratificam para nós,
numa objetivação fenomenológica, em formas fixas. Falamos de
uma percepção falsa, de um afeto, de um pensamento como se
possuíssemos com isso determinados objetos, que, assim como
os pensamos, existiriam ao menos por algum tempo. A fenome-
nologia apresenta estas vivências internas subjetivas dos pacien-
tes, aquilo que existe e ocorre em suas consciências. Aos fatos
subjetivos da vivência se contrapõem todos os outros fatos como
objetivos. Os caminhos para apreender estes dados objetivos, são
a observação somática, a compreensão da expressão, da ação e
das obras, a avaliação do rendimento.
• 2. Os rendimentos da alma, p.ex., os rendimentos da apreensão,
memória, trabalho, inteligência, são objetos da psicologia do ren-
dimento. Ela mede os rendimentos qualitativa e quantitativa-
mente. O comum é o fato de o dado ser concebido como cumpri-
mento de uma tarefa, seja de uma tarefa estabelecida pelo pes-
quisador ou de uma tarefa imposta sem intenção, mas de fato
pela situação.
• 3. Os fenômenos somáticos concomitantes da vida psíquica são
objeto da psicologia somática. Observamos processos somáticos
que não são nem alma, nem uma expressão compreensível do
psíquico nem sentido mas, como realidade psicologicamente im-
penetrável, só tem uma relação de fato com o psíquico ou coin-
cide com ele.
• 4. As objetividades psíquicas de sentido são as estruturas per-
ceptíveis que, só quando compreendidas em seu sentido, de-
monstram origem psíquica. São fundamentalmente três tipos de
fatos: compreendemos os fenômenos e movimentos somáticos de
modo diretamente psíquico (psicologia da expressão), compreen-
demos a atividade, ação e comportamento num mundo (psicolo-
gia do mundo); compreendemos produções espirituais nas obras
literárias, artísticas, técnicas (psicologia da obra).
Dentro destes quatro grupos principais percorreremos os fatos <e fenô-
menos em quatro capítulos, onde se mostrará:
• a) Todo fato impõe logo as questões', por que é assim? por meio
de que? e para que? Só se tratará das respostas nas partes se-
guintes. Sempre ficamos insatisfeitos com simples fatos e, no en-
tanto, sentimos uma satisfação especial na compreensão do fato
como tal: isso existe! isso ocorre. E o domínio dos fatos é muito
mais amplo do que os próprios fatos que se podem compreender
e explicar em contextos.
• b) Um fato que imediatamente parece idêntico pode ser, do ponto
de vista genético de natureza inteiramente diversa. Por isso o co-
nhecimento pode lançar uma luz sobre o próprio fato. Na clari-
dade dessa luz se podem perceber então as diferenças, invisíveis
ao primeiro contato. A realidade, que se esconde atrás dos fatos
externos (homicídio, suicídio, ilusão dos sentidos, delírio etc.), é
heterogênea. Por isso se deve ir sempre além dos fatos, caso se
queira compreendê-los clara e seguramente como algo idêntico
consigo mesmo.
• c) Todos os fatos particulares possuem caráter típico dentro de
um todo que lhes é próprio: assim, os fenômenos vividos, dentro
de um todo que lhes é próprio: assim, os fenômenos vividos, den-
tro do estado da consciência, os- sintomas somáticos, dentro do
conjunto da unidade corpo-alma, os rendimentos, dentro da to-
talidade da inteligência, a expressão, a conduta e a obra, dentro
de um todo que se chama de nível de forma, totalidade espiri-
tual, etc.
1.1.
OS FENÔMENOS SUBJETIVOS DA VIDA PSÍQUICA MÓRBIDA
(FENOMENOLOGIA)

À fenomenologia1 compete apresentar de maneira viva, analisar em


suas relações de parentesco, delimitar, distinguir da forma mais precisa
possível e designar com termos fixos os estados psíquicos, que os pacien-
tes realmente vivenciam. Visto que não se pode perceber diretamente um
fenômeno psíquico de outrem, assim como se percebe um fenômeno físico,
só se poderá tratar de representação, de empatia e compreensão, a que
poderemos chegar, segundo o caso, pelo meio de levantamento de uma sé-
rie de caracteres externos do estado psíquico, por meio de comparações e
símbolos sensivelmente perceptíveis, por uma espécie de exposição suges-
tiva. Nisso nos servem de ajuda sobretudo as descrições próprias dos paci-
entes, que, no contato pessoal, podemos provocar e verificar, elaborar da
maneira mais clara e completa; que, numa formulação escrita, feita pelo
próprio paciente, são muitas vezes mais ricas de conteúdo, devendo então
ser simplesmente aceitas. Quem fez a experiência pessoalmente encontra
mais facilmente a formulação adequada. O psiquiatra, que só observa, iria
esforçar-se, em vão, por formular o que o paciente disse de suas vivências.
Dependemos, por conseguinte, do “julgamento psicológico” do paci-
ente. Só os pacientes nos comunicam os fenômenos patológicos mais es-
senciais e perceptíveis. São eles os observadores e nós só temos de. con-
trolar-lhes a veracidade e capacidade de julgar. Por vezes se tomaram por
demasiado seguras as comunicações dos pacientes: em outras ocasiões, se
duvidou delas com demasiado rigor. As descrições, psicóticas não são ape-
nas insubstituíveis mas dão também muitos- resultados fundamentais. A
comparação de muitos doentes apresenta descrições sempre semelhantes.
Diversas pessoas são, ao mesmo tempo, muito bem dotadas e altamente

1 Cf. meu ensaio: Die phänomenologische Forschungsrichtung in der Psychopathologie. Z. Neun, vol. 9, pág. 391
(1912). — A palavra Phänomenologie é usada por Hegel para designar a totalidade dos fenômenos da mente na
consciência, na história e no pensamento. Usamo-la para designar o campo muito mais restrito da vivência psí-
quica, individual. Husserl empregou a palavra, de início, para referir-se à “psicologia descritiva” dos fenômenos da
consciência; neste sentido, ela tem valor para nossas investigações) ; mais tarde, no entanto, para referir-se “à
visão da essência”, de que aqui não tratamos. Para nós, a fenomenologia é procedimento empírico, que só se
mantém pelo fato da comunicação da parte dos pacientes. É evidente que, nesse procedimento psicológico, a
situação é diversa da que ocorre em relação à descrição científico-natural. O objeto não é, ele próprio, existente
para os nossos sentidos; a experiência mais não é do que representação. Entretanto, o princípio lógico não é ou-
tro. Descrever exige, além de categorias sistemáticas, formulações felizes e confrontos contrastantes, apresenta-
ção da afinidade entre os fenômenos e da seriação respectiva; ou então, da ocorrência dos mesmos em saltos
sem transição.
fidedignas. Todavia não só os doentes histéricos não merecem confiança
mas a grande maioria das autodescrições psicopáticas deve ser conside-
rada de modo bastante crítico. Os. doentes relatam para serem agradá-
veis, o que deles se espera, ou por sensação quando notam o interesse.
Representar o que acontece realmente no paciente, suas vivências re-
ais, como algo lhe está na consciência, seu estado de ânimo, é o começo
do qual se devem abstrair, em primeiro lugar, os contextos, a vivência
como um todo, e muito mais ainda o que se acrescenta e se pensa como
fundamento, as ideias teóricas. Só o que realmente existe na consciência,
deve ser representado. Tudo- que não se encontrar realmente na consciên-
cia, não existe. Temos, de deixar de lado todas as teorias, as construções
psicológicas, tudo que é simples interpretação e julgamento. Devemo-nos
voltar puramente para o que podemos compreender, distinguir e descrever
em sua existência real. Como ensina a experiência, trata-se de tarefa difí-
cil. Essa ausência de preconceitos, característica e fenomenológica na per-
cepção do fenômeno como tal, não é dom originário e sim uma conquista
laboriosa depois de trabalho crítico e esforços muitas vezes baldados. As-
sim como nós, quando crianças, primeiro desenhávamos as coisas não da
forma que as víamos, mas da forma que imaginávamos, assim também,
como psicopatologistas, passamos, através de um estágio em que imagina-
mos de um modo determinado o psíquico, para uma apreensão direta e
despreconcebida do psíquico assim como é em si mesmo. E esta atitude
fenomenológica é um esforço sempre renovado e um valor que deve ser
conquistado sempre de novo, vencendo-se os preconceitos.
Muitas vezes o aprofundamento penetrante num caso particular en-
sina fenomenologicamente o que é geral para inúmeros casos. O que se
apreendeu uma vez encontra-se na maioria das vezes. logo a seguir. Na fe-
nomenologia importa menos acumularem-se casos sem fim do que a visão
interna, o mais possível completa, de casos particulares.
Exige-se na histologia que se leve em conta na investigação do córtex
cerebral todo filamento, todo grãozinho. De maneira identicamente aná-
loga exige a fenomenologia: deve-se dar conta de todo fenômeno psíquico,
de toda vivência que aparece na exploração do paciente e em suas descri-
ções próprias. De forma alguma, alguém se deve dar por satisfeito com
uma impressão geral e alguns detalhes escolhidos ad hoc. Deve-se saber a
respeito de cada particularidade, como se deve julgá-la e entendê-la. Se se
procede assim por um tempo, então, de um lado tornar-se-á menos curi-
osa uma coisa que se viu muitas vezes, e que quem trabalha com impres-
sões gerais, não tendo conhecimento dela, acha extraordinária e nunca
vista segundo o sentido momentâneo de sua capacidade de impressionar-
se; por outro lado leva-se em consideração o que é realmente desconhe-
cido e se chega a uma admiração bem fundada. Não há perigo dessa ad-
miração terminar um dia.
O importante na fenomenologia é, portanto, exercer a visão, perma-
nente do que é vivido diretamente pelo doente a fim de poder reconhecer o
que há de idêntico dentro da multiplicidade. É necessário assimilar intei-
ramente, por meio de exemplos concretos, um rico material fenomenoló-
gico. Ele nos confere critério e orientação em novos casos.
É de importância também descrever fenômenos curiosos e inespera-
dos. Vale conhecê-los como tais, p.ex. os fenômenos básicos da consciên-
cia da existência. Além disso é muitas vezes a visão do anormal que en-
sina a explicar-se o normal. Não tem muito sentido, porém, estabelecerem-
se distinções lógicas de modo abstrato sem exemplos perceptíveis.
Tratamos agora em primeiro lugar dos fenômenos particulares, a se-
rem encarados isoladamente, como p.ex., falsas-percepções, estados de
ânimo, excitações dos instintos; em segundo lugar, esclareceremos as pro-
priedades do estado de consciência que, segundo sua espécie, pode confe-
rir aos fenômenos antes tratados uma nuance especial e fazer aparecer de
maneira diferente a sua importância no contexto da vida psíquica.
SEÇÃO 1.
FENÔMENO PARTICULARES DA VIDA PSÍQUICA ANORMAL.

a) A estruturação do contexto de relações dos fenômenos.


Em toda vida psíquica desenvolvida existe o fenômeno originário, irre-
dutível de que um sujeito se opõe aos objetos, de que um eu se sente diri-
gido a conteúdos. Podemos, consequentemente, contrapor uma consciên-
cia do objeto a uma consciência do eu. Esta primeira distinção permite
descreverem-se por si mesmas estruturas anormais (p.ex., percepções al-
teradas, ilusões) e a seguir investigar os modos de alteração da consciên-
cia do eu. Um movimento, porém, mantém juntas a natureza de estado da
consciência do eu e a natureza de objeto do outro, ao qual me acho refe-
rido: sou apreendido por algo externo; sou impelido internamente para
apreender algo externo. Quando a descrição começa em algo objetivo, di-
rige-se à importância deste algo objetivo para o eu; caso comece em esta-
dos do eu, estados emocionais, disposições, impulsos, dirige-se ao dado
objetivo onde estes estados se tomam claros.
A referência a objetos é, sem dúvida, fenômeno indispensável de toda
vida psíquica inteligível, mas só com isso ainda não se obtém a distinção
dos fenômenos em si mesmos. O que vivenciamos diretamente, é uma to-
talidade de referências, que articulamos em si a fim de poder descrever os
fenômenos.
Esta totalidade de referências se funda sempre nos modos de vivência
do espaço e tempo, da consciência do corpo e da realidade. A totalidade se
estrutura ainda através da oposição de estado emocional e impulso e to-
dos estes momentos se estruturam, por sua vez, em si mesmos.
Por fim, a distinção dos fenômenos em imediatos e mediatos abrange
todas estas estruturações. Todo fenômeno tem o caráter de ser vivenciado
diretamente. Todavia é essencial para a alma transcender constantemente
pelo pensamento e pela vontade o imediato. O fenômeno originário que
possibilita pensar e querer, chamamos de reflexibilidade-. o voltar-se da
vivência sobre si mesma e sobre o conteúdo. Assim se originam fenômenos
mediatos, e toda a vida psíquica humana é perpassada de reflexibilidades.
A vida psíquica consciente não é, portanto, aglomerado de fenômenos
particulares isoláveis, mas um todo de referências em constante fluxo, do
qual extraímos pela descrição fatos particulares. Esse todo de referências
pode ser transformado pelo estado de consciência em que se encontra a
alma. Todas as distinções que fazemos têm valor provisório e depois, se
não forem abandonadas, serão superadas.
Desta visão geral do conjunto de referências resulta:
• l.° Os fenômenos, só em parte, se devem descrever de maneira
determinada e delimitável, de sorte que, em diversos casos, po-
dem ser realmente reconhecidos de forma idêntica. O isolamento
torna os fenômenos mais puros e determinados do que são na
realidade. Mas só aceitando-se provisoriamente esta deficiência é
que chegamos a visões pregnantes, à intensidade de nossa ob-
servação e à precisão de nossa exposição;
• 2.° Nas descrições, os fenômenos, segundo o aspecto preferido de
sua manifestação, podem ocorrer numa multiplicidade de formas
(p.ex., caracteres de percepção nos sentimentos e na consciência
do objeto).

b) Forma e conteúdo dos fenômenos.


Vale para todos os fenômenos a serem descritos; deve-se distinguir a
forma do. conteúdo sempre variável, p.ex., o fato e a ilusão de seu conte-
údo, seja ele um homem, uma árvore, figuras ameaçadoras ou paisagens,
tranquilas. Percepções, representações, juízos, sentimentos, impulsos,
consciência do eu são formas de fenômenos psíquicos. Designam o modo
de existir em que se nos apresentam os conteúdos.' Na descrição da vida
psíquica concreta é, sem dúvida, indispensável a apreensão de determina-
dos conteúdos, que pessoas individuais possuem. Todavia, do ponto de
vista fenomenológico, interessam-nos as formas. Segundo o ponto de vista
do momento — caso se pense no conteúdo ou na forma do dado — as in-
vestigações fenomenológicas ou de conteúdo são secundárias. Para os do-
entes, só os conteúdos são o importante. Não conseguem, muitas vezes,
concentrar-se e considerar o modo do que lhes é dado; misturam alucina-
ções, pseudoalucinações, consciência delirante etc., uma vez que nunca
distinguiram coisas para eles tão secundárias.
Mas os conteúdos modificam também o modo em que os fenômenos
são vividos. São eles que conferem peso aos fenômenos na totalidade da
vida psíquica e dão sentido à interpretação e auto- apreensão dos fenôme-
nos.
Digressão sobre forma e conteúdo. A oposição de forma e conteúdo é
universal em todo conhecimento. Também na psicopatologia trata-se de
uma oposição em uso constante desde os fenômenos psíquicos mais sim-
ples até às totalidades. Dos inúmeros significados extraímos os seguintes:
• l.° Em toda vida psíquica, um sujeito está sempre referido a algo
objetivo. Este, em sentido amplo, chama-se conteúdo da vida
psíquica. O modo, porém, em que o indivíduo tem o objeto diante
de si (se, como percepção, como representação, como pensa-
mento), chama-se forma. Assim, por ex., conteúdos hipocondría-
cos são igualmente conteúdos de vozes que chamam, de ideias
obsessivas, de ideias paranoides, de ideias delirantes. No mesmo
sentido fala-se em conteúdos da ansiedade e em outros estados
afetivos.
• 2.° Opõe-se a forma das psicoses aos conteúdos particulares: p.
ex., fases periódicas de depressão disfórica se opõem como forma
de enfermidade, à conduta particular nas mesmas (suicídio, im-
pulso de andar, embriaguez), como conteúdos.
• 3° Consideram-se forma, modificações mais gerais da vida psí-
quica, que só se podem conceber psicologicamente, assim p. ex.,
a vida psíquica esquizofrênica ou histérica. Nestas formas ocor-
rem como conteúdo todo os impulsos e desejos, todos os pensa-
mentos e fantasias simplesmente possíveis. Realizam-se nelas de
um modo especial; a saber; esquizofrênico ou histérico.
As formas possuem para o fenomenologista o maior interesse. Os con-
teúdos lhe são mais acidentais enquanto para a psicologia compreensiva
são essenciais de sorte que as formas podem não ser essenciais para seu
aparecimento.

c) Transições entre os fenômenos.


Parece que muitos doentes podem perceber os mesmos conteúdos em
sequência rápida, nas mais diversas formas fenomenológicas em que se
dão. O fato de o mesmo conteúdo de ciúme numa psicose aguda retornar
nas mais diversas formas (estados afetivos, alucinatórios, delirantes), po-
deria levar a falar-se, num mal-entendido, de “transições” entre várias for-
mas. Essa expressão geral, “transições”, no entanto, favorece a preguiça
de analisar. Sem dúvida é verdade que a vivência individual do momento é
tecido de muitos fenômenos que se podem separar na descrição: assim,
p.ex., o fato de uma vivência alucinatória conter vivência evidente de delí-
rio, a seguir, o fato de elementos sensíveis poderem diminuir sempre mais
e, muitas vezes, em casos individuais, não se poder estabelecer se exis-
tiam ou não. Por conseguinte, as distinções dos fenômenos, os abismos fe-
nomenológicos (p.ex., entre corporeidade e representatividade) permane-
cem em oposição às transições fenomenológicas, p.ex., de estados consci-
entes para alucinações). Apreender, aprofundar, aumentar e ordenar cla-
ramente estas distinções constitui aqui tarefa científica que só nos pode
ajudar na análise dos casos.

d) A divisão dos grupos de fenômenos.


Nos parágrafos seguintes, descrevem-se os fenômenos anormais, pas-
sando das estruturas objetivas para a vivência de espaço e tempo, para a
consciência do corpo e da realidade com ideias delirantes a seguir através
dos estudos afetivos, dos impulsos e da vontade, para a consciência do eu
e por fim para os fenômenos reflexivos. Os limites dos parágrafos são con-
dicionados pela perceptibilidade e propriedade dos fenômenos possíveis de
serem apreendidos por si e não* por um esquema prévio, deduzido abstra-
tamente. Ordenar e classificar sistematicamente de maneira satisfatória os
dados fenomenológicos é, ao menos no momento, impossível. A fenomeno-
logia, um dos fundamentos de toda a psicopatologia, ainda se encontra em
seus primórdios. Ao descrever os fenômenos não queremos encobrir tal si-
tuação; temos; no entanto, de ordená-los provisoriamente de alguma ma-
neira. Neste tipo de classificação, a melhor é a que torna perceptível o que
flui naturalmente da própria realidade e, ao mesmo tempo, por suas incor-
reções, impele a apreender novamente a totalidade dos fenômenos a partir
de uma intuição mais profunda — e não de agrupamentos lógicos.

§ 1. Consciência Do Objeto

Observações psicológicas preliminares: No sentido mais amplo do


termo, chamamos “objeto” tudo que se nos depara, tudo que, por meio de
uma visão espiritual interna ou de uma visão externa dos sentidos, temos
diante de nós, tudo que aprendemos, pensamos, reconhecemos; tudo
aquilo a que podemos estar internamente referidos como a algo* que se
nos contrapõe, seja real ou irreal, concreto ou abstrato, claro ou obscuro.
Os objetos se nos apresentam nas percepções ou nas representações. Nas
percepções, o objeto se nos depara corporalmente (leibhaft) (outras expres-
sões: como “perceptivelmente presente”, com. sentimento de apreensão
viva, com caráter de objetividade), nas representações, através de imagens
(como ausente, com caráter de subjetividade). Nas percepções como nas
representações distinguimos três- elementos: o material da sensação (p.
ex., vermelho, azul, tom na altura dó, etc.), a ordem espacial e temporal e
o ato intencional (o estar dirigido a alguma coisa, a objetivação). Em certo
sentido, o ato dá vida ao material das sensações. Só pela objetividade, do
ato é que o* material sensível adquire significação. Ao ato denomina-se
também pensamento, consciência de significação. Existe ainda o fato feno-
menológico de os atos intencionais ocorrerem sem base no material da
sensação. Um dado não sensível pode fazer-se presente na forma de um
simples, saber de alguma coisa, p. ex., ao ler rapidamente. Temos então
distintamente presente o sentido das palavras, mas não nos representa-
mos sensivelmente os objetos a que o texto alude. Este ter presente um
conteúdo sem representação sensível chama-se cognição (Bewusstheit).
Esta, por sua vez, pode ser corpórea, correspondendo à percepção, assim
p. ex., quando sabemos estar “alguém” atrás de nós, sem percebê-lo nem
representá-lo (na linguagem comum, se diz que se “sente” alguém pre-
sente) ou, correspondendo à representação, pode ser uma cognição sim-
plesmente do pensamento, como ocorre na maioria das vezes.
Lembramos as maneiras anormais de os objetos se darem nas vivên-
cias originárias:

a) Anomalias da percepção.
1° Alterações na intensidade das sensações.
Ouvem-se os sons em tom mais alto. Veem-se as cores mais brilhan-
tes. Um telhado vermelho aparece como uma chama, o fechar-se de uma
porta soa como um canhão, o ranger da madeira se converte em estam-
pido, o vento se faz tempestade (nos delírios, no início da narcose, nas in-
toxicações, antes de crises epilépticas, nas psicoses agudas).
Um psicopata, que há anos, havia recebido de raspão um tiro na ca-
beça, escreve: “Desde meu ferimento na cabeça, sinto periodicamente um
aumento extraordinário de intensidade na audição. Ocorre com intervalos
de 4 — 8 semanas e nunca de dia, sempre à noite na cama. A transição é
de surpresa e rápida. Sons, quase imperceptíveis em estado normal, pene-
tram-me os ouvidos com sonoridade perfeita, distinta, descomunal. Instin-
tivamente procuro ficar em completa imobilidade uma vez que o simples
roçar da roupa de cama ou do travesseiro provoca um mal-estar fora do
comum. O relógio de bolso na mesa de cabeceira parece transformar-se
num carrilhão de igreja; o ruído de carros e trens que passam, a que em
estado normal estou acostumado e que não me incomoda, penetra-me
orelha adentro como o estrondo de uma avalanche. Banhado de suor, as-
sumo instintivamente uma posição hirta para a seguir constatar de chofre,
sem nenhuma transição, o retorno do estado normal. A duração desse fe-
nômeno é de aproximadamente 5 minutos mas que me parecem nunca
acabar (Kurt Schneider).
Parece ocorrer também o inverso, diminuição de intensidade. O mundo
parece mais escuro, o paladar é insosso, tudo tem o mesmo gosto (melan-
colia). Um esquizofrênico descreve: Os raios do sol empalidecem em minha
frente quando, voltado para o sol, falo alto. Posso olhar sem dificuldade,
diretamente para o sol. Só fico um pouquinho ofuscado, enquanto nos
dias normais não seria possível para mim como para os demais, olhar di-
retamente o sol por um minuto (Schreber).
Há insensibilidade ou diminuição de sensibilidade a estímulos doloro-
sos (anestesia e hipalgesia) tanto local como geral. A local é na maioria dos
casos de origem neurológica, muitas vezes também de origem" psíquica
(histeria). A geral ocorre com caráter histérico, hipnótico ou provocado por
emoções violentas (p. ex., em soldados na batalha) e como sintoma de pre-
disposição especial (mas somente na forma de hipalgesia).
2°. Troca de qualidade nas sensações.
Ao ler, as páginas brancas aparecem de repente vermelhas e as letras
verdes. O rosto de outras pessoas apresenta um tom estranhamente
pardo, as pessoas parecem chinesas ou Indus.
No início da embriaguez de mescalina, Serko observou em si mesmo
que todas as percepções reais adquiriam colorido infinitamente rico de
sorte que ele experimentava verdadeira embriaguez de cores:
“Os objetos mais insignificantes, antes nunca observados, como pontas
de cigarro e fósforos meio queimados no cinzeiro, cacos coloridos no mon-
tulho de uma construção distante, visível da janela, manchas de tinta na
escrivaninha, as fileiras monótonas dos livros, brilhavam por assim dizer
numa vivacidade de cores, difícil de escrever. E de modo especial os obje-
tos vistos indiretamente atraíam sobre si a atenção quase sem possibili-
dade de resistência, pelo fervilhar sobremodo vivo de suas cores... mesmo
as sombras tênues no teto do quarto e nas paredes bem como as sombras
pálidas, projetadas no chão pelos móveis, apresentavam tom de cor fino e
terno que dava a todo o quarto encanto lendário”.
3° Sensações anormais concomitantes.
Um esquizofrênico descreve: Toda palavra dita a mim ou em minha
presença, toda ação de alguém, por menor que seja e que provoque um
ruído qualquer, eu sinto juntamente com um golpe desferido contra a ca-
beça, que provoca certa sensação de dor. Esta se manifesta como empu-
xão brusco na cabeça devido a ter-se rasgado uma parte da substância ós-
sea na calota craniana (Schreber).
Nestes casos, não raros em processos esquizofrênicos mas existentes
também em outros processos, trata-se de sensações concomitantes reais e
não das conhecidas associações de imagens entre um som e uma cor (au-
dition coloree, sinopsia).

b) Caracteres anormais da percepção.


Há na percepção uma série de qualidades que nos são corriqueiras,
tais como familiaridade e estranheza, tonalidade afetiva e estado de ânimo.
Estes caracteres da percepção aparecem nas seguintes modalidades anor-
mais:
1° Estranheza do mundo da percepção:
É como se eu visse tudo através de um véu; como se ouvisse tudo atra-
vés de um muro. — As vozes dos outros parecem-me provir de longe. As
coisas já não parecem como dantes. São diferentes, estranhas, parecem
achatadas como relevo. Minha própria voz soa estranho para mim mesmo.
Tudo se me afigura assombroso, novo, como se não o tivesse visto há
muito tempo. — É como se tivesse sido esticada sobre minha pele outra
pele. Eu me apalpo às vezes para me convencer de minha existência cor-
pórea.
São assim as queixas dos pacientes que apresentam um grau mais
brando deste distúrbio, Estes doentes não se podem satisfazer «com suas
descrições da transformação, da estranheza de suas percepções. Elas são
tão estranhas, tão exóticas, tão fantasmagóricas. Todas as expressões pre-
tendem ser imagens. Não possuem palavras que designem diretamente
suas percepções transformadas. Não pensam que o mundo realmente se
transformou. Apenas se lhes afigura como se tudo fosse diferente. E se há
de comprovar sempre nestes casos que estes doentes possuem na verdade
uma visão, um -ouvido, um tato extraordinariamente agudos e claros.
Trata-se, por conseguinte, de distúrbio no processo de percepção, que não
atinge nem os elementos da sensação, nem a apreensão do significado
nem o juízo sobre a percepção. Deve haver na percepção normal algo que
não notaríamos se estes doentes não apresentassem suas queixas especí-
ficas. Nos casos graves de perturbação, as descrições se fazem sempre
mais curiosas.
Todos os objetos se me afiguram tão novos e desconhecidos que menci-
ono os nomes das coisas que vejo: toco-as várias vezes para convencer-me
de sua realidade. Bato com o pé no chão e não obtenho nenhuma sensa-
ção de realidade. Alguns doentes se sentem desorientados, pensam não
encontrar o caminho, enquanto, na verdade, o conhecem tão bem como
antes. Em ambientes realmente desconhecidos aumenta a sensação de es-
tranheza; agarrei-me com pavor ao braço de meu amigo, sentia que estava
perdido se ele me abandonasse um instante. — Todos os objetos parecem
estar infinitamente distantes (não confundir com as ilusões corpóreas de
distância), a própria voz parece ecoar no infinito e por isso os pacientes
pensam não serem ouvidos pelos outros. Têm a sensação de vagarem
longe de toda realidade por espaços cósmicos em isolamento aterrador. —
Tudo é como um sonho. Como o espaço é infinito sentem-se que já não há
tempo, que permanece sempre o mesmo instante ou que transcorrem infi-
nitos espaços de tempo. — Estou numa tumba, totalmente isolado, nin-
guém se acha ao redor. Vejo tudo preto; mesmo quando brilha o sol, só
vejo preto. Estes doentes, no entanto, veem tudo e não apresentam ne-
nhuma perturbação na parte sensorial da percepção.
Nestes casos mais graves, o juízo propriamente dito não se mostra de
início comprometido, quando se examinam com toda «exatidão os pacien-
tes, mas os sentimentos são tão imperiosos que eles já não podem repri-
mir-lhes os efeitos. Têm que tocar para ver se ainda existem realmente,
têm de convencer-se pelo contacto da existência da superfície da terra. O
distúrbio psíquico toma-se, por fim, tão grave que já não se pode falar em
juízo. Os doentes aterrorizados e perplexos — na maioria dos casos ainda
apresentam outras perturbações graves — vivem os sentimentos como re-
alidade e já não podem chegar a nenhuma reflexão crítica. O mundo desa-
parece para eles. Já não há mais nada. Vivem sós num isolamento terrível
no meio dos infinitos. Devem viver eternamente, pois sentem que já não
existe tempo. Eles próprios não existem, seu corpo, está morto. Seu des-
tino torturante é apenas esta aparente existência.
2° O mundo da percepção assim como pode ser vivido, como estra-
nho e desconhecido, como morto, assim também pode-se vivê-
lo, de modo anormal, como totalmente novo e de beleza eston-
teante:
“Tudo adquiriu outra aparência. Via, por assim dizer, em tudo- um
rasgo de divina magnificência”. “Era como se tivesse chegado a um mundo
novo, a uma nova existência. Todos os objetos estavam cercados de uma
auréola de glória, minha visão espiritual estava tão- transfigurada que via
beleza em todo o universo. As florestas ressoavam de música celeste” (Ja-
mes).
3° Estas descrições já demonstram que os objetos não eram perce-
bidos apenas com os sentidos.
Atribui-se-lhes um caráter afetivo. O caso mais importante, de se ver
no sensível não apenas o sensível, mas de nele se apreender também o
psíquico, é a empatia (Einfuehlung) com outras pessoas. Os fenômenos
patológicos residem em fracasso da empatia — os outros parecem mortos,
os. doentes pensam vê-los apenas externamente, mas já não têm consci-
ência da vida psíquica dos outros — ou em empatia torturantemente insis-
tente — a vida psíquica alheia se impõe com extraordinária vivacidade à
passividade sem defesas do enfermo — ou em empatia ilusória, fantástica
— percebe-se um psíquico que não é- em nada real.
Um doente de encefalite letárgica, relata: “Neste tempo tinha, também
um sentido incrivelmente apurado para coisas emponderais, para disposi-
ções afetivas ou semelhantes, assim por ex., sentia logo a menor distonia
entre dois camaradas de meu regimento”. O paciente relata que ele mesmo
não participava dos sentimentos, que percebia, apenas registrava. “Não
era uma participação natural” (Mayer-Gross e Steiner).
No início de processos psicóticos sente-se entre outras coisas um au-
mento da capacidade de empatia, da variedade de se apreenderem sutil-
mente as diferenças dos estados de ânimo. Um paciente sentia, antes do
desencadear-se de sua psicose aguda, intensificação crescente dessa ca-
pacidade de empatia, de cuja anormalidade ele mesmo tinha consciência.
As obras d’arte eram para ele profundas, ricas, impressionantes como
uma música embriagadora, as pessoas se lhe afiguravam mais complica-
das do que antes. Julgava compreender as almas femininas mais variada-
mente do que nunca. As obras literárias provocavam-lhe noites de insônia.
Observa-se como característica (também no início de processos psicóti-
cos) uma modalidade que consiste em não se poder compreender a vida
psíquica alheia. As outras pessoas afiguram-se aos doentes tão exóticas e
incompreensíveis que, ao invés de si mesmos, as consideram doentes
mentais (transitivismo, Wernicke).

c) Divisão da percepção.
Com esta expressão se pode denominar os fenômenos que descrevem
esquizofrênicos, e que ocorrem de forma semelhante em intoxicações.
“Um pássaro chilreia no jardim. Ouço o pássaro e sei que ele chilreia,
mas que é um pássaro e que chilreia são coisas tão distantes e separadas.
É um abismo. Quase temia não poder bem reuni-las. Assim como se o
pássaro e o chilrear não tivessem nada um com o outro”. (Fr. Fischer).
Na embriaguez pela mescalina: “Ao abrir os olhos, vi na direção da ja-
nela, sem percebê-la como janela, tudo cores, manchas verdes e azul-cla-
ras. Sabia que eram as folhas de uma árvore e o céu visível entre elas. Mas
não era possível referir essas sensações a coisas distintas no espaço em
diversos lugares” (Mayer-Gross e Steiner).

d) Falsas-percepções
Após a descrição de todas estas percepções anormais, onde se veem
não objetos novos, irreais mas apenas objetos reais de maneira diferente,
voltamo-nos agora para as falsas percepções propriamente ditas, onde se
percebem falsamente novos objetos. Desde Esquirol distinguem-se ilusões
e alucinações. Chamam-se ilusões todas as percepções originadas por
transformação, de percepções reais mas em que os estímulos externos
compõem de tal maneira uma unidade com elementos reproduzidos que
não se podem distinguir os diretos dos reproduzidos. Alucinações são per-
cepções corpóreas que não se originam de percepções reais por meio de
transformações mas de modo inteiramente novo.
aa) Entre as ilusões pode-se distinguir 3 tipos: as ilusões por falta de
atenção, as ilusões afetivas e as pareidolias.
1° Ilusões por falta de atenção. A investigação experimental da percep-
ção mostrou que em quase toda percepção se introduzem alguns elemen-
tos reproduzidos. Quase sempre se complementam os estímulos externos
escassos devido à brevidade da atenção. Assim, p. ex., ao ouvir uma confe-
rência, se completa muita coisa e só se nota quando se comete um erro.
Passa-se por cima de quase todos os erros de imprensa de um livro e se
completam ou corrigem adequadamente de acordo com o contexto. Todas
estas ilusões logo desaparecem quando se presta atenção. Aqui entram em
parte os desconhecimentos, também as percepções imprecisas e errôneas,
que ocorrem, p. ex., nos paralíticos, nos delirantes etc. Estes desconheci-
mentos ilusórios exercem influência na leitura errada, na audição errada,
na transformação das impressões óticas destes doentes.
2° Ilusões afetivas. Num passeio solitário à noite pelo bosque toma-se
por medo um tronco de árvore, uma forma rochosa por uma figura hu-
mana. O melancólico, por medo de ser assassinado, vê na roupa pendu-
rada à parede um cadáver pendurado, ouve um ruído indiferente, como o
tinir de correntes, com as quais vai ser amarrado. Estas ilusões se podem
compreender quase sempre por um conteúdo afetivo.
3° Pareidolias. Sem emoção, sem juízo sobre a realidade mas também
sem que as imagens desapareçam com a atenção, a fantasia, “produtiva
devido a impressões sensoriais incompletas”, forma de nuvens, de superfí-
cies de muros antigos etc., imagens ilusórias com nitidez corpórea.
Joh. Mueller o descreve:
“Muitas vezes esta plasticidade da fantasia nos anos da instância me intri-
gou. De uma recordo-me da maneira mais viva. Na casa de meus pais
olhavam pelas janelas da sala uma casa da rua de aspecto um tanto an-
tigo, com a caiação em vários lugares muito enegrecida e em outros, caída
em pedaços, de várias formas, de sorte a se poder ver uma pintura mais
antiga, até mesmo a mais antiga de todas. Quando, olhando através. da
janela, via só a parede cheia de fuligem da casa vizinha, conseguia reco-
nhecer na moldura da caiação caída e da que ficava, muitos rostos que
adquiriam até uma expressão correspondente pela contemplação repetida
muitas vezes”. “Ao querer chamar a atenção dos outros também para o
fato de se estar obrigado a ver toda sorte de restos na caiação caída, nin-
guém queria dar-me razão mas eu via com toda a clareza”. “Nos anos se-
guintes já não o consegui e, embora ainda tivesse as figuras bem claras
na mente, já hão podia reencontrá-las nos contornos donde me tinham
surgido”.
Uma doente da clínica da Heidelberg via, com completo discernimento, “como
que tecidas” no cobertor e na parede cabeças de homens e animais, via
máscaras fazendo caretas e indicava as manchas do sol na parede. Sem-
pre sabia que se tratava de ilusões. Relatava que os olhos formavam com
toda cavidade e proeminência um rosto — Uma outra doente se admirava:
“As coisas se transformam em quadros”. “Os buracos redondos na janela
(o buraco da fechadura) se convertem em cabeças. Movem-se sempre para
mim como para morder”.
Um outro paciente descreve suas ilusões, vividas na caça: “Ao invés de gre-
tas via frequentemente aqui e acolá nas árvores e arbustos, em silhuetas
de sombra mas bem claras figuras burlescas, sujeitos barrigudos com per-
nas tortas e finas, nariz longo e grosso ou elefantes de trombas compridas
que me olhavam esbugalhados. No chão pareciam muitas vezes formigar
lagartixas, rãs e sapos. Às vezes eram fantasticamente grandes. Todas as
formas possíveis de animais e figuras diabólicas me cercavam. Cada ar-
busto, cada ramo assumiam formas fantásticas que me irritavam. Outra
vez aparecia em cada árvore, em cada arbusto uma figura feminina, cada
caniço parecia querer cercar-se de tal figura. Nas nuvens que passavam,
via figuras de moças, sorrindo tentadoramente; e quando o vento movia os
ramos, acenavam para mim formas de moças. O sopro do vento se conver-
tia em seus sussurros”. (Staudenmaier).
Ilusões análogas se observam nos doentes. À consciência crítica apre-
sentam-se como algo estranho que os doentes podem observar, ver origi-
nar-se e desaparecer enquanto as outras ilusões ou logo desaparecem com
a atenção ou se transformam com as emoções donde nasceram.
Devem-se distinguir as ilusões de fatos vividos pelos sentidos das in-
terpretações intelectuais. Quando se considera todo metal brilhante,
quando se toma o médico por um funcionário do Estado, estas interpreta-
ções não mudam coisa alguma no processo da percepção dos sentidos.
Além disso, devem-se distinguir as ilusões das chamadas alucinações fun-
cionais. Quando a água corre da bica, um doente ouve vozes, quando se
fecha a bica, deixa de ouvir. Ouve o correr da água e as vozes ao mesmo
tempo separadamente. Nas ilusões se encontram elementos reais de per-
cepção. Aqui, por ocasião de percepções dos sentidos, que permanecem
como tais, ocorrem paralelas juntamente com elas alucinações que, com o
fim da percepção, também desaparecem.
bb) As verdadeiras alucinações são falsas-percepções corpóreas que
não se originam, por transformação, de percepções reais e sim de modo
inteiramente novo, e que surgem paralelas e juntamente com percepções
reais. Pela última característica elas se distinguem das alucinações em so-
nhos. Podem-se comparar estas alucinações verdadeiras com a conhecida
persistência de imagens, que se dá na retina, com os fenômenos mais ra-
ros da memória sensitiva (o ouvir posterior, falaz mas corpóreo de palavras
antes percebidas, o ver de objetos microscópicos após intenso trabalho
etc., fenômenos que surgem especialmente em estado de forte cansaço),
com os fenômenos fantásticos da visão, classicamente descritos por Joh.
Mueller e com as imagens óticas intuitivas e subjetivas, hoje famosas.
Um exemplo de memória dos sentidos é a seguinte autodescrição (do
conselheiro privado Tuczek de Marburgo, que a colocou amigavelmente a
nossa disposição): “Uma grande parte do dia me tinha ocupado por horas
a fio em colher maçãs. Numa escada, manipulava o coletor de maçãs
olhando sem interrupção para cima a copa das árvores e puxando a te-
soura amarrada a uma vara comprida. Quando ia à noitinha para a esta-
ção de ferro pelas ruas mal iluminadas da cidade, fui sensivelmente estor-
vado na caminhada por ver constantemente diante de mim os ramos car-
regados de maçãs. O fenômeno era tão insistente que não pude deixar de
andar com a bengala na frente, agitando o ar vazio; o fenômeno durou vá-
rias horas até deitar-me e adormecer”.
Das auto-observações de Johannes Mueller sobre fenômenos fantásti-
cos da visão apresentamos o seguinte excerto: Noites de insônia se me tor-
navam mais curtas quando podia, por assim dizer, andar acordado entre
as próprias criaturas de meus olhos. Quando quero observar estas ima-
gens brilhantes, olho dentro da escuridão do campo visual com os olhos
fechados, totalmente em repouso; com uma sensação de relaxamento e
máxima tranquilidade nos músculos orbiculares, mergulho inteiramente
no repouso sensível dos olhos ou na escuridão do campo visual. Afasto to-
dos os pensamentos, todo juízo... Se, de início, o campo visual escuro
ainda é rico de pontos luminosos particulares, em névoas, em cores que se
trocam e se transformam, logo surgem em seu lugar imagens limitadas de
objetes variados, no começo luzindo palidamente, depois mais distinta-
mente. Não há dúvida que eles realmente brilham e muitas vezes são colo-
ridos. Eles se movem, se modificam, surgem muitas vezes bem pelas bor-
das, do campo visual com uma vivacidade e clareza de imagem como
nunca vemos algo tão claro nas imagens do campo visual. Ao mais leve
movimento do olho geralmente desaparecem; também a reflexão os afu-
genta imediatamente. Raras são as figuras conhecidas, em geral, são figu-
ras singulares, homens, animais que nunca vi, espaços iluminados onde
nunca estive... Não só à noite, a qualquer hora do dia sou capaz destes fe-
nômenos. Passei muitas horas de repouso, bem distante do sono, obser-
vando de olhos fechados estes fenômenos. Muitas vezes necessito apenas
sentar-me, fechar os olhos, abstrair-me de tudo, aparecem involuntaria-
mente estas imagens que se me fizeram amigas e logo desde minha tenra
juventude... Frequentemente, a imagem luminosa aparece no campo vi-
sual escuro; frequentemente também a escuridão do campo visual, antes
de aparecerem as imagens particulares se vai pouco a pouco iluminando
numa espécie de pálida luz diurna interior. Logo após surgem então as
imagens. Tão curioso como o aparecimento das imagens luminosas, foi
para mim, desde que observo estes fenômenos, a luminosidade progres-
siva o campo visual, pois vejo surgir dentro deste aos poucos com os olhos
fechados a claridade do' do dia e vejo andar de dia, de olhos fechados figu-
ras luminosas como produtos da própria vida do sentido; e tudo isso em
estado vigil, longe de qualquer superstição, de todo fanatismo, com refle-
xão serena, é para o observador algo estranhamente maravilhoso... Posso
distinguir com- toda a exatidão em que momento o fantasma se ilumina.
Fico sentado muito tempo de olhos fechados, tudo que quero imaginar, é
pura representação, limitação imaginada no escuro campo visual. Não se
ilumina, não se move organicamente no campo visual; de repente, porém,
surge o momento da simpatia entre o fantástico e o nervo de luz; instanta-
neamente estão lá brilhando as figuras sem qualquer estímulo da repre-
sentação. O fenômeno é de todo repentino. Nunca é primeiro imaginado,
representado, fazendo-se depois brilhante. Não vejo o que quero ver, posso
apenas aceitar o que, sem estímulo algum, devo ver brilhando. A objeção
de pouco alcance de que se trata apenas de fenômenos representados,
como sonho, ou, como se diz, de fenômenos imaginados, desfaz-se natu-
ralmente por si mesmo. Posso estar horas a fio a imaginar mas, se não
existir a disposição para o fenômeno luminoso, as representações anterio-
res nunca terão vivacidade. E eis que de repente, contra a minha vontade,
sem qualquer associação reconhecida, aparece algo brilhando que antes
não fora representado. Mas este fenômeno, que sou capaz de experimentar
em estado vigil, é fenômeno visual subjetivo tão certo como as estrelas que
se veem a uma pancada na cabeça.
As imagens ópticas intuitivas e subjetivas são fenômenos dos sentidos
que se constatam na metade de todos os jovens e em alguns poucos adul-
tos (os chamados eidéticos); se numa folha de papel cinza se apresentam a
pessoas eidéticas imagens de flores, frutos ou de quaisquer outros objetos,
elas podem ver, depois de retiradas as imagens, de novo o objeto com to-
das as particularidades, talvez até diante ou atrás do papel. Em oposição
às imagens persistentes, não se trata de imagens complementares. São
imagens que se podem armazenar e transformar, que não são suscetíveis
de representações mecânicas mas de serem modificadas pelo pensamento.
Podem ser também recordadas depois de muito tempo. Segundo Jaensch,
um eidético podia ler antes do exame, longos textos usando a imagem in-
tuitiva óptica.
cc) Durante muito tempo, confundiu-se com alucinação um tipo de fe-
nômenos que a investigação mais precisa demonstra não serem percep-
ções sensíveis e sim uma espécie particular e curiosa de percepção. Kan-
dinsky descreveu profundamente estes fenômenos como pseudoalucina-
ções. Primeiro, apresentamos os fatos num exemplo:
“Aos 18 de agosto de 1882 Dolinin toma de noitinha 25 gotas de tine
tur a e opii simplicis e continua a trabalhar na escrivaninha. Uma hora
depois, nota grande facilidade no curso de suas ideias. Após haver inter-
rompido o trabalho, observou (com a consciência em nada perturbada e
sem sentir a menor tendência para dormir ou cochilar) no curso de uma
hora, de olhos fechados, rostos e figuras inteiras das pessoas que vira du-
rante o dia, rostos de antigos conhecidos que há mais tempo não tinha en-
contrado, e pessoas de todo desconhecidas. Entre elas apareciam de tanto
em tanto páginas brancas, impressas em diversos caracteres. Além disso,
surge, reiteradas vezes, a imagem de uma rosa amarela. Por fim, quadros
inteiros compostos de várias pessoas vestidas de várias maneiras nas
mais diferentes posições (porém sem movimento). Estas imagens apare-
cem por um momento e desaparecem seguidas logo de outras (que não es-
tão de forma alguma em relação lógica com as anteriores). São nitida-
mente projetadas para fora e desta maneira parecem estar diante dos
olhos mas ao mesmo tempo não têm relação com o campo visual escuro
dos olhos fechados, para se verem as imagens, deve-se afastar a atenção
do campo visual escuro. A fixação da atenção sobre ele interrompe o apa-
recimento. Apesar de múltiplas tentativas não conseguiu combinar a ima-
gem subjetiva com o campo visual escuro de sorte que aparecesse como
parte dele. — Não obstante os contornos precisos e as cores vivas, apesar
de as imagens parecerem estar diante do sujeito que as vê, não possuem
caráter de objetividade. Para a sensação imediata de Dolinin, parece que,
embora veja as imagens com os olhos, não é com os olhos do corpo, que
veem o campo visual escuro como nebulosas de luz, que nele às vezes sur-
gem, mas com outros olhos, olhos internos, que se acham atrás dos exter-
nos. A distância entre as imagens e o olho interno é variável de 0,4 — 6,0
m, na maioria das vezes correspondendo à distância da visão clara, que no
caso é pequena devido à miopia. O tamanho das figuras humanas varia
desde o tamanho natural até o tamanho de uma foto de câmara”. Eram as
seguintes as condições mais favoráveis de formação: “Interromper o mais
possível completamente a atividade deliberada de pensar, no que a aten-
ção só deve dirigir-se, sem qualquer esforço, para a atividade interna do
sentido (no caso das auto-observações de Dolinin, da visão), cujas pseudo-
alucinações se desejam observar. A percepção ativa das imagens pseudoa-
lucinatórias, que surgem, espontaneamente, as mantém apenas por mais
tempo no foco da consciência do que se manteriam sem este esforço ativo
do observador. Desviar a atenção para a atividade subjetiva de um outro
sentido (p. ex., da visão para a audição) interrompe, em parte ou total-
mente, a pseudoalucinação do primeiro sentido. Do mesmo modo termina
a alucinação fixando-se a atenção no campo escuro dos olhos fechados,
nos objetos reais circunstantes, quando os olhos estão abertos, bem como
ao iniciar-se uma atividade, deliberada ou não, de pensamento abstrato”.
(Kandinsky).
Observa-se, sem mais, nesta descrição que os fenômenos não são vis-
tos pelo “olho interno” nem mesmo no escuro dos olhos (como os fenôme-
nos fantásticos da visão) e que lhes falta a corporeidade (caráter da objeti-
vidade, Kandinsky) das percepções. Para nos localizarmos na multidão
destes fenômenos curiosos de representação, dos quais Dolinin ilustrou
apenas um caso especial, façamos primeiro a sinopse das características
em que a percepção normal e a representação normal se distinguem feno-
menologicamente.
Percepção Representação
l.° As percepções são corpóreas (pos- As representações têm a natureza de
suem caráter de objetividade). imagens (possuem caráter de subjetivi-
dade).
2.° As percepções aparecem no espaço As representações aparecem no espaço
objetivo externo. subjetivo interno.
3.° As percepções possuem desenho As representações têm desenho inde-
determinado, se acham, completa- terminado, se acham incompletamente
mente e com todos os detalhes, diante e apenas em alguns detalhes diante de
de nós. nós.
4.° Nas percepções, os diversos ele- Nas representações só ocasionalmente
mentos da sensação apresentam todo alguns elementos são adequados aos
o frescor sensorial; por ex., as cores, elementos da percepção. Mas quanto à
brilhantes. maioria dos elementos, as representa-
ções não são adequadas.
Muitas pessoas representam, otica-
mente, tudo de cor parda.
5.° As percepções são constantes e po- As representações se esvoaçam e esbo-
dem ser facilmente retidas do mesmo roam é devem ser criadas sempre de
modo. novo.
6.° As percepções são independentes As representações dependem da von-
da vontade, não podem ser evocadas tade, podem ser evocadas e modifica-
nem modificadas arbitrariamente. São das arbitrariamente. São produzidas
aceitas com a sensação de passivi- com uma sensação de atividade.
dade.

A respeito do item 2, deve-se observar que o espaço objetivo da percep-


ção e o espaço subjetivo da representação podem aparentemente coincidir,
p. ex. nas representações óticas cujo objeto está atrás de mim. Posso tam-
bém representar entre os objetos reais um outro mas que não vejo entre
eles (se o visse, seria então alucinação). Ao contrário, há sempre salto de
um espaço ao outro que nestes casos parecem coincidir mas estão separa-
dos por um abismo.
Da sinopse podem-se derivar facilmente as propriedades das pseudoa-
lucinações. Só as características mencionadas em l.° e 2.° (corporeidade —
natureza imaginária, espaço externo — espaço interno) constituem oposi-
ções absolutas pelas quais a percepção e a representação se separam por
um abismo e se diferenciam sem transição. Nas demais características
não há oposição absoluta. Ao contrário, as representações, permanecendo
sempre imagens e no espaço interno, podem assumir sucessivamente to-
das as características que acima foram atribuídas às percepções. Assim
há uma variedade infinita de fenômenos de representação entre as repre-
sentações normais e as pseudoalucinações elaboradas, que agora podere-
mos caracterizar da seguinte maneira: as pseudoalucinações carecem de
corporeidade e aparecem no espaço interno subjetivo, mas se acham ante
os olhos do espírito em configuração determinada, com todos os detalhes
(item 3.°) em plena adequação perceptiva com os elementos da sensação
(item 4.°). De repente surgem na consciência com os detalhes completos,
com todos os traços e particularidades de uma imagem sensorial. Não se
esvoaçam logo e sim podem ser retidas como fenômenos constantes até
desaparecerem de repente (item 5.°). Por fim não podem ser produzidas
nem modificadas arbitrariamente, o sujeito se comporta passiva e recepti-
vamente com relação a eles (item 6.°).
Estes fenômenos elaborados, porém, não são de forma alguma fenôme-
nos comuns nem os mais frequentes. Os comuns são, ao invés, de natu-
reza muito variável e apresentam, em sua maioria, apenas algumas das
características descritas. Assim surgem representações de todo pálidas,
pouco detalhadas mas contrárias e dependentes da vontade. Ou se podem
produzir arbitrariamente fenômenos constantes muito detalhados. Assim,
um doente pôde, durante um certo tempo, após uma psicose aguda, re-
presentar tudo de modo muito mais claro. Com os olhos internos via todo
o tabuleiro de xadrez com figuras para jogar às cegas. Isso logo desapare-
cia. Até hoje só se constataram pseudoalucinações na visão e audição na
forma de imagens e vozes internas.
Nossa exposição da vida dos sentidos nas falsas percepções introduziu
por toda parte distinções; assim entre ilusões e alucinações, entre fenôme-
nos dos sentidos e da representação (i.é., entre alucinações e pseudoaluci-
nação). Isto não impede que haja na realidade “transições” na medida em
que uma pseudoalucinação se transforma em alucinação, ou ocorra uma
vida patológica rica onde os fenômenos se combinam. Todavia, só se ob-
tém análises claras quando se fazem distinções precisas, as únicas que
subministram critérios.
Ilusões, alucinações e pseudoalucinações ocorrem numa variedade ex-
traordinária, desde fenômenos mais elementares, como faíscas, chamas,
zunidos, estrondos, até à percepção de objetos elaborados, à visão de figu-
ras e paisagens, ao ouvir de vozes. Percorrendo os domínios dos sentidos,
adquirimos sempre certa visão concreta.
Sentido da visão. As coisas aumentam ou diminuem de tamanho, ou
são vistas tortas ou os objetos se movem, os quadros pulam na parede, os
móveis ganham vida. No delírio alcoólico, as alucinações óticas são em
massa e variáveis, nos epilépticos são muitas vezes intensamente colori-
das (vermelhas., azuis) e predominantemente grandiosas. Nas psicoses
agudas observam-se alucinações “panorâmicas”, em forma de cenas. Al-
guns exemplos:
aa) No espaço de representação. Uma paciente esquizofrênica vê, em
vigília, imagens horrorosas. Advêm-lhe, não sabe como. São imagens in-
ternas. Ela mesma sabe, não é nada. Mas as imagens se lhe impõem. Vê
um cemitério com sepulcros semiabertos, figuras perambulando sem ca-
beça. São imagens torturantes. Com energia, desviando a atenção para
objetos externos, pode fazê-los desaparecer.
bb) De olhos abertos no campo visual ampliado sem disposição no es-
paço objetivo. “As figuras se agrupavam em redor de mim numa distância
de 3-6 m. Eram figuras humanas grotescas que faziam um barulho como
uma confusão de vozes. As figuras estavam no espaço mas era como se ti-
vessem seu próprio espaço correspondente a seu modo de ser. Este novo
espaço aparecia com seus ocupantes tanto mais claramente quanto mais
os sentidos se afastavam das coisas conhecidas. Podia indicar exatamente
a distância, mas as figuras nunca dependiam dos objetos do quarto,
nunca eram encobertas por eles. Não se podia percebê-las juntamente
com uma parede, uma janela, etc.
As objeções de meu ambiente de que estas coisas eram imaginações
minhas, nunca pude aceitar; é que não podia encontrar nada semelhante
entre imaginações e minhas percepções, mesmo hoje. Nas imaginações
elas aparecem como se não estivessem em nenhum espaço. Seriam como
imagens pálidas em meu cérebro ou atrás dos olhos, enquanto nas mi-
nhas percepções vivencio de fora todo um mundo mas que nada tem a ver
com o mundo dos sentidos. Tudo que ele contém, era para mim real, as
formas cheias de vida. Mesmo depois, havia no mundo comum ainda um
outro com seu espaço próprio, e a consciência deslisava à vontade de um
para outro. Ambos os mundos, não posso compará-los nem com as per-
cepções de um nem tampouco com as do outro” (Schwab).
Serko descreve suas falsas-percepções na embriaguez de mescalina:
“Surgem sempre em seu próprio campo visual, constantes, microscópicas
em formo de disco e fortemente reduzidas. Não se enquadram de forma al-
guma no ambiente real, formam, ao invés, um mundo por si e um mundo
de teatro em miniatura; não tocam em nada o conteúdo da consciência
atualmente presente; são tidas sempre por subjetivas.... Encontram-se
sempre cinzeladas do modo mais refinado e se vestem de cores vivas, apa-
recem de preferência em baixa perspectiva e se modificam constante-
mente.... Movendo-se os olhos, não mudam de posição no espaço”. Os
conteúdos estão “em contínuo movimento: modelos de tapete se alternam
com ramalhetes de flores, volutas, abóbadas, portais góticos.... e assim
por diante: um eterno aparecer e desaparecer, uma troca incessante é a
característica dessas ilusões dos sentidos”.
cc) No fundo negro do olho. O reverso esquizofrênico da descrição de
Joh. Mueller é o seguinte: “De olhos fechados, percebia-se nestes estados
uma luz leitosa, difusa da qual muitas vezes se destacavam, em cores bri-
lhantes, formas maravilhosas de plantas e animais exóticos. Parecia-me
que tinha a luz do crepúsculo nos olhos, mas eram formas de fantasmas,
surgem de outro mundo. A percepção da luz não era sempre igual.
Quando minha disposição de ânimo era boa, a luz era mais clara, após pe-
quena depressão moral, porém (p. ex., irritação, excitação) ou após distúr-
bios orgânicos (p. ex., depois de comer demais) era mais escura ou fazia-se
tudo noite escura. Essa luz aparecia em cerca de 1-2 minutos depois de
fechar os olhos. Quando passava de trem por um túnel fechando os olhos,
logo se fazia claro; pensava então erroneamente que o trem já estava de
novo ao ar livre. Ao abrir de repente os olhos, cercava-me ainda a noite ab-
soluta do túnel. A luz não desaparecia ao abrir os olhos mas ao esforçar-
me em olhar para fora. Quando não fixava o olhar, podia ver esta luz de
olhos abertos, até mesmo de dia, só que a via sem nitidez. Nem sempre
apareciam as formas. As plantas não eram assim como poderia tê-las cri-
ado a imaginação; admirava-me da beleza e graça de suas formas, havia
algo de pomposo nelas, era como se as formas das plantas conhecidas fos-
sem descendentes degeneradas. As formas dos animais assemelhavam-se
às espécies pré-diluvianas, tinham todas algo de bondoso. Às vezes cha-
mavam atenção partes extremamente salientes mas me admirava da har-
monia com que toda a forma restante do corpo se integrava naquelas sin-
gularidades de sorte que dessa maneira se expressava um tipo. Não se
moviam, surgiam como formas plásticas e desapareciam depois de alguns
minutos” (Schwab).
dd) Enquadramento no espaço objetivo. De sua própria psicose Kaun-
dinsky descreve: “Algumas de minhas alucinações eram proporcional-
mente pálidas e imprecisas. Outras brilhavam em todas as cores como ob-
jetos reais. Encobriam inteiramente os objetos reais. Durante uma se-
mana vi numa e mesma parede, coberta de papel monocolor como uma
série de quadros a fresco grandes em maravilhosas molduras de. ouro,
paisagens, vistas de praia, às vezes, retratos”.
No trabalho de Uhthoff descreve-se o seguinte caso: antiga coroidite.
Escotoma central positiva. Assim, uns 20 anos sem sintomas de impor-
tância. Um dia, sensações vagas na cabeça e cansaço. No mesmo dia, a
paciente notou de repente, ao olhar pela janela, “folhagem de videira” no
piso do pátio, movendo-se e trocando de tamanho. Este fenômeno das fo-
lhas permaneceu por alguns dias, a seguir se transformou numa árvore
com brotos. Quando vai passear pela rua, vê a árvore surgir entre os ar-
bustos reais como numa névoa. Observando mais exatamente, distingue
as folhas reais das “fingidas”. As últimas são “como pintadas”, sua cor é
mais cinzenta, “como coloridas por aquarela”, “as folhas da fantasia são
como que coladas, enquanto as naturais se destacam da parede”. Depois
de algum tempo, a paciente vê também flores de beleza supraterrena em
todas as cores possíveis, além de pequenas estreias, arabescos, pequenos
ramalhetes”. Em estudo mais preciso a paciente inteligente dava ainda as
seguintes indicações sobre os fenômenos. As folhas, os arbustos etc, se
apresentam localizados no setor central defeituoso e positivo do campo vi-
sual e o tamanho varia com a distância. Em 10 cm, p. ex., o fenômeno tem
o diâmetro de cerca de 2 cm. Projetado sobre uma. casa defronte* é tão
grande que cobre uma janela inteira. — Movendo os olhos, os fenômenos
também se deslocam, a paciente observa justamente neste deslocar-se que
não se trata de objetos reais. — Com os olhos fechados, desaparecem e
dão lugar a formações peculiares (“estreia dourada em fundo preto e ao re-
dor muitas vezes um anel concêntrico azul e vermelho”). — As coisas alu-
cinantes encobrem o fundo, não são transparentes.
Um doente com processo esquizofrênico descreve: “Uma vez tive por al-
guns dias a visita de uma jovem bela.... Uns dias depois encontrava-me de
noite deitado na cama. Ao virar-me para o outro lado, vi, para minha
maior surpresa, surgir à minha direita na cama a cabeça daquela moça
como se fosse deitar-se ao meu lado. A cabeça estava transfigurada magi-
camente, de uma beleza arrebatadora, etereamente transparente e bri-
lhando suave no quarto quase escuro. No primeiro momento fiquei inteira-
mente perplexo com a maravilha, logo, porém, se fez claro do que se tra-
tava e tanto mais quando, ao mesmo tempo, uma voz rouca misteriosa
sussurrava, zombando interiormente. Indignado e sem me importar mais
com o fantasma, virei-me para o outro lado com um violento palavrão.' De-
pois dizia uma voz amiga íntima: A moça já foi embora” (Staudenmeier).
Sentido da audição. Em psicoses agudas, os doentes ouvem melodias,
ruídos confusos, assovios e batida de máquina, estrondo que lhes parece
mais forte do que tiro de canhão. Tanto aqui como em estados crônicos,
aparecem frequentemente vozes, os “invisíveis”, que sugerem aos doentes
tudo possível, interrogam, xingam e ordenam. Quanto ao conteúdo das vo-
zes, pu se trata de palavras isoladas ou de frases inteiras, ou de vozes iso-
ladas, de confusões de vozes ou de conversa ordenada das vozes entre si
ou com os doentes. São vozes de mulher, homem, criança, vozes de conhe-
cido ou de desconhecido, vozes totalmente indefiníveis, não humanas. Pro-
nunciam-se palavras inuriosas, as ações do paciente são acompanhadas
de observações ou são palavras sem sentido, repetições vazias. Muitas ve-
zes, o doente ouve logo seus pensamentos sem voz alta (sonorização do
pensamento).
De uma autodescrição (Kieser): “São tão estranhos como horríveis e
para mim tão humilhantes os exercícios e experimentos acústicos — in-
clusive musicais — que se fizeram desde há quase 20 anos com meus ou-
vidos e meu corpo.... Muitas vezes uma e a mesma palavra soava sem
qualquer interrupção 2-3 horas seguidas. Ouviam-se, então, discursos
longos sobre mim, em sua maior parte de conteúdo injurioso, imitando-se,
muitas vezes, a voz de pessoas conhecidas: o que se dizia porém, continha
sempre pouca verdade e, na sua maior parte, as mentiras e calúnias mais
vergonhosas a respeito de minha pessoa e frequentemente também de ou-
tras. Muitas vezes se declarava ainda que era eu que dizia tudo aquilo....
Os cafajestes ainda queriam divertir-se, serviam-se em suas publicações e
notícias de onomatopeia, paronomásia e outras figuras de linguagem e re-
presentavam um perpetuum mobile falante. Estes tons contínuos sem in-
terrupção, muitas vezes só se ouvem de perto mas outras vezes, meia, até
a uma hora de intervalo. São, por assim dizer, disparados e atirados de
meu corpo e o ruído e estrondo mais variado se difunde em redor especial-
mente quando entro numa casa ou chego a uma aldeia ou cidade. Por isso
há vários anos vivo quase como uma eremita. Os ouvidos soam quase
ininterruptamente e muitas vezes tão fortes que se pode ouvir bastante
longe. Em particular nos bosques e arvoredos, principalmente em época
de vento e tempestade, se produz uma assombração muitas vezes aterra-
dora, parece demoníaca. Até as árvores isoladas, ao aproximar-me, come-
çam a emitir uns sussurros e sons de palavras e discursos mesmo em
tempo sereno. Algo parecido acontece com as águas; em geral são utiliza-
dos todos os elementos para torturar-me”.
Um doente ouve vozes durante meses, na rua, no trem, no restau-
rante. São vozes chamando e falando, na maioria bem baixo mas. claro e
acentuado. Dizem, p. ex.: O Sr. conhece este, é o doido Hagemann”,
“Agora ele olha de novo a mão”. “Fique bem cômodo, o senhor sofre da co-
luna’. Ele é um homem sem caráter” etc.
Schreber descreve as alucinações funcionais que se ouvem, não em si-
lencia e sim junto com ruídos reais mas estes são apenas causa:
“Devo lembrar ainda a circunstância de que todos os sons que ouço, os
sons de certa duração, como o ranger do trem, o roncar do vapor, a mú-
sica de algum concerto etc., parecem falar. Trata-se aqui naturalmente,
em oposição à fala do sol e de animais maravilhados, de simples sensação
subjetiva: o som das palavras faladas ou articuladas por mim se comunica
por si mesmo às impressões auditivas, recebidas ao mesmo tempo, do
trem, do vapor, da botina etc.; não pretendo afirmar que o trem, o vapor
etc., realmente falam, corno- acontece com o sol e os pássaros”. — Muitas
vezes, pacientes esquizofrênicos ouvem vozes localizadas no corpo, nos
olhos, na cabeça, no- ventre etc.
Devem-se distinguir das vozes verdadeiras as pseudoalucinações, as
vozes internas (“as vozes espirituais”).
Perevalov, paranoico crônico, distinguia um falar direito das vozes de
fora através de paredes e canos, do falar por meio da corrente, onde perse-
guidores o forçam a ouvir interiormente algo; aqui essas vozes internas
nem são localizadas no exterior nem são perceptíveis. Delas distinguiam
ainda os pensamentos feitos sem que se ouçam internamente. Os pensa-
mentos lhe são, então, sem intermediário, introduzidos na cabeça (Kan-
dinsky). A Sra. Kr. dizia que tinha duas memórias. Com uma podia recor-
dar-se voluntariamente de tudo como qualquer pessoa. Por meio da outra
apareciam involuntariamente em sua consciência vozes e imagens inter-
nas.
As “vozes” desempenham grande papel, especialmente em esquizofrê-
nicos. Inúmeras são suas designações e interpretações, p. ex. (citação se-
gundo Gruhle): vozes de mediação, vozes de rapport, de magia de pala-
vras, vozes secretas, gritaria de vozes etc.
Paladar e olfato. Não há nestes sentidos objetividade elaborada. Em
princípio e muitas vezes na prática pode-se distinguir entre alucinações
que surgem espontâneas, e falsas-percepções em que odores- objetivos e
sensações gustativas são percebidas de maneira diversa.
Um doente mental descreve: é curioso com o paladar; as comidas me
sabem arbitrariamente, couve como mel ou de outra' maneira, às vezes,
sinto a sopa tão insossa que quero pôr muito sal mas antes de colocar sal,
de repente fica salgada” (Koeppe); outros pacientes se. queixam de fumaça
de carvão, de odor de enxofre, de ar pestilento.
Concorrência de vários sentidos. Na percepção sensível se visa a um
objeto e não a um setor dos sentidos. O objeto se apresenta o mesmo atra-
vés de vários setores sensoriais. Por isso, na alucinação, um sentido com-
pleta o outro.
Algo inteiramente diverso, porém, é a confusão das sensações que eli-
mina uma percepção clara do objeto. Há vivências intuitivas cuja intenção
objetiva não se configura num setor determinado dos sentidos mas, man-
tendo em vão a consciência do significado, tece elementos variáveis dos
sentidos em confusão impossível de apreender. Não se trata de uma aluci-
nação conjunta de vários sentidos, mas as sinestesias se transformam no
modo predominante de percepção. Unificam-se percepções reais com per-
cepções alucinatórias e ilusórias. Bleuler descreve a maneira em que “sa-
boreia” suco com a ponta dos dedos. Na embriaguez de mescalina:
“Julgam-se ouvir ruídos e ver rostos mas tudo isso é uma coisa só... O
que vejo, ouço, o que percebo com o olfato, penso... Sou música, sou
grande tateante, tudo é a mesma coisa... a seguir, as ilusões auditivas que
eram ao mesmo tempo percepções óticas, dentadas, pontuadas, ornamen-
tação oriental... Todas essas coisas não as pensava mas as sentia, chei-
rava, via e eram os meus movimentos... Tudo era claro, absolutamente
certo. Toda crítica é absurda face à vivência do impossível” (Beringer).

e) Anomalias de representação; falsas-recordações.


Descrevemos a fenomenologia das percepções anormais. Com as aluci-
nações chegamos à fenomenologia das representações anormais.
Há nas representações uma anomalia que corresponde ao distancia-
mento do mundo perceptivo. Trata-se de anomalia não da representação
em si, mas de certos aspectos da representação que poderiam chamar-se
“caracteres da representação”. Muitos pacientes se queixam de já não se-
rem absolutamente capazes de representar alguma coisa, de suas repre-
sentações serem cansadas, obscuras, sombrias, destituídas de vida, afir-
mam que suas representações não chegam direito à consciência.
Uma paciente de Foerster se queixava: Não posso representar sequer a
minha figura, a figura de meu esposo e de meus filhos... Quando vejo um
objeto, sei de que se trata, mas ao fechar os olhos, desaparece inteira-
mente. Ê como se alguém tivesse que se representar a aparência do ar. O
senhor, doutor, conserva um objeto no pensamento; eu, porém, perco logo
qualquer ideia, é então, como estivesse tudo escuro no meu pensamento”.
Foerster encontrou em sua investigação que a paciente de fato podia des-
crever bem suas lembranças e possuía extraordinária capacidade de per-
cepção das cores etc.
Não se trata, portanto, de incapacidade real de representação sensível;
o que aqui ocorre é como no -alheamento do mundo perceptível: os ele-
mentos sensíveis e o mero estar dirigido para um objeto não constituem
nem toda a percepção nem toda a representação. Há algo mais ainda. Este
algo mais na representação é tanto mais importante porquanto os elemen-
tos sensíveis são muito pouco numerosos, inadequados e fugidios. Se-
gundo- parece, nas representações, muitas vezes trabalhamos simples-
mente mais com estes “caracteres” acrescentados. Quando eles desapare-
cem, é então compreensível, como diz o paciente, que já não se possa re-
presentar mais nada.
Entre as representações, são de importância especial as recordações,
i.é., aquelas representações que surgem com a consciência de nos apre-
sentarem percepções passadas, de seus conteúdos já terem sido vivencia-
dos, de seus objetos serem ou terem sido reais. As falsas-recordações po-
dem induzir o julgamento a erro como na percepção, as falsas percepções.
Depois veremos ainda nas teorias sobre a memória que quase todas as re-
cordações desfiguram um pouco. São uma mistura de verdade e fantasia.
Devem- se distinguir radicalmente desses simples erros de recordação as
alucinações na recordação (Kahlbaum). Primeiro alguns exemplos:
Uma paciente (processo esquizofrênico) narra durante o desapareci-
mento de uma fase aguda de ansiedade paranoide: Nas últimas semanas
recordou tanta coisa que lhe acontecera antes com Emílio (seu amado):
precisamente como se alguém me tivesse dito”. Tinha esquecido de tudo
inteiramente. Depois fala do tempo “em que me recordei de tanta coisa”.
Estas coisas eram, p. ex.: Em todo caso Emílio me hipnotizara, pois me
encontrei muitas vezes num estado de que eu mesma me admirava; uma
vez tinha de ajoelhar-me no chão da casinha e comer coisas da lixeira dos
porcos. Ele contava depois em triunfo A, esposa... Também tive que ir ao
chiqueiro, não sei' por quanto tempo e como entrei, todavia voltei a mim
quando .saía de quatro pés do estábulo... Uma vez também Emílio pregou
duas tábuas uma sobre a outra e eu devia dizer que queria ser crucifi-
cada, depois tinha que deitar-me com a cabeça para baixo... Outra vez pa-
recia-me que tinha cavalgado no cabo de vassoura... Uma vez pareceu-me
que Emílio me tinha nos braços e havia um vento horrível... Outra vez, es-
tive no pântano e fui arrastada para fora... “Há algum tempo teve de fazer
um passeio com Emílio; sabe exatamente o que de sujo aconteceu debaixo
de um lampião mas não sabe como voltou para casa.
Três características são típicas destes casos, observados várias vezes.
Os pacientes têm consciência de que lhes ocorre algo esquecido. Têm a
sensação de ter-se encontrado então num estado anormal de consciência,
falam em entorpecimento, desmaios, meio-acordado, meio-dormindo, “es-
tado característico”, um estado de hipnose. Em terceiro lugar, encontram-
se sinais de que os doentes têm a impressão de deverem então ter sido
“instrumentos passivos”, não poderiam ter feito nada, tinham que fazer,
tudo foi feito. Nestes casos, toma-se provável, segundo a natureza da ex-
posição, uma falsa-recordação; todavia, em casos particulares (Oetikít) se
pôde comprovar a conduta real dos pacientes na época em que se coloca a
falsa-recordação.
Nestas recordações se trata do seguinte fenômeno: surge nos doentes a
representação de uma vivência anterior com sensação viva de recordação,
enquanto na verdade não se recorda realmente nada, nem mesmo uma
base, mas tudo é criado novinho. Há, é claro, fenômenos semelhantes em .
que nem tudo é criado novinho, e sim se transformam, desta maneira, ce-
nas reais, p. ex.: uma cena inocente de taverna se transforma em cena de
envenenamento e em experiência de hipnose. E por fim há ainda falsas-re-
cordações de conteúdo inteiramente inocente: um paciente afirma ter tido
visita há uma hora, quando na verdade estava deitado sozinho na cama.
Aqui o caráter da “recordação” fica isolado ao lado da impressão do fenô-
meno “elementar”, que, subjetivamente, permite, às vezes, distingui-los
dos deslocamentos da recordação na psicologia normal.
Segundo as circunstâncias, pode ser difícil de se distinguirem estas
“lembranças” de supostas vivências, que entrementes foram “esquecidas”,
do esclarecimento progressivo da recordação de vivências reais em estado
crepuscular. Num caso de Alter um alto funcionário do Estado recordou
passo a passo as particularidades de um assassinato sádico, que julgava
ter cometi ’o há algum tempo. Havia, de fato, indícios de possibilidade real.
Mas após sua morte — encontrou-se a autoacusação circunstanciada em
seus papéis — não se pôde chegar a uma decisão nem pelos demais sinto-
mas psicopáticos do homem; nem por dados objetivos os fenômenos em si,
tais como são descritos, indicavam pelos traços seguintes um contexto re-
almente vivido: a recordação se esclarece gradualmente por meio de dados
particulares que poderiam ter suscitado a associação. Faltam sinais de
impotência da vontade, de influências etc.
Um outro fenômeno de falsa-recordação parece o déjà vu que se tornou
realidade na consciência do doente.
Uma paciente (demência precoce) narra: Chamou-lhe muita atenção o
fato de ter visto na clínica rostos que vira há algumas semanas em casa,
p. ex., uma figura de bruxa que andava de noite como enfermeira na sala
de plantão. Também já tinha visto antes a superiora num vestido preto em
Pforzheim. “O que experimentei há pouco no jardim, com o Dr. G, quando
perguntou por que eu não trabalhava, isso mesmo já tinha contado há
quatro semanas à minha hospedeira. Ri muito e lhe perguntei admirada o
que queria dizer”. Em conversas no pavilhão, parece-lhe como se muitas
vezes já fosse assim. Julgava, em geral, já ter estado num manicômio.
Em primeiro lugar, o juízo de realidade distingue estes fenômenos, não
muito raros na esquizofrenia, do déjà vu, que, de fato, se vivencia, mas
não se considera real. Todavia, também a própria vivência em si causa ou-
tra impressão. Esta consciência de já ter visto e vivido, se refere muitas ve-
zes a toda a situação atual; algumas vezes aparece por pouco tempo, no
máximo por minutos; às vezes, porém, acompanha. semanas inteiras o
processo psíquico.
As alucinações de recordação e esta, forma particular do déjà vu são
fenômenos, bastante característicos fenomenologicamente. Não são falsas-
recordações de natureza fenomenologicamente especifica os erros sobre o
passado, que enumeramos nos seguintes grupos:
a) As mentiras patológicas. Estórias do passado oriundas de fantasia
terminam sendo cridas por seus inventores. Estas falsificações vão, em ex-
tensão, desde a gabolice inocente do caçador até a transformação fantás-
tica de todo o passado.
b) Interpretações de vivências antes não observadas. Cenas inocentes
adquirem para quem se recorda importância toda nova. Um encontro com
um oficial significa a própria descendência da nobreza e outras coisas se-
melhantes.
c) Confabulações. Assim se chamam todas as falsas-recordações, variá-
veis que não se mantêm ou se mantêm por pouco tempo, aparecem de
múltiplas formas. Como confabulações de necessidade, constituem apenas
o modo de se preencherem lacunas de uma memória seriamente lesada, p.
ex., dos senis. Nos mesmos doentes e além deles após lesões graves da ca-
beça etc., aparecem como parte do complexo de sintomas de Korsakov,
confabulações produtivas. Os pacientes contam longas estórias de um aci-
dente que tiveram, de um passeio, de suas atividades, enquanto, no tempo
em questão, se encontravam tranquilamente na cama, deitados. Por fim,
constituem fenômeno característico as confabulações fantásticas, comuns
em processos paranoides: o doente participou aos sete anos, de uma
grande guerra; viu então em Mannheim o combate de poderosos exércitos;
recebeu distinção especial por ser de alta descendência; uma vez fez una
viagem a Berlim com grande séquito para ver seu pai, o imperador; isso já
faz muito tempo. Esteve transformado em leão. E assim continua sem fim.
Um paciente denominou “o romance”, todo esse mundo fantástico. O con-
teúdo destas confabulações costuma ser influenciado pelo pesquisador.
Podem-se sugerir por vezes estórias inteiramente novas. Em casos parti-
culares, p. ex., após lesões na cabeça, se observa, de outro lado, que se
mantém teimosamente o conteúdo confabulatório.

f) Cognições corpóreas.
Às falsas-percepções, às falsas- recordações, às pseudoalucinações
etc., em que o centro de gravidade se achava sempre no perceptível pelos
sentidos, acrescentamos um erro não perceptível, mas nem por isso me-
nos persistente: os erros de cognição.
Um paciente sentiu que alguém andava sempre a seu lado ou melhor
em diagonal atrás dele. Quando se levantava, aquele alguém também se
levantava; quando nadava, ele também andava. Quando se virava, o al-
guém se virava correspondentemente, de sorte que o paciente não podia
vê-lo. Ficava sempre no mesmo lugar, apenas um pouco mais próximo ou
distante. O doente nunca o viu, nunca o ouviu, nunca o percebeu em seu
corpo, nunca tocou e, no entanto, sentia com extraordinária precisão que
o alguém estava lá. Apesar da insistência da vivência e apesar de se ter
deixado enganar por algum tempo, achava, entretanto, que na realidade
ninguém estava lá.
Comparando tal fenômeno com fenômenos normais, pode-se pensar no
seguinte: sabe-se que na sala alguém está sentado atrás de alguém e se
sabe porque se viu; anda-se num quarto escuro, recuando de repente,
porque se pensa ter diante de si uma parede, etc. Em todos os casos há
um saber de algo de alguma maneira presente que, entretanto, no mo-
mento, não se funda em percepção sensível. Enquanto, porém, os fenôme-
nos normais se fundam ou em percepção passada ou em sensações reais
atuais, que se podem notar com a atenção (alterações do som, certas sen-
sações táteis através do ar, com a consciência da parede), as cognições pa-
tológicas aparecem de modo inteiramente primário e com o caráter de im-
posição, certeza e corporeidade. Em oposição às cognições, que apresen-
tam de maneira imperceptível algo ausente ou irreal (cognições de pensa-
mento, cognições delirantes) (chamamos estes fenômenos cognições corpó-
reas.
Das cognições corpóreas se vai por transições a alucinações.
Algo permaneceu sempre e constantemente igual até o dia de hoje; a
saber, sentia e via em meu redor numa distância de 3-4 m, uma vala cir-
cular, feita de substância hostil para mim e sempre ondulante, da qual
podem surgir, em certas condições, demónios (Schwab).
Por outro lado, há transições para vivências delirantes primárias: os
doentes se sentem “observados” sem que ninguém esteja por perto. Uma
doente diz: “Eu não me sentia livre, havia do lado da parede alguém mais”.

§ 2. Vivência Do Espaço E Do Tempo.

Observações psicológicas e lógicas preliminares. Espaço e tempo estão


sempre presentes na sensibilidade. Não são originariamente objetivos,
abrangem tudo que é objetivo. Kant os chama de formas, da intuição. São
universais, nenhuma sensação, nenhum objeto sensível, nenhuma repre-
sentação se acham fora destas formas. Com o espaço e o tempo realiza-
mos a total interiorização do mundo que nos está presente. A vivência es-
paço-temporal da realidade nós não a podemos ultrapassar com os senti-
dos nem também abandoná-la, sempre nos, encontramos nela. Por isso
não os percebemos por si como outros, objetos mas os percebemos junta-
mente com os objetos e mesmo nas vivências sem objeto ainda estamos no
tempo. Espaço e tempo não existem por si; mesmo quando estão vazios,
nós só os temos em ligação com objetos que os preenchem ou delimitam.
Espaço e tempo, inderiváveis e originários, estão sempre presentes na
vida psíquica tanto normal como anormal, não podem faltar. Só por esta-
rem presentes é que sua manifestação, o modo de vivê-los, a avaliação de
seu tamanho e de sua duração se podem modificar.
O espaço e o tempo só são reais para nós quando ocupados por al-
guma coisa. É verdade que os imaginamos vazios, embora em vão procu-
remos fazer uma ideia desse vazio. Enquanto vazios, possuem um caráter
básico comum de natureza quantitativa:' dimensões, homogeneidade, con-
tinuidade, ilimitabilidade; suas partes, no entanto, não são partes de um
todo intuitivo. Ao serem preenchidos, se tornam qualitativos. Embora um
pertença ao outro, são radicalmente diferentes ura do outro; o espaço,
uma multiformidade da mesma espécie, o tempo, una processo sem es-
paço. Ambos são — se quisermos representar tautologicamente seu cará-
ter originário, — o estado de diferenciação do ser, distanciado de si
mesmo, o espaço, o contíguo, o tempo, o sucessivo.
Na vivência poderemos abandonar, em favor de uma vivência interior
destituída de objeto, a espacialidade; o tempo, porém, fica sempre pre-
sente. Ou será que há também na vivência um rompimento do tempo? To-
dos os místicos o afirmam. Ao romper o tempo, se faz a experiência da
eternidade como suspensão do tempo, como nunc stans. No sonambu-
lismo, passado e futuro se tornam presentes.
Visto que espaço e tempo só são reais quando preenchidos, surge a
questão sobre o que se deve apreender diretamente como espaço e tempo.
Sua universalidade fez com que se considerassem o espaço c o tempo com
o ser fundamental. É, no entanto, errado fazer-se do espaço e do tempo
um ser absoluto e de sua vivência, a vivência fundamental. Embora tudo
que exista para nós possua estrutura temporal e espacial, seja realmente,
seja como símbolo de intuições, que substituem os significados, seria um
erro atribuir ao espaço e ao tempo o que, como conteúdo, os preenche.
Embora seja na espacialidade e na temporalidade que cada um possui a
forma própria de seu destino, — de acordo com o modo em que se preen-
chem no presente global — ambas constituem apenas a roupagem cuja
significação só adquire importância pela atitude que se assume. Assim,
não é como vivência específica mas como significação que o espaço e
tempo se convertem numa linguagem e numa estrutura da alma. Disso
não se tem de falar quando o tema é o espaço e o tempo em si. Nossa ta-
refa aqui consiste na espacialidade e na temporalidade em si mesmas en-
quanto são vivenciadas. O fato de tal vivência, ao se transformar, modifi-
car também todos os conteúdos e poder sofrer alterações da parte dos
conteúdos da alma — p. ex.: na consciência da significação — é outro pro-
blema.
Espaço e tempo se nos apresentam em várias estruturas básicas. O
fundamento comum destas estruturas não é claro diretamente em si.
Deve-se distinguir o espaço: em primeiro lugar, assim como o percebo, se-
gundo a orientação atual a partir do centro de meu corpo em sua estru-
tura qualitativa, de esquerda para direita, em cima e. embaixo, perto e dis-
tante. É o espaço que apreendo tocando e movendo-me, que apreendo com
um olhar, o qual percebo de minha posição; em segundo lugar, o espaço
perceptível do mundo tridimensional em que me movo, levando comigo
constantemente meu espaço imediato de orientação; em terceiro lugar o
saber do espaço até à matemática dos espaços não euclidianos que são
objetos não intuitivos de uma construção de pensamento. Algo muito dife-
rente é quais significações percebe nas figuras espaciais, no espacial como
tal, nos espaços modificados. — Deve-se distinguir o tempo: o tempo vi-
vido, o horário ou tempo objetivo do relógio, o tempo cronológico e histó-
rico, o tempo, como historicidade da existência do homem.
Para os fins fenomenológicos da psicopatologia não adianta partir de
todos estes problemas extraordinariamente importantes do ponto de vista
filosófico. Só é frutífero elaborar de forma perceptível os fenômenos anor-
mais reais e ver, dado o caso, em que podem contribuir aqueles conheci-
mentos sobre o espaço e o tempo para a compreensão clara destes fenô-
menos.

a) O espaço.
Pode-se examinar, em seu rendimento, a intuição do espaço segundo
as avaliações de tamanho. Em vivências ainda normais, estas avaliações
podem tornar-se, em seu rendimento, deficientes. Ou o fenômeno espacial
em si mesmo é vivido de maneira diferente, seja inconscientemente e
nesse caso só se pode constatar nos seus efeitos pela deficiência de rendi-
mento, seja conscientemente, de sorte que o paciente nota e descreve a
modificação da vivência do espaço pela intuição normal do espaço de que
se lembra ou que junto com a transformação ainda conserva.
1°) Acontece que todos os objetos são vistos de tamanho menor (mi-
cropsia) ou maior (macropsia), ou então tortos, maiores de um lado, meno-
res de outro (dismegalopsia). Há uma visão duas vezes e até sete vezes
maior (tudo em delírios, na epilepsia, nos processos psicóticos agudos,
mas também em estados psicastênicos).
Neurose de esgotamento. Um aluno de seminário extenuado de traba-
lho, vê ora letras e notas, ora parede e porta pequenas e à distância, o
quarto é como um longo corredor. Outras vezes, seus movimentos pare-
cem-lhe assumir grandes dimensões (velocidade louca), julga dar passos
de tamanho gigantesco.
Lubarsch (cit. por Binswanger) relata vivências de esgotamento à noiti-
nha na cama entre 11 e 13 anos de idade: “Minha cama se alongava e
alargava juntamente com o quarto até o infinito, o tic-tac do relógio, as ba-
tidas do coração soavam como marteladas fortíssimas e uma mosca, que
passava voando, tinha o tamanho de um pardal”.
Um doente suposto esquizofrênico: “Houve tempo em que tudo que via
tomava proporções enormes; as pessoas pareciam gigantescas, todos os
objetos e distâncias me apareciam num grande telescópio; era sempre
como se eu, p. ex., olhasse para fora por uma janela. Muito mais perspec-
tiva, profundidade e clareza em tudo” (Rumke).
2°) A vivência da infinidade do espaço surge como transformação de
toda a vivência espacial.
Um esquizofrênico: “Ainda via o quarto. O espaço parecia distender-se,
crescer até o infinito e ao mesmo tempo como que esvaziado. Sentia-me
abandonado, entregue ao espaço infinitamente grande, que, apesar de não
ser nada, estava ameaçadoramente diante de mim. Era o prolongamento
de meu próprio vazio... O antigo espaço corporal se distinguia, como um
fantasma, do outro espaço”. (Fr. Fischer).
Serko descreve a sensação da infinidade do espaço na embriagues de
mescalina. A dimensão de profundidade do espaço parece distendida, a
parede se distancia. Os espaços se alargam difusamente em todos os sen-
tidos.
3°) Assim como conteúdos de percepção, a espacialidade tem também
“características afetivas”. L. Binswanger fala em espaço humorado. Há,
por assim dizer, no espaço, traços psíquicos que podem se apresentar
como realidade ameaçadora ou benfazeja. Já nos exemplos dados não se
pode distinguir precisamente — embora conceitualmente seja em essência
diverso — o que é modificação real da percepção e o que é modificação do
estado afetivo frente ao que se percebe.
Um esquizofrênico de Carl Schneider dizia: Via tudo como num teles-
cópio. As coisas lhe pareciam menores e mais distantes, todavia não real-
mente menores e sim mais no espírito pequenas... por assim dizer sem re-
lação entre si e com ele. As cores eram mais apagadas a significação era
mais apagada. Tudo muito distante, tratava-se mais de um afastamento
espiritual.
Aqui, os fenômenos descritos acima como modificação perceptiva, já
são, é claro, essencialmente caracteres afetivos. Nos exemplos seguintes
de vivências esquizofrênicas, a significação parece estar, como vivência da
realidade, no primeiro plano; todavia, também a percepção em si mesma
pode estar modificada.
Um esquizofrênico relata: “Como por uma força a paisagem me foi ar-
rebatada de repente. Julgava ver internamente que atrás do céu palida-
mente azul do entardecer .se estendia um segundo escuro, de extensão es-
pantosa. Tudo se tornava ilimitado, abrangente... Só vi ainda que a paisa-
gem do outono fora envolvida por um segundo espaço, tão fino e invisível.
Este segundo espaço era escuro ou vazio ou espantoso. Ora um dos espa-
ços parecia mover-se, ora ambos se confundiam... É errado falar-se ape-
nas de um espaço, país a mesma coisa se desenrolava em mim mesmo.
Era uma questão contínua dirigida a mim”. (Fr. Fischer).
Um outro esquizofrênico: Quando considera e olha os objetos, muitas
vezes tudo é tão vazio, ora aqui, ora ali. “O ar ainda está entre os objetos
mas os objetos mesmos já não estão”. Outro esquizofrênico: Ele só vê o es-
paço entre os objetos. Os objetos ainda estão presentes mas não tão di-
reito. Todo o espaço vazio cai-lhe nos olhos. (Fr. Fischer).

b) O tempo.
Observações preliminares:
Três coisas se devem separar: 1° O saber do tempo. Refere-se ao tempo
objetivo e ao rendimento na avaliação correta e falsa dos momentos tem-
porais. Ademais, à apreensão correta ou falsa ou delirante da essência do
tempo (quando, p. ex., um doente diz que sua cabeça é um relógio, que ele
faz o tempo, ou um outro: “O tempo novo se faz assim, deve-se girar o me-
canismo preto e branco”; Fr. Fischer). 2° A vivência do tempo. A vivência
subjetiva do tempo não é avaliação particular do tempo mas consciência
total do tempo, para a qual o modo de avaliar o tempo pode ser apenas
uma característica entre outras. 3° O tratar do tempo. O homem deve tra-
tar com a situação fundamental da temporalidade, como ele se comporta
para com o tempo na espera no amadurecimento, na decisão, a seguir na
consciência biográfica total de seu passado e de toda sua vida.
O l°) interessa à psicologia do rendimento, o 3°) pertence à psicologia
compreensiva; aqui se trata do 2°). Temos que descrever fenômenos e não
logo explicá-los e compreendê-los.
Além destas 3 questões sobre o saber do tempo, a vivência do tempo, o
tratar do tempo, há ainda a questão biológica sobre o processo temporal
da vida e com isso também da vida psíquica. Toda forma de vida possui o
tempo correspondente a sua espécie (à mosca de um dia ou ao homem), a
duração de sua vida, a periodicidade de sua curva de vida. Este tempo vi-
tal é tempo objetivo, biológico, determinado qualitativamente. No processo
fisiológico se realiza uma valorização temporal, p. ex., para o início dos im-
pulsos hormonais que, no tempo devido, provoca a puberdade; em toda
regulação, que não é apenas um processo químico de ritmo variável se-
gundo a temperatura mas constituição rítmica, articulação conjunta de
estímulos temporalmente ordenada; por fim, no miraculoso “relógio de ca-
beça”, que pode determinar exatamente, e de modo extraconsciente, o fim,
segundo determinação prévia, do sono e da sugestão hipnótica.1
Em face da realidade deste tempo vital são possíveis perguntas como
esta: será que o processo temporal, com ser diverso especificamente, pos-
sui mesmo dentro da espécie variações de força, impulsos, aceleração ou
inibição? Será que este processo pode apresentar-se perturbado no seu
todo como processo, e não apenas em momentos dos fatores nele atuan-
tes? Será que em nossa vivência do tempo se torna consciente o processo
como tal e com isso se transforma em cada perturbação? O que percebe
nossa vivência do tempo? Será um processo objetivo ¿o mundo assim
como percebemos as coisas com os sentidos? Ou será o processo vital? Ou
será um algo ou a si mesmo em seu fundamento? Ou será ambas as coi-
sas? Colocar estas perguntas significa ver que não há resposta para elas.
Trata-se sempre de circular indeterminado de um grande enigma, quando
Carrel escreve: “Possivelmente, a avaliação do tempo empreendida pelos
tecidos alcança o limiar da consciência e explica o sentimento profunda-
mente enraizado em nós, como de águas que fluem em silêncio, nas quais
nossos estados, de consciência oscilam como o reflexo de uma lanterna na
corrente escura de um rio poderoso. Notamos que nos modificamos, que
não somos idênticos com o nosso eu anterior. E apesar disso, sentimos
que permanecemos o mesmo ser”. Não podemos explicar nem deduzir a vi-
vência do tempo mas apenas descrevê-la. A questão sobre a causa das vi-
vências anormais do tempo é inevitável, mas não se podem dar até agora

1 Achado singular foi o de Ehrenwald1: em dois casos de Korsakov, nos quais havia alteração grave do sentido do tempo,

conseguiu despertar o paciente, mediante hipnose, a certas horas, com reação aproximadamente correta. Parecia con-
servado algum sentido primitivo, inconsciente, do tempo, ao passo que falhava a noção consciente do mesmo.
respostas demonstráveis.
São essenciais para os fenômenos da vivência do tempo os seguintes
momentos: O saber do tempo (e a orientação atual no tempo) se. realiza à
base da vivência, mas não é a vivência do tempo. Esta vivência inclui em
si uma consciência originária de algo permanente: idêntico no tempo, não
há consciência do curso do tempo. A consciência do curso do tempo é
uma vivência de continuidade originária. A vivência do tempo é ainda uma
vivência de festar dirigido para, de um devenir onde a consciência do pre-
sente, como realidade, está entre o passado, como realidade, está entre o
passado, como recordação, e o futuro, como projeto. Por fim, há ainda a
vivência temporal do intemporal, do ser* como eterno presente, como o ter
superado o devenir.
1°) Consciência do curso atual do tempo. A vivência normal do curso
atual do tempo oscila de maneira compreensível. A ocupação interessante,
variável, dá a consciência da velocidade do passar do tempo. A desocupa-
ção, a ausência de acontecimento, a espera produz a sensação de lentidão
no passar do tempo e provoca enfado. Todavia nem sempre. Doentes men-
tais não fazem nada por anos a fio sem sentirem enfado. Pessoas cansa-
das e exaustas podem ter sensação de vazio sem enfado. Ao contrário, nas
crises, nas psicoses e intoxicações, a vivência anormal do curso do tempo
não é vivida de modo compreensível, mas a partir de fontes elementares do
processo vital:
aa) Precipitado ou lento. Kleen relata de um jovem que tinha crises, nas
quais corria amedrontado para a mãe e dizia:
“Agora, mãe, começa de novo, o que é isso, agora tudo anda outra vez
tão depressa. Eu falo mais ligeiro, você fala mais depressa?” Parece-lhe
que na rua as pessoas andavam mais ligeiro.
Na embriaguez de mescalina Serko tinha a sensação de que o futuro
próximo se precipitava:
“De início se tem a sensação particular de se ter perdido o domínio so-
bre o tempo, como se o tempo se esgueirasse, como já não se pudessem
reter os momentos presentes para vivê-los; procura-se aferrar-se a eles
mas escapam e se escoam".
bb) A perda da consciência do tempo. Sem dúvida, enquanto houver
consciência, não pode desaparecer toda e qualquer sensação de tempo.
Mas se pode reduzir ao mínimo. Assim, doentes em grave exaustão podem
dizer que já não sentem o tempo. Quando se perdeu a atividade, desapa-
rece correspondentemente a consciência do curso do tempo.
“Quando durante a embriagues de mescalina os momentos se escoam,
perde-se no auge da intoxicação, por assim dizer, o tempo. Serko: especi-
almente nas alucinações abundantes tem-se a sensação de boiar numa
corrente temporal ilimitada, em algum lugar e em algum tempo. Com al-
gum esforço sempre de novo se deve representar ativamente e aos sola-
vancos a situação temporal para fugir a esse desvanecimento* do tempo
por alguns momentos. Por momentos apenas, pois a tensão cede, deixa-se
levar e assim o tempo sem limites retorna logo. É, segundo Beringer, uma
vida “só no momento, separada de passado e futuro”.
cc) Perda da realidade da vivência do tempo. A sensação* do presente,
da presença e ausência da realidade, liga-se originariamente à consciência
do tempo. Com o desaparecimento do tempo, desaparecem o presente e a
realidade. Sentimos a realidade como presença temporal ou sentimos
como se o nada fosse temporal. Muitos psicastênicos depressivos o descre-
vem: é como se o mesmo momento sempre permanecesse, como se exis-
tisse um vazio temporal. Não vivem o tempo de que têm conhecimento.
Uma doente depressiva tem a sensação de que o tempo não quer ir
adiante. Esta vivência não tem, sem dúvida, o caráter elementar dos casos
anteriores mas nesta sensação, que simboliza ao mesmo tempo a si e o
tempo, há também algo elementar: “O ponteiro vai adiante de modo intei-
ramente vazio, o relógio anda de modo inteiramente vazio... são as horas
perdidas dos anos em que não podia trabalhar”. O tempo- retrocede, ela vê
que o ponteiro se move para frente, mas lhe parece como se o tempo não
andasse com ele e sim tudo ficasse parado”. O mundo é o único pedaço
que não pode andar nem para frente nem para trás, nisso reside todo o
meu medo. O tempo está perdido para mim, os ponteiros são tão leves”.
.— Numa visão retrospectiva, após a cura; Como decorreram para mim ja-
neiro e fevereiro, é, por assim dizer, como um nada comum. Isso fica
sendo um único pedaço, por assim dizer e isso permanece. Não podia
acreditar que o tempo realmente tinha continuado. Como sempre traba-
lhasse e trabalhasse nada realizasse, tinha a sensação de conosco tudo ir
para trás. Não terminava nada”. (Kloos).
dd) Vivência da imobilização do tempo. Uma doente esquizofrênica re-
lata:
De chofre caiu sobre mim um estado: braços e pernas pareciam in-
char. Uma dor terrível atravessava-me a cabeça e o tempo se imobilizou.
Simultaneamente o significado vital deste momento se me apresentou à
alma de modo quase sobre-humano. A seguir o tempo voltou a fluir como
antes. Todavia, este tempo que se imobiliza era como uma porta” (F. Fis-
cher).
2° Consciência da extensão temporal do imediatamente passado. É
compreensível que, após um dia de muito trabalho ou de muitas vivências,
tenhamos a consciência de um dia longo, enquanto um dia vazio, que
passa vagarosamente, se apresenta breve à consciência retrospectiva.
Quanto mais vivas se nos apresentam vivências passadas, tanto mais cur-
tos, quanto maior o número de vivências que desde então nos atingiram,
tanto mais longo nos parece o tempo decorrido. Todavia, há um modo de
recordar o curso do tempo que não se pode compreender deste modo, mas
tem por fundamento algo novo, elementar.
Após uma psicose aguda, rica de vivências, escreve um paranoico: “Da
totalidade de minhas recordações, se fixou em mim a impressão de que o
espaço de tempo em questão, abrangendo, segundo a opinião humana co-
mum, apenas 3-4 meses, deve compreender na realidade um tempo extra-
ordinariamente grande, como se uma noite tivesse a duração de séculos”.
Na embriaguez de mescalina Serko sentia uma enorme supervaloriza-
ção subjetiva do tempo transcorrido. O tempo parecia distendido. Algo há
pouco vivido parecia-lhe muito distante.
Sempre de novo se fala em abundância absorvente de vivências em se-
gundos, p. ex., durante uma queda ou num sonho. Um pesquisador fran-
cês de sonhos relata (citado dos Witterstein): Sonhou com o domínio do
terror na revolução, cenas de assassinatos e julgamentos, condenação,
sua viagem ao tribunal, a guilhotina, sentiu quando a cabeça se separou
do tronco — e acordou; o espaldar da cama tinha caído e o atingira na
nuca”. “O fim do sonho fora sua origem”.
Não há porque duvidar da credibilidade de relatos semelhantes. Toda-
via, não é possível que num segundo tenha sido vivenciado em sucessão
de tempo o que, na recordação, se fez consciente sucessivamente. Deve
haver atos que condensem intensas vivências presentes a um momento
que na recordação se decompõem então em sucessão.
Psicastênicos e esquizofrênicos relatara vivências sublimes de poucos
minutos como se tivessem durado eternamente.
Na aura dos epiléticos vive-se um segundo como sem tempo ou como
eternidade (Dostoievski).
3°) A consciência do presente em relação com o passado e o futuro. Des-
crevem-se fenômenos curiosos, mas muito diferentes:
aa) O “déjà vu” e "jamais vu”: em momentos assalta os doentes uma
consciência de já terem visto uma vez exatamente tudo que veem, de já te-
rem vivido uma vez exatamente todo o momento até em seus detalhes. Os
mesmos objetos, as mesmas pessoas, exatamente as mesmas posições e
gestos, justamente estas palavras, de modo surpreendentemente exato
este tom de voz, tudo já foi assim uma vez. Ao contrário, o jamais vu con-
siste na consciência de ver tudo pela primeira vez, na consciência da natu-
reza desconhecida, nova e incompreensível do percebido.
bb) A descontinuidade do tempo. Alguns esquizofrênicos relatam que de
momentos em momentos têm a impressão de ter caído do céu. O tempo
parece vazio. Falta a consciência do transcurso do tempo, da continuidade
do tempo (Minkowski). Um paciente (Korsakov) de Bouman se sente (ao
ser transferido (p. ex., de uma clínica para outra), como levado subita-
mente de um lugar para outro. Dois momentos se acham justapostos sem
intermediários, nenhuma duração temporal intercorre entre ambos.
cc) Os meses e anos passam demasiado rápidos. “O mundo corre e
quando é outono, já é de novo primavera, antigamente não era assim tão
rápido” (esquizofrênica, Fr. Fischer).
dd) O passado se encolhe. Um doente de Bouman sentia o passado de
29 anos com a duração no máximo de quatro anos e meses, os diversos
espaços de tempo proporcionalmente encurtados.
4°) Consciência do futuro. O futuro desaparece: Uma paciente depres-
siva, que sofre de um “terrível vazio” e da sensação de embotamento, re-
fere: “Já não posso prever nada como se já não houvesse futuro. Penso
sempre que tudo termina agora e amanhã já não há nada mais”. Sabe que
sem dúvida amanhã é um dia, mas essa consciência é diferente de antes.
Até mesmo os próximos minutos já não se lhe apresentam como antes.
Esses doentes não têm propósitos, preocupações e esperanças para o fu-
turo. Também no passado não sentem o tempo “Sei o número dos anos
mas já não sei avaliar há quanto tempo”. (Kloos).
Não se trata de vivência elementar do tempo. Também na vivência do
tempo se nota transformação emocional na percepção e interiorização de
todas as coisas. Fenece o ter presente emocional dos conteúdos — estão
presentes, mas os doentes só os podem saber, não os podem sentir. Assim
como todos os conteúdos, assim desaparece também o futuro: existe o
conceito de tempo e o saber correto do tempo, mas não a vivência do
tempo.
5°) A vivência esquizofrênica da imobilizado do tempo, da confusão no
fluir dos tempos, da derrocada do tempo. Alguns esquizofrênicos, princi-
palmente em crises curtas e passageiras, referem, como modificação da vi-
vência do tempo, vivências muito curiosas, ao mesmo tempo elementares
e cheias de significado, de presença sensível e estranheza metafísica.
Um esquizofrênico descreve uma crise: “Ontem ao meio-dia, olhei o re-
lógio... Senti-me como que lançado para trás, como se algo passado se me
chegasse. Era-me como se às 11,30 h fosse de novo 11,00 h mas não re-
tornou apenas o tempo mas também o que me aconteceu neste tempo. De
repente não era apenas novamente 11,00 h, não, estava presente um
tempo há muito passado... Cheguei a mim mesmo no meio- de um tempo
do passado. Como era horrível. Pensei que o relógio- tivesse sido atrasado,
que os zeladores tivessem feito uma piada idiota... E logo veio-me a sensa-
ção de uma expectativa terrível, eu podia ser arrastado para o passado...
Era horrível brincar assim com o tempo... Um tempo estranho bruxuleava.
Tudo nadava numa confusão, e disse convulsivamente para mim: Vou re-
ter tudo... Então chegou o almoço e tudo se fez novamente como antes”
(Fr. Fischer).
Uma esquizofrênica diz: “Já não há presente mas apenas um ser arras-
tado para trás. O futuro se encolhe sempre mais. O passado é tão impo-
nente, ele se lança sobre mim, arrasta-me para trás. Sou como uma má-
quina que está a postos e trabalha. Trabalha-se para que quase tudo se
desfaça mas fica como está... Vivo muito mais depressa do que antes. É o
contacto com coisas antigas. Eu sinto, isso me arrasta consigo. Deixo-me
levar para ver o fim, para chegar o descanso. Ao atar-me à rapidez, sou ar-
rebatado junto... O tempo corre junto e se devora e nisso eu me encontro
presente” (Fr. Fischer).
Uma outra paciente esquizofrênica descreve a confusão torturante de
vazio, nada, imobilidade, retorno do passado: “A vida é agora como uma
esteira rolante. Mas no há nada em cima. Simplesmente é sempre igual...
Não sabia que a morte era assim... Agora continuo a viver na eternidade...
Lá fora, a vida continua, as folhas se movem, os outros andam pela sala
mas, para mim, o tempo não passa... Muitas vezes, quando no jardim os
outros andam ligeiro para cima e para baixo e as folhas voam para lá e
para cá no vento, queria poder também interiormente correr, para o tempo
voltar a passar, mas fico parada... O tempo fica imóvel, oscila-se até entre
passado e futuro... É um tempo monótono, distendido sem fim... Poder co-
meçar na frente e novamente o grande impulso no tempo devido, assim
estava certa mas não, não é possível... Arrasta-me para trás e para onde?
Para lá donde vem, para onde estava antes. Vai-se para o passado... Caí-
ram os muros, antes tudo estava firme... Se sei, onde estou? Sim sei. Mas
o fato fugidio de que não há tempo, e onde se pode pegar o tempo... O
tempo está em colapso” (Fr. Fischer).
Um esquizofrênico descreve uma crise: Num passeio à tarde por uma
rua movimentada... de repente uma sensação de mal-estar... Logo depois
surgia em minha frente uma superfície do tamanho de uma mão. Na su-
perfície havia um enxamear, um passar para lá e para cá de fios escuros...
O turbilhão confuso se tornou mais forte. Eu mesmo me senti atraído por
ele. Propriamente, era um jogo confuso de movimentos, que se tinha colo-
cado em lugar de minha pessoa. O tempo desapareceu e se imobilizou.
Propriamente era outra coisa. Pois o tempo surgia logo que desaparecia.
Este novo tempo era infinitamente estruturado como que encaixado uma
camada na outra, mal se poderá compará-lo com o que chamamos de
tempo. Então atravessou-me a cabeça o pensamento de que o tempo não
está apenas à frente e atrás de mim, mas está também em outras dire-
ções. Isto eu li do jogo de cores... Pouco depois o distúrbio estava esque-
cido”.
Uma outra vivência do mesmo doente: “O pensamento. estava parado,
tudo estava parado como se já não houvesse tempo. Parecia-me a mim
mesmo como um ser sem tempo, sobremodo claro e transparente como se
pudesse ver-me no fundo... Ao mesmo tempo ouvi bem longe uma música
suave e vi esculturas palidamente iluminadas. Tudo isso num fluxo inin-
terrupto de movimento pelo que se distinguia de meu próprio estado. Es-
tes movimentos à distância eram de certo modo uma loucura (folie) para
meu estado”.
Ainda uma vivência do mesmo: “Estava como que cortado de meu pró-
prio passado. Como se nunca fosse assim, tão sombrio. Tudo se misturou
mas não de modo palpável. O passado se encolheu, entrou em confusão e
ruiu... assim como se desfaz uma barraca de tábuas... ou quando um
quadro de perspectiva profunda se aplana e se achata (Fr. Fischer).

c) O movimento.
A percepção do movimento inclui em si espaço e tempo. Investigaram-
se perturbações da percepção do movimento sobretudo quanto a distúr-
bios de rendimento, em deficiências neurológicas. A descrição da vivência
do tempo incluiu as vivências anormais do movimento: assim a vivência
salteada: o fato de não se perceberem o movimento, o objeto ou a pessoa
está ora aqui ora ali, mas sem continuidade de tempo intermediário; ade-
mais, a aceleração e diminuição dos movimentos vistos etc.
Há percepções de movimentos sem que o móvel se afaste do lugar: Sob
a ação de escopolamina: “De repente vejo como a caneta aparecer-me en-
volta nua auréola de névoa — se arrasta como uma lagarta com movimen-
tos suaves, ondulantes. Parece aproximar-se. Ao mesmo tempo, porém,
noto que não diminui a distância da ponta próxima de mim da diagonal
onde se tocam a madeira e o pano da escrivaninha”.

§ 3. A Consciência Corpórea.

Observação psicológica preliminar. Como da existência, tenho consciên-


cia do corpo mas, ao mesmo tempo, posso vê-lo com os olhos e tocá-lo
com as mãos. O corpo é a única parte do mundo que se sente e — na su-
perfície — se percebe por dentro. É, para mim, um objeto e eu sou este
mesmo corpo. Sem dúvida, como me sinto como corpo e como me percebo
como objeto, são duas coisas diversas mas indissoluvelmente ligadas. As
sensações corpóreas, de que se constituem para mim um objeto conhe-
cido, e as sensações que permanecem sentimentos do estado de um corpo,
só as mesmas sensações e inseparáveis, embora se possa distingui-las.
As sensações de sentimentos fluem juntas na consciência do estado
corpórea. A consciência de existência do corpo — constitui um fundo nor-
mal da consciência que nem se nota nem estava nem alenta mas é indife-
rente — pode in toto sofrer modificações extraordinárias; estados de libido,
os estados de medo, a superação da dor atingem o corpo até suas últimas
fibras, e o corpo absorve o homem no alento e no desânimo.
O corpo se nos faz objeto na consciência do próprio corpo que, sem iso-
lamento ou consolidação objetiva acentuada, sempre nos acompanha,
como intuição da figura espacial, que temos de nós mesmos, em todo mo-
vimento corporal. Head e Schilder explicaram este fenômeno- Para Head
as impressões espaciais — as cinestésicas, as táteis, as óticas — formam
modelos organizados de nós mesmos, que se podem, chamar esquemas do
corpo. O modo porque apreendemos as sensações, corpóreas e realizamos
os movimentos recebe seu lugar e sua posição- da relação com as impres-
sões do corpo anteriores assim como se nos apresentam inapercebidas no
esquema do corpo.
A consciência do estado corpóreo e o esquema espacial do corpo cons-
tituem, como um todo, o que Wernicke chamou somatopsique. Deve-se di-
vidir fisiologicamente a consciência do estado corporal segundo as sensa-
ções específicas dos sentidos que as constituem. Todas as sensações disso
participam. As que menos participam são as da visão e audição, que so-
mente nos estímulos mais fortes trazem consigo, ao lado, do conteúdo ob-
jetivo externo, também uma sensação corporal. Participam, mais as do ol-
fato e paladar, que sempre trazem consigo sensações corpóreas. Estas se
classificam em 3 grupos: nas sensações da superfície do corpo (sensações
térmicas, táteis, hídricas entre outras); mas sensações dos movimentos e
da localização no espaço (sensações cinestésicas e do vestíbulo); nas sen-
sações dos órgãos (que permitem sentir o estado dos órgãos internos). A
base fisiológica destas sensações, está nas terminações histologicamente
conhecidas dos nervos. É uma. questão se estas esgotam todas as sensa-
ções.
A consciência do corpo esclarecer-se-á fenomenologicamente por meio-
da apresentação de nossa vivência total do corpo. Assim a proximidade-
do corpo com relação à consciência do eu é máxima nas vivências de ativi-
dade muscular e motora, é menor nas sensações cardíacas e circulatórias,
é mínima nos processos vegetativos. Temos uma sensação- específica de
nosso ser corpóreo nos movimentos da locomoção, na impressão que se
espera de nossa corporeidade sobre os outros, na constituição de robustez
e debilidade, de alteração na postura. Tudo isso são momentos de nossa
pessoa vital. Muito variável é o critério a. respeito da unidade ou do dis-
tanciamento entre nós e nosso corpo até o máximo distanciamento na ob-
servação médica de nós mesmos quando- as dores são para nós apenas
sintomas, o corpo é como um objeto- estranho de constatações anatômi-
cas e nós, embora numa unidade de^ fato indissolúvel, consideramos o
corpo como a roupa, como distante: de nós e de forma alguma idêntico co-
nosco.
Curioso é o fato de nossa consciência corpórea não se restringir aos li-
mites de nosso corpo. Sentimos com a ponta da bengala, com que. tatea-
mos o caminho no escuro. Nosso espaço próprio, i.é., o espaço de. nosso
corpo anatômico, se estende até onde vai esta sensação da unidade, co-
nosco. Assim o carro que dirijo, quando o domino completamente, per-
tence ao espaço próprio e é como um corpo aumentado, no qual estou,
presente por toda parte com minha sensação. O espaço alheio começa, no
limite em que com a sensação toco nos objetos dele provenientes.
Minha consciência corpórea pode-se desligar do espaço objetivo e con-
venientemente orientado, da realidade espacial, ou negativamente (como
perda de sensação vital e de segurança) no desmaio, ou positivamente
(como aquisição de sensação vital e de liberdade) na dança.
Fenomenologicamente, a vivência do próprio corpo está estreitamente
ligada à vivência do sentimento, dos impulsos, da consciência do eu.
Deve-se distinguir a descrição fenomenológica da corporeidade vivida,
da discussão sobre o significado do próprio corpo para o homem em situa-
ções compreensíveis e ativas de tendências hipocondríacas, narcisistas,
simbólicas e com isso na atuação para a autoconsciência.

a) Membros amputados.
É assombroso como se sentem os membros amputados. Trata-Se da
ação do esquema corpóreo habitual que permanece após a amputação. É
que o esquema corpóreo não é um simples saber flutuante, relativo ao
próprio corpo e sim um modo de apreender, profundamente implantado
durante toda a vida, no qual as diversas sensações corpóreas constituem
um todo. Assim como cremos ver no ponto cego normal do olho, assim o
membro perdido continua sentido como real, preenche-se a lacuna real-
mente aberta no esquema corpóreo. Essa sensação se deve ligar à ligação
no córtex cerebral, pois num caso de lesão correspondente do córtex, Head
viu desaparecer o membro fantasma persistente.
Riese, p. ex., descreve uma pessoa sadia que teve a perna amputada:
em todos os movimentos corporais sentia a perna amputada, distendia-se
no joelho quando se levantava, curvava-se para trás, ao sentar-se, esten-
dia-se agradavelmente com os outros membros no cansaço... Perguntado
pela realidade, o paciente naturalmente sabia que a perna já não existia
mas lhe atribuía uma realidade especial, a realidade “dela”.

b) Distúrbios neurológicos.
Em perturbações cerebrais localizadas apresentam-se os distúrbios
mais variados na capacidade de orientar-se com e no próprio corpo. Assim
(do ponto de vista da psicologia do rendimento) a capacidade de se conhe-
cer o lugar de um ponto estimulado na superfície do corpo, o lugar de um
membro, acha-se abolida em algumas partes ou no corpo todo. Alguns do-
entes já não podem encontrar com a mão o nariz, a boca, os olhos. Ou se
acha perturbada a orientação para se distinguir a direita e a esquerda no
próprio corpo. Os doentes já não podem indicar o lado de uma estimula-
ção sensível etc. Não sabemos (fenomenologicamente), como então se mo-
difica a própria consciência corpórea.
Vertigem significa l.° tontura giratória, 2.° sensação de queda, 3° uma
tontura geral, não sistemática na forma de insegurança da consciência
sem que os objetos girem, e sem sensação de queda. Trata-se de três fenô-
menos heterogêneos.
O que há de comum é a total insegurança a respeito do lugar e da po-
sição.
Esta insegurança ocorre, normalmente, na passagem crítica de um es-
tado para outro, seja sob condições ambientais físicas, seja por motivos
psíquicos; neurologicamente nasce de causas somáticas (especialmente do
mecanismo vestibular); neurologicamente, cresce na dependência de
transformações psíquicas em conflitos. A vertigem é uma experiência de
toda a existência, que se sente perder a base e, como tal, é símbolo de
tudo que é supremo e ainda não chegou a uma clareza ordenada do ser
atual — razão pela qual a vertigem pôde constituir-se para alguns filólogos
em expressão da origem de suas doutrinas fundamentais referentes à to-
talidade do ser.

c) Sensações corpóreas, percepções da forma do corpo, alucinações dos


sentidos corpóreos etc.
Distinguindo, podemos agrupar:
1°) Alucinações dos sentidos corpóreos. Podem-se distinguir falsas-per-
cepções térmicas (o piso está queimando, sensação insuportável de calor)
das táteis (vento frio sopra nos doentes, vermes e insetos picam, por toda
parte há ferroadas). Entre as últimas se separaram as alucinações hígricas
(percepções de umidade e fluidez). Interessantes são as alucinações no
sentido muscular (Cramer). O piso se eleva e se abaixa, a cama é levan-
tada. Os doentes afundam, voam, sentem-se leves como pena, sem peso.
Um objeto na mão pesa de modo sensivelmente muito pesado ou muito
leve. Os doentes acreditam fazer movimentos, enquanto na realidade estão
imóveis, sentem sua própria fala sem falar (alucinações no mecanismo da
linguagem). As vozes são concebidas em parte como alucinações no meca-
nismo da linguagem. Interpreta-se uma parte destas alucinações como
alucinações no mecanismo vestibular.
2°) Sensações vitais. Nas sensações do sentimento torna-se consciente
o estado vital do corpo. Inúmeras são as indicações dos doentes sobre sen-
sações corpóreas. Sentem-se petrificados, encolhidos, sentem-se cansa-
dos, vazios, sentem-se ocos ou entupidos. Nestas sensações modifica-se o
modo de sentir a existência corpórea. O doente se sente como uma sim-
ples bola de sabão, sente que seus membros são de vidro ou de outra
coisa, segundo as inúmeras descrições. Possuímos, principalmente de es-
quizofrênicos, grande variedade de indicações sobre sensações enigmáti-
cas. É difícil separar as vivências sensoriais reais das interpretações deli-
rantes, bem como esclarecer nestas últimas os processos sensoriais que
lhes servem de base.
3°) Vivências corpóreas feitas. Juntamente com sensações corpóreas
pode ocorrer a vivência viva de que elas são causadas de fora. Os doentes
não interpretam assim quaisquer sensações orgânicas anormais, mas per-
cebem logo este “de fora”. Assim se observa que os mesmos doentes apre-
endem corretamente dores e sensações de doenças somáticas (angina,
reumatismo articular), enquanto vivenciam as sensações especiais como
feitas de fora. Alguns esquizofrênicos vivenciam como são levados a excita-
ções sexuais, como são violentados sexualmente, como lhes é causado o
ato sexual sem a presença de pessoas estranhas. Arrancam-lhes os cabe-
los e os artelhos etc., como que com arames.
4°) Desfigurações vivenciadas do corpo. O corpo cresce, torna-se mais
forte, maciço e pesado, juntamente com o corpo o travesseiro, a cama fi-
cam sempre maiores. A cabeça e os membros incham, partes se entortam,
membros ficam sucessivamente ora maiores ora menores.
Serko apresenta uma autodescrição da embriagues de mescalina, que,
devido a sua grande vivacidade, permite compreenderem-se por analogia
muitas vivências psicóticas: “Sinto meu corpo de modo descomunalmente
plástico e em detalhes extraordinariamente minuciosos... de repente tem-
se a sensação de que o pé se separou da perna; sente-se o pé separado do
corpo debaixo da perna amputado. Note-se bem! Não se sente simples-
mente que falta o pé. Têm-se no contrário duas sensações positivas, a do
pé e a da perna amputada com os sinais alucinados de seu afastamento
para o lado... A seguir tem-se a sensação de que a cabeça girou em 180°, a
barriga se tornou massa fluida, a face tomou proporções gigantescas, os
lábios incharam... os braços se tornaram tipicamente de madeira com
contornos pontiagudos como as figuras dos bonecos de Nurembergue, ou
cresceram e se transformaram em longos braços de macaco, o maxilar in-
ferior pende desmesuradamente para baixo... Entre muitas outras tive
também a alucinação de que minha cabeça se tinha separado do corpo e
flutuava livre no ar a um metro de distância. Eu a senti realmente flutu-
ando mas ainda pertencendo a meu eu. Para controlar-me, disse alto algu-
mas palavras e também a voz pareceu-me provir de trás de alguma distân-
cia... Ainda mais esquisitas barrocas são as transformações. Assim meus.
Rés tomaram forma de-chave, tornaram-se aspirais, o maxilar inferior fi-
cou parecido com o sinal de parágrafo, com um gancho, o peito parecia
derreter-se”.
A unidade da consciência corpórea com o espaço em que o- corpo
sente as coisas, assume, nas alterações da consciência, formas grotescas.
Um doente se sente “como linhas d’água no papel, em que se escreve”.
Serko descreve na embriaguez de mescalina:
“Às vezes as alucinações táteis entram em combinações inteiramente
originais e difíceis de descrever com as da esfera ótica... No campo de visão
difusamente iluminado forma-se por meio do movimento- vivo de uma
faixa, uma espiral luminosa que, rodando rapidamente se move para lá e
para cá no campo visual. Ao mesmo tempo na esfera háptica chega-se às
já mencionadas transformações, assumindo uma. perna a forma de espi-
ral. A espiral luminosa e a espiral tátil se conjugam-se na consciência, i.é.,
a mesma espiral que se alucina oticamente sente-se também tatilmente...
É que há a sensação de unidade corpórea e ótica”.
Na embriaguez de haxixe: o sujeito da experiência indicou que “o corpo
é como uma casca, como um ataúde em que a alma é, por- assim dizer,
estendida ou pendurada. A alma é bem tenra, transparente, tecida de vi-
dro, flutuando fixa neste invólucro. Os membros- se veem a si mesmos, to-
dos os sentidos estão unidos num só. A casca é pesada e imóvel, o caroço
é que pensa, sente, vivência. — Isso não- era uma imagem mas realidade,
ele tinha medo de ser ferido” (Fraenkel e Joel).
Um esquizofrênico: “Vi o novo eu como um recém-nascido. Dele partia
toda força, mas ainda não podia penetrar meu corpo todo. É que- o corpo
era grande demais. Queria que me arrancassem uma perna ou um braço
para o corpo se encher todo. Depois ficou melhor, senti por fim que o eu
transbordava do corpo para espaço” (Schwab).
Os fenômenos enumerados não são de uma só espécie. Mas. é difícil
distingui-las. As formas em que se vive de modo anormal o esquema cor-
póreo, não têm em parte, é claro, analogia com a vivência normal do
corpo.
Sensações vitais dos sentidos, vivências de significação simbólica. dis-
túrbios neurológicos se interpenetram. A consciência doeu se faz represen-
tar um pelo outro.

d) Sósia.
Heautoscopia chama-se o fenômeno que consiste, em perceber o corpo
no mundo externo como um segundo eu, seja em percepção propriamente
dita, seja em mera representação, no- delírio, em cognição corporal. Houve
doentes que falavam com seus sósias. Não é fenômeno uniforme.
1°) Quando, “em impulso e confusão” Goethe viu pela última vez Fre-
derica e dela se afastava a cavalo na direção de Drusenheim, aconteceu-
lhe o seguinte: “Não com os olhos do corpo mas do espírito, vi a mim
mesmo, no mesmo caminho, a cavalo, vir de novo a meu encontro, e numa
roupa que nunca vesti: era parda com algo de ouro. Logo que me sacudi
deste sonho, a figura desapareceu totalmente”. “A maravilhosa imagem
ilusória deu-me alguma tranquilidade naqueles momentos de separação”
— Deve-se notar: confusão — estado de sonho — com os olhos do espírito
— e satisfação pelo sentido da aparição: ele mesmo retornava a cavalo a
seu encontro em Sesenheim, ele vai voltar.
2°) Uma esquizofrênica de Menninger — Lerchenthal se queixa de se
ver nua por detrás, de ter a sensação de não estar vestida e de se ver nua
e sentir frio; é o olho do espírito.
3°) Um esquizofrênico (Staudenmaier): “Eu imaginava com a máxima
vivacidade possível, andando de noite para cima e para baixo no jardim,
que além de mim havia ainda três outras, figuras. Aos poucos se formou a
alucinação visual correspondente. Pareceu-me então que andavam na
mesma cadência diante de mim três “Staudenmaier” vestidos iguais como
eu. Paravam quando eu parava, estendiam as mãos quando eu o fazia”.
4°) Um doente de Põtzl com hemiplegia e deficiência de autopercepção
sente como estranho a metade paralisada da cabeça. Explica, vendo sua
mão esquerda paralítica, que provavelmente ela pertence a um paciente do
lado. Em delírios noturnos explica que à esquerda na cama a seu lado,
está uma pessoa estranha que quer expulsá-lo da cama.
Trata-se, portanto, de fenômeno externamente semelhante; de fato es-
sencialmente diferente, que pode aparecer em lesões cerebrais, em delí-
rios, na esquizofrenia, em estados oníricos, sempre com alterção ao menos
leve da consciência: sonho vigil, embriaguez tóxica, sonho dormindo, delí-
rio. A semelhança está em o esquema corpóreo de nossa própria figura ad-
quirir realidade fora de nós.

§ 4. Consciência Da Realidade E Ideias Delirantes.

Em todos os tempos o delírio valeu como o fenômeno fundamental da


loucura delirante e doente mental como a mesma coisa. O que é o delírio é
de fato questão fundamental da psicopatologia. Responde-se de modo ape-
nas externo e além disso falso a esta questão quando se chama o delírio
representação desvirtuada que se mantém incorrigível. Não se pode espe-
rar encerrar rapidamente o assunto com uma definição. O delírio é fenô-
meno primário. A primeira tarefa é evidenciá-lo. A vivência em que ocorre
o delírio é a experiência e o pensamento da realidade.
Observações lógicas e psicológicas preliminares sobre a consciência da
realidade. O que nos é evidente a cada momento costuma ser também o
mais enigmático: assim o tempo, o eu, assim também a realidade. Ao ter-
mos que dizer o que é a realidade, respondemos: o ser em si, quando a
distinguimos do que nos aparece; o objetivo, ao distinguirmos a realidade,
pensada como universalmente válido, do erro subjetivo; o ser propria-
mente dito, quando distinguimos a realidade de simples consequências e
revestimentos. Ou então a chamamos o ser no espaço e no tempo, quando
distinguimos a realidade, como tal, das estruturas objetivas pensadas
como válidas do ser ideal, p. ex., dos objetos matemáticos.
São estas respostas lógicas. Com elas determinamos um conceito de
realidade. Todavia, para nós deve ajuntar-se sempre à realidade pensada a
realidade vivida. A realidade pensada só é convincente quando se experi-
menta um modo de presença que a própria realidade traz consigo. Quanto
ao conceito, diz Kant, cem talentos pensados e cem talentos reais não se
distinguem. Só na prática nota-se a diferença.
O que é a vivência da realidade não se pode nem deduzir nem colocar
numa série com outros fenômenos semelhantes, mas apenas descrever in-
diretamente como um fenômeno primário. Precisamente pelo fato de poder
apresentar distúrbios patológicos é que a atenção desperta e se pode notá-
la em sua essência. A descrição do fenômeno deve levar em conta, em todo
caso, os seguintes momentos:
1°) Real é o que percebemos corporeamente. Em oposição a nossas re-
presentações todos os conteúdos de percepção têm uma qualidade que
não pertence às sensações dos órgãos, p. ex.: do olho ou ouvido mas ao
modo do que é sentido, algo de originário que não se pode deduzir e é a re-
alidade sensível (e normalmente se liga a estímulos do mundo externo).
Este algo primário pode-se descrever, denominar, redenominar mas não
derivar.
2°) A realidade está na consciência do ser, como tal. Mesmo perce-
bendo corporeamente, pode faltar-nos a consciência da realidade. Esta se
perde no “alheamento” do mundo da percepção e da própria existência;
deve ser uma vivência primária da existência e foi denominada por Janet
fonction du réel. A frase de. Descartes cogito ergo sum também é correta
para o homem em estado de vivência de alheamento em que diz parado-
xalmente: não existo mas, como não existência, devo viver eternamente. —
o cumprimento da frase de Descartes não se pode forçá-lo logicamente; a
isso pertence a consciência primária do ser, especialmente a consciência
da existência: estou presente; com isso, se experimenta também como
igualmente real a existência das coisas fora de mim.
3°) Real é o que nos opõe resistência. Resistência é o que impede o mo-
vimento de nosso corpo, resistência é ainda tudo que impede a realização
imediata de nossos desejos e tendências. Alcançar algo contra todas as re-
sistências bem como fracassar nas resistências significa experimentar a
realidade. Por isso toda vivência da realidade tem embasamento na prá-
tica. O que porém, na prática é realidade é sempre um processo de signifi-
car as coisas, as situações, os, acontecimentos. Na significação apreendo a
realidade. A resistência no mundo é o amplo domínio do real que traz a
consciência da realidade desde a palpabilidade do que é tátil até a percep-
ção das significações das coisas, das ações e reações dos homens. Com
esta consciência da realidade conto na prática, com ela me relaciono a
cada momento. É ela que me enche com o que espero, em que creio como
em algo de existente. Essa consciência da realidade me atravessa com cla-
reza mais ou menos estruturada na forma de um saber sobre a realidade
que se toca. Esta por sua vez se acha implantada na realidade mais geral
que, pela tradição da cultura onde cresci e fui educado, me foi desenvol-
vida em estrutura e conteúdo. O que aí há de real para nós apresenta vá-
rios graus de certeza sobre os quais geralmente não temos clareza com-
pleta. Para ver o grau de segurança que temos sobre esta realidade, basta
fazer a prova de decidir se alguma coisa é real ou não.
Da certeza imediata a respeito, da realidade deve-se distinguir o juízo
de realidade. Pode-se reconhecer uma falsa-percepção corpórea como ilu-
são e não obstante ela continua; assim as imagens persistentes simples e
muitas alucinações de doentes mentais; mesmo quando se reconhece o
engano, pode-se, por falta de atenção, agir como se seu conteúdo fosse
real, assim p. ex., como um membro fantasma, querer andar e cair, ou
quando o botânico Naegeli quer pôr um copo d’água numa mesa aluci-
nada em seu campo visual. O juízo de realidade provém da elaboração
pelo pensamento de experiências imediatas. Estas são examinadas suces-
sivamente: só vale como real o que se mantém e confirma no exame; por
isso também só o que é accessível ao conhecimento idêntico de todos e
não é apenas subjetivamente privado. Um juízo de realidade pode-se
transformar em vivência imediata nova. Vivemos constantemente com es-
tes conhecimentos assim adquiridos que não analisamos explicitamente
num juízo. Características da realidade, assim como se apreende no juízo
de realidade, são, portanto: a realidade não é uma experiência particular
por si mas somente o que se mostra real no contexto da experiência; por
fim até na totalidade da experiência — a realidade é relativa, i.é., na me-
dida em que ela é conhecida como tal e se mostrou assim até onde pode
ser também de outra maneira — a realidade é concluída e repousa no co-
nhecimento e sua certeza, não na corporeidade e na vivência imediata da
realidade e como tal, que são antes apenas elementos no conjunto, pontos
de apoio indispensáveis mas constantemente em movimento dentro da ra-
zão.
Caracterizando agora o campo do delírio, podem-se estabelecer os se-
guintes limites: a perda da consciência do ser e da existência: dela se tra-
tou como alheamento do mundo da percepção e nos ocupará ainda nas
perturbações da consciência do eu. A falsa corporeidade ocorreu nos erros
dos sentidos. Todavia, o delírio é uma transformação na consciência global
da realidade (que secundariamente se anuncia nos juízos de realidade).
Esta consciência se constrói sobre as experiências de julgamento, o
mundo da prática, das resistências e significações, onde, porém, a corpo-
reidade alucinatória exerce apenas papel secundária, não suficientemente
fundamentado ao lado das transformações de experiências básicas cuja
apreensão nos causa as maiores dificuldades.

a) O conceito de delírio.
O delírio se comunica em juízos. Só onde se pensa e se julga pode nas-
cer um delírio. Neste sentido chamam-se ideias delirantes os juízos patolo-
gicamente falsos. O conteúdo deles pode também apresentar-se de modo
rudimentar e por isso menos eficaz na forma de simples cognição; cos-
tuma-se, então, falar em “sentimento” que, na verdade, é um saber obs-
curo.
De maneira vaga chamam-se ideias delirantes todos os juízos falsos
que possuem em determinado grau — não precisamente delimitado — os
seguintes caracteres externos: l) a convicção extraordinária com que lhes
adere, a certeza subjetiva, incomparável. 2) a impossibilidade de influenci-
amento da parte da experiência e de raciocínios constringentes. 3) a im-
possibilidade do conteúdo. Procurando-se penetrar por trás destas carac-
terísticas mais externas na essência psicológica das ideias delirantes,
deve-se distinguir em primeiro lugar entre as vivências primarias e os juí-
zos emitidos com base nelas, i.é., entre a realidade viva dos conteúdos de-
lirantes e os juízos estáticos que, em qualquer ocasião, só são reproduzi-
dos, discutidos, dissimulados. A seguir, quanto à origem do delírio deve-se
distinguir duas grandes classes: uns se originaram, de modo compreensí-
vel para nós, de afetos, de vivências afetivas, que abalam e produzem sen-
timentos de culpa, e de outras vivências, de percepções falsas ou de vivên-
cias de alheamentos do mundo da percepção em alterações de consciência
etc. Outros não são suscetíveis de serem seguidos psicologicamente, são
do ponto de vista fenomenológico algo de último e derradeiro. Os primeiros
chamados ideias deliroides, os últimos autênticas ideias delirantes.
Quanto a estas últimas temos de tentar acercar-nos do dado propriamente
dito das vivências delirantes, embora não consigamos apresentar clara e
concretamente este processo tão estranho.
Em toda falsa-percepção autêntica vivencia-se a necessidade de consi-
derar real o objeto; essa vivência de necessidade continua mesmo depois
de corrigido o juízo falso sobre a realidade caso este resulte de contexto
global da percepção e do conhecimento. Se a correção for compreensível
pela situação total e o sujeito da vivência persistir no juízo falso da reali-
dade — apesar de conhecer as razões em contrário, apesar de toda a refle-
xão, sem alimentar a menor dúvida, até mesmo diminuindo as dúvidas
iniciais — tratar-se-á então de verdadeira ideia delirante, pois esta já não
nos é compreensível apenas a partir da falsa-percepção. Nas ideias deliroi-
des por falsa-percepção há apenas uma tendência, uma inclinação para
juízo da realidade (ou uma segurança apenas passageira), na ideia deli-
rante termina toda e qualquer dúvida. Outros fatores psíquicos além das
simples falsas-percepções, estão atuando. Estes fatores é que pretende-
mos investigar ainda.
Quando na conversa o doente relata os conteúdos de suas ideias deli-
rantes, temos diante de nós, em qualquer circunstância, um produto se-
cundário. Uma formulação do juízo comum se nos apresenta de um modo
que só se distingue de outro juízo reproduzido talvez pelo conteúdo. Em
nossa investigação o problema é então: qual é a vivência primária propor-
cionada pela doença e o que é secundário na formulação, proveniente
compreensivelmente daquela vivência? Há três interpretações, a primeira
nega uma vivência delirante em sentido próprio. Todas as ideias delirantes
são compreensíveis, secundárias; a segunda acha que, numa debilidade
de inteligência, a deficiência de crítica faz nascer ideias delirantes de toda
vivência possível; a terceira não pode dispensar uma vivência delirante fe-
nomenologicamente específica, e a procura apreender como o elemento
propriamente patológico. A primeira maneira de ver é defendida por Wes-
tphal. Ele acha que existe primeiro a consciência de uma alteração da pró-
pria personalidade. Assim como alguém se sente observado, p. ex., num
uniforme que usa pela primeira vez, assim também alguns paranoicos
acreditam que também os outros notam neles a mudança que na verdade
só eles percebem. Do delírio de ser notado nasce o delírio de ser obser-
vado; deste, o de ser perseguido. Este nexo compreensível exerce, sem dú-
vida, grande influência especialmente nos processos paranoides de uma
personalidade e, como fonte de conteúdos, também nas psicoses. Pode ex-
plicar uma ideia supervalorada até em geral as ideias delirantes secundá-
rias, mas não atinge o essencial do delírio propriamente dito. O mesmo
acontece na derivação das ideias delirantes de afetos, p. ex. do afeto de
desconfiança. Aqui não aparece sempre claro o fenômeno específico da vi-
vência (da vivência delirante), mas o contexto compreensível para o origi-
nar-se de erros persistentes. Para o erro transformar-se em delírio, deve
ajuntar-se algo novo que, como vivência, poderá ser apreendido também
fenomenologicamente. — A segunda interpretação julga que a causa — ou
forma mais mitigada, a condição prévia do delírio reside numa debilidade
de inteligência. Há a tendência de se procurarem em paranoicos paralogis-
mos e erros lógicos para daí deduzir a debilidade. Contra isso mostrou já
Sandberg, com razão, que os paranoicos não têm de forma alguma inteli-
gência menor do que os sadios. O louco também tem o delírio que o faz co-
meter erros lógicos como as pessoas normais. É errado considerá-los, num
caso, sintoma de doença; em outro, tê-los por normais. De fato, encon-
tram-se todos os graus, e graus bem algos, de oligofrenia sem ideias deli-
rantes e as ideias delirantes mais fantásticas e incríveis, em inteligências
superiores. Não se destrói a crítica. Coloca-se apenas a serviço do delírio.
O doente pensa, examina razões e contrarrazões assim como o faria se
fosse sadio. Daí, encontrar-se nos paranoicos, como em pessoas sadias
um cepticismo superior exprimindo atitude mental que empresta colorido
à forma de manifestação do conteúdo do delírio. Ê de importância funda-
mental para a compreensão do delírio libertar-se do preconceito de que a
sua base se acha uma debilidade de inteligência. Desta depende apenas a
forma do delírio. Não debilidade de inteligência, mas mudança específica
nas funções psíquicas é o que se deve realmente admitir quando, após a
vivência delirante, um homem inteiramente judicioso, em casos raros sem
apresentar nenhum outro sintoma mórbido, mantém um delírio que qual-
quer um reconhece impossível, dizendo simplesmente: “É assim, disso não
posso duvidar”. “Eu bem o sei”. Em ideias delirantes verdadeiras, a falsifi-
cação reside no conteúdo, o pensamento formal fica intacto. Distúrbios
formais do pensamento levam a representações falsas, a associações con-
fusas, a opiniões embaralhadas (em estados agudos) que, como tais, não
apresentam o caráter de ideias delirantes. — A terceira interpretação de
que há uma vivência delirante fenomenologicamente de todo específica
procura estas vivências delirantes primárias e originárias.
Metodicamente, segundo o ponto de vista, o delírio está sujeito a varia-
das modalidades de investigação: fenomenologicamente, como vivência na
psicologia do rendimento como distúrbio do pensamento, na psicologia do
trabalho, como produto espiritual, nos contextos compreensíveis, como
movimento motivado da evolução de seu conteúdo, na perspectiva nosoló-
gico-biográfica se investiga se o delírio pode ser entendido por meio de
uma ruptura da curva vital ou com relação a um desenvolvimento contí-
nuo da personalidade.

b) Vivência delirantes primárias.


Tentando aproximar-nos das vivências delirantes primárias, logo nota-
mos que não nos é possível apresentar de maneira concreta os modos de
vivência totalmente estranhos para nós. Sobra sempre um resto enorme
de algo incompreensível, inapreensível e imperceptível. Não obstante se fez
a tentativa. Nos doentes surgem primariamente sensações, sentimentos
sobre a vida, disposições, cognições: “Há alguma coisa, diga-me o que há”,
assim se dirigia a seu marido uma doente de Sandberg. à pergunta sobre
o que devia haver, respondeu- a doente: “Eu não sei, mas há alguma
coisa". Os doentes sentem algo estranho, há alguma coisa que pressen-
tem. Tudo tem nova significação. O ambiente está diferente, não de ma-
neira sensivelmente grosseira — as percepções, em seu aspecto sensível,
não se modificaram — o que há é uma modificação sutil, que tudo ‘atinge
e envolve em iluminação estranha, incerta. Uma atmosfera indefinível do-
mina então uma casa que antes era indiferente ou amável. Há algo no ar,
de que o doente não se pode dar conta, uma tensão suspeita, desagradá-
vel, estranha o domina (Sandberg). A palavra “disposição” poderia causar
confusão, p. ex., com as disposições e sentimentos psicastênicos. Na “dis-
posição delirante”, no entanto, há sempre “algo” presente, embora total-
mente impreciso, o germe de valor e significação objetivos. Esta disposição
delirante geral, sem conteúdo determinado, deve ser insuportável. Os do-
entes sofrem horrivelmente; e conseguir uma ideia determinada já é como
um alívio. Nasce no doente “uma sensação de falta de apoio e insegurança
que o impele instintivamente a procurar um ponto firme onde possa segu-
rar e agarrar. Este complemento, este fortalecimento e consolo só encontra
numa ideia, exatamente como nas pessoas normais em circunstâncias
análogas. Em todas as situações da vida em que nos sentimentos angusti-
ados, oprimidos e sem conselho, a tomada de consciência repentina de um
conhecimento claro, seja este na realidade verdadeiro ou falso, possui já
em si uma ação tranquilizadora e, muitas vezes, a sensação em nós provo-
cada por aquela situação perde, ceteris paribus, muito de sua força, já pelo
fato de seu juízo ganhar em clareza; como, por outro lado, nenhum terror
é maior do que o terror diante de um perigo indeterminado” (Hagen). Nas-
cem então convicções de determinadas perseguições, crimes, incrimina-
ções ou na direção delirante oposta, convicções de idade de ouro, de eleva-
ção divina, santificação etc.
Todavia, é duvidoso se tal separação do processo é correta em todos os
casos. Em outros casos, o conteúdo parece estar logo presente com toda a
clareza. Naqueles primeiros casos, porém, poder-se-ia duvidar se os doen-
tes encontraram para a sua vivência o conteúdo adequado e procurar-se-á
investigar mais a vivência originária, as sensações, os sentimentos em si
mesmos do que o conteúdo — embora isso só seja possível em proporções
tão reduzidas. Este conteúdo talvez seja apenas ocasional e não querido
em si mesmo; em todo caso vivenciado de maneira bem diferente do que
um conteúdo semelhante numa pessoa que nos seja compreensível.
Representemos o sentido psicológico dessa vivência delirante da reali-
dade em novas significações do mundo ambiente: todo pensamento é pen-
samento de significações. Quando a significação está imediatamente pre-
sente no que se percebe, representa e recorda algo sensivelmente, a signi-
ficação tem o caráter de realidade. Nossas percepções nunca são cópia
mecânica dos estímulos dos sentidos. São também percepções de signifi-
cações. Uma casa existe para ser habitada, os homens na rua seguem
suas preocupações. Quando vejo uma faca, vejo imediatamente um ins-
trumento de cortar, enquanto num instrumento desconhecido, de uma
cultura estranha, embora não veja sua significação, vejo, contudo, um
material elaborado com significado. Estas significações não nos são expli-
citamente conscientes nas percepções, mas estão realmente presentes.
Ora, as vivências delirantes primárias são análogas a esta visão das signi-
ficações. A consciência de significação experimenta radical transformação.
O saber de significações que se impõe imediatamente é a vivência delirante
primária. Se distingo o material sensível, em que experimento a significa-
ção, posso falar de percepções delirantes, de representações delirantes, de
recordações delirantes, de cognições delirantes etc. Não há vivência que
não se deva determinar com a palavra delirante, se a consciência de signi-
ficação se tiver convertido em vivência delirante nos dois integrantes do
saber objetivo (Kurt Schneider, G. Schmidt).
Escolhemos para uma descrição mais detalhada: as percepções deli-
rantes, as representações delirantes e as cognições delirantes:
aa) As percepções delirantes vão desde vivências de significação impre-
cisa até claros delírios de observação e autorreferência.
As coisas significam de repente algo todo diferente. Uma paciente vê na
rua homens uniformizados: são soldados espanhóis. Vê um outro uni-
forme: são soldados turcos. Todos os soldados estão reunidos aqui. É a
guerra mundial (esta observação é anterior a de 1914). A mesma doente
vê, alguns passos adiante, um homem de paletó marrom: é o arquiduque
falecido que ressuscitou. Duas pessoas de capa de borracha são Schiller e
Goethe. Em algumas casas vê andaimes: toda a cidade deve ser demolida.
Uma doente vê na rua um homem. Sabe logo: é seu amante de tempos
passados. Parece muito diferente. É que se mascarou com uma peruca e
outros disfarces. Nisso há coisas. Dessas vivências dizia um doente: é tão
certo e claro que todas as percepções opostas não permitem duvidar.
Não se trata aqui de interpretações judicativas, mas se vivencia imedi-
atamente o significado numa percepção de todo normal e imutável em seu
aspecto sensorial. Em outros casos — muito frequentes no início de pro-
cessos — não se atribui às percepções nenhuma significação claramente
determinada. Os objetos, as pessoas e processos são lúgubres, provocam
horror ou são esquisitos, curiosos, enigmáticos ou sobrenaturais, espiritu-
ais. Os objetos e processos significam algo, mas não significam algo deter-
minado. Os seguintes exemplos tornam concretamente perceptível este de-
lírio de significação.
Um garçom desperta a atenção de um doente de café. Passava por ele
pulando rápida e estranhamente. Em casa de um conhecido lhe chamou a
atenção o comportamento estranho dele de sorte que já não se sentia à
vontade. Na rua era tudo tão diferente. Devia haver alguma coisa. Um ho-
mem que passava tinha um olhar tão penetrante, era possivelmente um
detetive. Então chegou um cão. Era como que hipnotizado, como um cão
de borracha, como que movido por mecanismo. Havia tantas pessoas a ca-
minho: havia sem dúvida algo em ação contra ele. Todos chocalhavam
com o guarda-chuva como se houvesse algum aparelho dentro.
Em outros casos, chamam a atenção do doente as fisionomias transfi-
guradas, a beleza extraordinária da paisagem, o cabelo notavelmente dou-
rado, a beleza dominadora do sol. Deve estar acontecendo alguma coisa. O
mundo se transforma. Está por nascer nova era. As lâmpadas estão enfei-
tiçadas e não querem brilhar. Há algo de anormal por trás. A criança como
que se converteu em macaco. As pessoas estão “trocadas”, são “figuran-
tes”, têm todas aspecto anormal. Os letreiros das casas estão tortos, as
ruas têm aspecto tão suspeito. Tudo vai “tão depressa”. O cachorro arra-
nha tão estranhamente na porta. '“Chamou-me a atenção”, “pareceu-me”,
notei são as expressões constantes destes doentes que, no entanto, não
sabem dizer que alguma coisa lhe chamou a atenção, e o que eles suspei-
taram. Eles mesmos ainda têm de esclarecer.
Significações mais determinadas descobrem os doentes em delírios de
autorreferência, nos quais os conteúdos de percepção -e os acontecimen-
tos, todos estão em relação manifesta com sua pessoa.
Gestos, palavras ambíguas fazem “insinuações secretas”, por trás;
'tudo se torna claro para os doentes, de maneira indireta tudo possível. Na
forma de observações inocentes como, p. ex., “os cravos são belos”, “a
blusa fica bem”, as pessoas pretendem coisas muito diferentes do que pa-
rece; mas este outro sentido as pessoas entendem entre si. Todo mundo
olha para o doente, "como se tivesse que dizer-lhe alguma coisa’’; “aconte-
ceu-me acreditar que tudo era transformado para pregar-me uma peça;
tudo que acontecia em Mannheim era para ridicularizar-me e mofar de
mim”. Pessoas conversam na rua, naturalmente sempre sobre o doente.
Certas palavras ao passar eram sempre dirigidas, a ele. No jornal, nos li-
vros, por toda parte há coisas que se lhe referem, que dizem respeito a sua
biografia, significam avisos, injúrias. Quando se quer explicar alguma
coisa como acaso, os doentes recusam a explicação indignados. Estes
“acasos diabólicos” não são absolutamente acasos. Os empurrões na rua
são evidentemente propositais. O fato de um pedaço de sabão encontrar-
se sobre a mesa onde não se achava antes há de significar naturalmente
uma injúria etc.
Do relato de um paciente que, enquanto realizava seu trabalho, encon-
trava, por todo o dia, em percepções, todas em si reais, relações imaginá-
rias, apresentamos o seguinte:
Mal saio de casa, alguém anda em meu redor, se fixa, procura pôr de
propósito na minha frente um ciclista. Alguns passos adiante uma colegial
sorri para mim encorajadora e promissoramente... Chegando à loja nota
então “gozações” e “chacotas” dos outros empregados. “Às doze horas sou
exposto então a outros insultos. Lá vêm as colegiais da escola. Esforço-me
então por limitar-me apenas a olhar as meninas. Quera apenas ver um
broto, deixando de lado qualquer gesto...” “mas os rapazes, de propósito,
querem atribuir-me algo de repreensível e imoral com relação às meninas,
torcer os fatos em meu desfavor. Não se pensa em proceder contra o
abuso de se fixar e aterrorizar... Eles imitam e riem na minha cara no
meio da rua. Põem em meu caminho, especialmente de modo repulsivo,
caricaturas. Devo deduzir de seus traços uma semelhança com terceiras
pessoas. Os rapazes então falam no posto de polícia sobre mim, confrater-
nizam com os trabalhadores... O abuso de fixar com os olhos e insinua-
ções continua até durante o almoço. Antes de entrar em casa, alguém me
lança sempre, para irritar-me, um olhar imbecil que não diz nada”. O paci-
ente pede que a “linguagem dos olhos”, que até um juiz empregou ao in-
terrogá-lo, seja abolida. Na rua, “os guardas várias vezes, o espreitaram,
eu os afastei então com o olhar. Por isso formou-se certa soldadesca hos-
til... A mim não restou outra coisa do que manter-me na defensiva e não
proceder ofensivamente contra ninguém”.
A. Schmidt apresenta um belo exemplo de delírio de autorreferência,
com uma multidão de autorreferências, numa psicose esquizofrênica, cu-
rada após poucos meses (paciente de 17 anos!). Deste exemplo, eis o se-
guinte:
Minha doença se mostrou primeiro em falta de apetite e nojo do- san-
gue. Também se interrompeu a menstruação. A seguir sobreveio insensibi-
lidade. Já não fala livremente. Já não tinha interesse. Andava triste, as-
sustava-me, quando, me falavam.
Meu pai (proprietário de um restaurante) dizia-me: A prova de cozi-
nheira (que se realizou no dia seguinte) é tolice e ria em tom tão esquisito
que me senti gozada. Os hóspedes, me olhavam tão estranhamente como
se pressentissem algo de minhas ideias de suicídio. Estava sentada ao
lado da caixa de dinheiro. Os hóspedes olhavam para mim, veio-me então
o pensamento: teria tirado alguma coisa? Havia cinco semanas tinha a
sensação de ter feito algo ruim. Também minha mãe me olhava muitas ve-
zes de forma tão penetrante, tão estranha.
Era tarde, pelas 10:30h (tinha visto pessoas pelas quais temia ser rap-
tada). Tirara a roupa. Deitara-me hirta na cama e não me mexia para que
não me ouvissem. Eu mesma, porém, escutava muito atenta todo barulho.
Acreditava firmemente que agora os três se reuniam e me amordaçavam.
Fugi pela manhã. Ao passar pela praça, o relógio estava virado, tinha
parado virado, pensei que ele se virava para o outro lado. Neste momento,
penso que o mundo vai acabar. No último dia tudo fica parado. Vi então
na rua muitos militares. Ao chegar perto dos soldados, sempre um saía.
Ah, pensei eu, eles não vão agora apresentar-se? Eles entendem quando
alguém é perseguido por mandato de captura. Sempre olhavam para mim.
Pareceu-me exatamente que o mundo girava em torno de mim.
Então chegou a tarde. Parecia-me que não havia sol quando tinha pen-
samentos maus. Logo que tinha pensamentos bons, o sol voltava. Pensei
então que os carros andavam errado. Quando passava um carro, não ou-
via nada. Pensei, tem com certeza borracha em baixo. Grandes carros de
carga, não. Quando me aproximava de um carro, parecia-me que eu irra-
diava algo de sorte que o carro logo parava... Referia tudo a mim como se
fosse para mim. As pessoas não me olhavam como se quisessem dizer que
eu era demasiado ruim para ser olhada.
No comissariado tinha a impressão de não estar num posto de polícia
mas no além. Um funcionário parecia com a morte. Pensei, este homem já
está morto e deve bater à máquina até purgar seus pecados. Toda vez que
tocava a campainha, julgava: agora vão buscar mais um cuja vida acabou
(só depois tornou-se claro para mim que o som vinha da máquina de es-
crever que indicava o fim da linha). Então esperei que me levassem tam-
bém. Um moço, funcionário da polícia, segurava uma pistola na mão, ti-
nha medo de ele querer matar-me. O chá que me ofereceu, não bebi pen-
sando que estivesse envenenado. Esperava com saudade pelo momento da
morte... Era como num palco, as marionetes não são homens. Pensei que
fossem apenas invólucros de pele. A máquina de escrever me parecia vi-
rada, não tinha letras, mas sinais do além, como cria eu.
Ao ir para a cama, pensei que lá já houvesse alguém, pois a colcha era
tão sinuosa. Sentia-se a cama como se nela estivesse uma pessoa. Pensei,
todos estão encantados. Tomei a cortina por tia Helena. Assombrosos
eram também os móveis negros. O abajur da lâmpada sobre a cama mo-
via-se sempre, passeavam em bandos constantemente figuras... De manhã
corri do quarto de dormir e gritei: O que eu sou, eu sou o diabo! Queria ti-
rar a camisola e correr para a rua, mas minha mãe ainda conseguiu me
agarrar...
Os letreiros luminosos eram bem escassos. No momento não pensei no
black-out por causa da guerra. Achei que isso era muito fora do comum.
Os cigarros acesos das pessoas me davam medo. Havia realmente alguma
coisa. Tudo olhava para mim, tinha a sensação de estar diretamente ilu-
minada, de ser visível e os outros não..
Na clínica particular: achei ainda tudo fora do natural. Pensei que se-
ria usada para algo especial. Sentia-me como uma cobaia de experiência.
Tomei o médico por um assassino, porque tinha cabelos tão pretos, nariz
adunco. E um homem lá fora, que empurrava uma carrocinha de maçã,
pareceu-me um bonequinho fantoche. Andava tão- apressado, tão rápido
como cinema..
Em casa, então, tudo já não era como antes. Em parte era menor.
Tudo já não era tão aconchegante como antes, era frio e estranho... Meu
pai me tinha arranjado um livro. Pensei então que tinha sido escrito espe-
cialmente para mim. Não acreditava ter vivido já todas essas cenas descri-
tas, e era mais como se elas fossem para mim. Eu me- aborreci com o fato
de eles já saberem.
Hoje vejo claramente como as coisas são na realidade. Antes, ao- con-
trário, imaginava nas menores coisas algo fora do comum. Era uma verda-
deira doença.
Na embriaguez de haxixe vivenciam-se ideias de autorreferência que
remotamente parecem esquizofrênicas:
Uma sensação de insegurança toma lugar, falta a evidência das coisas.
O embriagado se sente na situação de inferior e é levado à. condição de
desconfiança e defesa. Então, a pergunta mais banal parece inquisição e
investigação, o riso mais inocente, mofa. Um olhar sem nenhuma intenção
provoca reação: “Não olhe tão ordinariamente”. Veem-se caras ameaçado-
ras, farejam-se ciladas, ouvem-se insinuações. — Quando parecem crescer
novas forças da embriaguez, chega-se a ideias de autorreferência do eu hi-
pertrofiado. O que acontece, acontece por causa dele mas não contra ele;
em favor dele (Fraenkel e Joel).
bb) Representações delirantes surgem em forma de novas, colorações e
novas significações das recordações da vida; ou em forma de ocorrências
repentinas’. Eu podia ser muito bem o filho do rei Luís; uma recordação
clara, de como o imperador, ao passar a cavalo, na parada, vista há al-
guns anos, olhou justamente- para ele, o confirma.
Um paciente escreveu: “Numa das noites impôs-se a mim de repente e
de modo muito natural e evidente que a srta. L. é a causa provável destas
coisas simplesmente terríveis que nos últimos anos tive que sofrer (in-
fluência telepática entre outras)... O que escrevi aqui, não- posso natural-
mente afirmá-lo como comprovado. Mas examinei o Senhor de modo obje-
tivo e despreconcebido o que aqui escrevo. O que lhe escrevo- não proveio
de modo algum de reflexões especulativas mas tudo se me impôs de re-
pente e de todo inesperado, da forma mais natural. Tinha a sensação de
que me caíram as escamas dos olhos, porque nos últimos anos minha
vida decorreu sempre desta maneira determinada.
cc) Cognições delirantes. Constituem elemento frequente, de modo es-
pecial em psicoses agudas ricas, nas quais os pacientes, possuem conhe-
cimento de acontecimentos mundiais gigantescos, sem terem, muitas ve-
zes, o menor vestígio da clara intuição sensível destes fatos. Também em
vivências concretas se imiscuem variadamente estas cognições simples
nas formas em que os conteúdos se apresentam aos doentes. Também os
conteúdos de uma vivência, delirante profundamente arraigada no senti-
mento se apresentam, em sua grande maioria, em forma de cognições,
como mostra o- seguinte exemplo:
Uma moça lê a bíblia. Lê a ressurreição de Lázaro. Logo se sente como
Maria. Marta é sua irmã e Lázaro o primo doente. Ela sente com toda a vi-
vacidade (de sentimentos — não necessariamente. com vivacidade senso-
rial) o acontecimento que lê; como uma vivência sua própria (Klinke).
Fenomenologicamente, é sempre a mesma coisa: além de se- viverem
sensivelmente conteúdos ilusórios, alucinatórios e pseudoalucinatórios,
há uma espécie de vivência em que não se modifica essencialmente a
abundância sensível, enquanto uma vivência inteiramente diferente da
normal se liga ao conhecimento de determinados objetos. Já pensar-se em
objetos confere-lhes uma realidade especial sem que por isso se devam to-
mar sensíveis. Ao que se pensa, como ao que se percebe, alia-se nova sig-
nificação especial.
Visto que toda vivência delirante primária é vivência de significação,
não há ocorrências delirantes de um só membro. Quando sobrevém subi-
tamente a um doente, p.ex., a convicção segura de um incêndio em cidade
distante, com todos os detalhes (Swedenborg), isso só ocorre devido à sig-
nificação das. visões interiores, que se lhe impõem, e possuem o caráter de
realidade.
Característica fundamental da primeira vivência de significação no de-
lírio é o “relacionamento sem interrupção” (Gruhle). Sem motivo, introdu-
zindo-se no contexto da vida psíquica, apresenta-se a significação. A se-
guir, as vivências de significação, repetidas sempre de acordo com a pri-
meira, entram em novo contexto. O caminho está aberto para o sentido. A
facilidade para determinadas vivências mergulha então quase todos os
conteúdos, percebidos nestas significações. O motivo de um delírio, de
agora, em diante orientador, se converte no esquema de compreensão de
toda percepção ulterior (G. Schmidt),

c) A incorrigibilidade.
As formações delirantes que se-, encontram nos diversos pacientes
nascem numa mistura multiforme das vivências delirantes autênticas des-
critas, das falsas percepções e de todas as outras vivências primárias an-
tes enumeradas. Após a primeira produção de pensamentos delirantes a
partir de vivências, o doente dá, em muitos casos, o segundo passo deu
manter como verdade, tais pensamentos e conservá-los contra todas as
demais experiências e todas as razões numa convicção que supera a cer-
teza normal, chegando até a destruir totalmente as dúvidas ocasionais,
surgidas de inicio.
Digressão psicológica. Na vida normal, adquirem-se as convicções no
contexto da vida e do saber em comunidade. Experiencias momentâneas
da realidade só subsistem quando enquadradas na experiencia critica-
mente provada ou aceitas, pela comunidade. À experiencia da realidade
segue o juízo da realidade. Toda experiência particular é suscetível de ser
corrigida; a experiencia total, porém, é em seu contexto, algo estável, difi-
cilmente ou de forma alguma suscetível de correção. Por isso; a razão da
incorrigibilidade não se deve procurar nunca num fenómeno singular mas
na totalidade da condição humana. Nenhum homem abandona essa tota-
lidade. Quando começa a cambalear a realidade aceita em comum, os ho-
mens não sabem o que fazer. O que ainda é real? Somente os hábitos, os
gestos, os acasos. A realidade reduziu-se ao próximo e presente, e este é
sem apoio.
A incorrigibilidade, porém, não tem apenas este fundamento. Assim o
fanatismo com que se sustentam juízos numa discussão ou se defendem
dogmaticamente por longo tempo não provam sempre que na prática se
acredite em seus conteúdos como realidade, mas somente que, na opinião
de quem julga, a defesa destes juízos traz na realidade os efeitos por ele
desejados — seja somente segundo um instinto obscuro. O que verdadei-
ramente se crê como realidade só se mostra de maneira decisiva no com-
portamento; pois só o que se crê verdadeiramente real impele às conse-
quências de ação correspondente. Juízos fanáticos, em que de fato não se
acredita podem, por isso mesmo, ser a qualquer tempo abandonados, e
neste sentido são corrigíveis. Juízos de realidade verdadeiras, porém, são
dificilmente corrigíveis como expressão de uma fé na realidade segundo a
qual se age de fato (p. ex. a fé no inferno); quando, porém, são corrigidos,
isso significa revolução da concepção de vida.
Também os erros das pessoas sadias são, em larga extensão, incorrigí-
veis. É espantoso como a maioria dos homens creem em realidades e as
mantém, na discussão, sem se deixarem convencer, embora a um especia-
lista do setor estes erros quase não difiram do delírio. As “ideias deliran-
tes” na vida dos povos, que se discutiram tantas vezes, não são ideias deli-
rantes mas conteúdos de fé das massas que, como ilusões típicas, variam
com as épocas. Só os graus elevados de absurdo é que se denominam com
a palavra delírio, como o delírio das bruxas, que, sem embargo, também
não precisa ser delírio no sentido psicopatológico.
A incorrigibilidade é, metodologicamente, um conceito da psicologia do
rendimento e da psicologia compreensiva, não da fenomenologia. Fenome-
nológica é apenas a questão se a incorrigibilidade apresenta espécies es-
sencialmente diferentes que indiquem fenômenos vivenciados, como fun-
damento da incorrigibilidade.
Pode-se formular brevemente: o errar das pessoas sadias é um desva-
rio comunitário. A convicção tem suas raízes no fato de todos crerem. A
correção não se processa através de razões, mas por modificar-se a época.
— O desvario delirante dos indivíduos é a separação daquilo que todos
creem (que “se” crê); psicologicamente, não se pode distinguir a incorrigibi-
lidade da inerrabilidade de uma visão verdadeira, que internamente se
afirma contra todo um mundo. — O delírio autêntico é incorrigível devido
a uma modificação da personalidade, cuja essência, até agora, nem pode-
mos descrever, quanto mais formular conceitualmente, mas que devemos
pressupor. O decisivo não é uma “intensidade” qualquer de evidência ime-
diata, mas a persistência da evidência na reflexão e crítica. E esta persis-
tência não se pode compreender nem como modificação de uma função de
pensamento, de um ato, nem como uma confusão, nem como o fanatismo
normal de pessoas dogmáticas. Dever-se-ia relatar o caso ideal utópico de
um paranoico que, — p. ex. como investigador nato, possuísse alto nível
de visão crítica e no qual se encontrasse claramente a incorrigibilidade
com todo ceticismo, como fenômeno puro, — este já não seria um para-
noico. Não se pode conseguir a correção numa consciência clara e numa
contínua possibilidade de exame por parte do paciente. Não se pode dizer
que todo seu mundo sofreu transformação, pois no âmbito empírico e ló-
gico ele pode comportar-se amplamente como qualquer entendimento sa-
dio. Mas o seu mundo se transformou na medida em que, nele, ou abran-
gendo-o, domina um conhecimento transformado da realidade, de sorte
que a correção deveria parecer um desmoronamento do próprio ser, assim
como realmente é para a consciência da existência do enfermo. O homem
não pode crer no que eliminaria a própria existência. Mas estas fórmulas
pretendem tornar compreensível o que é incompreensível: a incorrigibili-
dade especificamente esquizofrênica. Só se deve manter que a incorrigibili-
dade existe também nas formas de pensamento, na capacidade correta de
pensar, na mais clara orientação da consciência.
Por outro lado, deve-se ver o que é propriamente incorrigível. Isso se vê
mais claramente, do que na conversa, na prática do doente. Em todo caso,
o sentido da realidade nem sempre é igual ao que possui a realidade nor-
mal. O sentir-se perseguido destes doentes nem sempre parece com a vi-
vência de ser realmente perseguido. O ciúme não é o de alguém que tem
realmente motivo para ciúme, por mais que muitas vezes haja coincidên-
cia no modo de agir. Por isso também o comportamento dos doentes com
conteúdo delirante é muitas vezes estranhamente inconsequente. O conte-
údo determinado age, então, quase como símbolo de algo inteiramente di-
verso. Muitas vezes até troca-se constantemente de conteúdo enquanto o
sentido do delírio permanece o mesmo. A fé na realidade atravessa todos
os graus, desde o simples jogo do possível através de uma realidade dupla
— a empírica e a delirante — até um comportamento unívoco, correspon-
dente à realidade única e absoluta do conteúdo delirante. Do lado do jogo,
todo conteúdo particular é corrigível; não o é, porém, a conduta no seu
todo, do lado da realidade absoluta; também a incorrigibilidade é total.
Se tivermos claro que as características das ideias delirantes verdadei-
ras residem na vivência delirante primária e na transformação da persona-
lidade, torna-se claro também que uma ideia delirante pode ter conteúdo
correto sem deixar de ser delirante (p. ex., a ideia de que existe uma
guerra mundial); O conteúdo é correto por acaso e ocorre muito raramente
de fato (e é o mais frequente nos delírios de ciúme). Um pensamento nor-
mal correto se funda em experiências normais e se torna, por isso, válido
para os outros, enquanto uma ideia delirante tem sua fonte na vivência
primária, estranha à experiência comum e não em fundamentos objetivos.
Reconhece-se uma ideia delirante pela maneira por que o doente depois
procura justificá-la. Assim, um delírio de ciúme pode ser reconhecido em
características típicas sem se saber se o indivíduo tem ou não motivo para
ciúmes. O delírio não deixa de ser delírio mesmo se a esposa do doente lhe
é infiel (muitas vezes, em consequência de seu delírio).

d) Elaboração delirante.
Pensa-se desde o primeiro passo em que um delírio se manifesta. Isso
pode ter suas dificuldades no modo não sistemático, confuso das psicoses
agudas e dos estados defectuais permanentes. E, sem embargo, mesmo
aqui os doentes procuram um nexo. Ou se dá de modo mais sistemático
nos estados crônicos e ponderados. Neste último caso, o pensamento rea-
liza, por assim dizer, um trabalho delirante com base nas vivências primá-
rias que devem entrar numa relação sem contradição com as percepções
reais e os conhecimentos dos doentes. Muitas vezes, este trabalho exige
toda a força de uma pessoa inteligente. Assim se origina o sistema deli-
rante, que, em seu contexto, é inteiramente compreensível, às vezes emi-
nentemente sutil; e só se nos torna incompreensível nas últimas fontes
das vivências primárias. Estes sistemas delirantes pertencem às elabora-
ções objetivas que, metodologicamente, têm o seu lugar na psicologia da
atividade.

e) Ideias delirantes autênticas e ideias deliroides.


Só chamamos ideias delirantes autênticas aquelas que remontam, na
fonte, a uma vivência patológica primária ou exigem, como pressuposição
de sua explicação, a transformação da personalidade. Nelas apreendemos
um grupo de sintomas elementares. Ao contrário, chamamos de ideias de-
liroides as ideias delirantes que nasceram de modo compreensível de ou-
tros processos psíquicos, que, portanto, podemos seguir psicologicamente
em afetos, impulsos, desejos e temores, para cuja explicação não necessi-
tamos transformação da personalidade e sim as entendemos pela disposi-
ção constante da personalidade. Ou por um estado d’ánimo passageiro. Às
ideias deliroides pertencem os enganos passageiros provocados por per-
cepções errôneas etc., as ideias delirantes, melancólicas e maníacas (delí-
rio niilista, delírio de pecado, de empobrecimento etc.,1 e principalmente
as ideias sobrevaloradas, aquelas convicções carregadas e acentuadas por
um estado afetivo muito forte, compreensível pela personalidade e vida do
indivíduo e que, devido a esta forte carga afetiva, são tidas falsamente por
verdadeiras, pelo fato de a personalidade se identificar com a ideia. Psico-
logicamente, não há diferença entre a perseguição intensa de uma ideia
verdadeira por um pesquisador, a defesa apaixonada de uma convicção
política ou ética e estas ideias supervaloradas. Frente ao outro fenômeno
só se distinguem propriamente pela falsidade. Ideias supervaloradas apa-
recem em psicopatas, mas também em outras pessoas sadias na forma de
delírio de descoberta, delírio de ciúme, delírio de reivindicação etc. Devem-
se distinguir o mais rigorosamente possível das ideias delirantes verdadei-
ras. As ideias supervaloradas são de fato ideias isoladas que se desenvol-
vem compreensivelmente a partir da personalidade e situação do indiví-
duo. As ideias delirantes, porém, são produtos de cristalização, de forma
alguma centralizados num ponto, provenientes de vivências delirantes
confusas, de autorreferências difusas, enigmáticas. Estas não se podem
compreender suficientemente nem pela personalidade nem pela situação
do indivíduo; são antes sintomas de um processo ou de uma fase mórbida
identificável por outros sintomas.

f) O problema das ideias delirantes metafísicas.


O delírio dos doentes não raro aparece em vivência metafísica. Aqui
termina qualquer valoração de falso e certo, de verdadeiro e não verda-
deiro já no delírio esta valoração não era decisiva com referência à reali-
dade empírica, embora na maioria das vezes correta. Podemos estudar a
vivência esquizofrênica, estabelecê-la no condicionamento de seu processo
e, entretanto, compreender que as concepções metafísicas (imagens, sím-
bolos) nascidas nestas vivências delirantes adquirem, por motivos inteira-
mente diversos, significação cultural na cabeça de pessoas sadias.
Realidade (Wirklichkeit) é a objetividade (Realität) no espaço e tempo.
Passado, futuro e presente são reais mas nas maneiras diversas do já não,
do ainda não e do agora. O movimento constante no tempo pode fazer
tudo parecer irreal, o passado já não é, o futuro ainda não é e o presente

1 Só se pode aceitar que se atribuam, compreensivelmente, as ideias delirantes melancólicas aos afetos se se pressupuser

a alteração passageira de toda a vida psíquica que acomete os melancólicos graves.


está em ininterrupto desaparecimento. A objetividade temporal não é a re-
alidade em si mesma. Esta realidade se acha, por assim dizer, em posição
oblíqua frente ao tempo e toda consciência metafísica é a experiência e o
assegurar-se dessa realidade. Compreendida autenticamente, chamamos
fé. Objetivada no mundo numa existência palpável (i.é., quando ela se
torna simples objetividade), chamamos superstição. Quanto o homem re-
clama por este ponto de apoio absoluto na objetividade, mostra o deses-
pero e ausência de fundamento em que cai às mais das vezes, quando se
lhe tira este apoio absoluto de suas superstições. A superstição é, por as-
sim dizer, o delírio normal. Devido à incondicionalidade de sua própria
vida e atividade, só a fé, transcendendo o mundo, sem perder a firmeza
nos pés — pode estar segura do ser no simbolismo de toda existência.
Diz-se que o desmoronamento do eu se processa na vivência esquizo-
frênica da destruição do mundo. Todavia, não se trata de compreensão su-
ficiente. Em seu conteúdo, vivência da destruição do mundo é vivência re-
ligiosa profunda — de uma verdade simbólica milenar para a existência
humana — e, se quisermos compreendê-la, devemos considerá-la como tal
e não apenas como fenômeno psicopatológico e psicológico desvirtuado. A
experiência religiosa permanece o que ela é, quer a viva um santo, ou um
doente mental, ou alguém que seja ambas as coisas.
O delírio é a forma doentia de manifestação do saber e do desvairar-se,
quando se trata da realidade empírica, da fé e da superstição, quando se
trata da realidade metafísica.

§ 5. Sentimentos E Estados De Ânimo

Preliminares Psicológicas. Enquanto, em geral, há clareza sobre o que é


uma sensação, uma percepção, uma representação, um pensamento, tal-
vez também até sobre o que é uma emoção instintiva, um ato de vontade,
todavia, com respeito à palavra e ao conceito de “sentimento”, nenhuma
clareza reina, muitas vezes até mesmo sobre o que, nos casos, particula-
res, se entende propriamente por sentimento. Ordinariamente, denomina-
se “sentimento” todo fenômeno psíquico que não se pode coordenar com
os fenômenos da consciência objetiva nem com os impulsos instintivos e
atos de vontade. Todas. as formações psíquicas não desenvolvidas e im-
precisas, todas aquelas que não se podem apreender e se esquivam à aná-
lise chamam-se “sentimento”, numa palavra tudo que não se sabe chamar
de outro modo. Alguém tem um sentimento de desprazer, um sentimento
de que algo não anda bem, um sentimento de que o quarto é demasiado
estreito, um sentimento de clareza, de inquietação etc. Estes fatos extre-
mamente diversos designados como sentimento a psicologia analisou de
modo imperfeito. Não se sabe o que é um elemento do sentimento, quais
elementos existem, como se deve ordená-los, — enquanto se ordenaram e
investigaram da melhor maneira possível os elementos das sensações.
Quando não se pode evitar, fala-se em sentimentos, e, no entanto, há pou-
cas investigações científicas sobre eles enquanto é extrema a bibliografia
tanto sobre os fenômenos patológicos da consciência objetiva como sobre
os impulsos instintivos perversos. Não se sabe mesmo como começar. Al-
guns psicólogos, porém estabeleceram fundamentos para uma análise do
sentimento e se pode obter com eles uma orientação sobre as correntes e
pontos de vista mais importantes. Esta orientação metodológica é impor-
tante. Adquire-se maior segurança ao se julgarem as afirmações feitas so-
bre os sentimentos, enquanto a análise detalhada de todos os sentimentos
conduz a acúmulo sem fim de particularidades cansativas, em sua maio-
ria, além de trivialidades. Primeiro, esclarecemos numa visão global os
pontos de vista segundo os quais se dividem os sentimentos:
1°) De maneira puramente fenomenológica, segundo o modo de ser dos
sentimentos, a) há grande oposição entre os sentimentos que são um lado
da consciência da personalidade, uma terminação do eu, e os sentimentos
que formam uma tonalidade da consciência do objeto, p. ex., meu luto e a
paisagem triste (Geiger). b) Em parte, podem-se classificar os sentimentos
em dimensões opostas entre as quais Wundt distinguiu prazer — despra-
zer, tensão — relaxamento, excitação — calma. Ainda outras oposições
deste tipo foram estabelecidas; p. ex., a oposição entre sentimentos de im-
portância e sem importância (Lipps); assim, de um lado, sentimentos de
elevação, de abatimento, de dor profunda; de outro, sentimentos de ira, do
cômico, c) Os sentimentos ou são sem objeto, simples estados sem conte-
údo (sentimentos que exprimem o estado de um modo de encontrar-se) ou
são dirigidos a objetos e se podem classificar segundo estes objetos.
2°) Segundo os objetos a que se dirigem os sentimentos (Meinong, Wi-
tasek). Aos sentimentos de fantasia, que se dirigem a simples suposições,
se contrapõem os sentimentos de seriedade que visam a objetos reais.
Sentimentos de valor se dirigem às próprias pessoas, que os vivem, ou a
outras pessoas e, em ambos os casos, podem ser afirmativos ou negativos
(orgulho — humildade; amor — ódio). Uma divisão segundo os. conteúdos
particulares — p. ex., sentimentos sociais, patrióticos, familiares, religio-
sos não leva à divisão dos sentimentos, mas, no máximo, à classificação
dos conteúdos em números infinitos, que podem ter conotação de senti-
mento. As inúmeras expressões desta espécie, que a língua põe à disposi-
ção, são próprias para descrição do concreto em sua variedade e não aná-
lise fenomenológica geral.
3°) Segundo a origem; por assim dizer, segundo as camadas da vida
psíquica: distinguem-se sentimentos localizados de sensação, sentimentos
totais do corpo (sentimentos vitais), sentimentos psíquicos (p. ex., tristeza
e alegria), sentimentos espirituais (p. ex., de felicidade) (Schcler, Kurt
Schneider).
4°) Segundo a importância do sentimento para a vida e segundo os fins
da vida dos. quais os sentimentos podem ser concebidos como expressão.
Assim, os sentimentos de prazer valem como expressão de estímulo, os
sentimentos de desprazer, como expressão de inibição no cumprimento
dos fins da vida.
5°) Distinguem-se sentimentos particulares, que se dirigem a determi-
nados objetos, ou são simples momentos do todo, de sentimentos totais.
Nestes se acham fundidas todas as qualidades, que são chamadas senti-
mento, num todo ocasional. Este todo são os estados de sentimento. A ca-
racterística destes estados de sentimento do todo varia de direção. Há “es-
tados de sentimento” de irritabilidade, de sensibilidade, de excitabilidade
aumentada ou diminuída. Com base em sensações orgânicas, como ex-
pressão de estados vitais, dos impulsos, necessidades, tendências, dispo-
sições orgânicas existe uni “sentimento da vida”.
6°) Na diferença de intensidade de duração repousa a divisão antiga e
utilizável: sentimento, afeto, disposição. Chamam-se sentimentos movi-
mentos singulares, próprios, e originários da alma. Denominam-se afetos
processos de sentimentos complexos e momentâneos de grande intensi-
dade e com manifestações consequentes e concomitantes de natureza cor-
pórea. Chamam-se disposições o estado de espírito ou a constituição inte-
rior em estados mais duradouros que conferem a toda a vida psíquica du-
rante sua existência colorido particular.
7°) Os sentimentos se distinguem das sensações. Sentimentos são es-
tados do eu (triste e alegre), sensações são elementos da percepção do
mundo ambiente e do próprio corpo (cores, tons, sensações de quente,
sensações de órgãos). Todavia, há uma distinção na série de sensações
que vão dos objetos puros aos estados corpóreos. Assim, a visão e a audi-
ção são puramente objetivas; as sensações dos órgãos, as sensações vitais,
as sensações de posição e equilíbrio pertencem predominantemente aos
estados. Entre umas e outras há sensações que são ao mesmo tempo ob-
jetivas e pertencentes a estados corpóreos. Sensações da pele, do paladar,
do olfato: fome, sede, cansaço, excitação sexual são simultânea e insepa-
ravelmente sensações (como momentos da percepção corpórea) e senti-
mentos (como prazer e desprazer) de sorte que se fala em sensações de
sentimentos (Stumpf). Sensações corpóreas, como sentimentos, são tam-
bém momentos dos impulsos. Assim na fome que impele a comer, no can-
saço que leva ao repouso, nas sensações sexuais. Desta maneira, sensa-
ção, sentimento, afeto e impulso constituem um todo.
Entre os estados anormais de sentimentos deve-se fazer uma distinção
prévia: Há: l°) estados afetivos, que, embora de identidade anormal e dota-
dos de colorido especial, são, porém, em sua origem das vivências, geneti-
camente compreensíveis; 2°) estados afetivos gerados endogenamente, que
não podemos compreender mas apenas constatar como algo psiquica-
mente irredutível, e que só são explicáveis por causas extrapsíquicas (pro-
cessos corpóreos, fase, período etc.). Assim, à saudade normal se opõe, de
um lado, uma saudade em si compreensível mas desmedida que, em tais
reações leva meninas afastadas de casa pela primeira vez a um comporta-
mento violento. De outro lado, a depressão que surge sem nenhum motivo
externo e é interpretada subjetivamente como saudade.
Para exprimir estados anormais de sentimentos, a linguagem oferece
várias expressões, como tristeza, melancolia, alegria, jovialidade, aflição,
etc. Das disposições típicas se conhecem, por ex., a alegria natural, a jovi-
alidade transbordante do hipomaníaco, a tristeza do depressivo, o bem-es-
tar satisfeito e a felicidade do paralítico geral eufórico, o contentamento
exaltado louco e saltitante do hebefrênico. Além destes mais comuns, pro-
curamos conhecer os estados dignos de nota e os típicos.

a) Alterações dos sentimentos corpóreos.


Em doenças orgânicas, ligam-se à angústia dos cardíacos, à sufocação
na crise asmática, à sonolência da encefalite, ao mal-estar inicial nas do-
enças infecciosas, às inúmeras sensações que a medicina interna conhece
como sintomas.
Os sentimentos corpóreos constituem a base do estado geral de senti-
mento. Suas alterações são frequentes nas psicoses e psicopatias — de
modo especial nas esquizofrenias — embora mal se percebam interior-
mente. Todavia, a autodescrição só nos proporciona pouco conhecimento
sobre a variedade de tais sentimentos vitais e orgânicos.
Kurt Schneider vê nas alterações do sentimento vital o núcleo da de-
pressão ciclotímica. A tristeza desta depressão vital localiza-se nos mem-
bros, na testa, no peito e na região do estômago.
Uma paciente diz: “Sempre esta pressão no estômago e na garganta. É
tão fixa como se nunca desaparecesse. Então sinto que vou estourar,
tanto dói-me no peito”. Uma outra descreve estas pressões no peito e no
abdome, dizendo: É mais tristeza”, ou uma outra dizendo do peito: “tenho
aqui dentro uma terrível melancolia”. Junto com a tristeza vital há tam-
bém frequentemente outros sentimentos vitais desagradáveis (Kurt
Schneider).

b) Alteração dos sentimentos de energia e rendimento


Temos constantemente um sentimento da própria força que nos dá
confiança em nós mesmos sem que, no entanto, dele tenhamos consciên-
cia explícita. Nos depressivos, o sentimento de insuficiência está entre as
queixas mais frequentes. Em parte são a consciência de uma insuficiência
real, em parte são sentimentos primários infundados. A consciência de ser
inútil para toda ação necessária, incapaz de decidir-se, indeciso, sem jeito,
o sentimento de não ser capaz, de não poder entender nada, de ter perdido
toda a memoria, tudo isso são torturas de muitos estados anormais. Não é
necessário que haja insuficiência real correspondente, embora muitas ve-
zes de fato exista em grau moderado. Estas queixas surgem muitas vezes
junto com manifestações de inibição subjetiva.

c) Apatia
Chamamos apatia a falta de sentimentos. Sendo total — o que pode
ocorrer momentaneamente em psicoses, agudas — pode dar-se o caso de
alguém ouvir e ver com toda consciência e perfeita orientação, de memori-
zar o que observa e no entanto deixar passar com a mesma indiferença, —
“morto de olhos abertos” — tudo que acontece, quer lhe possa trazer felici-
dade, prazer e ânimo quer, perigo e ameaça, dor e morte. Falta então, tam-
bém o estimulo para agir: a apatia traz como consequência a abulia. É
como se estivesse isolada a região da' vida psíquica que designamos como
consciência do objeto, que apreende o mundo objetivamente só com o en-
tendimento. À semelhança de uma máquina fotográfica, o entendimento
pode de certo ter imagem do ambiente mas não intuição que se estruture
em vivência. Objetivamente, pode-se constatar a falta de qualquer estí-
mulo de sentimento pelo fato de se omitir a alimentação, de se deixar com
total indiferença queimar, ferir, etc. Em tais estados o paciente morreria,
se não fosse sustentado por alimentação artificial e cuidados especiais.
Destas apatias em estados agudos deve-se distinguir o embotamento afe-
tivo de personalidades anormais, nas quais permanecem ainda inúmeros
sentimentos — embora só mais grosseiros.

d) O sentimento da falta de sentimento.


O sentimento de já não ter sentimentos é fenômeno curioso que ocorre
em psicopatas periódicos, em depressivos, mas também no início de todos
os processos. Não se trata de apatia, mas de um sentir torturante de que
não se sente. Os pacientes se queixam de já não poderem sentir alegria,
dor. Já não sentem amor para seus parentes, tudo lhes é indiferente. Na
comida não sentem nenhuma satisfação, não sentem o paladar de comi-
das ruins. Sentem-se vazios, mortos, ocos, já não possuem alegria de vi-
ver. Queixam-se de não haver em si participação alguma, interesse algum.
Uma esquizofrênica diz: “Já não há mais nada em mim; sou tão fria como
um pedaço de gelo e tudo, tão parado como estivesse congelado” (Fr Fis-
cher). Os pacientes sofrem terrivelmente com este vazio sentimento que
sentem subjetivamente. Mas a angústia que pensam não sentir pode ser
reconhecida como realmente presente em sintomas corpóreos. Em casos
leves queixam-se de embotamento dos sentimentos, de sentimentos lân-
guidos, de sentimentos estranhos.

e) Alteração da tonalidade afetiva na apreensão de objetos.


Existe uma graduação simples dos sentimentos: “Todo pensamento,
que de outro modo se considera apenas como levemente desagradável, que
normalmente se evita com facilidade, provocava em mim um sentimento
de angústia torturante, quase corpórea. Os menores remorsos, se trans-
formavam em angústia de pressão na cabeça; portanto quase em angústia
corpórea”. (Encefalite letárgica, Mayer-Gross e Steiner).
A seguinte descrição, dada no início de uma psicose aguda, revela in-
tensificação das tonalidades naturais dos conteúdos de sentimentos:
“Uma impressão bem desolada cansou-me o banho turco. Os parafu-
sos e chaves no chaveiro das atendentes com dois ganchos davam-me a
impressão de poderem servir para arrancar os olhos. Esperava que o pe-
sado feixe de chaves pudesse cair do cinto na minha cabeça; e não poderia
suportar, quando arrastado por seu peso caia estridentemente no chão, o
que acontecia a todo momento. O vazio das celas, para onde de tarde era
expedido nessas a fim de ficar abandonadas a mim mesmo, a ausência de
todo conforto, de toda decoração, tudo ’isso eu sentia como profunda-
mente humilhante... O que mais dolorosamente me atingia eram as impre-
cações e a linguagem grosseira de alguns pacientes. Sofria explicitamente
com isso, muito mais do que teria ocorrido nos dias de saúde” (Forel).
Além disso, há alterações nas características de sentimentos, que são
percebidas no objeto. Estas alterações podem atingir as sensações simples
sem forma de sentimentos sensoriais anormais.
“Ao tocar em madeira (dão-me lápis envenenados), lã, papel, a ¡sensa-
ção tátil é desagradável porquanto sinto uma corrente de fogo atravessar
todos os membros. O mesmo sentimento designado por “fogo” surge em
frente ao espelho cujas “irradiações” me percorrem causticamente (por
isso fujo do espelho). O que melhor se deixa tocar ainda são porcelana,
metal, colherinhas de prata, linho fino ou o próprio corpo em determina-
das partes”. — “A isso se acrescenta que sinto a força penetrante e lumi-
nosa de várias cores (flores etc.) como tonalidades diabólicas ou envenena-
das, dotadas de irradiação dolorosa, p. ex.,. vermelho, marrom, verde,
preto (negritos, sombras densas, moscas negras) enquanto a cor lilás,
amarela e branca é simpática à vista” (Gruhle)
“Todos os sentidos podem gozar mais. Até o paladar é diferente e mais
intenso do que antes” (Rumke).
Todos os conteúdos de consciência objetiva, as formas, figuras, a natu-
reza, a paisagem e os homens possuem estas características. Pode-se falar
em fisionomia das coisas, que lhes exprime a essência psíquica. Das
transformações destas características do objeto sabemos apenas sumaria-
mente. Num caso, ouvimos que o mundo externo é tão frio, tão estranho:
“vejo o sol brilhar, mas não o sinto brilhar”. Em outros casos sentimentos
positivos se apresentam particularmente fortes nos objetos. Num repouso
curioso, o paciente tem percepção clara e rica de sentimentos do ambi-
ente, tudo é cheio de sentido, sagrado, maravilhoso. Desfruta, sem media-
ção de pensamentos, as impressões santas de um mundo que lhes parece
muito afastado (em febre baixa, em estados periódicos, sob efeito de ópio).
A natureza é maravilhosa como se estivesse presente a idade de ouro. A
paisagem causa a impressão de um quadro de Thoma ou de Hans von Ma-
rées. O sol brilha em beleza incomparável (tudo, no início das psicoses
agudas). Ou são sentimentos em que os objetos tomam os acentos de es-
pectro, do sobrenatural, espantoso, terrificante.
“A natureza, eu a via infinitamente mais bela do que antes — ¡ainda
muito mais acolhedora, magnífica e tranquila. A luz no ar era muito mais
brilhante, o azul, mais profundo o desenho das nuvens, mais imponentes
o contraste, maior entre o claro e o escuro das nuvens. A paisagem era tão
diáfana, cheia de tonalidades coloridas, plena de profundidade” (Rumke).
Uma espécie particular destes sentimentos, que se nos deparam no ob-
jeto, são as empatias (Einfiihlungen) com outra.? pessoas. Observam-se
em pacientes, de um lado, empatia de força anormal que atormenta; de
outro lado, queixas de que as outras pessoas são como autômatos, máqui-
nas, sem alma.

f) Sentimentos sem objetos.


A irrupção elementar de vivência geneticamente incompreensível mos-
tra-se nos sentimentos sem objeto, que devem procurar ou produzir seus
objetos a fim de se tornarem compreensíveis por si mesmos. Em primeiro
lugar, há sentimentos deste tipo que talvez nem encontrem seus objetos e,
no entanto, continuam. É frequente, p. ex., a angústia sem objeto nos es-
tados depressivos, a jovialidade sem conteúdo (euforia) nas manias, a exci-
tação erótica imprecisa no início da puberdade, sentimentos no início da
gravidez, no início das psicoses. Na tendência quase irresistível de darem
um conteúdo aos sentimentos, os pacientes imaginam, muitas vezes, em-
bora não sempre, um conteúdo. Já é sempre sinal da razão crítica quando
sentimentos são descritos realmente com objeto. Vamos expor alguns des-
tes sentimentos sem objeto.
1°) Sentimento frequente e torturante é a angústia. O medo se refere a
alguma coisa. A angústia é sem objeto. Como sensação de um sentimento
específico no coração, a angústia é vital. Pode-se distinguir como angústia
esteno-cardíaca (na angina pectoris) e como angústia de sufocação (na
falta de ar, p. ex., nos distúrbios circulatórios descompensados). Todavia,
a angústia é também estado de alma originário, que, em analogia com a
angústia vital, atinge, penetra e domina sempre toda a existência. Entre
uma angústia violenta sem conteúdo que provoca a perturbação da cons-
ciência e leva a ações violentas sem consideração contra si mesmo e con-
tra os outros, e a ansiedade (Ängstlichkeit) ligeira, sentida como estranha
e incompreensível, há toda série de graus. A angústia está ligada a sensa-
ções corporais, a um sentimento de pressão, sufocação, estreiteza. Muitas
vezes, é localizada, p. ex. como angústia precordial, às vezes até como an-
gústia cefálica. Um paciente disse que tinha o impulso de entrar pelo
corpo adentro como com o palito num dente doendo. A angústia existen-
cial, constituição fundamental da existência que se descobre e manifesta a
si mesma como em situações-limites, esta origem da existência, já não
pode ser compreendida fenomenologicamente.
2°) Na maioria das vezes, liga-se à angústia um sentimento vivo de in-
quietação. Este estado afetivo de excitação interna pode ocorrer também
isoladamente, sem angústia. Tais sentimentos são indicados posterior-
mente pelos pacientes como “excitação nervosa”, como “febre”. Em graus
menos intensos, este estado surge como o sentimento de dever ainda fazer
alguma coisa, de não ter terminado ainda alguma coisa, como sentimento
de procura, de esclarecimento. Em psicoses ricas de vivências, o senti-
mento de inquietação se intensifica transformando-se em tensão e tre-
mura, em impossibilidade de aturar as impressões em massa, de sorte
que só se deseja uma coisa: distração e repouso.
Um esquizofrênico descreve, na fase inicial, sua nova inquietação em
oposição às inquietações ordinárias, nas quais não se pode trabalhar,
muitas vezes se sobressalta, se vai passear. A nova inquietação é, por as-
sim dizer, substancial, todo o ser é penetrado por ela ou nela se dissolve.
Anda no quarto de um lado para outro. Não pode sair. Passear não se
ajusta a este estado. “Nada no mundo me atormenta assim. Não posso
sair desta esfera. Procuro desvencilhar-me, mas não dá, torna-se pior. So-
brevém o impulso de estraçalhar tudo. Mas não me aventuro a começar
com coisas pequenas, pois então seguiria o resto. Estraçalharia então só a
mim mesmo. Se eu atirasse apenas um copo no chão, tudo mais seguir-
se-ia por si mesmo. Também ¡a força de conter-me está sistematicamente
minada. É tão difícil deter-me, que às vezes desejo: se tudo já tivesse ter-
minado”.
3°) Sentimentos anormais de felicidade1 são múltiplos e complexos em
razão das significações imprecisas vivenciadas que para os pacientes não
se fazem devidamente objetivas. Percorrem toda a escala, desde sentimen-
tos puramente sensoriais de prazer até êxtases religioso-místicas. Senti-
mentos sublimes2 se produzem em fases, nos psicastênicos, estados de
êxtase nos esquizofrênicos. Um entusiasmo extraordinário se apossa des-
tes pacientes. Tudo lhes é comovedor, tocante, significativo. Estados afeti-

1 Rumke, H. C.: Zur Phänomenologie und Klinik des Glucksgefuhls. Berlim, 1924.
2 Janet: Psychastenie, vol. 1, págs. 388 e segs.
vos brandos, sentimentais, generosos aparecem também na convalescên-
cia de doentes, nos estados febris suaves, na tuberculose etc. — Algumas
descrições de esquizofrênicos:
“Uma manhã, acordei com o sentimento mais feliz de ter ressuscitado
ou nascido de novo. Arrebatamento ditoso, distante do inundo, sentimento
transbordante de libertação de tudo que é terreno!... A partir de um diá-
fano sentimento de felicidade começo a perguntar-me: Sou o sol? Quem
sou eu? Devo ser, sem dúvida, o filho iluminado- da divindade... Tio A.,
transformado em Deus, há de me vir buscar... Naturalmente, vamos voar,
e voar para o sol, a morada dos ressuscitados”. No sentimento de meu es-
tado transfigurado, sinto prazer em cantar e em falar pateticamente, re-
cuso-me a comer: já não tenho necessidade de comer, espero o paraíso,
onde a alimentação é de frutas” (Gruhle).
“Fui elevado por nuvens suaves. Era como se o espírito, a cada minuto,
mais se libertasse de seus liames, e um arrebatamento sem nome e uma
gratidão indizível tivessem tomado lugar em meu coração... Começou em
mim uma vida celeste inteiramente nova. Sentia-me indescritivelmente
alegre, estava de todo transfigurado... Sentia-me admiravelmente bem e
tão digno de inveja... Sentia na alma de verdade o sabor prévio do céu...
Minha voz se tornou de repente toda clara e iluminada, cantava constan-
temente” (Engelken).
Outro paciente denominava seus sentimentos de satisfação “volúpia da
alma". Esta volúpia era sentida como divina e considerada o conteúdo da
felicidade eterna. De todo contentes consigo mesmos, gozam tais pacientes
de bem-aventurança imperturbável. Evidentemente, sensações corpóreas
exercem papel mais importante nestes estados de sentimento do que alhu-
res.
Um esquizofrênico na fase inicial distinguia em si três espécies de sen-
timentos de felicidade: 1°) uma felicidade intuitiva onde era produtivo. É
completa e vigorosa, um júbilo perpétuo. Simbolicamente representa-se
por uma esfera donde brotam sempre novas esferas numa única massa
sólida. 2°) uma “beatitude”, que é vivenciada em nível inteiramente di-
verso. É como um flutuar no ar, enquanto o sentimento do corpo se enfra-
quece por completo. Ele está, por assim dizer, acima do corpo. 3°) En-
quanto a “felicidade intuitiva” é frequente, a beatitude é rara. Certa vez ex-
perimentou um ataque de sentimento de felicidade, que se encontrava no
mesmo nível do primeiro tipo mas que só pode ser expresso simbolica-
mente pelo elevar-se sempre crescente de uma onda; como se distendesse
para as alturas, enquanto outras massas, pesadas se empilhariam uma
sobre as outras. Este sentimento de felicidade se potencia a si mesmo. A
beatitude, ao contrário, é repouso. Permanece “inteiramente autônoma”,
i.é. sem qualquer conteúdo. Também havia prazer corpóreo, de todo equi-
parado à alma; mas o corpóreo ficava “na superfície”. Era como se aquela
onda fosse por assim dizer vazia e clara por dentro e escura por fora, só
unia pele. Era algo que se lançava sempre mais alto. Subsistia todo por si
só, sem nenhuma relação. Ao fim, decrescia rapidamente e deixava um es-
gotamento psíquico atrás de si. O sentimento de felicidade era seu conte-
údo e não obstante claro. A felicidade vivenciada alhures não era tão fina.
Era um sentimento de felicidade muito mais elaborado. O paciente tinha -
a consciência de não poder suportar algo assim. Não seria suportável por-
que por dentro destruiria o corpo.
O seguinte caso mostra como o sentimento de felicidade se acha ligado
ao delírio de autorreferência e constitui sua fonte: “Era como se todo
mundo pudesse ver em mim a felicidade e como se minha visão fizesse os
outros felizes... Era como se eu fosse algo divino. Às estações chegavam
pessoas idosas só para lançarem um olhar no compartimento em que es-
tava... cada um fazia o melhor que podia, para obter de mim um olhar. Até
mesmo oficiais, altos funcionários, senhores e senhoras com crianças des-
filavam diante de meus olhos na esperança de que quisesse olhar para
eles. Acho tudo isso muito bonito mas devo saber quem e o que eu sou. Já
não sou a mesma? Tornei-me outra pessoa?... Então chegaram-me lágri-
mas aos olhos porque tinha sempre de ir adiante, mas sentia-me infinita-
mente feliz. Até os animais estavam alegres; ao olharem para mim os cis-
nes abriam as asas em minha honra” (Rumke).

g) Como nascem mundos de sentimentos sem objeto.


Os sentimentos novos, nunca conhecidos tendem a compreenderem-se
a si mesmos. Há neles possibilidades infinitas, que só se fazem conscien-
tes ao produzirem-se percepção, representação, nas figuras e no pensa-
mento de um mundo. Então das vivências inauditas de felicidade conduz
o caminho sem descontinuidade para o conhecimento. Assim, a vivência
da felicidade se inicia com uma consciência de clarividência sem que haja
conteúdo imediato realmente distinto. Do modo mais beatificante, os paci-
entes creem apreender o sentido mais profundo. Conceitos como intempo-
ralidade, mundo, Deus, morte se tornam revelações extraordinárias que,
no entanto, com o descrever do estado — eram apenas sentimentos — não
podem ser de forma alguma reproduzidas ou descritas.
Este sentimento de clarividência, de penetração profunda na essência
das coisas aparece, p. ex., na autonarração de Nerval: “Pareceu-me que
sabia tudo e que tudo se me revelava, os mistérios do mundo, nestas ho-
ras sublimes”. Uma paciente escreveu: “Pareceu-me que via tudo claro e
distinto como se surgisse em mim nova e curiosa compreensão para todas
as coisas” (Gruhle). Outra: “Era como se tivesse recebido um sentido espe-
cial, como clarividência, como se pudesse perceber o que outras pessoas e
eu mesma antes não tivéssemos percebido” (Kurt Schneider).
O paciente, que me descreveu suas três espécies de sentimentos de fe-
licidade, quando ainda se relacionava criticamente, sem alucinações, com
suas vivências, desenvolveu, na sequência do processo, experiências místi-
cas e religiosas. Percebia os ataques como “vivências metafísicas” na me-
dida em que possuíam “caráter do infinito”. Ao experimentar também vi-
vências objetivas (cognições corporais etc.) explica a respeito destas últi-
mas: O que vejo, tem o caráter de grandeza infinita; isto é o que me faz ar-
repiar. Um dia chegou o paciente e disse ter “vivenciado Deus”; é o ápice
de sua vida”. Alcançou seu sentido”. Durou bem uma hora. Era um fluir
dele, uma “extensão de minha alma”. A excitação era incrivelmente forte.
Por fim, houve tranquila beatitude em Deus e então Deus fluiu para ele.
Em comparação com suas vivências anteriores de felicidade, colocava sua
experiência de Deus ao. lado do tipo da onda sempre crescente mas de tal
sorte que o cume, como que deslizando, se dilatava até o infinito, numa
esfera. A vivência tem caráter cônscio”. A descrição é aqui simbólica de
uma maneira bem diferente das vivências anteriores de felicidade. O con-
teúdo- era Deus, perceptível mas só como figura sentida. Tudo era de todo
incomparável; nada podia ser representado, não possuía nada em comum
com nossas representações dos sentidos. Outras formulações do paciente
eram: Chego a Deus, e não ele a mim. Eu transbordo. Como se abarcasse
o mundo inteiro, mas abarcasse fora de mim, como se minha alma saísse
e então abarcasse Deus.
Aos sentimentos de felicidade, à clarividência, à vivência de Deus estão
frequentemente ligados sentimentos de graça e então o caminho conduz
rápido do mundo dos sentimentos para o mundo objetivo e o delírio. O pa-
ciente se sente livre de todos os pecados, se sente santo, como filho de
Deus e depois messias, profeta, Madonna. Ao âmbito desses estados de
sentimentos não pertencem apenas as vivências do início das esquizofre-
nias, pertence também a embriaguez decorrente de tóxicos (ópio, mesca-
lina). Classicamente, ocorrem em breves momentos, antes de ataques epi-
léticos. Pertencem talvez também a vivências normais, isto é, que não po-
dem ser apreendidas por sintomas especificamente diversos (as ricas nar-
rações dos êxtases místicos não se podem classificar todos de maneira psi-
quiátrica).
Em diversas passagens Dostojewski descreveu suas vivências de- aura
epilética:
“E sentia que o céu se tinha afundado na terra e me tragara. Sentia
Deus como uma verdade profunda, sublime e me senti penetrado por ele.
Sim, existe um Deus, exclamei; o que aconteceu depois, não sei. Não sus-
peitais que maravilhoso sentimento de felicidade enche o epilético num se-
gundo antes do ataque. Não sei se a felicidade dura segundos, horas, mas
crede-me, não queria trocar todas as alegrias da vida por ela”.
“Vale a pena dar toda a vida por um momento destes... Nestes minutos
torna-se compreensível a palavra de profundeza maravilhosa: uma vez, já
não haverá tempo”.
“Há segundos em que de repente se sente a eterna harmonia que- pre-
enche toda a existência... É como se alguém sentisse em si de repente,
toda a natureza e dissesse: sim, é a verdade... não é só amor. É mais do
que amor. É horrível que estes sentimentos sejam tão claros e a alegria tão
forte... Nestes cinco segundos vivencio toda uma vida e daria por eles mi-
nha vida... Para que todo o desenvolvimento, se já foi alcançado o fim?”.
O despertar de novos mundos na transformação esquizofrênica do ho-
mem é acompanhado do tomar-se estranho no mundo natural comum. Os
pacientes percebem como perdem o contacto com as coisas, sentem-se
distantes e isolados. “O que há no mundo?... e eu já não pertenço ao
mundo” (Fr. Fischer).

§ 6. Impulso, Instinto E Vontade.

a) Ações impulsivas.
Aqui, como até agora, a fenomenologia se ocupa do realmente vivenci-
ado e não com quaisquer mecanismos extraconscientes. Estes, p. ex.
como mecanismos motores, fazem que as excitações dos instintos e as de-
cisões da vontade vivenciadas tenham êxito e se exteriorizem; conferem à
vivências capacidade de ação. Os efeitos dos atos de vontade, cuja produ-
ção está fora da consciência, são internos, p. ex., o aparecimento de deter-
minadas representações de memória, ou externos, p. ex., as funções moto-
ras. Disso tratar-se-á no capítulo sobre as manifestações objetivas. Aqui
ocupar-nos-emos apenas do que é vivenciado imediatamente.
Da psicologia das vivências instintivas e volitivas daremos apenas al-
guns conceitos fundamentais. Obter-se-á panorama da fenomenologia
destas vivências, seguindo-se uma série ascendente — interrompida pelo
aparecimento de elementos essencialmente novos: distinguimos a vivência
de um impulso primário, sem conteúdo nem direção; os instintos natu-
rais, que perseguem inconscientemente um fim, e os atos de vontade, que
acontecem com representações conscientes do fim, com conhecimento de
meios e consequências.
Impulsos, excitações instintivas e representações de fim entram, como
motivos, em conflito. Frente a tais motivos, que aparecem tal qual mate-
rial, se instaura uma decisão após deliberações, vacilações e lutas, o espe-
cífico “eu quero”, ou “eu não quero”. Esta consciência do arbítrio é, junta-
mente com a vivência da excitação do instinto, e com a vivência da duali-
dade respectiva da oposição, fenômeno não redutível. Somente quando se
vivencia de alguma maneira uma escolha e uma decisão é que falamos de
vontade, de ações do arbítrio. À falta destas vivências, quando, ao invés,
os instintos se põem em movimento sem obstáculos nem atos de vontade,
falamos em ação instintiva. Se, neste caso, estiver no segundo plano uma
possível vontade, tem-se o sentimento de ser impelido e dominado; se fal-
tar este segundo plano, produz-se um processo biológico automático, sem
vontade.
Aos fenômenos de impulso, excitação instintiva, luta, arbítrio ajunta-se
a consciência dos efeitos das excitações instintivas ou decisões volitivas
em descargas motoras ou em consequências psíquicas. Tais consequên-
cias são vivenciadas como queridas ou instintivas de modo caracteristica-
mente diferente — procedentes de mim, pertencentes a mim — do que se
ocorressem espontaneamente, p. ex., como conversão. — Uma espécie
particular de fenômenos volitivos internos é constituída pela atenção vo-
luntária ou involuntária. Têm por consequência tornar os conteúdos mais
claros e distintos.
Ações impulsivas — Fala-se em ações instintivas, quando excitações do
instinto se descarregam simplesmente, sem conflito, sem decisão mas sob
controle velado da personalidade. Fala-se em ações impulsivas, caso os fe-
nômenos não sejam, não possam ser contidos, controlados. Denominam-
se anormais, caso não haja para nossa empatia nenhuma possibilidade de
compreensão, mediante a qual possam ser reprimidos. São frequentes em
psicoses agudas, em obnubilações da consciência, em estados indiferenci-
ados de desenvolvimento. A maioria das ações na vida diária, ao contrário,
embora sejam ações instintivas, não são, todavia, ações impulsivas patoló-
gicas.
Um esquizofrênico relata dos primeiros estágios do processo a seguinte
ação impulsiva que logo lhe chamou a atenção: “Naquela ocasião tínha-
mos um encontro social. No caminho de volta para casa se apossou de re-
pente de mim, como um raio de um céu sereno — antes nunca tinha pen-
sado nisso —, a ideia: deves atravessar o rio nadando de roupa. Não se
tratava de compulsão, da qual me desse conta, mas simplesmente de im-
pulso violento de sorte que não refleti nem um minuto, pulei direto no rio.
Ao sentir a água, foi que notei o disparate e saí do rio. Tudo isso deu-me
muito que pensar. Pela primeira vez, algo inexplicável, de todo esporádico
e muito estranho” (Kronfeld).
Nas psicoses agudas e em estados passageiros, são inúmeras as exci-
tações instintivas muitas vezes incompreensíveis. Costumam nas psicoses
chegar rapidamente à descarga motora. Um paciente sai de repente do es-
tado de estupor, salta da cama, golpeia, morde, bate com a cabeça contra
a parede. No dia seguinte, está acessível, sabe do ocorrido, diz que foi irre-
sistível. Outro, em conversa tranquila, de súbito bate com os punhos no
peito do médico, momentos depois se desculpa, de chofre não pôde resistir
ao sentimento de que o médico lhe era hostil. — São coisa comum, em es-
tados agudos puros, impulsos de movimento (resolução do instinto no
prazer de movimentos sem sentido) e impulsos de ocupação (resolução do
instinto em determinadas ocupações). O impulso de movimento pode ocor-
rer isolado em determinadas esferas; p. ex., impulso de falar com plena
calma em todos os demais setores.
Na encefalite epidêmica, sobretudo dos jovens, em fases agudas e ¿me-
diatamente seguintes, observam-se ações impulsivas, agressividades, atos
grosseiros repentinos. Thiele, que submeteu tais ações a observação mais
rigorosa, descreveu o impulso como tendência de descarga sem meta nem
direção em sua origem, proveniente de inquietação e tensão atormentado-
ras. Este impulso só se transforma em ação de determinado conteúdo em
razão da situação e oportunidade. O impulso, como instinto privado de fi-
nalidade, só encontra um objeto, o instinto procura seu objeto, a vontade
põe o objeto querido.
b) Consciência da inibição da vontade.
É perturbação característica a consciência da inibição, que ocorre
como inibição subjetiva das excitações instintivas (queixas de falta de inte-
resse, de não ter prazer em nada, ausência de qualquer motivação etc.) ou
como inibição subjetiva do impulso volitivo queixas de incapacidade de to-
mar decisões em dada situação real, queixas de incapacidade de resolver-
se). Na maioria dos casos, juntamente com esta inibição subjetiva há tam-
bém inibição objetiva — não correspondente. Todavia, ela pode ser vivenci-
ada de modo intensivo também sem qualquer inibição objetiva.

c) Consciência de impotência da vontade e sentimento de força.


Fenômeno curioso é a vivência de completa impotência da vontade. Ca-
racterístico é o sentimento de passividade e abandono em psicoses agudas
ricas de vivências. Muitas vezes não é claro se se trata da vivência de um
ato deficiente de vontade ou da consciência de incapacidade objetiva para
realização dos atos volitivos. Aparece por ex. de maneira clara na seguinte
cena:
A paciente estava, na cama. Ouviu ruído de ferros a bater à porta. En-
trou “alguma coisa” que se achegou até à cama. Ela a sentiu e não podia
mover-se. Subiu-lhe ao corpo, como uma mão, até o pescoço. Sentia uma
angústia terrível e estava inteiramente acordada, mas não podia nem gri-
tar, nem podia erguer-se. Estava como que enfeitiçada.
Mesmo sem. qualquer conteúdo vivenciado acontece com pacientes em
plena consciência de si já não poderem mover-se nem falar. O paciente
causa nos outros a impressão de embriagado; é ridicularizado, zanga-se,
mas não pode responder. Recordação completa do estado mostra objetiva-
mente que estava em plena consciência. Tais estados são descritos em
parte como ataques narcolépticos. Friedmann os caracteriza: “Os olhos vi-
rados para cima, imóveis com pupilas algo dilatadas e reagindo à paralisa-
ção do pensamento, mantendo no entanto a cognição, a atitude flácida e
parada do corpo, ou, em lugar desta, em casos mais raros, a continuação
automática da última ação, que estava se cumprindo; o despertar, na mai-
oria das vezes, sem qualquer resquício de perturbação”. — Encontram-se,
às vezes, em histéricos e, sobretudo, do grupo esquizofrênico pacientes
que relatam tais ataques de rigidez com inteira consciência de si. De sú-
bito — como que por uma sacudidela — ao impulso volitivo já não segue
nenhum movimento do corpo, ou do corpo todo ou de algumas regiões
motoras. Percebem o corpo rígido e hirto, pesado, sem força, sem vida.
Este estado, que se distingue da paralisia por ser passageiro, abate-se so-
bre o paciente na maioria das vezes quando está deitado, às vezes quando
está, sentado ou até quando está em pé.
Algumas narrações destes pacientes, segundo Kloos : Esforçava-se por
falar; mas não conseguia. Também não podia levantar-se da cadeira, não
podia fazer-se entender por sinais como se estivesse amarrado. Em tudo
isso, uma angústia terrível. — No meio da oração de repente já não podia
abrir a boca e mover os membros. Era como- quando se morre. Não tinha
medo: pensei, eu vou despertar de novo; rezei muito tempo com o espírito.
De súbito passou. Na vez seguinte porém, uma pronunciada agonia. Em
ambas, o sentimento de que todo o corpo estava sem vida — Tinha o senti-
mento de estar enfeitiçado; não podia levantar os pés do chão, tinha que
ficar no mesmo lugar (só alguns segundos).
Não se trata de paralisia motora, também não se trata de perturbações
psicogênicas mas de processo elementar, no qual falta a transformação de
impulso volitivo em movimento corpóreo. Onde se localiza esta perturba-
ção, não se sabe. A última coisa, que experimentamos fenomenologica-
mente na vivência quanto a nossos movimentos é o esforço em representar
a finalidade do movimento. Pikler analisou os fatos. Quando dirigimos a
vontade para uma. parte do corpo, a fim de movê-lo, o ponto consciente de
incidência não são o nervo e o músculo. A vontade atinge a superfície da
parte do corpo e justamente no ponto que precede, movendo-se todos os
outros pontos da parte do corpo (p. ex., ao pegar na superfície dos dedos).
Assim, a vontade não possui um ponto dinâmico de ataque. Ataca no
ponto pelo qual é concebido o movimento. — É para nós por completo obs-
curo onde está de fato o ponto de ataque, onde se acha a relação entre o
fato psicológico vivenciado e o processo muscular e nervoso, inteiramente
heterogêneo e altamente complexo. Só nos casos patológicos se vê drasti-
camente que este fato, de resto tão natural, pode faltar sem paralisia. Vi-
vencia-se a impotência do impulso de movimento, a falta da magia normal
da ação volitiva sobre o movimento corporal.
Também ocorre esta vivência de impotência de incapacidade de agir no
controle do próprio processo de pensar e representar. Há pacientes que se
sentem preocupados, não se podem concentrar em nenhum trabalho, os
pensamentos lhes escapam justamente quando deles necessitam, se intro-
metem pensamentos inadequados. Sentem-se sonolentos, dispersivos.
Sua incapacidade de trabalhar ajunta-se ao desânimo. Todavia, atividades
mecânicas conseguem realizar facilmente e o fazem em certas circunstân-
cias com gosto. É o que distingue estes estados da inibição e do cansaço.
Aparecem frequentemente no início de processos. Pacientes inteligentes
admitem que se trata de algo muito diferente do cansaço que conhecem
bem.
Em muitas psicoses agudas, os pacientes experimentam o contrário
das vivências descritas: um sentimento gigantesco de forca. É como se pu-
dessem tudo. Ações e influências intensas saem deles. Podem fazer tudo.
Sentem-se fisicamente fortes como um touro. Nem mesmo cem homens
podem dominá-los. Sentem que suas forças agem também à distância. A
isso aliam muitas vezes um sentimento de responsabilidade extraordiná-
ria, a consciência de realizar feitos de alcance mundial.
Nerval descreve: “Então, tinha a ideia, de me ter tornado muito grande
e de derrubar com uma corrente de forças elétricas tudo que de mim se
aproximasse. Havia algo cômico no cuidado com que controlava minhas
forças e poupava a vida dos soldados que me prenderam”.
Uma esquizofrênica escreve: “Todo o mundo a quem me dirigia acredi-
tava incondicionalmente em mim e fazia o que dizia. Ninguém procurava
enganar-me; a maioria já não acreditava em suas próprias palavras. Te-
nho influência indescritível em meu ambiente. Acho que meu olhar embe-
leza os outros e experimento esta magia em minhas enfermeiras. Todo o
mundo depende em seu bem e mal estar de mim. O mundo deve ser me-
lhorado e salvo por mim” (Gruhle).
Outros pacientes, no início de psicoses agudas, se admiram da força e
clareza extraordinárias de seu pensamento. As ideias lhes vêm em turbi-
lhões, a seu bel prazer, com facilidade nunca vivenciada e em plenitude
admirável. Sentem poder resolver agora todos os problemas brincando.
Multiplicam-se suas forças espirituais.

§ 7. Consciência Do Eu.

Preliminares psicológicas. Contrapomos à consciência objetiva a consci-


ência do eu. Assim como naquela tivemos de distinguir modalidades varia-
das de se nos darem objetos, assim também na consciência do eu, na mo-
dalidade em que o eu se faz consciente de si mesmo, não deparamos com
um fenômeno simples. A consciência do eu possui quatro características
formais: l°) o sentimento de atividade, uma consciência de ação; 2°) a
consciência da unidade: sou um no mesmo momento; 3°) a consciência da
identidade: sou o mesmo que antes; 4°) a consciência do eu em oposição
ao exterior e aos outros — Dentro destas características formais, a consci-
ência do eu conhece uma série de graus de desenvolvimento desde a mais
simples e pobre existência até à plenitude mais rica, que na vivência se
tornou consciente de si mesma. Nesta manifestação e desenvolvimento de
conteúdo, o eu se faz consciente de si como personalidade. — Ao deixar de
lado alguns daqueles critérios formais, obtemos anormalidades típicas da
consciência do eu. Por fim, lançamos um olhar sobre a consciência anor-
mal da personalidade.

a) Atividade do eu.
A consciência do eu está presente em todos os processos psíquicos. O
“eu penso” acompanha todas as percepções, representações, pensamen-
tos. Sentimentos são estados passivos do eu, instintos são estados propul-
sores do eu. Vivencia-se de modo especial em toda a vida psíquica uma
atividade originária, incomparável. Chama-se personalização o fato de o
psíquico — seja percepção, sensação corporal, recordação, representação,
pensamento, sentimento — receber este tom especial de “meu”, do “eu”, de
“pessoal”, de atividade própria. Quando estes elementos psíquicos se apre-
sentam com a consciência de não serem os meus, de me serem estranhos,
automáticos, realizados por si mesmos ou por outros, chamam-se tais fe-
nômenos manifestações de despersonalização.
1°) Alteração da consciência da existência. A um grupo de fenômenos
da consciência deficiente da própria atividade pertencem a alienação do
mundo perceptivo, a ausência da sensação normal do próprio corpo, a in-
capacidade subjetiva de representação e recordação, as queixas de inibi-
ção dos sentimentos, a consciência de automatismo nos processos voliti-
vos. Deste grupo de fenômenos manifestamente aparentados, descrevemos
aqui, de acordo com as queixas dos pacientes, apenas a consciência da
perda do sentimento do eu como consciência da existência.
Em graus leves do fenômeno, os pacientes se sentem estranhos a si
mesmos. Sentem-se' mudados, tão diferentes, tão mecânicos. Falam sim-
bolicamente de estados crepusculares. Dizem que não são de modo natu-
ral eles mesmos. Em seus diários Amiel descreve: “Sinto-me sem nome,
impessoal, o olhar rígido, como o de um cadáver, o espírito vago e geral,
como o. nada ou o absoluto. Estou pairando. Sou como se não fosse”. Pa-
cientes dizem: Sou apenas uma máquina, um autômato. Não sou eu quem
fala, sente, come. Não sou eu quem sofre, dorme. Eu já nem existo. Eu
não sou. Estou morto. Sinto-me como puro nada.
Uma paciente diz que não vive, que não se pode mover, que não tem
inteligência nem sentimento. Ela também nunca existiu, apenas se acredi-
tou que ela existisse. Outra paciente dizia: “O pior é que não existo”. Tanto
não existo que não me posso lavar, que não posso beber”. Ela não é um
nada, más não existe. Faz apenas como se existisse. Fazer alguma coisa “a
partir de um não-sou” chama “girar”. Tudo que faz não o faz de um eu-sou
(Kurt Schneider).
O fenômeno curioso é o homem, existindo, já não poder sentir sua
existência. O pensamento fundamental de Descartes: cogito — ergo sum,
só pode ser pensado externamente. Já não pode ser realizado vivencial-
mente de fato.
2°) Alteração da consciência de execução. Pode-se conceber o desapare-
cimento do sentimento de existência como o decréscimo da consciência de
exercício que acompanha normalmente todo processo psíquico. Na natu-
ralidade de nossa ação não notamos quão essencial é a unidade da vivên-
cia de execução. É para nós evidente que, quando pensamos, somos nós
que pensamos, que um pensamento é nosso e que as ideias que nos ocor-
rem — e que nos fazem dizer talvez que é como se não eu mas o pensa-
mento pensasse — são, entretanto, nossos pensamentos, pensamentos
pensados por nós.
A alteração desta consciência de execução pode verificar-se segundo
direções, que nos são inteiramente incompreensíveis, não nos podemos re-
presentar nem delas ter empatia. Entendemos até uma espécie de mani-
festação obsessiva, em que o paciente não. se pode libertar de melodias,
representações, frases que se lhe impõem. Mas o que se aferra de modo
torturante ainda é, entretanto, vivenciado pelo obsessivo como sendo exe-
cutado por seu próprio pensamento. Totalmente diversas são as manifes-
tações esquizofrênicas do pensamento, às quais os pacientes se referem
como “pensamentos feitos” e “fugas do pensamento”, com palavras sempre
novas que inventam e de que se apropriou a psicologia. Pensam alguma
coisa e, contudo, sentem, que um outro pensou os pensamentos e lhos
impôs de alguma maneira. O pensamento surge diretamente com a cons-
ciência de que não o pensa o paciente, mas outro poder estranho: O paci-
ente não sabe porque tem este pensamento, ele nem quer tê-lo. Não só
não se sente senhor de seus pensamentos, como se sente na posse de um
poder estranho inapreensível.
“É-se influenciado artificialmente, tem-se a sensação sugestiva de que
alguém estivesse pendurado no espírito e no coração, assim como no jogo
de cartas alguém olhasse por sobre os ombros do outro e se imiscuísse no
jogo”. (Um paciente esquizofrênico).
Assim como se fazem pensamentos para os pacientes, assim também
se lhes subtraem. Um pensamento desaparece com o sentimento de que
isso acontece provocado por fora. Depois, surge um outro pensamento
sem qualquer relação com o anterior. Este é o pensamento feito.
Uma paciente nos diz: quando quer pensar em alguma coisa, p. ex.,
em negócios, subtraem-lhe de repente todos os pensamentos como
quando alguém puxa uma cortina. Quanto mais se esforça, tanto maiores
se tornam as dores (é como se um cordão fora puxado da cabeça). Ela,
apesar disso, consegue reter os pensamentos ou recuperá-los.
Quase não podemos representar-nos concretamente o que se vivencia
nestes “fazer pensamentos” e “subtrair pensamentos”. Temos de nos satis-
fazer em constatar, por assim dizer, de fora, pela descrição, este fenômeno
de resto fácil de ser reconhecido. Não o confundimos com a estranheza de
um conteúdo, nem com a motivação insuficiente de uma ideia nem com
fenômenos obsessivos.
Outra modalidade, em que se dão pensamentos, distingue-se também
dos pensamentos normais. Os pensamentos não são evocados nem feitos,
nem os pacientes lutam contra eles. Todavia, não são seus pensamentos.
Não são pensamentos do tipo que eles geralmente pensam. São insufla-
dos. Tais pensamentos surgem, os pacientes os aceitam como algo prove-
niente de uma região estranha, como inspiração.
“Nunca os li nem ouvi. Vêm sem serem chamados. Não me arrisco a
pensar que provenham de mim. Todavia, sinto-me feliz por sabê-los sem
tê-los pensado. Em todo momento adequado voam para mim. Parecem ser
presentes, de sorte que não ouso comunicá-los como sendo meus pró-
prios” (Gruhle).
Qualquer espécie de atividade, não apenas pensar, também andar, fa-
lar, agir, pode ser feito. São os fenômenos de ação voluntária influenciada.
Não se trata dos fenômenos de psicopatas e depressivos: a saber, como se
eles mesmos não agissem, como se fossem um mecanismo morto, como se
fossem um autômato. Destes fenômenos deve-se distinguir, radicalmente,
a vivência elementar de influência real. Os pacientes sentem-se inibidos e
impedidos, mas de fora. Não podem fazer o que querem. Mantêm-se-lhes
as mãos presas quando desejam levantar alguma coisa; é uma força psí-
quica. Sentem-se arrastados por trás, imobilizados, petrificados. De sú-
bito, já não podem continuar a andar como se fossem paralíticos, e de re-
pente também tudo desaparece. Imobiliza-se-lhes a língua. Por outro lado
lhes são feitos movimentos que não desejam. Admiram-se por terem le-
vado a mão à testa, porque atacavam outro. Eles não “queriam”. Trata-se
de força estranha que lhes é incompreensível. Um paciente de Berze dizia:
“Não gritei de maneira alguma. O nervo da voz é que berrou em mim”. “As
mãos se curvam para lá e para cá, não as governo nem as posso parar”.
Trata-se de fenômeno que não podemos imaginar concretamente. De um
lado, mantém certa semelhança com um ato de vontade. De outro, se as-
semelha a um movimento reflexo que se processa e é apenas observado.
“É feito” na execução, não se faz. Algumas passagens de uma autonarra-
ção tornam-no mais claro:
É algo curioso “o aparecimento do milagre de gritar. Os músculos, que
servem à respiração são postos de tal maneira em movimento que sou for-
çado a expelir o grito, se não usar um esforço especial para reprimi-lo... o
que dada a rapidez do impulso nem sempre é possível ou somente seria
possível mantendo constantemente a atenção dirigida para este ponto... Às
vezes estes gritos se repetem de modo tão rápido e frequente que se tor-
nam situação insuportável para mim... Na medida em que a vociferação
utiliza palavras articuladas, naturalmente minha vontade participa tam-
bém. Somente o som inarticulado é de fato puramente forçado e automá-
tico... Toda minha musculatura se acha sob certas influências que só po-
dem ser atribuídas a uma força atuante de fora... As dificuldades que me
fazem ao tocar piano ultrapassam qualquer descrição. Paralisia dos dedos,
mudanças na direção dos olhos, desvio dos dedos para teclas erradas,
aceleração do ritmo estimulando antes do tempo os músculos dos dedos..”
No setor de atos voluntários são vivências semelhantes os “pensamentos
feitos”, “a subtração do pensamento” e outras semelhantes (Schreber).
Também se vivenciam como “feitas”, excitações instintivas, especial-
mente as sexuais: Um esquizofrênico descreve “satisfações com moças,
sem contacto pessoal... Passando, uma bela moça se faz “coquette” com os
olhos, as atenções se voltam para ela. Trava-se conhecimento, assim como
um casal de namorados. Depois de algum tempo, faz certos sinais na dire-
ção do seio. Quer provocar, à distância, por meios telepáticos sem contato
pessoal, excitação sexual a fim de produzir, como num abraço real, uma
polução.
b) Unidade do eu.
A vivência da unidade do eu pode sofrer alterações sensíveis. Em mui-
tas oportunidades, p. ex. quando, se fala, pode-se notar às vezes que se
continua a falar, como que automaticamente, mesmo sem errar e, apesar
disso, a pessoa se observa a si mesma, se ouve a si mesma. Se tal cisão
durar mais tempo, surgem perturbações no curso do pensamento. Toda-
via, por alguns momentos pode-se aqui, sem ser perturbado, vivenciar em
germe o que pacientes, de maneira explícita, nos descrevem 1 como disso-
ciação de personalidade. Não nos referimos aos fatos que nos. são conhe-
cidos pelas fórmulas: moram em meu peito duas almas, razão e instintos
se acham em luta etc. Não nos devemos deixar enganar pelo modo de ex-
pressar-se dos pacientes que interpretam ideias obsessivas como dissocia-
ção, nem por seus julgamentos de serem duplos, que se baseiam em al-
guma conclusão (p. ex., em alucinações autoscópicas). Não devemos tam-
bém confundir com a chamada “duplicação da personalidade”, que existe
objetivamente em consciência alternada. A vivência real de dissociação, a
vivência da. cisão de si. mesmo, só existe quando ambas as séries de pro-
cessos psíquicos se desenvolvem simultaneamente uma ao lado da outra;
mas de tal maneira que se possa falar em personalidades que ambas vi-
venciem de modo' próprio, que de ambos os lados existam conjuntos de
sentimentos que não correspondam aos do outro lado- mas se lhes opo-
nham como estranhos. A antiga autodescrição de um padre Surin, apesar
de sua formulação baseada em fé dogmática, é muito concreta:
“A coisa chegou a tal ponto que Deus, a meu ver devido a' meus, peca-
dos, permitiu — talvez nunca se tenha visto isso na Igreja, — que- o demô-
nio abandonasse o corpo dos possessos (que o padre exercitara) e en-
trando em meu próprio corpo, me jogasse ao chão, e me tratasse- várias
horas como um energúmeno entre as convulsões mais violentas. Não
posso descrever o que se passou comigo então, e como este espírito se
uniu com o meu, sem no entanto roubar-me a consciência e a liberdade
de minha alma. Apesar disso agia como um outro eu, como se eu-, tivesse
duas almas. Uma colocada fora do alcance e uso do corpo, postergada por
assim dizer para um canto, a outra, a que entrou, agindo livremente. Am-
bos os espíritos lutam na mesma região do corpo, e a alma está como que
dividida. Numa parte de seu ser acha-se- subjugada às impressões do de-
mônio e na outra obedece a seus próprios movimentos ou aos que Deus
lhe deu. Ao mesmo tempo experimento- uma paz profunda de acordo com
a vontade de Deus, sem saber donde provém em mim o furor terrível e o
asco contra Deus, a fúria de- libertar-me dele, do que todos se admiravam.
Simultaneamente experimento uma grande alegria e mansidão, que se
derrama em queixas e- gritos como os do demônio. Sinto a condenação e a
temo. É como- se eu fosse atravessado por aguilhões do desespero na
alma estranha que é por assim dizer a minha. Enquanto isso, a outra
alma cheia. de confiança prorrompe livremente em pragas e ridicularias
contra o autor de meu sofrimento. Os gritos de minha boca brotam sime-
tricamente de ambos os lados e só com esforço posso distinguir se neles
atua prazer ou ira furiosa. O tremor violento que se apossa de mim, ao
aproximar-se o Sacramento, parece-me provir tanto da indignação por sua
presença como da veneração cordial e suave, e não me é possível refreá-lo.
Ao querer fazer, por impulso de uma das almas, o sinal da cruz na boca, a
outra alma me impede com extrema rapidez, empurrando-me os dedos en-
tre os dentes, para mordê-los de raiva. Quase nunca posso rezar mais fa-
cilmente e mais tranquilamente do que durante tal excitação. Enquanto
meu corpo se revolve por terra, e os padres me cobrem, como Satã, de es-
conjuros, sinto uma alegria indescritível de me ter feito Satã, não por re-
volta contra Deus mas devido à miséria de minha alma”. (De acordo com o
desenvolvimento posterior, este padre parece sofrer de processo esquizo-
frênico).
Estas vivências de dissociação, descritas escassamente, são muito cu-
riosas. O eu se vivencia dividido e, no entanto, é um só. Vive em dois con-
textos de sentimento e, no entanto, tem conhecimento de ambos. Não se
pode contestar o fato de tal dissociação. Sua formulação deverá sempre
expressar-se deste modo contraditório.

c) Identidade do eu.
Terceira característica da consciência do eu é a consciência de ser o
mesmo na sucessão do tempo. Deve-se aludir a afirmações de pacientes
do grupo esquizofrênico, que dizem sobre sua vida anterior — antes da
psicose — não serem eles, ter sido um outro. Afirma um paciente:
“Ao descrever minha história, tenho consciência de ser apenas uma
parte do meu eu atual que vivenciou tudo isso. Até 23 de dezembro de
1901 não posso dizer que tenha o eu de hoje. O eu de então me parece
agora um pequeno anão dentro de mim. É desagradável para minha ma-
neira de sentir e penoso para meu sentimento de existência, descrever as
vivências até então na primeira pessoa. Posso fazê-lo aplicando represen-
tações contrárias e tomando consciência da que o “anão” reinava até
aquele dia, a partir daí porém terminou seu papel” (Schwab).
d) Consciência do eu em oposição ao exterior.
A quarta característica da consciência do eu é clara oposição a um
mundo externo. Segundo afirmações enigmáticas de esquizofrênicos, pa-
rece que os pacientes se identificam com os objetos do mundo externo. So-
frem sob as maquinações dos outros: alguém trama, dizem: o que você
trama aí para mim! Ou: porque me bates, como se bate um tapete (Kahl-
baum). Um esquizofrênico relata: “Vi diante de mim um torvelinho confuso
ou melhor: Eu me senti girar em redemoinho fora, num espaço estreita-
mente limitado” (Fr. Fischer). Na embriaguez de mescalina: “Senti o latir
de um cão como um bater doloroso em meu corpo, o cão estava latindo lá
e meu eu estava em dores” (Mayer-Gross e Stein). Na embriaguez de ha-
xixe: “Agora mesmo eu era uma rodela de laranja”.
“Às vezes acontece que a personalidade desaparece e se vos manifesta
a objetividade própria dos poetas panteístas. E de maneira tão anormal
que a consideração das coisas do mundo externo vos faz esquecer a pró-
pria existência e logo vos derramais, dentro delas. O olhar se fixa numa
árvore que se curva harmonicamente com o vento; em alguns segundos, o
que no cérebro de um poeta devia ser apenas uma comparação inteira-
mente natural se faz no vosso um fato. Atribuís logo à árvore vossas pai-
xões, a saudade ou a melancolia; os suspiros -e as oscilações da árvore se
tornam vossas e depois sois a árvore. O mesmo se dá com o pássaro. Su-
ponho: estais sentado e fumais. A atenção quer seguir por um pouco mais
as nuvens azuis que se desprendem do cachimbo... Por uma equação sin-
gular sentir-vos-eis — vós mesmos — desprender-vos; Vós vos tornais o
cachimbo (no qual vos sentis metidos e comprimidos como o fumo), a ca-
pacidade curiosa de saber que vós vos fumais.
Um esquizofrênico narra: “O sentimento do eu era tão pequeno que
surgiu a necessidade de completá-lo com outra. pessoa como o desejo da
proximidade protetora de eus mais fortes... parecia-me a mim como um
mero fragmento de uma pessoa (Schwab).
Aqui poder-se-iam ajuntar ainda algumas afirmações de pacientes,
cujo fundamento de vivência deve ser uma suspensão da separação clara
entre o eu e o mundo ambiente. Não raro dizem alguns esquizofrênicos
que todo mundo conhece seus pensamentos. A todas as perguntas res-
ponde um paciente: “O senhor já sabe, porque me pergunta”?
Os pacientes veem nas outras pessoas, que elas sabem logo os pensa-
mentos que eles têm naquele momento. Ou vivenciam (como nos casos de
pensamentos feitos e subtraídos) que eles são abandonados a todo
mundo” — “Acho que já não posso esconder nada, esta experiência, eu a
fiz nos últimos anos. Todos os pensamentos são descobertos. Noto que já
não me é permitido conservar autonomamente os pensamentos”.

e) Consciência de personalidade.
Quando a consciência do eu meramente formal se enche de conteúdo,
fala-se em consciência de personalidade. Esta consciência com seu conte-
údo é objeto da psicologia geneticamente compreensiva. Alguns traços
fundamentais de sua fenomenologia são os seguintes:
1°) Há uma diferença no modo que o homem atribui a si mesmo suas
vivências. Muitos movimentos instintivos, a personalidade os sente -como
manifestações naturais de seu ser, de seu estado atual. São vivenciados
pela personalidade como inteiramente compreensíveis, como seus próprios
movimentos instintivos. Entre eles pode haver instintos bem anormais,
como instinto masoquistas, sadistas, como a tendência para a dor, etc.
Outros movimentos instintivos, a personalidade os sente como estranhos,
como não naturais, como incompreensíveis, não os vivencia como seus,
mas como impostos. A esta oposição fenomenológica de movimentos ins-
tintivos, vivenciados subjetivamente como compreensíveis ou incompreen-
síveis, contrapõe-se a oposição de movimentos instintivos compreensíveis
ou incompreensíveis objetivamente para o observador. Ambas as oposi-
ções não coincidem de maneira alguma. Movimentos instintivos sexuais
perversos, no início de processos, na velhice etc., podem ser vivenciados p.
ex., subjetivamente como próprios objetivamente, porém, podem ser consi-
derados inteiramente novos, incompreensíveis, condicionados pelo pro-
cesso. Por outro lado, movimentos instintivos que se tornaram pelo hábito
irresistíveis podem ser considerados subjetivamente estranhos e objetiva-
mente compreensíveis.
2°) O sentimento de alteração da própria personalidade ocorre também
de maneira normal, especialmente na puberdade. Neste tempo cm que da
escuridão do incompreensível surgem impulsos tão diversos e novas vivên-
cias, experimenta-se uma vigorosa consciência — sentida seja dolorosa ou
jubilosamente, seja paralisadora ou abertamente — de ser uma outra ou
uma nova pessoa. Com isso é que mais se pode comparar a consciência
dos pacientes que, no início de processos, se tornam conscientes de algo
novo e misterioso. Sentem-se diferentes. Aparece um sentimento de inse-
gurança da consciência de personalidade, um sentimento de algo estra-
nho, contra o qual devem lutar e por fim surge a consciência de serem do-
minados. Muitos pacientes dizem que pensam, sentem, têm sensações di-
ferentes das de antes, que se efetuou neles uma profunda transformação.
Outros sentem uma alteração depois de uma psicose aguda, como sendo
subjetivamente agradável: são mais indiferentes, menos excitados, menos
facilmente "ensimesmados”, são mais dispostos a falar do que antes, me-
nos acanhados e mais seguros no modo de apresentar-se. Um paciente es-
creveu:
“Há anos me acho num estado de grande debilidade corpórea, de sorte
que por este estado corpóreo doente, sempre mais me tornei um homem
insensível, quieto e pensativo, o contrário do que se deveria esperar em
consideração das influências (atuações telepáticas)”.
Uma paciente queixava-se: “Ela tem tanta saudade de si mesma, mas
já não se encontra, deve procurar o ser humano em si mesma”. — Há dois
anos comecei a fenecer”. — Perdi-me a mim mesma, estou transformada
irremediavelmente” (Gruhle).
3°) A labilidade da consciência de personalidade, sente-se da maneira
mais variada nas psicoses agudas, ricas de vivências. Uma autodescrição,
que mostra, mesmo durante a vivência, consciência desta labilidade, evi-
dencia este fenômeno, que os próprios pacientes chamam às vezes desem-
penhar papéis:
“Limitando-me com a ideia delirante propriamente dita e no entanto
certamente dela distinto pode ser aquele estado frequente em todo o curso
de minha enfermidade, em que, em parte levado por uma espécie de inspi-
ração, em parte sabendo e querendo, criei para mim um papel que desem-
penhava declamando e representando; me encarnava nele c agia segundo
ele, sem me considerar diretamente idêntico com a pessoa representada”.
A paciente representava “por assim dizer a personificação da onda do
mar”, “os movimentos de um potro fogoso”, 'uma irmã jovem da Sulamita
do Cântico dos Cânticos” ou a filha de Alfredo Escher, “uma jovem fran-
cesa” ou a agricultura, em que a fazenda era o pátio das celas (Forel).
Em psicoses semelhantes, os pacientes vivenciam a si mesmos como
messias, como seres divinos, como bruxas, como personalidades históri-
cas. Em psicoses paranoides (nas quais Bonhoeffer descreveu a labilidade
da consciência de personalidade) se tece com riqueza de detalhes e se
mantém por longo tempo um papel, p. ex. de um inventor mundialmente
famoso. Nestas transformações em parte fantásticas ocorre que os pacien-
tes se mantêm conscientes de sua natureza anterior: eles são a mesma
pessoa que agora se tornou Messias etc.

f) Personificações dissociadas (cindidas).


A dissociação e multiplicação do eu pode dar-se de tal sorte que se
contrapõem aos pacientes poderes estranhos que agem como personalida-
des, são multiformes em seus meios, perseguem manifestamente fins,
possuem caráter determinado, são amistosos ou hostis. O grau mais baixo
destas formações de unidade é a chamada alucinação conjunta de vários
sentidos. O paciente, ao mesmo tempo em que alucina uma personalidade
visualmente, também a ouve falar. Vozes, alucinações visuais, influências,
dissociações da consciência corpórea, podem agrupar-se para formarem,
por fim, verdadeiras personificações como as chamava com propriedade
um paciente (Staudenmaier).
Staudenmaier, professor de química, descreveu entre suas vivências
patológicas estas personificações. Não as considerava, como outros paci-
entes deste grupo (esquizofrenia) espíritos ou seres estranhos mas por as-
sim dizer “partes, que se tornaram autônomas, de sua subconsciência”.
Seguimos sua descrição (que possui afinidade com a do padre Surin,
acima citada): “Aos poucos algumas alucinações se destacavam mais pre-
cisamente e retornavam mais vezes. Por fim formavam-se 'personificações
explícitas, compondo-se regularmente as imagens visuais mais importan-
tes com as correspondentes representações auditivas, de sorte que as figu-
ras emergentes começavam a falar comigo, a dar-me conselhos, criticar
minhas ações etc. Um defeito comum e muito característico destas perso-
nificações é considerarem-se sempre como sendo real o que apenas repre-
sentavam ou imitavam e em consequência falarem e agirem também a sé-
rio. Esforcei-me muito tempo por elaborar mais uma série delas. Aqui ape-
nas alguns exemplos: há alguns anos, ao inspecionar exercícios militares,
tive oportunidade de ver e ouvir falar repetidas vezes, e bem de perto, um
personagem da nobreza. Algum tempo depois tinha nitidamente a alucina-
ção de ouvi-lo novamente falar. A princípio não dei muita importância à
voz que ia aparecendo mais frequentemente e ela desapareceu por longo
tempo. Por fim desenvolveu-se em mim sempre mais frequente e clara-
mente a sensação de que a personalidade em questão se achava junto de
mim. A fisionomia se fez mais clara sem se tornar, no entanto, logo uma
alucinação, impondo-se por assim dizer por si mesma juntamente com a
voz interna. Depois surgiam de modo análogo personificações das mais va-
riadas personalidades da nobreza, assim do Imperador Alemão e também
de personalidades já falecidas, p. ex., de Napoleão I. Aos poucos ia-me in-
vadindo simultaneamente uma sensação toda própria e altiva de ser se-
nhor e dono de um grande povo. Estufava-se o meu peito quase sem cola-
boração de minha parte, toda minha postura se fez rígida e militar —uma
prova de que a respectiva personificação adquiria importante influência
sobre mim — e ouvia, p. ex., a voz interior falar com majestade: sou o im-
perador da Alemanha. Depois de algum tempo fiquei cansado. Surgiam vi-
olentamente as mais diversas imagens e a postura se tornou mais rela-
xada. A partir do conjunto das personificações de nobreza, se formou aos
poucos o conceito de “Alteza”. Minha Alteza tem necessidade de ser um
personagem altivo, principesco e reinante, ao menos — segundo um escla-
recimento maior de minha parte — de ver e imitar tal personagem. A Al-
teza se interessa muito, por teatros militares, por uma vida nobre, por
apresentação nobre, por comidas e bebidas nobres, pela ordem e elegância
em minha casa, por roupas nobres, por uma postura militar, ereta, por gi-
nástica, caçadas e demais esportes e procura influenciar meu modo de vi-
ver, aconselhando-me, admoestando-me, ameaçando-me, dando ordens. É
inimiga de crianças, de coisas pequeninas, de pilhérias e brincadeiras, evi-
dentemente porque ela quase só conhece os personagens da nobreza por
seu aparecimento em público, cheio de dignidade ou por retratos. É ini-
miga declarada de publicações humorísticas com caricaturas, de beber
água etc. Além disso, eu mesmo tenho um corpo um pouco pequeno de-
mais para ela”. — Um papel semelhante como “Alteza” desempenha a per-
sonificação “criança”, com voz infantil, com necessidades infantis e ale-
grias infantis, e a personificação “cabeça Oca” que se alegra sobretudo
com chistes e brincadeiras. As vozes de todas estas personificações são di-
ferentes. Pode-se falar com elas como com personagens estranhos. “So-
mente deve-se geralmente ficar no setor específico que eles representam e
afastar tudo que for estranho, pois tão logo se chega com outras coisas di-
ametralmente opostas, desfaz-se na maioria das vezes o idílio”. As personi-
ficações claras antecediam as confusas e imprecisas: “Às vezes parecia que
todos os diabos estavam soltos. Caras do diabo via muitas vezes por muito
tempo com toda clareza e precisão. Uma vez na cama tive a sensação clara
de' alguém enlaçar-me o pescoço com uma corrente. Logo depois percebi o
odor comum de enxofre e uma horrível voz interior dizia-me: “Agora és
meu prisioneiro, não te deixarei mais. Sou o demônio”. Muitas vezes me
lançaram as maiores ameaças. Vivenciei em mim mesmo: as lendas da
Idade Média sobre maus espíritos, que muitas vezes parecem aos homens
modernos contos de terror, como também as indicações dos espiritistas
sobre espíritos zombeteiros e barulhentos, não provêm do ar. “As personi-
ficações agem sem qualquer ligação com a personalidade consciente, a
quem cada uma procura dominar completamente. Por isso há uma luta
constante com as personificações, na qual algumas ajudam a personali-
dade consciente: “Muitas vezes posso observar claramente que duas ou
mais personificações se ajudam para uma apoiar a outra, ou que se pro-
curam pôr em acordo secretamente a fim de me combaterem e aborrece-
rem a mim, o velho — é o apelido que me deram e usam regularmente —
(até um certo ponto ocorre o mesmo que numa complicada rede de esta-
ções telefônicas: duas ou mais telefonistas podem trabalhar juntas sem o
conhecimento das outras) ou também, elas se combatem e xingam mutua-
mente”. “Justamente em razão da grande influência muitas vezes direta-
mente patológica de alguns centros e personificações, pude observar sem-
pre, até à evidência, com que esforço poderoso elas lutam, chegando até a
usar força muscular a fim de afastar de si representações e sentimentos
agradáveis e a fim de melhorar e tornar mais influente sua posição no or-
ganismo”. Todas as personificações possuem algo especificamente unilate-
ral, algo incompleto. Não são totalidades, mas seres parciais que só são
possíveis como “partes” do inconsciente ao lado de uma personalidade
consciente.
Nestas descrições já se aludiu ao juízo dado a tais fenômenos- por
Staudenmaier. É o que aparece ainda mais claro no seguinte: “O inexperi-
ente tem então sempre a impressão de que estava agindo- uma personali-
dade misteriosa, invisível e de todo estranha. A "voz interior” era conside-
rada já na antiguidade, de acordo com sua natureza, como uma voz de na-
tureza divina ou demoníaca”. Esta concepção Staudenmaier considera
falsa. De certo, ele se sente possesso do mesmo modo como os santos me-
dievais, mas não por poderes estranhos e sim por partes dissociadas de
seu próprio ser inconsciente. “Eu os considero seres vivos, que, embora
formados, para determinados fins unilaterais e circunscritos sempre no
organismo a um lugar determinado- e lateral, possuem, entretanto, certa
existência especial. Precisamente devido à sua posição e função unilateral,
possuem também memória especial e perseguem interesses especiais, que
não precisam ser os mesmos do eu consciente. Sobretudo em naturezas
nervosas adquirem, muitas vezes, devido à capacidade de vários afetos,
uma influência extraordinária sobre as disposições do humor, sobre todo o
modo do viver e agir. Visto que são capazes de aprender algo, podem
transformar-se, como no meu caso, em seres parciais formalmente inteli-
gentes, com os quais se tem de contar seriamente”. Enquanto a pessoa
normal experimenta a influência do inconsciente apenas através de senti-
mentos obscuros, Staudenmaier pode comunicar-se com as personalida-
des dissociadas mediante a linguagem numa conversação, e assim saber
muito mais e de modo mais claro do que de resto é possível. De fato, Stau-
denmaier não crê que estes seres dissociados sejam em princípio diferen-
tes do inconsciente normal: “Há os graus intermediários mais diversos na
unidade psíquica autônoma do homem normal até à dissociação formal-
mente patológica e à emancipação mais completa de partes do cérebro”.
Staudenmaier “pôde reconhecer até a evidência que o- homem não repre-
senta, também psiquicamente, outra coisa do que uma pura unidade.
Sem dúvida não se deve esquecer que se trata na. ocorrência de um es-
tado que leva diretamente ao patológico. Todavia, para se julgar a consti-
tuição psíquica do homem, a possibilidade destes fenômenos possui, ape-
sar de tudo, grande importância.

§ 8. Fenômenos Reflexivos.

Preliminares psicológicas. Não sou apenas consciente no sentido de' vi-


vência interior, mas também autoconsciência no sentido de voltado- para
mim (refletido). Na reflexão não só sei de mim, mas ajo sobre mini; não só
acontece algo em mim mas eu intenciono, desperto, plasmo- em mim um
processo. Posso, por assim dizer, introduzir em mim realidades, produzi-
las e conduzi-las.
O desenvolvimento do homem no indivíduo e na história não é só
transformação como em todo processo biológico, mas trabalho interior da
alma e do espírito consigo mesmo, um expor-se em oposições e alterações,
na dialética de todos os conteúdos.
Com isso, já não há vida psíquica puramente imediata. Com o pensar e
o querer principia a reflexão e, com a reflexão, a transformação mediada
por ela de toda a vivência imediata. Onde, porém, o imediato deixa de ser o
único determinante, aí não há apenas potenciação, desenvolvimento, ga-
nho de novas dimensões de experiência, mas também novos distúrbios ca-
racterísticos. Assim, a intenção deliberada não só pode, por assim dizer,
ajudar supletivamente a vida psíquica imediata, p. ex., os impulsos, mas
também desnorteá-los e suprimi-los.
Tais distúrbios se originam quando os mecanismos de realização- e in-
serção da reflexão na vida psíquica imediata não seguem seu curso- natu-
ral, para nós inteiramente impenetrável. É este curso que constitui, em
oposição a toda reflexão, a permanente naturalidade, inocência e simplici-
dade de nossa vida.
A vida psíquica do homem já não pode ser, como a do animal ou do
idiota, puramente imediata. Se sua vivência fosse puramente elementar ou
puramente reflexiva, apresentaria distúrbios.
O fato de os fenômenos vivenciados diretamente não permanecerem
simplesmente imediatos, mas inserirem-se no fluxo de transformações da
reflexão, este fato não suprime o caráter imediato da maioria deles, tal
como os. descrevemos em muitos aspectos. Este fato fundamental, no en-
tanto, nos leva a ter de prestar sempre atenção às transformações reflexi-
vas em nossa investigação. Sobretudo, porém, dele decorrem os novos fe-
nômenos psicopatológicos. que pretendemos descrever em três exemplos:
a intenção, inerente à reflexão, pode levar em primeiro lugar, à inautentici-
dade, produzir, com tonalidades históricas nos gastos e na atividade inte-
rior, uma aparência enganosa, vivenciada como realidade. Em segundo lu-
gar, pode desordenar os instintos até às suas funções orgânicas. Em ter-
ceiro lugar, pode conduzir a vivências psíquicas específicas, somente pos-
síveis em razão da reflexão e da vontade, os fenômenos compulsivos. Em
todos os três casos, a reflexão e a intenção são indispensáveis para o apa-
recimento destes fenômenos, que em si mesmos não são intencionados.
A importância inevitável da reflexão, quando expressa em conteúdos
será discutida em contextos intelectivos, pois só então é que ocorrem ma-
nifestações patológicas que aqui só serão discutidas fenomenologicamente.
Elas se tornam um momento das vicissitudes e só podem ser compreendi-
das em seu conteúdo a partir destas mesmas vicissitudes. Aqui nos ocu-
paremos, em primeiro lugar, apenas com fenômenos vivenciados, suas for-
mas e espécies, e não com seus conteúdos e sua importância.

a) Vida psíquica elementar e vida psíquica mediada pelo pensamento.


Nossa vida psíquica normal, quotidiana, desenvolve-se e se forma
numa de suas raízes de maneira reflexiva: é o que se percebe no contraste
com experiências elementares, psicóticas. Quando comparamos uma ideia
delirante verdadeira com um simples erro, uma cognição sensível com a
vivência “como se” algo assim fosse, um estado melancólico com a depres-
são nervosa resultante de um acontecimento inesperado, uma alucinação
verdadeira com a representação fantástica que se projeta ilusoriamente no
espaço, uma vivência de dissociação com o sentimento como se. “duas” al-
mas existissem no meu peito”, uma excitação instintiva com. um simples
desejo, o impulso de mover-se com a descarga motora de humor, vemos,
de um lado, dados elementares, vivências imediatas e irredutíveis, de ou-
tro, algo desenvolvido, evoluído, fundado em pensamento e interiorização,
algo relativamente secundário e pálido, por mais visível que seja o afeto do
momento, a paixão que aparece. O elementar não pode ser influenciado
psicologicamente enquanto o pode o que é mediado pelo pensamento. O
elemento é primariamente destituído de conteúdo e deve adquirir seus
conteúdos enquanto o pensamento parte dos conteúdos. O que se desen-
volveu e evoluiu compreensivelmente se contrapõe ao que é incompreensí-
vel geneticamente, ao que existe na alma por ter entrado por meio de
força. O puramente elementar, como- tal, se mostra como pertencente a
uma enfermidade.
Se, porém, o que se tornou compreensível for o sadio, como tal não é
em si inautêntico, não é enganador e sim a realidade não perturbada da
vida psíquica em desenvolvimento. O que é mediado, porém, pode vir a ser
um distúrbio. Por toda parte, penetrando contextos recônditos, de difícil
expressão, o que engana é mediado. Quando o imediato acaba, termina o
modo de vida pura da tranquilidade que se acha além da verdade e da
não-verdade (como se dá na vida do animal). Eu vivencio aquilo em que
não posso simplesmente confiar. Penso ser todo autêntico e o sou de pro-
pósito, faço-me já inautêntico na imitação. Nisso o homem pode alcançar,
tendo pendores histéricos, coisas extraordinárias. Uma vida psíquica intei-
ramente mediada, derivada, que não se funda em nenhuma natureza, por
isso de todo insegura, pode ser vivida num momento como completamente
elementar, incondicionada, arrebatadora. Um jovem esquizofrênico vivia
com uma mulher histérica, que via também muitas de suas alucinações e
sentia também muitas de suas angústias. Dela dizia o paciente: “Quando
alguém se contagia, é nervoso, quando vivencia primeiro, não é nervoso.
Comigo tudo isso é muito mais tranquilo e claro”.

b) Distúrbios dos instintos e das funções orgânicas.


A nossa vida depende constantemente, sobretudo no curso das fun-
ções orgânicas, da direção inconsciente dos instintos. Os instintos se de-
senvolvem pelo exercício e se readquirem e enriquecem com a atividade
originária consciente. Como isso se dá em seus detalhes e particularida-
des, é infinitamente complexo e nunca pode ser penetrado inteiramente. O
que é inato biologicamente e o que é adquirido historicamente constitui
unidade. A reflexão, necessária também para seu desenvolvimento e segu-
rança pode produzir distúrbios.
Funções, como urinar, andar, escrever, coabitar não podem ser -exer-
cidas. Surge uma impossibilidade tão catastrófica quanto ridícula para o
paciente. Ele procura saber, como fazê-lo, mas a atenção e o propósito só
pioram o distúrbio, quo aumenta o medo de não poder fazer.
Atenção angustiada com a saúde do corpo provoca preocupações hipo-
condríacas. Formam-se sintomas subjetivos com repercussões cm parte
objetivas, pois a reflexão sobre o corpo e as sensações corpóreas e as ex-
pectativas e os receios forçam a consciência do homem a uma vida que se
ocupa essencialmente com o corpo e o perde, ao querê-lo.

c) Fenômenos compulsivos.
1. Observações gerais sobre a compulsão psíquica.
A vivência de uma compulsão psíquica é um dado irredutível. Normal-
mente posso sentir-me impulsionado, constrangido, dominado, não só por
forças externas e outras pessoas, mas por minha própria vida psíquica.
Este estranho fato de me opor a mim mesmo, de querer seguir um im-
pulso e lutar contra ele, de querer e ao mesmo tempo não querer, devemos
imaginá-lo como o fato normal conhecido, a fim de compreender os fenô-
menos especiais que na psicopatologia descrevemos como ideias obsessi-
vas, impulsos compulsivos etc.
Normalmente, o eu vive sem ser coagido nas percepções que faz, na
angústia que sente; quer ele se entregue impulsivamente, quer escolha ar-
bitrariamente aquilo a que deve devotar sua atenção, que pretende fazer
objeto de seus afetos. Quando, porém, o eu deixa de ser senhor de sua es-
colha, quando perde a influência sobre o objeto que pretende tornar conte-
údo de sua consciência e, ao invés, o conteúdo da consciência continua
mesmo contra sua vontade; quando o eu luta contra o conteúdo, que não
pode afastar, embora o queira, é que este conteúdo adquire o caráter de
compulsão psíquica. Não se trata de compulsão externa no caso de um
acontecimento sobrevindo de repente polarizar sobre si nossa atenção;
trata-se de compulsão de dentro. Em lugar da consciência normal de diri-
gir (Lenkbewusstein de Kurt Schneider) a sucessão dos conteúdos a que
se devota, o homem possui a consciência da compulsão, de não poder des-
viar a consciência dos conteúdos.
Não falamos em compulsão psíquica quando, numa vivência impul-
siva, a atenção se volta ora para essa ora para outra direção ou surge ura
este ora aquele desejo. É que a compulsão psíquica só é possível no nível
de uma vida psíquica arbitrariamente comandada. Somente na medida em
que fenómenos psíquicos incluem uma vivência de atividade podem tor-
nar-se fenômenos compulsivos. Onde ocorrer uma direção arbitrária, onde
não houver nenhuma escolha, como em etapas primitivas de desenvolvi-
mento dos idiotas e da criança, não há também compulsão- psíquica.
Visto que todos, os fenômenos psíquicos podem apresentar o caráter
de compulsão, porquanto a atenção é independente da vontade, determi-
naram-se por vezes quase todos com a palavra compulsão, a fim de ressal-
tar-lhes aquele caráter. Assim quando o eu não é capaz, apesar de querer,
de desviar a atenção de uma alucinação, de uma sensação, de uma ideia
angustiante, fala-se em alucinações compulsivas, sensações compulsivas,
angustia compulsiva. O limite da compulsão é o limite de minha vontade.
Uma percepção só pode ter o caráter de compulsão enquanto não puder
desviar os órgãos dos. sentidos ou trancá-los ao» estímulo.
A compulsão discutida até agora se refere apenas à forma do apareci-
mento de conteúdos psíquicos. Os. conteúdos em si podem ter sentido e
corresponder à personalidade, p. ex., uma' mulher. É com toda sua perso-
nalidade e não só com o eu do momento que uma mulher vivência o medo
do parto, como seu medo, que é justificado; mas o vivencia com o caráter
de compulsão, uma vez que se esforça em vão por pensar em outras coi-
sas. Esta mulher, entretanto, pode também reconhecer que seu medo é in-
justificado; ela não se identifica com o medo, ao contrário o considera sem
fundamento e ridículo; não é o seu medo. Aqui a representação do medo é,
ao mesmo tempo, compulsiva e, em seu conteúdo, estranha, embora pos-
sível, ao eu. Em outros casos, o conteúdo de uma ideia pode ser absoluta-
mente absurdo; então, a característica de estranheza aparece drastica-
mente (alguém depois, de qualquer passeio tem medo de, sem notar, ter
arrancado os olhos de alguém com o guarda-chuva). O fato de ideias de
medo, impulsos etc. poderem ser vivenciados sem que o indivíduo possa
deixar de pensar neles, embora esteja inteiramente convencido, de que o
medo é infundado, o impulso é ilógico, o pensamento é impossível, é este
fato que se designa em sentido estrito e próprio com as expressões: ideias
obsessivas, impulsos obsessivos etc. Em sentido estrito, portanto, denomi-
nam- se fenômenos compulsivos ou obsessivos os fenômenos contra cuja
existência o sujeito em primeiro lugar se defende e cujo conteúdo lhe é em
segundo lugar, sem sentido, sem fundamento, incompreensível ou relati-
vamente incompreensível.
Se quisermos ter visão global dos fenômenos compulsivos, os fenôme-
nos compulsivos em sentido lato constituem o primeiro grupo. São os fe-
nômenos nos quais só o caráter de compulsão subjetiva em conteúdos in-
diferentes é a qualidade dominante (obsessão formal). Pode-se impor sem-
pre à consciência uma ideia, um pensamento, uma recordação, uma ques-
tão; o exemplo típico é a perseguição de melodias. Ou então podem-se im-
por não já determinados conteúdos mas linhas de pensamento, p. ex., a
obsessão de contar tudo, soletrar palavras, refletir sobre problemas inso-
lúveis e ridículos (obsessão de meditar) etc. O segundo grupo de fenôme-
nos compulsivos (em sentido estrito) aos quais se ajunta, como segunda
característica, a estranheza dos conteúdos, na maioria de grande carga
emocional, pode-se dividir em: 1) afetos compulsivos: sentimentos que se
apresentam sem motivo e- percebidos como estranhos, contra os quais o
sujeito se bate sem sucesso. 2) A obsessão de validade: trata-se da obses-
são de considerar verdadeira uma coisa cuja impossibilidade se percebe.
3) tendências compulsivas: são impulsos percebidos como absurdos e con-
trários à própria personalidade, p. ex., o impulso de matar o próprio filho.
Reunindo-se grupos inteiros destes impulsos que sempre retornam, fala-
se em manias compulsivas; assim, manias de exagerar das quais a mania
de pureza é um exemplo.
2. Obsessão de validade.
Ideias obsessivas se caracterizam pelo fato de alguém assentir a um
conteúdo significativo e, no entanto, sabe ser ele falso. Origina-se uma
porfia entre a convicção e o saber do contrário, que se distingue tanto da
dúvida como da convicção sólida. Um exemplo:
Ema A. já tinha atravessado várias fases de psicose afetiva. Sempre fi-
cou novamente. boa de tudo. Há algumas semanas, teve recaída. Tinha
saudade, andava triste. Estava no hospital. Aí brincaram com ela dois ho-
mens, que a tomaram pela cabeça e pelas axilas. Ela ou repeliu: “Não vou
fazer amor no hospital”. Depois, sobreveio-lhe o pensamento de que os ho-
mens poderiam ter feito algo nela e de que talvez estivesse grávida. Este
pensamento sem nenhum fundamento a dominava sempre mais. Referi-
mos suas afirmações: “Durante o dia todo, gira-me pela cabeça como tudo
aconteceu: eles não poderão ter sido tão insolentes”. “Às vezes me afasto
do assunto mas ele volta sempre”: Sempre seus pensamentos circulam em
torno desta mesma coisa. Acredita com toda certeza, que vai ter um filho
e, contudo, acrescenta logo: “Não sei ao certo, tenho sempre dúvidas”.
Conta o ocorrido à irmã. É gozada. Deve ir ao médico para tratar-se. Ela
resiste porque o médico vai rir dela por causa de sua ideia “idiota”. O mé-
dico não achou nada. Isto a tranquilizou por um dia. Mas já não acredi-
tava no médico. Talvez tivesse só querido animá-la. “Já não acredito em
ninguém”. Esperava não vir a menstruar. Ao sobrevir a menstruação, sen-
tiu-se no momento tranquila. Mas não estava segura nem convencida.
“Procuro esclarecer-me. Sento-me e reflito: Ah, tudo aquilo não é verdade,
não fui uma menina má. E logo penso que fui. Digo-me: Um belo dia será
assim”. “E o dia todo penso nessas coisas. Sempre a luta dentro de mim:
poderia ter sido assim e poderia ter sido também de outro modo, sempre a
mesma coisa”. Esta terrivelmente intranquila. Sempre pensa já estar fi-
cando gorda da gravidez, todo mundo já a vê grávida. “Sempre penso que
seria horrível, se acontecesse”. Às vezes ri — como ela mesmo sabe — alto
do absurdo que pensa. Interrogada quanto à doença nega ter estado do-
ente, mas logo a seguir diz: “Sei que passou”.
Resumindo, podemos constatar que os pensamentos dos pacientes, se
agrupam todos em torno de uma ideia fundamental, que contra a vontade
deles e sempre retorna à consciência (obsessão de pensamento) e cuja va-
lidade se impõe contra sua verdadeira convicção (obsessão de validade).
Deve-se distinguir a obsessão de validade de três outros fenômenos: da
ideia delirante, da ideia de supervaloração e da dúvida normal. Na ideia
delirante há um juízo emitido com inteira convicção e com a consciência
não só da validade, mas de absoluta segurança. Na obsessão de validade
não se pode falar em uma consciência de certeza. Na ideia de supervalora-
ção temos crença sólida de que a coisa é muito séria, a vida psíquica per-
manece normal e inalterada para o sujeito, enquanto n" obsessão o paci-
ente sente a obsessão como doença. Na dúvida, há um avaliar ponderado
de razões, que leva à indecisão, a qual é vivenciada como juízo psicologica-
mente uniforme. Na obsessão de validade, porém, existe convicção e ao
mesmo tempo saber do contrário. Pode-se descrever plasticamente a espe-
cificidade da obsessão de validade como a porfia de competência dos cam-
pos visuais no estereoscopio (Friedman). Existe disputa permanente entre
a consciência de validade e a consciência de falsidade. Ambas se empur-
ram mutuamente para um lado e para o outro e nenhuma vence. No juízo
da dúvida normal, não se vivencia nem verdade nem falsidade e sim no
ato unitário da dúvida a questão fica para o sujeito indecisa.
3. Tendencias e ações compulsivas.
As tendências, que surgem em nós, quando a ação delas resultante é
importante, levam em certas circunstâncias a uma luta de motivos. A de-
cisão, se dá de dois modos: ou com o sentimento de afirmação da persona-
lidade e a consciência da liberdade, ou com o sentimento de fracasso e a
consciência da derrota. Trata-se de fenômeno geral e normal. Quando, po-
rém, no último caso se ajunta a consciência de estranheza do impulso ins-
tintivo, a consciência, de que o impulso instintivo não corresponde à natu-
reza do sujeito, de que não tem sentido, é incompreensível, então fala-se
em ação compulsiva. Se não se chega a agir, mas a vencer o impulso es-
tranho, fala-se em tendência compulsiva. É muito comum que os pacien-
tes destes fenômenos obedeçam a impulsos obsessivos inofensivos (p. ex.,
empurrar cadeiras, pronunciar esconjuros), mas resistam com sucesso a
impulsos de consequências sérias, criminosas, p. ex., de assassinar uma
criança ou de suicidar-se (p. ex., o impulso de lançar-se num abismo).
As tendências compulsivas são em parte compreensíveis como ações
compulsivas secundárias, que procedem de outros fenômenos compulsi-
vos; por exemplo, uma pessoa que pensa com obsessão de validade ter
feito uma promessa impossível de ser cumprida, reclama um testemunho
escrito de que não é este o caso. Ações secundárias são também as inúme-
ras ações de proteção, oriundas de fenômenos compulsivos, tais como la-
var-se com medo de bacilos etc. As ações compulsivas se transformam em
ritual quando, para a defesa contra a desgraça, — magia contra magia —
têm de satisfazer uma exigência, cuja execução é tanto mais torturante
quanto mais irrealizável; pois se exige que a ação seja executada com exa-
tidão, que não seja perturbada por desvios e dela participe toda a alma:
qualquer possibilidade de erro levanta dúvidas sobre a eficácia, impõe,
para maior segurança, que a ação se estenda e, em casos de novas dúvi-
das, que se repita desde o início, de sorte a tornar-se impossível um resul-
tado, uma conclusão de toda a ação. Quando se obedece às tendências
compulsivas, aparece, como nas ações impulsivas, um sentimento vivo de
alívio. Se, porém, há resistência, aparecem violentos estados de angústia
ou outros, p. ex., descargas motoras. Para livrar-se da angústia, os paci-
entes têm de fazer ações sem sentido, embora inofensivas. A angústia ante
a angústia causa angústia e em círculo vicioso, e autopotencia o fenô-
meno.
4. Fobias.
De modo incontrolável, ataca o paciente um medo espantoso de situa-
ções e funções de todo naturais: p. ex., medo de espaços fechados, de
atravessar uma praça (agorafobia). Esta foi a fobia que primeiro se descre-
veu:
Quando o paciente deve atravessar uma praça ou se encontra numa
rua deserta diante de fachadas altas e largas, “apossa-se dele enorme sen-
timento de medo, verdadeiro medo de morrer, ligado a tremor generali-
zado, depressão no peito, palpitações, sensações de calafrio ou de calor
que sobe para a cabeça, transpiração, sensação de estar preso ao solo ou
de fraqueza das extremidades, com medo de cair.
SEÇÃO 2.
O TODO MOMENTÂNEO: O ESTADO DE CONSCIÊNCIA

Neste ponto, em que observamos, fenomenologicamente, o que é factu-


almente vivenciado e vivenciável, pela primeira vez enfrentamos a ideia da
totalidade, isto é, a ideia que tipifica o estado psíquico total, vivenciado no
momento.
Os fenômenos não se apresentam destacados; são raras as causas que
originam, apenas, certo fenômeno especial. Sempre há um todo do estado
de consciência, condicionado pelo qual vêm a ocorrer fenômenos, particu-
lares. Podemos apreendê-los, isolá-los, ajuntá-los em certos, agrupamen-
tos e classificações, o que nos é indispensável, visto ser só mediante- dis-
tinções precisas, mediante aspectos bem definidos, que podemos perceber
o que é um todo. Não há, porém, distinção que não contenha alguma defi-
ciência.
Quando falamos nos diversos achados fenomenológicos, o de que dis-
pomos é a pressuposição provisória de que o estado total da vida psíquica
na qual vemos esses achados seja sempre o mesmo, isto é, seja um estado
normal que chamamos pensado e claramente consciente. No entanto,
certo é que o estado total da vida psíquica se apresenta extremamente va-
riado. Os elementos fenomenológicos não são sempre, de modo algum, os
mesmos, mas possuem, tais como ocorrem, uma individualidade; daí re-
sulta que, de acordo com a configuração desse estado total e de todos os
demais elementos, é impossível analisar um caso particular pelo simples
desmembramento nesses elementos; necessária é, sim, a consideração
permanente do estado psíquico geral, porque, na vida psíquica, tudo com
tudo se relaciona, cada elemento colorindo-se pelo estado em que e pela
conexão com que se apresenta. Aí temos um fato que, invariavelmente, diz
respeito à distinção de conteúdo consciente (no mais amplo sentido, se-
gundo o qual os elementos até o momento descritos pertencem aos conte-
údos) e atividade consciente. Cada elemento particular, cada percepção
particular, cada sentimento é um para a consciência turva e outro para a
consciência clara. Quanto mais as qualidades gerais do estado de consci-
ência se distanciam daquilo a que estamos acostumados, mais difícil nos é
a visão adequada da sua totalidade e, bem assim, dos fenômenos individu-
ais que o acompanham. Ocorrendo turvação profunda da consciência, a
vida psíquica é difícil, se não absolutamente inacessível à nossa investiga-
ção fenomenológica.
Daí se deduz ser decisivamente importante para ajuizar todos os fenô-
menos subjetivos saber se se apresentam ou não em plena claridade da
consciência. As alucinações, pseudoalucinações, vivências delirantes e
ideias delirantes que aparecem, quando a consciência está plenamente
clara, já não são de referir-se, como sintoma parcial, a certa alteração
transitória da consciência; são, na realidade, sintoma de processos muito
mais profundos que se passam na vida psíquica. Só quando a consciência
está clara é que se pode, propriamente, falar em alucinações e ideias deli-
rantes autênticas.
Entre os estados de consciência alterada, há muitos que são normais e
que qualquer ser humano pode experimentar (por exemplo, o sono, o so-
nho); outros dependem de condições específicas. Se quisermos sentir, inti-
mamente, os estados psicóticos, poderemos tomar para comparação as
nossas próprias experiências (quando sonhamos, adormecemos, nos fati-
gamos). Vários psiquiatras se têm embriagado com venenos (mescalina,
haxixe etc.) para aprender, mediante essas “psicoses-modelo”, o que talvez
se relacione de perto com a vivência de certos psicóticos.
Preliminares Psicológicas.
Chamamos “consciência”, em primeiro lugar, a interioridade real da vi-
vência (em oposição à exterioridade do evento biológico pesquisável); em
segundo lugar, a dicotomia sujeito-objeto, ou seja, a circunstância de o
sujeito dirigir-se, intencionalmente, para objetos que percebe, imagina e
pensa; em terceiro lugar, o conhecimento da consciência de si mesmo. In-
consciente, correspondendo ao que aqui se diz, é, antes de mais nada,
aquilo que de modo algum se sente como existindo interiormente, que não
se vivencia em absoluto; e é também aquilo que não se conhece como ob-
jeto, que não se nota (que, por isso, no entanto, vem a ser, mais tarde,
percebido ou recordado); finalmente, é aquilo de que não se veio a saber.
O todo da vida psíquica momentânea é o que denominamos consciên-
cia, abrangendo aqueles três momentos. A interioridade de uma vivência
(e, concomitantemente, toda consciência) falta no desmaio, na narcose, no
sono profundo sem sonhos, no coma, na convulsão epilética, naqueles es-
tados chamamos, globalmente, perda da consciência. Se, todavia, existir
qualquer vivência interior, falamos em consciência, ainda mesmo que se
ache turvada a claridade do conhecimento objetivo, ainda mesmo que se
apresente enfraquecida ou sequer nem exista uma consciência de si. Para
haver consciência clara, é necessário que eu tenha, nitidamente, diante de
mim aquilo que penso; é necessário que saiba e queira o que faço; que o
que vivencio, minha vivência, esteja ligada ao meu eu; e que isso se man-
tenha relacionado pela memória. Se quisermos falar em fenômenos psíqui-
cos como fenômenos conscientes, é preciso que sejam, num instante ou
noutro, acessíveis à nossa observação, o que lhes permitirá subir à consci-
ência clara.
Podemos imaginar, figuradamente, a consciência como sendo o palco
no qual se desenrolam os diversos fenómenos psíquicos; ou como sendo o
meio era que se desenvolvem. Essa consciência, que é própria- a todo fe-
nómeno psíquico encarado no seu aspecto psíquico, tem modalidades
muito variáveis. Pela imagem que usamos, diremos que o palco é muito
estreito (estreitamento da consciência), ou que o meio parece: turvo (turva-
ção da consciência) etc.
1. Chama-se atenção a consciência clara dentro do estado de consciên-
cia global. A atenção, no entanto, é constituída por três fenómenos estrei-
tamente relacionados, se bem que conceitualmente distintos: 1) Atenção é
a vivência que consiste em voltar-se para um objeto; e, então, pode ser
preponderantemente ativa, no caso de, acompanhada, pela consciência,
originar-se de condições interiores; ou pode ser preponderantemente pas-
siva, se for vivenciada mais como atração ou fascinação por alguma coisa.
É nisso que reside a oposição entre atenção voluntaria e involuntária — 2)
Graus de atenção são os graus da claridade e da nitidez dos conteúdos
conscientes, implicando a seleção- de certos conteúdos, que Liepmann
chama, era sentido figurado, energia da atenção e que Lipps assinala, teo-
ricamente, como sendo uma força psíquica orientada para certo processo
psíquico. De hábito, essa claridade: e nitidez se alia às vivencias da aten-
ção que se volta para alguma coisa, ou que alguma coisa atrai, podendo,
no entanto, embora patologicamente, aparecer sem qualquer vivencia, va-
cilar e desaparecer. — 3) Também se dá o nome de atenção aos afetos que
os dois primeiros fenômenos produzem sobre o curso ulterior da vida psí-
quica. São os conteúdos conscientes que, predominantemente, dão o fun-
damento aos estímulos associativos ulteriores, permanecendo com espe-
cial facilidade na memória. Imagens condutoras, tarefas, imagens-alvo,
seja qual for a designação que se lhes queira dar, atuam de tal modo, se
atentamente consideradas no sentido dos dois primeiros conceitos, sobre
a eclosão de outras imagens que as associações pertinentes e úteis é que-
vêm a ser, automaticamente, selecionadas (tendências determinantes).
Assim, pois, nossa consciência momentânea não é uniforme de um
instante para outro. Em redor do ponto focal da consciência, um campo
visual, cada vez mais escuro, vai-se alargando para a periferia, apenas um
ponto existindo de claridade máxima; a partir daí o para todos os lados,
uma série de fenômenos menos conscientes se desenvolve, que quase
nunca sequer observamos e que, não obstante, formando um todo, uma
atmosfera, dão à consciência total a disposição, a significação, a potencia-
lidade. Partindo do centro claramente consciente, esboçam-se matizes que
vão até o indeterminado, sem limite preciso em relação ao inconsciente. A
observação planejada consegue investigar esses graus de consciência (=
graus de atenção, níveis de consciência).
2. O estado de consciência, no todo, ou seja nossa vida psíquica mo-
mentânea total, ainda pode apresentar graus diversos, passando pelos es-
tádios da turvação. Figuradamente, podemos considerar a consciência
uma onda, cuja crista é a consciência clara, nítida; crista que vai bai-
xando, à medida que a consciência diminui, até que a onda completa-
mente se aplaina com a perda daquela. Não há, entretanto, em conjunto,
simples gradatividade, e sim multiplicidade de alterações, a saber: estrei-
tamento do campo da consciência, diferenciação falha quanto- a sujeito e
objeto, além da dificuldade em trazer a simples percepção- emocional da
realidade circunstante à consciência clara de ideia, imagem e símbolo.
As alterações da consciência e os distúrbios do estado de consciência
não se apresentam uniformes, mas são condicionados por muito diversas
causas: abalo cerebral ou doença somática, que- levam a psicoses, ações
tóxicas, reações psíquicas anormais; e apresentam-se mesmo no indivíduo
sadio, durante o sono e o sonho, bem como no estado hipnótico; ao que
corresponde também a diversidade das maneiras por que ocorrem as alte-
rações da consciência. Em que se assemelham todas as alterações da
consciência? Apenas, na negatividade com que, relativamente ao estado
normal, variam a claridade, a continuidade e a vinculação com o eu. O es-
tado normal de consciência — que se realiza, ele próprio, de modo extre-
mamente variável, capaz de apresentar-se em graus muito diversos de cla-
ridade e compreensibilidade — focaliza-se, por assim dizer, num centro do
qual partem para todos os lados variações, modificações, ampliações e
perdas.
Técnicas de investigação: Há dois caminhos, como sempre acontece
quando se querem compreender os doentes, para esclarecer-se sobre os
eventos psíquicos que neles se passam. Ou tentamos, em diálogos e toda
sorte de maneiras que devam criar relação mental entre nós e os doentes,
partilhar, simultaneamente, da sua vida interior; ou procuramos levá-los a
que narrem, a posteriori, o que neles ocorre, utilizando descrições deles
próprios após a recuperação psíquica. Quanto mais se houver alterado a
totalidade do estado psíquico, mais se indicarão essas autonarrações ulte-
riores.
Quando a totalidade da vida psíquica do indivíduo se apresenta, de
modo geral, intata — indivíduo que, quanto ao mais, pode apresentar dis-
túrbios psíquicos extremos, ideias delirantes, alucinações, alteração da
personalidade — costumamos dizer que o doente está lúcido. O que cha-
mamos lucidez é o estado em que, apesar de faltar um afeto mais intenso,
os conteúdos conscientes possuem claridade e nitidez médias e em que o
curso da vida psíquica se apresenta ordenado e vinculado a imagens-alvo.
São sinais objetivos da lucidez a orientação (“a consciência presente da to-
talidade ordenada do seu mundo individual”), bem como a capacidade de
responder a perguntas e de prestar atenção. Esse estado de consciência é
o que mais se ajusta à compreensão recíproca. Se progredir a alteração do
estado psíquico total, mais difícil nos será entrar em contato com o do-
ente. Para haver relação mental entre nós e o paciente, é necessário haver,
da parte deste, concentrabilidade, que é como chamamos a capacidade de
ele reagir a perguntas e tarefas, de modo que a compreensão da tarefa
dada se deduza com segurança da maneira por que o doente reage. O indi-
víduo normal é concentrável para quaisquer tarefas que se lhe deem, ao
passo que a alteração do estado psíquico total diminui essa concentrabili-
dade. Os doentes deixam de reagir compreensivelmente a uma pergunta,
embora talvez ainda se consiga, de quando em quando, insistindo reitera-
damente, alguma reação. Para perguntas ligeiras, sem maior significação,
como aquelas relativas à pessoa, proveniência, lugar onde se encontram,
ainda se obtém concentração; tarefas mais importantes, indagações sobre
o que pensam já -não suscitam reação. Podem os doentes concentrar-se
ainda em estímulos ópticos, já não respondendo, entretanto, a estímulos
verbais. Na medida em que os pacientes se podem concentrar de uma ma-
neira ou de outra, temos a possibilidade de encontrar com algum êxito o
caminho que leva à compreensão imediata. Se, ao revés, apenas consigo
se ocupam, os escassos pontos em que nos é dado apoiar-nos só rara-
mente é que ajudam a ter visão convincente de suas vivências interiores.

§ 1. Atenção E Oscilações Da Consciência

a) Atenção.
É a atenção que condiciona a claridade da vivência. Se considerarmos
o segundo conceito, acima discutido, de atenção, vale dizer, a claridade e
precisão ou nitidez dos fenômenos psíquicos, o grau ou nível de consciên-
cia, perceberemos, sem mais delonga, que nos é indispensável, diante de
todo fenômeno psíquico apresentado pelos doentes, saber plenamente com
que atenção, isto é, em que nível da consciência ele foi vivenciado. Se o do-
ente nada diz a respeito, admitimos que o vivenciou com plena claridade e
precisão.
Da falta de atenção ou da atenção plena podem resultar alucinações.
Assim é, por exemplo, que muitas alucinações só são possíveis em estra-
tos inferiores da atenção, bastando, para desaparecerem, que se lhes dê
plena atenção. Queixam-se os doentes de “não poderem pegar as vozes”,
de “haver uma confusão infernal” (Binswanger). Outras alucinações —
principalmente, em psicoses que remitem — ainda são vivenciadas, ape-
nas, com a atenção funcionando ao máximo. É suficiente que a atenção se
distraia para elas desaparecerem. Se se rezar um padre-nosso, se se pres-
tar atenção a qualquer objeto exterior, desaparecem as vozes, desapare-
cem as pseudoalucinações visuais. ~ A importância do grau de atenção
que se dá a alucinações é particularmente notável no delírio alcoólico, tal
qual o investigou Bonhoeffer. Se quem examina o doente, prendendo-lhe a
atenção, a mantém em nível médio, as alucinações tornam-se raras; mas,
se a atenção diminui — e é ao que sempre tendem os doentes que se dei-
xam entregues a si mesmos — surgem ilusões maciças e falsas-percepções
cênicas. Se, inversamente, o médico concentra a atenção, com a maior
energia, em certo setor, especialmente o visual, inúmeras e diversas aluci-
nações aparecem nesse setor. — Relação notável é a que, por vezes, existe
entre o aparecimento dos fenômenos psíquicos “fabricados” e certo grau
profundo de consciência. Estando ocupado, o enfermo nada sente; mas, se
não estiver fazendo coisa alguma, aparecem ataques “fabricados” de verti-
gem, aperto na cabeça, acessos de raiva, zumbidos, que só com muitas
força de vontade, inclusive ameaçando com os punhos, consegue vencer.
Daí por que os doentes assim atormentados procuram companhia, con-
versa, ocupação, ou lançam mão de outros meios diversificativos (rezando,
recitando expressões sem sentido), a fim de livrar-se das “influências” que
as vozes exercem. Schreber chamou as ideias fabricadas que vivenciou,
quando desocupado, “ideias não pensadas”. A autonarração que se segue
exemplifica a dependência dos fenômenos esquizofrênicos relativamente à
atenção, bem como à ativação e à inibição voluntárias:
“E era como se me encontrasse, permanentemente, no meio de crimi-
nosos e demônios, que via e ouvia assim que, por pouco que fosse, vari-
asse minha atenção (tensa, no entanto) dos objetos sensorialmente per-
ceptíveis do meu perimundo. Nem sempre, todavia, conseguia alienar mi-
nha atenção desses demônios, isto é, atentar para as coisas sensorial-
mente perceptíveis. Toda tentativa nesse sentido equivalia, por assim di-
zer, ao esforço de erguer uma mó à altura de um morro. Por exemplo,
quando procurava ouvir a conversa de um amigo que incluísse mais de
umas tantas frases, sentia-me tão inquieto (por isso que formas ameaça-
doras se me antepunham) que tinha, sem demora, de me afastar, quer di-
zer, de mudar de lugar... De todo impossível era manter a atenção em
certo objeto; deslizava-me a mente, no mesmo instante, para outras regi-
ões, das quais os demônios contra mim se jogavam, por assim dizer, con-
vocados. Devo reconhecer que, de princípio, esse desvario, ou esse aban-
dono ocorria de minha própria vontade, eu o buscava... A partir de certo
momento, entretanto, já era independente de mim; parecia uma fraqueza,
irresistivelmente me sentia atraído... 'À noite, quando queria dormir, bas-
tava-me fechar os olhos para que o redemoinho se fizesse inevitável, ao
passo que, durante o dia, conseguia, em todo caso, aguentar-me; tinha a
impressão de estar rodando e, afinal, as formas surgiam. Daí ter de man-
ter-me ao máximo vigilante, de estar deitado; atento, porém à espera de
que o inimigo, horas passadas, se retraísse um pouco. Quando muito, era-
me dado não deixar, relaxando voluntariamente, que as coisas se passas-
sem". — De fase ulterior, relata o paciente “Sempre que queria, via essas
formas; por isso, sentia-me obrigado a proferir frases que me protegessem,
com o fim de perceber o novo eu que parecia esconder-se por trás de um
véu. Por exemplo: Eu sou... (assim procurando sentir o novo eu, não o an-
tigo); Eu sou o Absoluto (querendo, referir-me ao que era corpóreo, àquilo
em que me transformara; não pretendia ser, eu mesmo, Deus); “Eu sou o
espírito e não o corpo"; “Eu sou o único em tudo"; “Eu sou o que perma-
nece" (de referência às oscilações de minha vida corpórea e espiritual). Ou
então, só pronunciava palavras tais como “força”, “vida”.
Essas expressões defensivas tinham de sempre estar presentes; passa-
dos que foram dez anos, já eram como se o enfermo as sentisse; quer di-
zer, tinham criado sensações cumulativas, de modo que, a cada vez, não
havia necessidade de pensar nalguma coisa, novamente apenas ocorria
que, a certas oscilações, precisavam, como ainda hoje: precisam, empre-
gar-se mais ou menos modificadas. O paciente tinha, a capacidade de evo-
car as formas a qualquer momento que quisesse, de estudá-las, sem preci-
sar, contudo, propriamente, vê-las (após certos- distúrbios somáticos e
psíquicos, podiam reaparecer por si mesmas é. tornar-se, de novo, amea-
çadoras (Schwab).
b) Oscilações da consciência.
Em condições experimentais- e a qualquer momento, podemos consta-
tar em nós mesmos oscilações ligeiríssimas da consciência, sob a forma de
variação periódica da atenção (Wundt). Não há momento da vida psíquica
que; seja uniformemente o mesmo: pelo contrário, a todo instante, ela. va-
ria, ainda que de modo tênue. É o que com mais nitidez percebemos no
cansaço, e, mais nítido ainda, patologicamente, nas. oscilações periódicas
da consciência, que podem chegar, com redicivante regularidade, à sua
completa ausência. Tivemos um doente que apresentava esse fenômeno,
frequentemente, de um minuto para outro. Nos epilépticos, as oscilações
normais da consciência, se as medimos pela reação a estímulos sequer
perceptíveis, são. muito mais amplas que nos indivíduos sadios.
Distingam-se todas essas oscilações da consciência dos ataques de pe-
queno-mal, ausências etc., que, em forma de crises e sem regularidade al-
guma, vêm a interromper a consciência, com simultânea produção- de fe-
nômenos motores leves. Nem se confundam com as interrupções' da con-
centração e da reatividade que é comuníssimo observar em esquizofrêni-
cos (o chamado bloqueio). De repente, estes a nada mais respondem,
olham para diante, parecem não compreender coisa alguma. Minutos se
passam, ou segundos, e, tudo cessa, para recomeçar, daí a pouco. É fre-
quente constatar, posteriormente, que, enquanto se afiguravam inacessí-
veis, os doentes estavam muito atentos e capazes de lembrar-se do ocor-
rido. Essas interrupções sobrevêm sem motivo algum, manifestando o pro-
cesso mórbido, ou são de atribuir-se a complexos de tonalidade afetiva,
que, à inquirição, o médico descobre; ou ainda, pode-se compreendê-los
como distrações da atenção, causadas por vozes-- ou outras alucinações;
caso este no qual se observa haverem os pacientes também apreendido
mal as palavras do médico.
As oscilações da consciência que chegam à ausência completa, ocor-
rem em psicopatas e em muitos doentes agudos ou crônicos. Os próprios
doentes queixam-se de perderem os pensamentos, momentaneamente. “O
relógio para..” Janet descreve o fenômeno como “eclipse mentale”.
Eis de que forma um paciente experimental relata a embriaguez pelo
haxixe: “Era como se, a todo momento, depois de perder a. consciência,
estivesse voltando a mim, para, daí a pouco, novamente me precipitar...
No entanto, a alteração da consciência prosseguia. Já não eram mais au-
sências que vivenciava, e sim uma segunda consciência surgindo, dando a
impressão de outro tempo, um tempo diverso. O que, subjetivamente, pa-
recia era que duas sequências vivenciais, distantes uma da outra, se de-
senvolviam. À vivência subjetivamente inalterada da situação experimental
seguia-se aquela de um existir que se prolongava, sem diferenciar-se, e
também sem que fosse sequer possível, nessa segunda vivência, distinguir
do mundo vivenciado o meu próprio eu. E, entretanto, era absolutamente
vigil, e não sonhando, que vivenciava esse segundo estado de vacuidade.
Ainda pela consciência alternante que descrevo explica-se que era o tempo
que se apresentava supervalorado: afigurava-se-me haverem decorrido ho-
ras do começo da embriaguez. O curso das ideias era dificílimo e a cada
mudança, a consciência partia-se”.

c) Turvações da consciência.
Diminuições, turvações, estreitamentos da consciência apresentam-se,
das formas mais varia- -das, acompanhando ou resultando de vivências
particulares. Sentimos diminuição, por exemplo, tal qual vacuidade da
consciência, que podemos, a qualquer momento, interromper, quando co-
chilamos em longas viagens ferroviárias. Os afetos violentos, os estados -
ansiosos e também as melancolias profundas, tais como se veem em esta-
dos maníacos, dificultam muito a concentração, vale dizer, a possibilidade
de fixar-se nalguma coisa, de nalguma coisa refletir, de formar juízos^ Só
se obtêm respostas a perguntas simples após tentativas frequentes e vãs;
assim mesmo, só com esforço visível do paciente. Daí por que o conteúdo
das ideias delirantes mão se subordina a qualquer crítica, nem sofre pon-
deração o juízo acerca da realidade de possíveis alucinações. O afeto pre-
enche inteiramente a consciência, de modo que se compreende estarem
profundamente perturbados o juízo e a atitude. É o que ocorre, sobretudo,
nos estados depressivos, quando se acresce a inibição primária de todas
as funções. Os estados acima descritos são chamados de consciência
anormal, podendo levar, no último caso, à vacuidade permanente da cons-
ciência.

d) Aumentos da consciência.
Discute-se, neste particular, se o que há é aumento da consciência, vi-
gilância desusada ou claridade anormal, com fenômenos anormais cone-
xos. Para Kurt Schneider, o aumento da claridade da consciência é neces-
sário ao aparecimento de vários estados obsessivos. “É a claridade pecu-
liar que se apresenta marcada nos encefalíticos portadores de sintomas
obsessivos”. Doutra forma se mostram as numerosas autonarrações dos
estados de diminuição da consciência observados nos místicos, indicando
hipervigilância. Mais ainda: Weber e Jung descrevem, na aura que precede
os ataques epilépticos, uma claridade extraordinária da consciência, ape-
sar de esta apresentar- se estreitada. Um doente deles contou que “nesses
momentos, lhe eram as ideias absolutamente claras”, fazendo lembrar as
narrações de Dostoievski sobre a aura: ou seja, de que o cérebro, por as-
sim dizer, pegava fogo e de que decuplicava a sensação da vida e da cons-
ciência do eu.
Zutt descreve a hipervigilância e o avivamento do interesse, a abrevia-
ção do tempo de trabalho e reação, a conquista maciça de impressões ma-
teriais pela percepção, fenômenos que ocorrem todos após a administra-
ção de pervitin; mas indica, simultaneamente, a diminuição da capacidade
de concentrar-se, o amontoamento de ideias, a redução da capacidade de
coordenar impressões e de pensar com profundidade, além da falta de or-
dem dos interesses, vazios estes, e da impulsão a ocupar-se sem serie-
dade. Significa essa hipervigilância que a diferenciabilidade e a claridade
ambientes se acham diminuídas, porque tanto para o indivíduo cansado
quanto para o hipervigil o mundo desaparece. Daí construir Zutt uma po-
laridade da consciência, indo da sonolência à hipervigilância, de tal ma-
neira que o máximo de claridade sempre se acha no meio. Os fenômenos
que aqui se observam mostram, mais uma vez, a ambiguidade e a enigma-
ticidade daquilo que, em conjunto, chamamos estado de consciência.

§ 2. Sono E Hipnose

a) Sonho.
Hacker foi quem primeiro procurou, de modo sistemático, esclarecer,
fenomenologicamente, a vida onírica, recordando e anotando, durante
mais de um ano, logo ao despertar, a forma por que se lhe apresentavam
suas vivências oníricas. A peculiaridade da vida onírica revela-se nas três
direções seguintes: 1) Suprimem-se elementos sempre presentes na vida
psíquica vigil. Vale dizer: falta uma consciência real da personalidade, de
modo que se praticam atos inteiramente estranhos à personalidade vigil,
sem que, entretanto, no sonho, isso absolutamente se perceba; falta a re-
presentação do passado, como falta a consciência de relações por si mes-
mas evidentes das coisas que acontecem: por exemplo, quem sonha con-
versa com o médico que o disseca a respeito de seus músculos da pantur-
rilha, ou olha para a sua própria cavidade abdominal sem que isso lhe pa-
reça estranho. Ainda mais: faltam atos volitivos que contenham, de fato, a
consciência de que se quer alguma coisa; isso porque o que existe já não é
um sentimento de personalidade, mas apenas a consciência momentânea
do eu. Quando o sonho é de todo rudimentar, só restam, afinal, fragmen-
tos psíquicos destacados. Assim foi que Hacker, ao despertar, constatou,
certa feita, que no sonho só havia umas tantas palavras que não compre-
endera e que, no entanto, desperto, conseguia entender; pão. faltava só a
consciência da significação, mas também a consciência de que eram pala-
vras; faltava até a consciência de que um objeto se apresentava ao eu.
Apenas restava, de certo modo, um material sensorial, impossível de obje-
tificar. 2) Desaparece a relação entre os processos psíquicos, como se a
vida psíquica se dissolvesse. Relações formais, tendências volitivas interre-
lacionadas desfazem-se. Falta a representação do passado e do futuro;
aquele que sonha vive, simplesmente, no momento; uma cena dissolve a
outra e é frequente esquecer-se completamente a cena anterior. Viven-
ciam-se coisas contraditórias uma atrás da outra, ou até simultanea-
mente, sem surpresa e sem tendência determinante alguma resultar dos
elementos que a atenção apreende; pelo contrário, ideias fugidias da maior
heterogeneidade se sucedem na conformidade de princípios associativos
que mudam incessantemente. O que constitui a dissolução mais surpre-
endente das conexões reside em que se apreende aquilo que se contempla
sensorialmente mediante atos que não têm relação objetificante alguma.
Por exemplo, Hacker sonhou que procurava uma substância química para
analisar e que alguém lhe estendia o dedo-grande do pé, que para ele era,
indubitavelmente, uma substância química simples; ao despertar, pôde
recordar, mediante representação retrospectiva imediata, tanto essa con-
templação sensorial do dedo-grande quanto a consciência semântica da
substância química. A dissolução de relação entre um material sensorial e
a consciência semântica adequada (ato objetificante) acontece, comu-
mente, nos sonhos. 3) Novos elementos surgem, que são as imagens oníri-
cas e que, certamente, não se podem dizer sejam alucinações, ideias deli-
rantes, falsificações mnêmicas; são conteúdos, porém, dotados de uma vi-
vacidade que simples representações não teriam. As coisas novas avultam,
principalmente, nas identificações, fusões e alienações mais assombrosas.
É evidente que Hacker não sonhava as situações e fatos interrelaciona-
dos tais como outras pessoas os vivenciam no sonho, isto é, de maneira
extraordinariamente plástica. Era daqueles que esquecem inteiramente os
sonhos, quando não registram, assim que despertam, os fragmentos ainda
possíveis de captar. Há, todavia, outras pessoas que podem ser, o dia in-
teiro, perseguidas por um sonho, este se lhes mantendo vividamente pre-
sente. Em todo caso, supervaloram-se, em geral, no sonho, a plenitude
sensorial e a objetividade efetivamente vivenciada, conforme vemos do se-
guinte exemplo, no qual a pessoa que sonhou contemplou, observativa-
mente, sua vivência onírica:
“Um amigo meu, sem formação psicológica e que jamais mostrou inte-
resse algum pela psicologia, já pensara, umas quantas vezes, no fato de
parecer se verem, no sonho, coisas que, realmente, nunca se viram; e de,
talvez então, poder-se saber de coisas que a realidade nunca apresenta.
Daí resolver observar isso quando viesse a sonhar. Foi o que me contou,
um dia, quando me narrou seu último sonho: “Já devia ter adormecido
havia muito tempo, quanto notei que sonhava, sem que esse pensamento,
no entanto, me despertasse. Continuando a sonhar, pensei: Estou, real-
mente, sonhando, posso acordar agora mesmo, se quiser. Mas veio-me
logo à consciência o seguinte: Não, vou sonhar mais, quero ver como é que
as coisas se passam. A essa altura, tinha plena consciência de que, so-
nhando, podia ver alguma coisa que, realmente, nunca vira; ou não po-
dia? De fato, continuei a sonhar e quis pegar num livro para ver como
eram, exatamente, as diversas letras. Assim que pus os olhos no livro, as
letras toldaram-se e nada consegui ler. Peguei outros objetos para contem-
plá-los bem. Mas tudo que via era como se veem as coisas, habitualmente,
num aposento, sem impressão de pormenor. Quando queria distingui-las,
as particularidades toldavam-se até que, por fim, acordei e olhei o relógio:
eram 3 horas. Fiquei espantadíssimo de a gente poder sonhar e, mesmo
sonhando, observar o que se passa”.

b) Adormecer e despertar.
Quem adormece e desperta vivencia estados intermediários. Carl
Schneider descreve o que. se experimenta quando se adormece: as coisas
tornam-se vagas, imprecisas, desestruturadas; o que se pensa, se sente,
se percebe, se representa some-se, esvai-se, funde-se, confunde-se, po-
dendo-se experimentar, ao mesmo tempo, vivências inauditas, significados
profundos, representações do infinito. A atividade própria cede o lugar a
um estado de passividade e, por fim, embora a consciência se conserve
una, dissolve-se a consciência do eu. Por isto é que se chamam hipnagógi-
cas as alucinações que as pessoas sadias têm, frequentemente, ao ador-
mecer.
Dependentes do estado de consciência são características certas fal-
sas-percepções ao despertar: os doentes sentem que são por elas desper-
tados. Inteiramente despertos, elas desaparecem.
A senhorita M. sentia, à noite, nitidamente, que lhe puxavam fios de
cabelo, com toda a força, do lado esquerdo da nuca. Ao mesmo tempo,
instantaneamente, uma labareda erguia-se para desaparecer sem demora.
Logo despertava e, de todo desperta, nada mais notava, embora tivesse a
certeza absoluta de não ser sonho, mas real; dando-se o fato, despertava;
era entre sono e vigília, de maneira que, em plena vigília, tudo desapare-
cia. Com absoluta similitude, pareceu-lhe, duas vezes, aqui no sanatório,
à noite, que lhe tocavam os órgãos sexuais e que faziam movimentos cur-
tos e rápidos, como se a violentassem. Abrindo os olhos, porém, não via
ninguém. Sonho não era, mas forças perversas. Doutra vez, justamente
quando despertava, viu a colcha levantar-se”. — Eehrling relata: “À meia-
noite, acordei, de repente. Senti que uma forma feminina me abraçava e
que os cabelos dela me cobriam o rosto. Rapidamente, rapidamente
mesmo, exclamou: Tens de morrer! Ai, dissipou-se tudo”. Há muitos doen-
tes que, durante a mesma noite, despertam dessa forma, de maneira que,
de dia, estão cansados e abatidos. São muito diversos os conteúdos do
despertar, absolutamente subitâneos, chispantes.

c) Hipnose.
A hipnose é idêntica ao sono, tem com ele relação. No estado de hip-
nose, inicia-se uma atividade peculiar, a ponto de se verem quadros, de se
materializarem recordações. O que caracteriza esse estado não se compre-
ende por força de um princípio conhecido, mas apenas se pode delimitar
discriminativamente. Não há alteração psíquica compreensível, e sim um
evento vital específico relacionado com a sugestão atuante. Trata-se de fe-
nômeno primário da vida somatopsíquica que se apresenta tal qual as al-
terações do estado de consciência.
Os fatos que se passam nas alterações da consciência do sono, da hip-
nose, de certos estados histéricos se interrelacionam uns com os outros;
mas só podem compreender-se claramente através de sua diferenciação.

§ 3. Alterações Psicóticas Da Consciência

A alteração da consciência em psicoses agudas, delírios, estados cre-


pusculares é, sem dúvida, de tipo absolutamente diverso. Basta confron-
tar o torpor de certos processos orgânicos, a perplexidade oniroide das psi-
coses agudas, a confusão dos delírios, o. comportamento relativamente or-
denado e coerente que se observa em vários estados crepusculares para
ter a impressão de não poder tratar-se de um só tipo de distúrbio da cons-
ciência. Não podemos, contudo, por enquanto, estabelecer diferenciações
profundas. Apenas damos aqui os tipos do torpor.

a) Designamos por torpor os estados intermediários que vão da consciên-


cia à inconsciência.
Coisa nova alguma se vivencia; menos processos psíquicos é que são
vivenciados. As percepções mantêm-se tão obscuras quanto as recorda-
ções. São escassas as associações. Não se realizam atos mentais. Todos os
processos psíquicos apresentam-se lentificados e dificultados. Daí resulta
verem-se os doentes indiferentes, apáticos, sonolentos, sem espontanei-
dade alguma. Se lhes falamos, custamos a despertar-lhes a atenção e cus-
tamos também a fixá-la. Quase não se concentram, cansam-se muito fa-
cilmente; em casos puros, entretanto, apresentam-se orientados. Nota-se
inclinação a dormir sem sonhar e a resvalar para os estados denominados
coma e sopor, estado- dos quais não se consegue despertá-los.

b) Turvação da consciência:
É o que ocorre quando se realizam certos processos vívidos, ou quando
se dão falsas percepções, afetos, vivências fantásticas em parte interrelaci-
onadas; de tal modo, porém, que já não existe relação contínua do evento-
psíquico. Pelo contrário, a vida psíquica parece fragmentar-se e são, exclu-
sivamente, grupos particulares de vivências que ocorrem, sem relações re-
cíprocas; afinal, só subsistem atos particulares, inteiramente isolados; é
como se a consciência se tivesse partido. Evidentemente, os conteúdos se
tornam extremamente contraditórios (por exemplo: ideias delirantes opos-
tas que se alternam com celeridade) e nada sex recorda.

c) Alteração da consciência.
Chamam-se alterações da. consciência aqueles estados que, , em geral,
se distinguem bem nitidamente da vida psíquica normal e em que subsis-
tem conexões- relativamente ordenadas, de modo que, por vezes, nem se
percebem. A consciência restringe-se a certos setores, mantendo-se a ou-
tros inacessível; e só o que corresponde às tendências interiores é que o
indivíduo apreende. Eis de que forma Westphal descreveu essa, alteração
da consciência: “Há estados que' podem durar de minutos a horas e nos
quais a consciência se pode apresentar de tal modo perturbada que a pes-
soa se movimenta num círculo ideativo- aparentemente alienada de suas
condições normais; com base no< qual e nos sentimentos e estímulos voli-
tivos ao mesmo correspondentes pratica atos de todo estranhos ao conte-
údo habitual de sua ideação, sem relação com esta; sem que, entretanto,
se suprima, a capacidade da prática de atos coerentes e, até certo ponto,
lógicos”. A consciência que assim alterada se apresenta é, de um lado, di-
versa da consciência normal; de outro lado, está mnêmica- mente frag-
mentada. Não só estados crepusculares histéricos assumem configuração
semelhante, mas também são da mesma ordem certos fenômenos aparen-
temente elementares (por exemplo, os que se veem na epilepsia).

d) O estado de consciência que assinala a aura, antes dos ataques epilép-


ticos.
É alteração da consciência que se consuma com extraordinária rapi-
dez, representando transição para a inconsciência. Na aura, o mundo ex-
terior desaparece, predominam as. vivências interiores, a consciência es-
treita-se, embora possa, estreitada, atingir certo momento de máxima lu-
minosidade; a ansiedade, inicial pode, luminosa a capacidade ideativa,
evoluir para a beatitude e daí para o pavor insuportável, momento em que
sobrevêm a inconsciência e a queda do ataque.
Para todos os tipos de turvações psicóticas da consciência existe uma
série de sintomas objetivos, que, conforme o caso, são poucos aparentes
ou nem sequer se apresentam; a saber: 1. A alienação do mundo real: os
pacientes apreendem mal, concentram-se com dificuldade, procedem sem
consideração da situação real. 2. A desorientação estritamente relacionada
com o primeiro sintoma. 3. A perda da coerência e, daí, a incompreensibi-
lidade do comportamento. 4. A perturbação da percepção e da memória
que se notam nesse estado, além da dificuldade de refletir e da subse-
quente amnésia.

§ 4. As Formas Das Conexões Vivenciais Fantásticas

As alterações do estado de consciência servem, frequentemente, de


base a vivências patológicas, que se apresentam em forma de sonolência
de curta duração, a qualquer momento, ou em forma de psicoses que se
prolongam dias ou semanas; são estados notavelmente ricos em vivências
alucinatórias, já sem possibilidade de distinção entre alucinações verda-
deiras e pseudoalucinações, de um lado, e mera cognição, de outro lado.
Sonolentos, os pacientes percebem que alguém chega junto à cama, sen-
tem que as pessoas se aproximam, lhes tocam o pescoço ou as apalpam.
Às vezes, os pacientes vivem cenas intensas, veem paisagens, ajuntamen-
tos humanos, câmaras mortuárias, sepulturas. Não é raro perceberem a
alteração da consciência à medida que se processa. Notam que está come-
çando, de que modo os acomete e, finalmente, de que maneira voltam a si:
“Parece que tive um sonho..” Em casos leves, é possível aos doentes obser-
var como se desenvolve a alteração. Sentem-se estranhamente desorienta-
dos, percebem que não conseguem pensar, que têm de refletir para saber
onde estão, ou o que desejam fazer. Os histéricos podem, mais ou menos
voluntariamente, passar de uma espécie de sonho acordado para o estado
crepuscular.
Os conteúdos irreais dessas vivências psicóticas interrelacionam- se
uns com os outros, isto é, constroem, por assim dizer, incessantemente,
um mundo e um destino. É como se essas relações explodissem a partir
da vivência real cotidiana, como se eventos transitórios se limitassem a
certa época temporalmente restrita da existência (dias, meses, anos). Va-
mos dar um golpe de vista às maneiras por que se desenvolvem essas vi-
vências diversas. Para compreender com nitidez o caso particular em sua
peculiaridade, temos de perceber certas distinções fundamentais de cará-
ter descritivo:
1. Algumas vivências realizam-se durante a turvação da consciência;
outras, mais raras, preenchem a psique quando se altera a consciência,
sem. excluir a vigilância plena. Naquelas, percebe- se a turvação da cons-
ciência pela atenuação geral do grau de atividade psíquica, pelo afrouxa-
mento das conexões, pela falta de nitidez mnêmica; as vivências do estado
vigil, no entanto, são luminosas, tão penetrantemente interrelacionadas
umas com as outras que a vivência psicótica se assemelha à vivência real;
é extrema a nitidez com que se recordam. Também se recordam com niti-
dez vivências incoerentes do estado vigil.
2. Algumas formas vivenciais realizam-se em estado de total alienação
do ambiente real, a ponto de a psique estar noutro mundo, sem relação al-
guma com a situação de fato. Outras vivências se emaranham, de modo
notável, com a percepção real, com o ambiente verdadeiro; este passa a
ser interpretado através de mecanismos que correspondem à vivência psi-
cótica, isto é, o paciente apreende-o de modo deformativo, correspondente
à vivência psicótica, com significação toda outra.
3. Conforme seja o comportamento subjetivo do paciente de referência
à sua vivência psicótica, podem-se estabelecer dois extremos: num, o paci-
ente é, por assim dizer, espectador dos conteúdos, sem participação al-
guma, passivo, ou até indiferente; clarividente, enfrenta, tranquilamente,
os conteúdos, formados estes por visões fantásticas, ou configurações
mais ricas que à sua frente passam em todos os setores sensoriais; noutro
extremo, o doente mostra-se ativamente participante, quer dizer, coloca-se
no centro dos acontecimentos, sujeito a afetos da maior vivacidade, que o
atormentam, ou o extasiam; que o precipitam da beatitude celestial às
profundezas do inferno; que o fazem ora Messias salvador do mundo, ora
demônio abjeto. As primeiras vivências têm caráter preponderantemente
cênico, ao passo que as segundas são mais dramáticas. Como diria Nietzs-
che, aquelas formam objetos claros, mais oníricos, ao passo que estas se
apresentam, sobretudo, com o aspecto dê embriaguez.
4. A conexão dos modos particulares pelos quais as vivências se reali-
zam oscila entre falsas-percepções, cognições absolutamente destacadas
etc. (a propósito das quais não falaremos em vivências no sentido que este
parágrafo lhes dá), e um acontecer contínuo, progressivo, com fatos de lo-
calização temporal firme, assinalando etapas e pontos cruciais das biogra-
fias psicóticas. Nos casos, raros, que se desenvolvem em toda a plenitude,
pode-se mesmo acompanhar mais longamente uma série de fases em que
o paciente é levado por uma alienação de certo modo clara, tal qual Dante
no inferno, purgatório 'e paraíso. A conexão ou se encontra, principal-
mente, nos conteúdos vivenciais concretos, racionais, ou está, de preferên-
cia, no estado de ânimo subjetivo, do tipo da embriaguez. Ou se observam
vivências situacionais destacadas, formando séries confusas, ou nota-se
que, durante algum tempo, uma cena resulta da outra. Quase sempre o
doente vive com todos os sentidos em sua experiência psicótica, que de
todo o absorve; doutras feitas, um sentido, sobretudo o da visão, é que é
preferido.
5. Os conteúdos ou são sensorialmente plenos e ricos em sua textura,
ou, malgrado a intensidade da vivência, se percebem, apenas, em forma
de percepções e pálidas imagens. Por outro lado, os conteúdos, conforme
sua significação, são aqueles naturais, quer dizer, correspondendo às vi-
vências cotidianas (tal qual o delirante, por exemplo, vivencia o seu ofício e
as respectivas inconveniências possíveis); ou são fantásticos, inteiramente
impossíveis de ocorrerem na realidade. O doente acha-se no centro dos
acontecimentos mundiais, com o eixo do universo junto de si; há violentas
transformações cósmicas relacionadas com seu destino; competem- lhe ta-
refas pesadíssimas; é dele que tudo depende; a seu poder enorme tudo é
acessível, até o impossível.
6. As vivências podem ser plenamente unitárias, quando há para o do-
ente uma realidade apenas, isto é, a psicótica; mas também há vivências
de tipo menos fantástico, vivendo o enfermo, simultaneamente, em dois
mundos, o real, que pode apreender e ajuizar com exatidão, mais o psicó-
tico. Em sua dupla orientação, apesar da vivência cósmica, consegue ele
mover-se, até certo ponto corretamente, na realidade. Dá-se, porém, que,
para ele, a realidade psicótica é a verdadeira realidade; para ele, o mundo
real transformou-se em aparência, que, todavia, como tal não considera,
embora saiba que certas pessoas são médicos, que ele, o paciente, está
numa célula, que o mundo aparente o considera louco por influências reli-
giosas etc. É frequente verem-se psicóticos agudos que, temporariamente,
se acham inteiramente cheios da vivência psicótica, esquecidos de quem
eram, de onde estão. Fatos radicais, porém, impressões profundas (o
transporte para o hospital, a visita de parentes) costumam libertá-los. É
também possível chamar o doente, momentaneamente, à verdadeira reali-
dade com apelos enérgicos. Mas a dupla orientação não tarda a reapare-
cer, tudo quanto o paciente faz tem dupla motivação, ele próprio é duplo e
múltiplo. Certo enfermo diz: “Pensei, ao mesmo tempo, numa quantidade
enorme de coisas provenientes de várias esferas”. É típico o modo pelo
qual o doente entra em choque com a realidade, quando vivencia um pro-
cesso supersensorial que, afinal, também vem alterar alguma coisa da rea-
lidade; a realidade é que tem de desaparecer etc. Dá-se, então, “a vivência
da catástrofe que falha”, com indiferença subsequente que não tarda a ser
substituída por novos conteúdos.
Tais discriminações são de caráter absolutamente geral, só se apresen-
tando como pontos de vista para a análise. Não temos classificação objeti-
vamente fundamentada das formas vivenciais psicóticas. O mais que po-
demos fazer é destacar de sua imensa multiplicidade alguns tipos concre-
tos. Daí por que nos limitamos a simples descrições1.
1. O sonho acordado (day-dream) ocorre também em portadores de ou-
tras anormalidades: o encarcerado fantasia situações nas quais é fabulo-
samente rico, constrói palácios, funda cidades; e de tal modo fantasia que
já não tem mais consciência da realidade, nem da irrealidade. Desenha
grandes projetos em papel de embrulho e vivencia com a máxima intensi-
dade a maneira por que, nessas novas situações, há de comportar-se, mo-
vimentar-se, fazer os outros felizes. Essas fantasias podem começar, de
um momento para outro, por certo incidente casual e prosseguir com a
consciência de que tudo é pura realidade. O indivíduo faz compras vulto-
sas, que jamais poderá pagar, para uma amante imaginária, desempenha
funções importantes de inspetor escolar e porta-se, durante a visita aos
colégios, na base de sua convicção da realidade, com tamanha naturali-
dade que não chama a atenção até que uma contradição das mais elemen-
tares em relação às condições reais põe termo, repentinamente, à reali-
dade fantástica (pseudologia fantástica). Os histéricos podem apresentar
certa alteração da consciência no curso de fantasias vigis dessa ordem, vi-
vendo, então, os doentes em situações imaginárias que lhes parecem, alu-
cinados como estão, nítidas. Mais ou menos da mesma ordem são aquelas
vivências fantásticas, relatadas por Hoepffner, que aparecem, ocasional-
mente, em doenças febris somáticas.
2. As vivências deliriosas. sobretudo no delírio alcoólico, caracterizam-
se pela intensa vivacidade sensorial, pela profundidade do nível psíquico,
daí resultando incoerência. São de conteúdo absolutamente natural e, até
certo ponto, possível, correspondente à realidade costumeira; quase sem-
pre têm tonalidade ansiosa, consistindo em perseguições, maus tratos e
outras vivências variadamente penosas e repulsivas.
3. Têm característica peculiar as vivências ilusórias, repletas de beati-
tude infinita, que se apoderam de pessoas embriagadas pelo haxixe ou
pelo ópio.
Baudelaire relata a narração feita por uma mulher que, tendo tomado
haxixe, se viu num aposento todo atapetado, elegantemente mobiliado (de
ouro o teto, com gradeado formando urna rede geométrica). Brilhante a
lua, eis o que ela contou: “A princípio, fiquei muito surpresa, ao ver que
vastas planícies a meus olhos se expandiam, para todos os lados, com rios
claros, paisagens verdejantes a se espalharem nas águas tranquilas (ima-
gine-se o efeito do atapetamento, refletido pelos espelhos). Quando ergui
os olhos, vi que um sol descia, tal qual metal frio em fusão. Era o ouro do
teto. No entanto, a rede gradeada me dava a impressão de estar numa es-
pécie de jaula, ou numa casa aberta para todos os lados. Só as grades de
meu suntuoso cárcere me separavam dessas maravilhas. Comecei rindo
de minha ilusão; apesar do que, quanto mais contemplava, tanto mais
forte se fazia o encantamento, mais vivo, mais claro, mais despoticamente
real. A ideia de estar enclausurada apossou-se-me da mente, sem no en-
tanto — confesso — atenuar em demasia o variado prazer que me dava o
espetáculo à minha volta. Julgava-me encarcerada por muito tempo; ou
mesmo, por milhares de anos, trancada nessa jaula magnífica, cercada de
paisagens feéricas, ante horizontes mágicos. E pus-me u sonhar: A bel-
dade que dorme no bosque tem uma culpa a expiar... Sonhando com a li-
bertação futura, percebia que em torno de mim aves tropicais voavam,
cintilantes, e que aos ouvidos me soavam as sinetas amarradas ao pes-
coço dos cavalos, a correrem, longinquamente, pelas grandes estradas, até
se somar numa só ideia o que via e o que escutava; daí atribuir às aves
aqueles clangores miríficos, convencida de que cantavam com bicos metá-
licos. Era evidente que palravam a meu respeito, contentes de ver-me
presa. Macacos pulavam-me em redor, enquanto sátiros folgavam aos sal-
tos, todos parecendo divertir-se com a prisioneira refestelada, condenada à
imobilidade. As diversas divindades mitológicas, entretanto, fitavam-me
sorrindo amistosamente, como se me quisessem animar a suportar paci-
ente essa fantasmagoria; fulgiam as pupilas de todas elas, escancaradas,
dando a impressão de querer tocar-se umas as outras... Confesso, porém,
que o deleite de contemplar essas formas, essas cores faiscantes, de imagi-
nar-me no centro de fantástico drama me absorvia quase inteiramente as
ideias... Semelhantes estado durou muito, muito mesmo... Durou até o
nascer do dia? Não sei. Foi de repente que vi o sol entrar em meu quarto.
Fiquei espantadíssima e, malgrado todos os esforços de memória que con-
segui fazer, me foi impossível saber se dormira, ou se, passiva, me entre-
gara a mágica insônia. Há pouco, era noite; agora, era dia. Mas, nesse ín-
terim, tinha vivido muito tempo, oh! muitíssimo... Perdera a consciência
do tempo, ou, antes, da medida do tempo e só pela plenitude de meus
pensamentos é que podia medir quanto durara a noite inteira. Longa, em-
bora, se me afigurasse, a impressão que tinha era de não haver excedido
alguns segundos; ao mesmo tempo, sentia-a como se não coubesse na
eternidade.
A autonarração que Serko faz da embriaguez pela mescalina contém,
simultaneamente, a visão de cores acumuladas, alucinações ópticas em
campos visuais diversos, sem relação com o espaço objetivo, alucinações
óticas, distúrbios da percepção temporal, sentimento de beatitude, humor
mágico, miraculoso, resultante da visão colorida, das alucinações e do dis-
túrbio crono-perceptivo; apesar de tudo, capacidade plena de julgar e juízo
exato da realidade.
4. As vivências das psicoses esquizofrênicas agudas excedem todas as
formas vivenciais até aqui enumeradas pela continuidade, riqueza, signifi-
cação dos conteúdos para a vida ulterior da personalidade; vivências estas
das quais destacamos dois casos, sem sequer aproximativamente esgotar
a abundância desses processos.
aa) Descontínua, porém de significação absolutamente misteriosa, de
enigmaticidade total, desprovida de conteúdos determinantemente formu-
lados que se possam apreender, é a vivência esquizofrênica frequente que
se observa no início dos processos.
A Sra. Kolb já algum tempo vinha tendo umas ideias delirantes relacio-
nadas com sua profissão de costureira, mas foi em setembro que começou
a sentir-se diferente. “Parece que estou com um véu; acho que, dentro em
breve, vou saber alguma coisa que ainda não sei o que é”. Pensava, sem
razão alguma, que certo Sr. A. queria casar-se com ela. A todo momento,
tinha impressão de que, na oficina onde trabalhava, algo se fazia de que
não devia saber, nem para quem se fazia; talvez fosse um enxoval para ela
própria. Cada vez mais se fortalecia essa impressão. No domingo, vindo
para casa, pareceu-lhe que alguém estivera no quarto, desarrumando
uma quantidade de coisas. Segunda-feira, pela manhã, o trabalho não es-
tava dando certo-; era como se a cortadora só lhe desse ordens erradas.'
Todo o mundo estava “esquisito”, mas por que? Não sabia; tudo a espan-
tava. Ficou muito contente, quando o irmão veio buscá-la; mas estranhou
que todos a cumprimentassem tão cordialmente. Na rua, achou esquisito
ver tanta gente passando. Chegando a casa, apoderou-se dela, de repente,
compulsivamente, esta ideia — Deves ficar parada, bem firme, deves fazer
uma coisa qualquer especial. Por isso, não se mexeu, apesar de a cunhada
chamá-la para comer e dizer-lhe que se acalmasse, que não falasse tanto.
Finalmente, à noite, foi levada para o hospital, o que lhe pareceu uma
brincadeira, se bem que se assustasse ao ver a janela gradeada. Aplica-
ram-lhe uma injeção; evidentemente porque estava agitada. No quarto que
lhe deram, uma porção de moças ficou olhando para ela, piscando repeti-
damente por uma janelinha que havia na porta, sendo que uma gritou do
teto; Ordinária! Apesar da noite escura, divisou vultos brancos no jardim.
Ficou em pé a noite inteira, porque tinha a impressão de haver feito, de
início, o seguinte juramento — Meu Deus, não me deitarei. Terça-feira, leu
a Bíblia. No correr da tarde, viu gente andando pelo jardim como que se-
guindo um enterro. Pensou que fosse um espetáculo de “Guilherme Tell”
com seu amante (de fato, meses atrás, vira representar “Guilherme Tell.)
Afinal, também ela tomava parte na representação. A enfermeira acenava
às pessoas que estavam no pátio, a fim de acabar o espetáculo. Aí, viu um
fogão no teto, além de uma cruz achatada. A luz da lâmpada parecia-lhe
maravilhosa, com duas estrelas no meio. Parecia-lhe estar no céu e espan-
tava-se da força com que cantava, porque até então, jamais cantara. Teve
a ideia de contar os pontinhos da janela e sentiu-se obrigada por outra
força a contar até 12.000. Não parava de ouvir batidas, de imaginar que
alguma coisa estava para acontecer. As letras da Bíblia tornavam-se azuis,
o que lhe fazia. crer estivessem querendo experimentar-lhe a fé, ou forçá-
la a converter-se ao catolicismo. Ao cair da noite, o sol virou sangue. Pas-
sou a noite em pé, à janela, até lhe virem arrepios. Mas tinha de ficar em
pé, por causa da sua crença, que lhe queriam tirar. Viu, na rua, uma mão
que se movia, era o diabo. Nessa posição, sentiu uma força vindo da di-
reita e de. cima, fazendo-a olhar sempre à esquerda, sempre com o “pres-
sentimento” de ser à direita que a força estava; era daí que vinha mais ca-
lor'; de cima uma coisa lhe pesava no peito. Era uma força espiritual, não
corpórea. Sentia-se oprimida, sem poder voltar-se nem para a direita, nem
para a esquerda; nem olhar para o alto. — Muitas outras, coisas estra-
nhas e misteriosas aconteceram, até tudo desaparecer, daí a oito dias.
bb) Muito mais rica é a vivência que se segue. Tomam-se vivos o novo
significado de toda percepção e ideação, a beatitude vivenciada, o senti-
mento de força, as conexões mágicas, a tensão extraordinária que abrange
vastos acontecimentos, apesar da incapacidade de reter uma ideia, até
que, por fim, o doente entre em plena confusão.
A paciente (Engelken) tivera relações amorosas com Wilhelm X. Depois
de entrar, aos poucos, através de fases de depressão e mania, em sua psi-
cose, é da seguinte forma que narra o curso ulterior, uma vez recuperada
da fase aguda: “Chorava horrivelmente, estava inteiramente fora de mim,
chamava pessoas distantes que me eram caras. Tinha a impressão de que
tudo se juntara à minha volta. Daí a um minuto, porém, tudo esquecia e
uma alegria luminosa se apoderava de mim. O mundo inteiro girava-me
na cabeça. Misturava mortos e vivos, eu estava no meio, em redor de mim
tudo rodava. Ouvia as vozes de pessoas falecidas com absoluta clareza;
entre elas, a de Wilhelm X. Sentia prazer indescritível em pensar que ia
dar a minha mãe outro Wilhelm, um Wilhelm vivo (perdi um irmão com
este nome)... Mas o mistério se fazia por demais difícil, por demais con-
fuso, sentia-me horrivelmente nervosa, ansiava por descanso. . Meu irmão
me aparecia, tal qual uma estátua de mármore, parecendo ignorar total-
mente o que me enchia a mente... A melhor descrição que posso dar de
meu estado é compará-lo com a embriaguez causada pela champanha...
Via outras figuras, uma senhora belíssima... Tinha a impressão de que, do
mesmo modo que Joana d’Arc, me era necessário lutar por meu amante,
conquistá-lo. Exausta, sentia, no entanto, uma força sobre-humana. Nem
três pessoas bastavam para me dominar; às vezes, achava que ele lutava
de outra forma, procedia de outra forma. Não queria abandonar-me à in-
dolência: fechara-se o círculo de ação de minhas forças mentais e, por
isso, queria usar das físicas. Devo ter chorado muito, mas não me lembro
de nada disso. Sentia necessidade de fazer o mundo inteiro feliz com meu
próprio sacrifício, necessidade de dissolver quaisquer desentendimentos.
Havia uma profecia marcando o ano de 1832 e eu é que devia assiná-lo.
Se todas as criaturas sentissem como eu, o mundo seria um paraíso. Con-
siderava-me a mim mesma um segundo Salvador; pelo meu amor, tinha
de fazer o mundo venturoso, importante; tinha de orar pelos pecadores, de
curar os, doentes, ressuscitar os mortos, assim enxugando lágrimas; pre-
cisava realizar essa obra e só depois é que, tendo-a realizado, podia ser fe-
liz. Chamava, tanto quanto mo permitissem minhas forças, pelos mortos.
Parecia-me estar numa cripta, no meio de múmias, que havia de ressusci-
tar com minha voz. A imagem do Redentor fundia-se com a dele e tão
pura, tão meiga me surgia; daí a pouco, no entanto, -era o assassino de
meu pai, um transtornado, pelo qual eu tinha de rezar. Trabalhava horri-
velmente e só cantando é que encontrava alívio... Bastava pôr lógica e or-
dem numa ideia, outra me vinha ao espírito. Meu cabelo era como que o
vínculo entre nós. Se lho atirasse, minha voz interior me inspirava novos
pensamentos, com os quais tinha de trabalhar. Qualquer banalidade para
mim era de grande importância... Meu último dever escolar em francês
fora Napoléon en Egypte”. Tudo quanto aprendera, ouvira, lera era como
se houvesse sido vivido. Napoleão, segundo achava, voltara do Egito, não
morrera de câncer do estômago, eu era a donzela maravilhosa que se lem-
brava dele; também meu pai, seu grande admirador, voltava com ele. As-
sim se passavam dias e noites até me internarem aqui (no hospital)
Atormentei minhas acompanhantes horrivelmente, porque não me fa-
ziam as vontades e isso eu não suportava. Rasgava tudo, para vir ao en-
contro dele sem ornamento algum. Também rasgava as fitas porque costu-
mam chamá-las “borboletas” e já não me agradava bater asas, sentir-me
presa. De repente, pus-me a sentir-me aqui como se estivesse no meio de
estranhos, mas o Senhor (dirigindo-se ao médico) me apareceu tal qual
um bom gênio familiar, no qual podia confiar como se fosse um irmão,
sem medo... Aqui, fiquei pensando, decidir-se-á minha sorte. As pessoas
que via pareciam-me maravilhosas, a casa era uma mansão de fadas...
Mas o folguedo estava durando em demasia e tudo ao meu redor me pare-
ceu frio, sem alma, obrigando-me a procurar a claridade... Com Wilhelm
X. sempre estive, porém, em contato; da janela ou da porta fazia sinais, di-
zendo-me o que tinha de fazer, fortalecendo-me a paciência; também fa-
lava comigo uma senhora de R., de quem gosto muito; eu respondia, fir-
memente convencida de que ela estava aqui. Não posso dizer tudo quanto
em mim se passou, mas era uma vida intensa, animada; considero esse
tempo o maia feliz da minha existência. Como foi que, depois disso, meu
estado evoluiu, o Senhor mesmo observou. Nem sei mesmo dizer como foi
que consegui desfazer-me desse lindo sonho, que me parecia tão impor-
tante para mim... Não sei dizer de que maneira consegui recuperar a razão
completamente... A doença deixou-me n’alma muitos vestígios, certo desâ-
nimo, não posso negar. Posso afirmar que os nervos me ficaram um tanto
esgotados, não tenho prazer em estar com as pessoas, não tenho estímulo,
prazer, disposição para realizar coisa alguma. As recordações que tenho
de meu estado são por demais intensas para eu não perceber o que res-
tou”.
1.2.
OS RENDIMENTOS OBJETIVOS DA VIDA PSÍQUICA
(PSICOLOGIA DO RENDIMENTO)

a) Psicologia subjetiva e objetiva.


No primeiro capítulo, ocupamo-nos com aquilo que é psiquicamente vi-
venciado, sem indagar dos fatos sensorialmente perceptíveis, objetivos, pe-
los quais nos é dado acesso, em cada caso particular, à psique “de den-
tro”; vamos, agora, observá-la, por assim dizer, “de fora”; vale dizer, após a
psicologia subjetiva, vem a psicologia objetiva.
Os fenômenos objetivos da vida psíquica que se exteriorizam são avali-
ados, em primeiro lugar, como rendimentos (psicologia do rendimento); em
segundo lugar, constatados e registrados como fenômenos somáticos, con-
comitantes e consecutivos (somatopsicologia); finalmente, entendidos
como fatos significativos do corpo e seus movimentos, conforme se expri-
mem, psiquicamente (psicologia da expressão); fatos do existir' e do com-
portar-se no mundo (psicologia do mundo) e das produções mentais (psi-
cologia da obra). Mas é sempre por métodos determinados que podemos
captar um setor especial de fatos psiquicamente relevantes.
O tema deste capítulo são os rendimentos da vida psíquica. 'Em aten-
ção à clareza metodológica, cumpre firmar o sentido de “rendimento”, a
fim de obter um fio condutor que permita apreender as objetividades que
temos em vista. O rendimento existe ¡pela medida de uma generalidade e
esta pode estar na exatidão da percepção (por exemplo, a percepção espa-
cial e temporal correta) ou da apreensão, da memória, da fala, do pensa-
mento, etc.; como pode residir na maneira por que se percebe (digamos,
ver, sobretudo, formas ou cores); mais ainda, pode constituir um padrão
quantitativo-, quantidade de produção laborativa, grau de cansaço, exten-
são mnêmica.

b) O esquema neurológico básico do arco reflexo e o esquema psicoló-


gico básico de tarefa e rendimento.
O esquema em que a neurologia, que há muito, se baseia consiste na
ideia do organismo, ao qual são trazidos estímulos, a estes ele reage, após
elaboração interior (processo excitatório), mediante movimentos, ou outros
fenômenos objetivamente perceptíveis. Esse processo excitatório fisiológico
é fenômeno de infinita complexidade, levando a pensar, particularmente,
em reflexos que uns a outros se acrescentam, num sistema de funções
que se interpenetram desde o reflexo patelar até os atos instintivos. Na trí-
ade: condução’ centrípeta (sensitiva) do órgão dos sentidos, processo cen-
tral, condução centrífuga (motora) para o órgão terminal, esse arco reflexo
constitui, dentro mesmo de todo o psiquismo, um conceito fundamental
da fisiologia do sistema nervoso. Quando se pensa em arco reflexo psí-
quico, transfere-se o esquema para a vida psíquica, daí resultando que os
processos psíquicos se implicam nos processos centrais desse mesmo
arco; uma imagem mnêmica substituirá, por exemplo, a estimulação sen-
sitiva; uma ideia cinética substituirá a excitação motora. Pela fisiologia dos
sentidos, de um lado, pela fisiologia dos fenômenos motores, doutro lado,
essa psicologia objetiva se relaciona da maneira mais estrita com a neuro-
logia, esta lhe ensinando de que modo o psiquismo se funda em aparelhos
extraordinariamente complexos, cuja integridade condiciona o funciona-
mento da percepção e da memória, além da efetividade exterior de impul-
sos internos. Se investigarmos os estratos superiores desses aparelhos,
descobriremos uma zona fronteiriça entre a psicologia e a neurologia e
analisaremos, quer psicológica, quer neurologicamente, os distúrbios des-
ses aparelhos, chamando-os agnosias, apraxias, afasias. A característica
dessa investigação do arco- reflexo psíquico está em que sempre deve levar
a que se encontrem, servindo de base, funções sensorialmente tangíveis e,
do mesmo passo, localizáveis.
Entretanto, em oposição a esse esquema do aparelho reflexo, a psicolo-
gia encara, de longa data, as funções vitais sob aspecto totalmente outro.
É abismal a diferença entre os fatos que se podem ver, quando reações so-
máticas respondem a estímulos, e aqueles outros fatos que se concebem
como rendimentos ou prestações, que preenchem tarefas. Deixa de ser ob-
jeto um evento- somático, material e fisicamente tangível, para surgirem
no perimundo rendimentos, prestações significativas, reações não mais a.
estímulos, e sim a situações. Não são mais simples estímulos que, à inves-
tigação, atuam: dão-se tarefas, que consistem, por exemplo, em reconhe-
cer objetos brevemente exibidos, decorar sílabas, fazer somas; e já não só
simples movimentos se registram, mas se avaliam os rendimentos de
acordo com a duração, correção e incorreção. Tarefa e rendimento são os
conceitos fundamentais; é dando tarefas que se procura fundamentar essa
psicologia objetiva.
O aparelho reflexo é o aparelho que produz os rendimentos represen-
tam dois pontos de vista metodicamente diversos, de nenhum deles sendo
possível dizer que seja a própria vida. Pelo contrário, é artificial isolá-los,
quer se pense, em um caso, no mecanismo de eventos automáticos, quer,
no outro caso, no todo de um rendimento. Um e outro são inseparáveis.
Daí refletir-se o ponto de vista psicológico de tarefa e rendimento na
pesquisa neurológica. Os reflexos, conforme se reconhece, são aconteci-
mentos isolados artificiais que se passam em condições experimentais. Ne-
nhuma reação vital verdadeira, no perimundo natural da existência, se ex-
plica através de reflexos. Há reflexos, mas só restringindo o conceito de re-
flexo é que se pode querer compreender a realidade das reações vitais ape-
nas pela atividade reflexiva. Tem-se de conceber a vida, conforme se
adapta, se comporta, com um objetivo em vista, para manter-se e expan-
dir-se, conforme involuntariamente e sem intencionalidade se exerce e
aprende, e também, se estrutura, conforme a cada momento se movi-
menta — tem-se de compreendê-la, dizíamos, como se nela existisse, real-
mente, um sentido, sentido que se assinalará como princípio ideológico,
função configurativa, ou ainda como “integrative action” (Sherrington). Os
movimentos musculares não são somas de reflexos; são comportamentos
significativos de uma vida no perimundo e na situação: “Nossos rendimen-
tos psicofísicos (em oposição às funções fisiológicas) não se podem repre-
sentar no esquema da propagação neurofisiológica das excitações, e sim
no esquema de uma relação entre o sujeito orgânico e seu perimundo. Co-
locar meu corpo em meu mundo é o rendimento, cuja solução o ato mo-
mentâneo realiza..; por exemplo, os estímulos sensoriais do vestíbulo
atuam de tal modo que, em dada situação, é possível a orientação..; de tal
modo que subsiste coerência entre nossos atos” (v. Weizsãcker). O mesmo
pesquisador escreve, a propósito da análise do que acontece quando subi-
mos e descemos uma montanha: “É evidente que os verdadeiros rendi-
mentos surgem em interrelação contínua, circular, de organismo e peri-
mundo, perimundo e organismo; sem que, porém, se possa justapor um
ao outro, como se fossem as duas partes de um todo, porque o organismo
sempre também determina o que é que do perimundo sobre ele atua e
sempre o perimundo determina o que é que do organismo se excita. Cada
estímulo já é opção e, pois, estruturação; cada excitação já é ajustamento
e, pois, a seu, estruturação. Podemos chamar essa interrelação circular
“círculo estruturativo”.
É de maneira inversa que o ponto de vista neurofisiológico doar co re-
flexo repercute na psicologia do rendimento. Os conceitos básicos da neu-
rologia são transpostos para a psicopatologia-, como- teoria, como modelo
e, por vezes, também como analogia real, de maneira pertinente. Estamos
pensando, por via de exemplo, nalguns conceitos básicos da neurofisiolo-
gia:
• 1. Fadiga — o enfraquecimento da função pela ação prolongada é
processo que se observa de maneira análoga, desde o grau mais
alto da vida psíquica até atividades mais baixas do sistema ner-
voso.
• 2. Exercício: concebe-se, em geral, como fator parcial das fun-
ções mnêmicas do sistema nervoso, isto é, as funções ativadas
em resposta, a estímulos geram pós-efeitos, que facilitam a fun-
ção e lhe permitem entrar em jogo por influência de outros estí-
mulos, de estímulos parciais’ ou de estímulos mais fracos.
• 3. Excitação e paralisação são os polos opostos do processo vital
do sistema nervoso.
• 4. Inibição é o fato de certos reflexos serem enfraquecidos, ou su-
primidos pelos centros superiores, ou por outros estímulos si-
multâneos. Se se suprimem esses outros estímulos, ou se se
controla o centro superior, o reflexo produz-se, vivo e imediato.
Facilitação é o nome que se dá ao fato de uma reação não se pro-
duzir por influência somente de um dentre dois estímulos de tipo
diverso, mas produzir-se no caso de ambos atuarem ao mesmo
tempo, ou separados por intervalo breve (há reflexos simples e
condicionados e também reflexos em cadeia). Diz-se que há so-
mação dos estímulos, quando a reação não se produz a um estí-
mulo, mas só a estímulos diversos, seguidos uns aos outros e do
mesmo tipo. Um estímulo é demasiado fraco, mas diversos estí-
mulos iguais, embora fracos, somam seus efeitos.
• 5. Choque é a supressão da função, sem destruição, em conse-
quência de lesões de toda ordem sofridas pelo sistema nervoso
(inclusive estímulos fortes). Passado algum tempo, a capacidade
funcional das partes que o choque afetou reaparece por si
mesma.
Todos estes conceitos neurofisiológicos têm encontrado aplicação na
psicologia; de forma indubitável, porém, só aqueles relativos ao cansaço e
ao exercício, à excitação e à paralisação. O psíquico já desempenha papel
nos reflexos; por exemplo, os cães de Pavlov, após receberem alimento
acompanhado do toque de sineta, acabaram secretando suco gástrico
(sem alimento) apenas ao toque. Não se pode distinguir até que ponto, em
outras transposições, se trata de simples imagens, ou de identidades re-
ais; por exemplo, se se conceberem os efeitos da educação como inibições
reflexas e facilitações; se se quiser relacionar a crescente complicação de
“rendimentos” psíquicos — por exemplo, rendimentos mnêmicos, ou ver-
bais (e aí o rendimento mais complexo pressupõe o mais simples) — com a
estruturação em andares da morfologia nervosa ou da fisiologia dos refle-
xos (da atividade integrativa); se se considerar uma depressão como resul-
tado da somação de todos os pequenos estímulos produzidos por uma si-
tuação penosa (de uma preceptora, por exemplo); ou, ainda, se se explicar
como sendo o choque a. completa paralisação de toda a vida emocional
que ocorre em distimias intensas.
Quem contempla o sistema nervoso terá confirmada uma distinção que
sempre se constata quando se investiga a vida psíquica e se pesquisam
causalidades: distinção entre fenômenos (que são- vivenciados, ou se fa-
zem visíveis como rendimentos) e funções (que não são por si mesmas visí-
veis e sim se apresentam nos fenômenos). As funções não são meras
ideias que se somam, mas fatos que aparecem nos rendimentos e nas vi-
vências. Como tais, não são conscientes: o efeito de um ato volitivo sobre
os órgãos motores, da atenção sobre a sequência dos conteúdos ideativos,
dos atos ideativos sobre o jogo verbal, jamais se pode compreender pela
consciência em si, simplesmente. Há funções complexas entrando em ati-
vidade, quando certas vivências e rendimentos simples, imediatos, apare-
cem; ou também inversamente: certas “funções básicas” são condições
para que se produzam fenômenos com certa amplitude.

c) O antagonismo dos dois esquemas básicos.


Tanto mais fácil nos é compreender quanto mais claramente decompo-
mos elementos e conceituamos os fatos como formados, mecanicamente,
a. partir desses elementos. Tanto mais nítida vemos a realidade quanto
mais plásticos percebemos as totalidades, as formas, círculos, configura-
ções nas quais ela se realiza. Cada uma das duas tendências tem seu sen-
tido específico, mas ambas falham, se uma quiser por si só fundamentar
ou completar o conhecimento. Decompomos elementos, mas nunca nos é
possível conhecer, realmente, o todo pelos, elementos, ou porque depara-
mos com complexidade infinita, ou porque o todo é mais do que a soma
dos elementos. Mesmo contemplando as totalidades com a máxima preci-
são, vendo-as nítidas, não podemos, entretanto, conhecer-lhes a origem,
nem a função. Daí resulta que a decomposição em elementos nos obriga a
conceber, afinal, as totalidades, em seu aspecto original, como sendo
aquilo de que provém o movimento elementar; obriga-nos a decompor, afi-
nal, a contemplação total para poder compreender as totalidades.
O entrejogo das duas tendências — fundado na essência das coisas vi-
vas, que, se tomadas como objeto, se podem investigar até o infinito, em
ambos esses aspectos pelos quais se manifestam — requer distinção clara
e clara conjugação, opondo-se, no entanto, a qualquer interpenetração
obscura que permita a uma tomar o lugar da outra. Vejamos um exemplo
fisiológico:
Através das inibições e facilitações recíprocas, os reflexos — que, isola-
damente, só aparecem dentro do esquema fisiológico, não na realidade —
se acham integrados, no sistema nervoso, mesmo nas regiões inferiores da
medula espinhal, de maneira a formar um tecido funcional em que atuam
conjunta, hierárquica, antagonicamente e a constituir uma jerarquia de
funções que se desenvolvem num todo. Sherrington mostrou quanto são
complicados mesmo certos reflexos periféricos, como o patelar, em suas
relações dependenciais. Basta mudar a posição da perna, ou até a da ou-
tra perna, e muitas outras coisas, para esse reflexo alterar-se. Sherrington
chamou “integração” essa interação múltipla dos reflexos, interação inibi-
dora, facilitadora ou reguladora, que vai até os mais altos estratos do sis-
tema nervoso. A atividade integrativa do sistema nervoso faz os efeitos re-
flexos dos estímulos variarem consideravelmente, conforme sejam os de-
mais estímulos é condições. Há distúrbios da coordenação dos reflexos e
doenças há que destroem a hierarquia das funções.
Assim representadas as coisas, vê-se que existe um mecanismo de in-
fluenciamento e modificação recíprocos de todos os reflexos, de um lado, e,
doutro lado, da autonomia primária que dá origem à organização total. A
impressão que se tem, um momento, é que o todo se compreende pelos
elementos; mas, assim entendendo, se chegaria, à falta de apoio no ponto
de vista, inteiramente diverso, que provém da autonomia do todo, a uma
complexidade que seria absolutamente impossível examinar. Daí por que,
indiretamente, mediante esse processo, se sente a autonomia primária do
todo, o que requer formulação metódica precisa. Mecanicamente, os refle-
xos são partes de uma totalidade; vistos no todo, apresentam-se como
membros e nunca se pode compreender o membro pelo fato de ser uma
parte.
Evidenciam, drasticamente, a existência das totalidades certos fatos
dignos de nota:
Apesar de falhas grosseiras (como nas lesões cerebrais) de funções ele-
mentares da percepção (em experiências artificiais, isoladas), obtém-se
bom rendimento perceptual em situações vitais “complicadas”, que se po-
dem repetir, experimentalmente, mediante tarefas correspondentes. Um
portador de agnosia, que, experimentalmente, não reconhece forma al-
guma, pode, no entanto, ou em casa, ou na rua, mover-se adequada-
mente, conforme a situação. Há encefalíticos que não conseguem progre-
dir, mas podem retroceder e até dançar (E. Strauss). Um parkinsoniano rí-
gido pode ter, de súbito, boa atuação em certos jogos, movimentando-se
até com elegância (L. Binswanger). Decerto, os defeitos acham-se ocultos e
apresentam-se em tarefas especificamente insolúveis; a capacidade total
não resulta, porém, apenas, de prestações individuais.
Dentro da investigação biológica, é frequente o fato de pensar que se
apreendeu a própria vida em sua totalidade original, mediante experiên-
cias exatas; no entanto, o que, por fim, se obteve mais não foi que amplia-
ção da introspeção mecanicista, ou seja, ampliação magnífica em relação à
singeleza anterior; no entanto, de modo algum, penetração na vida
mesma; apenas, em seus aparelhos; é o que se dá com os “organizadores”
de Spemann, ou com os genes da genética. São elementos que, ainda aqui,
afinal se apreendem, a questão da totalidade emergindo em nova forma.
Os próprios elementos, contudo, podem ser “totalidades” em confronto
com outro tipo de elementos e, eles próprios, representar elementos para
um pensamento mecanicista. Esse interjogo é característica básica do co-
nhecimento biológico e psicológico, só podendo esclarecer-se se souber-
mos, a cada momento, o que estamos fazendo.
Devemos estar conscientes e não esquecer-nos do antagonismo entre
as' duas tendências investigativas, porque só assim nos protegemos de po-
lêmicas absurdas e, portanto, vãs, conforme se travam de acordo com a
posição intelectual assumida no debate de uma e outra tendência. De um
lado, rejeita-se, de modo absoluto, aquilo que é totalidade, “gestaltismo”,
pela impossibilidade de apreensão racional; então, deixa-se à arte e à poe-
sia tudo quanto não é objeto científico; de outro lado, rejeitam-se elemen-
tos e mecanismos, no afã de eliminar essas abstrações artificiais e irreais.
Uns não querem saber de interpretações que derivem do todo; outros, de
interpretações derivadas dos elementos. Para muitos, atualmente, receo-
sos de se deixarem ainda levar pelo conceito do pensamento antigo, meca-
nicista, reflexo-psicológico, assocional-psicológico — tudo isso lhes pare-
cendo sem sentido e retrógrado — são as teorias holísticas e gestaltistas
que hão de vigorar; fato é, contudo, que se continua preso a essas estrutu-
ras conceptuais, usando-as a contragosto. Tão errado foi o antigo quanto é
o novo absolutismo, porque os caminhos não são em si errados, mas só
trilhando ambos de olhos abertos é que chegamos aos limites que, real-
mente, demarcam o conhecimento, dessa maneira atingindo sua possível
amplitude.

d) Psicologia da associação, do ato e da configuração.


Para a compreensão psicológica também é material de estudo o anta-
gonismo entre mecanismo e totalidade, evento automático e formação con-
figurativa, decomposição em elementos e contemplação das totalidades,
que domina o pensamento biológico conjunto e, simultaneamente, tam-
bém o pensamento neurofisiológico. É infinda a literatura psicológica que
se ocupa com os esquemas conceptuais pelos quais se interpretam os
eventos psíquicos possíveis de apreender, sob o ponto de vista da psicolo-
gia do rendimento. Os conceitos básicos que, sucessivamente (na psicolo-
gia da associação, do pensamento, da configuração) se têm desenvolvido
em oposição uns aos outros podem ser conjugados, na realidade, a fim de
se usarem associadamente, cada um dentro de seus limites, como meios
que sirvam para descrever e, sobretudo, para suscitar questões merecedo-
ras de análises. Esquema algum dentre aqueles que mencionamos pode
considerar-se capaz de explicar, à semelhança de uma teoria universal, a
vida psíquica em sua realidade própria. De um lado, falham como princí-
pios explicativos do psiquismo global; mas, doutro, percebe-se-lhes o valor
particular, desde que se empreguem na representação clara, evidente, de
fatos psíquicos que lhes correspondam, pois são interdependentes, inter-
relacionados, não necessariamente contraditórios.
1. Conceitos básicos.
O curso da vida psíquica é pensado como- associação de elementos,
que se agrupam em complexos e que, à medida que o tempo passa, vão
uns trazendo os outros à consciência. Os elementos são chamados repre-
sentações. São as percepções do mundo exterior que fornecem o material
para essas imagens interiores. A psique tanto pode, na percepção, voltar-
se para o mundo exterior quanto entregar-se ao jogo interior de suas ima-
gens, as quais, sendo os elementos desse curso, vêm a estruturar-se em
unidades mediante o ato, com que visam a um objeto; atos estes em que
se apreendem totalidades estruturadas em constante formação-configura-
ções-daquilo que se percebe objetivamente e daquilo que na psique ocorre.
2. O mecanismo associativo automático.
O curso da vida psíquica apresenta à investigação dois lados: de um,
compreendemos por que modo do impulso “sai” o motivo; e do motivo, a
decisão e a ação; ou compreendemos de que maneira a imagem e a relação
ideativas se originam da consciência intencional de quem pensa; doutro
lado, buscamos explicar, objetivamente, de que forma automática um ele-
mento- consciente “se segue” ao outro, de que forma mecânica se desen-
rola urna simples sequência de processos psíquicos. Esse acontecer auto-
mático, em que, nele só, se baseia aquela vida psíquica primeira, pode, ser
considerado por si resolvido. Podem-se explicar, objetivamente, a existên-
cia e a sequência de elementos psíquicos, relacionando-os a processos so-
máticos tangíveis — que conhecemos através do mecanismo da percepção
e também de todas as localizações neurológicas — ou psicologicamente,
pelos conceitos que se conjugam na teoria do mecanismo associativo.
Concebemos o psiquismo fragmentado em inúmeros elementos que se
sucedem em cadeia uns aos outros; elementos esses dos quais subsistem
certas disposições extraconscientes, através das quais eles podem voltar a
fazer-se conscientes. Tudo quanto é psíquico aparece ou por estímulos ex-
ternos, ou pela atualização dessas disposições, resultantes de estímulos
anteriores. As disposições se concebem ligadas umas às outras quase
nunca atualizando-se por si mesmas (representações que quase nunca
surgem independentes) e, sim, na maior parte das vezes, em resposta a es-
tímulos que resultam daqueles encadeamentos (associações,). Há encade-
amentos de dois tipos: primários, iguais em todos os, homens (associação
por similitude, ou gerais, objetivamente relacionados) e adquiridos, isto é,
associações diversificadas conforme as vivências especiais que se vão pas-
sando (associações de acordo com a experiência e associações gerais, sub-
jetivamente relacionadas). Assim é que o processo psíquico surge por as-
sociação assimiladora, quando eu, percebendo uma cor, penso em outras
cores; e surge por associação experimentativa, quando, à percepção de um
odor, penso na casa de Roma, onde tive a mesma percepção olfativa, por-
que em mim despertam os sentimentos que se ligam àquela situação. Ó
encadeamento associativo extra- consciente, que consideramos causa do
curso psíquico vital, é sempre inconsciente, conceitualmente; mas tam-
bém nem sempre é consciente a relação de similitude objetiva ou de expe-
riência subjetiva casual, quando a nova imagem se forma. Temos senti-
mentos e pensamentos cuja origem, em casos individuais, nem à reflexão
conseguimos descobrir. Às vezes, é só passado muito tempo que, por
exemplo, explicamos o aparecimento de certos sentimentos pela experiên-
cia anterior e pela sensação olfativa atual. O mesmo acontece quase sem-
pre que se querem explicar os fenômenos psíquicos que ocorrem nos psi-
cóticos. Somos nós que encontramos a associação. O próprio doente não
tem dela consciência, nem precisa ter, tal qual acontece quanto aos pro-
dutos verbais dos afásicos, ou quanto ao curso das ideias numa fuga.
Temos de contentar-nos com esta representação grosseira para aproxi-
mar-nos dos conceitos de elemento e de elos associativos. Pelas associa-
ções procuramos explicar as coisas novas que aparecem no curso das
ideias, mas nem sempre são novidades que aparecem, e sim ideias que se
fixam, que por si mesmas voltam após breves pausas. Essa fixação de ele-
mentos psíquicos chama-se perseveração. Do exposto há de parecer claro
que não só ideias — também sentimentos, pensamentos objetivos, modos
de reagir etc., perseveram.
3. Constelação e tendências determinantes.
Há, a cada momento, inúmeras possibilidades para o processo associa-
tivo desenvolver-se no curso ideativo; possibilidades, contudo, das quais
são poucas as que se atualizam. Por que mecanismo ocorre a seleção?
Seja como for, não é só por uma (a saber, a última) imagem que ocorre, e
sim por todo o complexo de vivências passadas, isto é, pelo efeito conju-
gado de imagens (ou representações) que obscuramente vieram até a cons-
ciência, mantidas muito distantes de seu centro; ocorre mesmo através de
imagens estimuladas fora da consciência, tão fracamente, contudo, que
não atingem a consciência. Dá-se o nome de constelação a todas essas
condições extremamente complexas que dirigem a seleção associativa; diz-
se que são constelativas as condições individuais. Fora da constelação,
tem-se investigado mais profundamente ainda outro fator, que é, essenci-
almente, diverso e que orienta a seleção de certas associações a partir da
infinidade de possibilidades. Vale dizer, há representações-alvo — a cons-
ciência de que o curso ideativo deve levar a determinado fim e realizar sa-
tisfatoriamente uma tarefa — representações que atuam no sentido de se
selecionarem as imagens correspondentes, uma vez que existam, em geral,
no indivíduo em causa, as respectivas condições associativas; fato que se
pode comprovar, objetivamente, pela experimentação. Chamam-se tendên-
cias determinantes as causas extraconscientes que, relacionadas com a
consciência do alvo, lhe dão origem (Ach). Distingam-se, de um lado: 1. a
consciência do alvo; de outro lado: 2. aquilo que resulta da seleção nas.
imagens formadas e que o é, objetivamente, constatado; por fim: 3. as ten-
dências determinantes, que, em teoria, parecem explicar a seleção idea-
tiva, objetivamente determinável, e que se relacionam permanentemente,
com a consciência do alvo. As tendências determinantes não resultam,
apenas, de alvos conscientes racionais (intencionais), mas de toda sorte de
ideias, de imagens extásicas que abrangem um todo, de estados de ânimo
etc.
4. Encadeamento associativo e atuativo.
Tratando-se de associações (associação por similitude e por experiên-
cia), tratando-se da> constelação e das tendências determinantes, apreen-
demos os princípios segundo os quais o curso dos processos psíquicos se
explica, objetivamente. Os elementos encadeiam-se nas associações e des-
pertam, conforme a constelação, pelo efeito conjunto de tendências deter-
minantes. Se quisermos utilizar esses princípios explicativos de maneira
judiciosa, teremos de saber o que são, propriamente, os elementos que
despertam e existem ou se ciam nesse encadeamento. Basta imaginar
exemplos para ver, imediatamente, que são elementos de tipo extraordina-
riamente diverso: sensações como tais, percepção e representação, repre-
sentações como tais, imagem e pensamento, imagem e sentimento, senti-
mentos e complexos mentais inteiros etc. Tudo pode a tudo associar-se,
no psiquismo. Poderíamos inclinar-nos a admitir, como admitem muitos
psicólogos, que tudo quanto é psíquico seja de atribuir-se, em última ins-
tância, a simples elementos que seriam as sensações e os sentimentos
simples, a partir de cujo encadeamento associativo se estruturariam to-
das, as produções, mais complicadas; seriam de atribuir-se aquelas asso-
ciações a elos existentes entre esses elementos finais. Ê engano que se
funda na confusão de dois encadeamentos inteiramente diversos, o enca-
deamento associativo e o encadeamento atuativo. Precisamos esclarecer a
diferença que há entre um e outro sob pena de, deixando de. considerá-la,
fazer impossível a aplicação do conceito associativo. Podem-se criar asso-
ciações, em idiotas e até em papagaios, entre certas palavras e a percep-
ção de determinados objetos, pois que, após verem o objeto, eles falam a
palavra, sem saber que existe relação significativa entre ambos. Temos aí
um encadeamento associativo que, quando aparece um elemento, faz o
outro surgir (note-se que assinalamos aqui como elementos tanto percep-
ção quanto palavra). Mas, se conceber uma palavra como significando um
objeto, a pessoa está vivenciando, nessa concepção, um encadeamento
atuativo; de fato, para ela, palavra e objeto já formam nova unidade, ao
passo que, no simples encadeamento associativo, a relação não existe
para aquele que vivencia (em cuja consciência um elemento é mera se-
quência automática de outro), mas sim para quem observa. Expresso de
maneira absolutamente geral: numerosos elementos da vida psíquica são,
de um momento para outro, apreendidos num ato; e apreendidos como
um todo, que é novo em relação aos elementos individuais. Um pensa-
mento estrutura-se sobre outros pensamentos, sobre representações e
percepções, que, em conjunto, se tornam unidades para o sujeito que
pensa. Essa vivência unitária, considerada do ponto de vista da psicologia
associacional, vem a ser ainda um elemento; tudo, porém, que, num ato
como todo, se apreende e se vivencia é elemento.
Estamos, assim, mais aptos a responder à indagação: que é elemento
para a psicologia associacional? Podemos esboçar um esquema gráfico (fig.
1), para visualizar os elementos; estes se acham superpostos em muitas
camadas horizontais, de forma a talvez se poderem juntar, mediante elos
atuativos, vários elementos da camada mais baixa numa camada acima
(por exemplo, em baixo, elementos que dizem respeito a sensações; em
cima, o pensamento de uma relação). Nesta figura, representam-se enca-
deamentos atuativos pelas direções de cima para baixo, ao passo que as
direções horizontais representam encadeamentos associativos. Cada elo.
atuativo é, na camada de cima, um elemento que se associa, enquanto se
associam, nas camadas mais altas de todas, os elos atuativos
F mais com-
plexos. Eis o esquema; IG. 1

Fig 1
Encadeamento associativo
1 As associações dão-se mecanicamente, uma após outra e co- locam-se
uma junto à outra.
2. As associações ocorrem inconscientemente; um elo associativo não consti-
tui objeto para quem vivencia.
3. Quanto mais baixo o nível da associação atuativa, mais o observador
constata encadeamentos associativos na fala e nos atos.
Encadeamento atuativo
1 Elos atuativos estruturam-se um sobre o outro, formando totalidades mais
altas, que vêm a ser vivenciadas como unidades.
2. Os elos atuativos ocorrem conscientemente. O elo constitui objeto para
quem vivência.
3. Quanto mais elevado o nível dos encadeamentos atuativos, mais o obser-
vador constata relações compreensíveis da vida psíquica consciente.
5. Elementos e configurações.
A unidade daquilo que se aprende no encadeamento atuativo e daquilo
que se soma no movimento chama-se configuração. (Gestalt). Não perce-
bemos sensações e sim são nossas percepções, imagens e conteúdos men-
tais que se nos apresentam em configurações. Não realizamos contrações
musculares, mas configurações motoras. O simples ato da percepção obje-
tiva unitária seria impossível, se nessa maravilhosa textura dos pressu-
postos de nossa vida psíquica, o evento regulador não nos trouxesse, per-
manentemente, aquilo que supera a dispersão do momento particular. As
sensações tornam-se, sob a forma de percepções, membros de um todo; as
contrações musculares são governadas por esquemas ideomotores.
Quando se querem assinalar as configurações na diversidade das sensa-
ções e das contrações, por exemplo, fala-se em imagens sonoras verbais
em configurações motoras. A maneira por que funcionam essas configura-
ções tem sido pesquisada, sobretudo, na psicologia da percepção e na psi-
cologia do movimento, nos distúrbios da agnosia e da apraxia A função
configuratória liga, por assim dizer, arquitetonicamente, ele mentos parti-
culares sensoriais e motores, formando a unidade significativa do objeto
que se percebe e do esquema motor que se pode realizar; formando, bem
assim, a unidade do que é sensorial e do que é motor, em geral; isso tanto
no que se refere a todas as percepções o ações motoras quanto no que se
refere à compreensão verbal e à fala. De acordo com esta concepção, as
configurações vêm a ser elementos do evento psíquico.
O conceito de elemento nunca serve para designar, em psicologia, a
unidade “derradeira, final”, e sim unidades que funcionam como tais para
certo ponto de vista. Por conseguinte, trabalharemos com outras unidades
como elementos segundo o ponto de vista que adotamos; o que, para um
modo de ver, é construção complexa é, para o outro, elemento.

e) A sequência das totalidades.


Além dos reflexos, que, isoladamente, só se apresentam em condições
experimentais artificiais, a primeira totalidade que surge é o rendimento
atual, que’ preenche a tarefa; esta só tem sentido num todo. Cada realiza-
ção individual vem a ser, no entanto, uma particularidade.
Além dos rendimentos individuais está o todo dos rendimentos a con-
dicionar cada prestação particular, podendo corrigi-la e modificá-la. Só a
prestação que o todo regula é que se efetiva, porque contém o peso de seu
sentido possível. Concebe-se esse todo dos rendimentos de acordo com vá-
rios pontos de vista: como sendo o fundamento psicofísico das prestações
nas funções básicas; ou o estado momentâneo, presente, do curso da vida
psíquica; ou a capacidade produtiva permanente que se chama inteligên-
cia.
Mas o todo das prestações ainda não é derradeiro, pois depende, glo-
balmente, da personalidade compreensível, para a qual, embora nela viva,
subsiste como instrumento. Falando em tarefa, indaga-se: Que tarefa?
Para que e por quem é dada? E aqui a psicologia do rendimento pressupõe
a existência e a significação das tarefas. Todavia, se estas são apreendidas
e confirmadas; se os rendimentos servem como meios e para que servem
como meios — isso vem, no homem, de outras fontes. Daí por que a psico-
logia do rendimento jamais apreende o homem total, e sim aparelhos de
que este dispõe. O aparelho psicofísico, ainda mesmo se tratando de rendi-
mentos intelectivos complexos, é, por assim dizer, a base da personalidade
compreensível. Poder-se-ia imaginar uma situação fronteiriça tal que,
mesmo ocorrendo toda sorte de distúrbios dos rendimentos do aparelho
psicofísico, mesmo não podendo a personalidade mais exprimir-se, ainda
assim se lhe mantivesse intata a potencialidade.
Se contemplarmos os conteúdos que o homem pode atualizar como re-
alização correta, mediante tarefa e rendimento, este, em si mesmo, afigu-
rar-se-nos-á insuficiente, porém indispensável; seus aparelhos têm de
funcionar, se se quiser que a essência humana, a cuja disposição se
acham, se realize. A eficiência é o que mais liga a psique com o aparelho
neurológico. Deste ao pensamento exato vai uma graduação de funções in-
terrelacionadas que são instrumentos para o próprio homem.

f) A experimentação na psicopatologia?
O setor da psicologia do rendimento é o mais importante da psicopato-
logia experimental. Convém, a essa altura, introduzir umas tantas obser-
vações relativas aos tipos de experimentação psicológica.
1. Dar tarefas.
É fundamental, em toda a experimentação, dar tarefas e observar os
rendimentos, reações, comportamentos; tarefas tais como as seguintes:
1. Reconhecer um objeto exibido durante certo tempo breve e men-
surável (por meio do taquistoscópio): testes de apreensão.
2. Pronunciar depressa a primeira palavra que ocorra a uma pala-
vra-estímulo: testes de associação.
3. Gravar um material exibido: testes de capacidade de fixação, tes-
tes de aprendizagem.
4. Fitar uma figura e, depois, descrevê-la, espontaneamente, com-
plementando a descrição nalguns pontos com um interrogatório;
ou, nas mesmas condições, ler uma história: testes de capaci-
dade de reprodução.
5. Somar, realizar movimentos mensuráveis, medindo o rendimento
e pesquisando sua dependência em relação a inúmeras condi-
ções: testes de- capacidade laborativa.
Exemplo: Testes de associação. As experiências de associação (2) são
com frequência usadas, em vista da facilidade técnica com que- se execu-
tam. Dizem-se palavras-estímulo e instrui-se o indivíduo no sentido de re-
agir o mais rapidamente possível com uma palavra, a primeira que lhe
ocorra; ou diz-se-lhe que se abandone às ideias que lhe ocorram, pronun-
ciando-as seguida, despropositadamente, sem inibição. O processo dos
testes de associação, extremamente grosseiro, tem-se revelado produtivo
não tanto pela exatidão quanto por tudo aquilo que permite observar e ob-
jetivar.
Os testes de associação permitem observar: 1. a duração das reações
individuais (com o cronômetro). 2. a reprodução correta ou errada das as-
sociações particulares depois de O teste terminar. 3. O número das associ-
ações que incidem em determinadas categorias: por exemplo, associações
sonoras, associações relativas a conteúdos etc. A classificação das associ-
ações faz-se de acordo com muitos esquemas, cujo valor só se pode julgar
pelo objetivo em vista. 4. Como reações associativas: qualitativamente pe-
culiares contam-se a reação egocêntrica, as complementações de frases,
definições, expressões retificadoras, cargas afetivas evidentes etc. — Infe-
rem-se, com base nas experiências de associação: 1. a riqueza das associ-
ações que está à disposição de certo, indivíduo; é muito incerto o que se
infere da riqueza das associações experimentais; 2. inferem-se complexos
com carga afetiva, a dominar a vida psíquica do indivíduo em causa (da
reunião de todas as associações podem-se deduzir o aumento da duração
reacional, a deficiência, da capacidade de reprodução, a ocorrência evi-
dente de fenômenos concomitantes: inferência muitas vezes convincente,
porém sempre incerta). 3. inferem-se tipos especiais de curso ideativo (por
exemplo, a fuga, de ideias, ou a incoerência catatônica, ocorrendo espon-
taneamente tanto durante o teste quanto na conversa).
2. A significação múltipla das observações experimentais.
Grande é a multiplicidade dos testes, indo de simples meios auxiliares
da pesquisa a realizações técnicas circunstanciadas e dispendiosas; do-
registro singelo dos rendimentos a possibilidades infinitas de observações
casuais; da exclusiva observação por parte de quem realiza, o teste à auto-
observação da própria pessoa em causa.
aa) Meios auxiliares da pesquisa. Há testes muito simples, como a des-
crição de figuras, a observação das ilusões sensoriais que- ocorrem à com-
pressão dos globos oculares, a narração de uma história, a apreensão e
descrição de manchas de tinta (teste de; Rohrschach) etc. Não se trata de
experiências propriamente ditas, mas de meios auxiliares da pesquisa,
que vêm a ser artifícios visando a complementar o diálogo habitual. Mais
complexa é a realização de pesquisas das afasias, apraxias, agnosias. Há
maneiras cuidadosamente variadas de dar tarefas em certas situações, a
fim de, objetivamente, se verem o rendimento e respectivas falhas com de-
limitação clara, em momentos específicos (isso foi sutilmente desenvolvido
por Head).
bb) Experiências exatas. — Permitem obter cifras e mensurações preci-
sas; são, por exemplo, os testes de trabalho seguido, os testes de aprendi-
zagem, os testes taquistocópicos; neles se valora, alguma coisa quantitati-
vamente, se variam ao infinito as condições-, experimentais e se determi-
nam, sem possibilidade de dúvida, as relações dependenciais das funções.
cc) Representação técnica de fenômenos objetivos. — Procura-se a do-
cumentação mais ampla possível, escrevendo o que: o paciente diz du-
rante as experiências, descrevendo-lhe o comportamento, registrando-lhe
as prestações, a escrita, os movimentos. Aqui também se enquadram as
técnicas auxiliares que visam à “representação” objetiva de fenômenos mo-
tores e manifestações verbais, mediante o uso de aparelhos registradores,
cinematógrafo, fonógrafo.
dd) Auto-observação em condições experimentais. — Os testes objetivos
exigem, apenas, disposição, acessibilidade e compreensão para a realiza-
ção da tarefa por parte do paciente, nenhuma capacidade psicológica, po-
rém, nem a mínima auto-observação; o tipo de experiência em epígrafe, ao
contrário, só é possível em pessoas psicologicamente capazes, suficiente-
mente hábeis para se- auto-observarem sem prevenções. Os resultados
servem tanto à psicologia objetiva do rendimento quanto ao aprofunda-
mento da fenomenologia e, bem assim, à interpretação de falhas prestacio-
nais, mediante observações fenomenológicas. Esses testes apenas criam
condições apropriadas a que o paciente, auto-observando-se, tenha, cons-
ciência bem nítida da peculiaridade de certos fenômenos psíquicos. Assim
é que se pergunta ao paciente o que foi que vivenciou durante a prestação
das tarefas. Procura-se relacionar a descrição- fenomenológica com as fa-
lhas de rendimento, a fim de interpretá-las psicologicamente; sobretudo,
quando há distúrbios da percepção e da motilidade.
ee) Observações feitas por ocasião da experiência, mas não mediante a
experiência. — Boa parte do valor que têm os. testes, em psicopatologia,
está nas observações que se fazem enquanto eles se realizam. Não são tes-
tes iguais aos que se fazem no campo das ciências naturais, onde apenas
se registra e se mede. Coloca-se o paciente em condições tais que lhe per-
mitam mostrar-se- mais rápida e nitidamente do que no simples diálogo.
As observações imprevistas constituem o estímulo para o pesquisador. De
mais- a mais, essa observação psicológica vem a ser indispensável, se se
quiserem interpretar corretamente os valores numéricos a se obterem. Não
é pelos números, mas pela observação que se vê se ocorreu, nesse interim,
um bloqueio esquizofrênico, se intervalos, afetivamente carregados prolon-
garam o tempo, se certo comportamento representa indolência, ou impas-
sibilidade. Os resultados que se obtêm de modo puramente mecânico são,
em geral, sem valor.
ff) O objetivo da comprovação experimental é ou o rendimento individual,
ou uma função básica, ou a inteligência cu o caráter, ou a constituição. — A
cada teste, muitas funções devem achar-se intatas, a fim de que se possa
obter rendimento. Só pressupondo que as demais estejam intatas é que
esses. testes podem comprovar certa função individual. Daí, por exemplo,
os testes de associação, os testes de reprodução, os testes de trabalho ha-
verem sido empregados tanto para investigar funções particulares quanto
para caracterizar a personalidade global, quer no que diz respeito a traços
constitucionais (ritmo psíquico, tipo sensorial etc.), quer no que se relaci-
ona com a expressão do caráter.
gg) Vários testes constituem um meio de penetrar no inconsciente, de es-
clarecer histórias vitais ocultas; por exemplo, os testes de associação, o
teste de Rorschach.
3. Sobre o valor das experiências.
Não há unanimidade relativamente à valoração da psicopatologia expe-
rimental. Vista por uns como infrutífera e vazia, outros a consideram o
único método científico de que dispõe a psicopatologia. Julgada com cir-
cunspecção, deve-se afigurar insubstituível no seu campo da pesquisa psi-
copatológica, sem que, no entanto, se deva declará-lo o único método. O
que há de mais importante é fixar com precisão as questões, e isso só é
possível à base de uma formação psicológica multilateral. Quando a expe-
rimentação se adaptar ao esclarecimento, deve-se tentá-la; no caso contrá-
rio, procurar-se-á atingir o que se tem em vista por outros métodos, pela
simples observação e pelo aprofundamento na vida psíquica dos pacien-
tes, usando métodos casuísticos, estatísticos e sociológicos.
Da experimentação nascem fatos evidentes, objetividades convincen-
tes, que, doutra maneira, não viriam à luz; ou, pelo menos, não viriam
com a mesma simplicidade e rapidez. Há muitos fenômenos psíquicos que
só se fazem visíveis quando se objetivam em relação ao doente. O que o di-
álogo não descobre revela-se, sem chamar a atenção, no distanciamento
da situação experimental.
Mais ainda: as experiências da psicologia normal, da mesma forma que
as da fisiologia sensorial, têm levado, de modo muito significativo, a fazer-
nos conscientes de quão infinitamente se emaranham, mesmo nos proces-
sos fenomenologicamente mais simples, a gênese somática, as funções e
as relações dependenciais que se evidenciam na experimentação e que
ainda não encontraram fundamento somático. É a conclusão a que se
chega a partir das experiências psicopatológicas, vistas nesse background.
Distinga-se, contudo, o que se faz evidente na experimentação e o que se
imagina, conclusiva e teoricamente, como base dos fatos psíquicos. Seria
bom apreender um aparelho psicofísico funcionando naquelas regiões em
que já não é possível estabelecer conexão imediata com bases somático-fi-
siológicas. É o que se consegue com a transposição dos esquemas concei-
tuais da neurologia, ou com os conceitos da psicologia, acima discutida,
da associação, do ato e da configuração (Gestalt).
SEÇÃO 1.
OS RENDIMENTOS INDIVIDUAIS

Classificam-se os rendimentos de acordo com sua tangibilidade. O que


se pode observar e, mediante tarefas, experimentar e pesquisar; ainda
mais, o que tem relação com a significação prestacional. de qualquer tipo
— tudo isso se enquadra nos grupos que vamos examinar, da percepção à
linguagem e ao pensamento, passando- pela apreensão e orientação, me-
mória e motricidade. É das falhas dos rendimentos individuais imediata-
mente visíveis que trataremos, porque, descrevendo-as, temos o perfil
prestacional de um indivíduo. Antes de mais nada, procederemos ao arro-
lamento de rendimentos individuais tipicamente característicos.

§ 1. Percepção

Nem todos os estímulos que as terminações nervosas sensitivas, apre-


endem chegam à consciência. Pelo contrário, há uma quantidade de ner-
vos condutores centrípetos que desencadeiam reflexos complicados, sem
se que tenha a mínima consciência de todo o processo, este permanecendo
absolutamente automático. Os cirurgiões têm mostrado que o- estômago e
os intestinos são, normalmente, quase de todo insensíveis; apesar do que,
os inúmeros nervos existentes nesses órgãos são sede de mecanismos re-
flexos dos mais complexos. A conservação do equilíbrio corpóreo, a execu-
ção de muitos movimentos, não só de contrações musculares, mas de si-
nergias complicadas, escapam à consciência. Não há, entretanto, limite
preciso entre mecanismos fisiológicos puros e processos: psiquicamente
condicionados. Tanto podem meros reflexos tornar-se- conscientes (a res-
piração, por exemplo) quanto podem mecanizar-se algum processos cons-
cientes, qual seja a movimentação quando se aprende a andar de bicicleta.
É evidente que todos os distúrbios do sistema nervoso sensitivo, na
medida em que deste depende a ocorrência da percepção, também hão de
produzir distúrbios perceptivos: por exemplo, as anestesias, as pareste-
sias, todos os distúrbios resultantes de processos mórbidos do aparelho
óptico (hemianopsia, deformação da percepção visual por lesões, da co-
roide etc.) e as demais anomalias que se investigam na neurologia. Classi-
ficam-se tais distúrbios conforme sua natureza mais periférica ou mais
central. Quanto mais têm sede nas camadas superiores dos mecanismos
nervosos, mais nos achegamos aos processos psíquicos. Apesar de ser infi-
nito o caminho que até lá nos conduz e de não ser dentro das lindes do
psiquismo que cada nova descoberta neurofisiológica se estabelece, e sim,
apenas, numa camada mais alta dos mecanismos nervosos subjacentes ao
psiquismo — mesmo assim costumamos aludir às anomalias mais alto si-
tuadas dentre aquelas neurofisiologicamente tangíveis como sendo, para a
psicopatologia, distúrbios da percepção. Aqui se enquadram as deficiên-
cias sensoriais, umas poucas dentre as falsas-percepções e, sobretudo, as
agnosias.
a) Há simples deficiências sensoriais - Surdez, daltonismo, anosmia
congênitas — nas quais é frequente ignorar-se qualquer deficiência somá-
tica. Os múltiplos distúrbios da percepção por alteração do material sen-
sorial, com lesões locais dós órgãos dos sentidos e das vias nervosas, indo
até áreas de projeção na córtex cerebral, encontram-se descritos nos ma-
nuais de neurologia, otologia e oftalmologia.
b) Em quase todas as falsas-percepções, nada sabemos das respecti-
vas causas; nem conhecemos as condições de que sua ocorrência de-
pende. Há, porém, certas falsas-percepções em relação às quais conhece-
mos, pelo menos, algumas concausas, senão as causas únicas. Obser-
vam-se falsas-percepções em consequências de lesões dos órgãos dos sen-
tidos, em consequência de lesões localizadas da córtex sensorial corres-
pondente (especialmente, fenômenos luminosos e sonoros elementares),
além de estados vertiginosos que acompanham lesões vestibulares. Obser-
vam-se, sobretudo, alucinações hemianópsicas quando há focos do lobo
occipital. Mais ainda: em muitas falsas percepções tem-se notado depen-
dência em relação à produção de estímulos exteriores. Assim é que se po-
dem, com órgãos adequadamente dispostos, capazes quase sempre de alu-
cinar também de forma espontânea, desencadear falsas-percepções medi-
ante estímulos arbitrários. Conhecem-se as visões que os delirantes, bem
como outros doentes, têm, quando se lhes comprimem os olhos fechados.
São, todavia, por demais grosseiros esses fatos para nos permitirem pene-
trar nos mecanismos extraconscientes subjacentes às falsas-percepções.
c) Agnosias: Chamam-se agnosias os distúrbios do conhecimento e do
reconhecimento, embora se conserve a percepção sensorial. Um doente
que sofreu ferimento na cabeça vê bem o aposento com os móveis, mas
não os reconhece como móveis, não sabe absolutamente que objetos são,
sente-se perplexo, nem sabe que se trata de móveis. Quer dizer, tem a per-
cepção sensorial, sem reconhecer, porém, a significação do percepto. As
agnosias não impedem que haja percepção, com objetificação das sensa-
ções no ato intencional; o que acontece é que o percepto não é conhecido
como objeto determinado, nem reconhecido. Falha a reprodução, isto é, a
associação às experiências adquiridas, associação que possibilita, em to-
das as percepções, o conhecimento. Goldstein e Gelb esclarecem de certo
modo, relativamente a um indivíduo ferido a bala na cabeça, o que, em
tais casos, é percebido pela consciência.
“O paciente tem manchas coloridas e incolores em certa parte do
campo visual. Vê bem se determinada mancha é mais alta ou mais baixa,
se se acha mais para a direita ou mais para a esquerda do que outra, se é
fina ou grossa, grande ou pequena, curta ou alongada; se está mais perto
ou mais longe; só isso, porém, porque as várias manchas juntas lhe dão
impressão confusa, não a impressão que tem um homem normal, a im-
pressão de um todo especificamente caracterizado e precisamente configu-
rado”. O paciente não reconhece forma alguma, nem sequer distingue o
reto do torto. Se, no entanto, acompanha as formas com a cabeça, conse-
gue reconhecê-las. Movimento não vê nenhum. Conforme narrou, quando
vê o bonde chegando, “é a uns cinco metros de distância que o vê”; depois,
não vê “nada”; depois “o bonde, de repente, está diante dele”. Um trem que
reconheceu “claramente” não viu, entretanto, mover-se. Só percebeu o mo-
vimento pelo barulho. — Quando, certa feita, quis passear com a cu-
nhada, esta o precedeu de uns vinte metros. Pareceu-lhe vê-la parar, ficar
parada e muito se espantou porque não a alcançou; a distância não en-
curtava... O que o doente via era um “agora-aqui”, agora-ali”, faltava-lhe a
impressão do movimento que tem o homem normal, ou seja, a impressão
de uma coisa especificamente outra que não as posições diversas, isoladas
umas das outras. No campo tátil, ao contrário, o paciente tinha impres-
sões cinéticas muito precisas.
As agnosias óticas (cegueira psíquica) aparecem quando há destruição
dos dois lobos occipitais. Não há fatos que permitam relacionar os distúr-
bios dos rendimentos individuais com lesões corticais finamente localiza-
das. Conforme o campo sensorial, distinguem-se as agnosias ópticas (ce-
gueira psíquica), as agonias acústicas (surdez psíquica) e as agnosias tá-
teis (estereoagnosias).
d) Os testes e mensurações objetivos talvez venham a permitir que
se conheça e esclareça aquilo que, até agora, só fenomenologicamente se
pode determinar; por exemplo, diversos distúrbios do senso temporal. De-
vem-se distinguir os distúrbios da percepção temporal, que se podem tes-
tar em avaliações cronológicas, dos distúrbios da vivência temporal, cujo
estudo, até o momento, só fenomenologicamente é possível. Também são
raros os casos de percepção espacial, que se podem relacionar com altera-
ções de rendimento tangíveis; por exemplo, quando ocorrem reduções do
campo visual, possíveis de explicar como sendo fenômenos de cansaço,
distúrbio da atenção e distraibilidade.

§ 2. Apreensão E Orientação

As agnosias são distúrbios do conhecimento; vale dizer, são propria-


mente, distúrbios da apreensão. Como, porém, se apresentam limitadas a
áreas sensoriais particulares, colocamo-las entre os distúrbios dos meca-
nismos da percepção. Quando nos referimos em sentido mais estrito a dis-
túrbios da apreensão, não queremos dizer que se possam precisamente
delimitar uns e outros. A esta altura, aludimos àqueles distúrbios que
aparecem, simultaneamente, em todas, as áreas sensoriais, porque relaci-
onados com o psiquismo global; no que se diferenciam daquelas outras
agnosias, que, à semelhança dos distúrbios dos órgãos sensoriais, se apre-
sentam, na vida psíquica normal, como anomalias mais periféricas num
dos mecanismos em que se baseia a vida psíquica. De um lado percepção
e apreensão formam um todo; de outro, a análise objetiva dos rendimentos
permite distinguir o mecanismo da percepção (processo que leva, por me-
canismos nervosos, a que se tenha consciência de um conteúdo objetivo)
da apreensão, processo que conduz à incorporação desse conteúdo à
nossa experiência, ao nosso saber até então adquirido.
Em primeiro lugar, a apreensão pode estar lentificada; em segundo, fa-
lhar relativamente a objetos difíceis; em terceiro, levar a resultados erra-
dos’, momentos estes que se podem determinar, grosseiramente, a cada
entrevista, mandando o paciente ler pequenas histórias, ou mostrando-lhe
figuras. Pode-se, para mais requinte, medir o tempo de apreensão e, mais
precisamente, investigar a que ponto as apreensões erradas dependem da
constelação das direções associativas suscitadas no momento; isso em ex-
periências com o taquistoscópio, aparelho que permite a exposição de figu-
ras, letras, palavras em tempo curto e mensurável.
Todas essas pesquisas levam à classificação provisória dos distúrbios
da apreensão em três grupos, conforme a origem do distúrbio. Vejamo-los:
1) Função do grau de inteligência. A apreensão falha relativamente a obje-
tos mais difíceis por força de estado defectual permanente. Não há saber
de que se disponha, saber que permita a incorporação. 2) A apreensão
apresenta-se perturbada, quando há distúrbios da capacidade de atenção
(na velhice, na síndrome de Korsakov). Tudo quanto vem ter à consciência
é, de imediato, esquecido. Para haver apreensão de uma relação mais
complexa, o percepto tem, no entanto, de ser também conservado. No
caso, já se acha esquecido, quando aparece a parte seguinte do todo a ser
apreendido. 3) A apreensão depende do estado de consciência e da ma-
neira por que se apresenta o curso da 'vida psíquica. Turva a consciência,
a apreensão é imprecisa, muitas vezes ilusória, frequentemente nítida
quanto ao particular, mas não quanto ao todo. Nos estados maníacos, a
apreensão apresenta-se 'muito variável, ao sabor da mutação rápida dos
interesses e da grande influenciabilidade resultante das constelações ca-
suais, capazes de levar a equívocos. A apreensão está inibida nos estados
depressivos, não atingindo objetivo algum, apesar de esforços subjetiva-
mente intensos. Calculando as omissões e equívocos, podem-se medir, ob-
jetivamente, nesses casos, a segurança e a distraibilidade, quando se in-
vestiga a apreensão de séries de letras taquistoscopicamente apresenta-
das.
Rendimento apreensivo extremamente complexo, porém fácil de deter-
minar, é a orientação sobre a situação real atual, sobre o ambiente e a
própria personalidade. Distinguem-se a orientação espacial, a orientação
temporal, a orientação sobre a própria pessoa e sobre as pessoas circuns-
tantes. A orientação pode estar conservada numa ou noutra dessas dire-
ções, apesar de perturbadas as demais. Por exemplo, a desorientação
completa sobre lugar, tempo e ambiente, mantendo-se correta a orienta-
ção a respeito da própria personalidade, é sintoma muito característico do
“delirium tremens”. Não quer dizer, porém, absolutamente, que a desori-
entação seja sintoma inequívoco, visto poder surgir de maneira muito di-
versa e ter, correspondentemente, significação diferente, constituindo,
apenas, a falha derradeira de rendimento, objetivamente fácil de observar,
numa série de atos apreensivos vários. O esquema abaixo cobre os tipos
de desorientação:
• 1) Desorientação amnésica. Corresponde ao distúrbio da orien-
tação consequente ao esquecimento imediato daquilo que se aca-
bou de vivenciar, quando há distúrbio muito acentuado da capa-
cidade de fixação. Os doentes (senis, por exemplo) acham que
têm vinte anos; as mulheres voltam a usar o nome de solteiras,
escrevem o ano de 1860 como se fosse o ano corrente, pensam,
internadas, que estão na escola ou em casa, tomam o médico,
que para elas é sempre um desconhecido, pelo professor, por um
funcionário, pelo prefeito etc.
• 2) Desorientação delirante. Plenamente lúcidos, os pacientes
têm ideias delirantes, das quais deduzem, por exemplo, estar o
tempo antecipado de dez dias, embora saibam muito bem que as
pessoas em volta contam outra data. Concluem que se acham
numa prisão, embora sabendo que as demais pessoas declarem
ser a casa um frenocômio. É da mesma natureza a dupla-orien-
tação: os pacientes estão orientados, ao mesmo tempo, correta e
erradamente; isto é, sabem ao certo onde estão, que data nós es-
crevemos, que são doentes mentais, mas, do mesmo passo,
acham que tudo é só aparência, que, de fato, estão na idade de
ouro, que não há mais tempo que valha.
• 3) Carência apática de orientação. Os doentes ignoram onde
estão, que dia é, porque nem pensam nisso, sem estarem, toda-
via, erradamente orientados.
• 4) Desorientação com turvarão da consciência. Os doentes só
percebem particularidades, aparecendo, cm vez da apreensão do
ambiente real, as vivências alternantes dos distúrbios da consci-
ência, que condicionam uma quantidade de desorientações mui-
tas vezes fantásticas (análogas ao sonho).
Verificam-se distúrbios da orientação em inúmeras psicoses agudas e
em muitos estados crônicos; são fáceis; de reconhecer e importantes para
ajuizar o caso. É necessário certificar-se, em todas as circunstâncias, das
quatro direções que a orientação pode tomar, guiando toda a investigação
ulterior pela determinação de que o doente está orientado ou não; neste
último caso, averiguar-se-á que tipo de desorientação se acha em causa.
Têm-se distinguido e investigado os distúrbios da apreensão conforme
o respectivo conteúdo; o falso-reconhecimento de pessoas, por exemplo. O
fenômeno constitui distúrbio objetivo do rendimento, muito diverso, po-
rém, de acordo com o tipo e a origem.
Ocorre o falso-reconhecimento quando há alterações da consciência
(delírios), manifestando-se nas confabulações peculiares à síndrome am-
nésica, nas futilidades dos estados maníacos, nas alterações da percepção
(ilusões), tais como se observam nas psicoses agudas; bem assim, nas per-
cepções delirantes da esquizofrenia. São heterogêneas tanto as modalida-
des vivenciais quanto a origem.

§ 3. Memória

Preliminares psicológicas.
Hão de distinguir-se três coisas:
• 1) A capacidade de fixação (ou de notação), isto é, a capacidade
de trazer material novo ao reservatório mnêmico, aqui distin-
guindo-se entre capacidade de aprendizagem (apresentação repe-
tida do material) e capacidade de fixação em sentido mais estrito
(apresentação única).
• 2) A memória, ou seja, o grande reservatório de disponibilidades
permanentes, capazes de vir à consciência em ocasiões apropria-
das.
• 3) A capacidade de reprodução, vale dizer, aquela que consiste, a
dado momento, segundo as circunstâncias, em trazer da memó-
ria à consciência certo material. As capacidades de fixação e de
reprodução são funções; a memória é a posse permanente de
disponibilidades.
Os três campos são sujeitos, a distúrbios patológicos, que se assinalam
todos com uma. só designação: distúrbios da memória, diversificando-se
muito, porém, de acordo com as modalidades em que se apresentam.
Mesmo em condições normais, a memória falha. Não há setor em que a fi-
delidade (segurança), a perduração e a disponibilidade da memória (pres-
teza) não tenham limites e oscilações. As extensas experiências dos psicó-
logos têm logrado determinar leis interessantes: de um lado, leis da. fixa-
ção ou notação (por exemplo, dependência da atenção, do interesse,
aprendizagem do todo ou das partes, deterioração pela criação simultânea
de outras associações: inibição generativa); doutro lado, leis da. reprodu-
ção (determinação por outros processos psíquicos simultâneos, inibição
resultante de associações que, vêm, simultâneas, à consciência: inibição
efetuai). Importa muito estarmos conscientes de que não há memória sim-
plesmente, com capacitação geral, e sim memória composta, de muitas
memórias especiais. Assim é que, embora raros, existem psicóticos dota-
dos de memória temporal prodigiosa.
O que temos em vista, na base do que, até o momento, dissemos a res-
peito de memória, é um mecanismo que, tal qual um aparelho, trabalha
mais ou menos bem. Mas a memória também se acha em relações com-
preensíveis com a afetividade, a significação, a vontade de esquecer. Ni-
etzsche diz o seguinte: “Fiz isto, diz minha memória; não posso ter feito
isto, diz meu orgulho; afinal, a memória cede”. — São coisas inteiramente
diversas a memória daquilo que se aprendeu: (saber) e a memória da expe-
riência vital pessoal (recordações) ; como são também absolutamente dife-
rentes, na relação com a personalidade, essas recordações, que ou ainda
se apresentam atuantes, significativas, nada remotas; ou por assim dizer,
se tornaram históricas, constituindo- um saber' através da objetivação à
distância da personalidade atual. Dentre as relações compreensivas que
influem na memória, têm-se investigado, experimentalmente, aquelas que
existem entre prazer e desprazer da vivência e das tendências, de um lado
e, doutro, conservação- ou esquecimento. Vivências prazerosas conser-
vam-se com mais facilidade do que vivências desagradáveis; estas se con-
servam mais facilmente que as indiferentes. É antigo o ensinamento de
que as dores, nos é fácil esquecer. O otimismo mnêmico faz subsistir, no
presente, sobretudo, o que há de agradável no passado. As recordações de
dores muito fortes após operações, após o parto, de afetos violentos, desa-
parecem: sabe-se ainda, posteriormente, que foi muito duro, tormentoso,
fora do comum, mas não se tem recordação concreta da vivência. Será que
as vivências desagradáveis foram, desde o início, mal fixadas, ou será que
é mais difícil reproduzi-las? Ou talvez se pense menos nelas e, por isso,
mais depressa se esqueçam? É necessário, porém, distinguir- o esqueci-
mento de obrigações, tarefas enfadonhas, cenas penosas, resultante do
simples fato de nelas não se pensar, daquele recalque intencional ou invo-
luntário que leva a verdadeira dissociação ou cisão das coisas, desagradá-
veis (impossibilidade de reprodução).
Entre os distúrbios da memória, distinguem-se aqueles que aparecem
em consequência de um estado anormal da consciência, amnésias) e
aqueles que se observam na vigência do estado normal de consciência.

a) Amnésias.
Chamam-se amnésias os distúrbios da memória que atingem certo
tempo limitado, do qual mais nada ou pouca coisa (amnésia parcial) se
pode recordar, ou que alcançam vivências menos precisamente limitadas,
do ponto de vista temporal. Cumpre entre elas distinguir os seguintes ti-
pos: 1. Não se trata, em absoluto, de distúrbio da memória. Profunda-
mente perturbada a consciência, nada se pôde apreender, e, portanto, no-
tar. Coisa alguma veio à memória; logo, nada se reproduz. 2. Houve, em
certo momento, a capacidade de apreender; mas, profundamente pertur-
bada a capacidade de notação, nada se conservou. 3. Pode alguma coisa,
em estado anormal, ter sido, passageiramente notada, mas o cabedal
mnêmico está lesado por processo orgânico. É nas amnésias retrógradas
que mais claro se apresenta esse processo; por exemplo, após ferimentos
graves na cabeça, quando aquilo que se vivenciou nas últimas horas ou
dias que precederam o acidente se apaga de todo. 4. Há amnésias extre-
mamente notáveis que consistem, apenas, em distúrbio da capacidade de
reprodução. A memória armazenou tudo; só não pode despertar o que
possui, a não ser, por exemplo, no estado hipnótico. Janet estudou essas
amnésias. Os doentes não se lembram mais de certas vivências (amnésias
sistemáticas), de períodos de tempo limitados (amnésias localizadas), ou
nem se lembram de coisa alguma pretérita (amnésias gerais). Quem lhes
observa o comportamento nota que a memória deles trabalha, de fato; que
não se portam como pessoas que hajam perdido a memória; que, subjeti-
vamente, não se acham perturbados por causa da amnésia, esta lhes
sendo indiferente; mais ainda, a amnésia é inconsistente e, por fim, pode
desaparecer por si mesma (às vezes, periodicamente), ou pela hipnose.
Em qualquer amnésia particular que se observe, participam, de
quando em quando, vários desses tipos, se bem que, em geral, predomine
um ou outro. Muito característicos são o modo por que alguma coisa que
provém do período amnésico se conserva — é raro uma amnésia ser com-
pleta — e também o modo por que alguma coisa particular pode ser des-
pertada. Aqui, opõem-se dois tipos das recordações espontâneas.1) Recor-
dação sumária, recordação do principal, do essencial, de maneira confusa,
sem pormenorização alguma. 2) Recordação do particular, apenas, do
não-essencial; esse particular apresenta-se isolado, parcialmente recor-
dado, sem pormenorização, em traços inteiramente acessórios; mas as re-
lações, quer temporais, quer objetivas entre as particularidades são impre-
cisas.
Correspondem a esses dois tipos os modos pelos quais, mediante esti-
mulação, ou mediante expedientes mnêmicos, se podem despertar certos
conteúdos da fase amnésica. 1) Por meios apropriados, dos quais o mais
notório é a hipnose, evocam-se as relações sistemáticas, os complexos in-
teiros, as vivências todas. 2) Por estimulação de imagens detalhadas, des-
pertam-se, através das vias associativas mais diversas, pormenores tam-
bém apenas individuais; às vezes, em grande cópia, embora seja difícil ou
até impossível obter ordenamento temporal e correlação. Pode-se dizer, es-
quematicamente, que os tipos primeiro indicados são característicos das
amnésias histéricas e das amnésias resultantes de afetos violentos, ao
passo que os tipos apontados em segundo lugar caracterizam as amnésias
dos epiléticos e aquelas que ocorrem quando há turvação da consciência
por força de estados orgânicos.
Chama a atenção o fato de também amnésias organicamente condicio-
nadas serem, vez por outra, possíveis de suprimir pela hipnose, conforme
se tem logrado fazer em amnésias epiléticas1, bem como no caso da amné-
sia retrógrada de um enforcado ressuscitado.

b) Distúrbios da capacidade de reprodução, do cabedal mnêmico e da ca-


pacidade de fixação.
Além das amnésias temporalmente limitadas, temos de lidar, e aliás
muito mais frequentemente, com distúrbios da memória que se apresen-
tam como simples exagero de nossos esquecimentos cotidianos, ou como
simples defeitos de fixação etc. Distinguimos, mais uma vez, no referente a
esses distúrbios da memória, a capacidade de reprodução, o grande reser-
vatório das disposições mnêmicas e a memória de fixação.
1. Distúrbios da capacidade de reprodução.
Tem-se, muitas vezes, impressão de memória falha nos hebefrênicos
que falam sem parar ou se apresentam bloqueados; nos melancólicos,
subjetivamente queixosos ou inibidos; nos maníacos, com fuga-de-ideias e
incapacidade de concentração; casos todos estes nos quais talvez esteja
diminuída, transitoriamente, a capacidade de reprodução, conservando-
se, no entanto, a memória, a qual se mostra intata após a cessação das al-
terações passageiras. Só durante certo período é que os doentes se apre-
sentam insanos. Também é comum encontrar distúrbio da capacidade de
reprodução nos psicastênicos, que sabem tudo perfeitamente, mas de
nada se lembram exatamente quando têm de recordar alguma coisa; por
exemplo, por ocasião de um exame. A incapacidade histérica de reprodu-
ção, sempre ligada a complexos inteiros, caso em que se trata não tanto de
lapso momentâneo quanto de dissociação de algum campo mnêmico de-
terminado e preciso, já foi mencionado entre as amnésias.
2. Distúrbios da memória, em sentido mais estrito.
Nosso cabedal mnêmico aumenta ou reforça-se cada vez mais, é certo,
de um lado, pela capacidade de fixação; mas, simultaneamente, está sem-
pre em desintegração, pois as disposições mnêmicas desaparecem com o
correr do tempo, isto é, esquecemos. É, sobretudo, na velhice e nos pro-
cessos orgânicos que o cabedal mnêmico se pode apresentar excessiva-
mente desintegrado. A começar dos fatos mais recentes, vai-se apagando
também a memória do próprio passado. Mais ainda: os doentes perdem o
vocabulário: já não se lembram de palavras com que designar coisas con-
cretas, ao passo que abstrações, conjunções, etc., ainda perduram longa-
mente. Generalidades, expressões comuns, categorias dentre as mais am-
plas subsistem, ao mesmo tempo que se dissipa tudo quanto é sensorial-
mente objetivo, individual. Das recordações vitais pessoais primeiro desa-
parecem as que de mais recente data se adquiriram; a perda da memória
vai cobrindo, pouco a pouco, as épocas mais remotas; as recordações dá
infância e da mocidade são as que mais longamente subsistem, por vezes
até notavelmente vivas.
3. Distúrbios da capacidade de fixação.
Os doentes já não conseguem gravar coisa alguma, se bem que ainda
disponham do cabedal mnêmico anteriormente adquirido. Investigam-se
experimentalmente esses distúrbios, revelando-se de especial utilidade a
tarefa que consiste em fazer aprender pares de palavras, com ou sem co-
nexão associativa, e medir o rendimento, o que permite determinar, quan-
titativamente, o distúrbio da fixação.
G. E. Stõrring observou um caso de perda total, isolada, da capacidade
de fixação sem distúrbios psíquicos outros senão os resultantes dessa de-
sastrosa perda; caso único, excelentemente descrito e extraordinariamente
instrutivo:
Um serralheiro de 24 anos sofreu envenenamento por gás, no dia 31
de maio de 1926. Examinado em 1930, verifica-se estar conservado o ca-
bedal mnêmico relativos aos fatos que precederam essa data. Daí por di-
ante nada mais se acresce. Após dois segundos, desaparecem quaisquer
impressões. Perguntas mais longas o paciente já esqueceu quando quem
pergunta chega ao fim da frase; só responde a perguntas breves. Ontem,
para ele, é, invariavelmente, 30 de maio de 1926; o que a isso se opõe
deixa-o, um instante, perplexo, mas de imediato a contradição é esque-
cida. Sua noiva casou-se com ele após o incidente, sem que, no entanto,
ele saiba disso; daí responder à pergunta: “Ê casado?” — “Não, mas vou
casar breve”. A palavra “casar”, no fim da frase, já diz hesitando; já nem
sabe por que foi que a pronunciou. Vendo pela janela a paisagem invernal,
diz corretamente que é inverno; mas, se se lhe taparem os olhos, dirá, daí
a um instante, que é verão, porque está fazendo tanto calor. Logo em se-
guida, vendo a lareira acesa, é, novamente, inverno, porque acesa a la-
reira. Ao exame habitual da pele, mediante estimulação com uma alfine-
tada, não tarda a esquecer-se da picada, se bem que perdure a sensação
desagradável. Por isso, estende sempre a mão, sem desconfiança alguma;
a sensação desprazerosa soma-se, porém, até que, afinal, de um momento
para outro, se instala uma reação elementar de medo e fuga.
Subsiste a experiência global da vida anterior; por isso, o paciente
apreende exatamente, reconhece as coisas, ajuíza com correção tudo
quanto possa, resumido num só momento, ser-lhe feito presente. Reco-
nhece as pessoas que conhecia até 1926. Quem veio a conhecer posterior-
mente afigura-se-lhe sempre, a despeito de contatos frequentes, como é o
caso do médico, inteiramente estranho e novo. Não está absolutamente
obtuso, nem sonolento, mas vigil e atento, presente à situação, observa-
dor, divertido, movendo-se e falando com espontaneidade. Sua vida senti-
mental é a mesma de antes do desastre; sua personalidade ó absoluta-
mente a mesma. Em relação ao passado, existe uma intensidade maior
dos sentimentos (diz a mulher que ele sente mais, com mais profundidade
que antes), porque cada situação lhe chega à consciência inteiramente iso-
lada, sem influência do passado nem do futuro; também porque cada vi-
vência lhe é repentina e, por isto, atua mais vivamente. Seus sentimentos
são mais límpidos do que antes porque condicionados, apenas, pelo que
acaba de vivenciar. O paciente vive de todo no presente, mas não no
tempo. Os sentimentos centrais, condicionados pela personalidade, apre-
sentam-se mais fortes do que os periféricos, estes, mais indiferentes. Sua
personalidade impressiona tanto os que o cercam que todos se lhe aproxi-
mam. Os atos espontâneos, cm confronto com a calma anterior ao desas-
tre, começam abruptamente e são mais rápidos. Antes de iniciar uma
coisa, o paciente mostra-se extremamente inquieto. É preciso que os im-
pulsos se somem até alcançar intensidade suficiente, para, então, de sú-
bito, se desencadearem. Nada sabe o paciente de seu distúrbio de memó-
ria; nem sequer o nota. Se o notasse, esqueceria, logo a seguir, essa obser-
vação; mas, realmente, não percebe nada do que lhe aconteceu porque to-
das as impressões lhe fugiriam, se sobre elas quisesse refletir. Pelo contrá-
rio, em certas situações, mostra-se perplexo e inquieto, não porque sinta o
esquecimento, e sim porque ainda lhe resta um sentimento de atividade,
embora ignore o que deve fazer, ou o que quer fazer, se isso não lhe for
lembrado a cada segundo. A perplexidade é tão frequente que lhe marca a
expressão fisionômica. Stõrring compara esse distúrbio a uma placa de
cera que, repentinamente, se tornasse pétrea e na qual são legíveis as im-
pressões antigas, sem 'que, porém, inscrição nova alguma deixe qualquer
impressão.
A falha dos rendimentos mnêmicos afeta, muitas vezes, a capacidade
de fixação e a capacidade de reprodução, com apagamento simultâneo das
disposições mnêmicas existentes. Pode-se ir além, se se quiserem descre-
ver os rendimentos globais e o comportamento particular. Descrição exce-
lente das falhas de memória numa síndrome alcoólica de Korsakov é a que
faz, por exemplo, W. Scheid. Veem-se inúmeras ilhas mnêmicas, com di-
versificação não seletiva das falhas e fixação igualmente não-seletiva.
Constata-se falha completa também após vivências muito excitantes, em-
bora se conservem insignificâncias. Os rendimentos mnêmicos especiais
dependem muito da situação e da atitude vital.
c) Falsificações da memória.
Descrevemos, até aqui, falhas da memória em relação tanto ao saber
geral quanto às recordações pessoais; falhas a que se opõem — fenômeno
basicamente outro — as falsificações da memória, tais como se encon-
tram, muitas vezes, nos indivíduos sadios. Os testes de reprodução 1 têm
mostrado quanto elas são surpreendentemente extensas; esses testes,
que, como quase todas as experiências que se fazem com “tarefas”, dão o
corte transverso de toda a vida psíquica, permitem, quando aplicados a
doentes mentais, esclarecer e objetivar, numericamente, vários fenômenos
de modo mais preciso do que mediante a investigação habitual. As falsifi-
cações da memória desempenham grande papel nas doenças mentais. Há
a gabolice dos paralíticos; as fantasias arbitrariamente construídas de cer-
tas demências paranoides, que surgem e se divulgam como se fossem re-
cordações; as ilusões mnêmicas análogas às alucinações. Em relação a vá-
rios estados, julga-se compreender de que modo, quando ocorrem distúr-
bios sérios da capacidade de fixação, com perda concomitante de cabedal
mnêmico antigo, os doentes preenchem sua perda com invenções momen-
tâneas (confabulações). Não é que hajam perdido a capacidade de pensar,
a inteligência, o juízo; apreendem a situação, mas são, apenas, incapazes,
pela perda das associações mais necessárias, de chegar a resultado cor-
reto. Inventam sem querer aquilo que parece ajustar-se à realidade e con-
tam, estando de cama há várias semanas, que foram hoje ao mercado, ou
que trabalharam na cozinha.
W. Scheid observou, no seu doente com Korsakov alcoólico, que este ti-
nha recordações reais (deformadas, como acontece nas confabulações);
afiguravam-se-lhe, porém, recordações oníricas (Será que sonhei isso?); o
doente tinha, no entanto, dúvida se era sonho ou mesmo realidade. Scheid
descreve a vivência da recordação: Normalmente, nós nos lembramos da
realidade passada como tendo acontecido em determinado tempo, na con-
tinuidade dos acontecimentos, com a respectiva anterioridade e posteriori-
dade cronologicamente localizada. Subjetivamente, podem também algu-
mas confabulações ser vivenciadas como recordações dessa ordem; nelas,
porém, em geral, há consciência muito menor da realidade, porque ao que
nelas se lembra falta o “background” real, a conexão temporal e causal,
dentro da recordação global. Também pessoas normais podem lembrar-se
de alguma coisa sem localização cronológica e sem correlações; mas duvi-
dam se sonharam com aquilo que recordam e buscam associações com
outras recordações. Foi o que sucedeu ao korsakoviano: a falta de associa-
ções fez-lhe parecer sonhado aquilo que, realmente, recordava.
§ 4. Motricidade

Sob o ponto de vista do “arco reflexo psíquico”, todo evento vem a dar,
finalmente, nos fenômenos motores, graças aos quais se exterioriza o re-
sultado da elaboração interna dos estímulos. Sob o ponto de vista da com-
preensão interna, a consciência da vontade põe-se em movimento; ao ato
volitivo se associa um mecanismo motor extraconsciente, que— só ele —
dá capacidade efetiva a esse ato volitivo.
Podemos, então, investigar de dois lados os fenômenos motores inúme-
ros e variadamente grotescos dos doentes mentais: ou procuramos conhe-
cer o próprio mecanismo motor em suas perturbações, que, em certas cir-
cunstâncias, podem existir independentes de qualquer anomalia psíquica
— e este é o caminho seguido pela neurologia — ou tentamos saber da vida
psíquica e da consciência volicional dos doentes, cuja consequência nor-
mal está manifesta nos movimentos visíveis. Uma vez reconhecida essa re-
lação, os movimentos são para nós “atos” compreensíveis: por exemplo, a
alegria motora dos maníacos borbulhantemente vivazes, a compulsão mo-
tora dos angustiados. Entre esses dois fenômenos motores visíveis - o neu-
rológico, como distúrbio do aparelho motor, o psicológico, que resulta de
anormalidade mental num aparelho motor normal - estão os fenómenos
motores psicóticos, que registramos sem compreendê-los suficientemente
nem de um modo nem de outro. Os neurológicos chamam-se distúrbios da
motilidade, enquanto os psicóticos são denominados da motricidade
quanto aos psicológicos, compreendem-se; não, primariamente, como fe-
nômenos motores, e sim como atos e expressões.

a) Distúrbios motores neurológicos.


Pertencem à motilidade e à respectiva regulação três sistemas, a saber:
o sistema piramidal (quando lesado: paralisias simples), o sistema extrapi-
ramidal dos gânglios basais e do mesencéfalo (quando lesado: alterações
do tônus, da mímica e da gesticulação, da coordenação dos movimentos;
por exemplo, cessação dos movimentos pendulares inconscientes dos bra-
ços quando se anda, movimentos coreicos e atetóticos) e o sistema medu-
lar e cerebelar (quando lesado: ataxia, distúrbio da coordenação motora
por supressão de fatores sensitivos). A psicopatologia tem de conhecer os
distúrbios da motilidade, a fim de não pretender compreendê-los, impro-
priamente, sob o aspecto psicológico. Os movimentos mínimos automáti-
cos — por exemplo, o riso compulsivo que se observa na paralisia bulbar -
não são, de modo algum, expressão de interioridade psíquica, mas efeito
de estímulos possíveis de localizar no cérebro.

b) Apraxias
O conhecimento neurológico vai subindo, estratificadamente, no meca-
nismo nervoso, como se tivesse de cada vez mais aproximar-se do centro
da psique, da consciência psíquica volicional. Distúrbio do mais alto nível
até hoje descoberto, a apraxia consiste no fato de que, plenamente intatos
os processos orgânicos, de um lado, funcionando corretamente a taxia e
os mecanismos motores que vão da córtex à periferia (portanto, sem ata-
xia, nem paralisia), não pode o doente, doutro lado, fazer o movimento
adequado à intenção objetiva normal. Por exemplo: quer acender um fós-
foro e, no entanto, leva a caixa atrás da orelha, porque não dispõe da fór-
mula motora que subordina os movimentos ao ato significativo. Liepmann
localizou esse distúrbio no cérebro e chegou a observar-lhe a ocorrência
unilateral: um paciente podia executar os movimentos corretos com um
braço, sendo, entretanto, apráxico do outro.
Os distúrbios neurológicos e essas apraxias têm uma coisa comum
com a motricidade psicótica' e normal: é que todos só se «podem reconhe-
cer como distúrbios do mecanismo motor no caso de, quanto ao mais,
concomitantemente, houver vida psíquica sadia; e no caso de serem aná-
tomo-cerebralmente localizáveis. É provável que entre os mecanismos da
praxia e o impulso volitivo consciente ainda haja toda uma série de fun-
ções extraconscientes superpostas umas às outras. Os conhecimentos de
que aqui dispomos têm vindo de baixo para cima, mas certo é que,
quando excedem os limites da apraxia motora, se perdem ainda, no pre-
sente momento, em territórios ignorados.

c) Distúrbios motores psicóticos.


Depois que distinguimos dos fenómenos motores dos pacientes men-
tais, por um lado, os movimentos certamente neurológicos puros e, por
outro lado, os movimentos possíveis de compreender como expressão de
processos psíquicos (com conservação de mecanismos extraconscientes
normais) e como atos condicionados por motivos anormais, ainda nos
resta a quantidade avultada de fenômenos surpreendentes e grotescos,
que, no momento presente, apenas nos é dado descrever, registrar e, em
seguida só hipoteticamente interpretar de modo mais ou menos plausível.
Wernicke distingue distúrbios motores acinéticos e hipercinéticos, aos
quais opõe os distúrbios paracinéticos, ou seja, os movimentos mal suce-
didos, ineptos.
1. Descrição.
Estados acinéticos.
a) Tensão muscular. As maxilas estão firmemente comprimidas, as
mãos enclavinhadas, as pálpebras espasmodicamente cerradas, a cabeça
rígida, o dia inteiro, sem tocar o travesseiro. Se se tenta mover passiva-
mente um dos membros, nota-se resistência, servindo essas tensões para
justificar o nome catatonia. Como sintomas catatônicos, entretanto, não
se assinalam, apenas, essas tensões, mas todos os fenômenos motores in-
compreensíveis que aqui descrevemos.
b) Flexibilidade cérea. Existe tensão escassa, porém fácil de vencer;
feito cera, os membros deixam-se colocar nas posições mais variadas, po-
sições nas quais se fixam, do mesmo modo que nas anteriores; fenômenos
a que se dá também o nome de catalepsia, da qual existe, externamente,
transição para o fenômeno compreensível, isto é, os doentes, colocados em
tal ou qual posição, nela se mantêm ao acaso, passivamente, sem oferecer
resistência aos movimentos, a eles prestando-se com naturalidade.
c) Imobilidade flácida. Os doentes deixam-se estar imóveis, como nos
casos precedentes: podemos mover-lhe todos -os membros, às vezes muito
ligeiramente: tornam a cair com o peso.
d) Posições bizarras, estatuarias. Kahlbaum comparou certos doentes a
estátuas egípcias, enrijecidas em posição inteiramente inexpressiva, como
se estivessem petrificadas: um sentado de tal ou qual maneira no peitoral
da janela; outro num canto, etc.
Estados hipercinéticos. Quando ocorrem estados de excitação mo-
tora, fala-se em compulsão motora, mas a verdade é que quase nunca sa-
bemos coisa alguma de “compulsão”, sendo melhor limitarmo-nos a ex-
pressões indiferentes, tais como “excitação motora”. 'Os antigos diziam:
“movimentos frenéticos”, ou “frenesi”. São movimentos variados, aparente-
mente sem objetivo e também sem que se possa notar qualquer afeto pra-
zeroso ou ansioso, qualquer outro fundamento psíquico. Os pacientes, aci-
néticos parecem estátuas egípcias; estes assemelham-se a máquinas sem
alma. A investigação de casos particulares nada revela que não seja a im-
pressão de existirem ora fenômenos neuronais, ora atos compreensíveis,
ora uns e outros, com complementação da atividade neuronal por movi-
mentos expressivos compreensíveis (movimentos complementares de Wer-
nicke). Neste ponto, todavia, nada se pode aduzir que valha para todos os
casos, sendo-nos forçoso restringir-nos, por enquanto, a descrever exter-
namente os tipos que vêm a apresentar-se.
Há muitos movimentos que lembram, pela aparência externa, movi-
mentos atetóticos, coreicos e compulsivos, tais como se observam nas le-
sões do cerebelo e dos tratos cerebelares. Os pacientes fazem movimentos
estranhos com o corpo, rodopiam, esticam-se, enrijando as costas, torcem
os dedos de modo bizarro, sacodem braços e pernas. — Outros movimen-
tos dão a impressão de ser reações a sensações corpóreas. Assim é que os
doentes giram e se torcem, comprimem os órgãos genitais com as mãos,
pegam no nariz, escancaram a boca e metem a mão dentro, apertam os
olhos, inclinam-se para o lado ou mantêm-se firmes, como se quisessem
evitar uma queda para o outro lado. — Mas há outros movimentos que pa-
recem ser expressivos de alguma coisa: tais são as caretas de toda sorte,
os gestos grotescos, que do há muito se afiguram característicos da lou-
cura: os trejeitos, lembrando transportes. extasiados, tremendos pavores,
ou então as brincadeiras bobas das crianças. Os doentes batem com a ca-
beça na parede, sacodem os braços para o ar, tomam atitudes de pregador
ou de lutador, quase todos os movimentos cessando rapidamente, substi-
tuídos por outros. Inversamente, há movimentos que se repetem, infindá-
veis, semanas e meses. Da mesma ordem são a dança, as cabriolas, os
saltos e a ginástica, os inúmeros movimentos rítmicos. — Ainda outro
grupo de movimentos pode-se resumir no ponto de vista de que se reali-
zam, de maneira estereotípica, em conexão com quaisquer impressões
sensoriais: por exemplo, os doentes pegam em tudo, viram as coisas de
um jeito e doutro, seguem-lhe os contornos com o indicador, imitam movi-
mentos que vêm (ecopraxia), repetem tudo que ouvem (ecolalia). A todos os
objetos que enxergam dão nomes. O que há de caraterístico nesses movi-
mentos é que se repetem estereotípica e ininterruptamente. — Enfim, há
um grupo de movimentos que se assinala pela complicação especial e pela
semelhança- com atos intencionais: um doente pula e tira o chapéu para
um transeunte; outro faz exercícios militares; um terceiro põe-se, de sú-
bito, a dizer palavrões; casos em todos os quais dizemos tratar-se de atos
impulsivos, particularmente notáveis quando certo paciente, que esteve
imóvel dias seguidos, os pratica de um momento para outro, voltando de-
pois à imobilidade.
Em todos os distúrbios motores descritos, pode-se, uma vez ou outra,
observar que se limitam, evidentemente, a certas áreas. Por exemplo,
veem-se pacientes que falam sem parar, desatinados, mantendo-se, no en-
tanto, imóveis ao passo que outros, silenciosos, se movimentam estranha-
mente. É frequente localizarem-se as tensões musculares, sobretudo, em
áreas particulares: por exemplo, as pálpebras e as maxilas estão forte-
mente apertadas, enquanto as- articulações do cotovelo podem mover-se
com facilidade.
Mais outra observação digna de nota: nos estados acinéticos, chama
bastante a atenção o comportamento diverso nos movimentos espontâ-
neos e naqueles que se têm de fazer por solicitação' (diferença entre movi-
mentos iniciativos e reativos, Wirnicke). Há vezes em que o doente, imóvel
quanto ao mais, faz suas necessidades, come, leva o alimento à boca.
Existindo esses movimentos, o paciente não reage, em geral, a solicitações.
Se se tentar levá-lo, dando-lhe ordens ou tarefas, a praticar movimentos
reativos, ver-se-á que ele começa um movimento, daí resultando a impres-
são de que entendeu a tarefa e quis executar o movimento adequado à fi-
nalidade; não prossegue, contudo, o movimento, outro movimento repen-
tino interrompe-o, ou o movimento primitivo simplesmente suspende-se;
ou ainda, aparecem tensões extensas em seu lugar, podendo executar-se
movimentos inteiramente contrários (negativismo), ou mesmo executar-se
o movimento solicitado do modo plenamente correto, mas só após hesita-
ção prolongada, com tensões musculares e tênues esforços convulsivos. É
o que, por exemplo, se observa quando se pede ao doente quê levante a
mão: parece haver grande esforço de sua parte. Com efeito, o rosto enru-
besce, o suor escorre, os olhos fitam o médico, muitas vezes, com subita-
neidade breve e peculiar, sem expressão que se possa com segurança en-
tender. Não é raro observar, em catatônicos, uma. ‘‘reação do último ins-
tante” (Kleist): depois de muitas tentativas à cabeceira do paciente, no mo-
mento em que nos levantamos para ir embora, ele diz alguma coisa. Se
nos virarmos, já nada obteremos. Daí uma regra antiga: com os catatôni-
cos, prestar bem atenção no momento em que se vai embora, a fim de pe-
gar a mínima informação possível. Acontece o doente que não diz palavra
escrever a resposta a uma pergunta; ou um paciente imóvel dizer que não
pode mover-se. Mais não se consegue, porém, nesses casos, do que a im-
pressão de estarem em causa distúrbios do mecanismo motor, tais como
apraxias motoras. E essas manifestações são raras entre todos os fenôme-
nos que ainda se nos apresentam inteiramente misteriosos e que, de sa-
ída, chamamos, simplesmente, “motores”.
Todos esses fenômenos motores incompreensíveis são chamados cata-
tônicos, por extensão do conceito originariamente mais determinado, ocor-
rendo com frequência no grande grupo dós processos esquizofrênicos.
Também em idiotas de nível muito baixo notam-se fenômenos que pare-
cem semelhantes a estes e que Plaskuda assim descreve: “O que mais se
observa, nos idiotas, são um balançar rítmico, do tronco, movimentos gi-
ratórios da cabeça, caretas, estalidos com a língua, movimentos choca-
lhantes da maxila inferior, rodopios com os braços, puxões, batidas, es-
perneios, saltos ritmados, corridas circulares”. — Observam-se catalepsias
em crianças que, somaticamente enfermas, apresentam turvações da
consciência.
2. Interpretação.
Já acentuamos não ser ainda possível a interpretação de todos os fenô-
menos descritos. Kleist tentou, em vão, a nosso ver, apesar do grande va-
lor de sua descrição, aplicar a teoria mais recente sobre a apraxia à inter-
pretação neurológica que Wernicke esboçou em sua conceituação das psi-
coses da motilidade. É possível e mesmo provável que, em alguns distúr-
bios motores catatônicos, um fator seja constituído por distúrbios neurolo-
gicamente tangíveis. Não seria ele, porém, de natureza psíquica, mas se
trataria de distúrbio de algum mecanismo a que a vontade se opõe, li-
gando-se a distúrbio da própria psique e da própria vontade. Têm-se com-
parado a catatonias certas anomalias motoras que ocorrem em doenças
genuinamente neurológicas dos gânglios. subcorticais (corpo estriado) e
que também podem estar ligadas a anomalias psíquicas notáveis (falta de
iniciativa). Mas o que se destaca são, precisamente, as diversidades psico-
lógicas; e a comparação só pode ser proveitosa, se se conseguir descobrir o
que é neurológico e, bem assim, apreender, mediante confronto mais
claro, o distúrbio psíquico catatônico. Os distúrbios motores pós-encefalí-
ticos, extremamente semelhantes aos catatônicos, são muito notáveis:
Há rigidez dos músculos, faltando aos movimentos espontaneidade. Os
quadros clínicos que se observam parecem, a princípio, catatônicos: “O
doente está deitado supino, a cabeça dobrada, sem tocar o travesseiro. As
posições que se lhe dão conservam-se passivamente, durante muito
tempo, sejam ou não confortáveis. As posições finais, fixam-se num ato ou
num movimento rígido, no meio de qualquer ação, qual seja, levar a colher
à boca, deixar a mão parada a meio-caminho; os braços mantêm-se rijos,
quando o doente caminha”. O estado nada tem, entretanto, de catatônico,
pois os pacientes enfrentam o distúrbio efetivamente e, conquanto lhes,
sejam difíceis os movimentos espontâneos, lhes é fácil realizá-los sob co-
mando ou por estímulos externos (daí eles mesmos se servirem de artifí-
cios: fazer-se irritados, enfurecidos, entusiasmar-se, a fim de não ficarem
paralíticos). Se se lhes distrai a atenção, aumenta a tensão muscular e os
movimentos se tornam mais difíceis (essas tensões musculares que au-
mentam, quando têm a atenção distraída, perturbam-lhes o sono), ao
passo que, prestando atenção ao movimento que querem fazer a comando
de um estranho, vem a distensão, facilitando os movimentos. São frequen-
tes os fenômenos iterativos: inflar rítmico das bochechas, estalidos com os
dedos, movimentos da língua para dentro e para fora. Mas os doentes sen-
tem toda essa impossibilidade de parar como sendo compulsiva, quanto a
tudo mais, apresentando-se lúcidos, ordeiros, orientados, não psicóticos,
sem negativismo algum, nem resistência, nem oposição.
Descrevem-se casos de encefalite grave com palavras que lembram,
quase inapelavelmente, a catatonia: “Pessoas quase totalmente inibidas”,
apresentando “mímica imóvel e olhar parado”; fala-se em “homens cala-
dos, absolutamente silenciosos, dando a impressão de estátuas”; referem-
se também “alguns acessos de fúria, ora com gritos repentinos, sem mo-
tivo aparente, ora com prantos igualmente sem razão visível; e mesmo ten-
tativas espontâneas de estrangular pessoas dentre as mais chegadas” (Do-
rer).
Descreve-se, mais pormenorizadamente ainda, o entrelaçamento de
movimentos voluntários com movimentos neurologicamente determina-
dos. Certos movimentos há, realizados voluntariamente por doentes que
tiveram encefalite epidêmica, levando os membros a posições que se veem
também na movimentação atetótica ou coreica, bem como nos espasmos
de torsão.
Foi Kraepelin quem deu a interpretação psicológica. Graças, principal-
mente, às observações dos movimentos iniciados e interrompidos, da rea-
ção do último instante e do negativismo, pode-se chegar a uma compreen-
são à base do mecanismo psíquico de ideia e contra-idéia, esforço, e con-
tra-esfôrço. É como se toda ideia do doente não só evocasse uma contra-
idéia, todo esforço um contra-esfôrço, mas, realmente, o promovesse, aca-
bando por preponderar. Uma doente que quer erguer a mão deixa, justa-
mente por isso, de erguê-la, fato esse que Kraepelin chamou bloqueio, ex-
plicando muitos dentre os distúrbios motores pelo bloqueio da vontade. —
Outros movimentos foram por- ele explicados como expressão de alteração
da personalidade. Porque todos os homens exprimem, nos movimentos
que fazem, seu modo de ser, as- personalidades mórbidas o exprimem em
movimentos amaneirados e complicados, isto é, em uma “perda da graça'’.
Outros movimentos foram explicados por Wernicke, que admitiu a emer-
gência autóctone repentina de imagens-alvo psicologicamente imotivadas
que se materializam de modo impulsivo. Também o mesmo autor explicou
outros movimentos como sendo inervações automáticas que se comple-
mentam com movimentos psicologicamente motivados (movimentos com-
plementares}’, é o caso que ocorre quando um movimento de apreensão
complementa a contração de um braço. — Vez por outra, a própria auto-
narração do doente, através de seus distúrbios motores, nos dá ideia clara
do que vivencia; além do que, os movimentos que mais chamam a atenção
podem ter motivação psicologicamente compreensível (o que exclui a pos-
sibilidade de base orgânica concomitante).
Uma paciente, com psicose aguda que a torna quase inacessível, ras-
gava, a todo momento, as roupas e fazia muitos outros movimentos in-
compreensíveis. Em sua autonarração, passada a fase aguda, vejamos o
que escreveu (Gruhle): “Como que sonhando, vinha-me a inspiração de
que, se não tivesse vergonha de rasgar as roupas na frente de um homem,
todas as criaturas humanas iriam, imediatamente, para o céu. O homem
em questão fará de ti sua noiva divina e tu serás rainha do céu. Daí por
que estava sempre a rasgar minhas roupas íntimas. Outra ideia que tinha
era de não poder usar roupas por ser uma criatura celestial, do mesmo
modo que não podia comer". Movimentos que amedrontam a quem os ob-
serva significam, às vezes, para o doente, divertimento inofensivo (por
exemplo, saltitar). “Meus esforços para cair têm causas diversas. Uma vez,
obedecia a vozes que me diziam: “Cláudia, cai (Cláudia era o nome da pa-
ciente). Outras vezes, só minha queda é que podia redimir o mundo, por-
que eu morreria, se me despencasse, perpendicularmente, com o rosto
para o chão. Nunca tive coragem para fazer isso e sempre caía, como o se-
nhor sabe, ajoelhada ou sentada.” “Esqueci-me de explicar por que, de vez
em quando, andava nas pontas dos pés. É que a perda do peso causava
um sentimento maravilhoso de leveza angelical, de modo que para mim
era um gôzo pairar nas pontas dos pés."

§ 5. Linguagem

Preliminares psicológicas. Sob o ponto de vista do “arco reflexo psí-


quico", a linguagem nada mais é do que uma parte especialmente desen-
volvida do arco reflexo total; a compreensão da linguagem é parte da per-
cepção e da apreensão; a fala é parte dos fenômenos motores. Dá-se, po-
rém, que, sob este ponto de vista, só se explicam uns tantos fenômenos
que dizem respeito à linguagem; não a linguagem, propriamente dita.
Deve-se distinguir a fala das manifestações puramente acústicas, que.
talvez sejam expressão involuntária, mas não constituem, como tais, lin-
guagem; são gritos, interjeições, silvos, etc., e não palavras, nem frases.
Falta-lhes a vontade de comunicação. Só há fala quando um sentido se
liga a palavras articuladas. A linguagem objetiva é um sistema de sinais,
que se tornou histórico pela tradição e do qual aquele que fala, formado
em certo ambiente linguístico, se serve como instrumento.
Também se há de distinguir fala, de movimentos expressivos, que
constituem a maneira involuntária pela qual o psiquismo se faz visível
através da mímica, dos sons, da atitude. Fala, ao contrário, é comunica-
ção voluntária de um conteúdo objetivo, quer se faça por meio de gestos,
ou da fonação. Quando falo, tenho a intenção de dizer àquele que me ouve
alguma coisa que ele entenda.
Devem-se distinguir a linguagem e a fala. Aquela é a estrutura mental
objetiva, na qual participam, mais ou menos, os indivíduos que pertencem
à generalidade de uma comunidade linguística; enquanto a fala é a reali-
zação psicologicamente efetiva do indivíduo. O que ora temos de ver é a
fala como evento psicológico; a linguagem como obra cultural, ainda não.
Fala e compreensão ligam-se estreitamente, realizando-se no intercâm-
bio com várias, pessoas. Fala e compreensão ocorrem aqui como comuni-
cação de um significado que se tem em vista, quando se fala: é este signifi-
cado, pois, e não a linguagem, nem as palavras, que está no campo de
atenção de quem fala e de quem compreende.
Solitário, o homem serve-se da linguagem para entender a si próprio,
seus pensamentos, sua vontade. Falar e pensar não são a mesma coisa,
mas à linguagem se liga todo desenvolvimento do pensamento. Quem
pensa trabalhando manualmente com certos objetos, quem executa, efeti-
vamente, um trabalho significativo, quem se porta de tal ou qual maneira
não fala, é certo, mas tem um análogo da linguagem nas coisas que ma-
neja como sinais e instrumentos do fazer, pois não pode haver, realmente,
pensamento que não se apoie em qualquer percepção concreta. As cogni-
ções inconcretas apoiam-se em sinais, cuja significação concreta não está
presente, embora se pense com elas. Por conseguinte, o sinal é o mínimo
portador de um significado.
O fato de percebermos produtos verbais, quer orais, quer escritos,
pode ter, certamente, vários fundamentos. O produto verbal pode, em pri-
meiro lugar, ser anormal, pela circunstância de se exprimir o que é anor-
mal com aparelho fonatório normal. Os produtos verbais permitem-nos
ver os distúrbios elementares do pensamento, dos sentimentos, da consci-
ência, que se mostram como fenômenos expressivos, na fala em si normal,
através de seu conteúdo e de seu caráter. De modo geral, por uma fala in-
tata, reconhecemos, no produto verbal possível de notar, o aparecimento
de distúrbio psíquico subjacente. Em segundo lugar, o produto verbal
pode ser anormal porque o próprio aparelho fonatório está com seu meca-
nismo alterado; e só neste caso é que falamos em distúrbios propriamente
da fala, distúrbios que são para nós incompreensíveis porque representam
processos extraconscientemente formados. Todavia, é só secundariamente
que compreendemos ou procuramos interpretar, diretamente, em seu con-
teúdo e em seu caráter expressivo, aqueles produtos verbais anormais que
se apresentam como- resultados de uma vida psíquica anormal. — A esses
produtos, verbais que se podem interpretar neurológica ou psicologica-
mente opõem-se, em terceiro lugar, aqueles ininterpretáveis, cuja análise
nos ensina quais são os distúrbios da fala propriamente ditos.
Distinguimos distúrbios articulatórios da fala, afasias e distúrbios psi-
cóticos.

a) Distúrbios articulatórios.
Distúrbios da fonação, como processo subordinado a movimentos
musculares, chamam-se desordens articulatórias, diversas das desordens
ligadas a alterações centrais mesmas, que influem nos movimentos mus-
culares. As desordens articulatórias são, neurologicamente, tangíveis,
sendo da respectiva essência a possibilidade de existirem sem distúrbio
psíquico. A paralisia de certos músculos ou certas desordens inervatórias
levam a que as palavras venham deformadas ou mutiladas (não havendo
outras desordens articulatórias notáveis, pode-se testar o paciente, man-
dando que repita combinações verbais difíceis, como “Sociedade Civil de
Seguros Solidários”, pato que patinha no pátio, ratos que roem a roupa
etc.). Servem de exemplo para esses distúrbios o tropeçamento de sílabas,
a fala “mastigada”, a disartria, a lalação dos paralíticos e também a fala
escandida da esclerose múltipla. — Também se inclui entre os distúrbios
articulatórios a gagueira, de causa absolutamente diversa e psiquicamente
condicionada, consistindo em movimentos clônicos dos músculos fonado-
res, levando a constante repetição das consoantes e vogais no início das
palavras, o que as impede de incorporar-se às palavras faladas. Corres-
pondendo ao distúrbio articulatório, do lado motor, temos, do lado senso-
rial, a evidência de que o surdo nada pode entender. Da surdo-mudez con-
gênita ou precocemente adquirida distingue-se a mudez sem surdez, tal
qual se vê na debilidade mental dos indivíduos que não falam, mas ou-
vem, isto é, não têm distúrbio algum da fonação.

b) Afasias.
Há doentes que, acometidos de apoplexia, lesão cerebral, tumor ence-
fálico, deixam de falar. Tidos, outrora, muitas vezes, por dementes, nota-
se, no entanto, que falam de bom grado evidente quando solicitados: esfor-
çam-se, torturam-se, todo o comportamento deles mostra que a personali-
dade se acha conservada. Outros doentes existem que falam, sem enten-
der, porém. Foi descoberta importante a que se fez, quando se reconheceu
tratar-se de distúrbio da fala, ou melhor, distúrbio instrumental particu-
lar, não da personalidade, nem da inteligência (se bem que quase nunca
se constate sem alguma alteração do estado-geral). Outra grande desco-
berta foi de que, nas pessoas destras, o sintoma se baseava na destruição
da circunvolução frontal inferior ou da região temporal. São, contudo, ex-
trema e até mesmo desnorteadoramente variados esses distúrbios da fo-
nação, que se classificam (Wernicke) com base em amplos esquemas de
uma psicologia da linguagem, divididos em fonação e compreensão, repeti-
ção e fonação espontânea, nomeação, leitura, escrita etc., de tal modo que
se subordinou cada uni desses elementos a determinadas localizações no
córtex cerebral esquerdo, incorporando-se a estruturação psicológica à ce-
rebral, foi daí que surgiu a “teoria clássica da afasia”:
As afasias são em relação à linguagem o mesmo que as agnosias e as
apraxias em geral. Os doentes ouvem perfeitamente, mas não entendem
(afasia sensorial), aqui cabendo, mais uma vez, distinguir compreensão
do, respectivo sentido. Outros pacientes conseguem mover todos os mús-
culos fonadores, podem usá-los para fins outros que não QS verbais, sem
poder, no entanto, pronunciar palavra alguma (afasia motora). Neste
ponto, também se há de distinguir a incapacidade de pronunciar palavras,
em geral, da incapacidade de encontrar as palavras (afasia amnésica). No
primeiro caso, o doente não pode repetir o que se lhe diz; no segundo, ao
contrário, pode. A. afasia sensorial liga-se, sobretudo, a destruições do
lobo temporal, ao passo que a motora se relaciona com a região posterior
da terceira circunvolução frontal; nos indivíduos destros, tanto uma
quanto outra, do lado esquerdo.
Distingam-se os processos psíquicos na fala, e na compreensão.
Quanto a esta, temos de diferençar:
1. A audição de simples ruídos, como, por exemplo, a tosse ou os. sons
inarticulados.
2. A audição de configurações sonoras verbais, que o doente não com-
preende, conforme acontece quando ouvimos palavras de uma língua es-
trangeira. O mesmo se dá em configurações gráficas, que podemos ler,
mas sem compreender: ou em configurações motoras verbais, que pode-
mos apreender pela repetição, sem ligar-lhes, entretanto, significação al-
guma.
3. A compreensão do significado de palavras e frases.
O esquema abaixo, projetado por Liepmann (e um pouco modificado}
possibilita a visão introdutória das afasias:
Quando se analisam as afasias, distinguem-se, sob o aspecto teórico,
componentes psíquicos representados fenomenologicamente (que se indi-
cam, no esquema, por círculos vazios) e conexões psíquicas (linhas ponte-
adas c interrompidas), de um lado; de outro lado, componentes não repre-
sentados psiquicamente, que se ligam a áreas anatômicas corticais (círcu-
los cheios.) e a fibras anatómicas (linhas inteiras). Se, no esquema, conce-
bermos as conexões (ascendentes, à esquerda, sensoriais; à direita, des-
cendentes, motoras) rompidas e os círculos ou destruídos ou bloqueados,
poderemos construir tipos de afasias muito variados; ou seja:
1. Os componentes anatômicos:
 a área de projeção acústica do córtex;
µ área de projeção motora do córtex;
 área de projeção óptica do córtex;
γ a parte gráfica (que inerva a mão) da área de projeção motora do córtex.
2. Os componentes psicológicos:
a: componentes acústicos (compreensão de sons verbais);
m: componentes moto-fonadores;
o: componentes ópticos;
B: compreensão do significado verbal (componentes conceituais).
Compreendem-se as funções que se testam quando se investigam do-
entes afásicos pela integridade das vias seguintes:

As destruições de γ e µ. para baixo não são distúrbios afásicos, e sim


articulatórios (disartria, anartria); as destruições até  e  para cima con-
dicionam a surdez parcial, a surdez para certos sons, a surdez mesma;
outro tanto em relação à deficiência visual e à cegueira. Podem-se distin-
guir, entre os quadros afásicos, múltiplos e sujeitos a marcadas diversida-
des individuais, os seguintes tipo:
Afasia motora pura: está destruído ou bloqueado; conservadas a com-
preensão verbal, a leitura e a escrita globais; destruídas a fala espontânea
e a repetição (também a leitura em voz alta). É rara esta forma; frequente,
pelo contrário, a afasia motora completa. Pela participação de m, mediante
o-m em todas as funções que requerem a via o-B, também estão destruí-
das a leitura e a escrita; o copiar (que dispensa m) está, no entanto, con-
servado. Esses doentes costumam ser calados e, subitamente, explosivos;
tentam falar, mas interrompem-se.
Afasia sensorial pura: a está destruído ou bloqueado: conservada a fala
espontânea; destruídas a compreensão verbal, a repetição etc. Esta forma
é muito rara; mais comum, no entanto, é a afasia motora completa. A fala
espontânea, normalmente, requer também a via que passa em a; daí, des-
truição da fonação espontânea, não, porém, como mudez verbal, conforme
sucede na afasia motora, e sim como parafasia, a qual consiste em defor-
mações das palavras a ponto de já nem se reconhecer sentido algum na
sequência de vocábulos. A parafasia resulta do fato de as configurações
sonoras verbais (a) não serem excitáveis da maneira habitual; além do
que, as configurações sonoras verbais, que sempre “pairam” ou vagueiam”
(Mehringer e Mayer), simultaneamente ocorrendo (por exemplo, as associ-
ações sonoras), por força de conexões associativas, levam a descarrilamen-
tos, deformações, inversões, antecipações. Tais doentes costumam falar
muitíssimo, parafasicamente, usando inúmeros neologismos, pelo fato de
haverem perdido o controle, dando a impressão de maníacos, espantando-
se e irritando-se se alguém não os entende.
Chamam-se afasias transcorticais aquelas afasias nas quais as vias: -
ouvindo-a-m-língua se acham conservadas; daí também conservar-se a re-
petição. Na afasia motora transcortical, acha-se bloqueada a via B-m; os
pacientes não conseguem encontrar palavras cujo conceito possuem, mas
basta alguém dizê-las para reconhecê-las e pronunciá-las. Esta forma, em
grau mais ligeira, chama-se afasia amnésica. Na afasia sensorial transcor-
tical, conseguem os doentes repetir tudo; sem entender, no entanto, a sig-
nificação das palavras.
Têm-se suscitado objeções importantes contra o valor global dessa teo-
ria clássica da afasia, que, em primeiro lugar, usa a psicologia — insufici-
ente — da associação, segundo a qual certos elementos discretos se ligam
em unidades; a fonação, porém, não se poderia entender por semelhante
psicologia, pois sua essência estaria na consciência de significação. Outra
objeção: a decomposição em elementos sensoriais (ópticos, acústicos, ci-
nestésicos) e motores romperia a unidade da significação verbal, que
ocorre a nível funcional fundamentalmente mais alto, sob a forma de im-
pulsos motores, ou de recepções sensoriais; por força do que, os quadros
clínicos da afasia não se poderiam, de modo algum, classificar como dis-
túrbios acústicos e motores, como alexias, agrafias etc. Haveria, sim, ca-
sos particulares cuja descrição se ajustaria, de certa maneira, ao esquema
clássico; o que, entretanto, só a custo se conseguiria com a maior parte
deles. O esquema da teoria constituiria esboço dedutivo e os quadros clíni-
cos particulares seriam dedutivamente construtivos. Até certo ponto se
evidenciaria a vantagem que traz essa construção — tal qual se daria em
relação a qualquer teoria das ciências naturais; mas apenas isso. A discre-
pância entre os casos clínicos e os pressupostos descritos se faria cada vez
mais clara. Contrariamente às teorias das ciências naturais, o valor heu-
rístico da construção apontada veio a revelar-se restrito e, ela esgotada,
não foi mais possível corrigi-la. De início, é certo, teria esclarecido, descri-
tivamente, alguma coisa, na confusão dos fenômenos, embora sem pene-
trar-lhes a essência; insuscetível, porém, de estruturar-se no sentido de
qualquer elaboração proveitosa, deve-se, em princípio e globalmente, pô-la
de lado, para dar lugar, por outras premissas, a uma concepção nova e
melhor.
A nova abordagem surgiu com o próprio Wernicke, quando erigiu o
conceito verbal em função básica, conceito no qual seus elementos senso-
riais e motores estavam, indissoluvelmente, ligados de modo a formar uma
unidade. As “imagens verbais” unitárias viriam a ser, na opinião de outros
pesquisadores, funções de uma área verbal unitária do córtex, sem locali-
zação dos elementos motores, sensoriais e outros.
Quem mais longe se adiantou foi Head que menosprezou <í esquema
clássico global. Aos fatos clínicos já não corresponde uma divisão das for-
mas dos distúrbios que estudamos em distúrbios da fala, da leitura, da
escrita, da compreensão. Não há funções psíquicas básicas que se enqua-
drem nessas prestações, nem funções que sejam localizáveis. O próprio
Head refinou, de início, a metodologia de suas pesquisas, enriquecendo-a
e logrando, com trabalho de dezenas de anos, um grande esquema inteligí-
vel e evitando, em sua nova interpretação dos fatos, qualquer esquema
construtivo teórico. O tema de Head ó o seguinte: os distúrbios da formu-
lação simbólica ou de todo comportamento, no qual os símbolos verbais e
outros desempenham papel entre intenção e execução. Conquanto não se
possa decompor a linguagem em funções elementares — sensoriais, moto-
ras etc. — são necessários certos quadros típicos para conseguir visão
exata; quadros típicos que, para Head, se dispõem em quatro grupos: a
afasia verbal, sintática, nominal e semântica; ao que se restringindo, Head
adere à ‘realidade mais do que à teoria clássica da afasia, sem dar, porém,
visão radical e simples do todo, pois não fornece teorias psicológicas no es-
paço cerebral, é sim quadros clínicos, sem teoria. Continua liberta- a
questão: .são, apenas, quadros clínicos, ou alguma coisa funcional, de fato
relevante, foi, simultaneamente, nesses quadros é atingida? Graças a
Head, que não se deixa enfeitiçar por crenças cerebrinas, baseadas em
pressupostos a que falta inquirição psicológica, avizinhamo-nos mais do
que antes à realidade da fala em seus distúrbios. Resta ainda ver que va-
lor podem ter suas construções positivas. O tempo dirá da possibilidade
de obter, pelo critério das descrições classificatórias, compreensão mais
precisa, mais rica, mais realística e menos sujeita a confusão. Só aos es-
pecialistas, que dispõem de casos inúmeros, é que cabe comprovar a que
ponto Head está certo, pois não bastam os dados que se tiram da litera-
tura, esta não propiciando quadro algum que seja tão sedutor, nem tão
claro, apesar das aparências em contrário, quanto os que dava a teoria
clássica.
É fato interessante, do ponto de vista patológico geral, que se nota,
quando se investigam algumas afasias, considerável oscilação da eficiência
ou capacidade de produção dentro de certos intervalos de tempo:
Os rendimentos diminuem com o cansaço, durante o exame, às vezes
descendo a nível baixo, do qual, entretanto, não tardam a remontar. Po-
dem-se relacionar essas oscilações com a atenção que o paciente dá as ta-
refas estabelecidas: tal qual acontece em quaisquer lesões funcionais, o
doente só é capaz de vencer sua dificuldade fonatória se mantiver alto ní-
vel de atenção; donde se explicaria o fato de os afásicos serem, por um
lado, muito perturbados por afetos tais como o embaraço, a surpresa, e,
no .entanto, se mostrarem capazes, vez por outra, de rendimentos inespe-
rados quando se interessam muito pela tarefa, ou quando se acham exci-
tados por uma situação que nitidamente os estimule. Aliás, não se pode,
ocasionalmente, excluir uma “oscilação espontânea do funcionamento ce-
rebral”.

c) Distúrbios psicóticos da fala


Os distúrbios psicóticos da fala dizem respeito àqueles rendimentos
verbais que, no momento presente, não se podem explicar por mecanis-
mos neurológicos, nem se compreender, apenas, como expressão ou co-
municação de conteúdos anormais de processos psíquicos. Temos, pois,
de nos ocupar com um campo que de ambos os lados se estreita. Por en-
quanto, mais não faremos do que registrar, simplesmente, os fenômenos
psicóticos verbais, os quais constituem um grupo próprio de sintomas “ob-
jetivos”.
Mutismo e logorreia. Correspondendo ao contraste entre imobilidade e
excitação motora, distinguimos o mutismo e a logorreia, ou compulsão
verbal (abstração feita dos conteúdos). O mutismo é compreensível como
silêncio deliberado, ou como expressão de inibição psíquica; ou ainda pode
resultar de mecanismo histérico, sendo impossível, entretanto, em muitos
casos, interpretá-lo por qualquer desses modos; deve-se, então, admiti-lo,
inicialmente, como de todo incompreensível.
O que mais se observa são os fenômenos da excitação motora do apa-
relho fonador a que se dá o nome de logorreia: os doentes falam, atabalho-
adamente, tudo quanto lhes ocorre, sendo impossível compreender que
isso resulte de afetos; nem pretendem eles ser entendidos, ou comunicar
coisa alguma, num fluxo que dura, incessante, o dia inteiro, dias segui-
dos, semanas. Há vezes em que falam baixinho, quase num murmúrio
confuso; noutras ocasiões, são capazes de gritar com força incrível, che-
gando a enrouquecer, mas sem deixar de falar. Uns parecem falar para si
mesmos, exaltando-se; outros falam de modo absolutamente maquinal.
Não é raro notar-se proclividade à acentuação rítmica.
Embora ignoremos o que se vivencia nessas descargas fonomotoras,
podemos, todavia, estabelecer duas modalidades vivenciais, graças às au-
tonarrações dos pacientes.
1. Uns vivenciam verdadeira compulsão verbal como impulso instin-
tual, que pode variar de intensidade. Certos doentes conseguem dominá-
la; outros têm de ceder, conquanto a sintam torturante e espasmódico;
outros ainda, livres de qualquer ideia de compulsão, abandonam-se, desi-
nibidos, ao fluxo verbal.
2. Há outros psicóticos que vivenciam o movimento do aparelho fona-
dor como espontâneo, portando-se em relação ao fenômeno como se fos-
sem espectadores. Desses produtos verbais espontâneos ouvimos falam
num caso, o do doente que era compelido a rugir. Vejamos uma narração
de Kandinky:
“Dolinin sentiu, de um momento para outro, que a língua lhe come-
çava não só sem deliberação sua, mas até contra sua vontade, a falar alto
e de forma rapidíssima; e a falar coisas que em caso algum deveria dizer.
De início, o doente ficou assustado e perplexo com o aparecimento desse
desacostumado fenômeno, visto ser bem desagradável em si e por si sen-
tir-se, de súbito, manejado tal qual verdadeiro autômato; quando, porém,
começou a compreender a significação do que a língua lhe tagarelava,
cresceu o susto do paciente, pois o que se constatou foi que dava notícia,
abertamente, de sua culpabilidade em graves crimes políticos, atribuindo
a si mesmo, vez por outra, esses planos, nos quais jamais pensara. Entre-
tanto, a vontade não lhe conseguia prender a língua, que, repentinamente,
se tornara automática.
Desses casos, que, na aparência, são claros, passa-se a uma série de
outros, nos quais os fenômenos são os mesmos, embora já não se possa
falar em semelhante oposição entre o eu e o fluxo verbal.
Donde é que a logorreia tira seu material?
1. De rendimentos próprios do aparelho fonador, pela reprodução sem
sentido de frases corriqueiras, citações bíblicas, versos, cifras, meses, me-
lodias; pela produção de frases também sem sentido, porém de forma gra-
matical; finalmente, pela produção de construções agramaticais, associa-
ções sonoras, complementações verbais e, mais ainda, sons inarticulados.
2. Pela perseveração. Conhecemos a perseveração por deficiência, con-
sistindo no enredamento, observado, por exemplo, nos afásicos, era certas
condições possíveis de prever; é ao que chega a logorreia que busca seu
material em tais conteúdos perseverativos, falando-se, então, em verbige-
ração (Kahlbaum); fenómeno que ocorre quando os doentes, aparente-
mente com o- caráter de discurso, repetem, monotonamente, certas pala-
vras, trechos de frases ou construções sem sentido. Não se percebe signifi-
cado algum nessas repetições, nem. em seu conteúdo; como também o pa-
ciente não parece vivenciá-las. Kandinsky faz notar que, por vezes, a com-
pulsividade do impulso verbigerativo é sentida vivamente pelos enfermos
(analogamente aos rugidos já mencionados; e à fala espontânea de Doli-
nin).
Um de seus pacientes chamava a fala involuntária “minha palração”,
ou “minha tagarelice” (Selbstparlieren, Selbstparlage), chegando a expri-
mir-se desta forma sempre que queria pedir alguma coisa: “Selbstparlage,
selbstparliere, dá licença... Selbstparlage, selbstiparlieren, dá licença...
Selbsparlage, quer dar-me um charuto... Não é para fumar... Quero fu-
mar... Mas só com Selbstparlage... Selbstparlieren... Estou-lhe selbstparli-
erando... Dê-me alguma coisa para fumar...
Distingam-se essas verbigerações aparentemente automáticas daque-
las afetivas; sobretudo, as verbigerações ansiosas. Em estados ansiosos
graves, os doentes repetem sempre as mesmas frases, perplexos e confu-
sos: “Ah! meu Deus, ah! meu Deus, que desgraça... Ah, meu Deus, ah!
meu Deus, que desgraça...” E coisas do mesmo gênero.
3. Quando doentes improdutivos procuram material para sua logor-
reia, são os estímulos sensoriais externos, além dos rendimentos próprios
do aparelho fonador e da perseveração, que o fornecem. Simplesmente se
repetem impressões acústicas (ecolalia); os objetos recebem nomes sem
sentido etc.
4. Das três fontes de material apontadas distingue-se a fuga-de-ideias
por sua produtividade. A logorreia, que nela pode vir a buscar seu mate-
rial, assinala-se pela riqueza dos conteúdos, bem como por associações
variadamente maciças; às vezes, por gracejos e construções adequadas.
Para se projetarem, isto é, para serem objetivas, tanto a fuga-de-ideias
quanto a distraibilidade precisam da logorreia; sem o que, subsistem como
fenômenos puramente subjetivos (fuga-de-ideias interna, distraibilidade
interna). Inversamente, porém, a fuga-de-ideias não é, em absoluto, condi-
ção para a logorreia. Esta não é rara, em casos de inibição do pensamento;
em doentes que apresentam processos demenciais, sobretudo, é frequente
a logorreia sem fuga-de-ideias.
5. Sob a denominação confusão verbal, enquadram-se modos de falar
que resultam, certamente, de fenômenos muito diversos; não se comu-
nica, nem se faz compreensível significado algum, quer sob a forma de fa-
las aparentemente coerentes, quer em frases completas, quer em fragmen-
tos permanente mente interrompidos. Há, sem dúvida, construções às
quais o paciente não dá sentido, absolutamente; outras construções talvez
só sejam incompreensíveis para nós, como observadores. No trecho a se-
guir, de carta escrita em linguagem confusa por um catatônico, nota-se
compreensibilidade relativamente grande:
“Por motivos análogos e naturais, comunico-te que fiz vários exames,
os quais repousam em novos e introdutórios progressos da época e se re-
lacionam com todos os direitos naturais da liberdade. O melhor' e mais cô-
modo, em qualquer situação, é ajudar a si mesmo. O que ó orgulho nacio-
nal, nós sabemos de que honra se trata, tenho consciência, e o que são co-
nhecimentos, em sentido mais estrito, é segredo meu. Consideração pelo
que me diz respeito, que tem relação com u que já mencionei. Meus olhos
e minhas mãos sempre pela Pátria. Os meus interesses têm de ser reco-
nhecidos. Com isso, fica sabendo que já sou aqui conhecido como o pri-
meiro procurador do Estado etc.” (Otto).
Podemos ainda comparar os produtos da confusão verbal com aqueles
incoerentes, que já não têm forma sintática. Além de conteúdos compreen-
síveis, é deste tipo a seguinte carta de um catatônico à mulher:
“Em casa, está ele doente? sem pedir nada, sem interesse pelo que tem
acontecido? Mas tu conseguiste? Eu, Muller. De noite, inquieto. Vozes ou-
vir tristes. Cunhado lá em F. Formamos um curto underdung de Achm-
rika. Mulher filhos bem, todos lá, eu bem, muito bem, prazer.”
Distúrbios da fala na conversa. – Até agora referimo-nos a fenômenos
que se apresentam em doentes deixados a si mesmos. De outros fenôme-
nos temos noção quando observamos o comportamento das construções
verbais no jogo de perguntas e respostas, quando o paciente conversa com
o médico: caso em que aparece, o sintoma da para-resposta: o doente não
responde senão inexatamente ao que lhe perguntamos. Nos distúrbios afá-
sicos (principalmente, na afasia sensorial), os pacientes deformam pala-
vras ou grupos de palavras com a consciência de que lhes estão dando-
certa significação (parafasia); neste outro caso, porém, a paralogia tem
conteúdo significativo, nitidamente relacionado com a pergunta e com a
resposta correta; não se dá, entretanto, resposta correta, nem solução cor-
reta às tarefas, embora subsista a capacidade intelectual. O paciente erra
todas as contas: por exemplo, 3 X 3 = 10; 6 X 7 = 43. Quantas pernas tem
uma vaca? Cinco, etc. A paralogia não tem significado psicológico unitário,
apresentando-se como sintoma da “pseudodemência” em estados histéri-
cos, quando a enfermidade corresponde a um desejo (por exemplo, nas
prisões); ou se apresenta com o aspecto de formas fenomenológicas do ne-
gativismo; ou ainda de expressões jocosas nos hebefrênicos.
Interpretação psicológica. Procura-se explicar psicologicamente a lin-
guagem das psicoses e, de modo especial, a confusão. Foi o que se tentou
fazer pelos princípios da associação, usando o material sensógeno (prove-
niente da apreensão de estímulos sensoriais) e o material ideógeno (que
emana da atualização de disposições mnêmicas). Indaga-se se é possível
considerar todas as construções como se tendo formado por vias associati-
vas, ou se há construções que surgem “livremente”. Os elementos se ligam
de acordo com a semelhança (por exemplo, associações sonoras), com a
experiência, com a relação conteudística etc.; ao que se acrescentam per-
severações de elementos já formados. Funcionam como “elementos” síla-
bas, palavras, trechos de frases, uma “significação” proposital etc. Entre
os conceitos especiais de ordem psicológico-associativa que servem para
classificar as construções verbais anormais, desempenha certo papel a
contaminação, nome que se dá à fusão de dois elementos verbais num só
(por exemplo, surmirado, de surpreso e admirado). Existem, igualmente,
trocas de palavras umas pelas outras, ou de sílabas, antecipações, pos-
posições etc.
§ 6. Pensamento E Juízo

O pensamento está presente em todas as tarefas, desde o ato percep-


tivo até a linguagem. Só falamos, porém, em distúrbio do juízo quando es-
tão em ordem a percepção, a memória, a motricidade, a linguagem ou
quando os distúrbios específicos respectivos se distinguem daquilo que
produz um falso-juízo.
Mede-se a prestação que o juízo realiza pela verdade objetiva, de modo
que, quando os juízos formados por um homem divergem daquilo que, a
dado momento, é publicamente válido; quando seu conteúdo é fixado com
obstinação; quando levam a perturbação da vida comum significativa —
então, pergunta-se: há para isso causa mórbida, que, entre outras coisas,
se pode reconhecer no fato de ajuizar? A dificuldade está em que as mes-
mas características também se encontram nos juízos de indivíduos excep-
cionais, capazes de abrir novos caminhos à criação. Por conseguinte, se a
simples impossibilidade de medir o que é o juízo comumente vigorante
leva a duvidar da causa externa de um distúrbio, a conclusão é que se têm
de perquirir outras relações, a fim de comprovar a existência de distúrbio
do juízo. O fato objetivo, porém externo, reside nos juízos que variam da-
quilo que é tido, geralmente, como válido, sejam eles, em geral, no mo-
mento, objetivamente falsos ou verdadeiros. A questão está em saber que
características precisam esses juízos conter para incidirem no que se
chama distúrbio do rendimento. Distinguimos os distúrbios da inteligên-
cia e os distúrbios do pensamento (a se discutirem na seção seguinte) do
delírio (de que aqui falaremos).
O delírio é um dos grandes enigmas que se nos apresentam, só sendo,
no entanto, possível de interpretar se se conseguirem determinar com pre-
cisão os fatos do delírio. Se se chamar delírio qualquer juízo falso, incorri-
gível, essa realidade humana universal, quem haverá que não delire,
desde que, afinal, seja capaz de uma convicção? Quem diz serem ideias
delirantes as ilusões fecundas que se veem na vida dos povos e na existên-
cia do indivíduo terá de tratar como se fosse doença alguma coisa que é
traço básico no ser humano. A questão está muito mais em saber no que
se funda a incorrigibilidade e de que modo se podem, a partir daí, reco-
nhecer como delírios certos modos específicos de formar falsos-juízos.
Do ponto de vista psicopatológico, compreende-se o delírio de quatro
maneiras: como rendimento psicológico, em sua fenomenologia, em sua
compreensão genética e no entendimento global, de seu significado fatual.
a) Como rendimento psicológico
Só há delírio quando a inteligência não está perturbada e quando não
existe perturbação que, alterando, momentaneamente, o estado de consci-
ência, sirva de base para os juízos falsos. Se bem que estejam em ordem o
aparelho do pensamento e o poder ajuizador do doente, há, em seu pensa-
mento, alguma coisa que lhe dá evidência inabalável onde os demais e
mesmo outros pacientes veem engano. Se, entretanto, o próprio pensa-
mento está em ordem, se ele próprio pode ser, engenhosamente, utilizado
para o desenvolvimento do delírio, nesse caso o delírio não constitui dis-
túrbio do pensamento. Pela observação do rendimento psicológico, que é a
que primeiro ocorre, chega-se à dedução negativa de não ser o delírio dis-
túrbio, propriamente, do rendimento, e sim, originar-se de uma profundi-
dade que aparece nos juízos delirantes, mas que não tem, em si mesma,
caráter de juízo.
Exemplo de como pode o delírio elaborar rendimentos ideativos: “Um
esquizofrénico (operário, depois policial) vivencia fenómenos “feitos” típi-
cos, movimentos dos braços e pernas; ouve também vozes. Pensa em hip-
nose à distância e telepatia, põe-se a suspeitar de certa pessoa, denuncia-
a à polícia, manda um detetive particular investigar c, afinal, convence-se
de que suas suspeitas são infundadas. Grita, então: “Se não há ninguém
me influenciando, se não há ilusão dos sentidos, conforme sei perfeita-
mente, quem é que pode ser? O que me dá resposta são a maneira por que
sou perseguido e atormentado e também a significação das conversas e
dos movimentos que faço. Quer dizer, há, acima de mim, um ente malé-
volo, supraterreno, que me está influenciando e atormentando sem cessar.
O que se pretende, assim me influenciando, é levar-me à destruição, do
corpo e da alma. O que estou sentido repousa nos mesmos fenômenos que
se observam nos doentes mentais, ou meu caso é singular, excepcional?...
Sinto-me obrigado, no interesse da humanidade, a declarar, por escrito, —
se os fenômenos’ que em mim se apresentam repousam nos mesmos pres-
supostos que aqueles observados nos doentes mentais — minha convicção
de não ser correta a concepção que têm os médicos de repousarem em ilu-
são dos sentidos as vozes ouvidas por vários doentes mentais... Quer meu
caso seja, todavia, idêntico aos dos doentes mentais, quer represente exce-
ção, de qualquer maneira é de concluir-se que existe outra vida depois da
morte" (Wildermuth).
b) Fenomenologicamente
O que se apresenta no delírio é uma vivência em que ele se baseia, ra-
dicalmente estranha ao indivíduo sadio; uma primariedade existe antes do
pensamento, primariedade que não se esgota com aquilo que, vivência in-
dividual irruptiva, aparece na consciência como qualquer outro fenômeno
que o doente possa dominar, criticamente. A primariedade tem de relacio-
nar-se com mudanças radicais da personalidade, sem as quais não se
compreenderiam nem a incontrolabilidade do delírio, nem sua incorrigibi-
lidade essencial, que o distingue de todos os erros.

c) Em conexões geneticamente compreensíveis


Podemos entender de que modo uma crença delirante salva o indivíduo
de situações insuportáveis, representando a libertação de uma realidade e
proporcionando satisfação específica, em que talvez se baseie o fato de sua
fixação. Todavia, exatamente porque diz respeito não só a seu conteúdo,
com a sua origem, esta maneira de entender o delírio nos impede de diag-
nosticá-lo, visto que nos dá a compreensão do erro humano universal, e
não do delírio. Nunca atinge seu objetivo o esforço que faz a filosofia hu-
mana para alcançar aquele estado de alma em que será possível corrigir
todo erro; aquela serenidade do grande amor esclarecido pelo mundo;
aquela precisão do racional capaz de aturar tudo quanto é real e verda-
deiro, capaz de suportá-lo na dúvida e na inquirição, quando não há pos-
sibilidade de resposta decisiva; e que se mantém disposto à comunicação,
não deixando subsistir qualquer enrijecimento de afirmações tenazes. O
fato de não estarmos, nós homens, nesse estado ideal, mas presos aos in-
teresses vitais e ao que podemos suportar, constitui a base de nosso erro
comum, cuja exaltação chamamos erro delirante, mesmo sem que se ache
em causa o delírio propriamente dito.

d) O delírio apresenta-se, em seu todo.


Primeiramente, como o fato que configura o mundo para quem delira,
exprimindo- se por seu estilo e, por assim dizer, revelando uma essência
que nele se evidencia. É o mundo que dá conteúdo ao delírio e este, por
sua vez, o modela penetrantemente para o homem enfermo, vindo a cons-
tituir, em sua elaboração, uma criação mental.
Ante esses rumos pelos quais nos é dado investigar, surge o fato ex-
terno de ser o delírio uma falha de rendimento, se o medimos pela verdade
objetiva, uma vez que tenhamos semelhante padrão; falha de rendimento
que se pode pesquisar em seu conteúdo. Distinguem-se, assim, de um
lado, as ideias delirantes, cujo conteúdo é, pessoalmente, relevante, por-
que se relaciona com o indivíduo, em forma de delírio de prejuízo, perse-
guição, inferioridade, pecado, empobrecimento etc., e, de outro lado, as
ideias delirantes objetivas, cujo conteúdo diz respeito a um interesse geral:
os conhecimentos presumidos, o delírio de invenção, a defesa de teses teó-
ricas (como a identidade de Bacon e Shakespeare), as chamadas ideias fi-
xas de conteúdo objetivo, mas também com a característica de ocuparem
absolutamente todos os pensamentos do indivíduo. Aquele que as tem
comporta-se tal qual todo o sentido de sua existência se concentrasse na
ideia momentânea, sem diferença externa quanto aos grandes homens cri-
adores, inteiramente entregues ao que fazem, deles apenas distinguindo-
se pela estreiteza da atmosfera em que vivem; pode-se dizer: escravizados.
Ambos os rumos em que se examinam os conteúdos delirantes convergem
no fato de o conteúdo objetivo vir a ser, ao mesmo tempo, preocupação ab-
solutamente pessoal; por exemplo, a preservação do direito também é en-
tendida como preservação do meu direito para os querelantes.
A classificação de todos os conteúdos delirantes incluiria todos os inte-
resses vitais e conteúdos mentais humanos. É como se o mundo dos seres
humanos, em seu todo, pudesse fundir-se na configuração do comporta-
mento delirante, com todas as formas intermediárias para o comporta-
mento “normal” (diversamente das ideias delirantes genuínas); isso, no en-
tanto, de tal modo que o curso do pensamento fosse acompanhado, paro-
disticamente, pelo curso de suas configurações delirantes. O psicopatolo-
gista há de ser prudente, quando quiser incluir nos delírios certos fatos
que se relacionam com o erro incorrigível. Todavia, no tocante à fatuali-
dade do mundo que aqui se lhe apresenta, a oportunidade lhe é dada de
filosofar despreocupado sobre o significado da verdade, a fim de justificar
sua noção da realidade momentânea.
Delírio — tal qual se usa, em geral, o termo — designa fenómenos in-
teiramente heterogéneos. Pode estar em causa, apenas, a externalidade do
falso-juízo, que permite dar o mesmo nome a coisas tão plenamente diver-
sas quanto, por exemplo, o “delírio” dos povos naturais, dos dementes (pa-
ralíticos) e dos paranoicos. O homem natural tem vida um tanto diferenci-
ada, que se procura caracterizar relacionando-a com os conteúdos de suas
crenças, dizendo-se que ele ainda não aprendeu a distinguir percepção e
fantasia como fontes de muitas coisas que diferem conforme sua origem;
diz-se também que várias inferências (por exemplo, as inferências, analó-
gicas que derivam de critérios absolutamente diversos), têm para ele, em
absoluto, a mesma evidência. No 'paralítico, a vida psíquica está desagre-
gada de um modo que é característico de lesões cerebrais orgânicas, es-
tado este que não se pode comparar com a indiferenciação do homem na-
tural. Quando ocorre alteração por paralisia, toda ideia que emerge tem
realidade, todo pensamento — muitas vezes sem cogitação de anelo nem
de finalidade; muitas vezes, sem afetar nem prolongar-se na vivência — se
afigura correto; todo conteúdo parece realmente pensado; donde resulta o
quadro do delírio de grandeza tranquilo, desmedido e beatífico, que muda
a cada instante e até se transforma no contrário. De coisa ainda diversa
trata-se no paranoico: apesar de haver diferenciação completa, aguda ca-
pacidade crítica, capacidade extraordinária de pensar, o indivíduo tem
convicção plena do conteúdo das ideias delirantes. Teve certas vivências,
que para ele possuem valor igual, senão maior, ao da experiência comum
a todos. Depois de elaborá-las com a restante experiência e com toda a se-
riedade, de maneira profundamente objetiva, acaba edificando seu sistema
delirante, que mantém sem desfalecimento. Não lhe faltando, de modo al-
gum, as contra-idéias, rejeita-as, contudo, criticamente. Não lhe escasseia
a diferenciação que permita distinguir as várias fontes de nosso saber; o
que ele faz, no entanto, é bater em suas fontes, quer naturais, quer fan-
tásticas.
SEÇÃO 2.
O TODO DOS RENDIMENTOS

Os distúrbios dos rendimentos individuais influem no estado global do


homem, influência esta que, achando-se perturbadas certas funções limi-
tadas a si mesmas, pode ser catastrófica, conforme se dá no distúrbio
mencionado da capacidade de fixação, nas afasias graves, nos distúrbios
motores etc. Modifica-se o estado global do homem, mas nos é possível
compreender esse todo pelo distúrbio particular que se. apresenta. Inver-
samente, é o todo do estado produtivo que dá aos rendimentos individuais
dele dependentes qualidade e significação. Se atentarmos para esse todo,
veremos que, quando determinamos cada rendimento particular, este se
transforma em sintoma de um evento global insuscetível de apreensão di-
reta. Não - registramos, apenas, uma série de falhas de realização, mas es-
tas, sim, se agrupam ante nós; o que acontece de vários modos, depen-
dendo de como pensamos o todo predominante. O todo, a que nossa ob-
servação visa, ou é a base psicofísica dos rendimentos, base que aparece
em todos eles; ou a maneira por que decorre, no momento, a vida psíqui-
ca', ou ainda a capacidade permanente de realização que se chama inteli-
gência. Essas várias totalidades, que se apresentam nos estados de cons-
ciência clara, não ocorrem quando há turvação ou alteração da consciên-
cia.
Se os rendimentos individuais não são produtos, de aparelhos isola-
dos, e sim membros do aparelho realizado* global, temos de admitir que
este não seja um todo autônomo, fechado em si, mas instrumento do ho-
mem, cuja mente marca o instrumento, tal qual a mesma, de seu lado, de-
pende dos instrumentos dados e das respectivas possibilidades para poder
atuar. Todos os rendimentos mentais têm em comum a característica de
serem rendimentos que se podem medir racionalmente, pela norma na
“consciência em geral”; - isso restringe-os a um campo da existência hu-
mana que tem certamente, contornos precisos, sem ser jamais, no en-
tanto, o próprio homem, nem o homem em sua totalidade.

§ 1. A Base Psicofísica Dos Rendimentos

Não possuímos, indubitavelmente, a visão das funções básicas da exis-


tência psíquica vital, conquanto a proclividade a um conhecimento prema-
turo já tenha, por vezes e vãmente, buscado apreender o todo. Podemos,
contudo, fazer indagações por meio das quais se nos afigura possível, obs-
curamente, reconhecer uma base ampla da estrutura biológica de nossa
existência. Tais indagações as discriminamos quando, primeiramente, in-
vestigamos as falhas de realização que observamos nos distúrbios cere-
brais; depois, tendo em vista os fatos que se registram na curva laborativa
e as variações individuais dos inúmeros tipos de rendimento. De cada vez,
visa-se ao que está na base dos múltiplos fenômenos, ou seja, ao que se
afigura evento básico vital.

a) Funções psicofísicas básicas.


Quando se investigam as falhas de realização resultantes de lesões or-
gânicas encefálicas, mesmo quando se localizam no cérebro, verifica-se
que os distúrbios da realização- não são, muitas vezes, caracterizáveis por
determinada falha particular. Daí por que se gostaria, às vezes, de procu-
rar o todo de uma função psicofísica básica que não se apresentasse em
direção realizativa singular, e sim, indiretamente, através de falhas diver-
sificadas. Assim se poderia ver o que nelas se apresenta de comum e cons-
tatar, na multiplicidade dos distúrbios, o que se contém e impregna a to-
das. Isso é um todo, visto mostrar-se em muitos fenômenos; mas é tam-
bém uma elementaridade, por ser função básica; função básica entre ou-
tras.
Todavia, as funções básicas não se podem apontar diretamente, como
se podem apontar, de modo especial, as falhas de realização, na forma
imediata por que se apresentam. O processo heurístico busca penetrar na
conexão do distúrbio, em primeiro lugar, tentando obter as autonarrações
dos pacientes, que se provocam, metodicamente, no diálogo; em segundo
lugar, observando a via pela qual se realizam os rendimentos ainda possí-
veis. Sabendo onde e como o doente vivencia suas dificuldades, o distúrbio
se revela, uma vez que a realização objetiva ainda se afigure intacta. Se se
conhecer, pela observação objetiva conjugada à autonarração do paciente,
a via do rendimento que ainda existe, ou, em outras palavras, “os rendi-
mentos desviados*’; e se se compará-los com os normais, atingir-se-á o
ponto essencial em que está o distúrbio; comparando ainda o qual nas va-
riadas realizações do paciente, poder-se-á esperar encontrar o que a todos
é comum, se é que existe. Essa orientação investigativa — que é seguida
por Gelb e Goldstein, Hochheimer, Benary, entre outros — não deixa de
ser proveitosa; para o que, sirva de exemplo o caso, que veio a celebrizar-
se — de uma cegueira psíquica (o relato cinge-se, inteiramente, à redação
dos autores).
O doente foi ferido, aos 23 anos de idade, durante a guerra, por esti-
lhaços de bomba, na parte posterior da cabeça, ficando cego-psíquico, ou
seja, deixando de reconhecer formas e movimentos no espaço (cf. acima,
pág. 206, a narração do mesmo paciente). À investigação mais acurada,
todavia, verificou-se que, mesmo após a melhora dos rendimentos, não
havia possibilidade de compreender inteiramente as falhas em conjunto
pela agnosia óptica.
Depois de conversar à vontade com o doente, sem notar coisa alguma
de estranho, lê-se para ele unia carta que, há pouco tempo, escreveu ao
médico; o doente, ouvindo a leitura, não reconhece a própria carta. Mos-
tram-lhe esta: não reconhece sequer a própria letra. Só quando lê a assi-
natura é que exclama: “É minha assinatura!... Não a tinha reconhecido...”
— O comportamento do doente podo não dar na vista em longas conversas
até que, quando se lhe atribui uma tarefa, qual seja o reconhecimento
dessa carta, se lhe modifica, súbito, o procedimento. A falha de realização
é surpreendente; o homem, que, quanto ao mais, se mostrava alegre e se-
reno, torna-se aflito e tenso.
Várias pessoas assistem a um exame. Daí a uma hora, pergunta-se ao
doente: “Está mesmo vendo estas pessoas”? Resposta: “Estou”! — O paci-
ente está restrito àquilo em que sua atenção se apoia, de modo imediato.
Não percebe ao mesmo tempo duas partes de seu perimundo.
Quando se lhe pergunta: “Como passou o inverno?” responde: “Agora
não sei dizer. Só o que há neste momento.” Não existem para ele passado
e futuro; não pode imaginá-los. O mesmo acontece com tudo quanto não é
presente. “Pode-se dizer como é que uma coisa se chama, mas não ima-
giná-la.”
“Que é uma rã?” “Rã...Rã: rã-trepadeira, que sobe nas árvores! Ah! Cor!
Árvore: verde. A rã trepadeira é verde. Isto mesmo!” O doente não conse-
gue representar deliberadamente imagens internas, em oposição a ima-
gens que, por assim dizer, emergem involuntariamente. Proferindo a res-
posta é que aparece o poder interno de imaginar.
“Conte alguma coisa..” “Não consigo, alguém tem que me dizer: Sabe
isto ou aquilo?”. — Quando o cumprimentam: “Há alguma novidade?” “O
que, por exemplo?” — Ou então: “Como foi da última vez?’: “Quando,
onde, ah! Foi muita, muita coisa, não sei mais”. — Ainda: “Lembra-se de
alguma coisa, que fizemos nestes últimos tempos?”. — “Foi tanta coisa.
Por exemplo.” — O “por exemplo” do doente é estereotípico. Não adianta
encaminhar a conversa para coisas indeterminadas. O doente só tem
consciência quando se apoia em coisas sólidas. Não sabe responder a per-
guntas gerais.
Fala-se em furtos. ‘Ninguém me furtou nada”. O médico que dirige o
exame conta que um relógio foi furtado na estação. Ouvindo a palavra “es-
tação”, o doente interrompe, sobressaltado: “É, furtado na estação. Está
certo. Também me furtaram uma coisa. Minha mala grande”. O doente
não dispõe de conteúdos mnêmicos; o que lhe ocorre, é sempre ditado por
uma palavra. Se uma palavra não se ajusta à situação, não há vivência al-
guma a que ele dê acesso. O paciente não. sabe que sabe; não dispõe do
que possui.
Depende de que qualquer coisa lhe surja “por si mesma”. Só consegue
o que vem sem ele querer; voluntariamente, não fornece coisa alguma.
Não tem capacidade de orientar-se de maneira espontâneo- voluntária no
sentido de encontrar conteúdos próprios; pelo contrário, precisa de pala-
vras que o estimulem a produzir o que com elas vem- Em vez de impulsos
do eu, são vocábulos impulsionadores que substituem os. 'atos mnêmicos.
Sua fala é, portanto, tal qual a de um disco de vitrola, automatica-
mente solto. São só palavras que restam. Em vez de representações- mnê-
micas, o que há é memorio verbal.
Para que as perguntas o levem a algum rendimento, tem de falá-las-
ele próprio. Nesse caso, a palavra ou desencadeia o impulso automático
para o alvo visado, ou coloca o paciente em situação de alerta, que. ele é
capaz de apreender e na qual outras coisas lhe ocorrem. Só age- auxiliado
por. palavras arbitrariamente ditas.
Mas não são só palavras que estimulam o paciente; também coisas
perceptíveis, concretas; por exemplo, um magneto que lhe apresentam. De
forma puramente espontânea, não fala; só fala para responder e, aliás,
para responder a certas perguntas, que dizem respeito, diretamente, ao
objeto, ou a coisas que lhe oferecem.
O paciente sabe de sua doença. Não se abandona a ela; tem consciên-
cia do distúrbio e encontra maneiras de produzir rendimentos substituti-
vos. Depois de recitar “Die Glocke” de Schiller, perguntando-lhe- o médico
o que significa o poema e se consegue imaginar o conteúdo- do mesmo,
exclama: “É isto mesmo... Quando tenho de' contar uma coisa, ela vem as-
sim, conforme está na mente... Pensar antes não posso. Vem à toa... De
qualquer jeito... Mas se eu tiver de dizer o que significa... Aí é que é difícil.”
“Que é que significa?” “Não sei, escapa-me. Mal consigo entender, lá vai,
some..” O paciente diz que precisa de “ponto de apoio:” “uma palavra, ou
umas tantas palavras- para eu pegar..”
Apesar do distúrbio elementar extraordinário, chama a atenção a inte-
ligência do enfermo, cuja capacidade de estabelecer formulações é grande;
são surpreendentes a presteza e a firmeza das frases que diz.
É, apenas, pequena fração dos achados que aqui se relata; achados
que, acumulando-se, devem ajudar a descobrir o que é comum. Não se
tem ainda ideia clara da base que subjaz ao distúrbio, mas aqueles que
estudaram o caso se sentem fortemente inclinados a pensar na existência
de algo unitário. Procurando- formular o distúrbio fundamental, tiveram
de usar, inevitavelmente, certos conceitos, em si mais estritos do que o ob-
jetivo a que hão- de, no momento, servir; por exemplo:
1. O doente não pode visualizar. Alguma coisa falta, tão necessária ao
reconhecimento de percepções quanto ao despertar de percepções anterio-
res mediante representações; alguma coisa que pertence tanto à percepção
configurada quanto ao levantamento de recordações. É, decerto, numa
área sensorial que o paciente, oticamente agnóstico, apresenta, de início,
lesão evidente; mas o que há subjacente é universal. Quando lhe pergun-
tam se pode imaginar o que é música, responde: “Não. Por exemplo, na
ópera. Começando a música, aí eu já percebo.” A situação tem de ser con-
creta para o doente vivenciá-la.
2. O paciente não pode produzir coisa alguma com a tomada de conhe-
cimento concomitante, mas só mediante o desenrolamento sucessivo;
principalmente, falando. Quando é necessário ter, simultaneamente, um
dado como todo articulado, nada consegue. Ao- contrário, se o desenrola-
mento sucessivo basta para executar uma. tarefa, ele a desempenha sofri-
velmente, ou mesmo bem. Pode-se- concluir pela existência de uma fun-
ção básica que se mostra no fato de “ocorrerem processos simultâneos
abrangendo totalidades” ou seja, em configurações simultâneas.
A visão conjunta desempenha papel destacado na visualização; daí por
que, no caso, o distúrbio se torna drasticamente perceptível. Entretanto, a
unitariedade da estrutura articulada que constitui a visão mais não deve
ser do que um caso da unitariedade do que é, na psique, simultaneamente
estruturado, do ponto de vista espacial, ou mesmo não espacial. A função
básica que se apresenta sempre no campo da percepção, da representação
e do pensar permite concluir seja sempre da mesma ordem a unitarie-
dade. Não se pode estender em demasia, de acordo com esta concepção, o
conceito do que é óptico.
3. O doente só pode realizar o que representa em seus próprios movi-
mentos; donde os movimentos permanentes quando escuta, quando apre-
ende, quando pensa; donde também a fala, com a qual resolve as tarefas;
vê-se ocorrer uma “reorganização do rendimento total”. Na medida em
que, falando e movimentando- se, consegue atingir um alvo, o paciente
tem êxito; do contrário, o insucesso é definitivo. O mesmo rendimento ob-
jetivo é, radicalmente, diverso na função conforme a via que o paciente
toma, para a realização; via que, no indivíduo sadio, é variada, mas limi-
tada no paciente, o qual, em nosso caso, se restringe ao movimento como
meio. Apesar do que, o paciente se mostra inteligente em alto grau,
quando inventa rendimentos substitutivos. Concomitantemente, parece
haver uma função básica que só nas pessoas enfermas se faz mais evi-
dente: a estreita conexão de toda a vida psíquica com a motilidade, com
movimentos fatuais e com representações cinéticas (Ribot, Kleist); aqui,
pode-se comparar a significação central da categoria cinética na concep-
ção cósmica de vários filósofos (Aristóteles; mais recentemente, na realiza-
ção sistemática de A. Trendelenburg).
4. Impossibilidade de visualizar, incapacidade de apreender configura-
ções simultâneas, restrição a movimentos permanentemente executados
— são três formulações que devem dizer respeito à mesma função básica,
cuja perturbação constitui o que se denomina redução ao concreto. Os pa-
cientes são incapazes de apreender o que é possível, abstrato, pensado, e
de operar com generalidades, de modo a lograr a realização de uma tarefa.
Daí encontrarem desvios que a tanto os leve, mediante conexões com coi-
sas concretas: objetos, situações reais, palavras e fórmulas que possam
falar; evitam sempre as situações que lhes é impossível resolver, buscando
comportamentos automáticos e conseguindo realizações notáveis (quando
são em si mesmos inteligentes), apesar dos defeitos tão radicais.
Se, nos casos descritos (chamados agnosias), há distúrbios de uma
função básica, é que funções básicas, no mesmo sentido, haverá muitas,
certamente, conforme se pode deduzir de vários fatos:
1. O que constitui, nos casos de cegueira psíquica descritos, o recurso
derradeiro e efetivo para a produção de um rendimento — a fala — vem a
achar-se perturbado, centralmente, nos afásicos.
2. Talvez haja falhas num estrato instintual vital, cuja regulação de-
pende de relação inelutável entre o curso total de nossa consciência e a
fome, a sede, a saciedade e os demais ritmos somáticos. Referindo-se a
seus pacientes com síndrome de Korsakov, diz W. Scheid: “É evidente que
esta regulação vital desempenhava papel decisivo na orientação temporal,
subdivininno o dia”.
3. Diversos são ainda os distúrbios da conação.
4. Talvez indique uma função básica o emperramento ideativo, a perse-
veração, fenômeno de observação frequente em. estados orgânicos defec-
tuais, afasias, demências. As constelações representacionais persistem
além do momento em que têm significação; é o que se nota, especial-
mente, nas reações falhas que se seguem a tarefas dadas aos pacientes.
Por exemplo, o doente emperra numa palavra, que serve de resposta a to-
das as perguntas subsequentes, mesmo sem sentido algum; ou persiste a
designação “cisne”, que já fora dada, corretamente, à figura apresentada,
para quaisquer figuras daí por diante exibidas que representem aves; ou
ainda: persistem modos de ver, que, por exemplo, consistem em não poder
mais o paciente dizer corretamente que horas são, perdendo-se pelo con-
trário, em detalhes, apenas, embora conservada, conforme se averiguou
previamente, a capacidade de dizer as horas sem errar. Esses “Leitmotive”,
que pouco variam, dominam, dias seguidos, em casos semelhantes, todas
as reações. — A perseveração vem a ser, muitas vezes, fenômeno secundá-
rio, que aparece substituindo a execução correta, quando há defeito psí-
quico; casos esses nos, quais Heihronner determinou aumentar a frequên-
cia das perseverações com Heilbronner determinou aumentar a frequência
das perseverações, compreensível através de acentuações afetivas, comple-
xos etc. Hã ainda casos em que parece constituir fenômeno autônomo,
como se certos conteúdos perseguissem o homem, de tal forma domi-
nando-o que não pode ocorrer excitação espontânea.
5. Outra função básica indica o distúrbio ruinoso de rendimento que
se observa na coreia de Huntington. Os coreicos, cuja motricidade é, em
si, capaz de funcionar normalmente, não conseguem determinar, nem
atingir aquilo que, queiram ou não, pretendem. Do mesmo modo que os
movimentos lhe falham, descarrilam, se produzem espontaneamente, as-
sim também descarrila o curso ideativo, desvia-se, é interrompido por ou-
tros pensamentos, se confunde. “Tudo some, mais nada...” “Penso noutra
coisa que não tem nada a ver com isso...” “Sabia que era outra coisa, fiz
confusão...” “Erro tanto quando falo, e falo tanta coisa... tudo atabalho-
ado, não é? Tudo sem propósito, não é?” “Tornei agora a errar...” Enfim, a
intercorrência de impulsos motores involuntários perturba todos os rendi-
mentos que requerem motricidade controlada — movimentos corpóreos,
fala, pensar. Os impulsos não chegam ao fim visado, rompendo-se e reco-
meçando; quase tudo que se inicia parte-se, definitivamente, antes de
completar-se. No entanto, excluída a decadência final, os coreicos não
apresentam, a princípio, incapacidade intelectual e mental alguma. É a
orientação que falha, não lhes permitindo alcançar o que procuram, nem
segurar o que pretendem e querem.
6. O método da análise funcional, que vincula os testes de rendimento
às autonarrações provocadas, foi empregado em esquizofrênicos por Zuc-
ker, que pesquisou de que modo eles têm representações (pedindo-lhes
que representem coisas ou o desenvolvimento de uma história; compa-
rando as diversidades vivenciais que mostram entre ilusões sensoriais es-
pontâneas e representações providas de algum conteúdo semelhante; ob-
servando a relação entre ilusões sensoriais e a respectiva reconstrução vo-
luntária; etc.) O referido autor notou que as representações não surgem,
ou vêm difíceis e retardadas, se perdem da clareza à obscuridade, se inter-
rompem ou quase. Zucker pretende aqui descobrir vários graus de um
distúrbio funcional, que leva à vivência da subtração do pensamento e,
daí, por um lado, ao escapamento; por outro, à paralogia e à incoerência.
Em todas estas pesquisas, pressupõem-se três diferenciações: primei-
ramente, entre fenômenos vivenciáveis (fenomenologia); depois, entre cer-
tos rendimentos (psicologia do rendimento); por fim, entre funções bási-
cas; todas as quais devem relacionar-se entre si de tal forma que as duas
primeiras se originem da terceira; esta, as funções psicológicas básicas
pela observação de lesões cerebrais' até o momento possíveis de apreender
organicamente.

b) O Rendimento Laborativo.
Toda realização transforma-se em trabalho, quando executada em es-
forço contínuo que vise a qualquer finalidade existencial e ocupe todo o
homem, dependendo de seu cansaço e recuperação e podendo medir-se
quantitativamente. Mais ainda: o organismo psicofísico com suas forças
revela-se através de certas qualidades básicas na multiplicidade de sua re-
alização laborativa.
Depois que se estabeleceram, objetivamente, rendimentos laborativos
possíveis de determinar e se observaram em condições variáveis, começa-
ram-se a descobrir os fatores de que depende, essencialmente, o rendi-
mento laborativo mecânico.
O tipo de trabalho que se promoveu, nas investigações experimentais,
foi quase sempre a adição de números dígitos. Pouco sabemos das diversi-
dades que resultam dos tipos de trabalho profissional; por exemplo, mais
trabalho mental, ou mais trabalho físico.
Quando se analisa o trabalho, hão de distinguir-se, de um lado, os fe-
nômenos subjetivos — sentimento de enfado e prazer — e, de outro, os ob-
jetivos — cansaço e capacidade. Os rendimentos objetivos veem-se, grafi-
camente, na curva laborativa ou do trabalho em que se representam, de
modo contínuo, na abscissa, o curso do tempo e, nas ordenadas, a quanti-
dade do trabalho produzido na unidade de tempo. Entre os componentes
dessa curva, as mais importantes são a curva da fadiga, que, desde o iní-
cio, desce, para, depois de pausas, tornar a subir, rapidamente, graças à
recuperação; e a curva da prática, que, a princípio, sobe rápida e, depois,
mais lentamente, desce após intervalos. Acrescem-se a curva da estimula-
ção, que sobe, no início do trabalho, graças a tensões volitivas, atingindo,
aliás, alturas significativas tanto ao se iniciar quanto ao findar a realiza-
ção; mais a curva que corresponde ao hábito, resultando de estímulos dis-
traidores e dando um traçado a princípio ascendente e, depois, horizontal.
A fadiga opõe-se à recuperação; são qualidades opostas do- aparelho
psicofísico a fatigabilidade e a recuperabilidade. Esta última tem duração
diversa, conforme haja fadiga simples (que se atribui ao efeito de toxinas
especiais), ou exaustão (que se explica pelo consumo de substância). Dis-
tinguem-se a fadiga muscular e a fadiga nervosa e discute-se se existe- fa-
diga geral, simplesmente, ou também fadiga parcial para a realização de
certos trabalhos. Na opinião de Kraepelin, só há fadiga geral.
A prática é o aumento da ligeireza, da rapidez e da regularidade de
uma realização através da respectiva repetição, a qual se dá, em parte, por
mecanização, indo de realizações psíquicas originariamente mais intencio-
nais e voluntárias a outras, mais reflexivas, que se desenvolvem de ma-
neira mecânica. Para isso, entretanto, têm-se de admitir alterações do me-
canismo fisiológico que influem sobre a prática. A capacidade tanto para a
aquisição' quanto para a conservação da prática varia de um indivíduo
para outro. Daí Kraepelin distinguir capacidade para a prática e estabili-
dade da prática. Enquanto a fadiga é fenômeno fugaz e passageiro, da prá-
tica sempre um resto subsiste.
Devem-se conceber as disposições que se enumeram como- fatigabili-
dade, recuperabilidade, capacidade para a prática, estabilidade da prática,
distraibilidade, capacidade de habituar-se, estimulabilidade como sendo
qualidades básicas do mecanismo psicofísico (diz Kraepelin: da personali-
dade).
Em condições mórbidas, podem-se alterar todas estas qualidades. De-
pendência em relação à ingestão de alimentos, ao sono, à intoxicação (ál-
cool, cafeína), Kraepelin pesquisou. As lesões, cerebrais dão causa a ralen-
tamento considerável da eficiência, além de grande fatigabilidade. Há ou-
tros casos em que, muito baixa a capacidade de trabalho, é escassa a ca-
pacidade de prática e, no entanto, também escassa a fatigabilidade, por-
que não se faz, a bem dizer, esforço algum; a insuficiência, no caso, é psi-
quicamente condicionada. Nas neuroses, principalmente após acidentes,
Specht e Plaut tomaram e analisaram curvas do trabalho. A fatigabilidade
rápida do neurótico, bem como a fraqueza volitiva do histérico distinguem-
se, em casos extremos, da produtividade escassa proposital dos simulado-
res conscientes. Quase sempre, quando se investiga a capacidade do tra-
balho de neuróticos, temos de nos limitar à análise subjetiva. De um lado,
as sensações adversas, aumentando com a dificuldade do trabalho; dou-
tro, a incapacidade de querer, o sentimento de impotência, a incapacidade
de perseverar: estes são os principais componentes. A fraqueza volitiva de-
pende, involuntariamente, da consciência de que se perde uma renda com
a prestação do trabalho. As excitações do processo de indenização aumen-
tam, de forma considerável, todas as queixas e, bem assim, essa fraqueza
volitiva (neurose de renda). Não é raro a pesquisa revelar que a diminuição
efetiva da eficiência é o único sintoma objetivo apresentado por esses paci-
entes.
As investigações tangíveis sobre os rendimentos laborativos levaram,
em conexão com certas concepções gerais vigentes, à super- avaliação en-
fática daquelas “qualidades fundamentais da personalidade”; em oposição
ao que, é de apontar-se o fato de que, na realidade, esse modo de ver só
inclui “realizações” mecânicas automáticas, aprendíveis, suscetíveis de re-
alização por qualquer um; realizações, enfim, a se reavaliarem, simples-
mente, pelo critério quantitativo, ou seja, aquele “trabalho” que não é raro
representar uma carga. As realizações qualitativas, a atividade produtiva
em qualquer trabalho, especialmente na arte, na ciência, na conduta da
vida, não entram nessa curva. Como representação objetiva das funções
dos aparelhos nervosos em que nossa vida repousa, e não como análise de
seja qual for “personalidade”, é que as avaliaremos.

c) Tipos de Rendimentos Individualmente Variáveis.


Quando falou, ao analisar sua curva do trabalho, em “qualidades fun-
cionais da personalidade”, que considerou nos graus individualmente vari-
áveis da fatibilidade, recuperabilidade, maleabilidade etc., Kraepelin lan-
çou o fundamento de sua concepção, que era muito suscetível de ampliar-
se. Em todas as realizações que se podem fixar experimentalmente, tam-
bém se podem observar essas diferença individuais, em parte mensurá-
veis, em parte classificáveis de acordo com polaridades ou contrastes típi-
cos, ou ainda multiplicidades poliarticuladas.
Assim é que se distinguem os “tipos de representação”: se uni homem
é capaz, quando representa e recorda, de preferir a área óptica acústica ou
cinestésica; se é ou não um eidético e que tipo de eidético. Também há ti-
pos mnêmicos, verbais, ideativos, conceptivos, cinéticos, tipos relaciona-
dos com a velocidade, o ritmo etc.
Trata-se de coisas muito heterogêneas. O que é comum é o fato de
uma determinação ser possível na experiência objetiva tarefa-realização e
de se procurarem as diferenças no propósito de -encontrar certas qualida-
des básicas das variações que a maneira humana de ser pode apresentar;
qualidades que se chamam constitucionais. O tema não é a personalidade
compreensível chamada caráter, e sim uma pessoa vital, tal qual se mos-
tra no que produz.
Problema muito discutido é o do destrismo e do sinistrismo. A direita e
a esquerda representam a orientação básica do corpo no espaço e também
configuração morfológica do próprio corpo. Constitui problema de todo es-
pecial saber se o homem prefere, cm sua motricidade, a mão direita ou a
esquerda. O sinistrismo, contudo, vale também como característica consti-
tucional, que se revela objetivamente não como sinal corpóreo, mas pela
maneira de trabalhar. Uns procuram compreendê-lo em relação com o
modo de ser e com a biografia pessoal do indivíduo, ao passo que outros
nele veem, apenas, um achado casual particular.
Quanto aos fatos: O número de canhotos é quase sempre minoritário.
Na Rússia, a frequência é de 4%; na Alsácia, 13% em Estutgart, mais ou
menos 10% nos meninos, 6,6% nas meninas. Vint« e cinco por cento das
ferramentas da idade da pedra devem ter sido feitas por canhotos; os habi-
tantes das Célebes são na maioria, canhotos. Discute-se se o destrismo e o
sinistrismo são uma preferência, ou se são significativamente neutros. Le-
onardo da Vinci e Menzel eram canhotos. O sinistrismo é acentuadamente
hereditário e relacionado com os distúrbios da fala. Tem-se visto que 61%
dos meninos, 81% das meninas com defeitos fonatórios graves são canho-
tos ou se relacionam com o canhotismo (Schiller). “É necessária a supre-
macia de um hemisfério cerebral para o desenvolvimento dos centros su-
periores; sobretudo, do centro da fonação”; daí não se admitir qualquer es-
forço .no sentido de promover a mesma atividade para as duas mãos.

§ 2. O Curso Presente Da Vida Psíquica

Consideramos o todo do estado presente sob vários aspectos: -como al-


teração da consciência e turvação da consciência, como fadiga e exaustão;
e também como o mundo no qual a vida se realiza. Certo é que cada modo
do ser total se vincula com outro, mas é só na diversidade que nosso co-
nhecimento se faz claro. A esta altura, distinguimos das alterações de es-
tado (da consciência e do todo biológico) bem como das alterações do
mundo (como totalidades significativas compreensíveis) a alteração, que
ora discutiremos, do modo pelo qual flui a vida psíquica, modo que, antes
de mais nada, se apresenta nas conexões e desconexões do pensamento.
Esse modo, porém, obriga a que o analisemos como falha e inversão de
certas realizações normais, em seu todo, através de alterações que, de há
muito, se designam como fuga-de-ideias, inibição do pensamento, confu-
são. Do ponto de vista diagnóstico, distinguem-se as maníaco-depressivas
(fuga-de-ideias e inibição do pensamento) daquelas esquizofrênicas (confu-
são), sendo de notar, entretanto, que a fuga- de-ideias também se trans-
forma em confusão e que certos estados esquizofrênicos se apresentam
com a fuga-de-ideias clássica.

a) Fuga-de-ideias e Inibição do Pensamento.


Evidenciamos, inicialmente, como fuga-de-ideias e inibição do pensa-
mento, mediante uns tantos exemplos de caráter heterogêneo, aquilo que
delimita a fuga-de-ideias e a inibição do pensamento.
Objetivamente, mostra-se a fuga-de-ideias, por exemplo, no seguinte
produto verbal de uma paciente que “conversava” desta forma com o mé-
dico. Respondendo à pergunta se mudara, no último ano, disse ela: “Sim,
pois era muda e estúpida, mas não surda, conheço a Ida Daubs, que está
morta, provavelmente morreu de inflamação do ceco; não sei. se era cega;
o cego Hesse, o grão-duque de Hesse, a irmã Luisa, grão-duque de Badén,
o marido morreu no dia 28 de setembro de 1907, quando- voltei, é, verme-
lho-dourada-vermelho”. Doentes assim interrompem, a todo instante, sem
motivo aparente, a marcha do pensamento, começando a fazer uma coisa
e, logo depois, outra, não conseguindo fixar-se num objetivo, sempre, no
entanto, ocupados com uma quantidade de ideias. Não se prendem a coisa
alguma, estão permanentemente passando para coisas acessórias, perdem
o fio e não conseguem encontrá-lo, novamente. Nada terminam do que ini-
ciaram; pulam, falta-lhes o fôlego mental, sempre levados por associações
externas. — Entretanto, o doente que tem inibição do pensamento com-
porta-se, sob quase todos os aspectos, de maneira inversa: nada empre-
ende, não inicia ocupação, alguma, custa a proferir uma palavra, pensa
com grande esforço quando lhe fazem perguntas, nada lhe ocorre.
O que os doentes vivenciam subjetivamente apresenta-se, por vezes,
em autonarrações. Uma modalidade de fuga-de-ideias, principalmente: em
esquizofrênicos, é a que os doentes descrevem como acúmulo de pensa-
mentos. A Srta. S. queixava-se: “Não consigo pegar nenhum pensamento,
não sinto vontade alguma... Ah! é só bobagem que me: ocorre..” A paciente
de Forel contava: “Havia na minha cabeça, parece, um relógio, uma cadeia
ininterrupta de ideias, me obrigando, desenrolando-se sem parar. As
ideias que me vinham associavam-se umas às outras da maneira mais es-
tranha, mas sempre prendendo-se entre si por certas relações. Que ima-
gens me rodopiavam na cabeça, que associações cômicas... Havia certos
conceitos, certas ideias a que sempre voltava: por exemplo, droit de Fra-
nee! Tannin! Bárbara! Rohan! Era como se fossem etapas na caça de
ideias; então, eu. falava, por assim dizer, usando uma senha, o conceito
pelo qual os. pensamentos, incessantes me tinham vindo, justamente; fa-
lava depressa; principalmente, também em certas fases de minha vida co-
tidiana; por exemplo, quando entrava na sala, quando a porta da cela se
abria, quando ia comer, quando alguém vinha em minha direção etc.,
como se não quisesse perder o fio, ou como se procurasse parar um
pouco, na sucessão de pensamentos absurdos que me ocorriam. “— Re-
lata um esquizofrênico:” — “Os pensamentos eram cada vez mais rápidos.
Já não conseguia pegar um só. Parecia que ia enlouquecer de um mo-
mento para outro. Sentia que os pensamentos se moviam, mas não lhes
via o conteúdo. Afinal, já nem tinha consciência de que estava pensando,
era como me houvesse esvaziado”.
Uma paciente de 30 anos, em estado pós-encefalítico, descreve a alte-
ração interna do curso do pensamento em conexão com fenômenos obses-
sivos: “Não posso ficar parada cinco minutos sem pensar nalguma coisa.
Os pensamentos vêm e vão muito mais depressa do que me é possível fa-
lar. Já sei as respostas muito antes de poder dizê-los. É constante, como
se um filme estivesse rodando em minha mente. Tudo é rápido que nem o
raio. E as menores coisas, tudo eu guardo... Se não respondo imediata-
mente e pensam que não entendi, tudo se repete. Não posso responder
imediatamente. É assim: se, durante o dia, penso nalguma coisa, ela volta
a me ocorrer, outra vez, mais outra, mais outra” (Dorer).
Na autonarração que se segue, aparecem graus mais leves de inibição
do pensamento: “Meu humor estava sempre mudando. Os dias alegres
para mim eram aqueles em que me interessava por tudo, fazendo alguma
coisa conscientemente, individualmente estimulada, julgando as coisas e
as pessoas, minha própria pessoa, embora com certa tensão. Nessas ho-
ras., procurava sociedade o mais que podia, punha-me a fazer muitas coi-
sas, porque tudo me dava prazer. A transição de um estado de ânimo para
outro não era tão repentino; pelo contrário, ia progredindo cada vez um
pouco, com o correr dos dias. No outro estado, tinha o sentimento de de-
sinteresse, obtusidade a respeito das coisas, das coisas sobre as quais ti-
nha de formar um juízo. Então, esforçava-me muito para esconder minhas
falhas, e, em certos casos, lembrava-me de como teria agido, nos dias
bons. O que mais se altera é minha escrita, e também meu modo de an-
dar. Nos últimos tempos, acrescentou indiferença completa, além de falha
no meu entendimento do que se passa. Teatros, concertos não impressio-
nam mais meus nervos. Não posso contar nada a respeito deles. Quando
converso, perco o fio, quer dizer, um pensamento não se engrena mais no
outro. Sou insensível a brincadeiras e piadas que surgem na conversa,
porque já não as entendo”. (A doente veio a evoluir para a demência para-
noide, no correr dos anos subsequentes). — Outros pacientes queixam-se:
“Perdi de todo a memória, já não sou capaz de acompanhar uma conversa.
Sinto-me como que paralisado, não entendo mais nada, estou completa-
mente imbecil. Não consigo dizer, de modo algum, qual é o conteúdo do
que leio e do que ouço. Já não tenho vontade, não me resta um resquício
de energia, nem de atividade. Não me decido a nada. Fazer um movi-
mento, só isso, custa-me grande resolução”.
1. Interpretação da fuga-de-ideias e da inibição do pensamento.
Se se quisesse evidenciar o que há de característico em todos esses fe-
nômenos, ter-se-ia de partir do contraste entre aceleração e retardamento;
o que, entretanto, não destaca a essencialidade dos distúrbios. A acelera-
ção do processo que fosse, quanto ao mais, normal apenas representaria
sinal de saúde. Por outro lado, nas: personalidades epilépticas, por exem-
plo, com processo mental inalterado quanto ao mais, observa-se retarda-
mento que em coisa alguma se assemelha aos fenômenos de inibição ora
descritos. Melhor se invocaria o contraste entre excitação e inibição. Toda-
via, mesmo havendo uma realidade nesses processos, muita coisa ainda
resta a determinar. Se tentarmos penetrar na estrutura do processo, o me-
lhor que nos resta a fazer será partir sempre do contraste entre o processo
ideativo mecânico, associativo, passivo, e o pensar ativamente orientado
por ideias-alvo (superidéias, tendências determinantes). O evento associa-
tivo traz o material; o ativo traz o ordenamento do pensar. Vemos, então,
desde logo, que, de um lado, há uma inibição ou excitação, riqueza ou po-
breza do evento associativo, do outro lado, o retraimento das ideias-alvo
ativamente eficazes, com suas tendências determinantes. Basta diminuí-
rem as tendências determinantes (em primeiro lugar, porque faltam, em
geral, percepções-alvo; em segundo, porque estas não desenvolvem efeito
algum; e, enfim, porque mudam com rapidez excessiva) para o curso do
pensamento passar a ser influenciado, apenas, pela constelação dos ele-
mentos associativos. Os estímulos sensoriais externos, bem como as
ideias despertadas pela constelação causal, de acordo com todos os princí-
pios associativos possíveis, é que fornecem o material do conteúdo consci-
ente. Aí temos a imagem objetiva da fuga-de-ideias. A palavra “ideia”, na
“fuga-de-ideias”, não diz respeito só a representações, mas a todos os ele-
mentos que possam ser mentados como elementos de cadeias associati-
vas. Nem são as ideias-alvo simples representações, mas todos os fatores
que condicionam uma opção, uma estrutura, no curso do conteúdo psí-
quico, ou seja, necessidades situacionais lógicas (estésicas) — conversa,
discurso, comunicação, tarefa. Derivam deste esquema os tipos objetivos e
aqueles vários outros, subjetivamente vivenciados, do processo em que re-
sidem a fuga-de-ideias e a inibição.1
2. Tipos de perturbação do curso.
aa) A fuga-de-ideias clássica. Excitado o evento associativo, os conteú-
dos afluem, maciça- mente, de todos os lados, à consciência, o que, em si,
nada mais- significaria do que maior produtividade. Acresce, porém, que
as tendências determinantes se paralisam, caminhando, progressiva-
mente, para a supressão, deixando de realizar-se qualquer orientação sele-
tiva constante entre as associações; daí resulta que todas as associativas
sequer possíveis, de acordo com as condições casuais, se misturam: con-
ceituais, sonoras, verbais.

1 Deixei de pé esta reprodução da concepção tradicional, apesar de haver sido acerbamente criticada e censurada
(por Hõnigswald, L. Biswanger). Mesmo na fuga-de-ideias, como em toda representação, em todo “elemento”, há
um ato ideativo. Não se trata de evento mecânico, mas de realização permanente do “eu penso”. Isto é certo,
mas não pode constituir objeção àquela análise. A concepção tradicional vale como descrição precisa, não como
teoria do evento próprio; teoria significativa e utilizável para interpretá-lo não existe até hoje. A oposição entre
ato e material está na própria vivência e é erro menosprezá-la.
Tem-se inquirido a causa da fuga-de-ideias, mas, até o momento, não
se encontrou resposta satisfatória. A fuga-de-ideias não resulta de acelera-
ção do curso do pensamento, nem é consequência de compulsão a falar;
não se pode compreendê-la pela simples rapidez com que os princípios as-
sociativos mudam (por exemplo, a associação sonora), nem pela predomi-
nância de tipos inferiores de associação (quando falham os tipos conceitu-
ais de associação). A causa está em processos de natureza ignorada, fora
da consciência; o todo produtivo da fuga-de-ideias só se pode descrever,
de forma interpretativa, considerando os dois lados do curso do pensa-
mento, do evento associativo e das tendências determinantes.
bb) A inibição clássica é, exatamente, o contrário da fuga- de-ideias em
relação ao evento associativo. Prejudicada a disposição do material mental
(não está destruído o material, como acontece na demência), não se apre-
sentam mais quaisquer associações, nada vem ter. à consciência; e ocorre
o pendor ao completo vazio da consciência. Surgem associações escassas,
mas, a igual do que se dá na fuga-de-ideias, a tendência determinante tem
sua efetividade diminuída e os doentes não podem concentrar-se. Após es-
forços demorados é que, por vezes, uma reação se apresenta: mais fre-
quente é o paciente estar inteiramente mudo, em estupor prolongado e
profundo.
cc) Conjugação de fuga-de-ideias e inibição do pensamento. — Parece
ser possível conjugarem-se a. fuga-de-ideias e a inibição do pensamento,
visto haver fugas ricas e fugas pobres em ideias; por exemplo, fugas com
logorreia e fugas mudas.
Se os doentes se tomam conscientes de que seu curso psíquico está
perturbado, a fuga-de-ideias aparece nas queixas O que se observa, no
conjunto, é uma inibição ideativa em forma de fuga- de-ideias1, de modo
que os enfermos se queixam de não poderem livrar-se de pensamentos
maciços; queixam-se de terem a alma assaltada por uma caçada tormen-
tosa de imagens; ou se queixam ainda de já não poderem pensar, de não
lhes acudir pensamento algum. Mas se têm, igualmente, consciência de
que as tendências determinantes estão desaparecendo, os doentes esfor-
çam-se, energicamente, por em ordem em seu curso ideativo, vindo a ex-
perimentar a total inefetividade de sua concentração em objetivos e supe-
ridéias; dá-se, então, que, ao mesmo tempo, se sentem excitados em face

1. Beringer: Beitrag zur Analyse schizophrenen Denkstörungen. Z. Neur., vol. 93 (1924).


do acúmulo de pensamentos que resulta da aceleração do curso associa-
tivo de ideias e inibidos em face da incapacidade de apreender um só pen-
samento conexo, nessa, caçada feroz.
dd) Distraibilidade. — Quando o curso das ideias já não resulta, ou
não resulta suficientemente, de tendencias determinantes, e no caso de
achar-se entravado o curso do material ideativo oriundo de associações
cuja produtividade esteja aumentada, dá-se a fuga-de-ideias. Se o material
ideativo é determinado, desordenadamente, por impressões externas, fala-
se em distraibilidade. Por exemplo, se alguém pega, ao acaso, qualquer ob-
jeto, o relógio, a chave, um lápis, ou brinca com a corrente do relógio,
bate, sacode o molho de chaves, tudo o doente nota, de imediato, a tudo
dá um nome, um valor. Pula, logo a seguir, para tudo quanto chame a
atenção no ambiente. É evidente que, conquanto, na realidade, se apre-
sentem quase sempre juntas a fuga-de-ideias e a distração, nem sempre,
entretanto, tal acontece. Há doentes que são de todo improdutivos em as-
sociações; e, no entanto, atentam para qualquer estímulo sensorial. Ao re-
vés, noutros pacientes, o curso ideativo consiste, inteiramente, em associ-
ações que tomam o aspecto de fuga-de-ideias, das quais, porém, não po-
dem os estímulos sensoriais distrai-los.
A distração, contudo, não resulta de todo estímulo sensorial. É fre-
quente notar-se seleção de acordo com áreas de interesse, ou, pelo menos,
de acordo com áreas que, objetivamente, de um modo ou doutro, se relaci-
onam. Essa distraibilidade, que, em certo sentido, é compreensível, leva
por transições, ao extremo oposto da distração por quaisquer estímulos
sensoriais; quer dizer, todos os objetos são, indiscriminadamente, “nomea-
dos”, todas as palavras repetidas, todos os movimentos imitados. Se
acharmos que se trata, nos casos da distraibilidade pura, de simples pa-
rada da atenção, cujo conteúdo, afinal, possamos compreender, esses.
“sintomas-eco” terão de afigurar-se-nos evento automático. Se no primeiro
caso, se elaborar, psicologicamente, de vários modos, o estímulo sensorial
apreendido pela atenção distraída, o que subsiste, no segundo caso, nada
mais é de que uma reação-eco, automática, sempre a mesma. Preferimos
não falar, aqui, em distraibilidade, limitando esta expressão àqueles casos
em que nos convencemos de estar-se processando, na consciência do pa-
ciente, uma mudança da orientação proséxica, de modo que ele observa e
torna a distrair-se de um modo que nos é possível acompanhar.
b) A Confusão.
Os esquizofrênicos queixam-se de fadiga, dificuldade de concentrar-se,
diminuição dos rendimentos intelectuais, fraqueza da memória; queixas
ambíguas estas que vêm a se fazer, de algum modo, significativas, quando
o observador determina uma desagregação objetiva, além de distúrbios re-
ais do curso ideativo. Berlnger investigou casos que não haviam chegado a
ponto de impossibilitarem a auto-observação e o fornecimento de dados
pelo paciente; e viu que, de fato, os achados objetivos correspondiam aos
dados subjetivos (diversamente de várias queixas de inibição formuladas
por maníaco-depressivos).
Eis as queixas: Os pensamentos são tão fugidios, como que cortados,
desconexos, atropelados uns nos outros. Piora a situação, quando o do-
ente é deixado entregue a si mesmo; melhora, quando se acha ocupado ou
conversando. Um paciente narrou o seguinte: “Esqueço os pensamentos
tão depressa... Se quero escrever uma coisa, daí a um instante já não sei.
— Os pensamentos atropelam-se, já não são nítidos. Vem-me um à cabeça
com a rapidez do raio, mas logo em seguida vem outro, de que nem ideia
tinha, uma fração de segundo antes. — Tenho um sentimento de desagre-
gação. Já não governo o curso de meus pensamentos. — Não são claros os
pensamentos: há uns que a gente não tem precisamente, -que vêm à
mente de leve, mas a gente sabe que alguma coisa existe. Além dos pensa-
mentos principais, há os acessórios, que se confundem, de modo que não
se chega a um fim; a confusão aumenta, tudo se mistura, até surgir um
embaralhamento sem sentido algum. Até me rio de uma coisa dessas po-
der acontecer. — Tenho o sentimento de que meus pensamentos empobre-
ceram. O que vejo e penso é incolor, insípido, tão sem vida. Tudo quanto
aprendi reduziu-se a quase nada.
Assim é que, quando há passividade, se experimenta uma ideia tor-
mentosa de entrecruzamento, ao passo que, nos doentes ativos, o que
ocorre é a dificuldade de o curso ideativo prosseguir, além da pobreza de
ideias.
Quando se fazem testes de produtividade, malgrado a capacidade de
concentrar-se e a boa vontade do paciente, observam-se diminuição da ca-
pacidade de notação; e mais: considerável piora na apreensão semântica
que tem a estrutura lógica de uma história. Não se apreendem coisas ab-
surdas e faz-se difícil preencher lacunas. O paciente que deu a autonarra-
ção acima não soube escrever simples recado para um amigo: apesar de
escrever 14 páginas, sempre recomeçando, não logrou seu objetivo.
Carl Schneider descreveu com sutileza o pensar confuso dos esquizo-
frênicos: por exemplo, a fusão (justaposição não intencional de estados-de-
fato heterogêneos), o disparamento (mistura de elementos estruturais he-
terogêneos objetivamente determinados), o escapamento (rotura da cadeia
ideativa, sem intenção anterior), o descarrilamento (interpolação de conte-
údos ideativos em lugar de uma conexão fatual, ocorrendo sem intenção
sobreposta) etc.
Tem-se procurado compreender esse pensar — ou, antes, toda essa
maneira por que flui o evento psíquico — pela comparação com o pensar
do estado de fadiga e de adormecimento (C. Schneider); e também com o
pensar “arcaico” dos povos primitivos (Storch). O caso é, porém, que não
se vai além de comparações. Na fadiga e no adormecimento, o que há de
primário é uma alteração da consciência; no pensar arcaico, um estado
evolutivo histórico da mente humana (que vive, em essência, não por he-
rança biológica, e sim pela tradição). No esquizofrênico, porém, o fato- em-
pírico é distúrbio primário peculiar no curso da vida psíquica.

§ 3. A Inteligência.

Chamamos inteligência o conjunto de todas as capacidades, de todos


os instrumentos que, em quaisquer realizações, são utilizáveis para a
adaptação às tarefas vitais e que podem empregar-se com fim determi-
nado.

a) Análise da Inteligência.
Em primeiro lugar, distinguimos as pré-condições da inteligência; em
segundo lugar, o- cabedal mental, os conhecimentos; finalmente, a inteli-
gência propriamente dita. Incluem-se nas pré-condições 'da inteligência,
por exemplo, a capacidade de notação e a memória, o grau- de fatigabili-
dade, o mecanismo dos fenômenos motores e do aparelho fonatório etc.
Têm-se confundido, muitas vezes, estas pré-condições com a inteligência
propriamente dita. Quem não possui memória alguma, quem não pode fa-
lar, quem se cansa muito depressa, não pode, afinal de contas, mostrar
que tem inteligência; mas, nesses casos, vamos encontrar, como causa, o
distúrbio de qualquer função caracterizável, em consequência do qual
surge a falha de atividade intelectual, e não um distúrbio da própria inteli-
gência. É da máxima valia, quando se analisam e se diferenciam anoma-
lias da inteligência, delimitar com precisão essas funções caracterizáveis,
bem como as funções psicofísicas básicas. Liepmann alude, orgulhosa-
mente, ao progresso “que constitui o fato de se haverem destacado tanto a
afasia quanto a apraxia do lodaçal indiferenciado do conceito de demên-
cia”. Noutros tempos, os afásicos foram tidos, erradamente e com frequên-
cia, por dementes.
Em segundo lugar, não confundiremos á inteligência propriamente dita
com o cabedal mental, os conhecimentos que possuímos. A posse de um
grande cabedal intelectual pode levar a concluir que também se possuem
certas capacidades, necessárias à aquisição de coisas que a pura memória
pode reproduzir. Mesmo, porém, nesse caso, a inteligência propriamente
dita (capacidade de ajuizar) independe, em larga escala, da simples capaci-
dade de aprender. Podem-se aprender, perfeitamente, estruturas ideativas
complicadas a ponto de levar a confusões frequentes entre a aptidão para
aprendizagem e a inteligência. Quando se estuda a psicopatologia, às ve-
zes, pela comparação do cabedal de conhecimentos com as escassas capa-
cidades que, momentaneamente, ainda existem, encontram-se caracterís-
ticas do defeito adquirido em oposição à debilidade mental congênita, na
qual é costumeiro os conhecimentos e as capacidades se apresentarem
mais tangivelmente relacionadas. A escassez de conhecimentos é, em ge-
ral, sinal de debilidade mental, mas a abundância deles não constitui, ne-
cessariamente, sinal de inteligência. Daí por que, embora possibilite, indi-
retamente, em casos extremos, ajuizar a debilidade mental, a prova de co-
nhecimentos é muito mais importante para informar sobre que material o
homem trabalha quando elabora seus conteúdos. Só conhecendo a exten-
são desse material (a particular imagem do mundo) é que se conseguem
compreender-lhe os atos, o comportamento, a conduta vital; é que se po-
dem apreender corretamente o que significa, na realidade, o que diz.
Quanto menor for a extensão de seu cabedal mental, tanto melhor podere-
mos observar que as palavras por ele usadas significam coisa diversa do
que significam para nós, visto que essas palavras, tomadas em seu signifi-
cado objetivo, ultrapassam os significados que ele, realmente, quer expri-
mir. As palavras podem dar a impressão de cabedais maiores que aquele
do qual o indivíduo dispõe. A dimensão do cabedal mental de um homem
depende não só de sua capacidade aprendizal e de seus interesses, como
também, sobretudo, do meio de que provém e no qual vive. O conheci-
mento do nível médio, no que diz respeito ao cabedal mental dos vários
círculos sociais, vem a constituir, pois, padrão de valor para formar juízo
sobre determinado indivíduo. Não é possível imaginar quão baixo se apre-
senta quase sempre o cabedal médio de conhecimentos. Assim foi que Ro-
denwaldt encontrou, na maioria de seus soldados, absoluta carência de
orientação social, além de ignorância dos direitos políticos e até de legisla-
ção social. A algumas milhas do torrão natal cessa a orientação geográfica.
Quanto aos conhecimentos de história, nem se podiam quase determinar.
Mais da metade não sabia dizer ao certo quem fora Bismarck. Em geral,
quando se testam conhecimentos, dá-se atenção aos conhecimentos tanto
escolares quanto vitais, estes últimos (conhecimentos que se adquirem por
interesse espontâneo e no exercício da profissão) sendo muito mais apro-
priados a que se faça juízo da inteligência. É surpreendente, entretanto,
que, pelas pesquisas até hoje realizadas, a maior parte dos homens pouco
saiba, além de exterioridades, sobre sua própria profissão.
Em terceiro lugar, voltemo-nos para a inteligência propriamente dita,
que é muito difícil de conceber. Mal damos conta de quais são e de quanto
variam os pontos de vista pelos quais dizemos ser alguém inteligente.
Certo é existirem inúmeras aptidões absolutamente diversas, das quais al-
gumas talvez se possam caracterizar com precisão; não há uma simples
escala de inteligência maior ou menor, e sim uma árvore que se ramifica
em vários pendores. Quanto a haver uma inteligência geral, uma eficiência
geral possível de apresentar-se seja em que relação for, “um fator central
de inteligência” — é duvidoso, sendo, no entanto, tendência geral admiti-
lo; é o que os psicólogos antigos denominaram poder de julgar.
Os fenômenos da inteligência são, todavia, muito diversos. Há aqueles
que aprendem com vivacidade e rapidez; que, considerados em virtude de
sua versatilidade, habilidosos e extraordinariamente inteligentes, se mos-
tram, no entanto, examinados com maior rigor, medianos e superficiais.
Há também a inteligência prática, que, a cada momento, sabe escolher o
que é correto dentre a variedade das possibilidades e adaptar-se, célere, a
novas tarefas; e há a inteligência teórica, que se comporta, em certos mo-
mentos, por assim dizer, tal qual fosse a de um débil mental, mas que, no
trabalho solitário e quieto, é capaz de rendimentos mentais eminentes,
pertinente, correta e proveitosamente realizados. “Um médico, um juiz, um
estadista podem ter na cabeça muitas belas regras de patologia, direito ou
política, a ponto de vir a ser, ele próprio, mestre nessas matérias: no en-
tanto, quando tiver de aplicá-las, talvez erre com facilidade, porque carece
do poder natural de julgar e porque tem o hábito de ver as coisas em abs-
trato, de modo que, no caso concreto, não consegue distinguir o que tem a
fazer; ainda mais: porque não está acostumado, através de exemplos e si-
tuações práticas, a formar esses juízos” (Kant).
Na investigação clínica, ainda não ultrapassamos umas tantas faces
pelas quais se apresenta a inteligência. Damos valor especial à capacidade
que o indivíduo tem para julgar, pensar, dar sentido ao que é essencial,
para apreender pontos de vista e ideias. Aquele que declara, quando lhe
dão uma tarefa difícil, não saber ou não poder fazer alguma coisa parece-
nos mais inteligente do que aquele que se perde em detalhes irrelevantes,
ou que se põe a falar. Além da capacidade de julgar, também se nos afi-
gura característica a espontaneidade, a iniciativa. Solicitada, pode uma
pessoa revelar grande capacidade de julgar e, no entanto, deixada a si só,
ficar apática e obtusa.

b) Tipos de demência.
A peculiaridade do conceito de inteligência visto pela totalidade hu-
mana, pelo aspecto da aptidão, implica que a análise mais não faz do que
revelar traços particulares, os quais, a bem dizer, não atingem plenamente
aquilo que se encerra nesse conceito. Daí termos um modo de ver os tipos
caracteristicamente particulares de inteligência muito melhor do que base-
ado no conceito de inteligência. Procuraremos descrever alguns; tipos de
distúrbio da inteligência:
1. Oscilações da produtividade. Chamamos inteligência, em geral, uma
disposição permanente; demência, um defeito permanente. Quando não é
possível obter rendimento intelectual de indivíduos com psicose aguda, ou
em estados confusionais, estuporosos, inibidos, com fuga-de-ideias, não
se diz haver distúrbio da inteligência, o qual só ocorre quando não se con-
segue obter esse rendimento em estados lúcidos, ordenados, acessíveis,
isto é, quando não há distúrbios agudos. Nos estados agudos, quase
nunca arriscamos juízos a respeito da inteligência do doente, da que ele ti-
nha antes da fase aguda e da que pode vir a ter depois. Não é, porém, em
todos os casos que se pode estabelecer, estritamente, essa diversidade en-
tre distúrbios permanentes e transitórios. Difíceis de classificar são, sobre-
tudo, os distúrbios que consistem na diminuição da produtividade mental,
de ocorrência comum em homens habituados ao trabalho intelectual (ar-
tistas, cientistas); também frequentes em fases transitórias ou em longos
períodos, quando não permanentemente, tal qual se dá com os psicastêni-
cos. Trata-se, muitas vezes, de fases passageiras, nas quais os doentes pa-
decem intensos sentimentos, de insuficiência, tendo a impressão de haver
perdido a memória, de não poder mais pensar etc. O que, todavia, de fato,
eles têm não são só sentimentos infundados de insuficiência; na realidade,
são incapazes de concentrar-se; leem, realmente, de maneira mecânica,
sem apreender o sentido, pensam sempre na maneira por que trabalham,
estão voltados para si mesmos, não para a coisa em que trabalham. Há,
com efeito, perda da capacidade de controlar o que se faz, falta absoluta
de espontaneidade mental, indispensável a qualquer ocupação. Esses ho-
mens perderam a produtividade, de forma transitória ou permanente. Mas
há também, inversamente, fases de produtividade fora do comum, de cria-
ção a mais rica possível. Em todos os casos descritos, trata-se de altera-
ções não da inteligência em conjunto, mas da produtividade; e tais fases
identificam-se, de hábito, com depressões e hipomanias.
2. Debilidade mental congênita. A partir da inteligência vivaz e reprodu-
tiva, há uma série descendente nos graus de limitação da produtividade,
representando aptidões cada vez mais escassas, indo da estreiteza e estu-
pidez à debilidade mental profunda. Os graus ligeiros constituem a debili-
dade, simplesmente; os médios, a imbecilidade; os mais baixos, a idiotia.
O que há, no caso, é uma vida psíquica menos desenvolvida em todas as
direções; ou uma diferenciação menos nítida, que se pode conceituar
como variação da disposição humana no sentido de uma condição submé-
dia. Nos graus mais baixos, a vida psíquica assemelha-se cada vez mais à
vida animal. Embora se achem bem desenvolvidos os instintos necessários
à vida, toda experiência existencial particular que decorra da inteligência
se suprime, nada se aprende, não se capta conceito algum e, pois, não é
possível ato conscientemente planejado algum. Faltando concepções ge-
rais, esses indivíduos são em absoluto incapazes de qualquer ímpeto idea-
tivo, vivendo no mais estreito horizonte de suas impressões sensoriais co-
tidianas e casuais. Entretanto, quer no mais baixo, quer no mais alto grau
da diferenciação humana, observa-se que a aptidão não constitui patrimô-
nio unitário, e sim uma multiplicidade de capacidades desigualmente de-
senvolvidas. Assim é que, muitas vezes, se veem imbecis capazes em cer-
tos campos ou até dotados de capacidades intelectuais, quais sejam o ta-
lento matemático; ou ainda providos de entendimento e memória unilate-
rais, capazes de aprender música1. No momento atual, não se distinguem,
psicologicamente, as formas de debilidade mental congênita que se apre-
sentam como variações constitucionais anormais, daquelas formas congê-
nitas correspondentes a lesões orgânicas.
3. “Idiotia de relações” (“Verhãltnisblõdsinn”). Pode-se, em princípio,
distinguir a constituição inata da inteligência da constituição da personali-
dade; isso, porém, nem sempre é possível, na realidade. Bleuler caracteri-
zou como “idiotia de relações”1 as estranhas formas fenomênicas em que,
segundo parece, se conjuga uma eficiência elevada a certas incapacidades

1 Bleuler: Allg. Z. Psychiatr., vol. 71, pág. 537 (1914). — Buchner, Lothar: Allg. Z. Psychiatr., vol. 71.
surpreendentes, porque não há proporção entre a aptidão constatada e as
grandes tarefas escolhidas pelo próprio indivíduo; donde o fracasso inevi-
tável, pelo fato de haver distúrbio na relação entre inteligência e aspiração.
O impulso desmedido dá à inteligência certas tarefas que colocam o indiví-
duo em situações para as quais não está preparado. Pessoas assim, mui-
tas vezes providas de memória mecânica e verbal excelente, “afiguram-se
ao observador superficial pensadores profundos; quem as observa, porém,
com atenção, nelas vê, apenas, confusionistas”. São incapazes “de tirar da
experiência diretivas úteis para sua atuação”; sofrem de autossupervalora-
ção incorrigível e total carência de autocrítica. Ávidas que são de prestígio,
na ânsia de impressionar, essa “idiotia de salão” (Salon-blõdsinri) leva-as a
dar livre curso, quando conversam, às associações que, numerosas, emer-
gem. A impressão que se tem é de fuga-de-ideias; mas não há fuga-de-
ideias, na realidade, e sim o desejo de expandir-se, com “ideias” (ou “ocor-
rências”) maciças, que se orientam, apenas, pelo que vão dizendo e pelo
que lhes fornece uma memória mecânica. Não desenvolvem pensamentos:
expelem conhecimentos caóticos; não formulam apreciações, nem atitudes
responsáveis: apenas pronunciam um palavreado espirituoso. É a elocu-
ção, e não o pensamento, que dirige a conversa desses indivíduos, que não
pensam conscientemente, mas se inebriam com o espírito que julgam ter,
apenas reproduzindo, verbalmente, o que leram. Afinal, vêm eles a imagi-
nar, “por força de uma convicção que lembra a pseudologia fantástica, ser-
lhes mais ou menos original tudo quanto dizem”. O conteúdo que esco-
lhem é, em geral, relacionado com os problemas mais elevados.
4. Demência Orgânica. A demência adquirida é de distinguir-se, em
suas várias formas, tanto da debilidade mental congênita quanto da de-
mência esquizofrênica. O processo orgânico destrói, primeiramente, de
maneira ampla e habitual, as pré-condições da inteligência, memória e ca-
pacidade de notação; por vezes, também a fonação, de modo que, na de-
mência senil, surgem quadros em que se vê um homem esquecer sua vida
inteira, não poder mais falar direito, só conseguindo exprimir-se com a
maior dificuldade, se bem que ainda se possa constatar, no comporta-
mento e na ação, a maneira própria dos homens educados, o sentimento
que eles têm das essencialidades; em certas circunstâncias, até certa ca-
pacidade de julgamento.
Há outros casos de demência arteriosclerótica, paralítica e -epilética
(esta em graus adiantados) nos quais a inteligência global se vai aos pou-
cos desintegrando. Afinal, os doentes, por força do processo cerebral, têm
a capacidade de julgar reduzida, mostrando-se escassamente inclinados a
dar atenção às essencialidades, tal qual fossem débeis mentais congênitos;
no entanto, são capazes de exprimir-se, em suas falas, usando fragmentos
do que aprenderam em outros tempos; daí resulta que, contrastando com
a debilidade mental congênita, se apresentam quadros contraditórios,
dando a impressão de lesões orgânicas imediatas. Com a capacidade de
apreensão consideravelmente reduzida, os doentes deixam- se levar, em
sua consciência da realidade, por impressões acidentais, sem atuação de
quaisquer contra-ideias; falta-lhes qualquer iniciativa; daí caminharem,
enfim, para os estados demenciais mais graves, só o corpo vegetando.
É característica de todas as demências orgânicas em grau adiantado a
falta de percepção da doença. Somente quando o processo orgânico se res-
tringe, em essência, às pré-condições da inteligência (memória etc.) é que
costuma existir intensa consciência da moléstia (por exemplo, na arterios-
clerose). Ao contrário do que se dá na demência paralítica, o início da de-
mência senil e arteriosclerótica é compatível com o vivo sentimento da pró-
pria decadência.
5. Demência esquizofrênica. Já na demência orgânica é difícil separar a
“personalidade” e a “inteligência”. A demência esquizofrênica, aquela de
que sofre a maioria dos internados, dos loucos propriamente ditos, é ainda
mais difícil de conceber sob o ponto de vista da inteligência. Pode-se até
duvidar se, aqui, a inteligência não se acha absolutamente intata e se to-
das as alterações não decorrem de alterações da personalidade. A distin-
ção entre os casos desta última, ordem, que são maioria, e os distúrbios
seguramente comprováveis da inteligência seria, em caso de poder-se fa-
zer, fundamentalmente importante para a compreensão dessas doenças.
Não se encontra distúrbio algum da capacidade mnêmica, nem das outras
pré-condições da inteligência; dano algum dos conhecimentos, mas, sim,
dano do pensar e do proceder, que se qualifica tolo, hebefrênico. Trata-se
também de uma falha do sentido da essencialidade; pelo menos, daquela
essencialidade que só existe no mundo comum, objetivo e empiricamente
real. Têm-se caracterizado os esquizofrênicos por sua falta de contato com
a realidade, opondo-os, por exemplo, aos paralíticos, que, por mais lesados
que estejam, ainda conservam contato com sua realidade; que ainda con-
servam também, apesar da desorientação, sua consciência do presente
(Minkovski). A heterogeneidade do que é orgânico e do que é esquizofrê-
nico — aquele ainda natural, malgrado a ruína absoluta; este distorcido —
é certa. Nos esquizofrênicos ainda se acrescenta, em muitos casos, a perda
da espontaneidade, uma crepuscularidade, que só mediante estímulos,
porém muito notavelmente, se pode interromper. Não daremos descrição
geral, mas um caso brando dessa demência, a fim de destacar a peculiari-
dade da debilidade do juízo (não se vejam nas produções do paciente gra-
cejos propositais):
O doente Nieber está plenamente orientado, lúcido, vivo, loquaz, dis-
posto a conversar jovialmente, sempre pronto a responder adequadamente
ao que lhe dizem; não apresenta distúrbio agudo. Ao ser internado pede,
de imediato, alta, afirmando poder vir à consulta, uma vez ou outra, se for
mandado embora hoje. Vai, no entanto, sem dificuldade para a enferma-
ria, não tornando a falar mais em alta. Pelo contrário, tem outros planos,
pretendendo, por exemplo, dentro em breve, fazer uma tese em Tubingem,
a fim de formar-se em engenharia. “Nisso se caracterizará meu futuro.
Formar-me-ei, na certa, se não fizer erros propositais”. Quer empregar-se
no hospital como fotógrafo, deseja algumas salas só para si, acomodações
de primeira ordem e muitas outras coisas. Não leva, porém, adiante suas
aspirações, preferindo ocupar-se com detalhes que mudam a todo mo-
mento, que abandona ou esquece. Faz versos, numerosos requerimentos,
cartas às autoridades, a outras instituições e a príncipes; e escreve uma
tese: “O Papel Higiênico. Ensaio de H. J. Nieber.” Para caracterizar o ex-
tenso trabalho, vejamos algumas frases: “Já se escreveram e se imprimi-
ram ensaios sobre a imortalidade dos besouros, sobre o perigo das armas
de fogo, sobre a discutibilidade da doutrina darwiniana da origem das es-
pécies. Por que não há de haver também uma tese sobre a aceitação e o
preço do- papel higiênico? Acho que 30 marcos por um folheto cheio de
frases, não é demais. — O aspecto político-social desta temática deve ser
muito apreciado. Acrescento, por isto, uma estatística, que sirva de maté-
ria de discussão tanto aos políticos locais quanto aos que cuidam da eco-
nomia nacional. etc.” O doente desenha, com infinito cuidado, um cheque
em que se veem os costumeiros ornatos e envia-o ao hospital onde esteve
antes para pagamento do que custou sua estadia: “Parece-me que a soma
de 1.000 marcos é suficiente para pagar minhas despesas, inclusive hono-
rários médicos. Quando lhe fazem perguntas, durante a conversa, surpre-
ende sempre as pessoas com frases estranhas: “A psiquiatria não é mais
do que a investigação do direito e dos benefícios legais em suas relações
com o homem”. “Sou de opinião que não há doenças mentais”. “À psiquia-
tria cabe dar uma existência àqueles que não nasceram para trabalhar”. -
Tende-se a pensar que a conversa e o comportamento de pessoas assim
significam intenção de zombar dos outros. Não é, entretanto, o que se dá.
A vida delas é mesmo esta e tal qual prossegue, dezenas de anos a fio,
dentro dos hospitais, sem qualquer esforço sério.
6. Debilidade mental socialmente condicionada. Conforme a origem, que
coincide com a diversidade dos caracteres psicológicos, distinguem-se a
debilidade mental congênita e a demência resultante de processo adqui-
rido, nesta última também se distinguindo' a demência orgânica e a esqui-
zofrênica. Origem absolutamente outra têm os quadros clínicos que se nos
afiguram, sem mais profunda inquirição, debilidade mental, mas que são
de atribuir-se- não a processos mórbidos congênitos ou adquiridos, e sim,
em grande parte, a nítidas anormalidades do meio em que vive o indiví-
duo: é a debilidade mental socialmente condicionada. “A má educação, a
escolaridade deficiente, a carência permanente de estimulação mental, a
restrição do interesse ao ganha-pão e à manutenção do eu vegetativo —
são, indubitavelmente, circunstâncias: que geram defeitos graves do saber
e do juízo, além de orientar o indivíduo, em conjunto, numa direção de
todo egoística e moralmente baixa” (Bonhoeffer). Observam-se formas vá-
rias de debilidade mental desse tipo, atribuíveis ao meio, nos vagabundos
de toda sorte, meretrizes, rendeiros abastados que, desde a infância, nada
fizeram e nada sofreram, nas pessoas internadas de longa data em sana-
tórios, devido a queixas somáticas ou nervosas, nos hospitalizados de todo
tipo.
7. Embotamento Emocional e Pseudo-Demência. Confundem- se os de-
feitos da inteligência com certos estados agudos, com alterações encontra-
das nas depressões, nas hipomanias, nas confusões. Também é fácil con-
fundi-los com a falha de todas as capacidades que ocorrem nas reações
afetivas e na obtusidade emocional (Jung). Ê o que se vê tanto em exames
quanto em experiências médicas e muitas outras circunstâncias que per-
turbam, de um modo ou de outro, pessoas predispostas. Enfim, podem-se
confundir com distúrbio da inteligência os quadros pseudo-demenciais
das psicoses carcerárias, que, em certas condições, se estendem por lon-
gos períodos, embora se conserve lucidez relativa; esses quadros, que sem-
pre se curam, só se podem atribuir ao efeito do complexo carcerário,
quando é histérica a constituição do paciente.

c) Exame da Inteligência
Como é que ajuizamos a inteligência de uma pessoa? Somente pelos
rendimentos efetivos que se podem obter e pelo comportamento que se
pode observar quando se lhe dão' certas tarefas. Não basta, enfim, uma
vida inteira, pelo menos considerando os estreitos limites em que decorre
a existência de quase todos os seres humanos, para evidenciar todas as
disposições intelectuais. O conhecimento das biografias e dos rendimentos
é a fonte mais importante que temos para avaliar a inteligência. Mas não
nos satisfazemos com isso. Gostaríamos de formar também juízos funda-
mentados, mediante explorações breves, o que é, até certo ponto, possível,
conquanto possamos, em certas observações casuais, que fazemos na pró-
pria clínica, aprofundar-nos mais do que mediante experiências planeja-
das. São observações que surgem do diálogo habitual, se, por exemplo,
como médicos, formulamos certas perguntas que a longa experiência
prova serem úteis (perguntas distintivas: por exemplo, distinção entre erro
e mentirá, saber e fé etc.; cálculos matemáticos tais como nunca se apren-
deram: 117 — 29; perguntas sobre o modo por que o doente vê sua situa-
ção, ou por que julga as coisas de sua vida profissional e de suas condi-
ções pessoais etc.). Têm-se, finalmente, procurado elaborar métodos com-
plicados: por exemplo, manda-se a pessoa completar logicamente um texto
do qual se eliminaram muitas palavras e sílabas (Ebbinghaus: teste com-
plementativo); ou pede-se-lhe que descreva, de memória, certas figuras
(teste de memória de Stern); ou ainda, conte histórias que lhe contamos
etc.
O que resulta das experiências até o momento feitas para avaliar a in-
teligência é o seguinte: só se podem avaliar aptidões -em certa direção se
nessa mesma direção existem rendimentos. Assim é que os testes comple-
mentativos, os testes mnêmicos etc. não possibilitam quaisquer conclu-
sões seguras concernentes aos rendimentos possíveis de obter em outras
direções. Somos perfeitamente capazes, se utilizamos todas as fontes
(anamnese, diálogo, experiências) de formar certa opinião da inteligência
de uma pessoa; não podemos avaliá-la em «relação a todos os casos e tare-
fas. :É pretensão utópica avaliar a inteligência de uma criança mediante
testes, a fim de saber em que profissões se pode aproveitar, ou que rendi-
mento dela se podem obter; a menos que se trate de rendimentos técnicos
relativamente simples e de qualidades, apenas, do aparelho psicofísico. Só
os sucessos e insucessos que, muitas vezes, se manifestam, de maneira
surpreendente, no correr da vida, é que vão permitir avaliações subse-
quentes, se bem que, em casos extremos de disposição deficitária, seja
possível restringir o círculo das possibilidades futuras. Na prática, conse-
gue-se selecionar, experimentalmente, em grupos de indivíduos que se
propõem- para certo trabalho, uma quantidade deles relativamente mais
apta, desde que se leve em conta certa margem de erros. O método é vá-
lido, por exemplo, quando se querem eliminar portadores de cegueira para
cores; mas querer, por esta forma, fazer seleção também para as profis-
sões intelectuais é correr o risco, talvez, de considerar incapazes, justa-
mente, os mais dotados.
Sempre que se fazem avaliações da inteligência de um indivíduo, cum-
pre distinguir, de um lado, o mais alto grau de rendimento possível; de ou-
tro, a relação de rendimentos corretos e errados, úteis e inúteis, válidos e
inválidos (Bleuler). O que se observa é que uma pessoa considerada pouco
inteligente, pelo segundo ponto de vista, dá excelente rendimento pelo pri-
meiro e vice-versa.
1.3.
OS SINTOMAS DA VIDA PSÍQUICA NOS FENÔMENOS
SOMÁTICOS CONCOMITANTES E CONSECUTIVOS
(SOMATOPSICOLOGIA)

Há uma quantidade de fenômenos somáticos que se podem determinar


objetivamente e que se manifestam sem. interferência da vontade e sem fi-
nalidade consciente; mais ainda, sem que se possa avaliá-los como “rendi-
mentos” significativamente objetivos para o mundo, nem compreendê-los
como expressão psíquica; fenômenos que se produzem quando existem
certos processos psíquicos, precedentes ou concomitantes. Trata-se de
achados somáticos, que se relacionam ou se podem relacionar com o psi-
quismo, sem serem, no entanto, compreensíveis, quer fisiognomicamente,
quer mimicamente. Inicialmente, nada mais são do que fatos não psiqui-
camente objetivos, somáticos.

Observações Preliminares Sobre Corpo E Alma

A unidade de corpo e alma, como unidade do todo vivo, afigura-se pre-


sente em todo homem. O fato existe da unidade do indivíduo como corpo,
que é alma, ou que tem alma, ou que a manifesta; sem que, no entanto,
por isto, a indubitável unidade corpo-alma seja visível tal qual objeto que
se possa reconhecer. O que queremos, pensamos, apreendemos é sempre
alguma coisa que já deriva da unidade, alguma coisa especial da qual se
pode inquirir como se porta em relação à unidade do todo. Daí por que
tudo quanto se disser da unidade corpo-alma virá a ser não só estéril, mas
paralisante, se se suspeitar de erro a via da análise psicológica e somática.
A unidade corpo-alma é verdadeira como ideia, apenas; ideia que veda a
absolutização de qualquer análise como conhecimento provisório e man-
tém a dúvida quanto à relação de tudo para tudo existente na vida somá-
tica e psíquica. A unidade ou é turva e incompreensível, em seu imedia-
tismo, ou não se pode alcançar, como objeto de conhecimento; o que se al-
cança, sim, é, apenas, a ideia que o conhecimento — só como tal — parti-
cular e determinado da vida pode conter.

a) A separação de corpo e alma


A separação de corpo e alma pode afigurar-se pensamento claro, sem
necessidade de maior fundamentação. Resta, no entanto, a questão: que é
que se chama corpo e que é que se chama alma?
Chama-se alma, por exemplo, a interioridade que se vivencia de modo
imediato (os objetos da fenomenologia); chama-se aquilo que produz rendi-
mentos significativos; chama-se aquilo que\ aparece na. expressão,
chama-se a unidade do eu, chama-se a substância psíquica subjacente
etc.
Corpo chama-se, por exemplo, a configuração morfológica do que vive;
chamam-se os movimentos significativos visíveis; chamam-se os processos
químicos, físicos., biológicos; chamam-se as localizações\ cerebrais etc.
Se a alma é o todo, o que resulta é que não é, empiricamente, tangível
esse todo psíquico; ou o é tão pouco quanto o corpo, uma vez que abranja
tudo quando acontece no espaço. É só mediante determinada concepção,
dada pelo todo — não como alma em geral ou como corpo em geral — que
podemos alcançar um objeto empírico.
Se, de um modo ou doutro, se separar o que é psíquico e o que. é so-
mático, ter-se-á de indagar que relação guardam; indagação sempre, pro-
veitosa, quando se admite certa configuração que se possa objetivamente
investigar, capaz, entretanto, de levar ao absurdo, quando colocada no
todo e em princípio. Vamos discutir uma coisa e outra.

b) A correlação de corpo e alma


A correlação de corpo e alma estabelece-se, por vias múltiplas, em fa-
tos que, usando ainda os conceitos corpo e alma de modo indeterminado,
podemos formular, grosseiramente, da seguinte maneira:
O somático atua sobre a alma (venenos, doenças corpóreas, lesões ce-
rebrais etc.).
O psíquico atua sobre o corpo: ou na realização de propósitos volitivos
(motricidade), ou em fenômenos consecutivos involuntários (batimentos
cardíacos, pressão sanguínea, metabolismo etc.).
O psíquico aparece compreensivelmente no somático (expressão da
alma em forma e movimento do corpo).
Que existe a correlação é fato possível, em geral, de determinar-se em-
piricamente; determinação que leva a certas concepções do que se pre-
tende dizer quando se fala em corpo e em alma. Escapa, no entanto, à ob-
servação o modo por que é possível a correlação e — mais ainda — o que
nela se passa. Se, por exemplo, eu mover a mão para escrever, sei o que
quero e meu corpo obedece a esse impulso intencional. Em parte, pode-se
demonstrar de que maneira isso acontece, de acordo com termos neuroló-
gicos e fisiológicos; mas o ato derradeiro pelo qual a intenção psíquica se
transfere para o evento somático é tão inacessível e inconcebível quanto a
magia; magia, porém, fatual, não ilusionística. O mesmo se dá com todas
as correlações psíquico-somáticas.

c) A integração de corpo e da alma em geral.


Querer compreender a relação entre o psíquico e o somático, no todo e
em princípio, é deixar de tal modo levar-se por ideias metafísicas que só ao
absurdo se chega. Quer dualisticamente, no paralelismo do físico e do psí-
quico, ou na interação dos dois, quer monisticamente, de maneira materi-
alística (o psíquico sendo, apenas, epifenômeno acessório, ou qualidade do
corpo), ou espiritualística (o somático, sendo, apenas, manifestação de
uma substância psíquica que, só ela, é viva) — quer se pense de um
modo, quer de outro, são impossíveis as consequências que resultam.
Para a investigação empírica, na medida em que se separam alma e corpo,
o que importa, sobretudo, é a categoria da interação de ambos — a alma -
atua sobre o corpo, o corpo atua sobre a alma — sem que, no entanto,
coisa alguma daí se infira, nem absoluta, nem em princípio válida.
Surgiram as dificuldades metafísicas desde que Descartes separou, por
forma absoluta, o corpo e a alma; quando, peia primeira vez e com razão,
introduziu a diversidade no espaço entre o interior e o- exterior, entre os
estados psiquicamente experimentados e os fatos corpóreos. Duas realida-
des incomparáveis há, cada uma delas suscetível de observação, descrição
e investigação, a res cogitans e a res extensa. Na diversidade radical entre
a descrição das experiências psíquicas (fenomenologia) e das observações
somáticas, essa descrição esclarecedora tem, até hoje, seu valor. Come-
çou, todavia, o engano, primeiramente, no lato de haver-se entendido
como alma apenas a vivência interna consciente e como corpo também
apenas o evento material no espaço, mecanicamente explicável; em se-
gundo lugar, no fato de se terem transformado esses aspectos de coisas
extremamente diversas em substância do ser. A plenitude da realidade,
que não é, em essência, nem vivência interior psíquica, nem processo so-
mático espacial, e sim está nalguma coisa entre um e outro — por exem-
plo, rendimentos significativos, expressão compreensível, ação e mundo,
criação espiritual — acabou ruindo, quando se quis tomar como absoluta
a clivagem dualística. A separação que Descartes estabeleceu cabe,
quando é correta, e quando mostra fatos resultantes da análise metódica
nela baseada, desaparecendo, porém, quando se quer abranger a própria
vida.
O que Descartes quis foi superar a antiga — e magnífica, à sua ma-
neira — concepção da vida, tal qual subsistia de Aristóteles a. S. Tomás:
concepção de uma hierarquia que, na totalidade do ser corpóreo-espiri-
tual, considerava a alma que se nutre, que sente e que pensa. Numa alma
imaterial do homem está a “forma substancial” do corpo- humano, que,
por assim dizer, se enobrece, enquanto a alma se corporifica; sem determi-
nação, no entanto, de diversidade essencial entre físico e psíquico.
Até hoje vale a pena estudar a psicologia de S. Tomás, porque ú protó-
tipo e realização de um grande tipo, valendo a pena meditar nas. classifi-
cações que estabelece. Tomemos um ponto particular: S. Tomás, distingue
o conhecimento sensual e a aspiração sensual (que são dependentes ime-
diatos do corpo) do raciocínio e da aspiração espiritual, que dependem,
mediatamente, do corpo. O sensual divide-se em: (1) os sentidos externos,
tato, gosto, olfato, ouvido, visão; (2) as capacidades sensuais internas, en-
tre as quais se contam o senso comum (graças ao qual se fazem conscien-
tes as sensações particulares e se apreende o que é sensato — movimento
e repouso, unidade e pluralidade, grandeza, forma; é o centro no qual se
unem todos os sentidos), a imaginação (que guarda as impressões e as re-
produz na representação e na fantasia), o juízo sensual (os instintos, im-
pulsos instintivos, a capacidade instintiva de avaliar superam a percepção
e levam à formação de juízos, constituindo uma espécie, de participação
na razão), a memória sensual (que guarda experiências sensoriais equipa-
das de sinais temporais). Acrescentem-se: (3) a aspiração sensual do appe-
titus concupiscibilis-iraccibiliis, mais as paixões.
Se bem que se possa modificar de múltiplas formas a visão básica do
todo corpo-alma, subsiste-lhe o traço fundamental, que é o caráter- abso-
luto de uma unicidade reconhecível, embora a concepção cartesiana, mais
recente, visse como absolutas as duas substâncias. A concepção- antiga
dava uma imagem do- todo, preservava a plenitude, não cedia quanto à
unidade do corpo e da alma, em todo o psíquico via o somático, em todo o
somático via o psíquico; daí por que se tem, renovadamente, até hoje e
com frequência, oposto a Descartes, tal qual se dá com o conceito de psi-
cóides, em que Breuler, há não muito tempo, procurou reunir o que há de
comum à vida somática e psíquica: as funções mnêmicas, a integração, a
intencionalidade das estruturas e- forças. A falha, contudo, está aqui,
como sempre em esquemas desta natureza, na circunstância de a concep-
ção total possibilitar um esquema da ideia, mas não um objeto de conheci-
mento real que se possa investigar. Fazer absoluto o ser substancial da
unidade corpo-alma é o contrário de fazer absolutas as duas maneiras de
ser, alma e corpo. A nosso ver, são de rejeitar tanto a concepção tomista
quanto a cartesiana. A bem da verdade, o certo é rejeitar qualquer absolu-
tização e aderir ao conhecimento, embora sempre '’parcial, definido, que,
procedendo passo a passo, jamais contém, no entanto, o todo, porque o
todo é, afinal, inacessível ao conhecimento, pela própria essência deste; e
o conhecimento, formando-se para nós com o tempo, só é verdadeiro no
espaço que nos resta aberto do total. Se quisermos conhecer aquilo que,
sendo totalidade transcendente, tem efeitos tanto psíquicos quanto somá-
ticos, aquilo que é, primariamente, uma coisa e outra, veremos que tudo
se some ante nós na clareza de fatos definidos, acessíveis à nossa apreen-
são, que jamais são esse próprio todo.

d) A coincidência de corpo e alma, como fato possível de investigar.


A coincidência de corpo e alma é coisa que cada um de nós vivencia
em si mesmo; e esta vivência constitui, nas sensações, o objeto da fenome-
nologia e da somatopsicologia. Pode-se ver que papel têm .as sensações
corpóreas para a percepção dos eventos corpóreos próprios e, bem assim,
nos sentimentos, impulsos, paixões. Mas essa vivência não leva a um co-
nhecimento que valha, em geral, para a unidade corpo-alma, apenas re-
presentando, vivência que é, objeto para o conhecimento das relações
corpo-alma.
Mais ainda: para nós, a alma e o corpo estão na expressão. Quando
notamos alegria num semblante, não separamos alma e corpo, não con-
templamos duas coisas diversas relacionadas entre si, mas um todo, que
só secundariamente separamos em fenômeno somático e interioridade psí-
quica. O fato de contemplarmos uma expressão constitui fenômeno primá-
rio de nossa apreensão do mundo, cuja riqueza em forma é infinita; que é,
em princípio, misteriosa, permanentemente real e presente. Se quisermos
falar em coincidência de corpo e alma como fato possível de investigar, é
só aqui que o encontramos; antes de qualquer reflexão que sirva de meio e
objeto a uma cognoscibilidade específica ("compreensível”), é aqui que se
acha aquilo que jamais, em parte alguma, atingimos depois de separar
corpo e alma.
De fato, porque temos sempre distinguido o psíquico e o somático, con-
seguimos descobrir, após esta separação, correlações empíricas, mas não
podemos pensar em coincidência nem identidade de ambos; muito menos,
vê-la.
Se quiséssemos inscrever, por assim dizer, estruturas psíquicas nas
estruturas somáticas e afirmar a identidade de uma e outras, seríamos le-
vados a concepções puramente teóricas, sem base, absurdas à melhor re-
flexão; por exemplo, se as imagens mnêmicas residissem nas células gan-
glionares e as associações psíquicas tivessem base e essência em configu-
rações somáticas do encéfalo; se se fixasse a base da liberdade, apenas, na
incalculabilidade estatisticamente concebível dos fatos atômicos. Presumir
coincidência do somático e do psíquico em qualquer ponto do encéfalo é
fantasia do raciocínio abstrato, que não vai além de hipótese vazia, inima-
ginável, a começar pela ideia cartesiana de que a glândula pineal fosse a
sede da alma (tal qual um cavalheiro montado no cavalo). Que a alma está
ligada ao corpo é, certamente, verdade indeterminada geral, fragmen-
tando-se, porém, numa multiplicidade de possibilidades investigativas o
modo e a sede em que se estabelece a ligação. Seja como for, nega-se que
haja, decisivamente, qualquer sede singular da realidade psíquica; o que
há é unia correlação e conexão extremamente diversificada do psiquismo
com fatores somáticos indispensáveis. Há, decerto, pontos muito limitados
do sistema nervoso cuja destruição acarreta morte imediata ou rápida;
como há outros, cuja alteração provoca, logo de início, inconsciência ou
sono; outros ainda cujos distúrbios alteram ou suprimem certas funções
(linguagem). É certo haver também correlações de outro tipo com funções
do sistema endócrino neuro-hormonal, visto que alguns hormônios geram
disposições e impulsos psíquicos e que a secreção interna de alguns hor-
mônios, dependente de motivações psíquicas, se prende a efeitos somáti-
cos e psíquicos. De outro tipo ainda são as correlações da constituição psí-
quica com a estrutura somática. Não há, porém, sede da alma, com locali-
zação, grosseira sequer, ou hormonal, ou atômica, ou ultramicroscopica-
mente situada num evento. O que, hoje, vigora, sem alteração, é a ma-
neira de ver leibniziana no tocante ao conhecimento mecânico do corpo:
Se pudéssemos entrar na máquina do encéfalo, como se entrássemos
numa fábrica, e observar, somática, objetivamente, mesmo o mínimo e
derradeiro evento, mais não veríamos do que partes corpóreas entrecho-
cando-se; coisa alguma observaríamos que sequer fosse uma percepção e
mediante a qual se pudesse explicar uma percepção. — Em resumo, pode-
mos dizer: é só onde vemos e vivenciamos, primariamente, no corpo a
alma e a alma no corpo que está a coincidência (restrita, porém, ao fenô-
meno compreensível); em parte alguma encontramos a coincidência, se ti-
vermos separado corpo e alma e nos pusermos a indagar das relações en-
tre em e outra.

e) As áreas de pesquisa em que se vê a relação corpo-alma.


O que resulta de nossa exposição é o seguinte: o problema corpo-alma
está, apenas, nas áreas da pesquisa, em cujo território ou subsiste a uni-
dade como objeto primário, ou se lhes pressupõe a separação, metodica-
mente, de maneira determinada.
Há ainda inúmeros setores de pesquisa em que nem a separação, nem
a unidade constitui problema ou tema; o que importa, sim, é investigar
outras realidades humanas, por si mesmas existentes, sem necessidade
de estabelecer relações com aquela problemática. Assim é que, quando es-
tudamos psicopatologia, lidamos cora muitos objetos n propósito dos,
quais nada tem de essencial a questão da separação ou da unidade de
corpo e alma; por exemplo, as ações, rendimentos, criações, conexões
compreensíveis, a biografia, quase todas as questões sociológicas e históri-
cas.
Investigam-se as relações corpo-alma:
1. Na psicologia da expressão, que permite compreender a significa-
ção dos gestos e da fisionomia, do ponto de vista somático.
2. Nas relações causais, cujo estudo visa a descobrir quais são os
modos de ser somáticos e de que maneira atuam sobre a psique.
3. Na inquirição da estrutura somática e da constituição, como fun-
damento da caracterização psíquica.
4. Nos fatos somáticos, que representam uma sequência de proces-
sos psíquicos, estes se considerando no presente capítulo (Soma-
topsicologia) e constituindo a relação mais exterior e menos sig-
nificativa entre alma e corpo, se os confrontamos com os resulta-
dos obtidos quando estudamos a expressão. Havemos de ver, po-
rém, até que ponto se podem tirar conclusões em certas cone-
xões compreensíveis, quando se realizam condições anormais.
Classificamos os achados somatopsicológicos em três grupos:
Em primeiro lugar, temos os fatos básicos psicossomáticos, de modo-
geral: são as sensações corpóreas, os fenômenos somáticos que. perma-
nentemente acompanham uns aos outros, o sono, a hipnose: fatos estes
que existem, ou podem aparecer em todos os homens. Descrevem-se jun-
tamente com alguns distúrbios conexos.
Em segundo lugar, há a dependência de algumas doenças orgânicas
em relação à psique: umas aparecem pela via psíquica; outras moléstias
puramente somáticas seguem curso que, de um modo« ou de outro, não é
de todo independente do evento psíquico.
Temos, em terceiro lugar, os achados somáticos evidentes das psicoses,
que não podemos relacionar com doenças orgânicas conhecidas, mas que
se lhes assemelham. Devemos- registrá-los, provisoriamente, admitindo a
possibilidade de neles ocorrerem sintomas de doenças orgânicas ainda
desconhecidas, as quais influem nas psicoses em questão; além da possi-
bilidade de haver, no caso, conexões absolutamente outras.

§ 1. Os Fatos Psicossomáticos Básicos

a) Sensações corpóreas.
O evento somático é percebido, objetivamente, pelo observador estra-
nho em sintomas visíveis; determinam-se os fatos somáticos pelos méto-
dos de pesquisa que a medicina, a clínica e a fisiologia usam. Todo ho-
mem, porém, realiza em suas sensações a percepção do respectivo corpo,
o qual- se lhe torna objetivo; daí por que, nas sensações corpóreas, mais
existe, certamente, do que simples sensação objetiva de alguma, coisa que
vem a ser meu corpo: são as sensações pelas quais se experimenta a pró-
pria existência. Uma vez, contudo, acertado que- as sensações corpóreas
fazem perceptível alguma coisa, a- qual é por elas trazida diante de mim,
trata-se de saber, em primeiro- lugar, se e até que ponto se realiza a coin-
cidência entre as sensações corpóreas e os processos orgânicos fatuais;
em segundo lugar, até onde vai a percepção do próprio corpo (pois a maio-
ria dos processos orgânicos se realiza imperceptivelmente, fora da consci-
ência); finalmente, que significado têm para o conhecimento do> corpo as
queixas somáticas, narrações e percepções dos doentes.
Coincidência em que se possa confiar é raro existir. Além das sensa-
ções que resultam de processos orgânicos primários, há as sensações cor-
respondentes a alterações orgânicas, que, como evento- somático, acom-
panham, de modo permanente, a vida psíquica; ou. que, de uma forma ou
de outra, surgem, com características especiais, por mecanismo psicogê-
nico; por exemplo, a pele percebe efeitos * vasomotores mediante sensa-
ções de calor e frio; quando há relaxamento muscular, sente-se peso; e do-
res no caso de peristaltismo psicogenicamente acelerado. Temos, enfim, as
inúmeras sensações corpóreas sem causa somática aparente, resultantes
da atenção, da expectativa, da preocupação etc.
Normalmente, embora restrito o círculo das sensações corpóreas,
pode-se-lhes ampliar a perceptibilidade a limites indetermináveis. A acen-
tuada atenção interna que se dá ao próprio corpo, tal qual a descreve J. H.
Schultz no treinamento autógeno, conduz à “descoberta de vivências orgâ-
nicas” que não repousam, apenas, em sugestão, nem são elaboração ilu-
sória de sensações normais, e sim ampliação testável de uma percepção
corpórea real.
Os doentes nos informam a respeito de sensações subjetivas numero-
síssimas. Note-se, no tocante ao que constitui a somato-psique, uma coisa
que é aqui fundamental. Podemos classificar todas as “sensações orgâni-
cas”, “sensações corpóreas”, “dores”, “sensações falsas”, “sentimentos vi-
tais” nos três grupos seguintes:
1. Alucinações e pseudoalucinações. Delas falamos no Capítulo Pri-
meiro, Primeira Secção, parágrafo 1, alínea d).
2. Processos somáticos, que ocorrem nos órgãos e no sistema-, ner-
voso e que o pesquisador ainda não pode determinar objetiva-
mente, já são notados, subjetivamente, pelo doente. Malgrado to-
das as ilusões, além da falta de capacidade crítica comum a to-
dos os homens, é significativo para o médico comprovar com
exatidão os sintomas subjetivos, levando em consideração a ca-
pacidade que tem o doente de ser objetivo. Daí talvez lhe seja
possível obter indícios de eventos psíquicos, ou aceder à origem
psíquica de sensações ilusórias (organicamente observadas).
3. À maior parte dos homens é impossível enfrentar com atitude
quieta suas sensações corpóreas; pelo contrário, é comum ver
falsificações resultarem do medo e de outros processos psíqui-
cos; falsificações que constituem, elas mesmas, outra realidade.
Associadas a alterações psíquicas, vivenciam-se sensações a que,
presumivelmente, falta qualquer base somática além daquelas
que se podem, apenas, postular, de modo diretamente somático,
na. vida psíquica; essas sensações dependem, totalmente, do
psiquismo. É o que acontece, por exemplo, com as sensações
histéricas e outras. Neste particular, têm interesse especial as
dores, das quais as mais intensas nem sempre se sentem. A am-
putação do. braço de um ferido pode realizar-se, às vezes — ra-
ras — em estado de entusiasmo bélico e sem anestesia, en-
quanto o soldado narra suas façanhas; os mártires conseguem
suportar torturas e a própria morte sem acusar sofrimento. Por
outro lado, podem algumas dores intensas aparecer sem que se
consiga determinar-lhes base orgânica, caso em que se interpre-
tam, parcialmente, como símbolos, como meio para realização de
um objetivo, como conteúdo da ansiedade. Â atenção pode au-
mentar a dor, através da preocupação; como pode moderá-la
pela observação objetiva; ou fazer esquecê-la pela distração.
De modo geral, pode-se dizer que as informações dos pacientes — par-
ticularmente, dos neuróticos — a respeito de percepções corpóreas são de
valorar-se como achados, mas não como ponto de partida para o conheci-
mento de processos somatopsíquicos. Confiar nelas como percepções sen-
soriais autênticas, tal qual fossem observações reais, equivaleria a tratar
as fantasias vivenciadas dos neuróticos como constatação de fatos verda-
deiros.1

b) Fenômenos somáticos concomitantes permanentes.


Em todos os processos da vida psíquica normal, sobretudo naqueles li-
gados à afetividade, já se observam, ou diretamente, ou por forma experi-
mental, com o auxílio de aparelhos, fenômenos somáticos concomitantes
— e mesmo pelo efeito dos mais leves estímulos.
Assim é que a vergonha e o susto fazem corar e empalidecer; o nojo
causa vômitos. Os abalos emocionais fazem correr lágrimas; quando se
sente medo, bate o coração, os joelhos tremem, suor frio escorre, a gar-
ganta seca, os cabelos erriçam-se, as pupilas dilatam-se, os olhos saltam.
Havendo tensão ansiosa, há também diarreia e compulsão a urinar2. Mui-
tos outros afetos aumentam a secreção urinária. Os abalos psíquicos ini-
bem a secreção da mucosa respiratória, das glândulas salivares e lacri-
mais (como também ocorre na melancolia).
Com o auxílio de aparelhos, podem-se observar exatamente alterações
respiratórias e cardíacas, vasomotoras, afetando às vezes o volume dos ór-

1 Em estudo pormenorizado, (Körpergeschehen und Ucurose, Internat. Z. Psychoanalyse, vol. 19, pág. 15 (1931), V.
von Weizsäcker tentou, “de maneira metódica, associar o saber anátomo-fisiológico ao pbicoanalítico”. Estu-
dando as fantasías extravagantes de um psicopata com distúrbio da micção, a fim de penetrar as conexões psico-
fisiológicas, procurou este autor testar “a\ suposição de haver o doente, por meio de suas vivências, revelado a
respeito do processo mais do que nos seria dado, doutra forma, perceber”. Teria o doente, “certamente, con-
tado, na análise, apenas um quadro; quadro, porém,:^ exato,.ém pontos importantes, de seu evento orgânico”.
Seria de admitir, que “as ideias, imagens e formulações do paciente tivessem valor representativo de alguma
coiSa que não vivenciasse de modo imediato, ou seja, os rendimentos de seu> sistema nervoso”. Von Weizsäcker
pretendeu, com o processo de que usou, ser possível pressupor “como estabelecido o método psicoanalítico e,
ao mesmo tempo, os pontos principais do respectivo conhecimento”; e “podermos arriscar-nos a abordar tam-
bém sob outro aspecto certos resultados que a psicoanálise já permitira alcançar”. Não posso aceitar este pressu-
posto, porque não me convenço da propriedade de assim representar e interpretar este caso de distúrbio da mic-
ção.
2 Bergmann e Katsch (Dtsch. med. Wschr., 1913), utilizando animais, viram por uma janela de celuloide na parede
abdominal que os intestinos empalideciam e paravam sob a ação de estímulos desagradáveis. Bastava, porém,
apresentar alimento para que a peristalse fosse estimulada à r.imoles vista da comida
gãos (deslocamento da massa sanguínea para várias partes do corpo de-
vido a constrição e dilatação localmente diversas), oscilações dentro de um
circuito galvânico tirado de dois pontos da superfície cutânea, movimentos
pupilares. Que a secreção gástrica depende de influências psíquicas vê-se
pela inibição que ocorre quando há descontentamento e quando se dorme,
ou pelo aumento resultante de ideias provocadas por estímulos visuais ou
acústicos, quando se apresentam alimentos, ou quando se despertam sen-
timentos prazerosos. Tais fenômenos concomitantes, quando se estudam
doentes mentais e se observa o modo por que se alteram em sua intensi-
dade e curso, podem ajudar a descobrir os processos psíquicos subjacen-
tes. Daí ser interessante saber se, numa situação de estupor, a consciên-
cia está de todo vazia, ou se alguma coisa se passa nos enfermos.
Devemos a Gregor torna valoração do fenômeno reflexo psicogalvânico
para ajuizamento dos processos psíquicos em doentes mentais. Se se colo-
carem electródios em dois pontos da pele, as mãos, por exemplo — e se es-
tabelecer um circuito, poder-se-á derivar do corpo uma fraca corrente gal-
vânica e registrar em curva as oscilações da intensidade dessa corrente na
sequência cronológica; oscilações que obedecem a condicionamento em
parte físico, em parte fisiológico, em parte psíquico. Refinando a técnica e
criticando o que se observa, foi possível destacar os efeitos derradeiros de
maneira bastante convincente. Investigando-se a curva em seu aspecto de
curva de repouso, ou em suas oscilações sob a ação de estímulos exter-
nos, nota-se que a curva de repouso se desenvolve em formas caraterísti-
cas, como também se observa que as reações psicogalvânicas diminuem
ou aumentam; ou há até, por fim, comportamento diverso conforme o tipo
de estimulo (campainha, dores por beliscões na pele, cálculos que se man-
dam resolver, chamados com palavras emocionalmente carregadas de
“complexos” etc.).
O que Gregor estabeleceu, de modo particular, foi o seguinte:
1) As formas por que a curva de repouso se desenvolve são de interpre-
tar-se como expressão de processos internos, psíquicos; de modo pouco
nítido, entretanto, até o momento. Gregor considera “curva de afeto”
aquela que sobe em linha reta.
2) Diminuição ou supressão das reações psicogalvânicas encontra-se
quando há embotamento afetivo permanente (muitos estados catatônicos
terminais, paralisias, epilepsias, demências. arterioscleróticas), bem como
em estados passageiros de atimia; por exemplo, quando faltam respostas
afetivas (tanto em melancolias curáveis quanto em estupores catatônicos);
é também, segundo parece, frequente na ocorrência de fenômenos de ini-
bição e exaustão de tipo psicastênico.
3) Nota-se aumento das reações psicogalvânicas, por exemplo, quando
se mandam fazer cálculos, que significam maior esforço em estados de ini-
bição.
4) Às reações são diversas conforme se diversifiquem os estímulos. As-
sim é que os psicastênicos inibidos reagem com a maior intensidade a cál-
culos; os dementes (muitos), paralíticos e epiléticos é a estímulos doloro-
sos que mais intensamente reagem.
5) Entre os achados especiais, é de notar-se que os estados, mesmo do
tipo mais acentuado, de debilidade mental congênita apresentam reações
de grau normal, contrariamente às formas de embotamento afetivo adqui-
rido; e também que, nas excitações hebefrênicas e paralíticas de caráter
hipomaníaco, faltam todas as reações, aparecendo, no entanto, sempre ní-
tidas e vivazes nas hipomanias verdadeiras.
Outro fenômeno concomitante de processos psíquicos — afetivos —
são os movimentos pupilares; aliás, as pupilas apresentam, de modo
quase permanente, quando nenhum estímulo externo atua, a chamada in-
quietação pupilar, que acompanha os movimentos psíquicos, as oscilações
da consciência quando se está atento e quando se faz qualquer esforço
mental, correspondendo à curva psicogalvânica de repouso. As pupilas
sempre dilatam-se quando se produzem impressões psíquicas, quando se
fazem quaisquer esforços mentais, quando afetos surgem; principalmente,
a estímulos dolorosos. O medo intenso dilata ao máximo e suprime a rea-
ção das pupilas à luz; pelo contrário, durante o sono, as pupilas estrei-
tam-se. Quer a inquietação pupilar, quer a dilatação reativa desaparecem
nos estados demenciais graves, sobretudo no caso de demência precoce
(fenômeno de Bumke).
Apresentam-se ainda fenômenos concomitantes a processos psíquicos
na modificação da pressão arterial, da frequência do pulso e da respiração,
s quando se fazem pesquisas pletismográficas (em cujo decurso se regis-
tram as oscilações que sofre o volume de determinadas partes do corpo,
conforme os vasos, de um momento para outro, se encham mais ou me-
nos de sangue). O medo eleva a pressão arterial de forma extraordinária.
Também se percebe aumento da pressão arterial tanto na mania quanto
na melancolia; mais nesta última. A frequência do pulso sobe com o traba-
lho mental e quando se experimentam emoções desprazerosas; diminui,
passageiramente, quando se presta atenção a certos estímulos, e também
quando a pessoa se assusta, quando §e acha tensa, quando se alegra; au-
mento dessa excitabilidade nota-se em neuropatas “vaso-lábeis”, em base-
dowianos, doentes esgotados e convalescentes- São típicas da catatonia a
tensão vascular (que aparece, à pletismografia, como rigidez de volume), a
rigidez da musculatura pupilar, a tensão da musculatura estriada (consi-
derem-se todos estes sintomas resultantes de inervação autônoma, e não
de processos psíquicos — de Jong).
Weinberg observou, com a pletismografia e a electrocardiografía, fenô-
menos electrogalvánicos, respiratórios e pupilares. Todos reagem concomi-
tante e persistentemente, a qualquer processo psíquico, como, por exem-
plo, o simples tocar de uma campainha; e de tal forma que “a elevação do
nível de consciência” produz, em consequência dos estímulos, os fenôme-
nos que se baseiam no aumento da “estimulação “simpática”.
Berger descobriu uma corrente elétrica muito fraca que emana do cére-
bro, corrente esta cujo registro — o eletroencefalograma — apresenta vá-
rias ondas, individualmente determinadas e características de cada pessoa
em particular. Essas ondas indicam um evento fisiológico, também estrei-
tamente relacionado com o evento psíquico. As ondas são muito diversas,
conforme o estado de vigília e de sono: a consciência, a atenção, qualquer
atividade se manifestam em alterações da forma das ondas.
Os fenômenos somáticos que acompanham os processos psíquicos
nada nos informam, em sua multiplicidade (da qual só pouco dissemos), a
não ser quanto ao fato daquela universal vinculação que existe entre psi-
que e soma. É unilateral conceber esses fenômenos como resultantes dos
processos psíquicos, porque a relação, assim que aparece, também atua,
reciprocamente, sobre o psiquismo. De que forma isso se passa, em parti-
cular, só se pode apreender mediante o conhecimento das conexões fisio-
lógicas, as quais sempre ocorrem em círculos: o evento psíquico gera uma
série de fenômenos somáticos, que, por sua. vez, modificam o evento psí-
quico. É o que pouco se percebe nos fenômenos concomitantes, ainda
agora enumerados, que aparecem com rapidez. As pesquisas feitas sobre
as secreções internas têm dado resultados mais claros quando existem fe-
nômenos que duram mais tempo, de meia hora e intervalos mais longos.
As excitações e inibições vão da mente, por exemplo, à musculatura lisa
dos vasos relativamente depressa; os efeitos sobre as glândulas endócri-
nas, mais lentamente. Estão-se vendo círculos: psique, sistema nervoso
vegetativo, glândulas endócrinas, produção hormonal, efeitos dos hormô-
nios sobre processos somáticos e de ambos sobre o sistema nervoso e a
psique. Fora de dúvida é que há muitos círculos, dos quais só se pode fi-
xar, objetivamente, de cada vez, um elo, quando se fazem registros experi-
mentais. A compreensão do todo há de melhorar à medida que melhor se
conhecerem, fisiologicamente, esses círculos, a estruturação respectiva e a
respectiva interação recíproca. O que sabemos, de início, muitas vezes,
não passa de amostras incompreensíveis, que, no entanto, nos ensinam a
pressentir o impulso psicofisiológico complexo que quase só em experiên-
cias com animais tem levado a certas constatações fisiológicas. Até as ra-
mificações derradeiras, a vida psíquica está ligada ao evento somático,
quer se trate das mais ligeiras excitações, quer dos abalos mais intensos.
Os fenômenos somáticos concomitantes variam de intensidade e tipo
no mesmo indivíduo e de um indivíduo para outro. Daí afirmar-se não ser
constante a capacidade reacional vegetativa, O rubor, as secreções lacri-
mais e salivar, os fenômenos dermográficos, os reflexos cardíacos etc.,
apresentam-se com extrema variação gradual. Até certos venenos como a
adrenalina, a pilocarpina, a atropina atuam com intensidade e de modo
diferente, o que leva a falar em disposição constitucional do sistema vege-
tativo e a quase não relacionar a forma pela qual ele reage com a estrutura
psíquica do homem; ou, ao contrário, a descobrir correlações com os tipos
básicos de estrutura corpórea e temperamento.
São muitos os achados que, em particular, se apresentam. Assim é,
por exemplo, que há muitas pessoas nas quais os plexos nasais se conges-
tionam quando há excitação psíquica. Também se nota interação recí-
proca entre os plexos nasais e os órgãos genitais. Com muita sorte pode-se
intervir, terapeuticamente, por meios somáticos ou psicológicos, nos cir-
cuitos de ação vegetativo- psicológica, quando os mesmos se acham per-
turbados; escassa, porém, é a possibilidade metodológica de avaliá-los.

c) Sono
Preliminares fisiológicas. O sono não é fenómeno vital universal (é algo
inteiramente diverso da modificação que ocorre em relação a todos os pro-
cessos biológicos, com a alternância de dia e de noite). A diferença que
existe, entre vigília e sono e, pois, a consciência da vigília — também se ve-
rifica em todos os vertebrados de sangue quente; o sono, por conseguinte,
não é especificamente humano. A consciência depende do funcionamento
de certo estado vital, animal, de tipo absolutamente primitivo. A alternân-
cia de sono e vigília persiste mesmo no cão descerebrado. É muito provável
que se localize no tronco cerebral (talvez na substância cinzenta do ter-
ceiro ventrículo) uma função relacionada com a consciência e com o sono.
O sono nos é indispensável à vida, proporcionando recuperação ao cé-
rebro. Se se obstar, permanentemente, o sono (o que, aliás, é quase irreali-
zável), a morte sobrevém. Passamos um terço da vida dormindo. O sono
não é paralisação, mas repouso; algo também diverso, em princípio, da
narcose, porque esta não tem ação recuperativa. Os medicamentos narco-
tizantes não atuam recuperativamente pela perda da consciência, mas
pelo sono natural ulterior que o medicamento induz. O sono hipnótico, no
entanto, é sono verdadeiro, distinguindo-se do normal apenas pelo rapport
estabelecido como o hipnotista; não há, porém, diferença fundamental,
pois que mesmo no sono normal se consegue estabelecer rapport medi-
ante conversa com aquele que sonha.
O sono é função dos centros nervosos dos quais partem todas as modi-
ficações somáticas que no sono ocorrem: ralentamento da respiração e da
circulação, diminuição do metabolismo e da temperatura, escasseamento
de algumas secreções, atenuação da reação a estímulos, perda da consci-
ência. Durante o sono, a psique mantém-se viva em suas reações a estí-
mulos significativos, ao contrário do que se dá quando há perda da consci-
ência, narcose etc. O soldado que dorme durante o bombardeio desperta a
estímulos significativos que emanam de ligeiros toques telefônicos; a mãe
desperta a tênues chamados do neném. Notável e indubitável é a pontuali-
dade com que se desperta a certa hora predeterminada (“relógio mental’).
Distingue-se duração do sono de profundidade do sono. Quem dorme
pouco costuma dormir muito profundamente. O sono profundo é mais re-
fazedor do que o sono superficial. A duração média do sono vai, no pri-
meiro ano de vida, a 18 horas; dos 7 aos 14, a 10 horas; depois, até os 50,
a 8 horas; passados os 60, é frequente descer a 3-4 horas. A curva de pro-
fundidade do sono, que se investiga pela mensuração da intensidade dos
estímulos necessários ao despertar, desce ao máximo, normalmente, logo
que se adormece, durante uma ou duas horas; depois, sobe devagar, man-
tendo sono leve até de manhã. Afigura-se anormal a curva que apresenta
pela manhã profundidade máxima. Tem-se encontrado relação das curvas
de sono com os tipos dos trabalhadores matinais (normais) e noturnos.
São fisiológicas e psicológicas as causas que determinam o sono.
O cansaço objetivo e a fatigabilidade subjetiva são preparatórias do
sono. O cansaço intenso de um órgão manifesta-se em todos os outros. As
toxinas da fadiga espalham-se por todo o corpo; e quanto mais longo o es-
tado de vigília, maior e mais irresistível pode o cansaço tornar-se e chegar
à incapacidade de manter a vigília.
Se o cansaço, como de hábito, não chega a ser irresistível, a condição
básica para instalar-se o sono é uma situação em os estímulos externos se
reduzam ao máximo: escuridão, tranquilidade, repouso psíquico, relaxa-
mento, ausência de tensões musculares. A eliminação completa de todos
os estímulos leva ao sono: Strumpell teve um doente que perdera, extensa-
mente, a sensibilidade de vários órgãos e que dormia assim que lhe tapa-
vam o olho direito, ainda dotado de visão, e o ouvido esquerdo, ainda ca-
paz de ouvir. Em condições normais, é impossível eliminar completamente
os estímulos. Tanto mais rápido isso se conseguirá quanto mais reduzida
pelas toxinas da fadiga estiver a excitabilidade. Sobretudo, porém, ainda é
necessária uma ação auto- sugestiva complementar da consciência: Quero
dormir, hei de dormir! Os fatores fisiologicamente preparatórios e psiqui-
camente sugestivos atuam concomitantemente.
A experiência mostra que, entre as condições fisiológicas do sono, se
acham, provavelmente, as seguintes:
A importância da inibição dos reflexos. Observou Pavlov que os cães
eram vencidos pelo cansaço, quando obrigados a extrema atenção. Para
ele, a inibição seria sono localizado; o sono, inibição propagada. Talvez
seja a concentração da atenção em certo objeto que causa o sono hipnó-
tico, com este relacionando-se.
O sono relaciona-se com o tronco cerebral, conforme se deduz de ob-
servações feitas em portadores de encefalite letárgica e de experiências
com animais (os gatos adormecem quando se estimulam eletricamente
certas zonas do tronco cerebral). É como se nele se localizassem pontos
que inibissem as excitações, sem, todavia, bloqueá-las de todo. O homem
os põe em atividade quando quer dormir; certas situações, adequada-
mente instadas, sevam e até obrigam, a nosso pesar, ao sono, quando es-
tamos muito cansados.
Os distúrbios do sono3 apresentam-se sob formas extraordinariamente
variadas; são distúrbios do adormecer e do despertar; distúrbios do tipo de
sono e da insônia.
Em condições normais, o adormecer é rápido, produzindo-se quase em
poucos segundos; prolongando-se, todavia, muitas vezes e por forma espe-
cial, em pessoas portadoras de sintomas nervosos. Também se observam
várias fases, além de numerosos fenômenos especiais. Ao desenvolvimento
do estádio da sonolência, que se realiza de maneira constante, à medida
que o cansaço aumenta, segue-se, repentina, quase brutalmente, a transi-
ção para um estádio dissociativo, através dê obscurecimentos súbitos, que
precedem o sono e que é frequente se repetirem, enquanto se instalam le-
ves retornos à sonolência, com oscilações da consciência entre sono e vigí-
lia. É a essa altura que ocorrem fenômenos sensoriais com aspectos varia-
dos de pseudoalucinações, por vezes até vivazes (alucinações hipnagógi-
cas). Surgem visões repentinas, que não tardam a desaparecer; e ouvem-
se palavras ou frases soltas; ou ainda, vivenciam-se situações teatrais que
já não se distinguem do sonho e para este conduzem.
Entre os fatores que produzem o adormecer, a autossugestão é um dos
que podem falhar. A vontade intensa de dormir, quando se duvida de que
o sono venha, impede que se adormeça. “Quem quer dormir fica acor-
dado”. A vontade tem de transformar-se em sugestão, acordo e expecta-
tiva; embora ativa, tem-se de fazer passiva; não deve querer impor-se, mas
abandonar-se.
O despertar, normalmente, é natural, de modo que o homem volta a si
imediatamente, em toda a clareza. Notam-se, contudo, distúrbios do des-
pertar quando esse processo se prolonga, dando lugar a um estado de em-
briaguez hípnica, ou meio-termo entre sono e vigília plena. Podem tais es-
tados ser tão anormais que o homem pratique atos automaticamente, sem
deles depois se lembrar em absoluto.
O tipo do sono é, de um lado, por vezes, anormalmente profundo; pare-
cendo, então, aos doentes. que estiveram mortos; de outro lado, o sono
pode ser anormalmente leve e os doentes não se sentem refeitos; têm so-
nhos vivazes, inquietos, ansiosos, com a impressão de que só dormiram a
meio, permanecendo semivigis, prestando atenção à metade que dormiu.
Em várias depressões, por exemplo, a duração do sono é muito longa,
com os doentes precisando de sono constante e dormindo, às vezes, 12
horas seguidas. Há casos, todavia, em que o sono se encurta anormal-
mente. Os pacientes adormecem, mas não tardam a despertar, passando
a noite inteira acordados; ou só conseguem adormecer pela manhã.
São muito variados os tipos de insônia. É de presumir que também se-
jam muitas as causas. Ignora-se se existe insônia relacionada com locali-
zação de lesão no tronco cerebral. Pode-se esperar também produzir insô-
nia por estímulos outros, patológicos, do mesmo ponto em que se origina a
necessidade de dormir.
Acontece, de vez em quando, o sono apresentar fenômenos desusados,
que vão da motricidade (sacudidelas, mascação, ranger de dentes) à fala e
a alterações da consciência, semelhantes à hipnose, além de sonambu-
lismo e atos estranhos, seguidos de amnésia.

d) Efeitos somáticos da hipnose.


São as experiências hipnóticas que de maneira mais drástica mostram
a que ponto a psique influi sobre o soma. As primeiras observações dos
efeitos da sugestão hipnótica foram tão surpreendentes que se julgaram
de todo ilusórias; mas concluiu-se pelo fato de haver aí, indubitavelmente,
efeitos somáticos extensos, visto ter-se conseguido, por exemplo, mediante
sugestão, produzir rubor ou empolamento da pele, com cicatrização sub-
sequente, bastando sugerir ao indivíduo a ideia da colocação de uma mo-
eda aquecida; mais ainda, adiamento da menstruação, alteração específica
da secreção gástrica, pela sugestão^ de certos alimentos, modificações do
metabolismo, mediante sugestões afetivas ou situacionais, secreção pan-
creática pela ingestão hipnoticamente-sugerida de alimentos, cura de ver-
rugas — tudo> isso constituindo, em parte, fenômenos excepcionais, que
só de raro em raro se obtêm (daí persistir a controvérsia quanto à forma-
ção de empolas com cicatrização subsequente) e, em parte, todavia, efeitos
que com facilidade se logram.
Os efeitos somáticos descritos por J. H. Schultz, nos estados provoca-
dos pela autossugestão e por ele denominados “treinamento autógeno”,
são idênticos ao da hipnose. Surpreende saber que há vários casos nos
quais se consegue elevar e baixar a frequência do pulso (caso, por exem-
plo, em que esta desceu de 76 a 44 para subir, em seguida, a 144). São os
Indus, e não os ocidentais, que têm conseguido ir mais longe nesse
campo. E talvez se devam compreender os estigmas (tal qual aconteceu
com S. Francisco de Assis) da mesma forma que as bolhas formadas, hip-
noticamente, mediante autossugestão.
O que atua na sugestão hipnótica são as imagens objetivas, vivida-
mente representadas, com o poder respectivo sobre os sentimentos e o es-
tado de espírito; de tal forma estimulantes que se produzem as reações
normalmente correspondentes à situação sugerida (frio na neve). O sis-
tema nervoso vegetativo acompanha, então, a vivência, imaginada esta,
apesar dos estímulos reais, absolutamente diversos, provenientes do peri-
mundo efetivo. Nunca é pela sugestão direta que se produzem, por exem-
plo, hipertermia, secreção gástrica, alteração metabólica etc.; mas pelo
desvio dos estados objetivamente sugeridos, que, quando reais, geram os
mesmos efeitos.
Compreendem-se, em parte, os efeitos da hipnose como reflexos condi-
cionados no sentido pavloviano (Hansen). A representação de um alimento
como de fato presente é sinal que desencadeia a secreção gástrica. Se en-
tretanto, se repetir a apresentação do alimento ao cão sem dar-lho, real-
mente, para comer, o que acontece é que, daí por diante, falha o reflexo
gastro-secretório; como falha, afinal, o efeito somático da sugestão hipnó-
tica sobre essa secreção, se, no correr do dia, for repetidas vezes tentada
sem realidade subsequente. Faltando permanentemente o reforço do re-
flexo condicionado, deixa este de produzir-se. O reflexo condicionado vem
a ser a base do evento psicogenicamente influenciável, sem que, no en-
tanto, se esgote, com esta interpretação fisiológica, a totalidade das rela-
ções psicossomáticas.
Até que ponto podem ir os efeitos das influências psíquicas sobre o
soma ainda não é possível imaginar. Por enquanto, a pesquisa tem alar-
gado cada vez mais esse campo de ação. De maneira difícil ainda de ava-
liar, um fator psíquico existe, a participar de muitíssimos processos; daí
talvez se originando, a partir da psique, esses efeitos surpreendentes e, so-
bretudo, certos distúrbios intensos dos processos corpóreos.
Von Weizsäker, diz o seguinte: “Melhor faríamos procurando esclare-
cer, mediante a pesquisa, aquilo que é, racionalmente, incompreensível do
que encarando como exceções à regra os “milagres” da estigmatização, da
histeria o da hipnose; exceções que nos. dispensam de presumir a existên-
cia do analogias em cada um dos sintomas patológicos. Von Weizsäcker
pretende buscar o significado compreensível de todas as doenças; mas
será que, de fato, a psique penetra sempre o somático, mesmo nas doen-
ças orgânicas de gravidade? Quem conseguisse mostrar isso de modo con-
vincente estaria não só ganhando para o saber humano novos campos,
como abrindo caminho ao conhecimento novo e radical do evento “somá-
tico total. Duvido dessa possibilidade, mas presumo, apesar de tudo, ha-
ver aqui limites bem estritos. No entanto, a questão subsiste.

§ 2. Os Distúrbios Somáticos Em Sua Relação Com A


Psique.

Concebe-se o corpo todo como órgão da alma. Se o corpo adoece grave-


mente, talvez as excitações psíquicas sejam prejudiciais, pelo esforço orgâ-
nico a elas associado; caso este, porém, fronteiriço. O psiquismo atua pe-
los seus conteúdos e tendências, os quais só funcionam patogenicamente
quando há doença psíquica. Daí poder-se isso mostrar, quando está per-
turbada a psique, também no soma. As doenças somáticas que têm rela-
ção com a psique são variadas e, em geral, difíceis de penetrar. Em pri-
meiro lugar, exporemos os fatos para, depois, indicar as vias pelas quais
se podem interpretar.

a) Grupos principais dos distúrbios somáticos psiquicamente condiciona-


dos.
1. Desfalecimentos e convulsões.
Tanto uns quanto outras, podem estar associados a excitações psíqui-
cas; fenômenos que, no entanto, também se conhecem como acontecimen-
tos somáticos organicamente condicionados, aparecendo sem quaisquer
motivações psíquicas. Distingue-se, especialmente, o ataque epiléptico or-
gânico, dos ataques histéricos psicogênicos.
As convulsões psicogênicas foram descritas por Gruhle. “O homem ro-
busto que passeia, calmo, no longo corredor dá, repentinamente, um ge-
mido, procura segurar-se nalguma coisa e afunda (não de ponta-cabeça,
entretanto). A princípio, fica estirado no chão, respirando com dificuldade,
rasgando o casaco e a camisa com as mãos. Daí começam, súbitas, as
convulsões: ora com um braço, ora com o outro, ora com os dois, ao
mesmo tempo, o homem debate-se violentamente, o corpo estorce-se para
um lado e para outro, repuxam-se e esticam-se as pernas, ora uma, ora
outra, ou as duas juntas. O mais que se pode dizer é que essas sequências
de movimentos se afiguram tal qual intolerável esperneio, ao mesmo
tempo que o rosto se contorce dolorosamente, os olhos ou se apertam, ou
rolam, ferozes. Se tocado com um alfinete, o doente esperneia mais forte;
pelo menos, às duas ou três primeiras alfinetadas; depois, a reação cessa.
É difícil examinar as pupilas, porque o doente atira a cabeça para trás e
para diante, apertando os olhos ao máximo. Se se consegue examiná-las,
apresentam-se muito dilatadas, em geral (pupilas ansiosas, ou dolorosas),
a custo reagindo. Há vezes em que o paciente se urina; sobretudo, quando
já foi enurético. É frequente dizer-se que tais ataques são teatrais, o que
não se dá, contudo, em grande número de casos. Após duração de mais
ou menos 5-10 minutos, os movimentos atenuam-se, até cessarem pouco
a pouco. O homem, suarento, quase sempre exausto, adormece longa-
mente e só desperta com reminiscências lacunares.
Gruhle também descreve, contrastando com o quadro acima, o ataque
epilético: “O ataque epilético inicia-se súbito. O doente percebe que está
para começar (“aura”), com sensação de golpe de ar, rubor, impressão de
que as coisas aumentam ou diminuem, faíscas, aumento, apavoradora-
mente rápido dos objetos, zumbidos, tinidos, sensações olfativas; já não
consegue, porém, queixar-se. Às vezes, dá umas passadas para diante,
como se o estivessem empurrando violentamente; depois, a convulsão aco-
mete-o. Ao cair, contorce-se-lhe o rosto, a boca retorce-se, espuma e não é
raro correr sangue com a saliva, devido à mordedura da língua. Os olhos
fixam-se, virados para um lado ou para outro. A fisionomia repuxa-se,
como se perpassassem intensos relâmpagos. A cabeça vira para um lado,
quando não se dobra, por assim dizer, umas tantas vezes, nessa direção.
Rangem os dentes comprimidos; diversas áreas musculares, senão a mus-
culatura do corpo inteiro, contraem-se ao máximo durante alguns segun-
dos, enquanto a boca gorgoleja ou chocalha. A respiração é difícil. Afinal, a
tensão relaxa-se; sacudidelas clônicas percorrem, repetidas vezes, os mús-
culos do -corpo, vindo, a seguir, convulsões, propriamente. Movimentos
que dão a impressão- de que a pessoa se está enxugando intercalam-se, o
corpo todo transpira, o rosto apresenta-se, geralmente, cianótico; às vezes,
branco feito giz; fixas as pupilas. Falta o reflexo córneo-conjuntival. O do-
ente não reage a estímulos externos; reage a estímulos dolorosos, uma vez
ou outra, agitando um pouco o corpo. Os ataques raramente duram mais,
de cinco minutos. É frequente passar o epilético do ataque para um sono
profundo, sentindo-se, ao despertar, cansado, exausto, com cefaleia e o
humor deprimido; a memória apagada para os minutos que o ataque du-
rou (amnésia total).
Este ataque constitui o sintoma cardial das epilepsias, embora o meca-
nismo convulsivo não opere, apenas, nessas doenças, mas, igualmente, de
quando em quando, na esquizofrenia e em quase todas as doenças cere-
brais orgânicas. Pela essência, o ataque é orgânico;1 donde diversificar-se
dos ataques psicogênicos, que se apresentam como fenômenos extrema-
mente variados e que, artificialmente provocados, sobretudo ao tempo de
Charcot, Briquet e outros, nos hospitais parisienses e, depois, em toda
parte, foram abundantemente descritos como “atitudes passionnelles”
etc.).
2. Distúrbios funcionais dos órgãos.
Quase todas as funções fisiológicas dos órgãos sofrem, de quando em
quando, a influência de processos psíquicos. Assim é que, em certas con-
dições, há distúrbios gástricos, intestinais, cardíacos, vasomotores, glan-
dulares, visuais, auditivos vocais, menstruais (cessação ou antecipação-
das regras) etc., que são de atribuir-se a influências psíquicas, a certas vi-
vências, ou estados de ânimo permanentes. É comum observarem-se dis-
túrbios funcionais nos indivíduos nervosos, distúrbios que, em casos par-
ticulares, não se podem relacionar com processos psíquicos determinados,
mas que, tendo em vista a frequência com que, concomitantes ocorrem,
devem ter conexão com anormalidades psíquicas, em geral.
Também se incluem aqui inúmeros achados neurológicos, quando se
apresentam sem substrato orgânico: paralisias e distúrbios da sensibili-
dade (delineados pelas representações do doente, e não segundo estrutu-
ras anatômicas): tiques, contraturas, tremores, tonteiras etc. Para infor-
mação a respeito da grande variedade desses fenômenos somáticos, sobre-
tudo daqueles histéricos, ver os livros de neurologia.
Os efeitos mais assombrosos dos abalos psíquicos são o repentino en-
canecimento dos cabelos, que Montaigne relata, além da ocorrência da
alopecia areata. A febre resultante de processos psíquicos, fenômeno que,
durante muito tempo, se pôs em dúvida, como, aliás, os demais aponta-
dos, é rara, mas, atualmente, certa.
Apesar da estreita relação que têm com o psiquismo, todos esses dis-
túrbios somáticos se afiguram à consciência do paciente como alguma
coisa absolutamente estranha, tal qual uma doença somática. Observam-
se fenômenos histéricos quer aparecendo por si sós, quer acompanhando
qualquer outra desordem orgânica e funcional possível de verificar-se no
sistema nervoso.
Dá-se ao conjunto desses distúrbios somáticos o nome de neuroses de
órgãos, com o que não se quer dizer que qualquer órgão possa tornar-se,
por si mesmo, neurótico. Neurótica é a psique, a qual, por assim dizer, es-
colhe este ou aquele órgão, fazendo-se nele sentir mediante desordens; ou
porque esse órgão constitui, por si mesmo, um locus minoris resistentiae
(daí ser mais facilmente acessível ao distúrbio), ou porque, em virtude de
alguma conexão compreensível, ele pareça, “simbolicamente”, essencial à
psique. Durante muito tempo, diagnosticaram-se as neuroses de órgãos
com demasiada facilidade, esquecendo-se que a base do diagnóstico es-
tava mais na negativa do achado somático ausente do que num achado
positivo; donde falar-se, com razão, em redução das neuroses de órgãos”
pela investigação mais exata da medicina interna. O conceito deve restrin-
gir-se; não, porém, eliminar-se.
Reduzidas as neuroses de órgãos, surgiu movimento contrário: o reco-
nhecimento crescente da importância que tem o fator psíquico nas desor-
dens primariamente somáticas, nas desordens orgânicas.
3. Relação de desordens primariamente somáticas com a psique.
O próprio curso das desordens orgânicas tem relação com a psique. De
modo geral, pode-se dizer que a psique pode influenciar desordens prima-
riamente somáticas. É difícil distinguir o que é condicionado psíquica e so-
maticamente, porque a psique busca vias, por assim dizer, preparadas
para exercer seus efeitos patológicos. Se, por exemplo, a pessoa já sofreu
de artralgias, em virtude de reumatismo, o que vai acontecer, após a cura
da enfermidade, é que se as dores persistem, psicogenicamente, ou voltam
a produzir-se. Nunca é indiferente o comportamento psíquico, durante o
período de convalescença de quase todas as desordens somáticas. Mas
aquilo que sofre influência psíquica não vem a ser, por isso, necessaria-
mente, condicionado pela psique, nem constitui doença psíquica.
Outra questão a resolver: as desordens orgânicas acompanhadas de
alterações anatômicas podem também — apresentar-se por via psíquica?
Este parece ser o caso.
Encontra-se, frequentemente, glicosúria nos estados ansiosos e de-
pressivos. Há ocasiões nas quais o diabetes aparece em conexão com aba-
los psíquicos, que, por sua vez, podem complicar o curso da doença.
Já se observou Basedow agudo motivado por justos, sendo que um
caso de Kohnstamm mostra a que ponto as ações complexas psíquicas po-
dem desempenhar papel na produção do mal. Todavia, é raro o Basedow
por susto que surge no decorrer de poucas horas. O que parece é que cui-
dados, preocupações e ansiedades de longa duração precedem, vezes fre-
quentes, a irrupção do processo, cujo curso é, conforme se reconhece, for-
temente relacionado com o psiquismo.
A colite membranosa pode resultar de excitações psíquicas e caminhar
para a cura por via psíquica.
A opinião geral é que a produção, evolução e cura da asma, conquanto
possibilitada esta por disposições somáticas, se relacionam com condições
psíquicas. Aliás, mostra a pesquisa clínica quanto são decisivos, no caso,
a disposição e os eventos somáticos primários. A irrupção e os ataques in-
dividuais podem, contado, depender de fatores psíquicos, como podem os
ataques cessar por motivos psíquicos. Não é preciso que a relação psíquica
signifique estar o próprio psiquismo perturbado; o que se vê, sim, é que a
asma, tal qual outros fenômenos somáticos concomitantes, pode resultar
de excitações psíquicas normais. Dado, porém, que só algumas pessoas
sofrem de asma, admite-se haver uma disposição somática mórbida, e não
uma forma reativa psicogênica, como é o caso dos fenómenos somáticos
concomitantes, em geral.
Já se pensou que distúrbios nervosos puramente reativos poderiam le-
var, mediante anomalias funcionai» crônicas, à úlcera duodenal, de ''modo
que o mesmo homem que, por força de preocupações comerciais, vem a
apresentar úlcera não a teria contraído, se levasse vida calma.
Alkan dá os seguintes exemplos do modo por que certos sintomas so-
máticos, inicialmente funcionais, podem evoluir para desordens orgânicas,
anatômicas:
A contração permanente dos músculos produz, na zona atacada, con-
tusão e anemia, donde resultam lesões necróticas, principalmente quando
as secreções que vêm ter ao tecido (suco gástrico) são alimentadas por fa-
tores psicogênicos (úlcera gástrica, colite ulcerosa 1. — O espasmo de ór-
gãos ocos tubulares leva à hipertrofia muscular das partes acima situa-
das, com dilatação esofagiana, hipertrofia do ventrículo esquerdo, em caso
de hipertonía). — O espasmo permanente ou a paralisia dos órgãos tubu-
lares leva a modificações químicas de líquidos em estase, donde a produ-
ção de cálculos colesterólicos singrares na vesícula biliar, esofagite obstru-
tiva). — Se sobrevém qualquer infecção, que, a ser regular o escoamento,
não teria efeito maior, também surgem processos inflamatórios, em caso
de esta.se, com as consequências respectivas. — A alteração psicogênica
das secreções internas pode gerar modificações anatômicas das glândulas
(diabetes e Basedow psicogênicos).
Se se quiser determinar a psicogênese das doenças orgânicas de ma-
neira muito categórica, ficar-se-á em campo bastante limitado, porque, até
o momento, a questão fatual não tem solução, desde que amplamente
vista. Não faz muito, von Weizsâcker abriu, basicamente, a questão, pro-
curando aprofundá-la através de biografias. A primeira dificuldade que en-
controu para convencer-se está na concomitância de casos positivos e ne-
gativos; isto é, quando se considera evidente um caso psíquico, logo se afi-
gura o caso seguinte como sendo situação na qual “nada” de psíquico se
encontra; em segundo lugar, falta-nos ao conhecimento a significação psí-
quica dos órgãos internos: ou seja, se o fígado tem alguma coisa a ver com
a cólera e a inveja; em terceiro lugar, há a irregularidade das relações en-
tre o psíquico e o somático. Von Weizsâcker, em casos de angina tonsilar,
diabetes insípido, por exemplo, pretende discernir influência da doença em
momentos decisivos de vida, sem pensar ainda em penetrar no fenômeno
com formulação conceituai geral. O tema em que trabalha é biográfico.
A influência que a psique pode ter sobre os sofrimentos organicamente
condicionados pode ir muito longe. Pode-se melhorar o estado subjetivo
pela sugestão e pela hipnose; além do que, a terapia médica geral pela su-
gestão tem grande importância. Mesmo objetivamente se conseguem re-
sultados extraordinários, notando-se que o entrelaçamento do orgânico e
do psíquico chega, por vezes, a ser grotesco. Assim é que Marx relata um
caso da Clínica Cushing:
“Um menino de 14 anos foi internado com diabetes insípido grave, be-
bendo até 11 litros por dia. Verificou-se que começou a masturbar-se, sen-
tindo sua polidipsia como meio de purificar-se e resolver seus conflitos de
consciência. Tratado psicanaliticamente, “curou-se” a ponto de a ingestão
líquida descer a litro e meio. Certa manhã, foi encontrado morto, na cama,
tendo a necropsia revelado grande tumor no mesencéfalo. A sede apresen-
tou-se, pois, como sintoma de desordem orgânica do sistema nervoso cen-
tral, relacionado com a vida instintiva e com a ideação do paciente, que se
esforçara por vencer a doença. As correlações tornaram-se, neste particu-
lar, tão estreitas que daí se partiu para uma ação terapêutica sobre a sede
e a poliuria”.
4. Distúrbios funcionais de atos vitais complexos.
Ao mesmo tempo que muitas funções somáticas podem achar-se per-
turbadas, sem que, ao tempo em que ocorre o distúrbio, o paciente viven-
cie, psiquicamente, algo diverso do que vivencia qualquer doente acome-
tido de sofrimentos puramente somáticos, outros casos há nos quais um
distúrbio funcional se apresenta nitidamente relacionado com distúrbio
psíquico concomitante (trata-se sempre de funções complicadas, em que a
vontade influi, de um modo ou de outro). Não se exercem funções en-
quanto o paciente está ansioso, inibido, subitamente passivo ou confuso.
O mesmo se dá quanto à marcha, à escrita, à micção, à atividade sexual
etc.; do que, resultam as “cãibras do escrivão”, dificuldades urinatórias,
impotência, vaginismo etc.
De toda parte podem originar-se semelhantes distúrbios. Fica- se co-
rado, quando se tem medo de corar, quando se anda e se fala afetada-
mente, quando se tem impressão de estar sendo observado. Até os reflexos
se relacionam com esses fatores: os reflexos da tosse e do espirro podem
intensificar-se quando se lhes presta atenção; mas o do espirro, principal-
mente, pode até cessar pelo mesmo motivo. (Darwin apostou com amigos
seus que não poderiam mais espirrar tomando rapé; por mais que eles se
esforçassem e os olhos lhes chorassem, Darwin ganhou a aposta.)

b) Origem dos distúrbios somáticos.


A relação da psique com os ataques grosseiros, com os distúrbios orgâ-
nicos, com os comportamentos complexos é extraordinariamente compli-
cada, embora se afigure simples, muitas vezes, em casos singulares. Neste
particular, a conexão entre alma e corpo é de todo plausível, individual-
mente; impenetrável e muito diversificada, entretanto, no todo. Os meca-
nismos extraconscientes são, evidentemente, vários, devendo os órgãos,
bem como as predisposições somáticas, ajustar-se, por assim dizer, à psi-
que. É como se esta escolhesse os órgãos em que se manifesta através de
distúrbios, ou como se escolhesse as funções em cuja realização interfere,
desarranjando-as.
Podem-se, em parte, presumir quais sejam os elos fisiológicos. Assim é
que, hoje em dia, se vê o sistema nervoso vegetativo, juntamente com o
sistema endócrino, funcionar como intermediário entre o sistema nervoso
central, mais estreitamente subordinado ao psiquismo, e o resto do corpo.
Esse sistema neurohormonal regula, sem que disso tenhamos consciên-
cia, a atividade dos órgãos. É preciso que ele seja sempre acessível, por
meio do cérebro, às influências psíquicas e, em certas condições, a uma
influência muito extensa. Von Bergmann chamou aqueles cujo sistema ve-
getativo é particularmente excitável, respondendo aos mais ligeiros fatores
psíquicos., “indivíduos vegetativamente estigmatizados”.
Têm-se proposto muitas explicações para casos particulares. Daí atri-
buírem-se desfalecimentos, quando desencadeados por situações psíqui-
cas (susto, vista do sangue, espaços superlotados) à anemia cerebral por
contração das arteríolas cerebrais.
O seguinte esquema serve para descrever a maneira pela qual surgem
os distúrbios somáticos:
1. De modo puramente automático, como é o caso das palpitações, das
tremuras etc., aparece grande quantidade de distúrbios funcionais dos ór-
gãos. Por exemplo, os distúrbios do aparelho digestivo após abalos emocio-
nais; as sensações subjetivas anormais, a alteração do apetite, a diarreia
ou a constipação. Mais não podemos do que constatar e registrar os fenô-
menos pela analogia dos fatos, em geral, que acompanham os processos
psíquicos, quando o soma entra em ação.
2. Acontece, às vezes, que os distúrbios somáticos, repetindo- se mais
de uma vez, tendem a fixar-se, a persistir, sem que persista a base psí-
quica; o indivíduo passa a senti-los como doença somática, que surge pe-
las mais diversas causas (reações de hábito); ou certa reação que pela pri-
meira vez ocorreu por força de abalos emocionais intensos (dores localiza-
das, cãibras), reaparece à primeira e mínima oportunidade da mesma or-
dem, que traz consigo uma carga associativa (analogamente aos reflexos
condicionados de Pavlov).
Há distúrbios funcionais capazes de desenvolver-se e fixar-se nalgu-
mas áreas que estavam em atividade durante mesmo o afeto. Se se tiver
recebido um recado telefônico muito excitante, a mão que segurou o fone
fica, a seguir, por assim dizer, paralisada, ou surgem câimbras de escri-
vão' etc. O pianista, como efeito realmente experimentado, sente as mãos e
os braços cansados, em relação com um afeto de ciúme por concorrência,
constituindo complexo autônomo de sensações, que se depara sempre que
sequer ouve música (quando o ciúme é causado pelo talento de outro).
3. Nestes casos, relação alguma existe entre o conteúdo da vivência
psíquica e as consequências somáticas especiais; apenas, concomitância;
daí por que se tem de pensar em explicá-la pela irritabilidade aumentada
ou anormalmente dirigida, em virtude do> estado mórbido; há, no entanto,
numerosos fenômenos somáticos, cuja natureza especial se pode compre-
ender pela vivência, situação e conflitos do indivíduo. Para exemplificar: a
direção especial da atenção para certa função; a consideração de peque-
nos distúrbios eventuais; preocupações e temores aumentam as sensa-
ções concomitantes e os distúrbios funcionais, que se denominam queixas
hipocondríacas e que, apenas temidas, de início, vêm a tornar-se reais
com o tempo. Esses distúrbios psíquicos, cujo conteúdo é compreensível
pelo conteúdo da representação psíquica anterior, também podem apare-
cer de repente, como é o caso da paralisia do braço após uma queda, a
surdez após um bofetão etc. O que há de comum entre todos esses fenô-
menos, aparentemente muito diversos entre si, é:
1) a relação compreensível entre causa e efeito;
2) o efeito sobre processos somáticos, que quanto ao mais, indepen-
dem, absolutamente, da vontade e da imaginação, por exemplo, a capaci-
dade de sentir, a menstruação, a atividade digestiva;
3) o círculo vicioso: havendo higidez da vida corpo-alma, os fenômenos
somáticos que acompanham os sentimentos aumentam-nos, por assim di-
zer, retroativamente e materializam-nos de maneira significativa e progres-
siva; em caso de doença, entretanto, todo evento automático e casual que
perturbe o soma serve de material, que é trabalhado por tendências psí-
quicas no sentido de transformar ligeiros distúrbios em doenças graves.
Chamamos histérico aquele mecanismo que, é certo, existe na totali-
dade dos homens em pequeno grau; que, nalguns, se desenvolve a ponto
de tornar-se um dos modos predominantes de vida; que, noutros, só entra
em ação por força de condições mórbidas, (por exemplo, desordens orgâni-
cas), ou de vivências graves.
Usa-se a palavra “histérico” em vários sentidos; o conceito mais amplo
é o psicogênico. O termo histérico assinala o traço caracterial básicos des-
ses fenômenos, no sentido de que, neles, existem fatos compreensíveis, do-
tados de significação; ocultamente, porém, associados, de- um modo ou
doutro, a conversões, deslocamentos, auto ou alofrustrações. Nesses fenô-
menos há sempre atuando um evento, a que corresponde, seja em que
ponto for, uma inveracidade, o corpo servindo de linguagem multívoca, a
qual se utiliza tanto para esconder quanto para comunicar; mas não in-
tencional, e sim inconscientemente; apenas instintivamente visando a um
fim.
Se arrumarmos estes três grupos em três rubricas, poderemos falar em
efeitos somáticos automáticos, reações fixadas e sintomas histéricos, to-
dos, porém, estreitamente correlacionados, porque tanto se fixam os efei-
tos somáticos automáticos quanto as reações histéricas; mais: quando se
estudam os distúrbios somáticos fixados resultantes de causa psíquica,
hão de distinguir-se os componentes histéricos dos automáticos.
No caso particular, quase sempre emaranham-se todos os elementos,
os quais &ó se podem separar abstratamente ou em casos fronteiriços. Por
exemplo, no caso seguinte, descrito por Wittkower: Uma mocinha de 18
anos presencia desastre ferroviário, no qual um operário é estraçalhado
pelo trem. Tomada de náuseas, leva dias sem comer coisa alguma, pas-
sando a vomitar todas as manhãs nas primeiras horas de aula; daí por di-
ante, fobia a trens, estados de ansiedade e prantos, além de fantasias ob-
sessivas de estraçalhamento, em que vê a si própria ou membros da famí-
lia vitimados.
O terceiro grupo — a compreensibilidade dos fenômenos somáticos em
conexões psíquicas — exige discussão mais aprofundada. É certo que es-
tes não necessitam aquela compreensibilidade que há pouco' referimos.
1) O efeito que têm sobre a vida somática a atenção, a preocupação, o
temor, a expectativa;
2) O acoplamento de um evento somático a um abalo psíquico pela si-
multaneidade de seu aparecimento primeiro e repetido (o que representa
analogia com os reflexos condicionados de Pavlov); um trauma psíquico dá
lugar a diarreia, vômitos, asma; ulteriormente, esse mesmo distúrbio psí-
quico pode repetir-se ao mais ligeiro estímulo;
3) a independentização de fenômenos somáticos primariamente condi-
cionados pela psique em relação à condição que os originou, com existên-
cia e evolução autônoma de um evento somático. Neste particular, o que
há de fisiológico é, decerto e quase sempre, obscuro; mas o que há de psi-
cológico é simples e claro.
Também não exige discussão mais ampla a relação entre evento vital e
disposição psíquica. A constituição interna global da psique, sua exaltação
ou abatimento, sua disposição alegre ou depressiva, sua inclinação para a
atividade ou para o abandono estão sempre atuando sobre o estado somá-
tico. A experiência antiga, se bem que difícil de provar em cada caso parti-
cular, mostra a que ponto o curso das doenças, mesmo originariamente
orgânicas, depende da atitude psíquica; e mostra quanto importam a von-
tade de viver, a esperança, a coragem. O cansaço subjetivo é pouco,
quando se tem prazer no trabalho; às vezes, quando há perspectivas e es-
peranças novas, enormemente aumentam o sentimento de força, a eficiên-
cia. O caçador exausto refaz-se, quando encontra o que pegar, após busca
longa e vã.
Partindo de toda essa compreensibilidade, tem-se tentado entender, no
evento somático, o conteúdo da corporeidade específica tal qual se apre-
senta psiquicamente significativa', ou seja, o acontecimento somático
como essencialmente relacionado com o destino psíquico e intelecto-mo-
ral, de tal modo, porém, que a relação seja inconsciente para o enfermo,
embora aberta, em princípio, à consciência dele; e de tal modo que o escla-
recimento tenha efeito curativo retroativo, pela compreensão própria, so-
bre o fenômeno somático, desde que a compreensão seja acompanhada
pela modificação da atitude psíquica interna. É aqui que se abre à inter-
pretação um campo cujo percurso, embora perigoso, tem sedução para o
nosso conhecimento. Dúvida não pode haver quase de que é possível,
aqui, reconhecer alguma coisa essencialmente básica; por outro lado, to-
davia, não há onde a evidência da introvisão pareça mais do que aqui li-
gar-se à decepção radical. Ê uma riqueza que se oferece de experiências
possíveis, aparentemente ilimitada, mas também com o risco dos equívo-
cas que desnorteiam e com a satisfação enganadora de interpretações por
demais singelas.
Da vasta literatura que se ocupa com estas questões limitamo-nos a
poucos exemplos:
1) Os fenômenos histéricos, em sentido mais estrito — paralisias,
distúrbios da sensibilidade etc. — relacionam-se com representa-
ções psíquicas, intenções, planos, que desapareceram da consci-
ência por forma difícil de explicar, mas que, de modo absoluto,
não lhe são inacessíveis. A simulação pode vir a dar na histeria,
aí, contudo, interferindo certos fatores que complicam a situa-
ção, de maneira que já não se pode falar em simulação.
2) Os processos da conversão fazem-se compreensíveis como deri-
vativos da energia; por exemplo, quando se recalcam desejos se-
xuais, mediante a conversão em evento somático, que aponta,
simbolicamente, a origem, valendo como deslocamento ou subs-
tituição da satisfação imediata vedada (Freud).
3) O evento inconsciente é pensado de forma variadamente diferen-
ciada: o doente, por assim dizer, pune-se a si próprio, com um
sintoma, pela excitação instintiva ou ação que lhe pesa na cons-
ciência; um paciente perde a vontade, enfraquece-se, abandona-
se e passa a ficar mais sujeito a qualquer tipo de doenças perma-
nentemente ameaçadoras.
4) Os órgãos dizem alguma coisa que a vontade consciente não fala:
hemorragias renais, leucorreia, eczema vulvar devem exprimir
uma defesa contra o coito e servir de cura para situações corres-
pondentemente alteradas.
Não se comprovam estas relações todas entre soma e psique, mas se
deduzem, plausíveis e possíveis que são, se se tiver em vista a temporali-
dade do aparecimento e desaparecimento; há muitos casos em que são até
quase certas, embora distantes daquela unidade evidente entre soma e
psique, quando ocorrem fenômenos expressivos autênticos.
Quanto à indagação: por que é que, havendo abalo psíquico ou es-
tresse mais prolongado, ora são acometidos o coração e a circulação, ora o
estômago e o intestino, ora o aparelho respiratório — quanto a esta inda-
gação da escolha de órgãos, a resposta que se admite é que uma fraqueza
do órgão, constitucional ou morbidamente adquirida, uma predisposição,
um locus minoris resistentiae existe; por exemplo, uma colecistopatia faci-
lita a tendência a vomitar. Heyer vai além, dando resposta inteiramente di-
vers:
Os estados somáticos, sujeitos a condicionamento psíquico, são, no
aparelho digestivo, vômitos, aerofagias; no aparelho circulatório: asma,
frenocardia. Todos eles têm, simultaneamente, significação simbólica; não
só se experimentam somaticamente, mas vivenciam-se como significados.
Os órgãos constituem linguagem oculta, que a alma escuta e pela qual
fala. O vômito é expressão da repugnância (Napoleão vomitou, quando
soube que ia ser levado para Santa Helena); a aerofagia quer dizer degluti-
ção de alguma coisa — humilhante, por exemplo —- contra a qual não
pode o indivíduo defender-se; a ansiedade significa, ao mesmo tempo, o
medo da vida, de seus pressupostos, de sua plena realização a partir das
possibilidades mais profundas; a asma significa a intolerância do ar, isto
é, da atmosfera que em certo lugar se formou por- força da situação, dos
conflitos, das pessoas; a frenocardia (neurose cardíaca, na qual o dia-
fragma se contrai, seguindo-se dores e taquicardia) representa, porque
vem a ser a fixação espasmódica da inspiração, uma tensão que não se re-
solve (quando, no ato sexual, não se produzem alívio e satisfação da ten-
são e da exaltação). A todo momento, o homem pronuncia, simbolica-
mente pelos órgãos, sem o saber, a intolerabilidade fatual de sua vida.
Para chegar a uma compreensão básica, Heyer distingue vários círcu-
los vitais: o círculo vegetativo (aparelho digestivo), o círculo animal (a vida
sanguínea: sangue, coração e circulação), o círculo pneumático (respira-
ção) ; círculo estes dotados de uma essência que se relaciona, simbolica-
mente, com essencialidades psíquicas:
1) “A vida dos intestinos é a esfera terrena do existir, vegetativa, quieta,
obscura e profundamente inconsciente”; vida de que partem movimentos
ondulares, tal qual as ondulações das marés, na natureza.
2) “A vida do sangue- é aquela das paixões ardentes, dos afetos, do
temperamento e do instinto; a esfera da impulsão sexual”; o que a domina
não são ondulações, mas- o ritmo de contração e desdobramento; e essa
vida assemelha-se à do animal que vagueia e assalta.
3) A respiração é de essência, igualmente, polar, desenvolvendo-se
através de um curso de dois polos: tensão» e distensão, a que vem um mo-
mento perto-do-eu. “Essa maior leveza e claridade, essa afinidade da res-
piração com o ar e com o éter permite sentirmo-nos nela mais elevados,
mais livres, mais soltos do que no- evento digestivo terreno e no evento cir-
culatório animal”. A ave simboliza ar e fôlego.
Assim, pois, já que os vários círculos vitais (sistemas orgânicos da di-
gestão, da circulação, da respiração) se vinculam com certo sentir “básico,
ou primitivo, ou geral, de caráter respectivamente diverso”, tem-se como
válido, inversamente, que “esses momentos psíquicos se manifestem nos
sistemas orgânicos correspondentes”. Para limitar-nos. ao exemplo princi-
pal: na circulação — a portadora do mundo compulsivo animal de paixões
e instintos — o distúrbio básico é a ansiedade; em primeiro lugar, pela
instabilidade do elemento vital (tal qual ' acontece na esclerose coronária
etc.); ansiedade, a seguir, porque o sangue está oprimido, ou seja, porque
a paixão oprime; a. ansiedade é o distúrbio que o homem experimenta
quando não sente sua unidade com o animal movido pelo próprio sangue,
isso vindo a ser medo, por um lado, de que seja em nós por demais fraco,
ou, ao contrário, medo de que nos. domine e devore; daí haver neuroses
circulatórias “não só em homens que não cumprem a vontade do sangue,
(nem a da sexualidade), que a reprimem, como também naqueles que per-
dem em demasia seu cu mental em favor do aspecto natural”. As neuroses
circulatórias resultam, por conseguinte, “tanto do conflito com o mundo
terreno e compulsivo, que não se sabe enfrentar, quanto da perda do es-
clarecimento mental por parte do homem”.
Mostra esta exposição a que ponto se entrelaçam, segundo as concep-
ções referidas: primeiramente, as conexões vitais, fisiológicas, quais sejam
aquelas entre coração e ansiedade, sexualidade e ansiedade; em segundo
lugar, temos significações simbólicas possíveis, pelas quais os órgãos são
vivenciados como símbolos do psiquismo; por fim, há um simbolismo mís-
tico, por meio do qual se exprime uma interpretação metafísica da vida. O
entrelaçamento da heterogeneidade, sem deixar de ter encanto para o jogo
de nossa fantasia, é, contudo, insuportável para o conhecimento. Certos
fatos empíricos evidentes, extremamente difíceis de isolar e esclarecer, al-
guns esboços de possibilidades vivenciais que expliquem conexões com-
preensíveis com o somático, as especulações de significados metafísicos e
existenciais — tudo isso leva a confusão de que não se consegue sair. O
que vem a ser certo é, apenas, a lembrança, em geral e de forma absoluta-
mente vaga, de que o evento corpo-alma não se esgota, sequer aproxima-
damente, com os simples esquemas habituais; nem se apreende suficien-
temente em seus fatos; mais ainda: nem sequer neles se conceitua. Em-
bora se justifique como instância negativa que nos impeça de contentar-
nos com certa singeleza fisiológico-causal, não possui valor científico pró-
prio qualquer fantasia assim configurada, que vemos avultar na psicotera-
pia.
Os vastos estudos de von Weizsãcker sobre o tema da própria patoge-
nia psíquica, em caso de desordens orgânicas sérias, abrem-se a todas es-
sas orientações interpretativas, se bem que não concordem, simplesmente,
com elas. O referido autor parece admiti-las, de quando em quando; rejei-
tando, porém, cautelosamente, qualquer interpretação demasiado precisa,
em favor de uma concepção biográfica, por virtude da qual o somático de-
sempenha papel no curso dramático do destino psíquico e moral, sem que
se fixe, no entanto, qualquer forma geral de conexão compreensível, possí-
vel de usar-se como conhecimento causai. Leem-se com certo espanto
suas biografias de doentes; sente-se inclinação para considerar possível o
que ele diz; mas, ao fim, nada se sabe.

§ 3. Achados Somáticos Nas Psicoses

Último grupo de sintomas somáticos que observamos nos doentes não


tem relação alguma que até o momento se perceba com o psiquismo; an-
tes constituindo, apenas, sinais corpóreos dos processos mórbidos somáti-
cos, que talvez sejam causa da enfermidade psíquica e que, seja como for,
com ela se relacionam. Não nos ocupamos, aqui, com os sintomas de cer-
tas doenças somáticas (por exemplo, dos processos cerebrais), e sim com
certos achados somáticos, que, por enquanto, registramos como sintomas
corpóreos observados nas psicoses, sem considerá-los sinal de doença co-
nhecida. Assim é que registramos, sobretudo, nos grupos da esquizofre-
nia, certas hiperreflexias, alterações pupilares, edemas, cianose das extre-
midades, secreções sudoríparas de cheiro fortemente característico, o
“rosto gorduroso”, a pigmentação e certos distúrbios tróficos. O que, sem
mais, se observa tem sido, de há muito, complementado determinando-se,
por exemplo, o peso do corpo, a cessação das regras; isso se tem feito, nos
últimos decênios, em pesquisas fisiológicas levadas a efeito com todos os
requintes dos métodos clínicos. Conseguiram-se acumular ao infinito
achados casuais, em parte; doutra parte, estabeleceram-se esquemas de
fenômenos a revelar com precisão processos fisiológicos que ocorrem nas
psicoses. Destacamos alguns exemplos:

a) Peso do corpo.
Sintoma somático ambíguo é a oscilação do peso corpóreo, que pode
ser extrema nos doentes mentais. Nota-se diminuição que chega à com-
pleta emaciação e ao profundo marasmo nas psicoses agudas; o aumento
de peso se constata durante a cura da fase aguda, donde ser o comporta-
mento do peso corpóreo marco importante das tendências segundo as
quais evolui a doença. Esse aumento de peso ocorre tanto no retorno à sa-
úde quanto na instalação do estado demencial permanente após fase
aguda (por isto é que aumento de peso sem melhora psíquica constitui
sintoma suspeito). Neste último caso, observa-se, em certas ocasiões, vo-
racidade fora do comum, hábito externo obeso, de empanturramento.
Nota-se queda de peso no caso de vivências psíquicas sérias, de preocupa-
ções e afetos depressivos permanentes, de distúrbios nervosos de toda
sorte (o peso diminui, às vezes, vinte libras ou mais). É muito difícil esta-
belecer, nos casos particulares, em que medida o comportamento do peso
acompanha um processo mórbido somático, que, por sua vez, também
ocasiona os distúrbios psíquicos; em que medida a alteração ponderai re-
sulta, diretamente, da atividade psíquica. Uma e outra conexões parecem,
todavia, existir. Tive um doente com neurose traumática que, a cada inter-
nação, apesar da alimentação muito boa, perdia alguns quilos, presumi-
velmente, porque a situação o excitava muito, de cada vez.
Reichardt, que realizou pesquisas exatas sobre as relações de peso cor-
póreo, de um lado, e doenças cerebrais ou mentais, de outro, notou, por
vezes, que nenhuma relação existia entre o peso do corpo e o estado psí-
quico; donde a impossibilidade de fixar quaisquer princípios. Observou
ele, por exemplo, oscilações acentuadas em certas psicoses agudas graves;
de modo geral, contudo, notou curvas ponderais estacionárias em estados
de debilidade mental e estados terminais, engordas e emaciamentos endó-
genos frequentes em doenças cerebrais, como por exemplo, paralisias,
além de emaciações mais do que excessivas em complexos sintomáticos
cata- tônicos. As oscilações ponderais de curta duração foram considera-
das resultantes de retenção hídrica, em oposição às de longa dura.

b) Cessação das regras.


— A cessação das regras é fenômeno frequente nas psicoses. Hay-
mann1 encontrou-a nas seguintes proporções:
bem como:

As regras cessam, na maioria dos casos, só depois de instalados os fe-


nômenos psíquicos. Em grande parte dos casos, a cessação coincide com
a perda de peso; voltam as regras quando o peso aumenta (cura ou estado
demencial crônico).

c) Achados de distúrbios endócrinos.


Já houve diversos casos em que se encontrou a síndrome de Cushing
em esquizofrênicos, desaparecendo com o progresso da doença (excluída a
possibilidade de tumor hipofisário). O achado apenas mostra que “os pro-
cessos mórbidos esquizofrênicos tendem a estender-se à área dos proces-
sos hormoniais”.

d) Pesquisas fisiológicas sistemáticas para conhecimento de quadros so-


matopatolóficos típicos.
As inúmeras pesquisas sobre o metabolismo, os achados hematológi-
cos, urinários etc. valem, em certas circunstâncias, como indícios; mas,
absolutamente intermináveis que são, não levam a conclusão alguma. Por
exemplo, em muitos casos de esquizofrenia (sobretudo, na forma cata- tô-
nica) e também de estupores paralíticos, tem-se visto ralenta- mento do
metabolismo; os modernos recursos da patologia metabólica têm revelado
outros fatos, que ocorrem em certas paralisias, na esquizofrenia, na epi-
lepsia, nas psicoses circulares.
Os trabalhos extraordinariamente árduos e apurados de Gjessing mo-
dificaram a perspectiva. Este autor, em primeiro lugar, não tomou acha-
dos individuais vistos em muitos doentes para confrontá-los estatistica-
mente (procedimento que, de modo geral, só pode servir para buscar indí-
cios, mas que não se pode instituir como método de pesquisa); o que fez,
sim, foi pesquisar séries de poucos enfermos, diariamente, durante tempo
prolongado, a fim de observar a modificação do quadro somatológico e
confrontá-la com a modificação do estado psicótico; em segundo lugar,
não investigou um fenômeno fisiológico individual, mas um quadro total,
que exigiu análises de sangue, fezes e simultânea determinação do meta-
bolismo basal etc.; por fim, Gjessing selecionou, cuidadosamente, casos
particulares, com diagnóstico absolutamente preciso, quadro típico, apti-
dão individual para a pesquisa. Dentre os casos diversos que comunicou,
alguns — regulares, clássicos — são de chamar atenção especial:
O estupor catatônico instala-se repentinamente e é crítico o despertar.
No estádio-pré-estuporoso, ligeira inquietação motora. No período de vigí-
lia, encontra-se diminuição do metabolismo basal, bradisfigmia, baixa de
pressão arterial, hipoglicemia, leucopenia e linfocitose, retenção azotada
(Gjessing chama esse quadro, que ocorre durante o período vigil, síndrome
de retenção). Começando o estupor, notam-se variações vegetativas mar-
cadas (alteração do tamanho das pupilas, da frequência do pulso, da cor
do rosto, da sudação, do tônus muscular). Durante o período de estupor,
observam-se: aumento do metabolismo basal, aumento da frequência do
pulso, elevação da pressão arterial, hiperglicemia, ligeira hiperleucocitose,
aumento da excreção azotada (a este quadro Gjessing deu o nome de sín-
drome de compensação). Os sintomas apresentam-se em alternância com
os estupores, este durando duas a três semanas.
Achados absolutamente semelhantes Gjessing levantou em estados ca-
tatônicos de excitação. Há, porém, numerosos casos de estupor e excita-
ção de curso irregular. Sempre, no entanto, o autor encontrou retenção
azotada, alteração vegetativa, excreção azotada; com retenção azotada du-
rante o período vigil.
O que se tem em vista é obter um quadro químico-fisiológico que cons-
titua síndrome coerente, capaz de correlacionar certas formas de estupor
catatônico e excitação catatônica. Gjessing renunciou à ocorrência de le-
sões causais (se o quadro é condicionado pelo psique, ou pelo soma, atra-
vés de doença orgânica), apenas pretendendo tratar-se, mais provavel-
mente, de estimulação, que atuaria periodicamente, do tronco cerebral.
Nos estados anormais, a retenção uréica da vigília retrograda; no estupor
ou na excitação, há, por assim dizer, cura dessa retenção.
Outras pesquisas valiosas foram feitas, ulteriormente, delas resultando
novos mistérios dentro do quadro somático; alterações das mais sérias,
sem achados mórbidos causais correspondentes do tipo das doenças in-
ternas:
Jahn e Greving encontraram concentração do sangue, aumento da for-
mação de glóbulos vermelhos (aumento das hemácias e formas jovens, co-
loração vermelha, em vez de amarela, da medula dos ossos), com redução
da destruição dos eritrócitos; achados que não se constatam em outras
doenças. Atribuíram esses acha- «dos sanguíneos, bem como outros fenô-
menos somáticos, à inundarão do sangue por um veneno, que seria uma
dentre as substâncias tóxicas provenientes do metabolismo da albumina,
veneno que produziria o mesmo efeito que produz, em experiências com
animais, a histamina. Trata-se dos casos da catatonia frequentemente fa-
tal, já de há muito descritos:
O quadro dessa catatonia fatal é descrito da seguinte forma: uma in-
quietação motora fora do comum parece evoluir, sem inibição, para a au-
todestruição, ao mesmo tempo que as forças físicas crescem enorme-
mente. Acrocianose do mais alto grau. A pele úmida das extremidades está
fria, com muitos lugares nos quais a pressão ou a percussão produzem
petéquias que não tardam a amarelecer. A pressão arterial, de início ele-
vada, desce. A excitação cai com o colapso circulatório. Os doentes jazem
na cama, inermes, com expressão do tensão interna, turva a consciência,
muitas vezes. Apesar de fria a pele, não é raro a temperatura ir a 40°. À
disseção, não se constata com clareza nenhuma causa da morte; achado
algum se obtém que indique causa mórbida essencial.
Outro quadro típico foi o que K. F. Scheid descreveu, quando exami-
nando esquizofrênicos, em períodos diversos, encontrou temperatura? ele-
vadas, com aumento considerável da velocidade de sedimentação e tam-
bém os sintomas de aumento da formação e destruição das hemátias. Em
geral, a formação e a destruição se equilibram; havendo hemólise violenta,
a anemia aparece; muitas vezes, nítida. Falta o sintoma de somatose grave
em que possam basear-se os episódios febris.
Em todos os casos, trata-se de quadros particulares, ou de tipo* de do-
ença estritamente’ delimitada; nunca se reconhece a somato-patologia da
esquizofrenia, em seu todo. Daí não se haverem estabelecido leis gerais, de
modo que subsiste a raridade dos casos clássicos, como subsistem as con-
tradições vigentes; assim, ao passo que Jahn e Greving não observaram
destruição do sangue nas catatonias fatais, K. F. Scheid viu brotos catatô-
nicos em que a hemólise se acentua, com diminuição do conteúdo de he-
moglobina e aparecimento de produtos da destruição dessa substância.
E de pensar-se; claro, em doença somática, que se comporta, funda-
mentalmente, como outras somatoses. Neste sentido falam os' sintomas
somáticos drásticos, do mesmo modo que, sob o aspecto* psicológico, a se-
melhança das vivências produzidas pela mescalina (e outros venenos) com
aquelas esquizofrênicas parece apontar' um agente causal possivelmente
tangível. Em contrário, todavia, fala a ausência de achado anatomopatoló-
gico que indique a causa; sem contar aquilo que varia, radicalmente, nal-
guma parte do soma, (digamos, quanto ao tipo dos distúrbios circulató-
rios). Embora. expressivos os novos achados, não se lhes percebe o signifi-
cado. Será decisivo esclarecer se, em princípio, a mesma doença pode apa-
recer em animais, ou se toda a enfermidade é especificamente humana.
Seja como for, ela é fenômeno da natureza humana, processo que reside
no substrato do homem, onde ainda não se descobre distinção entre corpo
e alma.
1.4.
OS FATOS OBJETIVOS SIGNIFICATIVOS

Chamamos fatos objetivos significativos aqueles fenômenos que, no


mundo sensível, se entendem como manifestação da psique, fatos que são
a forma fisiognômica, a movimentação mímica, a fala e a escrita, as pro-
duções artísticas e os atos conscientes propositais; fenômenos estes, po-
rém, heterogêneos, quase incomparáveis. Há uma significação objetiva do
pensamento, da obra-de-arte, do ato proposital, significação que, como tal,
não é em absoluto psicológica e cuja compreensão não representa compre-
ensão alguma do psiquismo. Assim é, por exemplo, que compreendemos
racionalmente a significação de uma frase, apesar de não compreender-
mos o homem que a pronuncia, apesar de nem sequer nele pensarmos.
Um mundo objetivo da mente existe, em que nos movemos sem pensar na
psique e do qual a mente surge à observação psicológica. Daí por que divi-
dimos os fatos objetivos significativos em várias esferas:
1. A psique humana exprime-se no corpo e em seu movimento; ex-
pressão esta que, involuntária, se faz objetiva àquele que ob-
serva, não, entretanto, ao indivíduo que se tem de compreender
(Secção I).
2. O homem vive em seu mundo: por sua atitude, seu comporta-
mento, suas ações, pela conformação de seu perimundo e de
suas relações comunitárias. Em suas ações e atividades é que
aparece o que ele é; e estas constituem, para ele próprio, um
conteúdo consciente (Secção II).
3. O homem objetifica seus conteúdos na fala, no trabalho, na vi-
são ideativa que conformam o mundo mental. Apreende o que
materialmente compreendeu, produziu, criou e quer criar (Sec-
ção III).
Antes de mais nada, estas três esferas significam conteúdos com os
quais nos ocupamos não só psicologicamente, visto que, de início, nem
existe interesse psicológico. A apropriação interna desses conteúdos, a ca-
pacidade segura de percebê-los compreensivamente constitui pressuposto
da respectiva observação psicológica, para a qual não existem, contudo, li-
mites. Nem a obra intelectual mais sublime pode ser inquirida quanto à
sua origem psíquica, quanto à expressão que nela, involuntariamente, se
realiza, quanto ao efeito que gera na vida psíquica, quanto à significação
que tem como apoio para a psique etc, O mundo do que é compreensível,
evidentemente, não se esgota com o aspecto psicológico dessa compreensi-
bilidade. Não devemos esquecer-nos de que, sob outros pontos de vista, se
considera a> mente um mundo significativo que se destaca de tudo
quanto é psíquico; e de que se considera o homem criatura racional e livre;
o caso é, todavia, que, como psicopatologistas, outro interesse não temos
senão compreender toda significação objetiva, isso constituindo pressu-
posto para a compreensão psicológica de que essa significação existe na
psique do homem verdadeiro. Este é o motivo por que, já na psicologia da
expressão, a percepção imediata do que nos outros se vê e se ouve de-
pende da cultura e amplitude da personalidade do psicopatologista. Não é
de admirar que muitos se contentem com trivialidades, banalidades e que
outros, sentindo serem limitadas suas possibilidades de compreender a
expressão e, consequentemente, seu acesso à psique alheia, se intimidem
ante qualquer individualidade empírica, percebendo que, exatamente
quando se tem apreendido muito, é que não se pode penetrar completa-
mente.
Em cada uma das três direções que tomam os fatos significativos obje-
tivos, são particularidades que observamos; particularidades cuja essên-
cia, entretanto, só está num todo; e esse todo não se nos apresenta de
forma determinada, tal qual um fato particular. O que o constitui, dentro
do conjunto dos fenômenos expressivos é o Formniveau (Klages — nível de
forma) inconsciente; quanto à existência do homem em seu mundo, é a
configuração do mundo; quanto à objetivação mediante o saber e a obra, é
a totalidade consciente da mente singular.
As três esferas quase sempre se ajuntam, embora possuam, cada uma,
um princípio que lhes é peculiar, de modo que em todas algo existe, por
exemplo, do caráter expressivo que só na primeira é princípio predomi-
nante. Um conteúdo pensado, uma finalidade e uma intenção podem, ob-
jetivamente, existir no mundo, mas a observação psicológica descobre não
haver pura racionalidade, pura finalidade num indivíduo empírico. A
forma por que o pensamento se profere, desde o tom da voz até o estilo da
linguagem; a forma por que se realiza a intenção, desde os movimentos
corpóreos até as modalidades comportamentais individualmente variáveis
conforme a situação particular concreta, tudo isso representa atmosfera
da expressão que constantemente impregna todas as manifestações psí-
quicas; sem contar o fato de que é este homem, exatamente, que tem este
pensamento; que, exatamente, persegue este objetivo, exprimindo certa
“personalidade” ou certo modo de ser. Também os “rendimentos” que, em
si, não são expressão possuem, aparecendo individualmente, um “as-
pecto” expressivo: a motricidade apresenta-se tal qual motricidade expres-
siva; a linguagem assume caráter expressivo pelo tom e pela forma; o tra-
balho adquire ritmo e estilo através da mímica que o acompanha.
A classificação básica dos fatos particulares conjuntos esquematiza-se,
mais uma vez, da seguinte forma: os fenômenos subjetivos — a vivência —
são objeto da Fenomenologia; os fenômenos objetivos são ou não significa-
tivos; os que não têm significação são objeto da Somatopsicologia; os que
têm significação avaliam-se e medem-se como rendimentos (Psicologia do
Rendimento) ; ou se compreendem como fatos objetivos significativos, es-
tes representando expressão (Psicologia, da Expressão), ou vida num
mundo (Psicologia do Comportamento no Mundo, ou, abreviadamente,
Psicologia do Mundo) ; ou ainda produções-, intelectuais (Psicologia da
Obra).
Toda objetivação significativa provém de um impulso psíquico; como
também alguma coisa que é inintencional, impulsiva, subjaz a tudo
quanto é deliberado. Podemos distinguir o impulso primário em:
• 1) O impulso à expressão, no sentido mais estrito- do abandono
involuntário e não orientado a estímulos psíquicos, abandono a
que correspondem possibilidades expressivas maiores ou meno-
res, de acordo com indivíduo e raça.
• 2) O impulso à representação, que exprime algo semivoluntário,
o homem dando a si próprio uma forma configurada, isto é, re-
presentando a si mesmo com certo valor e significação perante
espectadores reais ou imaginários, tal qual se representa perante
si mesmo. Representar-se a si mesmo é característica humana
fundamental; fator indispensável e positivo, pertence à vida hu-
mana, mas pode acontecer que o homem se iluda em sua autor-
representação: forma, cena, gesto, em vez de serem efeitos vitais,
vêm a constituir a. própria vida, sob o aspecto de momentanei-
dade em perpétua mutação, ou de atitude rígida, substituindo a
vida substancial.
• 3) Necessidade de comunicação: o homem quer colocar-se em re-
lação de entendimento recíproco com outros; de início, entendi-
mento, apenas, de conteúdos objetivos, ideias objetivamente diri-
gidas, representações intencionais, pensamentos; é mais tarde
que vem a comunicação da própria psique. A linguagem é o ins-
trumento maravilhoso, enigmático, que o indivíduo encontrou
para essa comunicação.
• 4) O impulso à atividade: a atuação conforme uma finalidade, a
apreensão de situações e tarefas. — Em cada uma das quatro di-
reções do impulso primário está a significação, diversa do puro
impulso vital ao movimento.
Em todas as objetividades significativas, a regra vale de que são os ca-
sos desusados, diferenciados, ricos, que mais ensinam; eles é que esclare-
cem os demais e mostram ser a experiência que se. ganha com a quanti-
dade dos casos menos ilustrativa do que aquela resultante da profundi-
dade a que se penetra o caso particular. Daí terem aqui os casos particu-
lares significação em princípio diversa da que se descobre nos setores so-
máticos, onde sempre se vê “um caso de ...”, ao passo que, na psicologia
da expressão, o caso particular pode ter importância exemplar.
SEÇÃO 1.
EXPRESSÃO DA PSIQUE NO CORPO E NOS MOVIMENTOS
(PSICOLOGIA DA EXPRESSÃO)

a) Fenômeno somático concomitante e expressão psíquica.


Falamos em fenômenos somáticos concomitantes, ou que acompa-
nham a atuação psíquica, quando, simplesmente, registramos e conhece-
mos uma relação; por exemplo, entre o medo e a midríase; mas é na ex-
pressão do psiquismo que falamos, quando compreendemos uma relação
entre o fenômeno somático e o evento psíquico que nele se exprime; por
exemplo, quando compreendemos no riso, imediatamente, a alegria. Os fe-
nômenos expressivos são sempre, de um lado, objetivos, na medida em
que sensorialmente se percebem e representam fatos possíveis de fotogra-
farem-se ou guardarem-se como documentos; doutro lado, são sempre
subjetivos, na medida em que, sensorialmente percebidos, ainda não
constituem expressão, mas nela só se transformam após a compreensão
da respectiva significação e importância. Daí porque a inspeção dos fenô-
menos expressivos pressupõe um tipo de evidência diverso daquela que o
registro de fatos somáticos meramente objetivos fornece. Bem se tem dito
que toda compreensão da expressão repousa em conclusões analógicas
que, tiradas da vida psíquica própria, à vida psíquica alheia se aplicam.
Mas são fantasia essas conclusões analógicas.
Fato é, na realidade, que compreendemos, de modo absolutamente
imediato, sem reflexão, mediante ato único, tal qual um relâmpago, graças
à percepção sensorial; e mais: nunca percebemos em nós mesmos a ex-
pressão que compreendemos (pode ser que o homem do futuro venha a
estudar-se num espelho); e mais: ás crianças que ainda não falam já com-
preendem a expressão mímica; enfim, até os animais compreendem, em
extensão limitada, a expressão, cuja compreensão se tem procurado expli-
car pelo processo psicológico do Einjuhlen (empatia). Correta ou errada,
esta explicação constitui problema psicológico, mas não metodológico,
visto que aquilo resultante da compreensão da expressão, imediatamente
presente, é para nossa consciência algo derradeiro; ou mesmo algo imedia-
tamente objetivo. Não nos percebemos nos outros, mas, sim, percebemos
os outros, ou a significação que têm como algo que por si existe.; talvez
seja a vivência dos outros como algo que nós próprios, nessa forma, nunca
tivemos. Nem por isso se admita, em absoluto, a compreensão da expres-
são como algo que seja, simplesmente porque é imediato, válido e correto.
Tal não é o caso sequer quando ocorre a mera percepção sensorial: cada
particularidade é controlada pelo todo de nossa conhecimento e ilusões
existem naquilo que é imediatamente sensorial. O mesmo se dá com a
compreensão da expressão; só que as ilusões são aqui mais numerosas,
mais difícil o controle — para o qual também aplicamos, secundariamente,
conclusões analógicas; cada expressão particular é multívoca e só possível
de compreender em relação com o todo.
Ainda mais: a vivacidade e a multilateralidade da compreensão da ex-
pressão é, em nós, muito diversa, porque a compreensão se relaciona com
a amplitude, a profundidade e a plenitude da própria experiência, história,
vivência possíveis. É por isto que a pobreza mental se rebela contra a vali-
dade de cada compreensão da expressão, de modo a aplicá-la, banal e vio-
lentamente, dentro da estreiteza dos preconceitos de cada um. Não pode-
mos, contudo, esquecer-nos de que é só pela via da compreensão da ex-
pressão que possuímos todo conhecimento da vida psíquica alheia; é de
fora que todo rendimento, como tal, todo fenômeno somático concomitante
como tal, e mesmo a compreensão dos conteúdos mentais como meras ob-
jetividades nos ensinam a conhecer a psique.
É erro metodológico fundamental confundir os pontos de vista; por
exemplo, chamar fenômenos da expressão todos os fenômenos somáticos
concomitantes e subsequentes ao evento psíquico; que só são fenômenos
da expressão na medida em que se fazem “compreendidos”, como expres-
são do psiquismo; por exemplo, a mímica. O aumento do peristaltismo in-
testinal consequente a afetos não é, contudo, movimento expressivo, e sim
fenômeno concomitante sintomático. Certo é, no entanto, que não há li-
mite preciso para a expressão compreensível. Não “compreendemos” a di-
latação das pupilas como fenômeno do medo; mas, se dela sabemos e a
notamos com frequência, pode essa ciência afigurar-se, de imediato, como
percepção do medo nas pupilas; isso só se dá, porém, se se apreende o
medo, simultaneamente, em sua expressão genuína, que não seja aquela
representada pelo midríase, visto que a dilatação pupilar, apenas, não se
vincula, intimamente, para nós, com o medo, podendo resultar de outras
causas, qual seja o uso da atropina, em que logo pensamos. Outro tanto
acontece quando alguém corre, a todo momento, para a privada. Em situ-
ações correspondentes e ocorrendo fenômenos expressivos genuínos de
outra natureza, sabemos que qualquer afeto intenso é causativo; sem o
que, antes pensaremos em distúrbio somático.
b) A compreensão da expressão.
Na forma e movimento imediatos é um fenômeno de essência psíquica
ou de disposição psíquica que vemos. Se refletirmos na maneira por que
vemos, logo duvidamos de sua importância para a apreensão da realidade
empírica, porque há, para nós, um simbolismo absolutamente universal:
cada forma, cada movimento nós os vemos, no mundo, de modo inteira-
mente imediato, como levando uma disposição, uma importância, como
constituindo uma essência, e não como quantidade meramente matemá-
tica, não como qualidade meramente sensorial. Daí valer a pena, para fins
de clareza metodológica, representar o que é a maneira por que vemos as
formas, ou as configurações.
Consiste o primeiro passo em claramente trazer à observação, dentre a
confusão dos fenômenos, uma forma, ou uma configuração, procurando
as condições favoráveis, quer se chamem fenômenos primários, configura-
ções básicas, formas simples: ao que se há de seguir a análise, mediante a
qual se verá o que são essas formas, como se transformam, se desdobram,
como sobre elas a totalidade das coisas se edifica. A esta altura, bifurca-se
o caminho que leva à investigação.
Ou se procura matematizar, isto é, fazer que as formas básicas deri-
vem do pensamento e da construção; o que se conseguindo, passa-se a
ser, por assim dizer, segundo criador das formas; aquilo que assim se co-
nhece é pensado mecanicisticamente; é infinito e, então, fórmulas mate-
máticas dominam as infinitudes.
Ou se busca aderir às formas reais, que não se dobram a qualquer ma-
temática, a qualquer quantificação, por força de sua infinitude caracterís-
tica. Quer se estude a morfologia (Goethe), que se observe o devenir das
formas e de suas transformações infinitas, quer se usem esquemas, ou se
delineiem tipos, todos mais não são do que marcos que permitem encon-
trar uma linguagem para os planos construtivos ou para as formas bási-
cas — por exemplo, dos animais e das plantas — sem lhes deduzir a es-
sência (conforme fez Haeckel, erradamente, em sua morfologia geral). Não
existem formas básicas espaciais que se possam dadificar; existem, sim,
configurações vivas, cuja estrutura matetizável mais não representa do
que um dos respectivos aspectos. O método morfológico não deduz, mas
leva, sim, à auto-observação no movimento e na estrutura daquilo que ve-
mos.
O que assim se vê é o conjunto dos elementos pelos quais, fundamen-
talmente, se caracteriza aquilo que aparece, espacialmente, no mundo, A
clara visão vem, então, juntar-se, de modo imediato, uma “disposição”, ou
seja, isso que é sentido, significação das formas, a alma delas. Do “efeito
sensorial-ético” das cores à alma das formas animais e das imagens hu-
manas patenteia-se, por assim, uma interioridade que diretamente apa-
rece do exterior. Seria bom exprimir em palavras essa alma, contendê-la,
fazer-lhe precisa e metódica a apreensão. Mas, aqui, outra vez se bifurca o
caminho.
Ou se traduz erradamente para um sentido racional, que se pode sa-
ber: ou seja, as coisas, formas, movimentos significam alguma coisa. A
signatura rerum é fisionomia universal de tudo quanto existe; e de tal
modo que, usando imenso sistema das significações dessas coisas como
sinal, delas me é dado apoderar; e por esse caminho se vai ú superstição
de um pseudo-saber, que — assombrosamente análogo, em. seu raciona-
lismo, à explicação mecanicista do mundo — desta se distingue (quando
correta e proveitosamente aplicada em seu setor, pela ilusoriedade e inva-
lidez radicais (astrologia, farmacologia médica derivada da signatura re-
rum etc.).
Ou, então, se se tomar como ponto de apoio a alma das coisas, nada se
explica, mas os órgãos desdobram-se à observação da interioridade geral.
A “contemplação puramente refletiva dos ’fenómenos” (Goethe) paraleliza a
visão fisiognômica, que não sabe e sim vê. Na contemplação da alma das
coisas (Klages diz: “Bilder”), consiste a substância de nossa vinculação
com o mundo; contemplação capaz de aprofundamento insondável, dom
que se recebe a cada passo; essa contemplação é inacessível à aquisição
metódica, presa sempre àquilo que se mostra à receptividade de uma ati-
tude, à autenticidade de uma aceitação. Só muito tardiamente é que al-
cançamos a clareza empírica dessa maneira de perceber, até hoje implan-
tada na superstição e no delírio, permanentemente exposta a uma defesa
que, ela própria, a arruína, com provas racionais, sistemas conceituais e
abordagens peia via do raciocínio.
Dentro do mundo universal em que se coloca a contemplação da alma
de todas as coisas, também se coloca a compreensão da expressão, que, a
esta altura, nos interessa. Vemos almas também nas formas e movimen-
tos do corpo humano-, vemos uma interioridade; e vemo-la como expres-
são. Uma distinção, entretanto, e radical, existe em relação a toda compre-
ensão psíquica mítico-natural: aquilo que nós compreendemos, no ho-
mem, como expressão psíquica, é empiricamente real-, a alma nos é aces-
sível, algo é que responde, com que tratamos tal qual força empiricamente
real-, donde a indagação decisiva: Quais são os fenômenos que exprimem
a vida psíquica real e quais são aqueles condicionados, meramente, de
modo casual, por processos somáticos? E quais são aqueles que não se
exprimem senão pela forma de um galho, pela forma de uma nuvem, pelo
movimento da água? Nossa sensibilidade para as formas e movimentos é
pressuposto da percepção, em geral, de qualquer expressão-, algo, porém,
há de acontecer para daí extrairmos o conhecimento de uma realidade psí-
quica empírica.
É fácil responder em abstrato. A confirmação empírica dá-se, em pri-
meiro lugar, pela relação comprovável da expressão compreendida que se
produz ante a realidade humana acessível na comunicação verbal e em
quaisquer outras modalidades; em segundo lugar, pela comprovação de
um fenômeno expressivo mediante o outro; em terceiro, pelo relaciona-
mento constante do particular com o todo: tal qual ocorre em toda com-
preensão, também o particular é ilusório e pobre na compreensão da ex-
pressão; sobre o particular é que o todo se estrutura, mas também cada
particularidade só se compreende corretamente pelo todo; circula esse que
é essencial a toda compreensão; e, pois, também à psicologia da expres-
são.
Uma experiência que se pode fazer com o estudo da fisiognomia, da
mímica e da grafologia mostra quanto é questionável a compreensão da
expressão que, em relação ao homem, individualmente, se apresenta como
ciência de seu caráter. O referido estudo, quando concretamente aplicado,
é quase sempre impressionante, afigurando-se de natureza inspiratória,
resultando em sucesso que oscila com a moda sempre notável, porém. No
caso particular, a interpretação vem a ser, na maioria das. vezes, imposi-
tiva, quando o ambiente não é realmente crítico. O que acontece, entre ou-
tras coisas, é que aquilo que é compreensível encerra contrastes que se in-
tervinculam; daí sempre haver algo que dá certo, uma vez que se encontre
a modalidade expressiva dialética correta; mais ainda: é raro, no caso par-
ticular, não haver seja o que for que, pela disposição ou pelo modo-de-ser,
não se imponha, bastando acentuá-lo- e desenvolvê-lo verbalmente; enfim,
por vezes, tem-se a sorte de atingir qualquer coisa de muito pessoal, ao
passo que aquilo que falha à aceitação sugerida (capaz esta de comporta-
mento muito crítico) se esquece rápido. Ao psicólogo que, jovem, vem a
ocupar-se com estudos fisiognômicos, caracterológicos, grafológicos — em
qualquer de suas formas — isso afigura-se revelação; tanto mais sedutora
quanto é comum associar-se a esses procedimentos certa visão do mundo
com o aspecto de- saber essencial. Estará ele, então, dando um passo
para a ciência e, bem assim, para a livre filosofia, se conseguir escapar a
esse encantamento, sem perder os impulsos verdadeiros que nele se en-
cerram. A primeira decepção fundamental que o espera dá-se — quando
no campo, por exemplo, da grafologia — o mais superficial dos procedi-
mentos é acolhido com o máximo de entusiasmo. Quem quer vir a ser psi-
cólogo com capacidade crítica há de ter-se visto envolvido nesse vexame.

c) Técnicas de investigação.
Para investigar o fenômeno da expressão, podem-se seguir dois rumos:
1. Investigam-se os mecanismos extraconscientes, que condicionam a
produção da expressão. No caso da fala, sabemos de tais distúrbios do
aparelho extraconsciente na afasia motora e sensorial. Conhecem-se- os
distúrbios correspondentes pelo nome de amimia e paramimia, no campo
da linguagem mímica; por exemplo, o doente, querendo dizer sim com ace-
nos de cabeça, abre a boca; ou não consegue encontrar um movimento.
Enfim, nos movimentos expressivos mímicos, há excitações' que já nem
significam expressão do psiquismo, mas constituem, apenas, distúrbio do
aparelho extraconsciente. Assim se percebem, em certas doenças encefáli-
cas (paralisia pseudo-bulbar), um riso e choro espasmódico, surgindo a
estímulos arbitrários. — Em todos esses casos, a neurologia investiga dis-
túrbios que ocorrem no aparelho extraconsciente dos movimentos expres-
sivos. Mas também se podem investigar esses aparelhos em seu funciona-
mento normal, registrando com mais exatidão tanto os movimentos ex-
pressivos quanto os meros fenômenos concomitantes somáticos e anali-
sando-os à base da respectiva função somática. Foi assim que Duchenne,
tendo em vista os tipos individuais da expressão fisionômica e confron-
tando-os com os efeitos de estímulos elétricos de feixes musculares indivi-
duais, procurou determinar quais são os feixes que participam de cada ex-
pressão especial. Usando a balança de escrever de Kraepelin e apenas com
a colocação de um ponto, conseguiu-se delinear para cada indivíduo uma
curva de pressão peculiar e constante; e Sommer demonstrou os movi-
mentos que fazem os músculos faciais à expressão mímica.
2. Se, em todos os casos descritos, alguma coisa acrescentarmos ao
nosso conhecimento dos mecanismos extraconscientes, certamente com
eles ganharemos recursos técnicos que nos ajudem a registrar e determi-
nar, objetivamente, os movimentos expressivos (fotografia, cinema, rastre-
amento), sem ainda enriquecer, contudo, nosso conhecimento da vida psí-
quica. Assim ampliando o conhecimento que temos da vida psíquica, me-
diante a extensão de nossa "compreensão" aos fenômenos que não com-
preendemos, estamos encontrando a segunda maneira, propriamente psi-
cológica, de investigar fenômenos expressivos. Todos nós, na vida cotidi-
ana, pelo hábito e pela experiência, imediatamente compreendemos a ex-
pressão; e essa compreensão deve, pela psicologia da expressão, fazer-se
consciente, deve aumentar, aprofundar-se, configurar-se mais nítida; e to-
dos percebemos que algo assim é possível, quando, sem prevenção, pela
primeira vez estudamos a grafologia; de um modo ou doutro, qualquer
coisa de novo se vê na escrita, embora esta não seja mais do que uma das
muitas maneiras de exprimir-se.
O estudo consciente da expressão e a ampliação consciente da com-
preensão da expressão baseiam-se nalguns pressupostos técnicos: o mate-
rial tem-se de determinar pelo fluxo dos fenômenos empíricos humanos e
tem de ser ajuntado de modo que, a cada momento, esteja à disposição
para confronto. É muito difícil determinar os movimentos, a não ser cine-
matograficamente; e mesmo isso se contém em lindes estreitas, porque o
aparelho pode não ser instalado, ou pode estar desarranjado, em momen-
tos psiquicamente importantes. Ter-se-á, então, de confiar em descrições e
observações sempre novas para casos novos, na medida em que algo haja
que se repita e com maior frequência ocorra; ou pode acontecer que o ar-
tista, desenhando, retenha certos movimentos. A escrita manual, ao con-
trário, tem a vantagem, se aquele que escreve for mais ou menos exerci-
tado, de determinar movimentos muito complicados, possíveis de compa-
rar a cada momento. A forma de corpo, a configuração fisionômica é muito
fácil de determinar-se pela fotografia, mas aqui também existem dificulda-
des de não pequena monta.
Estamos vendo que somente parte dos fenômenos expressivos pode -
determinar-se antes, por assim dizer, de qualquer descrição, ou sem a ela
recorrer. No entanto, mesmo também nesses fenômenos, a descrição
clara, metódica, é basicamente, indispensável a que logremos dominá-los
cientificamente, de modo a fazer consciente, controlar e ampliar a compre-
ensão imediata da expressão. Daí haver sido o desenvolvimento científico
da grafologia condicionado por uma análise da forma da escrita tecnica-
mente habilidosa, objetiva, complexa, ainda inteiramente não-psicológica
(a grafologia foi, essencialmente, obra de Preyer); ao passo que o desenvol-
vimento do estudo científico da fisionomia obedeceu à descrição segura
das formas corpóreas.
d) Revisão.
Dentro dos fenômenos expressivos, distinguimos: primeiro — O estudo
da fisiognomia, isto é, a teoria das formas permanentes do rosto e do
corpo (da estrutura-corpórea), na medida em que se podem entender como
expressão de um psiquismo nelas aparente. — Segundo: O estudo da mí-
mica, mímica sendo a ciência dos movimentos a todo momento atuais do
rosto e do corpo, que constituem, indubitavelmente, expressão de proces-
sos psíquicos momentâneos, aparecendo e desaparecendo com rapidez. —
Terceiro: A grafologia: A investigação psicológica da expressão depara com
a escrita, esta apresentando-se como movimento mímico, que se fixa e,
pois, mais facilmente se investiga no objeto possível de apreender.

§ 1. Fisiognomia

Este é o campo mais problemático de todos que interessam a expres-


são, a ponto de ter-se duvidado de que haja, aqui, expressão sequer. Só se
podem compreender aqueles estados fisionômicos permanentes, que te-
nham surgido por força de movimentos mímicos frequentes, represen-
tando, a bem dizer, uma mímica fixada (digamos, as “pregas frontais dos
pensadores”). Tais estados podem representar-se como parte da mímica,
sem princípios próprios.
Se o psiquiatra pensar no aspecto característico de inúmeros doentes,
que lhe possibilita, muitas vezes, o diagnóstico imediato, quase nada disso
se lhe afigurará expressão de um psiquismo. Por conseguinte, nem todos
os fenômenos que deixam transparecer no hábito o processo somático
constituem expressão do psiquismo:
Por exemplo, as formas intumescidas, avultadas, do mixedema; os si-
nais de paralisia no rosto, nos membros e a fala dos paralíticos; o tremor e
a transpiração, o rubor e a inchação do delirante alcoólico; o hábito somá-
tico miserável dos psicóticos, quando padecem de lesões orgânicas; a ema-
ciação, o enrugamento cutâneo, a turvação da borda córnea; os demais si-
nais da idade.
Mais uma vez, algo diverso se apresenta, quando, por exemplo, vemos
um corcunda e, sem querer, lhe atribuímos disposição amarga e despei-
tada. A giba talvez resulte de tuberculose vertebral da infância, nada
tendo, pois, de psíquico; mas acontece, às vezes, que uma ou outra queixa
somática, porque um ressentimento se formou, tenha consequências psí-
quicas tais que, talvez sem razão, as presumimos no corcunda pelo fato de
ser corcunda, propriamente; ou, quando a expressão fisionômica e o com-
portamento realmente manifestam esse ressentimento, a giba fortalece
nossa impressão. Pode, entretanto, no caso, não haver expressão* fisionô-
mica do fenômeno. É fato geral pensarmos que a constituição somática de
um homem lhe determine, desde a infância, sua consciência de si mesmo,
ou seu comportamento. Quer se seja baixo ou alto, robusto ou fraco e en-
fermiço, belo ou feio, em qualquer sentido, a impressão que se tem é que
— embora nada tenha o psiquismo a ver com isso, primariamente — isso
influi, permanentemente, na vida toda, na maneira por que cada um se
sente e por que encara os outros. O homem modela-se de acordo com seu
corpo; cresce, por isso, psiquicamente, com ele, de modo que forma corpó-
rea e psique se correlacionam, conquanto assim não- tenha sido, na ori-
gem. Temos, aliás, a experiência de que, de um homem para outro, a
forma corpórea e a índole parecem ajustar-se diversamente' uma à outra:
ao passo que, num, o todo configura, uma unidade plena, já outro não pa-
rece, pela sua índole, predisposto à obesidade, que, no entanto, apresenta;
nem a magreza que se lhe constata parece corresponder-lhe ao tempera-
mento fleugmático. Seja qual for o caso, há fatores corpóreos que influem
na conformação somática; conformação relativamente à qual a psique se
ajusta, sem, todavia, coincidir, essencialmente, com ela como- respectiva
expressão.
Assim, pois, se eliminarmos da impressão conjunta da aparência cor-
pórea de um homem toda mímica motora; se, depois, eliminarmos o que é
mímica fixada; mais ainda: fenômeno somático' mórbido; e, por fim, aquilo
que, ocasionalmente, associamos ao- psiquismo como causa somática de
modificação psíquica compreensível, sem constituir, na realidade, mani-
festação psíquica, alguma: coisa resta: a configuração corpórea perma-
nente de um homem representando sua fisionomia, que constitui sua
forma peculiar de ser, que com ele nasceu e que só experimentou lenta e
estreita variação, dentro de certo espaço, no curso de sua vida, uma vez-
tornada definitiva, à época da puberdade, ou, por vezes, um pouco- mais
tarde. Desde que esse hábito somático não se associe a qualquer distúrbio
orgânico específico (com efeitos endócrinos, como é o caso do mixedema,
da acromegalia etc.), mas, sim, represente, no todo, realmente, o modo de
ser desse indivíduo, chamamo-lo fisiognômico. Assim que vemos tais fisi-
ognomias, formamos uma imagem da vida psíquica correspondente; im-
precisa, é certo, porém como se constituísse atmosfera psíquica, por assim
dizer, conexa. Se nos deixarmos levar por impressões desta ordem, procu-
rando- ganhar conhecimento pelo “sentimento”, duas vias inteiramente
heterogêneas, do ponto de vista metódico e lógico, se abrem, vias que te-
mos de manter separadas, se quisermos estar conscientes, quando fala-
mos nessas coisas, do que, propriamente; dizemos e pretendemos.
1. A contemplação fisiognômica desde logo percebe, nas formas cor-
póreas, a essência psíquica. As descrições da forma corpórea, com o modo
de ser característico correspondente, tem evidência peculiar, convencendo-
nos, imediatamente, tal qual se tratasse de uma obra-de-arte, quando o
especialista em fisionomias mostra o que existe, servindo-se da capaci-
dade que tem de impressionar; e de que ficamos tão impressionados com o
que ele diz como se assim fosse não há que duvidar. Duvidoso é, porém,
se, aqui, se logra obter qualquer método de investigação e ampliação da
mera impressão. Realidade houvesse, teria mentido pensar da seguinte
maneira: Da disposição originária de um homem e de cada existência des-
dobra-se uma “essência”, que não é possível separar em corpo e alma; se-
paração que, alhures, será válida; no caso, porém, não, porque no corpó-
reo a essência deve “aparecer”; a essência que é corpo e alma, que a am-
bos abrange. Em oposição aos dois pontos de vista da realidade externa,
que se reconhece corpórea, biologicamente, e da existência inteiramente
incorpórea das “vivências” e da respectiva correlação interna, teríamos nós
a ideia de uma essência a que os dois lados correspondem; essência que é
sempre formada individual, mas também tipicamente; é isso que compõe o
caráter mais íntimo do homem.
Alguma coisa unitária apareceria nos traços do caráter que se dedu-
ziria do comportamento e das ações; e apareceria na forma das orelhas, na
qual aqueles que têm orientação fisiognomística vêm — para ir ao exemplo
mais extremo e mais maravilhoso — impreciso, é certo, ainda incompleto,
no que se diz respeito ao conteúdo, algo que é essencial ao caráter, algo a
que se referem, irreverentes o arbitrários, quando formulam juízos, fa-
lando em protuberâncias éticas, saliências metafísicas, lóbulos lascivos
etc. Quem tiver em mente (claras, como convém) as possibilidades lógicas,
poderá desprezar todo esse campo de estudo, lúdico que é. A pensar com
clareza, usando a razão, não se poderá admitir que semelhantes esforços
representem formulações aparentemente exatas; esforços puros dessa or-
dem, todavia, se contemplarão com interesse, sem receio de desarranjo na
edificação científica.
Os que leem as feições essenciais do homem da maneira que delimita-
mos podem, com a mesma facilidade, contemplar a essência do universo
no simbolismo cósmico da natureza; tudo isso, outrora, se chamava filoso-
fia natural, onde metafísica se encerra, porque a essencialidade que, si-
multaneamente, se exprime no caráter e na forma das orelhas é tão pro-;
funda que a investigação empírica a ela não acede. Se se quiser aplicar' o
método que consiste em mandar ler o caráter pela forma das orelhas e, de-
pois., comprovar, por todos os meios, mediante dados empíricos, a vali-
dade do sistema, poder-se-ão obter realizações singulares, apenas, e es-
pantosas (considero-as possíveis, com base em observações próprias) ; re-
alizações que, elas próprias, não representam conhecimento, e sim, resul-
tam de intuição imediata, incontrolável. Daí a absurdez de, por assim di-
zer, amontoar essa intuição, com ela construindo uma teoria de protube-
râncias, saliências, proporções etc.; e de querer possibilitar a qualquer um
ler pelas orelhas, quase mecanicamente, aquilo que uma vida inteira não
chega a revelar: a essência derradeira do homem. Tais intuições das for-
mas não se podem erigir, objetivamente, em expressão essencial, visto tra-
tar-se da infinitude de uma forma, e não de uma mensurabilidade; o que
há são as relações recíprocas das formas e medidas, e não formas indivi-
duais e medidas que se possam anotar; relações que não são relações in-
dividuais mensuráveis, mas, sim, vão dar numa infinitude que jamais se
poderá vencer com quantidade e proporção.
2. Via inteiramente outra é a investigação objetiva que renuncia, à
intuição compreensiva, procurando relações entre formas corpóreas, de-
termináveis e qualidades caracterológicas determináveis, isso fazendo pela
contagem da frequência com que aparecem; caso em que não se pretende,
nem se encontra relação essencial alguma, coisa alguma visível que pa-
reça evento psíquico, mas, sim, correlação estatística. Mesmo que certo
número, apenas, de casos empíricos de tipos corpóreos venha a relacio-
nar-se com o tipo psíquico, não aquele que se espera, mas com outro di-
verso ou oposto, exclui-se ou questiona-se qualquer' relação univocamente
necessária entre forma corpórea e modo-de-ser psíquico. Essa correlação
estatística leva a uma indagação, sem informar ainda sobre o tipo de rela-
ção.
Também estatisticamente, porém, semelhante correlação, é muito difí-
cil de encontrar com precisão, porque nem as formas corpóreas, nem os
caracteres se podem medir e contar univocamente, isso só sendo- possível
em tipos que se apresentam; tipos que não são, contudo, conceitos genéri-
cos que permitam classificações inquestionáveis: pelo contrário, os tipos,
na realidade, só raramente é que são “puros”, correspondentes à descrição
que deles se faz; quase sempre são “mistos”, constituindo padrões que se
estabelecem, e não realidades genéricas a que um caso pertença ou não
pertença. Nem os mistos, entretanto, são mensuráveis, de modo que seja
possível dizer, tal qual se diz o teor em albumina da urina, que tanto do
tipo existe num caso, tanto noutro. Contagem exata que se possa conside-
rar procedimento exato é impossível e, por isso, observadores diversos que
não se relacionem entre si encontrarão, com o mesmo material, cifras dife-
rentes. Em caso algum, todavia, se trata da questão da fisiognomia, e sim
da mesma ordem de conhecimento que indaga da relação do diabetes, do
mal de Basedow, da tuberculose m a demência precoce; só com a dife-
rença que estas últimas relações, se contam exatas, podendo verificar-se
ausentes ou fortemente presentes, enquanto que a relação entre forma
corpórea e, caráter não se pode contar com precisão; talvez, porém, haja,
subjacente, alguma coisa de todo ignorada, que de algum modo marque
essas experiências infrutíferas; se fosse possível, contudo,' seguindo a pri-
meira via, encontrar esse substrato, não seria ele acessível a todo conheci-
mento quantitativo e exato.
Ambas as orientações descritas são absolutamente heterogêneas, sob o
aspecto metodológico. Quanto à primeira, abre-se-lhe, no simbolismo das
formas corpóreas uma significação possível de ampliar-se ao infinito, logo
sobrevindo, porém, delimitação ilusória a categorias, univocidades e bana-
lidades preconcebidas. A tomar a segunda orientação, a forma perde-se na
apreensão objetiva de características enumeráveis, no caso de querermos
determiná-las com precisão; precisão na qual se mostra, quando se desco-
brem ele-' mentos simples, a infinitude de correlações, que nunca chegam
a dizer coisa alguma, exatamente pelo amontoamento dos respectivos
achados. O simbolismo fisiognômico impõe a confirmação, pelo rigor da
pesquisa, de sua veracidade; no que, entretanto, se perde, ele próprio. Se-
ria bom que as simples determinabilidades objetivas se tornassem materi-
ais; falta-lhes, contudo, qualquer significação simbólica evidente.
Aderimos, neste capítulo, à primeira orientação, que, só ela, entende o
que, propriamente, é fisiognômico; e segundo esse rumo- maravilhoso é
que contemplaremos os corpos, cabeças e mãos. Os juízos fisiognômicos
incidem em tríplice modalidade:
1) Formas individuais. Entendem-se traços individuais como sinto-
mas do caráter, deles se deduzindo “sinais” que marcam a essên-
cia do homem; no que consiste o fim habitual da fisiognomia que
pretende ser ciência; pretensão absurda não só porque a experi-
ência contraria toda afirmação dessa ordem, como porque é gro-
tesco achar possível que, em formas grosseiramente mensurá-
veis, se revelem, características a que correspondam estruturas
altamente diferenciadas, estas só imprecisamente apreendendo-
se do ponto de vista conceitual.
2) Em vez de deduzir qualidades de sinais vistos como sintomas,
experimentamos, internamente, o efeito de formas significativas,
aprofundando-nos nas qualidades morfológicas, das quais não
se deduz coisa alguma, mas nas quais, diretamente, se vê o psi-
quismo; de modo que uma essência unitária, que se manifesta
em forma corpórea, cabeça, mãos, é vista internamente. Quase
não- se trata aqui de formulação, nem de comunicação, só pare-
cendo possíveis as versões artísticas. As variações intangivel-
mente pequenas que modificam, no rosto, o “caráter” inteiro, os
traços, que nem o cálculo, nem a meditação, mas só a visão do
artista consegue “pegar”; mais ainda, a gama imensa das varia-
ções que não modificam um caráter, mas o caricaturam ao má-
ximo — todas estas coisas explicam por que a fisiognomia ainda
não chega, hoje, a poder ensinar-se; e por que, no entanto, há
tantos retratos, tipificações, significações não conceitualizadas,
graças à produção artística. Até hoje existe contraste irreconciliá-
vel entre ver uma forma e medir uma grandeza, uma proporção.
Quando se trata de relações grosseiras, o instrumento mensura-
dor é mais seguro do que nossa avaliação; desde que se trate,
porém, de relações morfológicas finas, em que se depara algo que
é fisiognômico, a visão é muito mais sensível e precisa.
3) Temos, enfim, na forma corpórea, uma significação que, eviden-
temente, já não é psicológica; significação que os artistas cap-
tam, quando distorcem a forma corpórea em correspondência ao
que veem, escolhendo-a esticada ou espessa, enviesada ou angu-
losa, sem haver caricatura, porém, que requinte ao exagero os
traços psíquicos. Envolve-se a forma humana no simbolismo
universal de todas as formas e configurações cósmicas; e talvez,
contudo, se veja o homem com importância metafísica, já não
mais psicológica. Já não se trata de fisiognomia, persistindo, en-
tretanto, cientificamente, o problema até hoje insoluto de onde e
como se separam o simbolismo fisiognômico específico da alma
humana e o simbolismo metafísico universal do cosmo. É daí
que também surge 'dúvida a respeito da fisiognomia humana,
assim que se começa a deparar com um conhecimento de tipo
conceitualmente comunicável.
Só dentro do campo daquilo que se toca no ponto 2 — o simbolismo de
totalidades morfológicas — é que uma fisiognomia empiricamente impor-
tante poderia desenvolve-se, com a qual seria possível tentar dar uma teo-
ria metódica e uma prática do que fisiognomicamente se vê; ou uma teoria
do conteúdo de certos significados fisiognômicos.
Metodologicamente, a disposição inata que permite ver formas signifi-
cativas pode ser desenvolvida mediante a posse de recursos que a exerci-
tem, a educação da vista pela descrição das formas, pela ilustração esque-
matizante, pela seleção e contraste de fotografias cuidadosamente tiradas,
pela análise das obras dos grandes artistas, pela sugestão da observação
no ser vivo e, ainda mais, por meio de mensurações que, embora talvez
pouco ensinando em seus resultados numéricos, vêm, todavia, a dar opor-
tunidade a que se veja com nitidez. É pela experiência fatual da visão fisi-
ognômica que se estabelece essa orientação metodológica; visão de que o
observador não se sacia, se bem que não ganhe, em absoluto, na amplia-
ção permanente de sua contemplação do ser humano, qualquer alarga-
mento de seu conhecimento geral; o que é, por assim dizer, um saber vi-
sual, não um saber conceitual.
Em função do conteúdo, podem-se afirmar certos significados fisiognô-
micos, como se podem estabelecer classificações de tipos fundamentais,
esquemas polares e dimensionais, nos quais devam caber, de um modo ou
de outro, todos os homens. Essa sistematização de tipos fisiognômicos
sempre foi, porém, questionável.
Historicamente, é abundante a literatura que se ocupa com a fisiogno-
mia. Os antigos Indus fizeram tentativas nesse campo, distinguindo, por
exemplo, três tipos (atentando para o arcabouço ósseo, a circunferência
corpórea, o tamanho dos órgãos genitais, os pelos e a voz) e incluindo es-
ses tipos humanos na forma do coelho, do boi e do cavalo. Esses proble-
mas também foram discutidos na antiguidade. A comparação entre tipos
humanos a tipos zoológicos tem sempre algo de impressionante, chegando
até a pilhéria, mas nem vale a pena falar no assunto. Na sociedade erudita
do século XVIII, foi até moda ocupar-se com questões relativas à fisiogno-
mia. Lichtenberg dissecou o assunto criticamente, sem deixar, no entanto,
de tentar cultivá-lo ele próprio. Hegel procurou conceituá-lo e liquidá-lo. *
Sempre se teve inclinação para trazer ao primeiro plano — e com isso con-
tentar-se — tudo quanto é possível, indubitavelmente, apreender e concei-
tuar na fisionomia, ou seja, a compreensão dos traços faciais como mí-
mica fixada.
Entretanto, foi no mundo intelectual do romantismo que C. G. Carus
desenvolveu ainda mais, e com o máximo de erudição, uma teoria fisiog-
nômica ampla e sistemática, que merece recomendar-se a quem quer que
pretenda fazer comprovações nesse campo. O pensamento de Carus é “ver
e compreender o universo, em geral, como símbolo da divindade; e o ho-
mem, como símbolo da ideia divina da alma”. Daí o simbolismo abranger,
de um lado, o campo inteiro do cosmo; -doutro, o campo da morfologia e
da fisiologia. Para ele, o simbolismo é de ver-se, mas não de comparar-se;
é imediato, não mediato. Carus estuda “o resultado dos fatos que formam
a ideia, a organização e, aqui, de modo especial, a aparência externa, em
sua totalidade, do homem”. É daí que a imagem do seu ser psíquico in-
terno, seu caráter, deve apresentar-se mais clara e compreensível. Há mo-
mento da visão que é decisivo: “uma capacidade de contemplar de dentro,
da casca o caroço; do símbolo da forma, a espécie da ideia psíquica”. Ca-
rus pretende fazer da contemplação inconsciente um saber e um poder;
pretende poder ensinar os princípios fundamentais pelos quais se devem
julgar as inúmeras individualidades; e também mostrar a arte de aplicar
esses princípios ao caso concreto. Há alguma coisa de sugestivo na formu-
lação geral de Carus; alguma coisa afigura-se-nos positivo que já tenha-
mos vivenciado; e de que nada podemos dizer que seja regrado e particu-
lar. — Mas Carus também pretende, mediatamente, firmar conhecimentos
conceituais e, neste ponto, dá-se com ele o mesmo que com todos os fisi-
ognomistas. Sem conseguir atuar de modo convincente no particular, Ca-
rus procura fazer mensurações (organoscopia), descreve a superfície do
corpo de acordo com o respectivo modelamento peculiar (fisiognomia),
considera a modificação das formas segundo o curso vital (patognomia) —
juntando tudo quanto as ciências naturais descobrem e servindo-se de
todo o material que, possuindo evidência fisiognomicamente interpretável,
se possa aproveitar. É assim que desenvolve grande riqueza, tendo sempre
em vista o todo, mas sem descurar o mínimo detalhe. Foi Carus quem
criou a primeira, até hoje fundamentada, sistematização “científica" da
abordagem fisiognômica.
Tentativa de estudo fisiognômico moderna, que se possa comparar às
antigas em percuciência, riqueza e profundidade do conhecimento hu-
mano, não parece existir; apesar de ser moda, atualmente, falar na fisio-
nomia das coisas. Vê-se e interpreta-se, naqueles campos onde se costu-
mava explicar e conceituar, ou contemplar e inquirir. O conceito de fisiog-
nômico cobre todas as ideias que, singulares, ocorrem; mas ficamos abala-
dos, embora nada aprendendo.
Depois de apreender aquilo que descrevemos, metódica e historica-
mente, no concernente à fisiognomia, ainda podemos duvidar da pesquisa
científica que substitua resultados definidos à intuição; nem por isso, en-
tretanto, nos inclinamos a ignorar esse campo inteiro, ou a desprezá-lo.
Conhecimento exato não é possível, mas subsistem a organização de
nosso senso das formas, a exaltação e educação de nossa reagibilidade às
formas; tudo isso surgindo da produção de configurações que constituem
um todo evidente, do qual nos apossamos, sem lhes reconhecer, embora,
a possibilidade de aplicação empírica probante; antes, sim, elas criam
para nós, pela forma por que se orientam, uma atmosfera sem a qual seria
mais pobre nossa visão da realidade psiquiátrica. A arte dá-nos o incom-
parável, mas pode o psiquiatra tentar, de seu lado, representar essas for-
mas como “tipos”; o que tem acontecido, impressionando-nos não pelos
resultados tangíveis, mas pela “realização” artística, que enriquece nossa
visão, sem permitir-nos conceituar.
1. Tentativa dessa ordem constituiu a outrora famosa teoria da. dege-
neração, segundo a qual as variações morfológicas corpóreas (sinais de de-
generação, stigmata degenerationis) revelariam a deterioração total da na-
tureza humana, de seu caráter, sua inclinação para as doenças neuróticas
e mentais; principalmente, a disposição para o crime.
Representariam anormalidades morfológicas dessa ordem: a proporção
corpórea que variasse fortemente da média; por exemplo, pernas demasi-
ado longas em relação ao tronco; formas raras do crânio (crânio em torre);
formas excepcionais dos ossos: queixo reentrante, pequenez excessiva do
processo mastoide; malformações dentárias; palato alto: malformações
tais como o lábio leporino; pilosidade corpórea excessiva; ou deficiente; tu-
fos de pelos esparsos; interesse especial teria a forma do nariz e das ore-
lhas — lóbulos colados ao crânio, orelhas grandes e salientes; proeminên-
cia do tubérculo de Darwin; orelhas móveis.
Essa teoria da degeneração tenta penetrar nas profundidades existen-
ciais de que se originam fenômenos tanto psíquicos quanto corpóreos; e
dela se concluiria que a degeneração psíquica — nas psicopatias, psicoses,
oligofrenias — também se apresenta nas variações somáticas relativa-
mente à forma correspondente. Mais ou menos plausível, intuitivamente,
para os contemporâneos, a teoria só vigorou em círculos restritos, quando
se pretendeu erigir em doutrina a representação puramente intuitiva da
forma humana.
Sem pensar em degeneração progressiva, hão de entender-se como
anormalidades certas constituições que se deparam frequentes em algu-
mas famílias, caracterizando-as e, por vezes, reconhecendo-se mediante
indícios ligeiros.1 São casos em que sinais degenerativos coincidem com
anomalias do sistema nervoso ou de outros órgãos, resultando de defeitos
no curso do desenvolvimento e agrupando-se em complexos sintomáticos
de sinais morfológicos e funcionais, quais sejam tremores, surdez. O
exemplo mais típico é o estado disráfico.
Tem-se enfatizado a frequência com que esses estigmas se encontram
em pessoas sadias e, no entanto, não se apresentam acompanhando anor-
malidades psíquicas acentuadas. A teoria possui, no entanto, importância
histórica e, mesmo que criticamente refutada, nem por isso deixa de ter,
para nós, certo fundamento que — é verdade — não podemos reconhecer,
mas também não nos é dado de todo relegar. Talvez não tiremos conclu-
sões práticas, mas essas formas não são para nós indiferentes. A degene-
ração é conceito que, a querer apreender estritamente, relacionado a fatos
empíricos, nos escapa; conceito com que se pretende dizer alguma coisa
sobre as fontes últimas da vida, sem a tanto chegar, todavia, mas preser-
vando, ele só, nosso interesse, nossa indagação, e proporcionando-nos um
termo para designar algo que podemos ver intuitivamente, embora sem es-
tar em condições, até o momento, de aplicar-lhe qualquer teoria. Mais
ainda: essa teoria já significa, de início, renúncia à fisiognomia propria-
mente dita, porque, ensinando a encarar como sintomas os sinais de dege-
neração, faz da observação fisiognômica pseudociência natural; com o
que, o simbolismo desaparece; mas é, em definitivo, de rejeitar-se como
asserção médica a relação particular que subsiste de sintoma e doença de-
generativa.
2. Levando em conta conteúdo inteiramente diverso, porém usando de
método comparável, Kretschmer procurou relacionar a constituição corpó-
rea com qualidades psíquicas; para o que, distinguiu três formas corpó-
reas, além dos tipos displásicos, cuja ocorrência só se produz em pequeno
número de homens: o tipo leptossómico (asténico), o atlético e o pícnico.
Da descrição que fez destacam-se as seguintes rubricas:
a) Leptossômico: pequeno desenvolvimento transversal, sem redu-
ção do desenvolvimento longitudinal; homens magros, esbeltos,
ombros estreitos, caixa torácica estreita e chata, ângulo costal
agudo; rosto reentrante devido ao desenvolvimento mentoniano
escasso; fronte também reentrante; perfil anguloso, com a ponta
do nariz formando vértice; nariz excessivamente longo. Associado
ao caráter esquizotímico: índole angulosa, fria, pontiaguda cor-
responde ao soma estreito, de arestas pronunciadas e nariz pon-
tudo.
b) Pícnico: figura atarracada, rosto mole e largo, pescoço curto e
maciço; tendência à obesidade; caixa torácica profunda e abau-
lada; abdómen proeminente, aparelho motor graciosamente mo-
delado (cintura pélvica e extremidades), crânio grande, redondo,
largo e fundo; contornos bem modelados, proporções harmonio-
sas. Associado ao caráter ciclotímico ou sintônico. Esses homens
são de índole bonachona, simples, franca. A estrutura corpu-
lenta corresponde a constituição caracterial equilibrada, cordial,
facilmente acomodável. São pessoas ativas no ambiente em que
vivem, abertas e co- ciáveis, ora para o lado sério, ora para o lado
exaltado.
c) Atlético: ombros largos e desempenados, estatura alta, forte de-
senvolvimento do esqueleto e a musculatura. Pele grossa, consti-
tuição óssea pesada, mãos e pés grandes, rosto grande, fronte
robusta, mento forte e saliente. Circunferência facial: oval alon-
gada. Malares salientes, arcadas orbitarias marcadas. Rosto sali-
ente em relação ao crânio. Associado a caráter sereno, medita-
tivo, quase taciturno e desajeitado. Devido à pobreza com que
responde a estímulos, aparentemente inabalável; quando reage,
furioso; tendência à inércia e ao mutismo. A ausência de leveza e
flexibilidade levou Kretschmer a usar a expressão “tempera-
mento viscoso”. “Sobre o todo paira uma ideia de peso”.
A teoria de Kretschmer da conexão entre forma corpórea e caráter não
representa para ele mais do que parte da ampla correlação que apreende o
homem todo; apreensão por nós estu- dada, significativamente, em outra
passagem (Quarta Parte, Segundo Capítulo). A esta altura, só cabe dizer
que os tipos significam formas intuitivamente consideradas, que esclarece-
mos e enriquecemos pela nossa visão, tal qual a esclarece e enriquece, não
o conceito, mas a arte. O que vemos, a cada momento, na forma corpórea
— como na degeneração morfológica se vê o desvio psíquico — é um tipo
característico especial, que Kretschmer descreveu de maneira impressio-
nante; essa visão não tem, contudo, significação empírica; não leva a con-
clusão alguma; pode ser, se se quiser argumentar com validez geral, refu-
tada, empiricamente, por um só caso ilustrativo; sem que, entretanto, pos-
samos desprezá-la em seu sentido peculiar.
Assim começa o livro de Kretschmer: “O diabo, em geral, é qua.se sem-
pre magro, com uma barbinha no queixo; mas há diabos gordos que se
afiguram amavelmente broncos; e há outros, intrigantes, corcovados, pi-
garreantes. A velha bruxa tem o rosto adunco, seco. Quando pensamos
em coisas joviais e saborosas, quem aparece é o gordo cavaleiro Falstaff,
de nariz vermelho e calva espelhante. A mulher do povo, que é toda sensa-
tez, apresenta-se robusta, de formas arredondadas, com as mãos nas an-
cas. Os santos são esbeltíssimos, esgalgados, diáfanos, pálidos, góticos.
Em resumo: a virtude e o vício hão de ter o nariz pontudo; a jovialidade há
de ser gorda.
“E, então, Kretschmer usa como divisa as palavras que César diz a respeito
de Cássio:
Quero ter homens gordos à minha volta,
Que durmam bem, calvos.
Cássio tem o olhar soturno;
Pensa demais e gente assim é perigosa...
Ah! Tomara que fosse gordo!...
Das descrições insuperáveis que se seguiram, relativamente à consti-
tuição leptossômica e pícnica e ao caráter esquizotímico e ciclotímico, diz
Conrad, com razão — sublinhando, em suas palavras, o que há de estra-
nho à ciência e, particularmente, à ciência natural —: "Toda tentativa de
aperfeiçoar a pintura viria piorar e distorcer, tal qual o retoque estraga a
obra dos antigos mestres”. E Max Schmidt, na mesma ordem de ideias,
manifesta assim seu entusiasmo: “Kretschmer descreveu os dois tipos por
forma quase inspirada. Se recordarmos os vários pacientes esquizofrênicos
e circulares que já tivemos, vêmo-los, sem querer, tomar ante nós as for-
mas dos dois tipos kretschmerianos”. “Na Dinamarca — assim conclui o
autor dinamarquês — “há dois casos históricos: Cristiano VII e Grundtvig;
e a figura desses dois personagens simboliza os tipos característicos das
duas doenças mentais; são o esquizofrênico, leptossômico, Cristiano VII,
pequeno, fino de corpo, asténico, degenerativamente pálido, e o pícnico, ci-
clotímico, Grundtvig, grande, largo, corpulento”.
De fato, o efeito é tal qual a impressão imediata que uma obra-de-arte
produz; percebe-se o rendimento descritivo na pujança que faz o leitor ver
com os olhos de Kretschmer. Nem por isso, entretanto, se resolve a ques-
tão do sentido que tem essa verdade.
Pode-se dizer com Conrad: “Certo é que no corpo descarnado, alon-
gado, estreito, não habita alma doce, suave e jovial; nem alma seca, virtu-
osa, sentimental habita o corpo enxudioso, curto e largo”. Não: vale isso
para a visão humana intuitiva da fisiognomia, sem necessidade, até aí, de
mais ampla investigação; empiricamente, todavia, é incerto e os exemplos
em contrário surgem a toda hora.
Daí não satisfazer a introvisão imediata, intuitiva, mas contar-se a fre-
quência com que coincidem, especificamente, certos tipos caracteriais e
somáticos. Em lugar de relação essencial, é simples correlação que se
apresenta. Quem assim procede, no entanto, está seguindo orientação ci-
entífica radicalmente diversa, porque também existem correlações entre
fenômenos desprovidos de conexão essencial que à primeira vista se impo-
nha. O fato de encontrarmos correlações leva-nos a indagar-lhes e causa.
A unidade fisionômica não pode ser essa causa; em primeiro lugar, real-
mente, ela não é, essencialmente, causa, e sim evidência compreensível;
em segundo lugar, viesse ela a ser causa, ter-se-ia de realizar, sem exce-
ção, a coincidência. Pela via das correlações investigadas, o que se ganha
são conhecimentos que nada têm de fisiognômico.
Quando se estuda a fisiognomonia, subsiste a situação paradoxal:
nada se sabe, propriamente, mas o sentido do impulso cognitivo, ainda
mesmo faltando o conhecimento exato que permita julgar, está em querer,
pelo menos, ver, ou obter imagens e formas. Quem isso faz distancia-se ao
máximo de qualquer previsão ou esquematismo. Já disse Lichtenberg:
“Sempre observei serem pessoas que pouco conheciam do mundo aquelas
que mais esperavam de um fisiognomismo artificial. Os que bem conhe-
cem o mundo são os melhores fisiognomistas e os que menos esperam das
regras”. E mais: “O estudo, da fisiognomonia é, descontada a profetização,
a mais enganosa de todas as artes humanas que uma mente excêntrica
jamais inventou.”

§ 2. Mímica.

Ao passo que o estudo da fisiognomonia diz respeito à forma corpórea


fixa, a mímica se ocupa com o movimento do corpo como fenômeno da
vida psíquica. A fisiognomia não se subordina a princípio algum que faça
compreensível a relação entre alma e corpo, ou que sirva de critério para a
compreensão verdadeira; só quando estudamos a mímica, e não quando
estudamos a fisiognomonia, é que nos firmamos em percepções possíveis
de discutir.

a) Tipos de movimentos corpóreos.


Se quisermos ter em vista, claramente, os movimentos mímicos com-
preensíveis, precisaremos distinguir.
Em primeiro lugar, nada tem a ver com a mímica o que se relaciona
com os já discutidos fenômenos concomitantes & subsequentes dos pro-
cessos psíquicos; por exemplo, o ruborizar-se e empalidecer, o oscilar dos
joelhos, o tremor, a fixidez paralítica que ocorre no medo etc.; casos nos
quais se trata de movimentos que não “compreendemos” imediatamente, e
sim, apenas pela experiência, sem visão interior da alma, a esta associa-
mos.
Em segundo lugar, os movimentos voluntários não são movimentos
mímicos. Os movimentos voluntários visam a um objetivo; os movimentos
mímicos expressivos não são intencionais, nem voluntários. São movimen-
tos voluntários a gesticulação, os sinais, os acenos (sacudir a cabeça,
abaixá-la, quando se cumprimenta, abanar a mão), que dizem e comuni-
cam, convencionalmente, alguma coisa, variando de significação de um
povo para outro. Representando meio incompleto pelo qual os homens se
entendem, têm semelhança com a fala, ao passo que a mímica não comu-
nica, nem pretende comunicar, apenas falando, humanamente, de modo
geral, parecendo compreensível até para os animais.
Os movimentos mímicos propriamente ditos — a expressão do rosto,
alegre, tensa, irada etc. — são, pois, involuntários, não intencionais. Todos
os movimentos voluntários, entretanto, também possuem um lado mí-
mico; nenhum se assemelha a outro, mesmo visando ao mesmo objetivo,
variando conforme o indivíduo e o estado de ânimo. A maneira por que al-
guém me olha, me estende a mão, a maneira por que anda, o som da voz,
tudo é expressão involuntária; é também mímico, além do conteúdo volun-
tário de finalidade e significado.
Dentro dos movimentos mímicos, todavia, parece haver mais algumas
discriminações a fazer:
1) Uma quantidade de movimentos mímicos acompanha, perma-
nentemente, infinitamente matizados, o evento psíquico, fa-
zendo-o visível, transparente e compreensível, tal qual o jogo in-
cessante de ressonâncias extraordinariamente sensíveis no sem-
blante, no olhar, na voz. Em parte, esses fenômenos expressivos
são comuns ao homem e ao animal.
2) O riso e o choro ficam em categoria à parte, constituindo reações
a uma crise do comportamento humano, pequenas catástrofes
da corporeidade que ocorrem nessa crise e nas quais aquela cor-
poreidade, inelutavelmente, se desorganiza, por assim dizer; só
que tal desorganização ainda é simbólica, como simbólica é toda
mímica; sem transparência, porém, no riso e no choro, porque
ambas as respostas são marginais. O riso e o choro são próprios
só do homem, não do animal; universalmente humanos, porém.
3) No limite que separa a expressão do fenômeno somático conco-
mitante estão alguns movimentos que parecem conter algo de
expressivo, apesar de seu caráter reflectório; por exemplo, o bo-
cejo, o espreguiçar-se, que se verificam também nos animais.
4) Todos os movimentos podem evoluir para a repetição rítmica.
Klages soube apreender a essência e a universal significação do
ritmo.
b) Princípios da compreensão mímica.
A experiência que temos não nos permite afirmar derivem de impulsos
psíquicos os- processos morfológicos que se fixam nas formas fisionômi-
cas. Mas. é a experiência constante que permite afirmar a conexão entre-
nossos movimentos corpóreos e o psiquismo, sua disposição, suas, objeti-
vidades volitivas, sua essência; daí poder-se fundamentar a. compreensão
do movimento como mímica, testá-la e discuti-la. Tem-se subordinado
essa relação entre a psique e o movimento, a certos princípios que nos fa-
zem conscientes, imediatamente, das interpretações perceptivas; que as
controlam, as correlacionam e, por fim, as ampliam. Os princípios da ex-
pressão, válidos, de modo- absolutamente geral, para todo movimento,
para os voluntários e- involuntários, para a mímica do rosto, do andar e
da atitude, para a escrita como sedimento cinético, foram reconhecidos e
formulados por cientistas eminentes.
Dois são os principais:
1) Cada atividade interior é acompanhada por um movimento que
lhe corresponde, simbolicamente, de maneira compreensível. Por
exemplo: os sentimentos amargos exprimem-se, mimicamente,
pelos movimentos, que se fazem quando se sente um gosto
amargo. O pensamento concentrado é acompanhado por um
olhar fixo, parado, dirigido a pequena distância, como se se esti-
vesse fixando, sensorialmente, um objeto. Nos: movimentos mí-
micos autênticos, o homem não tem consciência alguma da sim-
bolização; e o observador que percebe, de imediato, a amargura,
a atenção aguda não sabe, a princípio, o que é que o fez perce-
ber. O quadro que aqui temos é fenômeno psíquico imediato. Os
pesquisadores- — Piderit para a mímica; Klages, de modo mais
amplo e, depois, especialmente, para a escrita — estudaram até
em particularidade esses quadros simbólicos.
2) Os movimentos são influenciados pela seleção involuntária de.
formas e maneiras, que “se ajustam” à personalidade, que lhe
parecem belas, elegantes, firmes ou de qualquer outro modo de-
sejáveis. Há um impulso no sentido da “representação” própria,
impulso que, por força, das “imagens condutoras pessoais”, con-
forme toda mímica. O que conforma a expressão imediata, “natu-
ral”, é uma expressão mais consciente, que já se torna objetiva a
quem vivencia. Os múltiplos ideais- pessoais e sociais gravam-se
em formas que Klages foi o primeiro a conceituar sob este as-
pecto; sobretudo, em relação à escrita.
3) É frequente os movimentos mímicos que se repetem deixarem
vestígio no soma (e, sobretudo no rosto). A fisiognomia faz parte
da mímica, na medida em que compreende resíduos de movi-
mentos mímicos e as formas solidificadas como mímica que se
fixou. Este é o- setor da fisiognomia que se pode fundamentar e
investigar empiricamente.

c) Observações psicopatológicas.
1. Vez por outra, porém nunca de modo propriamente sistemático,
têm-se descrito a. mímica dos pacientes, bem como as formas fisiognômi-
cas permanentes que dela resultam. À enumeração casual, podem-se ob-
servar, entre outras:
O prazer de movimentar-se do maníaco, que se move só por mover-se,
compelido a expandir sua excitação borbulhante e tumultuosa, sem obje-
tivo, nem finalidade; a necessidade de mover-se do ansioso, que corre, de-
sesperado, de um lado para outro, procurando sossego, liberdade; que se
atira contra a parede e repete gestos uniformes.
Os traços indestrutivelmente jubilosos, exatamente semelhantes aos
da alegria verdadeira, do maníaco; a jovialidade despropositada, tola. e
exagerada, dos hebefrênicos; o mau-humor dolente do ciclotímico, que só
de leve se manifesta no canto da boca e dos olhos; a expressão de mau-
humor profundo, mas resignado, que se fixa na melancolia permanente; a
expressão fria, aparentemente vazia, da melancolia silenciosa, que não se
acredita que faça sofrer, mesmo quando o doente- conta o que está pen-
sando: as feições distorcidas e a excitação desesperada que se observa na
terrível ansiedade da melancolia agitada.
A expressão sonhadora, ausente, exaltada por força de vivências fan-
tásticas, de certos doentes com turvação da consciência; a expressão vazia
de alguns estados crepusculares histéricos, fáceis de transformar-se em
susto e angústia, ou espanto fictício.
O semblante vazio, inexpressivo de muitos doentes demenciados que-
ficam parados, dando a impressão de autômatos de semblante pétreo (ou
sorridente sempre, ou obstinado, ou inteiramente embotado, ou atormen-
tado); a “perda da graça”, a aparência desajeitada de muitos processos de-
menciais; o paranoico imponente, que se move gravemente, sem preocu-
par-se com a gentinha que o cerca, cheio de calma estoica, desprezivo; o
olhar transfixante da paranoica, de semblante meditativo, desconfiado, in-
quiridor, taciturno; a olhada repentina de alguns catatônicos estuporosos.
A expressão a todo momento mutável, branda, amolentada, de olhos
flutuantes, dos histéricos; expressão que se faz, semi-conscientemente, se-
dutora, faceira, desmedidamente exagerada.
Os traços sempre mutáveis, inquieto o olhar, dos neurasténicos; a ex-
pressão atormentada, distorcida, de certas hebefrenias em incepção, por
trás da qual o médico se espanta de quase não encontrar base psíquica.
O semblante amolecado do jovem ineducável; a expressão brutal e ani-
malesca da insanidade moral autêntica. “Os olhos tristes de um animal
acuado”, que Heyer notou nas crianças recolhidas a instituições.
Homburger descreveu muitos aspectos da “motricidade expressiva”.
Heyer refere-se ao estado de vários psicopatas: “homens sempre duros,
contraídos, que só se movem com fim premeditado; rijos, sem flexibilidade,
nem maleabilidade ou leveza. A atitude geral é Jura feito o pau.”
Tem-se considerado a significação da atitude corpórea e da movimen-
tação não só como expressão do psiquismo, mas também levando em
conta sua repercussão sobre este, julgando-se que certa atitude e disposi-
ção psíquicas sempre correspondem à atitude corpórea. Daí a possível im-
portância da ginástica e do tipo de ginástica para o estado psíquico. Caso
particular é a atitude que o corpo assume durante o sono. “Cada um de
nós tem um cerimonial para o sono, ou faz questão de certas condições,
que, a mão serem preenchidas, perturbam o sono” (Freud).
2. O riso e o choro têm interesse especial. É de notar-se que fenômenos
dessa ordem aparecem como compulsão física na paralisia bulbar, sem in-
fluência de fator psíquico. São de mencionar-se o riso multiforme da es-
quizofrenia, a melancolia sem lágrimas, as depressões, cujos portadores
soluçam alto, procurando em vão alívio.
3. O bocejo é processo cinético complicado, que ocorre contra a von-
tade, parecendo próximo do espreguiçar-se e apresentando-se espontanea-
mente após o despertar, no cansaço, no tédio. Dá impressão de ser pro-
cesso meramente orgânico que resulta em movimento expressivo, quando
ocorrem certas condições. Pode-se pensar numa série de reflexos desta or-
dem, indo até o “espirro”, que jamais constitui movimento expressivo. Lan-
dauer concebe o espreguiçar-se de modo puramente fisiológico; apenas
ponderando, contudo, a respeito.
4. Entre os movimentos que se notam nos psicóticos, os movimentos
ritmados e as estereotipias há muito chamam a atenção, Compara-se o
movimento ritmado dos idiotas e dos catatônicos demenciados aos movi-
mentos circulares das feras em cativeiro, sem que, todavia, se haja feito
verdadeira análise. Klãsi definiu as estereotipias como “manifestações no
terreno motor, verbal e ideativo, que uma pessoa repete uniformemente,
muitas vezes por longos períodos, e que, inteiramente destacadas do
evento total, isto é, autônomas, nem exprimem uma disposição, nem cor-
respondem a qualquer finalidade contida na realidade objetiva”. A origem
e a significação das estereotipias são múltiplas: restos de movimentos sig-
nificativos passados, movimentos que provêm de um mundo delirante, ce-
rimoniais, movimentos defensivos contra alucinações corpóreas etc.
Klages conceituou o ritmo em sentido determinado e oposto ao com-
passo: o ritmo, representando expressão viva, móvel ao infinito, opõe-se ao
compasso, que constitui repetição mecânica, arbitrária. Langeludekke in-
vestigou esquizofrênicos, maníaco- -depressivos e parkinsonianos de
acordo com o ponto de vista klagesiano.

§ 3. Escrita.

Dada a circunstância de fixar-se permanentemente, circunstância que


permite investigação mais aprofundada, e também em vista do pequeno
papel que nela desempenha, em geral, a simulação, presta-se a escrita,
particularmente, aos estudos dos movimentos expressivos. No que toca à
mímica, sempre há, na maioria dos “homens, alguma encenação, levando-
os a edificar em torno de si uma muralha expressiva inautêntica, atrás da
qual se ocultam ou com a qual se iludem: isso se diga desde os movimen-
tos que denotam embaraço (coçar a cabeça, torcer os botões), que, tal qual
o riso, muitas vezes, pretendem cobrir coisa diversa, até os movimentos
mímicos cotidianos que nada significam, mas acabam tornando-se costu-
meiros e naturais pela repetição frequente. Tudo isso desempenha papel
muito menor na escrita, cuja investigação tem, no entanto, a desvantagem
de só levar a resultados ponderáveis quando se trata da escrita regular e,
até certo ponto, estruturada. Seria ir longe demais querer atingir, em con-
dições experimentalmente variáveis, a compreensão grafológica dos traços
caracteriais, das disposições temperamentais e dos estados afetivos; ou
querer atingir as alterações regulares da escrita que surgem por força de
afetos, no curso do desenvolvimento individual e nos estados mentais
anormais.
Cada traço individual da escrita — tal qual tudo quanto é compreensí-
vel e que só no todo se compreende — tem relações tão complexas e ofe-
rece possibilidades significativas tão numerosas que é só mediante investi-
gações básicas que se pode fazer ideia de certo modo clara. Já um ensaio
de Klages nos ensina que a simples pressão que se faz quando se escreve
quase possibilita conhecer toda uma personalidade, no caso de a investi-
gação realizar-se visando a compreender essa pressão como forma expres-
siva. Está desprezado, fundamentalmente, o velho método anticientífico da
interpretação de certos “sinais” na escrita.
Tem-se investigado a escrita dos doentes mentais? sobretudo, para o
lado dos distúrbios neurológicos e, a seguir, de acordo com o respectivo
conteúdo, mas quase sem atentar para a forma como expressão psíquica.
Já de há muito se descreve a escrita paralítica típica: letras ausentes ou
dobradas, erros de sentido, tremores e fenômenos atáxicos no manejo da
pena. Também chama a atenção a escrita característica de vários proces-
sos demenciais'. repetição das mesmas palavras e letras, apesar de a es-
crita apresentar-se ordenada; ornamentos e floreios obedecendo a modali-
dade amaneirada, estereotipada. Há vários estados demenciais orgânicos
nos quais a escrita se perde em rabiscos absolutamente disformes. Os dis-
túrbios agráficos são análogos aos afásicos, de modo que, em certas cir-
cunstâncias, doentes quanto ao mais mentalmente sãos podem não ler
mais palavra alguma, ou escrever mais palavra alguma, ou uma coisa e
outra; vão, então, escrevendo letras sem sentido, assim como os pacientes
sensorialmente afásicos falam parafasicamente. — A escrita apresenta al-
terações típicas de tamanho, pressão e forma nos estados maníacos e de-
pressivos (G. Meyer, Lemer).
SEÇÃO 2.
A EXISTÊNCIA DO HOMEM EM SEU MUNDO
(PSICOLOGIA DO MUNDO)

Aos fenômenos da “expressão” opomos todas as demais objetivações


psíquicas significativas, às quais é comum o fato de os próprios homens
nelas conceberem, visarem e fazerem um sentido. Antes, pois, de compre-
ender a psique, devemos ter compreendido esse sentido. Assim é que, na-
quilo que dão, sensorialmente, a fala, a palavra escrita, o ato, compreen-
demos o sentido objetivo, o conteúdo racional, o fim pretendido, a visão
estética. Se. a capacidade de perceber, sensivelmente, formas e movimen-
tos, além da possibilidade segura de por elas impressionar-se, é requisito
sem o qual nada se vê, também a amplitude de nossa capacidade para en-
tender os mundos objetivos mentais, mais a amplitude de nossas experi-
ências, são requisitos para que entendamos a significação de um desses
fatos objetivos: entendimento que é primeiro passo necessário a que esse
próprio sentido, como expressão psíquica essencial, se apreenda, de ime-
diato, com a mesma problemática, tal qual se apresentou na percepção da
expressão.
Dentre essas objetividades significativas, mais uma vez distinguimos,
de um lado, o fazer no mundo e, de outro, as produções na obra intelec-
tual. Para uma coisa e outra, a descrição do fazer e das obras é necessária
a que se apreenda com clareza, tal qual se dá em relação à descrição me-
tódica da escrita, dos movimentos e das formas corpóreas. Quanto mais o
conteúdo é essencial, tanto mais temos de ocupar-nos com a evidência co-
tidiana e, finalmente, promover a conceitualidade e a metodologia cientí-
fica adequadas (por exemplo, aquelas que se relacionam com a linguística,
a estética etc.). Na psicopatologia, até hoje nos limitamos quase inteira-
mente às objetividades mais simples dessa ordem.
Ora, todas as objetividades significativas têm um lado pelo qual se per-
cebem como expressão involuntária da psique; isto é, alguma coisa que o
homem chama o tom, a melodia, o estilo, a atmosfera respectiva. Nessa
medida, tudo é expressão e, simultaneamente, de acordo com o antigo uso
linguístico, “fisiognômico” no mais amplo sentido. Quando se interessou
pela abordagem da fisiognomonia segundo Lavater, Goethe ampliou-lhes a
significação, nela incluindo o fenômeno humano total:
A fisiognomia “deduz o interno do externo”. Mas que é o externo no ho-
mem? Não são, decerto, sua forma nua, os gestos impensados, que assi-
nalam suas forças interiores e o jogo destas. Posição social, costume, ri-
queza, roupas, tudo o modifica, tudo o encobre, como se fosse um véu. Pe-
netrar através desse véu até o mais íntimo do homem, encontrar nessas
próprias determinações estranhas. pontos firmes dos quais algo se con-
clua a respeito de sua essência parece difícil ao extremo, ou até impossí-
vel. Mas consolemo-nos! Não é só o que cerca o homem que influi sobre
ele: ele, por sua vez, influi sobre seu ambiente; e, modificando-se, modifica
as coisas à sua volta. Assim é que as roupas e a mobília de um homem lhe
revelam com segurança o caráter. A natureza forma o homem, ele se con-
forma a si mesmo e esse conformar-se também vem a ser, no entanto, na-
tural; vendo-se colocado no vasto mundo, o homem encerra-se, empareda-
se em pequeno mundo que naquele outro se inclui e arruma-o à sua ima-
gem. Pode ser que a posição social e as circunstâncias determinem o que
tem de cercar o homem, mas o modo pelo qual o homem se deixa determi-
nar é da mais alta significação. Pode ele instalar-se indiferentemente tal
qual seus semelhantes, porque é assim que se faz; e essa indiferença pode
chegar a ser negligência. Mas também se podem notar exatidão e ardor
tais que, avançando e buscando progredir, galgue um degrau acima; ou (e
isso é raríssimo) pareça descer um degrau. Espero não haja ninguém que
me censure de ter, por esta forma, alargado o campo dos fisiognomistas.
Temos aí uma visão orgânica total do homem e de seu com-, porta-
mento em seu mundo, que há de constituir o fundo de nossa análise, a
cada momento. Esta exige, de início, a diferenciação dos conceitos.
Se tomarmos os achados individuais, distinguiremos: o comporta-
mento, tal qual se mostra na atitude, nos gestos, na maneira pela qual o
homem se revela por si e em seu trato; o modo pelo qual ele conforma seu
perimundo, na indumentária, na habitação, no ambiente físico; o tipo de
vida que leva, exteriorizando-se na maneira por que atua no mundo, por
que escolhe seus rumos, por que o todo se apresenta no comportamento,
na conformação do perimundo e condutas regularmente reiteradas; as
ações, ou seja, os atos específicos, significativos e efetivos de sua atividade
propositada, admitido que esteja em plena posse de sua consciência.
Pelos achados individuais é que conseguimos apreender o mundo dos
doentes; isto é, aquilo que eles vivenciam, factualmente, como realidade;
aquilo em que se movem como se fosse realidade. É as-, sim que apreen-
demos a transformação do mundo, a maneira por que vivem em seu
mundo; a nova configuração cósmica que o doente constrói — mundo em
que, só nele, as particularidades ganham significação e transparência.
§ 1. Achados Individuais Do Comportamento No Mundo.

a) Comportamento.
Podemos interpretar o comportamento, mesmo nas mais insignifican-
tes pequenezas cotidianas, como sintoma de uma personalidade, de um
humor. Essa interpretação é quase sempre imprecisa, de tão insegura e
vagamente que se pode formulá-la; daí preferirmos descrever o “hábito”
dos pacientes, mediante a descrição do comportamento, o qual não se nos
apresenta valioso em si, como sintoma objetivo; o que nos orienta, sim, é a
ideia das interpretações possíveis.
Muitas modalidades comportamentais individuais são fáceis de citar:
roer de unhas, destruição de coisas que estão ao alcance (rasgar as rou-
pas) etc. Nos psiquiatras antigos, encontram-se descrições da maneira por
que se portam os pacientes internados, durante suas reuniões, ou quando
estão ao ar livre, em casa, trabalhando; e também se encontram classifica-
ções tais como: sociáveis, solitários, inquietos, parados, andarilhos, coleci-
onadores e assim por diante.
A descrição dos tipos extraordinariamente variados do comportamento,
tanto nos estados crônicos quanto nas psicoses agudas, cabe à psiquiatria
especial. Menos se trata de enumerar uma. quantidade de traços individu-
ais do que de descrever complexos- típicos dos comportamentos; dos quais
destacamos uns tantos, exemplos:
O comportamento catatónico e também o hebefrênico caracterizam-se
pelo pateticismo, ou pela postura teatral. Os doentes declamam e recitam
com gestos estranhos e animados. Exprimem-se trivialidades de maneira
rebuscada, como se se tratasse dos mais elevados interesses humanos. A
predileção despropositada pelas coisas mais sérias revela-se de forma
amaneirada, estereotipada. A postura e a indumentária são excêntricas.
Por exemplo, o profeta deixa o cabelo crescer, assumindo atitude solene e
extática.
Ilustra-se o comportamento hebefrênico na seguinte carta, que o. paci-
ente, absolutamente orientado e consciente, escreveu, depois de haver fu-
gido do pai, durante um passeio, se bem que pelo mesmo imediatamente
recapturado:
“Muito querido papai!.... Infelizmente, não me compreendeste, "não' es-
tou em absoluto doente. Devias ter continuado a andar, por causa de tua
precipitação estou de novo no hospital, infelizmente. Por que me correste
atrás, por que não me compreendeste?.... Espero tenhas visto que nada
me falta.... Hás de perceber que preciso reiniciar, sem falta, meus estudos
de piano. Peço-te, mais uma vez, perdão de- todo o coração, por te teres
excitado um pouco correndo atrás de mim. Não fiques zangado comigo,
cumprimento e beijo vocês todos com todo o carinho, vocês cheios de má-
gua, porque não pude fugir do hospital, pudeposso, possopude, não pos-
sopude (a palavra mais nova!). Karl. Vem-me buscar quanto antes.”
Quando se exploram pacientes que, consciente ou inconscientemente,
procuram dissimular alguma coisa, nota-se, amiúde, solilóquio muito ca-
racterístico. Certo doente, inquirido a respeito das vozes a que Já se refe-
rira, respondeu: “Enquanto se vive, ouvem-se vozes, e é fácil formar ideia
errada; a expressão: ouvem-se vozes é, propriamente falando, expressão
jurídica. A princípio, ouvi várias coisas; mas, depois de passar um ano no
hospital, convenci-me de que não se pode falar em ouvir vozes, no sentido
popular do termo.” Construções gramaticais comuns são, por vezes, a
única coisa que se obtém. “Nem tanto”, “Não posso dizer ao certo”, “Não
está certo, é o que lhe digo”, “Meu inimigo? É o que se diz por aí”, ‘Se hei
de ser assim, então tenho .de dizer.”
Nos estados agudos destes processos, vêm-se ademanes e caretas sem
conta. Os pacientes comportam-se de forma inteiramente incompreensível
(uma vez ou outra, motivada, nas autonarrações ulteriores). Um beija a
terra, solene, a toda hora; outro entrega-se a uma espécie de exercício mi-
litar, cerra os punhos, bate com força nas paredes e nos móveis, toma po-
sições estranhas.
No início das psicoses, não é raro o comportamento apresentar-se . in-
quieto, precipitado, irresponsável; a insensibilidade aparente aos fatos ex-
teriores é interrompida por súbitas explosões sentimentais. Fazem-se aos
circunstantes perguntas incertas, confusas, manifestam-se apego a hosti-
lidade para com os familiares. Praticam-se atos repentinos, de todo ines-
perados, viagens, perambulações noturnas, como se o doente voltasse à
adolescência. Afetos e interesses alteram-se. Os pacientes tornam-se reli-
giosos, são indiferentes e desinibidos quanto a particularidades eróticas.
Parecem interessar-se só por si, encapsulados. A expressão altera-se, faz-
se estranha. No início, causa horror perceber essas nuanças; por exemplo,
a transformação do riso em ricto.
O comportamento dos pacientes exuberantes, excitados (maníacos) e
daqueles que se apresentam tristes, inibidos (depressivos) evidencia-se ao
primeiro contato.
Nalgumas psicoses reativas, histéricas, o comportamento pueril é ca-
racterístico. Os doentes portam-se como se tivessem voltado à infância (re-
tour à 1’enfance, Janet). Não sabem mais contar, cometem os erros mais
grosseiros, movimentam-.se sem firmeza, feitos crianças pequenas, fazem
perguntas ingênuas, mostram disposições afetivas infantis e agem de
forma inteiramente abobalhada. Parecem ignorantes em tudo, querem :ser
acarinhados, gabam-se feito crianças: “Sou capaz de beber copos grandes
assim de cerveja, 70/80 copos”; comportamento este que constitui parte
essencial da síndrome de Ganser.
Para ilustrar o comportamento de um paralítico: Certo comerciante vie-
nense, eficiente e irrepreensível, de 33 anos, abandona o trabalho. Daí a
alguns dias, está em Munique, onde rouba a um companheira de quarto
uma carteira com 60 marcos, um relógio e um colete. No dia seguinte,
compra uma bicicleta por 860 marcos e paga com uma nota de 1.000, fi-
cando ainda com algumas notas iguais, mais uma carteira com umas 250
moedas de 1 penning. Mas, não sabendo guiar a bicicleta, sai empur-
rando-a. No dia seguinte, manda consertá-la em Nurembergue, contando
que vai prosseguir para Karlsruhe, onde é médico. Mostra-se, porém, inca-
paz de guiar a bicicleta; pelo que, a firma o -convence de ir de trem para
Karlsruhe, despachando a bicicleta. Daí a dias, a bicicleta volta de Karls-
ruhe com a nota “Endereço ignorado”. Em Karlsruhe, passados uns dias,
o doente pratica furtos no hotel. Vende sapatos que roubou, por 3 marcos,
a um sapateiro, a quem diz ser redator de um jornal de Badén e pretender
ir para a América. Compra três pares de meias e uma máquina fotográfica,
mas é preso à noite e trazido para um frenocômio de Heidelbergue. Afi-
gura-se, neste, o mais desleixado dos homens, sem consciência do seu es-
tado, comentando com todos os furtos que praticou (“Qualquer um pode
roubar...”); quanto ao mais, mostra-se apático, contente com o hospital.
Deixa-se facilmente persuadir de que seja o que for. A memória e a capaci-
dade de fixação são muito defeituosas. Passa o dia inteiro dizendo tolices.
Acentuam-se os sintomas somáticos, que não tardam a aparecer, evolu-
indo para grave demência paralítica.

b) Conformação do mundo.
Habitação, indumentária e arrumação do ambiente representam irra-
diação do ser humano, na medida em que, voluntária e conscientemente,
ele pode modificá-los. Disso pouco se nota, nos doentes atuais. Nos hospi-
tais de paredes lisas e instalações super-higiênicas, onde tudo é nu e frio e
tudo dá a impressão de impessoal e estranho, lugar não há para a atuação
do paciente. Há sanatórios distantes em que, entretanto, ainda se vê quão
característica e agradavelmente os doentes portadores de estados crônicos
diversos formam o próprio ambiente; e se veem que coleções, que ornatos
peculiares, que arrumações curiosas aparecem; é em tais sanatórios que
também se pode ver de que forma certos doentes dependem desse mundo,
que é o deles, e quanto lhes depende a alegria da posse de um pequeno
quarto próprio.

c) Modo de vida.
O comportamento e os atos que se reiteram constroem o modo de vida
de um homem; deles resulta seu comportamento para com os semelhan-
tes, para com a profissão e- a família. Na evolução da doença, é frequente
perceber-se, nitidamente, se se trata do desenvolvimento de uma disposi-
ção permanente, ou se, a partir de certo momento, o comportamento glo-
bal apresenta alteração.
O destino humano depende, em grande parte, de circunstâncias cria-
das pelo próprio homem, circunstâncias multiplamente pequenas e indivi-
duais, sob muitos aspectos; muito mais do que comumente se crê, toda-
via, isso se percebe em relação à personalidade de cada um. A própria feli-
cidade vem a compreender-se, às vezes, na dependência da atitude que
determinado homem assume, quando, em certa ocasião, aproveita uma
volta da sorte, ao passo que outro a deixa escapar. É neste sentido que
buscamos também compreender em parte o destino do homem como pro-
duzido por ele próprio.

d) Atos.
O doente mental, vivendo na sociedade humana, fora do hospital não
costuma, a princípio, chamar a atenção pelos sintomas que serão, ulteri-
ormente, os elementos mais importantes, e característicos para nós (por
exemplo, vivências subjetivas);, chama a atenção, sim, pelo comporta-
mento socialmente significativo; comportamento que é, do ponto de vista
da análise psicológica, “externo”, ou “periférico”. Os atos individuais, po-
rém, são especialmente tão notáveis, que, de início, é frequente chegarem
a ser portentosos, centralizando a atenção tanto da comunidade quanto
do paciente.
Tal qual é sempre o conteúdo das atividades do paciente que maia
chama a atenção dos que o observam, assim também a psiquiatria cientí-
fica partiu, inicialmente, desse modo de ver. Nomeando os modos de pro-
ceder que se caracterizam pelo conteúdo e classificando-os como doenças,
criou ela a teoria das monomanias, que não tardou a ser abandonada pelo
fato de apenas atingir o que é externo. Todavia, alguns dentre os nomes
criados pela referida teoria ainda se conservam: cleptomania, piromania,
dipsomania, ninfomania, mania homicida etc.
Os mais importantes dentre os atos mórbidos que chamam a atenção
são a perambulação, o suicídio, a recusa de alimentos e, sobretudo, o
crime.
Observa-se a perambulação nos paranoicos, que erram de um lado
para outro a fim de fugir às perseguições; nos dementes, que já não se po-
dem ajustar socialmente e são jogados pela sorte nas estradas; nos melan-
cólicos, que vagueiam angustiados; principalmente, contudo, em certos
estados: os chamados estados-de-fuga.
Os estados-de-fuga são perambulações que ocorrem não em conse-
quência de doenças mais longas ou permanentes, e sim de repente, quase
sempre sem conexão compreensível suficiente com estados psíquicos já
existentes. Realizam-se sem premeditação e sem objetivo previamente de-
terminado.
“Os estados-de-fuga, na maior parte dos casos, são de entender-se
como reação mórbida a estados disfóricos, reação que ocorre em indiví-
duos degenerativamente constituídos. Esses estados disfóricos podem re-
presentar distimias autóctones, mas também podem desencadear-se por
força de fatores externos insignificantes. A tendência a fugir pode tornar-
se habitual e vir a ter efeito por influência de causas cada vez mais tê-
nues.” (Heilbronner).
O suicídio, quando psicoticamente condicionado, resulta, nos melancó-
licos, da angústia, do desgosto vital absoluto e do desespero; de impulsos
repentinos, nos portadores de processos demenciais. Não é raro a tenta-
tiva de suicídio apenas semi-pretendido: o indivíduo assegura-se de que
algum acaso favorável o venha, salivar. A maior parte dos suicídios não é,
porém, levada a cabo pelos doentes mentais, e sim por pessoas anormal-
mente constituídas (psicopatas). As percentagens de suicídios de doentes
mentais em relação à cifra total dos suicídios oscilam, segundo os autores,
de 3 a 66%. Gruhle admite que uns 10 a 20% de todos os suicídios resul-
tem de psicose autêntica. Os suicídios dos psicóticos propriamente ditos
caracterizam-se pela brutalidade marcada e pela obstinação com que se
repetem, em caso de insucesso, isso bastando, muitas vezes, para que se
reconheça a psicose.
Nos doentes mentais graves, vêm-se, de quando em quando, automuti-
lações brutais; vazamento do próprio olho, ablação do pênis etc.
A recusa de alimento resulta de várias fontes psicológicas: intenção
consciente, maneira de acabar com a vida por essa forma; absoluta falta
de apetite; nojo da comida; medo de envenenamento; bloqueio contra
qualquer solicitação (caso em que os doentes comem, às vezes, quando
ninguém vê); inibição completa da vida psíquica, indo até o estupor. Ou-
tros doentes, ao contrário, comem tudo, gostoso ou não; metem na boca
tudo quanto encontram, comem fezes, bebem urina.
É comum os doentes fundamentarem a posteriori a recusa de ali
mento. Por exemplo: “Já não sinto meu corpo, considero-me um ser espiri-
tualizado, que vive de ar e amor..." “Não preciso mais comer, estou espe-
rando o paraíso, onde é de frutos que a gente s» alimenta. Afinal, a comida
causa-me aversão, porque nela vejo carne de gente, ou de animais vivos
que se movem ante meus olhos” (Gruhle).
Sobre os inúmeros crimes que doentes mentais e psicopatas cometem,
os manuais de psicologia criminal orientam à saciedade.
O paranoico perseguido não só redige anúncios para os jornais, panfle-
tos, formula denúncias ao Ministério Público, mas chega ao assassinato
para se defender; escreve cartas de amor a gente famosa e também ataca,
no meio da rua, a amante suposta. O' melancólico desesperado assassina
a família inteira e suicida-se. O doente em estados crepusculares torna-se
violento em acessos súbitos de delírio, ou em reposta a estímulos casuais.
Fato particularmente alarmante constituem os assassinatos incompre-
ensíveis no estádio pré-esquizofrénico, ou na esquizofrenia incipiente.
Falta a motivação suficiente; o crime é praticado com frieza pétrea; o as-
sassino não tem consciência da gravidade do crime, nem arrependimento,
falando com absoluta indiferença naquilo que fez. Muitas- vezes, nem os
circunstantes, nem os próprios médicos reconhecem a doença, os próprios
pacientes consideram-se sadios; só que é impossível compreender, real-
mente, o ato praticado e apenas com o correr do tempo é que se pode fazer
diagnóstico seguro.

§ 2. A Transformação Do Mundo.

Todo ser vivo e também todo homem vive em seu perimundo, isto é, o
mundo que o sujeito apreende, de que se apossa, em que se efetua e que
por ele é influenciado. O ambiente objetivo é tudo quanto existe para o ob-
servador, sem o sujeito percebê-lo; para este último é característico o fato
de nele viver como se o ambiente não existisse. Imagem do mundo é aquilo
que do perimundo veio, em particular, a tornar-se objetivamente consci-
ente; de modo que perimundo e ambiente objetivo envolvem, ambos, mais
do que a imagem do-mundo capta: o que é presente como perimundo, in-
conscientemente, e o que atua de fato, o que existe no sentimento e no hu-
mor; mais ainda, envolvem o que atua como ambiente objetivo, apenas,
mas sem apreensão real pelo conhecimento.
O mundo concreto do homem é sempre historicamente condicionado,
vive numa tradição, existe, a cada momento, subordinado à sociedade e à
comunidade. Daí caber investigar histórico-sociologicamente o modo por
que o homem vive no mundo e por que o próprio mundo lhe parece di-
verso; e é o que se vê, à saciedade, numa série de configurações, as quais
recebem denominações variáveis segundo as atividades humanas que no
momento preponderam; o homem vital, o homem econômico, o homem no
poder, o homem profissional, o trabalhador, o camponês etc. O mundo
que é, no momento, objetivo constitui o espaço no qual o homem busca
seus rumos e desvios; constitui o material com que ele, a cada' momento,
edifica seu mundo.
Não cabe à psicopatologia investigar tudo quanto mencionamos, em-
bora seja essencial para o psicopatologista orientar-se-segundo essa or-
dem de ideias e informar-se, objetivamente, sobre os mundos concretos
dos quais provêm os doentes que observa ou investiga historicamente.
Indaga-se se há transformações psicopatológicas do mundo, ou seja,
“mundos" específicos, nas psicoses e psicopatias; ou se todos os mundos
“anormais” nada mais representam do que materializações de formas e
conteúdos especiais, que, conforme a respectiva essência, são gerais, his-
tóricos, transcendentes à saúde e à morbidez; só seria anormal a maneira
por que as formas e conteúdos se materializam — a exclusividade com que
predominam; enfim, sua vivencialidade.
Em cada caso, é altamente interessante apreender- esses mundos
anormais como tais, de modo claro, onde quer que se apresentem visíveis,
porque é pela visão total do mundo transformado que o comportamento,
os atos, o saber e as ideias se fazem compreensíveis no quadro geral, den-
tro de uma particularidade que significativamente os liga, apesar desse
quadro continuar a ser incompreensível, do ponto de vista genético, como
um todo.
Devemos, de início, tentar distinguir duas coisas: a multiplicidade his-
tórica dos mundos, com suas metamorfoses no processo histórico-mental,
e a variedade não-histórica da possibilidade psicopatológica. Ainda vale a
frase de Hegel (recordada por Binswanger): “A individualidade é aquilo que
o mundo é, se o virmos em sua individualidade”. Entretanto, pode-se in-
vestigar essa; tangibilidade quer sob o ponto de vista histórico-mental,
quer sob o aspecto psicológico-psicopatológico. A indagação: se — e
quando — certos quadros psicopatológicos universais, em si mesmo não-
históricos, vieram a ter qualquer relevância histórico-mental — é objeto,
da pesquisa histórica, que, até hoje, não permitiu obter respostas, unívo-
cas.
O fato de existir um “mundo” é fenômeno subjetivo-objetiva. Tal qual
os pensamentos se originam dos sentimentos, aqueles fazendo estes mes-
mos claros e, retroativamente, exaltando-os, assim também se forma o
mundo de uma apreensão total do sujeito, apreensão que, subjetivamente,
se revela em emoções, sentimentos, estados; objetivamente, em opiniões,
conteúdos, ideias, imagens; de um modo e de outro, unificada.
Quando é que o “mundo” é anormal? O que caracteriza o mundo nor-
mal é a objetividade dos laços que unem os homens, a mutualidade em
que eles se encontram; esse mundo, por sua vez, preenche, exalta, desen-
volve a vida. Podemos chamar anormal um mundo: primeiro — se ele se
origina de qualquer eventualidade específica, empiricamente conhecida
(por exemplo, o processo- esquizofrénico), ainda que, nesse mundo, se ob-
servem produções positivas; segundo — se o mundo afasta os homens, em
vez de aproximá-los; terceiro — se o mundo, em vez de ampliar-se e exal-
tar-se, começa a restringir-se e atrofiar-se; quarto — se o mundo se apaga,
se desaparece o sentimento da “posse segura de bens mentais ou sensí-
veis, sentimento que propicia o solo firme em que se pode enraizar o
ânimo para o homem desenvolver suas forças e delas gozar” (Ideler). As
crianças que, arrancadas de seu mundo, perdem o contato com o solo
abandonam-se à nostalgia aniquiladora, do mesmo modo que, nas psico-
ses incipientes, a transformação do mundo pode levar a catástrofes devas-
tadoras.
A que ponto conduz o modo de ver os mundos só a experiência pode
mostrar. Embora se afigurem significativas, certas formulações gerais com
rapidez se esgotam. Trata-se de saber até que ponto as concepções concre-
tas do mundo permitem visão precisa e convincente. Qual é o mundo que
percebemos no doente, com os olhos deste? Vou relatar umas tantas expe-
riencias:

a) O mundo esquizofrênico.
Deve-se analisar a vida psíquica do esquizofrénico, em particular o
pensamento e o delírio, como vivencia individual fenomenológica (vivência
delirante primária) e como distúrbio do curso do pensamento (pensamento
esquizofrênico). Em ambos os casos, considera-se a forma do distúrbio.
Se, por um lado, é compreensível que nos deixemos influenciar pelas anti-
gas classificações, baseadas nos conteúdos do delírio, doutro lado não po-
demos desprezar os possíveis componentes dos distúrbios, isto é, não de-
vemos deixar de inquirir a imagem cósmica que é específica à esquizofre-
nia. Há, decerto, coincidência típica e frequente entre conteúdo e psicose:
delírio catastrófico, delírio cósmico, delírio de graça; menos, porém ainda
característico: delírio de perseguição, de ciúme, de casamento etc. A coin-
cidência com a vivência delirante primária, ou seja, a adesão convicta ao
conteúdo, já aponta um efeito de modificação da personalidade. Diz von
Bayek, com razão, que o mundo dos esquizofrénicos aparece no delírio
mais tangível, evidente e diferenciadamente do que em quaisquer outros
fenômenos psicopatológicos. Para o mesmo autor, a essência da vida psí-
quica esquizofrénica nunca se determina suficientemente mediante, ape-
nas, alterações vivenciais e realizativas, ou mediante distúrbios funcio-
nais; subsiste, antes, o fato de a esquizofrenia acarretar transformações
do conteúdo vivencial. O que constitui o caráter do distúrbio não são me-
ros conteúdos casuais de estruturas formais, em si mesmas sem sentido e
revestidas de traços comuns a todos os homens; e sim uma primariedade
dos próprios conteúdos.
Não há, todavia, mundo esquizofrênico unitário, mas muitos mundos a
cercar os esquizofrênicos. Se fosse o caso de uma formação cósmica unitá-
ria, geral, os esquizofrênicos se entenderiam entre si e formariam comuni-
dade, quando o contrário é que é o caso. Quase nunca eles se entendem
entre si; mais fácil é um indivíduo sadio entendê-los, embora haja exce-
ções, que são do mais alto interesse, porque é pela comunidade do enten-
dimento esquizofrênico que, indiretamente, podemos contemplar a objeti-
vidade de um mundo típico. Certamente que essa comunidade é muito di-
fícil, dado que tem de formar-se, em cada caso, historicamente, não exis-
tindo a de maneira natural, tal qual se dá, aliás, com toda comunidade de
indivíduos sadios. A falta de lucidez que ocorre nas psicoses agudas exclui
também qualquer comunidade. Nos estados terminais crônicos, há, toda-
via, uma rigidez individual e um delírio tão egocêntrico que exclui qual-
quer comunidade, sendo necessário ocorrerem condições favoráveis para
determinar uma comunidade esquizofrênica historicamente formada.
Constitui, porém, achado importante o fato de ela ser, em todo caso, possí-
vel e, vez por outra, real. Foi assim que von Bayer observou o seguinte:
Certo casal faz, marido e mulher ao mesmo tempo, um processo esqui-
zofrênico, formando em comum suas imagens delirantes e desenvolvendo
com os filhos (normais que são, apenas apresentam-se “induzidos”) um
delírio familial de conteúdo comum; donde resulta a prática em comum de
certos atos. Todos desenvolvem concepção comum sobre a origem e as fa-
ses da perseguição que se acha dirigida contra eles; conversa-se a respeito
deles, os jornais trazem alusões ao que fazem, estão mandando gente para
espioná-los. Há um aparelho que zumbe, lançando nuvens e vapores mal-
cheirosos para dentro de casa, formando figuras e desenhos no teto. O
marido tem alucinações mais ópticas; a mulher, mais auditivas; aquele re-
lata roubo de pensamento; a mulher, vivências esquizofrênicas de cati-
veiro. A coincidência não está na funcionalidade, mas no conteúdo do dis-
túrbio. Os doentes chegam a formar a compreensão de certo conheci-
mento cósmico comum, pelo qual as peculiaridades das vivências indivi-
duais vêm a constituir um todo que lhes é comum: estamos sendo perse-
guidos, onde quer que estejamos nos perseguem. Daí viverem os doentes,
mais os filhos, alienados do mundo; por assim dizer, acometidos em co-
mum. A perseguição, as ameaças não cansam de ampliar-se: as autorida-
des, o povo em geral, os católicos etc., todos agem contra eles; as persegui-
ções não vêm de um lado só, mas de toda a parte, do mundo inteiro que
os cerca, de perto e de longe; perseguições que se caracterizam pelo fato de
os perseguidores serem secretos, encobertos. As alusões dissimuladas, o
es- cárneo que se ouviu ao passar, o que se diz, controlando-os e criti-
cando-os, avoluma-se cada vez mais. Um mundo hostil envolve os doen-
tes, que o entendem comunitariamente sempre em renovação, a partir de
vivências sempre novas; daí, a prática em comum de certos atos, como
medida de defesa contra os “aparelhos”, alterações na estrutura da casa,
planos para descobrir os perseguidores etc.; o que tudo termina na inter-
nação do casal.
Os meios de comunicação são, naturalmente, os mesmos que os dos
indivíduos normais: formulação racional, argumentação, informação, sis-
tematização, renovação e confirmação diária. Entretanto, o conteúdo da
comunicação é o delírio que nasceu na fonte da vivência esquizofrênica e
que veio a tornar-se comum pelo fato da existência familial comum. Infe-
lizmente, não se pode responder a quem perguntar se os doentes se enten-
dem entre si em alguma coisa que nós não entendemos; a resposta afir-
mativa descobriria o conteúdo específico de um mundo esquizofrênico;
neste ponto/ a indagação é, antes de mais nada, sempre mais essencial do
que qualquer resposta empírica até o momento obtida. No caso de von Ba-
yer, o conteúdo do delírio persecutório é, além disso, trivial. Como seria, se
encontrássemos — o que seria muito pouco provável — uma comunidade
esquizofrênica no delírio cósmico, no delírio de graça, a ponto de configu-
rar-se um conteúdo de verdade comum e percebida através de vivências
próprias?
A esta altura, a indagação se mantém, provisoriamente, com o aspecto
de generalidade imprecisa. Por que é que é tão frequente (embora não seja
a maioria dos casos), nos estádios prodrômicos da esquizofrenia, o pro-
cesso de revelação cósmica, religiosa, metafísica? Constitui fenômeno ex-
tremamente impressionante esse entendimento sublime, essa execução pi-
anística emocionante, jamais aparentemente possível, essa criatividade
(como no caso de van Gogh e Hölderlin), essa vivência específica de ruína e
recriação universal, essa revelação espiritual e esse empenho sério, cons-
tante, que se nota nas fases de transição entre saúde e doença; impossí-
vel, em absoluto, de compreender, pelo caráter da psicose que aliena o in-
divíduo atingido daquilo que foi, até então, seu mundo — como se ele obje-
tivasse, por forma simbólica, um evento radicalmente destrutivo. Falar em
desintegração existencial, psíquica, é, simplesmente, estabelecer analo-
gias. O mais que, até hoje, conseguimos é a visão fatual do novo mundo a
se formar.

b) O inundo do doente obsessivo.


O doente obsessivo é perseguido por ideias que lhe parecem não só es-
tranhas, mas insensatas, e de que, no entanto, não pode livrar-se, como
se correspondessem à verdade. Se assim não fizer, acomete-o ansiedade
extrema. Por exemplo, tem de fazer alguma coisa, sob pena de uma pessoa
morrer, ou de acontecer uma desgraça. É como se o que ele faz ou pensa
pudesse, magicamente, impedir ou provocar algum acontecimento; daí
elaborar seus pensamentos de modo a formar um sistema de significados;
e seus atos, um sistema de cerimonias e ritos; apesar do que, qualquer
ação que pratique deixa dúvida: se a ideia é exata, se o ato foi completo; a
dúvida obriga-o a recomeçar do princípio.
Straus dá-nos a autonarração de uma obsessiva de 40 anos, que se
sentia contaminada por tudo quanto se relacionasse com morte, decompo-
sição, cemitério e que, por isso, tinha de defender-se ou reparar essa “con-
taminação”. Mesmo em sua autonarração, a paciente exclui as palavras
relacionadas com o fato (donde as lacunas):
Em janeiro de 1931.... um amigo muito querido. Sua mulher vinha vi-
sitar-nos todos os domingos, de volta do .... A princípio, isso não me per-
turbou. Daí a uns quatro, seis meses, as luvas dela começaram a incomo-
dar-me; depois, o capote, os sapatos e assim por diante. Arranjava-me de
modo que essas coisas não tocassem de perto nas nossas. Como moramos
perto do .... todas as pessoas que vêm de lá, ou que vão lá (e não são pou-
cas) me incomodam. Se uma delas me toca, tenho de lavar as peças de
roupa que, no momento, uso. Ou quando vem à nossa casa alguém que
haja estado lá, nem me posso mexer, com a impressão de que o espaço
fica apertado e de que minhas roupas tocam em tudo. Para acalmar-me,
lavo tudo com água de persil; assim, sinto-me, novamente, à vontade, fol-
gada. Se vou entrar numa loja e vejo alguém, não consigo entrar, com
medo de que toque em mim. Passo o dia todo desassossegada, andando de
um lado para outro. Ora tenho de enxugar alguma coisa, opa tenho de la-
var, aqui e ali. Até figuras dos jornais que reproduzem essas coisas me
perturbam. Se toco neles com as mãos, tenho de lavar-me, outra vez, com
persil. Nem consigo escrever tudo quanto me põe nervosa, intimamente,
estou sempre agitada.”
Von Gebsattel descreve de modo extremamente impressionante como
esses doentes obsessivos vivem em seu mundo próprio; ou antes, como
perdem, com esse mundo, a existência própria na estreiteza de uma en-
grenagem mágica:
Têm de repetir ao infinito certos atos, controlá-los sem parar, asse-
gurá-los, fazer alguma coisa que não se completa, até se esgotarem,
mesmo estando convencidos da absurdez do que fazem. E vêm os atos la-
vatórios, ritos e cerimônias para defesa contra a desgraça. Os doentes
opõem seus significados aos significados das pessoas com quem tratam:
há sujeira, putrefação, morte em toda parte; todas as formas de desinte-
gração. Há um mundo mágico, no qual, entretanto, não se acredita, a en-
volver o doente, um contra-mundo pseudomágico; mundo que cada vez
mais se reduz aos significados negativos. O doente só fala ainda nos con-
teúdos que simbolizam prejuízo ou perigo. As forças vitais amistosas, atra-
entes, gomem, cedendo lugar às hostis, antipáticas. Nada há que seja inó-
cuo, natural, evidente. O mundo tornou-se estreito, desnaturadamente
uniforme, impositivamente rígido, imutável. Daí achar-se o doente sempre
envolvido em atos que não chegam a realizar-se, “em tensão inquieta,
sempre procurando acomodar-se com um inimigo que lhe está constante-
mente no encalço, não importando que essa acomodação consista mais
em práticas defensivas imaginárias”. A existência para o doente consiste,
apenas, no sentido de sua destruição, em imagens “de sujeira, fezes, ve-
neno, fogo, coisas feias, impuras, cadavéricas”; consiste ainda na defesa
ineficaz; contra essa destruição. O mundo encolheu-se até constituir fisio-
nomia repulsiva, mas deixou de ser inundo, porque as coisas se subordi-
nam a crescente desagregação, não mais existindo, apenas significando
negatividades. O mundo cessa de ser inundo, perde sua densidade, pleni-
tude e configuração cósmica; perde, com isso, realidade. Apodera-se, toda-
via, do doente um sentimento horrível de que está sendo caçado, porque o
aparelhamento das medidas que precisam ser tomadas para fazer aquilo
que o paciente quer cada -vez mais se complica. As contra-compulsões e
as construções auxiliares avolumam-se ao infinito e tornam simplesmente
impossível atingir o alvo pretendido. O doente não acaba nunca, mas só
para quando exausto. — Convencido da absurdez do que faz, mas sem po-
der livrar-se, foge de quem o observa: “Poucos são os médicos que já con-
seguiram ver um enfermo que, como H. H., passa horas entregue às mani-
pulações mais fantásticas, lavando braços e pernas, ou praticando exercí-
cios bizarros por força de sua compulsão a mover-se com a precisão de
um fantoche. E. Sp. também se tranca, do cair da noite até horas altas da
manhã, em sua compulsão repetitiva, parada no meio do quarto, quase
exausta de tanto esforço, gesticulando para o alto, incessantemente ocu-
pada com a lavagem jamais terminada de umas meias”.
Von Gebsattel compara o mundo do anancasta com o mundo do para-
noico', ambos vivem num mundo privado de inocuidade, ambos estão
sempre a ver significados nos acontecimentos que nada significam. Não
existe acaso que se possa acreditar indiferente, mas, apenas, intenções.
Tanto um como o outro nos mostram; indiretamente, quanto precisamos
de um mundo que não se preocupa conosco e ao qual, todavia, pertence-
mos. O doente obsessivo, porém, sabe da absurdez dos significados que
lhe ocorrem, ao passo que ao paranoico a significatividade dos fenômenos
se afigura confundida com a realidade. O anancasta vê a realidade primá-
ria com seu caráter de inocência e inocuidade, inatingível embora, através
de sabáticos significados mágicos, enquanto o paranoico possui, em seu
mundo delirante, alguma confiança e naturalidade, um resto de certeza e
convicção, sem analogia com a inquietação ansiosa do anancasta. Pode-se
pretender que a mais temível das enfermidades, a esquizofrenia, seja, com
seu delírio, uma libertação da perseguição que a psique vigil, desta ciente,
encontra. Dentro da estreiteza em que, mágico-sensorialmente influencia-
dos, os anancastas atuam, o mundo afigura-se perdido, com todos seus
conteúdos, conquanto se mantenham íntegros os sentidos.
Tem, pois, caráter básico duplo o mundo dos anancastas, que consiste
em transformação de tudo em ameaça, susto, informidade, impureza, de-
composição e morte; no entanto, assim é o mundo apenas porque visto
através de significação mágica, está representando o conteúdo, que se tor-
nou negativo, do fenômeno compulsivo como tal: magia compulsiva, se
bem que apreendida como absurda.

c) O mundo dos homens com “fuga-de-ideias”.


L. Binswanger tentou compreender o mundo da fuga-de-ideias como
todo significativo.
À disposição emocional de uma “alegria existencial festiva” e ao com-
portamento básico de uma existência “saltante” um mundo nivelado se
mostra, que, vindo a tornar-se distante e tênue para o homem com fuga-
de-ideias, está, constantemente, fazendo variar-lhe a apreensão rápida,
mutável, daquilo que é próximo e daquilo que é distante, fazendo-o afun-
dar no momento que passa, conformando de modo perpetuamente variá-
vel a celeridade e remoinho do movimento. O mundo é flexível e multi-
forme, luminoso e róseo; é aquilo que restou à curiosidade e à atividade,
num tagarelar que chega à brincadeira com o instrumento fonatório. —
Segundo Binswanger, porém, existe uma ordem específica na totalidade
significativa desse mundo; ordem que se transformou, vitalmente condici-
onada por um clarão de espiritualidade, em mundo peculiar, cuja vivência
possibilita a atividade saltante, o apaga- mento de todas as fronteiras, a
interpenetração universal, a vulgarização universal, a atividade ociosa, a
fugacidade, o impulso a falar, a magnificência, a grandiloquência; enfim, o
comportamento inteiro do estado maníaco.
Comparemos estas tentativas de compreensão universal que tem em
vista a estrutura significativa. Se quisermos esclarecer a fuga-de-ideias de-
baixo de semelhante ponto de vista, serão só superficialidades que depara-
remos. Não se trata de transformação, propriamente, do mundo, mas alte-
ração de estado, na qual se realiza certa transformação transitória do
mundo, transformação que, a seu turno, entretanto, não contribui, em es-
sência, para a representação do todo (o qual se faz visível, sobretudo,
como estado vivencial subjetivo e como alteração do curso da vida psí-
quica). Mais produtiva parece vir a ser a análise do mundo dos doentes
obsessivos, que possibilita visão excelente de uma conexão peculiar total.
É assim que mais profundamente se penetra nos mundos esquizofrênicos;
com o que, no entanto, apenas avulta o significado da indagação, perma-
necendo as respostas ainda insuficientes.
SEÇÃO 3.
OBJETIVAÇÃO NO CONHECIMENTO E NA OBRA
(PSICOLOGIA DA OBRA)

A vida psíquica está, permanentemente, envolvida no processo de sua


objetivação, exteriorizando-se através do impulso à atividade, do impulso à
expressão, do impulso à representação, do impulso à comunicação; ainda
se acresce, por último, o impulso intelectual: querer ver o que é, o que eu
sou e o que veio a ser por força desses impulsos imediatos. Pode-se tam-
bém exprimir o processo objetivante último mencionado da seguinte ma-
neira: o que se tornou objetivo deve ser conceituado e configurado numa
objetividade geral: quero saber o que sei, quero entender o que entendi.
O fenômeno básico da mente está em que, decerto, se desenvolve num
terreno psicológico, sem ser, porém, algo psíquico, mas significação obje-
tiva, mundo comunitário. O homem individual só se torna mental ou inte-
lectual pela participação na mente comum, que o rodeia a cada momento
com certa configuração, dentro da tradição histórica. A mente geral ou ob-
jetiva está presente, a cada instante, sob a forma de costumes, ideias, nor-
mas legais, língua, obras de ciência, arte e poesia, instituições.
A mente objetiva não pode adoecer em sua substância válida, mas o
homem individual pode adoecer pela maneira com que participa na mente
e produz obra intelectual. Quase todos, os processos psíquicos normais e
anormais precipitam, de um modo ou doutro, na objetividade mental, tal
qual esta aparece ao indivíduo. Entretanto, como é que, na mente em si
não enferma, se vê o homem doente? Por deficiências, perdas, distorções e
inversões; por todas as oposições às normas, quando se realiza a partici-
pação mental; e também por uma produtividade de tipo específico, que
não é enferma no resultado, e sim na causa (quadros de Van Gogh, últi-
mos hinos de Hölderlin); finalmente, pela significação positiva que tem
para o enfermo a deficiência, a oposição à norma. Pela maneira por que o
homem se apossa e altera a estrutura mental mostram-se a essência hu-
mana e a enfermidade que o acomete.
Também é fenômeno básico da mente o fato de só haver para a psique,
propriamente, aquilo que ganhou forma na objetividade mental; mas
aquilo que ganhou forma passa ,a ter realidade própria, marcante. O que
se transformou em palavra é, por assim dizer, algo insuperável. Tomando-
se real por meio da mente, a psique, ao mesmo tempo, limita-se.
Enfim, é fenômeno básico da mente o fato de só ser real se uma psique
o produzir ou o captar. A autenticidade da mente verdadeira está ligada,
indissoluvelmente, à primariedade do evento psíquico que a contém. Já
que, no entanto, a mente se faz objetiva em estruturas, modos de falar,
maneiras de proceder, formas comportamentais, é possível a autenticidade
de a produção primária ser substituída pelos automatismos da fala, das
atividades e dos gestos. Os símbolos autênticos somem em conteúdos su-
postamente conscientes da superstição; a racionalização substitui a fonte.
Nas doenças mentais, ambas as coisas desempenham papel importante: o
máximo de mecanização para os automatismos, além da intensidade per-
turbadora da vivência que abrange toda a psique. A doença realiza todas
as possibilidades extremas.
Vamos dar uma olhadela aos produtos mentais dos doentes, não nos
sendo possível fazer mais do que tocar de leve no vasto problema aqui
existente.

§ 1. Achados Individuais Das Obras Criativas.

a) A fala.
Pela fala fazem-se a comunicação dos seres racionais e a comunicação
consigo mesmo, admitido seja a fala requisito do pensamento (o pensa-
mento sem palavras só aparece como fase transitória dentro do pensa-
mento falado, ou permanece tão embrionário e fragmentário quanto o pen-
samento simiesco).
A fala é a mais geral de todas as “obras” do homem; a primeira, a oni-
presente, a onicondicionante; sempre existente, debaixo de múltiplas for-
mas, em cada língua determinada de tal grupo humano, de tal povo e em
transformação permanente e lenta. É pela participação na obra comum
que o indivíduo fala.
Já observamos a fala como rendimento; agora, ocupar-nos-emos dela
como obra.
1. A fala como expressão. Normal o aparelho fonatório e abstração feita
de seu conteúdo, a fala é expressão da psique: sob a forma de grito, ru-
gido, cochicho, em todos os matizes que se podem observar numa enfer-
maria inquieta; como é expressão na melodia verbal, quer seja monótona
ou inexpressiva, quer se apresente vivamente exaltada; ou ainda na ritmi-
cidade, nas acentuações, absurdas, nos arranjos conformes à natureza,
ou despropositados, nos amaneiramentos, tal qual ocorre na imitação da
fala infantil (por exemplo, no agramatismo), nos estados histéricos.
2. A questão da autonomia da fala. Distinguimos os distúrbios do apa-
relho fonatório a se estudarem do ponto de vista neurológico e as modifi-
cações da fala que resultam de alterações psíquicas, normal o aparelho fo-
natório. Entre eles, contudo, parece-nos. existir uma quantidade de fenô-
menos (distúrbios psicóticos da fala), que não se incluem nem numa, nem
noutra categoria, fazendo pensar em autonomia peculiar da capacidade fo-
natória. É nessa conformidade que notamos, nos produtos da fala, estru-
turas importantes, difíceis de considerar derivadas de outras; assim como
se a autonomia da fala se desdobrasse, ou se perturbasse. Não se trata de
autonomia do aparelho fonatório, e sim da intelectividade, apresentando-
se, pura, sob a forma de fala. Primariamente sob a forma de fala, e não se-
cundariamente na fala, uma transformação do homem e sua vivência apa-
rece na obra mental. Se chamarmos a fala instrumento, o que se dá é que
mente- e instrumento se opõem, se conformam mutuamente, unificando-
se, porém, no caso marginal: constituindo fala pura, a qual vem a ser fator
da obra mental, sedimentando-se, por assim dizer, literariamente. O exce-
lente trabalho de Mette chamou a atenção para o fato. de maneira muito
proveitosa.
3. Formação de neologismos e línguas particulares. Dentre as. estrutu-
ras anormais que podem ocorrer na fala, a formação de neologismos de há
muito se fez notar8. Criadas por certos doentes em exemplares esparsos,
apenas, são tão numerosas noutros que- constituem, falando a rigor, lin-
guagem particular, inteiramente incompreensível para nós: Podemos clas-
sificá-las, segundo a gênese respectiva, em três grupos:
1) Palavras novas formam-se intencionalmente, a fim de designar sen-
sações ou coisas, para as quais a língua não tem vocábulos; são termos
técnicos formados pelo próprio doente, representando, em parte, palavras
inteiramente novas, etimologicamente incompreensíveis.
2) Formam-se sem intenção, sobretudo em fases agudas, neologismos
que, mais tarde, se usam, secundariamente, para designar uma coisa ou
outra e se transmitem aos estados crônicos. Uma paciente de Pfersdorff
usava a expressão “fusis sensoriais” para certos fenômenos alucinatórios.
Quando lhe perguntavam que significava, propriamente, a expressão, res-
pondia: “As palavras me ocorrem assim mesmo, não sei explicar”. Aqui se
inclui também a alteração de sentido que se empresta, em. psicoses, às
palavras conhecidas. Vejamos a narração de uma doente:
“Certas palavras eu usava, digamos assim, para exprimir conceito in-
teiramente diverso daquele que, a rigor, designam; tinham adquirido para
mim sentido diferente do costumeiro; por exemplo, “sarnento”’ eu usava,
muito tranquilamente, quando queria dizer “valente, corajoso”.... Gohn, a
gíria que, realmente, significa, em dialeto argoviano, “apanhador de es-
trume”, servia para eu designar uma mulher; como- os estudantes usam a
palavra “Besen”. — Se acontecia não encontrar logo palavra que servisse
para as ideias que me vinham rápidas, balbuciava tal qual as crianças pe-
quenas, inventando denominações minhas, a meu gosto; por exemplo,
“Wuttas”, em vez de pombas (Forel).”
3) Há neologismos que ocorrem ao doente sob a forma de conteúdos
alucinatórios. Neste, como no precedente caso, os próprios, doentes, mui-
tas vezes, se espantam com as palavras fora do comum, a eles mesmos es-
tranhas. Assim é que Schreber fala numa “linguagem básica” dos “raios”
que apanhou, sempre acentuando que as palavras eram de todo ignoradas
dele próprio, antes de ouvi-las.
4) Produzem-se estruturas sonoras articuladas às quais talvez o pró-
prio- doente não ligue sentido algum. Já não se trata, em geral, de estru-
turas fonéticas, visto haver desaparecido, totalmente, a significação da es-
trutura sonora; é assim que se hão de conceber, por exemplo, às vezes, os
restos verbais dos paralíticos dementes. Certo paciente só- proferia, fosse
qual fosse a ocasião, nas últimas semanas de vida, a palavra “Misabuck”.
Os neologismos representam o elemento principal das línguas particu-
lares que ocorrem uma vez ou outra, principalmente, nos esquizofrênicos.
Tuczek observou o desenvolvimento de uma língua desse tipo, sur-
gindo como brincadeira, de modo plenamente consciente e voluntário, pelo
prazer de traduzir e mostrar aptidão, sem influência da necessidade de ex-
primir vivências delirantes. O único motivo foi o orgulho de fabricar al-
guma coisa misteriosa e a satisfação com o resultado obtido: “Oiçam só
como soa bem!” A formação verbal baseou-se em princípios muito variá-
veis; daí por diante, contudo, as palavras firmaram-se e rendimento mnê-
mico extraordinário se notou. Evidenciou-se- grande capacidade criadora.
A sintaxe foi a mesma que para o alemão; só o vocabulário é que se inven-
tou.

b) Os produtos literários dos doentes


Os doentes que se entregam à produção literária correspondente ao
respectivo grau de instrução apresentam-nos, com abundância notável,
certos conteúdos racionais juntamente com os fenômenos expressivos que
representam, por si, fala e escrita; em casos raros, produtividade peculiar
da fala. Entre esses escritos, distinguimos os tipos seguintes:
1) Escritos plenamente organizados, normais pela linguagem e pelo es-
tilo, pela disposição do curso do pensamento. Só o conteúdo é que é anor-
mal: os doentes relatam suas vivências terríveis e completas, explicam-
nas, expõem suas ideias delirantes. Malgrado a tensão elevada dos afetos,
tais escritos se mostram lúcidos e controlados. Outras produções são nar-
rativas de pacientes capazes de introvisão, uma vez curada a psicose. Per-
tencem a este grupo as valiosas autonarrações.
2) O segundo grupo de escritos é produto de personalidades morbida-
mente desenvolvidas (querulantes entre outros), que elaboram suas ideias
delirantes em estilo natural e com o curso de pensamento absolutamente
ordenado, de maneira sempre compreensível para nós, porém desmedida,
fantástica, descontrolada e contraditória. Não aparece qualquer descrição
de vivências mórbidas — não as tiveram essas personalidades, que diri-
gem seus ataques contra os frenocômios, as autoridades, os médicos, ela-
borando ideias de inventores, aventureiros, exploradores etc. Pertence a
esse tipo a maior parte dos escritos impressos pelos doentes.
3) São mais raros aqueles escritos que, usando de expressões variada-
mente rebuscadas e estilo impressionante e bombástico, porém quase
sempre incompreensível^ relatam não vivências, nem perseguições, ou
quaisquer outros fatos pessoais, mas expõem teorias: novo sistema cós-
mico, nova religião, nova interpretação da Bíblia, problemas universais são
o conteúdo, no qual, mais que na forma, se percebe a origem, isto é, de
doentes com processo esquizofrênico. É frequente revelar-se também na
exposição o delírio de grandeza dos autores (inventores, o Messias).
4) A partir deste último tipo desenvolvem-se produtos transicionais li-
terários confusos, nos quais disposição alguma se encontra e a conexão
ideativa rui, seguindo-se umas às outras estruturas mentais rebuscadas,
incompreensíveis1. Afinal, nada mais se entende: sinais gráficos hieroglífi-
cos, sílabas soltas, ornatos e cores assinalam os eventos externos.
5) Por último, temos poemas de psicóticos indubitáveis. Gaupp publi-
cou o caso de um paranoico- que exprimiu seu próprio destino em drama

1 Exemplo: Gehrmann: Körper, Seele, Gott. Berlim. 1893


relativo ao rei louco Luís da Baviera; para ele o poema constituiu autoli-
bertação, a- única coisa que, internado, lhe parecia ter valor; na figura por
ele apresentada, o psicótico reencontrou, ampliada, sua própria pessoa. K.
Schneider publicou versos de um jovem esquizofrênico, exprimindo terrível
alteração da mentalidade e do mundo do autor. Exemplo grandioso e o
mais impressionante de todos são os últimos poemas de Hölderlin.

c) Desenhos, arte, trabalhos manuais.


Aqui agrupamos três tipos:
1. Deficiências de execução. Indicam distúrbios orgânico-neurológicos,
instrução escassa, falta de treinamento, inibindo a expressão da vida psí-
quica e a comunicação dos conteúdos pretendidos; não têm significação
positiva como obra. Essas deficiências de execução dão impressão de falta
de habilidade (a pessoa não consegue traçar uma linha reta); de falta de
instrução (a pessoa não possui sequer a técnica mais primitiva, sem cuja
aquisição mal desenha seja o que for); ainda, de distúrbio das funções mo-
toras e da dexteridade, resultantes de doenças orgânicas (sinais de ata-
xias, tremores etc.); finalmente, de distúrbios das funções psíquicas ele-
mentares: capacidade de fixação, concentração da atenção, as quais fal-
tando só se produzem rabiscos, fragmentos abruptos, desenho algum (é o
caso de certas doenças orgânicas; principalmente, paralisia). Todas estas
deficiências se notam tanto nos desenhos quanto nas falhas dos trabalhos
manuais de que qualquer museu clínico tem uma coleção a mostrar.
2. Arte esquizofrênica. Certos traços esquizofrênicos de natureza mais
grosseira — e só estes é que podemos identificar com segurança — dão às
estruturas pictoriais aparência muito característica: repetições sem sen-
tido do mesmo traçado, do mesmo objeto, sem unidade estrutural com-
pleta, garatujas quase “ordenadas”, certa exatidão que nada mais é que
“verbigeração” pictórica. Ao que melhor podemos comparar esses produtos
são as garatujas inintencionais que as pessoas sadias fazem ao acaso,
quando se acham com a atenção tensa; por exemplo, durante uma confe-
rência.
A arte esquizofrênica — como expressão real da vida psíquica esquizo-
frénica e como representação do mundo mental que se forma na esquizo-
frenia — só pode ocorrer se houver habilidade e certa instrução técnica; e
se as características esquizofrênicas não sufocarem, por assim dizer, a es-
trutura inteira. Quando se descreve a arte esquizofrênica, encontram-se
conteúdos característicos: representação de seres fabulosos, aves sinis-
tras, criaturas humanas e animais caricaturalmente deformados, além de
forte e implacável acentuação de coisas sexuais, sempre aparecendo os ór-
gãos genitais sob as mais variadas formas; enfim e principalmente, o im-
pulso a representar a totalidade, isto é, uma imagem cósmica, a essência
das coisas. Vez por outra, produzem-se ilustrações de máquinas que de-
vem constituir a causa dos influenciamentos alucinatórios, físicos e corpó-
reos. Mais importante talvez seja a forma: a partir da imagem de um todo,
procurar-se-á determinar sé ela tem significação também para o doente,
ou se é simples conglomerado; onde se encontra a unidade que se lhe
apresenta? De modo particular, deparamos com as seguintes característi-
cas: pedantismo, exatidão, apuro; necessidade de efeitos exagerados e
acentuados; estereotipias de certas formas curvas, arredondamentos ou
traçados retilíneos que dão a todas as imagens notável parecença. Se pro-
curarmos compreender o efeito retroativo que os desenhos têm sobre
quem os criou, descobriremos, conversando com o doente, que a simplici-
dade se enche de significados simbólicos e adornos fantásticos variados.
Não se pode negar que, em doentes portadores de esquizofrenia pro-
cessual relativamente prendados, são de observar-se estruturas pictoriais
que impressionam até as pessoas sadias pela primitividade, pela clareza
da forma expressiva, pela hórrida audácia dos significados sinistros.
Quando os esquizofrênicos possuem recursos materiais abundantes e
o estado deles não é tão grave que a interferência do poder público os en-
trave, podem vir a encontrar-se, em certas circunstâncias, obras das mais
raras, como as esculturas do príncipe Pallagonia, que Goethe conheceu,
bem como a Casa do Junker em Lemgoesta última sendo uma casa de
madeira, cujo dono levou uma vida inteira a construi-la, enchendo-a de
entalhaduras sobrecarregadas de formas fantásticas, repetidas ao infinito,
sem uma só superfície plana, nem espaço vazio.
3. Desenhos dos neuróticos. C. G. Jung introduziu o método que con-
siste em mandar os pacientes desenhar e dar atenção especial às suas
“imagens psíquicas”, que representam os planos do todo universal ou a
concepção básica que os psicóticos fazem da existência. Para Jung, que
compara essas imagens às mandalas Indus, servem elas para penetrar no
psiquismo inconsciente, abrindo à interpretação psicanalítica uma possi-
bilidade de esclarecer o inconsciente através do respectivo simbolismo e
representação mítica.
§ 2. A Totalidade Da Mente Na Concepção Do Mundo

Tivemos em vista representar, de modo claro e coerente, a existência


dos doentes no respectivo mundo. O doente não exprime diretamente a
maneira por que conforma o mundo no qual vive, isto é, a totalidade de
seu mundo real; nem sequer sabe dela, ele próprio. Seus atos e seu com-
portamento mostram, no entanto, com que significado representa a situa-
ção e as possibilidades efetivas, ou de que maneira estas se lhe apresen-
tam como evidentemente inquestionáveis. Temos de juntar tudo isso para
conseguir penetrar, parcialmente, em seu mundo real; o que é difícil, por-
que quase não nos é dado transpor os limites de nosso próprio mundo;
mas a cada passo que caminhamos não só ganhamos conhecimento,
como ampliamos nossa própria existência; ou assim pressupomos. A
consciência objetiva, cuja forma existencial se descreve na fenomenologia,
sempre se relaciona, segundo seu conteúdo, com totalidades que dão sen-
tido, função, significado, na conexão vital, ao conteúdo individual momen-
taneamente vivenciado; conteúdo possível de dizer-se mergulhado em
mundos que, como totalidade, nunca se fazem plenamente conscientes;
antes só se manifestam, de forma indireta, no movimento e na conforma-
ção das representações e atos, das imagens e dos pensamentos.
Em condições favoráveis, o homem torna-se sistematicamente consci-
ente de seu mundo pela conformação poética e artística, pelas ideias filo-
sóficas, pela construção de imagens cósmicas. O que nos é comunicado
verbalmente, o que vemos nas obras dá-nos os fundamentos com que re-
presentar a maneira por que um doente vê o mundo de que tem consciên-
cia. Em vez de deduzir, indiretamente, uma conformação universal fatual
pura, logramos a totalidade de uma mente em sua própria objetivação, o
que, até hoje, só tenuemente se conseguiu iniciar.
Metodicamente, abre-se aqui um campo ilimitado; mas é só em certos
fenômenos importantes, quase sempre fornecidos pela história e em raros
casos felizes que a investigação encontra o objeto empírico. Aquilo que se
tem de saber metodicamente só pode obter-se mediante treino humanís-
tico. Brevemente recordemos dois pontos:
Nietzche concebeu, luminosamente, todo o saber universal como sendo
“interpretação”. É interpretação a compreensão que temos do mundo; e a
compreensão que temos do mundo estranho é interpretação da interpreta-
ção. Daí haver, na compreensão do mundo, não só objetividade absoluta,
mas movimento, relativamente ao qual a ideia do mundo único, próprio,
real a verdadeiro (do ponto vista de quem observa os mundos) vem a ser
conceito marginal de cujo conteúdo jamais podemos apossar-nos.
Cada mundo já é um mundo especial. E o mundo especial que certo
homem conhece como seu, o mundo que enfrenta, sempre é menos do que
seu mundo real; este subsistindo para o homem sempre tal qual a obscu-
ridade que abrange um todo extenso.
Os poucos pontos de que nos é dado partir para a análise dos mundos
dos doentes que se tornam conscientes agrupam-se na conformidade dos
seguintes aspectos:

a) Realizações radicais.
Têm interesse especial as realizações das possibilidades mentais que
por si, de acordo com a natureza respectiva, não são nem sadias, nem
mórbidas; a rigor, nem psicológicas, só aparecendo pelo fato de se vivenci-
arem. É assim que só nas psicoses se experimentam com absoluta pleni-
tude, por exemplo, o niilismo, o cepticismo. O delírio niilístico do melancó-
lico constitui o protótipo; não há mais mundo, o próprio doente não existe
mais, vivendo só em aparência, mas tendo, assim mesmo, de viver eterna-
mente; não tem mais sentimentos, todos os valores desapareceram. — Nos
processos esquizofrênicos em incepção, o cepticismo, vez por outra, não é
simplesmente pensado na tranquilidade, mas vivenciado no desespero. —
Há ainda as realizações clássicas de vivências míticas histéricas e as reve-
lações metafísico-míticas da esquizofrenia prodrômica.

b) Perspectivas específicas dos doentes.


— Pode-se indagar qual é a peculiaridade que se desenvolve sobre a
base esquizofrénica do mundo do saber existencial filosófico; ou qual é a
direção caricatural em que se movem as possibilidades filosóficas. A mente
é, certamente, histórica, ligada às épocas e aos povos, à tradição; como tal,
não é objeto da psicopatologia, mas objeto da compreensibilidade em si; é
algo eterno no tempo. Todavia, sua realidade, como existência no tempo,
prende-se à realidade humana empiricamente investigável. Podem-se in-
vestigar as condições da produção mental e essa realidade.
São só os doentes que permitem a confirmação mais decisiva daquilo
que é universal na ciência das excursões da alma para o Além, ou em
certa geografia transcendental. Seja como for, ainda hoje esses conteúdos
se podem observar, vez por outra, nas psicoses, com abundância impres-
sionante e profundidade mental.
Entre os conteúdos das vivências esquizofrênicas, é característica a “vi-
vência cósmica”: o fim-do-mundo, o crepúsculo dos deuses. Um cata-
clisma formidável ocorre, no qual o paciente desempenha o principal pa-
pel, colocado que está no centro de todos os acontecimentos, incumbido
de enormes tarefas, dotado de imensa força para preenchê-las. Efeitos dis-
tantes fabulosos, atrações e repulsões, estão atuando. Trata-se sempre do
“todo”: todos os povos da terra, todos os homens, todos os deuses etc.; vi-
vencia-se a história inteira da humanidade; o doente vivência tempos infi-
nitos, milhões de anos; para ele, o momento é uma eternidade; o espaço
vital, ele o percorre com velocidade espantosa, a fim de vencer formidáveis
batalhas; e incólume vagueia por entre abismos. Destacamos os seguintes
exemplos dentre as autonarrações de semelhantes vivências:
“As visões relacionadas com a ideia de um cataclisma universal, visões
que, conforme já mencionei, tive inúmeras, eram, em parte, terríveis, em
parte, porém, indescritivelmente grandiosas. Recordarei, apenas, umas
poucas. Numa delas, parecia que, sentado num elevador, descia às pro-
fundezas da terra, retrocedendo, por assim dizer, na história inteira da
humanidade e da terra; nas regiões superiores, ainda havia bosques em
folha; nas regiões inferiores, a escuridão era cada vez maior, mais negra.
Quando saía, temporariamente, do elevador, entrava em grande cemitério,
onde estavam sepulturas de muitos habitantes de Leipzigue, bem como a
de minha própria mulher. Voltava para o elevador, ia só até o ponto 3; no
ponto 1, que marcava os primórdios da humanidade, tinha medo de pene-
trar. Ao regressar, o cabo do elevador rompia-se atrás de mim, pondo sem-
pre em perigo um “deus do sol” que ali vivia. A tudo isso correspondendo,
sabiam-se terem existido dois cabos (talvez correspondendo ao dualismo
dos mundos divinos); quando chegava a notícia de que também o segundo
cabo se romperá, tudo se perdia. Outra vez, atravessava a terra, desde o
lago Ladoga até o Brasil, onde, numa casa em forma de castelo, junto com
um guarda, levantava uma muralha, a fim de proteger o reino dos deuses
contra um maremoto amarelo que o ameaçava; isso para mim tinha rela-
ção com o perigo de infecção sifilítica. Outra vez ainda, parecia-me que
fora elevado ao céu, de cujas alturas tinha impressão de estar contem-
plando, por baixo de uma abóboda azul, a terra inteira, quadro este de
magnificência e beleza incomparáveis”.
Wetzel tem casuística notável de vivências de fim-do-mundo na esqui-
zofrenia
Vivencia-se o fim-do-mundo como transição para uma coisa mais
nova, maior, que se afigura terrível aniquilamento. O mesmo paciente ex-
perimenta tormentos desesperadores e beatíficas revelações. A princípio,
tudo é sinistro, obscuro, agourento; iminente uma desgraça enorme. Vem
o Dilúvio; catástrofe singular ocorre. É Sexta-Feira Santa e algo acontece
ao mundo: o Juízo Final, o anúncio da ruptura de um dos Sete Selos reve-
lam-se. Deus vem ao mundo. Voltam os tempos dos primeiros cristãos, in-
vertem-se as eras, resolvem-se os últimos mistérios. A tudo quanto é temí-
vel e grandioso, a tudo quanto então se passa, os doentes são entregues
sem socorro, sem ninguém que os defenda. Esse sentimento de solidão é
indizivelmente angustioso. Os enfermos imploram que não se os abando-
nem sós no deserto, no gelo e na neve (expressão usada por um doente,
durante um mês de verão).
Nos casos característicos dessa vivência esquizofrênica, nota-se, em
contraste com a vivência deliriosa, plena clareza da consciência, a que cor-
responde memória nítida, além de boa percepção, quando se consegue
despertar a atenção para qualquer objeto, em vez de prender-se, exclusiva-
mente, aos conteúdos vivenciais; mais: dupla- orientação (dentro da vivên-
cia psicótica e, ao mesmo tempo, na realidade). Casos clássicos de tal or-
dem não parecem, contudo, ser demasiado frequentes.
O mundo dos esquizofrênicos, nas psicoses agudas em que há dupla-
orientação, é inteiramente diverso do mundo dos estados crônicos; estes,
por vezes, têm para o doente conteúdo inalienável de recordações profun-
damente vividas, elaboradas em sistema ideativo que se baseia nas vivên-
cias agudas; afinal, no entanto, a dupla- orientação perde-se completa-
mente.
Desenvolve-se, então, fundada na vivência da transformação-do-eu,
nas forças e irradiações super-humanas, bem como nos ¿baios sofridos,
nas vivências significativas e nas alterações afetivas, certa visão do mundo
que pode vir a ser típica do sistema delirante; por exemplo, com a configu-
ração seguinte, descrita por Hilfiker:
O eu coincide com o todo. O doente não é outro personagem (por
exemplo, Cristo, Napoleão), mas, apenas, o Todo. Sua vida, ele a sente
como se fosse a vida do mundo inteiro; é a força que mantém o mundo,
que lhe dá vida; o próprio enfermo é a sede desse poder super-pessoal. Os
doentes falam em força automática, substância primária, semente, fertili-
dade, poder magnético. Se morrerem, o mundo também morrerá; se pere-
cerem, tudo perecerá que tem vida. Três doentes diferentes dizem: “Se não
tiverdes mais contato comigo, tudo sumirá...” — “Se eu morrer, perdereis
todos a inteligência”. — “Se não encontrardes quem me represente, nada
mais existirá”. Os pacientes sentem na natureza seu poder mágico: “Se
meus olhos são azuis, azul se torna o céu.” — “Meu coração transmite
seus batimentos a todos os relógios do mundo”. — “Meus olhos são a
mesma coisa que o sol”.
Disse um paciente de Hilfiker: “Só há um camponês na Europa que se
pode manter independente: sou eu.... Se olhar para uma lavourazinha
qualquer, se nela andar, passará a ser magnífica. Sou um corpo que dá
frutos, um corpo universal...” — Ele, a mulher e o filho — três seres hu-
manos — são os três primeiros olhares e ouvidos, são os três povos inter-
nacionais, afins co mo solo, a água e o sol, correspondendo ao sol, à lua e
à estreia Vésper. “Quanto mais calor sentirmos, mais quente será o sol....
Não há país que se possa manter. Se o mundo empobrecer, tereis de vir
buscar-me. Precisareis de um representante universal. Sem representação
universal, o mundo vem abaixo”.

c) Observações de relevância filosófica dos doentes.


Sob esta rubrica, reuniremos, por enquanto, as descrições que corres-
pondem à maneira por que ocorrem, nos doentes, certas atitudes filosófi-
cas; mais ainda: determinaremos o modo por que variam, se matizam ou
se identificam com as atitudes normais. Foi assim que Mayer-Gross pro-
curou descrever as peculiaridades com que a brincadeira, a pilhéria, a iro-
nia e o humor se mostram na esquizofrenia. Gerhard Kloos ampliou e
aprofundou essas observações. Têm-se acompanhado os fenômenos extra-
ordinários que ocorrem com as manifestações científicas e filosóficas de
certos doentes, um dos quais imaginou um sistema numeral para “resol-
ver o& problemas vitais”
As notícias dos jornais relativas a mortes, catástrofes, dão-lhe; motivo
para provar que tinham de acontecer. O paciente explica, por- meio de ci-
fras, a que chegou mediante combinação de nomes, circunstâncias etc.,
ser necessário aquilo que, à simples leitura, parecerá casual. Seu saber
vem a dar no seguinte: tudo quanto ocorre é determinado* pela trindade; e
essa paródia, sem intencionalidade, de numerosos esforços científicos se-
melhantes, metodicamente estabelecidos, apresenta-se- ruidosamente ra-
cional na maneira por que o doente se exprime, no- arranjo pedantesco e
na seca regularidade da escrita, esta caracterizando-se por sinais gráficos
desusadamente exagerados, pelas repetições infindáveis e pelo esquema-
tismo.
Também ao delírio de invenção — principalmente, a construção sem-
pre reiterada de um motu-perpétuo — subjaz uma elaboração filosófica
que visa ao asseguramento, mediante esforço racional.
PARTE 2.
AS CONEXÕES COMPREENSÍVEIS DA VIDA PSÍQUICA

(Psicologia Compreensiva)
Na Primeira Parte, estudamos os fatos individuais que ou podemos re-
presentar, intuitivamente, sob a forma de realidades. subjetivas, efetiva-
mente vivenciadas, da vida psíquica (Fenomenologia), ou que nos é possí-
vel apreender objetivamente sob a forma de rendimentos sensorialmente
tangíveis, sintomas somáticos do psiquismo, fatos significativos que apare-
cem na expressão, no mundo- e na obra (Psicopatologia Objetiva). No pri-
meiro plano de nosso interesse, tivemos a descrição dos fatos, logo, porém,
surgindo as indagações: Donde provém esse fenômeno? Com que outro fe-
nômeno tem conexão? Voltar-nos-emos, agora, para as conexões do psi-
quismo. Até o momento, há vastas áreas de nosso conhecimento que só
são acessíveis à descrição; nas Segunda e Terceira Partes, entretanto, pro-
curaremos explanar o que sabemos, presentemente, a respeito de cone-
xões.
Para tanto fazer, teremos de presumir haja entre as conexões- distin-
ção tão fundamental quanto aquela que existe entre a psicopatologia sub-
jetiva (fenomenologia) e a psicopatologia objetiva.
1) Se penetrarmos na situação psíquica, compreenderemos genetica-
mente de que modo um evento psíquico é produzido por outro.
2) Pela vinculação objetiva de vários fatos a- regularidades, com base
em experiências reiteradas, explicaremos causalmente.
A compreensão do evento psíquico resultante de outro evento psíquico
chamamos também explicação psicológica, e aqueles pesquisadores que se
ocupam com as ciências naturais, só pensando no que é sensorialmente
percebido e no que se explica causalmente, mostram-se, compreensível e
corretamente, avessos à explicação psicológica, sempre que esta pretende
substituir-lhe os esforços. Também se tem dado às conexões psíquicas
compreensíveis a denominação causalidade de dentro-, com o que se de-
signa a diferença, inconciliável existente entre essas conexões, que só por
analogia se. podem dizer causais, e aquelas outras, realmente causais,
que vêm a constituir a causalidade de fora. Nesta Segunda Parte, tratamos
das conexões compreensíveis; das conexões causais trataremos na parte
seguinte, isto é, a Terceira. Antes, porém, é necessário esclarecer, metodi-
camente, onde reside a distinção básica entre as duas áreas e, bem assim,
a respectiva interrelação.

a) Compreensão e explicação.
Nas ciências naturais, é só um tipo de conexões que procuramos apre-
ender: as conexões causais. Mediante observações, experiências, reunião
de muitos casos, buscamos encontrar regras do evento. Em grau mais
alto, encontramos leis e atingimos, em várias áreas da física e da química,
o ideal que consiste em poder exprimir matematicamente essas leis cau-
sais em equações causais. São os mesmos objetivos que também persegui-
mos na psicopatologia, descobrindo conexões causais individuais, cuja re-
gularidade nem sequer podemos ainda reconhecer (a conexão entre lesões
oculares e alucinações, por exemplo). Encontramos regras (a regra da he-
rança homóloga: se aparecem doenças do grupo da loucura maníaco-de-
pressiva numa família, é raro ocorrerem nas mesmas enfermidades tais
como as do grupo da demência precoce, e vice-versa). Só raramente, po-
rém, é que encontramos leis (por exemplo, não há paralisia geral sem sífi-
lis); nem jamais podemos estabelecer equações, como na física e na quí-
mica. Daí se pressuporia a quantificação plena dos processos psíquicos,
quantificação que, no terreno psíquico (o qual permanece sempre qualita-
tivo, por sua essência), nunca é possível, em princípio, a não ser que se
perca o objeto propriamente da investigação, ou seja, o objeto psíquico.
Ao passo que, nas ciências naturais, só se podem encontrar conexões
causais, o conhecimento vem a satisfazer-se, em psicologia, ainda na apre-
ensão de conexões inteiramente diversas. O psíquico “resulta” do psíquico
de maneira que é para nós compreensível. Quem é atacado zanga-se e
pratica atos defensivos; quem é enganado torna-se desconfiado e essa pro-
dução do evento psíquico por outro evento psíquico nós compreendemos
geneticamente. Daí compreendermos as reações vivenciais, o desenvolvi-
mento das paixões, a formação do erro; daí compreendermos o conteúdo
do sonho e do delírio, dos efeitos da sugestão; daí compreendermos uma
personalidade anormal em sua conexão essencial própria, e compreender-
mos o curso vital de uma existência; mais ainda: a maneira por que o do-
ente se compreende a si mesmo e por que a forma por que ele se compre-
ende a si mesmo vem a tornar-se fator de desenvolvimento psíquico ulte-
rior.
b) Evidência da compreensão e da realidade (compreensão e interpreta-
ção).
A evidência da compreensão genética é alguma coisa derradeira.
Quando Nietzsche nos convence de que a consciência da fraqueza, da po-
breza e do sofrimento dá origem a exigências morais e a religiões redento-
ras, porque é por esse desvio que a alma, malgrado sua fraqueza, satisfaz
sua vontade de poder, vivenciamos uma evidência imediata de que já não
podemos retroceder. É sobre evidências desta ordem, em oposição a cone-
xões compreensíveis, de todo impessoais, independentes, que se edifica
toda a psicologia compreensiva. Essa evidência faz-se indutivamente pro-
vada por causa da experiência em relação às personalidades humanas,
mas não pela experiência que se repete; sua força de convicção está em si
mesma e o reconhecimento dessa evidência é requisito da psicologia com-
preensiva, tal qual o reconhecimento da realidade percebida e da causali-
dade é requisito das ciências naturais.
A evidência de uma conexão compreensível ainda não prova, entre-
tanto, que essa conexão seja real sequer em certo fato particular; ou que
ele, enfim, chegue a realizar-se. Nietzsche aplica aquela conexão persuasi-
vamente compreensível entre a consciência da fraqueza e a -moral ao pro-
cesso particular real da origem do- cristianismo, mas essa aplicação pode
ser errada, no caso particular, apesar da correção da compreensão geral
(típico-ideal) da. referida conexão. Com efeito, o juízo da realidade de uma
conexão- compreensível, no caso particular, repousa não só na evidência
respectiva, mas, sobretudo, no material objetivo de pontos de apoio- tangí-
veis (conteúdos verbais, criações mentais, atos, modos de vida, movimen-
tos expressivos), nos quais a conexão vem a ser compreendida; estas obje-
tividades permanecem sempre, contudo, incompletas. Toda compreensão
de processos reais particulares subsiste, por isso, mais ou menos, como
interpretação, a qual só em casos raros consegue alcançar graus relativa-
mente altos de perfeição do material objetivo convincente. Se compreende-
mos, é na medida em que. os dados objetivos dos movimentos expressivos,
atos, manifestações, verbais, autonarrações, impõem, mais ou menos, no
caso particular, semelhante compreensão. É certo que podemos encontrar
evidente, liberta de qualquer realidade concreta, uma conexão psíquica;
mas, no caso particular, só podemos afirmar a realidade dessa conexão
compreensível na medida em que nos são fornecidos os dados objetivos.
Quanto menos numerosos são estes dados objetivos, menos compulsiva-
mente promovem a compreensão em determinado sentido; quanto mais
interpretamos, menos compreendemos. As relações fazem-se o mais claras
possível pela comparação do- comportamento das regras de causalidade e
das conexões evidentemente compreensíveis em relação à realidade. As re-
gras de causalidade adquirem-se indutivamente, culminando em teorias; e
estas buscam alguma coisa subjacente à realidade, que é dada de modo-
imediato; nelas se incluem os casos particulares. Pelo contrário, as cone-
xões geneticamente compreensíveis são conexões típico-ideais; e são em si
evidentes (não adquiridas indutivamente), não levando- a teorias, mas
constituindo padrão pelo qual os processos particulares se medem e se re-
conhecem, de forma mais ou menos compreensível. É erro descobrir re-
gras em conexões compreensíveis, quando se constata a frequência com
que ocorre certa conexão- compreensível. Não lhe aumenta, entretanto, de
maneira alguma, a evidência; não é a conexão, mas sua frequência que se
encontra indutivamente. Por exemplo: a frequência da conexão entre o
custo «elevado do alimento e a ocorrência de furtos é compreensível e
constata-se estatisticamente. A frequência da conexão compreensível entre
o outono e o suicídio não se confirma, em absoluto, pela curva do suicídio,
que atinge o máximo na primavera; daí não se segue, porém, que a cone-
xão compreensível seja falsa. Um caso real pode levar-nos a conceituar
uma conexão compreensível, sem que a frequência coisa alguma acresça
para incrementar a evidência já adquirida. A determinação respectiva visa
a interesses inteiramente outros. Em princípio, pode-se admitir que, por
exemplo, um poeta represente de maneira convincente conexões compre-
ensíveis, as quais nunca terão ocorrido; são irreais, mas possuem sua evi-
dência no sentido típico-ideal. Apressamo-nos, facilmente, a afirmar a rea-
lidade de uma conexão compreensível, desde que ela tenha sequer essa
evidência geral. Jung disse ser “fato conhecido que não se tem dificuldade
para ver onde há e onde não há conexão”; no caso, entretanto, do ser hu-
mano verdadeiro, é o inverso que é correto.

c) Compreensão racional e empática.


A compreensão genética desmembra-se em muitos modos da compre-
ensão, dentro da qual se hão de fazer distinções básicas. Por exemplo, se,
para nossa compreensão, os conteúdos do pensamento resultam, percep-
tivelmente, uns dos outros, de acordo com regras lógicas, em tal caso nós
compreendemos essa conexão racionalmente (isto é, compreendemos o
que é falado). Mas se compreendemos os conteúdos do pensamento como
originados de estados de ânimo, desejos e temores daquele que pensa,
nesse caso só compreendemos, a bem dizer, psicológica ou empaticamente
(quer dizer, compreendemos quem fala). No caso de a compreensão racio-
nal só levar à determinação de que certa conexão racional, possível de
compreender sem qualquer psicologia, era conteúdo de uma psique, a
compreensão empática nos leva à própria conexão psíquica. No caso, po-
rém, de a compreensão racional ser simples expediente psicológico, a com-
preensão empática nos conduz à própria psicologia. Este exemplo permite
ver com facilidade a distinção que há entre os modos pelos quais compre-
endemos. Adiante, teremos de estabelecer outras distinções indispensá-
veis; inicialmente, contudo, falaremos ainda da compreensão psicológica
em seu todo.

d) Limites da compreensão, ilimitação da explicação.


É erro sugerir que o psíquico seja setor da compreensão e o físico, se-
tor da explicação causal, porque não existe fato real, de natureza quer fí-
sica, quer psíquica, que, em princípio, deixe de ser acessível à explicação
causal; os próprios fatos psíquicos podem subordinar-se à explicação cau-
sal. O reconhecimento de causas não tem limite em parte alguma, dado
que, seja onde for, mesmo quando se trata de fatos psíquicos, buscamos
causas e efeitos. A compreensão, pelo contrário, tem limites em toda parte,
e estes se encontram na existência das disposições psíquicas especiais,
nas regras de aquisição e perda das disposições mnêmicas, na sequência
da constituição psíquica total, conforme as épocas da vida; tudo isso que
podemos resumir como sendo o alicerce do psiquismo representa limite à
nossa compreensão; e cada limite da compreensão é novo estímulo à inda-
gação causal.
No pensamento psicológico causal, precisamos de elementos- que con-
sideramos causas ou efeitos de um fato; por exemplo, certa fato somático
como causa, certa alucinação como efeito. Para ajudar a formar elementos
de explicações causais, todos os conceitos da fenomenologia e da psicolo-
gia compreensiva vêm a enquadrar-se no terreno do pensamento causal.
Certas unidades fenomenológicas (digamos, uma alucinação, um modo de
perceber) explicam-se por fato somáticos; e conexões compreensíveis de
tipa complexo se consideram unidade; assim é que uma síndrome maní-
aca, com todos os seus conteúdos, se pode apresentar como efeito de um
processo cerebral, ou de um trauma emocional; por exemplo, a morte de
entes queridos. A própria. totalidade de conexões- compreensíveis que
ocorrem num indivíduo, totalidade que chamamos personalidade, é consi-
derada, em determinadas condições, unidade (elemento), cuja gênese cau-
sal se pesquisará, por exemplo, segundo as regras da hereditariedade.
Nessas investigações causais, sempre havemos de pensar em que algo
extraconsciente subjaz às unidades fenomenológicas, ou às conexões com-
preensíveis; e assim sempre havemos de empregar conceitos de disposi-
ções extraconscientes, constituições psíquicas e-- mecanismos extracons-
cientes; conceitos estes que não podem, entretanto, ampliar-se em teorias
universais, mas servem para os fins, investigativos momentâneos, na me-
dida em que se afigurem úteis.
Toda compreensão, na medida em que se refere a um evento psíquico
real, indica, evidentemente, uma conexão causal, a qual, no entanto, em
primeiro lugar, só é acessível pela via da compreensão; em segundo- lugar,
é baldado e fútil elaborá-la mais estritamente e construi-la através de fatos
extraconscientes (cf. o capítulo sobre teorias), caso não se. deem pontos de
apoio; como é baldado e fútil fazer determinações, empíricas por outra via
que não seja a da compreensão. Então, sim, é que se encontrarão cone-
xões causais importantes, e não triviais, mas a se obterem apenas pela in-
vestigação. É errado, porém, dizer que: certa conexão psíquica causr.'1 se
sinta, concomitantemente, por empatia, tal qual um eco; e que pela com-
preensão empática também se possa descobrir o mecanismo causal. A
pensar no assunto, veremos que a simples elaboração de mecanismos ex-
traconscientes apenas pela via da. compreensão empática constitui jogo
estéril, como muitos outros, fáceis, que se encontram na literatura. Não é
como tal que a compreensão- leva à explicação causal, e sim pelo choque
contra o incompreensível.

e) Compreensão e inconsciente.
Os mecanismos extraconscientes se pensam adicionados à vida psí-
quica consciente; em princípio, são extraconscientes e, como tais, não se
podem verificar; são sempre teóricos. Enquanto esses conceitos teóricos
penetram no extraconsciente, tanto a fenomenologia quanto a psicopatolo-
gia compreensiva permanecem na consciência. Nunca, porém, se esclarece
em definitivo onde é que se acham os limites da consciência a esse modo
de observar, limites que se afirmam, sim, permanentemente, quando pe-
netram além dos limites momentâneos da consciência. A fenomenologia já
descreveu maneiras inteiramente despercebidas da existência psíquica,
enquanto a psicologia compreensiva conceitua, até o momento, conexões
psíquicas despercebidas; é o que acontece quando conceitua, àquela ma-
neira nietzscheana, certos pontos de vista morais como formações reativas
à consciência da fraqueza, da impotência, da miséria. Todo psicólogo vi-
vencia em si mesmo o fato de sua vida psíquica cada vez mais se esclare-
cer, o fato de fazer-se-lhe consciente aquilo que não era percebido e, por
fim, o fato de nunca atingir o limite derradeiro. Ê de todo errado confundir
isto que é inconsciente, que, a partir do que não se percebe, se torna cons-
ciente pela fenomenologia e pela psicologia compreensiva com aquilo que é
autenticamente inconsciente, aquilo que, em princípio, é extraconsciente,
jamais perceptível. O que é inconsciente, porque despercebido, é, de fato,
vivenciado; mas o que é inconsciente porque extraconsciente não se viven-
cia, realmente. Convém habituarmo-nos a chamar o que é inconsciente,
no primeiro sentido, despercebido; e o que é inconsciente no segundo, ex-
traconsciente.

f) A pseudocompreensão.
Sempre coube à psicologia trazer à consciência aquilo que não é no-
tado; e a evidência do que assim se conscientiza se comprova pelo fato de
que qualquer outra pessoa pode, em condições favoráveis, vir a notar
igualmente as mesmas coisas que já tenha vivenciado como reais. Há, en-
tretanto, uma série de fatos inacessíveis à nossa compreensão a partir de
acontecimentos realmente vivenciados, que se notaram a posteriori e que,
no entanto, pretendemos compreender. Charcot e Mõbius, por exemplo,
enfatizam e fizeram, sobre esta base, compreender a coincidência da dis-
tribuição dos distúrbios histéricos sensitivos e motores com as ideias aná-
tomo-fisiológicas erradas e grosseiras dos doentes. Não se conseguiu, to-
davia, comprovar, realmente, como ponto de partida do distúrbio, seme-
lhante ideia, a não ser quando ocorra sugestão; mas compreendeu-se o
distúrbio como se fosse condicionado por um processo consciente. É ques-
tão aberta se, em tais casos, se trata, na verdade, dessa fonte, embora se
deixem sem esclarecimento certos fenômenos psíquicos que não se perce-
bem, mas que são reais; ou se o caso é, apenas, de caracterização acer-
tada, mas fictícia, de certos sintomas. Freud, após descrever muitos des-
ses fenômenos “compreendidos como se, ou pseudo- compreendidos”,
comparou sua atividade com a de um arqueólogo, que interpreta certas
obras humanas a partir de fragmentos. A grande diferença está, apenas,
em que o arqueólogo interpreta o que já existiu de fato, ao passo que a
pseudocompreensão abstrai completamente a existência real daquilo que
se compreende.
Abrem-se, pois, à psicologia compreensiva duas grandes possibilidades
de extensão pelo fato de ela trazer à consciência o que não se percebe.
Subsiste, entretanto, a dúvida quanto à possibilidade que tem de penetrar,
mediante pseudocompreensão, no extraconsciente. Será que a ficção da
pseudocompreensão serve para a caracterização de certos fenômenos?
Esta é uma indagação a que só se pode responder no caso particular; de
modo geral, não.

g) Sobre os tipos da compreensão, em conjunto (compreensão intelec-


tual, existencial, metafísica).
Repetimos as distinções que já fizemos:
1) Compreensão fenomenológica e compreensão expressiva. Aquela é a
representação interior da vivência, mediante as autonarrações dos doen-
tes; esta é a percepção imediata do significado psíquico em movimentos,
gestos (mímica) e formas (fisiognômia).
2) Compreensão estática e genética. Aquela abrange as qualidades e
estados psíquicos individuais, conforme se vivenciam (fenomenologia);
esta, a emergência dos eventos psíquicos uns dos outros, conforme se dá
em conexões motivadoras, efeitos contrastantes, alterações dialéticas (psi-
cologia compreensiva).
3) Compreensão e explicação genética: Aquela reside na apreensão
subjetiva, evidente, das conexões psíquicas de dentro, na medida em que,
por tal forma, se possam apreender; esta reside na demonstração objetiva
de conexões, consequências, regularidades, que são incompreensíveis e só
causalmente se podem explicar.
4) Compreensão racional e empática. Aquela não constitui compreen-
são psicológica propriamente, mas simples compreensão ideativa dos con-
teúdos racionais que um homem tem; por exemplo, a compreensão das
conexões lógicas de um sistema delirante de interpretação do mundo,
mundo no qual um homem vive como sendo o seu. A compreensão empá-
tica é a compreensão a bem dizer psicológica do próprio psiquismo.
5) Compreensão e interpretação. Falamos em compreensão na medida
em que aquilo que é compreendido se representa plenamente mediante
movimentos expressivos, manifestações verbais, atos. Falamos em inter-
pretação quando só dados escassos servem para aplicar com certa verossi-
milhança conexões já compreendidas por outros meios ao caso em ques-
tão.
Basta esta diferenciação, inicialmente, para nos esclarecer, com cs fins
que temos em vista, na apreensão dos fatos empíricos. Todavia, como to-
camos, constantemente, na prática de nossa compreensão, alguma coisa
mais ampla em que reside toda esta compreensão, referir-nos-emos, em
poucas palavras, às áreas principais nas quais a compreensão se move
além do que discutimos até o momento.
1. A compreensão intelectual. Não são só conteúdos racionais que se
compreendem, sem qualquer psicologia, como significado objetivo, mas to-
dos os outros conteúdos que se estão sempre pensando, as configurações,
imagens, símbolos, obrigações e ideais. Nem são apenas conteúdos indivi-
dualizados dessa ordem que se selecionam para compreender um ser hu-
mano; e sim, antes, é a facilidade com que o psicólogo alcança estes conte-
údos que limita e condiciona sua compreensão psicológica. Tal compreen-
são é compreensão da mente, não compreensão psicológica; mas só acede-
mos à psique na medida em que compreendemos quais são os conteúdos
em que ela vive, quais os conteúdos a que visa, que conhece e em que se
faz atuante.
2. A compreensão existencial. Quando compreendemos as conexões,
esbarramos nos limites do incompreensível; e este é de admitir-se, de um
lado, em suas conexões causais, como limite do que se pode compreender,
como extraconsciente, que nos leva tal qual um corpo; como material a
modelar, como possibilidade existencial a apreender, como deficiência a
suportar. De outro lado, o incompreensível é, como origem do que se pode
compreender, mais do que compreensível; é aquilo que se ilumina a si
mesmo, que se faz compreensível, embora se apreenda pelo que é incondi-
cionado da existência. Daí transformar-se a compreensão psicológica, se
relacionada com o impacto no incompreensível que subjaz à investigação
causai, em psicologia empírica. Quando relacionada com o fenômeno da
existência possível, ela vem a constituir iluminação filosófica da existência.
A psicologia empírica estabelece como algo existe e acontece; a iluminação
existencial apela para o próprio homem mediante possibilidades. Uma se
liga à outra, de modo absoluto, na compreensão psicológica, se bem que
tenham significado radicalmente diverso; do que resulta ambiguidade
quase insuperável. Há em comum o fato de sempre pressupor-se e pensar-
se, na compreensão, um incompreensível, o qual, todavia, é de tipo biná-
rio, heterogêneo. Se não fosse um aspecto, o que é compreensível não teria
existência (a dadificação das causalidades); se não fosse o outro, não teria
conteúdo (autonomia da existência).
Mostra-se o incompreensível, sob o aspecto do que se há de investigar
causalmente, nos impulsos, nos fatos somáticos, biológicos, nos mecanis-
mos extraconscientes específicos, a todo momento presumidos; está pre-
sente quer em toda vida normal, quer nos desvios que caracterizam os es-
tados e processos mórbidos. Sob o aspecto da existência, o incompreensí-
vel é a liberdade que se apresenta na decisão incondicionada, na apreen-
são do sentido absoluto; como se apresenta na experiência básica, quando
a partir da situação empírica se forma a situação marginal que desperta a
existência para a autonomia.
Para iluminar a existência, formam-se conceitos que perdem sentido
assim que são tratados pelo conhecimento presumidamente.' psicológico
como modos existenciais disponíveis e se relativizam. Por mais, no en-
tanto, que se estenda a investigação empírica, não- se encontra liberdade,
nem se encontra aquilo tudo que se pensa como desafio à liberdade na ilu-
minação filosófica da existência: validez, consciência absoluta, situações
marginais, decisões, responsabilidade, origem. A iluminação existencial
toca, através da psicologia compreensiva, esse mais-do-que compreensível,
toca a própria realidade na possibilidade da autonomia, recordando, aler-
tando e revelando. Há uma confusão e, dela resultando, uma inversão,
quando se trata essa iluminação como psicologia geral, quando se enqua-
dram entre os conceitos psicológicos da iluminação existencial atos, com-
portamentos, impulsos, homens em sua essência, ao- mesmo tempo e de
uma vez tratando-os tal qual fossem, por sua. essência, fatos naturais.
3. A compreensão metafísica. A psicologia compreensiva diz respeito
àquilo que se vivencia empiricamente ou se completa, existencialmente. A
compreensão metafísica relaciona-se com uma significação que cobre tudo
quanto é por nós vivenciado e livremente feito; relaciona-se com a conexão
significativa ampla, na qual todo significado, limitado quanto ao mais, se
pensa e se absorve. A compreensão metafísica interpreta os fatos e a liber-
dade como se fossem a linguagem de um ser absoluto.
Essa interpretação não constitui simples elaboração racional — por-
que, se assim fosse, não passaria de jogo vazio — mas iluminação de expe-
riências primárias através da imagem e da ideia. Quando contemplamos
aquilo que não tem vida, o mundo cósmico, a paisagem, vivenciamos al-
guma coisa que chamamos psique, ou alma; diante do que tem vida, cami-
nhamos da apreensão das. conexões finais à visão indeterminada de uma
vida que tudo, abrange e que, na sequência de suas configurações, se rea-
liza como significado insondável. Tal qual estamos diante da natureza, as-,
sim estamos diante do homem em sua fatualidade e sua liberdade. O do-
ente mental não é, para nós, simples realidade empírica; mas, sim, como
tudo mais quanto é real, ele se vem a fazer significativo, embora sem pos-
sibilidade de verificação, nessa contemplação metafísica. Não é, porém,
significativo apenas tal qual árvore ou tigre, e sim de maneira única, por-
que é um ser humano. O que à ciência psicopatológica; esta esclarece os
fatos que iluminam a experiência metafísica: por exemplo, o fato de o que
é psicótico poder, por sua manifestação extrema, transformar-se em ima-
gem de toda a existência humana, de tal modo que realizações distorcidas
e invertidas de situações e elaborações existenciais pareçam ocorrer; ou o
fato de apresentar-se, nos homens que adoecem, certa profundidade que
não cabe, apenas, dentro da doença como objeto de investigação, empí-
rica, mas é parte desses homens em sua história individual; mais ainda, o
fato de surgir, na realidade psicótica, uma plenitude de conteúdos que re-
presentam o problema fundamental da filosofia: o nada, a total destruição,
a informidade, a morte. As possibilidades humanas extremas fazem-se,
então, reais, rompendo todos os limites da existência que se oculta, que se
aquieta, se configura e se isola. Ao filósofo que em nós existe mais não
resta do que fascinar-se, a vida inteira, com essa realidade; e perpétua, re-
novadamente, inquiri-la.
Digressão sobre a compreensão e a valoração. A tensão de toda com-
preensibilidade entre o verdadeiro e o falso, dentro da mente, entre o
evento empírico e a liberdade, dentro do que é existencial, entre o que des-
lumbra e o que apavora (entre o amor e a fúria divina), dentro do que é
metafísico, revela-se por um fenômeno básico que estamos sempre experi-
mentando, quando compreendemos; mesmo quando compreendemos psi-
cologicamente; de modo que, quando compreendemos, estamos valorando.
Em sua própria atuação compreensível, o homem realiza valorações e tudo
quanto é compreensível tem para nós colorido positiva ou negativamente
valioso; a valorabilidade é constitutiva de toda compreensibilidade. Pelo
contrário, o que é incompreensível em relação à atuação não é em si valo-
rado como meio e condição. Assim é que uma memória que adequada-
mente falha, através de supressão compreensível, nós a valoramos depre-
ciativamente; a memória fisiológica, no entanto, valoramos apenas como
instrumento.
Quem assume atitude científica tem de suspender as valorações, a fim
de reconhecer o que existe; o que não é possível, quando se compreende
no mesmo sentido em que na explicação causai. Exigência análoga existe
em relação ao nosso conhecimento quando se trata de compreender; exi-
gência que se preenche com a compreensão justa, multilateral, franca, que
tem consciência crítica de seus limites. O amor e o ódio daquele que valora
regulam a compreensão; suspensos que sejam, porém, chega-se à compre-
ensão clara, em proporção com o conhecimento.
Quando compreendemos um caso concreto, z aparência é de que valo-
ramos sem compreender cientificamente; isso é inevitável pelo fato de que
toda conexão compreensível em si é valorada negativa ou positivamente
por todos os homens, o que resulta da circunstância de aquilo que é valo-
rável residir naquilo que é compreensível. A compreensão correta é valora-
ção, do mesmo modo que a valoração correta se realiza ao mesmo tempo
que a compreensão. Daí residir, em toda compreensão, por um lado, uma
determinação, que pode não ser valorativa; por outro lado, um desafio,
que valora e, a seu turno, desperta valorações. Porque a compreensão cor-
reta é difícil e rara, também a valoração de outras criaturas é quase sem-
pre errada e dependente do acaso, bem como de impulsos extracognicio-
nais. Porque tem. prazer em ser valorado favoravelmente, o homem quase
sempre se sente corretamente compreendido quando dele se faz valoração
favorável. É por isto que o uso linguístico identifica compreensão e valora-
ção positiva. Aqueles que são valorados negativamente e, particularmente,
em situações nas quais seu valor negativo é manifesto, consideram-se difí-
ceis de compreender e quase sempre se julgam incompreendidos.
Certo é que existe a ideia de valoração objetiva, isto é, uma compreen-
são a que se associe, impositivamente, a valoração justa; a determinação
compreensiva consistiria em realizar uma valoração verdadeira coincidên-
cia, porém, que não passa de ideia. Uma valoração contraditória pode li-
gar-se à mesma compreensão (por exemplo, Nietzsche compreendeu sem-
pre Sócrates, mas nele viu o homem ora positiva, ora negativamente. O
compreensível, quanto mais plenamente se apreenda, é em si mesmo anti-
nómico, é ambíguo, dando origem a comportamento ambivalente, na me-
dida em que sequer eu o compreendo.

h) De que modo a compreensibilidade psicológica se move entre as obje-


tividades compreensíveis e o incompreensível.
Nos limites do que é psiquicamente compreensível, encontramos o que
não se compreende geneticamente, mas constitui requisito dessa compre-
ensão. Vamos resumir:
Quando descrevemos conexões geneticamente compreensíveis, sempre
existe:
1) um conteúdo de tipo mental pressuposto, que não é, ele próprio,
psicológico e que se pode compreender sem psicologia;
2) uma expressão percebida, que ilumina uma interioridade significa-
tiva;
3) uma vivência representada de imediato, que, fenomenologicamente,
é alguma coisa de derradeiro, irredutível e que só estatisticamente se pode
dadificar.
Não é possível compreensão psicológica sem que se pense em conteú-
dos (imagens, formas, símbolos, ideias); sem que se veja expressão, sem
que se covivenciem os fenômenos vivenciados. Todas estas esferas dos fa-
tos significativos objetivos e da vivência subjetiva constituem material da
compreensão. Só na medida em que são dados é que a compreensão se
pode realizar e é pela apreensão geneticamente compreensiva que, por seu
turno, se lhes estabelece a respectiva conexão.
Não só, entretanto, a compreensão psicológica se prende a estes acha-
dos objetivos e subjetivos. Inversamente, também:
1) quase não se pode falar nos conteúdos sem pensar na realidade psi-
cológica para a qual existem;
2) não se pode contemplar a expressão sem compreendê-la em seus
motivos;
3) fenomenologicamente, quase não se pode descrever coisa alguma
sem ver, de imediato, as conexões compreensíveis.
Na multiplicidade conjunta dos fatos; realiza-se a compreensão psico-
lógica, esbarrando, por outro lado, no incompreensível, o qual reside: a) ou
nos mecanismos extraconscientes, que o corpo transporta: na compreen-
são, tem-se de pensar, inevitavelmente, nos mecanismos extraconscientes,
se se quiser fazer investigação causai; e, vice-versa, não se pode falar em
mecanismos extraconscientes sem pressupor o que é compreensível e o
que é compreendido, ambos impondo, nos limites respectivos, a elabora-
ção desses mecanismos; b) ou é na existência que reside o incompreensí-
vel: pela compreensão, toca-se na fonte da liberdade, a fim de apreender
as possibilidades da existência mediante a iluminação e a fim de recordar
ao homem sua própria condição; de fato, sem existência, o compreensível
seria instável, impessoal, nulo e ineficaz. Inversamente, a existência só
pode aparecer e realizar-se pela revelação mediante o compreensível.
O procedimento do psicólogo compreensivo é o seguinte: partindo de
intuição compreensiva total, esta se decompõe; esclarecem-se, sucessiva-
mente, de um lado, expressão, conteúdos, fenômenos; doutro lado, meca-
nismos extraconscientes; e percebe-se a possibilidade da existência como
base suscetível de investigação empírica. Por fim, apartir dessa distribui-
ção dos fatos e espaços significativos, se reedifica e se enriquece a compre-
ensão da conexão. Em relação ao caso concreto, inquire-se o resultado
momentaneamente obtido, repete-se o procedimento e aprofunda-se a in-
vestigação com a coleção de dados objetivos, no jogo de novas maneiras de
ver e com mais outra análise.
O objeto da psicologia compreensiva está, por assim dizer, a meio-ca-
minho de todos os fatos objetivos, fenômenos vivenciados, mecanismos ex-
traconscientes implicados, por um lado, e da existência livre, por outro
lado. Poder-se-ia negar o objeto da psicologia compreensiva e afirmar que,
para a investigação empírica, só há aqueles fenômenos, conteúdos, fatos
expressivos, mecanismos extraconscientes, ao passo que, para a filosofia,
haveria a existência possível. Mas tente-se trabalhar com esses campos
separados: quase toda a visão e pensamento psicológicos desaparecerão e
também, inversamente, quase será impossível falar nesses fatos e nessas
bases existenciais sem interferência, novamente, da psicologia genetica-
mente compreensiva. O certo, no entanto, é que a psicologia compreensiva
sempre se encontra no limite desses dois reinos, ou seja, jamais se pode
falar, “puramente”, em psicologia compreensiva, visto que ela sempre se
relaciona com as referidas esferas, além da impossibilidade de falar nelas,
quando delas se cuida, de maneira absolutamente à parte.
Por conseguinte, a psicologia compreensiva não pode, em tempo al-
gum, fechar-se em si mesma, mas constituir ou psicologia empírica para
apreensão de fenômenos, expressões, conteúdos, mecanismos extracons-
cientes, ou iluminação filosófica da existência.
Na psicopatologia, contudo, a psicologia compreensiva só tem sentido
se se fizer empiricamente visível, se se apoiar em observações. Onde com-
preendo, tenho de inquirir: que fatos vejo eu, que posso eu indicar? Onde
é que esbarro no incompreensível? A condição intermediária da psicologia
compreensiva precisa preencher-se, constantemente, com objetividades,
de um lado, e com incompreensibilidades, de outro.
Essa intermediariedade esclarece a velha indagação do que é a alma,
propriamente, entre espírito e corpo. Vemos o espírito como sendo os con-
teúdos com que a alma se relaciona e que a movimentam, enquanto ve-
mos o corpo como sendo a respectiva existência. Ao que parece, nunca
apreendemos a própria alma, mas ou a investigamos com corporeidade,
ou a compreendemos em seus conteúdos. Não se esgota jamais, porém, a
corporeidade com as gradações da corporeidade que se pode investigar bi-
ologicamente; pelo contrário, ela eleva-se à corporeidade animada dos fe-
nômenos expressivos, de modo que todo verdadeiro espírito é da mesma
natureza que a alma, a ela se liga, por ela é levado.
Se, entretanto, só encontrarmos e só pensarmos na própria alma atra-
vés da expressão corpórea, se a vida da alma se apreende, exatamente,
nessa expressão corpórea; se só aí estão a unidade, nesse caso, estaremos
limitando, erradamente, nossa apreensão da realidade, pois que a expres-
são se prova, apenas, como dimensão do fenômeno que a alma é; não se
encerra em si mesma, mas é compreensível, unicamente, na conexão da-
quilo que não se transforma em expressão.
A alma — ou a psique — é a correlação em que se pensa objetivamente
de referência ao método da compreensão. Quando parece refluir, apreen-
demos, em seu lugar, primeiros planos (fenômenos, expressões, conteú-
dos) e condições (corpo e existência). O que, na psicologia compreensiva,
reconhecemos é o elo que prende tudo quanto se pode compreender àquilo
relacionado com o que é impossível compreender.
Da intermediariedade da psique resulta ser a compreensão genética in-
capaz de fechar-se e concluir-se, em pretensa certeza, na totalidade. Cada
compreensão é modo de apreensão, esclarecimento da realidade humana,
e não método que faça acessível o homem em si e no todo. Daí estar sem-
pre em aberto a psicologia compreensiva.

i) Tarefas da psicopatologia compreensiva.


A psicologia compreensiva tem duas tarefas. De um lado, visa a esten-
der nossa compreensão a conexões desusadas, remotas para nós e, à pri-
meira vista, talvez intangíveis (por exemplo, perversões sexuais, crueldade
instintiva etc.). Doutro lado, pretende reconhecer as conexões (que, em si,
são universalmente as mesmas) presentes nos estados psíquicos condicio-
nados por mecanismos anormais (quais sejam, as reações histéricas). No
primeiro caso, trata-se de compreender alguma coisa que, no próprio
campo do compreensível, se valora como sendo estranho, por ser patoló-
gico, ou por ser fora do comum; o que se enfatiza são as compreensibilida-
des especiais. No segundo caso, trata-se de reconhecer realizações anor-
mais de conexões que, por si, em sua maior, parte, são compreensíveis,
não desusadas; a ênfase está nos mecanismos extraconscientes anormais.
Tem-se- lhes acesso pela via, apenas, da compreensão.
A isso dedicam-se dois capítulos. Um diz respeito a o que das conexões
compreensíveis e ocupa-se com as conexões compreensíveis como tais: a
anormalidade está na própria compreensibilidade. Outro capítulo trata do
como das conexões compreensíveis, da respectiva realização em mecanis-
mos extraconscientes: a anormalidade reside em mecanismos anormais,
representam o incompreensível que constitui a base do. fenômeno especial
e o efeito daquilo que se compreende.
Seguem-se outros capítulos, ocupando-nos, separadamente, com duas
qualidades básicas do que é compreensível:
1) O que é compreensível compreende-se a si mesmo, move-se na au-
torreflexão, de modo especial, na atitude que o doente assume em relação
a sua enfermidade. Tudo quanto é compreensível é coerente em cada indi-
víduo.
2) O todo das conexões compreensíveis em concreto chamamos perso-
nalidade ou caráter; será o tema do último capítulo.
Mais uma vez repetimos, relativamente ao significado de todas as dis-
cussões atinentes ao compreensível: na psicologia compreensiva, mesmo
havendo a máxima evidência das conexões compreensíveis, a aplicação
destas ao caso individual nunca leva por dedução a resultados provados, e
sim, apenas prováveis. A psicologia compreensiva não é de aplicar-se, me-
canicamente, a partir de conhecimentos gerais, mas sempre exige intuição
pessoal nova. “A interpretação é ciência só em princípio; na aplicação, é
arte” (Bleuler).
2.1.
CONEXÕES COMPREENSÍVEIS

§ 1. As Fontes De Nossa Capacidade De Compreender E


A Tarefa Da Psicopatologia Compreensiva.

Todos nós conhecemos uma quantidade de conexões do psiquismo,


que a experiência nos ensinou (não só pela repetição frequente, mas tam-
bém pela compreensibilidade de um caso real individual que nos chamou
a atenção). Com elas operamos quando analisamos personalidades psico-
páticas e aqueles psicóticos que sempre estão exigindo “explicação psicoló-
gica” parcial. Quanto mais ricos somos em conhecimentos que permitam
compreender, mais fina e corretamente podemos fazer essas análises, no
caso individual, com “explicação psicológica”. Em parte alguma, nem na
psicologia normal, nem na psicopatologia, se tem elaborado, conexa e sis-
tematicamente, ou por ser impossível, ou por ser demasiado difícil, esta
psicologia compreensiva. A formulação das conexões compreensíveis que
todos conhecemos e que a linguagem a todo momento representa leva a
trivialidades. O que se pode compreender tangivelmente costuma ter
forma concreta, mas se perde com a sistematização. Apesar disso, é ao sa-
ber sistemático que a ciência nos leva e, se é absurdo sistematizar as coi-
sas compreensíveis, pelo menos podemos tentar ordenar metodicamente,
em torno dos princípios da compreensão, os conteúdos do que é compre-
ensível. Antes, todavia, recordemos onde é que conseguimos, a bem dizer,
adquirir riqueza, mobilidade e profundidade para nossa compreensão.
Todo pesquisador tem de saber, de acordo com seu nível humano, o
que e como pode compreender. Os feitos criativos da compreensão foram
realizados, nos mitos e na compreensão dos mitos, pelos grandes poetas e
artistas. É só pelo estudo incessante, durante a vida inteira, de Shakespe-
are, Goethe, dos trágicos antigos e também dos autores modernos — Dos-
todevski, Balzac e outros — que se logra a visão íntima, o exercício da fan-
tasia compreensiva, a posse de imagens e formas com que se pode levar a
compreensão concretamente presente. Esses conteúdos tornam-se consci-
entes pela reflexão, na totalidade das ciências humanísticas. A clareza
com que o pesquisador percebe, aqui, os traços fundamentais fornece-lhe
o padrão exato para sua compreensão, bem como a moldura do possível.
Onde procuro a fonte de minha compreensão, onde experimento confirma-
ção, onde indago — eis o que condiciona a maneira por que pesquiso, na
minha qualidade de psicólogo compreensivo. Daí se decide se permaneço
preso a simplificações banais, a esquematismos racionais, ou se ganho a
apreensão do homem em suas manifestações mais importantes. Pode-se
dizer, ao pesquisador compreensivo: Dize-me onde vais buscar tua psico-
logia e te direi quem és. Só o trato dos grandes poetas e da realidade dos
grandes homens é que cria os horizontes em que também o que há de
mais importante e de mais mediano se faz interessante e essencial. Con-
forme nos orientemos pelo costumeiro ou pelo extraordinário, pelo puro e
acabado, decidiremos que nível alcançará aquele que compreende e aquilo
que, a cada momento, é compreendido.
Há, no entanto, além desse mundo de formas que é o mundo do que se
compreende, mundo mítico e poético, uma intensidade de esforços men-
tais no sentido da compreensão, que sedimenta em determinados escritos,
baseados na filosofia antiga: Platão e Aristóteles; mais tarde, os estoicos.
Mas foi Santo Agostinho quem, primeiro, elaborou o mundo inteiro da
compreensão psicológica ocidental. Ulteriormente, muitas tentativas vie-
ram assumir forma aforística; a destacar entre os franceses, Montaigne,
La Bruyère, La Rochefoucauld, Vauvenargues, Chamfort e, sobretudo,
Pascal. Sistemática, só a obra de Hegel, Fenomenologia do Espírito; abso-
lutamente únicos e os maiores de todos os psicólogos compreensivos são
Kieerkegaard e Nietzsche.
A toda compreensão subjazem projetos da existência humana, ha-
vendo, no background, consciência mais ou menos clara do que é e pode
ser próprio ao homem; projetos estes que o psicopatologista terá presen-
tes, mas nenhum dos quais poderá, como pesquisador, considerar verda-
deiro; antes comprovará cada um deles no sentido de saber o que pode,
desta forma, aprender a ver concretamente; e de que modo alargar suas
possibilidades experimentais.
Não cabe à psicopatologia desenvolver e representar as conexões com-
preensíveis em sua totalidade através dos respectivos conteúdos. A com-
preensibilidade é infindável. Quem a capta e nesse terreno se movimenta,
dentro da reciprocidade de efeitos das grandes tradições e da própria expe-
riência vital, não se deixa enredar em esquematismos simples ou comple-
xos. O problema que a psicopatologia tem de resolver é realizar a compre-
ensibilidade mediante os mecanismos extraconscientes específicos, nor-
mais e anormais.
Há, no entanto, do lado da psicopatologia, uma tarefa autônoma, que
consiste em representar, penetrantemente, conexões compreensíveis anor-
mais e mais raras através de casos individuais concretos; tarefa que inde-
pende de conhecimentos causais e relacionados com as ciências naturais.
Não é frequente assumir-se esta tarefa; e mais raro ainda é empreendê-la
de maneira acurada e percuciente. A inclinação a considerar únicos os co-
nhecimentos causais e. aqueles que derivam das ciências naturais nunca
permitiu formar consciência clara da autonomia dessa investigação; mais:
falseou, tanto pela interferência da “explicação psicológica”, a investigação
objetiva quanto, por força de construções teóricas no sentido das ciências
naturais, a compreensão pura. No terreno das anormalidades sexuais,
muita contribuição valiosa tem havido, dentro da esfera pericial de casos
criminais individuais, bem como da boa casuística psiquiátrica. Assim,
pois, se cabe à psiquiatria especial, pela psicopatologia, formar a consciên-
cia de conexões compreensíveis especiais, quando se descrevem psicopa-
tias (por exemplo, no caso da vida impulsiva, na vivência valorativa, no
comportamento)., não se há de perder de vista, todavia, que existem cone-
xões compreensíveis comuns individuais, que mais frequente- mente se
notam e servem de instrumento para a compreensão prática de todos os
dias.
Quanto aos exemplos das conexões compreensíveis. Do mundo infinito
da compreensibilidade temos a apontar, expressamente, algumas possibi-
lidades, apenas, no presente capítulo. Certas formas fundamentais de
compreender têm-se tornado costumeiras, sem plano, nem deliberação,
nos últimos decênios. Não foi, premeditadamente, por gosto ou prazer
nosso que, acima, extraímos conexões compreensíveis de uma rica litera-
tura; e sim, quisemos, dentro da psicopatologia, tornar metodicamente
conscientes aqueles pontos de vista a que têm aderido, no presente e. de
modo geral, psiquiatras e psicoterapeutas. Estes pontos de vista, que são
próprios da nossa época, mostram os caminhos que, atualmente, segue -a
compreensão. Talvez não tenham validade universal e perpétua, mas são
peculiares ao mundo em que vivemos. Toda compreensão tanto pressupõe
quanto desenvolve uma imagem do homem em seu mundo; assim tam-
bém se passa com esta compreensão atual. A mim parecem básicos, entre
os pressupostos do quadro atual a que me refiro: o empobrecimento de
possibilidades interiores, essenciais, em comparação com os velhos tem-
pos; o propósito de corrigir essa pobreza pela aquisição da antiga tradição;
o conheci- mento de conflitos radicais; a fraqueza das atitudes básicas; a
descrença e, a seguir, a tendência a acreditar em sistemas e doutrinas cu-
rativos violentamente conceituados.
Nos parágrafos que se seguem, expomos os pontos de vista que, hoje,
vigoram; mas o fundamento subsiste de que: Para nossa compreensão
prática, temos de conquistar o background daquela grande tradição histó-
rica da compreensão; não nos é possível esquecer essa origem, nem esse
padrão, quando permitimos que se acumulem no primeiro plano de nossa
consciência a experimentação contemporânea.
Damos exemplo de conexões compreensíveis segundo três rumos: Pri-
meiro, consideramos conteúdos compreensíveis: os impulsos são, no su-
jeito, a fonte do movimento, o qual se realiza na relação do indivíduo com
o mundo', e se compreende, no existir, por símbolos (falamos em psicolo-
gia dos impulsos, psicologia da realidade, psicologia dos símbolos). Se-
gundo, consideramos formas básicas da compreensibilidade. A forma do
movimento é a oposição, com a respectiva tensão, mutação, reconciliação,
decisão; o movimento ocorre em círculos (falamos em psicologia dos con-
trastes e psicologia do círculo). Terceiro, consideramos um fenômeno que é
básico a toda compreensibilidade na autorreflexão (falamos em psicologia
da reflexão).
Estes três rumos que a compreensão segue (conteúdo, formas, autor-
reflexão) vêm a coincidir num todo conexo da compreensibilidade. Não há
uma série de diversidades simultâneas que se excluam umas as outras, e
sim o todo se ilumina através de cada um dos pontos de vista. Daí sermos
obrigados, quando compreendemos por um ponto de vista, a ter em vista,
complementarmente, também os demais.

§ 2. Conexões Compreensíveis Do Conteúdo

a) Os impulsos, seu desenvolvimento e transformação psíquicos.


Toda vivência encerra em si um impulso. Em tudo quanto fazemos e
sofremos, que produzimos com ardor e gozamos permanentemente, que
repelimos com aversão, há alguma coisa impulsiva, quer quando procura-
mos, apreendemos, retemos e afirmamos, quer quando fugimos, evitamos,
esquivamos e destruímos.
1. Conceito de impulso.
O que é impulso conceitua-se de maneira variada: impulsos são instin-
tos vivenciados, isto é, funções que se realizam a partir de ímpetos mo-
mentâneos, sem que se tenha consciência de conteúdo, nem de objetivo do
ocorrido, de modo, no entanto, que certo acontecimento complexo e fina-
lístico alcance seu objetivo em consequência de movimentos impulsivos.
Impulsos são necessidades corpóreas, como a fome, a sede, o sono; quer
dizer, impulsões que, por certos meios, alcançam, imediatamente, seu ob-
jetivo. — Os impulsos consistem num configurar criativo', por exemplo,
nos movimentos do corpo, nos quais este desenvolve e manifesta sua es-
sência, a exprime e representa (impulso a exprimir-se, a representar); ou
nas obras intencionais (impulso a conhecer, ou a criar). — Impulsos são
forças que impelem a atuar, isto é, forças que têm consciência do fim a
que visam e que intencionalmente o alcançam, graças a certos meios, na
proporção daqueles.
Tal diferenciação que se nota na impulsão por si unitária representa
sempre tentativa de interpretação, cabendo, a esta altura, indagar em que
ponto de vista se apoia semelhante interpretação: assim é que distingui-
mos também, conforme se trate de fins objetivamente alcançados (instin-
tos), necessidade corpóreas (impulsos), configuramentos (impulso criador),
representações, ou objetivos e fins subjetivamente pretendidos (impulso à
ação). O sentido desta classificação é relativo. No “impulso sexual”, por
exemplo, tudo existe: um instinto que se manifesta em funções inatas
para realização do acasalamento, mesmo sem conhecimento; uma neces-
sidade corpórea no chamado desejo de contração e depleção; um configu-
rar criativo no erotismo; um impulso à ação pela realização de ideias a que
o erotismo deu origem.
Outro ponto de visa que leva a discriminação, dentro da impulsão,
consiste em indagar se o motivo do impulso é a obtenção de prazer (e pra-
zer sempre, afinal, como prazer corpóreo), ou se o conteúdo é que é o fim,
para cuja obtenção se aceitam dissabores, dores e sofrimentos; ou ainda
se mesmo a obtenção de desprazer pode motivar o impulso. O prazer é ex-
pressão das funções vitais ordenadas, harmoniosas, do bem-estar e da re-
alização, do deleita- mento; o prazer está no equilíbrio, na boa disposição.
Pelo contrário, os impulsos, de modo geral, não visam, em absoluto, a este
prazer, mas se acham além do prazer e do desprazer. O que neles há de
específico é indescritível, só se podendo contornar pela discriminação dos
vários aspectos.
Outros pontos de vista pelos quais distinguir são os aspectos ulterio-
res, que, a seguir, discutiremos, da compreensibilidade. Por exemplo: a re-
lação individual com o mundo: atribuem-se os impulsos à desvalia origi-
nária da existência e, sobretudo, do homem no mundo: para conservar-se,
ele tem a aspiração ao poder e à afirmação, a fim de conservar a espécie:
atribuem-se todos os impulsos a esse impulso primário, interpretam-se as
mais elevadas aspirações como meios e desvios com que alcançar esses
objetivos elementares. — Os símbolos como conteúdos daquilo que é com-
preensível: interpretam-se os símbolos como meio, como linguagem, como
ilusão no processo da realização impulsiva. — Quanto ao dialeticismo ori-
undo da tensão do movimento psíquico: contempla-se o conflito que re-
sulta da resistência a um impulso, indaga-se o que é, propriamente, resis-
tente e resistido e atenta-se para a irresistibilidade, que pode chegar a ser
insuperável; mas só é momentânea, nunca absoluta.
Sejam quais forem, entretanto, as discriminações que se façam, há, em
toda impulsão humana, alguma coisa que é dada originalmente; que,
como tal, não se pode compreender e de que partirá toda compreensão; ao
mesmo tempo, contudo, há um impulso psíquico que leva a clarificação
mediante conteúdos. Na compreensão dos impulsos e do respectivo desen-
volvimento, encontra-se o esclarecimento daquilo que, em si, constitui
processo de auto- iluminação permanente.
2. Classificação dos impulsos.
Os conteúdos dos impulsos são tão variados quanto a própria vida.
Sempre existe no impulso- uma coação; donde movimento, que é movido,
a bem dizer, pela força propulsiva de algo que se vivencia (segundo Klages:
imagens); algo que se sente na coação mesma, sem representação nem
pensamento. Daí se distinguirem, os impulsos conforme seus conteúdos; e
daí a ser-lhes a enumeração tão infinita quanto a dos conteúdos dos senti-
mentos. O que importa é poderem as tentativas de classificação atingir os
traços básicos dos impulsos. Têm-se organizado múltiplos “quadros dos
impulsos”, todas variando umas das outras.
Podem-se adotar os seguintes pontos de vista para a distinção em dois
polos: aos impulsos que resultam do excesso de energia opõem-se aqueles
que provém da vacuidade; à necessidade de descarga, a necessidade de re-
pleção. — Há impulsos que a qualquer tempo se podem despertar, como
os há que, por sua essência, são periódicos, que se satisfazem e nova-
mente despertam. — Certos impulsos representam necessidade perma-
nente, que precisam ser repetidamente satisfeitas; que são incapazes de
desenvolvimento ulterior; que têm de satisfazer-se completamente, mesmo
que só por forma momentânea; e impulsos há que, de cada vez que se sa-
tisfazem, se transformam, se exaltam, se desenvolvem, nunca se satisfa-
zem inteiramente; nos quais, com a saciedade, a fome aumenta em lugar
de diminuir.
Freud distingue como sendo para ele o mais profundo contraste: o im-
pulso da vida e o impulso da morte. O impulso da morte é destrutivo, diri-
gido tanto para fora (impulso agressivo) quanto para si mesmo; é a impul-
são ao regresso, ao inorgânico. Até o impulso a alimentar-se — porque se
destrói o que se come — tem um aspecto pelo qual se aproxima do im-
pulso a destruir. — O impulso da vida (Eros) distingue-se em impulso do
ego e impulso sexual. O impulso do ego compreende o impulso da auto-
conservação (alimentação, apossamento, aquisição, defesa, gregarismo) e o
impulso da automanifestação (poder e prestígio, saber e criatividade). O
impulso sexual inclui uma aspiração de conservação da espécie, o cuidado
com a prole.
A classificação que se segue considera três níveis de impulsos:
Primeiro grupo. Impulsos somático-sensoriais. Impulso sexual, fome,
sede. — Sono, movimento — Prazer de sugar, em tomar alimento, prazer
de depleção anal e uretral.
A polaridade básica, neste grupo, é representada pela necessidade e
pela satisfação. Todos têm correlato somático. Estes. impulsos são, ape-
nas, positivos, sem impulso contrastante positivo. Negativos, a este nível,
são, unicamente, o nojo ou, mais fraco, o tédio.
Segundo grupo. Impulsos vitais. Relacionam-se, sem localização somá-
tica determinada, com a existência em seu todo. São:
• Impulsos vitais existenciais: Vontade de poder. — Vontade de
submeter-se. Impulso à autoafirmação — Impulso à renúncia.
Vontade própria — Impulso associativo (instinto gregário). Cora-
gem-Temor (furor agressivo — ânsia de socorro pela fuga). Amor
— Ódio. Organizam-se estes impulsos em pares opostos; a cada
impulso- corresponde um contraimpulso. A significação objetiva
que em todos se nota parece ser a conservação da vida e a inten-
sificação- da vida; de tal modo, porém, que isso se passa numa
luta que possibilita, exatamente, o contrário; aniquilamento da
vida do outra como de si mesmo; marginalmente, talvez a aspira-
ção ao aniquilamento universal. Não é raro a polaridade de im-
pulso e contraimpulso levar ao dialeticismo espantoso da conver-
são de um no outro.
• Impulsos psíquicos — vitais. Curiosidade, proteção parental; im-
pulso ambulatório; aspiração ao repouso e à comodidade; von-
tade de posse. Definem-se estes impulsos de acordo com conteú-
dos especiais, momentâneos.
• Impulsos vitais criativos. Impulso a exprimir-se; a demonstrar-se;
a produzir ferramentas, a trabalhar, a criar.
Terceiro grupo. Impulsos intelectuais. Impulsos a aprender e dar-se a
uma- existência que se manifesta em valores sentidos como absoluta-
mente válidos, sejam religiosos, éticos, filosóficos ou estéticos. Compete à
filosofia investigar as áreas de valores e esclarecer-lhes a validade inde-
pendentemente de vivências psicológicas subjetivas. O fato psicológico
existe de uma vivência eminentemente variada e rica, original, qualitativa-
mente peculiar, em relação aos dois grupos acima descritos; vivência que
reside na dedicação a esses valores e que consiste em ânsia impulsiva,
quando tais valores faltam; em felicidade impossível de comparar a qual-
quer outro prazer, quando são plenos. É decisivo, para fazermos ideia de
um homem, ver o modo por que todos estes impulsos se manifestam na
respectiva existência; ou por que retrogradam quase até o desapareci-
mento, sem jamais, no entanto, faltar de todo num ser humano.
Comum aos impulsos do terceiro grupo é uma aspiração à eternidade;
não em termos de duração temporal, e sim sob o aspecto de configura-
mento no tempo que leva a participação numa existência transtemporal.
Com esta classificação, separa-se alguma coisa cujo significado é tão
diverso que se hesita antes de aludir, em qualquer dos casos, a impulsos;
apesar do que, cada um dos grupos separa o que, na realidade, está
unido. A considerar a classificação acima como se fosse hierarquia dos im-
pulsos, cada um deles pode realizar-se sem aquele que se lhe segue, mas
nenhum se realizará sem aquele que o precede. Ê próprio do homem o fato
de sua vida instintiva conjunta ser impregnada dos impulsos apontados
no último grupo; de nada poder mais identificar-se, simplesmente, com o
animal, de coisa alguma, poder realizar-se de modo desinteressado (dizia
Aristóteles que o homem só pode ser mais ou menos do que um animal).
Inversamente, entretanto, também não é o homem capaz, por assim dizer,
de subordinar-se a impulsos puramente espirituais, porque sempre está
presente um matiz dos impulsos somático-senso- riais. Concluir daí que
os impulsos superiores mais não são do que os inferiores veladamente
manifestos é erro. Envolver-se não significa provir. Por exemplo, a univer-
salidade dos efeitos do impulso sexual não quer dizer seja este sempre a
força que determina, nem sequer a força única que governa a alma. Se,
mais moderadamente, se suscitar a tese segundo a qual a mente é impo-
tente, toda energia provém dos estratos inferiores, ou, em outras palavras:
nossas vivências mais profundas, nossos impulsos mais fortes se originam
nos mais baixos estratos da existência, esta tese de Schiller (são a fome e
o amor-sexus — que conservam o mundo humano; portanto, só as ideias
que conquistam os impulsos naturais é que se podem realizar) não é uní-
voca. Talvez seja válida relativamente aos eventos históricos maciços, mas
não se comprova de referência a todas as épocas. Compreende-se, assim,
o fato comum de se alegarem motivos espirituais, ou éticos, a ponto
mesmo de ocuparem o primeiro plano da consciência, quando, na reali-
dade, são apenas impulsos sensoriais e vitais que predominam. Não se ex-
clui daí, porém, a possibilidade de os impulsos inferiores serem domina-
dos por impulsos primariamente espirituais; e de serem usados como ins-
trumentos e empregados como fontes de energia. Não se duvide da prima-
riedade de todos os momentos em que nossos impulsos se desenvolve. To-
davia, a respectiva atuação conjunta e a respectiva colisão constituem pro-
blema básico da existência humana. Quem tiver em vista esta situação
não acreditará em classificação definitiva e unívoca dos impulsos que ve-
nha a formar hierarquia única.
3. Impulsões anormais.
As impulsões anormais são inúmeras. Por exemplo, conhecem-se as
perversões do gosto — a chamada "“pica” — das grávidas e das histéricas,
que sentem necessidade de comer areia ou vinagre etc. Mais: a fome insa-
ciável; a sede, que pode constituir impulso anormalmente aumentado e
transformar-se em vício. A necessidade de emoções a qualquer preço, de
movimentos expressivos ou de gestos em excesso; a necessidade do ócio,
as impulsões inúmeras, como a perambulação, a bebida etc. — tudo isso
exige análise especial, que cabe à psiquiatria especial. Tema capital consti-
tuem os rumos impulsivos perversos, sexuais e outros quase sempre rela-
cionados com o tipo de sexualidade. Há, por exemplo, a necessidade da
dor, do prazer na dor, sofrida ou infligida. O impulso à crueldade é tão co-
mum que se poderia considerá-lo normal, tal qual pensava Nietzsche, que
via nas orgias da crueldade um fator básico do evento humano. Relaciona-
dos com a sexualidade, chamam-se esses impulsos sadismo (infligir dores
a outra pessoa), ou masoquismo (padecer dores), conforme a luxúria de-
penda do sofrimento imposto ou padecido. A frieza sexual, no entanto,
também se vincula ao impulso à crueldade, à ânsia de poder que se mani-
festa como prazer em infligir sofrimento. As atitudes moralizantes para
com os demais é, muito frequentemente, forma da vontade de dominar e
torturar (Nietzsche notou que gerecht (= justo) soa quase igual a gerãcht (=
torturado, vingado). É de espantar a amplitude com que a disposição espe-
cífica de certas constituições impulsivas anormais — o ódio apaixonado, a
luxúria sádica, a frieza sexual cruel, a ânsia de dominar no amor etc. —
envolve alguns homens importantes da história da cultura. E é importante
reconhecer a multiplicidade de modos por que, evidentemente, essas cons-
tituições impulsivas anormais se têm apresentado, se se quiserem com-
preender certos movimentos espirituais, quais sejam, a associação do as-
cetismo, da ânsia de dominação e da crueldade (sobretudo na Idade Mé-
dia); e quase todos os fanatismos. A história põe em tudo isso um véu,
nada diz, nada transmite e só pela materialidade das experiências acessí-
veis ao médico é que, muitas vezes, se consegue percebê-lo plenamente, de
quando em quando, de um momento para outro, através de documentos e
depoimentos conservados ao acaso. Mas é também de modo compreensivo
que se há de considerar o efeito das constituições impulsivas sadias; como
se há de notar a atmosfera pura de todas as paixões, isenta de perversões
e conversões desta ordem, em todos os tipos de espiritualidade. A impres-
são é de que só raramente se constata a sanidade.
Pode-se ver com que força as inversões impulsivas atuam sobre a vida
inteira de um homem; a compreensão é sempre, no entanto, ambígua: é
situação particular, constituindo disposição anormal, que origina modifi-
cação caracterial; ou é um caráter anormal que condiciona a possibilidade
dessas manifestações impulsivas anormais? Uma coisa e outra afiguram-
se à nossa compreensão ser o caso. Em personalidades eminentes, certa
disposição impulsiva anormal pode ser equilibrada por qualidades huma-
nas que a tornam sem efeito (tal qual o caso de Wilbelm von Humboldt).
Noutras, temos a impressão de que a impulsividade anormal conserva sua
força e talvez se origine na personalidade que, por este motivo, se lhe
abandona sem resistência. Daí surgirem consequências ruinosas (tanto no
que respeita à impulsão quanto no que se relaciona com a personalidade),
de modo que se faz impossível edificar uma existência com outros seres
humanos. Ou há os muitos graus intermediários em que o homem, por
força da conversão dos impulsos, se vê em luta incessante consigo mesmo,
atormentado por conflito existencial insuperável. À derradeira, é decisiva a
personalidade na igual a anormalidade se absorve e da qual se origina,
quer esta se evapore, por assim dizer, na pura etereidade daquela, quer a
anormalidade marque, decisivamente, a personalidade.
É assim que classificamos as maneiras pelas quais compreendemos os
impulsos anormais:
aa) Desintegração dos níveis impulsivos superiores. — Basta desapare-
cerem os níveis superiores para que os inferiores produzam efeito desini-
bido e para que se exaltem, em sua importância para a vida psíquica total.
É o caso da voracidade dos dementes. — O fato caracterológico é â devas-
tação da psique.
bb) Dissociação ou cisão dos níveis impulsivos entre si. — Fragmentam-
se os níveis impulsivos, em lugar de apoiarem-se uns aos outros, de se li-
mitarem entre si, de permanecerem ligados sem fronteiras nítidas, na uni-
dade de um todo. Cada um realiza-se por si, excluindo os demais; os sen-
soriais, de modo puramente ideal. É desta ordem a voracidade de certos
neuróticos. Desastrosa é a dissociação da sexualidade, o isolamento desse
impulso sensual, que lhe despoja a forma por que se manifesta de qual-
quer conexão com o psiquismo. Heyer fala no indivíduo “que desaprendeu
a doação amorosa a Eros, rebaixando-se à satisfação desencantada do
sexo”. Se, de um lado, todos os impulsos naturais têm uma espirituali-
dade que os anima, o impulso isolado ou dissociado caracteriza-se pela
pujança e pelo despojamento espiritual. — O efeito caracterológico é a in-
diferença, a frieza moral, a maldade.
cc) Inversão da relação entre os níveis impulsivos inferiores e superiores.
— Os impulsos dos níveis inferiores preenchem-se, da maneira que lhes é
própria, mediante a possibilidade franca com que se unificam primária e
inseparavelmente; por exemplo, o impulso sexual do amor. Este aparece
no impulso sexual como sendo um de suas formas. Pelo contrário, os ní-
veis inferiores podem realizar-se ao revés, assumindo a forma dos níveis
superiores, através da perversão, de modo que aquilo que se afigura supe-
rior não o é, apenas representando máscara; é o que se dá quando os sen-
timentos religiosos servem à satisfação sensual; ou quando a dedicação a
Deus se vivência como se fosse prazer carnal.
Se chamarmos a máscara que provém dos níveis superiores “símbolo”
e dissermos que nesses símbolos se realiza o impulso sexual, não podere-
mos negar que exista semelhante satisfação simbólica; cuja realidade não
é, todavia, universal, e sim, como tal, representa sintoma de anormalidade
psíquica. O que há é inclusão imediata do impulso sensual na forma inte-
lectual (a qual, por assim dizer, nele se esvazia, por ele dominada), em vez
da sublimação na qual o impulso está presente, porém, transformado em
urna parte do todo. Essa inclusão inalterada da sensualidade desnatura a
mente, transforma-a em meio, em material que morreu, em disfarce e ilu-
são. — O efeito caracterológico é a mendacidade geral.
dd) Fixação do impulso. — As perversões originam-se do acaso de uma
vivência. Subsiste a satisfação sob a forma já vivenciada e ligada ao objeto;
o que não acontece, porém, apenas, pela compulsão da associação simul-
tânea com aquilo que se vivenciou porque, então, o fenômeno seria co-
mum à generalidade dos homens. O condicionamento é de todo diverso e
acredita-se tê-lo encontrado quando se admite uma “parada em grau in-
fantil” do psiquismo em geral.
Exemplos: Chama-se fetichismo a perversão na qual o objeto da atra-
ção e da satisfação sexuais são sapatos, peles, roupas íntimas, tranças
etc. Von Gebsattel acha que o sapato, para o fetichista, não é um objeto
como outro qualquer, e sim um ser vivo, a quem fala, que acaricia, tal qual
a menina acaricia a boneca. A formação do fetiche origina-se de uma
constituição autoerótica, correspondendo a certo estado que permaneceu
infantil. O fetichista que ama um sapato “é incapaz de fazer seu amor e
sua sexualidade ultrapassarem-no a ele próprio, de maneira que ambos se
realizem em consonância com processos realizativos simultâneos de um
“tu” existente. Criado na fuga da personalidade alheia e do sexo alheio, o
fetiche substitui tanto o “tu” alheio quanto a alheia corporeidade. O feti-
chista parou, em sua evolução, na relação amorosa materna (ou paterna),
não conseguindo ultrapassá-la”.
Os psicanalistas chamam infantilismo a importância que certos neuró-
ticos dão à observação da alimentação e da digestão; bem assim, a coprofi-
lia, mais os fenômenos de “erotismo anal”. É assim que compreendem o
asseio escrupuloso e a ânsia de ordem, além de outros traços caraterísti-
cos dos “eróticos anais”.
O efeito caracterológico das fixações está na falta de liberdade interior,
na inibição, na pobreza sentimental.
ee) Transformação dos impulsos em vícios. — Ainda não é vício a impul-
sividade. O vício, em confronto com o impulso, não só é mais forte pela im-
posição que exerce, mas se experimenta como se fosse estranho e compul-
sivo. O vício origina-se de certo estado intolerável e anormal que vãmente
se pensa em suprimir com a satisfação do desejo. Os impulsos podem
transformar-se em vícios. De que modo se forma o vício? Pode-se respon-
der: em primeiro lugar, há um conhecimento: a reflexão à sexualidade
pode criar o vício, ainda que o impulso não seja demasiado forte; em se-
gundo lugar, o vício forma-se através de fenômenos de abstinência resul-
tantes da administração casual de entorpecentes (em sentido estrito, cha-
mam-se vícios aqueles que se referem aos medicamentos entorpecentes).
Em terceiro lugar, na formação do vício interfere um sentimento de vacui-
dade especial, que vai aumentando: aqueles que, em virtude de fatores
constitucionais, a todo momento recai nesse estado entrega-se ao vício na
esperança de escape. É assim que, segundo Von Gebsattel, “qualquer
rumo que o interesse humano tome pode deformar-se no sentido do vício”,
desde que posto a serviço do impulso a preencher um vazio, seja trabalho,
mania de colecionar, ânsia de posse, aspiração de poder, sentimentalismo,
culto da beleza etc. Não se trata de„ edificar uma existência, e sim, ape-
nas, de repetir, viciosamente, a mesma coisa, porque a insatisfação só se
cobre momentaneamente, sem suprimir-se; mantém-se presente e exige
repetição, sem deliberação, nem continuidade crescente relativamente ao
conteúdo.
Todas as perversões são viciosas (Von Gebsattel), mais fortemente
compulsivas do que os impulsos normais. A inclinação pelos entorpecen-
tes é viciosa, resultando, então, a sensação de vacuidade, em toda a cria-
tura humana, do estado fisiológico que aparece quando cessa o efeito; por
exemplo, da morfina administrada para alívio de sofrimentos somáticos. É
necessário certo autodomínio para superar esse estado. Quando, porém, a
vacuidade total, baseada na disposição psíquica, é de todo precedente,
motivando a inclinação viciosa, uma coisa soma-se à outra: o estado fisio-
lógico e o impulso a suprimir o vazio com a embriaguez. Pode- se dizer que
todos os alcoolistas, morfinómanos etc., que são viciados, portam consigo
certa predisposição psíquica; donde um vício substituir-se a outro, sem,
no entanto, libertação em que se possa, confiar, porque impossível supri-
mir a base da inclinação.
4. Desenvolvimentos psíquicos a partir de transformações impulsivas.
Nem todos os impulsos resultam de pulsões básicas. Devemos, sim, dis-
tinguir os impulsos primários de disfarces, substitutivos, impulsões inau-
tênticas; a conexão compreensível que aqui se acha presente é a seguinte:
o perimundo real impede, muitas vezes, seja por que modo for, em todos
os homens, a satisfação dos impulsos. Visto que cada satisfação acarreta
algum prazer, cada obstáculo a que ela se produza acarreta desprazer. Se
a realidade nega a verdadeira satisfação, a psique busca maneiras, que
não percebe, de encontrar satisfação, mesmo que através de desvios; ma-
neiras que, entretanto, no momento em que esses fatos se passam, o su-
jeito sempre percebe, em princípio. Impossível que é a satisfação verda-
deira, o que se obtém é simples ilusão; daí o engano de inúmeras satisfa-
ções; daí a desonestidade inconsciente da natureza humana. Vamos enu-
merar alguns casos com que deparamos nesse inesgotável terreno:
aa) A primeira possibilidade é de a realidade estar, simplesmente, des-
ligada da consciência. Acredita-se naquilo que se quer seja verdade; o que
não se deseja é irreal; daí falsificarem-se quase todos os juízos humanos.
Há uma série de psicoses — as chamadas psicoses reativas — nas quais
se tem impressão de que, com a psicose, se consegue uma fuga da reali-
dade, esta tendo-se tornado insuportável para o indivíduo.
bb) Outra possibilidade é de que um impulso não satisfeito tome como
símbolo certo objeto estranho, obtendo satisfação diversa, fraca, embora,
mas suportável. Não é raro se tomarem como símbolos, por força de im-
pulsos não satisfeitos dos dois primeiros grupos apontados, certos objetos
do terceiro grupo. Os impulsos do terceiro grupo não se tornam, então,
autênticos, básicos, e sim apenas na aparência se vivenciam, o que se vê
não só através do modo vivencial diverso, subjetivo, mas também pela ex-
terioridade que consiste no fato de os indivíduos em causa perderem o en-
tusiasmo inautêntico por outros valores, assim que se lhes dá oportuni-
dade de satisfação real dos impulsos.
cc) Por fim, há um deslocamento, por essa via, das vivências valorati-
vas, uma falsificação das escalas de valores (Nietzsche), a fim de configu-
rar de maneira suportável a realidade daqueles que não vencem. Nietzsche
interpretou semelhante deslocamento de valores operado pelos indivíduos
pobres, fracos, impotentes, — que extraem, em sua fraqueza, certa força,
por exemplo, de juízos morais; com o que, suportam a existência — como
resultado do ressentimento contra os valores positivos de outros homens,
os ricos, os nobres, os fortes. Scheler analisou de maneira notável essa co-
nexão, ou seja, o deslocamento ilusório dos valores.
A inversão contrária ao ressentimento é a valoração da legitimidade. O
homem cuja vida é boa; que, nascido em situação favorável, subiu às ca-
madas sociais dirigentes, não se dispõe a considerar sua posição como
presente da sorte, e sim resultante de seu próprio valor, de seus méritos.
Sua situação de privilégio, ele não a vê como encargo, mas direito seu. Aos
menos favorecidos impõe, além do que já sofrem, todos os ônus; inferiores,
é justo oprimi-los. O que lhe serve ao orgulho é a valoração das riquezas,
do poder, do domínio, sinais da natureza nobre de seus portadores; e
mais: a valoração da saúde, da força, da arrogância espumante, que serão
valores absolutos. Cego à casualidade tanto de sua posição quanto às pos-
sibilidades radicais de perdê-la, esquiva-se ao que lhe é insuportável, ou
seja, à modéstia, à humildade, à consciência das realidades com que se
hão de comprar os privilégios; e busca fugir à ameaça da ruína e da
queda, bem como aos deveres da posição que ocupa; para isso, a legitimi-
dade de seus privilégios lhe serve de véu com que gozar, desonerado, seu
patrimônio. Assim é que tanto aos oprimidos quanto aos opressores se
abre a possibilidade da falsificação das escalas de valores em sentido reci-
procamente correspondente; da mesma forma, em ambas as situações, a
psique encontra possibilidade de adaptação à realidade, à verdade e à
franqueza.

b) O indivíduo no mundo.
É situação básica do homem estar no mundo como ente individual, fi-
nito; ser independente, sem deixar, no entanto, de ter possibilidades de
atividade, dentro de certo espaço mutável, limitado por fronteiras coerciti-
vas. Viver é enfrentar o mundo, que chamamos realidade; é lutar, atuar,
configurar; é esbarrar na realidade, é adaptar-se a ela, é apreendê-la e co-
nhecê-la.
1. O conceito de situação.
Toda vida realiza-se em seu perimundo. Em escala fisiológica, um estí-
mulo gera reação. No todo vital, as atividades, rendimentos, vivências são
desencadeados pela situação, ou estimulados, dados como tarefas a cum-
prir. Investigar as situações humanas, tais como se originam da conexão
objetiva que corresponde à existência em sociedade, é encargo que cabe à
sociologia. O comportamento do indivíduo em relação a situações típicas
constitui, no entanto, objeto de estudo da psicologia compreensiva, pela
qual se constata de que modo a casualidade, a oportunidade, o destino se
fazem presentes ao homem, por ele são captados ou perdidos. As situa-
ções são coativas no momento; mutáveis em sequência e, como situações,
determinadas intencionalmente pelos homens. Quando, entretanto, exis-
tem situações derradeiras, que, embora ocultas ou despercebidas na vida
cotidiana, determinam, necessariamente, a vida em sua totalidade (como a
morte, a culpa, a luta, a que não se pode fugir), falamos em “situações
marginais”. O que é próprio ao homem e próprio se lhe pode tomar tem
origem derradeira na experiência, na apropriação, na superação das situa-
ções marginais.
2. A realidade.
O que é a realidade não se pode dizer com segurança objetiva, porque
está, a cada momento, em parte, na crença geralmente disseminada, pró-
pria de uma comunidade. Quando compreendemos um homem, temos de
distinguir entre aquilo que vale para ele como realidade e aquilo que cons-
titui nosso conhecimento da realidade. Daí suspender-se toda compreen-
são, pelo fato de não ser definitiva a realidade.
A realidade é a natureza e é, em especial, o próprio corpo, mais as ca-
pacidades produtivas corpóreas e mentais próprias. É a ordem social, com
aquilo que, dentro da situação sociológica do indivíduo, se deve esperar re-
lativamente a ele, em tais atos, ou em tais comportamentos. A realidade
são os outros homens individuais, a comunicação com os quais é criada
pelos fundamentos existenciais íntimos e básicos.
O homem aspira à realidade, isto é, ao preenchimento de sua. existên-
cia, por assim dizer, no bem-estar de seu corpo e da eficiência de suas re-
alizações; aspira à posição que lhe parece a melhor na ordem social e ao
pleno desempenho respectivo; à proximidade, à fidelidade, à segurança de
suas relações íntimas, nas quais se realiza. Não é, contudo, por forma au-
tomática que se dão esses desempenhos.
3. Autossuficiência e dependência.
O homem tende a criar o ideal de uma criatura, que, cerrada em si
mesma, c bastante; que se satisfaz por si, vivendo sem necessidade de re-
ceber de fora coisa, alguma, porque se julga absolutamente plena. Mas,
querendo vir a ser uma criatura assim, o homem tem de aprender, de ma-
neira tanto mais drástica, que, afinal, depende de tudo. Ente vital que é,
tem necessidades que só de fora se podem satisfazer. Tem de viver e valer
em sociedade, a fim de participar dos bens indispensáveis à vida. Tem de
viver em reciprocidade com outros homens, produzindo e recebendo, en-
tregando-se e preservando-se, amando e odiando, se não quiser esvaziar-
se e aniquilar-se em sua solidão. É pela troca que tem de viver, apren-
dendo, ouvindo, compreendendo e, mediante a apropriação, produzindo
novidades, a fim de participar na espiritualidade que, fora da comunidade,
jamais alcançará.
De todo contato com o exterior, quer natureza, quer homens, quer so-
ciedade, quer indivíduo, resultam, imediatamente, limitações, inibições,
colisões. Viver consiste em realizar, mediante processo configurativo e
adaptativo, a luta e a composição, o compromisso e a integração. É assim
realizando-se o ser humano que a polaridade residente na preservação do
espaço próprio e na aceitação pelos outros se transforma em totalidade, ao
invés de dispersar-se em contrastes que se excluem uns aos outros.
De caminho, porém, dão-se conflitos', conflitos com a comunidade,
com os outros indivíduos, consigo mesmo; conflitos que vêm a transfor-
mar-se em falhas, derrotas, limitações das possibilidades existenciais; ou
que originam vida mais profunda, unidades mais altas, que nascem das
tensões e nelas, vivazes, se desenvolvem.
Essa vida finita é sempre dupla: é reativa a situações, fatos, seres hu-
manos; e é, nas reações, ativa', criadora na realidade que a situação acar-
reta. É erro opor a atividade à reatividade, ou considerar possível uma cri-
atividade absoluta na atividade sem objeto; como é erro afirmar seja a rea-
tividade traço vital básico.
A maneira por que se desenvolvem a atividade e a reatividade e a ma-
neira por que se ligam, com preponderância de um polo, é diversa, no cor-
rer do tempo, para a mesma existência, e também de um indivíduo para
outro, marcando-lhes o tipo conjunto respectivo; são extremos: a contem-
plação da interioridade, que em si mesma se encerra, que se entrega a seu
existir quieto; que vive, abrigada e inexperiente, na contemplação e na re-
cordação; e a atividade, que se volta para o trabalho exterior, que não con-
sidera definitiva existência alguma; que quer modificá-la e nela viver; a ati-
vidade que vive na luta, na criação, no configuramento.
4. Traços fundamentais típicos do indivíduo em relação à reali-
dade.
Nunca se percorrem sem resistência as vias acima descritas para a
existência na realidade. Nem há sucesso pleno ou puro total. Pode-se
construir, de maneira compreensiva, a relação entre atividade e reativi-
dade no movimento segundo tipos que, a cada momento, se contrapõem.
aa) Kretschmer fixou a atitude vital na relação do eu para com o
mundo exterior de acordo com as possibilidades seguintes:
1) A relação simples é estênica ou astênica:
- Estênica: sentimento de superioridade em relação ao mundo exterior; de
força, de capacidade atuativa. Inclinação à autossupervaloração, à indife-
rença, à agressividade.
- Asténica: sentimento de inferioridade, fraqueza, passividade. Inclinação à
autossubvaloração, à moleza, à insegurança do comportamento.
2) A relação por si contraditória é expansiva ou sensitiva: - Expansiva:
Estênica com polo oposto asténico. Daí, sentimentos ocultos de insuficiên-
cia. Sobrecompensação, sensibilidade extremada, irritável. Disposição a
sentir-se facilmente ofendido. Inclinação ao querulantismo paranoide. -
Sensitiva: Asténica com polo oposto estênico. Daí ambição e perseverân-
cia. Amor próprio vulnerável. Sentimentos repentinos intensos de insufici-
ência. Insegurança vital. Tendência a atormentar-se, escrupulosidade em
situações de pouca monta. Sentimento de vergonha moral. Inclinação a
ideias de autorreferência.
3) Atitude vital intermediária: conciliante, prática, adaptável. Ajusta-
mento ao meio. O contraste entre o eu e o mundo exterior não é sentido.
bb) Para completar a tipologia psicológica dos temperamentos, classi-
fica-se o conteúdo da atitude existencial em relação à. realidade na confor-
midade do significado que se lhe dá com. o passar do tempo. Os polos são
os seguintes: o trabalho, a produção e a vida valem pela continuidade de
um todo, ou toda atuação é jogo, é tentativa e aventura. Naquela continui-
dade, serve-se à tarefa e à profissão, que, historicamente, as gerações su-
cessivas carregam. Percebe-se o todo na obra do passado, que, dia a dia, a
própria atuação acorda, por assim dizer, para a vida. Tipifica a situação a
figura do camponês, que sabe ser membro perecedouro no serviço do
campo e nesse sentido se esforça. Todo o contrário está no jogo do aventu-
reiro, para o qual a ação não tem seguimento, porque é a momentanei-
dade que domina. Não há construção no mundo, não há totalidade, nem
graça. A aventura, como realidade, é símbolo concomitante da impossibili-
dade da realização universal.
Num polo e noutro, realiza-se um comportamento básico em relação à
realidade, que se sente, ela própria, radicalmente diversa: realidade como
duração eterna na sequência histórica da obra, da família, da construção;
ou realidade sem fundamento, eternidade no risco e na falência.
5. Negação da realidade pelas ilusões.
Porque é difícil expor-se à realidade, porque exige renúncia perma-
nente, constantes esforços, experiências e introvisões penosas, o impulso
surge a fugir à realidade. A vida sempre encontra possibilidades de contor-
nar a realidade, velá-la, supri-la, a cada momento, com o prazer momen-
tâneo da satisfação que alivia, mas também a cada momento a preço da
própria vida ou da saúde. Sempre o homem defronta a opção entre a pe-
netração da realidade e a negação desta; isso em inúmeras situações indi-
viduais e de maneira total. A fuga à realidade faz-se conforme os rumos
seguintes, através de substituição, satisfação e aparente plenitude:
aa) Em vez de negar a realidade, criam-se outros conteúdos, que se
tornam objeto da satisfação. Já Montaigne escrevia: ‘‘Diz Plutarco, refe-
rindo-se aos que esbanjam sentimentos com macacos e cãezinhos, que o
elemento amante existente em nós antes se dá, faltando um objeto apro-
priado, a outro qualquer, ilusório e vão, do que fica ocioso. Daí vermos es-
sas almas que preferem enganar-se com as próprias paixões e até, contra-
riando suas crenças, inventar objetos insensatos e imaginários a desistir
de qualquer interesse, de qualquer fim.... A que é que deixamos de nos
apoiar, com ou sem razão, de modo a ter algo diverso?
Foge-se da realidade para fantasias, que, fáceis e ricas, transfiguram o
que, a ser real, seria penoso e fragmentário. As fantasias relacionam-se
com as aspirações criadas pelas inibições e falhas da existência individual
e criam alívio, embora irreais, Bleuler chama esse autoencapsulamento
num- mundo à parte “pensamento autístico”. São conteúdos do anseio
fantástico, por exemplo, a infância perdida, os mundos estranhos, a pátria
metafísica. O que é decisivo é a tendência a esquivar-se aos conflitos e en-
cargos do presente. Kierkegaard foi quem mais profundamente apreendeu
o referido aspecto do efeito metafísico o poético,' no sentido de que este ar-
ranca o homem à existência pessoal, real, a bem da dissolução fantástica.
bb) Estes tipos de satisfação subjetiva irreal, que, de início, são simples
jogo, podem levar à realização subjetiva de seus conteúdos, mediante con-
versão que se há de atribuir a mecanismo anormal, já não mais compre-
ensível. É o que ocorre nas produções histéricas, (fenômenos somáticos e
psíquicos) nas elaborações mentirosas, que criam -conteúdos nos quais o
próprio indivíduo acredita (pseudologia fantástica), na construção dos
mundos delirantes dos processos esquizofrênicos.
cc) Normal e compreensível o psiquismo, não ocorrem conversões; o
jogo leva, sim, a ilusões; corrigíveis, certamente, porém gerando o olvido
compreensível de coisas ou obrigações desagradáveis; ou o alívio semi-
consciente, mediante falsas-interpretações ilusórias, mas, em todo caso,
subjetivamente perceptível; ou ainda a transição fugaz para o comporta-
mento histérico. Atua em sentido contrário a aspiração à realidade, à ver-
dade, à autenticidade, que faz o homem querer ver-se, transparentemente,
na realidade; aspiração que o reconduz ao mundo, « menos que, plena e
clara, a obstinação o leve ao isolamento e à negação.
É desta maneira que se tem entendido o comportamento dos neuróti-
cos e psicóticos, bem como dos criminosos e dos excêntricos: pelo im-
pulso a libertar-se da realidade mediante a ilusão e o abandono a uma
vida fictícia. O isolamento compreende-se como inverdade porque conduz
à ilusão e ao acolhimento. Isolar-se da realidade tal qual se apresenta é de
fato, isolar-se do fundamento existencial que por ela se manifesta. E: “o
pecado é a separação de Deus”. Tem-se considerado o amor ao irreal co-
mum a todos os homens e, na conformidade do que diz Ibsen, indagado do
engodo vital que a todo homem é necessário; e tem-se reconhecido, com
Goethe, que homem algum é capaz de atingir a visão da verdade e da rea-
lidade que lhe suprima as condições da própria existência. Também se
tem limitado o mundo da ilusão radical a certo grupo de indivíduos, que
são os psicopatas, definindo-se a psicopatia como “sofrimento resultante
das ilusões que são necessárias à vida” (Klages). O psicólogo sensato pre-
caver-se-á de semelhantes generalizações, tanto para um lado quanto para
outro. Trata-se de questões cuja solução se investiga, sem, no entanto, ha-
ver-se chegado a resposta definitiva.
Luta-se na realidade. Vê-se clara a ameaça e apreende-se a exigência
que a situação faz. A fuga, o ataque, a defesa são expedientes de luta.
Pode-se, no entanto, deixar de isso perceber e, então, vela-se a realidade
insuportável. A ameaça, mais o encargo de combatê-la ou aturá-la, já não
se reconhece. A defesa transforma-se em ilusão, através de deformações
sem intencionalidade nítida, porém instintivamente objetivadas, a fim de
obter-se a fuga às imposições da realidade; é o que se dá na doença, no in-
sucesso, no sofrimento. Tanto a situação e o encargo de combatê-la
quanto o significado do comportamento com que o individuo os enfrenta
escapam à crítica consciente, de modo que, além do engodo consciente
dos outros, ou em seu lugar, acrescenta-se, já agora, o engodo de si
mesmo, em concomitância com a distorção da realidade. A consciência já
não consegue ajustar-se ao inconsciente do indivíduo.
6. Situações marginais. O homem sempre está numa situação- ou nou-
tra, que vem a resolver-se nas situações marginais, ou seja, nas situações
intransponíveis, imodificáveis, próprias da existência, como tal; nas quais
esta desperta para o ser e, existência que é, alui. Não cabe à psicologia
empírica iluminar essas fronteiras, nem aquilo que o homem pode, diante
delas, tornar-se, quando se lhes entrega, ou quando lhes foge. Contudo, o
psicólogo interessado- na compreensão precisa delas ter consciência, visto
que, nas psicopatias, neuroses, psicoses, não são só desvios de uma
norma hígida que se apresentam, mas, afinal, nesses desvios, também as
origens das possibilidades humanas. Não é raro o que ocorre e se vivencia
na anormalidade constituir manifestação de algo que interessa o- homem
como homem; mas perceptível já não só para o psicopatologista, que ob-
serva e trata objetivamente os fenômenos notados, e sim para o compa-
nheiro da sorte que o homem é para o homem.
Tem-se concebido a neurose como falha que se dá nas situações mar-
ginais; e a finalidade da terapêutica seria a modificação- do homem atra-
vés da situação marginal, de modo a levá-lo a revelar-se e a afirmar-se no
mundo tal qual é; ou a autorrealização verdadeira. A concepção é válida,
na medida em que a verdade filosófica nela contida também se aplique ao
neurótico; o que vem a ser verdadeiro na filosofia prática também pode ter
importância terapêutica. Não nos esqueçamos de que a fuga para as situa-
ções marginais por si não cria doença, podendo, sim, independente de fe-
nômenos anormais, realizar-se com pleno êxito mediante a desonestidade
e a covardia.

c) Os símbolos do conhecimento básico.


Para compreender o homem, tem-se de compreender o que ele sabe,
que conteúdos objetivos possui sua consciência. Decisivo, porém, não é o
conhecimento, e sim o que isso para ele significa, ou seja, a maneira por
que o adquire e, ao mesmo tempo, porque o conhecimento atua. Aquilo
que o homem experimenta como realidade própria, aquilo que contempla e
lhe está presente é que lhe determina a essência; sobretudo, a clareza com
que essa realidade se lhe afigura concretamente certa. É o tipo de Deus
que ele tem que compõe o homem.
1. O conhecimento básico.
Chamamos conhecimento básico o conhecimento no qual o próprio ho-
mem está presente; que lhe condiciona todo saber determinado; que cons-
titui o requisito de qualquer outro saber. Também chamamos: o a priori.
Como tal, existe o a priori da consciência em geral nas categorias da com-
preensão; existe o a priori da mente nas ideias; o a priori da existência nos
impulsos e nas formas reativas práticas; o a priori histórico da vida hu-
mana em seu universo, presente através da tradição, sob a forma de confi-
guração momentânea, encarnação de generalidade, que tem sentido e
peso não como generalidade, mas como particularidade infinita.
O conhecimento básico aparece nos tipos predominantes da intuição,
nos tipos da contemplação e do pensamento dos fenômenos primários e
dos fatos, nas maneiras de existência humana e universal, nas tarefas e
profissões, nas valorações e tendências prevalentes. Dentro dele, os sím-
bolos têm importância altamente impregnativa.
2. Conceito de símbolo e sua significação na realidade vital.
Afirma Kant: Para que o percebamos, todo objeto tem de ser evidente.
Os símbolos são evidências analógicas. Por exemplo, se representarmos
uma monarquia por um corpo animado e um despotismo por uma má-
quina, não haverá semelhança entre a coisa e a imagem; mas haverá se-
melhança no fato de refletirmos sobre ambos e sobre a respectiva casuali-
dade. Todavia, “se transferirmos a reflexão a respeito de um objeto para
conceito inteiramente outro, ao qual jamais poderá corresponder, direta-
mente, evidência alguma”, então se formará o símbolo, propriamente.
Aquilo que nossa razão pensa, sem que seja possível ajustar ao pensa-
mento qualquer evidência sensorial, vem a tornar-se evidente no símbolo.
O que neste se evidencia, autenticamente, só no símbolo é acessível; à ex-
periência evidente nunca o próprio objeto do símbolo se mostra direta-
mente: “Assim, todo conhecimento que temos de Deus é meramente sim-
bólico”; quem tira os símbolos, por exemplo, da vontade divina, do amor,
do poder divino, etc. vai dar no antropomorfismo; quem despreza toda in-
tuitividade dos símbolos vai dar no deísmo.
Os símbolos tornam-se conteúdos estéticos neutros, quando neles rea-
lidade alguma se faz presente; só são símbolos plenos quando neles fala a
própria realidade. O pensar humano inclina-se a ver nessa realidade a re-
alidade da intuição direta; caso em que os símbolos ou se transformam em
objeto da superstição (se se lhes toma o caráter sensível pela própria reali-
dade), ou passam a valer como irreais (se são meros símbolos, meras ana-
logias, na medida da realidade sensível). Viver primariamente nos símbo-
los significa viver na realidade, que não conheço e que, entretanto, está
presente no símbolo. Daí ser o símbolo infinito, acessível à interpretação
infinita, inesgotável, sem ser jamais, no entanto, a própria realidade como
objeto que eu conheça e possua.
Ê certo que o conhecimento humano básico tem a estrutura fundada
em categorias; as totalidades fundadas em ideias, enquanto a realidade,
propriamente, que nos domina no conhecimento básico, tem a forma de
símbolos. Quer dizer: o conhecimento básico não está presente num saber
que se desenvolva bastante, por forma intelectual, e sim nas intuições e
imagens que, infinitamente importantes, trazem ao homem a linguagem,
da realidade, o protegem, por assim dizer, com sua presença, lhe dão se-
gurança e o aquietam. O conhecimento lógico sistemático do homem com
cultura filosófica tem, em suas fronteiras, os símbolos determinantes; os
próprios sistemas de pensamento constituem símbolos em sua totalidade;
e significam, quando dão consciência da realidade, mais do que a razão
neles vê. Nem todos os “conceitos filosóficos básicos” são definições, e sim
intuições simbólicas amplas, que nem sequer o mais racional e detalhado
sistema explica suficiente e completamente.
Os símbolos são a priori histórico; mas a verdade que encerram im-
pressiona como se fosse eterna no tempo. Ordenados em sucessão infi-
nita, iluminam-se nos mitos, nas filosofias e teologias, evidenciam-se no
jogo da fantasia, descompromissam-se na consideração estética; impositi-
vos e incondicionados em situações extremas, são eles que, às ocultas,
conduzem toda vida provida de- conteúdo.
Todas as intuibilidades no mundo podem transformar-se em símbolos.
Em símbolos transformam-se as formas primárias da vida, do mundo, do
fato; os elementos, todos os eventos fundamentais da. existência, os tipos
das coisas reais, as pré-imagens e contra-imagens do viver humano, tais
quais se apresentam à nossa valoração. Deixam eles, no entanto, de ser
símbolos quando se afiguram simples objetos, como tais, mesmo que um
signifique o outro (por exemplo, a máquina significa o despotismo);
quando, por conseguinte, se podem interpretar suficientemente como fini-
tudes através de outras finitudes universais. Quando são portadores de
significação infinita para alguma coisa, a que só por meio de símbolos se
tem acesso, os símbolos constituem, por assim dizer, seres animados, que
nos atraem, nos completam, nos deleitam ou assustam, sempre nos arre-
batam. Impregnam-nos, libertando-nos; mas acorrentam-nos, quando se
transformam em objetos permanentes de nossa superstição.
A palavra símbolo tem, na linguagem usual, vários significados. Em-
prega-se, no mais amplo sentido, para designar meros sinais, semelhan-
ças e comparações; para esquemas e abreviações do que vemos; para to-
dos os conceitos. Mas é de indagar: “Símbolo de que?” Se é possível res-
ponder por meio de um objeto, então não se trata de símbolo, propria-
mente. O “de que” existe aqui, apenas, no próprio símbolo; não há outro
objeto, a não ser, talvez, para uma conceituação filosófica transcendente.
Na psicologia compreensiva, é de especial importância distinguir entre
o símbolo portador de significados pessoalmente válidos, extraídos da pró-
pria história existencial, como formações substitutivas etc., e o símbolo
portador amplo de significados imanentemente transcendentes. Jung su-
bordina aquele ao inconsciente pessoal; este, ao inconsciente coletivo.
3. Possibilidade da compreensão dos símbolos.
Podem-se compreender os símbolos: Os símbolos alheios, que não são
os próprios, podem-se determinar de fora, apenas, conforme se apresen-
tam; mas não dentro, de onde bate o coração de sua realidade. A compre-
ensão plena dos símbolos exige a incorporação à própria vida. Alguns sím-
bolos próprios a cada um de nós podem-se iluminar, podem-se traduzir
em pensamentos metafísicos, podem-se desenvolver, ricamente, a partir,
por assim dizer, da obscuridade e, assim, compreender-se na medida em
que são simultaneamente vividos. Pelo contrário, a compreensão formal
dos símbolos mais não alcança do que uma visão estética, um estímulo
peculiar dos sentimentos, mediante participação lúdica que se tenta obter
em conteúdos estranhos; sem, no entanto, a profundeza da realidade. Co-
nhecer os símbolos é mais do que pensar em imagens.
A compreensão psicológica dos símbolos movimenta-se através de am-
biguidade perigosa. Estudam-se os símbolos em mitos e religiões, em so-
nhos e psicoses, em fantasias vigis e estados psicopáticos; assim é que sa-
bemos deles, mas só exteriormente, sem neles acreditar. Ou pretende-se,
nas roupagens desse estudo científico, encontrar a própria verdade dos
símbolos; quer-se descobrir a cura pela comunicação do conhecimento
dos símbolos, despertá-los e neles participar. O significado dos fatos histó-
ricos e psicológicos — vistos de fora, mesmo que se representem interior-
mente — e o significado da verdade que os símbolos exprimem interpene-
tram-se inextrincavelmente.
4. História da investigação dos símbolos.
A investigação dos símbolos limita-se quase sempre a mitos, lendas e
sagas, tendo-se originado da exploração da mitologia grega, principal-
mente a partir do romantismo (Creuzer). Os autores mais produtivos fo-
ram O. Muller, Welcker, Nãgelsbach e também Rohde. Schelling desenvol-
veu perspectiva geral admirável, cujo interesse até hoje se mantém, mal-
grado erros maciços quanto a particularidades e certos absurdos quanto
ao todo. Entre todos os intérpretes, contudo, por assim dizer-inspirado,
destaca-se Bachofen, não obstante a secura do imenso material que reu-
niu.
Hoje em dia, conhecem-se como intérpretes dos símbolos Klages e
Jung (Klages chama “imagens” o que J. Burckhardt denomina “imagens
arcaicas” e Jung, “arquétipos”). Klages e Jung diversificam-se, contudo,
essencialmente. A interpretação que Klages dá dos símbolos é extrema-
mente fascinante e vivaz; e sua apresentação dos símbolos (particular-
mente, da poesia e da arte) constitui, talvez, o que há de imperecível em
sua grande obra (na qual o pensador desenvolve estranha filosofia pré-crí-
tica, sintetizando o racionalismo e agnosticismo mediante provas não to-
talmente creditáveis; ao passo que a Jung não só falta essa pujança, como
ainda a seriedade taciturna que se sente em Klages. Jung é o intérprete
ágil, hábil no manejo de todos os meios, sem a inspiração que é própria de
Klages, quando este segue o rasto de Bachofen, por ele redescoberto; as
exposições jungueanas são cansativas, irritantes pelas inúmeras contradi-
ções não dialéticas, sem aquela etereidade que a leitura de Klages, em
muitas passagens, evoca, substituída, em Jung por um ceticismo mun-
dano. Tanto um quanto outro apontam a realidade propriamente, em sua
pobreza atual de símbolos, mas o esforço de Jung me dá a impressão de
recomeço estéril mediante pilhagem do passado; Klages, de revivescência
de recordações, que ele mesmo sente vãs, extraídas às profundidades es-
quecidas da história.
As doutrinas de Jung têm encontrado aceitação por parte dos psicote-
rapeuta e mesmo fora desse meio lhes foi dado acolhimento entusiástico.
O eminente indólogo H. Zimmer fala “no serviço mágico, orientador de al-
mas, que a teoria jungueana prestou”. “Ela descobriu, no submundo de
nossa própria natureza, a fonte eterna, as formas que murmuram ontem
como hoje, assim restituindo o mito, que a tradição popular e poética nos
faz tangível, à profundidade intangível de que provém toda a configura-
ção”. “Na interpretação dos sonhos, a arte de C. G. Jung afirma-se pelo es-
clarecimento que traz aos obscuros fundamentos dos mitos e lendas”. Pro-
cure cada um e veja o que encontra. Por mim, não me convenço da corre-
ção desses juízos.
5. Tarefas que podem caber à investigação dos símbolos. Na vida pú-
blica atual, os símbolos desempenham, certamente, certo papel, mas são
poucos; a vida moderna, em seu conjunto — comparada com o passado —
é extremamente pobre em símbolos. O fato existe, no entanto, de os sím-
bolos surgirem maciços nos sonhos, nas fantasias vigis, nas psicoses e
nos estados psicopáticos, sem que se possa decidir em que medida são
ilusórios ou sérios. Na psicopatologia, os símbolos têm-se tornado objeto
preferido da atenção dos médicos, em face da importância que assumem
para a psicoterapia; primeiro, porque possibilitam a visão do que talvez go-
verne e homem em particular; segundo, porque se conseguem despertar,
cuidar e trazer à consciência símbolos obscuros; terceiro, porque os sím-
bolos permitem chegar, indiretamente, ao indivíduo. É o que, pelo menos,
parece. Mas se têm significado desta natureza, impossível sequer de sobre-
estimar, a investigação dos símbolos vem a constituir tarefa urgente.
aa) Conhecimento do material. — Começaram os psicoterapeutas man-
dando os doentes contar seus sonhos. A seguir, descobriram conteúdos
semelhantes nas vivências, fantasias e delírios dos psicóticos. Por fim, no-
taram que, nos sonhos de todos os homens, emerge certo mundo que dou-
tra forma não se perceberia. Esses achados fizeram-se significativos a par-
tir dos paralelos que se descobriram nos conteúdos míticos de todos os
povos. Tal qual os etnologistas já haviam encontrado paralelos nos mitos
de todo o globo terrestre1, admitindo “ideias humanas elementares” (Bas-
tian), as quais por si mesmo, surgiriam em toda parte sem divulgação que
as comunique, assim os psicoterapeutas admitiram haver algo universal a
emergir não só dos estudos etnológicos e mitológicos, mas também dos so-
nhos. Daí necessitarem o conhecimento- universal desse mundo mítico,
conforme existe nas tradições religiosas, nas lendas e sagas, na poesia.
bb) Reconhecimento das conexões da vida simbólica. — Podem-se anali-
sar os símbolos segundo três maneiras diversas: filosoficamente, inqui-
rindo-lhes a verdade (Platão, Plotino, Schelling); historicamente, inda-
gando a forma por que se desenvolvem em realidade concreta; psicologica-
mente, investigando-lhes a origem e efetividade na psique do homem em
particular, segundo os princípios universalmente humanos e as variações
respectivas. De significado diverso, embora, todas as três indagações im-
põem a compreensão dos conteúdos; mas a questão da verdade eterna, a
questão do fenômeno concreto historicamente universal, a questão da
causalidade visam a objetivos independentes uns dos outros, se bem que
permanentemente intrincados na investigação fatual simbólica.
1) Sistematização dos símbolos. Porque compreendemos que o homem,
a todo tempo, .vive em símbolos como se estes fossem realidades que o go-
vernam; e que a mesma vida simbólica se enquadra nas estruturas funda-
mentais da existência humana, seria bom apreender esses símbolos em
sua peculiaridade, reuni-los em sua multiplicidade, revê-los e ordená-los;
o que se pode fazer através da visão básica segundo a qual se trata de es-
truturas estranhas, peculiares, que valeria a pena conhecer de fora, pelo
menos, mesmo sem poder compreendê-las; ou através da visão básica se-
gundo a¿ qual se cogita de uma verdade simbólica, singular, a que, em
grande parte, infelizmente, somos alheios, mas que talvez possamos re-
conquistar. Assim se obteria vasto mundo das imagens em constante mo-
vimento, a verdade dos tipos primários, cujos elementos, fundamentais se-
riam de procurar-se como elementos eternos da. consciência humana da
realidade. Não se apresentará, então, a sistematização dos símbolos como
ordenamento de fantasias que chamem a atenção, e sim como esboço da
verdade. O desenvolvimento- de conteúdos simbólicos possíveis significa a
abertura do espaço em que o homem se pode tornar ele mesmo e substan-
cial, ao passo que, sem símbolos, congelará em nada, a alma sedenta, por
assim dizer, vãmente esforçando-se, com a pura razão, na agitação de um

1 Andree, Richard: Ethnographische Parallele und Vergleiche, 1878. Nova série, 1889.
mundo que se terá esvaziado.
Se se distinguir o ajuntamento e classificação exterior de todos-, os
símbolos que aparecem (morfologia dos símbolos) da construção interior
da verdade simbólica em seu todo (filosofia dos símbolos), poder-se-á,
acertadamente, atender a uma e outra das tarefas, sem que ainda, no en-
tanto, uma complemente a outra. Qualquer confusão desacreditará am-
bas.
Heyer, por exemplo, fez uma classificação do mundo simbólico. Quem
o acompanhar em sua apresentação dos círculos vitais, das “camadas psí-
quicas”, indo do vegetativo ao pneumático, passando pelo animal, com o
enraizamento mítico-simbólico respectivo, poderá convencer-se de que
essa classificação leva a um quadro encantador, mas, ao mesmo tempo,
gera certo modo de ver absolutamente particular, muito questionável do
ponto de vista filosófico e psicológico. Não nos iludamos, nos excelentes
trabalhos de Heyer, com a atmosfera espiritual que nasce do mundo go-
etheano e doutros, pouco tendo a ver com a questão em exame.
2) Leis da vida simbólica. Se se observarem as imagens ópticas subjeti-
vas, não haverá espanto capaz de medir a maneira repentina por que do
nada surgem formas, paisagens, criaturas humanas jamais vistas; tal qual
se dá no sonho. A vida inconsciente deve formar, de um modo que não
conseguimos penetrar, aquilo que se oferece, acabado, à consciência; e
que, acabado, é conteúdo, encerra conteúdo, tem por si sentido. Na me-
dida em que não compreendemos conexão alguma, mas apenas acúmulo
de fragmentos arbitrários, desprovidos de significado, falamos em acaso; a
necessidade de compreensão significativa obriga, no entanto, a buscar re-
gras e conexões.
Conexão que encontraríamos, se se tratasse não de fragmentos irrele-
vantes e agrupamentos casuais de aspectos sensoriais; mas, sim, se aque-
les conteúdos que emergem da vida inconsciente tivessem, em parte pelo
menos, a significação de símbolos. A tentar interpretar os conteúdos real-
mente vivenciados de acordo com este último sentido, duas experiências
fundamentais se fazem:
Em primeiro lugar, a interpretação é infinita, não se completa, não ces-
sam as ramificações significativas. Escreve Jung: “Se se investigarem os
tipos em suas relações com outras formas arquetípicas, ampliam-se os
mesmos em conexões histórico- simbólicas tão vastas que, afinal, se con-
clui serem os elementos psíquicos fundamentais de multiformidade incer-
tamente iridescente, que excede a capacidade imaginativa humana”.
Em segundo lugar, a própria interpretação é vivência, representando
prosseguimento da vida simbólica, formação e iluminação de conteúdos,
processo produtivo. Não há terra firme em que apoiar a tradução dos sím-
bolos.
Assim é que se esclarece se os símbolos oriundos dos mundos onírico e
fantástico se relacionam com a existência vigil, isto é, se seus significados
influem ou mesmo dominam a vigília. É, a bem dizer, inquestionável que
os símbolos orientam a existência vigil. Jung explica o fato de os símbolos
se mostrarem e, ao mesmo tempo, atuarem, de não só envolverem, mas
determinarem o curso da existência, pelos “sistemas vivos de reação e dis-
posição”, que, invisível, imperceptível, e, por isso mesmo, tanto mais efeti-
vamente, governam a existência: “Não há imagens inatas; o que há são
possibilidades inatas de imagens, as quais também põem limites determi-
nados à mais audaciosa fantasia”. O que se chama, filosoficamente, a pri-
ori vale aqui, do ponto de vista psicológico, como estrutura efetiva dos ar-
quétipos”; estes “constituem, de um lado, preconceito instintivo, dos mais
fortes; doutro lado, concebem-se como recursos dos mais eficazes para
adaptações instintivas”.
Os arquétipos jungueanos têm significado múltiplo. Não são, por si, em
absoluto, símbolos autênticos. Para Jung, os arquétipos são, universal-
mente, todas as forças que dão origem às formas determinadas a cada
momento, imagens, modos de ver, concepções nas quais o mundo e os ho-
mens se me apresentam, nas quais eu fantasio e sonho, nas quais creio e
tenho certeza de que existo. Também estão entre os arquétipos, por conse-
guinte, os verdadeiros símbolos; e sempre que conteúdos existenciais
transcendentes determinam, para mim o sentido e a significação dos ho-
mens e coisas do mundo; ou seja, quando a maneira por que me comporto
em relação a eles não se determina, decisivamente, por fins, interesses,
antipatias e simpatias vitais, mas, neles, por alguma coisa que os trans-
cende.
O fato de os símbolos poderem representar linguagem clara de ser, ob-
jetividade da transcendência, mas sempre apenas produções da psique
humana (ideias); e de esta última significação ser, habitualmente, deci-
siva, quando se discute psicologicamente — este fato acarreta uma ambi-
guidade que desnorteia: eu acho verdade neles, ou tenho de ver através
deles e de analisá-los como aparência? É o que se constata quando se cla-
reia a lei fundamental em cuja consonância eu tenho, no símbolo, diante
de mim, alguma coisa na qual eu mesmo estou. O processo pelo qual o
homem se torna ele próprio, quando se compreendem os símbolos, é ilu-
minação de si mesmo mediante a qual se compreende a própria verdade?
Ou há, no trato dos símbolos, uma luta com a própria sombra, estando o
processo referido, precisamente, na compreensão da aparência?
Em Jung. o seguinte fenômeno psicológico básico desempenha papel
importante: Vivemos em constantes conflitos. O trato com que o que nos
defronta é trato conosco mesmo; especialmente, quando pretendemos li-
dar com alguém que é inteiramente outro. Odeio e amo no outro minhas
próprias possibilidades: no criminoso, no aventureiro, no herói, no santo,
nos deuses e nos diabos. Empresto à objetividade o que em mim próprio
cochila; que supero, ou a que cedo; que combato ou de que me aposso
fora de mim; que odeio ou amo. Há, na alma individual, o que Hegel viu no
universo; torno-me aquilo que meu adversário é; naquilo que combato me
transformo, mais ou menos.
Jung argumenta: “Persona” é nosso sistema adaptativo momentâneo,
quando lidamos com o mundo. Podemos dominar esses sistemas, forma-
dos por arquétipos, ou sucumbir a eles, com eles identificando-nos, por
cies sendo possuídos. “Sombra” é o conjunto das funções inferiores, sem
as quais não existimos, tal qual corpo algum pode estar na luz sem lançar
sombra. A sombra forma-se com base em arquétipos. O homem possuído
por sua sombra, quer dizer, aquele que viva abaixo de si mesmo, está, ele
próprio, na luz, enredando-se em suas próprias teias; onde obstáculo não
existe em que possa tropeçar, ele o cria, inconscientemente. Os arquétipos
configuram seu mundo, numa série de situações de insucesso, impotên-
cia, falha.
3. Origem dos símbolos. Pela visão empírica do mundo simbólico apre-
endemos os paralelos dos símbolos em todos os povos: conclui-se por al-
guma coisa que é universalmente humana e, pois, comum a todos. Mais:
há tipos limitados de símbolos, paralelamente próprios a círculos culturais
inteiros, porém não universais. Em terceiro lugar, veem-se configurações
históricas únicas dos símbolos, particulares a certos povos. Assim é que
sempre se encontram as polaridades mais gerais (masculino e feminino —
transformação, conversão e extinção — ritmos e períodos, fenômenos ele-
mentares naturais) constituindo símbolos. Desta maneira, pode-se desco-
brir atemporalmente o que é, nos símbolos fundamentais, próprio, afinal,
do homem, no inconsciente, fora da história e de toda tradição. Jamais, no
entanto, se descobrem, por esta via, digamos, Apoio e Artêmis, que são
históricos, únicos, insubstituíveis, sem representantes, impossíveis de en-
contrar em inconsciente profundíssimo algum; só acessíveis, sim, à tradi-
ção. Entre um extremo e outro, estão as configurações especiais, que não
são gerais, nem universais, mas pertencem a círculos culturais mais am-
plos, excedendo certos povos. Há, por fim, muitos outros conteúdos espe-
ciais, que não aparecem, é certo, em toda parte, mas em lugares tão diver-
sos que não podem ser históricos, e sim devem ser gerais, por estranhos
que pareçam; por exemplo, a figura dos cefalópodes.
Todos os símbolos só atuam sobre à existência em sua configuração
historicamente peculiar, única. As estruturas e conteúdos universais estão
neles, certamente, mas sem atuar, sozinhos, como tais. Concepção ad-
versa é aquela segundo a qual é no geral, ou universal, que está o ele-
mento atuante, apenas revestido das variações históricas.
A primeira concepção é de Schelling, cuja magnífica visão descobre a
origem dos mitos simultânea com a origem dos povos. A confusão linguís-
tica da torre de Babel dispersou a humanidade, até então unitária, em po-
vos que, na sua cegueira adquirida, se viram à mercê de seus mitos; estes
foram tantos quanto povos houve; cada mito marca o povo, tal qual haja
sido por ele produzido. As leis gerais da formação mítica surgem, desde o
princípio, com forma especial.
Jung pensa de modo inteiramente diverso, distinguindo entre o incons-
ciente que provém da história existencial pessoal e o inconsciente coletivo,
que é o fundamento universal da existência biológico-psicológica humana,
atuando em cada indivíduo particular, embora profundamente oculto.
Essa universalidade, por sua vez, Jung a concebe como “pujante herança
mental da evolução da humanidade”, ou como “sedimento de toda vivência
humana, remontando a seus mais obscuros primórdios”.
A construção jungueana do inconsciente coletivo — reino das imagens
arcaicas, que constituiriam, enfim, as ideias humanas mais verdadeiras —
vem a ser, no entanto, ambígua, porque, de um lado, é conhecimento obje-
tivo, fundado na investigação dos tempos antigos e das disposições ocultas
do homem; doutro lado, significa, ao mesmo tempo, a incitação a partici-
par nessa substância da verdade para a própria salvação.
Jung escreve o seguinte: “As mais arcaicas imagens são os pensamen-
tos mais antigos, mais gerais e mais profundos da humanidade. Tanto são
sentimento quanto ideias; realmente, chegam a ter algo que se parece com
uma vida própria, autônoma, algo que se assemelha a uma alma particu-
lar, que podemos ver, facilmente, em todos os sistemas gnósticos basea-
dos na percepção do inconsciente como fonte de conhecimento. A ideia de
S. Paulo de anjos e arcanjos, tronos e potestades; de arcontes e reinos lu-
minosos dos gnósticos; da hierarquia celeste de Dionísio Areopagita ba-
seia-se na percepção da autonomia relativa dos arquétipos”. Estes contêm
tudo quanto de mais belo maior a humanidade pôde conceber, tal qual
toda baixeza e perversidade de que os homens são capazes.
Estas teses histórico-psicológicas são também extremamente questio-
náveis, abstraída a ambiguidade do sentido de verdade que pretendem,
pois as analogias, à primeira vista espantosas, existentes entre os mitos de
quase todos os povos, bem como entre estes e os conteúdos oníricos e os
conteúdos psicóticos não bastam para a construção convincente de um
fundamento densamente universal do inconsciente humano. A exame
mais profundo, as analogias afiguram-se exteriores, confinando-se a cate-
gorias gerais, sem permitir-nos atingir-lhes o conteúdo efetivo. Coincidem,
por exemplo, os deuses que morrem e ressuscitam (Osíris é morto; Dioni-
sio, estraçalhado; Cristo, crucificado; mas a coincidência não lhes compõe
a essência, a analogia apenas iluminando o que é inessencial).
cc) Redespertar de conteúdos latentes. — Grande é o perigo de confusão
e engano, quando, investigando os símbolos, os psicoterapeutas se sen-
tem, impelidos a descobrir a verdade simbólica e nela participar.
1) A ocorrência dos símbolos, conforme os percebemos, quando os
observamos, nos sonhos, nas fantasias, nas psicoses, é fenô-
meno psicológico, que, como tal, se deve distinguir da significa-
ção simbólica existencial ocorrente na vigília sensata. Será salu-
tar, será que chegaremos à verdade, se tomarmos aquilo que se
experimenta no sonho como ponto de partida para interpreta-
ções existencialmente efetivas da vida? Talvez sim. Mas não esta-
remos, então, facilmente, desviando-nos da seriedade para jogar
com os sentimentos dotados de conteúdos móveis e para firmar
suposições em torno de alguma coisa que se presume ser assim?
2) Quando, na situação universal da atividade e diante dos grandes
problemas que dizem respeito à ordem humana, a capacidade vi-
vencial deixa de preencher a própria vida, através de soluções
históricas ou da respectiva falência, pode acontecer que também
os mitos e poemas em que essas soluções se revelam não mais
se compreendam. No caso de o gérmen transtornado da possibi-
lidade humana, consciente dessa falha, buscar atmosfera em
que consiga respirar e desenvolver-se, poderá a visão das possi-
bilidades humanas básicas, de Homero a Shakespeare e Goethe,
como nos mitos antigos e eternamente vivos, abrir-lhe, talvez, es-
paço, sem que, entretanto, haja, mesmo encontrando-os, reali-
dade própria original alguma.
3) Quando o comportamento é tal que o conhecimento histórico e
psicológico possibilite ao homem que sofre formar símbolos viva-
mente eficazes, o que pode resultar é uma superstição, mediante
a qual se busca apoio em fixações infinitas de símbolos indefini-
dos, móveis e objetivos, mas propriamente impossíveis de apre-
ender; com o que, se invertem tradições arraigadas, se usam, er-
radamente, para fins curativos (servindo de medida para a saúde
e a felicidade); e os símbolos, realmente, deixam de ser símbolos.
4) Para o indivíduo, podem os símbolos ser a linguagem de alguma
coisa que, a não ser assim, de modo algum se lhe afiguraria obje-
tiva e eficaz. No caso de serem despertados a partir do inconsci-
ente, pode-se indagar que elemento histórico se há de acrescen-
tar para formar aquilo que deve ser despertado e para trazê-lo à
consciência de si mesmo. Quem, no entanto, responder à inda-
gação transforma-se em profeta; não ensina, mas anuncia; não
lhe é possível prestar serviço algum com espelhos ou perguntas,
mas, sim, dar o que é substancial. Para o pesquisador e o filó-
sofo, isso parece exceder as forças humanas, as possibilidades
humanas. Estarrecemo-nos e assombramo-nos ante os símbo-
los, como se fossem um mundo de verdade oculta. Na tentativa
de aproximar-nos, para o fim de compreendê-los, desses -símbo-
los, e menos no que é geral do que é historicamente concreto; na
tentativa de escutar, a fim de perceber se em nós algo ecoa que
ensine, talvez, a compreender o que nos outros ocorre — aí está
o limite até onde vão a investigação e a filosofia.
5) Ao mundo simbólico total, opõe-se, em nós, uma primariedade
que o relativiza. A autorreflexão liberta da sujeição ao símbolo,
obsta a superstição permanentemente ameaçadora, e possibilita,
através de todos os símbolos, sujeitar, renovada e mais profun-
damente, a existência à transcendência sem imagens que se se
manifesta pela incondicionalidade da ação ética e pelo milagre da
libertação, correspondendo ao dom de o homem sentir que é si
mesmo; como aparece, igualmente, na certeza em movimento
que se exprime pela ação interior e peio comportamento exterior,
quando se encontram, na clareza da razão, as opções e decisões
existenciais.

§ 3. Formas Da Compreensibilidade

a) A tensão contrastante da psique e a dialética do respectivo movi-


mento.
A vida psíquica e seus conteúdos fragmentam-se em contrastes, pelos
quais, no entanto, tudo se correlaciona, novamente. As ideias despertam
contra-idéias; as tendências, contra- tendências; os sentimentos, outros
sentimentos que se opõem. A tristeza se converte, a qualquer momento, de
modo espontâneo ou por motivos insignificantes, em alegria. Um pendor
que não se percebe leva à acentuação exagerada de pendor oposto. A com-
preensão tem sempre de guiar-se pelos contrastes, cuja discussão equiva-
leria a rever a psicologia inteira.
1. Contrastes categoriais, biológicos, psicológicos, mentais.
Precisamos contemplar de maneira universal os contrastes; vê-los, lo-
gicamente, em multiplicidade categorial; como realidade na biologia e na
psicologia; intelectualmente, como possibilidades espirituais que se podem
realizar.
• Categorialmente, distingam-se: a mera alteridade, ou diversidade
(por exemplo, cor e som) e o contraste; neste, por sua vez, a pola-
ridade (vermelho e verde) e a contradição (verdadeiro e falso).
Trata-se de uma forma universal de todo pensar (que não se
pode completar sem um e outro, isto é, sem distinção e sem, pelo
menos, dois pontos de referências) e de uma forma de todo ser,
tal qual nos aparece (porque nossa razão nada pode pensar que
não tenha outra coisa externa a si; e para a razão, todo ser é im-
pensável, se não houver polarização e- cisão simultânea).
• Biologicamente, vemos polaridades reais: na inspiração e expira-
ção, na sístole e diástole, na assimilação e desassimilação do me-
tabolismo; no antagonismo das funções que se sucedem nesses
ritmos; a vigília, produz o sono; o sono, a vigília. Nos ciclos funci-
onais de que a secreção é parte, o mesmo acontece até em con-
trastes (o basedowismo e o mixedema encerram, em seu con-
traste, algo que os. assinala como variações na direção de polos
opostos). Polaridade básica de toda vida, é sua fragmentação e
reunificação no masculino e feminino).
• Psicologicamente, os contrastes polares não são menos efetivos.
Assim, é que a atividade e a passividade representam, consciente
e inconscientemente, polaridades dos estados e impulsos psíqui-
cos, como são o prazer e o desprazer, o amor e o ódio, o autoa-
bandono e a autoafirmação. Mais ainda: a vontade de poder e o
impulso a submeter-se: vontade própria e sentimento de comu-
nidade (eu e nós); o impulso para o dia, para a autonomia, a res-
ponsabilidade, a ação, a vida, e o impulso para a noite, a clan-
destinidade, a irresponsabilidade, o repouso, a morte; o impulso
para a ruptura da ordem e para a subordinação. Contrastes e
polaridades desenvolvem-se, pois, sem limites, dominando, com
grande riqueza de variações, os preceitos da psicologia compre-
ensiva, toda a qual se move dentro de contrastes, ou polaridades.
• Intelectualmente, a polaridade vem completar valorações opostas:
o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o bom e o mau, o positivo e
o negativo. A mente capta todos os contrastes que sequer vão
acontecer, por si mesmo inconscientes, reconhece-lhes a signifi-
cação, contempla-os como símbolos, desde os polos espaciais,
acima e abaixo, à esquerda e à direita, através da escuridão e da
luz, até os polos biológicos (quais sejam, masculino e feminino) e
também capta os antagonismos psicológicos: prazer-desprazer,
alegria-tristeza, luto-exaltação e ruina). Essencial à mente, no
entanto, é o movimento que se realiza em si e consigo mesmo,
caminhando de um polo ao outro, não suportando contradição,
tentando, por isso, superá-la todas, reunindo polaridades preser-
vando-as através de tensões cada vez mais amplas.
Pela mente, trabalhando sem cessar, fazem-se conscientes a circuns-
tância de que todos os contrastes se relacionam e a forma por que isso se
dá, porque ela reconhece, em toda parte, o fenômeno básico em perpétua
modificação, captando-o e realizando-o- em si mesmo. Os contrastes não
só existem, como movimentam todo ser; relacionados uns com os outros,
são origem do movimento constante, chamado dialética. Daí não se dispor,
ou até insurgir-se a razão conservadora, que pretende saber o que existe
como fato estabelecido; daí também a impropriedade de qualquer definição
terminológica, quando a realidade é dialética.
2. Modos dialéticos.
Na realidade psíquica, os contrastes portam-se de três maneiras em re-
lação uns aos outros:
1) Sem consciência; convertem-se uns nos outros, com o tempo: tal
qual a inspiração se converte em expiração, assim o entusiasmo converte-
se em depressão; o amor, em ódio; e vice-versa. Ou:
2) Os contrastes lutam uns contra os outros; aquilo que é polarmente
oposto faz-se presente na mesma psique, um contraste lançando-se contra
o outro. Ou:
3) Eu opto entre contrastes, o favorecimento de um excluindo o outro.
— Na conversão, dá-se um evento-, na luta, uma ação-, na opção, uma
decisão.
Estes dois últimos modos dialéticos levam a movimentos radicalmente
diversos: à síntese do “tanto quanto-também” e à opção do “ou isto ou
aquilo”.
A síntese ajuda os contrastes numa tensão construtiva, de modo que,
instantaneamente, é possível um todo resolver-se harmoniosamente; reso-
lução que, decerto, há de novamente mover-se sem tardar, caminhando,
porém, para a construção, através da riqueza e amplitude da realização, e
reunindo tensões opostas. O todo unitário dos contrastes vale como ori-
gem e fim, movimentando-se através de oposições no sentido da plena ma-
nifestação. Aqui, a dialética conduz ao todo.
Inteiramente outra é a opção. Ante o “ou isto ou aquilo”, -o homem tem
de optar pelo que é e pelo que quer. Na incondicionalidade de uma decisão
que exclua outras possibilidades, ganha-se a firmeza da seriedade e da
responsabilidade. O final está nas contradições da existência, das possibi-
lidades universais, constranger-se antes as quais, fugindo delas, mesmo
que na harmonia total mais grandiosa, se afigura desonesto. Há um mo-
mento em que a realidade consiste em atuar bem ou mal e em que se faz
impossível a perspectiva totalizante que tudo abranja e que exclua os con-
trastes. Aqui, a dialética conduz ao limite da opção.
Os perigos que a psique encontra em ambas as vias são peculiares.
Quando quer o todo, o contempla, o sente, ela pode afundar, sem perce-
ber, na moleza; pode refugiar-se na totalidade esteticamente sedutora;
pode descaracterizar-se, fazer-se irresponsável, sofística, usando os recur-
sos da dialética do “tanto quanto- também”. — Todavia, quando busca o
solo firme da decisão, pode a psique, desprezando o outro lado dos pares
opostos, tomar-se brutal, empobrecida, desvitalizada na calma da unilate-
ralidade; e sucumbir, mais tarde, ao efeito do sacrifício e da exclusão, do
recalque, efeito que dela se apossa, por assim dizer, sub-repticiamente,
sem que o perceba.
Se, em ambas as vias, virmos o positivo — no “tanto quanto- também”,
o meio-termo como tensão que reúne os contrastes para construção de to-
talidades; no “ou isto, ou aquilo”, a opção como origem que fundamenta,
incondicionalmente, a responsabilidade — e também o negativo — num, a
falta de nitidez; noutro, a estreiteza; em ambos, uma inveracidade especí-
fica — não poderemos opor o positivo de um ao negativo de outro; manter,
sim, ambos os positivos em contradição.
Como é, todavia, que a psique pode comportar-se em relação a estas
duas possibilidades dialéticas básicas? Terá de sustentar uma contra a
outra? Ou encontrará uma síntese da síntese e antítese (do todo e da op-
ção)?
É fundamentalmente característico da situação humana no - tempo o
fato de ser irrealizável a síntese de síntese e antítese. Quer dizer, nossa
existência tem de escolher e desenvolver seu destino, historicamente, na
sorte e no risco; e a solução correta some ante as limitações trágicas e as
possibilidades redentoras transcendentais.
Existe uma forma de pensamento universal, que é dialética em suas
transformações e que se opõe, no contraste, à forma racional de compre-
ender, da qual se serve, superando-a. A compreensão da psique é, neces-
sariamente, dialética, proporcionando satisfação específica, quando se
concebem as situações, fatos e movimentos humanos.
3. Exemplos de compreensão psicopatológica pela dialética dos
contrastes.
Mede-se a saúde psíquica pela seguinte ideia: na alma, normalmente,
originam-se dos contrastes unificações plenas, quer mediante opções cla-
ras, decididas, quer mediante sínteses amplas; anormalmente, autono-
miza-se uma tendência, sem ocorrer, de modo geral, contraefeito; ou não
se dá unificação alguma; ou ainda, é a contratendência que assume auto-
nomia especial e absoluta. Medidas desta ordem podem-se aplicar à aná-
lise compreensiva das psicoses e neuroses.
aa) Nos esquizofrênicos, veem-se exemplos em que, drasticamente,
uma tendência se autonomiza, sem contratendência, a obediência auto-
mática aos comandos, a ecolalia, a ecopraxia; os doentes estendem a lín-
gua para fora, quando mandados, mesmo sabendo que vai ser picada; fa-
zem movimentos sem sentido, repetem perguntas. — Quanto a falhas da
unificação: a acentuação afetiva, a um tempo positiva e negativa, do
mesmo objeto, que Bleuler chama ambivalência,1 levando, no psiquismo
normal, a opções claras ou a construções sintéticas, ao passo que, na es-
quizofrenia, podem os enfermos, em simultaneidade indecisa e desconexa,
odiar e amar ao mesmo tempo; ou considerar alguma coisa, ao mesmo
tempo, certa e errada, de modo que, embora conservada a orientação cor-
reta, são capazes de aderir, convictamente, a uma orientação delirante. —
Quanto à autonomização da contratendência: negativismo: os pacientes a
tudo se opõem, ou fazem, exatamente, o contrário; vão à privada, mas ali-
viam-se onde não devem; têm de comer, mas não comem, embora compra-
zendo-se em tirar a comida de outros doentes; nos casos clássicos, o paci-
ente a quem se mandou avançar retrocede; certa paciente que saiu para o
jardim debaixo de chuva torrencial declarou: O sol está queimando e bri-
lhando. Kraepelin interpretou desta forma certos estados estuporosos, nos
quais observou movimentos rudimentares: haveria bloqueio resultante de
contraimpulsos, em oposição à simples inibição do evento psíquico e, ao
mesmo tempo, também das manifestações motoras; umas vozes dizem ao
paciente, de quando em quando, o contrário do que pretendem; por exem-
plo, a aclamação “bravos” quer dizer que o doente não devia ter feito o que
fez.
bb) Nas neuroses, interpreta-se como falha tanto da unificação de con-
trastes quanto da opção; por exemplo, a incapacidade de decidir, a incapa-
cidade de terminar, de acabar alguma coisa. Sobretudo, porém, os psicote-
rapeutas têm demonstrado a dialética de tensão e relaxamento, na qual
reside uma polaridade que vai do biológico ao psíquico e ao mental; dos
músculos, por via da vontade, até a atitude básica da concepção existen-
cial. Mas aquilo que, evento fisiológico, leva ao equilíbrio, naturalmente,
através de variações rítmicas, a psique transforma de mero evento em en-
cargo, o qual só se pode resolver, se qualquer evento vital feliz vier a sus-
tentar o movimento; isso, no entanto, apenas com a contribuição ativa, es-
forçada, do homem, que só na ação interior se torna aquilo que é. Fisiolo-
gicamente, existem espasmo e flacidez; mais a saúde, que não é uma
coisa, nem outra; psiquicamente, existem rigidez e frouxidão, obstinação e
indecisão; mais a vontade resoluta, clara, que não sucumbe a estes con-
trastes. As polaridades de tensão e relaxamento, indispensáveis a que se
dominem todos os outros contrastes, dão origem aos movimentos; estes
desviam para a rigidez ou a frouxidão; ou então, partindo da tensão e se-
guidos de relaxamento, levam a nova tensão, na síntese a cada momento
bem sucedida.
4. Afirmação da apreensão psicopatológica em contrastes absoluti-
zados.
Se se observarem os esforços da psicologia e da caracterologia compre-
ensiva, ver-se-á a importância suprema dos contrastes. Cada contraste
que não seja de todo indiferente atua, assim que se faz consciente, de ma-
neira absolutamente compulsiva; a tentação de nele ver, a cada momento,
a essencialidade a que as mais profundas energias se associam parece
quase inevitável. Quando se aplica a um contraste que atue pela compre-
ensão de todo o psiquismo, mais indeterminado e mais multívoco ele se
torna. Aparentemente, afigura-se universalmente ilustrativo, mas, na rea-
lidade, veio a transformar-se em senha que sempre se ajusta, mas, afinal,
quase não exprime do que oposição generalizada.
Pode-se encontrar alguma coisa analógica em vários contrastes, uni-
versalizados desta sorte; por exemplo, quando se comparam a posse obje-
tai e o narcisismo (Freud), a extroversão e a introversão (Jung), a objetivi-
dade e a subjetividade (Kunkel).
A atitude básica, quando se universaliza um contraste, está ou na vi-
são de duas possibilidades polares equivalentes (extroversão-introversão),
ou na oposição de-alguma coisa que valora e alguma coisa que desvalora
(o que vive e o que perturba a vida); é a concepção freudiana da sensuali-
dade dos impulsos e da moralidade que recalca; klagesiana da alma e da
mente (que é adversária da alma). Ao dualismo demonológico de Deus e
Diabo contrapõe-se uma visão total pandemônica, conciliatória.
Acreditamos perceber o erro que resulta de toda absolutização de um
contraste; daí cada contraste, na respectiva polaridade, afigurar-se-nos
utilizável à compreensão e, num sentido ou noutro, limitado que seja, per-
tinente; mas também se nos afigura não ser possível destacar para o co-
nhecimento uma totalidade polar a ponto de poder-se compreender, sem
limitação, o todo da existência humana. O que é compreensível, no en-
tanto, quanto mais profundamente se apreende, a si mesmo excede, indo
até a in- compreensibilidade do fundamente vital, extraconsciente, e a in-
compreensibilidade da existência histórica, absoluta.

b) Círculos da vida e da compreensibilidade.


A dialética é a forma em que os fatos básicos das conexões compreen-
síveis se nos fazem acessíveis; neles não existe evento unilinear, mas reci-
procidade constante, repercussão sobre os motivos, progressão que se am-
plia ou se estreita de círculos movimentais.
Um sentimento exprime-se na mímica e no gesto; um e outro intensifi-
cam, retroativamente, o sentimento, diferenciam-no, levam-no a que se
desenvolva. — Um impulso obscuro manifesta-se em atos, em ideias, em
obras produzidas; este mesmo impulso fortalece-se, por isto, determina-
se, realiza-se. — O homem defende-se contra impulsos interiores, que não
quer aceitar; os impulsos fazem-se, por isso, mais fortes; ou menospreza-
os, dá-lhes pouca oportunidade; e eles enfraquecem-se.
Não é só na psique em si que se apresentam esses círculos; mas, justa-
mente, no desenvolvimento da psique em seu mundo. À proporção que o
homem vai conformando as coisas, elas o marcam, retrogressivamente. Os
fatos levam a acréscimos e conversões.
Toda transformação, propriamente, todo viver, todo fazer tem de aca-
bar-se no todo, tem de edificar-se em círculos. O acontecer, o querer, o
persistir unilineares implicam limitação, vêm a dar em rigidez, levam ao
declínio. O homem tem sempre de pairar, por assim dizer, em sua atitude
de compreensão, tem de abandonar o solo firme da certeza, saltando — di-
gamos assim — para os círculos. Deixa de compreender o sentido da vida
se quiser captar sem risco uma coisa ou outra, se quiser ter, apenas, sem
perder também: se quiser, apenas, valer sem ser menosprezado, apenas
viver, sem também morrer. Para dizer a verdade, tem sempre de aceitar o
que se opõe, expor-se ao risco, deixar-se machucar, admitir o sofrimento
como fase de todos seus movimentos. Tudo- quanto é mero “isto”, sem
oposição, significa fixação, perda de- tudo mais, dando, sem tardar, na fi-
xação de alguma coisa que já deixou de ter vida. Em sentido contrário fun-
ciona a ampliação da vida compreensível, através da abertura dos círculos
aos: movimentos e perigos dialéticos. Toda intenção dialética, toda. fixação
racional nada mais é que momento, momento indispensável, na totalidade
dos movimentos circulares, dos quais, e só dos. quais, lhe vem o sentido, a
medida, a condição de sua realização. É nos círculos que as ideias apare-
cem, que aparece tudo quanto encerra alguma coisa, que aparecem a exis-
tência, o espírito, a vida. Rompam-se os círculos, e outros novos se forma-
rão.
Podem-se comparar a existência compreensível e a biológica. Mas tam-
bém o biológico tem sempre de conter-se em círculos; por exemplo, os cír-
culos do evento endócrino-neurológico (H. Marx). Os simples antagonis-
mos dos increta atuando em sentido oposto não bastam; os círculos, no
todo, produzem o efeito vivo; o fortalecimento intencional de um dos fato-
res isoláveis acarreta alguma coisa que, conforme os círculos, conforme
rolam em certo indivíduo, atuará de modo diverso; daí a incalculabilidade
do espaço* em que nos movemos, porque só se pode calcular quando se
conhecem, no todo, os círculos. Outro exemplo: as funções do evento neu-
romuscular e sensorial só se podem conceber no todo da situação interna
e ambiental do organismo vivo (Gestaltkreis, von Weizsãcker). Compara-se
a estes exemplos também a vida compreensível: um realizar-se em círcu-
los, com a diferença, porém, de tratar- se, aqui, de evento consciente; e do
inconsciente, o qual, se não é portador de evento circular complementar,
representa origem de uma liberdade que é determinante, sem poder, ela
própria, ser sequer intencional e sem ser objeto de qualquer investigação e
inquirição empíricas. A tensão interna específica, a retroação sobre si
mesmo, o reforço mútuo ou o relaxamento — “as sendas misteriosas das
inversões interiores” (Nietzsche) — são os momentos incalculáveis do todo
compreensível que aparece nos movimentos psíquicos.
São os atos que determinam a existência, desde os primeiros anos de
vida. Uma criança que está começando a falar entra no quarto, vê o irmão-
zinho no colo da mãe, onde ela própria devia estar; para, hesita, vêm-lhe
lágrimas aos olhos; de repente, caminha em direção à mãe, acaricia-a e
diz: “Eu também gosto dele”. E continua a ser um irmão dedicado, afetu-
oso.
O biológico nada mais é do que analogia do compreensível; este contém
o risco, a ansiedade ante a necessidade do salto (sempre no círculo total),
a decisão, a criação; aquele, pelo contrário, contém o mero evento cíclico;
evento que sem ser, embora, mecânico, é automático, não-livre.
Os círculos compreensíveis são estáticos, quando configuram as estru-
turas expressivas, as totalidades caracteriais, as obras. Os círculos ora em
discussão são movimentos. E esses movimentos cíclicos compreensíveis
são de duas ordens, de espécies opostas: ciclos que intensificam a vida, ou
que a aniquilam. É verdade que toda vida compreensível se passa em cír-
culos, nos quais, entretanto, a vida pode edificar-se ou, eles mediante,
destruir-se. E é assim que o homem pode buscar superar resistências com
recursos- que, justamente, o destroem. Pode lutar contra alguma coisa de
modo a apenas intensificar aquilo que combate. Quererá ganhar prestígio
e, no entanto, só pensando em prestígio, e não naquilo a cuja obtenção se
pode, em certas condições, associar prestígio, atuará de modo tal que atra-
irá o desprezo seu próprio e dos outros; com o que voltará, tanto mais
forte, sua ânsia de prestígio, esporeando-o a novo comportamento, bal-
dado e pior ainda. Os psicoterapeutas usam, a este propósito, a expressão
“círculo diabólico”’ (Kunkel), que, não mais círculo construtivo realmente
vital, é círculo vicioso. O comportamento compreensível transforma-se em
esperneio, no qual o extraviado mais não faz do que cada vez mais afogar-
se em um pântano. Ao círculo criativo opõe-se, então, aquele que aniquila;
àquele que liberta e expande, aquele que inibe e restringe.
São múltiplos os círculos nos quais os distúrbios por si mesmos- se in-
tensificam. A ansiedade transforma-se em ansiedade ante a ansiedade e
cada vez maior se faz. Uma excitação, ao mesmo tempo que. é combatida,
aumenta. Um afeto toma-se desmedido porque o indivíduo o verbaliza e se
lhe abandona. A zanga transforma-se em furor. A obstinação faz-se cada
vez mais obstinada. Ou, inversamente, um impulso cresce, quando recal-
cado; o homem sexualiza-se, querendo reprimir sua sexualidade.
Estes círculos tornam-se neuróticos pelo impacto de mecanismos, os
quais fragmentam aquilo que, normalmente se mantém ligado; isolam.
aquilo que, normalmente, se insere no todo. É assim que o inconsciente'
se faz inacessível ao consciente. O recalque adquire vida própria cada vez
mais nítida, em oposição ao impulso recalcado. O eu sente-se- dominado
por um outro que, no entanto, faz parte dele.

§ 4. A Autorreflexão

Pode-se dizer: no que o homem faz, quer, produz, exprime-se o modo


por que se compreende a si mesmo no mundo. O que chamamos psicolo-
gia compreensiva é, portanto, compreensão dessa compreensão. Mas há
certa característica básica da existência humana pelo qual o homem,
como homem, já realiza, ele próprio, uma compreensão de sua compreen-
são, formando o conhecimento de si mesmo: a autorreflexão é inseparável
da psique humana compreensível. Daí já se explicar em todas as conexões
compreensíveis pelo conteúdo e pela forma, acima discutidas. A autorrefle-
xão pode parar de onde parte; o fazer no mundo e o conhecimento das coi-
sas podem realizar-se, de modo geral, inconscientemente; ou seja, sem au-
torreflexão. Mas o começo e a possibilidade da autorreflexão tornam hu-
manas todas as atividades psíquicas.
A psicologia compreensiva tem de entender a autorreflexão que ela pró-
pria realiza. Daí por que realizamos, quando a praticamos, em relação a
outro homem, aquilo que ele ainda não realizou em sua autorreflexão; ou
compreendemos sua autorreflexão, nela participamos e a fazemos progre-
dir.

a) A reflexão e o inconsciente.
A autorreflexão coloca-se dentro da relação ampla entre consciente e
inconsciente. Primeiramente, consideramos a esfera conjunta daquilo que
chamamos reflexão; & o que é o esclarecimento, quando separamos o que
se relaciona:
Todo esclarecimento da vida psíquica começa pela separação em su-
jeito e objeto (eu e objeto). O que sentimos, vivenciamos, desejamos só se
nos esclarece quando imaginamos ou ideamos, objetivando, configurando,
pensando; enfim, o esclarecimento está na objetificação. É nessa separa-
ção que a reflexão ulterior se realiza: volto-me para mim mesmo, reali-
zando a reflexão sobre mim mesmo, isto é, a autorreflexão; reflito sobre to-
dos os conteúdos, como sobre as imagens e símbolos, a que, como objetos,
de início me prendo, sem consciência disso; e indago o que são. A consci-
ente intensifica-se de forma ilimitada, até dar a consciência do que é cons-
ciente. Finalmente, realizo a reflexão sobre a separação sujeito-objeto no
todo, ou seja, faço-me a mim mesmo consciente na transcendência filosó-
fica, conforme para mim ocorre, nessa separação, a manifestação do ser.
Em toda reflexão, o esclarecimento de uma obscuridade até então in-
consciente propicia libertação’, por exemplo, libertação do vínculo que
existe na obscuridade daquilo que não se separou ainda; libertação do ser-
assim atual do eu; abandono aos símbolos que me constrangem sem que
o perceba; libertação da realidade objetai absoluta.
Toda libertação de “alguma coisa” leva a inquirir libertação “para
que?”. Do vínculo existente na obscuridade daquilo que ainda não se se-
parou vejo-me livre quando apreendo os objetos; é, por assim dizer, uma
redenção saber o que, até então, apenas sentia; sabendo o que me acon-
tece, dou o primeiro passo livre da dominação na qual tudo ignorava. — A
partir do ser-assim atual do eu, tal qual o imagino, quando me transformo
no objeto existente, a autorreflexão liberta-me para a execução da tarefa
de tornar-me eu mesmo; da definitiva atualidade chego à possibilidade. —
Da vinculação simbólica caminho, conhecedor dos símbolos, para a liber-
dade que os transforma. — Do acorrentamento ao ser presumidamente
absoluto, na existência objetai, transcendo, consciente da manifestabili-
dade existencial, ao ser que, não objetai, só se faz claro por si, no entanto,
através das possibilidades objetivas totais.
Toda libertação implica perigo. Todas essas libertações mediante a re-
flexão levam à insegurança, fazem que se percam a matéria, a terra, o
mundo, a não ser que, a cada passo da libertação, subsista uma vincula-
ção suscetível de transformação, mais intensa à medida que a libertação
se acentua; a não ser que, na objetificação, subsista a percepção da obs-
curidade total original; a não ser que, tornando-me eu mesmo, assuma e
aproprie aquilo que conquistei, existencialmente; a não ser que, supe-
rando símbolos estabelecidos, a essência simbólica porte a vida total; a
não ser que, transcendendo, se realize, decididamente, a fusão no próprio
mundo. O pairar que a liberdade cria só não se torna inseguro quando
permanece atado de um modo ou de outro; quando minhas asas não per-
dem a resistência do ar no vácuo.
Do ponto de vista psicológico, formula-se a insegurança como sendo
extinção do inconsciente, de que vivo, a rigor, em todos os graus da cons-
ciência. É sempre o inconsciente que me traz os impulsos, o material, os
conteúdos; do inconsciente é que há de vir-me aquilo que me possibilita
viver, desde o fazer cotidiano, automatizado, até os incidentes do configu-
ramento criativo e do pensamento inventivo; além daquilo que me dá os
conteúdos de minha liberdade, quando decido. O que há de mais claro re-
pousa na obscuridade do inconsciente; todo esclarecimento implica que
alguma coisa clareia.
Não vivemos na simples polaridade de intenção (razão, vontade) e in-
consciente. Na verdade, de nossa existência psíquica e intelectual resulta
uma série estrutural em que esta relação de consciente e inconsciente, se
transforma, série na qual jamais existe um estádio sem outro, sob pena de
colapso psíquico, ruína e destruição. A vontade pujante e clara, quando é
pleno o conhecimento, vem a ser, nuclearmente, inconsciente, ao mesmo
tempo que constitui realização, a todo momento, ou seja, passo à frente no
esclarecimento humano inconclusivo; esclarecimento que não suprime o
reino do inconsciente, mas o amplia, dele consciente, simultaneamente, de
maneira ilimitada.

b) A autorreflexão impulsionadora da dialética psíquica.


Chamamos mero evento aquilo que se passa sem consciência significa-
tiva; vivência, porém, é o evento que capta uma significação; a autorrefle-
xão é, pois, momento indispensável da vivência, porque toda consciência
significativa contém uma autoconsciência.
A autorreflexão distingue-se, contudo, essencialmente, do conheci-
mento. O “conhecimento do conhecimento” não é o mesmo- que o próprio
conhecimento. O conhecimento transforma uma coisa em objeto, dá-lhe
existência, disponibilidade. A autorreflexão, entretanto, é o conhecimento
que, objetivando-se, se altera, por isso mesmo, de imediato. Daí a autorre-
flexão jamais atingir a quietude do conhecimento de algo que permanece,
que eu sou, mas estar sempre impulsionando para diante.
Por assim dizer, a autorreflexão é o fermento pelo qual tudo quanto é
dado se transforma n’algo de que nos apropriamos; o mero evento trans-
forma-se com a autorreflexão — e pela elaboração — em história; o curso
existencial, transforma-se em história existencial, ou biografia. Para com-
preender a autorreflexão, temos, por conseguinte, de entender-lhe a essên-
cia na respectiva estrutura.
c) Estrutura da autorreflexão.
A estrutura da autorreflexão é hierárquica, não havendo autorreflexão
única, unívoca.
1) Auto-observação. Noto em mim fenômenos, maneiras por que
percebo, recordo, sinto etc. Determino o que existe nos fenôme-
nos fugazes, sempre escapando à observação. Há uma distância
entre mim, que observo, e aquilo em mim que observo como ob-
jeto estranho. Comporto-me de modo neutro, tal qual me com-
porto em relação a qualquer coisa que me é dada.
2) Autocompreensão. Interpreto o que em mim ocorre, baseado em
motivos e conexões; procuro esclarecer-me. Mas se isso ocorre
ainda dentro de minha observação, como observação que é, uma
quantidade de possibilidades se apresentam. A interpretação que
compreende é também, de referência a mim mesmo, infinita; é
sempre relativa. Afinal, não sei o que sou, o que é que em mim
atua, que motivos são, a rigor, decisivos. Tudo quanto é, em ge-
ral, possível reconheço também em mim, aqui ou ali, talvez
oculto, como possível. A autocompreensão leva, pela simples as-
piração ao conhecimento, à insegurança.
3) Autorrevelação. No meio em que se dá a autocompreensão pas-
siva, ocorre a revelação verdadeira, mediante a seriedade de um
envolvimento originado em atividade que, filosoficamente, abran-
gemos com a denominação de ato interior, incondicionalidade de
opção; mas que escapa à determinação psicológica, ao passo que
as crises da autocompreensão, de seus disfarces e inversões, são
sempre, psicologicamente, acessíveis. Ninguém ultrapassou Kier-
kegaard na arte de tomar sensível a revelação através de cons-
truções conceituais, dentro da compreensão. Aqui anotamos,
apenas, algumas distinções que interessam ao psicólogo.
Não é só pela simples contemplação que a revelação se dá. Só mesmo o
ato interior, no qual, ao mesmo tempo, me transformo, é que me permite
revelar-me. A reserva que recusa revelar-se pode ocultar-se, precisamente,
na revelação aparente, na divulgação sem peias da intimidade, na confis-
são maciça, na introspecção e na loquacidade infinitas, no rejubilar-se
com a contemplação dos fenômenos interiores. Mas revelar-se não consti-
tui processo objetivo, como o é o conhecimento da natureza; constitui,
sim, ato interior que é, autoapreensão, auto-opção, apropriação. É mera
pseudo-honestidade aquilo que se vê na desinibição com que, presumida-
mente, se proclama a verdade; o que nela se fixa já é, precisamente, inve-
rídico. A honestidade da revelação é tão chã quanto profunda, simples,
atuante.
A revelação faz parte do ser-si mesmo, e este nunca é ser- objeto. O
que é, como objeto, conhecido, determinado, unívoco, nunca é a mesma
coisa que eu, a rigor, sou. A relação básica do ser-objeto está no evento
dependente da causalidade; a relação básica do ser-si mesmo está no
comportamento em relação a si mesmo, isto é, na elaboração, no ato inte-
rior, na autodecisão.
Aspirar, definitivamente, ao conhecimento é, na autocompreensão,
ponto de partida básico radicalmente errado. A incondicionalidade da op-
ção existencial aparece na mobilidade sem limites das interpretações pos-
síveis; para o conhecimento, tudo se suspende quando há ordem existen-
cial. Aquilo que se faz, neste ou naquele momento, é certo, sim, mas sem-
pre sujeito a interpretação ulterior. Não se sabe, nem se pode saber, preci-
samente, a unidade da origem, nem a linha que dela parte, através dos fe-
nômenos, guiando estes; porque ela própria movimenta e orienta ainda
todo saber; nele, e não por ele, aparecendo.

d) Exemplos de autorreflexão no efeito respectivo.


Em vez de seguir os rumos e conteúdos da autorreflexão, seleciona-
mos, aqui, alguns exemplos mais notáveis, do ponto de vista psicopatoló-
gico.
1. A conexão entre o evento intencional e não-intencional.
Um dos grandes contrastes que ocorrem na vida psíquica é aquele en-
tre o ato intencional e o devenir, entre a- intenção (atividade) e o evento
(passividade). Intenção é a propositabilidade que emerge da reflexão. Toda
riqueza, toda plenitude, todo conteúdo psíquico depende de disposições
que se acham fora da intenção (talentos, impulsos, disposições afetivas,
impressividade etc.). A intenção só pode limitar, selecionar, inibir, estimu-
lar. O psíquico sem a intenção cresceria e desenvolver-se-ia tal qual uma
existência privada de alma, de objetivo, de consciência. A intenção nada
alcança sem a plenitude que a estimule ou iniba; bate, enfim, tal qual me-
canismo vazio.
A influência da intenção estende-se — individualmente, de modo muito
diverso — muito além dos fatos conscientes, de tal modo que, por exem-
plo, o homem pode, intencionalmente, despertar e adormecer a certa hora.
O efeito intencional da vontade sobre o corpo é de três tipos:
1) O efeito direto da intenção; por exemplo, nos movimentos, na re-
pressão de manifestações dolorosas, na simulação de paralisia.
2) O efeito indireto da intenção: a pessoa estando de ânimo abatido,
vêm-lhe prantos, taquicardia.
3) Os efeitos resultantes da intenção, sem que a consciência perceba
por que, residem na simples imaginação, ou na acentuação afetiva de ima-
gens e atitudes vividamente evocadas. Assim é que o efeito sugestivo tem
expansão muito maior do que aquele diretamente intencional: note-se, po-
rém, que este mesmo efeito auto- sugestivo se produz e se orienta por
força da intenção.
É sinal de psiquismo sadio o fato de apresentar-se intata a relação re-
cíproca entre a intenção e o mero evento. Na medida em que o evento in-
tencional se autonomiza e a vontade deixa de influenciá-lo, somos levados
a indagar das causas dos fenômenos que é frequente valorarem-se como
mórbidos. Se existem intenção e influência desta, escassas, porém, as dis-
posições psíquicas que a influência há de movimentar e inibir, falamos em
indivíduos psiquicamente pobres. Os efeitos da psique sobre o corpo, efei-
tos que chamamos histéricos, não se podem dizer mórbidos enquanto
ainda se acham sob o controle intencional.
Certa ocasião, observamos uma família rural de espíritas. Um dos fi-
lhos trouxera de fora a doutrina espírita. Os parentes, incrédulos, puse-
ram-na à prova, mas não tardaram, primeiro um, depois outro, a praticar
a “escrita automática”; por fim, todos, menos a mãe, conseguiram certa
dexteridade, acreditando comunicar-se com amigos e parentes e reali-
zando sessões, regularmente, num aposento para isso reservado. Numa
dessas sessões, observamos danças oníricas, ataques, com o uso de ex-
pressões fragmentárias providas ou não de sentido, além da escrita auto-
mática. Tudo era tido pela família como sendo evocado pelas almas de
pessoas falecidas. Os gritos daqueles que caíam com ataques eram mani-
festações dos espíritos. Em coisa alguma os fenômenos se distinguiam dos
histéricos, ocorrendo, no entanto, apenas quando as pessoas queriam, isto
é, quando se dirigiam, com esse propósito em vista, para aquele aposento.
A saúde delas era boa, dado que não se lhes notava fenômeno histórico al-
gum, na vida habitual. Tal qual o sono intencional é ora bom, ora mau,
conforme a disposição, assim também os “fenômenos” espíritas se apre-
sentavam, em sessão, ora mais, ora menos nítidos. Vários membros da fa-
mília vieram, contudo, a adoecer de histeria.
A relação recíproca entre o intencional e o inintencional só se pode per-
turbar de maneira dupla:
Primeira: A intenção sente-se dominada, impotente, contra o evento
inintencional. O indivíduo são entrega-se a todas as possibilidades vivenci-
ais interiores que ocorrem sem intencionalidade, perdendo, no entanto, só
momentaneamente sua própria influência, mesmo quando a entrega
chega ao êxtase. Vivencia-se o domínio da inintencionalidade nos inúme-
ros fenômenos mórbidos condicionados pela constituição individual ou pe-
los processos que vão surgindo. O evento inintencional — o automatismo
da impulsividade — prossegue, escapando ao controle intencional, mesmo
que se alterem a situação e a intenção.
Segunda: A intenção influencia, certamente, os processos inintencio-
nais; não os orienta, no entanto, segundo sua propositalidade, mas inter-
fere, perturbando-o, em seu curso espontaneamente finalístico e orde-
nado. Por exemplo, em vez de levar ao sono, leva à insônia. A concentra-
ção plena de atenção numa atividade perturba-lhe a produção. Inintencio-
nal e automaticamente, ter-se-ia rendimento muito melhor. Os indivíduos
que se acham nessas condições sofrem, principalmente, “da apercepção
tormentosa do momento presente”; onde quer que estejam, o que quer que
façam, assim que o propósito consciente interfere, atrapalham-se e nada
conseguem intencionalmente; é só despreocupados que realizam o má-
ximo de que são capazes.
Impulsos e instintos não se determinam, como os reflexos, pela mesma
reação motora; a segurança instintual apresenta-se, sim, na escolha in-
consciente, ajustada à situação momentânea, do rumo que leve à satisfa-
ção do impulso. O instinto perturba-se quando falha o controle natural
dos mecanismos de transmissão, ou quando a busca do objetivo deixa de
ser unívoca. Uma coisa e outra se dão pela reflexão da consciência (mais
radicalmente, pela inversão dos próprios impulsos, pelas vinculações as-
sociativas, pela fixação em atitudes infantis, conforme acima se discutiu).
Mas se a reflexão quiser, intencionalmente, melhorar, o que acontece é au-
mentar o distúrbio. Se falharem os mecanismos de transmissão, terá a in-
tenção de fazer aquilo que o instinto já não realiza: movimentos expressi-
vos propositais, fala forçada, gestos e atos penosos. Falhando univocidade
do objetivo impulsivo, sempre apenas semiconsciente, a intenção deter-
mina o objetivo, mas nem o impulso, nem os mecanismos transmissores
obedecem.
Impulsos e instintos, em seu curso complexo independente da consci-
ência, estão sujeitos, no homem, ao controle que pode usar a intenção
para libertá-los, promovê-los, inibi-los. Mais ainda: o homem amplia, pelo
aprendizado e pela prática do fazer consciente, seu reino de eventos auto-
máticos; por exemplo, nossa motricidade total, que vem a incluir a escrita,
o andar de bicicleta etc., nós a realizamos, primeiro, consciente; depois,
automaticamente. É só pela plenitude do automatismo que atingimos o
máximo das prestações de que somos capazes. Daí automatizarem-se em
instrumentos ou ferramentas a todo momento disponíveis certos cursos
mentais e técnicas investigatórias complicadas. Aquilo que tomou, a prin-
cípio, muito tempo abrevia-se na posse de uma função quase instantanea-
mente realizada. O que é instintivo, impulsivo, automático — toda a multi-
plicidade do evento inconsciente — atinge os rendimentos conscientes
mais elevados; sempre baseado nalguma coisa que é inconsciente. A sa-
úde é o entrejogo seguro, que se processa em todos os níveis, dos reflexos
para os atos mais nitidamente volitivos. O homem não pode confiar nos
instintos, que não o dominam, não lhe escapam, constituindo material
que ele controla, eles próprios dando os impulsos controlados que dirige
graças a uma certeza penetrante, que jamais se alicerça suficientemente
no só propósito e pensamento. Daí serem movediços; plásticos, e não me-
cânicos; instáveis, e não fixos.
2. A consciência da personalidade.
A consciência pessoal de si mesmo resulta da reflexão, da qual lhe vêm
as variações, os matizes, as decepções.
A consciência plenamente desenvolvida da personalidade, na qual o
homem é consciente de sua totalidade, de seus impulsos e motivos perma-
nentes, de suas constantes valorações não está presente a cada momento
e, afinal, mais não é do que ideia; dessa consciência distinguimos, prefe-
rencialmente, uma consciência do momento que, em parte, se faz compre-
ensível pela reação ao ambiente momentâneo. Assim é que há um “eu im-
pressionai”, uma consciência especial, instável, da personalidade, consci-
ência que retrocede sobre o eu próprio pela impressão feita sobre os ou-
tros. Ou há, de modo muito geral, um “eu — situacional”, que aparece sob
a forma de oscilações mais ou menos nítidas, conforme a disposição indi-
vidual. Se pensarmos na reação ao ambiente, que não se realiza no mero
instante, e sim, em relação ao meio permanente, poderemos, então, ao eu
pessoal próprio opor um “eu social”; casos em todos os quais a consciên-
cia da personalidade se apresentou sempre formada por dois componentes
inseparáveis: o sentimento de autovaloração e a mera consciência do ser
especial próprio.
A todo tempo, é indispensável que o homem não só seja, como assuma
uma atitude. Não só ele se comunica, mas representa a si mesmo, isto é,
desempenha um papel, este variando segundo a tarefa, a função, a situa-
ção; papel que não é, apenas, exterior, mas, através da atitude externa,
gera atitude interior; e esta pode ser tentativa, ou tornar-se realidade. É
dom específico ao desempenho do papel a capacidade de assumir certa
atitude e modificá-la, alternativamente.
Não se responde, do ponto de vista psicológico, de que forma o homem
em particular é, propriamente, ele mesmo. Compreendemos por que cada
papel, e em geral quase todos os papéis, podem ser separados do homem
que os desempenha. O homem está fora do papel; o papel não é o próprio
homem. Mas o que é esse si-mesmo vem a ser inacessível, simples ponto
que é, externo. Ou é — não se pode apreender isso psicologicamente — a
mais íntima essência que não se representa; a interioridade que não se
transforma em exterioridade, não existindo, pois, empiricamente. Em opo-
sição, cada consciência da personalidade é primeiro plano.
Diverso é o caso, quando o homem se identifica com sua realidade no
mundo, atitude e ação derradeiras. Esse existir humano, historicamente
implantado, ou é de ver-se psicologicamente, porque será, então, restrição,
fixação, imobilidade; ou é o ser-si mesmo, propriamente, que transcende
toda investigação e toda reflexão; é, no cimo da reflexão infinita, o ser-si
mesmo irrefletido, que não existe para o conhecimento empírico e que,
existindo, só se mostra na comunicação histórica, não universal. Subsiste,
pois, a ambiguidade de todo fenômeno, por força da qual o homem se
identifica, no mundo, com sua realidade empírica; vale dizer, ou declínio,
ou realização pessoal.
Sob o aspecto psicológico, é impressionante como a consciência de si
mesmo se liga, indissoluvelmente, à consciência do próprio corpo, porque
o homem é seu corpo e, ao mesmo tempo, pela reflexão, se coloca também
ante seu próprio corpo. O fato de ser seu corpo leva à indagação objetiva
da relação entre corpo e alma. O fato de ser consciente, pela reflexão, de
seu corpo como algo que é seu e, no entanto, algo que lhe está diante, re-
presenta um momento de sua essência existencial. O corpo é a realidade
da qual se pode dizer: eu sou ele próprio; e ele é o instrumento para mim.
Esta duplicidade, a identificação com ela — porque: impossível dela sepa-
rar-se — a oposição a ela como a algo que não se reconhece pertencente
ao ser-si mesmo dá origem à ambiguidade da consciência corpórea de si.
3. O conhecimento básico.
Chamamos conhecimento básico' os pressupostos que servem de base
e abrangem todo o restante conhecimento; que residem mais em concep-
ções e imagens do que: em conceitos; que constituem a consciência da re-
alidade, em oposição ao que existe, em geral. O homem é tal qual seu co-
nhecimento básico; o que ele sabe de si mesmo é que lhe orienta o auto-
configuramento.
Uma vez que se reflita, esse conhecimento torna-se conceituai- mente
consciente; daí, ou se torna mais certo, mais consequente, mais consci-
ente, presente a cada momento, mais definitivo: enquanto o símbolo efe-
tivo era vago, livre, certo, o conhecimento* conceituai é fixo e dogmático;
ou então, o conhecimento básico se pensa em termos de possibilidade, se
inquire em termos de incerteza: o símbolo efetivo é fuga e o conhecimento
conceituai cai na. insegurança.
A participação no conhecimento básico de um homem — difícil de lo-
grar atrás da massa confusa daquilo que aparece e apenas, se fala — é in-
dispensável, se quisermos compreendê-lo. Quando se- lhe entendem os
pensamentos e processos mentais, aprende-se a ver, de um lado, quanto é
difícil penetrar na solidez, na limitação, na. clandestinidade e na definitivi-
dade do ser humano; doutro lado, percebe-se o perigo e realidade da inse-
gurança, quando ele, livremente resoluto, só é determinado pela realidade
concreta histórica, sem possibilidade de generalização.
A esta luz, faz-se claro o modo por que o homem se vê a si mesmo e o
mundo. Conhecer-se a si mesmo, fundamentalmente, não lhe é possível.
Mas, pelo fio condutor de suas ideias momentâneas — nas quais, em con-
dições ótimas, se inclui o conhecimento- de toda a psicologia e de toda a
psicopatologia — pode planejar esquemas que queira seguir, a menos que
se abra à amplitude e. profundidade das compreensibilidades e às possí-
veis interpretações, manifestando o ser.

§ 5. As Leis Fundamentais Da Compreensão Psicológica


E Da Compreensibilidade.

Quando se mede a compreensão pela escala das ciências naturais,


nota-se que se cai em contradições, incertezas, arbitrariedades., irritantes.
A inclinação que se tem é no sentido de menosprezar como não-científico
todo o processo. A compreensão impõe, todavia, outros métodos que não
os das ciências naturais; e aquilo que¿ é compreensível tem peculiaridades
inteiramente diversas do objeto das ciências naturais. Os métodos segui-
dos pela compreensão subordinam-se a princípios gerais que convém for-
mular expressamente, a fim de saber o que se faz na compreensão, o que
não é de esperar e em que pode residir, nesse campo, a satisfação peculiar
de. um conhecimento.
O que é compreensível tem qualidades a que correspondem, no- mé-
todo da compreensão, certos princípios:
a) O compreensível é, empiricamente, real só enquanto aparece em fa-
tos perceptíveis; ao que corresponde: toda compreensão empírica é inter-
pretação.
b) O compreensível tem, particular que é, conexão com o todo; deter-
mina-se, em seu sentido e seu colorido, por esse todo, pelo- caráter ou
pela personalidade; ao que corresponde: toda compreensão realiza-se den-
tro do “círculo hermenêutico”; o particular só é de compreender-se pelo
todo; o todo, porém, só através do particular.
c) Toda compreensibilidade move-se em contrastes; ao- que corres-
ponde: metodicamente, aquilo que se contrapõe é, igualmente, compreen-
sível.
d) O compreensível, realidade que é, prende-se a mecanismos extra-
conscientes e funda-se na liberdade; ao- que corresponde: a compreensão
é inconclusiva. Se bem que prossiga além de cada estágio alcançado, es-
barra nos dois limites (da natureza e da existência). À infinitude daquilo
que se está sempre compreendendo corresponde a inconclusividade da
compreensão que se segue.
e) O particular, como fato objetivo, como expressão, como conteúdo
pretendido, como ação, todos estes fenômenos psíquicos empobrecem-se
em seu isolamento; enriquecem-se em sentido pela conexão; ao que cor-
responde: a infinita interpretabilidade e re-interpretabilidade de todos os
fenômenos onde a compreensão para.
f) O compreensível pode não só revelar-se, mas também ocultar-se no
fenômeno; ao que corresponde: a compreensão é iluminação ou desmasca-
ramento.

a) A compreensão empírica é interpretação.


O que se compreende só tem realidade empírica na medida em que se
manifesta sob a forma de fatos significativos objetivos da expressão, dos.
atos, das obras. O critério de realidade de todas as conexões compreensí-
veis reside nesses fenômenos demonstráveis e em vivências que se fazem
fenomenologicamente evidentes. Decerto, são por si’ evidentes as conexões
compreensíveis: assim é que, com a força da fantasia psicológica, que é o
requisito que mais se pode desejar em. psicopatologia, estamos sempre
projetando aquilo que, simples projeto, nos convence; mas que, ante a rea-
lidade psicológica, é hipótese a comprovar. Quem faz a crítica apurada,
distinguindo aquilo que, pelas possibilidades, se compreende como evi-
dente e aquilo que se compreende empiricamente é o psicólogo compreen-
sivo científico, o qual relaciona cada passo de sua compreensão a fenôme-
nos objetivos, sabendo que toda compreensão se amplia em certeza com a
extensão da interpretabilidade aceitável dos fenômenos, sempre, no en-
tanto, subsistindo como interpretação, porque sempre ainda é possível ou-
tra compreensão.
A frase: o interno é o externo (o que não se faz externo também não
existe internamente) vale, mas só para aquilo que se pode conhecer empi-
ricamente na vida psíquica. Aquilo que, marginalmente, pode ser real sob
o ponto de vista existencial, como pura interioridade, escapa à compreen-
sibilidade. O interno sem o externo não é fato que se possa demonstrar
empiricamente. Mas a existência empírica não é absoluta e o compreensí-
vel é a conexão sujeita a interpretação entre fatos significativos, consti-
tuindo factualidade empírica que é, apenas o primeiro plano do ser-si
mesmo humano.

b) A compreensão realiza-se no círculo hermenêutico.


Compreendemos o conteúdo de um pensamento individual, compreen-
demos a retração amedrontada do corpo ante um golpe que o ameaça;
mas isoladamente é só de modo escasso e geral que compreendemos. Nas
ramificações isoláveis derradeiras exprime-se o todo de um ser, faz-se vá-
lida uma conexão objetiva, esgalham-se as motivações psíquicas. Daí a
compreensão alargar-se do isolado para o todo, a partir do qual o isolado
se desenrola em toda sua riqueza intuitiva. O compreensível é, realmente,
inisolável; e este é o motivo pelo qual nunca se esgota a coleção dos fatos
objetivos de que parte toda compreensão. Cada ponto de partida indivi-
dual pode, mediante fatos significativos que se reacrescentam, ganhar
novo sentido. A compreensão realiza-se, portanto, dentro do círculo que
origina o movimento dos fatos particulares no sentido do todo, onde se in-
cluem; movimento que retorna do todo atingido aos fatos interpretáveis
particulares, de forma que esse círculo se amplia, testando-se e modifi-
cando-se, compreensivamente, em todas suas partes. Nunca há solo firme
definitivo; o todo a cada momento alcançado é que a si mesmo se sustenta
na reciprocidade de suas partes.

c) O que se opõe é de imediato compreensível.


Talvez se compreenda que um indivíduo fraco e miserável deva con-
templar com despeito, ódio, inveja, desejo de vingança aqueles que são for-
tes, felizes, melhor dotados, porque a pobreza, psíquica se alia ao amargor.
Mas também se compreende, ao revés, que o fraco e miserável, resig-
nando-se, honestamente, com o que é, com sua realidade, ame aquilo que
ele próprio não é; que, estimulado pelo amor, produza, dentro do âmbito
de suas possibilidades, aquilo que lhe é possível conformar e, educado
pela necessidade e pelo sofrimento, purifique a própria alma. Compre-
ende-se que o fraco de vontade possa ser também obstinado e o libertino,
devoto; como podemos, igualmente, compreender o inverso. Por conse-
guinte, quando deparamos elementos singulares de conexões compreensí-
veis desta ordem, não nos é possível daí concluir pela realidade das ou-
tras, e sim sempre ter em vista as possibilidades ambíguas.
É fonte de radicais enganos concluir, da evidência de uma compreen-
são unilateral, pela realidade daquilo que por esta forma se compreendeu.
Se excluirmos o contrário sem investigá-lo compreensivamente, desfigura-
remos a realidade em favor de certa compreensão que apanha os fatos ao
acaso e que, em seu todo, é apriorística, porque não parte da totalidade
empírica. Daí resulta a possibilidade de o mesmo psicólogo não tardar a
formar a compreensão oposta. Esta dispersão involuntária da compreen-
são, esta sofisticação específica da compreensão psicológica tem raízes na
obscuridade que envolve a equicompreensibilidade dos contrastes e na ne-
cessidade, daí decorrente, de vincular a compreensão, rigorosamente,
desde que se encare um ser humano real, à totalidade dos fatos significati-
vos objetivos.

d) A compreensão é inconclusiva.
O compreensível é, por si próprio, incompleto, porque esbarra nos limi-
tes do que é incompreensível, do que é dado, da existência e da liberdade
existencial. A compreensão há de corresponder à índole do compreensível,
subsistindo, por isto, inconclusiva (resta, além disso, uma interpretação,
porque a compreensão, mesmo quanto aos fatos objetivos mais ricos,
ainda vem a ser inconclusiva).
Dado que se baseia em mecanismos e disposições extraconscientes
(quais sejam, os impulsos), o compreensível partirá de alguma coisa que é,
ela própria, incompreensível; partida que vem a ser, no entanto, móvel,
porque, com o autodesenvolvimento do compreensível, também se lhes
modificam as posições de partida incompreensíveis. Assim é que a com-
preensão, mesmo colidindo com as fronteiras do incompreensível, se apre-
senta inconclusiva, porque aquilo mesmo que se compreende amplia e
transforma, movendo-se, seu espaço.
A compreensão funda-se na liberdade existencial, que não é, entre-
tanto, liberdade por si mesma, mas tangível em suas produções compre-
ensíveis, apenas; daí ser a compreensão, mais uma vez, inconclusiva, de
acordo com a imperfeição de todo compreensível no tempo. A liberdade
existencial se realiza, no tempo, de forma historicamente concreta, mas
essa realização não é objetivável e, pois, não se pode conhecer como fato;
é, sim, infinita, porque eternidade no tempo, visto ser conclusão existen-
cial; o que já não é objeto da psicologia compreensiva.
Já que a compreensão é inconclusiva, também não nos é dado predizer
o que um homem há de fazer, como há de comportar-se. Certo é, no en-
tanto, que predizemos, realmente, com grande certeza, sem que, porém, o
sentido de semelhante certeza se origine, decisivamente, da compreensão.
Ou obedece à frequência da experiência: o que tem sempre acontecido
também se há de esperar para o futuro; ou enraíza-se na certeza existen-
cial da comunicação; a confiança nos companheiros do destino. Esta úl-
tima certeza não constitui conhecimento. Talvez seja maior do que qual-
quer certeza derivada do conhecimento, mas tem caráter radicalmente- di-
verso; quer dizer, está fora de qualquer calculabilidade, fora da objetivabi-
lidade das leis, fora de toda cognoscibilidade morta e disponível.

e) A interpretabilidade infinita.
Quer se trate de mitos, conteúdos oníricos, conteúdos psicóticos, tudo
vem a ser interpretável ao infinito. Se se pretender firmar uma significa-
ção, outra não tarda a aparecer. Não é casual, nem errado, baseado, sim,
no- princípio da compreensibilidade, este fato que consiste na infinitude
de todas as interpretações simbólicas; fato que se nota desde a antigui-
dade e, sobretudo, nas discussões mitológicas iniciadas no século XVII
(quando Bayle o exprimiu como básico); e, bem assim, nas interpretações
dos sonhos e nas psicanálises dos tempos modernos. O que é compreensí-
vel e também a própria compreensão- estão em movimento. Mesmo na au-
tointerpretação da própria vida, o sentido dos fatos exteriores permanen-
tes modifica-se, ou desce a profundidades, a partir das quais a compreen-
são precedente pode conservar-se como alguma coisa provisória, parcial e
destacada. O mesmo se dá com os mitos, os sonhos, os conteúdos deliran-
tes. Eis por que, quando compreendemos o objetivo do conhecimento,
não- devemos orientar-nos pela escala das ciências naturais e da lógica
formal oriunda da matemática. A verdade da compreensão reside, sim, em
outros critérios; por exemplo, a evidência, a conexão, a profundidade, a ri-
queza. A compreensão mantém-se na esfera do- possível, sempre ofere-
cendo-se como provisória, constituindo, a cada momento, simples pro-
posta na fria temperatura do saber compreensivo; mas estrutura os fatos
significativos objetivos, capazes de fixar-se como simples fatos, quando
permanecem abertos, em significação, à interpretabilidade ilimitada. Por
outro lado, crescendo- o material empiricamente acessível, a compreensão
se faz mais, decisiva, porque multivocidade não quer dizer arbitrariedade,
nem precisão, e sim movimento que se realiza dentro do possível na dire-
ção de uma visão cada vez mais nítida.

f) A compreensão é iluminação e desmascaramento.


A psicologia compreensiva comporta-se de modo notavelmente dúplice:
é frequente apresentar-se maliciosa, quando desmascara ilusões; mas
pode aparecer benigna, quando afirma, iluminando, uma essencialidade.
Uma coisa e outra lhe são próprias. Na atividade fatual, é, muitas vezes, o
lado malicioso que surge e, cépticos ou odiosos, constantemente pretende-
mos, apenas, “ver através disso”. O objetivo da verdade de semelhante
compreensão é penetrar a inveracidade universal. Só se utilizam, na psico-
logia maliciosa, os contrastes para inverter tudo quanto o homem faz, diz e
quer no contrário daquilo que manifesta, aí descobrindo o motivo real. A.
interpretação simbólica serve para buscar o sentido de cada impulso em
baixezas recalcadas inconscientes. A psicologia do estar-no-mundo res-
tringe e limita o homem a seu mundo, mundo do qual ele não consegue
escapar a esta psicologia. A psicologia dos impulsos desmascara todos
aqueles mais elevados como manifestações de impulsos elementares, que
mais não fazem do que esconder-se. O indivíduo que compreende deses-
pera-se: “entre cem espelhos ver-se erradamente...” — o que lhe parece é
nada encontrar em si. Pelo contrário, a compreensão que ilumina constitui
atitude básica afirmativa, indo, amistosa, ao ente humano, expondo, apro-
fundando-lhe a visão, vendo crescer a seus olhos a vida substancial. A
psicologia que desmascara, após demolir, “não mais encontra do que.... ”,
enquanto a psicologia que ilumina traz positivamente à consciência o que
existe. Aquela psicologia é o purgatório inevitável, no qual o homem tem
de testar-se, certificar-se, purificar-se e modificar-se; esta é o espelho em
que a consciência afirmativa do eu se faz possível, bem como a visão amo-
rosa da realidade alheia.
Digressão sobre a psicanálise. A psicanálise de Freud é, em primeiro
lugar, mistura confusa de teorias psicológicas; em segundo lugar, movi-
mento filosófico ou credo, que se transformou em elemento vital para al-
guns homens; em terceiro, psicologia compreensiva. O que significa como
tal pode-se caracterizar em poucas palavras.
1. Como fenômeno histórico-espiritual, a psicanálise é psicologia popu-
lar. O que, Kierkegaard e Nietzsche fizeram nas elevações da verdadeira
história do espírito a psicanálise fez, crua e inversamente, ajustando-se ao
baixo nível do homem comum e à 'Civilização metropolitana. Em oposição
à psicologia verdadeira, a psicanálise é fenômeno de massa, por força do
que se presta a uma literatura maciça. Quase todas as ideias fundamen-
tais e observações originam-se de Freud, cujos sucessores quase nada lhe
acresceram, embora compondo o movimento.
Se se disser que Freud “foi o primeiro a introduzir, decisivamente, a
compreensibilidade dos desvios psíquicos na medicina. . em oposição a
uma psicologia e psiquiatria que já não tinha mais alma”, estar-se-á prati-
cando distorção; primeiramente, porque essa compreensão já vigorava, se
bem que, por volta de 1900, houvesse retrocedido; segundo, porque, em
seus extravios, a psicanálise entravou a influência imediata dos verdadei-
ramente grandes (Kierkegaard e Nietzsche) na psicopatologia, tornando-se
responsável pelo rebaixamento do nível cultural da psicologia em-seu con-
junto.
Dizer que a psicanálise, veracidade chocante, apareceu numa época de
hipocrisia, é exato apenas em parte e, ainda aqui, só em baixo nível. Des-
mascarou-se um mundo burguês, que vivia “tendo o sexo como deus se-
creto”, em convenções factualmente despidas de princípios ético-religiosos;
desmascaramento que, no entanto, foi tão falso quanto aquilo mesmo que
fora desmascarado; presos ambos à sexualidade como presunção abso-
luta.
2. Dentro da psicopatologia, a psicanálise teve o mérito de intensificar a
observação compreensiva. A consideração do pequeno e do mínimo, até
então despercebidos ou vistos como fenômeno indiferente, ensinou a apre-
ender inúmeros fenômenos expressivos; apreensão que se exprimiu sob a
forma de interpretação. Gestos', atos, descarrilamentos, modos-de-falar,
esquecimentos, mais os sintomas neuróticos, os conteúdos oníricos e deli-
rantes significavam algo diverso do que, diretamente, se afiguravam ou ex-
primiam como se fosse mentado. Tudo, mais ou menos, se transformou
em símbolo de outras coisas; na concepção freudiana, em símbolo sexual.
Para exemplificar a apreensão de atos como símbolos sirvam os se-
guintes, de Kielholz: uma solteirona rouba ao conselheiro comercial um
touro novo e umas calças de soldado: símbolo de seus desejos sexuais. —
Um soldado, durante a noite, rouba ao companheiro de dormitório uma
bolsa com chaves, depois de este lhe haver sido preferido por uma criada.
— Símbolo do desejo que teve de privar o companheiro da potência sexual.
A autonarração a seguir mostra de que modo se pode vivenciar seme-
lhante “significação” na embriagues do haxixe: uma mulher sujeita a expe-
rimentação rasgou um cigarro que lhe ofereciam; ato que, podendo ser in-
terpretado como petulante, apenas, teve para ela significação profunda. O
cigarro corporificava a essência de um “papel” que devia representar, mas
ao qual se negava decididamente. “O cigarro me obrigava a tornar-me mu-
lher do oficial; foi por isto que o rasguei”. “O cigarro não simbolizava, abso-
lutamente, a mulher do oficial, mas a própria essência dela” (Fränkel e
Joel).
Associa-se à interpretação um sentimento básico de descoberta. Ex-
põe-se, desmascara-se, mostra-se, por assim dizer, a arte da inquirição
testemunhal e do talento policial; sentimento básico desmascarador, nega-
tivo, que domina quase toda a compreensão dos psicanalistas. Com Jung,
ele recua; quase sé perde com Heyer, que, de início, não o reconheceu; e
quando o reconhece, é tão escassamente que mal parece notá-lo em ou-
tros.
3. A psicanálise deu novo vigor à atenção para a história existencial in-
terna. O homem veio a ser o que é pelas suas vivências mais antigas. A in-
fância, o aleitamento, até a vida intrauterina devem ser decisivas para as
atividades básicas, impulsos, traços essenciais humanos. Realmente,
compreender-se-á, em grande parte, o que o homem vem a ser, como é,
como trabalham seu corpo e suas funções psicossomáticas, o que quer, o
que lhe importa — pelo que lhe aconteceu, pelo que vivenciou, pelo que
sofreu. Entretanto, também a esta altura, a psicanálise serviu-se de obser-
vações verdadeiras singulares para chegar à pré-história apenas dedutiva
do homem individual, inteiramente sem base, afinal, para quem quer que
não seja iniciado. O procedimento assemelha-se, de certo modo, ao do ar-
queologista, que procura encontrar conexões partindo de fragmentos pré-
históricos e que daí reconstrói um mundo, mas a verdade é que o procedi-
mento psicanalítico — conscientemente em Freud — se prende à redução
dos requisitos científicos. Disse Freud, certa vez: “Se se abrandar a severi-
dade das exigências de uma investigação psicológica histórica, talvez seja
possível esclarecer problemas que sempre pareceram merecer atenção”.
Seremos levados a um mundo de hipóteses não só incomprovadas, mas
nem sequer mais prováveis, puramente imaginadas, deixando para trás
todos os fenômenos compreensíveis. É o que se vê, principalmente, nos
conteúdos da compreensão.
4. De grande interesse, o conteúdo da compreensão traz a riqueza da
compreensão, propriamente. Os conteúdos do homem individual devem
fazer-se compreensíveis com base naquilo que acontece aos homens, em
geral; e isso, com base na história deles. O reino dos conteúdos primários
compreensíveis é o que a psicanálise quisera obter, mediante a interpreta-
ção da história espiritual e, mais ainda, do “inconsciente coletivo” (Jung),
que deve influenciar os seres humanos desde os tempos mais remotos. Re-
latemos um exemplo tirado de Freud:
Em “Totem und Tabu” (1912), Freud desenvolveu sua teoria da histó-
ria, que veio a elaborar mais amplamente, nos últimos anos de vida. O
quadro resultante é o seguinte: Os homens viveram, originalmente, em pe-
quenas hordas, cada uma sob o domínio de um velho, que se apoderava
de todas as mulheres e castigava, ou eliminava os moços, inclusive os pró-
prios filhos. Esse sistema patriarcal acabou com a revolta dos filhos, que
se uniram contra o pai, o dominaram e, em comum, o devoraram. A horda
paternal deu lugar, então, ao clã totemístico fraterno. Para viver em paz
uns com os outros, os irmãos vitoriosos renunciaram às mulheres por
causa das quais havia abatido o pai e impuseram a si mesmos a exoga-
mia. As famílias instituíram-se de acordo com o direito matriarcal.
Todavia, ao longo de toda a evolução ulterior, continuou a vigorar a ati-
tude emocional ambivalente dos filhos para com o pai. No lugar deste, co-
locou-se certo animal: o totem; antepassado e espírito protetor, não podia
ser morto. Uma vez por ano, entretanto, toda a comunidade varonil reu-
nia-se para um banquete, no qual o animal-totem, conquanto venerado,
era estraçalhado e devorado em comum; repetição solene do assassinato
paterno, com o qual se iniciara a ordem social, a moral e a religião.
Assim instituídos o clã fraterno, o direito matriarcal, a exogamia e o to-
temismo, instaurou-se uma evolução que significava o regresso do que foi
recalcado (analogamente ao recalque da alma individual). É válido admitir
que os sedimentos psíquicos daquelas remotas eras se hajam transfor-
mado em patrimônio, precisando, a cada nova geração, ser despertados,
apenas, e não adquiridos. São as seguintes as etapas do regresso: O pai
torna a ser o chefe da família, mais limitado, porém, do que na horda pri-
mitiva; o animal-totem é substituído por Deus; institui-se a ideia de um
deus altíssimo; o deus único representa -o retorno do pai da horda primi-
tiva. O primeiro efeito — esmagador — do encontro com aquilo de que du-
rante tanto tempo se sentira falta e a que se aspirava foi assombro, temor,
gratidão. A embriagues do abandono a Deus é a reação ao regresso do
grande pai. Também voltaram, contudo, os antigos sentimentos hostis
contra o pai, experimentando-se como consciência ou sentimento de
culpa. Em São Paulo, irrompe o conhecimento de que, se somos tão des-
graçados, é porque matamos o deus-pai; ideia que ficou oculta na dou-
trina do pecado original. Simultânea, todavia, veio a boa-nova: estamos re-
dimidos de toda culpa, porque um de nós sacrificou a própria vida. O que
tinha de s.er expiado com o holocausto só podia ter sido um assassinato
— e o assassinato paterno. Ulteriormente, no entanto, o cristianismo, ori-
ginado de uma religião do pai, evoluiu para religião do filho, não esca-
pando ao destino de necessitar, de qualquer maneira, a eliminação pa-
terna.
Mostra este resumo de que modo o próprio Freud, analogamente à fan-
tasia formadora de mitos, produz um “mito” psicológico-racionalístico, que
encerra valor empírico de realidade menor que os antigos mitos; e que re-
presenta o fruto da descrença ostensiva moderna; com a desvantagem,
ainda mais, de afirmar-se o valor cognicional empírico deste absurdo e
porque o conteúdo, incrivelmente pobre, constitui, apenas, trivialidade.
Conjurando, porém, os velhos mitos, Freud esparze em cima dessa triviali-
dade umas recordações ominosas e incompreensíveis; donde o encanto
que talvez tenham para muitos semelhantes ideias, numa época de pouca
fé. Em tudo isso, no entanto, só uma coisa é exata, a saber, que, na pré-
história do homem e em sua própria história, devem haver-se passado
acontecimentos íntimos, que, até o momento, a investigação empírica não,
conseguiu apreender e que nunca as explicações positivísticas com base
em fatores externos poderão satisfazer.
5. Os limites de toda psicologia compreensiva são, necessariamente, os
mesmos que os da psicanálise compreensiva. Essa compreensão para, pri-
meiro que tudo, diante da realidade de caráter empírico inato, o qual, im-
possível de fixar, jamais se pode conhecer definitivamente. Mas o compre-
ensível esbarra nele, por assim dizer, porque é impenetrável, impossível de
alterar-se. Os homens não nasceram todos iguais, e sim nobres e vulgares
em graduações múltiplas <que se escalonam nas mais variadas dimen-
sões. — Em segundo lugar, a compreensão para diante da realidade das
doenças orgânicas e das psicoses, diante do que nelas existe de elementar.
Esta é a realidade decisiva, se bem que, em suas manifestações, tantos
conteúdos especiais ainda mostrem uma face compreensível. — A compre-
ensão para, em terceiro lugar, diante da realidade da existência, daquilo
«pie o homem é, a bem dizer, como ele próprio. A maneira da iluminação
psicanalítica transforma-se, a esta altura, em pseudo-iluminação. Mas se
não está aí, exatamente, para o conhecimento psicológico, a existência faz-
se sensível à compreensão psicológica como limite em que alguma coisa
está, que só se mostra no compreensível, como inconclusividade deste.
Antes de mais nada, a psicanálise ficou cega a estes limites, querendo
tudo compreender.
2.2.
CONEXÕES COMPREENSÍVEIS EM MECANISMOS
ESPECÍFICOS

a) Conceito de mecanismo extraconsciente.


Não costumamos pensar, absolutamente, em condições normais, nos
mecanismos extraconscientes, nessa infraestrutura do psiquismo, sem
cujo funcionamento intato jamais se poderiam realizar quaisquer conexões
compreensíveis, porque vivemos inteiramente na compreensão genética
dos processos; e tanto menos oportunidade nos é dada de pensar nos me-
canismos extraconscientes quanto nada sabemos deles, diretamente. To-
davia, quando as conexões compreensíveis se atenuam, no curso de doen-
ças, ou se apresentam de outro modo anormal, absolutamente diverso
(por exemplo, através de sequelas, como a paralisia do braço por proces-
sos psíquicos), pensamos em alterações desses mecanismos extraconsci-
entes, imaginando mecanismos anormais que nos expliquem, provisoria-
mente, a existência de conexões compreensíveis anormais desta ordem.
Investigar as conexões compreensíveis que se realizam à base de mecanis-
mos extra- conscientes anormais é tarefa importante da psicopatologia,
constituindo o tema do presente capítulo; mecanismos que são, eles pró-
prios, inacessíveis à nossa investigação; donde resulta ser-nos a compre-
ensão genética a única via pela qual esses fatos se apreendem, afinal, indi-
retamente.
É de importância fundamental esclarecer o conceito de mecanismo psí-
quico como condição extraconsciente de fenômenos psíquicos e de efeitos
psíquicos sobre funções somáticas, se se quiser compreender a vida psí-
quica anormal. Tem sido, até hoje, baldado querer imaginar mais exata-
mente tais mecanismos em termos corpóreos ou fisiológicos; porque eles
representam conceito auxiliar puramente psicológico e teórico, servindo
para classificar fatos (quais sejam os fatos histéricos), que o médico com
orientação meramente somática e o próprio psiquiatra intelectualista se
inclinam, às vezes, a negar em sua existência. É impossível investigar, de
um modo ou doutro, por esta via, os próprios mecanismos. Apenas conse-
guimos descrever, psicologicamente, os modos pelos quais se realizam as
conexões compreensíveis. Qualquer construção detalhada que exceda a
utilização do mecanismo extraconsciente como conceito auxiliar inteira-
mente geral nunca se poderá comprovar, nem até hoje, que eu saiba, deu
fruto algum. As investigações freudianas, na medida em que constituem
construções tais do evento extra- consciente — e é isso que elas são, em
grande parte; principalmente, no que diz respeito à interpretação dos so-
nhos — abrem-se, indefesas, a toda crítica; na medida, porém, em que
descrevem de maneira evidente a realização de conexões compreensíveis
(certas simbolizações, recalques etc.), proporcionam, vez por outra, visão
surpreendente. Daí por que passaremos do conceito geral de mecanismos
extraconscientes a uma construção detalhada somente em casos excepcio-
nais, nos quais ela se mostre de incontestável utilidade para a classifica-
ção dos fatos (cf., por exemplo, o conceito de dissociação ou cisão).
Menos nos interessarão, por conseguinte, os conteúdos compreensíveis
como tais do que a maneira por que se apresentam, mediante os mecanis-
mos que lhes dão forma. Gostaríamos de aprender os mecanismos anor-
mais; mas a apresentação que fazemos dos mecanismos extraconscientes
observados nas compreensibilidades não chega a projetar teoria alguma,
apenas classificando fenômenos. Eis por que esse agrupamento não cons-
titui dedução lógica de espécie alguma. Os parágrafos individuais sobre-
por-se-ão, em parte, no curso da exposição. Nosso objetivo é ver a multi-
plicidade dos fenômenos, e não a estreiteza de uma teoria que vem a ser
sempre falsa.

b) Conteúdo compreensível e mecanismos.


No sonho e nas psicoses, aparecem conteúdos que só podem ocorrer
através dos mecanismos desta ordem, mas que, como tais, nada têm a ver
com o mecanismo, com o fato de ele existir e de pôr-se em movimento. Em
contraposição, o que é compreensivelmente psíquico — além de doença
somática, do cansaço, da exaustão — constitui, muitas vezes, fator do fun-
cionamento dos mecanismos. Quando adormecemos, o impulso psíquico,
a atitude já desempenham papel; quando sonhamos, não é rara a atenção
interior em certa direção: quero continuar a sonhar; ou não quero sonhar,
quero acordar. Só é hipnotizável quem quer. Em todas as reações vivenci-
ais, o compreensível é causa decisiva da ocorrência dos estados.

c) Mecanismos gerais constantemente presentes e mecanismos que são


postos em movimentos por vivências psíquicas.
Sempre que conexões compreensíveis se fazem efetivas, mecanismos
extraconscientes funcionam; por exemplo, o hábito, a memória, o pós-
efeito, o cansaço etc. Há, mais ainda, outros mecanismos que são postos
em movimento pelos choques, ou traumatismos psíquicos compreensíveis;
que só assim entendidos se podem apreender; e que ainda conservam,
eles próprios, quando não podemos distinguir com clareza, certa rutilação
de compreensibilidade. Sirva de exemplo a ideia nietzscheana desses me-
canismos:
Os impulsos realizam-se por forma singela, quando possível, sem opo-
sição; ao que se contrapõem resistências. “Todos os instintos que não se
descarregam para fora voltam-se para dentro.... Todo o mundo interior,
confinado, de origem, tenuemente, entre duas membranas, expande-se e
cresce em proporção, ganha profundidade, amplitude, altura, uma vez que
se iniba a descarga do homem para fora; “inibição que resulta da situação
real, ou da repressão ativa. Em ambos os casos, os impulsos inibidos rea-
lizam-se de forma alterada; ou seja:
1. Pela busca de conteúdos inadequados e, de qualquer maneira, di-
versos, satisfazendo-se com disfarces e símbolos." “Quase todos impulsos”
— excetuada a fome — “satisfazem-se com provisões imaginárias”.
2. Pela descarga por vias inadequadas de tensões e disposições de
ânimo que ocorrem. “Mesmo a alma precisa ter suas cloacas determina-
das, pelas quais escorra seu refugo; para tanto servindo as pessoas, rela-
ções, posições, a pátria, o mundo”. “Os comentários maldosos que os ou-
tros fazem a nosso respeito não se dirigem, muitas vezes, contra nós,
constituindo, sim, manifestações de zanga, irritação, baseada em outros
motivos”. Aquele que está descontente consigo está sempre disposto a vin-
gar-se disso; e nós passamos a ser suas vítimas”. “Certos homens talento-
sos, mas indolentes, parecem sempre estimulados quando um amigo ter-
mina um trabalho de valor. Só a inveja é que os estimula e os faz envergo-
nhar-se de sua preguiça. Assim dispostos é que criticam a obra nova,
transformando a crítica em vingança; com o que, alienam o autor”. Tipo
especial de descarga é a confissão: “O homem que “se comunica” livra-se
de si mesmo; e quem reconhece alguma coisa esquece”.
3. Por um processo que Nietzsche chama sublimação. “Estritamente
falando, não há ação sem egoísmo, como não há opinião inteiramente de-
sinteressada; ambos mais não são que sublimações, nas quais o elemento
fundamental se volatiliza, só se afigurando existente à observação mais
apurada”. Nietzsche fala “em homens de sexualidade sublimada.” “Muitos
impulsos — por exemplo, o impulso sexual — são capazes de grande re-
quintamento pelo intelecto (amor da humanidade, adoração da Virgem e
dos santos, entusiasmo artístico; segundo Platão, o amor do saber e da fi-
losofia é impulso sexual sublimado). Ao mesmo tempo, entretanto, sub-
siste o efeito direto original desse impulso”. “O grau e a maneira da sexua-
lidade de um homem sobe aos mais altos cimos de seu espírito”.
(Freud crudificou e popularizou estas ideias, usando, por exemplo, a
expressão sublimação para referir-se à transformação da energia sexual
em atividade voltadas para a prática de atos no setor artístico, filantrópico
etc.; chamando conversão a ocorrência de fenômenos somáticos resultan-
tes de causas psíquicas; transformação, a ocorrência de fenômenos psí-
quicos de outros tipos; por exemplo: a ansiedade causada pelo impulso se-
xual).
É fácil compreender que, à falta de satisfação real, se procurem e ima-
ginem substitutos; mas só por processos extraconscientes se pode admitir
que se vivencie uma satisfação vicariante real, ou que, de fato, se dê trans-
formação. Particularmente importante é a sublimação; como é de atribuir-
se a algo não-consciente o alívio real proveniente da confissão. Estes me-
canismos são postos em movimento pelas próprias conexões compreensí-
veis.
Nos cleptômanos, o furto pode vivenciar-se como ato luxurioso até so-
maticamente; a muitos fenômenos neuróticos associa-se o gozo respectivo.
Na autoflagelação impulsiva, pode acontecer que também se goze a luta
contra o sintoma e que, assim, num ciclo de pseudo-gratificações, se rea-
lize a intensificação destruidora.

d) Mecanismos normais e anormais.


Toda vida psíquica compreensível realiza-se mediante mecanismos
normais. Falamos cm mecanismos anormais quando as transformações
por força de vivências psíquicas são desmedidas ou de tipo inteiramente
novo. Aqui, os limites são fugidios, de modo que. normalmente, o que vale
é o tipo ideal: que a conexão subsista na personalidade compreensível, que
exista a possibilidade de iluminação absoluta na autorreflexão e na associ-
ação com a consciência; e que permaneça o estado de consciência racional
e controlável.
SEÇÃO 1.
MECANISMOS NORMAIS

a) Relações vivenciais.
Não temos de recordar, a esta altura, o mundo infinito dos conteúdos
humanos, mas, apenas, o fato básico, como tal, de o homem, através de
situações por que passa, acontecimentos, vicissitudes e casualidades, che-
gar, no tempo, a vivências primárias que o abalam, no momento, e, a se-
guir, lhe configuram a essência.
Uma diferença existe entre os choques emocionais de máxima intensi-
dade provenientes de vivências repentinas (susto, pavor, raiva; por exem-
plo, quando ocorrem atentados sexuais, terremoto, morte etc.) e as altera-
ções de ânimo profundas originadas de um destino permanente, altera-
ções que aos poucos se acentuam (como é o caso da perda de esperanças
vitais com o avançar da idade, do cativeiro perpétuo, da ruptura de ilusões
que permitiam fugir à realidade, com a restrição de horizontes pela po-
breza, pela desesperança, pela carência de vivência positiva). “Cada gera-
ção, cada camada social, cada indivíduo cria suas feridas espirituais no
campo de batalha que a natureza e as circunstâncias exteriores lhe apon-
tam; e cada um, por sua vez, tem outro ponto em que mais vulnerável é,
outra esfera de que mais facilmente partem choques intensos; um, seu di-
nheiro; outro, sua reputação; o terceiro, seus sentimentos, sua fé, seu sa-
ber, sua família” (Griesinger). Conforme a mera frequência, o que desem-
penha papel mais importante são: a sexualidade e o erotismo, a ansiedade
pela vida e pela saúde, a preocupação com o dinheiro e a existência mate-
rial e com a família; vêm a seguir os motivos da valoração profissional e
social; por fim, a religião e a política. Se quisermos analisar as conexões
compreensíveis, teremos de voltar-nos, particularmente, para os conteúdos
especiais do caso individual.
As vivências traumatizantes levam o homem a um estado e lhe dão
uma experiência que podem afigurar-se-lhe anormais, em confronto com a
vida cotidiana. Considerá-las-emos normais enquanto, antes de mais
nada, se mantêm sob o controle do indivíduo; depois, quando não têm
consequências perturbadoras obscuras; finalmente, quando são possíveis,
mais ou menos, em todos os seres humanos. O homem é capaz, em vas-
tíssima medida, de suportar situações extremas.
O susto, faltando outras precondições (exaustão psíquica, enfraqueci-
mento somático) dificilmente acarreta psicose. Os efeitos do pavor, na
guerra de 1914-1918, sempre se associaram a outras causas. A explosão
de Oppaur, em que mais de 6.000 operários morreram e 1977 ficaram fe-
ridos, nenhuma psicose reativa aguda produziu.
Vivências traumatizantes agudas podem, no entanto, dar origem a fe-
nômenos muito notáveis.
1. Nas mais intensas emoções, quando o medo da morte é desespe-
rado, observa-se, por vezes, a perda, completa de todos os estímulos emo-
cionais adequados; notável apatia, sensação que se está preso àquele lu-
gar, embora se instale uma observação que, impassível, de modo inteira-
mente objetivo, registra, por assim dizer, os fenômenos. O fato chama, so-
bretudo, a atenção nos sobreviventes de incêndios e terremotos. Tudo lhes
parece indiferente. Esses estados são, vez por outra, difíceis de distinguir
da impassibilidade controlada que se nota em certas situações difíceis; o
atordoamento na dor é descrito, posteriormente, como calma objetiva.
Baelz narra a experiência própria que teve em terremoto no Japão:
“Repentina, mas absolutamente repentina, ocorreu, em meu íntimo, alte-
ração total. Toda vida emocional superior apagou-se, toda compaixão dos
outros, toda solidariedade nas possíveis desgraças, até o interesse pelos
familiares, pela própria vida haviam desaparecido, embora se conservasse
o juízo claro; tinha impressão de pensar com. mais facilidade, mais liber-
dade e mais rapidez do que nunca. Parecia que alguma inibição até então
existente sumira, de súbito; sentia-me tal qual o super-homem de Nietzs-
che, sem responsabilidade para com quem quer que fosse. Ali estava, ob-
servando todos os horrores à minha volta com a mesma atenção fria com
que se acompanha uma experiência física muito interessante.... Depois,
tão repentinamente quando viera, esse estado anormal cessou, dando lu-
gar a meu eu anterior; quando' voltei a mim, vi meu cocheiro me puxando,
suplicando-me que fugisse à proximidade ameaçadora das casas”.
Da descrição de um terremoto na América do Sul: “Ninguém tentou
salvar seus familiares. Disseram-me, depois, que era sempre assim. O pri-
meiro susto paralisa todos os instintos, menos o da conservação. Aconte-
cendo alguma desgraça real, muitos recuperam a consciência e veem-se,
então, milagres de abnegação”.
2. Relatam-se raramente, mas se discutem com frequência, as vivên-
cias que ocorrem segundos antes da morte aparentemente certa (numa
queda, no afogamento). Albert Heim narra: “Assim que caí, vi que ia ser
atirado em cima do rochedo e esperei o impacto. Agarrei a neve com os de-
dos, procurando frear o tombo, rasgando as pontas até fazer sangue, sem,
no entanto, sentir dor. Ouvi minha cabeça batendo nas arestas da rocha e
a pancada surda, quando caí lá em baixo. Só senti dores daí a uma hora.
O que pensei e senti, durante o tombo, em 5 a 10 segundos, não se pode
contar em dez vezes mais minutos. A princípio calculei as possibilidades
da sorte.... as consequências de minha queda para os que deixava. Depois,
vi, como se fosse um palco, a certa distância, toda minha vida passada,
desenrolando-se em numerosos quadros.... Tudo parecia transfigurado
por uma luz celeste, tudo era belo e sem sofrimento, sem medo nem tris-
teza.... pensamentos de paz dominavam os quadros um por um e súbita
calma invadiu minha alma, tal qual música maravilhosa. Cada vez mais,
via-me cercado por um céu magníficamente azul, com nuvenzinhas róseas
e roxo-claro, nas quais pairava insensível e macio.... As observações objeti-
vas, os pensamentos, as emoções subjetivas acumulavam-se. Afinal, ouvi
uma pancada surda; a queda terminara”. — Seguiu-se ao choque meia-
hora de inconsciência, sem que Heim notasse.
3. Dentre as autonarrações das vivências do front, durante a primeira
guerra mundial, destacamos uma, de Ludwig Scholz: “Entretanto, obri-
gada à paciência ante o perigo imediato, a mente enrijece-se, torna-se ob-
tusa, morre. É a experiência de todo soldado, que, inativo, tem de expor-se
ao pesado fogo da artilharia. Cansa tanto, tanto.... Depois, as ideias raste-
jam, pensar dá trabalho; e até o mais insignificante ato volitivo se torna di-
fícil:' até falar, conversar e responder, prestar atenção ataca os nervos; e
sente-se que é uma benção a sonolência, não ter de pensar em nada, de
nada precisar. O atordoamento pode chegar ao estado de obtusidade; de-
saparecem o espaço e o tempo; a realidade recua para distâncias remotas;
enquanto a consciência vai registrando os fatos individuais, obediente tal
qual um aparelho fotográfico, os sentimentos extinguem-se, o homem ali-
ena-se de si mesmo: és tu que vês, ouves, percebes, ou és apenas tua
sombra?”. É o que se vivencia “sempre que os indivíduos se acham em pe-
rigo, sério e imediato, condenados, no entanto, à inatividade”. Scholz diz
ainda: “Afinal, a alma esfria; passando o tempo e aumentando o estrondo
dos canhões, instala-se a calma do fatalismo. Aquele que está ameaçado
torna-se obtuso, indiferente, neutro; em volta dos sentidos forma-se-lhe
uma nuvem de atordoamento benfazejo e entorpecedor, que lhe oculta to-
dos os horrores.... A monotonia do estronde ininterrupto narcotiza-o, os
olhos se lhe fecham, devagar; o sono anuncia-se, em meio ao rugido do pe-
rigo mortal”.
4. Vivências que ocorrem quando se sofrem ferimentos muito graves.
Scheel descreve sua experiência: “Em 1917, peguei dois; tiros na mandí-
bula, com ferimento na língua; dois tiros no braço- direito e um no as-
sento, com colapso imediato, embora conservada a consciência.... A princí-
pio, não senti dor alguma; pelo contrário, senti-me, posso dizer, muito
bem e confortável; o sangue correndo- me dava a impressão de banho
quente.... meu pensamento, se bem que conservado, parecia inibido. Ou-
via, realmente, nas proximidades, granadas estourando, mais os gritos
dos feridos: não tinha, porém, ideia do perigo de minha situação pre-
sente.... Entendia todas as- palavras que se diziam e, mesmo àquela al-
tura, a voz do chefe de minha bateria, falando aos feridos levemente que
berravam: ‘Cerrem os dentes; por que é que berram assim, olhem para o
sub-oficial Scheel, que foi atingido tão seriamente e não dá um pio’. Quer
dizer, tomavam meu silêncio por heroísmo sereno.... Se soubessem que
mais não era do que o efeito de choque, que me poupava ao sofrimento ex-
perimentado pelos outros.... Ao ser atingido, perdera a capacidade de exe-
cutar o menor movimento.... Não tivera impressão de desconforto, nem do
tombo quando caíra”.
5. Logo após vivências traumatizantes, ocorrem sonhos muito vívidos
(por exemplo, os sonhos de combate dos feridos), além de uma compulsão
a ver, ouvir e pensar sempre a mesma coisa, ocupando inteiramente a psi-
que do indivíduo, que chora, se sente abatido, transformado, tenso e in-
quieto. É frequente não haver desde logo sofrimento, este só aumentando
com o tempo. A um período inicial de calma total segue-se reação intensa.
Tem-se falado em retardo dos afetos.
6. É grande a diversidade das reações vivenciais individuais. Eis o que
Baelz escreve: “Enquanto uns se apavoram ao menor tremor de terra, ou-
tros se mantêm bastante calmos, mesmo quando o tremor é mais forte.
Acontece certo homem que se portou com bravura na guerra ou em outras
situações ficar pálido de morte ao mais leve tremor, enquanto a mulher
suave que se apavora à vista de um rato se mantém relativamente serena”.
Estas observações e outras do mesmo tipo nos dão ideias de quão ampla é
a normalidade.

b) Pós-efeito de vivências anteriores.


Tudo quanto o homem vivencia, tudo quanto faz deixa traços e aos
poucos lhe vai alterando a disposição. Indivíduos que, ao nascer, tinham a
mesma constituição podem, através da sorte e das vivências respectivas,
pela educação ou pela autoeducação, encaminhar-se de modos inteira-
mente diversos; uma vez realizado certo desenvolvimento, o retrocesso é
impossível; é nisso que reside a responsabilidade pessoal de cada vivência
singular.
Os pós-efeitos que o curso dos processos psíquicos ocasiona são de vá-
rias ordens:
1) Os traços mnêmicos, que possibilitam a recordação do fato em ques-
tão.
2) A facilitação dos fatos psíquicos, quando se repetem (prática).
3) A abreviação dos processos ou fatos, de modo que o mesmo resul-
tado se alcança com fenômenos conscientes cada vez menos nítidos (auto-
matização ou mecanização). Por exemplo, quando se aprende a dirigir uma
bicicleta, aprendem-se quase todos os movimentos, de início, consciente-
mente, sem confiar no “instinto”. Cada vez mais, no entanto, a direção
consciente do movimento vai desaparecendo, até o momento decisivo,
aquele em que nos arriscamos a nos fiar no mecanismo aprendido (ins-
tinto adquirido); a esta altura, a automatização progrediu tanto que basta
haver a vontade consciente, em geral (quero andar de bicicleta) para que
tudo mais se passe de maneira absolutamente automática, enquanto a
consciência talvez se ocupe com coisas inteiramente outras.
4) Uma tendência geral ao retorno das mesmas vivências (costume, há-
bito).
5) Por fim, ocorrendo vivências com carga afetiva, influências múlti-
plas, que não se percebem, sobre os eventos psíquicos ulteriores, sobre
sentimentos, valorações, atos, modos de viver (efeitos de complexos).
Da memória, prática e mecanização tratamos na psicologia objetiva
dos rendimentos; neste passo, falaremos, apenas, nos hábitos e nos efei-
tos de complexos que encerram uma compreensibilidade a nosso alcance;
deparamos com eles quase sempre que fazemos análise psicológica.
I — Os hábitos governam nossa vida a ponto de só raramente o perce-
bermos. Certos costumes tradicionais e outros casualmente formados in-
fluenciam quase todos os nossos atos e sentimentos. Os hábitos acabam
tomando-se queridos, transformando-se em necessidades. Nem as ações
más a que se é obrigado tardam a se fazer suportáveis. Os hábitos são
uma das causas da constância de nossas atitudes; são o efeito do esforço
que fazemos por nos disciplinar. São nossa “segunda natureza”. Aquilo
que é costumeiro — até o crime — perde para quem está acostumado todo
valor perceptual; ao que corresponde o retrocesso da espontaneidade de
nossa psique. Não teria fim a análise e classificação dos inúmeros hábitos.
II — O pós-efeito de vivências com carga afetiva, principalmente des-
prazerosas, realiza-se, normalmente, pelos tipos seguintes:
a) Por uma forma que corresponde ao hábito, os afetos, uma vez esgo-
tados, tomam-se associativos, assim que algum elemento da vivência origi-
nal emerge, ou, por outra, redesperta inteiramente. Surgem, então, dispo-
sições que, de início, parecem imotivadas a quem as experimenta, caso
não perceba o vínculo associativo.
b) Os afetos deslocam-se, isto é, certos objetos que se apresentavam,
simultaneamente, com vivências desprazerosas, ou mesmo prazerosas as-
sumem o mesmo caráter emocional; deslocamento este que ¡também pode
ocorrer em relação a coisas novas, bastando ocorrerem afetos simples-
mente associativos, que despertam sem novo motivo, de modo que nem a
pessoa em causa, nem o psicólogo que analisa consegue mais distinguir a
gênese das características emocionais subjetivas dos objetos. O esclareci-
mento compreensível é possível, todavia, em certos casos, quando se bus-
cam, pacientemente, despertar associações.
c) Elaboram-se vivências desprazerosas: ou o indivíduo dá livre curso
ao efeito das emoções, mediante lágrimas ou atos, pela autoironia, pelas
reações defensivas, pela atividade criadora; ou ainda, enfim, pela conversa
e pela confissão, de maneira a esgotar-se, figuradamente falando, nesse
efeito (abreação); ou então, o efeito se inibe, mas, em compensação, ela-
bora-se a vivência intelectualmente. Calcula-se o resultado, ponderam-se
as conexões, julga-se o próprio comportamento, decidem-se os atos que
ainda parecem necessários; nesse trabalho intelectual afetivamente carre-
gado, puro e honesto que seja, gravam-se traços caracteriais para o fu-
turo, firmam-se princípios, resultantes dessa atividade intelectual apaixo-
nada, mas racional.
d) Quando as vivências desprazerosas têm seu efeito inibido, quando
são “engolidas”, rejeitadas, propositadamente eliminadas, esquecidas, re-
calcadas, sem ocorrência de elaboração intelectual, é habitual produzirem
pós- -efeitos intensos; costumeiramente, a reevocação associativa e o des-
locamento afetivo de tais vivências, esse pós-efeito que está sempre ocor-
rendo, são mais fortes e extensos. Mas o recalque pode dar-se mesmo sem
consequências; sobretudo, no caso das personalidades indiferentes e obtu-
sas.
Tem-se procurado fixar o pós-efeito normal de vivências carregadas de
interesse, principalmente por meio de testes de associação e mesmo por
via experimental. Investiga-se o efeito de fatos que o pesquisador conhece,
confrontando as reações da mesma série de estímulos em pessoas partici-
pantes ou não do fato. As diferenças (alongamento do tempo de reação, es-
quecimento da reação, reação irracional ou ausente, fenômenos concomi-
tantes mímicos e outros chamando a atenção) são de atribuir-se, naqueles
que participam, de um lado, ao simples pós-efeito da vivência; de outro
lado, a uma tendência dissimulatória. Todavia, essas reações ocorrem não
só quando tiver havido, realmente, vivência e ação, mas também quando a
pessoa em experiência simplesmente espera que se presume deva ela vi-
venciar ou fazer alguma coisa.
Chama-se complexo (Jung) a disposição que subsiste por força de uma
vivência ou tipo de vivências e que influi na vida psíquica ulterior de ma-
neira unitária, compreensível em função da primeira vivência. O que há de
comum a todos os complexos é que com eles se deve assinalar um pós-
efeito individual, irracional, de vivências passadas; pós-efeito que gera
sentimentos, juízos, atos, baseados não em valores objetivos, nem na exa-
tidão ou propositalidade objetivas, mas, sim, nesses efeitos vivenciais pes-
soais. Implica-se aí a circunstância de que, conservadas a auto-observa-
ção e a auto- -crítica, validade objetiva alguma se adscreve aos conteúdos
dos pós-efeitos. Os complexos tendem a governar o indivíduo, a ponto de
já não ser ele que tem complexos, e sim, serem os complexos que o têm. O
conceito de complexo encerra vários matizes; quais sejam:
1) A projeção de uma vivência sobre a concepção do mundo. Por exem-
plo, após uma vivência por força da qual se despreza a si mesmo, o indiví-
duo sente-se envergonhado, conforme o trai seu comportamento global,
onde quer que esteja, como se todos o observassem. Modificado ele pró-
prio, acredita, instintivamente, que todos em volta notam isso; donde de-
senvolver-se um estado paranoico”, a partir de ideias supervaloradas. Go-
ethe descreve-as segundo a experiência de Margarida: “Até os olhares mais
indiferentes me eram importunos. Perdera aquela serenidade incônscia
que me permitia andar para cá e para e para lá ignorada e irrepreensível; e
não pensar, em meio às maiores multidões, que alguém me observava”.
2) A disposição que uma vivência deixa atrás de si e que recorda, asso-
ciativamente, em presença de seja qual for elemento, essa mesma vivência
leva a reações com carga afetiva, conforme as peculiaridades individuais
(por exemplo, antipatia por certo lugar, por uma construção vocabular
etc.).
3) A disposição que, por força de experiência mais longa, leva, em cer-
tas situações, a reações com carga afetiva peculiares. Por exemplo: o indi-
víduo se apavora a qualquer contato com os militares; acumula ressenti-
mento ou ódio contra qualquer superior ou contra pessoas mais queridas
do que ele, indo por qualquer insignificância a tremendas descargas de fu-
ror; antipatiza com qualquer adversário político, ou prefere o “outsider”,
sem motivo aparente; simpatiza-se com tipos humanos que se asseme-
lham a alguém que se estima; assume-se atitude, já irreversível, de servo
ou senhor, atitude que, baseada na tradição ou no hábito antigo, alte-
rando-se a situação exterior, domina o indivíduo com força interna quase
incontrolável.

c) Os conteúdos oníricos.
— A distinção clara entre o sonho e o estado de vigília, bem como a sig-
nificação do que, num e noutro, se vivencia constituem passo decisivo, se
se quiser dominar a realidade. O sonho, porém, subsiste como fenômeno
humano universal; avalia-se como pseudo-vivência, ou, mais ainda, como
vivência simbólica ou profética, a cuja interpretação se aspira. No sonho, a
vida psíquica de tal modo se altera que se poderia dizê-la muito anormal
se não se ligasse, estritamente, ao estado de sono e se não fosse comum a
todos os homens. Por assim dizer, trata-se de um processo anormal que é
normal; e é de há muito que se comparam a psicose e o sonho.
Podem-se investigar o sono e o sonho, em primeiro lugar, de acordo
com as condições em que se apresentam quando existem certos fatores
objetivos, somáticos. Assim é que se pode considerar a dependência da ri-
queza e frequência dos sonhos em relação à idade (sonha-se mais na mo-
cidade que na velhice) e à profundidade do sono (sonha-se mais quando o
sono é leve).
Também se pode investigar a existência psíquica da vivência: onírica
do ponto de vista fenomenológico, ou seja, os modos pelos quais os objetos
são dados, além dos graus com que a consciência se apresenta no sonho,
a alternância e variabilidade sem limites, a permutabilidade dos conteú-
dos.
Enfim, podem-se tentar compreender os conteúdos da vivencia onírica
de acordo com sua significação. A compreensibilidade dos. conteúdos oní-
ricos é problema que de longa data se controverte.
Em primeiro lugar. Os conteúdos oníricos podem ser em si intelectual-
mente interessantes, como vivencias; é como se fosse possível ocorrerem
no sonho significados profundos para a existência, humana. Daí por que
se indaga de certos conteúdos oníricos típicos: caracteristicamente, são
sonhos ansiosos, sonhos em que se vivencia o esforço por alguma coisa
inatingível. Aquele que sonha sente-se horrivelmente abandonado no de-
serto, enquanto o alvo a. que visa desaparece -no infinito; perde-se num
labirinto de aposentos; ou então, sonha que voa ou cai.
Em segundo lugar. Pode-se deixar de lado a infinita multiplicidade dos
sonhos, nela vendo um caos de casualidades e de mistérios, ou pode-se
tentar encontrar resposta para a pergunta: por que é são, exatamente, es-
tes conteúdos que, em vez de outros, em tal situação, se apresentam a de-
terminado indivíduo? Se se responder à pergunta, estar-se-á interpretando
o sonho; usando a psicologia compreensiva, indaga-se das vivências, dos
fins e desejos conscientes e inconscientes, do caráter e da biografia, das
situações e experiências especiais do indivíduo, bem como das tendências
psíquicas comuns a todos os homens. Ao caos de casualidades presentes
nos conteúdos oníricos Freud opôs o pressuposto de sua completa deter-
minação dentro do sentido da compreensibilidade. Talvez sejam errados
tanto quanto o outro extremo; talvez a compreensão de certos conteúdos
oníricos não esteja, simplesmente, em relação trivial com vivências indife-
rentes dos últimos dias; e sim com alguma modalidade essencial.
Vamos, brevemente, representar as possibilidades interpretativas sob a
forma de perguntas e respostas:
Que é que se chama simbolização? Alguém sonha que está despido no
meio da rua — o cobertor caiu no chão. Alguém sonha que está bebendo
junto com outras pessoas — está, realmente, com sede. — Está-se voando
no sonho — obstáculos, inibições, dificuldades na realização de desejos
são, então, vivenciadas como se fossem superadas de súbito. As imagens
oníricas — pelo menos, em parte — objetivam alguma coisa diversa do que
nelas aparece simbolicamente e suscetível de interpretar-se como “signifi-
cado”.
Que é que se simboliza? Silberer agrupa:
1) Estímulos corpóreos (fenômenos somáticos).

2) Fenômenos funcionais: leveza, peso, inibição do estado psíquico. 3)


Fenômenos materiais: os conteúdos dos desejos, os objetivos das aspira-
ções. Freud distingue, por assim dizer, camadas de desejos: os desejos co-
tidianos não realizados, inteiramente inofensivos; depois, os desejos que
emergem de dia, mas se rejeitam e recalcam; profundos ao máximo, os de-
sejos do inconsciente, que quase não se referem à vida cotidiana, provindo
do mundo infantil; por exemplo, o desejo incestuoso.
Quais as vias que existem para a simbolização e configuração dos con-
teúdos oníricos? A simbolização pode dar-se de modo direto, inteiramente
franco, constituindo simples representação do pensamento, à primeira
vista esclarecedora, não permitindo quase dúvida. Esta é, porém, a ma-
neira que, na interpretação freudiana, menor papel desempenha. São de-
cisivos, de preferência, os desejos que a consciência rejeita como ofensivos
e que se disfarçam em imagens difíceis de reconhecer, ao primeiro exame,
assim aparecendo no sonho sob a forma de realização simbólica. Muitas
tendências simbolizativas unificam-se num só quadro (sobredetermina-
ção); a “censura” deforma os símbolos a ponto de a consciência não os re-
conhecer. É deste modo e muitos outros que, segundo Freud, se confor-
mam os conteúdos do sonho.
Em vez de discussões abstratas, um exemplo (tirado de Silberer e abre-
viado) dá ideia do que se pretende dizer:
Sonho de Paula: Num templo egípcio. Altar do sacrifício. Muitos ho-
mens, mas não em trajes solenes. Emma e eu estávamos junto ao- altar.
Coloquei em cima do altar um velho escrito amarelecido e disse a Emma:
Agora, presta atenção; se o que dizem é verdade, o sangue do sacrifício há
de aparecer no escrito. Emma sorriu incrédula. Ficamos, paradas muito
tempo. De repente, apareceu no papel uma mancha castanho-averme-
lhada, que tomou a forma de uma gota. Emma pôs-se a tremer por todo o
corpo. Depois, vi-me, subitamente, ao ar livre e avistei um arco-íris mara-
vilhoso. Chamei “a excelentíssima senhora” (de quem Paula era dama de
companhia) para mostrar-lho, mas ela não veio. — Aí, entrei num cami-
nho estreito, cercado de ambos os lados por muros altos. Fiquei com um
medo horrível, porque esse estreito caminho, com muros altos dos lados,
parecia não acabar. Gritei, mas não veio ninguém. Afinal, o muro abaixava
de um dos lados. Olhei por cima e vi um rio largo, de modo que continu-
ava a não ter saída. Fui andando e vi uma roseira arrancada do chão; ima-
ginei tornar a plantá-la como sinal que me recordasse, no caso de morrer
ali; e comecei a cavar com uma pedra que tirei do muro. Era pura terra
preta de jardim. Plantei o arbusto e, levantando os olhos do trabalho, vi
que o muro abaixara completamente; por trás, havia apenas bonitos pra-
dos, brilhando ao sol.
Silberer interpreta este sonho da seguinte forma: Paula, que passou
muito tempo sem contato sexual, deve tê-lo realizado novamente. Não ha-
vendo tomado precaução (preservativo), vem-lhe o medo das consequên-
cias, porque a menstruação se atrasou. Ocorrem-lhe ideias de morte, tal
qual a ameaçasse um perigo. — Paula confirmou esta interpretação daí a
uma semana (o sonho foi comunicado em carta). Depois do sonho, Paula
entregou-se a um homem; mas, ao tempo em que sonhou, estas ideias lhe
ocupavam a mente. O sonho não reflete o fato acontecido, e sim a intenção
e as fantasias que se lhe associam. — Quanto às particularidades: altar
lembra altar nupcial. A ênfase aparentemente excessiva em “trajes não so-
lenes”, relacionada a outros pormenores, recorda a falta do preservativo
(que Paula também chamou “capote”). O escrito desdobrado significa a va-
gina, na qual o sangue deve aparecer. Várias vezes deixam de aparecer
pessoas que são chamadas: “a excelentíssima senhora”, por exemplo; a
menstruação também não vem. A travessia ansiosa por estreitas passa-
gens é fantasia do baixo-ventre e do nascimento. Mais particularmente,
Silberer trata do sangue e da roseira: o sangue ansiosamente esperado é,
de início, o sangue mensal, que deve aparecer na vagina, o escrito do-
brado. O escrito é amarelado: a preocupação de Paula é estar começando
a envelhecer. Daí outra significação do sangue: sangue da defloração, isto
é, o desejo de Paula de ser intata (uma folha sem coisa alguma escrito), de
maneira a ser possível ainda a defloração. A roseira é símbolo do sexo e da
fertilidade. Paula pensa na possibilidade de engravidar. De fato, deixou-se
levar pela ideia de _que seria melhor morrer que ter um filho; este, porém,
deve viver. — Os muros representam a inibição. Rompendo-os, Paula
cava, ao mesmo tempo que dá vida a uma criança, seu próprio túmulo.
Silberer, cuja descrição só reproduzimos em parte, conclui: Não se esgota
ainda com isto a plenitude das relações condensadas no sonho de Paula;
examiná-las todas encheria um livro inteiro.
Que critérios se possuem para a correção de semelhante interpreta-
ção? A bem dizer, toda interpretação é plausível, se nos deixarmos levar
por associações que conduzem de tudo a tudo e se seguirmos conexões
significativas racionais, visto que, no sonho, é comum a vulgaridade e na-
tural a contradição; como são habituais a sobredeterminação, a alteração
de sentido, a identificação de heterogeneidades, de mim mesmo com os
conteúdos etc. Embora se possam reconhecer estes últimos, são necessá-
rios, contudo, exatamente em face das possibilidades ilimitadas, certos
critérios especiais para preferir uma interpretação a outra, ou para decla-
rar uma interpretação, qualquer que seja, “correta”. Em primeiro lugar, há
a questão da probabilidade, isto é, se devemos considerar casual ou es-
sencial a coincidência de conteúdos vivenciais tangíveis com conteúdos
oníricos tangíveis (por exemplo, no sonho de Paula, o templo egípcio lem-
bra que ela chamava esfinge o homem quem queria entregar-se). Não se
irá, entretanto, muito longe, porque é evidente o fato de provir todo mate-
rial onírico de. uma ou outra vivência. Para quem interpreta, é importante
distinguir o que é simples material acidental e o que representa fator deci-
sivo para os conteúdos. À derradeira, a evidência subjetiva de quem viven-
cia, daquele que sonha, que, vigil, interpreta ou manda interpretar seu so-
nho é que há de constituir a última palavra. De fato, só ele é que dá vali-
dez, colorido à disposição, ao efeito emocional dos conteúdos, validez in-
dispensável, se não quisermos que a correção interpretativa se sujeite a
jogo interminável de associações racionais. Há, decerto, casos luminosos,
mas, no caso concreto, a problemática é quase sempre infinita; e qualquer
verificação, quase impossível.
Em vez da correção interpretativa (no sentido de determinações empíri-
cas de um significado factualmente efetivo), talvez haja uma verdade da
interpretação que configure, dando-lhe realidade, certo material onírico;
realidade esta que, então, representará, uma intenção reconhecidamente
atuante na vida daquele que sonha. O processo da interpretação dos so-
nhos não deve ser conhecimento empírico, mas atividade produtiva, co-
municação entre quem interpreta e quem sonha; comunicação filosofica-
mente influente, educação indireta daquele que sonha para o bem e para o
mal, suscetível, no entanto, a qualquer estádio, de transformar-se em di-
vertimento. Seja qual for o caso, o analisando está sujeito à sugestão que
emane das teorias do analista; e o sucesso depende da medida em que um
e outro se ajustam.
Que significado científico tem a interpretação dos sonhos?
Em primeiro lugar, pode descobrir mecanismos gerais, esclarecendo se
estes existem ou não. A teoria de Freud, contudo, na minha opinião, re-
presenta, em grande parte, construção de material extra- consciente,
construção que, à falta de verificabilidade, deixa de ter interesse científico.
Muita coisa, no entanto, principalmente no que diz respeito à psicologia da
associação, é correta; mas não tarda, pela sua interminável continuidade,
a transformar-se em análise tediosa de conteúdos, com base em procedi-
mentos convencionais.
Em segundo lugar, pensa-se penetrar, com a interpretação dos so-
nhos, na profundidade da personalidade particular, melhor anamnese ga-
nhando do que através de narrativas plenamente conscientes. Pode ser
que isso seja certo em casos raros, individuais; a provar-se, no que se rela-
ciona com a correção respectiva, mediante, apenas, outros dados experi-
mentais.
Em terceiro lugar, queremos saber se se amplia a compreensão do sig-
nificado possível, o campo intelectual, para e mediante a interpretação dos
sonhos. Até o momento, têm sido quase só elementariedades, primarieda-
des, vulgaridades que se compreendem, com acréscimo ulterior de conteú-
dos populares míticos. A mim, todavia, me parece igual a zero o resultado
neste terceiro aspecto.
Em quarto lugar, poder-se-ia conceber, em geral, o significado bioló-
gico do sonho. Freud declara ser o sonho o protetor do sono, porque silen-
cia, pela satisfação dos desejos, aqueles que perturbam o sono; conceito
este que não se pode rejeitar sem mais aquela; pequena fração de nossos
sonhos talvez possua estes caráter.
No fim de contas, afigura-se-me que alguma coisa correta, em princí-
pio, se encontra na interpretação dos sonhos. Minha objeção não se volta
tanto contra sua exatidão (por mais intermináveis que sejam as fantasias
e brincadeiras nesse terreno), e sim contra a importância que se lhe dá.
Aprendem-se os princípios, estudam-se uns tantos casos, mas é só, ou
quase. O sonho é fenômeno maravilhoso, mas, dissipado o primeiro entu-
siasmo pela sua investigação, temos de confessar-nos decepcionados. A
informação que dá para o conhecimento da vida psíquica é mínima.

d) Sugestão.
Sempre que, em certo indivíduo, um desejo, sentimento, juízo, atitude
aparece, sempre que atua, costumamos “compreender-lhes” o conteúdo
com base nos atributos que já manifestou, na sua maneira de ser cons-
tante, nas peculiaridades da situação. Mas, se não conseguimos, sequer
com o conhecimento detalhado do indivíduo, obter esta compreensão, pro-
curamos ver se o fenômeno constitui parte “compreensível” importante dos
sintomas de algum processo mórbido. Ora, existem inúmeros processos
psíquicos que não pertencem nem a um, nem a outro destes dois grupos;
processos cujo conteúdo, que reunimos sob o nome de fenômenos de su-
gestão, é compreensível; não, porém, pela índole da personalidade em
causa, nem por motivos racionais ou de outra natureza que bastem, e sim
pelo efeito psíquico especial que sobre ela exercem outros indivíduos ou
ela sobre si mesma, de maneira quase mecanicamente atuante; isso sem
ajuda da própria pessoa em causa, sem interferência de motivos desenca-
deantes que, objetivamente, se nos afigurem sensíveis ou compreensíveis.
Sem contra- -ideias, contramotivos, contravalores, ocorre a realização; e
desenvolvem-se juízos, sentimentos, atitudes, sem influência da inquiri-
ção, crítica, vontade e decisão própria por parte da própria personalidade.
É com o pressuposto dos mecanismos de sugestão, que são para nós in-
compreensíveis e até o momento não se podem sujeitar a investigação
mais ampla, que os fenômenos daí resultantes se desenvolvem através de
conexões compreensíveis, com correspondência entre o conteúdo da ope-
ração psíquica e o conteúdo dos fenômenos então ocorrentes.
No mais amplo dos sentidos, enquadram-se entre os fenômenos de su-
gestão as imitações involuntárias (não as voluntárias, que são compreensí-
veis, em cada caso singular, com base em motivos e objetivos especiais).
Não é pelo fato de por si mesmo excitar-se que o indivíduo se descontrola
no meio de uma multidão, e sim porque esta o contagia. É assim que se
expandem as paixões e é dessa imitação que se originam as modas e os
costumes. Imitamos movimentos, modos de falar, estilos de vida de outros
homens sem perceber e sem querer. Na medida em que se trata, em tais
casos, de desenvolvimentos compreensíveis de nossa própria natureza,
são efeitos sugestivos que ocorrem. De modo geral, todas as vivências psí-
quicas possíveis são estimuladas desta forma: sentimentos, concepções,
juízos. Muito drásticas são as imitações involuntárias quando se apresen-
tam em fenômenos somáticos cuja origem independe, inteiramente, de
vontade consciente; por exemplo, quando alguém sente dores violentas em
uma parte do corpo na qual outra pessoa circunstante quebrou, digamos,
um osso; ou quando alguém experimenta paralisia ou espasmo pelo fato
de os ter presenciado, com medo, no ambiente que os cerca. Pode-se falar,
então, em reflexo imitativo, que representa um dentre os atributos funda-
mentais da natureza humana.
Um tipo de sugestão é a sugestão de juízos e valores: julgamos, valora-
mos, assumimos atitude, adotando, simplesmente, sem querer e sem sa-
ber, juízos e valorações alheias. De modo algum estamos julgando, valo-
rando, assumindo atitude, se bem que tenhamos o sentimento de atitude
própria. Semelhante adoção de juízos alheios sem formação de juízo pró-
prio, mas com aparência deste, nós a chamamos sugestão de juízo.
Todos os tipos de sugestão até aqui enumerados podem ser inintencio-
nais e involuntários. Ninguém pretende sugerir e nem o próprio indivíduo
em causa o nota. Mas a sugestão pode também ser intencional e com esta
característica o conceito de sugestão sofre limitação mais estrita, embora
externa; limitação pela qual só incidem no conceito os influenciamentos
intencionais de certos indivíduos (intensificados na hipnose). Por fim, certo
tipo de sugestão pode ocorrer mesmo com ciência do indivíduo em causa.
Eu quero, espero, receio não poder defender-me apesar de minha ciência;
ou, antes, exatamente minha ciência é que promove a sugestão; ciência
que, no entanto, ela própria já é sugerida: é a ciência da crença, a expecta-
tiva do inevitável.
Umas tantas experiências mostram serem comuns a quase todos os
entes humanos os efeitos drásticos da sugestão: no fim de escuro corre-
dor, pendura-se uma conta de vidro opaco e manda-se que se diga, apro-
ximando-se lentamente, quando é que se começa a vê-la; tira-se a conta e,
no entanto dois terços das pessoas testadas a veem. — Um professor der-
rama diante dos ouvintes, estes de cabeças virada, um frasquinho de água
destilada, previamente bem embrulhado, em cima de um chumaço de al-
godão; segundo diz, para verificar a rapidez com que o cheiro se espalha
pela ala; ao mesmo tempo, acerta o relógio para controlar: dois terços dos
ouvintes, primeiro os que se sentam na frente, assinalam haver sentido o
cheiro. — Da mesma forma se podem obter a hipnose em massa e outros
tipos de sugestão, sempre havendo, porém, uma minoria que falha, que
não cede à sugestão, mas que, crítica por natureza, nada percebe, nada vi-
vencia, mas se espanta.
Papel especial desempenha o conceito de autossugestão que se opõe à
sugestão por outras pessoas. Em virtude de motivos, sejam quais forem,
mesmo compreensíveis, emerge no indivíduo uma ideia, uma expectativa,
uma presunção, cujo conteúdo não tarda a realizar-se em sua vida psí-
quica. Espera-se sentir o cheiro de uma coisa e sente-se, de fato; presume-
se certo fato e num instante se tem convicção dele: espera-se uma parali-
sia do braço, causada por um choque, e no mesmo instante o braço para-
lisa-se. Trata-se, em tais casos, de mecanismo que só produz resultados
valiosos quando manejado pela vontade consciente. Quer-se despertar a
certa hora e desperta-se, de fato, pontualmente; quer-se que cesse uma
dor física e ela, realmente, cessa; quer-se dormir e dorme-se.

e) Hipnose.
Pode-se sugerir à maior parte dos homens, pressupondo assim o quei-
ram, que. creiam na força da pessoa em quem confiam, em cuja autori-
dade acreditam, primeiramente: sensações de cansaço, calma, abandono
às palavras de quem sugere, concentração da atenção só nestas palavras;
e, ao mesmo tempo, criar um estado que, passando por vários graus, vai
de ligeira sonolência à mais profunda hipnose, com rapport exclusivo de
referência àquele que sugere; estado que também é a condição adequada a
que se realizem sugestões ulteriores. Conforme a profundidade da hip-
nose, as sugestões se apresentam mais ou menos extensas. Podem-se pro-
vocar insensibilidade cutânea, posturas, imobilidade, sensações várias,
falsas-percepções. O hipnotizado pode não se mexer, se o hipnotista assim
ordenar; uma batata lhe dará o gosto de deliciosa pera; em hipnose muito
profunda, praticará até furtos. — Nesses graus mais profundas da hip-
nose, os olhos tornam a abrir-se, o indivíduo levanta-se, anda e movi-
menta-se tal qual estivesse desperto; só que os movimentos e as vivências
são todas condicionadas, exclusivamente, pelo rapport com o hipnotista-
(sonambulismo). Para estados desta ordem há, posteriormente, completa
amnésia. — As diversidades dos estados hipnóticos não representam, po-
rém, graus, apenas, de profundidade, mas maneiras de que cada indiví-
duo em particular é capaz. O sonambulismo é um tipo de redespertar par-
cial, relacionado com certas condições. — São notáveis certos efeitos pós-
hipnóticos (sugestão pós-hipnótica). O hipnotizado pratica certos atos (por
exemplo, visitas), dias e semanas subsequentes, segundo ordens que lhe
são dadas em hipnose. Por forma que ele próprio não compreende, vem-
lhe o impulso, a determinados momentos, de realizar esta ou aquela ativi-
dade, impulso a que cede, se não se opuserem inibições preponderantes
de sua personalidade; é frequente ele encontrar motivo para assim proce-
der, achando que é a verdadeira razão de seus atos. Existem, finalmente,
fenômenos corpóreos produzidos por sugestão hipnótica, que a vontade
nunca pode realizar: fixação da menstruação para determinado dia, dimi-
nuição de uma hemorragia, formação de bolhas na pele (sugerindo que
um pedaço de papel é um emplastro de mostarda).
Um tanto semelhante ao sono, a hipnose não é, contudo, sono. A dife-
rença está no rapport, a “ilha vigil” da vida psíquica, que, quanto ao mais,
está adormecida.
A hipnose também é diversa um tanto da histeria. Os fenômenos
hipnóticos e os fenômenos histéricos são idênticos pelo mecanismo; mas a
diferença está em que o mecanismo dos fenômenos hipnóticos é acionado
por condições transitórias especiais, ao passo que o dos fenômenos histé-
ricos representa peculiaridade permanente da constituição psíquica de
certos indivíduos.
Existe, no entanto, relação entre histeria e capacidade. de ser hipnoti-
zado. Esta é, certamente, comum a todos os homens, havendo, porém,
muitas modalidades e graus. Observam-se com a máxima frequência os
graus profundos da hipnose nos indivíduos que propendem, também es-
pontaneamente, para os mecanismos histéricos e nas crianças (cuja vida
psíquica, normalmente, ainda está próxima do psiquismo histérico). Por
outro lado, doentes existem que, de modo geral, não são hipnotizáveis; por
exemplo, quase todos aqueles do grupo da demência precoce, além de ou-
tros que se podem levar, apenas, a sono levíssimo, difícil de chamar-se
hipnose; é o caso dos psicastênicos.
A hipnose é fenômeno humano, pressupondo autorreflexão, adoção de
uma atitude em relação a si mesmo; daí ser impossível nas crianças muito
pequenas. Não há hipnose de animais. O que assim se chama são reflexos
que, fisiologicamente, se hão de compreender por forma em absoluto dife-
rente, essencialmente diversa da hipnose humana.
Existe auto-hipnose. Não é o hipnotista; sou eu mesmo que me coloco,
propositadamente, pela autossugestão, em estado hipnótico, no qual
posso realizar, a seguir, efeitos somáticos e psíquicos muito mais extensos
do que é possível em estado vigil. Este processo de domínio dos eventos
corpóreos e do estado de consciência é arquivelho, principalmente nas téc-
nicas Indus da ioga. Quase esquecido no Ocidente, foi empregado pela pri-
meira vez, dentro do campo da terapêutica médica, por Levy. Mas só J. H.
Schultz é que o elaborou metodicamente, testando-o, observando-o e in-
terpretando-o do ponto de vista tanto fisiológico quanto psicológico.
Todo homem é capaz de criar, por sua vontade, condições adequadas a
que se dê uma comutação ou passagem para o estado hipnótico sem su-
gestão alheia; para o que, é necessário o relaxamento — posição do corpo
confortável ao máximo, restrição dos estímulos externos — além de aban-
dono, acordo na disposição à hipnose e concentração (fixação em certo
ponto, monotonia).
A comutação é, segundo Schultz, evento vital, que também ocorre sem
sugestão, bastando haver o relaxamento concentrativo. Trata-se de reação
vital original, análoga ao relaxamento da vivência do sono. A auto-hipnose
é “alteração concentrativa da atitude”, ou seja, em regra, efeito da suges-
tão; mas não ligada a esta, estritamente, constituindo, sim, automatismo
que ocorre em certas condições.
São típicas as vivências do estado hipnótico. O início: sensação de
peso, calor, fenômenos sensoriais, membros fantasmas, regulação cardí-
aca; a seguir, aprofundando-se o estado, possibilitam-se vivências diver-
sas, mundos pictoriais produtivos, automatismo, semelhantes aos que
ocorrem no mediunismo etc. Os rendimentos hipnóticos chegam, cm ca-
sos raros, ao fantástico.
Essencial é que a comutação se estabelece, de início, lentamente e sem
maior efetividade; acessível, porém, que é à prática, torna-se, com a repeti-
ção, cada vez mais rápida e, afinal, se pode efetuar quase repentinamente
por um ato de vontade. É possível associar a comutação a um relaxa-
mento parcial: por exemplo, dos músculos, dos ombros e do pescoço. Pro-
gredindo a prática, a comutação se instala sem tardar, desde que se rea-
lize esse relaxamento local. “Por conseguinte, a pessoa bem treinada, se
quiser deter um estado de ânimo que inesperadamente apareça tem, ape-
nas, de executar o afrouxamento da cintura escapular acima descrito: isso
pode dar-se para qualquer postura e de modo tão discreto que só quem for
iniciado poderá perceber a mudança de posição”.
Portanto, pode-se aprender tecnicamente a comutação; a primeira
aquisição dura 6 a 8 semanas; só após 3 a 4 meses, em geral, é que a auto
comutação se faz tão familiar que possibilita rendimentos consideráveis.
O processo foi desenvolvido ao máximo na índia, através de milênios,
possibilitando realizações para nós quase incríveis. Schultz investigou o
modo por que se afigura sob o ponto de vista puramente fisiológico, dentro
das condições culturais ocidentais, despojado dos conteúdos filosóficos e
religiosos; apurou o fato no todo, mas esvaziou-o, ao mesmo tempo, de seu
peso filosófico, distinguindo a realidade empírica da realidade metafísica.
Desaparecido o conteúdo, resta, apenas, um recurso técnico. Os efeitos —
medidos pelos exercícios hindus, que prosseguem a vida inteira e se reali-
zam com empenho existencial absoluto — são limitados. O processo cons-
titui meio psicoterápico de obter uma pausa para recuperação, descanso e
aquietação, possibilitando certo domínio sobre o evento corpóreo; apropri-
ando-se deste, por assim dizer, analogamente ao controle muscular, o in-
divíduo consegue guiar seus sistemas vasomotor, cardíaco e vegetativo. Os
objetivos são a regulação do sono, a cessação das dores, a tranquilização.
SECÇÃO 2.
MECANISMOS ANORMAIS

A anormalidade dos mecanismos extraconscientes não é de um só tipo,


mas determinada por vários aspectos:
1. Chamamos anormais os fenómenos que excedem o habitual em me-
dida, grau e duração. Sob este aspecto, há, em toda parte, transições fuga-
zes, indo dos fenómenos que ocorrem dentro da média até aqueles patoló-
gicos. A excitação transforma-se em super- excitação; a inibição, em para-
lisia.
2. As associações que se tornam hábitos mecânicos, transformam-se
em vínculos insuperáveis, em fixações. Torna-se imóvel o que é, normal-
mente, móvel; donde resulta orientar-se a vida psíquica por fetichismos,
complexos, ideias de que o indivíduo não consegue, infinitamente, esca-
par, enfiando-se num beco sem saída. Também aqui todas as transições
existem da normalidade à manifesta, anormalidade.
3. Se admitirmos que toda a vida psíquica é a síntese constante da-
quilo que se cinde, a reunião daquilo que tende a separar-se, concluire-
mos pela anormalidade da cisão ou dissociação que acabe sendo definitiva
e insuperável. A consciência, a crista-de-onda momentânea de nossa vida
psíquica, está, normais as condições, em ampla reciprocidade com o in-
consciente; este não se acha, de modo algum, fechado àquela, mas, pelo
contrário, pode ser sempre aprendido, adquirido, conservado. Da consci-
ência ao inconsciente, por sobre as lindes do que não se percebe, estende-
se um campo sem- descontinuidade que se pode livremente percorrer;
tudo se prende, potencialmente, à consciência. O que acontece, o que se
experimenta, mesmo que, no momento, quase se independentize, retro-
cede, sem mais tardar, à personalidade; e mais: se aceita, se limita, se
configura em conexão com a vida psíquica tal qual decorre em- seu todo.
Anormal é, em todos os casos, a cisão radical; e é o fato da inacessibili-
dade à consciência, a falha da integração à personalidade, a ruptura da
continuidade com a inteireza vital. Essa, cisão demarca-se com nitidez da-
quelas fragmentações da vida normal que se estão sempre, novamente, es-
truturando, de tal modo que a cisão, como um passo que atravessa o Ru-
bicón, distingue a anarquia da unidade vivencial. A interpretação segundo
a categoria da cisão dá-se mediante modificações múltiplas. Assim é que
certos sintomas neuróticos ou distúrbios orgânicos se interpretam como
fenômenos que nada têm a ver com a respectiva origem sensorial vital. A
autonomização dos aparelhos conduz a uma vida própria desinibida, por
assim dizer, dos campos sensoriais. À impossibilidade de recordar vivên-
cias efetivas, no entanto atuantes., dá-se o nome de cisão; e a ausência de
referência de certos desenvolvimentos psíquicos, a desintegração das tota-
lidades, a duplicidade desatinada do significado, do sentido e outros fenô-
menos semelhantes, a ocorrer na demência precoce, fizeram cunhar a de-
nominação loucura de cisão (esquizofrenia). Chamam-se cisão, ou frag-
mentação do eu, as vivências duplicativas do eu. Mas subsiste a indaga-
ção: que é que realiza o dilaceramento e de que modo se pode recuperar a
reintegração, do mesmo passo que o significado, a limitação, a proporção?
Não se esclarece, entretanto, nem metódica, nem sistematicamente, o
que é, a rigor, cisão. Esta constitui tanto um conceito- descritivo daquilo
que é, factualmente, vivenciado quanto uma teoria do evento no estado es-
pecial de fragmentação; e constitui a hipótese de certo acontecimento que
se instala nesse estado. A ideia básica impregna todo o pensamento psico-
patológico, sem atingir, certamente, coisa alguma que seja unitária; mas
toca, a cada momento, em modalidades do mecanismo extraconsciente.
4. Há o mecanismo de comutação do estado de consciência, fato cuja
ocorrência na hipnose e na auto-hipnose J. H. Schultz distinguiu nitida-
mente da sugestão. Essa comutação é produzida quase sempre, na hip-
nose, mediante a sugestão; mas também pode ocorrer sem que haja su-
gestão, uma vez que se instituam condições favoráveis e comportamento
adequado. Dá-se a comutação diariamente, quando adormecemos e aqui
também em parte graças à vontade de dormir, que atua sugestivamente,
mas igualmente, sem que esta esteja presente, quando estamos cansados,
habituados, condicionados para o sono. Schultz distingue, em primeiro-
lugar, o processo da comutação; em segundo lugar, o estado de consciên-
cia que se dá por efeito da comutação e, por fim, os. fenômenos e efeitos
possíveis de se observarem nesse estado. A unidade certamente indivisível
pode ser considerada, discriminativamente, segundo estes três pontos de
vista.
Concebem-se como comutação, em analogia com a que ocorre no sono
e na hipnose, todas as alterações da consciência e da disposição. Nas rea-
ções vivenciais anormais, nos fenômenos histéricos, nos estados psicóti-
cos, sempre existe, certamente com significado e direção muito diversos,
uma disposição psíquica que, tal qual um puxão, se apresenta em abso-
luto diferente-e constitui condição para a ocorrência dos novos fenômenos
anormais. A comutação, se a conhecêssemos com mais rigor e não só a
conceituássemos de modo grosseiramente comparativo, é, sem dúvida, do
tipo muito diverso. Toda comutação é específica, mas só de forma gros-
seira é que podemos conceber-lhe a especificidade; sobretudo, mediante
comparação com os mecanismos extraconscientes normais.
Se contemplarmos as direções segundo as quais caracterizamos a
anormalidade dos mecanismos extraconscientes, far-se-á claro que não
conhecemos, nem apreendemos em particular qualquer mecanismo singu-
lar dessa ordem; mas, sim, as formulações apenas constituem variação da
modalidade; e é no mistério que tropeçamos. Temos conhecimento fatual
dos fenômenos que são possíveis à base dos mecanismos hipotéticos; e,
dentro de estreitas lindes, das causas que põem em jogo esses mecanis-
mos. Mas de onde provêm esses mecanismos anormais é indagação causal
que ainda subsiste, quando se manifestam por estímulos psíquicos como
fatores concomitantes causais. Atribuem-se a uma’ disposição anormal es-
pecial (constituição), a processos cerebrais, a outros processos somáticos
mórbidos. Também se fala em causas psíquicas no sentido mais estrito,
quando os mecanismos se hajam formado por força de algum choque psí-
quico desacostumado; neste caso, porém, sempre se há de pensar, adicio-
nalmente, em predisposição, não havendo a qual esse choque jamais se
manifestaria. Ou se terá de admitir que certas situações e vivências pos-
sam colocar todos os homens sob o poder desses mecanismos anormais
extraconscientes; ao que se inclinam alguns pesquisadores com base em
observações particulares, não parecendo estas, contudo, suficientes. Seja
como for, há mecanismos específicos, quais sejam aqueles que atuam na
esquizofrenia e que de modo algum se podem encontrar em todos os ho-
mens; e também, decerto, inúmeros outros; exemplo, os drasticamente
histéricos.
Porque a vivência compreensível representa a origem da manifestação
do mecanismo extraconsciente, acreditamos haver compreendido a pró-
pria transformação, não apenas o conteúdo; mas nos enganamos. Com
efeito, a cotidianidade de certos mecanismos, representando, embora, o
conhecimento respectivo, não lhes representa a compreensão; e o caráter
anormal da compreensibilidade, quando os mecanismos extraconscientes
se manifestam, não reside na incompreensibilidade, que é própria a todos
os mecanismos, e sim na raridade dos mecanismos que ocorrem: existem
realizações desacostumadas das conexões compreensíveis, baseadas nos
mecanismos anormais, para as quais o compreensível mesmo — vigo-
rando quase sempre precondições ignoradas — se transforma em fator
causai.
A comutação no sentido da alteração da consciência dá-se por forma
compreensível e intencional através da sugestão e da autossugestão; por
forma compreensível, mas inintencional, através de reações vivenciais; e
resulta de doenças somáticas, envenenamento, cansaço excessivo, causas
que, todas, forçam à comutação, ao passo que a sugestão e a vivência,
como fatores causais, exigem, de um modo ou de outro, a “acordo”, que
vem a constituir o elemento causal compreensível.

§ 1. Reações Vivenciais Patológicas

Usa-se com muitos significados a palavra “reação”. Fala-se em reação


do organismo físico a influências e condições do mundo exterior; em rea-
ções de um órgão — por exemplo, o cérebro — a processos que ocorrem no
organismo; em reação da psique individual a processos mórbidos psicóti-
cos; enfim, em reação da psique a vivências. Só trataremos, aqui deste úl-
timo tipo de reação.
O significado que certos fatos têm para a psique, seu valor vivencial, o
choque ou traumatismo emocional que os acompanha provoca uma rea-
ção que é, em parte, “compreensível”. Na reação ao encarceramento, por
exemplo, atua, psicologicamente, a consciência do significado que tem o
fato, das consequências possíveis; mais ainda, a atmosfera da situação, a
solidão, a obscuridade, a frialdade das paredes, a dureza da cama, a rispi-
dez do tratamento, a insegurança tensa quanto ao que está para vir; além
do que, talvez atuem, igualmente, a escassa ingestão alimentar pela ano-
rexia ou pela má qualidade da comida, o esgotamento resultante da insô-
nia; efeitos somáticos estes que preparam o terreno para o tipo reativo es-
pecial, contribuindo para que se instale o quadro mórbido total da psicose
carcerária. Não é frequente resultar o estado reativo patológico de uma vi-
vência particular; mas, sim, da somação de efeitos. As psicoses de guerra
reativas resultam, frequentemente, da exaustão psíquica e somática, ir-
rompendo, às vezes, após longa resistência, por força de vivências relativa-
mente pouco avultadas.
Por melhor que compreendamos a vivência, seu significado e o conte-
údo do estado reativo, nem por isso, contudo, compreendemos, sob o
ponto de vista psicológico, a transposição para o patológico, sendo neces-
sário, a esta altura, pensar também nos mecanismos extraconscientes: ex-
plicamo-los pela disposição especial, pela ocorrência de processos mórbi-
dos somáticos; ou presumimos que o choque psíquico possa, como tal,
produzir nos fundamentos de nossa vida psíquica normal certa alteração
transitória. Assim como do choque psíquico resulta, à imediata, uma
quantidade de fenômenos somáticos concomitantes, também ele produz
alteração transitória dos mecanismos psíquicos; e estes, então, condicio-
nam os estados anormais de consciência, bem como a realização de cone-
xões compreensíveis (nos casos de torvação da consciência, de dissocia-
ções, de ideias delirantes etc.). Essa alteração teoricamente construída das
bases extraconscientes é de conceber-se como causalmente condicionada
e análoga às consequências somaticamente tangíveis dos. choques emoci-
onais.

a) Distinção entre reação, fase e broto.


Entre as reações, patológicas, são de distinguir-se, em princípio:
1) Psicoses puramente desencadeadas, cujo conteúdo não tem conexão
compreensível alguma com a vivência. Por exemplo, um falecimento de-
sencadeia- processo catatônico, ou depressão circular. O tipo de psicose
pode não corresponder, em absoluto, à vivência. O choque psíquico, nada
mais é do que a causa derradeira, eventualmente indispensável, em vir-
tude da qual uma doença irrompe, quer se trate de fase transitória, quer
de broto de um processo; os quais, mesmo- sem essa causa, viriam, afinal,
a ocorrer; e, então, seguem seu curso de acordo com leis próprias, inteira-
mente independentes da causa psíquica. Disso distinguimos.
2) As reações autênticas, cujo conteúdo tem conexão compreensível
com a vivência, que não se dariam sem a vivência; e cujo curso depende
da vivência e de suas, conexões. A psicose persiste relacionada com a vi-
vência central. No caso de psicoses puramente desencadeadas ou espontâ-
neas, observa-se um desenvolvimento primário da doença, só se podendo-
explicar em termos somáticos, sem relação com a biografia e a vivência do
paciente e encerrando conteúdo meramente casual, sem influência de va-
lores vivenciais da biografia anterior; conteúdo tal qual o encerra toda do-
ença psíquica. Nas fases curáveis, existe a tendência posterior ao reconhe-
cimento claro da doença, ficando o- paciente em condições de encará-la
como algo completamente alheio. Quando a psicose é reativa, observa-se
ou reação imediata a uma vivência incisiva, ou descarga, por assim dizer,
após maturação mais longa e despercebida, em conexão compreensível
com a biografia e as impressões da vida cotidiana. Após o curso da psi-
cose, existe, é certo, a capacidade de o enfermo, retrospectivamente, consi-
derar a psicose como doença; mas existe também a tendência a um pós-
efeito dos conteúdos psicóticos, provenientes da história do paciente, so-
bre a vida ulterior, com a inclinação simultânea, porém, na vida emocional
e instintiva, a não libertar-se dos conteúdos mórbidos, apesar de assumir-
se atitude intelectual correta.
O conceito de reação patológica tem um aspecto compreensível (vivên-
cia e conteúdo), um aspecto causal (alteração do extra- consciente) e um
aspecto prognóstico (esta alteração é transitória), dos fatos traumatizan-
tes, subsiste, entretanto, um pós-efeito que, Embora a transposição mo-
mentânea para um estado anormal seja reversível, sobretudo quando a
cura imediata se dá após cessação- <>os fatos traumatizantes, subsiste,
entretanto, um pós-efeito, que, pela repetição e pela somação de vivências,
leva, por fim, ao desenvolvimento anormal reativo da personalidade. Rea-
liza-se, é certo, após cada reação, um retrocesso ao status quo ante em re-
lação -ao tipo dos mecanismos e funções psíquicos, à capacidade produ-
tiva etc.
Só nos “borderline cases” evidentes é que, radicalmente, se podem dis-
tinguir as reações autênticas dos brotos. De um lado, :existem psicoses
condicionadas por traumatismo psíquico, a atuar como causa essencial e
também apresentando conexões compreensíveis convincentes entre vivên-
cias e conteúdo psicótico (psicoses reativas autênticas). De outro lado,
existem psicoses resultantes de processos, encerrando conteúdo sem co-
nexão compreensível alguma com a biografia, se bem que, como é natural,
os conteúdos devam ser tirados da história anterior; mas o respectivo va-
lor vivencial, o valor biográfico que têm, não constitui a razão decisiva
para a fusão no conteúdo psicótico.

b) A tríplice direção da compreensibilidade das reações.


Compreendemos a medida de um traumatismo como causa adequada
de qualquer colapso; compreendemos um significado, a que a psicose rea-
tiva serve, em seu todo; compreendemos os conteúdos da psicose reativa
no particular.
1. Vimos que as vivências psíquicas se acompanham sempre de fenô-
menos somáticos, pondo em movimento, é certo, mecanismos extraconsci-
entes que não se podem descrever em detalhe, mas que se podem postular
teoricamente; mecanismos estes que constituem o terreno para reações
anormais de conteúdo compreensível. Além disso, contudo, os traumatis-
mos psíquicos levam a distúrbios somáticos ou psíquicos, sem conexão
compreensível com o conteúdo da vivência; esta representa a “causa psí-
quica” de um evento que lhe é estranho. Efeitos drásticos imediatos resul-
tam de excitações psíquicas de intensidade máxima, mas a forma por que
isso se dá é quase sempre hipotética. Em geral, todavia, sabe-se que a cir-
culação sofre a influência de afetos; sabe-se que estes têm consequências
somáticas, através do sistema vegetativo dos nervos simpáticos e paras-
simpáticos e das glândulas endócrinas; mais ainda: que as alterações so-
máticas, por sua vez, atuam sobre o cérebro e a psique. Talvez os afetos
deem origem às convulsões dós epilépticos pela via desses elos somáticos;
como talvez um afeto origine, por intermédio da alteração circulatória e da
elevação tensional, a ruptura de vasos cerebrais, com apoplexia. São de
notar-se, em especial, os seguintes efeitos de causas psíquicas.
aa) Certos estados psíquicos anormais se curam com um choque psí-
quico. O exemplo mais conhecido é a repentina volta à normalidade que,
por vezes, se presencia até em indivíduos fortemente alcoolizados, sob o
efeito de situações graves importantes que deles exigem muito. Surpre-
ende a maneira por que, nesses casos, um efeito indubitavelmente somá-
tico do álcool pode ser, de súbito, anulado.
Todavia, os casos em que os conteúdos de certas personalidades anor-
mais se alteram por força de impressões psíquicas não se enquadram
aqui, mas, sim, entre as conexões compreensíveis: o delírio de ciúme- da
personalidade anormal cessa quando uma doença grave acorrenta as
ideias; as queixas neuróticas cessam quando o indivíduo tem de fazer es-
forços sérios.
bb) Os traumatismos psíquicos sérios (catástrofes; por exemplo, terre-
motos) originam alterações de toda a constituição psicofísica; alterações
cujos sinais e manifestações carecem, por vezes, de qualquer conexão
compreensível. Assim é que se dão alterações circulatórias, estados ansio-
sos, distúrbios do sono, diminuição da eficiência, inúmeras manifestações
psicastênicas e neurasténicas, permanecendo, tenazmente, por muito
tempo.
cc) Excitações psíquicas muito intensas parecem produzir efeitos que
se assemelham aos resultados de lesões cranianas. Têm-se observado ca-
sos nos quais ao delírio se segue a morte; e outros em que se apresenta a
síndrome de Korsakov (Stierlin). Em que extensão se trata de distúrbio
que só seja possível pela existência de arteriosclerose (daí devendo consi-
derar-se orgânico); em que extensão semelhantes consequências também
podem ocorrer em vasos sanguíneos sadios por força de vivências psíqui-
cas — ainda é duvidoso.
dd) É possível — embora raro — que também uma vivência prazerosa
venha, pelo choque emocional que se lhe associa, a constituir causa de ir-
rupção de estados somáticos mórbidos. Por exemplo, os psicastênicos
queixam-se de aumento de seus padecimentos, quando experimentam im-
pressões intensamente prazerosas, falando, então, em "reação”.
2. Compreendemos um significado das psicoses reativas. O estado psí-
quico anormal serve, em conjunto, a certo objetivo do paciente: objetivo a
que também se ajustam, mais ou menos, as características particulares
da enfermidade. O doente que quer ser considerado irresponsável faz psi-
cose carcerária; quer indenização, faz neurose de renda; quer ser inter-
nado, apresenta as queixas dos frequentadores de hospitais. Os doentes
esforçam-se, instintivamente, dessa forma, pela gratificação de seus dese-
jos; e conseguem-na pela psicose (psicose intencional ou finalista) ou pela
neurose (neurose finalista). Em casos raros, encena-se a doença de modo
mais ou menos consciente. De certa simulação, a princípio talvez consci-
ente, surge, primeiro, a doença, que, a seguir, o indivíduo enfrenta inde-
feso. Ou uma afecção psiconeurótica que se iniciou por outra forma vem a
“histerizar-se” só em seu curso, porque, pela existência da doença, se
atinge certo objetivo (dispensa do serviço militar, indenização).
Desde Kohnstamm se alude à “falha da consciência da saúde”. O indi-
víduo sadio menospreza queixas múltiplas e padecimentos somáticos, na-
turalmente se esforçando por ser sadio e continuar a ser sadio. Não dando
atenção a muitos fenômenos que se apresentam de quando em quando,
ele os faz desaparecer. Mesmo em relação a doenças somáticas que dimi-
nuem a produtividade e exigem tratamento racional, a mente sadia não se
traumatiza internamente.
Difícil é determinar o limite em que o homem não pode mais, real-
mente, aguentar (mais fácil será quando a continuação dos efeitos gera le-
são, faz a doença piorar ou leva à morte). Quando a exaustão é muito pro-
nunciada, em situações extremas, um sentimento real de desfalecimento
acomete o indivíduo, de modo que toda a tensão vital se apaga, transfor-
mando-se em indiferença; e a simples declaração de que já. não se pode
mais aguentar é autêntica e aceitável. Conquanto seja sempre possível in-
dagar se o indivíduo não quis fazer mais, ou se um desejo atuou no sen-
tido de abandonar-se à fraqueza e ao desfalecimento existentes, a verdade
é que se deixa, muitas vezes, sem resposta à pergunta. Entretanto, no ter-
reno das reações vivenciais histéricas e hipocondríacas resultantes de do-
ença somática, é quase sempre evidente a falha da consciência da saúde.
3. Juntamente com os conteúdos, compreendemos o deslizamento
para a psicose ou para a doença somática. É como se houvesse uma fuga
para a doença, a fim de se escapar à realidade e, sobretudo, à responsabi-
lidade. O que teria de ser aturado, elaborado, apropriado na intimidade
psíquica c substituído ou por uma doença somática, da qual se pretende
não ter responsabilidade alguma, ou pela gratificação de um desejo, a qual
institui uma realidade que não penetra a realidade empírica, mas a enco-
bre. A fuga para a psicose faz que se vivencie como aparentemente reali-
zado aquilo que a realidade não oferece, "Se bem que quase sempre por
forma ambígua. Na psicose, apresentam-se como realmente atendidas, si-
multânea e sucessivamente, mediante delírios e alucinações, todas as an-
siedades e necessidades, bem como todas as esperanças e aspirações.
Certos casos habituais constituem reações que ocorrem em situações
extremas, resultantes de atos praticados pelo próprio indivíduo (infanticí-
dio, assassinato). Um fato que transforma a existência inteira leva, em psi-
coses agudas, a vivências delirantes de conversão, cujo conteúdo .se man-
tém tal qual o motivo que determinará, a partir daí, a vida inteira. Trata-
se, em certo caso, de robusta filha de camponeses., até então psiquica-
mente sadia, pelo menos na aparência, que tem um filho de um prisio-
neiro de guerra russo e mata a criança, logo após o nascimento; noutro
caso, de um oligofrênico fronteiriço, que, sugestivamente influenciado por
outra pessoa, comete um assassinato. Weil resume os casos da seguinte
maneira: Ambas as psicoses irrompem após um ato, infanticídio e assassi-
nato, confessado na prisão. — Ambos oram com fervor, que leva a infanti-
cida à certeza de que Deus assim o quis; o assassino, além disso, à falsa-
recordação de haver-se, uma vez, oferecido a Deus em sacrifício, a fim de
que Deus mostrasse: por ele, que também ações más podem ter origem di-
vina. — Ambos os criminosos têm visões da mesma esfera. — Uma encon-
tra sua “paz espiritual”; o outro, sua “paz de coração”. — Ambos prendem-
se à realidade dos fenômenos e ao significado a estes conexo, - sinais de
redenção c graça. — Pela psicose ambos são subtraídos ao remorso em re-
lação à vítima; a mulher torna-se filha de Deus; o homem, filho absoluta-
mente preferido de Deus”. Um e outro, convertidos, sentem-se arrebata-
dos, — A constituição, personalidade e caráter são inteiramente diversos
num e noutro; daí ser tanto mais notável a analogia com que as psicoses
se manifestam, gratificando desejos.
Estes casos distinguem-se da esquizofrenia (na qual, inicialmente, são
frequentes as vivências infundadas de conversão) pela falta de quaisquer
sintomas primários, pela centralização da psicose no conteúdo delirante
quase inteiramente compreensível, pela objetividade do conteúdo delirante
como única revolução significativa da índole e da atitude individual, pela
ausência de sintomas caóticos, arbitrariamente múltiplos, desprovidos de
qualquer sentido.
É notável o modo por que, em semelhante contexto, até um oligo- frê-
nico pode ter vivências profundamente significativas e grandiosas. O paci-
ente de Weil descreve como resultado de suas preces, com a indagação de-
sesperada do motivo de seu ato, o êxtase que teve na manhã de Natal:
“Quando olhei para a parede, vi-a transparente feito vidro. Foi como se
pairasse no ar, tal qual o sol. Depois, ficou bem escuro, tanto quanto a
noite.... depois, ficou rubro.... Vi, então, de muito longe, aproximar-se e
aumentar um fogo terrível, incrivelmente grande. Era como se o mundo, a
terra ardessem; e vi milhões de pessoas no solo ressecado, sem casa, uma
árvore, coisa alguma; só aqueles semblantes horríveis, pavorosamente de-
formados; quase todos suplicantes, de olhos e mãos erguidos, como se
ainda esperassem redenção; o fogo enorme avermelhava-os, o fogo no qual
demônios se agitavam.... Depois, ficou, novamente, escuro de todo; mas
não muito tempo; tudo se iluminou, ficou muito mais belo do que o mais
belo dia primaveral. Por um momento, contemplei, acima do nosso, o
mundo celestial magnífico. Não se pode descrever quanto é lindo e admirá-
vel tudo isso. Vi as almas com beleza de tal forma maravilhosa.... Tudo de-
sapareceu, de súbito, para mim e para mim tudo se tornou escuro de
breu, E, ao mesmo tempo, soube que estava preso”.
É muito duvidosa a possibilidade de conceber semelhantes casos como
sendo, a rigor, sadios, e não histéricos. Deve haver disposição inteira-
mente específica, ou aptidão para tal transformação (se é que os dois ca-
sos não evoluíram para a esquizofrenia).
Resumindo-, a psicose tem significado, no todo e no particular; serve
para a defesa, para a segurança, para a fuga, para a gratificação de dese-
jos; origina-se do conflito com a realidade, que, tal qual é, já não se su-
porta. Mas não se sobre-estime toda esta compreensão segundo seu signi-
ficado. Em primeiro lugar, os mecanismos da própria transformação não
podem ser compreendidos; em segundo lugar, existem, de modo geral,
mais manifestações anormais do que se podem acomodar num contexto
total compreensível; enfim, conquanto a vivência traumatizante também
desempenhe papel como fator causal, é difícil avaliar a medida em que vi-
gora esse significado causal.
c) Discussão dos estados reativos.
Para examinar os estados reativos, classificamo-los: 1) conforme as
causas da reação; 2) conforme a estrutura psíquica peculiar aos estados
reativos; 3) conforme os tipos de constituição psíquica que condiciona a
reatividade.
1. Conforme as causas, distinguem-se as psicoses carcerárias, que se
têm investigado com rigor especial e que constituem a base de toda a teo-
ria das psicoses reativas; a seguir, as neuroses de renda após acidentes,
as psicoses de terremotos e, em geral, de catástrofes, as reações nostálgi-
cas, as psicoses de guerra, as psicoses de isolamento, quer ocorram em
ambientes de língua estrangeira, quer resultem de dificuldade auditiva.
Vischer descreveu os estados reativos de isolamento que ocorrem na socie-
dade de escassos companheiros em campos de concentração.
A situação: privação da liberdade por tempo ignorado. Vida em comum
com pequeno número de companheiros, sempre os mesmos, sem possibili-
dade alguma de isolamento. Formação de antipatias intensas. Aumento de
irritabilidade. Não se tolera a menor contradição. Ardor pelas discussões.
Mesquinharia no trato com os outros, inclinação a só pensar em si. Ex-
pressões grosseiras. Concentração nula. Comportamento inquieto, hábito
inconstantes. Queixas de cansaço rápido (à leitura). Sobressaltos frequen-
tes, impossibilidade de ficar muito tempo no mesmo lugar. Perda de me-
mória. Humor básico sombrio. Desconfiança. Impotência sexual frequente.
Poucos se livram desse estado, quando permanecem mais de seis meses
na prisão. Os sintomas apresentam-se muito matizados.
Vischer relembra as “Recordações da Casa dos Mortos”, de Dostoi-
evski: mais as experiências de pessoas que vivem esparsas, isoladas- do
mundo; os brancos nos trópicos (furor dos trópicos), os tripulantes de na-
vios (principalmente, no tempo antigo, dos barcos a vela), os religiosos nos
conventos ; os viajantes polares (narrativa de Nansen, Payer, Ross).
2. Segundo o tipo da estrutura psíquica dos estados reativos, pode-se
caracterizar uma série de situações. Discriminação nítida só seria possível
se se pudessem separar os diversos mecanismos extraconscientes, de
modo a reconhecer a especificidade das reações histéricas, paranoides,
das reações de alteração da consciência etc.; o que não é possível, no mo-
mento. Temos de satisfazer-nos com a enumeração de tipos:
aa) A todas as vivências, principalmente as menos importantes, se res-
ponde com sentimentos que são compreensíveis segundo a qualidade, mas
se apresentam desmedidamente intensos; que desaparecem com lentidão
anormal; que geram cansaço e paralisia (reação psicastênica). São especi-
almente comuns os estados de depressão reativa. Quase não há manias
reativas. A tristeza aumenta por si mesma, a alegria pode ser desmedida,
de maneira que o indivíduo nem sabe, por assim dizer, com<> rejubilar-se;
mas a alegria dissipa-se, não consegue manter-se. A anormalidade pode
residir não só na intensidade da reação vivencial.... mas também na inten-
sidade dos pós-efeitos. Cada um de nós vivencia o fato de o humor que do-
mina uma manhã ser influenciado pelo sonho da noite anterior, embora
só por traços ligeiros, que apenas a observação psicológica pode detectar.
Certos homens, entretanto, são fortemente sujeitos a esses pós-efeitos oní-
ricos, que os dominam o dia inteiro. Igualmente, a duração dos pós-efeitos
pode ser anormal: certa tristeza só se compensa aos poucos; todos os afe-
tos seguem curvas muito extensas.
bb) Uma descarga se dá em convulsões, acessos de raiva, movimentos
desordenados, atos de violência cega, ameaças e xingas: por si mesma
ocorre uma exaltação que leva a estados de estreitamento da consciência.
Fala-se em “explosões carcerárias”, “furor”, “reações em curto-circuito”.
Kretschmer dá a este grupo inteiro o nome de ‘reações' primitivas” intensi-
ficam-se com rapidez, mas também não tardam a dissipar-se.
cc) As emoções fortes, a raiva, o desespero, o medo acarretam (aumen-
tando-lhes, mesmo normalmente, a intensidade), certa turvação» da cons-
ciência, subsistindo, a seguir, recordação lacunar. Em situação» anormal,
ocorrem estados crepusculares, com desorientação, ações insensatas e fal-
sas-percepções, além de repetições teatrais de atos cujo significado resulta
da vivência original e respectiva situação, não da realidade presente. Cha-
mam-se “histéricos” estes fenômenos. Quase nunca é consciente, no es-
tado de turvação, a vivência original, que, nas psicoses: de curta duração,
pode ser inteiramente recalcada e, depois, esquecida. Na linha de frente,
Wetzel observou psicoses traumáticas em soldados, que haviam recalcado
a morte de companheiros tombados; apresentavam comportamento tea-
tral, mas despertavam com rapidez e “era extremamente impressionante o
retorno da gesticulação teatral à rigidez militar.” Tais casos contradizem a
opinião segundo a qual a gesticulação, “histérica” teatral estaria, de modo
geral, enraizada profundamente em toda a personalidade. Mas também
existe turvação da consciência idêntica em casos nos quais a origem per-
manece consciente; e até existe consciência da doença, além de recorda-
ção subsequente bastante completa.
dd) Quando se observa, no primeiro plano, perplexidade onírica; mais:
comportamento aparente e artificialmente infantil (puerilismo), paralogias
(Quantas pernas tem uma vaca? Cinco); enfim, estado de “pseudodemên-
cia”; e ainda sinais somáticos de histeria (analgesias etc.) é a síndrome de
Ganser que ocorre.
Ocorrendo turvação da consciência, transtornada a orientação, se vi-
vencia, a todo momento, um conteúdo, sempre o mesmo, com todas- as
manifestações emocionais e movimentos expressivos (“attitudes passion-
nelles”), conteúdo que repete a vivência desencadeante (estupro, acidente
etc.), dá-se o estado chamado delírio histérico. — Também se- observam
quadros estuporosos (estupor do medo), quadros fantásticos-delirantes,
mantendo-se perfeita a orientação têmporo-espacial. Nos- longos encarce-
ramentos, por força da desconfiança normal e da suspeição compreensí-
vel, desenvolvem-se ideias persecutórias absolutamente lúcidas, ou ten-
dências querulantes pela ideia de que se foi injustamente condenado. Ne-
nhum destes estados se demarca com nitidez; todos se- combinam da ma-
neira mais variada.
ee) Entre as psicoses carcerárias que ocorrem sob o efeito permanente
de situações adversas, têm-se observado as reações alucinatório-paranoi-
cas. Os doentes, ansiosos, tensos, não se sentem donos de seus pensa-
mentos; querem encontrar um resultado, um modo de ver, uma atitude a
tomar. Parecem ansiar por alguma coisa intangível. Daí ouvirem ruídos
suspeitos; há gente tramando contra eles; fora, no corredor, ouvem passos
suspeitos e uma voz que diz, de repente: Hoje, vamos matá-lo; as vozes
multiplicam-se, chamam pelo nome o doente. Este vê, então, vultos; como
se estivesse sonhando, atira longe os lençóis, atacado de pavor delirante,
tenta suicidar-se. Posteriormente, é fácil elaborarem-se delirantemente os
conteúdos; o doente convence-se de que está sendo, na verdade, perse-
guido, de que deve ser morto. — Sobre reações paranoicas agudas, Kurt
Schneider relata casos raros e interessantes.
3. Enfim, podem-se classificar os estados reativos conforme o tipo de
constituição psíquica que condiciona a reação. Na guerra, observam-se,
por vezes, estados reativos psicóticos de curta duração em personalidades
que nada apresentavam de psicopático, nem antes, nem depois. A conclu-
são é que todo homem tem um “limite” a partir do qual adoece. Conquanto
não se possa, objetivamente, em tais casos, determinar certa disposição
(pelo contrário, é possível que também personalidades robustas, de apa-
rência psíquica especialmente sadia adoeçam — em casos raros), é possí-
vel, no entanto, estabelecer que, no caso, há de ter sempre existido uma
disposição específica e que muitos são os homens suscetíveis de sucumbir
somaticamente, de sofrer lesões cerebrais, de se esgotarem por completo,
sem, entretanto, fazer estados reativamente psicóticos. Na maioria dos ca-
sos, porém, é visível a precondição que é ou congênita e permanente (psi-
copatas), ou oscilante (fases), ou adquirida e transitória (exaustão). Assim
é que se observam certos caracteres de reagibilidade aumentada (excitabi-
lidade, irritabilidade), além das situações emocionais histéricas e psicastê-
nicas. Mas isso se nota em certos indivíduos e a determinados momentos
que, como tais, quase não chamam a atenção do observador superficial.
Resultando de causas relativamente insignificantes, constatam-se excesso
de afetividade, incapacidade de elaborar vivências nas mesmas pessoas
que, a outro instante, se afiguram de todo normais. Os momentos desfavo-
ráveis podem representam fases puramente endógenas, ou condicionadas
por esgotamento psíquico ou somático; bem assim, por ferimentos na ca-
beça, emoção prolongada, insônia etc.
Do mesmo modo que a constituição, os processos mórbidos orgânicos
podem servir de terreno para a eclosão de reações anormais. Nos esquizo-
frênicos, há psicoses reativas à base dos progressos da doença, distin-
guindo-se dos brotos do processo mórbido pelo fato de o doente, após o
respectivo decurso, quase regressar ao estado anterior, ao passo que os
brotos, embora se abrandem as manifestações mais intensas, dão causa a
alteração permanente. Os brotos encerram, em geral, conteúdos de épocas
passadas, sejam quais forem, enquanto as reações possuem conteúdos
determinados provenientes de uma ou diversas vivências, que terão origi-
nado, por forma contínua, a psicose. Os brotos surgem espontaneamente;
as reações, em conexão temporal com certas vivências. — Claro que em to-
das as doenças os traços reativos intervêm, na medida em que, de ma-
neira geral, ainda existam conexões na vida psíquica; esses traços são, po-
rém, quase sempre, inessenciais no que diz respeito ao curso da doença.
Resumiremos, finalmente, mais uma vez, o que é comum às reações
autênticas: a causa (fator), que se prende, estreitamente, no tempo, ao es-
tado reativo, é tal que baste à nossa compreensão. Entre o conteúdo da vi-
vência' ’e o conteúdo da reação anormal existe conexão compreensível.
Porque se trata da reação a uma vivência, a anormalidade se compensa
com o correr do tempo. De modo particular, removida a causa (recupera-
ção da liberdade, retorno da jovem nostálgica ao lar paterno), também a
reação anormal cessa. Daí resulta contrastar a anormalidade reativa com
todos os processos mórbidos que ocorrem espontaneamente.
Todavia, as conexões causais e compreensíveis são tão intrincadas e o
engrenamento de umas nas outras é tão complexo que nem sempre se
pode estabelecer separação nítida entre reação autêntica e fase ou broto. A
falta de conteúdos compreensíveis pode iludir a respeito da reação psí-
quica; e a abundância desses conteúdos compreensíveis, a respeito do
processo mórbido. De um lado, encontram-se estados psíquicos anormais,
causalmente condicionados por trauma psíquico (por exemplo, psicoses
por catástrofes, reações primitivas com furor e convulsões), sem que exis-
tam muitas relações compreensíveis entre conteúdo e causa. De outro
lado, acham-se alterações da constituição psíquica resultantes de meca-
nismos extraconscientes e cuja fase individual, ou seja, o broto, apresenta,
no entanto, conexões compreensíveis maciças com a biografia do paciente.

d) O efeito curativo dos traumatismos emocionais.


Fato interessante é que certas vivências não só desencadeiem psicoses,
mas também influenciem favoravelmente uma psicose existente, embora
sem curá-la. Ê relativamente comum verem-se doentes paranoides com
processo esquizofrênico que perdem, de início, todos os sintomas (alucina-
ções, ideias persecutórias etc.) assim que se internam. Também se note
que certos estados graves com colorido catatônico despertam “de sono
profundo”, a bem dizer, por força de um afeto intenso, caminhando para a
cura do estado agudo. Vejamos o seguinte caso, relatado por Bertschinger.
“Uma senhora jovem, que havia semanas se portava imodestamente,
preferindo mostrar-se nua, foi surpreendida em situação muito indecente
por certa pessoa do hospital que conhecera tempos antes. Corou, ficou en-
vergonhada, conseguiu ir para a cama pela primeira vez depois de várias
semanas; a partir daí, acalmou-se e pôde ter alta dentro de poucos dias”.
Observam-se, frequentemente, pacientes que relatam haver certos fa-
tos, sejam quais forem, a exercer influência particularmente favorável no
estádio de cura de psicoses agudas. Nota-se melhora objetiva vidente, do-
entes há muito tempo estuporosos tomando-se acessíveis, por exemplo,
graças à visita de familiares (rara, embora, que seja. O antigo estado, po-
rém, reaparece daí a poucas horas, sem influenciar o curso da doença.
É duvidoso até que ponto os tratamentos brutais de séculos atrás e a
terapia moderna dos choques insulínico e cardiazólico, do traumatismo da
vivência mortal, da repetição frequente de situações extremas levam à mo-
dificação psíquica que se pode chamar cura; ou até que ponto nisso in-
fluem fatores causais somáticos.
§ 2. Pós-Efeito Anormal De Vivências Anteriores

a) Hábitos anormais.
Vamos apresentar algumas maneiras pelas quais o hábito, se mani-
festa visivelmente. Um psicopata que, certa vez, se colocou em tal ou qual
situação com determinado estado de ânimo não consegue mais modificar
este último; uma palavra inamistosa, pronunciada no começo de uma reu-
nião, estraga a noite inteira. Mantém-se o comportamento querulante em
relação ao hospital no qual está internado, mas o indivíduo se acalma
noutro hospital, talvez com pior tratamento.
Os atos criminosos, depois de cometidos, tendem a repetir-se. O exem-
plo mais notável é o das envenenadoras (marquesa de Brinvilliers, Marga-
rethe Zwanziger, Gesche Margareth Gottfried, além de outras), às quais o
assassinato não se afigura, em absoluto, extraordinária; não o terão come-
tido com outro objetivo senão a pura ânsia de poder e, por fim, o simples
prazer. Feuerbach assim descreve um caso: “Fabricar venenos e adminis-
trá-los torna-se, consequentemente, para elas o corriqueiro ato que se põe
em prática tanto por brincadeira quanto a sério; afinal, porém, é com pai-
xão que se pratica, não só pelos resultados que possa dar, mas por si
mesmo.... O veneno lhe era o derradeiro amigo, o mais fiel, o amigo que a
atraía sem resistência, do qual já não podia libertar-se. Era-lhe compa-
nheiro constante; com veneno no bolso a justiça capturou-a... Após meses
de cativeiro, quando lhe mostraram, para ver se o reconhecia, o arsênico
que lhe haviam encontrado em casa, pareceu estremecer de alegria; com
os olhos radiantes, deslumbrados, fitou o pó branco; mas sempre falando
nos atos que praticara como se fossem 'transgressões de pouca monta’...
O hábito deixa de ser para nós notável”.
Certos estados psicóticos agudos deixam, residualmente, movimentos
anormais, expressões anormais, que se transformam em hábitos duradou-
ros, sem, no entanto, subsistir a causa propriamente dita.
Quando se vivencia intensa reação (de tipo normal ou anormal), o
efeito daí resultante (em graus variáveis conforme o indivíduo) é que a
mesma reação, com a mesma intensidade, se repete a estímulos menores
dirigidos no mesmo sentido que a vivência original; ou a estímulos que o
recordam, apenas, de algum modo; ou, enfim, na ocorrência de quaisquer
fatos com carga afetiva que tenham com a vivência inicial conexão difícil
ou até impossível de compreender. Quem sentiu de perto um relâmpago
apavora-se a qualquer temporal; quem viu abater um animal talvez nunca
mais lhe coma a carne (não por princípio, mas por aversão íntima). Os his-
téricos experimentam seus sintomas pela primeira vez quando sofrem
traumatismo emocional intenso, sintomas cujo conteúdo, muitas vezes, se
compreendem de acordo com a vivência (paralisia do braço, afonia). Poste-
riormente, quaisquer outros acontecimentos, muitas vezes insignificantes,
provocam os mesmos sintomas, porque surgem modos de reagir anormais
que se tornam costumeiros. A tendência à formação de hábitos incontrolá-
veis é geral, porém mais forte nos distúrbios psicopáticos do que nas con-
dições normais. Todas as transições existem entre os hábitos que ainda
podem, em certas circunstâncias, tratar-se como “maus costumes” e as
maneiras de reagir adquiridas que escapam a qualquer influenciamento.
No que toca, especialmente, às perversões sexuais, sabe-se que aparecem
por força de acontecimentos casuais, principalmente na infância, po-
dendo, a seguir, desenvolver-se como se fossem disposições instintivas pri-
márias.
Exemplo de pós-efeito de uma vivência é o caso de Gebsattel. Homem
de 40 anos; advogado (consultor). Em acidente automobilístico, foi atirado
contra o teto do veículo; por um instante, a vista escureceu-lhe completa-
mente; mas perdeu a consciência logo após. Daí a pouco tempo, voltou a
trabalhar no escritório. Entre outros sintomas, surgiram os seguintes: não
podia sair de casa com noite escura, nem olhar da janela para a escuridão
de fora, nem entrar num quarto escuro, porque, em tais ocasiões, lhe vi-
nham ataques de pânico. Colocava-se de costas para a janela, entrava no
quarto de costas até. acender à luz. A catarse hipnótica fez o sintoma de-
saparecer. Verificou-se que qualquer escuridão relembrava o momento do
acidente (vista completamente escura), juntamente com o medo da porta
escura da morte.
De forma excessiva, que domina por completo o evento psíquico, en-
contramos os hábitos da vida psíquica esquizofrênica, são chamados este-
reotipias.
Toda sorte de fatos, sequer possíveis, de algum modo associados ao
psiquismo, desde os movimentos mais singelos até os atos mais complica-
dos, cursos de pensamentos e vivências determinadas segundo o respec-
tivo conteúdo podem, então, repetir-se, milhares de vezes, de maneira tão
regular que se impõe a comparação do indivíduo com um autômato. Os
doentes percorrem sempre, exatamente, o mesmo círculo, tomam sempre
o mesmo lugar, seguem a mesma série de movimentos pendulares, dei-
xam-se ficar deitados, semanas, na mesma posição, têm sempre a mesma
expressão fisionômica, tal qual máscara (estereotipias de movimento e de
postura), repetem sempre as mesmas palavras ou frases, desenham os
mesmos traços e formas; pode-se dizer que se movem em círculos mentais
sempre os mesmos. Por exemplo, uma doente levou anos escrevendo as
mesmas cartas à polícia de Paris, o Petersburgo, cartas que, a dado mo-
mento e aos montes, sem preocupar-se com o respectivo despacho, aca-
bava entregando ao médico. Não é raro observarem-se casos antigos nos
quais as mesmas construções verbais se repetem, constituindo a única
manifestação verbal. Certo enfermo cumprimentava todas as pessoas com
as palavras: “Pro, pro, ou contra, contra”, satisfazendo-se com a resposta
“Pro, pro” e nada mais dizendo.

b) Efeitos dos complexos.


O efeito dos complexos torna- se anormal quando deixam de ser con-
trolados pelo indivíduo, quando- se dissociam e operam a partir do incons-
ciente.
1. Certo paciente não podia voltar ao lugar onde falira sem que o aco-
metessem, toda vez, estados depressivo-paranoicos, acompanhados de
sintomas neurasténicos. Na situação em que, a certo- momento, se sofreu
alguma coisa que apavora, a ansiedade aumenta; é o que acontece após
desastres ferroviários, sempre que se tem de viajar de trem; ou. após terre-
motos e ataques aéreos. Ao menor sinal de ameaça dessa situação, ou
mesmo à simples; semelhança, a ansiedade ocorre.
Também em casos nos quais uma vivência parece ser a fonte de efeitos
gerados por certos complexos, é frequente as causas- respectivas compre-
ensíveis enraizarem-se no passado, além dessa vivência. Certa vivência
que por si não é tão importante — e que- é insuficiente para nosso enten-
dimento — pode representar a fonte de um estado mórbido, porque o ter-
reno já estará preparado por vivências outras. Assim é que a lesão de ou-
tros interesses vitais atinge o indivíduo com o erotismo insatisfeito muito
mais profundamente do que aquele cujas condições nesse campo são
boas; o mesmo acontecimento talvez nem o toque em absoluto. Enfim, a
raiz dos estados psíquicos anormais ramifica-se, como se ramificam os
sintomas, em toda a passada história psíquica, a partir da qual' se poderá,
com paciência, destrinçar toda uma rede de conexões compreensíveis, cu-
jos fios se cruzam no ponto atual. Freud salientou este fato com seu con-
ceito de “sobredeterminação”.
2. Nos casos até o momento expostos, o complexo pode ser' consciente,
embora não se note. À autocrítica, o indivíduo faz-se consciente de sua
presença. Todavia, os complexos vêm a constituir a causa de certos sinto-
mas- mórbidos somáticos ou psíquicos, suscetíveis de atribuírem-se a
certa vivência, que, no entanto, existindo a doença, não só se deixa de per-
ceber, mas se esquece, se toma, enfim, inconsciente: são os complexos
cindidos, ou recalcados (exemplo: certas psicoses carcerárias, em que o
paciente nada mais sabe, de fato, conscientemente, de seu crime; basta,
porém, que se tentem despertar recordações do ato que praticou para apa-
recerem sintomas intensos). Se quisermos apreender esses fenômenos,
precisamos formar noção teórica da cisão ou dissociação dos eventos psí-
quicos.

c) Compensações.
Deficiências da atitude interna, defeitos vivenciais, perdas psíquicas
atuam no sentido de realizar, por assim dizer, uma compensação a partir
da totalidade das possibilidades que estão ao alcance do indivíduo em
causa.
A analogia provém da fisiologia; principalmente, da fisiologia nervosa.
A esta altura, distingue-se entre os fenômenos mórbidos diretos e os fenô-
menos de compensação. O organismo vivo costuma reagir a toda pertur-
bação e destruição alterando suas funções, de maneira a garantir a manu-
tenção da vida nas condições alteradas. Chamam-se esses fenômenos vi-
cariantes, ou fenômenos de autorregulação. No particular, tais coisas es-
tudam-se quando se investigam fenômenos neurológicos, que só de modo
secundário interessam à psicopatologia.
A mais impressionante de todas é a experiência de Ewald: após a extir-
pação de um labirinto, aparecem, no cão, distúrbios posturais e cinéticos,
que cessam dentro de algumas semanas. Se se fizer a extirpação do outro
labirinto, provocam-se, novamente, os distúrbios; apenas mais graves. Daí
a meses, tudo está em ordem, outra vez. Faz-se, então, a ablação da zona
correspondente à perna num hemisfério cerebral. Os distúrbios habituais
tornam a desaparecer, dentro de umas tantas semanas. Mas se se fizer a
ablação também da outra zona correspondente à. perna, os sintomas an-
teriores reaparecem tempestuosamente, já não mais revertendo. As escas-
sas capacidades, ainda subsistentes, de movimentação desaparecem intei-
ramente assim que se tapam os olhos do animal. — No caso, o que ocorre
é que, um após outro, se substituem o outro labirinto, as zonas corticais
correspondentes às sensações cinéticas, e posturais, as sensações que re-
gulam a posição estática e dinâmica, até se esgotarem todas as possibili-
dades compensatórias.
No caso de enfermidades cerebrais orgânicas, é frequente ocorrer boa
compensação; por exemplo: quando há hemiplegia, ou afasia. Que se
trata, no entanto, de compensação, apenas, e que os defeitos subsistem
latentes provam-no os distúrbios que não tardam a fazer-se intensos,
quando as solicitações aumentam, quando se experimentam emoções,
quando há cansaço rápido, quando a função se lentifica.
Restabelecendo-se as funções perturbadas, ou se trata de uma espécie
de recriação, setores até então em repouso desenvolvendo as funções em
causa (nos animais inferiores, também se dá regeneração morfologica-
mente perceptível); ou o caso é de compensação, outras funções anterior-
mente ancilares assumindo, já agora, todo o trabalho.
Podem-se comparar com estes os fenômenos de compensação psí-
quica, quando falham, inteiramente, certas áreas sensoriais. Helen Keller
conseguiu, a despeito de cegueira e surdez completas, adquirir a cultura
de um homem moderno apenas servindo-se do material sensorial qu?. o
tato lhe punha ao alcance. Talvez se enquadre também entre as compen-
sações psíquicas a ocorrência de certos fenômenos de contraste (da clari-
dade e das cores no setor visual; quanto às emoções: à dor profunda pode-
se seguir alegria incompreensível contrastante; etc.).
De algo diferente, no entanto, se trata, quando existem conexões psí-
quicas “compreensíveis”. “Há a covardia do neurótico, que significa auto-
defesa profundamente enraizada. O neurótico entra em frouxidão e apatia,
quando tem de dominar afetos coléricos; abandona-se ao cepticismo e à
indiferença, quando a compaixão ameaça desequilibrá-lo; esquiva-se a
complexos ideativos intensamente carregados de sentimento; evita o atual,
o importante, voltando-se para o acessório” (Anton).
A conceber essas conexões geneticamente compreensíveis e imediata-
mente óbvias como compensação de uma “fraqueza”, mais não se forma
do que um sentido metafórico. Tais conexões não têm muito a ver com as
compensações acima enumeradas. Pode-se ainda duvidar que sejam, de
modo geral, propositadas ou finalísticas, no sentido biológico. Não se
substituem quaisquer funções que falhem, mas apenas se consegue dimi-
nuição subjetiva de sentimentos desprazerosos, diminuição que talvez seja
até prejudicial, do ponto de vista biológico.
d) Tendências desintegrativas e integrativas.
Aos efeitos destrutivos das vivências opõem-se efeitos construtivos.
Através de visão conjunta e geral da vida e da psique, todo evento afigura-
se um “morre e renova-te”; a vida é o constante emergir do morrer, isto é,
da desintegração: quanto ao somático, em processos simplesmente físico-
químicos; quanto ao psíquico, em fatos meramente automático-mecânicos.
Psique e mente são a reunião constante dos contrastes e polaridades, nas
quais tendem, a cada momento, a desagregar-se. Se chamarmos estas
tendências integrativas plasticidade, a desintegração virá a constituir enri-
jecimento crescente. A vida mede-se, pois, pelo nível da plasticidade; recu-
perar a saúde- significa caminhar para a plasticidade.
Pode-se decompor do seguinte modo esta visão conjunta indetermi-
nada: no aspecto biológico, o evento vital é constante integração da vida
em seu perimundo; no aspecto mental, o evento é síntese (dentro do pro-
cesso dialético da supressão, da preservação, da integração) de todos os
fatores da experiência mental; no aspecto existencial, é a descoberta da
origem do existir verdadeiro.
Não podemos, de modo algum, penetrar este evento total, a fim de dele
dispor. Seja onde for, baseia-se no inconsciente, que cria o novo a instan-
tes decisivos, novo no qual se supera a desintegração. Falhando a emer-
gência criativa do todo, temos a morte e seus estádios preparatórios. Pode-
mos, apenas, quando conhecemos e agimos, esbarrar nos limites em que o
ato decisivo do evento total nos defronta, ato pelo qual nos esforçamos,
cognitivamente, girando-lhe em volta, procedendo terapeuticamente com
estímulos, tarefas, apelos; é o ato do próprio viver, do criar, do ser si
mesmo. Não somos senhores destes atos, mas é deles que vem toda poten-
cialidade. Nosso conhecimento e nossa atuação, subsequente ao conheci-
mento, é capaz de psicanálise, mas não de psicossíntese, a qual sempre
terá de acontecer a partir do inconsciente da vida, da; mente, da existên-
cia; poderá ser preparada e favorecida, inibida e ameaçada; jamais, no en-
tanto, se fará mediante arranjo algum, mediante persuasão alguma, medi-
ante boa vontade seja qual for. Aquilo que sempre constitui pressuposto
amplo chama-se força vital, ideia, criação, opção existencial; chama-se
graça, chama-se dom de si mesmo. Não dizem, porém, todos estes nomes
o que é, propriamente.
Antes de mais nada, não há perfeição, término. Morrer, enrijecer, fa-
lhar são momentos da vida. A totalidade não vem a ser, para o homem,
afinal, objetivo possível algum. O homem vive na senda do perpétuo
“Morre e renova-te”, até que sua existência finita se extinga, no tempo,
pelo morrer.
Mesmo em estados patológicos graves, enquanto o homem vive, sem-
pre existem tendencias ao restabelecimento de um todo: desde as compen-
sações de defeitos individuais até as formações das personalidades esqui-
zofrênicas. De um modo ou doutro, formam-se os mundos unitários dos
dementes. Sempre alguma coisa encaminha-se para novos contextos, para
controles e orientações em condições novas — isso a partir, talvez, de ten-
dências que se hajam tornado anormais. Opondo-se às distrações, descar-
rilamentos, desintegrações, dissociações, certos ordenamentos atuam, se-
jam quais forem. Mas com todas estas generalidades só um aspecto geral
se exprime, vagamente: aspecto que só é relevante para o conhecimento
quando se pode demonstrar, empiricamente, em determinados contextos.

§ 3. Sonhos Anormais

a) Os sonhos das doenças somáticas.


No sonho e no cochilo se mostram, certas vezes, doenças somáticas em
incepção: as sensações corpóreas anormais e os sentimentos gerais anor-
mais penetram, então, na consciência, ao passo que, pelo contrário, na vi-
gília, ainda não se percebem. Nos estados febris, ocorrem sonhos tortu-
rantes com fenômenos de tipo compulsivo, tal qual as ideias girassem;
também ocorrem sonhos intensos, muito vívidos e claros, após grandes
hemorragias.

b) Os sonhos anormais das psicoses.


Os sonhos dos epilépticos são, muitas vezes, no momento que precede
os ataques, assustadores e torturantes; após a convulsão, têm caráter
agradável e cômodo; na noite do ataque, nunca se sonha.1 O mesmo se dá
nas doenças catatônicas de curta duração: o breve período de sono, du-
rante o broto, costuma ser sem sonhos (os histéricos, pelo contrário, so-
nham sempre durantes os ataques).
Nas psicoses agudas, principalmente nas esquizofrenias incipientes, a
modalidade onírica se altera muitas vezes.
Kandinsky narra o seguinte: “Durante o período do delírio sensorial,
meus sonhos eram (no que diz respeito a imagens visuais e ao sentimento
de movimento incessante no espaço) desusadamente vivos. Era um aluci-
nar dormindo. De modo geral, os estados de vigília e de sono, num doente
que alucina, não são tão nitidamente demarcados; de um lado, as imagens
oníricas são de tal modo vivas que o doente, por assim dizer, vela dor-
mindo; doutro lado, as alucinações do estado vigil são tão extraordinárias
e variadas que se pode dizer: o doente sonha acordado. Muitas vezes, en-
quanto estava enfermo, meus sonhos não eram menos vivos do que as coi-
sas que vivenciasse na realidade; de quando em quando, se certas ima-
gens oníricas me vinham à memória, só após longa e penosa ponderação é
que me era possível decidir se as vivenciara na realidade, ou se, apenas,
sonhara.”
Eis o que pensa Schreber: “O fato de um indivíduo que não dorme in-
teiramente tranquilo julgar ver imagens oníricas, as quais, por assim di-
zer, são conjuradas por seus próprios nervos, é fenômeno tão corriqueiro
que nem merece discutir-se. As imagens oníricas da noite já mencionada e
as visões anteriores semelhantes excediam, porém, de muito, em nitidez
plástica e fidelidade fotográfica, tudo quanto eu, pelo menos, jamais expe-
rimentara quando estava são.” — Outra doente contou que seus sonhos
eram tão extraordinários que, muitas vezes, não sabia se eram realidade
ou sonho. Na noite passada, tivera o sentimento de voar. Enquanto pai-
rava, movia-se-lhe por sobre a cabeça a lua; dois semblantes se lhe apre-
sentavam; no meio deles, uma nuvenzinha. Doutra vez, aparecera-lhe o
anjo Gabriel; depois, duas cruzes; numa, Jesus Cristo; na outra, ela pró-
pria. Esses sonhos faziam-na felicíssima. Ao acordar, experimentava uma
sensação de beatitude. — É frequente os enfermos acharem que sonhos
desta natureza são reais, vivenciando perseguições e influenciamentos
corpóreos. Vez por outra, a base sensorial de ideias delirantes parece con-
sistir nessas vivências oníricas anormais.
Boss descreve duas modalidades de vivência onírica que só .se encon-
tram em esquizofrênicos. São difíceis de evocar: os pacientes “protegem os
sonhos, porque sentem, por si mesmos, que neles a psicose se manifesta
clara”.
A “azáfama onírica”: As cenas perpassam com rapidez desagradavel-
mente constatada, sinistra, pela consciência de quem sonha. São pálidas,
fugidias, têm o caráter de manifestação persecutória, evanescente. Em
vão, tentam os doentes deter alguma coisa. Com medo, nesses sonhos tor-
turantes, de perder a realidade, acontece que, muitas vezes, por forma de
todo consciente, se mantêm dormindo apenas superficialmente.
Proximidade da realidade no sonho: Apesar da trivialidade do conte-
údo, uma paciente despertou desmesuradamente apavorada, tremendo e
gritando por socorro. Sonhara que, deitada, no hospital, uma enfermeira
viera ajeitar-lhe o travesseiro. Apavorara-se porque, vendo, de havia
muito, o mundo exterior tal qual uma sombra, vivenciara a cena onírica
com realidade e calor afetivo de longo tempo esquecidos. “Esses enfermos
não aguentam, quando suas aspirações afetivas querem, no sonho, res-
taurar uma relação objetai mais profunda”.

c) O conteúdo dos sonhos anormais.


Herschmann e Schilder acreditam haver descoberto que, nos melancó-
licos, não é raro ocorrerem sonhos felizes, alegres; e que, de modo geral,
aqueles sintomas do quadro melancólico que menos aparecem em vigília,
no caso em questão, se fazem presentes, às vezes, justamente no sonho.
Boss investigou séries oníricas de esquizofrênicos, partindo do- tempo
em que estavam sadios e acompanhando-os durante a doença. Encontrou
aumento da brutalidade e da crueza, “demolição da censura onírica”. A ca-
pacidade recalcadora do ego desaparece. Vindo as remissões, os sonhos
tornam a modificar-se, mas não regressam ao grau de normalidade da
personalidade vigil.
Escreve Boss: “Verificamos que certos sonhos mal censurados, pouco
simbolificados, cujo conteúdo evidente se opõe, rigidamente, à atitude mo-
ral do paciente e que, no entanto, não desencadeiam ansiedade alguma,
ou pouca desencadeiam, nem, em geral, ocasionam outras reações de de-
fesa do ego com carga afetiva, significam sintoma bem precoce e ponderá-
vel para o diagnóstico de uma esquizofrenia”. E certo é que, nos hebefrêni-
cos, são frequentes os sonhos agressivos; nos paranoides, os sonhos ho-
mossexuais.
Exemplo de sonho de uma esquizofrênica, doente havia nove anos:
“Caminhava com minha mãe c Ana por um charco. De repente, senti
muita raiva de minha mãe e, no mesmo instante, resolvi empurrá-la no
charco; cortei-lhe as pernas, esfolei-a. Vi-a afogar-se e senti certa satisfa-
ção. Quando pretendíamos prosseguir, um homem alto, de faca na mão,
correu-nos atrás. Primeiro, agarrou Ana; depois, a mim; deitou-nos no
chão e teve relações sexuais conosco. Não senti medo algum e, de um mo-
mento para outro, fui capaz de voar por sobre belíssima paisagem.”
São questionáveis os “sonhos prognósticos”, a previsão no sonho, re-
presentando incidência da própria vida, ou da própria doença em imagens
oníricas simbólicas. Boss descreve como “sonhos endoscópicos” a repre-
sentação do evento psicótico passado, presente e pressentido no ego do
enfermo; pretende haver encontrado casos desta ordem em neuróticos e
doentes orgânicos; além de sonhos pressagiantes antes do início da enfer-
midade.
“Certa doente vê, em sonho, que um eclipse do sol está começando, em
crepúsculo lívido. Depois, viu-se parada, no meio de uma rua movimen-
tada. Uma multidão de homens e automóveis vinham em sua direção, de
costas; no instante em que dela se aproximavam esquivavam-na e ultra-
passavam-na, com velocidade cada vez maior; tudo passava junto a ela;
entonteceu e caiu desmaiada. De súbito, viu-se, novamente, em confortá-
vel aposento de uma casa rural, com uma lâmpada a petróleo irradiando
luz e calor. A doente fez, quinze dias após este impressionante sonhe, li-
geiro estado de confusão esquizofrênica, que durou dois dias. Recuperou-
se, todavia, rapidamente e de fato, veio a ser, daí por diante, um pouco
mais desinibida e afetuosa do que antes; tal qual se sentira no sonho”.

§ 4. A Histeria

Quando o jogo do mecanismo da sugestão se acha, de fato, sob o poder


da vontade consciente, o que opera é uma força mental que governa o
evento psíquico e somático do indivíduo, não havendo, então, doença. No
caso, porém, de o mesmo mecanismo trabalhar sem conhecimento nem
volição e contra a vontade do indivíduo, dá-se um evento mórbido que se
chama histérico.
Nos fenômenos histéricos, desenvolvem-se, exageradamente, todos os
tipos de sugestão. Todas as tendências, sejam quais forem, se estimulam e
se realizam, sem que a crítica da personalidade global, nem as experiên-
cias passadas inibam esse desenvolvimento. Não é raro poder compreen-
der a escolha dos fenômenos ocorridos segundo as aspirações e impulsos
do indivíduo, neles se revelando atuantes; o doente não o percebe. Vê-se a
imitação involuntária quando se praticam inoculações, as pessoas desmai-
ando uma após outra. As convulsões histéricas foram muito comuns nas
escolas femininas, ainda não faz muitos decênios, tal qual g foram, antiga-
mente, nos conventos. A sugestão de juízo mostra-se na credibilidade his-
térica. O mecanismo opera como autossugestão quando se desenvolvem
fantasias nas quais o paciente acredita, provenientes de mentiras inicial-
mente conscientes (pseudologia fantástica). A simples representação de
uma doença mental desenvolve alteração psíquica real. Por exemplo, certa
paciente, recordando sua infância, contou-nos haver desistido de simular
loucura, ao perceber, apavorada, a tendência a realizá-la. As psicoses car-
cerárias constituem alterações psíquicas variadamente reais, resultantes
de simulação inicial e do desejo de adoecer, quando se trata de indivíduos
histericamente predispostos. Partindo do papel que se representa, desen-
volve-se o delírio verdadeiro; do “homem mau”, a excitação autônoma, que
já não se consegue mais inibir; da semi- simulação de queixas somáticas,
a histeria de renda, que vem a transformar-se em padecimento real, inde-
pendente. Consequente à ideia ansiosa de haver tido o procurador público
relações sexuais com sua noiva, um histérico encarcerado desenvolveu
pseudo- alucinações, que não pôde controlar, de cenas eróticas entre os
dois, acreditando na realidade desse comércio. Em toda a índole dos histé-
ricos se nota a sugestibilidade pela adaptabilidade a qualquer meio; e tão
influenciáveis são que já nem parecem possuir índole própria, compor-
tando-se tal qual se apresenta o ambiente momentâneo: criminosos, religi-
osos, laboriosos, entusiastas das ideias sugestivamente fornecidas, que
tão rapidamente defendem com mais calor do que quem as criou quanto
abandonam, para entregar-se a influenciamentos ulteriores. As situações,
igualmente, tendem a conceber-se com uma só significação, que se exaure
desinibidamente. Um paciente que recebera do seguro contra acidentes
250 marcos, sentindo-se enormemente rico, sem pensar em mais coisa al-
guma, ficou noivo, comprou anéis, móveis, roupas a prestações; depois,
praticou furtos, passando dois anos na prisão. Ele próprio veio, mais
tarde, a sentir como mórbido seu estado de ânimo.
O conceito de histeria tem sido objeto de discussões inúmeras, cujo re-
sultado consiste, cada vez mais, em destacá-lo do conceito antigo de uni-
dade mórbida para considerar a histeria dentro de um quadro psicopatoló-
gico geral, abrangendo determinados fenômenos que podem aparecer em
todas as doenças, sejam quais forem, embora haja, mais frequente-
mente, predisposição. Discriminam-se o caráter histérico os ataques histé-
ricos (accidents mentaux) e os estigmas histéricos. Em todos os três gru-
pos, há uma tendência — por exemplo, a vontade de adoecer, bem como
todos os demais conteúdos e tendências — diversa dos mecanismos que,
de um modo ou doutro, se relacionam com dissociações ou cisões.
Ficamos conhecendo as amnésias características que se limitam a
uma vivência, ou que se estendem a todo o passado, não impedindo, po-
rém, que o doente se mova e aja inconscientemente, tal qual se lembrasse
muito bem de tudo. Conhecemos os distúrbios sensoriais dos histéricos,
que não suscitam, entretanto, as consequências de perda real da sensibili-
dade. Janet descreveu esses fatos peculiares de maneira metafórica,
usando a expressão cisão (ou dissociação) do psiquismo. Na vida normal,
só há um esquecimento real, perda efetiva de disposições psíquicas, ou
unidade sempre conservada da vida psíquica, ou seja, a capacidade per-
manente não só de suportar, passivamente, os pós-efeitos de vivências
passadas, mas também de conscientizá-las. Em condições anormais, toda-
via, existe essa cisão ou dissociação de áreas psíquicas inteiras. A capaci-
dade sensitiva, as recordações ocasionam, decerto, efeitos que se podem
constatar objetivamente, mas que não se fazem conscientes, aparecendo
sentimentos, atos, rendimentos, condicionados pela dissociação da vida
psíquica. A vida psíquica dissociada e a vida psíquica consciente formam
certo contexto, no ponto de vista em que o que está dissociado influi no
que é consciente; ou, por assim dizer, alcança o que é consciente. O exem-
plo mais expressivo reside nas sugestões pós-hipnóticas: certa moça faz,
ao meio-dia, uma visita que lhe foi ordenada, em hipnose, na véspera, se
bem que nada saiba dessa ordem; sente-se compelida a fazer a visita, mas
descobre motivação inteiramente diversa. Quando se ordena, através da
sugestão pós-hipnótica, a prática de atos absurdos, o impulso a cumprir a
ordem (por exemplo, colocar uma cadeira em cima da mesa) faz-se, subje-
tivamente, muito vivo, mas talvez se motive erroneamente, seja de que
forma for, ou até se considere ideia tola, que, então, se recalca. Nesses ca-
sos, a conexão entre a vivência inicial na hipnose e o aparecimento do im-
pulso vindo do inconsciente é tão clara que dela não se pode duvidar. A
metáfora “cisão ou dissociação de complexos psíquicos” exprime bem estes
fatos, que chamamos histéricos quando surgem espontaneamente. Tal é,
evidentemente, apenas, simples metáfora, ou construção teórica, nitida-
mente desenvolvida por Janet, aplicável a certos casos, e não à vida psí-
quica em geral. De conformidade com o mesmo psiquiatra, apresentamos
de forma livre, um esquema gráfico ilustrativo.
As partes riscadas significam a vida psíquica inconsciente; as claras, a
vida psíquica consciente. Em I, indica-se com a linha pontilhada o estado
hígido dos limites variáveis que vão daquilo que não é percebido àquilo
que é extraconsciente; nas demais partes, mostra-se a distinção nítida, a
dissociação ou cisão, pela linha cheia. Em V, está o estado histérico per-
manente, sem sintomas momentâneos; o que é cindido comporta-se tran-
quilo. Em II, está indicado o aparecimento de um sintoma histérico; por
exemplo, vômitos, náuseas, falsas-percepções etc.; em III, um estado
hipnótico de sonhos acordados e coisas semelhantes; em IV, um estado
crepuscular com exclusão da consciência normal. Têm-se descrito estes
últimos casos de forma particularmente notável, sob o nome de dupla per-
sonalidade, ou consciência alternante, porque, aí, a cisão da vida psíquica
se desenvolve por forma tão rica que se julga estar lidando com outra pes-
soa; quando, entretanto, cessa o estado, falta à personalidade normal a re-
cordação respectiva.
São raros os casos em que os experimentos de Janet logram êxito, pro-
vando existir cisão da consciência. Raras, igualmente, são as sugestões
pós-hipnóticas e particularmente rara é a alternância da consciência. Não
obstante, tem-se admitido ainda o mesmo mecanismo para inúmeros fe-
nômenos históricos. Fundamentam este modo de ver, principalmente, as
observações de Breuer e Freud sobre a gênese de sintomas particulares
resultantes de vivências traumatizantes (traumatismos psíquicos'). Ao
passo que, para Janet, a cisão era de todo espontânea, relacionada, ape-
nas, com a constituição ou disposição, Breuer e Freud acharam que, ha-
vendo disposição, poderia a cisão dar-se por efeito de certas vivências. Se-
ria o caso não só de acidentes somáticos (paralisia histérica de um braço
após queda de carro, num caso célebre de Charcot), mas de todos os tipos
de afetos (susto, ansiedade etc.). “Por exemplo, um afeto doloroso que apa-
rece enquanto se come, mas se recalca, pode vir a causar, posteriormente,
náuseas e vômitos, que persistem durante meses sob a forma de vômitos
histéricos”. “Noutros casos, não é tão simples a conexão, apenas existindo
relação simbólica, por assim dizer, entre a causa e o fenômeno patológico:
é o que ocorre quando, por exemplo, uma neuralgia se associa a um sofri-
mento espiritual, ou quando o vómito se prende ao afeto da aversão mo-
ral”. O paciente não se recorda das vivências em que se baseiam os sinto-
mas mórbidos; mas elas podem reavivar-se na hipnose. As recordações
cindem- se; os doentes não conseguem aceder a elas, embora sofrendo,
sem perceber, os respectivos efeitos. Entretanto, basta que a recordação se
faça, novamente, acessível à consciência vigil (psicanálise) e que, ao
mesmo tempo, os afetos originários se revivenciem (abreação) para produ-
zir-se efeito catártico e os sintomas em questão desaparecerem. Enquanto
subsiste a vivência traumatizante atuante, o recalque intencional do afeto
ou certo represamento inintencional desse afeto, juntamente com um es-
tado hipnótico, concorrem para promover a cisão.
Podem-se ilustrar o processo e o efeito do recalque com alguns exem-
plos que Pfister1 dá em ordem tabelar e cujo arranjo modificamos. Não se
cogita da exatidão dos exemplos, mas do fato de eles mostrarem o modo
por que se concebem o recalque e a cisão (cf. a tabela).
Vivência O conflito dos desejos e Dai, resulta, com- Dai, conteúdo
impulsos causam o recal- preensível, uma compreensível de
que de um lado. ideia cindida, que uma manifesta-
reside em gratifi- ção objetiva.
cação de um de-
sejo, realmente
a b ocorrida, ou eva-
são salvadora (“re-
alização cindida”).
Moça de 15 Vontade de Receio de “Fui beijada de Lábios inchados.
anos. Um beijar. sexualidade mais”.
estudante vedada.
quis beijá-
la; defen-
deu-se com
êxito.
Um menino Necessidade Receio da Ao mesmo tempo,
onanizou-se de confessar confissão. O menino pre- mudez histérica e
e furtou à a transgres- tende confessar o atenuação da vi-
mãe. são sexual e que fez uma tarde; são. O paciente
o furto. mas, por vergo- nada sabe do mo-
nha, não confessa. nólogo anterior,
A essa altura, sur- que só vem à tona
gem as ideias: com a psicaná-
“Nem posso falar lise.
como gostaria!
Tudo está escuro à
minha frente'!”.
Moça de 16 Sentimento Sentimentos “Sou atacada sen- Espalha calúnias:
anos ama o de desejo. de proibição sualmente pelo o pastor perse-
pastor que e impossibi- pastor”. gue-a com ex-
viu uma lidade. pressões obsce-
vez. nas e grosseiras.
Tem consciência
da mentira, a que
é irresistivel-
mente compelida,
mas não conse-
gue reprimir-se e
autorrecrimina-se
amargamente.
Nem sempre o recalque se baseia em atividade desenvolvida pela per-
sonalidade; muito mais frequente é depender da luta que mal se percebe
entre impulsos e desejos opostos e, a seguir, do “represamento” de uns ou
outros. O simples recalque ainda não leva à histeria, pois são muitos os
indivíduos que o suportam sem distúrbio. Também muitos são, no en-
tanto, aqueles nos quais o recalque encontra mecanismos histéricos que
transformam o material recalcado. Esta conversão em sintomas é que é
patológica, não ocorrendo sem cisão. A conversão dá-se através de sinto-
mas somáticos e psíquicos e aparece sob a forma de afetos, falta de afetos,
distúrbios funcionais etc.
A fim de apreender a relação entre vivência e sintoma, ou transferimos
as já discutidas conexões compreensíveis da simbolização, da transferên-
cia dos afetos etc. para a vida psíquica cindida, ou criamos outra constru-
ção metafórica: a da energia dos afetos, que se pode transformar em ou-
tras formas de energia e que se mostra alhures, transformada de um
modo ou de outro, quando, mediante o recalque, lhe é impedida a des-
carga pela reação natural. Janf.t criou o conceito de dérivation: a energia
que deriva descarrega-se em ataques motores, em dores, em afetos diver-
samente baseados etc.; o afeto converte-se (a libido sexual recalcada, em
ansiedade, ou vice-versa), reocupando antigas vias (por exemplo, acarre-
tando, novamente, dores reumáticas, que já tinham ocorrido, ou cardial-
gias). No tocante a casos singulares, não se menospreze a utilidade da me-
táfora, cabendo, apenas, prevenir-nos contra a possibilidade de generaliza-
ções e construções teóricas. As experiências que se têm tido com a utiliza-
ção da imagem da cisão e da imagem da conversão da energia dos afetos
põem de manifesto, conforme Breuer e Freud fizeram, “a contradição entre
a frase: ‘A histeria é uma psicose’ e o fato de se poderem encontrar, entre
os histéricos, os indivíduos mentalmente mais esclarecidos, mais enérgi-
cos, mais sisudos e críticos; casos estes nos quais semelhante caracterís-
tica é correta para o pensar vigil do indivíduo; em seus estados hipnóticos,
contudo, ele aliena-se, tal qual todos nos alienamos no sonho. Ao passo,
no entanto, que nossas psicoses oníricas não nos influenciam o estado vi-
gil, os produtos do estado hipnótico se projetam, como fenômenos histéri-
cos, na vida vigil”. A superabundância incompreensível dos sentimentos, o
entusiasmo desmedido por objetos cujo valor real não permite compre-
endê-lo explicam-se, figuradamente, pelo afluxo de energia afetiva deri-
vada de impulsos, cujo conteúdo se relaciona, compreensivelmente, com o
conteúdo do entusiasmo (por simbolização, semelhança etc.). Inversa-
mente, a frieza afetiva que não se pode compreender explica-se pelo afluxo
de toda energia afetiva para um único setor impulsivo, mediante fixação
no respectivo conteúdo. É assim que, nos histéricos, se conseguem relaci-
onar compreensivelmente as respectivas vivências com os notáveis con-
trastes de superabundância afetiva e obtusidade emocional, uma vez que
se pressuponham os aludidos mecanismos de cisão e transferência.
A cisão serve de teoria evidente para esclarecer a ambivalência dos his-
téricos. Uma vontade, claramente consciente, quer — sem possibilidade de
dúvida — recuperar-se, livrar-se das paralisias e outros distúrbios, ao
passo que outra vontade — sem conexão com a primeira — forceja o mais
que pode em sentido contrário, quando a recuperação realmente se pro-
cessa; e é necessário haver, conforme se observa frequentemente, comuta-
ção muito peculiar, ocasionada pela terapia sugestiva, por estímulos dolo-
rosos .intensos ou, casualmente, por certas situações vitais, para a von-
tade pessoal reconquistar a força normal e para desaparecer a outra von-
tade; pelo menos, na forma particular de que se reveste.
Em que é que se reconhece, no caso individual, o fato de se poder pre-
sumir que uma vida psíquica cindida (um afeto recalcado, “estrangulado”,
que, por assim dizer, se transformou em “corpo estranho”, em força estra-
nha) dê origem a certo fenômeno? 1) Pela determinação objetiva da vivên-
cia psíquica desencadeante. 2) Pela relação compreensível, de acordo com
o conteúdo, entre sintoma e vivência. 3) Pelo aparecimento da recordação
perdida, no sono hipnótico, entre os fenômenos da vivência concreta, car-
regada de afeto (abreação) e pela cura consecutiva do sintoma em causa.
4) Pelos fenômenos expressivos de toda sorte, que acompanham o apareci-
mento do sintoma (inicialmente, de maneira incompreensível) e indicam
algo diverso do conteúdo conscientemente existente (por exemplo, mímica
sexo-sensorial à indagação dos motivos por que se recusam alimentos).
A relação entre o conteúdo da vivência recalcada e os conteúdos do es-
tado mórbido faz-se especialmente clara em certos delírios histéricos, nos
quais sempre se vivencia, alucinatoriamente, o acontecimento desencade-
ante (acidente, atentado sexual etc.), que já não se recorda à consciência
normal; o mesmo se nota em alguns estados crepusculares de Ganser,
ocorridos no cativeiro, quando já nada mais se sabe do crime, enquanto,
pelo contrário, se vivenciam como satisfeitos todos os desejos (inocência,
liberdade etc.).
Os rumos sugestivos são tanto mais afetivos quanto mais atendem aos
desejos do doente (a enorme efetividade da autossugestão nos neuróticos
traumáticos que querem receber pensões) e quanto mais se temem (reali-
zação rápida de queixas hipocondríacas, que, de início apenas se presu-
mem). Pode-se fazer que adoeçam indivíduas ansiosos mediante a suges-
tão correspondente, como se pode, ao revés, curá-los.
Tudo que se relaciona com a sugestão e a histeria é obscuro e leva
quem investiga a conclusões erradas e enganos.
São inúmeras as observações sempre notáveis, espantosas, em todos
os setores da vida psíquica, nos quais se pode constatar, de um lado, certo
defeito do evento psíquico consciente; defeito que, por outro lado, não vem
a ser, todavia, defeito real. O que falta continua a existir — no inconsci-
ente, conforme dizemos — gerando efeitos, podendo-se trazer à consciên-
cia por meio de causas psíquicas (sugestões, afetos). Há numerosos dis-
túrbios desta ordem: amnésia completa por tempo limitado em relação a
certos objetos, em relação a todo o passado, distúrbio total da capacidade
de fixação, perda da sensibilidade, paralisias, incapacidade volitiva, altera-
ções cia consciência etc. Tão surpreendente quanto o defeito é o modo por
que ele, a bem dizer, não existe. A doente que esqueceu a vida passada in-
teira comporta-se como se ainda soubesse de tudo; a cega não esbarra em
nada, ao caminhar; a paralítica anda, desde que a situação ou o instinto
lho comandem. Sempre se encontram condições em que o defeito parece
removido. Daí malograrem-se todos os testes de simulação, que preten-
dem distinguir os fenômenos histéricos daqueles realmente simulados.
Nos fenômenos histéricos jamais presenciamos processos que permitam
estudar certas funções psíquicas mais apuradamente no estado defectual;
o que sempre existe é a mesma maneira pela qual se perturbam todas as
funções psíquicas, maneira que ainda caracterizamos com precisão e cuja
unidade, em muitos casos, mais pressentimos do que sabemos, dando-lhe
o nome de mecanismo histérico. O estudo deste mecanismo histérico en-
sina-nos a ver um aspecto tão misterioso quanto importante da vida psí-
quica. Trata-se de mecanismo que, desde que o reconheçamos, talvez
exista em todos nós, ocasionalmente, sob a forma de traços. Mas os fenô-
menos que condiciona ajustam-se, unicamente, ao estudo dele próprio. É
erro antigo utilizar os fenômenos histéricos, de modo geral, para a análise
e interpretação de fenômenos psíquicos e somáticos. Os distúrbios mnê-
micos, por exemplo, não servem, em absoluto, para saber qualquer coisa a
respeito de certas funções da memória; como os distúrbios somáticos não
servem para saber da fisiologia orgânica. Há de admitir-se, entretanto, que
todos os processos psíquicos, quando o mecanismo histérico deles se apo-
dera, se apresentam sob aspecto diverso.
Estando em jogo a sugestão e a histeria, não se podem investigar re-
gras, nem necessidades de tipo fisiológico ou psicológico. Por assim dizer,
tudo se afigura possível. Donde serem todos estes fenômenos de aplicar-se
como ilustração, apenas, de tais mecanismos, sem mais relevância para a
fisiologia, nem para a psicologia. Os casos em que desempenham algum
papel não servem, por isso, de material probatório de teorias e teses psico-
lógicas. Não há possibilidade de experiências realmente exatas, nem de ve-
rificações ou decisões autênticas. Tal qual se pode dizer que, com os histé-
ricos, o mais experiente dos psiquiatras falha, também se pode afirmar
que, no tocante aos fenômenos de sugestão, falha até quem realiza investi-
gação crítica psicológica e somatológica. É de aborrecer, no entanto, haver
certos autores que se servem de fenômenos sugestivos e histéricos como
material probatório de opiniões psicológicas e fisiológicas gerais.
Tipo especialmente notável de fenômeno sugestivo, a que se inclinam
muitos indivíduos (não só os histéricos) é aquele representado pela cha-
mada loucura induzida, constituindo as epidemias psíquicas, quando se
disseminam ataques histéricos, tendências suicidas, convicções de tipo
delirante. Não se pode dizer, contudo, que os processos mórbidos se trans-
mitam psiquicamente. Quando há disseminação, a consciência de massa,
o sentimento de comunidade desempenham papel tanto maior (em certas
circunstâncias, até nefasto), quanto mais indivíduos estejam sujeitos à in-
fluência. Caso particularmente interessante ocorre quando um indivíduo,
sofrendo processo paranoide, contagia com suas ideias uma porção de
pessoas sadias, a ponto de tomar-se centro de um movimento que não
tarda, habitualmente, a amainar com seu afastamento. Porque, ao revés,
os paranoicos não se deixam em absoluto influenciar, nasceu o provérbio:
“É mais fácil um doido convencer cem pessoas normais do que cem pes-
soas normais convencerem um doido.”

§ 5. Conteúdos Compreensíveis Das Psicoses

Tem-se explicado como compreensível muita coisa que absolutamente


não o é.
Assim é que se têm deduzido dos sentimentos quase todos os fenôme-
nos anormais. Se se designar como “sentimento” tudo quanto o permite a
linguagem usual, alguma exatidão haverá. Mas é dizer pouco, por exem-
plo, se se atribuem ideias delirantes a sentimentos. Os delírios de inferiori-
dade, pecado, ruína, deveriam resultar, por forma racionalmente compre-
ensível, de um afeto depressivo, admitindo-se que o doente depressivo te-
nha de mostrar-se triste por efeito de alguma coisa. Ou têm-se pretendido
atribuir os delírios de perseguição ao afeto da desconfiança; e o delírio de
grandeza, a uma disposição eufórica, sem refletir em que se podem, desta
maneira, tornar compreensíveis certos enganos, certas ideias sobrevalora-
das; jamais, porém, o delírio. Também se atribuem alucinações apavora-
doras que ocorrem no sono, no estado febril e nalgumas psicoses a uma
ansiedade dependente de qualquer outro condicionamento; etc. Em todos
estes casos, é certo, apresentam-se conexões compreensíveis, as quais nos
ensinam, sim, a relação existente entre o conteúdo do delírio e as vivên-
cias anteriores, sem nunca nos ensinar, contudo, de que modo, em geral,
ocorreram os delírios, as falsas-percepções etc.
Alguma coisa de novo há de acrescentar-se para um delírio realizar-se.
Se se chamar esse elemento novo “mecanismo paranoide”, ter-se-á, ape-
nas, uma denominação, que, decerto abrange uma heterogeneidade, tanto
a formação das ideias deliroides quanto das ideias delirantes propriamente
ditas.
a) Ideias deliroides.
Que os conteúdos das ideias deliroides- se “compreendem” pelas vivên-
cias biográficas dos pacientes, seus desejos e esperanças, ou pelos seus
temores e ansiedades não é novidade. Friedmann descreveu casos peculia-
res de “paranoia branda”, nos quais o conteúdo do delírio se limitava à co-
nexão com determinada vivência. Birnbaum referiu-se, frequentemente, a
quadros delirantes ocorrendo em prisões, alternantes, influenciáveis, ten-
dendo a desaparecer com a libertação do paciente; chamou-os, por isso,
em vez de ideias delirantes, “fantasias (ou cismas') deliroides”. O conteúdo
respectivo faz-se compreensível, em grande parte, segundo- os desejos e
segundo a situação.
Talvez aqui se enquadre o “delírio sensitivo de autorreferência”, obser-
vado nos indivíduos psicasténicos, que são suaves, mansos e, ao mesmo
tempo, conscientemente ambiciosos e obstinados, capazes de adoecer por
força de uma vivência humilhante. Fracassos sexuais, principalmente,
quais sejam, o amor tardio de uma solteirona, elaboram-se e descarregam-
se livremente e o que surge é, de preferência, uma paranoia, com autoacu-
sações depressivas, receios de engravidamento e delírio de autorreferência:
a paciente sabe-se observada e lesada pela família e amigos, pelo público e
pelos jornais; teme perseguições policiais e judiciárias. Surgem, então, psi-
coses agudas transitórias com excitação, graves sintomas neurasténicos e
tantas, ideias delirantes que o quadro pode simular doença progressiva in-
curável, sempre, no entanto, permanecendo o conteúdo e o afeto centra-
dos na vivência causadora.

b) Ideias delirantes na esquizofrenia.


A escola de Zurique (Bleuler e Jung) estendeu à esquizofrenia a com-
preensão- dos conteúdos das ideias delirantes e, bem assim, dos demais
sintomas psicóticos com base nos desejos e aspirações dos indivíduos- e
nas respectivas vivências; compreensão esta que, vez por outra e de modo
cada vez mais incidente, sempre se tenta. A mesma escola, não se deteve,
contudo, nos conteúdos tangíveis evidentes, mas concebeu-os simbolica-
mente, segundo Freud, e, assim, pela aplicação de um processo que, con-
forme os resultados mostram, leva ao- infinito, “compreendeu”, a bem di-
zer, quase todos os conteúdos dessas psicoses. Na acepção mais real da
expressão, redescobriu ou julga haver redescoberto “a significação, ou o
sentido, do delírio”. Não se podem expor sucintamente os resultados,
como ainda não- é possível formulá-los de maneira objetiva. Daí por que
encaminhamos o leitor aos trabalhos da escola, a fim de orientá-lo quanto-
ao problema \ Como exemplo grosseiro de interpretação, sirva a seguinte:
As vozes acusam o doente de transgressões sexuais, cuja, prática corres-
ponde a seus desejos recalcados.
Bleuler e Jung conceberam a compreensibilidade das psicoses- esqui-
zofrênicas, a compreensibilidade dos conteúdos das ideias delirantes, dos
atos catatônicos, das falsas-percepções, fazendo-a derivar de complexos
recalcados de tipo cindido-, “interpretação” esta, duvidosa; ou, em todo
caso, discutível. O que é notável é o fato, segundo Bleuler, de os comple-
xos não precisarem ser recalcados, podendo ter permanecido na consciên-
cia e, no entanto, dominar os delírios esquizofrênicos. Pela concepção de
Bleuler e Jung, mostra-se, por vezes, analogia espantosa — que Jung
apontou — entre- a histeria e a esquizofrenia. A interpretação inteira con-
siste em transposição para a esquizofrenia dos conceitos que se formaram
na análise da histeria. Todavia, não se deve, aí, perder de vista a diferença
radical que existem entre a histeria e qualquer processo esquizofrênico,
apresentando-se no fato, além de outros, de os- esquizofrênicos quase
nunca serem hipnotizáveis e de serem muito- pouco sugestionáveis.
Os conteúdos compreensíveis apresentam-se em todas as formas dos
fenômenos objetivos. Assim é que se devem considerar também os conteú-
dos das alucinações, os quais não são, em absoluto, acidentais, mas têm,
em parte, conexões compreensíveis, significação vivencial, representando
ordens, gratificações de desejos, irritações, zombarias, tormentos e revela-
ções. Freud chamou as alucinações: pensamentos transformados em ima-
gens.

c) A incorrigibilidade.
Mesmo os erros das pessoas sadias são, em inúmeros casos, pràtica-
mente incorrigíveis; isso devido, no entanto, quase sempre a que a comu-
nidade os partilha; daí se afirmarem. Não é a introvisão, o insight, mas o
“todos nós” que fundamenta a convicção. O erro que configura o delírio é
próprio do indivíduo em particular; e neste sentido tem-se caracterizado o
delírio como doença da personalidade social (Kehrer). Dá-se, porém, que
mesmo a verdade do indivíduo em particular pode afirmar-se contra todos,
quase não se distinguindo do delírio em relação ao comportamento social.
Quando se quer compreender a 'incorrigibilidade, descobre-se a que inte-
resse serve o delírio: o conteúdo deste representa condição vital para
aquele que delira: que, sem o delírio, colapsaria internamente. Já no
campo da sanidade mental, o que se pensa é que de ninguém se pode es-
perar o reconhecimento de uma verdade que lhe faça a existência impossí-
vel. A incorrigibilidade do delírio excede, contudo, aquela que se nota nos
indivíduos sadios, embora não se haja, até hoje, conseguido definir isso
com nitidez. Quer se fale em estabilidade da afetividade (Bleuler), ou em
progresso do delírio, enfatizando-lhe a disseminação, quer se use a lógica,
dizendo que serve ao delírio e contra ele não se pode voltar, sempre mais
não se faz do que denominar aquilo que, realmente, não se vê e menos
ainda se concebe. O problema, contudo, atormenta-nos sem cessar. O de-
lírio, particularmente quando se sistematiza, quando forma um todo con-
textual de certo mundo e de certo comportamento em relação a este, no
caso de personalidades lúcidas, que aos seus semelhantes não se afigu-
ram, quanto ao mais, enfermas, constitui aquilo que se chama, a rigor,
“loucura"; tanto mais alarmante quanto não é raro outros indivíduos do
mesmo ambiente também se porem a delirar. No grande processo da razão
humana, que busca a verdade num tumulto de erros, inversões, disfarces,
sofismas e malícias, tudo quanto é inverídico é superável, em princípio,
embora não na prática; no delírio, porém, deparamos com alguém que se
perdeu na inveridicidade insuperável; situação extrema que, conquanto
não nos seja dado remover, gostaríamos de compreender.

d) Classificação dos conteúdos delirantes.


Dantes, ajuntavam-se e classificavam-se de maneira surpreendente os
conteúdos dos delírios, os quais ressaltavam por sua variedade, imaginosi-
dade e excentricidade. Em tempos passados, cometeu-se o absurdo de
conceber e designar cada conteúdo delirante particular como doença à
parte (Guislain), sem perceber que tais designações poderiam ser levadas
ao infinito. Mas há também nos conteúdos certos traços comuns, sempre
retornando e até conferindo à variedade total uma feição notavelmente
uniforme. Não vamos tentar alargar a abundância dos conteúdos, e sim
considerar os tipos básicos; para o que existem diversos pontos de vista:
1. Delírio objetivo e pessoalmente centrado. Os impulsos, desejos, espe-
ranças e temores comuns a todos os homens colocam os conteúdos de
quase todos os delírios na mais estreita relação com o bem ou o mal do in-
divíduo. O enfermo está quase sempre no centro do delírio, mas também
há, em casos mais raros, formações delirantes objetivas, quais sejam: delí-
rios concernentes à significação do universo, a problemas filosóficos, acon-
tecimentos históricos; delírios que não se relacionam com a pessoa do pa-
ciente. Os doentes inventaram uma coisa extraordinária, na qual traba-
lham sem cessar; descobriram a quadratura do círculo, a trissecção do
ângulo etc.; ou conceituaram, profeticamente, em símbolos numéricos, a
lei básica dos acontecimentos. Pessoalmente, sentem-se importantes como
descobridores, sem que o conteúdo particularmente lhes importe. Enchem
os dias com o trabalho mental que lhes parece relevante, interessados em
estar com a razão, porque, também no caso, a não ser assim, todo sentido
da existência se perderia. O trabalho mental é, entretanto, objetivo; mas
essas construções por si interessantes são menos frequentes do que aque-
las egocêntricas.
2. Os conteúdos objetivos. Para o bem e o mal do paciente, os conteú-
dos que mais frequentemente ocorrem são os seguintes:
• a) Delírio de grandeza, de referência à origem (nobre estirpe, filho
de rei, criado por pais adotivos), ao patrimônio (propriedade de
grandes heranças, castelos, que, no entanto, intrigantes sub-
traem ao dono); à capacidade (grandes inventores, descobridores,
artistas, possuidores de especial sabedoria e iluminados pela
inspiração); à posição social (consultores de diplomatas impor-
tantes, verdadeiros orientadores dos destinos políticos).
• b) Delírio de inferioridade, de referência ao patrimônio (delírio de
ruína); à capacidade (perda da inteligência, da eficiência); nível
moral (delírio de pecado, autorrecriminações),
• c) Delírio de perseguição: o doente sente-se vigiado, observado,
menosprezado, escarnecido, envenenado, enfeitiçado. Persegui-
ção das autoridades, do procurador público por causa de crimes
falsamente imputados. Perseguição de bandos: jesuítas, mações
etc. Delírio de perseguição física baseado em influenciamento
corpóreo (falsas-percepções), além de fenômenos “feitos”. Delírio
querulante referente a perseguições judiciárias, resultantes de
complôs e manipulações traiçoeiras,
• d) Delírio hipocondríaco: contrastando com queixas neurasténicas
de palpitações, cefaleias, fraqueza, algias várias, aparecem conte-
údos delirantes tais como: os ossos amoleceram, o coração não
está certo, as substâncias corpóreas transformaram-se, há um
buraco no corpo etc. Delírio de “transformação: O doente trans-
formou-se em animal ou coisa semelhante,
• e) Delírio erótico. Chama-se erotomania o delírio no qual uma
pessoa se julga amada, embora não haja o menor indício do fato
e a pessoa em causa dê a entender o contrário (delírio de amor e
de matrimônio),
• f) Delírio religioso: aparece sob a forma de ideias de grandeza ou
de inferioridade: o doente é profeta, mãe de Deus, noiva de Je-
sus; ou demônio; ou Anticristo; ou está condenado.
Apresentar formações delirantes peculiares a certos processos mórbi-
dos é tarefa que cabe à psiquiatria especial. Só para exemplificar, fazemos
notar que, em relação a determinados processos paranoicos, é caracterís-
tico o conteúdo delirante dos grandes acontecimentos universais, em cujo
centro se acha o doente, “ligado ao mundo inteiro”, dele “dependendo toda
a história universal”; centro de revoluções cósmicas, nas quais desempe-
nha papel especial, embora passivo. Por exemplo, um doente já bastante
confuso escreveu o seguinte: “Toda centelha de bem-estar me foi destru-
ída; por isto, já faz séculos que estou girando, sempre renascendo, incons-
ciente. O motivo do que me ocorre é de atribuir-se à criação do mundo”.
3. A vinculação dos contrastes. Todo delírio radica, compreensivel-
mente, na tensão de contrastes. Friedmann considerou basear-se toda for-
mação delirante no conflito vivencial que consiste no fato de a vontade in-
dividual do enfermo ser dominada pela vontade total da comunidade. No
delírio, está visível o conflito entre a realidade e os desejos próprios do in-
divíduo, entre solicitações compulsivas e aspirações próprias, entre rebai-
xamento e elevação, visto que o delírio abrange sempre dois polos-, eleva-
ção e rebaixamento da pessoa, delírio de grandeza e delírio de prejuízo, de-
lírio de grandeza e delírio de perseguição correlacionam-se. Gaupp descre-
veu a reciprocidade entre o delírio de perseguição e o delírio de grandeza
como formando um todo compreensível, baseado em disposição sensitiva
do caráter (acompanhada de orgulho, vergonha, ansiedade), uma vez que
se pressuponha compreensível a forma do delírio como tal. Kehrer, por
sua vez, refere um todo compreensível semelhante, composto de delírio de
perseguição e delírio de grandeza. O que é compreensível, nesse todo, não
se altera, quer se trate de processo esquizofrênico, quer de desenvolvi-
mento de uma personalidade que reage paranoicamente aos conflitos vi-
tais. Diferem, apenas, o curso, a forma da vivência e a totalidade dos fenô-
menos vitais.
4. As formas da atitude paranoica em relação ao perimundo. Kretsch-
mer distinguiu os paranoicos desejosos, combativos e sensitivos. As dife-
renças são essenciais, conforme o delírio se gratifique, reativamente, com
realizações ilusórias, ou pretenda afirmar, ¿ativamente, sua verdade ao
mundo; ou se satisfaça mediante uns poucos atos, ao mesmo tempo que o
paciente sofre ideias de referência e perseguição, com o orgulho íntimo de
ideias de grandeza. Deste modo, a paranoia carcerária com fantasias deli-
roides constitui tipo da paranoia de desejo: o delírio querulante, tipo da
paranoia combativa; o delírio de referência e de grandeza, tipo de paranoia
sensitiva.
2.3.
A ATITUDE DO PACIENTE EM RELAÇÃO À DOENÇA

Tal qual o indivíduo se enfrenta reflexivamente, pode o doente- assu-


mir atitude em relação à enfermidade. A doença psíquica afigura-se di-
versa para a observação do médico e para a autorreflexão- do paciente.
Daí ocorrer o fato de aquele que é analisado como doente mental se consi-
derar, no entanto, são; ou de se considerar enfermo de certa maneira que
não tem validez objetiva alguma, até constituindo sintoma mórbido; ou
ainda, de vir a influenciar, com sua própria concepção, os processos mór-
bidos para o bem ou para o mal.
O conceito de “atitude do paciente” abrange vários fatos, aos quais é
comum a circunstância de neles procurarmos compreender o modo por
que o indivíduo se comporta em relação aos sintomas mórbidos. Vemos de
que modo a maioria das pessoas normais- reage, por assim dizer, à do-
ença com sua parte sã. Quando, porém, compreendemos a atitude, esbar-
ramos nos limites da autocompreensão, que é um dos marcos mais impor-
tantes do tipo de personalidade e, principalmente, da transformação que
esta experimenta, em seu todo, pela doença.

a) Comportamento compreensível à irrupção da psicose aguda (perplexi-


dade, consciência da alteração).
A perplexidade é, de modo geral, a reação compreensível da personali-
dade normal à irrupção de uma psicose aguda. Daí por que se observa
com frequência e, nalgumas psicoses, constitui sinal do que ainda resta
da personalidade normal, quanto ao mais mascarada, em presença dos
mais sérios estados de confusão. A inibição, a dificuldade- de compreen-
der, a incoerência, a falta de lucidez, tudo conduz à mesma reação, que se
nota, objetivamente, pela expressão fisionômica interrogativa, pelos atos
investigativos, por certa inquietude, espanto visível, distração e constru-
ções vocabulares desta ordem:
Que é que há? Onde é que estou? Sou a Sra. S.? Não sei o que querem
de mim! Que é que hei de fazer? Não entendo nada. — Acresce-se a crítica
interrogativa de conteúdos psicóticos — Não assassinei? Meus filhos não
estão mortos? Etc.
Enquanto há lucidez, mostra-se a perplexidade ante a situação psicoti-
camente formada em apontamentos tais como os que se seguem, de uma
esquizofrênica:
“Cada dia que passa, menos percebo de minha situação; e, por isto,
cada dia, vou fazendo tudo errado. Não consigo, em absoluto, fazer coisa
alguma repetidamente; mas só por instinto, porque não consigo chegar a
nenhuma conclusão correta. Que são as cobertas marrons em minha
cama? Representam pessoas? Como é que hei de me movimentar, se te-
nho de ficar de boca fechada? Que é que hei de fazer com os pés e as
mãos, se minhas unhas estão sempre tão brancas? Devo arranhar? O
que? A cada minuto, muda o ambiente, com as enfermeiras andando de
um lado para outro. Não as compreendo e, por isto, não sei res- .¡S*

ponder. Como é que hei de fazer as coisas certas, se não sei o que é certo?
Penso com a mesma simplicidade com que pensava, quando era Leonora
B.; por isto, não consigo perceber esta situação estranha; ela me parece,
dia a dia, mais incompreensível” (Gruhle).
Da perplexidade compreensível puramente reativa, que resulta da in-
capacidade de orientar-se em relação à situação, ou da impossibilidade de
apreender vivências novas, hão de distinguir-se geneticamente — o que,
no caso individual, é, muitas vezes, difícil — outras formas de perplexi-
dade:
Podem-se notar:
1) Uma perplexidade paranoica, com lucidez plena, .as vivências deli-
rantes e as ideias ainda imprecisas levam o doente a desassossego tortu-
rante. Sente que há alguma coisa errada, procura, pergunta, não pode
compreender de que se trata. “Fala, o que é que há, há qualquer coisa”, di-
zia uma paciente ao marido.
2) Uma perplexidade melancólica, que, através de manifestações ver-
bais, muitas vezes lembra o tipo reativo. Os pacientes, em seu delírio de
ruína, humilhação e niilista, veem tudo por forma ansiosamente interroga-
tiva: “Por que tanta gente? Tantos médicos, que é que vai sair daí? Para
que tantas toalhas?”
No início da doença mental, certas pessoas experimentam um senti-
mento sombrio de alteração (como se estivessem sob o poder de encanta-
mentos, bruxarias, ou com aumento da sexualidade etc.), condensando-se
em consciência de loucura iminente. Em que consiste essa consciência
não se pode dizer precisamente; é resultante de inúmeros sentimentos in-
dividuais, não constituindo simples juízo, mas vivenciando-se de fato.
Como o sentimento se instala, mesmo que a psicose nada tenha em si
de desagradável, narra uma senhora sujeita a crises periódicas: "“Para
mim, a doença, em si e por si, nada tinha de assustador; a não ser o mo-
mento em que novamente sentia perturbação e não sabia de que modo ela
viria”. Outro paciente, também padecendo de psicoses ’breves, com abun-
dantes vivências, escreve: “Os instantes mais horríveis de minha vida são
a transição do estado consciente para o de confusão, com o sentimento de
medo que o acompanha”. Em relação aos fenômenos prodrômicos, diz, no
entanto, o mesmo paciente: “O que há de sinistro, na doença, é que aquele
que ela acomete não consegue controlar a transição da atividade mental
sadia para a atividade enferma.”
É frequente informarem-se dados individuais, que terão ocorrido no co-
meço da doença: falsas-percepções isoladas, mudança visível da capaci-
dade afetiva, pendor desusado e incontrolável para a poesia — os versos
vêm, então, sem querer, por si mesmos, segundo parece — etc. Não se
trata, porém, no caso, do sentimento de alteração global, mas, quase sem-
pre, de constatação que a posteriori se faz da fase inicial. O medo de ficar
doido encontra-se, às vezes, quando o processo se inicia; particularmente,
nas pessoas instruídas, que se tornam horrivelmente inquietas, procu-
rando testar o ambiente. Certo paciente metia o dedo de uma amiga na
boca para ver se ela se amedrontava; se não mostrava receio de -que o pa-
ciente lho mordesse, era sinal de que o considerava são, o que o acalmava
por breves instantes.
Aliás, o medo de endoidecer e o sentimento de loucura iminente é sin-
toma mórbido frequente, autônomo, sem base objetiva, precisamente das
psicopatias e das ciclotimias brandas, que nunca evoluem, de fato, para a
doença mental.

b) Elaboração após o curso da psicose aguda.


O indivíduo assume, relativamente a tudo quanto já teve para ele signi-
ficado vivencial, certa atitude. Assim é que um não pode pensar no que a
guerra lhe fez sofrer sem perturbação intensa; outro sente necessidade de
rever o objeto de uma paixão desprezada, ou de visitar, novamente, locais
e ambientes em que não conseguiu resolver seus padecimentos. Há, por-
tanto, psicoses que introduzem, elas próprias, significados novos; psicoses
que e relacionam pelo conteúdo com a personalidade do enfermo (psicoses
esquizofrênicas, sobretudo; como outras psicoses existem que são de todo
estranhas à personalidade, que não acrescentam à psique carga, nem sig-
nificado algum. O doente tem, então, certo vexame evidente de falar nes-
sas coisas com outras pessoas que não sejam o médico.
Mayer-Gross, que analisou, na esquizofrenia, as formas dos pós-efeitos
de psicoses agudas de acordo com as conexões compreensíveis respecti-
vas, distingue: desespero, “vida nova”, desapego (como se nada houvesse
acontecido), conversão (a psicose era acompanhada de alguma novidade
revelacional), fusão.

c) Elaboração da enfermidade em estados crônicos.


Nos doentes relativamente lúcidos, em particular quando se trata de
estados crônicos, é variada a reação aos fenômenos mórbidos individuais.
O paciente elabora, de algum modo, seus sintomas e, partindo da vivência
delirante, se desenvolve, mediante trabalho' penoso, um sistema delirante.
Em relação aos conteúdos da vivência, assume-se atitude tal que, por
exemplo, se vem a constatar a estupidez crescente do autor das vozes, que
repete, sem cessar, frases triviais ou fragmentos absolutamente sem sen-
tido de certas- sentenças. O sentimento de mal-estar somático e a consci-
ência de alteração psíquica se percebem, frequentemente, como conse-
quência de influências torturantes de toda sorte, contra as quais se inven-
tam meios defensivos; sobretudo, contra o influenciamento corpóreo. Con-
tra as falsas-percepções e os vários tipos de fenômenos “feitos”, o que
ajuda, muitas vezes, é a distração, que o doente usa das formas mais di-
versas (rezando o Pai-Nosso, trabalhando). Noutros casos, os conteúdos
das falsas-percepções servem de passatempo de toda espécie. Propositada-
mente, os pacientes despertam suas pseudoalucinações visuais, com as
quais se aprazem; irritam as vozes, mudando o ritmo do caminhar, que as
vozes acompanham e, graças a essa alteração, se atrapalham e cessam.
Em relação a numerosos fenômenos desagradáveis, o autocontrole ajuda,
quer sob a forma da distração supramencionada, quer constituindo' es-
forço volitivo ativo; por exemplo, contra os movimentos “feitos”, contra
zangas “feitas”. O autocontrole ajuda numa série de casos, quando se
trata de queixas somáticas presentes nos diversos tipos de doenças psí-
quicas, ou de sentimentos torturantes que a anormalidade da vida psí-
quica acarreta.
Nos casos até agora referidos, o comportamento do enfermo- nos é, de
modo geral, compreensível. Na medida em que esta compreensibilidade di-
minui e, ao mesmo tempo, mais chama a atenção a atitude em relação à
doença, um marco se tem da alteração sofrida pela personalidade global e
dependente da doença. Assim é que, em muitos casos, se nota quanto o
paciente se acostuma com os sintomas (por exemplo, falsas-percepções
torturantes, além de outras vivências que se aceitam passivamente); nota-
se por que modo ele, afinal, apesar do conteúdo pavoroso das falsas-per-
cepções, se lhes faz indiferente; por que modo nem atenta para, conteúdos
delirantes aparentemente fundamentais, que são para ele da maior impor-
tância, ou os esquece, de novo. Doutro lado, também nos surpreendemos,
igualmente, com a força esmagadora que possuem certas alucinações “im-
perativas” e certas ideias delirantes, a que o enfermo parece sujeito, tal
qual se tratasse de coação- física. É de notar a intensidade com que vários
conteúdos prendem a atenção do paciente, ou a profundidade com que
coisas aparentemente indiferentes o impressionam. Nas psicoses agudas
com vivências ricas, percebe-se que os doentes simplesmente se entregam
ao- sentimento da inércia, suportando por forma passiva o que pode haver
de mais terrível. Esse estado de impotência, que não é raro eles descreve-
rem de maneira característica, relaciona-se com o sentimento de indife-
rença quanto ao que está por vir; e mesmo que se trate de revoluções for-
midáveis no mundo sobrenatural, os doentes até mostram pendor para
brincadeiras e observações frívolas.
Muito se aprende com as interpretações que o próprio doente dá,
quando tenta compreender-se. Um esquizofrênico explica os conteúdos es-
peciais das formas ou vultos que vê da seguinte maneira:
“As formas pareciam ser personificação exagerada de pequenos, míni-
mos erros que eu próprio cometia. Por exemplo, se, à mesa, me era muito
gostosa certa comida, podia acontecer que, naquela mesma tarde, como se
fosse eco dessa sensação, um demônio &e apresentasse sob a forma de
um ente, homem e animal ao mesmo tempo, glutão, lúbrico, de goela
enorme, beiços grossos e sensuais, barrigudo, de tamanho desmesurado.
A partir daí, sentia-lhe a proximidade até que, por umas duas ou três re-
feições, me privasse daquele sabor, o qual parecia ser a fonte que o ali-
mentava”. “Via em todas as pessoas que me cercavam os mínimos defeitos
de caráter como se fossem formas feias e ameaçadoras, que deles se desta-
cavam e se atiravam contra mim” (Schwab).
O mesmo paciente interpreta sua doença globalmente. O que é para o
psiquiatra sequência de um processo enquadra-se para ele na unidade de
um significado:
Acho que eu mesmo provoquei a doença. Quando tentava penetrar em
certo mundo sobrenatural, esbarrava nos seus guardas naturais, corpori-
ficações de minhas próprias fraquezas e erros. A princípio, estes demônios
me pareciam ser habitantes inferiores daquele mundo sobrenatural, que
podiam fazer-me de bola com que jogar, porque eu entrara, sem estar pre-
parado, nessas regiões, onde me perdia. Mais tarde, já pensava que fos-
sem partes cindidas de minha mente (paixões), que existiam, perto de
mim, no espaço livre, alimentando-se de meus sentimentos. Acreditava
que todos os outros entes humanos também os possuíssem, mas não os
percebessem, protegidos e venturosamente iludidos pelo sentimento pes-
soal da existência; este último, na minha opinião, é produto artificial de
reminiscências, complexos ideativos etc., tal qual boneco dourado, que é
bonito olhado de fora, mas em que nada vive de essencial.
O eu pessoal se tornara, em mim, poroso por efeito da atenuação de
minha consciência. Queria aproximar-me, com sua ajuda, de uma fonte
vital mais alta. De havia muito, precisara preparar-me, despertando em
mim um eu mais elevado, impessoal, porque “o manjar dos deuses” não
era para lábios mortais; pelo contrário, destruía o eu animal do homem,
fragmentava-o em suas partes componentes, que desmoronavam pouco a
pouco: o boneco partia-se, o corpo adoecia, porque eu forçara cedo demais
o acesso às “fontes da vida” e a maldição dos deuses descia sobre mim.
Tarde reconhecia que elementos turvos haviam participado; conhecia-os
depois de terem adquirido demasiada força. Já não havia salvação; agora,
tinha o mundo mental que desejara contemplar. Os demônios pulavam
fora do abismo, como se fossem guardas, cerberos, que só permitiam a en-
trada de quem fosse autorizado. Decidi-me a empreender a luta pela vida e
pela morte — o que, para mim, significava, afinal, a decisão de morrer,
porque, na minha opinião, tinha de destruir tudo quanto mantinha o ini-
migo; mas seria, ao mesmo tempo, aquilo que mantém a vida. Queria en-
trar na morte, sem enlouquecer, e, por assim dizer, enfrentava a esfinge,
que me dizia: Ou tu no abismo, ou eu!
Nesse momento, veio a iluminação; adentrei a verdadeira natureza de
meus sedutores, privando-me de alimento. Eram os proxenetas e, ao
mesmo tempo, os embusteiros de meu querido eu pessoal, que, a esta al-
tura, me parecia nulo, tal qual eles. E, à medida que um eu maior e mais
amplo emergia, sentia-me capaz de livrar-me da personalidade que até en-
tão tivera, com todos seus anexos. Via que essa personalidade de até en-
tão não podia caminhar nos reinos suprassensoriais. Daí resultou dor
horrível, tal qual um golpe que me aniquilasse, mas estava salvo; os demô-
nios encolhiam-se, desapareciam, morriam. Começava para mim vida in-
teiramente nova; sentia-me, daí por diante, diverso dos outros homens.
Um eu como os. outros têm, consistindo cm mentiras convencionais, apa-
rências, engodos, reminiscências, tornou a formar-se em mim; sempre, no
entanto, continuava a existir, atrás c por cima, um eu maior, mais amplo,
que dava impressão de eterno, de inalterável, imortal, inconspurcável,
vindo a constituir, a partir daí, minha guarda, meu refúgio. Creio que se-
ria vantajoso para muitos homens conhecerem um eu mais alto, seme-
lhante a este; creio existirem homens que o hajam de fato, encontrado de
maneiras mais favoráveis.”
As autointerpretações desta ordem formam-se, evidentemente, à base
de tendências delirantes e de forças mentais profundas, originando-se de
vivências das mais sérias. A riqueza das vivências esquizofrênicas incita
tanto o observador quanto o paciente que se reflete a que não as tomem
como se fossem mero amontoa- mento caótico de conteúdos. A mente está
tão presente na vida psíquica enferma quanto na sadia. É preciso despojar
semelhantes interpretações de qualquer significação causai, porque com
elas apenas se iluminam os conteúdos e as conexões.
Toda doença crônica representa para o paciente uma tarefa, quer se
trate de aleijados, aos quais faltam membros, mas que são, globalmente,
sadios; quer se cogite de doenças somáticas, que lesam o estado geral, ou
daquelas que acompanham os distúrbios psíquicos. É frequente descre-
ver-se aquilo de que são capazes homens sem pernas, sem braços, cegos,
testemunhando a energia, a perseverança, a destreza de certos indivíduos,
os quais, entretanto, eram sadios, somaticamente. A situação é de todo di-
versa, quando o distúrbio não atinge um instrumento de trabalho, con-
quanto ainda tão necessário, mas a própria força vital, o todo do estado
somático e psíquico.
É o que exemplifica o comportamento observado nos estados crônicos,
que se seguem à encefalite epidêmica. Dorer mostra, citando casos, quão
diversas são as possibilidades. Os doentes têm de acomodar-se à nova si-
tuação. Sofrem, a cada momento, das consequências da enfermidade. O
mundo em volta altera-se. A profissão se perde. O mundo inteiro, os entes
humanos adotam comportamento diferente cm relação ao doente, cujo
isolamento se dá por forma quase compulsiva. Dorer descreve os super-
sensíveis, que se retraem, só pensando em si, exigindo atenção dos cir-
cunstantes para seu padecimento, tornando-se morosos, taciturnos, ego-
ístas — os homens do “apesar de tudo”, que mostram aumento da energia,
querendo salvar-se a todo preço, empreendendo as coisas mais impossí-
veis, dando a impressão de que são perseguidos, caçados, fazendo-se ego-
cêntricos conscientes — os espectadores da vida etc. Dorer quer ilustrar a
frase: O que a doença faz de um homem é determinado, derradeiramente,
pelo caráter dele; caráter que se apresenta modificado conforme a maneira
por que se insere no ambiente cultural, bem como segundo a relação com
a comunidade humana e a resposta que desta vem.

d) O Juízo do doente a respeito de sua doença.


Só se trata de atitude no sentido próprio quando a personalidade en-
frenta sua vivência por forma contemplativa e crítica. Pelo juízo psicoló-
gico, o paciente faz-se consciente do que vivência e como o vivencia. O
ideal da atitude “correta” diante da vivência, o enfermo o alcança quando
tem a “compreensão da doença”. Por conseguinte, se, nos grupos até agora
mencionados, ficamos conhecendo traços característicos pelo comporta-
mento do paciente em relação aos conteúdos de seus fenômenos mórbi-
dos, pela sua reação à alteração da vida psíquica, pela elaboração dos con-
teúdos, cabe-nos, agora, reunir estes traços a partir da atitude que o paci-
ente assume, quando, voltando-se dos conteúdos para sua vivência e para
si mesmo, indagando das causas desse evento, ajuíza sua enfermidade em
traços particulares ou no todo. Trata-se de tudo aquilo que se chama, em
resumo, consciência da doença e compreensão da doença.
Chama-se consciência da doença aquela atitude do paciente na qual se
exprime um sentimento de estar enfermo, um sentimento de modificação,
sem que essa consciência se estenda a todos os sintomas e à doença em
seu todo; e sem que se alcance a medida objetivamente correta do juízo
que se faça da gravidade da doença, nem um juízo objetivamente correto
do tipo da enfermidade. Só quando tudo isso ocorre, quando todos os sin-
tomas individuais, quando a doença é ajuizada corretamente, em seu
todo, segundo sua natureza e gravidade, é que falamos em compreensão
da doença-, com a restrição, porém, de que o juízo feito só precisa alcan-
çar aquela correção que una indivíduo mediano, sadio, do mesmo ambi-
ente cultural, possa fazer de outro indivíduo enfermo. Claro que a atitude
da pessoa em relação à doença se diversifica, se acentua, se particulariza
na medida em que o doente seja inteligente e instruído. Em particular,
uma educação científica e psicopatológica, de um lado, uma educação hu-
manística e teológica, de outro lado, acarretarão atitudes diversas. Para
avaliar a própria atitude como atitude mórbida, temos de considerar sem-
pre o meio. A mesma opinião que talvez apenas signifique superstição
num campónio nos revelará, em pessoas instruídas, transformação pro-
funda, tendente à demência, da personalidade.
1. Auto-observação e consciência do estado próprio.
A auto-observação e ajuizamento do paciente pode realizar-se em rela-
ção aos elementos fenomenológicos, como em relação aos distúrbios que
ocorrem nos vários rendimentos da vida psíquica, em relação às totalida-
des dos complexos sintomáticos, à personalidade própria, enfim: a tudo
que a psicopatologia também tem em vista.
A auto-observação dos pacientes, a atenção que prestam à sua vivên-
cia anormal e a elaboração do que em si mesmos observam através do ju-
ízo psicológico, de modo a poder informar-nos de sua vida interior, repre-
sentam uma das fontes mais importantes do conhecimento da vida psí-
quica enferma. Depende essa auto-observação do interesse, das aptidões
psicológicas, da capacidade intelectual e crítica da pessoa doente. Em cer-
tas circunstâncias, a própria auto-observação se apresenta como sintoma
torturante. Os doentes têm de passar o tempo todo, a contragosto, anali-
sando sua vivência; a atividade deles é inteiramente perturbada e inter-
rompida pela auto-observação, levando a resultados às vezes muito escas-
sos. É a atitude refletiva sobre a vida psíquica própria que é, então, por si,
compulsiva e torturante. São casos desta ordem que têm levado a que se
afirme, erradamente (afirmação contra a qual Kant já advertia), ser a auto-
observação prejudicial, porque conduz à ruminação e à loucura. Não é da
auto-observação, entretanto, que resulta a doença, mas, sim, são certos
estados mórbidos que geram um tipo anormal de auto-observação.
Há uma consciência da consciência. Sentimo-nos “tórpidos”, ou “sono-
lentos”, ou ainda muito lúcidos, estado este último que também parece
ocorrer em grau fora do comum. Os sentimentos de clarividência nos es-
quizofrênicos podem ter este aspecto. Diverso inteiramente é o que se dá
com um doente portador de encefalite letárgica, que escreve:
“Tenho o sentimento de jamais haver sido, antes da doença, tão vigil e
consciente — o que resulta de que estava sempre a me observar a mim
mesmo, trazendo à consciência, imediatamente, os pensamentos mais in-
significantes, os mínimos movimentos. Todo fato corpóreo, quais sejam:
espirrar, tossir, até pensar, enchia-me de curiosidade intensa sobre o
modo por que ocorriam; tentava, então, o mais possível, compenetrar-me
deles.” O paciente descreve o “registro”, isto é, a trazida á consciência de
todo processo somático e psíquico. “Até este registro me estragava todo
prazer, toda esperança, porque, de cada vez, dizia para mim mesmo:
agora, estás contente, agora estás esperançoso” (Mayer-Gross, e Steiner).
Abaixo de certo nível de diferenciação psíquica, os indivíduos parecem
viver, meramente, no perimundo, sem saber “de si”. Daí não existir, em
absoluto, nas idiotias muito marcadas, em psicoses -agudas plenamente
evoluídas, na demência profunda adquirida, o problema que consiste em
saber a atitude do paciente em relação à doença. Não há, em fim de con-
tas, atitude alguma; caso em que é melhor não falar em falha da consciên-
cia da doença, e sim em perda da personalidade, que, como é evidente, en-
cerra a falha da consciência da doença como elemento parcial. Enqua-
dram-se, em certa medida, nesta categoria aqueles casos notáveis dos de-
mentes orgânicos, que não têm sequer consciência de defeitos corpóreos
dos mais graves.
Nas doenças cerebrais orgânicas (tumor, amolecimento etc.), em que
ocorrem paralisia, cegueira, surdez ou outros defeitos graves da mesma
ordem, falta, por vezes, a consciência respectiva. O doente, após cegar de
todo, afirma poder ver perfeitamente, reage aos exames com negatividade
resmungona, irrita-se, procura livrar-se com frases semelhantes às que
pronunciam os portadores da síndrome de Korsakov. Quando lhe pergun-
tam: “Que é isto?” (um relógio) estende as mãos para diante e responde: “O
Senhor está vendo.”, “É isto mesmo?”. ‘Que é que o Senhor quer?”; quando
possível, descreve qualquer coisa, o médico, por exemplo; movimenta-se
gesticulando, como se estivesse vendo tudo, ralha, sustenta estar escuro
etc. Redlich e Bonvicini mostraram de que forma uma alteração psíquica
geral (perplexidade, apatia, euforia, distúrbio sério da capacidade de fixa-
ção) nos faz compreensível essa falha da consciência da doença; ao que
corresponde o fato de alguns pacientes, vez por outra e por forma transitó-
ria, ganharem certa percepção da sua cegueira, esquecendo-a, porém, logo
a seguir. — Parece, no entanto, haver defeitos de rendimento individuais,
cuja essência especial consiste em serem difíceis de notar, de maneira que
a falha da compreensão não constitui, necessariamente, sinal de desagre-
gação da personalidade. Assim é que Pick diz o seguinte: “O afásico amné-
sico procura palavras que lhe faltam, com a sensação permanente de que
a fala lhe é incompleta; pelo contrário, o afásico que fala em estilo telegrá-
fico ou em infinitivos não para um instante de falar; não tem, de modo ge-
ral, o sentimento de que alguma coisa. falta no que diz, alguma coisa que
teria de procurar (mesmo nos casos nos quais tem consciência de seu de-
feito fonatório).” Também se observa o dilúvio vocabular parafásico dos
portadores de afasia sensorial, os quais não parecem perceber, em abso-
luto, que ninguém os compreende, ao passo que o portador de afasia mo-
tora tem vocabulário sempre escasso, fazendo tentativas de falar, mas per-
manecendo consciente de sua incapacidade e acabando por desistir.
2. Atitude nas psicoses agudas.
Não há, nas psicoses, compreensão plena que dure. Quando esta per-
siste, não falamos em psicose, e sim em psicopatia. Algumas manifesta-
ções são, na realidade, corretamente ajuizadas; quanto ao mais, porém,
não se reconhecem, em geral, inúmeras manifestações mórbidas como tais
e, ao revés, sentimentos mórbidos surgem cujo conteúdo é falso, signifi-
cando até sintoma. Por exemplo, o melancólico considera-se deteriorado e
empestado, ao passo que o paranoico se pretende perturbado no curso de
seu pensamento por maquinações exteriores. Há doentes que dizem: “Não
sei, estou maluco, ou o que é?.... Vejo, não sei o que é, são fantasias? ....
Não sei o que isto significa; estou enfeitiçado, ou o que é?” Nas psicoses
agudas, ocorrem, entretanto, estados passageiros em que o doente tem
compreensão ampla da doença. Por exemplo, um paciente volta a si, por
alguns instantes, de suas vivências fantásticas, constata que está no hos-
pital e até apressa seu transporte para o frenocômio. Ao iniciar-se o pro-
cesso, encontra-se, por vezes, uma compreensão tão extensa da enfermi-
dade, com correção das ideias delirantes, ajuizamento correto das vozes
etc., que se chega a acreditar em cura e em estado psicopático benigno.
Essa compreensão é, todavia, quase sempre passageira. Pode-se, ocasio-
nalmente, observar uma oscilação dentro de poucas horas ou dias. Há ve-
zes nas quais, em meio a vivências esquizofrênicas, a consciência se
aclara, de súbito e, posteriormente, os pacientes vêm a contar: “De re-
pente, tive consciência, durante um momento, de minha perturbação”; ou
outro: “Veio-me, de modo inteiramente repentino, à consciência, o absurdo
daquilo tudo”. A compreensão que aparece por alguns instantes é muito
mais vasta do que sugere o conteúdo da maioria dás manifestações ver-
bais:
A senhorita B. declara não estar doente, e sim, realmente, grávida; não
é delírio, é horrível ter acontecido isso, o futuro é pavoroso. Não sabe como
resolver suas preocupações. Daí a minutos, declara, no entanto, esponta-
neamente, já lhe haver ocorrido isso, outras vezes (já. passara por várias
fases semelhantes, das quais se curara.
Em estados psicopáticos nos quais o doente, geralmente, é dominado,
uma compreensão, todavia, sempre existe. Vejamos como Gebsattel des-
creve a noção da doença numa paciente anancástica:
“Ela distingue aquilo que é doente em si daquilo que é sadio: sente-se
dupla e acha que, um dia, todo seu sistema compulsivo ‘há de desmoronar
feito um castelo de cartas’; ou ‘de desaparecer feito um fantasma’. Às ve-
zes, ‘caem-lhe as escamas dos olhos' — vê ‘então, tudo de maneira absolu-
tamente real’ e experimenta sentimento ‘de intensa felicidade’, mas só por
alguns instantes. É como se uma pessoa saísse do teatro, ‘o cenário su-
mindo’. Acha que, um dia, terá de curar-se da doença, ou de despertar
dela, como se tivesse sido um sonho”.
3. Atitude em relação à psicose após a recuperação de psicoses
agudas.
Mais importante ainda do que durante a psicose aguda, é observarmos
a atitude dos pacientes em relação à psicose de que se hajam recuperado
e, através do conteúdo dos juízos pronunciados, que tão facilmente enga-
nam, penetrarmos na atitude verdadeira, se não quisermos iludir-nos com
todo o quadro mórbido. Certo é que a compreensão plena dos pacientes —
por exemplo, após um delírio, após uma alucinose alcoólica, e também
uma mania, — oferece quadro muito claro: os doentes declaram, sem
constrangimento, referindo-se aos sintomas particulares, haverem estado
enfermos. Falam com todo desembaraço e franqueza nos conteúdos da
psicose, que lhes são, a esta altura, absolutamente estranhos e indiferen-
tes, a que se referem e de que talvez riem, despreocupados e desinibidos,
como se se tratasse de coisa que nem lhes diz respeito. Da compreensão
que formam tiram, apenas, consequências compreensíveis: preocupação
com a recaída, preocupação com o horror da internação ocorrida etc.
Pelo contrário, não são raros, de forma alguma, noutras psicoses, prin-
cipalmente nas esquizofrênicas, os casos em que os juízos pronunciados,
subjetivamente honestos, parecem revelar compreensão plena; o que, en-
tretanto, não existe, a uma observação mais estrita. Declaram os doentes
haverem sofrido doença mental, estarem convencidos da irrealidade dos
conteúdos, sentirem-se, agora, novamente sãos. Não falam, porém, com
desembaraço em todos, os conteúdos da psicose e, mesmo que queiram
falar, percebe-se-lhes a excitação despropositada, quando inquiridos a res-
peito dos conteúdos. Coram, empalidecem, suam, acabam esquivando as
respostas e dizem não querer mais aprofundar-se nisso, porque os põe
nervosos. De casos tais a outros em que o doente simplesmente nega a in-
formação, todas as transições existem. Ocasionalmente, nota-se que cer-
tos detalhes individuais (perseguições etc.) se mantêm como sendo reais,
ouvindo-se frases desta ordem: “Teoricamente, posso ter dúvida se foi real
ou não; mas pràticamente, não; senão, estaria preso para sempre” etc.
Nesses casos, não se pode falar, absolutamente, em compreensão plena da
doença. A personalidade desses enfermos, permanentemente tomada —
muitas vezes, sem que o percebam — pelos conteúdos da psicose, não é
capaz de considerá-los, objetivamente, como de todo estranhos; mas, ape-
nas, de rejeitá-los, como algo que se deve abolir, eliminar. Noutros casos,
a psicose aguda não é absolutamente desagradável de recordar. Os enfer-
mos até manifestam pesar pelo fato de as reminiscências lhes desaparece-
rem aos poucos, pois gostariam, afinal, de não perder a rica experiência
que a psicose lhes trouxe à existência.
Gérard de Nerval inicia a autodescrição de sua doença da seguinte
forma: “Tentarei registrar as impressões de longa moléstia, que se desen-
rolou nos mistérios de minha mente; — e não sei por que uso a expressão
‘moléstia', visto que jamais me senti melhor, ao que me lembre. Por vezes,
pareciam-me estar as forças e as capacidades duplicadas. Tinha impres-
são de tudo saber e compreender; e meu poder imaginativo deleitava-me
ao infinito. É de lamentar tê-la perdido, quando se recupera aquilo que os
homens chamam razão?”.
4. Atitude nas psicoses crônicas.
Os conteúdos das manifestações verbais simulam, muitas vezes, em
estados psicóticos crônicos, a compreensão ampla da doença:
Pacientes, portadores de paranoia incurável do grupo da demência pre-
coce podem fazer observações desta ordem: A Srta. S.: “Sofro de paranoia
secundária”; “sofro de paranoia alucinatória do tipo de Krafft-Ebing; sinto-
me toda revirada”; “sofro de paranoia sexual, Doutor; meu manual é de
1893; não havia ainda demência precoce”. — O operário S., quando lhe
perguntam se está doente: “Não digo nada a este respeito. Esbarro numa
couraça: é a descrença. Para o mundo, é delírio. O mundo quer a reali-
dade. Nada posso provar; por isto, guardo para mim o que sei; senão,
trancam-me para sempre no hospital de loucos”. Após um período de exci-
tação, o mesmo operário declarou que “tudo era nulo, era miragem; só
acredito no que vejo,' no que é o princípio correto da cultura moderna”. —
Outro paciente respondeu a- recriminações que lhe faziam: “Posso fazer
isto, estou maluco”.
Embora semelhantes manifestações levem a presumir que houvesse
noção ampla da doença, esta faltava de todo nos pacientes, que, no
mesmo instante, se mostravam convencidos da realidade de seus conteú-
dos delirantes e nada deduziam da compreensão aparente que tinham,
apenas aprendendo o que os psiquiatras e outras pessoas achavam e
construindo frases correspondentes, que significado algum tinham para
eles.

e) A vontade de adoecer (o desejo da doença).


Pela autorreflexão, pode o indivíduo ver-se a si mesmo, julgar-se a si
mesmo, exercer influência configurativa sobre si. Em todos estes rumos,
há as forças que atuam em sentido contrário: o indivíduo quer fazer-se
transparente a si mesmo, ou quer esconder-se, enganar-se a si mesmo e
velar a realidade. — Na esfera da morbidez, existe uma vontade, um de-
sejo, um impulso instintivo para a doença e, contrastando, a consciência
da saúde. — A vontade pode interferir na psique, pode obscurecê-la, ou
pode iluminá-la; pode inibi-la ou a ela ceder, acrescer-se nalguma coisa e
alguma coisa recalcar.
Existem estas possibilidades em relação ao adoecer, na medida em que
adoecer não constitui, apenas, curso biológico objetivo, mas também
curso subjetivo da consciência da doença, a qual tanto espelha, indife-
rente, paralelamente, a consciência quanto representa fator atuante, com-
ponente do próprio adoecer.
O curso é típico nas doenças somáticas objetivas: um sentimento de
desconforto, de transtorno, ainda não se reconhece como doença. O juízo:
“Estou doente” surge em radical re-disposição da autoconsciência vital,
quer sob a forma de ruptura da eficiência, que força a parar o trabalho,
quer com o aspecto de juízo médico. O que era, até aí, apenas aborrecido,
sem validez, passa a ser sintoma importante e objeto legítimo da atenção.
O indivíduo tende “ao isto, ou aquilo”; ou está doente, ou está são. Se jul-
gar que está são, o que concluirá relativamente ao desconforto é que não
deve importar-se com ele; se, pelo contrário, julgar que está doente, o des-
conforto que sente, a diminuição da produtividade levá-lo-ão a exigir que o
poupem, o tratem, -o curem. Porque não há, apenas, doenças somáticas
manifestas, mas 'também o rico entrejogo de fenômenos somáticos e psí-
quicos, assim também a atitude fundamental do indivíduo é, por vezes, de
importância decisiva para o curso das manifestações somáticas mórbidas.
Ao “não importar-se com a doença” e ao autocontrole na preservação
da vida normal opõem-se tanto a dominação compulsiva do indivíduo pela
doença somática quanto a entrega absoluta- -como vontade de adoecer, ou
desejo da doença, visando a realizar mente despercebida à enfermidade,
que acontece apresentar-se um objetivo. Os pacientes querem ser lastima-
dos, fazer sensação, -esquivar-se a obrigações laborativas; ou querem re-
ceber pensão, ou gozar prazeres fantásticos. Essa entrega e esse desejo
desempenham grande papel não só nas neuroses somáticas, como ainda
no desenvolvimento das crises de pseudologia fantástica (mentiras fantás-
ticas em que o próprio enfermo acredita, associadas a atos consequentes
que lhes correspondem) e de outros fenômenos histéricos. Após breve fase
inicial de intencionalidade, os enfermos passam, até contra sua vontade, a
ser dominados nela doença, que, então, segue seu curso (psicoses carcerá-
rias, por exemplo). Também a excitações maníacas de grau moderado
pode o indivíduo entregar-se, aumentando-as, ou pode dominá-las.
Há pessoas que têm necessidade de estar doentes: se qualquer coisa
mórbida aparece, estimulam-na, cedem instintivamente, embora a consci-
ência lhes peça tratamento médico e cura. A doença para elas transforma-
se em conteúdo vital, maneira de representar certo papel, servir-se dos ou-
tros, obter vantagens, livrar-se das solicitações da realidade. Em formula-
ção geral: querem que se conceba aquilo que envolve responsabilidade e
que é compreensível como se fosse evento que não envolve responsabili-
dade para eles; que é meramente causal. Há outros que têm necessidade,
sejam quais forem as circunstâncias, de estar sãos, quando se sentem su-
jeitos a processos mórbidos. Não permitem, por exemplo, que fenômenos
nervosos se desenvolvam, eles próprios esclarecendo-se sempre a si mes-
mos. Negam validez ao que é puramente causal, predeterminado e até
transformam muita coisa, o mais possível, em eventos compreensíveis,
contendo responsabilidade; portanto, indeterminado. Em estados anor-
mais, quando levam semelhante atitude ao exagero, pode acontecer que,
afinal, se sintam aliviadas, se lhes é dado ajuizar alguma coisa como “pa-
tológico”.
Ao desenvolvimento de estados somáticos mórbidos, com interferência
de pendor para a doença, pode-se aplicar uma frase de Charcot: “Há um
momento entre a saúde e a enfermidade em que tudo parece depender do
paciente.”
Não se pode duvidar de que o comportamento psíquico influencie o dis-
túrbio somático. Se uma pessoa recebe, pelo telefone, qualquer informação
penosa, a mão e o braço lhe parecem cansados, quando torna a colocar o
fone no gancho; se quer escrever, sente câimbras; trabalhando, não pen-
sando no assunto, quando acorda, o distúrbio deixa de apresentar-se,
mas fica subjacente e volta a ocorrer ao menor estímulo. Certo paciente
sente “uma coisa no braço”, quando tem de enfrentar situações opressi-
vas, ou desvantajosas. Mõbius cita o caso de um paciente com acinesia al-
gera “para o qual pensar na doença parecia prejudicial; daí tentar concen-
trar, intensamente, a atenção em qualquer objeto; só não conseguia isso
suficientemente antes de dormir e quando^ acordava; era, então, como se
as ideias lhe descessem para os membros, os quais se tornavam mais sen-
síveis”.
Kretschmer procura interpretar o modo por que se pode determinar e
desenvolver, mediante vontade mais ou menos clara, a transposição para
a esfera somática. Em nós mesmos podemos observar que o reflexo pate-
lar se apresenta mais ou menos intenso conforme se concentre ou não a
vontade em seu reforço; fato normal que se encontra nalgumas manifesta-
ções histéricas. A princípio, há um efeito reflexivo agudo (tremor, por
exemplo), que mal se consegue reprimir no pico inicial; depois, a intensi-
dade do reflexo decresce, podendo-se reforçá-la facilmente pela influência
da vontade; a seguir, pelo costume, ele novamente se faz mais tenaz, pro-
gressivamente mais intenso e, por fim, a vontade, mesmo concentrada,
não consegue reprimi-lo. A volição é capaz de reforçar, momentaneamente,
o reflexo e de nele insinuar-se pela repetição.

f) Sobre o significado e as possibilidades da atitude em relação à doença.


Kierkegaard escreveu, de experiência própria, ã frase seguinte: “A
maior aflição é e sempre será não sabermos se nosso sofrimento é molés-
tia da mente ou pecado.”
As categorias de que, grosso modo, nos servimos para estabelecer dis-
criminações e concepções psicopatológicas não penetram nas profundida-
des do ente humano. Existe aí uma origem, da qual ele parece poder des-
tacar-se em relação a tudo quanto lhe; acontece, tudo quanto o acomete,
tudo quanto, ele distanciando-se, não é ele próprio. Constituição, sexa,
raça, idade, doença — mesmo que seja a esquizofrenia — tudo é ele pró-
prio, de um modo ou de outro, na medida em que o vincula inelutavel-
mente. A tudo, no entanto, lhe é possível opor-se, assumir atitude perante
tudo e, em vez de identificar-se (“sou assim”), tudo sobrepujar, não ceder,
só assim realizando o que, na verdade, ele próprio é. Depois, tem de com-
preender sua realidade, interpretá-la, desde que a apreenda, experimen-
tar-lhe o conteúdo, destacando-lhe o significado naquilo que lhe é dado.
Tem, a seguir, de distinguir entre o que é naturalmente acrescido e o que
dele próprio provém; entre o que é e o que não é significativo; e que tarefas
lhe impõe, realmente, a fatualidade. A interpretação compreensivamente
apropriativa é infinita, constituindo, apenas, campo restrito, que se pode
vir a saber por forma compulsivamente objetiva; além do que, a maneira
por que o homem concebe sua individualidade e assume atitude em rela-
ção a si mesmo se acha em constante movimento. As categorias e imagens
do existir humano, desenvolvidas em seu mundo, mostram-lhe os cami-
nhos, mas o modo por que se comporta lhe ultrapassa o saber explícito
momentâneo; modo que, relacionado, por forma impossível de objetivar,
com sua essência, vem a ser a totalidade emergente daquilo que é reali-
dade, compreensibilidade, criação; e o observador não consegue, afinal,
esclarecer se é recusa ou resignação, amor da própria origem, ou ódio de
si mesmo na própria origem; se é a autodisciplina metódica que apenas
modela, ou a atuação interna na qual o homem se encontra a si mesmo
por seu próprio esforço.
Se tivermos em vista esta situação básica, brevemente recordada, do
existir humano, teremos de considerar, por igual — claramente, embora,
só em raros casos — a possibilidade de comportamentos extremamente
significativos, originados da seriedade de uma existência histórica, em que
de início, talvez não vejamos senão esquizofrenia e em que, na verdade, o
conhecimento científico mais não permite ver; poderemos, no entanto, per-
ceber também as lindes de nosso saber. O que chamamos atitude do paci-
ente em relação à sua doença encerra uma polaridade: de um lado, um
saber compreensivo de referência ao processo mórbido; de outro, uma
apropriação compreensiva, relacionada com o fundamento da existência
própria. Aquele saber é, pelo significado, idêntico ao saber médico. O paci-
ente pode ler livros, ou até ser, ele mesmo, psiquiatra; e pode aplicar à sua
concepção pontos de vista científicos; mas esta apropriação constitui ape-
nas, ato compreensível, situado no meio de uma intermediariedade, ato
que quanto mais completo for o saber é que tanto mais puramente se de-
senvolverá. Como cientistas, precisamos precaver-nos de tomar a média
por padrão de todos os seres humanos. O que está oculto e mal se sente
no homem como homem está sempre presente como possibilidade, tendo
só em casos raros de manifestar-se. Daquilo que limita o conhecimento do
homem, sua existência, origina-se aquilo que, nele, pode defrontar toda
doença como se fosse qualquer outra coisa, identificando-se, porém, nos
conteúdos que nos inclinamos, do mesmo passo, a chamar mórbidos. A
constante procura, interpretação e enquadramento do que nos parece ori-
ginar-se, por forma objetiva, no processo mórbido não significa, necessari-
amente, compreensão falha da doença. Kierkegaard ia ao médico “para
não esquivar-se à instância humana’’; é de presumir que também movido
pelo impulso de reconhecer, clara e compulsivamente, o que lhe parecia
pecado. Compreendemos que se sentisse profundamente desiludido, pois
as categorias médicas deviam ter para suas experiências o mesmo sentido
que a língua dos botocudos para a filosofia platônica. Mesmo, contudo,
que deparasse com o mais elevado nível de concepção psicopatológica, ou-
tro resultado não lograria. Não se pode escamotear no conhecimento cien-
tífico de meros eventos naturais aquilo que se haja experimentado, com
toda a seriedade e o máximo de clareza consciente, como sendo o trato se-
creto de Deus, que jamais permite saber, à definitiva, o que Deus disse ou
pretendeu dizer.
Resta ao psicopatologista, no entanto, o saber fronteiriço. Comportar-
se-á de maneira radicalmente insensata, se postular um evento básico da
alteração da existência, em vez de processos mórbidos de tipo empirica-
mente constatável. A existência é intocável ao saber e à experiência psico-
patológica.
2.4.
O TODO DAS CONEXÕES COMPREENSÍVEIS
(CARACTEROLOGIA)

§ 1. A Limitação Do Conceito

Em toda a psicopatologia, o que antes de mais nada se exige é o em-


prego de conceitos determinados unívocos. Não há, entretanto, conceito
que se use tão ambígua e variadamente quanto o de personalidade ou de
caráter.

a) O ser do caráter.
Vemos o caráter no modo especial pelo qual um homem se manifesta,
se move; na maneira por que vivencia situações, por que a elas reage; na
forma por que ama, se enciúma, leva a vida; nas necessidades que tem e
nas aspirações que lhe são próprias; nos objetivos que se propõe; no modo
por que forma ideais e quais são estes; nos valores pelos quais se guia; no
que faz e produz; na maneira por que procede. Enfim: chamamos persona-
lidade o todo individualmente variado e característico das conexões com-
preensíveis da vida psíquica. Com isso fazemos limitações:
1. Nem tudo que compreendemos incluímos na personalidade. Compre-
endemos, por exemplo e sem qualquer referência pessoal, de que maneira
uma impressão sensorial repentina chama sobre si a atenção, de um mo-
mento para outro; e compreendemos o poder fascinante da novidade; etc.
Não incluímos na personalidade nenhuma conexão psíquica dentre aque-
las que consideramos, isoladamente, em si e pelas quais não chegamos à
compreensão das conexões globais; de que dispomos como se fossem sim-
ples fragmentos, vistos, neles mesmos, de dentro. O que dizemos, na reali-
dade, é que todos esses processos têm alguma coisa peculiarmente impes-
soal, embora os compreendamos. Se o evento psíquico se compõe, exclusi-
vamente, de fragmentos dessa ordem, tal como se dá nas psicoses agudas
plenamente evoluídas, já não falamos, geralmente, em personalidade (que
aqui ainda se nota, como essência individual, na perplexidade, nos juízos
repentinamente claros, que, vez por outra, aparecem no background dos
processos agudos).
Na medida em que a tomamos, de modo geral, como simples consciên-
cia e vivência, a psique não é o caráter, mas, apenas, a generalidade de
toda existência psíquica. Caráter e personalidade só existem pela totali-
dade de um conteúdo individual.
2. Nem sempre falamos em personalidade na totalidade das conexões
compreensíveis. Compreendemos, por exemplo, que o idiota do mais baixo
nível fuja de um objeto apavorador e formamos imagem das conexões
compreensíveis que se contêm em sua vida psíquica., sem, no entanto,
concebê-lo, a bem dizer, como personalidade. Tem de haver, no indivíduo,
que é personalidade, um sentimento de si mesmo, um sentimento indivi-
dual do eu. Não nos referimos à consciência abstrata do eu, que acompa-
nha, de maneira idêntica, todos os processos psíquicos; referimo-nos, sim,
ao sentimento do eu que é consciente de si mesmo como de um eu espe-
cial, em sua historicidade. Esta é a consciência da personalidade que se
opõe à mera consciência do eu. Não há personalidade sem consciência de
si mesma. Quando essa personalidade consciente de si mesma cessa, con-
forme acontece nos graus inferiores da vida psíquica, também cessa a ca-
racterologia. Coisa fundamentalmente outra é a caracterologia dos ani-
mais, quer encaremos as espécies, quer os indivíduos (digamos, o chim-
panzé): ou seja, compreensão analógica de modalidades e comportamentos
que não têm consciência de si mesmos.
3. Nem tudo que varia individualmente incluímos na personalidade. Nela
não incluímos as variações individuais do aparelho psicofísico sobre o qual
se edifica a personalidade. Não podemos confundir com a personalidade
aquelas capacidades realizativas, mnêmicas, a fatigabilidade, a produtivi-
dade etc., isto é, aqueles atributos básicos do mecanismo psicofisiológico,
talentos, inteligência, enfim, os instrumentos que são, certamente, requisi-
tos da personalidade e do respectivo desenvolvimento, mas que não são
ela mesma; isso se quisermos distinguir aquilo que é em si compreensivel-
mente conexo daquilo que, a dado momento, se apresenta incompreensí-
vel. E é, sobretudo, a estreita conexão recíproca entre inteligência e perso-
nalidade que não nos permite conceber uma e outra como sendo uma
coisa só. Aquela é um instrumento, ou ferramenta, que podemos experi-
mentar, medir, avaliar segundo os serviços que presta; esta, uma conexão
consciente de si mesma no eu; aquela é material passivo; esta, a persona-
lidade ativa, em cujas mãos o aludido material se conforma, de acordo
com interesses, objetivos e necessidades; aquela é requisito pelo qual essa
personalidade se faz sequer possível e pelo qual se pode desenvolver; esta
é a força que, só ela, permite o trabalho daquela ferramenta, a qual, sem
ela, se deterioraria imprestável. O conceito de demência ou de debilidade
mental, tal qual, em geral, se usa diz respeito a uma destruição, quer da
inteligência, quer da personalidade.
Assim, pois, resumindo, podemos dizer: A personalidade é constituída
por todos os processos e manifestações psíquicos, na medida em que le-
vam a uma conexão individual e universalmente compreensível, vivenci-
ada pelo indivíduo com a consciência de seu eu particular.

b) O devenir do caráter.
Discutindo por esta forma, vem- se a apreender a personalidade ou o
caráter como um ser ou existir, que é tal qual é; que existe, originaria-
mente, desde o nascimento, que não se transforma, essencialmente, e sim
mostra, apenas, se faz consciente de si, sem, entretanto, produzir-se. Aí
temos, contudo, só um aspecto, que pode levar a engano. O caráter é tam-
bém devenir e ter devenido; é aquilo que se realiza no mundo pelas situa-
ções e pelas ocasiões e tarefas que nestas se dão. O caráter é, com seu
fundamento historicamente dado, o produzir-se do homem no tempo; é
mais do que marca de um ser-assim definitivo no fenômeno do curso cro-
nológico; de modo que o caráter só se evidencia pela biografia, na qual se
abrange o curso existencial com suas possibilidades e decisões.
Daí ser o pensamento caracterológico, necessariamente, ambíguo,
como toda a psicologia compreensiva, porque determina o que é assim,
transformando-se em conhecimento, e esclarece o que pode ser, transfor-
mando-se em apelo à liberdade.

c) O caráter compreensível e a incompreensibilidade.


Pelo conhecimento compreensivo, penetramos no incompreensível, em
que se funda o todo eventual das conexões compreensíveis. De fora, é a re-
alidade do mundo, que toca o indivíduo particular e lhe determina a vida
inteira, a partir do nascimento, mediante o que dá e o que retém, o que
exige e o que deixa livre. De dentro, esse incompreensível é, de um lado, a
disposição biologicamente dada; de outro lado, a liberdade do homem
como “existência” possível. Esta última não é objetivo do conhecimento,
nem se pode investigá-la; psicólogos e psicopatologistas que somos, con-
templamos, no entanto, o homem na medida, apenas, em que constitui
objeto de investigação. É como alguma coisa biológica que procuramos
conceituar o incompreensível no qual, realmente, se contém todo o com-
preensível.
1. A todas as conexões compreensíveis, aos movimentos impulsivos, às
mudanças de humor, às reações, atos, objetivos e ideais sempre acrescen-
tamos uma disposição, que se exprime nesses processos psíquicos atuais
e conscientes, bem como nas respectivas manifestações. Chamamos tam-
bém personalidade essa disposição, na qual julgamos ver a disposição ex-
traconsciente em relação ao todo das conexões compreensíveis; com o que
queremos dizer que esta disposição da personalidade universalmente com-
preensível nas conexões das manifestações respectivas — é, como todo,
em sua existência real, incompreensível, devendo-se explicar, por exemplo,
segundo as regras da hereditariedade e conceituar como fator constitucio-
nal.
2. Aquilo em que se baseia a personalidade, aquilo que denominamos
liberdade não constitui objeto, e sim limite da investigação. Diz-se que
certo homem é e que outro não é “uma personalidade”. Semelhantes as-
serções representam juízos filosóficos, mas não determinações empíricas;
Ao que com elas nos referimos é a seriedade da existência de um homem;
podemos, certamente, desenvolver esclarecimentos filosóficos da possibili-
dade que elas proporcionam, mas não nos é dado obter conhecimento em-
pírico algum da respectiva realidade. A partir das ideias da existência, po-
demos construir ideais, que também não tardamos, sem exceção, a con-
ceituar, filosoficamente, como falsos. Por exemplo, quando usamos a ex-
pressão “personalidade”, pensamos no ideal de uma unidade máxima com
a riqueza máxima de um indivíduo, indivíduo de que esse mesmo homem
se aproxima, adaptando-se às circunstâncias da vida real. A coerência no
pensamento e na ação, a estabilidade, a confiabilidade são atributos de tal
personalidade ideal. Aqui, o que se valora é a personalidade do pensador
coerente, possuidor de vontade segura e constantemente motivada; a per-
sonalidade em que reside uma configuração artística da existência. Nesse
sentido se fala em vários tinos de personalidades ideais; por exemplo, o
ideal do sábio, do santo, do herói. Não nos interessam, porém, a esta al-
tura, semelhantes conceitos de personalidade.
Não é só filosoficamente que devemos estar conscientes dos limites da
investigação em relação ao homem; temos de conhecê-los no interesse da
própria investigação. Não se pode, certamente, proibir a investigação: o
que ela pode apreender, determinar, inquirir e pesquisar deve fazê-lo. Fa-
lha, todavia, erra, quando a demais aspira, quando pretende saber o todo,
ou poder saber os fundamentos. Quando o conhecimento falha, por forma
radical, pode o investigador saber que um campo se abre no qual não en-
tra como investigador em relação ao homem, e sim como homem que tem
no homem o companheiro de destino. Como existência, o homem é mais
do que o todo das conexões compreensíveis; e é mais do que a totalidade
de suas disposições biologicamente tangíveis.
Todas as limitações acima discutidas concernentes ao conceito de ca-
ráter ou de personalidade têm em comum o fato de ser o cárter alguma
coisa aberta que indica outra coisa. Correspondendo à intermediariedade
do objeto da psicologia compreensiva entre todas as modalidades pelas
quais se apresente o incompreensível, que, no entanto, só se faz inteira-
mente manifesto como fato mediante aquela psicologia, o caráter que com-
preendemos marca, em primeiro lugar, o incompreensível, do qual pro-
vém, a constituição, além de todas as formas de realidades biológicas; em
segundo lugar, o incompreensível para o qual o caráter mutável se torna,
por assim dizer, instrumento e fenômeno, a existência, origem transcen-
dente e objetivo perpétuo do homem. Não reconhecemos no caráter ne-
nhum existir definitivo em si. O caráter é, decerto, em dado momento, em-
piricamente, o todo das compreensibilidades; de tal modo, porém, que há,
no homem, alguma coisa pela qual sempre é possível aquilo que, empirica-
mente, é improvável ao extremo. A liberdade pode, a cada instante, reco-
meçar desde o princípio e dar ao todo outro sentido. O caráter que com-
preendemos não é o que o homem é, a rigor, e sim uma manifestação em-
pírica, não concluída. O que é o próprio homem é sua existência ante a
transcendência, nem uma, nem outra sendo objeto do conhecimento in-
vestigativo. Impossível de apreender-se como caráter, a existência mostra-
se em caracteres, que, como tais, não são definitivos.

§ 2. Os Métodos Da Análise Caracterológica

De há muito que psicólogos, moralistas, filósofos e psiquiatras prati-


cam a análise caracterial, servindo-se de conceitos semelhantes e usando
métodos idênticos. O que distingue todos esses esforços caracterológicos
da apreensão biográfica de personalidades individuais é o fato de orienta-
rem-se para o que é típico, para o que se presta a formulações gerais. Ao
passo que o biógrafo tem o encargo infindável de apreender uma persona-
lidade concreta, encargo para o qual a caracterologia lhe pode fornecer al-
guns meios auxiliares, ao caracterólogo cabe a tarefa de captar os tipos
atenuados, os esquemas (que, contrastando com a personalidade con-
creta, transparecem, claros, em todas suas ramificações), reduzindo com
eles, se possível, a conceitos toda a extensão em que se move a variedade
pessoal humana.
Cada personalidade é infinita em sua realidade e^ possibilidade. A
cada momento, ela representa o configuramento de seu conteúdo histó-
rico, aparecendo no destino, profissão, tarefas, bem como na participação
na tradição espiritual através da atividade mental própria. Assim é que o
homem constitui, em sua totalidade concreta, objeto das ciências do espí-
rito, pelas quais também de modo algum se esgota. O que destacamos na
análise psicológica conceituai são meios orientativos relativamente gros-
seiros. Vamos apresentar os métodos de análise.

a) Consciência das possibilidades de descrição verbal.


A linguagem proporciona à caracterização da essência humana os
mais amplos recursos. Klages, que contou, na língua alemã, 4.000 pala-
vras referentes ao psiquismo e relacionadas com aspectos da personali-
dade, tem, certamente, razão em que os matizes infinitamente sutis por
nós captados nas diversas designações se perderam no uso comum dos
vocábulos, precisando restabelecer-se conscientemente. Se o psicólogo tem
dificuldade para encontrar termos suficientes, nos setores concebidos
como mecanismos psíquicos, defronta-o, aqui, em meio à-esmagadora
abundância, a dificuldade de encontrar as diferenças mais fundas e mais
básicas da personalidade. Daí não ser possível um sistema caracterológico
que prepondere e valha de modo geral; o que se pode, sim, pela elaboração
das análises disponíveis e pela apropriação da linguagem que se apresenta
nas obras dos poetas e pensadores, é, apenas, aprender a captar psicologi-
camente na compreensão imediata, a formular o que se capta; é assim que
se podem ganhar agilidade, prudência e imparcialidade nesse trabalho.
Podemos fazer-nos conscientes do modo por que a língua, que, na maior
parte das vezes, também domina, despercebidamente, todas as descrições
psiquiátricas — apenas mais ou menos rica ou pobre; que percorre, em
seu significado, todas as dimensões dos valores sociológicos, morais, labo-
rativos, estéticos, portadora que é de referências da psicologia da expres-
são e de significações corpóreas fisiognômicas, a língua, embora sem sis-
tema, é, no entanto, realmente impregnada de multiplicidade inesgotável
de sistematizações possíveis. A consciência da língua recorda, permanen-
temente, a infinitude da essência humana.
A arte da descrição e análise caracterológica, que de modo algum se
pode fundamentar suficiente e metodicamente, nem aprender, depende do
domínio dessa língua e, por isto, a cada momento, dos traços espirituais
básicos de cada época, mudando com as valorações e concepções gerais;
em particular, com as possibilidades vivenciais humanas.
b) Os conceitos da caracterologia são aqueles da psicologia compreen-
siva.
Pode-se dizer que toda a psicologia compreensiva é caracterologia, na
medida em que visa às conexões universais das compreensibilidades no
homem total; e na medida também em que pretende apreender o ser-as-
sim especial de indivíduos particulares.
Daí por que o esquema predominante, involuntário e básico, está em
fundamentar as compreensibilidades em qualidades constantes e em con-
ceber o caráter como soma ou conexão, ainda aqui compreensível, de qua-
lidades, estas representando aquilo que permanentemente subjaz. Certos
modos comportamentais conceituam- se pela combinação de qualidades; e
as combinações se desenvolvem em jogo infinito. Este modo de falar pode
ser inevitável, mas, se o tomarmos como fundamento da concepção carac-
terológica, nos extraviamos, pois que, assim nos exprimindo, desaparece o
movimento do caráter e, principalmente, a dialética de tudo quanto nos
contrastes se apresenta compreensível.
Quando, pretendendo compreender caracteres totais e concluídos
como combinação de qualidades, queremos saber, por exemplo, que quali-
dades caracteriais se pressupõem, reciprocamente, para a nossa compre-
ensão, ou se contradizem; que qualidades se ligam a certas outras para a
nossa compreensão; quais se excluem — conseguimos fazer experiências
notáveis, que ensinam ser este objetivo impossível. Correspondendo à
compreensibilidade equivalente dos contrastes com que deparamos em
toda a psicologia compreensiva, as oposições se prendem, diretamente,
umas às outras. A vida compreensiva realiza-se nos contrastes. Por assim
dizer, aquilo que se compreende extingue-se, uma vez fixado por forma
unilateral e exclusiva a um dos polos, apenas. A força do que vive está na
adesão dos contrastes, na superação que visa ao todo, e não à uni- latera-
lidade finita. A coragem está no medo que se supera; quem é corajoso,
apenas, já não tem, a rigor, coragem alguma.
Resulta desta conexão básica que une os contrastes o fato de toda
construção típico-ideal de qualidades caracteriais ou de caracteres reali-
zar-se em pares de contrastes. Se, por um lado, a análise caracterial empí-
rica encontra, a todo momento, na complicação infinita de cada homem
particular, a confirmação da frase: “O homem não é livro inteligentemente
elaborado, mas uma criatura com sua contradição” — por outro lado, o
que marca as atitudes científicas construtivas — as quais, por sua vez
constituem o inevitável recurso da investigação empírica — é o fato de mo-
verem-se nesses contrastes polares. Daí se infere, contudo, que não são
realidades de tipos caracteriais, e sim construções ideais de tipos, que nos
permitem compreender, em dados momentos, certas conexões. Essas
construções atingem pontos de vista da compreensão, não a substância
existencial. Por isto, a construção caracterizadora que se efetiva abre-se à
realidade do indivíduo, não constituindo diagnóstico definitivo do ser-as-
sim, mas apelo à liberdade do poder-ser que se dirige a todo homem ca-
paz, na compreensão dos outros, de também compreender-se a si mesmo.
O ser-assim absoluto, no sentido da determinabilidade definitiva, é sempre
limitativo de nossa compreensão. Nunca o ser-assim se pode afirmar com
plena segurança em relação ao futuro de um indivíduo; retrospectiva-
mente, pela contemplação de um curso existencial, só se pode fixar com
referência à manifestação factualmente realizada, se se ignorarem tanto a
liberdade e a decisão quanto o acaso. Não existem caracteres concluídos.
A existirem, seriam desprovidos de vida e possibilidade; ter-se-iam tornado
unilaterais, fixados, terminados, transformados em autômatos.
Daí por que, no pensamento caracterológico, se há de chegar, pela ad-
missão transitória de qualidades, à fusão das mesmas em movimento
compreensível. Sempre, no entanto, a caracterologia há de pecar, basica-
mente, pela acomodação num ser-assim com qualidades.

c) Tipologia como método.


Se pensarmos numa qualidade como alguma coisa constante, que
compreendemos em suas manifestações, em suas maneiras reativas, em
suas formações expressivas e modos comportamentais, estaremos desen-
volvendo um tipo. Construímos a qualidade com todas suas consequên-
cias, reconhecemos a concepção global como alguma coisa evidentemente
conexa. Quando fazemos de uma ou várias qualidades o fundamento de
uma concepção total ampla; quando perseguimos uma conexão compreen-
sível em sua atuação sobre o indivíduo todo; quando vemos de que ma-
neira ele se comunica a tudo quanto a criatura humana vivencia e faz, es-
tamos esboçando tipos de caracteres.
Esses tipos são, mesmo quando apenas os contemplamos na experiên-
cia, relativamente a homens verdadeiros, tipos ideais. Já se revelam medi-
ante um homem individual em generalidade plena; não são deduzidos,
nem abstraídos, mas contemplados com omissão daquilo que não lhes
pertence. Não se apresentam como média pela contagem de frequências;
apresentam-se, sim, como formas que aparecem, realmente, de modo ape-
nas aproximado, como casos fronteiriços clássicos. A verdade deles está
na conexão do todo compreensível em si; a realidade respectiva está, exce-
tuando os raros casos fronteiriços, no aparecimento fragmentário do tipo,
que, de fato, não é limitado por outros fatores (estes não se compreen-
dendo a partir do próprio tipo); e que, por isto, não chega a produzir efeito
universal.
Cada tipo se há de aplicar a cada indivíduo. Os indivíduos correspon-
dem aos diversos tipos somente em extensão mais ou menos adequada.
Os tipos relacionam-se uns com os outros, de tal modo que os contrários
não se excluem na realidade do indivíduo particular, mas se vinculam, di-
retamente, uns aos outros.
O significado que os tipos têm impossibilita subordinar um indivíduo a
um tipo por forma que seja suficiente e exata. O que corresponde, mais ou
menos, a um tipo mais não é, num indivíduo concreto, do que certo traço
de sua essência, ou natureza; traço que, é certo, se faz claro a uma apre-
ensão coordenada e iluminadora, sem chegar, porém, a alcançar o próprio
ente humano.
Inteiramente diverso é o significado do tipo, quando se vê não como
tipo ideal, e sim como tipo real. A autenticidade do tipo radica, todavia,
numa realidade que não se compreende, numa causa biológica, numa
constituição, por força da qual ele vem a ser determinado e, em parte, ape-
nas, compreendido, mediante a observação das frequências com que se
apresenta, correlacionadamente.
Existem entre tipos ideais e tipos reais certos quadros descritivos de
caracteres, que a experiência tem acumulado e que afirmam, provisoria-
mente, uma validade, sem, entretanto, lhes esclarecer, de fato, o princípio.

§ 3. Tentativas De Classificação Caracterológica Básica.

Quem contempla a caracterologia tem impressão de infinitude. Quase


todos os autores julgam haver apreendido a essência humana, defendem
seus esquemas de maneira mais ou menos absoluta e, à primeira vista,
esclarecem o leitor menos crítico. Distinguem-se, porém, consideravel-
mente, as várias caracterologias pelo nível cultural do autor, pela força
com que intuem e, antes de mais nada, pela profundeza da metafísica que
se prende à ideia pressuposta do existir humano. A apresentação do pen-
samento caracterológico exigiria a visão histórica dos tipos humanos que o
caracterólogo contempla a cada momento. Em cada época, são certas for-
mas que se impõem à concepção filosófica predominante, configurando es-
truturas essenciais do existir humano; quase sempre, representando mo-
delos e contra-modelos, ou ideais do bem e do mal. Cabe aqui apenas re-
cordar que existe literatura imensa, na qual se expõem estes modos de
pensar. O que para nós, realmente, importa, é o seguinte:

a) Figuras singulares, individuais.


Para começar, a base- de toda caracterologia está na contemplação ví-
vida de figuras que- se marcaram de modo inesquecível e que a fantasia
tem presentes. É indispensável pensar nas figuras dos poetas, nas figuras
históricas cuja biografia é acessível, nos homens vivos que temos, encon-
trado. A riqueza de semelhante visão interior, que se forma, antes de qual-
quer conceitualidade, podendo, no entanto, ser extremamente densa, é re-
quisito do pensamento caracterológico. Todo psicopatologista tem de alar-
gar constantemente essa visão e aprofundá-la.
O conhecimento, em sentido científico, inicia-se com a tendência à
conceituação e à classificação sistemática, além do confronto metódico de
representação e experiência. São de vários tipos as classificações: esboço
de tipos ideais, sistematização da construção global do caráter, de modo
geral, estabelecimento de tipos reais.

b) Tipos ideais.
Quando classificam tipos ideais, os tipologistas esboçam as possibili-
dades caracterológicas numa quantidade de polaridades, autoafirmação e
renúncia, alegria e tristeza, extroversão e introversão etc. Em todas as ti-
pologias caracterológicas, é o esquema do contraste ou polaridade que se
contempla sem exceção.
É necessário dispor da maneira mais rigorosa possível os pares-, de
contrastes, determiná-los e conhecê-los em seu significado, não- confundi-
los com a realidade humana; e sobretudo: não fundir todos os pares de
contrastes numa grande polaridade. Caracterologia ideal seria aquela que,
antes da análise empírica ilimitada, procedesse à sistematização ordenada
de todos os contrastes possíveis nitidamente fixados, tal qual, por exem-
plo, faria uma matemática da compreensibilidade.
O simples esquema polar requinta-se, quando as “qualidades’*" com-
preensíveis se alargam, pluridimensionalmente, a partir de uma polari-
dade. Por exemplo, pensam-se polaridades ou contrastes, cujos, lados,
ambos, se valoram por forma positiva: econômico e liberal; aos dois polos
correspondem variações ou desvios: avaro e perdulário. Ou entre polos ex-
tremos, pensa-se o moderado, verdadeiro e vital, como termo médio; este,
por sua vez, pensa-se ou antidialeticamente como quantitativo unívoco,
que evita os extremos; ou dialeticamente, como unidade abrangedora, em
si tensa, que-, encerra os extremos sob o aspecto de possibilidades cons-
tantes da. variação ou desvio.
Tanto numa como noutra construção de tipos ideais, verifica-se que
não se pode, absolutamente, descrever o tipo total momentaneamente sin-
tético, ao passo que os tipos polares unilaterais se apresentam unívocos e
claros; univocidade que, no entanto, se logrou aceitando o fato de o tipo
unilateral ser também sempre um tipo- falho; e de o caráter preciso, unila-
teral, concluído ser um caráter que se valorará negativamente; por assim
dizer, encalhado. O que se apreende como característico vem a constituir,
em si, falha do existir humano.

c) Construção do caráter de modo geral.


Foi Klages quem procurou ordenar da melhor forma, em geral, a cons-
trução do caráter. Sua caracterologia supera, por forma absoluta, as ten-
tativas até o momento empreendidas. Distingue ele os caracteres formais
da personalidade, que chama estrutura do caráter, das. qualidades da
personalidade, seus impulsos, aspirações, interesses.
Na estrutura da personalidade, distinguir-se-ão ainda três categorias:
1) O andamento da excitabilidade emocional, ou seja, a duração das
ondas emocionais, a energia da reatividade. São as diversidades do “tem-
peramento”, que oscilam do fleumático ao sanguíneo.
2) O humor vital predominante, que oscila do melancólico ao eufórico,
do díscolo ao êucolo.
3) As qualidades formais dos processos volitivos oscilam da forte acen-
tuação volitiva à fraqueza da vontade. A acentuação volitiva apresenta-se
ativa na energia, na iniciativa, na espontaneidade atuativa; passiva, na
obstinação, na tenacidade, na resistência, na modalidade reativa que se
configura em capricho e teimosia.
A estas três formas estruturais Klages opõe, por conseguinte, a quali-
dade do caráter", digamos que seja a substância ou conteúdo- essencial.
Chama-a sistema das molas-mestras ou estímulos (o caráter, em sentido
mais estrito, opondo-se ao temperamento, ao- humor vital e à disposição
volitiva formal). É isto a personalidade propriamente dita, na qual existe
um contraste: aos impulsos opõe-se uma vontade; às gratificações que se
buscam, sem saber, nos rumos impulsivos opõem-se os objetivos e finali-
dades conscientes; às qualidades meramente sentidas do mundo, opõem-
se os valores conscientemente reconhecidos e julgados. De um lado, está o
conteúdo da personalidade; por assim dizer, o material de que ela é for-
mada; doutro lado, a vontade, que pode conformá-lo, inibi-lo, oprimi-lo ou
animá-lo e estimulá-lo; mas que nada lhe pode acrescer. Há sempre, na
vontade, pela forma com que se vivencia, alguma coisa que é domínio, au-
toconservação, consciência, atividade; enquanto em todos os impulsos, há
alguma coisa que é simples abandono, desistência, inconsciência, passivi-
dade. Do lado da vontade e da autoconservação, acha-se todo entendi-
mento (objetividade, gosto, sentimento do dever, senso moral) e todo ego-
ísmo (avidez, ambição, prudência, astúcia). Do lado, da vida impulsiva e
da desistência, estão todo entusiasmo (ânsia de conhecimento, amor da
verdade, sede de beleza, amor) e toda paixão (cobiça, necessidade de po-
der, instinto sexual, desejo de vingança).1
Os tipos caracterológicos ideais, que Klages delineou magníficamente,
estão fora desta construção, são mais evidentes e verídicos do que esta
construção mesma, a qual constitui recurso classificatório racional, A raiz
da multiplicidade dos tipos ideais está nos pontos de partida pelos quais
se compreende o homem no todo. É da constituição básica de humor e
sensibilidade que Klages parte; do ritmo e das tensões internas da vida
psíquica, da constituição volitiva, das molas-mestras ou estímulos e da
respectiva hierarquização eventual.
A tudo isso opõem-se, ponto de partida derradeiro, a maneira e o efeito
com que o homem se faz consciente de si mesmo na reflexão. Aos desen-
volvimentos caracteriais que se desdobram, passivamente, de disposições
dadas opõe-se o desenvolvimento caracterial reflexivo pelo trabalho em si
mesmo e pela ação interna.
Dá-se, porém, que todos os rumos descritos da análise caracterológica

1 O que aqui relatamos não reproduz a posição exata de Klages, cuja metafísica, segundo a qual a vontade (o espí-
rito) aparece de fora na vida com caráter de poder destruidor, vê um demônio absoluto surgindo na existência
plena, auto-suficiente. “Caracteres” só há nas épocas de transição, quando a vida ainda não está inteiramente
destruída, embora se achc cm processo destrutivo. Esta posição klagesiana, que constitui matéria de fé, não é de
discutir-se.
esbarram no limite em que o indivíduo, internamente superior a si
mesmo, pode ser ele mesmo, propriamente; indivíduo este que, transfor-
mando-se em material de si mesmo, sem decair à condição de material
meramente dado e sem sujeitar-se aos efeitos devastadores da reflexão, se
furta a qualquer caracterologia psicologicamente descritiva.
Daí o erro do pensamento caracterológico, quando conduz à acomoda-
ção dos indivíduos em tipos puros. Em primeiro lugar, o homem não se
esgota com tipo algum, este podendo, sim, servir para conceber, nítido,
um lado ou aspecto de sua manifestação. Em segundo lugar, cada es-
quema tipológico é, no todo, esquema relativo, possível entre muitos ou-
tros. Por fim, o caráter está sempre na situação de suas possibilidades ab-
solutamente inacessíveis a qualquer conhecimento; está sempre em de-
senvolvimento, inconcluso. Científica e humanamente, é impossível limitar
com um traço um homem, fazer um balanço e saber o que ele é. Determi-
nar um psicopata pelo “diagnóstico” de um tipo é violência, é sempre er-
rado. Humanamente, contudo, a classificação e determinação da essência
de um indivíduo significa liquidação que vem a ser, à consideração mais
apurada, insultante; e que rompe a comunicação. É o que jamais se há de
esquecer, sempre que se queira esclarecer, conceitualmente, a apreensão
caracterológica do homem.

d) Tipos reais.
Os tipos originam-se da restrição imposta pela realidade. Utilizam as
construções ideais das compreensibilidades, não tardando, contudo, a
abandoná-las, assim que a visão empírica impõe a unidade desnorteadora
do compreensível e incompreensível. A falha de todos os tipos reais até
hoje estabelecidos reside na questionabilidade de seu fundamento real,
porque eles representam compromisso entre construções compreensivas e
desenvolvimentos teóricos com base em observações biológicas isoladas.
Bastam como “quadros clínicos” concretos, nuns poucos casos clássicos,
mas falta-lhes a generalidade, porque a massa casuística que proporcio-
nam é absolutamente insuficiente e erradamente constituída. Se se pensar
de que maneira partem da realidade dada, ver-se-á que não se ordenam
por forma sistemática, apenas podendo-se enumerar. Daí haver Kretsch-
mer projetado três tipos caracteriais, cada um dos quais se move em pola-
ridades específicas, de excitável a embotado (esquizotímico), de alegre a
grave (ciclotímico), de explosivo a fleumático (viscoso). Falta aí o supracon-
ceito, no qual se enquadrariam as três polaridades, porque o ponto de par-
tida concreto na observação compreensiva mais não permite do que uma
enumeração. A significação verdadeira é que estes tipos reais se baseiam
em realidade biológica que talvez um dia se venha a compreender (cf. o ca-
pítulo sobre a constituição). De mais a mais, esta realidade é, por via de
consequência, absolutamente diversa da manifestação que pode deparar-
se, afinal, sem a realidade presumida. Assim é que, referindo-se a psicopa-
tas esquizoides, Luxenburger diz que Kretschmer só fala neles quando de-
termina a consanguinidade de um psicopata desta ordem com um esqui-
zofrênico. Mas há também psicopatas esquizoides nos quais não é possível
reconhecer esta posição biológica hereditária. “Só se podem considerar os
tipos de Kretschmer genotipicamente afins com estas doenças hereditárias
caso se observem na proximidade biológica de esquizofrênicos, maníaco-
depressivos ou epilépticos por herança.”

§ 4. Personalidades Normais E Anormais

Se se perguntar quando e por que certos caracteres são anormais, res-


posta alguma inequívoca será possível. Temos de estar conscientes do fato
de que “anormalidade”, falando geralmente, não é categoria que se afirme
na realidade, mas valoração. Origina-se da coisa uma valoração, quando
se apreende o caráter como o todo das conexões compreensíveis. Diversifi-
cam-se os caracteres conforme a medida da unidade, ou de acordo com a
dispersão desconexa do compreensível num indivíduo: quanto mais dis-
perso, menos unitário, tanto mais anormal. Ou nota-se na unidade al-
guma coisa em que se veem o equilíbrio e a harmonia do compreensível,
que constitui um todo: quanto mais desarmónico e desequilibrado, tanto
mais anormal (désêquilibré}. Ou ainda considera-se a polaridade e sua
síntese na vida compreensível: quanto- mais unilateral a expressão, tanto
mais anormal. Tudo isto, no entanto, são pontos de vista muito gerais, de
modo que a norma em homem singular algum se pode realizar.
Os princípios referidos nos parágrafos acima mais não constituem do
que meios auxiliares, não a origem da apreensão e representação de per-
sonalidades que se destaquem. Na psicopatologia, têm-se conseguido re-
sultados valiosos graças a formulações de pesquisadores intuitivos, que’
lograram descrever caracteres possíveis de reconhecer por forma impressi-
onante e inesquecível. Tais formulações — inúmeras conforme a respec-
tiva possibilidade — correspondem a tipos reais, delineados com a ajuda
de tipos ideais vários. Serão, apenas, numerados, agrupados, apresenta-
dos seletivamente. O mais cabe à psiquiatria especial. Daremos só indica-
ções.
Distinguimos duas espécies de tipos reais.
1) As personalidades anormais, que representam disposição variando
da média, as variações extremas da natureza humana.
2) As personalidades propriamente mórbidas, as quais resultam da al-
teração de disposição anterior, consequentemente a processo superveni-
ente.

I. Variações Do Existir Humano.

As variações que as afastam da média da natureza humana não se


chamam, como tais, mórbidas. Nem costumamos, de modo algum, ter
como particularmente anormais as variações que mais raras se apresen-
tam. Praticamente, de preferência, investigamos aquelas que vêm ter ao-.
consultório médico e aos hospitais. Neste sentido, chamamos, “personali-
dades psicopáticas” os indivíduos “que sofrem com sua. anormalidade, ou
cuja anormalidade faz a sociedade sofrer”. (Kurt Schneider).
Uma classificação que se oriente pelos conceitos determinantes básicos
da caracterização permite formar os seguintes grupos:
1) Variações das constituições caracterológicas básicas, as quais se
distinguiram na “construção” do caráter (Klages).
2) Variações de um fundamento presumidamente biológico, que tem
sido chamado força psíquica.
3. Variações resultantes da dialética fundamental de todos os elemen-
tos compreensíveis da autorreflexão (caracteres reflexivos).

a) Variações das constituições caracterológicas básicas.


1. Constituições básicas dos temperamentos. O anormalmente excitado
(sanguíneo) reage a todas as influências com rapidez e vivacidade, num
instante virando fogo e chama; mas sua excitação extingue-se com a
mesma presteza. A vida que leva é inquieta, decorrendo por gosto em ex-
tremos. Há também o quadro da alma jovial, exuberante; e da alma irri-
tada, atormentada, pressurosa, inclinada a todos os extremos, aflita. O
quadro contrário é o do fleumático, que coisa alguma arranca de sua tran-
quilidade passiva, que não reage; se reage, é só lentamente e, de mais a
mais, com pós-efeitos prolongados.
O indivíduo anormalmente alegre (eufórico') é exuberantemente feliz
com tudo quanto lhe acontece; venturoso, sempre contente e 'confiante. O
humor feliz acarreta certa excitação, também motora. O depressivo vê
tudo sombrio, está sempre triste; em toda parte descobre possibilidade de
desgraça, mantém-se quieto e imóvel.
2. Constituições volitivas. Independente de impulsos e conteúdos, varia
a natureza volitiva humana. Os fracos de vontade custam a levar adiante
um esforço volitivo, desistindo de tudo. — Os abúlicos ou instáveis são eco
das influências que sobre eles se exercem. Porque não sabem resistir, vão
para onde os levam as oportunidades e as outras pessoas, quer para o
bem, quer para o mal. Embora capazes de grande energia momentânea,
não se fixam em coisa alguma, a não ser que o ambiente os obrigue; sem o
que, seguem sempre impulsos novos, provenientes do mundo que os mo-
difica. Transformam-se naquilo que os cerca. — Os fortes de vontade (vo-
luntariosos) põem em tudo quanto fazem não só forças extraordinárias,
mas também persistência, desenvolvendo atividade que elimina tudo que
encontram, caminhando adiante sem piedade. Parecem não poder esten-
der a mão a quem quer que seja sem esmagar a do outro; não podem pre-
tender objetivo algum sem realizá-lo, mesmo que o mundo venha abaixo.
3. Constituições afetivas e impulsivas. A essência própria do homem
determina-se da maneira mais decisiva pelo conteúdo de seus impulsos ou
pela falta, nestes, de conteúdos. As variações anormais que se constatam
na qualidade do caráter propriamente dito, do sistema de impulsos e dis-
posições afetivas, são mais profundas para a essência da personalidade do
que quaisquer variações de estrutura, temperamento, vontade. Neste
ponto, abre-se mais definitivamente do que alhures um abismo entre as
várias disposições individuais. Em meio a estas variações marcadas dos
caracteres, tem-se investigado, sobretudo, com maior frequência, a moral
insanity (os “psicopatas desalmados” de Kurt Schneider), designação com
que se assinalam personalidades que representam os graus extremos e ra-
ros do “criminoso nato”. Impulsos destrutivos, com absoluta insensibili-
dade para o direito, para o. amor filial, para a amizade; mais: crueldade
natural, que pode coexistir com inclinações- afetivas aparentemente sin-
gulares (por exemplo, gosto pelas flores); ausência de qualquer sociabili-
dade, qualquer gosto pelo trabalho, indiferença para com os outros e em
relação ao futuro próprio; prazer no crime como tal; tudo isso aliado a
energia e confiança em si inabaláveis, além de completa ineducabilidade e
ininfluenciabilidade, fazem esses entes afigurarem-se estranhos e distan-
tes da modalidade média.
Outro tipo é o dos fanáticos, os quais, cegos a tudo mais, de tal modo
se entregam a uma finalidade única que, inconscientemente, investem a
existência inteira na realização de alguma coisa; uma superstição, um
exagero insulativo de certo objetivo particular, constituindo interesse espe-
cial de uma vida, que os impele e que os leva a sentir prazer e tormento
específico nessa integração com uma só coisa individual. Kurt Schneider
distingue os fanáticos combativos, quais sejam, os querulantes, que im-
põem seu direito, ou seu presumido direito, e os fanáticos lânguidos, que,
quando muito, reclamam e professam um credo. São os sectários natos,
os excêntricos, todos aqueles que sustentam concepções estranhas, pelas
quais vivem, intensamente convictos, desprezando todos os demais.

b) Variações da energia psíquica (neurasténicos e psicastênicos).


Fala-se em complexos sintomáticos neurasténicos e psicastênicos, os
quais se podem descrever da seguinte maneira:
1. O complexo sintomático neurastênico define-se pela “fraqueza excitá-
vel”: de um lado, sensibilidade e excitabilidade, extraordinárias; sensibili-
dade tormentosa, tendência a responder com facilidade anormal a estímu-
los de toda sorte; doutro lado, fatigabilidade anormalmente rápida e recu-
perabilidade lenta. O cansaço é sentido, subjetivamente, com muita inten-
sidade: inúmeras incomodidades e dores, sensação de peso na cabeça,
tendência geral a sentir- se molestado, abatimento, sensação intensa de
cansaço e fraqueza — não tardam a transformar-se em sintomas perma-
nentes. Incluem- se nesse complexo sintomático todos os fenômenos que
se conhecem como resultantes do cansaço, da exaustão, do trabalho ex-
cessivo, do surmenage, mas também só deles, quando já se apresentam
por força de estímulos ou esforços mínimos, ou então acompanhando per-
manentemente a vida como tal.
2. O complexo sintomático psicastênico delimita-se menos nitidamente,
resumindo-se os fenômenos que nele se incluem à noção teórica de “dimi-
nuição da energia psíquica”; diminuição que se apresenta na incapacidade
psíquica geral de resistir às vivências. O indivíduo prefere esquivar-se ao
máximo à sociedade, a fim de não ficar entregue às situações em que seus
“complexos”, ora atuando de forma intensamente anormal, lhe tiram a
presença de espírito, a memória, a firmeza. Perdida toda a confiança em
si, pensamentos Obsessivos acorrentam-no ou perseguem-no, turvando-
lhe a consciência; temores infundados atormentam-no, dificultando-lhe
decisões, criando-lhe dúvidas, fobias, que, em certas circunstâncias, im-
possibilitam qualquer atitude. São inúmeros os estados psíquicos e afeti-
vos anormais que se estudam e analisam com auto-observação compul-
siva. A inclinação que, necessariamente, ocorre à inércia, ao sonho, agra-
vam ainda mais os sintomas. Vez por outra, sentimentos inebriantes de
ventura, pela impressão que causam, imotivadamente, certas personalida-
des divinizadas em excesso, ou pela impressão inócua, digamos, de uma
paisagem que, de um momento para outro, se apresenta magnífica, pa-
gam-se quase sempre com “recaída” torturante dos sintomas mórbidos.
Falta’ completamente à psique a capacidade de unificação existencial, de
elaboração que resolva as vivências, no sentido de construção de uma per-
sonalidade, no sentido do desenvolvimento seguramente progressivo.
Estes complexos sintomáticos aparecem, raras vezes, com o aspecto de
estados passageiros autênticos de esgotamento, ou representam fenôme-
nos concomitantes de processos mórbidos ’ (os casos psicastênicos de Ja-
net são, em parte, esquizofrenias evidentes); mas relacionam-se tanto com
conteúdos compreensíveis, biográficos, que são mais variações caracteriais
do que complexos sintomáticos; variações que se deparam no quadro da
diminuição da energia psíquica e se associam, muitas vezes, de fato, se
bem que não unicamente, a sinais de fraqueza de tipo somático e fisioló-
gico. .
Pode-se dizer, portanto: Todas as variedades de caráter e tempera-
mento podem aparecer sob a forma de psicastenia, assim designando-se
quando um elemento de fraqueza, astenia, diminuição da eficiência se co-
loca no primeiro plano. São fracos os impulsos, lânguidos; sem vivacidade
os sentimentos, a vontade inerme, a eficiência mínima em quaisquer dire-
ções. Melhor não se pode assinalar este tipo do que falando, metaforica-
mente, em falta de energia psíquica. Dentro dos diversos rumos que to-
mam as variações congênitas, não há dúvida de que também existe al-
guma coisa semelhante.
Tem sido costume conceber como sintomas de natureza psicopática
uma série de fenômenos notáveis, que ocorrem muito frequentemente em
graus reduzidos e que também, de quando em quando, se apresentam
como sintomas de fases e de algumas outras doenças; sintomas que, se
ocorrem acumulados e torturantes, sem relação com evento mórbido de
outra forma compreensível, vêm a configurar um quadro a dominar a vida
inteira. É o caso das manifestações obsessivas, cujos portadores se cha-
mam anancastas (segundo Kurt Schneider, com base na insegurança de si
mesmo); o mesmo se dá no tocante à depressão, ao estranhamento do
mundo perceptivo etc., cujos portadores são chamados psicastênicos.
c) Caráteres reflexivos.
Distinguindo-se dos caracteres até o momento descritos, os quais se
compreendem em função da constituição que lhes é dada, chamamos ca-
racteres reflexivos as configurações que tenham resultado da consciência
de si mesmo, da atenção à existência própria, do propósito de um ser-as-
sim. Neles se enquadram:
1. Histéricos. Várias coisas se chamam histéricas em psiquiatria: sinto-
mas somáticos (estigmas histéricos), estados passageiros, anormais sob o
ponto de vista psíquico, com alterações da consciência (accidents men-
taux); mais: o caráter histérico. Não é adequada a designação geral, tanto
mais quanto se resumem, na linguagem corrente, como caráter histérico
coisas heterogêneas. Diz Janet com razão: “A histeria pode acometer pes-
soas boas e más; e não se podem levar à conta da doença traços pessoais
que, sem ela, se comportariam exatamente da mesma forma”. O caráter
histérico é, decerto, frequente, mas nem sempre se vincula ' aos mecanis-
mos histéricos; como também, no entanto, são muito variados os tipos ca-
racteriais que chamamos histéricos. Se se quiser conceber o tipo, de al-
gum modo, com mais precisão, há de sempre chegar-se a um traço básico:
em vez de ajustar-se às disposições e possibilidades vitais que lhe são da-
das, a personalidade histérica tem necessidade de parecer a si mesma e
aos outros mais do que é; de parecer vivenciar mais do que é capaz. Não é
a vivência originária, autêntica, exprimindo-se naturalmente, que aparece;
e sim uma vivência “feita”, ou fabricada, teatral, forçada; “fabricada”, mas
não conscientemente, porque a personalidade é capaz, sim (dom propria-
mente histérico), de viver no seu teatro próprio, de nele encontrar-se por
completo, momentaneamente; com a aparência, portanto, de autentici-
dade. Daí compreende-se que derivem outros traços. Enfim, pode-se dizer
que o caroço da personalidade histérica se perdeu, só ficando a casca que
muda, um drama sucedendo-se ao outro. Já nada mais encontrando em
si, ela procura tudo fora de si, querendo vivenciar alguma coisa de extra-
ordinário nos impulsos naturais, não se abandonando ao evento normal, e
sim buscando aproveitá-lo com fins a que não se ajusta ou nos quais se
perde o simples impulso. A si mesma e aos outros ela faz crer existir vivên-
cia intensa, mediante movimentos expressivos exagerados, a que falta a
base psíquica adequada. Atrai-a tudo quanto significa estímulo externo
potente: escândalo, sensação, celebridades, tudo que seja impressionante,
desmedido, extremo nas concepções filosóficas e artísticas. Para certificar-
se da importância que têm, as personalidades histéricas precisam estar
sempre representando um papel, sempre tentando fazer-se interessantes,
mesmo que seja a custo de sua reputação, ou de sua honra; sentem-se in-
felizes quando, por poucos instantes que seja, se veem despercebidas, alie-
nadas, porque se fazem, de imediato, conscientes de sua vacuidade. Daí
serem ciumentas e invejosas em excesso quando os demais parecem limi-
tar-lhes a posição ou a importância. Não o conseguindo de outra forma,
chamam sobre si a atenção por meio da doença, encenando o papel de
mártir, de sofredor. Pode, no entanto, acontecer que, em certas circuns-
tâncias, sejam impiedosas consigo mesmas, infligindo-se padecimentos
(ferimentos, lesões), mostrando “vontade da doença”, desde que se lhe afi-
gure sequer garantido um efeito correspondente sobre os outros. Na ânsia
de exaltar-se e encontrar novas possibilidades de influenciamento, chega-
se, afinal, à mentira, de início conscientemente manejada, mas não tar-
dando a desenvolver-se por forma de todo inconsciente, em que o próprio
enfermo acredita: é a “pseudologia fantástica”: autorrecriminações, incul-
pações lançadas a outras pessoas de atentados sexuais inventados, com-
parecimento. e comportamento em ambientes estranhos, como se fossem
pessoas importantes, ricas, nobres; com o que os doentes não enganam só
a si mesmos, mas os outros, perdendo a consciência da própria realidade,
pois a. fantasia para elas se transforma em realidade. Há, contudo, tam-
bém neste caso, diferenças. Num caso, existe ignorância completa da inve-
racidade: “Não sabia que estava mentindo”; noutro caso, há. ciência para-
lelen do que se faz: “Esta mentindo, mas não podia conter-me”. Quanto
mais se desenvolve a teatralidade, tanto mais, vai desaparecendo, nessas
pessoas, qualquer movimento afetivo autêntico, próprio; não se pode con-
fiar nelas; já não são capazes de relacionamento afetivo estável, de coisa
alguma realmente profunda. Mais não resta do que o palco de vivências
imitadas e- teatrais, o que constitui o quadro evoluído ao extremo da per-
sonalidade histérica.
A psicologia compreensiva de há muito que esclareceu a essência da
personalidade histérica. Shaftsbury já falava no “entusiasmo, por assim
dizer, de segunda mão”. Feuerbach descreve a “afetação de sensibilidade,
na qual a incapacidade de sentir apenas comicha o que interiormente se
sente de modo compulsivo, como se fosse de fato experimentado; e na qual
o indivíduo só careteia sensações tal qual fossem reais, tentando mentir a
si mesmo e aos outros; com o que, uma vez. isso se tornando costumeiro,
envenena para sempre a fonte da mais autêntica verdade, ou seja, o senti-
mento, até suas profundidades mais íntimas. O desfiguramento, a menti-
rosidade, a falsidade, a malícia e mais tudo quanto se lhes assemelha: eis
as sementes que vêm a germinar desnecessárias, porém muito fáceis,
numa alma que se acostumou a enganar os sentimentos próprios, por as-
sim dizer. Mais ainda: os sentimentos autênticos ficam sufocados sob os
simulados; daí explicar-se por que a afetação de sensibilidade facilmente
se acomoda com a mais- resoluta insensibilidade e rigidez emocional; e até
com a crueldade.
2. O hipocondríaco. Ê anormal o corpo humano representar um papel
para o homem. O indivíduo sadio vive seu corpo, sem. nele pensar, entre-
tanto; sem percebê-lo. A multidão de padecimentos somáticos resulta (em
parte dificilmente delimitável), não, de doenças somáticas palpáveis, mas
da reflexão que vem da psique. Se se tentar delimitar o que possa fundar-
se em corporeidade lábil. (astenia), ou o que são típicas manifestações so-
máticas concomitantes, restará um campo de sofrimentos somáticos que
se originam na auto-observação e na preocupação e que crescem na me-
dida em que o corpo do homem se toma para ele conteúdo vital. A auto-
observação, a expectativa, o temor acarretam desordem das funções cor-
póreas, fazem surgir dores, produzem insônia. O medo de ficar doente e o
desejo de ficar doente, tanto um quanto o outro transformam, pela refle-
xão sobre o corpo, a vida consciente em vida com um corpo doente.
Mesmo sem estar enfermo de corpo, o indivíduo não é simulador, mas se
sente, de fato, doente; o corpo se lhe altera, de fato, e como enfermo ele so-
fre. O doente imaginário é, por essência e de algum modo, realmente, um
enfermo.
3. O inseguro de si (Schneider, cuja descrição adoto), ou sensitivo
(Kretschmer). Uma sensibilidade sem cessar exaltada repousa na consci-
ência reflexiva da insuficiência própria. Toda vivência se transforma em
abalo, porque o inseguro não enfrenta a impressão aumentada com elabo-
ração e configuramento naturais. Não lhe basta o que faz, sempre lhe pa-
recendo questionável sua posição no meio dos entes humanos e seja qual
for a situação. A falha real ou existente em sua reflexão toma-se objeto da
autoacusação. O inseguro procura a culpa em si, nada perdoando a si
mesmo. A elaboração interna não constitui recalque, mas luta penosa con-
sigo mesmo. É uma vida de vexames e derrotas internas, resultante de vi-
vências externas e da interpretação que lhes é dada. O impulso desampa-
rado para a confirmação exterior, em busca de apoio para a autodesvalo-
ração corrosiva, vê até os limites do deliroide (sem jamais tomar-se delírio),
no comportamento alheio, ofensas mais ou menos deliberadas à pessoa
própria. O inseguro sofre desmedidamente do menosprezo exterior, para o
qual é em si mesmo ainda que procura o fundamento real. A insegurança
conduz a sobrecompensações errôneas da inferioridade que vivencia em si
mesmo. Formalismo obsessivamente mantido, gestos aristocráticos, atitu-
des exageradamente seguras constituem a máscara da falta de liberdade
interna; e um comportamento exigente dissimula a timidez real.

Ii. Transformação Da Personalidade Em Consequência


De Processos.

Opõem-se a todos os tipos anormais acima discutidos como variações


da disposição aquelas personalidades mórbidas que mórbidas se tornaram
por força de um processo. O fato de quase todas as doenças mentais se-
rem acompanhadas de alteração para nós notável da personalidade levou
a que se cunhasse a frase: As doenças mentais são doenças da personali-
dade. No entanto, é possível vermos doenças mentais com falsas-percep-
ções ou até ideias delirantes que não apresentam, no estádio particular,
qualquer alteração notável da personalidade. Mais ainda: em certas psico-
ses agudas, nas quais se nota fragmentação completa da vida psíquica em
atos particulares desconexos, já não se pode, de modo algum, falar em
personalidade; nelas, entretanto, em meio à perplexidade, às perguntas e
juízos ocasionais, de súbito se percebe o rastro de uma personalidade, na-
tural, inalterada, capaz de empatia; personalidade que só se vela durante
certo tempo.
É comum a todas as personalidades que resultam de um processo a li-
mitação ou desintegração da personalidade. Quando falarmos, nesses ca-
sos, em demência, referir-nos-emos a distúrbios da inteligência, da memó-
ria etc., bem como à alteração da personalidade.

a) Demência por processo orgânico cerebral.


Às vezes, certos traços caracteriais parecem resultar desses processos.
É assim que se têm concebido, por exemplo, a chistosidade n’alguns tu-
mores cerebrais, o mauhumor dos alcoolistas, a maneira religioso-exal-
tada, fingida, ou os modos pedantescamente apurados dos epilépticos, a
euforia da escleroso múltipla.
Em parte, podem-se conceituar esses traços pela mesma concepção
que se aplica a certas outras alterações: por força de processos, desapare-
cem as inibições adquiridas e tudo quanto é impulsivo se transforma, de
imediato, em ação; já não há contra-idéias, nem contra-tendências. As re-
presentações estimuladas manifestam-se desinibidas, de modo que um
paralítico, por exemplo, tanto é levado a chorar, mediante representações
adequadas, quanto, em seguida, a rir (“incontinência dos afetos”).
Mais ampla do que todas as demais é a desintegração que ocorre nos
conhecidos processos orgânicos cerebrais, como a paralisia (tal qual na ar-
teriosclerose mais grave, na coreia de Huntington e noutras desordens or-
gânicas cerebrais).

b) Demência epilética.
Os epilépticos progressivos apresentam alterações caracteriais típicas:
a lentificação de todos os processos psíquicos (chegando aos reflexos neu-
rológicos) mostra-se na dificuldade de apreensão, no alongamento consi-
derável dos tempos de reação; ao que se acrescem tendências à obstina-
ção, à fixidez afetiva, às estereotipias. Acompanha a perda da espontanei-
dade e da atividade um desassossego elementar, que se manifesta por
forma impulsiva, desorientada. A supersensibilidade egocêntrica e a ne-
cessidade de prestígio levam, aumentando a excitabilidade, a reações ex-
plosivas; daí verem-se reações motoras brutais em doentes que, geral-
mente, se mostram quietos. Descrevem-se a importunidade excessiva, a
chamada “pegajosidade”, isto é, modos adocicados, untuosos. O quadro é
completado pela tensão nervosa e pela vacuidade afetiva. A sujeição em
que os doentes se apresentam, constrangidos, estritos, rígidos, acabando
por se tomar pedantescos e cerimoniosos, pode dar impressão de escrupu-
losidade, apego à tradição, solidez.

c) Demência esquizofrênica.
Lugar especial cabe às personalidades que resultam de processos e
que pertencem ao grande grupo da esquizofrenia; grupo em que se enqua-
dra a maioria dos doentes permanentemente internados. A diversidade
muito grande com que elas se apresentam vai de alterações ligeiras para o
lado- da limitação da compreensibilidade até a quase completa desintegra-
ção. Em que consiste o comum a todas é difícil reconhecer. A antiga psi-
quiatria já procurava caracterizar a “demência afetiva”; atualmente, acen-
tua-se, além disso, a falha de unitariedade no pensamento, no sentimento
e na vontade, a luta entre os movimentos afetivos e o conteúdo ideativo
momentâneo, a incapacidade conceber a realidade como realidade e de
dar-lhe significação válida (pensamento autístico de Bleuler: pensamento
voltado para si e para as fantasias, sem consideração da realidade). Con-
servam-se, entretanto, os instrumentos da inteligência; o que há de co-
mum é muito mais fácil de designar objetiva que subjetivamente (quanto
ao efeito sobre o observador). Todas estas personalidades têm alguma
coisa de peculiarmente incompreensível, frio, inacessível, rígido, pétreo,
mesmo que se mostrem lúcidas e capazes de conversar, gostando até de
exprimir-se. Talvez julguemos poder compreender disposições pessoais
maximamente distantes de nós, mas em relação aos doentes a que nos re-
ferimos se sente um abismo difícil de definir. Eles, no entanto, nada veem
de incompreensível naquilo que se nos afigura enigmático: assim é que fo-
gem de casa e dão razões insignificantes, conscientes de que bastam. Não
tiram das situações e dos fatos conclusões óbvias; desprovidos inteira-
mente de capacidade adaptativa, são enigmaticamente angulosos e indife-
rentes. Serve-lhes de tipo a personalidade hebefrênica, que já se caracteri-
zou como hipertrofia e persistência dos traços estouvados e juvenis da pu-
berdade. Se investigarmos de mais perto a índole destas pessoas, destaca-
remos grande número de tipos que não cabe aqui distinguir. A alteração
mais leve da personalidade consiste, a bem dizer, no resfriamento e enrije-
cimento. Os pacientes ficam com a mobilidade diminuída, tornam-se está-
ticos, quase sem iniciativa.
De que modo os esquizofrênicos concebem a alteração da própria per-
sonalidade. Alguns doentes em grau ligeiro falam, eles mesmos, da altera-
ção que os acometeu: “excitam-se menos”; “já não se interessam pelas coi-
sas como antes; falam, porém, muito mais”; notam que, se começam a fa-
lar, já não podem parar, sem isso, no entanto, perturbá-los. Observam
que, de vez em quando, ficam olhando para um canto, sem motivo, e que
estão menos produtivos. Há alguns capazes, apenas, de dizer que “lhes
aconteceu profunda alteração”. Sentem a “diminuição da elasticidade”,
sentem-se menos excitáveis do que antes. O esquizofrênico Hölderlin ex-
primiu estes conhecimentos com palavras simples e tocantes:
Onde estás?
Pouco vivi, mas frio
Já vejo meu crepúsculo.
Quieto, tal qual
As sombras aqui estou; e silencioso
Dentro do peito dormita o trêmulo coração.
Ulteriormente, mais adiantado o seu estado:
O que há de bom no mundo já gozei;
Foram-se mocidade, alegria, de há muito, muito;
Longe estão abril, maio, julho;
Nada mais sou, sem prazer é que vivo.
PARTE 3.
AS CONEXÕES CAUSAIS DA VIDA PSÍQUICA
(PSICOLOGIA EXPLICATIVA)

Compreendemos as conexões psíquicas de dentro como significado; ex-


plicamo-las de fora como simultaneidade e sucessão regulares ou até ne-
cessárias.

a) A simples relação causal e sua dificuldade.


— No pensamento causal, sempre ligamos dois elementos, um dos
quais se considera causa e o outro, efeito. Se quisermos firmar indagações
causais nítidas, estes elementos precisam, antes de mais nada, clarificar-
se, não confundir-se. O álcool e o deliriam tremens, a estação do ano e o
aumento ou diminuição dos suicídios, o cansaço e a redução do rendi-
mento, de par com fenómenos sensoriais espontâneos; as doenças da tire-
oide e a excitabilidade, a ansiedade, a inquietação; a hemorragia cerebral e
os distúrbios da fala etc. são, em cada caso, dois fatos tangíveis, dos quais
um se chama causa e o outro, efeito. A formação conceituai conjunta
serve para formular tais elementos do pensamento causal. Até um objeto
tão infinitamente complicado quanto é o todo da vida psíquica compreen-
sível, por nós denominado personalidade, pode vir a tomar-se, em certas
circunstâncias, elemento do pensamento causal; quando, por exemplo, se
indaga sobre a herança de tipos de personalidade precisamente definidos.
Esta relação unilinear entre causa e efeito é, no entanto, absoluta-
mente obscura, entre uma e outra, havendo elos que o evento não permite
calcular. Não é sempre que o efeito se segue, mas apenas com frequência
mais ou menos regular (o mínimo para que se afirme uma relação causal);
do que, não tardamos a notar as consequências para nossa apreensão
causal:
1. O mesmo fenômeno tem muitas causas, quer simultânea, quer alter-
nativamente. Mas sempre que se enumeram muitas causas possíveis para
um processo mórbido, sem sequer conhecer, realmente, os efeitos de uma
só dentre elas, quase sempre se tem aí sinal de que se ignoram as causas
verdadeiras; por exemplo, quando se enumeram quase todas as doenças
somáticas — constipação, envenenamento, esgotamento etc. — como cau-
sas de amência. Não se constata, simplesmente, que o quadro da amência
também ocorre sem qualquer destas causas, mas também que conheci-
mento algum seguro se tem dos efeitos psíquicos habituais destas causas
somáticas. Quanto mais causas se afirmam, tanto menor nos é o conheci-
mento causai.
2. Investigamos as causas intermediárias, a fim de chegar da causa pri-
meiro notada, externa, remota, à causa próxima e direta do fenômeno. As-
sim é que se vê o efeito absolutamente diverso do alcoolismo crônico, que
se apresenta como simples demência alcoólica, como delirium tremens,
como alucinose alcoólica, ou como psicose de Korsakov. Admite-se que -
ocorram, aqui, entre o efeito imediato do álcool e o quadro mórbido resul-
tante do uso constante elos de várias ordens (por exemplo, um produto
metabólico tóxico), que, a seguir, conforme sua natureza particular, deva
acarretar um dos quadros mórbidos determinados. Distingue-se, então, o
álcool (como causa remota), desse tóxico hipotético como causa direta. É
natural que as causas diretas suscitem fenômenos consecutivos muito
mais uniformes e regulares do que as mais remotas. Em parte alguma, to-
davia, conhecemos qualquer causa direta real.
3. O conceito de “causa” é multitívoco. Abrange a mera condição de cir-
cunstâncias permanentes, o fator desencadeante e a força que atua decisi-
vamente. A condição é, por exemplo, uma tensão vital que produz esgota-
mento permanente, constante; o fator desencadeante, um abalo afetivo in-
tenso; a força decisiva, uma disposição hereditária, para que psicoses
deste tipo se apresentem. O significado de causa sempre varia, evidente-
mente. Ò fato de não o discriminarmos e, além disto, contentarmo-nos
com meras possibilidades é a razão pela qual, muitas vezes, se substitui ã
discussão em torno de causa ao conhecimento causal autêntico. Acresce a
circunstância de que não se logra conhecimento algum mediante a con-
clusão não comprovada que leva do post hoc ao propter hoc. Dá-se, ainda
mais, que falamos em causa não só quando certo efeito tem de ocorrer
certa e inevitavelmente, mas também quando um efeito dela pode decor-
rer; e falamos em condição não só quando existe conditio sine qua non,
mas também quando se trata de circunstâncias que possivelmente apenas
contribuem. E o que mais acontece é, em doenças mentais, considerar
causa o que já é sintoma da existência respectiva (erro já notado por
Kant); isso, sobretudo, quando se tomam abalos afetivos de intensidade
máxima, impulsos, “pecados” etc. como causa da irrupção de enfermida-
des.
Para o fim de superar tais dificuldades, é necessário, de início, um
pensamento discriminativo, preciso, que esclareça o conhecimento de cau-
sas reais, mas não evidentes em absoluto. Não se as discutem como possi-
bilidades, e sim se mostram mediante achados — casuística comparativa,
cifras de frequências; com o que, tanto se determinam ou se refutam cau-
sas correntemente conhecidas e aceitas quanto se iluminam outras ocul-
tas, em que ninguém jamais pensou. Embora se hajam clarificado, por
esta via, algumas coisas, a superação das dificuldades infinitamente acu-
muladas do conhecimento causai assim adquirido impõe, no entanto, uma
estrutura absolutamente diversa para as relações causais; ou seja, estru-
tura biológica em vez de apenas mecânica.

b) Mecanismo e organismo.
A causalidade unilinear é, decerto, categoria inevitável de nosso con-
ceituamento causal; pelo que, entretanto, não se há de considerar a vida
esgotável. O evento vivo constitui ação recíproca infinita, que decorre em
círculos do processo, círculos que, morfológica, fisiológica, geneticamente,
são sempre totalidades ou configurações. A vida serve-se — é claro — des-
ses mecanismos (e nosso conhecimento causai daquilo que vive tem de
apreendê-los), os quais, porém, são, eles próprios, produzidos pela vida,
por ela condicionados, modificáveis. Em contraposição ao automatismo de
uma máquina, a vida apresenta-se como sendo autorregulação constante
da maquinária produzida, de tal modo, contudo, que só vamos localizar,'
afinal, o centro derradeiro da regulação na infinidade da vida como ideia; e
em parte alguma o encontramos senão sob forma de ideia. Por isto é que
as influências externas que se exercem sobre o organismo incidem, sim,
parcialmente, em mecanismos calculáveis; no todo, entretanto, não inci-
dem num mecanismo sempre igual, físico, e sim num organismo. vivo que
varia de indivíduo para indivíduo e no tempo. Daí compreender-se que as
mesmas causas externas produzam efeitos absolutamente diversos em in-
divíduos diferentes. A mesma “causa’* pode acarretar a irrupção de psico-
ses diversas; por exemplo, depressão ou esquizofrenia. Outro exemplo é o
efeito individualmente variável do álcool na multiplicidade das formas da
embriaguez.
Por conseguinte, havemos de percorrer duas vias inteiramente diver-
sas, se quisermos aprofundar-nos nas conexões causais. As relações cau-
sais sumárias serão decompostas, apreendidas com mais nitidez; o mais
fino será elaborado a partir do grosseiro; causas intermediárias interpolar-
se-ão. Em segundo lugar, porém, tudo isso só acontece de modo significa-
tivo na moldura da contemplação e da apreensão cada vez mais clara das
totalidades, onde as relações causais se realizam, onde têm sua condição e
limite. Do todo provêm as inquirições causais, cujas respostas se confor-
mam em causalidade mecanística.
Aquilo que significa dificuldade, na moldura das relações caudais, pelo
deslizamento no infinito e no contraditório, vem a ser, na moldura do pen-
samento biológico, manifestação natural das verdadeiras relações causais.
1. O fenômeno concreto que se passa, em dado momento, num todo
vivo jamais permite que se isole um fato simples, urna causa simples,
como se se tratasse de bolas de bilhar que chocam c são chocadas; como
evento complicado, apenas é que se há de, realmente, conceber reali-
zando-se numa quantidade de condições. Á imagem mecânica de relação
causal unilinear se substituirá a imagem de um tecido vivo infinito; de um
círculo de círculos. Toda causa única que se propõe como decisiva torna-
se questionável, sem mais tardar, a uma pesquisa mais exata, subsis-
tindo, quando muito, como conditio sine qua non, muito raramente, consi-
derando-se causa única, suficiente por si para dar lugar ao fenômeno.'
Daí a expressão: “Quanto mais causas, tanto menos conhecimento” só
valer para o conhecimento mecânico causai, quando se realiza em ponde-
rações de possibilidade. A história da origem de toda doença mental é, no
entanto, muito complexa. O conhecimento causal, a esta altura, faz-se,
objetivamente, múltiplo, encerrando, porém, a multiplicidade em círculos
correlatos, em configurações construcionais (conforme.se tentará investi-
gar na quarte parte).
No conhecimento causal que omite o todo e se volta para relações sim-
ples, unilineares, de causa-efeito, o que vale é o derradeiro, pelo qual, va-
lendo como causa, se ativa uma quantidade de condições já existentes, ca-
pazes de existir sem que nada aconteça. Essa causa só pode, contudo,
atuar porque existe aquela quantidade de requisitos reais. Por exemplo, a
bactéria específica produz a doença, mas só quando todas as condições in-
dividuais lhe vierem ao encontro, por assim dizer. Caso elas faltem, a bac-
téria não lesa. Se a bactéria faltar, as condições desfavoráveis jamais se fa-
rão notar. Sem enxerto da causa derradeira, não se produz o evento total,
que, todavia, não é produzido por aquela. Na multiplicidade, ou seja, na
infinita multiplicidade com que se tecem as relações causais é que reside a
realidade da vida.
2. As relações causais não só são unilineares, mas se realizam em efei-
tos recíprocos, se expandem em círculos, uns sobre os quais a vida se edi-
fica e outros que, círculos viciosos, suscitam um processo destrutivo.
Não se acrescenta, contudo, à causalidade mecânica nenhuma outra
causalidade biológica, nova. Toda causalidade conhecida tem caráter me-
cânico; não obstante o que, o evento real nos mostra a causalidade mecâ-
nica em emaranhamentos opostos tais que se quiser apreendê-los, se terá
de conceber a multiplicidade na dispersão e na combinação, vale dizer,
numa construção configurativa.
Pelo todo, portanto, é que se explica por que a mesma causa pode ge-
rar efeitos exatamente opostos, conforme sua intensidade e conforme a di-
versidade com que o todo se constitui; por que pode excitar e paralisar,
dar lugar à doença ou curar, suscitar tristeza ou alegria, etc.
A aquisição de uma visão da vida, tal qual a elaboram os biologistas, é
indispensável ao psicopatologista, porque lhe abre um mundo em que a
realidade da vida psíquica participa, se bem que com ela de modo algum
se identifique. O estudo da biologia, que se supõe evidente a todo médico,
exige a clareza dos princípios; e isso abrange, tanto a apropriação das ci-
ências empíricas atuais quanto o trato com os grandes pensadores biológi-
cos.

c) Causas endógenas e exógenas.


O fenômeno básico da vida consiste no fato de realizar-se num peri-
mundo que o conforma a partir da interioridade própria da existência; pe-
rimundo ao qual esta se refere e do qual sofre retroefeitos. Na medida em
que se divide o todo existencial em perimundo e mundo interno e se de-
compõem ambos em fatores, atribuem-se os fenômenos vitais aos fatores
causais do mundo externo, chamando-os exógenos; e do mundo interno,
chamando-os endógenos; às influências externas opõe-se a disposição in-
terna. Porque a vida consiste na ação recíproca constante de exterioridade
e interioridade, fenômeno algum pode ser exclusivamente endógeno; e
vice-versa: todas as influências exógenas desenvolvem seus efeitos carac-
terísticos num organismo cuja natureza especial sempre se há de apresen-
tar como o essencial. Temos razão, contudo, para distinguir efeitos que de
modo preponderante são endogenamente condicionados e efeitos que de
modo preponderante são exogenamente condicionados.
1. Conceito de perimundo. Chama-se perimundo a totalidade do mundo
em que o indivíduo vivo existe. É perimundo físico, que atua sobre o corpo
e, daí, sobre a psique. É perimundo portador de significado pelo sentido e
essência das coisas, pelas situações, pelo existir, querer e fazer do pró-
ximo; tudo isso atua sobre a psique e, daí, sobre o corpo.
Decompomos o perimundo físico que atua causalmente, numa multi-
plicidade de fatores precisos, tangíveis, e investigamos o efeito dessas cau-
sas exógenas, quais sejam, os tóxicos, as estações do ano ou as horas do
dia, as infecções, as doenças somáticas.
2. Conceito de disposição: Anlage (ou constituição). Disposição ou cons-
tituição é o conceito conjunto que se aplica a todas as condições endóge-
nas da vida psíquica; daí resulta tal amplitude que, sempre que se usa a
palavra, se tem de saber a que disposição se alude.
Tem-se de distinguir entre disposição congênita e disposição adquirida,
visto que as potencialidades momentâneas do organismo e da psique são,
certamente, condicionadas, primeiro, pelo que neles existia congenita-
mente; depois, no entanto, por todos os acontecimentos vitais até então
ocorridos, doenças, vivências; enfim, pela biografia que a disposição indivi-
dual está modificando constantemente ou transformando em catástrofes
ou processos mórbidos.
Distingue-se, a seguir, entre disposição visível e disposição invisível:
aquela é a constituição morfológica e fisiologicamente visível; esta é a pre-
disposição que só se mostra quando ocorrem certos estímulos e perigos.
Tem-se de distinguir, enfim, entre disposição somática e psíquica, en-
tre disposição permanente e disposição que só se apresenta em certas
épocas da vida etc.
Dado que separamos as condições externas em muitas classes, somos
obrigados também a encontrar, na. disposição, elementos constitucionais;
a formar unidades menores dentro da disposição; a analisar, enfim, aqui
como em qualquer oportunidade na qual façamos ciência. Mas como é que
chegamos a elementos constitucionais particulares, que não se constroem
arbitrariamente, mas têm significação real? Apenas acompanhando a dis-
posição em famílias inteiras; ao que nos conduzem dois fatos: a variação
individual e a herança. Investigando os rumos que as variações seguem e
a herança constante, ganhamos perspectivas que permitem alcançar uni-
dades reais nas quais nos é possível falar tanto em disposições, de modo
geral, quanto em certas disposições.
3. Interação de disposição e perimundo. A sífilis é causa da paralisia ge-
ral, mas só uns 10% dos sifilíticos é que se tornam paralíticos. Uma situa-
ção existencial perigosa (por exemplo, naufrágio) atua sobre um parali-
sando-o e sobre outro, ativando-o; um psicopata que não sabe orientar
sua própria vida pode, nessa catástrofe, mostrar presença de espírito que
supere a perplexidade de outros, os quais, quanto ao mais, são sadios. O
tabagismo crônico parece produzir distúrbios circulatórios e nervosos num
e não noutro; etc. A doença é reação da disposição às influências ambien-
tais, E só em casos fronteiriços se vê recuar a significação do que é exó-
geno e do que é. endógeno. Por exemplo, a coreia de Huntington ou a debi-
lidade mental congênita podem ocorrer sem influência relevante do peri-
mundo. Inversamente, a paralisia geral se liga à infecção sifilítica; as psi-
coses alcoólicas, ao tóxico, conquanto a disposição deva acrescentar al-
guma coisa essencial. Só quando há pura destruição, como no caso de
morte por esmagamento do crânio, é que apenas o exógeno desempenha
papel. Quase sempre a relação endógeno-exógeno é extraordinariamente
complexa e de valorar-se somente conforme sua importância, como se dá
na esquizofrenia e na psicose maníaco-depressiva, onde o endógeno ocupa
o primeiro plano, e nas psicoses por infecção, onde a primazia é do exó-
geno.
Evento psíquico algum é condicionado só pela disposição, resultando
sempre, sim, da interação de uma disposição especial com condições e
destinos externos especiais. Podemos apreender a alternância de condi-
ções externas diretamente. A disposição é sempre alguma coisa aberta, a
descobrir, a construir. O conceito serve, apenas, na maioria das vezes,
quando usado com sentido absolutamente geral, para mascarar nossa ig-
norância. Tanto especificamos, ao falar nas condições externas, aludindo
ao meio, quanto devemos esforçar-nos, quando usamos o conceito disposi-
ção, para dar a entender variedades o mais estritas possível de disposição.
Jamais podemos inquirir, tratando de um todo (por exemplo, um processo
mórbido não-orgânico, uma personalidade, a criminalidade de um indiví-
duo etc.), se resulta do meio ou da disposição, podemos, sim, apenas, jul-
gando o todo, separar fatores constitucionais e fatores ambientais, medi-
ante' a decomposição em elementos particulares.
Como não é possível considerar sempre igual o organismo humano,
nem sua vida psíquica (pelo contrário, indivíduos diferentes reagem, por
exemplo, ao mesmo tóxico de forma inteiramente diversa), é evidente que
também nunca se pode esquecer a disposição, quando se investigam os
efeitos de causas externas. Nunca se encontram efeitos recorrentes inalte-
ravelmente uniformes no mesmo indivíduo; e mesmo na maior constância
de conexões há exceções, há diversidade qualitativa dos efeitos; e efeitos
só em número limitado de indivíduos.
Porque, vice-versa, também a disposição herdada precisa das condi-
ções ambientais para manifestar-se, assim temos de inquirir, na doença
endógena, estas condições ambientais; por exemplo, quando se determina
que, dentre gêmeos univitelinos, um sendo acometido de esquizofrenia,
também o outro há de adoecer quase sempre, é certo, mas nem sempre.
4. Relação de endógeno-exogeneidade com pares afins de conceitos. Os
conceitos endógeno e exógeno têm sentido, diverso, conforme se usem
para aludir a meras doenças somáticas ou a enfermidades psíquicas. To-
dos os fatores exógenos de doenças somáticas (tóxicos, bactérias, clima)
são, certamente, também exógenos de enfermidades psíquicas. Mas cha-
mamos também exógenas as doenças somáticas (mesmo aquelas endó-
geno-somáticas do cérebro) em relação à disposição psíquica.
Exemplos: a) a paralisia geral é doença cerebral exogenamente produ-
zida (pela sífilis), que, por sua vez, destrói, ela própria, exogenamente a
vida psíquica, b) o tumor é processo cerebral endógeno, que, como fator
exógeno, atinge a disposição psíquica.
Neste sentido, tudo que é somatogênico é também exógeno; tudo que é
psicogênico é também endógeno. Distinguimos, porém, no evento psí-
quico, tal qual distinguimos exógeno e endógeno, o reativo do autóctone
(Hellpach: anormalidade reativa e produtiva). As reações que resultam de
vivências desencadeadas por golpes da sorte e acontecimentos externos
têm analogia com o exógeno; aquelas fases e processos que se apresentam
sem acontecimentos externos, em certas épocas, por força de causas inter-
nas, são análogas ao endógeno.

d) Evento causal como evento extraconsciente.


O que há de comum a todas as conexões causais é o fato de nelas al-
guma coisa incompreensível se fazer, claramente, necessária; causalidade
esta que se pode determinar apenas empiricamente, só podendo apreen-
der-se de forma teórica pela elaboração de um extraconsciente fundamen-
tal; em si, porém inevidente.
Ê da essência de toda investigação causal que, progredindo, penetre
em fundamentos extraconscientes do psiquismo, ao passo que a psicologia
compreensiva permanece, em princípio, na consciência, termina no limite
da consciência. Sempre que investigamos causalidades, temos de pensar
nalguma coisa extraconsciente subjacente às unidades fenomenológicas,
ou às conexões compreensíveis, ou ao que quer que seja que usemos como
elemento. É assim que usamos conceitos de disposições extraconscientes
e mecanismos extraconscientes; conceitos a partir dos quais, entretanto,
nunca podemos desenvolver, na psicologia. Uma teoria universalmente vá-
lida; podemos, sim, utilizá-la, apenas, para os fins investigativos momen-
tâneos, na medida em que se mostrem aproveitáveis.
O que nos guia, a esta altura, é a ideia básica de que todas as cone-
xões causais, de que o alicerce extraconsciente do psiquismo se baseiam
em processos somáticos. O extraconsciente só pode ser encontrado no
mundo como alguma coisa somática. Esses processos, nós os presumimos
no cérebro (principalmente, no córtex e no tronco cerebral); e pensamo-los
como processos biológicos complicados ao máximo. Da respectiva explora-
ção estamos infinitamente distantes. Não conhecemos processo somático
singular algum que seja o fundamento especial de determinados processos
psíquicos. Todas as destruições grosseiras que se observam corno- sendo
causa das afasias, da demência orgânica, são, unicamente e sempre, des-
truições de condições mais distantes do psiquismo; em princípio, é a
mesma coisa que o fato de músculos intatos, serem condição do apareci-
mento de atos voluntários; e órgãos dos sentidos intatos, condição do apa-
recimento de percepções. Tudo quanto conhecemos no cérebro é de relaci-
onar-se fisiológico-somaticamente; em parte alguma, conhecemos achados
que se possam valorar por forma diretamente psicológica. Pelo contrário,
nas alterações psíquicas mais grosseiras, encontram-se cérebros absoluta-
mente intatos; ou achados tão mínimos e espalhados por tantos indiví-
duos que as graves alterações psíquicas se afiguram inconcebíveis; ou, in-
versamente, encontram-se — com relativa raridade — alterações sérias do
córtex cerebral em homens que quase não apresentavam anormalidade
psíquica.1 Os achados inúmeros no cérebro de doentes mentais não são,
absolutamente, característicos de processos psíquicos determinados. A
paralisia geral, que se considera a única enfermidade mental em que se
conhecem achados característicos, não permite, entretanto, relacionar o
achado cerebral com as alterações psíquicas particulares. A paralisia geral
é, sobretudo, um processo que acomete o sistema nervoso inteiro, tal qual
a esclerose múltipla, ou a arteriosclerose. Quase todos, os processos cere-
brais costumam ter efeitos psíquicos, sejam, quais forem, mas a paralisia
os tem excessivos e constantes. Nela, como- em muitos processos cere-
brais, também se apresenta, ocasionalmente, a maior parte dos processos

1 É o que vários casos surpreendentes ensinam aos anatomistas. Exemplo- conhecido é a demência senil. As altera-
ções cerebrais dos anciães, em geral, e da demência senil são, qualitativamente, idênticas; isto é, no demente,
encontram-se alterações gravíssimas do mesmo tipo que em anciães sadios. Mas também se encontram, às ve-
zes, alterações graves em anciães sadios e alterações relativamente ligeiras em dementes. Não existe paralelo
entre a gravidade dos defeitos psíquicos e a gravidade das alterações anatômicas.
psíquicos anormais de nós conhecidos; só que a destruição da psique não
tarda a colocar-se no primeiro plano.
Assim, pois, embora com o pressuposto de todos os processos psíqui-
cos, normais e anormais, terem seus fundamentos somáticos, estes nos
escapam onde quer que os busquemos. Devemos precaver-nos, sobretudo,
de ver nos processos cerebrais conhecidos esses fundamentos diretos de
certos processos psíquicos. No estado atual de nossos conhecimentos, se
passarmos por alto os fundamentos somáticos diretos que ignoramos, é lí-
cito falar num efeito dos processos cerebrais que conhecemos sobre a vida
psíquica, tal qual falamos no efeito dos distúrbios metabólicos, dos vene-
nos etc. Daí reforçar-se o sentido da concepção frequentemente expressa
de que a disposição psíquica individual condiciona a forma particular por
que a psique reage ao processo mórbido cerebral. Tem- se até presumido
que a mesma doença somática ou o mesmo processo cerebral produza ora
uma psicose periódica, ora um processo demencial. Esta concepção de-
pende ainda de comprovação, mas sabe-se, por exemplo, que ao mesmo
processo cerebral um doente reage, em primeiro lugar, com sintomas his-
téricos; outro, com anomalias de humor; outro ainda, com demência as-
sintomática. Evidentemente, estas diversidades têm validez no início do
processo, ao passo que o fim cada vez mais se assemelha por força da des-
truição geral.
São muitos os distúrbios psíquicos e as psicopatias em que, geral-
mente, coisa alguma se vê no cérebro, nem os fundamentos diretos, nem
aqueles mais remotos. Não se pode duvidar, entretanto, de que todo pro-
cesso psíquico peculiar tenha suas condições somáticas peculiares. Mas
estes fundamentos somáticos, nas personalidades psicopáticas, na histe-
ria, talvez em muitas psicoses que ainda se consideram demência precoce
(processos psíquicos), não se devem pensar senão do mesmo modo por
que se pensa, por exemplo, o fundamento somático cerebral da diversi-
dade dos caracteres e talentos; isto é, estamos infinitamente longe de con-
siderá-los sequer objeto possível de investigação.
A estas concepções outra se opõe, que dominou decênios anteriores,
mas que, de tempos para cá, tem perdido importância, vestida na seguinte
fórmula: “As doenças mentais são doenças do cérebro”. (Grjesinger, Mey-
nert, Wernick). A frase é dogma, como dogma seria a respectiva negativa.
Vamos, mais uma vez, esclarecer a situação: Nalguns casos, encontramos
entre alterações somáticas e psíquicas conexões de tal maneira apresen-
tando-se que as psíquicas se podem considerar seguramente consequen-
tes. Sabemos também que, em geral, não existe processo psíquico, sem a
condição de fundamentos somáticos, sejam quais forem; não há “espec-
tros”. Mas também não conhecemos, em parte alguma, processo somático
cerebral que, por assim dizer, seja “a outra face”, a contrapartida idêntica
do processo psíquico mórbido. O que sempre conhecemos são, apenas,
condições do psiquismo; jamais conhecemos a causa de um processo psí-
quico, mas, em todos os casos, apenas uma causa. Aquela frase célebre,
portanto, se a confrontarmos com a investigação realmente possível e as
experiências reais, talvez seja objetivo possível, se nem que situado no infi-
nito, da investigação, não assinalando, contudo, objete algum da investi-
gação. Discutir frases desta ordem, querer, na medida do possível, resolver
em princípio o problema, significa falta de crítica metodológica. Frases que
tais desaparecerão tanto mais da psiquiatria quanto mais desaparecer a
especulação filosófica da psicopatologia e quanto mais se introduzir a for-
mação filosófica dos psicopatologistas.
Visto historicamente, a vigência do dogma segundo o qual as doenças
mentais são doenças do cérebro teve efeito favorável c efeito prejudicial.
Favoreceu-se a pesquisa do cérebro, a ponto de, hoje em dia, todo hospital
ter seu laboratório anatômico; mas prejudicou-se a pesquisa psicopatoló-
gica propriamente dita, porque, sem eles quererem, se apoderou de alguns
psiquiatras o sentimento de bastar sequer conhecer exatamente o cérebro
para conhecer também a vida psíquica e seus distúrbios. Abandonando de
todo os estudos psicopatológicos, chegaram a considerá-los não científi-
cos; daí perderem inclusive o conhecimento do cabedal até então adqui-
rido pela psicopatologia. Atualmente, veio a formar-se uma situação em
que a pesquisa anatômica e a investigação da vida psíquica se apresentam
autônomas e paralelas.
Alguns conceitos de uso diário esclarecem-nos' a necessidade de pen-
sar como extraconsciente o evento causal:
1. “Sintoma”. Reconhecemos no sintoma o extraconsciente que não
percebemos diretamente. Todos os fenômenos da vida psíquica, e somática
tornam-se sintomas, quando consideramos causai o evento básico pró-
prio. Se o extraconsciente for um processo somático conhecido, os fenôme-
nos psíquicos serão sintomas deste processo.
Os sintomas são fenômenos que se reconhecem como idênticos. Em
que é que repousa a identidade de um sintoma? Tem-se a resposta em
toda a teoria das causas. A identidade de um sintoma se produz, por
exemplo, mediante a mesma causa exógena, quais sejam, venenos, varie-
dades nosológicas somáticas; ou mediante a mesma localização de diver-
sos processos mórbidos, que atuam nesse local do cérebro, lesando-o, es-
timulando-o, excitando-o, ou paralisando-o; ou ainda, mediante a mesma
disposição etc.
Se se considerarem os fenômenos sintomas relacionados com o evento
básico causal, distinguir-se-ão, conforme a proximidade da causa, os sin-
tomas básicos (sintomas primários, sintomas axiais) dos sintomas acessó-
rios (sintomas secundários, sintomas marginais). Analogamente, distin-
guem-se, nas causas dos sintomas, aquelas patogênicas (pelas quais se
produzem os fenômenos) e aquelas pato- plásticas (as quais apenas mode-
lam os sintomas).
2. “Orgânico-funcional”. Os mecanismos extraconscientes que se acres-
cem, hipoteticamente, à vida psíquica para explicá-la não podem ser com-
provados, até o momento atual, em qualquer localização diretamente so-
mática. Não é como processos paralelos diretos, nem como causas diretas,
e sim como causas mais remotas de processos psíquicos que, no entanto,
Se encontram numerosos fenómenos somaticamente tangíveis (processos
cerebrais, envenenamentos, alterações somáticas de outros órgãos, que le-
vam a admitir atuem eles também sobre o cérebro). Aquelas alterações
psíquicas que se podem atribuir a essas causas somaticamente tangíveis
chamam-se orgânicas; c nelas, isto é, nas doenças psíquicas orgânicas,
podem-se mostrar, desde logo, com os recursos atuais, alterações do cére-
bro; ou é também lícito esperar, com base noutros fenômenos somáticos,
que venham a encontrar-se em futuro previsível. As alterações psíquicas
para as quais não se podem encontrar causas somáticas e nas quais tam-
bém o setor somático não oferece, no momento, quaisquer pontos de
apoio; nas quais, sim, a presunção de que existam repousa no mero pos-
tulado de que deve haver causas somáticas para todas as alterações psí-
quicas, chamam- se funcionais.
A discriminação entre orgânico e funcional tem, entretanto, sentido
múltiplo, se bem que conexo: orgânico é o que é tangível morfológica, ana-
tômica, estrutural mente; funcional c o fisiológico, que só aparece, persis-
tindo o morfológico, no evento e nos rendimentos do corpo. Mais ainda: or-
gânico é o evento irreparável; a doença é incurável; funcional c o evento
reparável; é curável a doença.
Evidentemente, não c absoluto o contraste. O que se inicia psicogeni-
camente, o que se manifesta funcionalmente pode tornar-se orgânico. O
orgânico pode manifestar-se num evento funcional reparável. Sempre, to-
davia, o contraste se refere ao evento somático.

e) Contra a absolutização do conhecimento causal.


Do ponto de vista da pesquisa somática e neurológica, os distúrbios
psíquicos que aparecem com processos cerebrais conhecidos são, apenas,
“sintomas”. A grande importância prática do conhecimento dos processos
somáticos, que permitem o sucesso do influenciamento terapêutico —
cura radical — com a maior rapidez e só no futuro, talvez, leva a que mui-
tos se inclinem a considerar único este ponto de vista, julgando haver re-
conhecido a “essência” da doença psíquica na doença somática. Para o
psiquiatra que também for psicopatologista, este ponto de vista constitui-
ria traição à tarefa que lhe cabe, realmente. O que ele quer investigar não
são processos cerebrais que a neurologia e a histologia cerebral já investi-
gam, e sim processos psíquicos. Em que extensão se podem demonstrar,
até hoje, causas particulares desses processos psíquicos, condições somá-
ticas existindo; de que modo complexos inteiros de distúrbios psíquicos e
todo o curso respectivo têm sua causa única no processo cerebral (doen-
ças orgânicas); por que forma essas doenças orgânicas se diagnosticam;
de que maneira, a seu turno, são causadas — tudo isto interessa ao má-
ximo, certamente, o psiquiatra. E é particularmente importante para o mé-
dico conhecer tais condições somáticas.
O que mais profundamente nos satisfaz a necessidade causai são as
regularidades mais simples e mais necessárias, das quais se há de esperar
o poder máximo da intervenção terapêutica; isso, porém, só quando se
houver reconhecido a causalidade de modo efetivamente empírico e não
teoricamente, como mera possibilidade. Se nos inclinarmos a ver a causa
principal em meras ponderações causais, será funesto o efeito para o co-
nhecimento empírico das múltiplas formas daquilo que é, psiquicamente,
anormal, porque se abandonará o mundo do que se pode, objetivamente,
saber, embora não se explique causalmente, em favor de abstrações va-
zias. Mas o impulso cognoscitivo que nos leva ao conhecimento encontra,
fora da consideração causai, outra gratificação especifica na visão orde-
nada e penetrante dos fenômenos e configurações que compõem a vida
psíquica.
Significação e limite do conhecimento causai talvez sejam de ver-se
com o máximo de clareza nas possibilidades terapêuticas. O conhecimento
causal que apreende o incompreensível como necessário a partir de suas
causas pode influenciar, decisivamente, esse evento por meio de medidas
nas quais a atividade psíquica que se deve ajudar não precisa participar.
Não se pode prever o que virá a ser possível com base na pesquisa seroló-
gica, endocrinológica e hormonial. Sem intervenção pessoal do médico e
do paciente, as injeções promoveriam a terapia eficaz; repeti-la-iam por
forma idêntica de caso para caso e produziriam efeitos maciços. De modo
absoluto se lhes opõe a terapia que, na intervenção pessoal do médico,
através da atividade pessoal do doente, esta exercendo-se pela conforma-
ção do perimundo e da vida, deixa o campo livre às variações internas, das
quais se origina a cura.
A polaridade radical compreende muitos graus intermediários. De um
lado, está o mero fazer; de outro lado, o estímulo, o alenta- mento; de um
lado, o treino; de outro, a educação; de um lado, a criação de condições;
de outro, o configuramento radical. Na multiplicidade destas polaridades
tem lugar próprio o conhecimento causal e compreensivo.
Reconhecer, realmente, a causalidade é difícil. Existindo, porém, o co-
nhecimento geral, a aplicação é relativamente fácil, transformando-se em
fenômeno maciço. Pelo contrário, o compreensível, em geral, é fácil de
apreender. Difícil é a aplicação, que constitui a presença mais intensiva da
individualidade inteira, porque se transforma não em derivação a partir da
generalidade, mas em origem histórica sempre nova da compreensão con-
creta, na figura pessoal de tal médico e de tal doente.
A causalidade refere-se ao que c estranho, incompreensível e factível; a
compreensão refere-se a mim mesmo no outro, ao homem como próximo.
Se estiver claro tudo quanto aqui se tratou de modo puramente esque-
mático, as conclusões seguintes se tiram: Todas as categorias c métodos
têm seu sentido específico; absurdo será contrastar uns com os outros.
Cada qual pode realizar-se frutuosamente, de modo puro, objetivo e, ao
mesmo tempo, necessariamente limitado. Absolutizado, cada qual virá a
dar em imposições vazias, discussões c comportamentos que destruirão a
visão franca dos fatos. No que se refere, cm particular, ao evento causal, o
progresso no sentido da causalidade profunda e compulsiva constitui im-
pulso fundamental de nosso conhecimento; as perspectivas fazem crescer
asas; a dificuldade do objetivo reclama paciência. Por mais longe, no en-
tanto, que chegue, nosso conhecimento jamais atingirá o evento em si e no
todo que possa manipular; na verdade, o conhecimento tem sempre diante
de si alguma coisa com que operar; e operar de tal maneira que lôda cura
do homem ainda venha, afinal, a depender, decisivamente, de alguma
coisa que nele existe e que podemos abordar compreensivamente.

f) Revisão do conhecimento causal.


Dividimos a matéria em três capítulos. No primeiro, veem-se os fatores
causais particulares que constituíram, até o momento, objeto principal de
nosso conhecimento (vemos o indivíduo como corpo portador de psique
em seu perimundo). No segundo, mostra-se em sua significação para o co-
nhecimento psicopatológico um fator causal relevante, predominante, am-
plo, porque determina todos os outros: a herança (vemos o indivíduo no
contexto das gerações como variedade que resulta da disposição herdada).
No terceiro, discutem-se as ideias que conduzem e extraviam todo nosso
pensamento causal — as teorias-, teorias que imaginamos de processos
extraconscientes (pensamos um evento em que se baseiam os fenômenos).
A psicopatologia explicativa depende sempre, em suas ideias básicas e
em seus pontos de vista, da biologia (desta, na. totalidade de seus horizon-
tes cognoscitivos); depende, especialmente, da anatomia, fisiologia, neuro-
logia, endocrinologia e genética (teoria da herança) humanas. Teremos, em
nossa exposição, de iniciar estas relações mediante breves referências.
3.1.
EFEITOS DO PERIMUNDO E DO CORPO SOBRE A VIDA
PSÍQUICA

Corpo e alma são de investigar-se, em sua unidade, sua separação,


sua correlação, sob vários aspectos, que divergem uns dos outros radical-
mente. No presente capítulo, relataremos que achados somáticos tangíveis
e que fatores perimundiais físicos têm sobre a psique efeito possível de
comprovar. Não adianta falar no corpo em geral e na alma em geral, por-
que tanto um quanto outra são por demais indeterminados para poder-se
dar sentido claro ao que sobre eles se disser. O que importa é apreender a
corporeidade determinada e determinados fenômenos psíquicos, tanto
quanto é possível determiná-los empiricamente, a fim de ver, em seguida,
quais os efeitos dessa corporeidade.
No que diz respeito à consideração causal “de fora”, todo efeito corpó-
reo ou somático causal vai ter à psique pelo cérebro-. isso no pressuposto
— que a experiência confirma, até o momento — de não haver efeito cau-
sal imediato do soma sobre a psique, mas, apenas, por intermédio do cére-
bro. A corporeidade total pode ser psiquicamente relevante, mas, nesse
caso, só é causal quando existem vias somáticas que levam ao cérebro,
onde encontram pontos em que apoiar seu efeito. De que modo, entre-
tanto, se há de conceber o apoio para o efeito exercido sobre a psique é ab-
solutamente obscuro. Nosso relato vai dos fatores causais do perimundo
ao efeito que o cérebro exerce sobre a psique. Havemos de ver que, certa-
mente, existe uma quantidade de fatos interessantes, mas que não alcan-
çamos a própria psique, porque é impossível transpor o reino “das causas
intermediárias” situado entre o soma e a psique. Quem aponta para as re-
lações empiricamente verificáveis entre somático e psíquico encontra sem-
pre um abismo impossível de preencher. Se se disser, em sucessão: A psi-
que está no soma inteiro — a psique está no cérebro — a psique está num
lugar do cérebro — a psique não está em parte alguma, estar-se-á sempre
exprimindo uma experiência; cada uma destas frases está correta. Mas,
considerando a matéria do ponto de vista causal, a via ascende ao cérebro,
à localização cerebral, onde se perde, sempre que se queiram fazer afirma-
tivas positivas gerais com referência à relação entre cérebro e psique.

§ 1. Efeitos Do Perimundo

O perimundo influi constantemente sobre toda a vida e também sobre


a psique: do ponto de vista psicopatológico, devem-se nomear os fenôme-
nos especiais que se têm observado por força da mudança do dia para a
noite, da estação do ano, do tempo, do clima. Sem especificidade em rela-
ção a certas variedades de perimundo, dão-se as exigências existenciais
máximas, que levam ao esgotamento ou a uma revolução da constituição
vital.

a) Hora do dia, estação, tempo, clima.


Pouco sabemos sobre a relação entre fenómenos psíquicos e condições
metereológicas; apesar do que, essa relação se manifesta de modo mais
patente nos processos psíquicos patológicos. Discriminaremos, é claro, os
efeitos causais diretos, os quais se exercem sobre a psique através do
corpo e dos quais ora nos ocupamos, e os indiretos, exercidos mediante a
impressão compreensível que a paisagem, o tempo, o clima produzem so-
bre a psique; extenso campo de representações de afetos e conteúdos com-
preensíveis, que a poesia e a arte, mais do que a ciência, têm tornado
conscientes.
1. Hora do dia. Em relação à hora do dia, são de observação frequente
as pioras dos estados depressivos pela manhã; dos estados amenciais e
delirantes à noite. Os depressivos podem sentir-se, de manhã, muito mal;
e à noite, bem. Típicos são também o delírio noturno, a inquietação, a an-
siedade e o deambular noturnos dos senis, lúcidos durante o dia. Há epi-
lépticos que só têm ataques de noite.
2. Estações. No tocante à questão da importância das estações, possuí-
mos cifras que nos demonstram, para uma série de fenômenos, a frequên-
cia de seu aparecimento numa curvai anual. Assim, os suicídios e atenta-
dos sexuais e, ao que parece, todos os atos possíveis de atribuir ao au-
mento da atividade psíquica apresentam-se com a frequência máxima em
maio e junho. Também a cifra de internações dos doentes mentais chega
ao máximo na primavera e no verão. De há muito que diversos observado-
res notam a coincidência da curva anual relativamente à cifra de interna-
ções. Pesquisas feitas na clínica de Heidelberg mostraram que a curva re-
ferente às áreas rurais é mais característica do que as curvas urbanas; as
curvas femininas, mais características do que as curvas masculinas; au-
mentando a idade, torna-se mais frouxa a relação com a estação do ano.
As primeiras internações, ou seja, os doentes de fresca data, têm a curva
característica. Tudo indica não serem as condições sociais, mas as in-
fluências atmosféricas, que condicionam a curva anual.
3. Tempo. A relação de várias queixas nervosas e reumáticas com o
tempo (aumento quando há umidade e pressão baixa) é de compreender-
se, em parte, como efeito direto, apenas, sobre o corpo. Fatores psíquicos
também contribuem para a sensibilidade difusa dos nervosos a qualquer
alteração’ atmosférica. Os estados psíquicos anormais — por exemplo,
quando troveja, quando neva — são manifestamente causais, mas não
compreensivelmente condicionados.
4. Clima. Quando se observam os efeitos patogênicos de certos climas,
deve-se abstrair o efeito dos agentes morbígenos. Ignora- se que efeitos o
clima tem por si. Pode-se discutir se o “delírio dos trópicos”, por exemplo,
não será produzido, sobretudo, pela influência social do meio colonial.

b) Fadiga e esgotamento.
Chamam-se fadiga e esgotamento a diminuição e lesão das funções so-
máticas e psíquicas resultantes do respectivo exercício. A fisiologia pensa
que a fadiga se dê pelo acúmulo de produtos metabólicos inibidores, que a
corrente sanguínea não tarda a carriar, novamente; ao passo que o esgota-
mento resulta do consumo excessivo da substância viva, a qual tem de ser
substituída mediante nova síntese. Na fadiga, observam-se inúmeros fenô-
menos subjetivos:
Fuga interna de ideias: pensamentos irrelevantes sucedem-se rapida-
mente uns aos outros. Ou pelo contrário: a pessoa não consegue livrar-se
de certos pensamentos, ideias e imagens (sobretudo, recordações com
carga afetiva). Os fenômenos fazem-se tão vivos que chegam a parecer re-
almente sentidos: as ideias transformam-se quase em pseudo- alucina-
ções; o pensamento, em fala; acrescem-se excitações sensoriais espontâ-
neas. É comum ouvir “tinidos de campainhas” ou falsas-percepções seme-
lhantes. Falha a memória voluntária; afrouxa a coordenação das ideias e
dos movimentos voluntários; aumenta a excitabilidade motora, ocorrem
tremores. Às vezes, certa disposição afetiva imotivada- mente exaltada do-
mina todo o quadro.
Têm-se fixado experimentalmente alguns efeitos da fadiga: Mediram-se
rendimentos laborativos (execução de cálculos etc.) a constatou-se a rela-
ção da fadiga com a fome, com o encurtamento da sono etc. Observou-se
diminuição da produtividade, da distraibilidade, com tendência a associa-
ções ídeo-fugitivas.
Weber encontrou, na fadiga, inversão de comportamento da repleção
sanguínea dos órgãos-, aliás, tão passageira em pessoas quanto ao mais
normais, durante a fase de fadiga, quanto permanente nos neurasténicos.
Nos trabalhadores intelectuais., o volume do braço, durante o trabalho,
aumentou em vez de diminuir; o volume da cabeça, o volume cerebral, di-
minuiu em vez de aumentar; à carótida estreitou-se. em vez de alargar-se.
Se se ligar uma corrente galvânica, cujo anódio se coloque sobre um
olho, a pessoa em experimentação nota, a certa intensidade da corrente,
um raio luminoso; o observador constata um movimento na pupila do ou-
tro olho. Se se medirem a intensidade da corrente galvânica a que o raio
luminoso se torna visível (intensidade da sensibilidade à luz) e a intensi-
dade a que o movimento pupilar se nota (sensibilidade reflexa), ver-se-á
que os dois valores se comportam, nas pessoas sadias, segundo uma rela-
ção aproximada de 1:3. Esta determinação de Bumke serviu a Haymanns
para fundamentar o exame de alguns doentes, encontrando, em estados
de esgotamento variados (neurastenia constitucional e adquirida, após do-
ença somática, histeria), aumento desta relação 1:3 para 1:30, ou 1:40.
Nas quatro neuroses traumáticas experimentadas, encontrou relações
normais, como também nas psicoses funcionais.
Noutros tempos, atribuiu-se grande importância ao esgotamento como
fator causal de psicoses agudas; atualmente, porém, pelo contrário, a ten-
dência é negar a existência de psicoses por esgotamento verdadeiras. O
que há, apenas, é, de um lado, aumento da fatigabilidade, que pode che-
gar a grau muito elevado; de outro lado, multiplicidade de maneiras ex-
pressivas da fadiga, conforme a constituição pessoal ou temporária do in-
divíduo acometido pela fadiga. É em particular nos estados psicopáticos de
base’ constitucional que a fadiga se apresenta de maneira muito diversa:
uma excursão na montanha provoca depressão; um esforço físico qual-
quer gera manifestações de despersonalização e sentimentos de estra-
nheza; o esgotamento leva a delírio de autorreferência de há muito prepa-
rado (ideia sobrevalorada). Surgem a tendência ao pranto, à irritabilidade
e à exasperação, aos estados apáticos, aos sentimentos de ansiedade, às
ideias obsessivas; enfim, a todo o contingente dos fenômenos psicopáticos.
Finalmente, toda sorte de psicoses endógenas pode ser “desencadeada”
também pelo esgotamento, como por' outros fatores. Na primeira Guerra
Mundial, não se observaram psicoses consequentes a estados de esgota-
mento dos mais graves; mas o esgotamento pode preparar o terreno para
reações patológicas que ocorrem ante abalos emocionais muito intensos.
Embora não haja psicoses propriamente por esgotamento, há, no en-
tanto, estados característicos em certos indivíduos que, por natureza, já
apresentam fatigabilidade anormalmente elevada e que se expõem a gran-
des esforços prolongados, a prolongadas privações, às misérias da vida, à
alimentação ruim. Nesses indivíduos, já não há, afinal, momento algum
em que não estejam fatigados; daí sofrerem de fenômenos psicopáticos nu-
merosos, que correspondem à respectiva constituição. Basta adoecerem de
uma psicose endógena curável desencadeada pelo estado de esgotamento
para que aquela tome, às vezes, colorido “asténico” especial resultante do
esgotamento anterior; colorido também costumeiro a todas as psicoses
que ocorrem quanto há doenças somáticas graves (sinais de desfaleci-
mento, abatimento e também expressividade pobre).

§ 2. Venenos (Tóxicos)

São de acesso relativamente fácil à investigação os efeitos dos medica-


mentos e venenos sobre a vida psíquica, tendo em vista a uniformidade da
causa eventual, que mesmo no homem se pode introduzir experimental-
mente. A investigação segue três rumos:
a) Em primeiro lugar, procura-se criar uma ideia clara dos fenômenos
subjetivamente vivenciados, conforme se manifestem após a introdução de
determinados venenos. Constatam-se diferenças no efeito do mesmo ve-
neno sobre indivíduos diferentes e, no mesmo indivíduo, conforme a oca-
sião; igualmente, percebem-se diferenças no efeito de venenos diversos.
Quanto à primeira situação, temos exemplos nas múltiplas variedades da
embriaguez alcoólica, da embriaguez pelo haxixe; quanto à segunda situa-
ção, nas diferenças do efeito do álcool, do haxixe, da morfina. Em doses
maiores, todos os venenos levam a alterações da consciência (embriaguez,
imobilidade, coma), ou ao sono.
Em casos particulares, o efeito momentâneo dos venenos diverge tanto
da média e é tão grave que se fala em reação patológica tóxica. O exemplo
mais conhecido é a reação alcoólica patológica. Basta uma quantidade re-
lativamente pequena para aparecerem turvações da consciência do tipo
crepuscular, com atos insensatos, ou outros estados anormais, os quais,
frequentemente, se resolvem em sono profundo, com absoluta amnésia do
indivíduo em causa. Os mesmos indivíduos sofrem, muitas vezes, de ou-
tros tipos de reações patológicas (a infecções, a acidentes, a vivências).
Outras pessoas nem as mínimas quantidades de álcool suportam; vêm-
lhes logo um mal-estar, ou alterações intensas do curso do evento psí-
quico, de modo que evitam o uso do álcool (intolerância ao álcool, que
pode ser tanto congênita quanto adquirida por lesões cranianas etc.) .
As vivências da embriaguez tóxica são altamente interessantes, não só
constituindo fenômenos assombrosos, cujo encanto desperta a curiosi-
dade por experiências semelhantes e cujo gôzo acarreta o perigo avultado
de lesões ruinosas para a vida; mas também representando, por assim di-
zer, “psicose-modelo” (Beringer), na qual se pode experimentar aquilo que
se aproxima da psicose aguda, especialmente das esquizofrênicas, com
muito mais nitidez do que nas vivências do sonho e da fadiga. Sobre estes
fenômenos, existe literatura extremamente interessante. Assim é que Ja-
mes escreve: “Em volta de nossa consciência vigil — que só é uma certa
espécie de consciência — existem outras formas potenciais de consciência,
que se separam por septos estreitos, apenas. Podemos passar pela vida
sem lhes pressentir a existência: mas basta usar o estímulo necessário
para que se mostrem, ao menor contato, plenamente claros”. A fenomeno-
logia tem relatado inúmeras manifestações com base nas autonarrações
das várias espécies de embriaguez. Mas é, exatamente, o isolamento do
particular na descrição fenomênica que leva a indagar da conexão das ma-
nifestações nalgum princípio. As extensas analogias das formas inúmeras
de embriaguez — apesar das variações consideráveis conforme a pessoa e
conforme os venenos — indicam que há alguma coisa comum.
b) Em segundo lugar, investigam-se, objetivamente, os rendimentos
mensuráveis: apreensão, tipos de associação, continuidade do trabalho
etc., conforme se modifiquem sob a influência do veneno particular. Esta
“farmacopsicologia” desenvolvida por Kraepelin tem encontrado diversida-
des características nas alterações dos rendimentos, após a introdução de
venenos diversos. Observa-se, por exemplo, à ingestão de álcool, que se
aceleram, de início, os rendimentos motores; os rendimentos, correspon-
dentes à apreensão descem, imediatamente; ao passo que, com o chá, os
rendimentos da apreensão aumentam, inversamente, e os motores não se
alteram. Em todo caso, as relações são, na maior parte das vezes, tão
complicadas que quase todos os resultados quase não resistem a uma crí-
tica severa. O requintamento dos métodos de investigação tem progredido
mais do que a obtenção de resultados que sejam interessantes, do ponto
de vista psicopatológico.
c) O terceiro rumo seguido pela investigação refere-se não aos efeitos tó-
xicos momentâneos, mas aos pós-efeitos permanentes dos venenos por
força da introdução reiterada, quer esta ocorra despercebidamente
(chumbo), quer se dê com fins hedonísticos (álcool, morfina, haxixe). Este
é o setor propriamente da observação clínica; o que diz respeito, por exem-
plo, à alteração da personalidade após abuso prolongado do álcool, da
morfina, da cocaína etc.; e às psicoses agudas passageiras, que surgem
em consequência de introdução mais prolongada de venenos. É de impor-
tância fundamental o fato de nem todos os indivíduos experimentarem,
absolutamente, os mesmos efeitos. Assim, existem pessoas que suportam,
durante muito tempo, quantidades enormes de álcool sem prejuízo notá-
vel. — De outro lado, nota-se, contudo, que os efeitos do mesmo veneno
são, muitas vezes, tão semelhantes de um indivíduo para outro que quase
se podem reconhecer com inteira segurança pelo simples quadro psíquico.
É o caso do delirium tremens (delírio dos beberrões), uma das psicoses
mais típicas que a medicina conhece.
As relações causais entre intoxicação crônica e psicose são complica-
das. Não se trata de efeitos tóxicos-diretos, mas, provavelmente, o que ob-
servamos são elos intermediários, que, até o presente, ignoramos por com-
pleto e que se presumem sejam distúrbios metabólicos, formação de toxi-
nas, alteração vascular. Às vezes, acrescem-se ainda outros fatores cau-
sais (ferimentos, infecção). No caso particular, a subordinação causal só é
indiscutível quando se trata de formas psicóticas típicas, de observação
frequente com o veneno em questão. Noutros casos, é possível tratar-se de
psicose totalmente diversa, em indivíduos também padecendo de envene-
namento crônico.
Nas psicoses resultantes de envenenamentos crônicos, encontram-se,
ao lado de todas as diversidades, certos traços comuns que, em parte, têm
afinidade com os fenômenos observados nas psicoses por processo cere-
brais e por outras doenças orgânicas exógenas (Bonhoeffer): 1) Estados
passageiros de turvação da consciência, que caminham para a cura com
noção plena da doença por -parte do indivíduo, notando-se ainda alucina-
ções maciças, desorientação e ansiedade (delírio). 2) Sintomas somáticos,
que representam sinais de lesão em outros territórios orgânicos e que são
característicos, em parte, dos diferentes venenos. 3) Ataques convulsivos
durante os estados agudos. 4) Alterações permanentes da personalidade,
consistindo em abrutalhamento da vida emocional, estreitamento dos in-
teresses, em predomínio unilateral da via instintiva e instabilidade volitiva.
Daí resultam a decadência social, aumento da excitabilidade, levando à
prática de violências, com protestos de inocência, e irresponsabilidade
completa; sobretudo em relação às promessas de abstenção futura. Estas
últimas alterações quase só se observam como efeito de estimulantes (ál-
cool, ópio, morfina, haxixe). Trata-se, na maioria das vezes, de indivíduos
originariamente psicopatas, que só se entregam ao “vício” por força da psi-
copatia. Quanto aos demais venenos (CO2, ergotina etc.), produzem meros
estados de fraqueza psíquica, com traços de síndrome de Korsakov, mas
sem aquelas feições que se relacionam com os vícios.

§ 3. Doenças Orgânicas

O fato de observarem-se no mesmo indivíduo uma doença orgânica e


uma anormalidade psíquica não quer dizer, em absoluto, que ambos os fe-
nômenos se relacionem, tal qual um processo mórbido cerebral e uma psi-
cose nem sempre têm, no mesmo indivíduo, conexão um com o outro. Dis-
tinguir-se-ão as seguintes possibilidades: Uma noxa conhecida é causa
tanto do padecimento somático quanto da doença psíquica: por exemplo, o
álcool produz, ao mesmo tempo, polineurite e síndrome de Korsakov; ou
uma noxa desconhecida produz uma coisa e outra: por exemplo, o distúr-
bio alimentar e a inanição que progridem, irremediavelmente, apesar de
toda administração alimentícia, nalgumas catatonias; ou a doença somá-
tica c de considerar-se consequente à psíquica: por exemplo, certas quei-
xas gástricas resultantes de abalos emocionais sérios ou de depressões ci-
clotímicas; ou a doença somática e a psicose independem uma da outra:
por exemplo, carcinoma e demência precoce; ou têm correlação estatística,
indicando conexão na disposição hereditária; por exemplo, tuberculose e
demência precoce. Finalmente, há a possibilidade de a doença somática
ser uma das causas que condicionam o sofrimento psíquico. É a esta úl-
tima correlação que ora daremos atenção.

a) Doenças internas.
Quase todas as doenças somáticas influem, de um modo ou de outro,
sobre a vida psíquica. Inversamente, porém, a vida psíquica influi sobre os
estados somáticos (conforme se discutiu na somatopsicologia). Às vezes,
forma-se, nas enfermidades, um círculo vicioso: o medo da doença gera o
sofrimento cardíaco; este, depois de evoluir somaticamente, aumenta, por
sua vez, com a ansiedade, ou o medo. Uma “superposição nervosa” pode
aparecer em seguida à sintomas somáticos, produzindo doença. O au-
mento da sensibilidade, a concentração da atenção na enfermidade e nos
sintomas possíveis; principalmente, a sugestão involuntária da parte do
médico assistente atuam, neste caso, concomitantemente, no sentido de
criar o quadro em que já não se pode distinguir com nitidez aquilo que é
efeito diretamente somático daquilo que é mais ou menos condicionado
pela psique. Mas, conquanto possível este círculo, existe uma quantidade
de doenças a princípio puramente somáticas a propósito das quais inda-
gamos por que modo atuam sobre a vida psíquica.
Temos, aqui, de distinguir, como sempre, as conexões causais das co-
nexões compreensíveis. As doenças somáticas atuam ou causalmente, in-
fluindo sobre as condições somáticas da vida psíquica no cérebro — quase
sempre por forma desconhecida (toxinas, secreção interna); ou atuam
compreensivelmente por intermédio do modo de vida a que a enfermidade
obriga o indivíduo; e também por intermédio das sensações, das vivências,
do destino que o fato de estar doente lhe impõem. Em todos os tipos de in-
divíduo sujeitos a internação prolongada e de doentes crônicos, é fre-
quente notar estes efeitos; por exemplo, na mesquinhez, na limitação do
horizonte, na sentimentalidade, na chamada demência sanatorial, na ma-
neira de ser egocêntrica e egoística.
Como efeito direto, ocorrem alterações psíquicas ligeiras era toda do-
ença somática: diminuição da produtividade, aumento da fatigabilidade,
tendência a estados de ânimo depressivos ou- eufóricos. Por vezes, é a al-
teração de humor que, primeiro, faz perceber uma doença infecciosa em
incepção; principalmente, nas crianças. Em personalidades absoluta-
mente ajustadas, psiquicamente robustas, estas manifestações não são
comuns; mas noutras — que, por isto, se chamam nervosas — instala-se
um desenvolvimento mais variado.
Nalguns grupos nosológicos, tem-se dado atenção expressa às respecti-
vas consequências psíquicas. Observam-se, nos cardiopatas-, os estados
fisiológicos de ansiedade grave resultantes dos distúrbios circulatórios e
da anóxia tissular. A angina do peito liga-se a ansiedade corpórea intensa.
Mas é notável o fato de observar-se, em certos cardiopatas graves, o es-
casso ou nulo sentimento da doença, que, no entanto, é sempre vivo nas
neuroses cujo centro é o coração.
Na tuberculose pulmonar, a doença mesma não parece ter importância
específica; nem se tem demonstrado sejam a euforia e o aumento do ero-
tismo causalmente condicionados pela enfermidade. Até a diminuição da
produtividade é, às vezes, espantosamente reduzida. Houve grandes ho-
mens que, até pouco antes de morrerem de tuberculose, ainda se apresen-
tavam capazes de criar. Em todo caso, da transformação do perimundo e
da situação para o doente resultam consequências evidentes, que se po-
dem representar numa “sociologia” da tuberculose. Nos sanatórios, o espí-
rito especial da casa, a organização da vida na instituição, as possibilida-
des de ocupação criam estado de ânimo particular. Na comunidade doe
doentes, forma-se um mundo próprio com seus costumes, partidarismos e
intrigas, seus relacionamentos eróticos. Os pacientes, por força da longa
duração do- tratamento, segregados das atividades sociais, correm o pe-
rigo de só poder voltar ao mundo para expor-se a dificuldades das mais
sérias. Observa-se neles a tendência a fixar-se na doença, mesmo que esta
se cure, somaticamente.

b) As doenças endócrinas.
Entre todas as doenças internas, as endócrinas têm assumido para a
psiquiatria a maior importância, visto constituírem ponto de partida de
certas hipóteses que buscam explicar, biologicamente, da maneira mais
ampla, as enfermidades psíquicas. Ê necessário fazer ideia daquilo que, a
esta altura, se tem em consideração, sob o aspecto biológico.
1. O quadro total do evento fisiológico. A vida do organismo é uma
grande unidade, conduzida por sistemas corpóreos conexos: o sistema
nervoso cérebro-espinhal, o sistema nervoso vegetativo, os hormônios das
glândulas de secreção interna. O sistema nervoso cérebro-espinhal dirige
as relações do corpo com o mundo exterior, alcançando o ótimo vital da-
quele em seu perimundo. O sistema nervoso vegetativo (simpático e paras-
simpático) provê o ótimo vital no meio interno das funções somáticas. As
glândulas endócrinas, ou glândulas de secreção interna, que se mantêm
em relação multilateral umas com as outras, preenchem um todo funcio-
nal, regulando os dois sistemas nervosos mediante seus “mensageiros”, os
hormônios, e, de seu lado, sendo reguladas por ambos os sistemas nervo-
sos. O que se chama integração hormonial das funções num todo unitário
realiza-se pelo entrejogo destes três sistemas que se regulam ou dirigem
reciprocamente. Dito em poucas palavras: O todo vital é regulado pelos
sistemas nervosos, como onipresença das mensagens e conexões que as
fibras nervosas transmitem, e pelas substâncias ativas, como onipresença,
propiciada pela circulação sanguínea, de estímulos e inibições. A unidade
da vida, seu plano construtivo, certamente se vê na morfologia do corpo;
mas só se efetua na unidade fisiológica funcional, que constitui coopera-
ção significa dos controles). Não se pode dizer onde é que, nos três siste-
mas reguladores, se acha o centro derradeiro de que parte toda condução.
É discutível que exista. Conforme se apresentem as conexões determinan-
temente reconhecíveis, o controle cabe ora a um, ora a outro dos três sis-
tema e não é possível comprimir a unidade num dentre eles. Toda absolu-
tização de um quadro unitário presumidamente derradeiro rompe-se di-
ante de outras formações unitárias, sem levar nosso conhecimento fisioló-
gico a conclusão alguma. A unidade dos controles hormoniais e nervosos
constitui um todo complicado ao infinito, que só se pode penetrar numas
poucas relações.
O sistema endócrino (também chamado sistema de secreção interna,
ou sistema hormonial) funciona pelo jogo conjugado das glândulas: hipó-
fise, glândulas sexuais, tireoide, paratireoides, suprarrenais, pâncreas etc.
Os hormônios que elas fabricam incluem-se entre as substâncias ati-
vas, ou seja, substâncias que não atuam nutrindo, mas estimulando e re-
gulando. As substâncias ativas trazidas de fora com os alimentos cha-
mam-se vitaminas. As substâncias ativas que se formam no próprio orga-
nismo chamam-se hormônios (isto é, substâncias ativantes). Enquanto os
fermentos são substâncias cuja presença é necessária a determinadas
transformações químicas, (quase sempre processos de desintegração), os
hormônios atuam, apenas, sobre a substância viva. É comum a todas es-
tas substâncias o fato de poderem desenvolver sua função em quantida-
des extraordinariamente reduzidas. Conhecem-se quimicamente algumas
substâncias ativas, podendo-se produzi-las por síntese (entre os hormô-
nios, a adrenalina, os hormônios sexuais; além deles, diversas vitaminas).
São incalculáveis as regulações que se produzem pelos hormônios,
funcionando como mensageiros, ou emissários, dizendo respeito, sobre-
tudo, ao metabolismo, ao crescimento e aos fenômenos de maturação, aos
processos da reprodução, como a menstruação; e também ao comporta-
mento vasomotor, à atividade intestinal etc.
Os hormônios não são específicos do ser humano, mas são os mes-
mos, de modo geral, em todos os vertebrados. Mas a importância ou signi-
ficação vital da unidade das funções vai crescendo até chegar ao homem.
A ablação cirúrgica da hipófise quase não tem consequência apreciável
nos vertebrados inferiores; nos mamíferos, produz distúrbios; a perda da
hipófise leva o homem à morte. É quase só no homem que conhecemos
doenças endócrinas.
Todo este campo de investigação significa revivescência da patologia
humoral de base indubitavelmente empírica. Já não é, decerto, como entre
os gregos, em mistura de sucos absolutamente hipotética que se alicerçam
os temperamentos. Reconhecem-se, todavia, conexões efetivas específicas,
tangíveis, pelas quais se abre à investigação ulterior imenso campo. A
frase de Goethe: “O sangue é um suco inteiramente especial” enche-se de
conteúdo que supera todas as expectativas.
2. Métodos de investigação. Ganhou-se este quadro total provisório
pela associação de métodos de investigação: observação clínica, experiên-
cias fisiológicas e farmacológicas, análises do sangue, pesquisas metabóli-
cas. Foi só graças à colaboração dos especialistas, dos clínicos, dos farma-
cologistas, fisiologistas e químicos que se conseguiram resultados espan-
tosos. A investigação anátomo- patológica das glândulas, as observações
terapêuticas com a administração de extratos glandulares ou de hormônio
obtidos em pureza, a análise farmacológica do sistema endócrino-vegeta-
tivo, as observações serológicas, as experiências em animais têm ampliado
de maneira extraordinária a medicina interna.
3. Doenças endócrinas conhecidas em medicina interna e respectivos
achados psíquicos. O grande campo destas doenças — Basedow, mixe-
dema, tetania, acromegalia, doença de Cushing etc. — não é de discutir-
se, aqui, sequer elementarmente. À psicopatologia interessam, sobretudo,
resultados gerais:
aa) Controle de extraordinária importância exerce a hipófise, cuja sede
é de surpreender esteja no cérebro, na sela túrcica (tornou-se parte do cé-
rebro, ao qual se liga por tratos fibrosos). *‘Todas as correlações que exis-
tem no sistema endócrino passam pelos hormônios glândulo-tróficos do
lóbulo anterior da hipófise.... Não há distúrbio da atividade de uma glân-
dula endócrina a que não se siga alteração morfologicamente tangível na
estrutura da hipófise... Quase não existe processo em nosso organismo
para o qual não se demonstrem influências hipofisárias: a formação do
sangue, o metabolismo proteico, o nível da pressão sanguínea” (Jores).
bb) Ocorrendo doenças endócrinas, falha a regulação, a produção hor-
monial dá-se por forma quantitativamente deficiente, ou a momentos in-
devidos. As regulações neuroendócrinas ficam em estado de labilidade per-
manente. É um sistema que, por assim dizer, se está, constantemente, re-
generando, a partir de uma labilidade, com modificações infinitas de ligei-
ras variações, ao mesmo tempo que aparecem estados diversos de altera-
ções somato-psíquicas. Essa labilidade possibilita as doenças endócrinas.
“Entre os quadros endócrinos marcadamente mórbidos e a norma, exis-
tem transições fluídas; falamos, então, em constituição tireoidiana, acro-
megaloide, tetanoide” (Jores). Discute-se se existem uns tantos pontos de
partida simples, porventura tangíveis, dos distúrbios, ou se se trata de
evento total infinitamente variável. A disposição hereditária desempenha
papel importante, menos pela doença determinada do que pela predisposi-
ção para distúrbios endócrinos, em geral, conforme se deduz da frequên-
cia com que aparecem distúrbios metabólicos e doenças endócrinas em
certas famílias. As doenças endócrinas representam, “em boa parte, insu-
ficiência da pessoa vegetativa, expressão de desequilíbrio entre as exigên-
cias físico- -espirituais e o funcionamento do sistema neuroendócrino” (Jo-
res).
cc) As doenças endócrinas produzem alterações da forma do corpo, da
expressão e da índole dos pacientes. O mixedema, enfermidade tireoidi-
ana, dá lugar a morosidade, lentidão, moleza, apatia, cansaço do olhar;
outra doença da tireoide, o basedowismo, produz: apressamento, inquieta-
ção, angústia, excitação do olhar. Os portadores de acromegalia são quase
sempre “bem-humorados, um tanto obtusos, preguiçosos e lentos; eles
mesmos sentem, claramente, essa alteração do humor que neles se ins-
tala; só uma vez ou outra é que se relata aumento da excitabilidade” (Jo-
res). Em relação à frequência das alterações psíquicas, as psicoses são ra-
ras nos distúrbios endócrinos. Daí Reinhardt dizer que as endocrinopatias
podem todas levar, decerto, a doenças mentais, mas que a importância
prática respectiva para a psiquiatria é mínima.
dd) Onde se acha o fundamento primário dos distúrbios, na conexão
do sistema nervoso central e vegetativo com o sistema endócrino, quase
nunca se pode dizer. Não há unanimidade quanto a se o Basedow é tireoi-
diopatia primária, ou neurose vegetativa primária, ou as duas juntas; ou
ainda, se pode aparecer em ambas as formas.
ee) Supõe-se que as doenças metabólicas que também modificam a
aparência geral do corpo tenham conexão causal com o sistema endó-
crino, o que se prova quanto ao diabetes (pâncreas), alguns casos de adi-
posidade; não quanto à artrite, nem à gota. Pela existência desta conexão
compreende-se o papel que têm o sistema nervoso e o psiquismo nessas
enfermidades.
4. Achados endócrinos nas psicoses. O crescente conhecimento das do-
enças resultantes de distúrbios endócrinos tem também suscitado, sob
novo. ângulo, a inquirição dos fundamentos somáticos dos distúrbios psí-
quicos.
Os resultados, dentro da psiquiatria, não correspondem, infelizmente,
aos acima descritos. Se se procurar formar uma ideia mediante os sumá-
rios que têm sido apresentados, o que se encontra no primeiro plano é a
contradição ruinosa dos lados obtidos. São achados absolutamente parti-
culares, acumulados maciçamente, porém com o valor metódico de sim-
ples amostras, esparsas, não de investigação coerente. As concepções hi-
potéticas têm o perigo, no- entanto, pela utilização dos resultados fisiológi-
cos e clínicos empíricos, que se afiguram brilhantes, de levar-nos a fanta-
siar, seguindo o rumo da antiga patologia humoral.
Não se realizaram as grandes esperanças depositadas na aplicação do
método criado por Abderhalden para determinar a deterioração de órgãos
individuais (tireoide, cérebro, glândulas sexuais) segundo a discriminação
entre as picoe processual e funcionais. Ao que parece, encontra-se alguma
deterioração orgânica em todas as doenças, embora varie a frequência,
embora também se observe, muitas vezes, nos histéricos; raramente, po-
rém, nos indivíduos plenamente sadios. É evidente que os processos se-
cretónos internos, sempre desempenham papel. Em diversidade radical do
conhecimento da medicina interna quanto aos distúrbios específicos liga-
dos à tireoide, hipófise etc. — não existem, até hoje, achados que provem a
significação essencial dos distúrbios endócrinos nas psicoses. O que: há,
apenas, são indícios, que não positivam coisa alguma, empiricamente: re-
lações temporais com processos sexuais na loucura maníaco-depressiva e
na esquizofrenia (nestas, por vezes, aumento inicial do instinto sexual; a
seguir, extinção); em casos particulares, alterações morfológicas e funcio-
nais, lembrando alterações que ocorrem em distúrbios endócrinos conhe-
cidos.
Correspondem a isso outras decepções. Com base na presunção de se-
rem as psicoses condicionadas por deficiência hormonial, administraram-
se, por exemplo, extratos de ovário. Os brilhantes resultados terapêuticos
obtidos não foram, porém, confirmados, doutro lado, nas psicoses. Opera-
ram-se, extirparam-se as glândulas sexuais, a tireoide, na esquizofrenia.
Notável é o fato de quase sempre parecer obterem-se, mediante processos
drásticos, resultados favoráveis, a princípio, para depois o método, factu-
almente ineficaz, apagar-se no silêncio. Inteiramente diversa é a terapia
racional dos internistas; como se dá no caso da cura da tetania por extra-
tos de paratireoides. Faltando nitidez à conexão causai, é sempre duvidosa
a conclusão baseada no efeito de uma terapia. — Destacaram-se achados
anatomopatológicos glandulares em doenças mentais; inteiramente ines-
pecíficos, contudo, para os grupos nosológicos psiquiátricos. — Não se
produziu qualquer prova de causalidade endócrina para as psicoses, a não
ser nos poucos, raros casos, de psicose basedowiana autêntica e outros da
mesma espécie. Em todo caso, não se pode duvidar de que, nas psicoses,
alguma coisa, somática acontece essencialmente importante.
Interessantes são as auto-observações feitas por médicos em estado de
hipoglicemia (devidas à convulsoterapia insulínica): sensação de fome,
cansaço, apatia, aumento da excitabilidade, sensibilidade exaltada aos ru-
ídos, sensação de vazio mental, alteração física da claridade da consciên-
cia, desconhecimento da situação, percepções anormais).
5. Ampliações hipotéticas da concepção endócrina. O sistema endócrino
participa, certamente, em todo evento fisiológico e patológico; mas ás do-
enças específicas do sistema endócrino levam, erroneamente, a usá-las de
maneira precipitada para explicar conexões desconhecidas mediante mera
analogia. Tanto maior é o erro quanto essa participação de tipo secundário
talvez sempre desempenhe papel.
As endocrinopatias modificam a forma e o hábito do corpo. Daí se con-
cebem, sem base empírica determinada, tipos constitucionais, em geral,
como tipo essencialmente endócrinos. O que são os tipos constitucionais
displásicos, eunucoides e outros tipos constitucionais específicos, endocri-
namente condicionados, assim devem ser todos os tipos constitucionais. A
variação dos tipos de estrutura corpórea sadia não pode, entretanto, até o
momento, relacionar-se, de modo algum, com variações das funções endó-
crinas (apesar das pesquisas correlacionais de Jaensch e sua escola).
Falta base à explicação da causalidade endócrina dos tipos de estrutura
corpórea.
As doenças endócrinas modificam a vida psíquica e também produ-
zem, em casos raros, psicoses sintomáticas. Daí afirmar-se, sem funda-
mento, resultarem as psicoses endógenas de enfermidades endócrinas
desconhecidas; os tipos caracteriais, de variações endócrinas. Pelo contrá-
rio, pode-se estabelecer, empiricamente, existir um grupo nitidamente de-
limitado de distúrbios endócrinos somáticos e psíquicos; mas, além disso,
pode-se estabelecer que, apesar de todos os indícios que permitem supor
desempenhem sempre as alterações endócrinas um papel, ainda é presun-
ção sem fundamento, empírico qualquer causalidade essencialmente en-
dócrina das psicoses endógenas, das psicopatias e dos caracteres; presun-
ção que tem levado a discussões das quais resultou a substituição da an-
tiga mitologia cerebral por uma mitologia biológica. Com vistas ao evento
básico misterioso que .se passa nas psicoses e psicopatias e com vistas
aos fenômenos funcionais corpóreos que nelas ocorrem, dizia-se, antiga-
mente, “doença metabólica”; hoje, diz-se “doença endócrina”.

c) As psicoses sintomáticas.
Chamam-se psicoses sintomáticas as psicoses que resultam da ação
causal de uma doença somática sobre as bases corpóreas da vida psí-
quica. Se se conceber o quadro psicótico resultante da doença somática
como reação a essa doença, poder-se-á, tendo em vista a multiplicidade
extraordinária destas formas reacionais, distinguir, não estritamente, mas
em princípio, formas reacionais exógenas e endógenas A Bonhoeffer deno-
minou exógenas aquelas formas reacionais que, exclusiva ou quase exclu-
sivamente, aparecem em resultado de causas somáticas tangíveis (por
exemplo, delírios típicos, síndrome de Korsakov); e endógenas as formas
reacionais que também ocorrem sem qualquer causa externa (alucinoses,
estados crepusculares, amencia etc.).
Se quisermos classificar as psicoses sintomáticas, veremos que, etiolo-
gicamente, quase todas as doenças somáticas acarretam, uma vez .ou ou-
tra, distúrbios psíquicos; e, sintomaticamente, uma variedade de quadros
clínicos ocorre, difícil de abranger; mais ainda: que, ocasionalmente,
quase todos os quadros sintomáticos podem resultar de causas exógenas
(até o momento, são de excetuar-se, por exemplo, as síndromes paranoi-
cas, em sentido mais estrito).
Sintomaticamente, distinguem-se os estados agudos (por exemplo, em
doenças infecciosas) dos estados mais permanente (por exemplo, como
pós-efeitos de doenças infecciosas, como consequência de enfermidades
somáticas crônicas). Entre os estados, agudos, surgem quadros delirantes,
amenciais; entre as formas permanentes, “estados de fraqueza hiperestési-
cos emocionais” (Bonhoeffer) e a síndrome de Korsakov. — Existe entre os
quadros clínicos típicos, que ocorrem nas doenças cerebrais, após envene-
namento e após doenças somáticas, paralelismo sintomatológico evidente.
Todos se originam de causas tangivelmente somáticas.
Não se têm encontrado quadros sintomáticos específicos para certas
formas mórbidas somáticas; por exemplo, o tifo, ou a “febre” sequer. Basta
observar a vida psíquica para supor, em certas condições, uma psicose
sintomática. Diagnosticar a enfermidade só se pode mediante a investiga-
ção somática.
Nas doenças somáticas, é só em número relativamente pequeno de ca-
sos que aparecem psicoses sintomáticas. O fato de a doença ter seme-
lhante efeito deve basear-se numa disposição do indivíduo em causa, con-
forme se provou na encefalite letárgica, que ocorre, preponderantemente,
em pessoas afetadas por degeneração psíquica e somática, dentro de “es-
tirpes degenerativas”.
Além dos casos a classificar entre categorias conhecidas de doenças
somáticas, aparece, nos frenocômios, uma série de psicoses agudas em
meio aos fenômenos concomitantes de enfermidades extremamente gra-
ves, levando, por fim, à morte, sem possibilidade de diagnóstico sequer à
autópsia. Têm-se distinguido desses quadros, conhecidos na história da
psiquiatria como delírios agudos, as paralisias agudas, a coreia grave e
outras doenças infecciosas. Subsiste, entretanto, uma série de casos cuja
natureza se ignora. Acrescem-se aquelas esquizofrenias agudas com fe-
bre1, recentemente estudadas em sua manifestação fisiológica (metabo-
lismo, destruição e neoformação de glóbulos sanguíneos) e classificadas
como grupo somático. Nesse caso, a doença somática, que leva, frequente-
mente, à morte, apresenta-se com sintomas claros, sem que se haja reco-
nhecido “sintoma axial”, nem diagnosticado enfermidade interna.
É estranho que as doenças somáticas não tenham, apenas, conse-
quências danosas para a vida psíquica, mas que produzam, nalguns psi-
cóticos, efeito benéfico ou, raramente, até curativo. Tem-se observado,
amiudadas vezes, que catatônicos absolutamente trancados, muitos anos,
em si mesmos, se tomam, acometidos de tifo, acessíveis, naturais, enfim,
psiquicamente sadios, para, curado o tifo, regressarem ao estado anterior.
Em várias psicoses mal conhecidas (provavelmente, do grupo dos proces-
sos esquizofrênicos) também se têm observado curas permanentes após
doenças somáticas graves (erisipela, tifo).
Se se englobarem todos os fatos, nem sempre é fácil a diferenciação
das psicoses sintomáticas autênticas. São psicoses sintomáticas aquelas,
apenas, que se prendem, causalmente, a uma doença somática conhecida;
donde manterem relação temporal estreita com o curso dessa doença,
quase sempre curando-se antes da enfermidade somática. Não se pode es-
tabelecer diagnóstico seguro só pelos sintomas psíquicos. Uma vez ou ou-
tra, entretanto, também ocorrem sintomas esquizofrênicos, em psicoses
sintomáticas e também c raro observarem-se os “tipos de predileção” bo-
nhoefferianos em esquizofrenias agudas. Cabe distinguir:
1) a mera doença concomitante a uma psicose; por exemplo, todas as
enfermidades somáticas que, por acaso, tanto um esquizofrênico quanto
um indivíduo sadio podem apanhar;
2) a doença somática que desencadeia uma psicose de outra etiologia
(uma esquizofrenia, uma fase maníaco-depressiva; aí se inclui parte das
psicoses puerperais);
3) a doença somática que, não podendo reconhecer-se em seu funda-
mento, pertence, essencialmente, ao processo mórbido, o qual também se
manifesta na psicose (os “episódios febris” da esquizofrenia); a elevação de
temperatura acompanha, paralelamente, a piora do estado psíquico, ao
passo que as doenças concomitantes, por vezes, podem estimular e melho-
rar o estado psíquico.

d) O morrer.
Não se pode vivenciar a morte. Quem vivência está vivo. “Eu sou; por
conseguinte, a morte não é; se a morte é, eu não sou”, disse Epicuro. Mas
aquilo que se vivencia, no processo somático que leva à morte, é de tal or-
dem que também se pode vivenciar, quando, afinal, vem a cura; por exem-
plo, o medo aniquilador da morte que ocorre na angina do peito. Esse
medo elementar da morte é condicionado somaticamente e próprio tam-
bém dos animais; aquilo em que, no entanto, se baseia nem sempre, em-
bora frequentemente, leva à morte. A morte só existe para o saber do ho-
mem e o medo a que nos referimos toma, do mesmo modo que toda vivên-
cia humana, feição nova mediante esse saber; que talvez possa desempe-
nhar papel no curso da doença.
Relata Johannes Lange: “Trata-a de saber se se quer viver, ou se ae
busca a morte como libertação. Só no primeiro caso é que a luta se faz
longa e tormentosa. A luta não tanto pelo ar quanto, sobretudo, pela con-
servação da consciência, é que é o terrível. Pode-se observar que o agoni-
zante está sempre tentando arrancar-se da turvação crescente para a
posse da consciência, com que a novos tormentos regressa. Foi o que ex-
perimentei de modo absolutamente inesquecível, mas só raras vezes: em
russos que morriam sob a ação do fosgeno, num companheiro de armas
que se esvaía em sangue e num cardiopata. Ao que me parece, a persona-
lidade originária tem importância decisiva, nessa verdadeira luta contra a
morte. Só indivíduos extremamente enérgicos correm o perigo de morrer
de morte semelhante. Afinal, no caso deles, o envenenamento progressivo
pelo CO2 traz a turvação crescente da consciência, daí provindo a luta
contra a morte, que lentamente esmorece, puramente somática”.
Do ponto de vista somático, a morte não é processo súbito, :mas lento.
Podem constituir saltos ou brechas repentinos a perda da consciência, a
parada da respiração ou do coração. A morte se dá quando esses estados
se tornam irreversíveis, embora ainda viva uma quantidade de células (e,
experimentalmente, ainda possa ser mantida viva, em parte, cultivada). O
coração de um decapitado ainda bate alguns momentos.
Mas aquilo que pode ocorrer somaticamente — convulsões etc. —
quando já se perdeu a consciência, não se vivencia mais. Daí por que to-
dos os relatos de moribundos se referem ao comportamento diante da
morte e não à própria morte. As manifestações -psíquicas da- agonia são
fenômenos que precedem a morte e constituem objeto de uma psicologia
compreensiva. Os relatos são altamente interessantes.

§ 4. Processos Cerebrais

a) As doenças cerebrais orgânicas.


Os processos cerebrais que conseguimos ver, as chamadas doenças ce-
rebrais orgânicas, produzem quase sempre — havendo, porém, exceções
— alterações da vida psíquica.
Sob o ponto de vista psiquiátrico, o processo cerebral desta natureza
mais importante é a paralisia geral a que se acrescem: doenças cerebrais
orgânicas da vida fetal e da primeira infância, das quais resulta a idiotia;
tumores cerebrais de toda sorte (glioma, cistos, cisticercos etc.) ; absces-
sos, encefalites, meningites, feridas do cérebro, hemorragia e amoleci-
mento, processos arterioscleróticos difusos, a doença de Alzheimer, com
suas características anatômicas especiais, a lues cerebral, a coreia de
Huntington, etc. Todos esses processos cerebrais se acham, exclusiva-
mente, com. base em sintomas somáticos, delimitados uns dos outros; é
só pelos sintomas somáticos, neurológicos, que se diagnosticam com segu-
rança.

b) Sintomas gerais e específicos.


Entre os sintomas neurológicos, existem, além daqueles que são mais
ou menos específicos de certas enfermidades (sacudidelas coreicas, nis-
tagmo, tremor intencional, fala escandida, rigidez pupilar aos reflexos
etc.), os sintomas geralmente difusos, que não são específicos de determi-
nado processo: ataques convulsivos, sintomas de hipertensão cerebral etc.
As alterações psíquicas propriamente ditas não são, provavelmente, espe-
cíficas de qualquer processo cerebral orgânico que se possa determinar,
conquanto a frequência com a qual certas alterações se apresentam seja
característica de alguns casos particulares. Assim é que, no curso da pa-
ralisia geral, sempre se constata demenciação geral muito acentuada, que,
no entanto, é rara na arteriosclerose, substituída, preferencialmente, por
uma demência parcial, mais ou menos conservando-se a personalidade
originária. Se, todavia, se confrontarem as manifestações dos processos
cerebrais com as demais psicoses, ver-se-á que aqueles possuem certos
sintomas característicos, os quais se apresentam em muitos dentre eles,
ou em todos. Vemos, por exemplo, no setor psíquico, ocorrendo doenças
cerebrais orgânicas, que é frequente a repetição dos seguintes grupos sin-
tomáticos:
• 1. Estados de turvação, nos quais os pacientes podem apresentar
todos os graus que vão da consciência clara ao coma mais pro-
fundo. Consciência vazia, sonolência, dificuldade de concentra-
ção, apreensão, difícil, reação lenta, languidez, fatigabilidade, di-
ficuldade de orientação, que não chega à falsa-desorientação —
são característicos desses estados. Não é raro acrescentarem-se:
• 2. Estados delirantes. A consciência não está vazia; não há sono-
lência, mas vivências desgarradas umas das outras se desenvol-
vem num estado confuso, com desorientação; o doente entrega-
se a ocupações ilusórias, vagueia pela casa à procura de alguma
coisa, dá nós na coberta da cama etc. Quase sempre há, depois,
amnésia. 3. Característica dos processos cerebrais orgânicos é o
complexo sintomático ou síndrome de Korsakov; distúrbio consi-
derável da capacidade de fixação, com desorientação e confabu-
lações inúmeras são os marcos principais.
• 3. Finalmente, nos processos cerebrais orgânicos, aparecem alte-
rações do caráter, que se podem explicar pela supressão das ini-
bições, antes normais para o indivíduo em causa; abandono aos
estímulos instintivos, labilidade afetiva, de modo que o riso e o
pranto se alternam fáceis.
• 4. Mais ainda: observam-se, de um lado, disposições de humor
eufóricas; doutro, irritáveis, taciturnas, negativas; qualquer con-
tradição leva alguns doentes ao furor. A inteligência enfraquece-
se, devido à. diminuição da memória e da concentração; mas
também é frequente apresentar-se deteriorada, de modo que os
enfermos perdem a capacidade de julgar e nem eles mesmos no-
tam estarem cegos e paralíticos.
• 5. É típico, após traumatismos cranianos, um “complexo sinto-
mático cerebral: cefaleia, vertigens, distúrbios da memória e, es-
pecialmente, da capacidade de fixação; anomalias afetivas (de
um lado, obtusidade; doutro, explosividade); hiperexcitabilidade
dos órgãos superiores dos sentidos, intolerância ao álcool, sensi-
bilidade à pressão e à percussão cranianas. Não se conhece
achado- histológico correspondente.
Além destas manifestações características, aparecem, ocasionalmente,
nas doenças cerebrais orgânicas, sobretudo no início, quase todos os fenô-
menos psíquicos mórbidos que, de modo geral, ocorrem. Estas palavras
não se aplicam a uma série de processos subjetivamente vivenciados (a se
investigarem fenomenologicamente) da vida psíquica esquizofrênica, ao
passo que os sintomas catatônicos objetivos já se observaram repetidas
vezes.
Não há, no setor psíquico, sintomas específicos de determinadas doen-
ças cerebrais orgânicas-, mas outra questão é saber se não- existem sinto-
mas psíquicos específicos conforme o local do cérebro, que o processo
mórbido atinge. Esta questão é, em princípio, da maior importância: é a
questão da localizabilidade do psiquismo. A resposta que se lhe dê deter-
minará, por forma decisiva, a concepção básica que temos da vida psí-
quica e do homem. Daí porque a questão interessa ao máximo psicólogos e
psicopatologistas, desde o momento em que foi suscitada.

c) História do problema da localização.


Não é, em absoluto, evidente seja o cérebro a sede da alma. Bichat
ainda ensinava que a sede da inteligência era o cérebro, realmente; mas
que a sede dos sentimentos eram os órgãos da vida vegetativa: o fígado
(raiva), o estômago (medo), os intestinos (alegria), o coração (bondade). Já
Alcmeón (500 A.C., mais ou menos) sabia, entretanto, que o cérebro era o
órgão da percepção e do pensamento. De que modo, porém, o cérebro e a
alma se comportam um em relação ao outro e o que é que se quer dizer, a
rigor, quando se diz que a alma tem sede no cérebro — são questões de
que resultam, a consideração mais próxima, antinomias insolúveis. Nou-
tros tempos, admitia-se, ingenuamente, um pneuma, matéria, por assim
dizer, extremamente delicada, que seria, ao mesmo tempo, a alma;
pneuma que se disseminaria, onipresente, tal qual fogo relampejante, pelo
cérebro b pelas veias, mas, enfim, se confinaria em determinado lugar.
Descartes associava a alma, que julgava absolutamente imaterial, à glân-
dula pineal; e Sõmmering transferia a alma para o líquido dos ventrículos
cerebrais; Kant, porém, respondendo a todas as indagações, dizia não só
ser impossível imaginar a alma materialmente, de qualquer forma que
fosse, mesmo que muito sutil, mas também não poder a alma, que só é
determinável segundo o tempo, ter sede no espaço. Poderia haver, sim, ór-
gãos da alma, mas sede da alma, não; e esse órgão — assim dizia, respon-
dendo a Sõmmering — tinha de ser organizado, mas não podia ser fluído.
Vale, até hoje, o que disse Kant, constituindo, porém, conhecimento crí-
tico, não positivo.
Não foram especulações, pretendendo resolver toda a questão de um
golpe, que fizeram progredir o conhecimento; e sim experiências concretas
e precisas, que, todavia, até o presente, se têm associado, rapidamente, na
maior parte das vezes, a afirmações gerais e absolutizantes.
Gall foi o primeiro que, metódica e obstinadamente, inquiriu não da
sede da alma, mas da localização de certas propriedades psíquicas (quali-
dades do caráter) e funções também psíquicas no cérebro multiplamente
diferenciado ou estruturado. É notável o fato de que, nele, desde o início,
como foi marcante para a pesquisa ulterior no mesmo campo, as desco-
bertas mais extraordinárias se hajam associado a uma fantasmagoria infe-
cunda. Gall descobriu o cruzamento das vias piramidais e explicou a he-
miplegia em conexão com o foco cerebral localizado no lado oposto: desco-
berta eterna. Distinguiu o dom da fala e o dom para a matemática, noção
fisiológica cuja exatidão só tem o defeito de ser um tanto imprecisa. Locali-
zou esses dons, juntamente com uma quantidade de qualidades caracteri-
ais, que discriminou, em determinados lugares da superfície cerebral, cujo
desenvolvimento mais ou menos marcado deveria mostrar-se nas formas
palpáveis do crânio (frenologia). Esta concepção, que se diluiu em nada,
fez dele, no entanto, o fundador do pensamento psicológico localizativo,
que verificara, com tanto brilho, no setor neurológico.
Pela falta de base de quase todas suas ideias, foi fácil combatê-lo.
Flourens (1822) tomou a posição diametralmente oposta. Experiências de
ablação do cérebro de animais viriam mostrar que a destruição da subs-
tância cerebral prejudica todas as funções psíquicas e que um resto de cé-
rebro realiza, novamente, cessado o traumatismo, todas as funções. O cé-
rebro seria unitariamente edificado; não haveria localização. A Academia
de Paris investigou e rejeitou as ideias de Gall, através de uma comissão
de que faziam parte pesquisadores da importância de Cuvier e Pinei. Estes
declararam ser o cérebro um órgão glandular, homogeneamente constitu-
ído.
Entretanto, os magníficos sucessos ulteriores da pesquisa vieram a dar
razão ao pensamento básico do fantástico Gall (a localizabilidade da fun-
ção e a diferenciação da substância cerebral), em oposição aos referidos
naturalistas críticos e sóbrios. Broca (1881) observou e descreveu, irrefu-
tavelmente, distúrbios da fala por destruição de certas áreas corticais do
hemisfério esquerdo. Hitzig e Fritsch (1870) mostraram que certas áreas
corticais dão efeitos motores extremamente diferenciados à excitação elé-
trica. A partir daí, a localização é um fato. A questão é, apenas, saber o
que é que se localiza. Resultados seguros, na maior parte dos casos, ’são
os que se obtiveram no campo neurológico. Há especificidade de sintomas
neurológicos segundo a localização do processo em determinado lugar do
cérebro. A observação clínica, em comum com as experiências fisiológicas,
deram desenvolvimento extraordinário à teoria neurológico-fisiológica da
localização. A questão é em que sentido existe localização de distúrbios
psíquicos.
No entusiasmo que o êxito rápido das descobertas neurológicas con-
cernentes à localização suscitou, participando das mesmas ele próprio,
Meynert esboçou um quadro amplo do evento cerebral e psíquico, cujo
pressuposto, não meditado e de bases quase não conscientes, consistiu nó
seguinte: os objetos da apreensão psicopatológica (os fenômenos psíqui-
cos, vivências, qualidades caracteriais, conexões compreensíveis etc.) de-
vem ser concebidos segundo a analogia do evento espacial cerebral; em
outras palavras: a estrutura da vida psíquica, tal qual a representamos
com base na variação múltipla do pensamento psicológico, deve corporifi-
car-se na estrutura do cérebro; noutras palavras ainda: a estrutura da
vida psíquica e a estrutura cerebral devem coincidir. Este pressuposto
nunca se provou; e não é de provar-se, porque lhe falta sentido. O que é
heterogêneo não pode coincidir, mas apenas, quando muito, servir uma
coisa para exprimir, metaforicamente, a outra. O pressuposto mencionado
surgiu da necessidade de objetividade apreensível no espaço, necessidade
que não pode ser satisfeita no pensamento e na pesquisa psicológicos pro-
priamente ditos; sobretudo, porém, o mesmo pressuposto surgiu das ten-
dências peculiares aos tempos modernos, que se orientam pelo positi-
vismo e pelas ciências naturais.
O esquema de Meynert foi produtivo para o conhecimento do cérebro.
Sua concepção da estrutura total do sistema nervoso central, dos campos
de projeção sensoriais e motores, dos sistemas de associação etc. continua
a ter validez anatômica. Mais ainda: Meynert, do mesmo modo que Gall,
associou modos de ver reais a -fantasias ricamente desenvolvidas, só que
de conteúdo inteiramente outro. Porque explicou todo o evento psíquico
exprimindo-o em termos de estrutura cerebral e processo cerebral, fanta-
siou em roupagem científica por forma absolutamente não-científica.
A frase de Griesinger: “As doenças mentais são doenças do cérebro” de-
veria, a esta altura, encher-se de conteúdo concreto. E semelhante con-
cepção básica afigurou-se plenamente sucedida, quando a ela aderiu Wer-
nicke, mentalidade superior que se deixou agrilhoar em sua teoria da afa-
sia. Wernicke descobriu a afasia sensorial e sua localização no lobo tempo-
ral esquerdo; esboçou um esquema fundamental, no qual uma análise
psicológico-associativa dos rendimentos fonatórios e intelectivos havia de
coincidir com uma distribuição topográfica no córtex do lobo tempo-frontal
esquerdo. O que designou como sendo “arco psíquico reflexo” ou “doença
psíquica focal” pareceu comprovar-se no campo da afasia, porque sua
concepção, realmente, deu origem, no caos dos fenômenos, a um ordena-
mento que clarificou e enriqueceu a concepção clínica; com o que, no en-
tanto, se negligenciaram, a princípio, as inúmeras discrepâncias. “A aná-
lise da afasia dá-nos o paradigma de todos os processos mentais”: esta
frase transformou o esquema em fundamento sobre o qual se baseou toda
a psiquiatria no pensamento localizatório cerebral. Embora, no entanto,
errada, a concepção básica foi produtiva (como é frequente acontecer com
certos erros fundamentais, quando são grandes os homens que os ado-
tam). Alunos de Wernicke, como Liepmann e Bonhoeffer, fizeram desco-
berta sobre descoberta, sacrificando, todavia, os princípios básicos e man-
tendo atitude que consistiu em aderir ao que era empiricamente demons-
trável, na medida em que, tanto quanto possível, se apresentava demons-
trável somaticamente. Graças aos dois referidos autores, as fantasias su-
miram; mas o modelo do próprio Wernicke facilitou a volta das mesmas na
presteza com que se construíram localizações hipotéticas, como foi o caso
de Kleist, sempre associado, embora, à energia descobridora.
Em relação a todo esse movimento é, objetiva e historicamente, do
maior interesse o fato de que, a princípio, as personalidades que mais se
destacaram na pesquisa; que conheciam o material fatual da teoria da lo-
calização em seus traços fundamentais; que, em parte, o criaram, eles
próprios — hajam sido adversários, em princípio, da localização das fun-
ções psíquicas no cérebro; por exemplo, Brown-Séquard, Goltz, Gudden;
também é interessante haja vindo juntar-se-lhes von Monakov.

d) Os grupos de fatos essenciais concernentes ao problema da localiza-


ção.
Os três grupos de fatos — quadros clínicos, a estrutura do cérebro,
achados anátomo-patológicos — são de investigar-se e têm-se investigado
separadamente. Só a relação entre eles é que possibilita perceber a locali-
zação dos fenômenos. Ao passo, no entanto, que o refinamento da pes-
quisa cada vez mais separa os três campos e lhes dificulta o relaciona-
mento recíproco, uma localização em largos traços se afigura muito mais
clara.
1. Fatos clínicos.
Temos a quantidade impressionante dos fenômenos que se seguem a
lesões cerebrais, tumores, todos os processos cerebrais orgânicos que se
observam, clinicamente, no homem e que se têm comparado, às vezes,
com os achados topográficos cerebrais da autópsia ou das operações tu-
morais.
aa) Investigando distúrbios de rendimentos evidentes, específicos, in-
quire-se o lugar no cérebro que seja lesado, regularmente, quando eles
ocorrem. Nos distúrbios afásicos, apráxicos e agnósticos, encontram-se,
na maioria dos casos, destruições grosseiras de certas áreas cerebrais. Na
afasia motora, por exemplo, encontra-se destruição na terceira circunvolu-
ção frontal esquerda; na afasia sensorial, no lobo temporal esquerdo; na
cegueira psíquica, nos lobos occipitais etc. A “demolição da atividade per-
ceptiva” é localizável, relativamente às diversas áreas sensoriais, na super-
fície cerebral.
A ideia atual, segundo a qual se classificam estes achados, é a se-
guinte: o córtex cerebral divide-se em campos de projeção sensoriais. e
motores; assim, é que o campo visual se situa no lobo occipital; o campo
auditivo, no lobo temporal; a esfera tátil, no lobo parietal; a esfera das re-
cepções labirínticas e mioestésicas, no lobo frontal etc. Em relação direta
com eles estão sempre os campos correspondentes, a cuja destruição apa-
recem agnosias e apraxias, afasias sensoriais e motoras. Se chamarmos
psíquicos estes últimos distúrbios, haverá em todos os campos, segundo
Kleist, uma estrutura tripartite, dividida em esferas sensorial, motora e
psíquica. A questão, entretanto, é saber em que sentido se podem chamar
psíquicos esses distúrbios afásicos, agnósticos e apráxicos. Além do mais,
é apenas grosseira a localização. A investigação psicológica mais apurada
dos rendimentos, com que Head estendeu de em muito o esquema inicial
de Wernicke, não acarreta, em absoluto, localização refinada.
bb) Inquire-se a localização dos fenómenos vivenciados. Se, no entanto,
revisarmos a multiplicidade existencial da vida psíquica anormal, que a fe-
nomenologia nos ensinou, e indagarmos onde se localizam, no cérebro, es-
pecialmente, certos fenômenos — quais sejam, as ideias delirantes, as fal-
sas-recordações, o dèjà vu etc. — não encontraremos resposta. Nada sabe-
mos das bases específicas desses fenômenos particulares. Só quanto às
falsas-percepções é que há uma série de observações interessantes. Têm-
se visto aparecerem alucinações em relação com doenças dos órgãos sen-
soriais periféricos e do lobo occipital. Quanto a uma causa específica e
sempre necessária, nada se sabe; pelo contrário, as poucas observações
até o momento feitas sugerem a ideia de que as falsas-percepções se dis-
tingam, em princípio, conforme a respectiva gênese e de que as há de mui-
tas espécies. A dependência das alucinações em relação a determinadas
áreas do sistema nervoso, desde o órgão dos sentidos periféricos até o cór-
tex cerebral, não significa qualquer localização específica, e sim a vincula-
ção dos sentidos ao aparelho perceptivo fisiológico, em geral.
cc) Ê característico o fato de os sintomas que se podem relacionar com
determinadas áreas cerebrais serem aqueles cujo caráter psíquico propria-
mente é duvidoso. O que há são sempre distúrbios instrumentais, ou ma-
nifestações de que existe falha ou excitação senso-motora de tipo compli-
cado; as quais estão presentes na vivência como substância desta, mas
não pertencendo, na realidade, originariamente, ao psiquismo.
Outra coisa é quando se parte de certos territórios cerebrais- e se in-
quire que distúrbios psíquicos ocorrem quando os mesmos. estão lesados.
Observam-se, então, alterações psíquicas de toda sorte, indo até altera-
ções de caráter; de maneira tão variada, porém, que não é fácil relatar fa-
tos realmente precisos. Vamos destacar alguns pontos.
Se, dividido o córtex cerebral, se chamarem campos corticais primários
os campos de projeção, que comandam, segundo localização comprovada,
os impulsos motores para as diversas áreas somáticas e que são os pri-
meiros a receber as impressões sensoriais, restam, como campos secun-
dários, todos os demais; os quais, comparados com os cérebros de ani-
mais, mesmo com o do macaco, são muitíssimo mais vastos do que os pri-
mários. Nesses campos secundários, os distúrbios agnósticos e apráxicos
(cegueira cortical, surdez cortical, afasia e apraxia) ainda estão localizados
na vizinhança dos campos primários correspondentes, se bem que menos
precisamente do que as funções elementares. Resta uma grande área do
córtex cerebral, que não está ocupada, na qual, bem como na massa res-
tante do cérebro, se considera localizada a vida psíquica superior. Em con-
fronto com o tronco cerebral, este cérebro representa a massa principal
preponderante; nela e no tronco cerebral quiséramos poder localizar.
Lobo frontal. De todas as partes do cérebro, considera-se o lobo frontal,
que é inteiramente livre de campos de projeção, particularmente ligado à
psique, concepção esta que talvez haja surgido, inconscientemente, do fato
de ser o lobo situado mais adiante, próximo à fronte.
Considera-se o sintoma mais característico da lesão do lobo frontal,
sintoma que, por vezes, sugere ao especialista um diagnóstico imediato, a
fraqueza dos impulsos, que é frequente ocorrer, e que Beringer observou e
descreveu, psicologicamente, com particularidades, num caso de tumor
frontal bilateral, curado pela cirurgia.: O doente está consciente, vê, ouve,
apreende o que se passa a sua frente, responde, conversando, pronta e
adequadamente, às perguntas, não dá impressão de paralisia, nem de ob-
tusidade; a essa altura, não chama a atenção de quem quer que o escute,
embora a conversa nunca vá adiante por sua iniciativa. Entregue a si
mesmo, afunda na inatividade; e mesmo exercendo as atividades cotidia-
nas, que empreende se solicitado, não tarda a parar. Se tiver começado a
barbear-se às oito horas, pôde acontecer que, às 12, semivestido, ainda
não tenha acabado, com o aparelho na mão e algumas passadas de es-
puma ressecada no rosto. Nada acontece nele. O estado que se observa é
de um vazio da consciência, a figura de um homem que não parece ter
mais qualquer background vital. Não padece de aborrecimento, não sofre
com sua doença; é como se fosse mero espectador do que se passa. Se lhe
perguntam como está, mostra-se contente, está passando bem. Se lhe per-
guntam pela doença, responde: “Estou notando que alguma coisa não está
certa, mas nem eu sei o que é”. Há paralisia de muito mais que o mero im-
pulso: faltam os movimentos afetivos; está bloqueada a totalidade do com-
portamento especificamente humano-psíquico. Existe um vazio mental e
vivencial, no qual nem passado, nem futuro desempenham papel algum.
Resta um organismo somático intato, com um eu apenas formal, capaz,
certamente, de perceber, apreender, recordar, fixar, mas sem espontanei-
dade, sem participação, descolorida, indiferentemente satisfeito.
Descrevem-se ainda muitos outros distúrbios psíquicos nas lesões do
lobo frontal. A fraqueza dos impulsos deve provir mais das lesões da con-
vexidade do lobo, ao passo que uma alteração do caráter resultaria, mais
frequentemente, do córtex basal (lobo orbitário): comportamento atolei-
mado-eufórico e irritável, inibição dos impulsos e procedimento associai,
diminuição da crítica e da consciência da situação, conservados os rendi-
mentos mentais e mnêmicos bem aprendidos; mais ainda: pendor para a
malevolência e para o divertimento à custa dos outros, além da sempre ci-
tada chistosidade (que, entretanto, contados os casos individuais, só se
observam em minoria muito pequena).
Tronco cerebral. As destruições do cerebelo não produzem fenômeno
psíquico algum; o mesmo, entretanto, não se dá em relação ao tronco ce-
rebral, que, por sua massa, parece ter muito menos importância. As ob-
servações feitas nos últimos decênios têm esclarecido certos sintomas psí-
quicos ligados ao tronco cerebral, sintomas muito 'relevantes para a com-
preensão da vida psíquica dependente do cérebro. Decerto, toda a riqueza
da vida psíquica depende da poderosa massa que o cérebro constitui. Mas
o tronco cerebral parece preencher funções elementares, necessárias, que
suportam toda a vida psíquica; e o caráter destas funções, conquanto
ainda se afigure difuso, nem por isso deixa de apresentar traços essenciais
que não se podem deixar de reconhecer. Daí certas observações especiais,
na encefalite letárgica e na doença de Parkinson, bem como em tumores e,
por fim, em pesquisas fisiológicas, haverem levado à constatação de um
quadro geral.
O famoso cão descerebrado de Goltz (cão a que se extraiu, cirurgica-
mente, o cérebro, sem com isso matá-lo) mostrou o que é possível sem o
cérebro, apenas com o tronco cerebral: sono e vigília, estação em pé, cor-
rida, comer e beber, reação à luz e a sons de trombeta, fúria e certos estí-
mulos.
O quadro geral dos distúrbios do tronco cerebral, do corpo estriado
para baixo, é quadro clínico sem localização exata, mas apenas se apre-
sentando, na maior parte dos casos, localizado, de modo geral, no tronco
cerebral. São os seguintes os sintomas:
Hipercinesias. Sacudidelas musculares, movimentos espontâneos invo-
luntários (coreia), movimentos associados, movimentos balísticos, contra-
ções convulsivas, movimentos atetóticos, tremores. — Acinesia. Quadro
parkinsoniano; lentificação das inervações voluntárias. Tensões muscula-
res rígidas. Tendência a certas posturas: mãos em garra/ movimentos vo-
luntários escassos, impressão de rigidez facial, apagamento da mímica. Fi-
sionomia tal qual máscara. Movimentos do corpo dando a impressão de
automáticos. Ausência de movimentos associados. Sem paralisia, a parte
superior do corpo inclina-se para diante, os ombros pendem, a boca man-
tém-se aberta. Impossibilidade de executar vários movimentos ao mesmo
tempo; por exemplo, caminhar para frente enquanto se varre com uma
vassoura. Este quadro geral do parkinsonismo parece puramente motor,
não psíquico; mas os sintomas descritos não só têm consequências para a
psique (por exemplo, com a compensação dos movimentos involuntários
espontâneos, que faltam, pelos voluntários), como se apresentam, conco-
mitantemente, distúrbios que têm, eles próprios, caráter psíquico.
aa) Lentificação psíquica geral, que dá a impressão de sonolência crô-
nica e que se tem localizado, presumidamente, na substância cinzenta pe-
riventrular, fazendo crer em lesão do “centro da vigília”, o qual se distribui
por sobre toda a substância cinzenta.
bb) A falta de manifestação espontânea reside no fato de falhar a dire-
ção impulsiva que é, habitualmente, involuntária quando nos movemos;
falha esta que atinge tanto os movimentos corpóreos quanto o curso do
pensamento; tanto os atos habituais quanto os movimentos instintivos. É
indispensável para nós um impulso; a vontade sozinha não pode manter-
nos os movimentos em marcha. Foi apenas pela observação de pacientes
deste tipo que se esclareceu a existência do referido impulso. O impulso é
a direção que se dá involuntariamente à atenção; é fato derradeiro, irredu-
tível. Se faltar, o enfermo vale-se de sua vontade, capaz que é, intencional-
mente, mas sempre apenas em parte e sem destreza, de realizar aquilo
que já não lhe é possível de modo espontaneamente involuntário. O doente
consegue endireitar, intencionalmente, a postura descaída; basta, con-
tudo, que deixe de atentar para isso, e torna a pender para diante. Dado,
porém, que todo ato de vontade precisa, para realizar-se, de um resto
ainda de impulso, o próprio ato de vontade, que poderia romper a acine-
sia, falha também, nos casos graves. Por fim, ainda valem, de um lado, os
estímulos externos (incitado ou comandado, o paciente ainda consegue re-
alizar o que por si já não consegue) e também as ideias que tenham conte-
údo afetivo, como o medo. Uns e outros possibilitam o que já não ocorre
espontaneamente. Os doentes servem-se disso, às vezes, excitando-se a si
mesmos, a fim, por esse meio, de forçar a prática dos atos desejados.
A distinção entre esse distúrbio do impulso e a fraqueza do impulso
que se nota nas doenças do lobo frontal faz-se, de modo geral, pelos sinto-
mas concomitantes. Fora isso, todavia, os dois fenômenos homônimos têm
de distinguir-se um do outro. O distúrbio frontal do impulso reside, por
assim dizer, na personalidade; não é conscientizado como tal, mostra-se
no próprio pensamento e vontade; do distúrbio estriar do impulso o indiví-
duo tem noção, está consciente de sua existência; o distúrbio reside no
instrumento e pode ser superado, cm certa extensão, momentaneamente,
pela vontade e pelo esforço. Uma análise psicológica apurada, tal qual a
iniciou Beringer, pode esclarecer a situação e chegar, talvez, a limites nos
quais se possam determinar, indiretamente, certas funções elementares
extraconscientes.
cc) Observam-se manifestações iterativas e fenômenos obsessivos. Um
paciente reza, sem parar, o Pai-Nosso; do que só restam, afinal, movimen-
tos rítmicos do maxilar inferior (Stetiner). Aparece um assobiar incessante,
ou um rugir compulsivo. A fala leva a repetição de frases; muitas vezes,
em andamento acelerado, como se houvesse uma compulsão.
dd) Nas crianças e nos adolescentes, sobretudo, e tanto no estádio
agudo da encefalite quanto ulteriormente observa-se um desassossego,
uma inquietação motora, um ir-e-vir sem finalidade; o paciente dá nomes
aos objetos, pega neles, assalta todas as pessoas com pedidos que não têm
nenhuma carga propriamente, afetiva; sobrevêm afetos coléricos desmedi-
dos, levando à prática de violências. A diferença cm relação aos estados
maníacos está na disposição de ânimo aborrecida e desconfortável dos do-
entes, que procedem ora zangados, ora pegajosos. A índole se altera de
modo aparentemente típico.
ee) Acreditou-se na possibilidade de haverem os sintomas estriares en-
sinado um fato que pudesse fazer concebível a localização dos distúrbios
catatônicos dos esquizofrênicos', esperança que não se realizou. É prová-
vel que certos casos raros sejam combinação de encefalite letárgica e es-
quizofrenia. Se as manifestações catatônicas têm base anatômica, esta
deve ser de caráter diverso daquele que corresponde aos sintomas estria-
res. As manifestações que se afiguraram, à primeira vista, parcialmente
semelhantes vieram sempre a mostrar-se diferentes, à análise mais, pre-
cisa. Assim é que, no estupor esquizofrênico, existe imobilidade; diferente,
no entanto, da acinesia estriar da encefalite; nos catatônicos, a inexpressi-
vidade fisionômica não é rigidez mímica; a resistência, que se mostra nos
movimentos passivos e no negativismo, é antagonismo ativo, e não a rigi-
dez encefalítica; é perseveração em certas posturas, e não falta de espon-
taneidade.
Esses distúrbios que ocorrem nas lesões do tronco cerebral, quadro in-
confundível e impressionante sujeito a inúmeras variações, mostram-nos,
pela perda de funções grosseiramente localizadas, um elo que de modo al-
gum se conseguiu, até hoje, descobrir na estrutura de nossa vida somá-
tico-psíquica; elo que, colocado além dos rendimentos individuais possí-
veis de apreender com exatidão neurológica, parece penetrar no psi-
quismo. Toca-se num mistério dos “impulsos” e do respectivo efeito. De
um modo ou outro, a consciência depende do tronco cerebral, pelo qual o
cérebro pode ser entregue à inconsciência e no qual se realiza um controle
sono-vigília.
Enfim, muitos sentimentos vitais parecem ligar-se ao tronco cerebral;
sentimentos que se podem considerar elos intermediários entre os proces-
sos puramente vegetativo-fisiológicos e os fenómenos psíquicos; hoje em
dia, é de bom grado que se concebem esses sentimentos como “pessoa vi-
tal”, ou “pessoa profunda”. Certas alterações do tecido cerebral, localiza-
das em redor dos terceiro e quarto ventrículos, acompanham-se, muitas
vezes, de apetites e desejos singulares” 1. Recordemos x>s fenômenos so-
máticos concomitantes aos afetos; os efeitos hipnóticos sobre o evento so-
mático. Os sentimentos vitais parecem, nos movimentos afetivos, ser al-
guma coisa elementarmente corpórea ou somática e, ao mesmo tempo,
psíquica, relacionada com os impulsos.
Paralisia da função cerebral total. Kretschmer descreve um complexo
sintomático que considera manifestação de falha de todo o manto cerebral,
embora se conservem as funções cerebrais; estado este semelhante, por
exemplo, ao do cão descerebrado de Goltz (nas pan-encefalites, ferimentos
a bala no cérebro, sífilis cerebral, ou fase transitória da arteriosclerose
grave):
O paciente está deitado, desperto, com os olhos abertos. Não há sono-
lência. Apesar da vigília, incapacidade de falar, reconhecer, executar movi-
mentos significativos (paragnosia e parapraxia). À deglutição e outros re-
flexos estão conservados. O olhar não se fixa. Quando alguém lhe fala, ou
lhe mostra objetos, o doente não produz respostas alguma significativa.
Perseveração em posturas casuais ativa ou passivamente formadas. Os es-
tímulos sensoriais podem ser respondidos com sacudidelas; faltam os mo-
vimentos reflexivos de fuga e defesa.
ff) Generalidades sobre a localização clínica. O levantamento de uma
localização unívoca de achados clínicos é dificílima. Seria preciso relacio-
nar alterações cerebrais nitidamente delimitadas com manifestações de fa-
lha e alterações psíquicas também nitidamente fixadas. Em primeiro lu-
gar, no entanto, são raros os casos idênticos comparáveis (um caso não
prova muita coisa por si, porque pode ser ocasional). Em segundo lugar,
das lesões cerebrais locais (principalmente, tumores) partem, pela com-
pressão do órgão, efeitos remotos sobre áreas absolutamente diversas do
cérebro; áreas em que, certamente, enquanto a pressão subsiste, ocorre
lesão funcional, sem alteração permanente, contudo, da substância cere-
bral. Em terceiro lugar, é comum um processo mórbido atingir territórios
difusos e ocupar, com frequência, muitas localizações simultâneas. Daí
haver essa quantidade de observações, as quais (plenamente sucedidas do
ponto de vista puramente neurológico) mostram, no tocante aos fenôme-
nos psíquicos, a estreita relação entre cérebro e psique; mas de tal modo
parecem desprezar regras e leis, ou não fixá-las com rigor, que, apesar de
aumentarem as observações clínicas, todos os sistemas, que, durante
certo tempo, se apresentavam convincentes, tornaram a ser relegados.
Certamente, os fenômenos psíquicos não são causais; quem pesquisa per-
suade-se até ao contrário. Todavia, quando queremos apreender a lei, esta
nos escapa, no intrincamento das conexões.
Exemplo-modelo e ponto angular de todas as ponderações topográficas
em relação ao psiquismo são os distúrbios afásicos, apráxicos e agnósti-
cos. Se se quiser penetrar na significação teórica dessa localização, é ne-
cessário conhecer os seguintes fatos:
1) que, em casos individuais, se observam aquelas manifestações mór-
bidas sem destruição das partes corticais em causa, e sim, antes, de ou-
tras, vizinhas;
2) que o grau das manifestações mórbidas não tem relação regular, ab-
solutamente, com a extensão da destruição grosseira. Para conceber esta
incongruência, estabeleceu-se a distinção entre sintomas residuais, que
sempre subsistem, em princípio, quando há destruição local, e que se li-
gam a essa localização, e sintomas temporários, que desaparecem, em-
bora, às vezes, só após muito tempo.
Tentam-se explicar os sintomas temporários pelo efeito remoto, pelo
choque; o desaparecimento, pela extinção desses efeitos, ou pelo apareci-
mento vicariante de outras funções ou partes. Funda-se a referida distin-
ção, empiricamente, no restabelecimento amplo que se observa após le-
sões cerebrais, quando se remove o processo mórbido como tal. Os sinto-
mas residuais que se podem considerar seguramente localizados são, po-
rém, até o momento, destruições de funções neurológicas primitivas: para-
lisias, ataxias, deficiências sensoriais. O que é temporário, nos distúrbios
afásicos, apráxicos etc., pelo efeito do foco sobre todo o cérebro ou, ao me-
nos, sobre áreas largamente difusas do mesmo, e o que é localizado, resi-
dual e firmemente — isso não se pode decidir, ou é muito difícil decidir.
Em todo caso, não se trata de localização de funções complicadas, que re-
sidem, em parte, no próprio psiquismo, como a linguagem, o comporta-
mento etc. Temos, contudo, de admitir que condições específicas mais re-
motas desses rendimentos psíquicos se ligam a certos lugares da superfí-
cie cerebral. Por enquanto, todavia, é impossível delimitar a exprimir, ní-
tida e precisamente, tais funções condicionantes, localizáveis em determi-
nados pontos; noutras palavras: até o momento, não é possível estabelecer
localização funcional psicológica, nem fundá-la, validamente, em caso al-
gum. Daí ser a seguinte a situação, sob o ponto de vista científico: de um
lado, observam-se destruições cerebrais grosseiramente localizadas; de
outro, observam-se distúrbios, em parte, das funções psíquicas (da lingua-
gem e do comportamento), as quais — quase sempre, mas nem sempre —
aparecem juntamente com essas destruições cerebrais localizadas. Pode-
se acompanhar com exatidão, ao microscópio, a destruição anatômica;
pode-se analisá-la com a máxima exatidão. Podem-se analisar os distúr-
bios das funções de maneira muito interessante, quando se fazem investi-
gações pela atribuição de tarefas e pela análise das reações deficitárias,
mediante os mecanismos associativos, perseverativos etc.; e também me-
diante a determinação dos rendimentos conservados e dos rendimentos
transtornados. Não se encontra, porém, entre os dois lados dessa análise
mais requintada, relação alguma; nem se é capaz, mediante análise, de
determinar uma função elementar que seja, no momento atual, localizável.
Encontrar essas funções psicológicas elementares que se possam subordi-
nar a certos lugares ou mecanismos fisiológicos talvez não seja, em princí-
pio, de excluir-se; mas ainda é possibilidade muito remota.
Na literatura, as teses psíquico-topográficas são tais que os autores só
podem dizer: “O autor admite que...” “São presunções aquelas que cons-
troem os quadros corticais, onde se anotam, nos campos “geografica-
mente” divididos: chistosidade, aumento da excitabilidade, alteração do
caráter, distúrbio depressivo ou eufórico etc.”
A esta altura, cabe fazer uma distinção: o diagnóstico topográfico com
base em sintomas típicos, mesmo psíquicos, no quadro clínico é coisa di-
versa do conhecimento das leis da localização do- psiquismo, ou seja, de
determinadas maneiras vivenciais, rendimentos, qualidades pessoais etc.
A importância mesmo do quadro psíquico no diagnóstico clínico topográ-
fico é indubitável; mas a localização não é lei, não é calculável; nem se
sabe qual é a base do fenômeno psíquico.
2. A estrutura do cérebro.
Todas as ideias concernentes a uma localização do psiquismo têm por
fundo o conhecimento da estrutura macroscópica e microscópica do cére-
bro, o qual não é, morfologicamente falando, massa glandular uniforme-
mente estruturada. Pelo contrário, o que se nos depara é extraordinária ri-
queza em formas diferencialmente configuradas, vias e disposições, che-
gando aos limites da visibilidade. O pesquisador tem de superar dificulda-
des técnicas extremas, quando pretende formar, em cortes e cores, o qua-
dro total. Aquilo que, noutros tempos, parecia homogêneo dissolve-se em
configurações múltiplas. Daí por que Broad- mann distinguiu, cartografi-
camente, no córtex cerebral, segundo tamanho, número, forma e disposi-
ção das células nervosas (cito-arquitetonicamente), 60 campos; segundo a
diversidade de distribuição dos tratos fibrosos no córtex (mieloarquitetoni-
camente), Vogt distinguiu 200 campos. Não há limite, a bem dizer, à dife-
renciação das formas e estruturas celulares. Graças à experimentação
com animais, ainda progrediu a diferenciação anatômica: mediante secção
de fibras e extirpações, conseguiu-se ver uma degeneração fibrosa e celu-
lar nas áreas que sofrem a ablação. Reconhece-se, assim, a correlação das
partes, mas também a independência das áreas. Foi assim que Nissl reco-
nheceu haver, no córtex cerebral, estratos que, mesmo separados de todas
as fibras de projeção, ainda mantêm vida própria, ao passo que degene-
ram os demais extratos da mesma zona.
Quem estuda a estrutura cerebral nunca se satisfaz, todavia: aprende-
mos o que não conceituamos, o que não conseguimos compreender. Ve-
mos figuras cujas funções não conhecemos, na maioria das vezes. Impres-
sionamo-nos com formas, vias e agrupamentos de massa cinzenta e
branca, apossamo-nos de uma quantidade de nomes e sentimo-nos bron-
cos, quando queremos aprender e representar aquilo que não compreen-
demos. Temos de refletir para diante: toda a riqueza morfológica da confi-
guração cerebral continua a ser grosseira, se relacionada com os proces-
sos químico-biológicos ultramicroscópicos da vida, os quais não penetra-
mos. Enfim: o que parece inesgotável, em formas e configurações, elos e
agrupamentos, na estrutura cerebral visível, vemo-lo sempre, entretanto,
apenas, como se fosse o cadáver do cérebro, os restos grosseiros, mortos e
destruídos da vida.
Todas estas experiências nos enchem de respeito ante o segredo das
bases espacialmente tangíveis da vida psíquica. Um dos pressupostos fun-
damentais de nossas concepções biológicas consiste em que contempla-
mos o fato desta maravilha morfológica na estrutura do cérebro, o qual é
um órgão singular, sem possibilidade de comparação com quaisquer ou-
tros; cuja conformação e estrutura, vista, por exemplo, nos quadros citoar-
quitetônicos, faz sempre pensar nalguma coisa que poderia ser um equiva-
lente da vida psíquica, sem, todavia, poder-se comprovar, com precisão,
qualquer correspondência determinada, seja onde for, naquilo que se
apresenta conformado; isso porque a realidade da vida psíquica é inco-
mensurável em relação a qualquer visibilidade espacial, se bem que esta
espacialidade da forma cerebral deva relacionar-se, da maneira mais es-
trita, com a psique.
Esbarramos, a esta altura, no limite em que encontramos, a manifes-
tação espacial do que é o existir para nós. Contemplando os extratos corti-
cais tão variadamente conformados, as células ganglionares e os tecidos
nervosos, vemos o que há de mais externo no espaço, presente ante a psi-
que; e esta quiséramos alcançar, mas nunca a alcançamos, por seme-
lhante via. Estamos ante esses quadros como se estivéssemos ante as ne-
bulosas cósmicas. Uma coisa e outra mostram, na espacialidade, algo que
se alcança derradeiramente; algo, porém, que mostra e indica; que em si
não se penetra, absolutamente, e que aponta para além de si.
3. Achados anatomopatológicos cerebrais.
Temos os achados anatômicos grosseiros, os tumores e amolecimen-
tos, as hemorragias, os espessamentos das membranas, as atrofias etc. O
achado mais grosseiro de todos é o tamanho do cérebro.
Estando o cérebro sadio, esperar-se-ia encontrar relação entre seu ta-
manho e a inteligência. Não são unívocas, entretanto, as determinações
estatísticas. O fato, na escala zoológica, de o cérebro humano ter o peso
relativo mais elevado; de os negros possuírem, em média, o cérebro pe-
sando um pouco menos relativamente ao dos brancos n amarelos, como
se dá com o cérebro das mulheres em relação ao dos homens — não ê, em
absoluto, fácil, nem simples de explicar. Tem-se investigado o cérebro de
inúmeros homens importantes sem resultados realmente tangíveis. Há
grandes homens com cérebro muito grande e muito pequeno; como exis-
tem homens médios com cérebro extraordinariamente grande.
Em condições patológicas, a massa cerebral pode apresentar-se au-
mentada ou diminuída. No primeiro caso, fala-se em inchação cerebral, a
qual se reconhece pela relação do volume do órgão com a capacidade da
cápsula craniana correspondente; relação que, nas condições normais, é,
mais ou menos, de 90 para 100. Não se explicaram ainda a natureza e a
causa da inchação do cérebro. São diversos, na essência, o edema e a in-
chação. Trata-se de conceito anatomopatológico grosseiro, abrangendo coi-
sas heterogêneas.8 Encontra-se o aumento do peso do cérebro em várias
psicoses agudas, que decorrem sob a rubrica de amência; e também na-
queles indivíduos que morrem em estado epiléptico; não há alteração em
muitas psicoses funcionais, muitas epilepsias etc. A diminuição do peso
nota-se na paralisia geral, na demência senil, nalguns casos de demência
precoce.
Muito mais ricos são os achados microscópicos: inflamações, degene-
rações, proliferações, atrofias, as inúmeras alterações morfo- lógicas1. Um
dos grandes resultados a que se chegou foi a possibilidade segura de reco-
nhecer a paralisia geral pela imagem cortical microscópica; com o que se
ganhou o quadro histopatológica de uma unidade nosológica clínica (Nissl
e Alzheimer), significando, porém, conhecimento puramente somático.
Nada se pôde encontrar que representasse localização, nem paralelismo
psicológico- relacionado com o curso psíquico da enfermidade; como tam-
bém nada se pôde sequer inquirir por forma precisa. É só o fato de tam-
bém se encontrarem alterações histológicas noutras psicoses que aponta a
relação destas com o cérebro; quase nunca, entretanto, de maneira uní-
voca.
Conquanto não se possa falar, até o presente, em correlação, de fun-
ções analisadas de modo nitidamente psicológico com regiões, mais rigoro-
samente discriminadas em termos anatômicos, as relações entre as doen-
ças cerebrais e as psicoses são indubitáveis. Este fato, de há muito segu-
ramente estabelecido, por forma grosseira, condiciona o grande interesse
que tem a psicopatologia em acompanhar também nos detalhes as investi-
gações concernentes ao- cérebro. De um lado, a histologia ensina-nos a re-
nunciar à mitologia cerebral, tão cara, noutros tempos, aos psicopatologis-
tas; de outro, permite esperar que ela venha a ajudar a delimitação de en-
fermidades somáticas definíveis, pois o conhecimento da complexidade e
variedade dos quadros histológicos tem valor educativo para o psicopatolo-
gista, quando, porventura, pende a deixar-se levar por ponderações gerais.
Nesta matéria, tem surgido todo um mundo de quadros e configura-
ções que se tende a subestimar, pelo fato de não se lhes ver a aplicação
imediata de referência a outros achados. Mas é aí, exatamente, que se de-
veriam encontrar esclarecimento, progresso e solução para o problema da
localização.
A importância dessa pesquisa em torno do quadro visível das estrutu-
ras cerebrais continua, entretanto, a valor por si própria: "Embora já se
haja declarado superada a patologia celular, mostra-nos o que vemos a
importância da teoria celular para a compreensão dos processos vitais. Até
os rendimentos mais ou menos humorais se afiguram célulo-dependentes;
e toda interpretação fisiológica, se quiser subsistir, há, de associar-se ao
pensamento morfológico” “O método anatômico repousa no pensamento
morfológico, teorizando sobre a contemplação. Não somos obrigados a de-
ter-nos na mera visão daquilo que tem forma, nem na maneira por que
esta se gera”.

e) As questões fundamentais do problema da localização.


Aprender os fatos que indicam localização do psiquismo não satisfaz.
Julga-se, a cada momento, apreender uma localização; esta foge, no en-
tanto, quando se quer captá-la de modo decisivo e preciso. Contrastando
com as localizações neurológicas, toda localização do psiquismo até o pre-
sente estabelecida nada mais é, em primeiro lugar, do que grosseira: tanto
o achado anatômico quanto a fixação do fenômeno psíquico ainda são fluí-
dos e vagos. Em segundo lugar: onde os fatos se tornam exatos e precisos,
surge a pesquisa, quer psicológica, de um lado, quer cérebro-histológica,
de outro, rompendo-se o laço localizativo. Daí por que a teoria da localiza-
ção do psiquismo escapa a qualquer exposição clara de resultados tangí-
veis. Todavia, os setores fenomênicos que se podem investigar separada-
mente um do outro estão sempre reclamando resposta atinente à respec-
tiva relação. Resta um objetivo: encontrar os elos entre aquilo que ensi-
nam, de um lado, a observação psicológica; de outro lado, o achado cére-
bro-anatômico, segundo o modelo da neurologia, que realiza, topografica-
mente, a vinculação entre anatomia e função, visto que a localização de
funções neurológicas e fisiológicas (reflexo patelar, centro respiratório,
área cortical motora etc.) tem alcançado êxito extraordinário; e a localiza-
ção das doenças nervosas é um dos setores exatos da medicina. Assim
que chegamos, no entanto, ao psiquismo, cessa a nitidez do quadro que tí-
nhamos, pouco antes, à nossa frente. Nota-se, em todos os compêndios de
fisiologia e neurologia, quando chegam a esse ponto, o salto repentino, ou
o repentino silêncio. Por isto é que importa menos à questão da localização
psíquica mostrar resultados do que apreender a situação da pesquisa.
Exagerando a formulação: no que diz respeito à psicologia, não sabe-
mos o que, nem onde devemos localizar. São três as questões principais:
1. Onde é que localizamos? Primeiramente, em determinados lugares
da massa cerebral, nas partes cerebrais e campos cor- ticais macroscopi-
camente tangíveis, bem como em estratos e grupos celulares microscopi-
camente visíveis; noção anátomo-topográfica esta que pretende encontrar
“centros” da função. Dá-se, entretanto, que todas as localizações assim
encontradas são, apenas, centros, cuja lesão perturba a função; mas não
centros cuja função positiva isso nos ensine. Talvez esses centros nada
mais sejam do que áreas nas quais residem determinadas condições (que
não podemos definir) da função; não a própria função, porque se identifi-
cam todos os centros a que aludimos como centros de distúrbios, apenas,
e não como centros de rendimentos. Deve haver lugares limitados. Cuja le-
são acarreta distúrbios pelo fato de não serem substituíveis imediata-
mente. Por conseguinte, distinguem-se tais localizações pelo fato de ocor-
rerem distúrbios imediatos quando há alterações que se limitam de modo
relativamente estrito; ao passo que, noutras áreas, não se percebem alte-
rações funcionais, mesmo que haja perdas maciças de substância cere-
bral. Talvez a realidade das funções mesmas esteja baseada em relações
infinitas dos elos, sem localização essencial em parte alguma, ou centro. O
entrejogo dos elos anatômicos e das funções fisiológicas é um todo; uns e
outros se substituem, quando há lesão individual, se compensam; todo no
qual se estimulam reciprocamente, se facilitam e se inibem, formando es-
trutura complexa ao infinito; em parte reconhecida quanto a conexões
neurológicas; quanto- a conexões psíquicas, o que há é pura analogia.
Em segundo lugar, localizamos em sistemas, que, morfologicamente,
passam. por todo o sistema nervoso e têm conexão interna. Não é, então,
questão de localização grosseira anatômica; e sim: a que totalidade de um
sistema pertencem, como unidade, a função e o distúrbio? Esses sistemas,
porém, são conhecidos quanto a funções neurológicas; pensar neles como
base relativamente a fenômenos psíquicos é, diga-se mais uma vez, mera
analogia; analogia que se pode admitir e até elaborar mais concretamente;
em caso algum, no entanto, se prova ser qualquer sistema anatômico o
fundamento de processos psíquicos.
Em terceiro lugar, localizamos em pontos que se determinam mediante
experiências farmacológicas, que também se podem demonstrar, em parte,
morfologicamente. Há, por assim dizer, uma localização química, que se
esclarece, por exemplo, farmacologicamente nas diferenciações do sistema
nervoso autônomo. Por mais que se possam estabelecer comparações com
o efeito, digamos, dos tóxicos inebriantes, falta, contudo, a comprovação
topográfica desses fenômenos psíquicos.
2. Que unidades localizamos? O que experimentamos ou pensamos
como unidade em rendimento, vivência, consciência de si mesmo não vem
a ser, por isso, unidade funcional localizável. O que é localizado mostra-se
sempre como instrumento da psique, não é a própria psique. Não se pode
responder quando se pergunta que sentido teria considerar a personali-
dade, sua essência, suas qualidades caracteriais, ou sequer a realidade
psíquica experimentada como tal — localizável, sujeita a distúrbios por
força de alteração local.
Cabe, no entanto, à investigação topográfica a tarefa significativa de
descobrir “elementos” ou unidades da função, unidades a que nunca se
chegaria por outra via; de ver fatores da função que só se clarificam em
consequência de um distúrbio. É o que talvez se dê com o “impulso”, que
se localiza no tronco cerebral e (já em outro sentido) no lobo frontal, e com
as funções, que se distinguem na fala, no conhecimento sensorial e nos
atos. A função elementar vital que, então, se apreende — a “função básica”
— tem de ser, ela própria, extraconsciente, aparecendo, apenas, na vivên-
cia do “impulso”, nos rendimentos da fala e dos atos.
O que sempre vemos é um ordenamento hierárquico das funções, ou
uma gradação dos instrumentos psíquicos, cuja investigação nos apro-
xima da psique; mas sempre reconhecemos, apenas, o que a ela serve, ou
o que a condiciona, não ela mesma.
3. De que tipo é a correlação da função com a localização? Já não vigora
a antiga concepção de que os centros sejam o local da própria função. Os
centros e localizações são pressupostos, e não substância da função. “Li-
gar” a uma localização significa que sem ela, certamente, mas nem por
isso mediante ela, a função não se realiza. De que modo, no entanto, se
devam pensar com exatidão estes pressupostos, há, a tal respeito, uma sé-
rie de ideias possíveis: No eventos-total, õ centro é um elo” existente ape-
nas uma vez, não substituível; e nesse. lugar realiza-se uma comutação
ou mediação que só aí pode ocorrer. Obsta-se uma colaboração, quando a
comutação é perturbada. Lesado- um centro? 'dá-se uma desinibição da-
quilo quê era, a partir daí, inibido e regulado. Todavia, é obscura, na maio-
ria das vezes, a forma por que se deva pensar a correlação do distúrbio
psíquico com o centro; o que é que, propriamente, falha, de que modo a fa-
lha atua. Toda concepção que se faça é hipótese; modo de exprimir, ou
simples analogia; de todo grosseira é, na realidade, qualquer correlação
até o presente conhecida: de um lado, achados cerebrais vagamente deli-
mitados; de outro, distúrbios psíquicos complexos. Vaga e indeterminada
subsiste qualquer correlação, atingindo, assim que se indica, rendimentos
complexos, de um lado; grandes áreas (campos corticais, tronco cerebral)
de outro. No psiquismo, não há meio de penetrar a maneira por que se re-
aliza o entrejogo de funções localizáveis, porque o psiquismo é sempre
evento total, que não se compõe de funções parciais, mas a que certas
funções servem de instrumentos; funções cujo distúrbio impossibilita o
evento total.

f) A questionabilidade da localização do psiquismo


O resultado é o seguinte: Não se conseguiu, até hoje, decompor a vida
psíquica em funções cuja localização seja possível. Todos os fenômenos,
mesmo os mais simples para a psicologia, apresentam-se, sob o aspecto
neurológico, tão “complicados” (ou antes, heterogêneos) que é sempre, a ri-
gor, necessário o cérebro inteiro para que ocorram. Todos os centros que
se têm determinado representam, sim, condições mais remotas do fenô-
meno psíquico; o que não impede continue obscuro, até o momento, qual
é a função condicionante ou talvez parcial que se liga a essas localizações.
Resumamos os resultados.
1) Os fatos em si tão interessantes de configurações anatômicas do cé-
rebro não levam, até o momento atual, a consequência alguma para a psi-
copatologia, apenas ensinando a complexidade enorme daqueles funda-
mentos somáticos da vida psíquica que se hão de conceber como funda-
mentos absolutamente remotos; diretos, não.
2) Funções psíquicas elementares que se possam localizar, não conhe-
cemos, em geral.
3) Os fatos da localização de manifestações mórbidas complicadas (afa-
sia etc.) são de valorar-se irregularmente; até o momento, apenas para fins
diagnósticos; não se mostram analisáveis de maneira tal que se possa re-
lacionar a análise psicológica dos rendimentos, quando há reações falha-
das, com uma análise anatômica mais refinada das destruições cerebrais.
A propósito, também são ilustrativas as seguintes asseverações: a ideia
de que a diversidade dos distúrbios psíquicos seja condicionada pela di-
versidade topográfica do mesmo processo mórbido é teórica, sem base nos
fatos. Pode-se, com igual razão e com a mesma impossibilidade, aduzir
prova no sentido de responsabilizar a disposição psíquica individual por
essa diversidade. A psiquiatria que repousar na ideia básica da localização
de funções psíquicas fracassará ante o fato de os elementos encontrados
mediante a análise psicológica e a localização anatômica resultante da
pesquisa cerebral não se relacionarem, em absoluto, até o presente e tal-
vez para sempre. O fato de os mesmos processos mórbidos se localizarem
diversamente no sistema nervoso não paraleliza, até hoje, o fato de os dis-
túrbios psíquicos que ocorrem na mesma doença cerebral orgânica serem
inteiramente diversos; muito, menos se podem relacionar, tangivelmente.
Continuando a refletir na relação entre achados cerebrais e distúrbios
psíquicos, ainda é possível estabelecer que os achados cerebrais não preci-
sam, em absoluto, ter conexão, em cada caso, com um distúrbio psíquico’,
há fenômenos casuais, coincidentes, porém heterogeneamente condiciona-
dos (por exemplo, os achados histológicos de alterações na agonia). É pos-
sível ainda estabelecer que, em princípio, as alterações cerebrais podem
também resultar de fenômenos psíquicos primários, conquanto até hoje
não se haja demonstrado, empiricamente, semelhante efeito. Que, em
cada caso, o fenômeno cerebral seja a causa e o fenômeno psíquico a con-
sequência — e não vice-versa — é também pressuposto, tal qual o pressu-
posto anterior: de que todas as doenças mentais provenham, primaria-
mente, da vida psíquica. O psicopatologista deve enfrentar ambas as pos-
sibilidades.
A frase: Todas as doenças mentais são doenças cerebrais e tudo
quanto é psíquico é, apenas, sintoma — constitui dogma. Só adianta bus-
car processos cerebrais nos casos em que se pode mostrá-la anatômica,
histologicamente. Mas elaborar localizações — por exemplo, localizar
ideias e recordações em células, associações ideativas em fibras — é futili-
dade; futilidade maior ainda é imaginar um quadro do todo psíquico topo-
graficamente representado no cérebro. Este modo de pensar implica abso-
lutizar o evento psíquico na substância humana e considerar evento cere-
bral todo evento psíquico. Do ponto de vista da observação psicológica, as
doenças cerebrais representam uma das causas, além de outras, de dis-
túrbios psíquicos. A ideia de que tudo quanto é psíquico é condicionado,
ao menos, em parte, pelo cérebro é, decerto, correta; com semelhante ge-
neralidade, contudo, nada significa. No que diz respeito, entretanto, à con-
sideração psicopatológica, todo psicólogo há de dar razão a Mõbius,
quando diz: “O histologista não deve dominar a clínica, porque a classifi-
cação anatômica das doenças turva a mente”.
3.2.
HERANÇA

Nos grandes passos do seu desenvolvimento histórico, que lhes revela,


simultaneamente, o sentido lógico, tentaremos expor os conceitos magnífi-
cos — difíceis, fascinantes, porém, e até desconcertantes — que se têm fi-
xado em relação à herança dos fenômenos psicopatológicos. O maior
passo que a ciência deu, no estudo da herança, é representado pela gené-
tica, que os biologistas desenvolveram, sobretudo a partir de 1900; gené-
tica a cujos conceitos e descobertas cada vez mais se prende, desde então,
o pensamento atinente à herança. Há, no entanto, uma quantidade de fa-
tos estabelecidos antes e depois de 1900 nos quais, os conceitos da gené-
tica não desempenham papel algum; são utilizados, hoje em dia, certa-
mente, para a interpretação de quase todos os casos, sem que, entretanto,
dependam dessa interpretação os fatos realmente encontrados.

§ 1. As Antigas Ideias Básicas E Seu Esclarecimento


Pela Genealogia E Pela Estatística

a) O fato básico da hereditariedade.


Desde a antiguidade se viram com espanto os filhos assemelharem-se
ou serem iguais, no comportamento e nos gestos, nas qualidades e, às ve-
zes, até em nuanças de índole, a um ou outro dos pais. Viu-se a misteri-
osa identidade desde a mais tenra infância; uma vez ou outra, -em traços
individuais quase insignificantes. E notou-se o reaparecimento de doenças
psíquicas, o acúmulo de doenças mentais em certas famílias.
Ao mesmo tempo, no entanto, também se percebeu a completa diversi-
dade de pais e filhos, de irmãos entre si. Os pais não se reconhecem nos
filhos e dizem-nos degenerados. Certas qualidades dos avós revivem nos
netos. Ressurgem atributos há muito perdidos de gerações passadas; fala-
se, então, em atavismo. Doentes mentais têm filhos sadios; pais sadios
têm filhos doentes ou débeis mentais.
Assim, já são surpreendentes as primeiras experiências, mostrando o
desconexo e o imprevisível da realidade e evidenciando, ao mesmo tempo,
que as conexões do processo hereditário e do desenvolvimento da disposi-
ção individual têm de intrincar-se. A herança, porém, como tal e também,
certamente, a herança psíquica não podem contestar-se. O fato que se
está sempre impondo, compulsoriamente, no caso particular, animou o
pesquisador, apesar de dificuldades quase insuperavelmente acumuladas,
a investigar para diante. O fato é certo; a questão concerne o que e o como
da herança.
A significação daquilo que impressiona em experiências casuais só
pode esclarecer-se e determinar-se pela pesquisa. Há dois métodos pelos
quais verificar o fato da herança: a genealogia e a estatística. Aquela mos-
tra, concretamente, o quadro da herança em famílias e estirpes; esta mos-
tra, abstratamente, em cifras, a extensão da hereditariedade na massa dos
casos.

b) A visão genealógica.
Obtém-se pela investigação exaustiva de árvores genealógicas familia-
res adequadas (um casal de genitores com toda sua descendência por vá-
rias gerações) e quadros ancestrais (um indivíduo com todos os avoengos),
que permitem avistar as conexões hereditárias em casos individuais. Nal-
guns casos, têm-se estendido as investigações a aldeias inteiras, cujas fa-
mílias se puderam seguir durante séculos (as doenças mentais só se con-
siderando, então, naturalmente, de maneira indireta). O objetivo é a visão
histórica concreta de famílias e estirpes individuais, com a vantagem de
obter o quadro total, indo até a máxima particularidade dentro da visão
plena; e com a desvantagem de não ser, necessariamente, geral aquilo que
se vê no caso particular. Árvores genealógicas individuais em que se acu-
mulam as doenças mentais são, decerto, muito impressionantes, dando
quadro historicamente verdadeiro, sem ensinar, porém, coisa alguma so-
bre o tipo de conexão hereditária, nem coisa alguma demonstrar relativa-
mente à probabilidade quantitativa da herança mórbida na massa dos ca-
sos.
A genealogia atrai, apenas, pela ilustração concreta. Pode-se ver a fata-
lidade em famílias, estirpes e aldeias inteiras através das gerações, como
se pode ver o acúmulo de talentos: por exemplo, os musicais na estirpe
dos Bach por séculos e séculos; os matemáticos, nos Bernouilli; os artísti-
cos nos Tiziano, Holbein, Cranach, Tischbein etc.

c) Estatística.
Ajuntam-se famílias quanto possível numerosas, contam-se os doentes
e os sadios, determinam-se doenças psíquicas ou outros fenômenos men-
tais que se consigam estabelecer e comparam-se as cifras obtidas, sob cer-
tos pontos de vista. O objetivo é encontrar regras gerais, ou, pelo menos,
fatos médios. A vantagem é que, assim, se pode saber o comportamento
geral; a desvantagem é que, na tenuidade de meras cifras, se perde, em
geral, a visão concreta.
O problema básico da estatística é: o que se conta (boletins, escolares,
resultados de questionários, resultados de certidões e. documentos — cri-
mes, suicídios — psicoses, atributos caracteriais etc); além disso: saber se
o material de que se parte é confiável; se se trata de alguma coisa que to-
dos possam reconhecer como idêntico e, portanto, realmente contável; sa-
ber como as cifras se. obtêm, com que se compararão etc. A estatística é
método que, à primeira vista, se afigura simples e irrefutável; mas, quando
praticada, leva a um labirinto de dificuldades e ilusões. Seu manejo exige
muito treino especializado e muita crítica.
Vamos dar um exemplo: têm-se realizado estatísticas maciças- sobre
herança, em geral, com esforço extraordinário; com o que se esperaria en-
contrar, de um só golpe, noções fundamentais. Assim, durante certo
tempo, as estatísticas maciças de Koller e Diem deram resultados esclare-
cedores, mas também restritivos.
Diem investigou a carga hereditária de pessoas sadias e psicóticas,
sem contar, no entanto, a carga em geral, mas, sim, dividindo-a,. de um
lado, conforme grupos nosológicos (aliás, muito grosseiros); de outro lado
conforme grupos aparentados (carga dos progenitores, carga indireta e
atávica, carga colateral). Daí resultou a tabela, seguinte:
Resumo comparativo de algumas cifras principais tiradas da estatística
de Diem sobre a carga hereditária de pessoas sadias (1195 casos) e doen-
tes mentais (1850, ou seja, 3515 casos) em porcentagens da totalidade das
pessoas examinadas.
As cargas encontradas foram as seguintes:
Daí resulta: que a carga total não é muito diversa em sadios e doentes
(66,9: 77%) (segue-se deste resultado que todas as estatísticas ¿obre here-
ditariedade são, em geral, desvalidas quando não se dividem os grupos
particulares). Pelo contrário, os doentes são mais carregados, essencial-
mente, que os sadios em linha direta (dos pais) e em linha colateral (dos ir-
mãos). Os doentes são, além disso, em essência, mais fortemente carrega-
dos por doenças mentais, em sentido estrito, e por anomalias do caráter;
diferença que também se apresenta na carga indireta. Em relação à apo-
plexia e à demência senil, é de espantar que os sadios pareçam um tanto
mais fortemente carregados; em relação às doenças nervosas e ao alcoo-
lismo, as diferenças são pequenas. Por conseguinte, dizer, de maneira ab-
solutamente geral, que alguém tem carga hereditária nada significa, visto,
comportarem-se, neste ponto, por forma semelhante sadios e doentes. A
carga através dos pais e a carga através de doença mental significa, pelo
contrário, disposição mais acentuada do indivíduo.
Diem enfatiza que, de acordo com suas pesquisas, “a carga hereditá-
ria” já não ameaça, feito espada de Dâmocles, quem quer em cuja paren-
tela se hajam apresentado anomalias psíquicas. “Podem-se herdar doen-
ças mentais, mas nem sempre se herdam, nem têm de herdar-se; a he-
rança mórbida não é fatalidade inelutável eterna que reclame vítimas e
mais vítimas na família uma vez visitada.... é possível um ajustamento; e
minhas cifras ensinam que se realiza em extensa medida”.
Contra estes trabalhos Rudin levantou objeções: não se realizou discri-
minação alguma dos fatores de carga segundo as unidades nosológicas clí-
nicas (só se inquiriu, em geral, a doença mental); não se atentou para a
proporção dos sadios e doentes, dentro das famílias individuais. Visto,
ainda mais, que não se indagou, geralmente, da modalidade hereditária
(no sentido da teoria moderna da herança, em termos biológicos), esse tipo
de investigação maciça não pode facilitar a solução do problema da he-
rança das doenças mentais. Na realidade, por esta via não se progredirá.
Tem-se um aspecto total grosseiro, em que se destacam as generalidades
citadas, quase evidentes; além disso, uma disposição criticamente nega-
tiva, quanto à possibilidade de encontrar qualquer coisa mais precisa no
tocante às questões da herança.

d) Herança constante e inconstante.


Mostra a observação que, nas famílias, sucedendo-se as gerações, nem
sempre aparece a mesma doença mental; mas que, em certas famílias, fa-
lando de modo geral, se acumulam doenças mentais. Imaginou-se que al-
guma coisa hereditária, uniforme em si, se apresente, polimorficamente,
na manifestação e que, portanto, não haja disposição hereditária em rela-
ção a certas doenças mentais, e sim disposição para doenças mentais em
geral. A esta teoria obscura da disposição geral para tais ou quais doenças
mentais, que mostram quadros arbitrariamente polimórficos nas séries
hereditárias em transformação, opuseram-se investigações que afirmam
uma herança constante, pelo menos de grandes grupos nosológicos, den-
tro dos quais, a seguir, a transformação pode dar-se.
Sioli notou que as doenças da afetividade: mania, melancolia e cicloti-
mia se podem substituir; mas que estes quadros e os quadros da esquizo-
frenia se excluem na mesma família. E Vorster, confirmou-o, descobrindo
que, na maioria dos casos, as doenças do grupo da demência precoce
(que, por assim dizer, correspondia à esquizofrenia) e da loucura maníaco-
depressiva não aparecem juntas, na mesma família.
Sobre a questão da herança constante e inconstante, fizeram-se outras
numerosas pesquisas de caráter estatístico, que mostraram ser decisiva a
distinção entre os grupos maníaco-depressivo e esquizofrênico. As cifras
variam. Os resultados são inteiramente opostos. É característica a se-
guinte compilação de resultados diferentes (segundo Krueger):
Existia em pais e filhos:
Luther ajuíza, resumindo, com base em suas cifras: A constância das
psicoses (excluídas as exógenas) em pais e filhos não chega a existir em
50% dos casos. Pais maníaco-depressivos têm quase metade dos filhos so-
frendo de outras psicoses, preponderando, aliás, a esquizofrenia. Pais es-
quizofrênicos têm, em medida, acentuadamente preponderante, também
filhos esquizofrênicos; um ou outro, contudo, também maníaco-depres-
sivo. Entre irmãos, 3/4 dos casos adoece da mesma psicose. A loucura
maníaco-depressiva e a esquizofrenia ocorrem familiarmente juntas com
mais frequência do que cada uma destas doenças por si com outras psico-
ses. Nos filhos, a psicose irrompe, na maior parte dos casos, mais cedo
que nos pais. Pelo contrário, a estatística de Krueger mostra até preponde-
rância de herança inconstante. Esse autor sustenta a polimorfia, a he-
rança transformadora e até o aumento da gravidade da doença na suces-
são das gerações. Em resumo, declara: “Ascendentes e descendentes adoe-
cem, em regra, de psicoses desiguais, ao passo que irmãos, sobretudo gê-
meos, quase sempre sofrem distúrbios mentais iguais”. — A estatística de
Rosa Kreichgauer por sua vez, mostra a herança constante nas formas tí-
picas da demência precoce e da loucura maníaco-depressiva; isso de tal
modo que nenhuma interrelação encontra entre os dois grupos, no que diz
respeito à herança; ou quando a encontra, é apenas mínima.
Os resultados de todas as estatísticas acima são de estranhar, dando a
impressão de que o método usado não permite chegar a conclusão deci-
siva alguma; o que depende, em parte, da dificuldade de obter material.
Autores diversos não diagnosticam a esquizofrenia e a loucura maníaco-
depressiva, absolutamente, da mesma forma. Gerações anteriores de mé-
dicos — é preciso dispor de material acumulado através de várias gerações
para falar com certeza sobre herança — fazem descrições e diagnósticos
que diferem inteiramente de um para outro. Se se quiser contar, todas as
cifras têm de ser indubitavelmente idênticas. E para conseguir material
que, de fato, convença, quando se estudam doenças mentais, seria neces-
sário dispor de biografias completas, seria preciso ter visto com os pró-
prios olhos (Cartius e Sdebeck falam na “absoluta desvalia” das determi-
nações que se fazem baseadas em interrogatórios de parentes; além da au-
tópsia, precisar-se-ia de histórias tomadas por médicos, relatos escolares,
fichas colegiais, certidões militares, ou referentes a acidentes e atendimen-
tos, fichas judiciais etc.); mais ainda, haveria necessidade de contar com
manifestações que cada observador houvesse reconhecido e designado
uniformemente. A impossibilidade de realizar os requisitos ideais obriga
quem investiga a contentar-se com uma situação relativamente precária
dos achados. Ao impulso do vigoroso interesse pela teoria da herança,
tem-se melhorado, extraordinariamente e com esforço considerável, nos
últimos decênios, a maneira por que se colhe o material: apesar do que,
toda pesquisa hereditária no homem se mantém contida em limites que
dizem respeito à natureza do material empírico.
Quanto mais limitados forem o questionário e o material, tanto mais se
conseguirão resultados individuais convincentes, cujo valor, terá, porém,
correspondentemente, extensão menor. Assim foi que Reiss fez pesquisas
excelentes sobre a herança da disposição constitucional e da loucura ma-
níaco-depressiva; pesquisas de que resultou a conclusão seguinte: “... na
herança de disposições afetivas mórbidas, transmite-se à prole, na imensa
maioria dos casos, não só a constituição geral, mas também a forma espe-
cial”; de maneira marcada ao máximo, na alteração patológica típica do
humor e nas psicoses circulares típicas. Reiss conseguiu determinar, nes-
ses casos, herança constante até de quadros mórbidos bastante especiais,
mas também encontrou, em casos individuais, herança típica diversa.
Houve um. caso “em que se distinguiram, claramente, duas linhas, uma
marcadamente alegre e outra mais depressiva, que haviam coincidido na
penúltima geração; e, agora, possuíam herança inteiramente diversa, de
modo que os membros individuais da família, aparentados de muito perto,
não apresentavam semelhança alguma entre si”.
O que um ser humano traz em si de substância hereditária não está
nele próprio, nem em seus pais, mas se verá na totalidade da família, nos
irmãos, na estirpe inteira. Costuma-se dizer, de há muito, que não se deve
desposar uma moça que seja a única boa da família; convém saber de
toda a família; ideia que se baseia na convicção de que, não obstante óti-
mas qualidades que um indivíduo possa ter, aquilo que é indesejável, pró-
prio à estirpe, pode vir a reaparecer na prole.
É o que as estatísticas esclarecem, de referência ao talento musical.
Dois pais musicalmente muito prendados, cujos pais hajam sido também
musicistas, só têm filhos musicistas. Dois pais igualmente prendados,
mas um dos quais tenha nascido de um só genitor musicista e o outro de
nenhum, têm metade, apenas, de filhos musicistas (Mjõen, citado por Rei-
nõhl).

e) A questão das causas do primeiro ou novo aparecimento de doenças


mentais.
Tem-se inquirido a causa de que surge a disposição congênita, quando
não é idêntica à dos pais; e de onde, especialmente, se originam os desvios
desfavoráveis à vida. As respostas dão-se, de um lado, no sentido de que
se verá a causa no inbreeding [ou endocruzamento] dos iguais; de outro
lado, ao contrário, na mistura do estranho (bastardização). Pensa- se, fi-
nalmente, numa degeneração fatal, que leva à decadência através das ge-
rações.
1. Defeito por endocruzamento ou por mistura (bastardização).
Observa-se que, em parentes, se acumulam disposições mórbidas, o
endocruzamento parecendo, assim, como tal, prejudicial. Existem, no en-
tanto, exemplos célebres, como os casamentos fraternos dos Ptolomeus,
que não tiveram, em absoluto, consequências danosas. As pesquisas mais
recentes deram os seguintes resultados:
Das pesquisas de Peiper não resultou efeito morbígeno especial da con-
sanguinidade no matrimônio. Valem, no caso, as mesmas regras da he-
rança em geral: nas famílias sadias, herdam-se os atributos sadios; nas
famílias doentes, os atributos mórbidos. Se se herdam de ambos os pais-
disposições desfavoráveis, o que há é herança “cumulativa”, que segue
também as mesmas regras da herança. Também se acumulam as disposi-
ções favoráveis. A consanguinidade pode gerar indivíduos tanto excelentes
quanto doentes. Visto, porém, que sempre dormitam, no gênero humano,
disposições desfavoráveis, o casamento consanguíneo representa, real-
mente, risco considerável, a menos que atributos excelentes se difundam
por toda a família e faltem disposições mórbidas.
No incesto mesmo, não se constata efeito biologicamente lesivo para os
descendentes; é o que ensinam as experiências da criação de animais1 e a
autopolinização de plantas hermafroditas. Nem no homem é diversa a si-
tuação. Stelzner resume: O incesto, em famílias de boa cepa, não condici-
ona degeneração. O incesto mais defeitos hereditários de uma ou outra
das partes acasaladas leva, a nascimentos defeituosos extensos. Hoje em
dia, portanto, nem o endocruzamento nem o incesto se consideram fatores
lesivos. Tudo depende das substâncias hereditárias dos parceiros.
E quanto à mistura do estranho, à bastardização? Em oposição ao au-
mento dos atributos favoráveis pelo endocruzamento de cepas muito boas,
tem-se observado o declínio quando se dá mistura com cepas estranhas;
em oposição à condenação do endocruzamento tem-se concluído que a
mistura de espécies estranhas é, por si, prejudicial. Vejamos os resultados
das pesquisas.
Os biologistas têm estabelecido que gens que não se adaptam um ao
outro podem encontrar-se; por exemplo, a disposição para os dentes e
para uma maxila inferior demasiado pequena ou demasiado grande em re-
lação à disposição dentária; caso no qual se fala em antagonismo germi-
nal. É preciso, no entanto, ser prudente quando se tiram daí conclusões
analógicas para o fim de basear a desarmonia dos atributos caracteriais
no antagonismo germinal, modo pelo qual ocorreriam as psicopatias. O
que assim se afirma é vago, impossível de provar concretamente, pela faci-
lidade com que se esquece a universalidade de antinomia humana (“O ho-
mem com sua contradição”). Entre discrepâncias mecânicas e tensões,
compreensíveis, contradições, desarmonias da natureza humana, uma re-
lação existe de analogia. Em essência, trata-se de coisas heterogêneas.
Se se observarem misturas raciais, ver-se-á a novidade na população
bastarda, novidade em que aparecem misturadas boas e más qualidades
de ambas as cepas. Quando as duas raças são diversas, essencialmente,
no todo, quanto ao nível do que consideramos qualidades boas (brancos e
negros), os bastardos apresentam rebaixamento do nível em relação à raça
superior; e, pelo contrário, elevação em relação à raça inferior.
O que há de essencial, biologicamente, é o seguinte: A sexualidade
como tal é artifício da natureza para produzir a diversidade. Reunindo o
que é diverso, ela cria não só a conjugação do que existe, mas a novidade.
A bastardização é técnica que a natureza usa para a produção criativa.
Não se pode saber, no todo, de que maneira isso se modifica; talvez em
possibilidades infinitas.
No caso particular, há ilustrações espantosas, como acontece no mi-
lho, que produz seu rico fruto graças a uma bastardização constante, de
que resulta a chamada heterose. À autopolinização, entretanto, originam-
se raças menores com espigas menores. Após algumas gerações, é certo,
terão surgido raças muito menos produtivas, porém sadias e invariáveis.
Não há, no caso, em absoluto, degeneração arbitrariamente progressiva
por efeito de endocruzamento, e sim supressão do efeito produtivo da bas-
tardização.
Não se deve esperar, portanto, nem do endocruzamento nem da mis-
tura (bastardização) coisa alguma que seja, em si, boa ou má. Do mesmo
modo, a mistura não é fator obscuro que determine o destino, quer no
sentido da deterioração, quer no sentido do aperfeiçoamento criativo. Em
ambos os casos, não se podem fazer cálculos, quando se fala de modo ge-
ral. Tudo depende dos pontos de partida nas substâncias hereditárias de-
terminadas e das possibilidades concretas produtivas, que não se podem
predizer.
Certas teorias amplas concernentes ao evento humano, como a de
Reibmayr sustentando resultar a alta cultura de uma mistura racial, na
qual a bastardização criaria a novidade, de modo tal, entretanto, que, após
algumas gerações (ou alguns séculos), completada a mistura ou o nivela-
mento, a produtividade se paralise, antecipam o conhecimento real pela
aparência de concepções totais magníficas.
Por conseguinte, em vez de inculpar o endocruzamento ou a mistura,
deve-se, antes, inquirir quando e em que condições a mistura tem conse-
quências desejáveis ou indesejáveis; e quando as tem o endocruzamento.
Não é com a categoria geral que se terá resposta; mas somente com a in-
vestigação que penetre nas particularidades; investigação que a genética,
a discutir-se dentro em pouco, possibilita.
2. Degeneração.
O fato de os doentes mentais terem, frequentemente, carga hereditária
foi observado há muito tempo, quando Morel, Magnan e Legrand du Saulle
esboçaram sua teoria da degeneração. Além de doenças mentais, nas
quais também apareceria a carga hereditária (por exemplo, o alcoolismo, a
epilepsia), afirmaram eles haver um grupo nosológico que só ocorreria he-
reditariamente: os distúrbios mentais hereditários, ou os distúrbios men-
tais degenerativos: dentro dos quais a maior parte: do grupo que abrange
as doenças mentais se herdaria; não, porém, uma forma determinada de
distúrbio, mas uma disposição geral, apenas. A herança não seria cons-
tante, mas “transformadora”; pelo que se explicaria o “polimorfismo” dos
quadros mórbidos na mesma família. Segundo esta teoria francesa, tratar-
se-ia, por conseguinte, não só de herança de doenças, mas de degenera-
ção. Na sucessão das gerações, aumentaria a gravidade das enfermidades,
até se extinguirem famílias inteiras. Morel formulou sua famosa série das
quatro gerações: na primeira, encontram-se temperamento nervoso e infe-
rioridade moral; na segunda, neuroses graves e alcoolismo; na terceira,
psicoses e suicídios; na quarta, idiotia, malformações e inviabilidade.
Se pusermos à prova esta teoria e contemplarmos os achados reais nos
quais se baseia a construção, vemo-los deficientes, sem valor probante al-
gum. Aproveitaram-se experiências individuais para erigir uma concepção
engenhosa que deu impressão de desvelar um evento trágico e grandioso
no gênero humano.
A degeneração seria um poder originário, impossível de desviar, hostil
à vida. Seria o poder que se opõe ao poder construtivo. modificador e refor-
mador da vida que cria, que produz sua riqueza. No que toca ao apareci-
mento de distúrbios psíquicos hereditários, não temos, realmente, explica-
ção alguma. Falamos em mutações desfavoráveis (sobre este conceito, ver
abaixo), que também pode haver, na vida psíquica, como a disposição para
doenças mentais. As explicações genéticas de tais mutações por lesão ger-
minal (alcoolismo, sífilis etc.), consanguinidade dos pais, bastardização do
elemento estranho à raça, não tiveram êxito, até o momento. Sé, no en-
tanto, um indivíduo, por força dessa mutação, “sai da linha” ou degenera;
e se a variedade a que dá origem se transforma, ocorrerá isso segundo as
regras da herança que a genética reconhece e que atuam por forma geral.-
Mas, se, além da degeneração, mais outra coisa importa, não poderá ser
senão a ideia seguinte: degeneração é o acúmulo numa família de muta-
ções desfavoráveis que se herdam e, certamente, de maneira tal que, por
força de causa ignorada inevitável, a anormalidade ou doença aumenta de
geração em geração. Não está provado que exista, em geral, coisa deste
tipo; nem, todavia, que seja também possível negá-la. É certo haver extin-
ção das famílias, sem que, no entanto, se comprove a degeneração como
fator autônomo; do mesmo modo que o aparecimento cumulativo de psico-
ses numa família nem sempre significa em absoluto, degenerescência fa-
miliar total. Pensa-se até que a cultura possa acarretar um processo dege-
nerativo, sem possuir, todavia, material algum que faça isso sequer prová-
vel.
Nem sequer se sustentam os detalhes da teoria da degeneração pela
forma em que se formularam. Os pesquisadores franceses admitem que
tanto a vida psíquica quanto, simultaneamente, o corpo degenerem. As
anormalidades somáticas da forma e função (tiques, nistagmo, estra-
bismo, anomalias dos reflexos de tipo congênito, anomalias secretórias, si-
alorreia etc., instalação precoce ou tardia da puberdade, envelhecimento
prematuro ou aparência infantil na velhice) deveriam indicar, como estig-
mas de degeneração, a degeneração psíquica. Também no terreno do psi-
quismo, julgaram-se descobrir estigmas degenerativos e a disposição da
personalidade foi valorada, neste sentido, de modo especial (desarmonia,
contradição entre os vários traços caracteriais, inteligência boa -de par
com caráter baixo, capacidades individuais acompanhando nível quanto
ao mais baixo (daí o nome “déséquilibrées” para estas personalidades).
Também se achou que os desvios apresentados pelos quadros mórbidos
de qualquer esquema caracterizassem o tipo degenerativo da psicose (psi-
coses “atípicas”). Nada disso está provado; a concepção de que tudo que é
desacostumado seja “degenerativo” tem de ser abandonada.
A ideia de degeneração constitui esquema conceituai com que a psiqui-
atria trabalha há decênios. Empiricamente, porém, não se preencheu, até
hoje. O que parecia confirmá-la e, sob aspecto grandioso, se afigura cô-
modo — resolvido para a pesquisa com facilidade demasiada — veio a
comprovar-se, de todos os lados, por forma diversa. Mesmo que seja ver-
dade se siga, nas famílias, a esquizofrenia à loucura maníaco-depressiva
(o contrário, quase nunca), o provável é que outras explicações bastem,
sem necessidade do pensamento contido na teoria da degeneração.
Se dermos uma olhada para o conjunto das antigas ideias sobre a he-
rança — herança constante e inconstante, polimorfia, degeneração, para a
visão genealógica e os achados estatísticos, para o significado do endocru-
zamento e da bastardização, resultará o seguinte: Estas concepções bási-
cas subsistem, de início, em geral, pela singeleza e amplitude, desenvol-
vendo sempre sua evidência por meio de fatos individuais. Intrincam-se,
porém, todas elas, em -contradições, esbarrando em discrepâncias de fato.
Teoria que tudo abranja, apreendendo os fatos em conjunto, não se conse-
guiu.
A crítica, entretanto, embora suprimindo as generalidades, não pode
suprimir os fatos particulares, mas, sim, abre caminho à pesquisa con-
creta; esta não se satisfaz com generalidades vagas e confeccionadas; an-
tes, quer saber com certeza e em particular; não busca possibilidades, e
sim o que se prove. É assim que as concepções gerais perdem o caráter de
saber confeccionado, transformando-se em inquirições permanentes, a
que, então, novas respostas se dão mediante os conhecimentos da gené-
tica biológica, na qual parte do enigma tem encontrado sua solução funda-
mental.

§ 2. O Novo Impulso Dado Pela Teoria Biológica Da


Herança (Genética)

Desde que os botânicos Correna, Vries e Tschermak redescobriram,


em 1900, as leis de Mendel (1865), a ciência da herança se tem desenvol-
vido na biologia (genética), vindo a constituir um dos campos mais grandi-
osos do conhecimento das ciências naturais, nos tempos modernos; isso
graças à exatidão dos métodos experimentais, à força persuasiva dos re-
sultados, à unanimidade- e intensidade da pesquisa. A partir do momento
em que os psicólogos conheceram esta ciência, todas as ideias até então
formadas sobre a herança no homem tiveram de submeter-se a radical
comprovação. Pôde-se compreender por que a pesquisa de cada um se
mantivera infrutífera, até então, fundamentalmente, visto haver girado em
torno de generalidades imprecisas. Verificou-se, a essa altura, com cla-
reza, ser só na zoologia e na botânica que se haviam investigado, real-
mente, as regras e as leis da herança. Quase todas as ideias e conceitos
básicos da teoria da herança hão de fundamentar-se, em geral, a partir
destas pesquisas, se quiserem sustentar-se. Para a antropologia e, sobre-
tudo, para a psicopatologia, trata-se, apenas, a bem dizer, de transportar
para nosso- campo tudo quanto de geral se determina no outro; e de ver
até que ponto também na psicopatologia se encontra alguma coisa seme-
lhante. Daí por que nos é necessário revisar, embora breve e esquematica-
mente, alguns conceitos da teoria biológica da herança.
Observações preliminares sobre alguns conceitos de genética.

a) Estatística da variação.
Surpreende o fato de a variabilidade incalculável e irregular de todos
os organismos vir a tornar-se regular, quando se considera, numa massa
tomada ao acaso de indivíduos de certo tipo (“população”), determinada
qualidade (por exemplo, entre os soldados recrutados, a altura do corpo) ;
e quando, do mesmo passo, se conta o número de indivíduos que perten-
cem a grupos formados de acordo com graus diversos daquela qualidade
(altura, matiz da cor, número de dentes e manchas etc.). Representando
esses grupos numa linha vertical e unindo as extremidades, obtém-se, em
geral, uma curva regular (“curva da variabilidade”), na qual, a partir da
média, o número de indivíduos decresce em relação ao desenvolvimento
maior ou menor da qualidade. A curva de variabilidade é a medida em que
se podem determinar as alterações de uma população, como um todo, na
direção de certa qualidade; por exemplo, sob a influência da situação vital
(clima, alimentação etc.).
Se, dentre uma quantidade de indivíduos, se escolherem aqueles por-
tadores de uma qualidade que se quer cultivar (seleção) e se continuar a
criar só a respectiva descendência, a curva de variabilidade desloca-se
para esse lado da qualidade. Noutros tempos, acreditou-se possível mu-
dar, desta maneira, um tipo noutro inteiramente diferente (seleção artifi-
cial, ou, na natureza, seleção natural, na luta pela existência). Experimen-
talmente, entretanto, verificou-se que a seleção se torna impotente,
quando se tem “uma linha pura”. Chama-se assim, em oposição à popula-
ção, aquela massa de indivíduos que aumenta pela autofecundação — o
que só é possível nas plantas hermafroditas — e que, tal qual acontece,
por exemplo, com as ervilhas, se pode retrotrair a um organismo de par-
tida único. Os membros dessa linha pura mostram, a princípio, é certo, na
distribuição de suas qualidades, curvas de variabilidade semelhantes à da
população. Se, contudo, se escolher dentre elas exemplares extremos para
o cultivo, ver-se-á que a descendência não apresenta deslocamento algum
segundo a direção dada pela seleção; mas, sim, a curva de variabilidade de
que provêm os pais repete-se exatamente. O êxito seletivo dentro de uma
população termina, pois, quando se alcança o isolamento da linha pura
extrema. Concluiu-se que uma população represente mistura de muitas
linhas puras; daí ser possível, usando este método de seleção, obter o iso-
lamento da linha pura; não, porém, a reprodução de novos tipos.

b) Genótipo e fenótipo.
Daí se chegou à importante discriminação entre as qualidades do indi-
víduo (fenótipo) e às qualidades que o indivíduo pode herdar dos ances-
trais, sem que essas qualidades apareçam nele próprio (genótipo). Na linha
pura, todos os indivíduos são, genotipicamente, semelhantes; e todos são
diferentes em sua aparência, isto é, fenotipicamente; diversidade esta que
resulta da influência de condições vitais, que mudam de caso a caso, so-
bre o desenvolvimento genotípico no indivíduo particular. Como isso não
altera o próprio genótipo, as diferenças da aparência individual na descen-
dência em que prossegue o genótipo hão de desaparecer, novamente.
Mesmo tipos extremos da mesma linha pura possuem o mesmo genótipo.
Existem, então, nas populações, contrastando com as linhas puras,
além das diversidades fenotípicas, aquelas que correspondem ao genótipo.
Se, portanto, se escolherem, dentre as populações, fenótipos extremos
para a reprodução, ter-se-á a oportunidade de, por esta forma, apanhar,
ao mesmo tempo, genótipos diversos, os quais, então, aparecem, como di-
ferença permanente, na curva de variação da descendência respectiva.
Assim, pois, numa população, dois indivíduos podem assemelhar-se,
sem serem',’ por isso, hereditariamente, idênticos (a saber, quando perten-
cem às curvas de variação entrecruzadas de duas linhas puras diferentes)
. Mas podem também, grande mesmo que seja a diversidade aparente, ter
a mesma substância hereditária (¡quando se colocam em lugares diversos
na curva de variação da mesma linha pura).
É simples e clara a situação, quando se trata de atributos qualitativos:
as ervilhas de sementes verdes e amarelas, a “bons-dias’* de flores bran-
cas e vermelhas não apresentam transição alguma. Diverso é o caso dos
atributos quantitativos: largura e comprimento das folhas, peso das se-
mentes nas plantas, altura do corpo no homem; são só os métodos da. es-
tatística da variação que esclarecem até que ponto é possível, no caso,
uma determinação.

c) As leis de Mendel.
Mendel não conheceu os achados, só ulteriormente exibidos por Jo-
hanssen, concernentes a linhas puras e populações, genótipo e fenótipo.
Se teve, entretanto, capacidade para realizar experiências bem sucedidas
em torno da herança, foi porque utilizou plantas possuidoras de diversida-
des características simples relativamente à qualidade; características que
se haviam revelado constantes através das gerações; por exemplo, as ervi-
lhas de sementes amarelas e verdes.
Suas experiências baseiam-se na bastardização de indivíduos portado-
res de diferenças qualitativas nitidamente características e na observação
do comportamento da descendência, quando os portadores das mesmas
qualidades continuam a reproduzir-se sem bastardização ulterior. As leis
que, por esta forma, descobriu referem-se, pois, aos processos que se
prendem à bastardização de dois indivíduos portadores de diversidades
genotípicas.
Na primeira geração, “dominava” uma qualidade sobre a outra; por
exemplo, todas as plantas possuíam sementes amarelas. O verde perma-
necia “recessivo” em relação ao amarelo, que era “dominante”. Mas a qua-
lidade recessiva não se extingue, em absoluto, existindo, sim, na substân-
cia hereditária, porque, na segunda geração, que se obtém pela autofecun-
dação ou pelo acasalamento fraterno, se separam as qualidades; um
quarto da descendência possui sementes verdes e só dá descendência com
sementes verdes; um quarto possui sementes amarelas, dando descen-
dência apenas de sementes amarelas; dois quartos, pelo contrário, têm se-
mentes amarelas, partindo-se, por sua vez, na geração seguinte, em um
quarto definitivamente verde, um quarto definitivamente amarelo, dois
quartos dominantemente amarelos etc.
Se se chamar o portador da unidade hereditária no genótipo “gen”, ex-
plicar-se-ão as proporções numéricas encontradas por Mendel, urna vez
que se aceite o seguinte pressuposto: De cada um dos pais passa um gen
para o filho, o qual, portanto, tem dois gens para cada qualidade. À nova
formação de células germinais, no bastardo, estes dois gens têm-se de se-
parar, novamente, um do outro, de maneira que cada célula germinal pos-
sui sempre apenas um ou outro gen. As proporções numéricas calculadas
à combinação casual das células germinais, são- aquelas que Mendel en-
controu, de fato, experimentalmente, dentro dos limites de erros dados
que acompanharam essa distribuição. Hoje em dia, tem-se como provado
o pressuposto.
Cada indivíduo é determinado por enorme' quantidade de unidades he-
reditárias. Indaga-se de que maneira, numa experiência de cruzamento,
mais de um par de gens — no caso mais simples, dois pares — se compor-
tam entre si. Mendel achou a resposta: a cisão e a combinação dão-se in-
dependentemente uma da outra. Daí porque importa encontrar, dentro
das qualidades infinitamente numerosas dos indivíduos, os portadores de
unidades hereditárias (gens). É só com referência a esses gens, que se
transmitem independentes um do outro, que existem leis precisas de he-
rança.
Estas leis segundo as quais se distribui a combinação do cabedal here-
ditário nas bastardizações aplicam-se mesmo sem haver dominância deci-
siva. Correns verificou que, na primeira geração, também é possível um
comportamento intermediário de ambas as qualidades ligadas entre si; ou
seja, segundo parece, existe uma fusão da herança. Assim é que a pri-
meira geração do cruzamento, a partir de “bons-dias” brancos e verme-
lhos, floresce em cor-de-rosa. Mas sempre novamente se cindem, também
aqui, um quarto de formas vermelhas constantes, um quarto- de brancas
constantes e dois quartos de cor-de-rosa (que, subsequentemente, nova-
mente se cindem). Daí se vê que há gens diferentemente- atuantes. Se se
combinam gens muito fortemente atuantes e gens muito fracamente atu-
antes, realiza-se, na primeira geração, a proporção dominante-recessiva;
combinam-se gens que atuam com a mesma força, havendo, assim, um
estado intermediário de fusão hereditária aparente.
As características que a genética experimental considera são sempre
emparelhadas. Existe ou não existe uma qualidade; ou está entre dois po-
los. Todavia, essa relação simples complica-se extraordinariamente pelo
fato de não precisarem gens simples corresponder às características sim-
ples; e sim poderem as características repousar na colaboração, diversa de
pares de gens (alelomorfias); poderem gens individuais influenciar muitas
características (gens polifónicos); e, vice-versa, a mesma característica po-
der originar-se em gens diversos (polimeria). Discutir-se-ão ainda, breve-
mente, estes conceitos.
Na medida em que a um gen corresponde um segundo, que se relaci-
ona com o desenvolvimento da mesma característica (é o caso do gen de
flores vermelhas em relação ao gen de flores brancas), fala-se num par de
alelomorfos. Podem sempre dois alelos, apenas, estar unidos em um par,
existindo, todavia, a possibilidade de, em indivíduos diversos, haver muito
mais que só dois alelos. Realmente, trabalhando com populações e vi-
sando ao estudo de uma série de gens, tem-se encontrado toda uma quan-
tidade de estádios modificativos, dois dentre os quais se podem associar,
de cada vez, para experimentação; caso no qual se fala em alelia múltipla.
Muitas vezes, os alelos múltiplos distinguem-se, em seu efeito, quantitati-
vamente, um dos outros, de modo a poderem manifestar-se em séries ca-
racterísticas: graus de pigmentação, séries de formas de crescimento etc.
Daí ser possível que a variabilidade dentro da mistura racial aumente con-
sideravelmente. — Enfim, existe ainda a possibilidade de um e o mesmo
gen influenciar mais de uma característica. Por exemplo, o gen empregado
por Mendel na ervilha pode ser produzido, ao mesmo tempo, tanto para a
cor vermelha quanto para uma mancha pigmentar no eixo da folha. Gens
deste tipo chamam-se polifénicos. — Inversamente, existe ainda a possibi-
lidade de uma e a mesma qualidade ser influenciada não só por um, mas
vários ou muitíssimos pares de gens, fenómeno que se denomina polime-
ria. Nesse caso — sobretudo, quando os efeitos individuais produzidos pe-
los gens se apresentam com o aspecto de diferenças quantitativas — a ci-
são numa descendência não mais poderá dar proporções numéricas preci-
sas. Por conseguinte, a existência de constituições hereditárias poliniéri-
cas só pode deduzir-se do aumento da variabilidade dessa qualidade, na
descendência. Todas as referidas ideias devidas à pesquisa mais recente
em torno da hereditariedade mostram por que é tão frequente a dificul-
dade com que, nos casos particulares concretos, se descobrem propor-
ções.

d) A substância hereditária está nas células.


De há muito Be presumia (August Weismann), mas só em nossos dias
se provou, definitivamente, o fato de os cromossomas serem, nos núcleos,
celulares,' os portadores da herança; e de se relacionarem com a herança
os eventos complexos que se passam quando da formação das células
germinais, mediante divisão redutora (em células, com a metade dos cro-
mossomas), e quando do acoplamento de óvulo e espermatozoide, consti-
tuindo células que, por sua vez, possuem número completo de cromosso-
mas, dos quais se origina o novo indivíduo. As leis descobertas por Bate-
son e Punnett, bem como por Morgan, do acoplamento de qualidades (em
divergência da independência mendeliana quanto à respectiva combina-
ção) levaram a reconhecer entre os gens de um organismo conexões que
permitem reuni-los em grupos. A concordância do número desses grupos
com o número de cromossomas em objetos fáceis .de analisar (como o mi-
lho ou a mosca drosófila), juntamente .com as ideias citológicas referentes
à estrutura e comportamento dos cromossomas, levaram à teoria da dis-
posição linear dos gens no cromossoma. O gen, que, de início, se apresen-
tou por meio da experimentação hereditária da cria de animais., como hi-
pótese da unidade hereditária, tornou-se, somaticamente, localizável e
materialmente visível nos cromossomas — se bem que só em aparência —
graças aos mapas construídos com referência às disposições de gens. O
caráter corpuscular do gen se fez provável devido à possibilidade de al-
cançá-lo com os raios X.
A relação contínua das unidades das regras que regem a herança (uni-
dades hereditárias) com as unidades referentes à estrutura dos cromosso-
mas (gens), a coincidência do conhecimento citogenético (processos da di-
visão redutora, da mitose, da meiose etc.) com os conhecimentos resultan-
tes da cria experimental possibilitam a magnífica unitariedade biológica da
genética. O que resultou da experimentação em torno da herança veio a
reconhecer-se e apreender-se, por sua vez, nos achados celulares; por
exemplo:
Toda vida que provém da reprodução sexual tem dois progenitores e,
correspondentemente, cromossomas emparelhados (um cromossoma de
cada progenitor). Os pares cromossômicos se agrupam com outros pares
— diferentes numericamente segundo as espécies — formando a unidade
do genoma. Essa unidade dos genomas é a unidade de todos os gens per-
tencentes a um organismo.
Se os cromossomas possuírem, apenas, gens semelhantes (homozigo-
tia), nenhuma cisão mendeliana visível poderá ocorrer, mesmo que se al-
ternem, no processo da reprodução. Se, entretanto, os gens forem diferen-
tes (heterozigotia), terá de ocorrer a cisão mendeliana na descendência,
por força da recombinação que se passa em todo processo sexual.
A diferença entre a modalidade hereditária dominante e a recessiva re-
pousa na paridade dos cromossomas. A recessividade só se manifesta
quando existe em ambos os cromossomas do par; isto é, de ambos os pro-
genitores (donde sua frequente ocorrência nos casamentos consanguíneos.
Especialmente esclarecedora é a conexão entre o comportamento dos
cromossomas e a modalidade hereditária na herança do sexo, bem como
na herança ligada ao sexo. Em muitos organismos nos quais os sexos são
separados, distingue-se, morfologicamente, certo par de cromossomas,
isto é, precisamente, aquele em que se acha um gen determinante do sexo:
os chamados cromossomas X e Y. Assim é que a mosca drosófila tem, no
sexo feminino, XX; no masculino, XY. Todas as células ovulares possuem,
apenas, cromossomas X; os espermatozoides, pelo contrário, têm cromos-
somas metade X, metade Y. Daí por que existirão, realizada a fecundação,
50% de indivíduos com cromossomas XX — e este são femininos — e 50%
com cromossomas XY, que são sempre masculinos. Os gens que estão
neste cromossoma — no X ou no Y — terão de relacionar-se com o sexo da
descendência, e que se prova em numerosos casos.
Note-se, sucintamente, que, hoje em dia, a ciência também leva em
conta portadores hereditários situados no plasma celular, fora do terão de
relacionar-se com o sexo da descendência, o que se prova na teoria heredi-
tária referente ao homem.

e) A mutação.
Se só houvesse unidades hereditárias definitivas constituindo gens,
todo evento hereditário mais não seria do que modificação da mesma
coisa, mediante combinação mecânica em multiplicidade infinita, sim, po-
rém improdutiva. A seleção não produziria novas espécies, mas somente,
deslocamento para linhas puras. Na realidade, entretanto, a vida tem sem-
pre alguma novidade; novidade que consiste, por exemplo, no fato de apa-
recerem doenças pela primeira vez e, depois, se herdarem, numa família; o
que se explica pela “mutação” (de Vries). Formam-se, às vezes, por efeito
de saltos, qualidades novas, muito distantes das curvas de variabilidade,
exprimindo as qualidades, do organismo até então transmissíveis por he-
rança. Essas qualidades novas têm de atribuir-se, de acordo com a teoria
cromossômica, ao efeito de um gen que haja surgido (ou, antes, se haja
modificado), só então, nalgum lugar do cromossoma. Em casos particula-
res, tem-se determinado historicamente a mutação; noutros, tem-se po-
dido observar em condições experimentais. Desde que se conheçam, como
no caso da drosófila ou do milho, muitíssimos gens num organismo, po-
dem-se determinar, no curso de muitas gerações, com que frequência ou
com que raridade os gens individuais se alteram; pode-se-Ihes determinar
a mutação. Há gens que raramente ou nunca mudam; e outros nos quais
são frequentes as mutações. Mediante influências externas (temperaturas
extremas, raios de onda curta), podem-se elevar de muito essas taxas es-
pontâneas de mutação. Quase todos os mutantes significam alterações
mórbidas e ineptas para a vida, que desaparecem, de imediato, por força
de seleção natural. Encontram-se, entretanto, também variações positivas,
cujo acúmulo pode vir, com o tempo, a dar nova cunhagem à figura da es-
pécie.

f) Limitações críticas.
Tendo em vista a grandiosidade dos conhecimentos que se adquirem, é
necessário considerar os limites em que estes conhecimentos se mantêm.
A substância básica da herança é sempre a realização do plano estru-
tural da espécie; a repetição do que é igual e compõe a forma de vida. A te-
oria da herança diz respeito, experimentalmente, apenas, às pequenas
modificações; por assim dizer, à ondulação superficial, e não ao evento bá-
sico.
O mendelismo não significa saber algum quanto à profundidade do
evento hereditário total; e sim método que se limita a qualidades de tipo
alternativo, isto é, que aparecem ou não (flores vermelhas ou. brancas —
incolores; doença ou não-doença); qualidades, aliás, cuja ausência não é
fatal. Daí já não se poderem investigar as unidades hereditárias cuja au-
sência impossibilita a vida.
A teoria da herança limita-se a unidades hereditárias discrimináveis e
determinadas. Pode analisar, mas não abranger o evento hereditário total.

g) Resumo dos mais importantes conceitos básicos.


Temos de limitar-nos a pressentir, pelo menos, a complexidade indizí-
vel da herança, variação e mutação, se não quisermos, na psicopatologia,
acreditar em explicações por demais simples. Dos resultados da biologia, é
para nós especialmente importante o fato de os cromossomas (a substân-
cia hereditária) poderem carriar qualidades que o indivíduo não precisa
apresentar como características (sabe-se, há muito tempo, em patologia
humana, que um indivíduo pode transmitir doenças que não o afetem a
ele próprio); além disso, também importa o fato de haver, na composição
natural das populações humanas, muitos heterozigotos com herança
mendeliana; e, por conseguinte, pode haver tanto irmãos que sejam muito
parecidos quanto irmãos inteiramente diferentes, de modo que neles se
marcam qualidades opostas, as quais se conservam na descendência res-
pectiva. Em conexão com estes fatos, sempre se há de refletir sobre
quanto pode ser complicado e, daí, impenetrável o caso individual; sobre-
tudo, quando uma qualidade particular se herda polimericamente; isto é,
quando se coloca sob '.a influência de grande número de gens combiná-
veis independentemente entre si. Finalmente e antes de mais nada, im-
porta-nos a teoria das unidades hereditárias, a ideia de que o cabedal he-
reditário se distribui pelos cromossomas em forma de unidades isoláveis
individuais, de acordo com determinada disposição.
A aplicação da teoria biológica da herança ao homem esbarra em gran-
des dificuldades. O homem, como tal, não é objeto em que se possam es-
tudar leis biológicas da herança. O biologista escolhe o objeto de suas pes-
quisas em torno da herança segundo o ponto de vista da investigabilidade
tecnicamente favorável. As gerações têm de seguir-se com rapidez; deve
haver muitos descendentes; o número de cromossomas tem de ser o me-
nor possível. Só assim é que se podem contemplar os fatos com relativa
simplicidade. No homem, entretanto, as gerações seguem-se tão lenta-
mente que várias delas não se podem inspecionar com observação exata; a
descendência é extraordinariamente escassa; o número de cromossomas
(48) é extraordinariamente alto. De mais a mais, não se pode pesquisar a
reprodução no homem, na forma metodicamente experimental, mas só
acidentalmente, numa série de observações. Em lugar das experiências bi-
ológicas de cruzamento, são as abstrações que surgem de uma estatística
maciça.
Não se veja aí, contudo, objeção contra a pesquisa relativamente à he-
rança humana; quer-se-lhe, apenas, esclarecer o sentido, o significado.
Não se trata de encontrar, no homem, quaisquer leis que regulem a he-
rança, e sim, apenas, de ver com que extensão talvez se possam aplicar ao
homem leis biologicamente reconhecidas. Quando se promove a pesquisa
em torno da herança humana, o de que se trata é o homem, e não a he-
rança.
Quando não sabemos o que é que toca ao homem, a teoria biológica da
herança abre-nos o espaço da possibilidade. Contemplando a disposição
segundo a qual se constroem os gens da drosófila no respectivo mapa cro-
mossômico, faz-se-nos claro que conviria conhecer, para cada espécie de
organismo vivo, a disposição dos gens no germe; e, mais, suas relações re-
cíprocas segundo a situação. Do mesmo modo que, na anatomia e na his-
tologia, se apreende a estrutura do corpo; na fisiologia, a estrutura das
funções; nos sistemas endócrinos, a estrutura dos efeitos hormoniais inte-
rativos, trata-se, a esta altura, de apreender a estrutura da disposição he-
reditária. Enquanto, porém, na anatomia, não se investiga, nem se co-
nhece natureza alguma tão basicamente quanto a do homem, talvez se co-
nheça, em relação à disposição dos gens, a drosófila; mas o homem quase
se ignora. Quanto à estrutura do corpo humano e de suas funções e, bem
assim, do refinamento infinito de sua herança, que, em casos individuais,
observamos como se fosse um milagre, sabemos que uma disposição dos
gens, ainda inteiramente impossível de apreendermos, tem de constituir
um dos fatores da herança. Espantamo-nos e, ao mesmo tempo, receamos
afirmar com demasiada pressa conhecimentos presumidamente totais.

§ 3. A Aplicação Da Genética À Psicopatologia.

Devem-se a Rudin o primeiro trabalho metodicamente básico e o de-


senvolvimento ulterior dessa pesquisa. Rudin substituiu o método da esta-
tística maciça na investigação psiquiátrica da herança pela tentativa de
compreender, sob o ponto de vista mendeliano, usando métodos estatísti-
cos, um material genealogicamente apreendido. Para obter esse material,
partiu de doentes individuais (pro- bandos) e acompanhou-lhes os irmãos
e pais (método fraterno), ou os filhos e netos (método progenial), cujo es-
tado ou enfermidade se houvesse determinado. Já não são mais decisivas
as famílias individuais, porque, no caso, todas as cifras são casuais; con-
frontando, porém, uma massa de famílias, esperam-se obter cifras regula-
res e significativas. Do trabalho de Rudin resultou uma quantidade de in-
vestigações, visando ao conhecimento de unidades hereditárias reais e do
tipo do respectivo processo (dominante ou recessivo).
Procuraremos expor, com brevidade esquemática, alguns traços funda-
mentais deste conhecimento, partindo da complexa área.

a) As ideias diretivas básicas.


Depois que a genética reconheceu unidades somáticas hereditárias e o
respectivo curso, o que importa, sobretudo, sempre que se transpõem
ideias genéticas para a teoria da herança em psicopatologia, é inquirir as
unidades hereditárias. Que estas existem é fato resultante da pesquisa bi-
ológica e requisito de toda aplicação da genética à teoria da herança hu-
mana. Descobrir unidades hereditárias é o objetivo com o qual não só se
reconheceriam processos hereditários, mas se teria visão nova e profunda
dos fatores que influenciam o evento psíquico. O fato de as unidades here-
ditárias não existirem, em absoluto, de modo manifesto e de todos os fenô-
menos psicopatológicos falarem, inicialmente, contra a existência de uni-
dades hereditárias não lhes refuta a existência, se válidas forem as ideias
seguintes, que dizem respeito à relação dos fenômenos reais com os gens
subjacentes:
1. Todos os fenômenos são resultado da disposição hereditária e do pe-
rimundo, constituindo-se a partir da disposição, sob as influências ambi-
entais até então vigentes, através de reações, experiências, prática, costu-
mes. Se eu comparo os fenômenos através de várias gerações, não estou
comparando identidades imediatas, e sim fatos fenomênicos, nos quais
talvez uma igualdade (o genótipo) haja assumido forma diversa, sob o in-
fluxo do perimundo variante.
Daí se segue, em primeiro lugar, que também as doenças mais ' decisi-
vamente baseadas na herança precisam de condições ambientais para se
manifestarem; e que todas as influências ambientais também precisam da
disposição para se fazerem valer. Por exemplo, o fato de irromper a parali-
sia geral, causada pelo treponema pallidum, pressupõe uma constituição
que é hereditária; por causa de qual, ocasionalmente, se acumulam para-
lisias em certas famílias. A esquizofrenia repousa na herança, mas alguma
coisa ambiental tem de acrescer-se, porque, quando um gêmeo univitelino
adoece, quase sempre também adoece o outro, mas nem sempre.
Segue-se, em segundo lugar, que a manifestação da disposição heredi-
tária na doença só constitui certeza de seu aparecimento dentro de um li-
mite que se há de descobrir, em cada caso, por via empírica, não represen-
tando, absolutamente, fatalidade inelutável. Na medida em que se conhe-
cessem as condições perimundiais, poderia a disposição hereditária per-
manecer tranquila, sem manifestar-se, uma vez que se evitassem as con-
dições externas necessárias.
Em terceiro lugar, segue-se que as unidades hereditárias são “não-his-
tóricas”, por força de sua. constância biológica global, dizendo respeito a
alguma coisa que tem de ser idêntica, hoje, ao que era entre os egípcios de
há cinco mil anos. Não se podem conceber as unidades hereditárias como
formas psíquicas historicamente específicas, como obras do espírito; nem
como conteúdos de fenômenos culturais. O que não existia, há gerações, e
não existirá daqui a gerações deve ter, certamente, - fundamentos heredi-
tários, mas não é, por si, hereditário. As qualidades hereditárias possibili-
tam, em certas condições históricas, essas eventuais manifestações, sub-
sistindo, entretanto, a possibilidade de, com o decurso de cem a cento e
cinquenta gerações da história da humanidade, aparecerem ligeiras altera-
ções de tipo biológico, mediante mutações cumulativas; as quais ainda
não se acham estabelecidas, no homem, por forma convincente.
2. A unidade do gen não é a unidade de um fenômeno. As característi-
cas que aparecem apontam para um gen, mas não são o gen. O que não
coincide, imediatamente, para nós, no fenômeno, pode remontar a um gen
único; inversamente, o que, para nós, se afigura, imediatamente, único
pode repousar no entre- jogo de vários gens. Não reconhecemos unidades
hereditárias pela apreensão imediata de quaisquer manifestações, ou fenô-
menos, mas. pela experiência das conexões hereditárias.
O que repousa num gen chama-se monômero', o que repousa em vá-
rios, polímero. Só poucas doenças são monômeras (até o presente, apenas
doenças somáticas); todas as qualidades e doenças psíquicas, na medida
em que sejam acessíveis à análise genética, são, provavelmente, polímeras.
Daí serem impossíveis as simples cifras mendelianas com referência a
qualidades intelectuais, caracteres e psicoses; donde ser pouco provável
que, nas psicoses, se queiram encontrar, de imediato, regras mendelianas,
as quais pressupõem processos hereditários simples.
3. O efeito das unidades hereditárias (gens) está em relação mútua. As
unidades hereditárias não produzem suas manifestações cada uma por si,
independente das outras. Como elementos, não constituem soma mecâ-
nica, mas se relacionam, como membros de um todo: os gens no genoma.
O próprio estoque de disposições hereditárias é um arranjo, ou tem uma
estrutura. Esse todo, que é um todo parcial em relação ao organismo, te-
ria, para ser biologicamente reconhecível, de basear-se, por sua vez, no
efeito de um gen.
As disposições hereditárias podem, ser mais fortes, ou mais fracas; ou
podem nem se manifestar, se bem que, como tais, existam, identicamente;
estas oscilações manifestativas podem-se compreender pelo efeito recí-
proco dos gens uns sobre os outros; pelo “meio em que vivem os gens”. Os
gens precisam um do outro, podem inibir-se; ou desencadear-se, ou regu-
lar-se. A realização de um fator, por conseguinte, pode depender da com-
binação com outros fatores. Sim, pode-se indagar: as unidades hereditá-
rias absolutas são inencontráveis, em psicopatologia, pelo fato de não
existirem? Pelo fato de serem abstrações de alguma coisa que só existe
com o todo, seja qual for, e que não existe em si, mas só é o que é como
sede, como membro, como polo?
Só pela coincidência de muitos gens é que pode surgir determinado fe-
nômeno; por exemplo, uma doença. Assim é que constitui resultado nega-
tivo da investigação relativa à herança o fato de a esquizofrenia não poder
ser a manifestação de uma unidade hereditária, mas ter de ser fenômeno
que só aparece pela coincidência de uma série de unidades hereditárias
diversas, dentro de condições perimundiais adequadas. Uma pessoa pode
ter, na sua disposição hereditária, uma série de gens que sejam requisito
da irrupção da esquizofrenia, sem adoecer, ela própria; e, no entanto, pro-
duzir a esquizofrenia nos filhos, pelo acréscimo do último gen que faltava
através da substância hereditária do cônjuge.
Fundadas em experiências biológicas e transpostas, por analogia, para
a esfera das deduções, estas ideias representam meras possibilidades para
fins psicopatológicos. Supõe-se haja alguma coisa em que se baseiem os
fatos, de modo que o fenômeno possível de experimentar-se se entenda
como resultado de um processo complexo da interação de muitas unida-
des hereditárias; e isso de tal forma que o fenômeno não ocorre, apesar da
existência de quase todas as condições para a transmissão, caso falte uma
das unidades hereditárias.
A conexão entre várias manifestações empíricas exprime-se, numerica-
mente, pela correlação entre elas, correlação que resulta da contagem de
muitos casos. O coeficiente de correlação 1 significa: que as manifestações
sempre coincidem pelo fato de se prenderem entre si; o coeficiente o signi-
fica: que a coincidência é simples acaso, mero acidente. Se o coeficiente de
correlação for relativamente elevado, interpreta-se a correlação ou pelo en-
raizamento no mesmo gen (cabelos vermelhos e sardas), ou pelo acopla-
mento de dois gens no mesmo cromossoma (hemofilia e cromossoma se-
xual masculino), ou pelo ambiente em que o gen existe (é mais fácil o gen
da siringomielia aparecer na raça de coelhos de pelo curto); ou ainda se vê
uma conexão apenas aparente (num cruzamento racial, de fato, só está
junto aquilo que poderia, simplesmente, estar separado, como o cabelo
crespo e a pigmentação escura dos negros) (Resumo segundo Conrad).
4. Mutações (alterações repentinas da disposição hereditária). As muta-
ções permitem compreender por que aparecem, pela primeira vez, doenças
em famílias que nunca haviam sido, comprovadamente, afetadas. Há dú-
vida sobre se, por exemplo, os gens da esquizofrenia aparecem, eventual-
mente, pela primeira vez, mediante mutação que sempre é possível no ho-
mem, tornando-se, a seguir, hereditárias; ou se repousam sempre na he-
rança, uma vez que se apresentem. Isso deve ter acontecido de muita
longa data, visto a esquizofrenia ocorrer em todas as raças humanas e em
todos os tempos dos quais temos relatos bastantes.

b) Dificuldades metodológicas.
A aplicação dos conhecimentos genéticos à herança mórbida, no ho-
mem, tem levado, relativamente a algumas enfermidades somáticas, a
unidades e processos hereditários mais ou menos claros (por exemplo, na
hemofilia, na coreia de Huntington, na idiotia amaurótica juvenil etc.). A
situação é outra no que diz respeito a fenômenos psíquicos e a doenças
mentais, tanto em vista de dificuldades técnicas quanto em princípio.
Tecnicamente, o material de que se parte é extraordinariamente difícil
de obter. Muitas doenças psíquicas só se manifestam em idade avançada,
morrendo o indivíduo antes, de modo que, embora enfermo, terá sido con-
siderado sadio. A investigação pessoal pelo médico pesquisador é necessá-
ria; mas possível, apenas, em doentes vivos e acessíveis.
Em princípio, todavia, uma manifestação psíquica nunca é caracterís-
tica de um gen no mesmo sentido que uma manifestação somática. Sem-
pre que se inquire a herança, o primeiro requisito é esclarecer o que é que
se quer saber da hereditariedade, no caso particular. Talvez se possam —
assim se considera — questionar as inúmeras unidades da psicopatologia
(desde formas reativas simples, tipos imaginários, até o tipo de personali-
dade; desde complexos sintomáticos até a unidade mórbida; mais ainda: a
constituição permanente ou os fenômenos que aparecem em certa época
da vida; fases ou processos etc.). Mas a falha dessas unidades está sempre
no fato de não serem unidades características nítida e identicamente cap-
táveis, univocamente enumeráveis.
Acresce-se ainda a circunstância de quase todos os fenômenos psíqui-
cos serem, no homem, intelectualizados. O intelecto — ou o espírito, a
mente — não se herda, porém; e sim se transmite, historicamente. Só as
capacidades de apropriação é que são hereditárias; capacidades que, en-
tretanto, como funções básicas, não se isolam, em absoluto, da realização
histórica eventual. Por conseguinte, existe diferença fundamental entre as
maneiras por que se procuram unidades hereditárias, em primeiro lugar,
na doença somática e nas psicoses somaticamente conhecidas; em se-
gunde lugar, nas grandes psicoses; finalmente, nos caracteres e nas quali-
dades psíquicas particulares. Diz Luxenburger, (1939) que só se pode falar
em processo hereditário quando se trata de uma característica hereditária
da genética; aquilo que é simples designação' conceituai, embora possa
pretender muito valor de realidade, como, por exemplo, as qualidades ca-
racteriais, não será uma característica nesse sentido; característica será
alguma coisa substancial, expressão da essência daquilo que se herdou;
não significará genótipo, mas será essência que se terá feito visível.
Que é, entretanto, que se faz, quando não é possível operar com unida-
des hereditárias nítidas (gens), que se possa dizer sejam características
unívocas? Só haverá, então, métodos indiretos, que- se terão aplicado
quando se presumiu um processo hereditário, no sentido da genética,
como base fatual de uma massa complexa de fenômenos.
Tentam-se basear, hipoteticamente, em unidades as totalidades feno-
mênicas imprecisas (por exemplo, a esquizofrenia); imaginá-las fundadas
em dois, três ou mais gens; e, em seguida, fazer cálculos que se compro-
vam por métodos requintadamente elaborados — para ver se as cifras re-
ais de uma estatística maciça se podem entender como resultado destes
pressupostos e dos cálculos a que eles levam. Assim é que se imaginam,
relativamente aos complexos fenomênicos que chamamos doenças, não
um, e sim vários gens (não bases monômeras, e sim polímeras; talvez tri-
meras), de cuja combinação no processo hereditário devam resultar as ci-
fras do aparecimento das doenças em questão.
Falta, no entanto, aos artifícios matemáticos desta ordem a força pro-
bante propriamente dita, se não se aplicam, do mesmo- passo, os recursos
matemáticos que determinam a decisividade ou indecisividade das hipóte-
ses tentadas. As cifras podem coincidir, uma vez, em meio às possibilida-
des matemáticas infinitas. Todos os grupos numéricos permitem contar
com um edifício que seja básico. São questionáveis aquelas unidades here-
ditárias que não se reconhecem, por fenômenos, qualidades característi-
cas, como- sendo aquilo que, nelas, se mostra unívoco, mas apenas se in-
ferem. O que não se pode determinar, imediatamente, no fenômeno, ou na
manifestação, leva à infinitude, que se pode, sim, inferir como possível,
sempre, contudo, carecendo da verificação propriamente dita. Quase sem-
pre temos ante nós coisas que não se podem decidir.
Se, no entanto, sem números, se inferirem possibilidades complexas e
básicas desta sorte, cai-se no absolutamente arbitrário. Talvez, essa infe-
rência a partir do que é aproximado, apenas, abra perspectivas significati-
vas daquilo que, de fato, poderia ser; mas é errada, se antecipar qualquer
exatidão.
Tendo em vista o fato de ser o método indireto, é de compreender-se a
absoluta impossibilidade de formular os resultados, por forma clara, inte-
ligível e unívoca. Parte-se da imprecisão; daquilo que, muitas vezes, nem
se determina com identidade em que se possa confiar; e procuram-se uni-
dades precisas, a inferir-se. Espera-se, pelas conexões hereditárias na sé-
rie progenial, chegar a unidades que, doutro modo, não se teriam desco-
berto; esperam-se encontrar as unidades das quais se deveria, a rigor, ter
partido. Estas investigações relativas à herança talvez permitissem confir-
mar ou rejeitar a ideia de haver unidades mórbidas na área psíquica; e
quais seriam elas.
Se se quiserem transferir os conceitos da genética exata para a psico-
patologia, são necessárias unidades precisas e que se possam apreender,
objetivamente. Tem-se, é certo, de admitir que cabe ao pesquisador, de iní-
cio, apenas pressenti-las; e só encontrá-las quando investiga estudos ge-
nealógicos; não pode, por conseguinte, pressupô-las. Estará ele, então, se-
guindo o rumo em que ainda não pode fazer afirmação alguma que seja
válida por. outra. No caso de sua pesquisa ter resultado positivo, a uni-
dade encontrada constituirá, porque representa um fato preciso, pressu-
posto de verificação ulterior.

c) Investigações sobre a hereditariedade das psicoses.


As grandes psicoses — esquizofrenia, ciclotimias, epilepsias — têm li-
mites vagos, sob o aspecto do diagnóstico; nem se determinam identica-
mente com a mesma validez geral por parte de todos os observadores. Su-
pera-se esta dificuldade, partindo de um terreno mais estreito que com-
porte casos certos. Todavia, as proporções numéricas encontradas não
têm levado a pensamento positivo algum, no sentido da genética.
De referência à esquizofrenia, Luxenburger diz, em resumo, o seguinte:
“Não existe a unidade da esquizofrenia. No sentido da investigação concer-
nente à herança, a esquizofrenia ainda é, essencialmente, uma hipótese de
trabalho. Não se pode compará-la, em absoluto, com as características
muito mais fáceis de apreender, como tais, da morfologia humana; nem
com as da genética experimental.” Pela via da psicopatologia, não parece
possível alcançar o objetivo. “Que a característica hereditária propria-
mente dita da esquizofrenia só se possa apreender no somático, disso não
me parece haver dúvida de espécie alguma.”
Com relação ao processo hereditário das unidades decisivas para a es-
quizofrenia, a necessidade é mais provável que a dominância para a esqui-
zofrenia, a recessividade é mais provável que a dominância. Pela recessivi-
dade do processo hereditário da esquizofrenia, fala a circunstância de que,
“somente 4 a 5% dos progenitores de esquizofrênicos são também esquizo-
frênicos” — “carga principalmente nos colaterais” — aparecimento fre-
quente “quando parentes se unem (isso estudando famílias individuais
maiores). — “As famílias nas quais a esquizofrenia se comprova em três ou
até mais gerações em sucessão direta são raríssimas” — Pela dominância,
entretanto, fala a circunstância de “faltarem provas no sentido de ser ele-
vado o número de casamentos consanguíneos entre os progenitores de es-
quizofrênicos relativamente à média da população”. — “Entre os filhos de
esquizofrênicos, encontram-se mais doentes do que entre os irmãos”.
Do ponto de vista heredo-biológico, deve-se conceber a esquizofrenia
como sendo condicionada por uma série de gens, dos quais nenhum co-
nhecemos, entretanto, até o presente. Para a doença manifestar-se, são
necessários outros fatores, que também não conhecemos; mas cuja exis-
tência a investigação de gêmeos univitelinos permite afirmar.
Não é melhor o resultado da pesquisa, no que diz respeito à loucura
maníaco-depressiva. Johannes Lange diz, falando na falência dos cômpu-
tos relacionados com esta área: “De tudo quanto sabemos, não podemos
imaginar quão complexa é a situação”.
Em geral, pode-se dizer: Na psicopatologia das grandes psicoses, não
se encontraram, até o momento, unidades hereditárias; daí excluir-se,
completamente, qualquer cálculo em torno das cifras nosológicas que se
esperem segundo as leis de Mendel. Este conhecimento limita-se, na pato-
logia humana, a fenômenos que se podem apreender somaticamente.
Embora não se espere êxito, até o presente, no sentido da genética, tal-
vez ainda se possa dizer: Certamente, êxito não se alcançará mediante cál-
culos, mas, apenas, se, usando de procedimentos que girem em círculo,
um pesquisador encontrar o artifício feliz, rompa o círculo e revele um fato
que constitua a unidade, mediante redescoberta radical. Nesse momento,
haverá objetividades possíveis de determinação idêntica que levem à fixa-
ção precisa do processo hereditário; no momento, porém, o que se apre-
senta, coeminente, é o quadro de cálculos em torno de simples incógnitas.
O artifício feliz apreenderá — segundo a bem avisada suposição de Luxen-
burger e segundo é de prever — um fenômeno somático, desde que este
ponto de vista da pesquisa relativamente a casos que cabem no círculo da
esquizofrenia seja o correto.
d) Investigações em torno da hereditariedade dos fenômenos psíquicos.
As investigações sobre a hereditariedade de caracteres têm permane-
cido questionáveis, pela falta de objetivação suficiente daquilo que se vê. O
que certo pesquisador pretende demonstrar à evidência e exprimir só vale
quando lhe é também possível apresentar ao leitor os fenômenos objetivos
de tal modo que ele próprio os veja; sem o que, tudo não passa de constru-
ção subjetiva. Tem-se conseguido, no entanto, em casos bem sucedidos,
dar uma visão genealógica; por exemplo, no caso dos psicopatas carentes
de afeto (v. Bayer, Stumpfl) e, sobretudo, dos gêmeos univitelinos, nos
quais se nota semelhança caracterial extraordinária, presente mesmo que
cresçam em meio inteiramente diverso, o que, de início, os faz parecer de
todo diferentes, no estilo de vida e no comportamento. Um dos que mais
basicamente investigaram a herança do caráter, Stumpfl, estabeleceu, cri-
ticamente, os seguintes requisitos metodológicos: Todas as tentativas no
sentido de fazer caracterologia hereditária a partir da tipologia dos caracte-
res têm de falhar e falham; as conclusões sumárias a que essas tentativas
levam obscurecem o problema propriamente dito. Constitui requisito a
descrição psicológica exata de cada personalidade individual no contexto
de uma estirpe; mas já se erra, de princípio, quando se determina o curso
hereditário das qualidades caracteriais (isto é, quando se parte de supos-
tos elementos do caráter). Tentar compreender um suposto núcleo essen-
cial como decisivo é confundir aquilo que é característico, em confronto
com os perfis aguçados da caracterologia; sem que se localize, no entanto,
a unitariedade heredo-biológica. Stumpfl firmou, de maneira convincente,
a seguinte concepção básica: A hereditariedade do caráter não pode de-
pender de gens corpusculares singulares. Mas o que é a totalidade, que
determinará a conexão dos gens caracterologicamente ativos, ainda é fato
absolutamente obscuro.
A investigação em torno da herança parece relacionar-se com objetos
mais fáceis de apreender quando se volta para os rendimentos da inteli-
gência. Os relatos escolares, por exemplo, são palpáveis. Foi assim que Pe-
ters, investigando a herança de aptidões escolares, encontrou:
Cifras desta ordem podem fazer-nos meditar, mais não ensinando, to-
davia, senão que a hereditariedade interfere, de modo geral, em sentido
vago, seja qual for.
Metodologicamente, a situação se afigura mais favorável, quando se
parte de rendimentos experimentalmente comprováveis (os relatos escola-
res, os questionários dos inquéritos dependem sempre do- juízo dos pro-
fessores e das pessoas que respondem aos quesitos): talvez se estabele-
çam, aí, coisas objetivas. O que é “testável” pode fazer-se acessível a uma
investigação estatística sobre a herança. As pesquisas deste tipo têm, cer-
tamente, propiciado, em geral, muito mais material convincente de refe-
rência à herança. Todavia, as combinações estatísticas não permitem fun-
damentar concepções genéticas por forma exata.
Através de todas estas investigações, convencemo-nos, reiteradamente,
de que a hereditariedade é fator decisivo; longe estamos, contudo, de
quaisquer “elementos básicos” que se possam relacionar com unidades
hereditárias. Tudo quanto estabelecemos como fenômenos ou manifesta-
ções psíquicas, como caracteres, rendimentos, aptidões etc., torna-se ex-
tremamente complexo quando pensamos, na ocorrência biológica. Mas se
há formações psíquicas elementares e, havendo-as, em que sentido — isto
é absolutamente obscuro, do ponto de vista heredo-biológico. Não se tem,
no momento, ponto de partida algum, sequer imaginável, que permita en-
contrá-las.

e) A ideia dos círculos hereditários.


Já ruiu a velha teoria da disposição geral para as doenças psíquicas,
da herança transformadora e do polimorfismo indiscriminado da herança.
Considerando a genética e suas unidades mendelianas, é extremamente
pouco provável, pelo menos, que todas as formas de doença mental ' se
fundem em disposição unitária singular. Nem por isso, contudo, se al-
cança qualquer conhecimento da constância da herança de certas psico-
ses, com franca exclusão mútua. A multiplicidade das- manifestações
mórbidas na mesma família continua a ser fato básico. A questão, agora, é
a seguinte: Dentro de que círculos limitáveis ocorre uma herança transfor-
madora, no sentido de um quadro mórbido poder substituir o outro, como
equivalente, por assim dizer? Ou mais prudentemente: Que tipos de fenô-
menos se relacionam, de algum modo, entre si, a ponto de disposições
parciais comuns deverem servir-lhe de base, por via hereditária?
Fala-se em círculos hereditários segundo dois sentidos. Por um lado,
chama-se assim o parentesco consanguíneo de um doente (é o círculo he-
reditário, então, o território histórico de todas as manifestações que hajam
aparecido juntas, uma vez, em certa estirpe). Por outro lado e para nossa
presente discussão, chama-se círculo hereditário o grupo de manifesta-
ções ou fenômenos talvez muito diversos que se relacionam pelo fato de te-
rem seu fundamento suposto em genotipos (círculo hereditário, então, é
conceito heredo-biológico que se aplica a uma conexão geral).
aa) Observações clínicas do passado têm pretendido ver o apareci-
mento familiar de grupos nosológicos a ponto de correlacionarem certas
enfermidades somáticas, doenças metabólicas, anormalidades psíquicas,
tendência à apoplexia etc. Assim é que se veem as famílias neuropáticas e
se nota como nelas coincidem, por exemplo, distrofias musculares e debili-
dade mental; ou a esclerose lateral amiotrófica e a esquizofrenia. Estendi-
das que foram estas observações às psicoses e aos caracteres, bem como a
todos os tipos de psicopatias, têm-se procurado determinar, estatistica-
mente, as correlações entre tipos de estrutura corpórea, tipos de caráter,
psicoses, disposições psicopáticas, enfermidades somáticas.
Por exemplo:
1. Irmãos de esquizofrênicos tuberculizam-se quatro vezes mais fre-
quentemente do que os irmãos de não-esquizofrênicos (Luxenburger). Nos
maníacos-depressivos, pelo contrário, não se" tem encontrado relação com
a tuberculose, mas sim, com a gota, a obesidade, o diabetes, o reuma-
tismo.
2. Se se comparar a coincidência da psicopatia esquizoide e da esqui-
zofrenia em pais e filhos, a probabilidade mórbida apresentar-se-á, se-
gundo Luxenburger, nas seguintes percentagens:
As cifras de psicopatas esquizoides e esquizofrênicos devem provar que
há alguma coisa análoga nuns e noutros. O resultado não é concludente.
Luxenburger acha “que o fato de a psicopatia esquizoide ter relações com
a esquizofrenia é certo, realmente; mas estas relações são frouxas, ambí-
guas, e só estatisticamente de apreender-se.” Estabelece, porém, no to-
cante a estas e outras manifestações correlatamente apuradas: “Estes fe-
nótipos podem ocorrer, em princípio, mesmo sem os. requisitos chamados
genotípicos; caso em que não se enquadram no círculo hereditário.” A con-
sequência é que “uma série de psicopatas podem ser tidos por psicopatas
esquizoides, quando forem parentes consanguíneos de um esquizofrênico”.
No entanto, Luxenburger pretende: “Parece certo o fato de podermos ob-
servar nos- esquizoides psicopáticos portadores mais destacados de dispo-
sições parciais esquizofrênicas”.
Pelo contrário, Stumpfl e von Bayer não encontraram, no círculo here-
ditário de seus psicopatas, aumento algum de frequência de psicoses.
3. Prova-se a relação da paranoia com o círculo hereditário da esquizo-
frenia da seguinte maneira:

Esta coincidência demonstra a constância do fundamento hereditário.


bb) Distinguem-se, há decênios, três grandes círculos hereditários'. o
esquizofrénico, o maníaco-depressivo e o epiléptico. Seriam os círculos a
que sempre se restringiria o polimorfismo das. doenças. Estes círculos he-
reditários teriam de excluir-se, em princípios, entre si; as manifestações de
um não poderiam, absolutamente, enraizar-se noutros.
Na realidade, os círculos estão, se se tomam cifras maiores, muito dis-
tantes. Comparando as fratrias, Luxenburger observou, para cada 100
probandos apanhados ao acaso nos grupos da esquizofrenia, da loucura
maníaco-depressiva, da epilepsia e da paralisia geral, que a expectativa da
mesma doença preponderava enormemente. O índice por Mauz,1 entre os
quais o seguinte:
ao passo que o índice de coincidência entre os vários círculos hereditá-
rios era pequeno; por exemplo, entre:

Se aparecem discrepâncias, tem-se de interpretar; e a interpretação


mais simples é que houve entrecruzamento dos círculos; hereditários, pelo
fato de haverem coincidido, devido a um casamento, ambos os círculos de
famílias diversas. Ou houve mutações, de que resultou, pela primeira vez,
a doença de outro círculo hereditário (interpretação muito pouco provável,
baseada em possibilidade vaga). Ou ainda: pode ter havido manifestações
-diferentes de coisas iguais; por exemplo, pelo efeito das demais disposi-
ções de uma família e pelos efeitos ambientais de outra natureza. Inversa-
mente, pode ter ocorrido manifestação igual da heterogeneidade heredo-
biológica; por exemplo, aquilo que repousa em disposições hereditárias di-
versas pode ser idêntico na manifestação, por força de outras condições
acidentais presentes na disposição e no perimundo.
Existem investigações notáveis, baseadas no círculo hereditário da epi-
lepsia. Alguns dados tirados das conclusões de Conrad, só para exemplifi-
car:
Na prole dos epiléticos, encontraram-se 6% de epilepsia (na população,
em geral, 0,4%); mais: 35% de anormalidades psíquicas (além da epilep-
sia, encontraram-se debilidade mental, psicoses, psicopatias, criminali-
dade); 42% se se incluírem também as doenças neurológicas e os tipos de-
fectuais somáticos.
Entre os gêmeos univitelinos, encontrou-se concordância em 55%; en-
tre bivitelinos, em 12% dos casos. Conclui-se que vários gens tenham de
coincidir para a epilepsia aparecer do fato de existir, na epilepsia idiopá-
tica, entre gémeos univitelinos, concordância acentuada (86%), ao passo
que somente 6% dos filhos de epiléticos são, por sua vez, epiléticos.
cc) O quadro dos círculos hereditários possibilita, ao que parece, grandi-
osa unificação e agrupamento no processo hereditário; e a correlação de
certas psicoses com certas psicopatias e tipos de estrutura corpórea pa-
rece abrir perspectivas amplas quanto ao fundamento da vida. O resultado
das pesquisas básicas não corresponde. entretanto, à expectativa. O que
se afigurava plausível à primeira vista torna-se, a cada momento, questio-
nável, ante exemplos em contrário. Dado o primeiro passo, confirmado
este pelos; achados genealógicos, não prosseguimos, embora o quadro das
correlações estatísticas se faça mais nítido e mais confiável. Não se forta-
lece a prova com o progresso da pesquisa, mas, pelo contrário, enfra-
quece-se, com a repetição dos mesmos princípios. As discrepâncias exi-
gem interpretações, as quais se vão fazendo cada vez mais hipotéticas, à
medida que se caminha, apresentando-se igualmente permissíveis as pos-
sibilidades eventualmente contrapostas. Daí constituírem os- círculos he-
reditários, certamente, quadros impressionantes, do ponto de vista histó-
rico-genealógico, mas não conhecimentos cuja validez se possa aplicar
com a mesma confiabilidade geral. As correlações estão sempre mostrando
que alguma coisa existe, sem ajudar, contudo, a responder à pergunta do
que é.
Sobre o fundo do saber genético e visando à apreensão dos círculos he-
reditários, quando se fazem investigações genealógicas, têm-se implicado
todas as perspectivas de um modo ou outro tangíveis. Nalguns casos, con-
seguiu-se obter a configuração de conexões hereditárias em estirpes intei-
ras por várias gerações. Visualizaram-se não só as doenças psíquicas di-
agnosticáveis, mas também caracteres, estrutura corpórea, todas as mo-
dalidades de manifestações humanas, a fim de descobrir e provar, entre as
ideias relativas à unidade mórbida ou à constituição, a conexão de tudo.
Esta genealogia aprofundada veio a afigurar-se ambígua. É inatacável na
medida em que mais não dá senão a visão histórica de certas estirpes,
com o interesse de despertar tudo quanto é, individualmente, bem des-
crito. Mas assim que tira conclusões gerais a partir de observações parti-
culares, aquelas deixam de ter força probante, considerando a cifra redu-
zida das estirpes apanhadas por esta forma; quando vemos, nos espanta-
mos e consideramos possível; o que se apresenta é indagação, e não prova.
O pendor para a generalização com base na evidência objetiva de casos in-
dividuais é grande, tanto mais quanto se acumulam os casos apropriados,
com menosprezo dos discrepantes. A precisão de uma perspectiva ainda
não chega a ser a exatidão daquilo que se pode enumerar; nem tem o rigor
de uma lei. Quando se associam na genealogia o diagnóstico, a caractero-
logia, a pesquisa constitucional e a tipologia analítico-estrutural, há de
uma sustentar a outra mutuamente, porque que cada um destes modos
de ver, em particular, por si, é fluido e impreciso. As unidades nosológicas
devem ser delimitadas; as constituições hão de ficar claras; os tipos carac-
teriais reais hão de mostrar-se. Na verdade, porém, não se consegue preci-
são alguma pela correlação recíproca de coisas imprecisas. As unidades
hereditárias que se admitem, as totalidades de um quadro geral, os princí-
pios das totalidades típicas, tudo tem de sustentar-se entre si. Õ que
acontece é uma plausibilidade eventual fazer-se possível, é ampliarem-se
as nossas perspectivas fatuais, sem que, no entanto, surja qualquer co-
nhecimento geral. Sob o aspecto lógico, tanto faz surgir um quadro paren-
tal genealógico através da investigação fundada e rigorosa quanto comuni-
carem-se observações anedoticamente impressionantes.
Exemplo da primeira possibilidade é a bela investigação de F. Min-
kowska, que, trabalhando, durante quatro anos, com duas estirpes atra-
vés de seis gerações, acompanhou, visitou e pesquisou quase todos os
membros vivos, pessoalmente. Conseguiu, assim, esboçar um quadro da
constituição epileptoide e da respectiva estrutura biológico-psíquica e fí-
sica —, com base nas concepções de Kretschmer. — Exemplifiquem a se-
gunda possibilidade os inúmeros casos relatados por Mauz,1 entre os
quais o seguinte:
“Há anos, indo a um espetáculo de variedades..., encontrei um homem
corpulento, cujos olhos se colavam ao que se passava no palco. A euforia
persistente com que acompanhava o espetáculo não cessava ao término de
cada número, mas se mantinha nos intervalos. Impressionou-me tanto o
quadro, como expressão de viscosidade, que fui sentar-me perto dele. Vim
a saber que era um pequeno agente de seguros.... jamais tivera ataques,
ele próprio, mas um irmão estava internado, havia anos, por epilepsia.

f) A investigação dos gêmeos.


— Estamos habituados a que nenhum homem é igual a outro; e só nos
espantamos quando confrontamos certos gêmeos. Os gêmeos que se asse-
melham a ponto de confundirem-se de há muito se consideram curiosida-
des. Galton foi o primeiro a dar-lhes importância fundamental na pesquisa
das influências disposicionais e ambientais. Distinguiam-se, de longa
data, os gêmeos colocados num âmnio daqueles que tinham cada um âm-
nio próprio. Aqueles desenvolveram-se a partir de “duas manchas germi-
nais no mesmo ovo”; estes, de dois ovos (como acontece nos animais, que
quase sempre geram mais de um rebento). Aqueles são sempre do mesmo
sexo. Foram só a genética e a citologia que deram significação fundamen-
tal a esses fenômenos. Gêmeos univitelinos originam-se de cisão muito
precoce de um só germe, de maneira tal que cada uma das partes ainda
pôde formar um embrião completo (analogamente ao que se pode mostrar
com o corte artificial de ovos de ouriços marinhos, em estádios precoces).
Daí por que os gêmeos univitelinos possuem -substância disposicional in-
teiramente igual, comportando-se em relação um ao outro tal qual duas
vergônteas da mesma planta. Os gêmeos bivitelinos comportam-se em re-
lação um ao outro tal qual outros irmãos, não se assemelhando mais do
que estes. De referência, pois, à pesquisa, consideram-se, apenas, os gê-
meos univitelinos, que não são tão raros: na Alemanha, para cada 80 nas-
cimentos, em números redondos, há um nascimento gemelar; destes, cada
um em quatro dá gêmeos univitelinos.
A investigação de gêmeos bivitelinos nada pode ensinar concernente ao
processo hereditário, infrutífera que é para a genética, como análise dos
gens. Serve, no entanto, de guia para distinguir efeitos ambientais daquilo
que é transmissível por herança. O confronto dos gêmeos univitelinos
mostra o que pode ser transmitido- e o que resulta do efeito ambiental,
visto dever-se pressupor haja neles uma substância disposicional inteira-
mente igual. Chama-se a igualdade das qualidades gemelares concordân-
cia; a desigualdade, discordância. O que os gêmeos apresentam de concor-
dante, quando vivem em perimundo diverso, indica a respectiva qualidade
como condicionada, provavelmente, pela herança; o que é discordante tem
de atribuir-se à diversidade perimundial e à diferença biográfica. Quando
se observam gêmeos, impressiona extraordinariamente o modo por que se
dá a concordância. Não- impressiona menos, contudo, ver quanto certos
fenômenos mesmo- de condicionamento hereditário radical (por exemplo,
a esquizofrenia) precisam de influências ambientais para se manifestarem.
Se a compulsão hereditária fosse absoluta, sempre que um gêmeo- univi-
telino se tornasse esquizofrênico, o outro também se tornaria, sem exce-
ção, fosse qual fosse o caso; o que acontece quase sempre, sim, mas nem
sempre; Luxenburger encontrou, entre dezessete gêmeos seguramente
univitelinos, dos quais um ficara esquizofrênico, dez esquizofrênicos entre
os parceiros. Mais acentuada ainda é a concordância na debilidade mental
congênita e na epilepsia.
Têm-se investigado criminosos entre gêmeos. Lange mostrou como,
num par de gêmeos, ambos se tornam trapaceiros, impostores, larápios
em grande estilo. Kranz observou, em gêmeos univitelinos, 2/3 a 3/4 cri-
minalmente concordantes, ao passo que, em bivitelinos, a concordância ia
à metade. Mesmo em gêmeos univitelinos, a disposição não é compulsória
em absoluto, como são, por exemplo, o grupo sanguíneo ou os estigmas
corpóreos, onde a concordância vai a 100%.
O que faz as pesquisas sobre gêmeos serem essenciais são, sobretudo,
as questões que suscitam. As observações dos biologistas mostram que as
diferenças entre rebentos a se explicarem pelo perimundo só dizem res-
peito, em geral, a diversidades quantitativas. Uma mutação completa, um
comportamento alternativo entre a existência ou não existência de certa
qualidade por efeito do ambiente é extraordinariamente rara; por exemplo,
o fato de a prímula sinensis florescer vermelho até certo limite de tempera-
tura; acima de 30°, ela floresce branca, embora a cor vermelha da floração
seja transmitida, simplesmente, por um gen. A aplicação da pesquisa so-
bre os gêmeos às doenças mentais permite indagar, com referência à es-
quizofrenia, que, realmente, não acomete em todos os casos, ambos os gê-
meos ou gêmeo algum: Será a esquizofrenia, apenas, aumento quantita-
tivo de alguma coisa que existe mesmo que não ocorra doença mental al-
guma? Não é este o caso, clinicamente falando; o que existe, sim, é a ir-
rupção da psicose. Ou no meio dos gens, que só pelo seu entrejogo produ-
zem a esquizofrenia, existe um em que se baseia uma alteração efetiva
apenas quantitativa, condicionada pelo ambiente, o qual levaria ao desen-
cadeamento de uma disposição que permaneceria, de outro modo, tran-
quila? Pode-se encontrar esse gen? Ainda não há resposta, porque faltam
possibilidades de abordagem que resultem da investigação.

g) A questão da lesão germinal.


As lesões do embrião ou as que ocorrem durante o nascimento afetam
o indivíduo, em suas consequências, desde o início da vida; mas não cons-
tituem disposição, não são herdadas, nem transmissíveis. A questão é ha-
ver lesões ou alterações das células germinais que gerem alterações da
disposição; ou seja, alguma coisa que não é herdada, mas que, pelo fato
de enraizar-se na própria substância hereditária, se possa transmitir. Es-
tas são as mutações.
Não se têm comprovado, até o momento, no homem, lesões germinais
neste sentido determinado, delimitado, se bem que a concepção médica
vulgar as admita sempre como evidentes. Refutação impressionante foi
dada à afirmativa da lesão germinal nos alcoolistas. Não se encontrou, na
descendência de doentes de delirium tremens, ocorrência cumulativa de
inferioridades psíquicas. Não há, pois, no caso, lesão germinal pelo álcool.
Se o alcoolismo* exprime uma disposição psíquica, esta disposição se
transmite. É evidente que o alcoolismo dos doentes de delirium tremens
resulta, muitas vezes, de influências ambientais.
Nem se prova lesão germinal pela sífilis (frequente, sim, no entanto, é a
lesão do embrião pela sífilis).

h) A importância da aplicação da genética à psicopatologia, apesar dos


resultados até o momento negativos.
A tentativa de encontrar na psicopatologia, mesmo em condições tão
desfavoráveis para a pesquisa, regularidades que digam respeito ao pro-
cesso hereditário não tem levado a resultados positivos definitivos, no sen-
tido dos conhecimentos genéticos; apesar, é certo, de esforços indizíveis e
procedimentos dos mais refinados. Mas a tentativa serviu, mediante cui-
dadosa coleta de material e meditação, para esclarecer o campo dos pro-
blemas, mesmo naqueles pontos em que o trabalho falhara. Nesta medida,
o trabalho não foi infrutífero.
1. Toda reflexão sobre a herança das doenças mentais possibilitou o
aumento da exatidão e da sensibilidade crítica. O refinamento dos méto-
dos estatísticos levou a resultados, conquanto não se os possam incluir
em categorias da genética propriamente dita.
2. Com base na genética e na tentativa de aplicá-la, ganharam-se pers-
pectivas das possibilidades; formou-se ideia da complexidade na qual se
acham as conexões do evento hereditário; e ficou-se a salvo de explicações
grosseiras, por demais simples. Impressiona o caráter decisivo que se nota
nesses processos básicos da vida, dentro do contexto hereditário. Sabemos
nossa ignorância. A experiência que resultou da inanidade da primeira
abordagem e das grandezas ignoradas, em excesso hipotéticas, esclareceu
o sentido apenas grosseiramente empírico dos fatos rudimentares até o
momento verificados.
Como é frequente ocorrer, na vida, estamos numa situação em que ve-
mos, certamente, complexidade assombrosa, sem, porém, penetrá-la. To-
camos, por enquanto e apenas de fora, num evento vital que é simples em
seus traços fundamentais, infinitamente rico e variado em seu desenvolvi-
mento; isso, contudo, de tal modo que não conseguimos atingir, exata-
mente, essa simplicidade, mas só contorná-lo na multiplicidade de rela-
ções infinitas, que, com certeza, se prendem, seja onde for, àquele funda-
mento, sem, no entanto, permitir, apesar de seu acúmulo, que dele nos
aproximemos, propriamente.
3. O insucesso da aplicação da genética aos fenômenos psicopatológi-
cos aponta, de maneira cada vez mais nitidamente obrigatória, para a
abordagem somática, como único ponto por onde atacar de forma metó-
dica, se quisermos ganhar perspectivas. Importa encontrar características
somáticas das doenças que possam ser unidades hereditárias. O conheci-
mento da herança psíquica é limitado pela imprecisão permanente dos fe-
nômenos.
Entretanto, feita esta ressalva, torna-se possível indagar, inversa-
mente, se há, porventura, herança que se possa apreender nas categorias
até o momento vigentes da genética. É certo que o conhecimento exato re-
sultante das ciências naturais se prende às vias genéticas, mas a perspec-
tiva se estreitaria, se menosprezássemos, simplesmente, pela absolutiza-
ção da genética, o campo obscuro das conexões de outra ordem que dizem
respeito à herança psíquica. Daí não se poder desprezar a visão histórica
das famílias. Aquilo que não se pode generalizar não deixa, contudo, de
dar um quadro que excede o espaço no qual se mantém, estrito, aquilo
que é generalizável. É provável que os conceitos fundamentais e as ideias
que até o momento se lograram formular, no campo da genética, não bas-
tem para explicar o evento hereditário total; particularmente, no homem.

§ 4. O Retorno A Uma Estatística Empírica De Caráter


Provisório

Não se puderam, de início, na psicopatologia, preencher as pretensões


de alta monta que consistiam em reconhecer a herança como maneira
eventual da transmissão das unidades hereditárias. Todavia, embora não
se possa chegar a prognóstico hereditário exato, em termos mendelianos,
conviria, em todo caso, saber, de modo grosseiramente empírico, em que
medida, uma vez dada certa carga, se há de avaliar a expectativa nosoló-
gica. Em lugar de inquirir a transmissão de unidades hereditárias, volta-se
a indagar da hereditariedade de tipos fenomênicos de natureza complexa
— debilidade mental, esquizofrenia, doenças maníaco-depressivas, epilep-
sia. Os resultados que se haviam conseguido, através de antigas concep-
ções básicas readquirem valor. Não se há de abandoná-los pelo fato de
não se apreenderem, geneticamente falando. Atualmente, a diferença em
relação à estatística maciça anterior está, contudo, em primeiro lugar, no
fato de saber-se, claramente, o que se faz; de trabalhar-se sobre o fundo
do conhecimento referente ao evento hereditário-biológico propriamente
dito, que ainda não se pode estabelecer, neste caso; em segundo lugar, no
fato de ajuntar-se o material por forma muito mais apurada e crítica. A fi-
nalidade é de ordem prática: querem-se prognósticos prováveis. O conhe-
cimento da herança no homem não pode estar à espera de que se possibi-
lite o esclarecimento biológico fundamental. Ninguém contesta mais que a
herança desempenhe papel nas psicoses. O que se deve determinar não é
a hereditariedade, e sim a respectiva extensão. A visão genealógica já clari-
ficou, de há muito, como se acumulam doenças mentais em certas famí-
lias. E de longa data se sabe o horror que os pais sentem, quando têm de
ver nos filhos, num caso ou outro, aquilo que já fez sofrer, desmedida-
mente, gerações anteriores; e sabe-se da temeridade que implica correr o
risco, mesmo que as oportunidades se afigurem, em globo, favoráveis. A
estatística crítica pretende, agora, mostrar, com base em cifras, a probabi-
lidade da doença, considerando cargas de tipos diversos.
Encontram-se quadros ou tabelas dos últimos resultados em Luxen-
burger. Por exemplo, quando se parte de doentes maníaco-depressivos, a
probabilidade nosológica é, nos irmãos respectivos, 13,5%; filhos, 32,3%;
primos, 2,5%; sobrinhos, 3,4% ao passo que, em parentes da população
média, a probabilidade monta a 0,44% (Stroemgren 0,20).
Na epilepsia idiopática, as cifras correspondentes são: irmãos, 3%; fi-
lhos 10% população média 0,3% (Stroemgren, 0,35).
Na esquizofrenia: irmãos, 7,5%; filhos, 9,1%; netos, 2,4%; população
geral, 0,85% (Stroemgren, 0,66).
A probabilidade nosológica não se limita, porém, às psicoses, mas tam-
bém se encontram, entre os parentes, muito psicopatas e outros tipos
anormais.
A medida em que se avalia o risco, no campo individual, depende do
ponto de vista em que se faz o confronto. Se se virem ficar esquizofrênicos
10%, em cifras redondas, de crianças das quais um progenitor é esquizo-
frênico, isso significa que uma criança em 10 corre o perigo; mas este não
é aniquilador, de modo geral. Se, todavia, se fizer o confronto com as cri-
anças da população média, que ficam esquizofrênicas na percentagem
(termos redondos) de 0,8% — portanto, menos de uma criança em 100 -—
o risco, havendo um progenitor esquizofrênico, aumenta extraordinaria-
mente (acrescem-se as frequentes anormalidades nas outras crianças e a
possibilidade de ulterior transmissão pelos filhos, eles próprios não afeta-
dos). A probabilidade máxima de risco, relativamente a filhos de um proge-
nitor maníaco-depressivo, vai a 32%, de modo que, em 3 filhos, um ado-
ece.
Se ambos os pais forem esquizofrênicos, não duplica a probabilidade
nos filhos, mas quadruplica, subindo de 10%, mais ou menos, a uns 40%.
Em conexão com a teoria da herança de doenças psíquicas, é conveni-
ente fazer uma advertência, nos tempos que correm1. Têm-se pretendido
transformar em "higiene racial”, com fins até de procedimento humano,
relativamente aos casamentos e à reprodução, os ensinamentos absoluta-
mente incompletos da hereditariedade; ensinamentos que não se prestam,
de modo algum, à aplicação prática. A falta de conhecimento suficiente
veda que assim se faça. Mesmo, entretanto, que disponha de conhecimen-
tos muito mais aprofundados atinentes às conexões reais, o pesquisador
científico deve abster-se de tirar consequências éticas de seus conheci-
mentos; consequências que uma personalidade livremente determinada
considerará chãs, grosseiras e absurdas. A ciência natural não tem de eri-
gir exigências, mas de constatar fatos e, constatando-os, comunicá-los.
Com base neles e consciente das consequências, é só a personalidade in-
dividual que decide como proceder; ou qualquer força que emane de ou-
tras concepções filosóficas, a cujo comando se subordine; nunca, porém, à
ciência.

1 (escrito em 1913 e válido até hoje, sem alterações)


3.3.
SOBRE O SENTIDO E O VALOR DAS TEORIAS

§ 1. Caracterização Das Teorias

a) A essência das teorias.


Quando se determina e quando se quer apreender uma conexão cau-
sal, acrescenta-se, mentalmente, aos fenômenos alguma coisa que lhes é
básica. O domínio da categoria causal e a ideia de um evento básico são os
dois momentos de todas as teorias.
Em psicologia, estas características dizem respeito a um extra- consci-
ente, isto é, àquilo que é mentalizado como fundamental à vida psíquica
consciente; fundamento de que é dado fazer imagens possíveis e que
nunca é diretamente acessível, mas sempre apenas inferido. São, justa-
mente, estas ideias do que é básico ou fundamental que se chamam teo-
rias.
A conexão teórica causal é dupla: os efeitos extraconscientes sobre o
extraconsciente e os efeitos do extraconsciente que aparecem em manifes-
tações da consciência e nas evidências dos fatos particulares. As relações
causais que se encontram nos elementos básicos produzem os fenômenos.
Sejam quais forem as ideias teóricas pelas quais se opte, sempre se
hão de referir, por serem básicas, à categoria da causalidade; e sejam
quais forem as conexões causais que se pensem, sempre se lhes pensará
alguma coisa como básico. A pesquisa esbarra sempre nos limites em que
emerge a questão teórica. Só os fenômenos subjetivos é que são, direta-
mente, acessíveis, bem como, os dados objetivos. Subsiste evidente, ape-
nas, a conexão compreensível. Quando cessa a compreensão, começa a in-
dagação causal. Quando es estabelece uma conexão causal, tem-se encon-
trado o ponto de ataque da teoria.
Não se confundam as teorias com outras formações mentais hipotéti-
cas ou construtivas. Não aceitamos como teorias as suposições antecipati-
vas sobre fatos que ainda estão por encontrar-se; por exemplo, no tocante
às ideias sobre a localização cerebral, ou quanto a saber se se trata de su-
posições determinadas, que deixam de ser suposições diante de um
achado; ou se se trata de ideias relativas ao todo essencial da vida psí-
quica, as quais não subsistem verificáveis, conforme seu sentido senão in-
diretamente; donde constituírem sempre uma teoria da vida psíquica. —
Também não chamamos teoria a construção, que permanece concreta, de
um tipo ideal das conexões compreensíveis, dos caracteres etc. — Enfim,
nem chamamos teorias as ideias de totalidades, que significam uma via
para a pesquisa; qual seja, a ideia da unidade nosológica, da constituição.
O valor das teorias deve estar no fato de reduzirem uma quantidade de
fenômenos variados a um evento básico. A expressão “reduzir” tem sentido
diverso, conforme o ponto de vista sob o qual alguma coisa psíquica se re-
duza a alguma coisa diferente, ou alguma coisa complexa se reduza a al-
guma coisa mais simples. Pode-se falar em “redução”, por exemplo,
quando se faz decomposição fenomenológica em elementos que se viven-
ciem imediatamente; quando se compreende uma vivência como resul-
tante de outra; quando se reconhece existente uma realidade psíquica
como dependente de condições que não se percebem (por exemplo, percep-
ção espacial pelos movimentos dos músculos oculares; quando se reco-
nhece causalmente a existência de uma formação psíquica (por exemplo,
um tipo de personalidade pela herança etc.). Acresça-se a redução dos fa-
tos a um evento causal teoricamente pensado e básico.

b) As ideias fundamentais em psicopatologia.


O campo das ideias teóricas é o extraconsciente. Todas as teorias di-
zem respeito a alguma coisa que se pensa como básica à vida psíquica; e
que, no entanto, causa a vida psíquica consciente. Para isso, há diversos
vocábulos: disposição, constituição, potencialidade, poder, capacidade,
força, mecanismo etc.
Nas’ teorias, sempre reaparece uma quantidade de ideias característi-
cas. Pensa-se o que é básico segundo analogias, ou químico-mecanica-
mente (ideia de elementos e respectiva ligação, de cisão no psiquismo); ou
energeticamente (força psíquica ou biológica e respectivas transforma-
ções); ou organicamente (ideia de ordenamentos hierárquicos e teleológi-
cos); ou psiquicamente (quer pela absolutização de fenómenos psíquicos
particulares, quer pela criação de um psiquismo consciente, tal qual tudo
acontecesse na consciência; apenas, contudo, sem se perceber); enfim,
tem-se em vista um extraconsciente indiferente, que é só mentado, e não
representado de qualquer modo concreto. A nenhuma dentre estas possi-
bilidades escapa o pensamento psicológico. É sempre de ideias-modelo do
fundamental que se trata, através de analogias e, aliás, de analogias que
resultam daquilo que. não é vivo, da vida mesma e da vivência psíquica.
Para começar, faremos breve revisão destas ideias.
1. Teorias Mecânicas
aa) A ideia de que o psiquismo se compõe de elementos que se ligam
uns aos outros foi exposta no mecanismo da associação. A conexão dos
elementos é pensada em termos de autoexcitação recíproca, de estrutura-
ção no ordenamento, à maneira de pequenos tijolos; em termos de vincu-
lação que forma nova unidade, como se se tratasse de combinações quími-
cas. Fala-se em misturas e dissociações, condensações e deslocamentos.
bb) A ideia de que o psiquismo se pode cindir baseia-se no pressuposto
concreto de observações heterogêneas. Há a vivência do desdobramento
próprio e também as vivências dos pacientes, no sentido de se lhes apre-
sentarem conteúdos próprios sob a forma de vozes, que se configuram em
personalidades completas. Há a perda total das recordações, as quais
mostram sua permanência fatual pela possibilidade de se fazerem, nova-
mente, acessíveis à consciência. Há a contradição entre pensamentos e
atos do indivíduo, quer entre uns e outros, quer com “a realidade”. De to-
das estas conclusões resultou a afirmação de uma cisão do psiquismo, ci-
são a que se deu o nome de dissociação, sejunção, desintegração da cons-
ciência, desintegração da individualidade.
2. Teorias Energéticas
As teorias energéticas veem o psiquismo extraconsciente como uma
força possuidora de propriedades quantitativas; força que flui, que se pode
alterar, represar-se em resistências, com o que aumentará; que se pode
prender a conteúdos e passar de um conteúdo a outro. Pensa-se a cone-
xão como transformação da energia, que se apresenta na modificação dos
fenômenos.
A ideia de uma força serve ou ao esclarecimento do curso psíquico mo-
mentâneo (e considera-se carregado de mais força o conteúdo que se situa
bem no centro da atenção); ou esta ideia se refere aos afetos, paixões e im-
pulsos, que são a energia psíquica, esta crescendo, descarregando-se, es-
gotando-se; recalcando-se e trans- formando-se; transferindo-se para ou-
tros conteúdos.
Ou ainda a mesma ideia refere-se ao estado total da vida psíquica,
pensando-se com grandeza diversa, em estados diversos, o quantum da
força psíquica. Assim é que uma energia vital peculiar à unidade existen-
cial deve determinar o ritmo e o funcionamento de todos os órgãos e, pois,
também do cérebro e da psique; deve estar, subjetivamente, no sentimento
de vitalidade e de energia; objetivamente, na eficiência dos rudimentos.
Declaram- se asténicos os caracteres e temperamentos quando vem a pri-
meiro plano um elemento de fraqueza, inércia, diminuição da capacidade
de trabalho, debilitando-se os impulsos e desmaiando os sentimentos, ex-
tinguindo-se a vontade.
3. Teorias Orgânicas
aa) A teoria da vida. Pensa-se o todo vital — de maneira inteiramente
imprecisa — como alguma coisa que é mais do que simples existência: a
corrente vital, a plenitude existencial, um devenir básico, visto sob cujo
aspecto tudo quanto é somático — morfológico e fisiológico — toda consci-
ência e todo eu mais não são do que instrumento insignificante de qual-
quer coisa superior (influência das ideias de Nietzsche). Explicam-se os fe-
nómenos por um sentido e finalidade transcendentes, que têm na conser-
vação da existência um objetivo parcial, apenas; derivado, sem condicio-
namento. Explicam-se os fenómenos mórbidos da vida psíquica individual
por distúrbios do todo que constitui a vitalidade. Fala-se em “pensamento
biológico”, sem referência ao que é científico-natural, ao pensamento que
conhece a vida pela química e pela física; nem às pesquisas morfológicas e
ambientais dos biologistas; enfim, a noção alguma que. seja determinada
e, portanto, particular. Na realidade, a vida vem a ser conceito do todo,
como acontece na filosofia do jovem Hegel, na filosofia da vida do roman-
tismo e de época ulterior, ora influenciada pelos resultados das investiga-
ções biológicas, cujo sentido se desloca pelo seu emprego como para-
digma, ou mediante absolutização.
bb) A teoria dos graus e dos estratos. A analogia com o que é orgânico
está nas ideias relativas à estrutura hierárquica das funções psíquicas.
Pensa-se a vida psíquica como um todo em que tudo tem seu lugar, de tal
modo, porém, que tudo, por assim dizer, se dispõe numa pirâmide de es-
tratos com vértice supremo; este se considera a mais vital realidade. A co-
nexão acha-se nas relações finalidade-meio de um sentido existencial.
Exemplos de teorias que concebem estratos são as seguintes: Janet vê
as funções numa série descendente: na ponta, está a “função da reali-
dade”, que se manifesta na vontade, na atenção e no sentimento realista
do momento’; segue-se a “atividade desinteressada”: depois, a função das
“imagens” (fantasia); depois, a “reação visceral dos sentimentos”; por fim,
os “movimentos inúteis do corpo”. — Kohnstamm distingue:
1) Supraconsciência.
2) Subconsciência vivenciante e subconsciência estruturante.
3) Subconsciência mais profunda, impessoal.
Neuda distingue uma “causalidade de ordem inferior, que, por essên-
cia, só influencia o afeto, porque só se torna válida como estímulo e não
como motivo”, contrastando com o ato, que, normalmente, nunca existe
sem motivo.
Assim também Kretschmer, que distingue três estratos:
1) Motivo vivencial. — Ato finalístico.
2) Estímulo vivencial — Negativismo, automatismo ao comando, tensão
muscular etc.
3) Estímulo sensorial — Arco reflexo — Contração muscular.
Em ordem ascendente, Kretschmer chama estes estratos: aparelho re-
flexo, hipobulia, instância finalista, descobrindo-os em sucessão de acordo
-com um desenvolvimento ontogenético e filogenético, presente, ao mesmo
tempo, no homem de hoje em dia.
A teoria dos estratos serve para explicar certos sintomas, em função da
demolição dos estratos superiores. Analogamente aos fatos neurológicos,
imagina-se uma desinibição, pela qual se tornam autônomos e mais atu-
antes certos estratos inferiores. Ou concebe-se uma distensão, tal qual
ocorre no sono, distensão que liberta .as funções particulares de sistemas
então isolados. Pela teoria de Janet, as funções superiores devem ter-se
enfraquecido na psicastenia; onde autonomizarem-se as inferiores. Jack-
son vê as ilusões, por exemplo, não como sendo causadas pela doença,
mas como manifestações vitais dos estratos inferiores, que subsistiram no
paciente. Fala em supravida situada nalgum nível estrutural inferior, que,
entretanto, se tomou superior, no momento. As desinibições permitem as
“reações primitivas” (Kretschmer). Concebe-se a demolição também com
referência ao desenvolvimento filogenético ou histórico do homem. O que
era sua vida, em tempos remotos, restabelece-se pela demolição; daí retor-
narem estratos funcionais arcaicos, que se desvinculam pela destruição
dos estratos recentemente superpostos (na realidade, porém, não conhece-
mos estratos, quer biológicos, quer arcaicos, de existência anterior; como é
frequente acontecer, trata-se de simples teoria, não verificável).
4. Teorias Psíquicas
Tomam-se os fenômenos psíquicos como ponto de partida de uma teo-
ria, quando se os consideram a vida psíquica mesma; e quando se lhes
aceita a peculiaridade como paradigma de toda a vida psíquica. Costu-
mava-se, antigamente, ter o pensamento como essência da vida psíquica e
todos os fenômenos se explicavam, “racionalisticamente”, pelo pensa-
mento e pelas ideias. Daí a sensibilidade (sensualismo), a vivência do eu, a
vivência do tempo, a vida sentimental, o impulso (libido) etc, serem consi-
derados a própria psique. As teorias psíquicas partem da absolutização de
fenômenos psíquicos individuais, de forma que as ideias, teóricas veem
nestes o paradigma de todo evento psíquico.

§ 2. Exemplos De Formações Teóricas Em


Psicopatologia

Para fazer ideia das teorias, convém dar informação crítica a respeito
de alguns esquemas extremamente heterogêneos em relação uns aos ou-
tros. Todos encerram uma quantidade de ideias, especulativas. Por volta
dos últimos anos do século XIX e primeiros do século XX, Wernicke e
Freud criaram os que até hoje mais influências têm exercido. Nos últimos
anos, a teoria que parece mais original é a “psicologia genético-constru-
tiva”, conforme, a tentaram von Gebsattel, Strauss e outros.

a) Wernicke.
Se se podem localizar no cérebro os distúrbios mentais, é natural en-
caminhar a pesquisa no sentido de construir, por antecipação, aquilo que
virá a reconhecer-se, mais tarde, anatomicamente; com o que se- transfor-
mará em achado empírico. Mas se as doenças mentais forem consideradas
doenças do cérebro no sentido de poderem-se conceituar, absolutamente,
a partir de processos ou como sendo processos cerebrais, nesse caso, a
ideia da localização anatômica se transforma em teoria. A conceitualidade
do psiquismo baseado no cérebro tem validade objetivo-final significativa
mesmo que não se devam esperar achados cerebrais. Ambos os motivos —
a construção que antecipa, por suposição, a experiência e a teoria total da
vida psíquica — unem-se no esquema de Wernicke. Concebe-se a vida psí-
quica como idêntica, em seus elementos e conexões, aos elementos e es-
truturas cerebrais. Representa-se a psique espacialmente. Assim pen-
sando, têm-se em vista, de princípio, não a vida psíquica, mas, de prefe-
rência, o cérebro e a neurologia, a fim de formar conceito psicopatológico.
Só provisoriamente, à falta de acesso direto, é que se procurou apoio tam-
bém nos fenômenos psíquicos como tais. O que levou a esta concepção,
além de uma visão baseada na pura ciência natural, foram, sobretudo, as
descobertas dos distúrbios afásicos. Daí haver-se a afasia tornado estreia
condutora para Wernicke. O fato de estes distúrbios estarem ligados a
áreas cerebrais, bem como as ideias, embora questionáveis, úteis para a
respectiva análise, Wernicke os transpôs para todos os distúrbios da vida
psíquica, menosprezando a circunstância de a afasia ser, apenas, distúr-
bio dos instrumentos, não da própria vida psíquica. “Toda doença mental”,
disse ele, “na medida em que aparece em manifestações distorcidas da
fala, dá-nos exemplo de afasia transcortical”. Porque a afasia transcortical
devia resultar não de lesão dos campos de projeção que se acham no cór-
tex cerebral, mas, sim, das vias de condução entre estes, Wernicke expli-
cou as doenças mentais, de modo geral, como sendo doenças do “órgão da
associação”. Pela sua concepção, fundem-se entre si fibras anatômicas
condutoras e associações psicológicas.
De acordo com o esforço não só por ver nas doenças mentais, em geral,
doenças do cérebro, mas ainda por conceituá-las também no particular
como tais, Wernicke deixa-se dominar pela ideia do arco reflexo psíquico,
só considerando relevantes para a pesquisa e existentes, realmente, os
sintomas objetivos, isto é, movimentos (a motilidade), de par com o tipo es-
pecial respectivo que é a fala. Diz ele que -afinal, nada mais se encontra
que observar e descobrir do que movimentos; e que toda a psicopatologia
das doenças mentais em mais não consiste que não sejam as peculiarida-
des de seu comportamento motor”. Raramente Wernicke percebe — e es-
quece-o, em discussões de princípio —- que a motilidade é, sim, o único
instrumento de comunicação, mas que, na imensa maioria dos casos, não
é este instrumento, e sim o que ele exprime que interessa.
Na realidade, porém, Wernicke precisa formar muitos conceitos pura-
mente psicológicos, os quais têm de ser tais que sirvam como elementos
localizáveis; que têm de se definir com precisão; de exprimir, por assim di-
zer, o psiquismo; de transformar- se numa quantidade de pequenos tijo-
los. Para tanto, melhor do que qualquer outra, lhe há de servir a teoria da
associação grosseiramente concebida, capaz de levá-lo onde quer que seja.
Tudo na vida psíquica é associação de elementos; por exemplo, o conceito
é uma “soma de associações” das imagens mnêmicas. Aquelas associações
que são “iguais, aproximadamente”, para todos os indivíduos são, para
Wernicke, “as associações geralmente válidas”. Assim é que também a
exatidão se há de atribuir a alguma coisa mecânica, ou seja, a média. Nas
vias associativas, move-se uma corrente de estímulos. Os elementos são
localizáveis em determinados lugares. Mesmo as alterações “de conteúdo”
(as paranoicas, no sentido mais amplo) se concebem como localizáveis,
possuindo “o valor de sintomas focais”, embora também os focos se postu-
lem, apenas, anatomicamente. Certo agrupamento destes sintomas de
conteúdo assinala determinada disposição anatômica mesmo nas vias as-
sociativas. Por isto é que a todas as outras tentativas de classificação dos
distúrbios psíquicos Wernicke opõe a sua: “Nossa base mais recente para
classificação é a disposição anatômica; noutras palavras, a do agrupa-
mento e sucessão naturais das alterações de conteúdo”.
No que diz respeito aos conceitos psicológicos, aos elementos do psi-
quismo, que lhe possibilitam, em todos os pontos, a classificação, é natu-
ral não haja Wernicke podido inquirir, de fato, a anatomia. Forma-os sem
dizer de que maneira os conseguiu, graças a um dom manifesto de ver o
psiquismo em grandes traços e estruturá-lo em discriminações acertadas.
De início, alinha lado a lado as partes do “arco reflexo psíquico”, sensibili-
dade, função intrapsíquica, motilidade, vendo em cada uma das três áreas
a possibilidade de suprafunção, subfunção e disfunção. Em seguida, dis-
crimina nos movimentos: movimentos expressivos, movimentos reativos,
movimentos iniciativos; nos conteúdos: a consciência do- mundo exterior,
da corporeidade e da personalidade (por isto é que existe orientação
alopsíquica, somatopsíquica e autopsíquica dos doentes). Mais do que
tudo, entretanto, Wernicke faz uma distinção que, a seu ver, deve isolar o
que é, propriamente, patológico, quando separa o “delírio de explicação” do
delírio verdadeiro. O que só a vida psíquica compreensível normal desen-
volve a partir da vida que nela irrompe por força de processos cerebrais
patológicos não é, em si mesmo, que é patológico, embora se faça, às ve-
zes, muito extenso. Com análises desta ordem, Wernicke criou uma série
de conceitos psicológicos impressionantes, que se fixaram no cabedal per-
manente do pensamento psicopatológico; por exemplo, os conceitos: delí-
rio de explicação, perplexidade, ideia supervalorada, capacidade de fixa-
ção, transitivismo, diferenciação da orientação autopsíquica dentro da de-
sorientação alopsíquica do delirium tremens.
Esta psicologia analítica é o pressuposto mais essencial a que se possa
levar adiante, em detalhe, a teoria. Assim é que, a esta altura, se podem
explicar todos os distúrbios pela excitação ou paralisação, as quais se lo-
calizarão em certos pontos do cérebro (no momento, ainda ignorados). En-
tretanto, o principal fundamento da maioria dos distúrbios psíquicos é a
separação das ligações associativas, a sejunção. Por vezes, em certo indiví-
duo, ideias e juízos errôneos estão em contradição tanto uns com os ou-
tros quanto com a realidade: esse fenômeno baseia-se, justamente, num
“afrouxamento”, que compromete a firmeza estrutural da “associação”.
Pela secção da “continuidade” das vias, pela “falha” de certos rendimentos
associativos, podem surgir, ao mesmo tempo, uma quantidade de perso-
nalidades diversas no mesmo indivíduo; pode ocorrer uma “ruptura da in-
dividualidade”. Pela sejunção também se explica grande parte das alucina-
ções (desde que não se originem de estímulo direto dos campos de proje-
ção): interrompidas que sejam as associações, represa-se o processo exci-
tatório e forma-se, daí partindo, um estímulo sempre crescente, que pro-
duz a alucinação. Do mesmo modo se explicam as “ideias autóctones” (os;
chamados “pensamentos feitos”): a ideia autóctone repousa num processo
excitatório em que há interrupção da continuidade, ao passo que o pensa-
mento obsessivo é de atribuir-se a um processo excitatório em que a conti-
nuidade se conserva. Da sejunção também resultam os movimentos anor-
mais (paracinesias). Porque as alucinações repousam na sejunção, é
muito compreensível, segundo Wernicke, que nenhuma contra-idéia e, por
isso, nenhuma crítica se lhes possa opor; e que também tenham, muitas
vezes, caráter imperativo. O delírio de autorreferência repousa em au-
mento mórbido da excitação, atuando no mesmo lugar que a alucinação,
sem contudo, atingir a mesma intensidade. Em muitas de suas explica-
ções, Wernicke tem predileção especial pelas sensações orgânicas, cuja
existência, excitação ou falha admite. Contentemo-nos com esta citação de
umas tantas explicações teóricas.
Se inquirirmos o sentido da teoria wernickiana, teremos de distinguir
duas coisas. No que diz respeito aos distúrbios afásicos, ou, em geral, aos
distúrbios que a neurologia apreende nos instrumentos, na subestrutura
da vida psíquica, a teoria de Wernicke é fecunda na medida em que con-
duz a indagações e comprovações. Daqui parte uma senda muito produ-
tiva, que leva de Wernicke a Liepmann, o descobridor da apraxia. Mas
quando se transpõe a teoria para tudo quanto é psíquico, quando mais
não se faz do que usar analogias, ela deixa de constituir formação ideativa,
que possa, propriamente, gerar conhecimento, e passa a mera interpreta-
ção fantasiosa; transforma-se em requisito filosófico e sistemático; desen-
volve-se em esquematismo que abrange com simplicidade as descrições.
Wernicke tem disso plena consciência, quando diz, por exemplo, que seus
esquemas “devem servir para a comunicação”; ou quando contém os im-
pulsos lúdicos com as seguintes, palavras: “A tendência puramente descri-
tiva de nossos estudos clínicos obriga-nos a renunciar às hipóteses que
não sejam incondicionalmente necessárias à compreensão”. Assinale-se
que só por vezes Wernicke chega a distorções de suas construções; pelo
contrário, deve-se reconhecer que criou, pela contemplação clara da evi-
dência e pelo tato com que apreende e revela, apesar da erroneidade, em
princípio, de suas ideias teóricas fundamentais, uma das obras psicopato-
lógicas mais notáveis. Pesquisador algum pode abster- se de estudá-lo
com seriedade.

b) Freud.
Freud fez época na psiquiatria pela tentativa nova que empreendeu no
sentido da compreensão psicológica, aparecendo ao tempo em que o psi-
quismo se tornava, outra vez, visível, depois de haverem-se observado, du-
rante decênios, quase que apenas os conteúdos racionais (teoria da para-
noia), os sintomas objetivos e os fenômenos neurológicos. Desde então, a
compreensão fez-se, mais uma vez, evidente, mesmo se tratando de pes-
quisadores que nada queriam saber das teorias freudianas. Os próprios
adversários de Freud falam, agora, em fuga para a psicose, em complexos,
em recalques. Todavia, por nova que fosse a compreensão em psiquiatria,
nada há, na teoria de Freud, sob o aspecto histórico-intelectual, que seja,
essencialmente, novo; o que nele há, sim, de específico, a bem dizer, além
da posição filosófica (de que falaremos adiante), e considerando-o sob o
ponto de vista histórico, é a formação teórica, a formulação dos princípios.
Freud é médico que só sabe tratar a compreensão sob configuração teori-
zante apoiada nas ciências naturais, em vez de fazê-lo por forma pura e li-
vre.
O próprio Freud, contudo, não coloca o teórico no primeiro plano;
mantém fluidas suas ideias, apelando para a experiência, que será sua
fonte única e que não admitirá fixação de qualquer sistema teórico. Daí a
dificuldade de apreender um centro de sua teoria, visto que, na massa do
que escreveu, muitas coisas, diversas se dizem. Não se percebe adesão a
uma teoria, comprovável em todos os pontos e corrigida com clareza. Se
dessa maneira se houvesse procedido, isto é, de maneira genuinamente
conforme às ciências naturais, a teoria freudiana seria, a todo tempo,
clara como todo e em cada um de seus pontos. Não é jamais p caso da psi-
canálise. Vamos reproduzir, exemplificativamente, alguns dentre os inú-
meros conceitos teóricos de Freud:
Segundo Freud, tudo quanto é psíquico é “determinado”, isto é, com-
preensível em nosso sentido. Este é um pressuposto que seria de colocar-
se paralelamente àquele, das ciências naturais, de que tudo, sem exceção,
é dominado pela causalidade. Há uma causalidade psíquica especial, que
é, justamente, essa determinabilidade compreensível e que, na vida psí-
quica consciente, está sendo sempre interrompida e fragmentada. Tem-se
de conceber, servindo de base a esse consciente, um inconsciente, cuja
existência se prova pelos fenômenos conscientes. O inconsciente é a vida
psíquica propriamente dita, que não entra, diretamente, na consciência,
mas só depois que se lhe modifica a natureza por força de uma censura; e
esta opera num limiar, mediante a esfera do pré-consciente.
A consciência nada mais é, por assim dizer, que um órgão sensorial,
no tocante à apreensão de qualidades psíquicas, voltada ou para a percep-
ção, pelos sentidos, das exterioridades, ou para os processos mentais in-
conscientes internos. São os enganos desta autopercepção que edificam a
vida psíquica consciente. Há no inconsciente uma energia dotada de ca-
racterísticas quantitativas que flui, se transfere, se represa; energia que é
uma energia afetiva e se reduz, por fim, a uma força única, chamada por
Freud sexualidade; por Jung, libido: é ela que impulsiona, propriamente, o
psiquismo, aparecendo nas múltiplas formas dos impulsos particulares;
entre os quais o mais importante, o principal, é o instinto sexual (por isto
é que se dá o nome ao todo).
O que é psíquico não aparece no inconsciente tal qual é (isso só acon-
tece nos primeiros estádios da infância ingênua); mas passa por metamor-
foses que lhe dissimulam o significado verdadeiro. Acredita a psicanálise
penetrar na autenticidade através das várias sedes da censura, dedu-
zindo-a dos múltiplos fenômenos da consciência; principalmente, daqueles
involuntários. Daí por que os sonhos, os atos falhados cotidianos, os con-
teúdos das neuroses e psicoses constituem a fonte principal do conheci-
mento do inconsciente e, por isso, em geral, da psique.
Quanto ao conteúdo dos processos que se passam no inconsciente, só
os processos compreensíveis do consciente é que, naturalmente, permitem
visualização. A psicologia compreensiva é a fonte dos conteúdos teóricos.
O que Freud descreve como recalque e censura deve-se experimentar,
compreensivelmente, na consciência; por exemplo, a fuga para as fanta-
sias e ilusões, a gratificação dos desejos mediante elas. Os mesmos even-
tos realizam-se no inconsciente. Só pode curá-los a clareza em relação a si
mesmo, a visão transparente de si mesmo, a dissipação das autoilusões.
A posição crítica em relação às teorias de Freud pode-se fixar, mais ou
menos, nas seguintes teses, por mim formuladas, em trabalho anterior
(1922).
1. Freud preocupa-se, realmente, com a psicologia compreensiva, e
não com a explicação causai, conforme ele próprio pretende.
2. Freud ensina a conhecer, de modo convincente, muitas conexões
compreensíveis particulares. Compreendemos como é que os complexos
recalcados reaparecem, em símbolos, naquilo que não se nota. Compreen-
demos as formações reativas a impulsos recalcados, a distinção entre os
processos psíquicos primários autênticos e os secundários, que só existem
como disfarces e substitutos. A esta altura, Freud apenas detalha, em
parte, algumas doutrinas de Nietzsche. Penetra na vida psíquica desperce-
bida, que se eleva, graças a ele, à consciência.
3. Na confusão de conexões compreensíveis com conexões causais re-
pousa a inexatidão da pretensão freudiana de que tudo na vida psíquica,
de que todo evento seja compreensível (significativamente determinado).
Só se justifica que se pretenda a causalidade ilimitada, não a compreensi-
bilidade ilimitada. Outro erro relaciona-se com este: partindo de conexões
compreensíveis, Freud faz teorias sobre as causas de todo o curso da vida
psíquica, quando a compreensão, pela sua própria essência, nunca pode.
levar a teorias; ao contrário, as explicações causais é que sempre têm de
levar a elas (a interpretação compreensiva de um processo psíquico parti-
cular — só uma interpretação particular desta ordem pode haver’— não é,
claro, teoria).
4. Em numerosos casos, não é de compreensão e vinda à tona da
consciência de conexões despercebidas que se trata, em Freud; e sim de
“compreensão como se”, ou pseudocompreensão de conexões extraconsci-
entes. Quando se pensa que o psiquiatra, considerando as psicoses agu-
das, nada mais constatava senão confusão, desorientação, falhas de ren-
dimento, ou ideias delirantes, com conservação da orientação, havia de
afigurar-se um progresso o fato de conseguir, provisoriamente, pelas
pseudo-conexões (ou conexões “como se’’), caracterizar e ordenar, nesse
caso, alguma coisa (por exemplo, os conteúdos delirantes da demência
precoce). Foi progresso, igualmente, noutros tempos, quando se caracteri-
zou o tipo de distribuição dos transtornos histéricos da sensibilidade e da
motilidade à base de conexões compreensíveis com as ideias anatômicas
grosseiras dos pacientes. Resultou, aliás, principalmente, das investiga-
ções de Janet que há, de fato, na histeria, cisões ou dissociações de cone-
xões psíquicas. No mesmo indivíduo, em casos extremos, lida-se com duas
psiques que nada sabem uma da outra. Nessas ocasiões, de fato, a pseu-
docompreensão tem significação real. Não é indagação que se possa res-
ponder com força probante a extensão em que essas cisões ocorrem (os
casos de Janet são muito raros); ou se também na demência precoce
existe cisão real (conforme ensinam, por exemplo, Jung e Bleuler). A esta
altura, convém suspender qualquer juízo definitivo. Os pesquisadores
freudianos são, em todo caso, muito imprudentes quando admitem, preci-
pitadamente, as cisões; e as conexões “compreensíveis como se”, que
Jung, por exemplo, pensava descobrir na demência precoce, são, em
grande parte, pouco convincentes.
5. Um erro das teorias de Freud consiste na crescente simplicidade de
sua compreensão, simplicidade que se relaciona com a transformação das
conexões compreensíveis em teoria. As teorias tendem à simplicidade, ao
passo que a compreensão encontra multiplicidade infinita. Freud julga,
então, poder reduzir, compreensivelmente, todo o psiquismo a sexualidade
em sentido amplo; por assim dizer, como se fosse a única força primária.
Sobretudo, muitos dentre os trabalhos de seus discípulos são insuporta-
velmente tediosos por causa dessa simplicidade. Sempre se sabe, de ante-
mão, que em cada obra as mesmas coisas existem; no que a psicologia
compreensiva já não faz progressos.

c) Psicopatologia genético-construtiva.
Com este nome se concebe a orientação conceituai que, variadamente
modificada e diversamente designada (psicologia teórica de Strauss; inter-
pretação antropológico-filosófica de Kunz; analítica existencial de Storch;
antropologia existencial de Binswanger), desencadeou, na psicopatologia,
alguma coisa que se pode considerar movimento intelectual, mas a ne-
nhuma conclusão levou, nem obra representativa alguma suscitou, apesar
de umas tantas contribuições individuais importantes. O que existe, neste
particular, de rendimentos descritivos é indubitável; o que, no entanto, se
pretende e se realiza como maneira de reaprender e metodizar é, na minha
opinião, um desses erros inevitáveis, inerente a todas as teorizações: têm
de ocorrer para serem superados.
A depressão endógena, a doença obsessiva, certas formações delirantes
devem ter por base um distúrbio do evento vital que, nas várias enfermi-
dades só é diverso pela forma em que se apresenta. Essa alteração do
evento básico chama-se “inibição vital”, “distúrbio do devenir pessoal”,
“obstrução elementar do devenir”, “inibição do evento intratemporal pró-
prio”, “inibição do impulso pessoalmente formado para o devenir” (ou do
impulso à autorrealização), “parada do fluxo do devenir pessoal”.
Do distúrbio básico derivam os sintomas; por exemplo, os da depres-
são (Straus): devido à inibição do devenir, a vivência transforma-se em vi-
vência de parada do tempo; donde não haver futuro; o passado é tudo.
Tudo é definitivo, tudo está determinado, decidido; daí o delírio de inferio-
ridade e o delírio de ruína, o delírio de pecado (o hipocondríaco psicopático
roga consolo e apoio; o depressivo, não), o medo do presente (porque cor-
tado do futuro, mas não receio do futuro, como no psicopata, que é amea-
çado em sua depressão pelo futuro),. A alegria pressupõe a capacidade de
enriquecer; o pesar, a possibilidade de empobrecer, que resulta das rela-
ções ambientais; quando a vivência do futuro é apagada pela inibição vital,
quando se haja formado um vácuo temporal, daí decorre tanto para a ale-
gria quanto paia o pesar a impossibilidade da respectiva realização.
Do mesmo distúrbio básico da inibição do devenir derivam os sintomas
do pensamento obsessivo (Straus): Em consequência da inibição do deve-
nir, o tempo para, não há futuro; por isto, nada se pode resolver. A psique
não vibra, em absoluto, com o porvir; o que não se resolve inteiramente
por forma objetiva incorpora-se, normalmente, à biografia, por causa da
força que tem o porvir. Na vivência sem futuro, porém, não se alcança a
conclusão. O passado cresce com sua força sobre o futuro e o paciente
não pode dispor-se a conclusão alguma. Não pode resolver, não pode ter-
minar: nisso está o conteúdo de sua psique. Von Gebsattel pensa diversa-
mente: no doente obsessivo, o “evento básico” (o devenir vital), se transtor-
nado, não se orienta para o desenvolvimento, o crescimento, a multiplica-
ção, a autorrealização, mas para a diminuição, o declínio, a dissolução da
forma vital própria. Experimenta-se a obstrução do devenir como efeito
dissolutivo da forma; não de maneira imediata, é certo, mas no quadro
das potencialidades existenciais de dissolução da forma; o que enche a
alma são, apenas os significados negativos que há no mundo: o que é
morto, cadavérico, podre, contaminante; as imagens de veneno, sujeira,
feialdade; o que se realiza no evento básico enfermo só aparece ao paciente
nos significados e nas realidades pseudo-mágicas de seu mundo, na fuga
às quais está o sentido dos atos sempre inúteis, mas que prosseguem até
a exaustão. — A essência do distúrbio de “evento básico”, para von Gebsa-
ttel, é mais fácil de apreender da seguinte maneira: existe relação estreita
entre distúrbio do devenir e contaminação: “Quem para enferruja; “Quem
não progride recua”; “Água parada apodrece”. Mas essa contaminação é,
apenas, caso especial da diminuição que acomete a vida estagnada. “Nor-
malmente, a vida purifica-se pelo abandono às forças do futuro e às tare-
fas que o futuro nos impõe. Se o homem é impedido, pela suspensão dos
movimentos que lhe permitem autorrealizar-se, de suportar sua dívida
existencial, desperta nele um vago sentimento de culpa”. O sentimento de
contaminação seria, pois, unicamente, variedade do sentimento geral de
culpa. Pode-se exprimir a mesma conexão de outra maneira: A vida sadia
se encaminha para o futuro, está sempre liquidando ou resolvendo al-
guma coisa do passado, dela se purificando. Mas o doente obsessivo su-
cumbe ao passado, que o sobrepuja permanentemente, como alguma
coisa que não se liquida. Enfim: Uma forma hostil à vida, que é forma em
perpétuo devenir, uma forma em que se estabelece o domínio de um pas-
sado por si mesmo deformado, ameaça com contaminação, apodreci-
mento, aniquilação. O comportamento anancástico entender-se-á como
defesa; defesa que, entretanto, é impotente porque a orientação para a dis-
solução no desfazimento, devido ao transtorno do evento básico, o desliga-
mento do futuro são insuperáveis, sempre restabelecendo-se. Se o paci-
ente luta com um mundo que se encolhe a ponto de constituir repulsiva
fisionomia de significados exclusivamente negativos, certo é que se bate,
ao mesmo tempo, com sua própria sombra. Realmente, é a perda da forma
própria que importa ao doente obsessivo na inibição do devenir; e só por
isto é que os significados das potências dissolventes da forma conseguem
dominar-lhe a força imaginativa. O paciente anancástico defende-se con-
tra o efeito do distúrbio que lhe prejudica o próprio devenir temporal, mas
não sabe o que lhe está acontecendo.
Para compreender, em sua estrutura, esta teoria, que relatamos ape-
nas nos seus contornos, com fim exemplificativo, devem-se ter em consi-
deração os seguintes pontos capitais:
1. O distúrbio que ocorre no evento vital básico e este mesmo não
se explicam psicologicamente. Mais não são do que aquilo que é
dado e que se há de acrescer. “O desligamento do futuro nos é,
em última instância, de natureza ignorada” (von Gebsattel). O
processo vital — alguma coisa que acontece no fundamento da
vida — nós o desconhecemos por completo; em essência, é até
misterioso (Strauss).
2. Este transtorno do evento básico encontra-se nos doentes obses-
sivos, nos maníaco-depressivos, nos esquizofrênicos, manifes-
tando-se em sintomas muito diversos. A maneira por que elabora
o distúrbio fundamental do evento básico distingue o paciente
obsessivo, diferente que é das outras maneiras segundo as quais
esse evento se pode modificar; por exemplo, a inatividade do re-
tardamento depressivo, a “síndrome do vazio”, o delírio, todos os
quais podem resultar do mesmo' “distúrbio” básico, ocorrendo
na área do devenir.” Por que é que esse distúrbio básico dá ori-
gem ora a esta, ora àquela manifestação, ignoramos.
3. Os doentes não podem observar o distúrbio de seu evento vital
básico, nem sabem dele. Os doentes depressivos não sabem di-
zer nada de essencial sobre suas vivências, tais como as do
tempo (Strauss). “O doente obsessivo defende-se contra o efeito
ameaçador de sua própria obstrução temporal, mas não sabe o
que lhe está acontecendo.” A ameaça está tão oculta nos alicer-
ces de sua natureza que não consegue vir de imediato à consci-
ência, mas só no quadro das potencialidades existenciais de dis-
solução da forma (von Gebsattel).
4. Devem-se distinguir o evento básico, a vivência, o conhecimento
respectivo. O evento básico não é vivenciado imediatamente; daí
também não se poder observar. Evento vital não é vivência. Mas
quem vivência poderia saber, do mesmo passo, o que vivencia.
Daí poder haver informação sobre a vivência temporal; sobre o
evento temporal, não. Assinala-se o esquema como teoria pelo
fato de remontar a um processo vital básico, que não pode ser vi-
venciado, mas apenas inferido.
Para criticar esta teoria, temos, inicialmente, de situar sua verdadeira
origem: “o efeito psiquiátrico da surpresa, a vivência do encontro com o
que é, inexplicavelmente, outro”; “a contradição entre sua manifestação
confiante, humana, e sua modalidade existencial estranha, absolutamente
fora de nosso alcance” (von Gebsattel). Tem-se de ver se desta surpresa,
indispensável a que se forme, realmente, qualquer anseio de conheci-
mento, resultaram indagação e resposta exata. Daí formular-se nossa dú-
vida nas seguintes considerações:
1. A totalidade e a origem do existir humano não podem tornar-se ob-
jeto de conhecimento investigativo. Entretanto, a teoria que aqui se dis-
cute diz respeito ao todo do existir humano, o qual, porém, é tema filosó-
fico, enquanto a ciência sempre se relaciona com aspectos determinados e
limitados do todo. A surpresa legítima de von Gebsattel, quando para no
todo, pode, de fato, transformar-se em leitura metafísica de uma escrita ci-
frada deste todo; em conhecimento, não pode transformar-se. Talvez ainda
seja possível fazer objeto do conhecimento “a estranha longinquidade de
uma modalidade existencial inteiramente diversa da nossa”; mas “a alteri-
dade inexplicável em sua totalidade humana” foge-nos' ,ao saber. Diz von
Gebsattel que sua nova consideração genético-construtiva pretende supe-
rar a mera análise da função do- ato e da constituição; mas ainda: superar
as construções neurofisiológicas (estimuladas pelas manifestações obses-
sivas dos pós-encefalíticos). Isso, contudo, quer dizer: superar todas as
cognoscibilidades. É o entusiasmo legítimo dessa superação, que leva à
percepção filosófica, assume, para von Gebsattel, ao mesmo tempo e com
acerto, todas as cognoscibilidades como pressupostos de seu “método sin-
tético-construtivo”. Como psicopatologista, ele quer transformar-se em fisi-
ognomista, mas transforma-se em fisiognomista metafísico, não psicoló-
gico. As teorias, ele as quer promover como “penetração”, como visão
transparente através dos fenômenos. Nada há de arguir contra seu ponto
de partida, nem contra seu objetivo, uma vez que bem entendidos. Mas
von Gebsattel faz disso conhecimento psiquiátrico, falando nas categorias
da ciência natural e da psicologia e compreendendo sua consideração ge-
nético-construtiva como “método que demonstra a afinidade ontológica
dos sintomas biológicos e psíquico-mentais relativamente a uma área no-
sológica”. Resta, aí, como finalidade, “uma teoria estrutural antropo- feno-
menológica, que pretende preparar o terreno para o qual só quando trans-
plantados é que os resultados dos rumos analíticos da pesquisa atingem
seu sentido próprio”; ou seja, teoria ampla do existir humano. Os rendi-
mentos do conhecimento racional hão de integrar-se nesse novo “ordena-
mento das conexões antropológico-existenciais”. As respeito do psicopata
anancástico, von Gebsattel acha que “vive, de fato, como todo, em mundo
próprio e particular”, o que lhe dá significação especial para a considera-
ção antropológico- existencial. Sobre o objetivo de sua antropologia exis-
tencial, falaremos noutro passo. Não se trata, aqui, de rendimento filosó-
fico deste método teórico, e sim daquele rendimento que importa para o
conhecimento.
2. O distúrbio básico teoricamente inferido é impreciso; variável em
sua significação. O início, reconhecer-se-á que, nas doenças até o mo-
mento visíveis apenas por manifestações psíquicas, se impõe a impressão
de um processo elementar, biologicamente condicionado. Kurt Schneider
deu descrição da depressão vital, sem ligá-la a qualquer teoria. Von Geb-
sattel destacou um tipo de doentes obsessivos em que o malogro de toda
terapêutica, a significação da hereditariedade, a ruinosidade absoluta, nal-
guns casos extremos, fazem pensar em processo elementar insuperável,
análogo a lesão orgânica, conquanto subsistindo psíquico e funcional. Fi-
xar esta impressão pela formulação de um distúrbio vital não parece in-
justificado. Dá-se/ entretanto, que toda compreensão psicológica das ma-
nifestações obsessivas não entende a obsessão ou compulsão como tal,
como sendo aquilo predominante a que a tese da “inibição do devenir” há
de corresponder. Mas essa inibição subsiste tão múltipla em significação
— desde o processo vital extraconsciente até a vivência temporal; desde
um processo que não se pode representar internamente até um estado
psicologicamente objetivo — tão imprecisa em sua essência extraconsci-
ente, que se denomina biológica, mas é carente de qualquer acessibilidade
pelas. vias da pesquisa biológica; tão indefinida que, por fim, vem a ser,
apenas, o todo enigmático, a própria vida, a que por nenhum caminho do
conhecimento se tem acesso, porque jamais se consegue transformar em
objeto possível de apreender-se.
3. Não se pode produzir prova empírica do tipo especial de 'distúrbio
do devenir. O distúrbio do devenir deve manifestar-se em vivências imedi-
atas; principalmente, da vivência temporal. Assim que aparecem essas po-
sições empiricamente verificáveis, é possível refutação (por exemplo, em
relação à vivência temporal na depressão endógena, segundo Kloos).
4. A derivação compreensiva das manifestações a partir do distúrbio
básico é questionável por força de uma multiplicidade que chega ao arbi-
trário. Os processos obsessivos, o delírio, as situações afetivas depressivas
são compreendidas, no seu conjunto, em função do distúrbio básico; o
qual se há de mostrar, pela forma mais imediata, na. modificação da vi-
vência temporal (vivencia da parada do tempo, da falta de futuro, da ab-
sorção pelo passado). Em cada urna destas síndromes fenomenológicas,
todavia, encontra-se outra via. para a compreensão e também, sob o ponto
de vista metodológico, com a mesma pretensão a significatividade que von
Gebsattel estabeleceu tanto para o desenvolvimento da informidade
quanto, simultaneamente, das manifestações obsessivas: “Que a inibição
do devenir se possa assim experimentar, em princípio, parece-nos signifi-
cativo, pois que é só no processo do devenir que se completa a forma da
vida.... A impossibilidade do devenir e a não-realização da própria forma
são, apenas, dois lados do mesmo distúrbio básico”. Dá-se, porém, que
essa significatividade varia de autor para autor e varia também conforme o
complexo fenomênico que assim se deve conceituar. Ora é o mesmo traço,
que aparece em várias manifestações, caracteristicamente; ora é a base
que o observador dotado de poder intuitivo vê, fisiognomicamente, nos fe-
nômenos: aquilo que se concebe fundamental. Por vezes, o sentido é invi-
venciado e invivenciável, sentido apenas ideológico para urna observação
de fora; doutras vezes, é o sentido vivenciado, com a aspecto daquilo que
acontece, do lado do paciente, sob a obsessão ou compulsão, para a apre-
ensão e elaboração do evento básico em sua psique. Urna vez, como con-
sequência da transformação por força do distúrbio básico extraconsciente,
surge a manifestação' na consciência (a dedução vê sentido biológico no
extraconsciente); doutra vez, a manifestação surge como consequência de
distúrbios vivenciais primários, já conscientes (distúrbios da vivência tem-
poral), como consequência compreensível no contexto mais amplo da
consciência; não é, contudo, este sintoma primário que é, propriamente,
prioritário, porque este é o processo vital básico: “a inibição mental, a ini-
bição volitiva e afetiva, mas também o delírio- e a obsessão são, apenas,
sintomas do distúrbio mais central”, a. inibição do devenir (von Gebsattel).
Exemplo de como uma compreensão pelo salto para a dimensão intei-
ramente outra de um processo vital do devenir se transforma em. pseu-
docompreensão são as seguintes linhas de pensamento de Strauss. Na
consciência da potencialidade atuativa, antecipa-se o desenvolvimento
possível da personalidade para o futuro. Surge o tédio, quando, junta-
mente com a consciência da capacidade atuativa, o impulso ao- desenvol-
vimento, se vivencia a impossibilidade de dar ao tempo em decurso um
conteúdo; faltando esse impulso, outras vivências acorrem: por exemplo,
um ralentamento de tempo, que, no entanto, prossegue, regularmente; ra-
lentamento que, como acontece no estado de cansaço, se goza sem conte-
údo; é o estado de ânimo de uma tarde de feriado, em que se goza o des-
canso próprio como sendo pausa entre o trabalho feito e o trabalho a fa-
zer-se. Mais ainda: Na biografia do indivíduo, as vivências pretéritas são
iluminadas pelo evento futuro; o passado só é produtivo quando o cami-
nho para o futuro se abre; se se alterar a vivência do futuro, também se
modifica o passado, o qual, além de outras possibilidades, se corretamente
compreendido, se refere a fenômenos que, afinal, se enraízam na existên-
cia humana como seriedade histórica da incondicionalidade. À luz desta é
que ela se há de ver. Se, no entanto, a base dessas vivências se transfere
para os processos vitais do devenir e para os respectivos distúrbios, para
uma concretização objetiva daquilo que não se compreende, nesse caso
surge uma incompreensibilidade iniluminável, a própria vitalidade, em lu-
gar daquela incompreensibilidade que se esclarece ilimitadamente e que é
a existência. É um salto mortal do pensamento, que, de súbito, seguindo,
estas vias da psicologia compreensiva (a qual deve guiar-se pelo esclareci-
mento existencial), despenha num biologismo, a pesquisar-se pela diretiva
da investigação metódica dos fatos somáticos empíricos. Uma coisa e ou-
tra há: misturá-las, porém, uma à outra leva a discussão que se faz cada
vez mais arbitrária — porque é filosofar não-filosófico — discussão que
vem a tomar o lugar da pesquisa.
5. Estas ideias construtivas talvez se ofereçam ao doente como meio de
autocompreender-se, conduzindo à via da consciência filosófica. O doente,
entretanto, em vez de filosofar com autenticidade, extravia-se num pseu-
doconhecimento. Se, por exemplo, perguntamos: Por que é que vivemos e
continuamos a viver? Quando toda experiência e pensamento* conse-
quente faz a existência universal afigurar-se irracional ao entendimento,
absurda, sem significado; quando a verdade desse modo de ver se concre-
tiza, praticamente, no suicídio: que é que nos faz possível viver? Posso res-
ponder pelo desenvolvimento de uma" convicção filosófica ou de uma
crença revelacional; ou posso dizer: Porque o processo vital do devenir a
isso obriga, em contrário a toda razão. Pode ser a divindade, ou a vitali-
dade (ou, nas palavras de Dostoievski: a baixeza karamazoviana); a do-
ença consiste em que Deus está oculto ou perdido; consiste em que está
transtornada a despreocupação vital do devenir. Nenhuma das duas con-
cepções, porém, encerra qualquer traço de conhecimento psicopatológico.
O conhecimento tem sempre de buscar determinados fenômenos e deter-
minadas conexões, cuja afirmação é acessível à verificação ou à refutação.
Mas não há conhecimento nestas modalidades de uma compreensão que
oscila em incompreensibilidade heterogênea: Deus ou devenir vital. E sem-
pre que um saber do ser-assim simula conhecimento também se perde a
verdadeira filosofia.

d) Confronto das teorias acima relatadas.


Vamos, por fim, encarar comparativamente todas estas formações teó-
ricas.
A teoria de Wernicke parte “de fora”, com o cérebro; a de Freud, pelo
contrário, “de dentro”, da compreensibilidade psíquica. Ambos veem uma
área fatual; ambos generalizam validades limitadas, transformando-as em
totalidades psicopatológicas e psicológicas; ambos acabam em constru-
ções abstratas. Se bem que, pelo conteúdo e pelo interesse a que visam,
sejam tão opostos, Wernicke procura, exatamente, a incompreensibilidade
absoluta, resultante de processos cerebrais; Freud, ao revés, pretende
compreender quase todos os distúrbios psíquicos inteiramente de dentro;
apesar disso, a estrutura intelectual das duas concepções é semelhante.
São antagonismos, porém no mesmo plano, com as mesmas limitações e
restrições mentais. É compreensível e até já aconteceu coincidirem na
mente de um psiquiatra as teorias de Wernick e de Freud (é o que nota
Gross, por exemplo: Wernicke e Freud foram ambos discípulos de Mey-
nert). Estas teorias associam-se a nomes historicamente relevantes. A im-
pressão é que a posição eminente do cientista e a criação da teoria se rela-
cionam. Todavia, nos rendimentos científicos desses homens, um verme
se instala com a teoria, desde o início, roendo a estrutura; alguma coisa
que destrói e paralisa, um espírito de absurdez e inumanidade.
Diverso é o que se dá com os esforços genético-construtivos, mais re-
centes, os quais não esboçam, decisivamente, uma teoria; assumem ati-
tude sem fanatismo, ao contrário das precedentes; de quando em quando,
operam como se quisessem dar um sentido, como se constituíssem diver-
timento amável (talvez, ocasionalmente, no interesse dos pacientes, cuja
autocompreensão poderia, por esta forma, encontrar apoio); ou como se
representassem aceitação céptico-filosófica de concepções que têm o cará-
ter de certo significado: as interpretações são boas; as interpretações não
são mais que interpretações.
Todas as teorias expostas, na configuração segundo a qual se transfor-
mam em esquemas de que os pesquisadores se servem para formar sua
concepção geral da vida psíquica, são mais que teorias. O que chamamos,
de maneira metodicamente clara, teoria temos sempre de extrair dos acha-
dos reais da investigação e dos conceitos filosóficos.

§ 3. Crítica Do Pensamento Teórico Em Geral

a) O modelo das teorias científico-naturais.


Foram modelos para o pensamento teórico as teorias físicas, químicas,
biológicas. Nestas — já com muita limitação, porém, nas teorias biológicas
— concebe-se, fundamental aos fenômenos, alguma coisa (átomos, elé-
trons, vibrações etc.) que tem propriedades quantitativas, de modo que se
tiram da teoria consequências que a realidade confirma ou refuta medi-
ante experimentação mensurai. Daí processar-se interação constante en-
tre teoria e comprovações efetivas. Toma-se fecunda a teoria porque indica
o caminho que leva a fatos novos; e é sempre soberana porque sempre lhe
subjazem todos os fatos. Quando alguma coisa não confere, entra em ação
a pesquisa. O sentido da teoria não é interpretar e descrever o que já se
conhece, e sim levar à descoberta do que é novo. O grande êxito das teo-
rias relacionadas com as ciências naturais influenciou, sugestivamente,
todas as ciências, de maneira que assim se construíram teorias em psico-
logia e psicopatologia. Se em absoluto não tiveram, neste campo, grande
sucesso, foi porque elas são, essencialmente, diversas das teorias ligadas
às ciências naturais. Em primeiro lugar, vê-se a diferença que diz respeito
à verificação e à falsificação. Em psicopatologia, as teorias são esquemas
segundo os quais se ordenam fatos conhecidos; para os quais se procu-
ram fatos que se lhes ajustem; e nos quais se cria lugar para outros fatos
que, de futuro, se venham a conhecer, eventualmente; sempre, no en-
tanto, sem o método sistemático que pretende contemplar todos os fatos e
está sempre buscando instâncias contrárias. Ê um agrupamento dentro
das analogias de uma teoria; a teoria não é instrumento da pesquisa. —
Em segundo lugar, as teorias não vêm a mostrar, ulteriormente, superpo-
sição alguma umas às outras; transformação alguma que as faça cada vez
mais unitárias e realísticas. Pelo contrário, o que acontece é uma teoria
edificar-se e, depois, ser no todo esquecido. — Em terceiro lugar, encon-
tramos a disparidade de muitas teorias, que se conservam ao lado umas
das outras, sem ligação entre si.
Daí poder-se dizer: Não há, em psicopatologia, teorias autênticas, como
as há nas ciências naturais. Falham, constituem especulações ilusórias a
respeito de um existir suposto em formas que buscam analogia nas teorias
relacionadas com as ciências naturais; quase sempre, no entanto, sem
método logicamente preciso.

b) O espírito do pensamento teórico.


Apesar de se diversificarem umas das outras, existe um espírito co-
mum a todas as teorias, o que não se verifica relativamente às teorias au-
tenticamente baseadas nas ciências naturais. O pensamento teórico tem
sua atmosfera própria. Um entusiasmo vigora, incitando a que se apre-
enda o que é próprio e o que é total da realidade psíquica. Visto que, na
particularidade das ideias, se supõe a totalidade, nelas existe para a cons-
ciência dos pesquisadores mais do que podem, verdadeiramente, exprimir:
a saber, uma vivência primária da realidade, que se comunica em ima-
gens. Por isto é que sobre os pensadores teóricos atua a visão do inorgâ-
nico e sua regularidade, da vida em sua configuratividade dinamicamente
móvel; o modo por que atuam a vivência em sua plenitude e as formas pu-
ras em sua intemporalidade. De cada uma dessas experiências fundamen-
tais nasce uma disposição que visa ao saber na modalidade da contempla-
ção mental. Se se chamarem as teorias somatológicas materialismo e bio-
logismo, por exemplo; as psicológicas, psiquismo; as lógicas, idealismo, es-
tar-se-ão classificando os conteúdos das formações ideativas, mas não as
experiências fundamentais e os impulsos, os estados de ânimo e as atitu-
des filosóficas que aí se manifestam (donde resulta que quase sempre um
afeto forte se prende ao pensamento teórico; ou então, para aquele a quem
falta esse afeto as. formações ideativas teóricas se tornam vazias e tedio-
sas).
As teorias costumam pretender dominar o todo. Os teorizadores têm a
consciência instintiva de haverem reconhecido a própria coisa, definitiva e
basicamente; de haverem apreendido o todo de uma vez só. Mas compram
caro esta satisfação. Têm concepções, inevitavelmente fixas, mesmo que
variem na forma; são coativos, tudo veem por esses óculos que talvez per-
mitam ver com agudeza extraordinária algumas coisas; que cegam, po-
rém-, muito mais. Esses- homens têm, a bem dizer, ideias fixas, se teori-
zam realmente e se não são meros construtores lúdicos. Fascinam porque
possuem o patos do mais profundo conhecimento; e também porque (e
esta não é a menor razão) parecem levar à essência da coisa, usando de
raciocínios relativamente simples. Seduzem porque quase sempre satisfa-
zem também necessidades metafísicas. No prazer da teoria, enfeitiça-nos
um existir em si, que se presume apreender. Daí os. conteúdos das teorias
se prenderem, estreitamente, às concepções filosóficas e ao espírito da
época.
Certo é que, na formação histórica de teorias, quase sempre há impul-
sos fecundos. Intuições antecipativas de um todo abrem novos espaços à
observação; criam, por assim dizer, novos órgãos de apreensão. A seguir,
porém, é o impulso teórico, exatamente, que paralisa essa fecundidade,
supondo haver apreendido aquilo que é existência real, básica, mediante
esquemas detalhados. O engano fundamental do desenvolvimento teórico
está em encapsular-se numa formação racional, partindo de uma primeira
contemplação ampla. O entusiasmo inicial do contato com a realidade
transforma-se em fanatismo do saber, que erra no desdobramento dogmá-
tico. A crise da ilusão reside na transição da discussão de novas visibilida-
des para o saber suposto; e daí para o encapsulamento e a esquematiza-
ção. Os teóricos que hajam vivenciado o entusiasmo inicial defendem-se
com ele ante a dúvida quanto à veracidade de sua criação, mas lutam não
investigando a origem, e sim trabalhando- com operações vazias da teoria
enrijecida; ou, pretendendo, de modo geral, possuir o saber da realidade,
propriamente; batalham contra a importância primordial, por eles rejei-
tada, do saber empírico e autêntico. O encanto que emana da verdade pri-
meira leva-os a que se fixem nas operações racionais infinitas da teoria.
A experiência histórica ensina que toda psicopatologia dominada pelos
interesses teóricos não tarda a tornar-se também dogmática e, a seguir,
estéril. Só uma psicopatologia que parta do interesse irredutível pela varie-
dade da realidade, pela plenitude da visão subjetiva e dos fatos objetivos,
pela multiplicidade dos métodos e pela peculiaridade de cada orientação
científica — só esta psicopatologia é que realiza missão de ciência especia-
lizada. Rejeitando a modalidade teórica do pensamento “que mostra os
poucos mecanismos biológicos básicos, sempre presentes, a que se reduz
a plenitude variada da riqueza existencial verdadeira”, pretende ela man-
ter-se livre ante o mundo teórico de um existir que se supõe reconhecer
como próprio; desse segundo mundo está sempre querendo voltar à plena
atualidade daquilo que é real (e não pretende que se roube ao homem,
como pesquisador, mediante o saber teórico do existir, a amplitude com
que possa alcançar a existência e, ao mesmo tempo, os limites da psicopa-
tologia, não seu objeto); porque tem presente, em todas as teorias, o perigo
de que se desviem da experiência sem preconceitos e de que conduzam a
um campo estreito de conceitos fixos, de concepções esquemáticas, de ag-
nosticismo infalível. São de apreender-se tanto o sentido e o encanto da te-
oria quanto sua pobreza e inconveniência.

c) Os erros fundamentais das teorias.


O pensamento teórico está sempre levando a erros. Há um pendor a
ter o concebível (possibilidade) como real; a confundir o inverificável (arbi-
trário) com o verificável (determinável); a considerar o que se concebe bá-
sico, representado em analogias, como visão imediata da realidade. Desta-
caremos alguns erros frequentes:
1. Absolutização. O resultado de qualquer consideração metodológica
das teorias psicológicas é o seguinte: Teoria que seja a “correta, exata” não
é possível. Não há teoria que domine o todo. Toda teoria que se considera
conhecimento do evento básico, próprio, resulta da absolutização de um
conhecimento partícula-, de um ponto de vista particular, de categorias
especiais. É conceito metodológico extraordinariamente simples não poder
o particular ser tomado como o todo. E é esclarecedor descobrir a absolu-
tização e, então, libertar-se, a cada instante, de grilhões que o pensamento
se haja imposto a si mesmo. Surpreende, no entanto, a extensão em que
sempre pendemos para absolutizações que realizamos sem perceber.
2. As falsas identificações. Inúmeras ideias teóricas são utilizáveis para
certa área muito limitada, só depois vindo a verificar-se erradas, quando
se quer explicar por elas todo o evento psíquico; mas há outras teorias que
já são erradas em princípio. Alguma coisa que, em certo lugar, se conhece
direta e claramente (o cérebro e, doutro lado, as conexões compreensíveis),
hipostaseia-se na realidade única da vida psíquica. São dois os grupos de
tais teorias: 1) Os desmembramentos do cérebro transformam-se em cons-
truções fantásticas, que nada ensinam, de processos psíquicos paralelos.
— 2) As conexões compreensíveis tomam-se “leis” extra- conscientes, in-
terpretam-se como conexões causais; pelo que se transformam em teorias.
É o erro de princípio que suporta a construção intelectual de Wernicke e
de Freud.
3. As combinações de teorias. Quando um pesquisador imagina teo-
rias, costuma ligar várias ideias, combiná-las com observações reais, com
possibilidades compreensíveis e configurar num só diversos esquemas tí-
pico-ideais, de modo que sua obra necessita, no todo, de análise metódica.
Se se realizar combinação clara das diversidades, erro algum advirá. Mas
quando se combina ou se mistura, sem clareza, uma coisa com outra;
quando, a todo momento, se realizam transições, a combinação da hetero-
geneidade serve de base a erros insuperáveis. Misturar sem método, na te-
oria do que é fundamental, fenômenos subjetivamente vivenciados, fatos
objetivos, comprovações causais, conexões compreensíveis; fazer fluir o
que se passa, ¡mediatamente, na consciência junto com o extra- consci-
ente — daí resulta confusão em que, afinal, tudo é verdadeiro e tudo é
possível, tudo é errado e tudo é obscuro.

d) Inevitabilidade das ideias teóricas em psicopatologia.


Conceber o extraconsciente, quando se apreende a realidade psíquica,
é inevitável. O extraconsciente que não é objeto biológico possível de
aprender na experiência direta é teoria. Daí serem inevitáveis, em psicopa-
tologia, as ideias teóricas; daí por que nelas roçamos, em quase todos os
capítulos, embora sem fazê-las conscientes. Nos pensamentos teóricos,
existe uma esfera própria, autônoma, de conceitos psicológicos, que .se
têm de apreender sob certo ponto- de vista indispensável. Por este motivo
é que constituem objeto expresso de nossa atenção.
Foi possível ordenar as teorias segundo as ideias esquemáticas que
utilizam e, a seguir, segundo os autores que as criaram e que suscitaram
uma maneira de pensar teórica. Podemos, agora, indagar da modalidade
do respectivo sentido positivo. São utilizáveis, mas com limitação sempre
possível de demonstrar-se.
1. As teorias servem para ordenar. Os esquemas ideativos permi-
tem apreender, unitariamente, o que é disperso, bem como
abranger descrições diversas.
2. As teorias levam a formular questões. Abrem vias à pesquisa,
possibilitando antecipar alguma coisa que é observável, medi-
ante a concepção de um fundamento.
3. As teorias são indispensáveis ao conhecimento causai. Não» po-
demos apreender, nem conceituar de modo puramente psicoló-
gico, em sua continuidade, a sucessão das realidades psíquicas
no tempo, porque sempre faltam elos intermediários, que procu-
ramos completar mediante pesquisas somáticas. As lacunas rea-
parecem, porém. Daí o conhecimento causal levar à teoria, a fim
de apreender a continuidade do evento .por meio de alguma
coisa que seja básica. Em psicopatologia, contudo, a formação de
teorias permanece dispersa, particular, eventual. As teorias não
abrangem tudo, não são totais; e isso caracteriza todo conheci-
mento causal psicopatológico.
4. As ideias teóricas específicas têm afinidade com determinadas
áreas de pesquisas, emergindo sempre que se elabora mental-
mente, dentro dessas áreas, a categoria causai. Assim é que se
incluem na área da psicologia experimental dos rendimentos as
teorias dos elementos e das associações, dos mecanismos de as-
sociação, do ato e do efeito configurativo. É da psicologia com-
preensiva que se originam as ideias de cisão, mecanismo extra-
consciente, conversão etc.
5. Resta a questão fundamental: É necessária uma teoria da psique
em um todo? A resposta é: Não, porque todas as teorias que se
aplicam em psicopatologia são ideias que se podem utilizar para
explicar setores fatuais limitados. Só se justificam, a esta altura,
pelo fato de serem utilizáveis, e não pela realidade eventual do
que nelas se concebe. De modo geral, não se pode responder a
quem perguntar se as teorias, exprimindo o que é básico, se
aproximam mais ou menos da “realidade”, da “autenticidade”. As
teorias, em cada caso, se referem, apenas, a um particular, e
nunca ao todo da psique. Não há teoria da psique que valha,
mas, apenas, uma filosofia do existir humano; donde ser sempre
possível indagar: Teoria não é sempre erro? Toda teoria, na mul-
tiplicidade arbitrária, não é, unicamente, uma modalidade de
descrição eventual e de ordenamento de certos fenômenos?

e) A atitude metodológica em relação às teorias.


Em vista da inevitabilidade e da questionabilidade das teorias, convém,
afinal, formular de modo expresso a atitude metódica a adotar perante
elas:
1. É necessário conhecer o pensamento teórico em seus princípios e
possibilidades, a fim de utilizá-lo nos setores limitados de sua fecundi-
dade; e de dominá-lo em geral, mas não se deixar levar por teoria alguma;
nenhuma considerar capaz de explicar o próprio existir. Em seu setor,
cada uma delas pode-se admitir, por uns instantes, sem que, no entanto,
devamos entusiasmar-nos por teoria alguma, nem pelo respectivo con-
junto, de maneira tal que julguemos possam levar-nos à profundidade hu-
mana.
2. Sempre que se acompanha o pensamento teórico, há de saber-se
parar a tempo, retroceder da teoria, seguindo-a, apenas, enquanto ganha
forma e possibilita a experiência; pode-se imaginar o desprazer que aco-
mete o pesquisador que interpreta teoricamente, quando não faz experiên-
cias, mas se deixa levar por interpretações infinitas, que se repetem e se
combinam, de experimentos, por um lado, conhecidos; por outro, vagos e
gerais.
3. Muitas vezes, temos de contentar-nos com ideias teóricas indetermi-
nadas, quando estamos no limite da. experiência; ideias estas que renun-
ciam a qualquer elaboração, limitando-se a estabelecer que, a essa altura,
se tem de conceber, inevitavelmente, alguma coisa extraconsciente, que
não se pode investigar diretamente, mas só pela descoberta de uma rela-
ção causai. Neste passo, esforçamo-nos pela opção entre expressões tão
indiferentes quanto possível, quais sejam, “mecanismo extraconsciente”,
“conversão”, “comutação” etc. Estas ideias teóricas não têm qualquer sig-
nificação autônoma; são, sim, meras demarcações, simples limitações da
significação e da extensão em que valem os conhecimentos existentes.
4. Toda a bibliografia é impregnada — em parte, dominada — por
ideias teóricas. Apesar de sua utilidade restrita, não é raro elas serem su-
pérfluas, assemelhando-se, em conjunto, a uma planta que enreda, que
sufoca a visão real, a concepção viva, o progresso do conhecimento. Para
ver com clareza a essência e os rumos do pensamento teórico, é necessário
apreender, clara e discriminativamente, toda a bibliografia psiquiátrica.
Por este mesmo motivo, é necessário estar consciente do pensamento teó-
rico em toda sua amplitude e reconhecê-lo de imediato, sempre que se
apresenta. A atitude mental dos pesquisadores que, subordinando-se a te-
orias, se deixam levar por elas, sem disso dar-se conta, difere da que assu-
mem aqueles outros que as manipulam conscientemente, porque as co-
nhecem, não dando a qualquer delas significação que exceda a utilidade
relativa de um instrumento metodológico.
PARTE 4.
A CONCEPÇÃO DA TOTALIDADE DA VIDA PSÍQUICA

Quando investigamos as manifestações vitais, estamos sempre desco-


brindo, pelo refinamento da análise, novas conexões particulares; mas a
vida mesma continua a ser o todo a partir do qual se analisam estas parti-
cularidades, que são sem vida, que jamais são a própria vida; o mesmo se
dá quanto ao conhecimento que temos da vida psíquica. Com base na vida
psíquica, analisamos conexões particulares (por exemplo, OS' rendimentos
mnêmicos, a capacidade laborativa, a expressão através dos movimentos,
o significado de obras e atos produzidos, as conexões compreensíveis entre
a vivência e os respectivos pós-efeitos, influências somáticas, herança
etc.). Sempre que fazemos análise, temos presentes totalidades relativas, a
elas conexas; quais sejam, o estado de consciência, o rendimento total etc.
Restam, porém, totalidades do psiquismo em geral, a totalidade da vida
psíquica, de que já destacamos alguma coisa e de que ainda mais destaca-
remos. Quiséramos conceber essas totalidades como totalidades, precisa-
mente, e, bem assim, indicá-las pela análise descritiva dos pacientes e
pela valoração diagnóstica. Isso fazendo, verificamos não poder apreender
o “todo” como tal, mas, sim, que também aqui o que nos cabe é ainda ana-
lisar. Não reconhecemos nem o todo da vida psíquica, nem o todo de uma
personalidade individual, e sim dirigimos nossas intenções para esse todo
mediante totalidades construídas: mediante o curso vital conjunto, a natu-
reza variada do homem, as unidades nosológicas; totalidades que ainda
não vêm a ser, elas próprias, o todo, e sim, simplesmente, padrões finais,
resultados de análises, que nos apontam o caminho para a apreensão pos-
sível do todo, sem que ainda consigamos apossar-nos do todo. O que é, a
bem dizer, o todo está sempre em aberto, por sua vez. A cada momento, o
todo é a ideia de uma infinitude; o que para nós significa nunca se exaure.
O todo mentado nada mais é, de cada vez, senão o esquema de uma ideia,
esquema com que operamos, sem nele ver a própria ideia. O conhecimento
extravia-se quando pretende, afinal, fazer do todo como tal um objeto
firme, determinável.
Sobre a relação entre o particular e o todo, há dois modos de ver unila-
terais e opostos: Um declara haver na vida psíquica apenas elementos; isto
é, fatos particulares e correlações particulares; o todo do psiquismo nada é
que se acrescente, representando, somente, outra expressão com que de-
signar as correlações em que se encontram os fatos particulares, ou a pe-
netração de todos os processos psíquicos por um dos elementos. Pelo ou-
tro modo de ver, o todo da vida psíquica é aquilo que é essencial, aquilo só
que, propriamente, se modifica e se torna anormal; a análise de elementos
como sendo fatos múltiplos individuais será alguma coisa de artificial. Er-
ram ambas as maneiras de ver. Quando só se veem elementos e as respec-
tivas correlações, vê-se a vida psíquica como se fosse mosaico ou caleidos-
cópio de fragmentos mortos; falta a intuição que apreende a cor pelo todo;
falta a crítica que só pode ver e determinar cada fato particular em relação
com o todo. Se, inversamente, entretanto, se hipostasiar o todo numa enti-
dade fixa, cuja apreensão direta seja só o que interessa, perder-se-á toda
argúcia conceptual; perder-se-á o único caminho que leva à análise exata,
caminho que se percorre mediante a determinação precisa dos elementos
em fatos particulares e suas correlações. Daí por que o conhecimento fe-
cundo está sempre oscilando entre os elementos e o todo. É certo que
existe, em relação ao todo, urna intuição, a qual, porém, só se faz clara
pela análise dos elementos. Aliás, pode-se trabalhar fácil, se bem que su-
perficialmente, com os elementos isolados; mas só quando vistos em rela-
ção com o todo é que se os apreendem por forma realística. Às vezes, de
fato, o todo está presente ao “sentimento” do observador, sem estarem
bem claros os elementos; há uma “visão” das constituições, dos tipos no-
sológicos, dos complexos sintomáticos. A apreensão exata, contudo, se ori-
entará sempre para os elementos, porque é só determinando os que se
torna clara e tangível.... Sempre que se fala em totalidades, ressurge o
mesmo problema: não se pode apreendê-las diretamente; só se esclarecem
na medida em que se consegue analisá-las; por semelhantes análises, elas
revelam sua essência própria; análises que acrescentam conceitos novos e
novos modos de apreensão dos fatos àqueles já discutidos.

a) A tarefa.
Quiséramos apreender a psique em toda a amplitude de sua constitui-
ção presente e no curso de toda a vida respectiva. O fenômeno de uma
vida total, a ideia de um homem que é esta individualidade empírica, deve
fazer-se acessível. Tudo quanto se discutiu nos capítulos precedentes
transforma-se em mero elemento, em fator particular, em todo relativo e
provisório de um campo. Queremos, agora, saber de que modo todos os
elementos até o momento conhecidos e todas essas totalidades relativas se
correlacionam, em que é que se ligam. Quiséramos conhecer o que é cen-
tral, o que abrange, o que porta, a substância da qual tudo quanto até
aqui se disse representa, apenas, manifestações particulares múltiplas, lo-
calizadas no tempo e sintomaticamente significativas.

b) A ramificação em três tarefas.


Temos de ver como é que o todo ganha forma empírica. O todo é visto e
mentado biologicamente, não no sentido estrito da investigação biológica
individual, mas no sentido de uma visão do homem como todo vital, na
medida em que não é, certamente, evento biológico total, tendo este, po-
rém, como base e condição constantes de sua essência. O homem vive por
tempo limitado nas fases biológicas de sua idade; em sua peculiaridade
momentânea, é uma particularidade 'dentro do existir humano, em geral;
é acometido por processos mórbidos, nos quais se estruturam manifesta-
ções múltiplas, de modo a constituir sempre um evento biológico total. O
todo da forma empírica do homem ganha, pois, sob o ponto de vista bioló-
gico, três aspectos:
O todo é, em primeiro lugar, a doença determinada. O estar doente
configura-se sempre em doenças especiais, que se nomeiam. O homem é,
em segundo lugar, um todo, como o corpo que é, presentemente, a uni-
dade corpo-alma na qual se mostra sua particularidade, na qual ainda
dormem suas possibilidades, contanto que já não se achem desenvolvidas;
é sempre formado de maneira especial e, afinal, única. Em terceiro lugar,
o homem é um todo na expressão de seu curso vital; o que é liga-se no
tempo e através do tempo se configura; o desenvolvimento de sua essência
mostra o que ele é.
Assim, pois, a pesquisa visa,
• Primeiro, à unidade nosológica, tomando forma quando descreve
a história da doença, que, graças à visão nosográfica conjunta,
ganha unidade; e esta se exprime no diagnóstico. Chamamos no-
sologia esta ciência.
• O segundo objetivo é o todo da particularidade, que toma forma
na descrição estruturada de uma essência em sua configuração
somático-psíquico-intelectual. Esta ciência chamamos eidologia.
• O terceiro objetivo é o todo do curso vital, que toma forma
quando se expõe a história de uma vida; e esta ciência chama-
mos biografia.
Os métodos são os mesmos para as três tarefas: ajuntamento de todos
os fatos de uma vida humana singular num psico-biograma (método psi-
cográfico); conformação deste material, quer sob o ponto de vista da uni-
dade nosológica diagnosticável, quer sob o ponto de vista da particulari-
dade permanente, quer sob o ponto de vista de uma evolução existencial
conexa que se estende no tempo. Há de pressupor-se tenha o pesquisador
a visão que, concretamente, descobre a unidade na multiplicidade dos fe-
nômenos: a visão nosológica, eidológica, biográfica.
As três vias ligam-se, indissoluvelmente, umas às outras; as. três ciên-
cias são ramificação de uma só. A unidade nosológica se há de procurar,
apenas, pela pesquisa biográfica e eidológica, porque se relaciona com a
essência do homem todo. A biografia inclui o estar-doente; não se compre-
ende plenamente o homem se não se lhe conhecer a doença. A apreensão
da particularidade exige o conhecimento biográfico e nosológico, porque
este se mostra através de toda a vida e na maneira por que as doenças se
apresentam.
Uma das três diretivas costuma ocupar o primeiro plano de interesses,
colocando, então, na sombra as outras duas. A orientação nosológica do-
minava ao tempo de Kraepepin. Quando a diretiva eidológica veio ter ao
primeiro plano, por influência de Kretschmer, o nosologismo resignou-se
ao “diagnóstico pluridimensional”. A renúncia às ideias das unidades no-
sológicas e das unidades constitucionais limitar-se-ia ao biografismo e só
utilizaria os esquemas daquelas ideias como meios auxiliares para estas.

c) O que se alcança quando se tenta cumprir a tarefa e o que não se con-


segue.
Se se tivesse, realmente, de apreender o todo de um indivíduo, um só,
único, irrepresentável, se apreenderia como sendo esse todo. Tudo quanto,
em geral, se conhecesse seria um meio na via do conhecimento do todo,
que é sempre único. O conhecimento de um indivíduo pressuporia conhe-
cimento geral completo e seria, em termos concretos, mais do que este
pelo todo único que aqui se mostra. Embora não se possa alcançar seme-
lhante objetivo, novas categorias se encontram, quando se busca o todo
como tal; categorias que são específicas, providas de caráter geral e capa-
zes de manter em movimento, por seu lado, o conhecimento do todo que
se procura, embora não se alcance. Assim é que a busca do todo, uma vez
posta em prática, sempre ganha a forma de conhecimento particular novo;
conhecimento que se terá de apresentar nos capítulos seguintes.
Na nosologia, nenhuma unidade nosológica se ganha, mas se desta-
cam, sob a ideia desta e uma vez que se prefiram certos elementos parti-
culares, unidades nosológicas relativas, as melhores possíveis para os fins
diagnósticos. A presença da ideia mostra, ao mesmo tempo, a falta de rea-
lização concreta do conhecimento que com ela se busca.
Na eidologia, apreendem-se, imediatamente, as particularidades em
aspectos singulares e determinados, em tipos valendo como padrões, e
não espécies de um ser-assim. Toca-se na particularidade como todo me-
diante uma concepção tipológica múltipla; e representa-se indiretamente;
ela mesma como todo recua, por assim dizer.
Na biografia, surgem os pontos de vista da configuração temporal, da
idade e das formas por que a vida decorre, além dos. pontos de vista da
opção ou seleção (primeira vivência, crise etc.), de maneira a chegarmos à
visão do todo.
É possível rejeitar, em princípio, todos os esforços aqui tentados. Pode-
se dizer: Não há unidade nosológica, absolutamente — foi um fantasma
que se perseguiu. Não há particularidade fundamental — só se ouve falar
em tipos e fatores particulares; cada particularidade que se apreende não
é o todo, mas um elemento. Não há biografia: o que há sempre é, apenas,
ajuntamento casual de fatos e seleção conforme a concepção subjetiva e
conforme cada objetivo do conhecimento; a vida é, afinal, um agregado de
acontecimentos, não o todo de um desenvolvimento. Daí — é o que- re-
sulta dessa rejeição — mais não haver do que biografia apressada; não ha-
ver mais do que ilustração tipológica arbitrária de- possibilidades huma-
nas; e diagnóstico pluridimensional sumarizado.
É correta a rejeição, quando se oferece o fato rígido de um- saber rela-
tivo ao todo. Têm razão aqueles que o negam. Mas. não a têm quando ig-
noram a via que leva ao conhecimento pelas- ideias, apenas ficando não
com uma particularidade vista, permanentemente, através da ideia, mas
com as meras particularidades- dispersas, que se podem justapor medi-
ante entendimento chão. O problema é sempre o mesmo: não se trata da
existência de um objeto, mas da verdade de uma ideia.

d) O entusiasmo pelo todo e o erro.


Sempre que se percorreu o caminho que conduz ao todo, manifestou-
se autêntico* entusiasmo. O conhecimento pretendia apreender os fatores
derradeiros, a profundidade máxima, aquilo que é, realmente, e de que-
tudo mais resulta. Julgava-se reconhecer a essência das coisas. É justifi-
cado esse entusiasmo enquanto significa a realização das ideias. Mas se
inverte, instantaneamente, em estreiteza dogmática, quando se pretende
haver reconhecido o todo; e no lugar da ideia surge a inclusão vazia de to-
dos os fenômenos numas tantas categorias, seja diagnósticos nosológicos
e constitucionais, seja qualquer outra coisa.
No que diz respeito ao quadro total da psicopatologia e da respectiva
apresentação, resulta dessa inversão a tendência a partir do todo como al-
guma coisa que se reconhece, da personalidade como unidade corpo-alma,
das grandes unidades nosológicas etc.; e, em seguida, a acomodar nessa
estrutura o particular. A vantagem desta apresentação é o grande traço, a
simplicidade, o fato de começar com a essencialidade máxima do próprio
existir, que- não tarda a despertar vivo interesse. A desvantagem, porém,
está em que a sequência da apresentação não consegue manter a expecta-
tiva prometida, porque o particular não pode desenvolver-se do todo. Ape-
nas se conservam as grandes senhas, perdendo-se as indagações radicais,
bem como a aptidão investigativa franca, multilateral. Depois de acreditar-
se haver conquistado o todo de assalto, possuí-lo de um só golpe, tem-se
de reconhecer que, pulando por sobre a construção metódica e crítica no
tocante ao particular (e quando assim se constrói atenta-se para tudo
quanto é de apreender, realmente), mais nenhuma perspectiva resta, afi-
nal, com o tédio de estar sempre ouvindo a mesma coisa.

e) O conhecimento do homem como caminho para a abertura do existir


humano, propriamente dito.
Para o conhecimento crítico, sempre defrontamos com a experiência: o
todo não >é o todo, afinal. O homem não está encerrado na cognoscibili-
dade — sempre é mais ainda do que sabe de si. Sua essência e origem ex-
cedem a cognoscibilidade. É o que indica o fato de que o todo presumido
em que se julga havê-lo conhecido nunca tarda a sucumbir à análise crí-
tica. Sempre ocorre a ruptura daquilo que, presumidamente completo, é
conclusão errada. Em todos os capítulos cujo tema foi um todo relativo
percebemos o limite, até que, por fim, temos aberto à nossa frente o existir
^humano. Surgem, então, indagações que não se podem responder medi-
ante pesquisas empíricas, embora a pesquisa as suscite, inevitavelmente.
Serão indicadas na parte VI. Cabe à filosofia o respectivo esclarecimento
ulterior.
De modo especial, o homem também não se encerra nas cognoscibili-
dades biológicas que constituem o tema desta parte VI. É o que se vê pelo
salto que as totalidades a se discutirem dão de uma essência biológica
para outra intelectual e, por fim, existencial. Concebe-se a doença também
como particularidade pessoal (dos neuróticos); a particularidade pessoal
vem a formar-se e a resultar, finalmente e mais uma vez, de uma origem
existencial; a particularidade biológica temporal do evento vital trans-
forma-se, pelo comportamento do homem, em seu bios, tal qual se apre-
senta na biografia.

f) A pesquisa guiada por ideias.


Kant conceituou e por forma grandiosa mostrou o seguinte: Quando
quero apreender o todo, seja o mundo, seja o homem, o objeto escapa-me,
porque o que pretendo, a ideia (tarefa a investigar infinitamente), não é fi-
nitude precisa e conclusa. O que conheço nunca é o mundo, e sim. al-
guma coisa no mundo: o mundo não é objeto, mas ideia. :Se tentar, erra-
damente, dizer a respeito dele qualquer coisa, enredo-me em antinomias
insolúveis. No mundo posso caminhar adiante, conhecendo, para todos os
lados; mas o mundo não posso conhecer.
Outra coisa não se dá com o homem. O homem abrange tantas coisas
quanto o mundo. Já nunca o tenho no todo, quando se toma objeto para
mim; e isso sempre de modo determinado e sob certos pontos de vista. O
todo, porém, subsiste. Quando procuro o todo, procuro até o infinito as re-
lações de tudo quanto é precisamente tangível (a característica dos esfor-
ços que se fazem sob a influência de uma ideia para encontrar o todo é
que correlacionam, sistematicamente, tudo aquilo que até então se acha
disperso, parecendo, afinal, referir-se, universalmente, a tudo, embora vi-
rem a ser uma coisa só). Embora não consiga conhecer de modo exato o
todo como ideia, dele me aproximo, porém — nas palavras de Kant — pelo
“esquema” da ideia. Os esquemas são tipos planejados; errados, quando
os trato como realidades ou como teoria de algo básico; verdadeiros como
recurso metódico, passível de correção e modificação ilimitada.

g) Métodos da tipologia.
O que é essência do objeto cognoscível eu capto em espécies a que per-
tence esse objeto; o objeto das ideias reúno em tipos. É indispensável e es-
clarecedor estabelecer a diferença entre espécie e tipo. A uma espécie (por
exemplo, a paralisia) pertence um caso, ou não pertence. A um tipo (o ca-
ráter histérico, por exemplo), corresponde um caso, mais ou menos. Espé-
cie é o conceito de uma variedade realmente existente e delimitável, ao
passo que tipo é formação fictícia, à qual corresponde uma realidade com
limites fluidos; pela qual se mede um caso individual, sem se lhe subordi-
nar, porém. Daí ser razoável medir o mesmo caso individual por muitos ti-
pos, a fim de exauri-lo tanto quanto possível. Mas é evidente que o esgota-
mos quando o subordinamos a uma espécie. Há espécies, ou não as há.
Os tipos, quando se apreendem os casos individuais (em sua peculiari-
dade a partir do todo que se pressupõe ao fato de eles existirem), revelam-
se proveitosos ou não. Pelas espécies conhecem-se limites reais; pelos ti-
pos, apenas se dá estrutura a uma multiplicidade fluida.
Como é que surgem os tipos? Pela nossa visão pensante, com a qual
desenvolvemos um todo capaz de relacionar-se construtivamente. Distin-
guimos tipos médios e tipos ideais. Os tipos médios surgem quando, por
exemplo, num grupo de indivíduos, se determinam qualidades mensurá-
veis (altura, peso, capacidade de fixação, fatigabilidade etc.) e se lhes ava-
lia a intensidade média; reunindo todas as qualidades, obtém-se o tipo
médio deste grupo. Os tipos ideais surgem quando desenvolvo, causal-
mente, por forma construtiva ou psicologicamente compreensiva, partindo
de pressupostos que me dão, todas as consequências, isto é, se vejo um
todo na ocasião de urna experiencia, mas não pela experiência. Para os ti-
pos médios, preciso de grande massa de casos. Para o desenvolvimento de
um tipo ideal, basta-me a oportunidade da experiência com um indivíduo
único ou com dois indivíduos. Resulta da essência dos tipos ideais que,
inicialmente, não tem significação alguma como espécies correspondentes
ao que são, representando, entretanto, o padrão pelo qual medimos os ver-
dadeiros casos individuais. Desde que correspondam ao tipo ideal, pode-
mos apreendê-los. O caráter histérico de um indivíduo real não é marcado,
nem “puro"’. Quando a realidade não corresponde ao tipo ideal, inquirimos
adiante, a fim de saber de onde provém; mas se a realidade corresponder
plenamente, satisfaz-se o conhecimento de maneira característica e inda-
gamos da causa desse todo. — Os tipos ideais, além disso, possibilitam-
nos coordenar e dar significado aos estados e desenvolvimentos psíquicos
concretamente vistos, não mediante enumerações desconexas, mas pela
descoberta das conexões típico- ideais, uma vez que existam. A distinção
entre aqueles enfermos que narram com talento e aqueles que escrevem,
outra coisa não. fazendo senão gabar-se e enumerar fatos atrás uns dos
outros, está em que os primeiros utilizam, por instinto, os tipos ideais,
sem por isso precisar, de modo algum, ser menos objetivos.
As tipologias são sempre possíveis quando se procuram totalidades. Há
tipos de inteligência e de demência, tipos de caráter, tipos de estrutura so-
mática (em construção morfológica ou fisiognomônica), tipos de quadros
nosológicos etc. Com eles o que se busca é sempre um esquema da ideia
do todo eventual.
Todavia, mais se pretende do que apenas uma apresentação- ao infi-
nito de tipos. Os tipos têm valor diverso, conforme mais se aproximem ou
mais se distanciem da realidade, está devendo ser o todo do homem como
evento biológico. Daí por que se destacam, precisamente, os horizontes bi-
ológicos mais amplos, a história evolutiva (ontogenética e filogenética) e o
processo hereditário; daí por que tudo é referido a alguma coisa (e deter-
minado em correlações, quantitativamente); daí por que se apreende o so-
mático, em sentido anátomo-fisiológico e morfológico, conjuntamente com
o psíquico, sob o aspecto de modo vivencia!, produtividade, caráter, a fim
de compreender um todo pelo qual se devam explicar as -diversidades in-
dividuais. Isso fazendo, sempre está iminente o perigo de absolutizar um
setor das pesquisas individuais possíveis, porque é uma visão total que se
exige. Dado, entretanto, que esta se torna particular, inevitavelmente, à
medida que se realiza, a totalidade subsiste Como ideia. Do fato de estas
ideias serem condutoras decorre a essencialidade das pesquisas de Krae-
pelin, Kretschmer, Conrad. à crítica apenas cabe elaborar a verdade das
ideias, preservando-as do próprio mal-entendimento.

h) O psicograma.
O método técnico universal de apreensão do homem total consiste na
reunião de todo material sequer acessível e na investigação do homem sob
todos os pontos de vista possíveis. O procedimento mais superficial con-
siste em assegurar- se do todo em bloco, como se fosse um agregado. O re-
gistro de todos os achados num esquema ordenado chama-se psicograma.
O único sentido do método psicográfico está em que ajuda o pesquisador a
não esquecer coisa alguma, graças a um esquema que abrange b mais
possível.
Ê só depois de ordenar, psicograficamente, todo o material que se po-
dem destacar, por forma metódica, totalidades individuais: a biografia,
como apresentação formativa de uma unidade individual no todo de uma
existência; a tipologia, como série de formas eventuais para a apreensão
da essência eidológica básica (sexo, constituição, raça); a história clínica
como apresentação unitária sob o aspecto da doença.
4.1.
A SÍNTESE DOS QUADROS MÓRBIDOS (NOSOLOGIA)

Na psicopatologia geral, cogita-se, inicialmente, de fenômenos, particu-


lares por si: alucinações, fuga-de-ideias, ideias delirantes. Concebem-se
isoladamente e considera-se aquilo que neles coincide, seja qual for a do-
ença em que aparecem. Na realidade, porém, cada fenômeno ou manifes-
tação tem nuanças variadas conforme os diversos doentes, não consis-
tindo, apenas, no desenvolvimento mais ou menos pleno, e sim no fato de
que, dentro do mesmo desenvolvimento, todos os processos psíquicos têm
suas modificações, as quais decorrem, em parte, da individualidade di-
versa, em parte das várias alterações psíquicas, que podem ser as mais
gerais. É frequente sentirmos mais do que formularmos-conceptualmente
estas - nuanças. Se os fenômenos constituíssem formações rígidas, sem-
pre idênticas, poder-se-iam considerar os quadros nosológicos formações
mosaiciformes, variadamente compostas de pedras individuais, sempre
idênticas. Importaria, apenas, nomear estas pedrinhas sempre iguais; ver,
para cada uma, em que enfermidade com mais frequência costuma repre-
sentar-se; e pela adição das frequências, chegar ao diagnóstico.... Este mé-
todo de uma estruturação errada em mosaico, empregado muitas vezes
por forma rudimentar, apega-se, todavia, a superficialidades, tornando
mecânicos a investigação psicopatológica e o diagnóstico e apenas petrifi-
cando o que até o momento se adquiriu. Alguns principiantes mostram
pendor especial para seguir essa via’ porque é tão facilmente tangível e
porque se pode aprendê-la com relativa rapidez e clareza. Manuais intei-
ros, como o de Ziehen, lhe devem sua popularidade, sua compreensão cô-
moda e — sua rigidez morta. É necessário não nos deixarmos atrair por
tangibilidades fáceis desta ordem e refletir fundamente nos pontos de
vista, em lugar de decorar sintomas.
Todos os aspectos parecem haver sido abrangidos nos capítulos prece-
dentes, como parece haver-se apresentado o que se tem em vista a partir
deles; Como analistas, podemos satisfazer-nos com os métodos que apren-
demos. Mas para o clínico a questão essencial é, de há muito: Como é que
tudo se ajunta no caso individual? Que doença, isto é, que unidade noso-
lógica temos em vista? Quais são as que existem? O psiquiatra, quando
analisa, decompõe um caso em todas as direções; clínico que é, quer fazer
um diagnóstico. Para ele, todas as manifestações se tornam sintomas de
doenças. Uma unidade nosológica tem os sintomas que lhe correspondem,
que se podem esperar e dos quais se tiram conclusões relativamente à do-
ença subjacente.' A grande questão é saber, de cada vez, o que é esta coisa
que tem sintomas.

§ 1. Pesquisa Guiada Pela Ideia De Unidade Nosológica

É de longa data que se responde em sentido duplo a esta questão. Uns


propuseram a teoria da psicose unitária-, não há unidades nosológicas em
psicopatologia: há multiplicidade enorme de variações da loucura, entrela-
çando-se sempre e em todas as direções umas com as. outras. As formas
de loucura hão de classificar-se como, estados que se seguem tipicamente
uns aos outros (assim é que todas as doenças mentais, deveriam começar
com melancolia, vindo, depois, o furor, a alucinação e, por fim, a demên-
cia; em contrário, elevou-se a teoria da paranoia “originária”). Outros ensi-
naram: a tarefa principal da psiquiatria é encontrar as unidades nosológi-
cas naturais, as quais são separadas, em princípio, umas das outras; às
quais são comuns, caracteristicamente, uma sintomatologia, curso, causa
e achados somáticos; entre as quais não existe transição alguma. Embora
a luta entre, as duas orientações se haja levado com grande animosidade
recíproca; embora cada um estivesse convencido do fiasco completo so-
frido pelos esforços alheios, temos de presumir, com base no fato histó-
rico, que essa luta só parou na aparência, jamais na realidade; temos de
presumir que ambas as partes querem alguma coisa exata e que podem
complementar-se em vez de combater-se. Não admitiremos as fórmulas
unilaterais, fáceis de apreender, mas assumiremos a tarefa difícil de com-
preender as vias realmente percorridas na síntese das doenças e de extrair
das meras asserções os resultados reais.
O fato básico é o da multiplicidade das doenças. De um lado, é evi-
dente que a variedade das causas e fatores configurativos não produz,
contudo, uma quantidade uniforme, fluindo em transições, de quadres
que absolutamente não se possam distinguir, em essência; antes, pelo
contrário, a maioria dos casos se ajusta a quadros globais típicos, ao
passo que os casos atípicos, impossíveis de classificar, são poucos. Doutro
lado, porém, existem esses casos que não se podem classificar e, aliás, tão
penetrantes e perturbadores são que um pesquisador moderno de assun-
tos relacionados com a herança, empenhado no esclarecimento das unida-
des, chega à concepção seguinte: “É possível que um esquizofrênico pos-
sua, ao lado do genótipo esquizofrênico pleno, uma disposição parcial ma-
níaco-depressiva ou epilética; e vice- versa... Sou até de opinião que um
mesmo homem pode tornar-se, primeiro, epilético, depois esquizofrênico e
ainda, por fim, maníaco-depressivo. Não há motivo, no estado atual da
pesquisa relativa' à herança, para admitir que as psicoses hereditárias se
excluam mutuamente.... Contra semelhante concepção fala, além da com-
binação familial frequentíssima de psicoses hereditárias diversas (mesmo
em irmãos), o grande número de esquizofrenias atípicas, ciclotimias e epi-
lepsias, bem como aqueles casos dificilmente diagnosticáveis que se deno-
minam ‘psicoses mistas’” (Luxenburger).
No curso do desenvolvimento histórico, quase todas as unidades psico-
patológicas têm funcionado, numa ou noutra época, como unidades noso-
lógicas. Em tempos passados, as alucinações eram “uma” doença; o delírio
era “uma” doença; os conferidos especiais de vários atos constituíam
“uma” doença (piromania, cleptomania, dipsomania etc.). Se be que estas
concepções hajam sido postas de lado, em geral, pelo fato de conduzirem a
registros indiferenciados ao infinito e de fazerem o mesmo indivíduo sofrer,
simultaneamente, de inúmeras “doenças”, ainda vigoram, no presente, os
seguintes pontos de vista, quando se definem as enfermidades:
1. Certos acoplamentos sintomáticos, dos quais se originava, conforme
diversos pontos de vista, a unidade de um complexo sintomático (melan-
colia, furor, confusão, demência) eram as unidades nosológicas que domi-
navam ainda por volta de 1880. Procurava-se aprofundá-las, buscando
penetrar, por sobre os inúmeros detalhes, na estrutura psicológica básica
dos processos psíquicos anormais. Meynert fazia a amência derivar da in-
coerência (“defeito de associação”). Wernicke continuou este tipo de aná-
lise. Ambos, contudo, partiam de ideias anátomo-cerebrais e teórico-asso-
ciativas, sem absolutamente encontrar quaisquer “estruturas básicas”.
Talvez as haja alcançado, em nossos dias, a teoria de Bleuler a respeito da
esquizofrenia, teoria que constitui, até o momento, a exposição psicologi-
camente mais profunda de uma forma anormal básica da vida psíquica.
2. Porque a investigação das unidades psicológicas não proporcionava,
absolutamente, resultados que convencessem e se reconhecessem de
modo geral, procurou-se uma estrutura unitária '“mais natural” e julgou-
se encontrá-la nas causas da loucura. Tudo quanto tem as mesmas cau-
sas deve conjugar-se numa unidade. Foram, especialmente, os franceses
(Morel, Magnan) que tentaram explicar este ponto de vista como sendo su-
perior a todos os demais, daí partindo para a teoria, que criaram, da dis-
posição* e herança. A imensa maioria das psicoses pertenceria, então, se-
gundo eles, à loucura hereditária dos degenerados. Esta loucura degene-
rativa, conforme a chamaram, era tão extensa e unificava, noutros aspec-
tos, coisas tão diversas sob um só aspecto (além domais, quase sempre hi-
potético) — o da degeneração — que também não pôde satisfazer.
3. Ao mesmo tempo, já se havia postulado que o achado anatômico de-
via dar as unidades. Os processos cerebrais, iguais- entre si, formariam
uma unidade nosológica. Este ponto de vista não passou, entretanto, de
postulado. Além dos processos cerebrais conhecidos da neurologia (escle-
rose múltipla, tumor, lues cerebral' etc.), como sintoma dos quais se ob-
serva a loucura, descobriu-se, primeiro, pelos sintomas somáticos (parali-
sia etc.; Bayle, Calmeil), depois pelo achado característico no córtex cere-
bral (Nissl, Alzheimer), mais uma doença do sistema nervoso, a paralisia
geral, a qual valeu, durante certo tempo, como paradigma das doenças
mentais, constituindo a única unidade conhecida. Mas os sintomas que
nela se apresentam de tal forma assemelham-se às demais doenças cere-
brais até então conhecidas, apenas- excedendo-as pela gravidade da des-
truição, que se tem de alinhá-los ao lado destas e não das demais psico-
ses. A paralisia geral é um processo do sistema nervoso no qual sempre
aparecem psicoses “sintomáticas”. Nem nos sintomas psicológicos indivi-
duais, nem na sequência serial das manifestações psíquicas de seu curso
se distingue, em princípio, de outras psicoses que ocorrem junto com do-
enças orgânicas cerebrais. A paralisia geral é, certamente, modelo para a
pesquisa anatômica e causal, mas não, conforme se pretendeu fazer dela,
modelo para a investigação clínico-psiquiátrica, porque, quando se a des-
creve, jamais desempenham papel real quaisquer elementos psicológicos.
Trata-se, aqui, de assuntos puramente neurológicos.
Nem as formas psicológicas básicas, nem a teoria das causas (etiolo-
gia), nem o achado cerebral têm levado a quaisquer unidades nosológicas
em que se possam acomodar todas as psicoses. Kahlbaum e, depois dele,
Kraepelin vieram a trilhar, posteriormente, novos caminhos para chegar,
apesar de tudo, a unidades nosológicas. Kahlbaum suscitou dois requisi-
tos fundamentais: em primeiro lugar, há de ter-se o curso de toda a lou-
cura como o fundamento mais essencial para estruturação de formas no-
sológicas; em segundo lugar, tomar-se-á como base o quadro total da psi-
cose, mediante a observação clínica multilateral. Por um lado, ele suscitou
novo aspecto, ao lado dos três precedentes, pela acentuação do curso; por
outro, reuniu, com o segundo requisito, todos os pontos de vista ou aspec-
tos', é preciso que convirjam para a formação de unidades nosológicas, em
vez de se oporem uns aos outros. Dos trabalhos de Kahlbaum destacamos
uma passagem clássica:
O que temos de fazer é “desenvolver quadros nosológicos segundo um
método clínico, quadros nos quais se avaliem quanto possível todas as
manifestações vitais no doente individual, visando ao diagnóstico, e se
possa considerar todo o curso da enfermidade. Os grupos de' configura-
ções nosológicas que assim resultam da reunião de todos os sintomas
coincidentemente ocorrentes com mais frequência, bem como da delimita-
ção puramente empírica.... não só foram.... fáceis de fazer compreender-
se, mas também o diagnóstico sobre eles construído possibilitou, com
base no estado momentâneo de certo doente, construir a posteriori o curso
passado do caso nosológico; além do que, tanto de modo absolutamente
geral, em termos de vida e saúde, quanto também no particular, tendo em
vista as fases variadas do quadro sintomático anterior, permitiu inferir a
evolução ulterior com maior probabilidade do que seria possível sob o
ponto de vista da moldura classificatória anterior”.
As ideias de Kahlbaum pouco influíram até que Kraepelin as desposou
e propagou. Na sequência das edições de seu Manual, expõe-se a evolução
que o levou da superação de todas aquelas unidades provisórias e unilate-
ralmente apresentadas à apropriação proveitosa das ideias de Kahlbaum.
Sempre estruturando e reestruturando, procurou ele realizar sua ideia da
unidade nosológica numa psiquiatria realmente especial. Os quadros mór-
bidos que têm causas iguais, forma psicológica básica igual, desenvolvi-
mento e curso iguais, êxito igual e achado cerebral iguais-, que, portanto,
coincidem no quadro global, são unidades nosológicas naturais que se po-
dem dizer verdadeiras. É pela observação clínica multilateral que se en-
contram semelhantes unidades. Particularmente útil afigurou-se o estudo
do êxito da doença; no que, foi decisivo o pressuposto de que as doenças
que se curam completamente são essencialmente diversas das jamais cu-
ráveis; em segundo lugar, Kraepelin supôs que o conhecimento da estru-
tura psicológica dos estados terminais já permitisse conhecer a forma psi-
cológica básica do processo mórbido mesmo nos indícios ligeiros, ao início
das psicoses. O resultado dessas pesquisas foi o estabelecimento dos dois
grandes grupos nosológicos, os quais abrangem todas as psicoses que não
se expliquem como consequentes a processos cerebrais já possíveis de
apreender; a loucura maníaco-depressiva, na qual se incluíram tanto a
loucura circular dos franceses quanto as doenças afetivas; e a demência
precoce, em que se fundiram a catatonia e a hebefrenia de Kahlbaum,
mais as psicoses delirantes. Além disso, todas as demais anormalidades
ligeiras foram agrupadas na rubrica de loucura degenerativa. Vamos,
agora, orientar-nos pelos resultados desta diretiva que vige desde 1892,
mais ou menos:
1. Não se encontrou por esta via unidade nosológica real alguma. Não
há, na ciência, doença que corresponda aos requisitos necessários a que
se conforme uma unidade nosológica: a) A unidade nosológica da paralisia
geral é unidade puramente neurológica, cérebro-histológica e etiológica.
Os processos psíquicos nada têm de característico, além da destruição,
que só em grau difere da destruição presente noutros processos orgânicos
cerebrais. Todos os eventos patológicos sequer possíveis resultam do pro-
cesso cerebral da paralisia. A psicopatologia não ganhou, pelo conheci-
mento da paralisia geral, unidade nova alguma que se pudesse caracteri-
zar psicologicamente, b) Os grupos nosológicos da loucura maníaco-de-
pressiva e da demência precoce são quase inteiramente desconhecidos re-
lativamente às respectivas causas e respectivos achados cerebrais. Delimi-
tam-se conforme mais ou menos se acentue a forma psicológica básica ou
o curso (cura ou não). Se, de um lado, se traz a primeiro plano o primeiro
fator (Bleuler), o grupo da demência precoce estende-se enormemente, em
oposição ao outro grupo; este, por sua vez, acentua mais o curso (cura
com compreensão da doença ou não), restringindo aquele de maneira con-
siderável (Wilmanns); os que assim pensam veem doenças curáveis — e,
pois, de não se incluírem na demência precoce — com sintomas catatôni-
cos e vivências esquizofrênicas. Assim é que o limite oscila por forma pen-
dularmente notável entre a loucura maníaco-depressiva e a demência pre-
coce, há muitos anos, sem que se progrida na demarcação quanto a uma
e outra. Além disso, têm-se estendido os dois grupos de tal modo que se é
obrigado a considerámos sujeitos ao destino a que sucumbiram, tipica-
mente, no século lassado, todas as unidades nosológicas com base psico-
lógica.
Os círculos ondulantes que se formam à superfície da água e se movi-
mentam à queda das gotas de chuva são, a princípio, pequenos e nítidos,
para depois irem aumentando, confundindo-se e dissolvendo-se; assim
também emergem doenças, de quando em quando, na psiquiatria, que se
avolumam até desaparecerem em sua própria grandeza.
A teoria das monomanias de Esquirol, a paranoia dos anos 80, a
amência de Meynert constituíram círculos desta ordem. A hebefrenia e a
catatonia relativamente claras deram lugar à demência precoce infinita; a
loucura circular, à loucura maníaco-depressiva sem limites.
2. Os quadros nosológicos kraepelinianos distinguem-se, porém, es-
sencialmente, dos grupos maciços precedentes. Segundo, ao menos, pre-
tendem, formam-se pela observação do quadro total e do curso da doença;
e, duais que são, além de empenhados na delimitação, entretêm um es-
forço investigativo que, certamente, pouco contribuiu para a delimitação
dessas enfermidades; mas levou a outros resultados valiosos. Quando se
apresentam os dois grupos, algum núcleo permanente de verdade tem de
haver que faltou aos outros agrupamentos. Tal qual se formularam impu-
seram-se ao mundo inteiro — õ que não havia conseguido qualquer outra
classificação anterior das psicoses sem base orgânica conhecida — e sob
esta forma não se controvertem, em princípio. Mais ainda: conseguiu-se
intensificar o esforço diagnóstico, de modo a superar a tranquilidade das
rubricas diagnósticas comodamente definitivas. A ideia de unidade nosoló-
gica veio a constituir, de maneira permanente, objetivo estimulante ao tra-
balho psiquiátrico. O próprio Kraepelin conseguiu aprofundar notavel-
mente o conhecimento da estrutura psicológica das doenças afetivas,
quais sejam as enfermidades esquizofrênicas (donde resultaram as esqui-
zofrenias de Bleuler). Seus discípulos estudaram as formas evolutivas
através de biografias inteiras, destacando com mais nitidez pequenos gru-
pos típicos de psicoses.
3. Não se realizou a esperança de encontrar, pela observação clínica
dos fenômenos psíquicos e dos cursos evolutivos e êxitos, grupos caracte-
rísticos que fossem, posteriormente, confirmados pelo achado cerebral, e,
de certo modo, preparassem o caminho para o anatomista cerebral. En-
sina a história as seguintes premissas: a) Do ponto de vista somático, os
processos cerebrais tangíveis foram sempre e exclusivamente encontrados
pela investigação somática sem qualquer trabalho psicopatológico prévio,
b) Uma vez encontrados processos cerebrais nitidamente delimitáveis, ve-
rificou-se que, com eles, aparecem, ocasionalmente, todos os sintomas
psicopatológicos sequer possíveis; e que não há características distintivas
no setor psíquico. — A paralisia geral é exemplo excelente; mesmo quando
já se conheciam, de certo modo, os achados somáticos — nos anos 90 do
século passado — pretendeu Kraepelin poder diagnosticar também psico-
logicamente a paralisia geral; o que fez servindo-se de manifestações so-
máticas mal definidas e estabelecendo uma quantidade de diagnósticos er-
rados, conforme se viu do curso mórbido ulterior.1 Havia, então, 30% de
paralisias nas clínicas; no entanto, desde que instituíram a punção lom-
bar e o diagnóstico que, em princípio, prefere a base somática, a cifra os-
cila, há anos, regularmente, entre 8 e 9%: sinal de que é correto o atual di-
agnóstico. Donde se conclui: mesmo uma doença que se conhecia somati-
camente não se podia diagnosticar psicologicamente com segurança; nem
se pode, hoje em dia; como, pois, encontrar e diagnosticar uma doença
desconhecida pela via psicológica? (a investigação do curso e do êxito tam-
bém é puramente psicológica nas grandes psicoses). É o que, segundo en-
sina a história, não parece possível.
Confirmam-se os ensinamentos da história pelas objeções factual-
mente esclarecedoras que se elevaram contra a formulação kraepeliniana
(isto é, a busca de unidades nosológicas reais):
1. O diagnóstico com base no quadro total só se pode fazer quando se
sabe antes de uma doença delimitada, a diagnosticar. Não se podem en-
contrar, no entanto, com base no quadro total, doenças nitidamente deli-
mitáveis, e sim tipos, apenas, que mostram sempre, nos casos particula-
res, “transições”. A experiência ensina não ser tão rara a ocorrência de ca-
sos cujo, curso existencial completo se inspeciona e que, apesar disso, não
permitem discussão proveitosa sobre se se trata de loucura maníaco-de-
pressiva ou demência precoce.
2. O mesmo êxito não prova sejam as mesmas as doenças. De um
lado, as doenças orgânicas cerebrais mais diversas levam a êxito em esta-
dos demenciais iguais. Doutro lado, não é absolutamente de compreender
por que a mesma doença deva curar-se num caso e não curar-se noutro.
Apesar disso, pode-se supor perfeitamente haja processos que sejam es-
sencialmente incuráveis. Não há meio, contudo, até agora, para distinguir
estes de outros que ora se curam, ora não se curam.
3. A ideia de unidade nosológica nunca se pode realizar em seja qual
for caso particular, porque o conhecimento da regularidade com que coin-
cidem as mesmas causas com as mesmas manifestações, curso, êxito e
achado cerebral pressupõe conhecimento completo de todas as conexões
particulares; conhecimento que se sedia em futuro infinitamente distante.
A ideia de unidade nosológica é, em verdade, ideia rio sentido kantiano: o
conceito de uma tarefa cujo objetivo é impossível alcançar, visto que o ob-
jetivo está na infinitude; ideia, todavia, que nos indica que rumo deve a
pesquisa seguir para lograr sucesso; e significa ponto de orientação válido
para a pesquisa empírica particular. Sob todos os aspectos, devemos in-
vestigar o quadro total das doenças psíquicas e procurar conexões, quanto
possível, para todos os lados. Assim fazendo, encontramos, de um lado,
conexões particulares; doutro lado, determinados tipos, sempre provisó-
rios, de quadros mórbidos, que não se podem delimitar com nitidez; mas
que são muito “mais naturais” do que todas as anteriores classificações
unilaterais e construtivas. A ideia de unidade nosológica não é tarefa que
se possa alcançar, mas é o ponto de orientação de maior valor. É nela —
nesta ideia, que movimentou de forma sem paradigma a investigação cien-
tífica — que culmina o esforço psicopatológico. Quem teve ô mérito de
apreendê-la foi Kahlbaum; de efetivá-la, Kjraepelin. Mas o erro começa
quando, em vez de ideia, se dá a aparência de haver alcançado a ideia;
quando, em vez da pesquisa particular, se dão descrições acabadas de
unidades nosológicas, quais sejam a demência precoce e- a loucura maní-
aco-depressiva. Pode-se pressupor que descrições semelhantes, porque
pretendem sempre o impossível, também sempre hão de ser erradas, não
passando de formações sem vida. Em vez de descrições desta ordem, a
psiquiatria especial do futuro, além de descrever as doenças orgânicas ce-
rebrais, as intoxicações etc., alinhará, exclusivamente, os tipos que haja
adquirido na pesquisa individual. Precursor desta psiquiatria especial é o
costume de certos hospitais diagnosticarem os casos pelo nome de doen-
tes anteriormente observados que representem o mesmo tipo, em lugar de
rotulá-los com o diagnóstico geral de demência precoce ou loucura maní-
aco-depressiva. O impulso sintético que se orienta com razão pela ideia de
unidade nosológica tem de limitar-se ao mesmo tempo, se quiser adstrin-
gir-se a cognoscibilidades possíveis. Nada mais pode alcançar do que o en-
contro de casos individuais reais, empiricamente apresentados, ou qua-
dros típicos totais de psicoses, correspondentes a pequeno círculo de ca-
sos. Assim que pretende abranger círculos mais amplos, o conhecimento
desaparece, esboçam-se, em vez de investigações reais, “descrições glo-
bais” de resíduos experimentais mal controlados, que escapam completa-
mente ao leitor, quando quer apreender a unidade. Noutros tempos,
quando se indagava o que era que produzia, em geral, as manifestações,
respondia-se presumindo a existência de demônios mórbidos, os quais se
transformaram, a seguir, em unidades nosológicas a se investigarem, não
se tendo, entretanto, configurado senão como ideias.
A indagação inicial: Há, apenas, estádios e variações de uma psicose
única; ou uma série de unidades nosológicas a delimitar? responde-se:
Nem uma coisa, nem outra. Esta concepção acerta quanto ao aspecto de a
ideia de unidade nosológica constituir o ponto de orientação fecundo da
investigação psiquiátrica especial; aquela outra concepção acerta quanto
ao aspecto de não haver, na verdade, unidades nosológicas reais para a ci-
ência psiquiátrica.
Aos ensinamentos da história e desta concepção que se formou pelas
três objeções seguiu-se, de há muito, a pesquisa real. Além de todas as
possibilidades analíticas da investigação que se aprenderam nos capítulos
anteriores, a pesquisa sintética subordinada à ideia de unidade nosológica
enveredou por duas vias:
1. A investigação do cérebro inquire — na realidade, sem considerar a
clínica e sem haver coisa alguma aprendido da psicopatologia — processos
mórbidos do cérebro. Caso os encontre com seus métodos, pode a psico-
patologia indagar que alterações psíquicas são produzidas por esses pro-
cessos. Daí ser possível dizer: Toda anomalia psíquica pode apresentar-se
com qualquer processo orgânico cerebral (somente, porém, quando se
toma objetiva, superficialmente, não implicando qualquer tipo de vivência;
menos que qualquer outra, a vivência esquizofrênica). Na medida em que
esta pesquisa progride, as doenças psíquicas se transformam em molés-
tias “sintomáticas” de processos propriamente neurológicos. O conceito de
unidade nosológica passa, inteiramente, neste modo de ver, do campo da
psicopatologia para o domínio da neurologia; e, certamente, com razão,
desde que se possam reconhecer processos cerebrais tangíveis como
sendo a essência de moléstias psíquicas particulares.
2. A psiquiatria clínica investiga casos particulares de acordo com to-
dos os pontos de vista, a fim de ganhar o quadro total destes casos, reu-
nindo em tipos aqueles que se apresentam concordantes. Mas a psiquia-
tria especial está muito longe de possuir tipos conceptualmente formados
sequer para a maioria das psicoses.
Os quadros clínicos das doenças originam-se da visão nosográfica,
conforme Charcot a denominou, a praticou, mas a confirmou, em seus ca-
sos clínicos, pela anatomia; e conforme Kraepelin a realizou, sem possuir
controle desta ordem. A apresentação clínica dos quadros constitui o mé-
todo pelo qual se traduz em palavras, abertamente, aquilo que se vê, sem
pressupor certos conceitos; pré-conceptual e inesquematicamente mesmo.
Tanto melhor ela é quanto mais densa for a visão que a planeja e produz.
Os conceitos surgem com as formulações que criam, originariamente, a
configuração. A arte de apresentar são poucos os psiquiatras que a pos-
suem; com frequência excessiva, a apresentação falha porque escasseia a
força demonstrativa, a capacidade de representar a essência e a disposi-
ção, de modo que, pelo deslizamento para as abstrações, para as meras
valorações e porque se formam conceitos vazios, dissolvidos em colunas
verbais, em vez de frases que caracterizam, se acumulam os juízos. Krae-
pelin conseguiu, certamente, em nosso tempo, produzir as melhores apre-
sentações, mas também ele deslisa com frequência para um mosaico sem
fim, composto de experiências que não proporcionam quadro algum.'
O método de Kraepelin — de levantar catamneses e considerar o curso
existencial completo para apreender o quadro mórbido — deu em resul-
tado a falha de todas as tentativas no sentido de delimitar certas psicoses
em relação à esquizofrenia ou dentro do campo desta. O que se delimitou
(delírio pré-senil de prejuízo, parafrenia etc.) sempre teve de voltar à esqui-
zofrenia. Quando não falha a delimitação de uma doença em confronto
com as biografias, não significa haver aí unidade nosológica ampla, e sim
conexão causal particular ou manifestação individual.
Só se podem formar tipos quando se dispõe de biografias completas. A
pesquisa tipológica, baseada nas biografias penetrantes e concretas, é
uma das tarefas mais ricas em perspectivas da psiquiatria. Talvez só se
possa esperar progresso realmente grande, quando o dirigente de uma clí-
nica ou instituição, com formação básica nos pontos de vista e fatos da
psicopatologia geral, dispondo da colaboração de assistentes permanente-
mente preocupados e seguramente orientados em psicopatologia geral, pu-
der elaborar um material de tal modo que se tentem formar tipos transpa-
rentes, confrontando-os, multilateralmente com a totalidade dos doentes e
sempre ilustrando-os mediante histórias clínicas boas, sem ornato, porém
construtivamente ordenadas. De início, Kraepelin foi o único que tentou
alguma coisa desta espécie, levando-a adiante sem desfalecimento.
A abordagem diagnóstica do doente mental pode fazer-se, de um lado,
de acordo com as categorias mais gerais da psicopatologia (esquizofrenia,
processo ou desenvolvimento da personalidade, doenças cerebrais com di-
agnóstico neurológico especial etc.); ou tem de ater-se o mais possível à re-
alidade, segundo tipos estritamente limitados, se quiser dar bons resulta-
dos. Pouco esclarece e em concepções vagas se perde o psiquiatra que se
satisfaça com diagnósticos tais como “parafrenia”, “agitação” etc.; pelo
contrário, é proveitoso para ele descobrir trabalhos nos quais se publi-
quem casos inteiramente análogos aos seus, permitindo-lhe confrontos
objetivos. A concepção de unidade nosológica aproxima-se aqui do indiví-
duo. Kleist, depois de chamar, aliás, meu ponto de vista “niilismo diagnós-
tico”, escreve: “A psiquiatria dissolver-se-á, com esta tipologia construtiva,
em psiquiatria dos casos individuais”. No campo da medicina interna, diz,
entretanto, Cúrtius-Sdebeck: “Assim é que somos levados, quando diag-
nosticamos uma doença, ao diagnóstico individual; ou seja, ao ajuiza-
mento amplo da peculiaridade da personalidade enferma e da respectiva
situação vital; esta é, decerto, a tarefa derradeira do diagnóstico “médico”.
As palavras de Kraepelin sobre a paranoia: “O agrupamento clínico dos
quadros mórbidos paranoicos oferece dificuldades especiais devido ao fato
de haver tantas formas quantos doentes individuais” tem significação es-
pecial que excede de muito a paranoia.
A psiquiatria exige com. urgência um registro de histórias clínicas bio-
gráficas, bem elaboradas. Os apontamentos caóticos habituais não são,
em absoluto, suficientes. A casuística fornecida mecanicamente segundo
os princípios de uma “objetividade” estúpida, reproduzindo frase por frase
as notas que constam de diários dos doentes nenhum proveito traz. Têm-
se de formar pontos de vista, contemplando aquilo que possa ter signifi-
cado fatual. Há de ver-se tudo quanto for possível, mas concentrando-se
no que houver de mais manifesto e construindo uma ordem tal que nada
violente, mas, apenas, consigne clara e transparentemente. Da massa de
casos arbitrários só poucos é que servem de fundamento a uma elabora-
ção biográfica desta ordem. A quantidade e precisão das manifestações
dos doentes depende da constituição e da cultura (quanto mais diferenci-
ada a personalidade, melhor); o material existente é sempre lacunar; por
demais lacunar na maior parte dos casos, para permitir biografia que va-
lha publicar. O trabalho terá de fazer-se com base no material vivo atual,
mas servindo-se, ao mesmo tempo, do material constante dos arquivos do
hospital (cujo valor real resulta dos levantamentos catamnésicos), bem
como daquele já publicado. Só se logra o proveito máximo pela comple-
mentação recíproca destas fontes. Embora mediante seleção cuidadosa, o
principal é o próprio médico tratar com os doentes e vê-los detidamente, o
máximo possível; nada consegue, entretanto, quem a isso se limita. Sem
formação psicológica ampla, sem aquisição fundamental do cabedal que
existir em conhecimento psiquiátrico, não se progride; mas só com traba-
lho a longo prazo; trabalho que, de início e por muito tempo, permanecerá
monográfico.
Publica-se a casuística por motivos variados; por exemplo, a fim de
mostrar um fenômeno, um sintoma; a fim de elucidar conexões particula-
res de tipo compreensível ou causal; a fim de ilustrar quadros ou estados;
a fim de registrar efeitos terapêuticos. Mas é só com a ideia de unidade no-
sológica que se formam as biografias completas, as quais hão de opor-se,
porque representam descrições reais, às construções vazias de um es-
quema; porque representam casuística formada, opor-se-ão às histórias
clínicas acidentais, às biografias superficiais, aos casos arbitrária e breve-
mente relatados ou aos diários caóticos. Sempre, mas provisoriamente, se
construirá, baseado nelas, uma tipologia concreta que acentue o que for
essencial.
Para o estudo da psiquiatria especial, talvez seja ainda mais impor-
tante, no momento presente, ler boas monografias individuais do que
qualquer dos manuais que expõem todo este setor. Os manuais servem,
com suas descrições sumárias das moléstias, para os processos cerebrais,
para as psicoses exógenas e sintomáticas; -quanto ao mais, são ilusórios,
de um lado, pelo fato de separarem o que não é muito claramente diverso;
doutro lado, mostram-se vagos e obscuros.

§ 2. As Distinções Fundamentais No Campo Geral Das


Doenças Mentais

Parece conveniente destacar certas distinções fundamentais no tocante


aos quadros gerais da doença psíquica; quadros que dão as orientações
iniciais para a apreensão do todo, de modo, contudo, a evidenciar, ao
mesmo tempo, problemas profundos e não resolvidos, porque cada par de
contrastes significa um conceito básico e global da vida psíquica.
Estes pares de contrastes não são, porém, alternativas que se excluam,
mas diferenças polares: o caso particular aproxima-se mais de um ou ou-
tro polo; e a maior parte dos casos coloca-se de um lado ou doutro. Há, no
entanto, casos, e não são poucos, nos -quais se liga aquilo que distingui-
mos como se fosse contrastante; certas neuroses podem constituir, du-
rante anos, o sintoma de psicoses que só mais tarde se veem (por exemplo,
a esquizofrenia), ou de doenças nervosas orgânicas (por exemplo, a escle-
rose múltipla). Algumas psicoses endógenas vêm, por vezes, a apresentar-
se, em aparte, com o aspecto de processos orgânicos cerebrais. As molés-
tias afetivas mostram, de quando em quando, traços esquizofrênicos. Há
defeitos de rendimento que talvez se associem, na maioria dos casos, a al-
terações da personalidade. As fronteiras entre agudo e crônico são vagas,
nalguns casos.

I. Diferenças de Estado
Psicoses agudas e crônicas.
Esta contraposição tem sentido múltiplo no uso psiquiátrico:
1) Pensa-se em diferenças que ocorrem no quadro total dos estados
psicóticos: os estados agudos já mostram alteração intensa no comporta-
mento exterior, na excitação ou depressão, confusão, inquietude etc., ao
passo que os estados crônicos se apresentam lúcidos, orientados, ordena-
dos, quietos, regulares. Frequentemente, mas nem sempre, este contraste
geral dos quadros sintomáticos coincide com
2) O contraste entre processo e estado. Nos quadros agudos, pensa-se
em processos mórbidos nos quais não tarda a acentuar-se a intensidade
dos sintomas; nos crônicos, entretanto, pensa-se em estados mórbidos
que evoluem lentamente e que subsistem como resíduos daqueles proces-
sos agudos tempestuosos; isso acontece frequentemente, mas nem sem-
pre.
3) A contraposição prognostica de curável e incurável": os processos
agudos é comum considerarem-se curáveis, ou, pelo menos, suscetíveis de
melhorar; os estados crônicos são sempre considerados incuráveis.
Para a primeira orientação, pode-se utilizar esta contraposição do tipo
da psicose aguda (fenômenos mórbidos intensos acompanhando um pro-
cesso ainda curável) e do tipo da psicose crônica (fenômenos mórbidos me-
nos evidentes, com estado já não mais curável). A duração da doença não
desempenha papel algum, no tocante a esta contraposição, pois ainda se
chamam agudas psicoses- que duram anos, em oposição absoluta ao uso
que a medicina somática faz do vocábulo.

II. Diferenças conforme a Essência


a) Defeitos de rendimento e distúrbios da personalidade.
Na múltipla variedade dos fenômenos psicopatológicos, surge, muitas
vezes, um contraste ou polaridade que designa, com denominações diver-
sas, a mesma coisa; às alterações quantitativas dos rendimentos objetivos
(memória, trabalho etc.) opõem-se as alterações qualitativas da vida psí-
quica (outras modalidades de vivência subjetiva, modificação das conexões
compreensíveis, “loucura”); isto é, com as alterações da capacidade de pro-
duzir (conservada, no entanto, a personalidade) contrastam as alterações
da personalidade, talvez mantendo-se a produtividade. No primeiro caso,
temos distúrbio dos mecanismos subjacentes ao psiquismo (desde as pu-
ramente neurológicas até as funções intelectivas); no segundo caso, apre-
senta-se-nos uma modificação do centro da própria vida psíquica. No pri-
meiro caso, uma personalidade já não é capaz, consequentemente à des-
truição de seus instrumentos, de exprimir-se e comunicar-se, sofrendo
dano secundário em si mesma; no segundo, uma personalidade qualitati-
vamente modificada, transtornada, trabalha com os mesmos instrumentos
conservados de antes; só que de maneira correspondentemente diversa.
No primeiro caso, por trás das funções destruídas, o observador tem a ex-
pressão clara de uma personalidade que se mantém, a bem dizer, inalte-
rada e com a qual ele se pode, fundamentalmente, entender; no segundo
caso, o que o observador experimenta é o sentimento intenso do abismo
que se abriu no entendimento recíproco, se bem que não se deparem alte-
rações tangíveis de quaisquer rendimentos e funções. É possível, no pri-
meiro caso, à psicologia objetiva dos rendimentos analisar e estabelecer,
com exatidão experimental, distúrbios variados, ao passo que, tratando-se
do segundo caso, o comportamento da personalidade enferma se apre-
senta à psicologia experimental dos rendimentos normal, ou até, por ve-
zes, surpreendentemente supernormal.
Estes tipos polares só raramente é que existem, de maneira pura, na
realidade. Mas a contraposição construtiva permite-nos assumir atitude
fecunda, quando analisamos. Os grupos nosológicos até o momento co-
nhecidos, ou seja, as espécies nosológicas produzem manifestações de um
tipo e outro. Hoje, no entanto, já se sabe com certeza que, por exemplo, os
distúrbios orgânicos conhecidos se relacionam, preponderantemente, com
os mecanismos rendimentais; mas os processos paranoides, com a perso-
nalidade, sobretudo. Grande quantidade de psicoses acarreta, apenas,
destruições; noutras, pode-se dizer que, ainda presente, a mente se con-
serva, de algum modo, em forma estranha, nova para nós; através, no en-
tanto, de todas as destruições.
A polaridade, contudo, penetra a concepção e o ajuizamento que faze-
mos da natureza humana e suas variações; e aparece no contraste entre
inteligência e personalidade.
b) Neurose e psicose.
Chamam-se neuroses os desvios psíquicos que não envolvem inteira-
mente o próprio homem; psicoses, aqueles que acometem o homem total.
Daí também se dar às neuroses as denominações: nervosismo, psicaste-
nia, inibição etc.; as psicoses, entretanto, são as doenças mentais e afeti-
vas.
Em sentido negativo, as neuroses abrangem, portanto, o largo campo
da psicopatia, que se mostra no setor somático (neuroses dos órgãos) e no
estado psíquico, na vivência e no comportamento -(psiconeurose), sem que
se considere doente mental ou afetivo o homem em causa. Em sentido po-
sitivo, o fundamento da moléstia neurótica está nas situações e conflitos
que o homem tem de resolver, no mundo em que vive; os quais só são de-
cisivos, todavia, por força de mecanismos específicos, estes levando a
transformação — que não ocorre nas condições normais — das vivências
em cisões ou dissociações, por exemplo (diversamente das cisões e sínte-
ses sadias); transformação ainda em formações circulares (círculos vicio-
sos), que produzem a autoagravação do distúrbio (diversamente das for-
mações circulares construtivas da vida psíquica).
As psicoses, no entanto, constituem o campo mais estreito dos distúr-
bios psíquicos, que se imaginam, em geral, formando um abismo entre do-
ença e saúde. Fundam-se em processos mórbidos que se acrescentam, po-
dendo ter começado, essencialmente, pôr efeito da herança, a certos perío-
dos da vida, ou também, em essência, podendo resultar de lesões exóge-
nas.
Tanto as neuroses quanto as psicoses se distinguem nitidamente do
estado hígido. Todavia, as neuroses parecem mais apresentar transições
para a higidez humana geral; em primeiro lugar, porque a personalidade
dos doentes não está “alienada”; em segundo, porque fenômenos neuróti-
cos isolados também ocorrem, passageiramente, em pessoas quanto ao
mais sadias (sempre, no entanto, representando pequena minoria da po-
pulação geral). Se bem que nem as manifestações neuróticas, nem as psi-
cóticas se possam compreender como simples exagero ou aumento de vi-
vências e realizações normais, é possível, em todo caso, entendê-las me-
lhor quando se estabelecem analogias: por exemplo, o pensamento esqui-
zofrênico aproxima-se da vivência hipnagógica; as neuroses obsessivas
aproximam-se de certas vivências do cansaço que as pessoas sadias expe-
rimentam e que também se podem chamar, de algum modo, obsessivas.
Outra coisa é poderem todos os fenômenos neuróticos e psicóticos servir
de paradigma a possibilidades humanas gerais, ou seja, a distúrbios do
existir humano como tal. Não significa isso, de forma alguma, sejam elas,
como tais e em grau de certa maneira atenuado, próprias do homem em
geral. Em toda neurose, sempre se nota um ponto em que o indivíduo sa-
dio não compreende e tende a considerar o enfermo, senão louco, pelo me-
nos e com reserva, “perturbado da mente”, no fundo.
As neuroses são campo dos psicoterapeutas; as psicoses, campo do
psiquiatra;1 isto tem validez geral, apesar de muitos casos individuais de
psicoses se tratarem em liberdade e com assentimento do enfermo, ao
passo que casos há nos quais as neuroses chegam a tal ponto que se têm
de tratar em regime hospitalar.

1 Isto não exclui a união pessoal. Pelo contrário, a associação do psiquiatra e do psicoterapeuta na mesma individu-
alidade pode constituir condição de conhecimento claro e de terapia eficaz em ambos os campos.
c) Doenças orgânicas cerebrais e psicoses endógenas.
As grandes psicoses endógenas são doenças cujo fundamento somá-
tico é ignorado, ao passo que as moléstias orgânicas cerebrais são como
tais conhecidas, apresentando também sintomas psíquicos, além de ou-
tros. A questão é saber se este contraste grosseiro é meramente provisório
— até que os processos somáticos mórbidos (que atuam no cérebro) das
psicoses endógenas sejam conhecidos; ou se aqui também subsiste dife-
rença básica.
Durante certo tempo, o contraste afigurou-se superado pelo conheci-
mento da paralisia geral progressiva, da qual se sabia como doença de tipo
psicótico, conquanto não fosse, na prática, nitidamente delimitável, antes
de se lhe conhecerem a causa e o achado cerebral. Entretanto, quando es-
tes (o espiroqueta da sífilis e os achados histopatológicos de Nissl e Alzhei-
mer) foram, posteriormente, reconhecidos, teve-se a impressão de estar em
presença de um caso grandioso, a exigir prosseguimento de estudos; ou
seja, uma psicose seria de atribuir-se a lesão cerebral. As manifestações
psíquicas da paralisia geral perderam muito do seu interesse, a partir daí;
de qualquer maneira, pouco se estudam, hoje em dia. Seria lícito pensar
que, reconhecido que fosse o fundamento somático, da esquizofrenia, nin-
guém mais se interessaria pela vida psíquica esquizofrênica.
Diga-se, por outro lado, que a tarefa da psicopatologia em relação às
manifestações psíquicas anormais da paralisia continua a ser, absoluta-
mente, a mesma; inclusive após a descoberta do processo cerebral; mas
também se diga que o tipo dos distúrbios psíquicos que ocorrem na parali-
sia geral e na esquizofrenia é radicalmente diverso. Num caso, tem-se im-
pressão de um mecanismo de relojoaria haver sido rebentado a machado
— e então as destruições grosseiras interessam relativamente pouco; nou-
tro caso, um mecanismo de relojoaria funciona permanentemente mal,
para e torna a andar — então, podem-se inquirir distúrbios seletivos espe-
cíficos. Mais do que isto ainda, porém: a vida psíquica esquizofrênica é
particularmente produtiva; sua maneira, seus conteúdos, suas represen-
tações podem ocasionar, por si, em certos, casos, interesse inteiramente
diverso; podem gerar assombro, atordoamento ante segredos estranhos, o
que não acontece, neste sentido, relativamente às destruições grosseiras,
irritações, excitações da paralisia geral. Contraste profundo entre as psico-
ses subsiste mesmo depois de conhecermos o processo somático funda-
mental; como há de subsistir, provavelmente, interesse absolutamente di-
verso pelo que é psíquico.
Devemos precaver-nos da absolutização de um ponto de vista, mesmo
que este seja fecundo para a pesquisa e, talvez, decisivo, de quando em
quando, para uma terapia radical eficaz. Também o fato de não ser possí-
vel separar espécies nítidas e, assim, diagnosticar, rigorosamente, unida-
des nosológicas, em caso de psicose, mas só de processos cerebrais, levou,
decerto, a ver na investigação- do cérebro não só uma tarefa entre outras,
como a própria tarefa da psiquiatria. Por outro lado, a pobreza das rela-
ções até o momento conhecidas entre a anormalidade da vida cerebral e a
vida psíquica anormal; a escassa perspectiva de resultados ulteriores para
a psicopatologia, os pressupostos evidentes da relação da psicopatologia
com a vida psíquica levaram a psicopatologia a rejeitar aquela sobrevalora-
ção da anatomia e do somatismo, que, por vezes, se formulara com dema-
siado rigor para a psiquiatria. Dado que a investigação do cérebro se acha,
hoje, mais cientificamente firmada do que a psicopatologia, pode-se com-
preender essa rejeição por parte dos psicopatologistas, que se encontram
em posição excessivamente defensiva. Só dará resultado, contudo, aquela
orientação investigativa que se mantenha nas lindes de seu próprio
campo. Em princípio do século XIX, os exageros psicológicos foram tão vi-
síveis quanto na época da psicanálise; os exageros da anatomia, na se-
gunda metade do século, não foram, por vezes, de vulto muito menor
(Meynert, Wernicke e outros). Hoje em dia, parecem vigorar delimitação e
clareza relativamente a ambas as orientações.
d) Doenças afetivas e doenças mentais (vida psíquica natural e es-
quizofrênica).
A diferença mais profunda que existe na vida psíquica parece ser
aquela a notar entre a vida para nós empática, compreensível, e a vida in-
compreensível, por sua maneira, isto é, a vida desvairada, louca, no. sen-
tido autêntico: a vida esquizofrênica (sem que haja, necessariamente,
ideias delirantes). A vida psíquica patológica do primeiro tipo podemos
apreender, intuitiva- mente, como aumento ou diminuição de fenômenos
que conhecemos e como ocorrência de tais fenômenos sem os fundamen-
tos e motivos normais. Mas só insuficientemente é que apreendemos,
desta maneira, a vida psíquica do segundo tipo. Dão-se, aí, a bem dizer,
alterações das mais gerais, que não podemos vivenciar intuitivamente,
mas que buscamos, por algum modo, fazer compreensíveis de fora.
A língua distingue, de longa data, as meras doenças afetivas da lou-
cura propriamente dita. Para o leigo, são loucura o furor insensato, a con-
fusão sem afetos, as ideias delirantes, os afetos não empatizáveis, a perso-
nalidade excêntrica; e tudo isso tanto mais quanto mais o indivíduo se
mostra, ao mesmo tempo, relativamente lúcido e orientado. Não sendo
este o caso, o leigo não considera, e com razão, estes estados de turvação
da consciência como sendo, propriamente, loucura. Chama doenças afeti-
vas aqueles transportes emocionais profundos, certamente imotivados,
empatizáveis a seu modo, tais como os apresenta a melancolia. Assim
vendo, o leigo atinge uma diferença fundamental dentro da vida psíquica
mórbida, diferença que não nos é possível, atualmente sequer, formular de
maneira clara e segura; que, porém, constitui para nós um dos problemas
mais interessantes a cuja investigação os últimos decênios têm acrescen-
tado muita coisa essencial. As doenças afetivas parecem- nos empatizáveis
e naturais; as loucuras, absolutamente inempatizáveis e inaturais. Porque
a teoria até o momento mais acertada faz os traços particulares desta vida
psíquica incompreensível derivarem de cisões ou dissociações da vida psí-
quica, Bleuler deu-lhe o nome de esquizofrenia, que podemos usar como
simples designação, sem por isso preferir aquela teoria. A partir deste con-
traste, aqui descrevemos dois grupos de sintomas:
1. Se considerarmos os elementos fenomenológicos, encontraremos na
vida psíquica mórbida aqueles que vemos com dificuldade, sim, mas afinal
claramente, em condições favoráveis; e aqueles que nunca podemos ver,
em princípio, que só podemos descrever de forma negativa, isto é, pelo que
não são. Estes elementos que são, em princípio, inacessíveis à nossa visão
psicológica chamamos ¡(esteticamente) incompreensíveis, ou não empati-
záveis; dentre eles podemos destacar com relativa nitidez os seguintes:
Uma qualidade comum que pode marcar quase todos os eventos psí-
quicos e assinala por forma nova a inteira vida psíquica parece ser aquilo
tudo quanto os doentes qualificam de “feito”. Todos temos, perante nossos
eventos psíquicos, a consciência de que são nossos eventos psíquicos; a
consciência de que eu percebo, eu atuo, -eu sinto. Mesmo no comporta-
mento passivo, quando ocorrem ideias obsessivas etc., sempre existe esta
consciência de que são meus eventos psíquicos que eu vivencio. Podemos
sentir o impulso, a obsessão a considerar alguma coisa exata ou correta
como “estranha” -e, entretanto, se bem que pretendendo seja estranha a
toda nossa personalidade, sentimo-la sempre como eflúvio de nosso eu
momentâneo, atual. É sempre meu impulso, mesmo quando o sinto como
ainda tão estranho à minha própria personalidade. Não somos capazes,
em absoluto, de ver intuitivamente o psiquismo senão acompanhado da
consciência do eu. Só negativamente e mediante confronto é que podemos
representar esta vida psíquica alterada em toda a essência; vida na qual o
psiquismo “feito” desempenha papel. Não se trata da estranheza e da ino-
portunidade de processos obsessivos; nem se trata de eventos simples-
mente passivos, como é o caso dos movimentos que meus membros exe-
cutam contra minha vontade impostos por outro indivíduo, conquanto só
com eles se possam comparar os processos feitos. São “feitos” sentimen-
tos, percepções, atos voluntários, estados de ânimo-, do que resulta senti-
rem-se os pacientes constrangidos, dominados por uma força estranha,
sem poder sobre si mesmos, sobre seus movimentos, seus pensamentos,
seus afetos. Afinal, sentem-se, em alto grau, como se fossem apenas mari-
onetes, postos em movimento ou detidos arbitrariamente. Quase sempre
formam, à base destas vivências, o delírio de influência física ou outra
qualquer; influência de aparelhos e máquinas complicados, sob cujo poder
se acham; há também o delírio de influências sobrenaturais que, no caso,
atuam sobre o mundo real. Ficamos conhecendo algumas dentre as mani-
festações feitas na fenomenologia; mas o complexo total respectivo se es-
clarece mediante as autodescrições. Um ex-paciente da clínica de Heidel-
berg, que não tardou a sucumbir a profunda demência esquizofrênica, es-
creveu sobre os fenômenos feitos em estilo que mostra vários traços hebe-
frênicos:
Ocorrera complexo sintomático paranoico, no qual o paciente tudo ob-
servava com espanto: grupos de pessoas, compartimentos de trem visivel-
mente cheios ou vazios, modos de falar etc.: “...sem eu ter a mínima ideia
do que tudo isso podia significar.” “O que é que há é mistério para mim.
No dia seguinte pela manhã, toda essa aparelhagem, ou o que fosse, me
transportou para um estado de ânimo estranho de modo que papai, e ma-
mãe acharam que estava fantasiando intensamente.... A noite inteira,
senti-me perfeitamente lúcido.... A aparelhagem cuja construção me era,
certamente, desconhecida.... dispunha-se de forma tal que cada palavra
que pronunciava me era sugerida por via elétrica; e eu, naturalmente, não
podia fazer outra coisa senão- exprimir os pensamentos neste estado de
ânimo estranho. Quando despertei deste estado absolutamente fora do co-
mum, senti-me muito esquisito. Por isto, disse a papai, mais ou menos, o
seguinte, porque me senti transportado, a bem dizer, para um estado de
ânimo “mortal”: “Papai, tu sabes, tenho de morrer e, por isto, quero agra-
decer-te tudo- quanto tens feito por mim...” Os pensamentos me eram ti-
rados de maneira tal que nem sabia por que tinha de morrer. Era-me su-
gerido.... ou colocado em mim, um humor alegre que não me deixava pen-
sar em mais coisa alguma. Por vezes, recuperava meu modo de pensar na-
tural e, então, dizia: “Bem, que é que eu queria dizer?”. Esta frase* eu a re-
petia a todo momento, sei disso muito bem, mas ideia alguma me acudia.
Estava colocado numa disposição alegre cada vez maior porque, conforme
ouvia falar, só tinha mais cinco minutos de vida.... Desde esse dia, tenho
sido cruelmente torturado.... várias vezes, examinaram-me a consciência
eletricamente, fazendo-me sofrer ao máximo.... Desde esse dia, tenho na
cabeça histórias terríveis de assassinatos, e assaltos, as quais não consigo
de modo algum afugentar.... Anoto tudo isto, porque sou, agora, horrivel-
mente infeliz. Sinto que o aparelho- me está excitando mentalmente cada
vez mais; e já rezei, muitas vezes, para desligarem a corrente e me seja
restituído meu pensamento natural.... Antes de mais nada, não é absolu-
tamente agradável o nome que ouço: “Vagabundo”, que não consigo tirar
da cabeça.... Aliás, veio-me a ideia de que papai e mamãe também esta-
vam sendo eletrizados; o que percebia claramente pelos movimentos do
semblante de meus pais, quando me ocorriam aquelas ideias frequente-
mente pavorosas.... mais tarde, foi-me colocado na mente, por via elétrica,
que tinha de matar Lissi; como isso me tirou a fala por algum tempo, o
aparelho me disse: “Você comprometeu-se muito”. — Estas ideias são, po-
rém, naturalmente, antinaturais, embora eu esteja perfeitamente senhor
de minha mente... Em meio a um calor horrível, produzido pela eletrici-
dade, foram-me gritados os nomes: “Patife, ordinário, sem vergonha, anar-
quista”. Aliás, o último destes nomes me ficou rodando na cabeça alguns
minutos.... Como meus pensamentos são entendidos- tão exatamente e
como o aparelho me grita frases inteiras, o fato é que sei perfeitamente
que quase nada disso são meus próprios pensamentos; o que para mim é
grande mistério. Deve ser muito complicada, esta aparelhagem que me
põe em seja qual for disposição de ânimo; por exemplo: séria, alegre, riso-
nho, chorão, zangado, bem-humorado.... Por várias vezes, enquanto me
examinavam, nos primeiros dias, também me puseram num humor infer-
nal, que compreendi muito bem — amistoso, taciturno, enérgico, distra-
ído, atento, parada dos pensamentos num ponto até chegar à inconsciên-
cia, ou mesmo à alienação — Lembro-me de uma tarde em que, real-
mente, não soube o que estava pensando — melancólico, confuso etc.
Toda a aparelhagem estranha também é capaz de dar-me sono, de fazer-
me dormir de repente (cf. o sono radiante de Schreber); de tirar-me o sono,
de desenvolver sonhos em mim, de despertar-me a cada momento.... e
também de desviar-me os pensamentos, e até de dar-me movimentos...
Tento lutar com a maior energia contra os pensamentos, mas não con-
sigo nem. com a máxima boa vontade.... porque, além do mais, os pensa-
mentos me são arrancados. Mesmo quando leio, seja o que for, não con-
sigo dar ao conteúdo do livro atenção suficiente; quase a cada palavra me
acode um pensamento à margem.... Gostaria de acentuar um ponto: é que
me vem um riso tão exagerado, isso me acontece muitas vezes, embora
não me atormente, mas me afeta de modo muito estranho, sem que quase
possa lutar em contrário. Este riso, que não é absolutamente doloroso, me
é transmitido quando penso nalguma coisa muito tola. — Quando se lê
tudo isto, parece ser a maior loucura que jamais foi escrita; nada posso,
contudo, comunicar senão que senti tudo isso, de fato; mas não compre-
endi, infelizmente. Só o compreenderá aquele que houver sido torturado
como eu por um aparelho assim.... Se alguém me dissesse, ao menos, o
que tudo isto quer dizer.... Sou horrivelmente infeliz.” — O paciente dirige-
se, em seu desespero, ao procurador-público, pedindo-lhe que mande des-
ligar o aparelho, “porque noto, devido à minha grande capacidade de aten-
ção, o mínimo desarranjo de meus pensamentos e o mais ligeiro deslise,
que seria muito prejudicial à minha profissão de regente de orquestra....
Diariamente, fazem-me sugestões.... Peço licença para acentuar outro
ponto: em minhas voltas de bicicleta, tem-se produzido com frequência ta-
manho furacão que, embora me obrigue à maior pressa, além de me dar
falta de ar, sede, etc., me custa muitíssimo defender-me contra ele... Por
isto, rogo a V. Exa., mais uma vez, que mande devolver-me meus próprios
pensamentos.”
Neste caso — de um esquizofrênico que demenciou rapidamente —
trata-se de complexo fenomênico que consiste no “feito”. Vivências desta
ordem são ainda mais nítidas, às vezes, nos paranoicos permanentemente
lúcidos, que jamais demenciam. Também se observam, constituindo acon-
tecimentos absolutamente isolados, em pacientes que se acham no co-
meço do processo e que, quanto ao mais, dão a impressão de neuróticos.
Por exemplo: um doente nos contou na Policlínica:
Se encontro na rua uma pequena limpa, noto que o membro me endu-
rece; é assim uma espécie de sentimento, uma excitação pouco natural. A
essas horas, alguma coisa não anda certo. Só posso dizer que alguma
coisa não anda certo.
Além dos fenômenos feitos, há, é claro, outros elementos vivenciais que
nos são inteiramente inacessíveis. Dentre eles só se destacam, por vezes,
com mais precisão aquelas sensações do corpo e dos órgãos inteiramente
anormais que, no entanto, é difícil distinguir das falsas-sensações comuns
a tantos doentes. Alguns esquizofrênicos arranjam palavras novas — por
exemplo, os zirrt e quejandas — para suas sensações corpóreas absoluta-
mente impossíveis de descrever.
2. Se rastreamos o comportamento e os gestos, os atos e o estilo de
vida de um indivíduo por forma compreensivamente genética, chegaremos
sempre a um limite; na vida psíquica esquizofrênica, porém, já atingimos
limites em que ainda poderíamos compreender, normalmente; e achamos
incompreensível aquilo que aos pacientes não se afigura, em absoluto, in-
compreensível, mas, pelo contrário, plenamente fundamentado e de modo
algum estranho. Por que um doente se põe a cantar no meio da noite; por
que tenta o suicídio; por que, de súbito, se enfurece contra os familiares;
por que o fato de uma chave estar em cima da mesa o excita tão extraordi-
nariamente etc.: o próprio enfermo considera isso a coisa mais natural do
mundo, mas não pode fazer-nos compreendê-lo. Apresentam-se-nos, à ex-
ploração, motivações insuficientes, elaboradas a posteriori. Ora, se seme-
lhante comportamento já nos chama a atenção em pessoas lúcidas e pro-
dutivas, quando lhes falamos a respeito da vida que levam, tanto mais
grotesco se mostra essa incompreensibilidade em numerosos estados psi-
cóticos agudos; é só o costume de os ver frequentemente que no-los faz
parecer menos notáveis; vemos, então, doentes que compreendem perfei-
tamente: que não têm turvação da consciência; que são plenamente orien-
tados, mas fazem gestos furiosos, incompreensíveis, executam atos e mo-
vimentos também impossíveis de compreender, dão produtos absoluta-
mente desconexos verbais e escritos (incoerência); e, entretanto, daí a um
instante, podem exprimir-se e proceder de modo que nada tem de incoe-
rente; e após o curso da psicose não veem nada estranho nisso, dizendo,
talvez, que estavam brincando, ou querendo pregar uma peça etc.
Nessa incompreensibilidade procurou-se um fator central. Todos os
impulsos inesperados, os afetos incompreensíveis e as faltas de afetos, as
pausas súbitas na conversa, as ideias imotivadas, a gesticulação que faz
pensar em dispersão mental, todas as demais manifestações que só por
forma negativa podemos, realmente, descrever, devem ter alguma base co-
mum. Teoricamente, fala-se em incoerência, cisão, fragmentação da cons-
ciência; ou em ataxia intrapsíquica, fraqueza da apercepção, insuficiência
da atividade psíquica, distúrbio da tensão associativa, etc. Chama-se o
comportamento excêntrico, tolo, mas todas as palavras exprimem, afinal,
a mesma coisa: existe uma “incompreensibilidade” comum.
Constata-se que, a bem dizer, nenhuma função psíquica está faltando
em definitivo; portanto, não pode um distúrbio funcional particular consti-
tuir o fator central. Veem-se complexos sintomáticos não-esquizofrênicos
aparecerem em esquizofrênicos, dando a estes o “colorido” peculiar; assim
é que há complexos sintomáticos maníacos e depressivos mergulhados em
atmosfera esquizofrênica. Temos a intuição de um todo, que se chama es-
quizofrênico; mas não o apreendemos; apenas enumeramos uma série de
particularidades ou dizemos: incompreensível-, cada um de nós só com-
preende esse todo por sua experiência própria, em contato com pacientes
desta ordem.

§ 3. Os Complexos Sintomáticos

a) Quadro de estado e complexo sintomático.


Quando se querem formar tipos totais de unidades nosológicas, a psi-
copatologia geral presta ainda um serviço preliminar, investigando psicolo-
gicamente os complexos sintomáticos. Desde que aprendemos a ver no
curso da doença um dos marcos mais importantes para o agrupamento
nosológico, distinguimos os quadros 'de estado, que são a forma por que
se manifesta a moléstia, do processo mórbida total. Se quisermos caracte-
rizar mais facilmente esses quadros de estado, formamos os conceitos de
complexos sintomáticos; e encontramos certos acoplamentos de sintomas,
que podem valer como tipos dos quadros de estado e permitem o ordena-
mento das inúmeras variações. Emminghaus já descrevia como complexos
sintomáticos a melancolia, a mania, o delírio, a alienação, a demência; e
falou- se em complexos sintomáticos como formações evidentes, porém re-
solvidas, quando a ideia de unidade nosológica era a única a ocupar o pri-
meiro plano do interesse. Em nossos dias, contudo, voltou-se a promover,
em princípio, o estudo desses complexos, supondo-se que se deva estudá-
los em si, sem consideração de unidades nosológicas e processos mórbi-
dos, e investigar as regularidades, bem como as necessárias correlações
nele existentes, assim criando unidades que estejam entre os fenômenos
elementares de toda sorte e as unidades nosológicas; por assim dizer, a
meio-caminho de uns e outras.

b) Pontos de vista pelos quais se formam complexos sintomáticos.


Hoje, exatamente da mesma forma que ao psiquiatra de há cem anos,
a observação obriga-nos a reconhecer certos quadros típicos que de longa
data se aceitam como complexos sintomáticos. Mas por que pontos de
vista se hão de formar estes tipos? Complexos sintomáticos podem-se cha-
mar muitas coisas diversas. Afinal de contas, é questão meramente termi-
nológica, se se quiser ou não chamar também complexos sintomáticos,
por exemplo, uma forma reativa, um tipo caracterial, um ataque etc. O
fato é que todas as formações unitárias cuja essência é única e precisa
aparecem, em certos lugares da psicopatologia geral, sob o aspecto de co-
nexões causais, de conexões geneticamente compreensíveis, de tipos de
personalidade. Consideram-se abrangidas pelo círculo dos complexos sin-
tomáticos as restantes formações unitárias que têm surgido pelo efeito
conjunto de vários pontos de vista e quase sempre de maneira metodologi-
camente obscura, impondo-se, entretanto, pela experiência objetiva. Os
pontos de vista, dentro dos quais várias coincidem quando se formam al-
guns complexos sintomáticos, são os seguintes, quando os consideramos
em separado:
1. Manifestações ou fenômenos objetivos e subjetivos que se impõem.
Começou-se pelo que mais se exterioriza e denominaram-se objetivos
aqueles fenômenos de tipo mais visível; por exemplo, o estupor (todos os
estados dm que, vigil a consciência, já não se reage, em geral, a quaisquer
perguntas e situações, permanecendo os doentes imóveis, na mesma posi-
ção); o furor (estado de excitação), que apenas exprime o fato da excitação
motora (psicoses da motilidade); a confusão (incompreensibilidade e incoe-
rência dos atos e manifestações orais); a paranoia (significando o apareci-
mento de ideias delirantes no mais amplo sentido); a alucinose etc. Estas
designações ainda são de uso corrente, hoje em dia, representando meras
denominações de fenômenos objetivos (segundo os pontos de vista da psi-
cologia dos rendimentos). Se se quiser levar adiante a investigação, ter-se-
á de esclarecer a gênese dos sintomas sequer externamente semelhantes e
das maneiras vivenciais subjetivas dos pacientes.
Superficialmente, ainda restam aqueles conceitos de quadros de es-
tado que consideram a vivência subjetiva das disposições de ânimo bási-
cas (depressão, melancolia, psicose ansiosa, mania, êxtase).
2. Frequência do aparecimento simultâneo. São vários os pontos de
vista pelos quais se unificam os elementos dos complexos. Alguns autores
já consideraram único o ponto de vista pelo qual formam complexos sinto-
máticos aqueles sintomas que aparecem simultaneamente com a maior
frequência. A verdade é que se tem investigado pouco a frequência do apa-
recimento simultâneo de certos sintomas. São interessantes as cifras fre-
quenciais apresentadas pela Psychologie der Schizophrenen de Carl
Schneider (1930). Abstraindo isso, a evidência peculiar com a qual sempre
se reconhecem certos agrupamentos sintomáticos e a necessidade convin-
cente que se prende a estes agrupamentos ainda devem ter, contudo, ou-
tras fontes.
3. Conexão de sintomas. Uma destas fontes é a “conexão” compreensí-
vel que os sintomas de um complexo guardam entre si. A alegria, o júbilo
motor, a logorreia, o gosto da brincadeira e da atividade, a fuga-de-ideia e
tudo mais quanto é acertado fazer derivar daí compreensivelmente não
formam o quadro da hipomania “pura” pelo fato de constituírem, assim
apresentando-se, além da depressão, o quadro mais comum das doenças
afetivas (ao contrário, os “estados mistos” são, de fato, tanto mais frequen-
tes quanto mais exatamente se investiga); e sim pela circunstância -de que
o quadro total constitui para nós uma unidade “compreensível”. Ao lado
da depressão pura, este é o tipo psicológico ideal das moléstias afetivas,
das quais em absoluta não conhecemos o tipo médio, devido à deficiência
da pesquisa.
Outra fonte da unidade de complexos sintomáticos é o traço igual, que
se ajusta a uma categoria de sintomas quanto ao mais bem heterogênea.
É o que se dá, por exemplo, quando se rubrica, sumariamente, como neu-
rasténico tudo quanto é “feito” aos pacientes, no complexo paranoico', to-
dos os fenômenos motores anormais» uma vez que não se expliquem neu-
rologicamente, nem psicologicamente se compreendam, no complexo cata-
tônico', todos os -eventos que se possam considerar resultantes de “excita-
bilidade” ou “fraqueza” excessiva. Neste particular, desempenha papel a
ideia de uma causa extraconsciente unitária.
Carl Schneeder tentou apreender as “leis da formação sin- drômica”,
quando, nas peculiaridades formais da vivência atuativa, isto é, nas pecu-
liaridades com que uma função formal básica se mostra perturbada, pre-
tendeu reconhecer o que há de comum e o que dá origem a uma quanti-
dade de sintomas.
4. Sintomas primários e secundários. Princípio fundamental da análise
dos complexos sintomáticos é a distinção entre sintomas primários, pro-
duzidos logo de início pelo processo mórbido, e sintomas secundários, que
só aparecem com a elaboração ulterior. Deve-se esclarecer a ambiguidade
de sentido entre primário e secundário:
aa) Chamam-se sintomas primários, simplesmente, às vezes, os sinto-
mas elementares, que são importantes, sobretudo, como irrupções estra-
nhas, para o diagnóstico da esquizofrenia. Neste caso, secundário é tudo
quanto não constitui evento psíquico elementar, venha donde vier.
bb) Primário é aquilo que é dado imediatamente; que a compreensão
não pode mais reduzir; por exemplo, as disposições impulsivas; secundá-
rio é aquilo que nos vem a ser empaticamente compreensível a partir do
que é dado; por exemplo, a simbolização de um impulso (amor dos gatos,
em lugar do amor materno frustrado); Assim é que são primárias as vivên-
cias delirantes, a alucinação; secundários, o sistema delirante que se
forma pelo trabalho racional; a excitação compreensível que resulta do
conteúdo da experiência delirante; o “delírio de explicação” (Wernicke) (ela-
boração de vários eventos mórbidos pela psique ainda sadia).
cc) Primário é aquilo que resulta, diretamente, do processo mórbido;
secundário, o efeito na situação do perimundo, que se associa, compreen-
sivelmente, ao defeito. Primário, por exemplo, é o distúrbio da capacidade
de fixação na síndrome de Korsakov; secundário é o distúrbio da orienta-
ção que daí resulta, necessariamente. Primária é a afasia sensorial; secun-
dário, o distúrbio (relativamente muito grande- em todas as referencias
aos outros homens) que ocorre, por força da. situação, no afásico sensorial
em oposição, ao afásico motor (Pick); por exemplo: o afásico sensorial
apresenta-se transtornado em toda sua inteligência, porque não pode
mais compreender o ambiente, nem se orienta ordenadamente, ao passo
que o afásico motor, abstraído seu distúrbio expressivo, se afigura muito
menos defeituoso, pois consegue orientar-se bem e encontrar outras ma-
neiras de fazer-se entender.
dd) Entre aqueles a que temos acesso direto, são primários os sinto-
mas particulares causados, ¡mediatamente, pelo processo mórbido; secun-
dários, aqueles sintomas resultantes de alteração psíquica geral que se
originou, simultânea, da interação com o meio. São, assim, primários: o
estado de obnubilação, o ataque epilético, a cefaleia; secundários, alguns
delírios esquizofrênicos agudos que aparecem em reação a uma vivência
(Bleuler); estes delírios representam reação- peculiar da constituição psí-
quica esquizofrênica; e reação, por sua vez, originada, juntamente com os
sintomas primários, do processo mórbido que se há de considerar somá-
tico (elaboração dos estímulos normais- do mundo exterior-pela psique en-
ferma).
ee) Primário é aquilo causado diretamente pelo processo mórbido; se-
cundário, aquilo causado ulteriormente por estes primeiros' efeitos e jun-
tamente com eles. Entre os efeitos de álcool, é primária a embriaguez; se-
cundária, a alteração psíquica permanente do alcoolista crônico; ainda se-
cundários: o delírio, a alucinose alcoólica, a síndrome de Korsakov.
c) Significação real dos complexos sintomáticos.
Quando confrontamos quadros de estado reais com o tipo de um com-
plexo sintomático, costumamos dizer que existe diversidade “gradual” na
plenitude ou não-plenitude da realização: diversidade que é puramente ex-
tensiva — quer dizer, há mais ou menos traços particulares pertencentes
ao complexo — ou a diferença se concebe como sendo intensiva: repousa,
então, a diversidade no fato de o- processo subjacente condicionar, em
dado caso, certa maneira mais intensa pela qual os mesmos fenômenos se
manifestam. Assim é que se concebem graus, por exemplo, entre a hipo-
mania e a confusão maníaca, passando pela mania evoluída.
Na análise do caso particular, temos ainda de refletir que os. traços de
vários complexos sintomáticos se podem associar no quadro de estado in-
dividual. São complexos sintomáticos nítidos, correspondendo a uma des-
crição tipificante, aqueles casos puros ou clássicos. A maior parte dos ca-
sos apresenta, todavia, combinações, de modo que só a experiência mos-
tra a que ponto se esclarecem esses quadros, confrontados com complexos
sintomáticos típicos, quando concebidos como mistos.
Mais ainda: os complexos sintomáticos não são arbitrariamente uni-
versais. Antes indicam sempre um campo mais ou menos amplo das do-
enças com que se relacionam preponderante ou inteiramente. E talvez, os
complexos sintomáticos, a seu turno, que se têm, em geral, imaginado ve-
nham a apresentar modificações peculiares dentro de grupos nosológicos
delimitáveis. Por exemplo, o complexo sintomático amnésico acompanha-
se, nos casos de senilidade, de confabulações numerosas, ao passo que
quase não se apresentam após traumatismos cranianos.
Em lugar da explicação causal dos complexos sintomáticos, que, até
hoje, não se conseguiu, temos ideias teóricas configurando- possibilida-
des:
Poderiam, repousar em “qualidades cerebrais individuais” (Hoche), isto
é, na constituição e disposição do indivíduo, o qual tenderia a reagir, de
preferência, com estes ou aqueles sintomas de conexões fenomênicas, que,
por si, estariam, em geral, preformados. É o que talvez indiquem as cone-
xões hereditárias que vemos nos círculos constitucionais. Seria admissível
que estados afetivos paranoicos, motores, maníaco-depressivos, ou síndro-
mes neurasténicas, histéricas etc. se baseassem em predisposição trans-
missível por herança; predisposição que apareceria, na realidade, quando
qualquer moléstia a ativasse. Para a maior parte dos casos, é utópico con-
ceber estes complexos sintomáticos em termos de topografia cerebral; tal-
vez se possa aceitar, de algum modo, semelhante concepção no tocante a
complexos sintomáticos orgânicos e distúrbios da consciência.
Kraepelin pretende ver os complexos sintomáticos segundo uma ordem
gradual: O tipo respectivo seria condicionado pelo grau de destruição e pe-
las funções que ainda restassem. Quando estivessem destruídas partes
superiores do sistema nervoso, desinibir-se-iam graus inferiores (fato neu-
rológico que, no caso, se transpõe, analogicamente; para a psiquiatria). O
paralelo com graus evolutivos filogenéticos e ontogenéticos deve significar
o aparecimento do que é mais primitivo, quando se dá destruição das mais
intensas; por exemplo, os movimentos catatônicos em círculos, semelhan-
tes aos de alguns animais. É uma possibilidade que talvez represente, em
certos casos, interpretação sugestiva.
Se, por um lado, de nenhuma das meras especulações possíveis que
até o momento expusemos significação real alguma decorre para os com-
plexos sintomáticos, doutro lado, no entanto, Carl Schneider tentou, pela
primeira vez, observando as doenças esquizofrênicas, encontrar esta signi-
ficação real em processos biológicos que se manifestam através de sinto-
mas associados (associações de sintomas).

d) A teoria de Carl Schneider das associações de sintomas esquizofrêni-


cos.
Schneider vê o estado atual da psiquiatria como um caos de rumos in-
vestigativos. A psicopatologia e a somatopatologia, a teoria da localização,
a biologia hereditária, a neurologia trabalhariam com conceitos absoluta-
mente diversos sobre a essência dos processos vitais; multiplicidade esta
dos pontos .de vista divergentes que encobriria as regularidades biológicas
unitárias. Faltaria aos pontos de vista em vigor a diretiva de uma hipótese
de investigação geral que, partindo da apreensão dos processos vitais, “re-
gule a interrelação dos ramos individuais e possibilite a verificação recí-
proca das inferências particulares baseadas nos setores vizinhos. Cada
disciplina deixa de considerar seguros os achados das outras e apraz-se,
todavia, em confirmá-los, complementá-los, dar-lhes prosseguimento. O
ponto de partida de todas elas, entretanto, é por demais heterogêneo para
poderem colaborar umas com as outras no sentido de aprofundar a meto-
dologia’*. Pois bem, é esta hipótese de pesquisa geral e necessária que
Schneider pretende poder formar com base na observação das associações
de sintomas. Em primeiro lugar, apresentamos, brevemente, uma exposi-
ção dogmática de sua teoria; depois, informaremos sobre a respectiva fun-
damentação; por fim, tentaremos uma crítica.
1. Linhas gerais da teoria. Na esquizofrenia, distinguem- se três associ-
ações de sintomas, cada um dos quais aparece puro por si, combinando-
se, porém, na maior parte dos casos, quer no quadro de estado, quer com
o decurso do tempo; caso em que, entretanto, também se desenvolvem in-
dependentes e paralelos. Existem as seguintes associações que se denomi-
nam de acordo, com o sintoma principal:
• Associação de roubo-de-pensamento. Vivências filosóficas e reli-
giosas — escapamento de pensamento — roubo-de-pensamento-
perplexidade — Imposição de pensamentos ou pensamentos “da-
dos" — vivências feitas, que são impostas, ou em que a vontade é
tirada do paciente — Descarrilamentos verbais — interceptações
(bloqueios).
• Associação da digressividade. Pensamentos em salto — paralisia
dos afetos e pobreza dos impulsos, falta, de dinamismo vital,
elasticidade e reatividade — amortecimento do pesar e da alegria
— estados de ansiedade, fúria, pranteamento, desespero — alte-
ração dos sentimentos corpóreos, da percepção do próprio soma;
alucinações físicas.
• Associação do disparatamento. Delírio de significação, vivências
delirantes primárias — Pensamento confuso e disparatado —
Desinteresse pelas coisas e valores objetivos — Desagregação —
Afetos inadequados — Impulsos parabúlicos.
A cada associação de sintomas corresponde uma vivência que lhe é
concretamente peculiar', à associação do roubo-de-pensamento, -o senti-
mento de estranheza das ideias próprias e a sonorização do pensamento; à
associação do disparatamento, o delírio primário de significação; à associ-
ação da digressividade, os distúrbios dos sentimentos gerais e as alucina-
ções corpóreas.
Os sintomas individuais ou particulares destas associações não têm,
entre si, evidentemente, qualquer conexão, psicológica ou outra, pela qual
se possam compreender como derivando um do outro, ou correlacio-
nando-se: apenas se observam em seu aparecimento fatual concomitante.
A correlação entre eles deve basear-se numa associação normal de fun-
ções psíquicas, associação que — por si só em casos puros — seria atin-
gida pela doença. Daí corresponderem aos complexos sintomáticos associ-
ações normais de funções cuja existência só a observação patológica per-
mite reconhecer. Estas associações de funções são os radicais biológicos.
Surge, então, “nova hipótese da estrutura da vida psíquica”, assim se ex-
primindo: Na vida psíquica sadia, vários processos psíquicos estão sempre
reunidos em grupos de funções, isto é, em unidades biologicamente autô-
nomas.
No indivíduo sadio, as associações atuam entrelaçadas ao máximo: no
esquizofrênico, elas só se isolam pelo fato de poderem alterar-se em parti-
cular por força do processo mórbido. Quando há lesão, “os diversos grupos
de funções, unitárias em si, respondem, segundo leis que lhes são ineren-
tes, pelas associações autônomas de sintomas.
Surgiu, portanto, novo conceito de “elemento”. As associações de fun-
ções são os elementos de toda vida somatopsíquica. “A associação de sin-
tomas é, por assim dizer, o elemento biológico da psiquiatria, tal qual o
átomo é o elemento da física e da química; o estrato, o elemento da geolo-
gia”.
Não são estáticos, mas dinâmicos, estes elementos novos. As associa-
ções atuam umas sobre as outras, num jogo das reações biológicas entre
si e entre a respectiva alteração patológica e o indivíduo sadio. O modo por
que se desenvolvem resulta de sua interação com o mundo. O evento pato-
lógico permite ver a dinâmica desse processo, criando fundamento experi-
mental para que se percebam as diferenças da vida psíquica em geral.
As associações de funções não são, porém, o derradeiro, pois há, acima
delas, a diretiva que provém da vida em sua totalidade. E por cima delas
pode irromper o processo mórbido esquizofrênico, que dela se apodera se-
letiva ou completamente.
Vamos resumir: Para a observação, é. decisivo que a existência das
três associações de sintomas e, concomitantemente, das associações de
funções que lhes correspondem se mostre na maneira por que se compor-
tam em condições variáveis. Para a hipótese, é decisivo o pensamento dos
radicais biológicos das funções psíquicas. Pensar, sentir, querer e todas as
demais categorias vivenciais psicológicas que a psicologia conhece, até o
momento presente, estruturam-se a partir de processos biologicamente
heterogêneos. Nas associações originárias de funções, pelo contrário, reali-
zam-se processos vitais que se acham por trás da consciência e seus múl-
tiplos conteúdos, afetos, impulsos; que a dominam e que, com base nela,
se podem reconhecer em certas condições; processos que, só eles, e não a
consciência imediata, com suas vivências, se podem comparar aos proces-
sos vitais do evento corpóreo.
2. Fundamentação da teoria. A existência das associações de sintomas
mostra-se, de início, à visão clínica. A observação de raros casos “puros”
(“esquizofrenias incompletas”), em que apenas aparece uma associação de
sintomas, faltando inteiramente os demais, possibilita encontrá-las. Por
conseguinte, a combinação dos sintomas dentro das associações repousa
não numa construção, e sim em sua coincidência, excluídos os demais
sintomas esquizofrênicos.
Mais ainda: prova-se a existência das associações pelo seu comporta-
mento. Dentro das associações individuais, mostra-se, do ponto de vista
clínico, uma sequência frequente em relação ao aparecimento dos sinto-
mas, uns após outros. À terapêutica, as várias associações respondem de
forma diversa: a associação do disparata- mento responde, de modo espe-
cial, à insulina; a da digressividade, â ação convulsivante; a do roubo-do-
pensamento, à praxiterapia. Com referência ao prognóstico, têm significa-
ção diferente as três associações: a associação do roubo-pensamento
tende à cura, ou à inatividade biológica, ao passo que as outras duas as-
sociações são de prognóstico, essencialmente, pior. Quanto mais pura a
síndrome da associação do disparatamento, mais desfavorável o prognós-
tico geral.
As associações de funções não se observam, mas se inferem. A existên-
cia delas é uma hipótese, que se apoia não só nas observações clínicas,
mas na história evolutiva durante a puberdade: a sucessão das três fases
típicas da adolescência deve interpretar-se como desenvolvimento em se-
parado das três associações de funções. Ainda pode-se encontrar apoio na
observação das vivências hipnagógicas, as quais — analogamente às vi-
vências esquizofrênicas — também mostram variações conforme a diversi-
dade das três associações de funções. Sob o aspecto clínico, são até de ob-
servar-se as correlações típicas de certos fenômenos metabólicos.
Schneider acentua o fato de muitos dentre estes argumentos não se-
rem absolutamente verificações em definitivo. A importância heurística de
sua hipótese residiria em que ela possibilita estas indagações e, daí, certas
investigações possíveis de executar. Finalmente, a enumeração “mais não
produzirá do que produz uma lei biológico-genética ou biológico-constitu-
cional, baseada no censo dos casos individuais com determinadas caracte-
rísticas conexas”. As “leis nosológicas” derivam — em analogia com o mé-
todo de Kretschmer — dos casos “puros” e, a seguir, da respectiva relação
com a massa de combinações e realizações parciais. Schneider ainda não
dá confirmações estatísticas, nem expõe a maneira por que se desenvol-
verá o censo para estes fins cognitivos. Só numa clínica em que se faça
praxiterapia é que será possível comprovar- lhe internamente as observa-
ções.
3. Crítica. Em oposição à atitude que se manifesta na rejeição dos com-
plexos sintomáticos por parte de Hoche e Cramer, pretende antes Schnei-
der, positivamente, quando se ocupa com o problema, ganhar o conheci-
mento psiquiátrico central. Por um lado, rejeita a ideia de unidade nosoló-
gica de Kraepelin, que, a seu ver erradamente pressupõe ser a mesma a
classificação das psicoses, quer se faça sob pontos de vista etiológicos, ou
psicopatológicos, ou anatomopatológicos; e que vê os fatos apenas de ma-
neira aditiva, além de pressupor-lhes dogmaticamente as correspondên-
cias. Com semelhante crítica, Schneider de modo algum atinge a ideia kra-
epeliniana, e sim, somente, uma de suas formulações esquematizantes;
não obstante, é a uma ideia análoga de totalidade que ele próprio se
apega: a ideia de uma dinâmica do evento vital em interação de associa-
ções de funções, as quais são dirigidas pelo todo dá existência. Assim pen-
sando, Schneider perdeu de vista a ideia de unidade nosológica: as associ-
ações de sintomas são, também aqui, o sucedâneo inevitável, ganhando,
porém, significação pela outra ideia da estrutura vital. As associações de
sintomas não servem para reconhecer e delimitar a doença “esquizofrenia”
na essência respectiva, mas, sim, se Schneider está certo, permitem perce-
ber de que modo se estrutura a vida psíquica. Sua ideia dá à sua -obra a
vibração inegável que a destaca dentre a massa de toda a bibliografia.
A ideia, como delineamento do esquema respectivo, transforma-se,
contudo, em teoria; e esta, porque deve ser a “posição referencial” que ga-
ranta, “sem antecipação especulativa”, uma correlação biológica dos pro-
cessos vitais individuais, vem a constituir, de fato, nova dogmática do ser.
Esta teoria da totalidade estabelece os elementos básicos da vida, tal qual
a física estabelece os da matéria nos átomos. Não mais se busca um “dis-
túrbio básico” da esquizofrenia, mas um evento básico do todo psíquico,
com suas associações de funções, perturbadas as quais se dão as várias
manifestações.
Mostra-se a pujança da ideia em que a nova concepção vincula, por as-
sim dizer, esforços investigativos e conceitos básicos, além de transformar-
se em ponto nodal de conhecimentos existentes. “Funções” e associações
de funções, concepções biológico-genéticas e psicológico-evolutivas — tudo
se conjuga para compor o quadro da totalidade; quadro que, ele próprio,
em sua forma teórica, se coloca na linha da pesquisa de “radicais” (ele-
mentos, unidades dinâmicas básicas, como unidades genéticas que for-
mam complexos de características pesquisáveis).
Invalida esta teoria aquilo que é comum a todas as teorias transforma-
das em teorias da totalidade: o fato de repousarem em largo círculo de
condições interdependentes; círculos a cujos elos falta certeza plena, seja
a que ponto for; que incluem em si e no todo tantas presunções que todos
os fatos se fazem acessíveis à interpretação neles baseada, sem coisa al-
guma provar-se, realmente. O que pode orientar a pesquisa, como ideia de
totalidade e mediante esquemas que se desenvolvem, vem a ser, sob o as-
pecto de teoria de caráter universal, inevitavelmente falso.
Daí não se indagar, essencialmente, se esta teoria é verdadeira ou er-
rada, mas, sim, o que se reconheceu, factualmente, pela via nova de uma
teoria concernente às associações de sintomas. A ideia de Kraepelin per-
mitiu estabelecer, conforme reconhece Schneidek, uma quantidade extra-
ordinária de fatos clínicos. Que resultados deu, até o momento presente, a
nova concepção?
O ponto de partida para a observação foram as três associações de sin-
tomas esquizofrênicos, cuja existência é o fundamento do edifício inteiro.
Separá-las é tentar, em vão, como já se fez, encontrar dentro da esquizo-
frenia delimitações e separações precisas das formas nosológicas. A escola
de Kraepelin fez uma experiência fundamental que, com a coleta e descri-
ção incansável dos fenômenos ocorridos nos casos individuais, consistiu
em querer separar, desde o começo da instalação da demência precoce,
grupos particulares dentre a massa geral. Foram repetidas as ocasiões em
que isso pareceu lograr êxito momentâneo; as descrições clínicas mostra-
ram-se convincentes e os diagnósticos se fizeram à base das novas unida-
des mais restritas. A seguir, porém, apresentaram-se transições e combi-
nações, pelo que novamente se abandonaram as discriminações encontra-
das. Esta é uma experiência de decênios, fazendo ver com cepticismo
quaisquer tentativas novas que pretendam exceder descrições tipológicas
de uma variedade fugidia de formas clínicas. Com semelhante método de
dissolução em muitos quadros mórbidos especiais, teve-se a impressão de
trilhar, outra vez e ao infinito, a infrutífera senda da velha psiquiatria.
Hoje, mais se exige do que a descrição clínica de casos típicos, quando se
tem de delimitar uma unidade: tem-se de fornecer a prova mediante ob-
servação permanente de uma massa total de casos, mediante biografias
concretamente estabelecidas, associadas a estatísticas; e tem-se, ao
mesmo tempo, de alcançar certo resultado que, daí a um ano, não se der-
rube, simplesmente, nem tacitamente se esqueça por meio de exemplos
em contrário. Nesta linha de tentativas discriminativas, Schneider assume
encargo novo, não pretendendo delimitar unidades nosológicas (nem divi-
dir a esquizofrenia em subgrupos diagnosticáveis); nem ainda querendo
descrever complexos sintomáticos típicos que apresentem transições fugi-
dias entre si e se façam significativos através de conexão interna evidente.
Mas espera, antes, apreender unidades associativas de funções que estru-
turem tanto a vida psíquica normal quanto a esquizofrênica e só sejam re-
conhecíveis, discriminativamente, no estado mórbido que atinge, por
forma seletiva, as associações. Daí Schneider desprezar os esforços passa-
dos como “experimentação, ou separação e ajuntamento incessantes de
síndromes variáveis em grupos nosológicos que se supõem biologicamente
fundados”, ele próprio julgando-se no rastro de elementos biológicos reais.
Apenas começa, porém. Quem nos diz que, por esta via, também a infini-
tude não há de, dentro em pouco, fazer-se evidente em nova forma?
Schneider considera a formulação das três associações marcos iniciais.
Mas observá-las pelas comunicações de Schneider não me parece que
convença. É admissível que nem existam, no sentido em que ele fala.
Com a tese fundamental das três associações de sintomas e de funções
entre si correspondentes, tese na qual se entrelaçam a observação clínica
e a teoria, o todo ergue-se e tomba. A observação futura é que ainda há de
ensinar se as três associações de sintomas existem como unidades sepa-
ráveis em sentido que não seja o tipológico e, portanto, como realidades
verdadeiramente diversas e concluídas em si. Pode ela — a observação —
conforme se pronuncia Schneider, encontrar a prova por meio, apenas, de
estatísticas (para o que, é indispensável toda crítica metódica em relação
ao que se pode recensear e em relação, ao significado das correlações).
Nem a visão clínica, nem a observação médica, como tem acontecido até o
presente, conseguem sozinhas fornecer demonstração; nem ainda a cone-
xão com as muitas referências que se possam estabelecer da tese para a
história evolutiva, a terapia, a vivência hipnagógica etc., visto que cada
uma destas referências mostra por si uma possibilidade; e muitas incerte-
zas se amontoam para que tenhamos segurança. Entre as observações clí-
nicas, as experiências da praxiterapia são de interesse básico especial, só
elas permitindo ganhar novo tipo de fatos, ao passo que a observação clí-
nica inativa das associações de sintomas não possibilita, por si, a visão de
quaisquer tipos novos de fatos.
Não é, decerto, por acaso que, nesta teoria das associações de sinto-
mas esquizofrênicos, a escassez dos fatos ainda não se compare com a
abundância das discussões conceituais de princípio. Uma maneira de
pensar enuncia-se, acentuando sua novidade e desenvolvendo possibilida-
des de pesquisa, sustentada pelo entusiasmo peculiar que acompanha a
formulação de teorias de caráter universal. Deve desenvolver-se uma “psi-
quiatria biológica”, biológico aqui significando: dirigido para o todo exis-
tencial, e não para algumas de suas manifestações, quer somáticas, quer
psíquicas. Schneider diz, com acerto: É postulado injustificado afirmar
que, no começo da esquizofrenia, já se devem admitir alterações somáti-
cas; é errado equiparar com demasiada presteza condições funcionais psí-
quicas não vivenciáveis a alterações somáticas; e estas, por sua vez, con-
ceber, prematuramente,- de modo apenas morfológico, ou materialmente
mecânico, ou, na melhor dás hipóteses, energético; temos de libertar-nos
da ideia de que o somático atue, mediante causalidade global, por assim
dizer, sobre o evento psíquico; a relação biológica entre processos somáti-
cos e psíquicos é inteiramente diversa daquela que, hoje, se julga dever
admitir. Tudo isto parece-me verdadeiro sob o aspecto crítico, mas cabe
indagar, então, que é que se entende, aqui, por biológico. Não é, evidente-
mente, nada daquilo que a ciência da biologia tem por objeto — a saber,
quaisquer explorabilidades tangíveis e, por isso, particulares — mas sim
aquilo que se gostaria de apreender, de modo geral, mediante urna filoso-
fia da vida; aquilo em que e a partir de que ocorre tudo quanto é especial.
Este todo não é, entretanto, objeto, e sim ideia, apenas, para a pesquisa;
ou generalidade, para a apresentação filosófica. Daí parecer-me a biologia
desta “psiquiatria biológica” expressão, certamente, do impulso de uma
ideia, de uma tendência filosófica, que talvez ainda não se haja ainda pe-
netrado, ela mesma; como objeto, porém, do conhecimento que investiga,
falta-lhe base.
A pesquisa só toma forma determinada, quando é guiada por uma
ideia, no caso em que, partindo das grandes linhas gerais, se aproxima e
penetra nos fatos. Se as associações de sintomas se, originam do distúrbio
de associações de funções biológicas particulares, tem-se de conceber fun-
cionalmente, na associação, a correlação dos fenômenos à primeira vista
heterogêneos. A questão é a seguinte: Como é que 'se há de conceber a co-
nexão dos sintomas na associação? Como é que eles se correlacionam?
Falta a resposta. A fatualidade da respectiva coincidência estatística,
uma> vez que, enfim, se confirmasse, só se tornaria fato reconhecido pelo
conhecimento da maneira por que se correlacionam

Apresentações Particulares
Nas apresentações particulares que ora se seguem, apenas damos,
uma seleção de exemplos, pelos quais se terá ideia do valor concreto que
possuem os quadros tradicionais de complexos sintomáticos; quadros que
se têm firmado — não todos quantos se formularam, mas, sim, aqueles
que se estão sempre impondo:
a) Complexos sintomáticos orgânicos. Chamamos complexos sintomáti-
cos orgânicos aqueles que podemos atribuir, causalmente, a um processo
somático tangível localizado no cérebro. Incluem-se entre eles os comple-
xos afásicos de sintomas, os tipos da demência orgânica. Complexo orgâ-
nico desta ordem muito característico é a síndrome de Korsakov (complexo
sintomático ou síndrome amnésica), que se observa sobre a base do alcoo-
lismo crônico, ou após ferimentos graves da cabeça, tentativas de estran-
gulamento, e ainda em consequência de processos cerebrais senis (cha-
mando-se, então, presbiopfrenia); raramente também, no início da parali-
sia geral. A síndrome pura pode consistir, sem distúrbio intelectivo propri-
amente dito, no simples distúrbio da memória e da capacidade de fixação,
com suas consequências necessárias (desorientação, preenchimento das
lacunas por confabulações'). Os doentes esquecem tudo em tempo extre-
mamente breve, não conhecendo ninguém, nem o médico, nem os outros
pacientes, repetindo a mesma narrativa, sempre convencidos de estarem
contando coisas inteiramente novas; e cumprimentando o médico que já
veio várias vezes como se fosse sempre a primeira. Ao mesmo tempo, com-
portam-se de forma plenamente natural, conforme a situação, com certa
iniciativa, ordenados; pode acontecer que o leigo custe a perceber quanto o
paciente está transtornado, inteiramente desorientado no tempo e no es-
paço, tanto mais quanto o cabedal mnêmico vai cada vez mais diminuindo
e, aliás, retrogradamente, a partir do presente. Quanto mais próximo o
tempo lembrado, menos se recorda. Ainda se acham presentes as reminis-
cências da primeira infância e da mocidade, de modo que uma velha octo-
genária talvez se julgue ainda uma jovem de 20 anos, declare seu nome de
solteira, ignore de todo marido e filhos, faça contas com dinheiro fora de
circulação etc. Acresce-se um fenômeno que chama a atenção: é a segu-
rança e a naturalidade com que os doentes produzem confabulações em
lugar de recordações reais, contando histórias inteiras, as quais aparecem
com o aspecto de narrativas embaraçadas visando a preencher falhas da
memória; é frequente, no entanto, produzirem-se ricas e maciças. Pronun-
ciam-se ideias insensatas, desordenadas, sem que os pacientes sintam ne-
cessidade sequer de corrigi-las, nem de contê-las. Também podemos suge-
rir- lhes vivências como se as houvessem tido na realidade. Sem consciên-
cia clara de seu defeito, sentem-se, todavia, obscuramente inseguros.
Como complexo sintomático orgânico, conhecem-se estados de fra-
queza após comoção cerebral grave, que acarreta, primeiro, perda da cons-
ciência, podendo durar de minutos a horas: irritabilidade (acessos de
raiva, incontinência emocional), enfraquecimento da memória e da capaci-
dade de fixação, incapacidade de concentração (dispersividade), aumento
da fatigabilidade, cefaleias, muitas vezes localizadas — principalmente
quando a pessoa se dobra — vertiginosidade, sensibilidade ao calor, into-
lerância ao álcool.
b) Os complexos sintomáticos das alterações da consciência. Já tenta-
mos distinguir a obnubilação, a turvação da consciência e a alteração da
consciência. Estas três direções em que a vida psíquica se altera prendem-
se a outros inúmeros elementos para formar os quadros de estada extraor-
dinariamente variáveis a propósito dos quais nos referimos à alteração da
consciência em sentido mais amplo. Dentre os complexos sintomáticos tí-
picos destacamos o delírio, a amência e o estado crepuscular. A todos
são1 comuns, em grau diverso, a desorientação, certa descontinuidade ou
desconexão, maior ou menor, da vida psíquica e alguma confusão, tam-
bém maior ou menor, da memória, uma vez decorrido' o estado.
1. O delírio caracteriza-se pela evasão do paciente do mundo- externo
real. O indivíduo vive em seu mundo delirioso, que lhe aparece em ilusões,
alucinações autênticas, ideias delirantes. Muitas vezes, domina-o ansie-
dade enorme, além de atividade impulsiva sem objeto algum. É muito má
a apreensão: a consciência apresenta- se em nível baixo, quase sempre no
limite do sono, que entretanto, não se consegue; quando a atenção está
tensa ao máximo, pode-se- elevá-la de modo passageiro, melhorando, en-
tão, relativamente, a apreensão e reaparecendo a vivência delirante. A tur-
vação da consciência no sentido da vida psíquica onírica, certa coerência
(“ilusões teatrais”), além da mistura de traços próprios à obnubilação, ca-
racterizam o delírio, distinguindo-o com a maior presteza da.
2. Amência. Se nos recordarmos de nosso esquema, no qual distingui-
mos as conexões associativas das sínteses atuativas que se estruturam
sobre elas em inúmeras pirâmides, reconheceremos corno- fenômeno cen-
tral deste tipo de complexo sintomático que é a amência a diminuição da
síntese atuativa, chegando aos graus mais baixos das conexões da mesma
ordem; e, daí, à incapacidade de praticar qualquer ato ideativo novo, de
apreender qualquer relação. Nem sequer são mais possíveis as sínteses
atuativas simples que levam à orientação com referência à situação. O pa-
ciente não é capaz de combinação alguma; donde resulta a fragmentação,
por assim dizer, da vida psíquica em pedaços apenas esparsos, só ocor-
rendo atos singulares casuais da consciência objetiva, habituais e fáceis
para o indivíduo, sem relação alguma com atos anteriores ou subsequen-
tes. As únicas leis que governam, mecanicamente, a sequência dos conte-
údos da consciência são as regras da associação, a perseveração, o enca-
deamento desconexo pela via das percepções sensoriais. Objetos que apa-
recem, acidentalmente, no campo visual são notados, nomeados, não tar-
dando, entretanto, a surgir no lugar deles outra ideia que talvez haja sido
despertada por associações absurdas; alterações, rimas e coisas seme-
lhantes dominam o conteúdo verbal (diverso da fuga-de-ideias pela falta
das associações, que nesta se acumulam produtivamente). Repetem-se as
perguntas do médico, sem nelas pensar e sem a elas responder; desregra-
das, ocorrem ideias casuais, vindo à consciência em alternância desencon-
trada.
Nos graus menos graves destes estados — de hábito, as oscilações são
grandes, podendo chegar à lucidez plena passageira — os doentes têm
consciência da alteração, notando que não conseguem pensar, nem pres-
tar atenção; e que todo o ambiente se lhes apresenta enigmático; daí mer-
gulharem em espanto perplexo’. “Que é que está acontecendo? Onde é que
estou? Ainda sou a Sra. S.?” Mesmo, porém, que compreendam uma res-
posta, não tardam a esquecê-la. Ao mesmo tempo e, principalmente, no
início, os pacientes sentem-se estranhos, percebem que. a doença mental
está para vir e que a consciência se lhes transtorna enormemente. Estes
sentimentos acentuam-se em ansiedade delirante, que, por sua vez, au-
menta mais ainda pelas ideias delirantes e alucinações, estas acrescen-
tando-se e logo desaparecendo; aliás, sem conexão alguma. Visto, entre-
tanto, serem desordenadas e poderem apresentar-se tanto prazenteiras e
jubilosas quanto indiferentes, o estado de ânimo alterna entre os contras-
tes mais extremos.
As ideias deliroides e as falsas-percepções são, evidentemente, tão in-
coerentes quanto as percepções reais e os pensamentos que daí se origi-
nam. Reflexão alguma, juízo algum é possível; donde não haver também
base para qualquer sistema; ao contrário, os doentes entregam-se passiva-
mente às ilusões, variáveis pelo conteúdo e pela direção total. Nenhuma
disposição afetiva, nem rumo delirante preciso, nem complexos compreen-
síveis dão aos conteúdos qualquer unitariedade. Os pacientes referem a si
mesmos o que há de mais extraordinário: que se puxe uma cortina, que
uma. colher esteja colocada em certo lugar; os objetos conformam-se de
maneira ilusória; de acordo com semelhanças, pôr exemplo; podem ocor-
rer, nesse ínterim, alucinações autênticas. Tudo se acumula sobre o paci-
ente, obrigando-o, sem vontade, a ocupar-se com tudo, para abandonar-
se, daí a pouco, a outra coisa diferente. Acontece, por perseveração mecâ-
nica, retornarem sempre conteúdos particulares, construções verbais, fra-
gmentos singulares da vida psíquica, sem possibilidade, todavia, de infe-
rir-se apenas deles seja qual for conexão; ainda que, por exemplo, durante
dias e dias, o médico seja sempre confundido de certa maneira, ainda que
o paciente o receba com perguntas sempre as mesmas.
Mesmo em graus acentuados do distúrbio, podem-se constatar sinais
de “perplexidade” na amência. E Jacobi já observou, em estados com ela
relacionados, a possibilidade de “trazer o paciente à consciência de si, du-
rante alguns instantes, quando se apela para o sentimento individual de
sua personalidade”. A perplexidade e esta consciência natural, peculiar da
personalidade, embora absolutamente passageira, distinguem a amência
de todas as psicoses paranoicas. Após o curso da doença, mais não existe
do que recordação sumária. Chama a atenção o fato de se pormenoriza-
rem e nitidamente recordarem, às vezes, impressões sensoriais superfici-
ais do tempo da psicose. Quase sempre existe lacuna mnêmica plena, de
longa duração.
3. Estado crepuscular. Caracteriza-se o estado crepuscular pela “altera-
ção da consciência” sem aparecimento notável de turvação, perplexidade
ou incoerência. Os estados crepusculares têm delimitação temporal es-
trita, de tal modo que os doentes, por assim dizer, despertam deles; duram
de horas a semanas. Enquanto subsistem, o comportamento é, em geral,
relativamente ordenado, podendo os pacientes até viajar, chamando a
atenção, porém, ao lado de atos coerentes, certos procedimentos inespera-
dos, espantosos, desconexos; às vezes violentos. Os pacientes são domina-
dos por sentimentos primários anormais (ansiedade, disforias de toda
sorte) e por ideias deliroides (perseguição, perigo, grandeza). Porque se
mostram relativamente ordenados e lúcidos, os atos violentos são particu-
larmente perigosos: um dá um tiro na cabeça para matar-se; outro, to-
mado de fúria devastadora, toca fogo na casa; outro ainda mata um com-
panheiro. Ao despertar, o que há quase sempre é uma recordação lacunar.
Os pacientes veem o estado e os atos que praticaram como coisa inteira-
mente estranha. Para ilustrar, vamos descrever certo estado crepuscular
observado em nossa clínica (a maior parte dos casos decorre fora dos hos-
pitais):
Franz Rakutzky, cocheiro de' 41 anos, teve uma vertigem forte no dia
15 de maio de 1908. Obrigado a deitar-se, embrulhou-se nas cobertas, co-
meçando a suar muito. Depois, pôde voltar ao trabalho. Daí a dez dias,
tornou a sentir-se fraco, com cansaço sobretudo nas pernas, vindo-lhe ou-
tra vez a vertigem. Por este motivo, veio ter à Clínica Médica, onde se mos-
trou, passado três dias, inteiramente desorientado, fortemente agitado, in-
tensamente ansioso.
No dia seguinte de manhã, examinado na Clínica Psiquiátrica, apre-
sentou-se calmo, acessível, mas declarou, sorrindo satisfeito e muito con-
victo, ser major e chamar-se “von Rakutzky”, de antiga e nobre ascendên-
cia silesiana.
Dois tenentes, Ahlefeld e Fritz, tinham-no trazido, havia pouco, aqui ao
Hotel da Águia, em Karlsruhe. As pessoas presentes eram soldados aquar-
telados. Era julho de 1885. A perguntas sugestivas, respondeu, com preci-
são, ganhar 10 marcos por dia; a perguntas ulteriores, aumentou a quan-
tia para 100.000 marcos por ano. Solicitado por mim, emprestou-me
2.000 marcos, escrevendo um "cheque” ilegível, que me possibilitaria rece-
ber o dinheiro no Banco K., de Karlsruhe. Outras sugestões ao acaso têm
efeito imediato: esteve cem o grão-duque, será nomeado general amanhã,
possui alguns milhões, tem 30 filhos. Quando lhe perguntam, se está
sendo perseguido, declara em voz alta: “Eu perseguido! Mando avançar o
regimento inteiro, se alguém disser isto!” Não resolve problemas aritméti-
cos: 6x6 = 20; 2x2 = 6; mas acerta em 1+1 = 2. Após o exame, senta-se,
tranquilamente num banco do corredor.
À tarde do mesmo dia, o paciente está plenamente orientado; não sabe,
em geral, que já falou comigo longamente, pela manhã. Nada sabe de suas
narrativas e acha que são inacreditáveis. Também não sabe que esteve no
banho, mas se lembra de haver sido trazido por duas pessoas e de ter sido
tratado, nos últimos dias, por causa de acessos vertiginosos, na Clínica
Médica. No café, às 4 horas, sentiu-se, de repente, muito leve e forte. As-
sim que se sentou na cama, viu que estava no hospício. Faz contas melhor
do que pela manhã, mas ainda erra.
No dia seguinte, o doente está muito bem disposto, respondendo com
vivacidade e pertinência. Acha que, na véspera de noite, ainda não estava
de todo bem, embora já soubesse que havia algo errado. Hoje, contudo,
nada mais percebe. Resolve corretamente todas as contas.
Sabe-se pelo doente que já teve distúrbios semelhantes, e até de dura-
ção mais longa (confirmação pela história clínica); mais ainda: que tem
acessos de vertigem frequentes; que, às vezes, e por alguns minutos, nota
enrijecimento e insensibilidade da perna direita e do dedo indicador di-
reito; que já tem mesmo adormecido sem querer (Diagnóstico: psicopata
histérico).

c) Os complexos sintomáticos dos estados afetivos anormais.


A variedade extraordinária dos quadros de estados apresentados pelos
doentes afetivos encontra sua primeira classificação na oposição dos tipos
muitos antigos que são a mania e a depressão, exemplo de como os con-
trastes se correspondem.
A mania pura caracteriza-se pela alegria e euforia primárias, imotiva-
das, torrenciais; pela alteração do curso psíquico na direção da fuga-de-
ideias e do aumento das possibilidades associativas. O sentimento de pra-
zer vital acompanha-se de exaltação de todos os estímulos; aumento da
sexualidade, aumento do impulso motor; logorreia e impulso à atividade
aumentam, desde o mero gesticular vivaz até os estados de excitação. O
curso ideo-fugitivo da vida psíquica faz que todas as atividades se iniciem
com viveza, mas também não tardem a interromper-se e a mudar. Todos
os estímulos prementes e todas as possibilidades novas à disposição vêm
espontâneas e sem provocação, fazendo o doente chistoso e divertido; mas,
do mesmo passo, a impossibilidade de reter uma tendência determinante
o faz superficial e confuso. Sente-se, sob o aspecto somático e mental,
enormemente sadio, forte, com a impressão de possuir capacidades fora
do comum. Seu otimismo inflexível levam-no a ver todas as coisas, o
mundo inteiro, o futuro com as cores mais brilhantes. Tudo reluz, tudo é
tão venturoso quanto possível. Suas ideias e pensamentos acomodam-se
compreensivelmente sob este ponto de vista; nem outras lhe acedem à
mente.
Sob todos os aspectos, constitui o contrário a depressão pura, cujo nú-
cleo é formado por uma tristeza igualmente profunda, imotivada, a que se
acrescenta a inibição de todo o evento psíquico; inibição que tanto se
sente subjetivamente dolorosa quanto se pode determinar objetivamente.
Abatem-se todos os estímulos impulsivos; em coisa alguma se apraz o en-
fermo. A diminuição da impulsão motora e atuativa transforma-se em
completa imobilidade. Não se pode tomar decisão alguma, nem iniciar
qualquer atividade. Não há associações de que se possa dispor. Os doen-
tes em nada pensam; queixam-se do desarranjo total da memória, sentem
sua improdutividade e lamentam-se de insuficiência, insensibilidade, va-
cuidade. A profunda taciturnidade, eles a experimentam como sensação
no peito e no corpo, como se fosse coisa tangível, por assim dizer. A tris-
teza profunda faz que o mundo lhes apareça acinzentado, indiferente e in-
consolável. De tudo quanto presenciam extraem o que é desfavorável e
malfadado. No passado, foram culpados de muitos erros (autorrecrimina-
ções, ideias de pecado). O presente só lhes oferece o mal (ideias de inferio-
ridade); o futuro se lhes apresenta horrível (ideias de empobrecimento
etc.).
Os complexos sintomáticos da mania e da depressão puras têm para
nós, em vista da conexão compreensível contínua que une os traços indivi-
duais, alguma coisa de extraordinariamente '“natural”; não obstante o
que, muitos dentre os doentes afetivos não correspondem, em absoluto, a
esses complexos naturais, os' quais nada mais são do que formações tí-
pico-ideais. Chamam-se “mistos” todos estes estados que não correspon-
dem, por forma plena, aos tipos. Concebem-se a mania e a depressão par-
tidas em componentes dos quais deriva, mediante combinação variável, a
multiplicidade ou diversidade dos quadros individuais. Só se indaga que
tipo de componentes existem e sob que aspectos se há de encontrá-los.
Kraepelin e "Weygandt decompuseram a mania nos componentes ale-
gria, fuga-de-ideias, impulso motor; a depressão, em tristeza, inibição do
pensamento e inibição motora; daí tirarem; alegria + inibição do pensa-
mento + impulsão motora = “mania improdutiva”; alegria + inibição do
pensamento + inibição motora = “estupor maníaco” etc. A importância es-
sencial está na relação diagnóstica (concepção de estados enigmáticos
como fases curáveis em indivíduos que, quanto ao mais, se apresentam
doentes de mania ou de depressão). O processo é ambíguo, porque se em-
pregaram, sem mais e simplesmente, elementos «de conexões compreensí-
veis como componentes objetivos (possíveis de separar e, mecanicamente,
de combinar) da vida psíquica (a tão frequente confusão da psicologia
compreensiva com a psicologia objetivamente explicativa).
A maneira por que se formam os componentes, pela ação conjunta dos
quais se podem explicar os diversos estados afetivos mórbidos, apresenta-
se, portanto, inicialmente, obscura. Mediante análises sutis, «m experiên-
cias psicológicas, alguma coisa começou-se (por exemplo a separação de
inibição associativa e inibição de tendências determinantes). Quase todas
as experiências dão apenas descrição mais exata e estabelecem, quantita-
tivamente, aquilo que mesmo sem elas se observou. Assim, por exemplo,
Guttmann verificou, em testes de trabalho e de atenção (mandando o paci-
ente riscar certas letras num texto), ser o rendimento menor nos maníacos
e nos depressivos; terem ambos de “treinar” mais do que os indivíduos
normais; daí ser melhor o .rendimento na segunda metade do teste e não
terem as pausas o mesmo efeito favorável que com os indivíduos normais;
mais ainda: os maníacos trabalham quantitativamente melhor e qualitati-
vamente pior que os despresivos; e fatigam-se mais depressa os depressi-
vos.
A análise de casos individuais há de considerar, quanto ao mais, os se-
guintes aspectos: 1) Acrescentam-se à alteração do humor outras altera-
ções primárias (fenômenos de despersonalização, estranheza do mundo
perceptual, irritabilidade, hiperestesia psíquica etc.), as quais aumentam a
extensão do quadro. 2) Os fenômenos apresentam-se em grau mais alto,
de modo que o quadro aumenta -de intensidade: a inibição triste trans-
forma-se em estupor; a alegria ídeo-fugitiva transforma-se em excitação
maníaca. 3. No curso da doença, hábitos casualmente surgidos ou rema-
nescentes de estados mais graves enriquecem o quadro com estereotipias,
fenômenos de petrificação, de esvaziamento vivencial (caretas, movimen-
tos, conteúdos logorreicos etc.).
Dentre os inúmeros complexos sintomáticos que se podem declarar ca-
racterísticos e que recebem, no vocabulário psiquiátrico, variadas denomi-
nações (“mania querulante”, “depressão resmungona”, “melancolia lamuri-
enta”), destacando-se, por todas estas três maneiras, do quadro “puro”,
um dos mais típicos é a melancolia, que ainda aqui se pode apresentar
como exemplo:
O estado é tal que as ideias sobrevaloradas ou obsessivas se tornam
deliroides, elaborando-se fantasticamente (os pacientes são culpados de
toda a desgraça universal; devem ser decapitados pelo diabo etc.) e che-
gando a ser consideradas verdadeiras mesmo que o estado seja de lucidez
relativa. Subjacentes às vivências, acrescem-se, sobretudo, sensações cor-
póreas (que não tardam a levar a ideias deliroides hipocondríacas: os do-
entes estão cobertos de excrementos até a cabeça; a comida lhes cai pelo
corpo inteiramente vazio até o fundo etc.) ; mais ainda: presenciam-se os
mais altos graus de despersonalização e estranheza perceptiva: já não há
mundo algum; os próprios doentes já não existem, mas, tais quais pare-
cem, terão de viver eternamente (ideias deliroides niilistas) ; enfim, surge a
ansiedade mais intensa, da qual os pacientes buscam alívio com movi-
mentação incessante, entregando-se a verborreia monótona, que se trans-
forma quase em verbigeração: Ah! meu Deus! ah! que vai ser de mim tudo
está acabalo, tudo está acabado.... que é que vai acontecer.... Formas ci-
néticas, expressão fisionômica e logorreia parecem manter-se mesmo com
a diminuição da ansiedade e da depressão, petrificando-se, por assim di-
zer, até sobrevirem a cessação definitiva da fase e a cura; muitas vezes,
após longo prazo.
Não se trata, absolutamente, de doenças afetivas em todas as situa-
ções mórbidas que se apresentam como fases. Há, por exemplo, fases em
que ocorrem despersonalização, pensamento obsessivo, inibição etc., sem
qualquer alteração afetiva primária.

d) Os complexos sintomáticos da vida psíquica “alienada”.


O que há de comum a estes complexos sintomáticos são ’os traços da
vida psíquica esquizofrênica. Profunda transformação ocorreu na persona-
lidade. O paciente vive em mundo irreal, porém multiplamente conexo em
si. Tanto num quanto noutro aspecto, 1 realiza-se, por assim dizer, uma
“alienação”, ou “distorção” do ponto de vista. A riqueza dos quadros de es-
tado é ainda maior do que nos dois grupos precedentes. Dentre os tipos
mais assinalados, descrevemos, apenas, os complexos sintomáticos para-
noide e catatônico.
1. O complexo sintomático paranoide não abrange, em absoluto, todos
os tipos de formações delirantes. Esta delimitação superficial da antiga pa-
ranoia segundo “juízos falsos, incorrigíveis” cedeu seu lugar à ênfase que
se põe nas vivências subjetivas dos doentes, as quais constituem, a esta
altura, a fonte da formação* delirante (ideias delirantes autênticas), ao
passo que, noutros casos, os estados de humor, os desejos, os impulsos
dão origem a ideias, deliroides mais ou menos compreensíveis (ideias so-
brevaloradas). Os grupos vivenciais que coincidem são os seguintes: Por
força de eventos inúmeros que se passam no ambiente e que excitam a
atenção dos pacientes, despertam-se sentimentos desagradáveis, difíceis
para nós de compreender. O evento aborrece, incomoda os doentes. Às ve-
zes, “tudo é tão forte”, as conversas “são demasiado estridentes”; outras
vezes, tudo quanto acontece os irrita, mesmo que não se produza ruído al-
gum. Parece sempre que é a eles que se visa. Afinal, tudo se faz plena-
mente claro aos pacientes, os quais “observam” estar-se falando deles, es-
tar-se querendo prejudicá-los. Com formulação racional, resulta destas vi-
vências o delírio de referência, em cuja vigência dominam o paciente nu-
merosos sentimentos que se definem como expectativa vaga, inquietação,
desconfiança, tensão, sentimento de perigo iminente, angústia, pressenti-
mentos, sem jamais conseguir-se, realmente, atingir um alvo certo. Acres-
centam-se, formando já outro grupo, todas as vivências de pensamentos
feitos ou roubados. Os doentes não conseguem mais dominar o curso de
suas ideias, até que, por fim, o quadro se completa com toda sorte de ilu-
sões sensoriais ou falsas- percepções (são frequentes as vozes, as pseudo-
alucinações ópticas, as sensações corpóreas etc.). Quase sempre apresen-
tam-se, simultâneos, os inúmeros traços próprios do complexo sintomá-
tico neurasténico. Apesar de tudo, não se desenvolve estado algum de psi-
cose aguda propriamente dita. Os pacientes mostram-se sempre orienta-
dos, lúcidos, acessíveis, muitas vezes até laboriosos. Sempre e intensa-
mente ocupados com os conteúdos de suas vivências, o trabalho intelec-
tual que produzem leva a um sistema refletivo e a numerosas ideias deli-
rantes explicativas, a que eles próprios, aliás, reconhecem, frequente-
mente, caráter apenas hipotético. Afinal, decorrido muito tempo, só vamos
encontrar ainda os conteúdos delirantes racionalmente petrificados, sem a
vivência peculiar. Dois casos servirão para ilustrar este complexo sintomá-
tico; uma autodescrição e um quadro obtido pelo exame do paciente.
aa) O negociante Rollfink, condenado por’ fraude, considerando a sen-
tença absolutamente injusta, assumiu atitude querulante. Depois de pedir
revisão do processo, retirou-a, porque “pessoas estranhas se meteram”.
Eis de que modo descreveu seu estado mental de então, estado que se pro-
longou com variações durante muitos meses: “O fato de haver sofrido in-
justiça tão séria e de, entretanto, acreditar na justiça, levou-me a crer, pri-
meiramente, que estava chamado a ser alguma coisa especial. . Como, to-
davia, não tinha plena confiança em minha convicção, instalou-se em
mim. uma dúvida torturante, que se associava a sentimentos ansiosos e
ideias delirante. Esse estado foi piorando, apresentando-se mais grave à
tarde e à noite, prejudicando de tal modo minha disposição que caía no
chão, muitas vezes, desmaiado, ficando estirado, inconsciente, por muito
tempo.... As ideias delirantes não eram raro tocarem o plano religioso, as-
sumindo, por exemplo, a seguinte forma: Às vezes, acreditava ter chegado
o fim do mundo. As singularidades mais insignificantes pareciam-me uma
espécie de inspiração, a preparar-me para o fim do mundo. Todo movi-
mento rápido (por exemplo, ondulação de uma cortina ao vento) provo-
cava-me sentimentos de pavor intenso; a cortina mexendo-se dava-me a
impressão de uma labareda poderosa, capaz de incendiar o mundo inteiro.
— Doutra vez, julgava-me um mártir popular; parecia-me ter de sofrer
cinco martírios antes de a morte redimir-me.... Durante certo, tempo, ima-
ginava que o padre católico que me visitava em sua qualidade de sacerdote
da prisão, armara toda a situação contra mim, a fim de poder influenciar-
me, embora ele mesmo não deixasse de interessar-se no assunto, pois ti-
nha em vista grandes reformas religiosas; a coisa precisava, no entanto,
fazer-se de tal modo que eu, seu discípulo, teria de morrer da mesma
morte que o mestre. Só se eu aderisse de plena vontade é que se consegui-
ria êxito. — Doutra vez ainda, julgava estar reservado à mesma sorte que
Andre Hofer.... De uma feita, quis dar um tiro num gato cinzento que mi-
ara o dia inteiro, emitindo os sons mais lamurientos, por estar possuído
do demônio.... De outra feita, dirigia uma petição ao Reichstag, solicitando
um apanágio de um milhão.... Nessas ocasiões, falava tal qual um homem
sensato; e a vários momentos isso mesmo é que eu era...
bb) O paciente Kroll, casado e pai de vários filhos, foi-se modificando
lentamente, durante anos. Começou com queixas neurasténicas; peso na
cabeça, insônia e anorexia. Quando se levantava, vinham-lhe tonteiras.
Tremiam-lhe as pernas, sentia puxões da testa à nuca. A fronte parecia-
lhe vazia, como se nela nada existisse, ou como se tivesse hidrocefalia. De
manhã, sente-se obtuso. São frequentes as tonteiras, a ponto de precisar
segurar-se. Os pensamentos lhe escapam, esfria-lhe a cabeça, os olhos fi-
cam parados, precisa deter-se, a memória lhe foge. Enfim, está inteira-
mente prejudicada sua capacidade de pensar. Tudo parece haver-se dis-
solvido, só lhe resta uma centelha de pensamento, sente-se muito inse-
guro.... A isso acresceu-se um ciúme sem base, chegando o paciente a ar-
rolar testemunhas contra um presumido amante de sua mulher. A seguir,
pretende que querem envenená-lo; que vai ser encarcerado, que querem
despojá-lo de seus bens; a polícia persegue-o de todos os lados. Pressente
que horrível miséria o ameaça a ele e toda a família; e toma a decisão, que
não leva a cabo, no entanto, de matar todos os seus. A seu ver, tudo se re-
laciona com o fato de haver verdadeira perseguição contra si; sente que
contra si o mundo inteiro está conjurado; vê em todas as pessoas, instinti-
vamente, um inimigo, um patife, um traidor. Os operários fizeram a seu
respeito observações ambíguas e escarninhas, tudo à capucha, mas perce-
beu claramente que é a ele que se referem. De noite, ouviu baterem à
porta, um barulho no sótão; ouviu vozes, levantou-se, andou pela casa
com uma vela, mas não encontrou ninguém.
Daí a algum tempo, o doente acalmou-se, voltou às suas ocupações re-
gulares, mas não tardou a recair, ouvindo vozes, ficando acordado noites
inteiras, sentindo-se sempre vigiado, atormentado por sua vida interior: “O
corpo repousa, meus pensamentos trabalham. Fico fantasiando de olhos
abertos. Até dormindo ouço tudo quanto se fala.,? »Um dia, fomos teste-
munhas da seguinte vivência, que pouco representa por si, mas é psicolo-
gicamente característica: O paciente vê em cima da mesa da cozinha uma
peça de roupa-de-cama; em cima do armário, uma vela de estearina e um
pedaço de sabão. Fica apavoradíssimo, angustiadíssimo, convencido de
que isso diz respeito à si. De que modo chega a esta conclusão não sabe
dizer, mais parece-lhe claro que tem de referir-se à sua pessoa. Isto ele
conta-me espontaneamente, mostrando a maior inquietação. Quase pula
até o teto, de tão assustado. O que é que isso significa, o que é que o paci-
ente faz, não sabe ele próprio. “Que se refere a mim sei perfeitamente”.
(Por que?). “Não sei...” (Que é que significa?)” Também não sei...” Acha, no
entanto, a seguir, que talvez esteja enganado. “Até eu mesmo já me ri de
ter acreditado nisso. Mas, no momento, fico inteiramente fora de mim”.
Acontece, por vezes, que a paranoia não puxe aquele que a experi-
menta em todas as direções, por assim dizer, como se dá no último caso;
mas que uma pessoa, uma coisa, um objetivo se situe no centro do delírio;
em outras palavras, que o conteúdo se sistematize e também se esgote
com o sistema. Todavia, a centralização num ponto não é característica
destes complexos sintomáticos paranoides autênticos, mas, sim, das
ideias sobrevaloradas e deliroides.
2. O complexo sintomático catatônico. Este complexo caracteriza-se, ex-
ternamente, ou pelo estupor, ou pela excitação motora, sem afetos conco-
mitantes nítidos. Os caracteres externos apresentam-se em polaridades de
movimento e imobilidade; ou verbi- gerações, estereotipias e maneirismos,
ou posições esquisitas fixas (rigidez em focinho etc.); mais ainda: apresen-
tam-se na oposição de resistência desinibida e desinibida obediência; ou
negativismo em todas as direções, ou automatismo aos comandos. Inter-
calam-se atos ou descargas motoras impulsivos, repentinos; os doentes
também chamam a atenção pelo desasseio, pelo fato de untarem-se com
excrementos, babarem, reterem energicamente fezes e urina, cuspirem,
lamberem, baterem, morderem, arranharem. A se compreenderem estes
sintomas externos por forma meramente objetiva, sem visão psicológica,
configuram-se os mesmos como resultado derradeiro e o mais externo de
eventos psíquicos variados: atitudes amaneiradas, repetições de palavras,
movimentos estereotipados, caretas etc.: tudo isto é tão frequente em psi-
coses quanto ao mais inteiramente diversas que só se podem conceber os
sintomas descritos como conglomerado de sinais objetivos, mas não carac-
terísticos.
Chamamos “estupor” aqueles estados em que os doentes, imóveis, sem
dizer palavra, sem dar por si sinal algum, compreensível de eventos psí-
quicos, nenhuma reação apresentam a qualquer tentativa de comunicar-
nos com eles. Mantêm-se horas num canto, agacham-se sob as cobertas,
ficam deitados semanas inteiras, sem mudar de posição na cama; noutros
casos, mantêm-se eretos por forma notavelmente natural, mexendo os de-
dos sobre a coberta, ou brincando com elas. — Incluem-se, indubitavel-
mente, entre estes caracteres do estupor certos estados que são, em es-
sência, diversos; por' exemplo: 1) a inibição perplexa, o espanto perplexo
de algumas psicoses curáveis; 2) a inibição depressiva, a simples parada
de todas as funções psíquicas e mesmo da apreensão, nos estados graves
de depressão estuporosa; 3) o estupor catatônico, que se apresenta em
forma ora de estupor relaxado, ora de estupor tenso (rigidez muscular).
Se se quiser compreender, psicologicamente, o complexo sintomático
catatônico entre os casos que se consideram, sem mais, “clássicos”, far-se-
ão as observações mais notáveis, mas nunca se chegará, decerto, a resul-
tado unívoco. Estes estados psíquicos são tão misteriosos para o psiquia-
tra quanto para o leigo, porque, de modo geral, não sabemos o que é que
sentem os pacientes; quase não possuímos autodescrição alguma. Se al-
guns doentes se julgam a si mesmos — só no início — é exprimindo-se
com palavras que recordam conexões compreensíveis de nossa existência,
mas que só se podem interpretar, muito provavelmente, como analogias:
“Estou tão passivo”; “Não posso dar de mim aquilo que gostaria”; “Estou
com tanto sono”; etc. Se tentarmos descrever o estado que observamos, só
poderemos dar ideia aproximativa daquilo que nos impressiona, visto nos
faltarem conhecimentos reais.
Se bem que neles exista crítica excelente e se bem que nem ideias deli-
rantes, nem alucinações tenham de desempenhar papel no complexo sin-
tomático puro, estes pacientes não mostram compreensão alguma da do-
ença. Os distúrbios objetivos, o negativismo, o estupor, ou a excitação mo-
tora podem alcançar grau elevado sem que eles pareçam, em geral, dar
conta disso. Certo é que, de modo- geral, sentem alteração; que se sentem,
de modo geral, enfermos, formando, porém, ideia absolutamente outra dos
vários eventos; por exemplo: “Procuro a culpa em mim”; “Não posso acre-
ditar em nenhuma doença”. São observações que se fazem quando se ini-
cia este complexo sintomático.
Existe, no caso, tal qual nos estádios ulteriores, distúrbio da atividade.
A apreensão, orientação, memória estão plenamente intactos; mas distúr-
bios análogos se mostram quando não se realiza mero evento psíquico e,
sim, normalmente, se vivencia um elemento de atividade, no pensamento,
na construção regular das ideias, na fala, na motilidade, na escrita; dis-
túrbios que consistem em verbigeração na fala, rabiscação na escrita, ati-
tudes passivas, interrupção repentina dos movimentos, rigidez, interrup-
ção da fala no meio das frases, prosseguimento do discurso quando o in-
terlocutor se afasta etc. Não se pode tratar, aqui, em absoluto, de meros
distúrbios motores que o paciente encare, por mais complicados que se-
jam, como alguma coisa estranha, apenas somática. O distúrbio tem de
estar situado muito mais alto no psiquismo, não se comparando, de modo
algum, com os outros transtornos apráxicos e afásicos. Não se podem va-
lorar como “compreensão do estado”, dado que ocorrem, por forma inteira-
mente irregular e rara, certas manifestações ocasionais dos pacientes; por
exemplo: “Não posso...”. Outra coisa elas não fazem, do que tomar ainda
mais misterioso o quadro de estado,
Se confrontarmos a atividade na qual se representa, por assim dizer, a
personalidade atual com a personalidade permanente (no sentido de moti-
vos constantes ou estímulos impulsivos etc.), poder-se-á dizer que não é a
personalidade permanente (o caráter) que o complexo sintomático catatô-
nico afeta, e sim, apenas, a personalidade atual (se bem que a personali-
dade permanente seja afetada pela doença, que também cria o complexo).
Tem-se, às vezes, a impressão de que o caráter desaparece, simplesmente,
sem ser substituído, no entanto, por um caráter alterado; e sim por aquele
evento mecânico, meramente momentâneo, que justamente compõe o
complexo sintomático catatônico. Com base nesta relação, podemos, en-
tão, entender a falha de compreensão do estado (a personalidade que po-
deria ter a compreensão desapareceu). Há vezes em que os estados se
apresentam tais que o paciente é, por assim dizer, sob o aspecto psíquico,
uma máquina fotográfica morta: vê tudo, ouve tudo, apreende, retém, mas
não é capaz de reação alguma, de assumir atitude afetiva alguma, de pra-
ticar ato algum. Está paralisado, a bem dizer, apesar de plenamente cons-
ciente. Por vezes, diz: “Não penso em nada”; “Não tenho pensamento al-
gum”; “Estou tão sem ideias!”. Nem por isso, entretanto, se tomaram im-
possíveis todos os processos psíquicos. São cotidianas as observações do
tipo de que se segue:
A Srta. O. mantém-se sentada na cama, inteiramente quieta, sem cha-
mar a atenção, brincando com um pedacinho de pano; de quando em
quando, dá uma olhadela de viés para o lado em que está o médico.
Quando lhe falam, chegar a olhar de lado para quem a interpela, res- pira
uma vez profundamente, o rosto enrubesce-lhe de leve; não responde, po-
rém, nem sequer move os lábios. Este quadro dura semanas. Se se lhe
mostrar e 1er urna carta que a mãe escreveu ao médico, dá impressão
clara de que se interessa pelo conteúdo da mesma; presta atenção, eviden-
temente, mas não diz coisa alguma; nem responde, quando lhe perguntam
se, atendendo ao desejo materno, não quer escrever. Ao mesmo tempo,
correm-lhe lágrimas pelas faces; enxuga-as com o lenço de maneira natu-
ral. Daí a cinco minutos, o quadro anterior se reproduziu: a Srta. O.
brinca com o pedaço de pano, olhando de quando em quando à sua volta,
inexpressivamente.
Nem sequer semelhante estupor reage, em absoluto, quando os pais
vêm visitá-la. Mas depois que as visitas saem, vê-se a paciente soluçar
amargamente. Correspondendo a estas observações (movimentos expressi-
vos, enrubescimento, respiração profunda etc.), nota-se, quando se mede
a pressão arterial ou se registram outros fenômenos somáticos concomi-
tantes, que, além de certos casos simplesmente vazios de qualquer reação,
outros existem em que são dão oscilações intensas — por exemplo, da
pressão arterial — à produção de quaisquer estímulos psíquicos.
Os complexos sintomáticos catatônicos apresentam-se com intensi-
dade extremamente diversa. Em graus leves, por exemplo, os pacientes
nada terminam, ficam deitados na cama, penteiam infindavelmente os ca-
belos, fixam-se mecanicamente na atividade que hajam iniciado, olham
sem expressão para o canto etc. Nem sempre é fácil distinguir estes sinais
das manifestações absolutamente semelhantes e muito mais frequentes
que se notam nos neuróticos e nos depressivos, de um lado; de outro, nos
portadores de doença cerebral orgânica. Talvez se possa encontrar dife-
rença, em relação aos depressivos, no fato de faltar, a princípio, a inibição'
geral, quando se trata do complexo sintomático catatônico. Nos graus
mais acentuados dó estado, ocorrem, vez por outra, produtos ídeo-fugiti-
vos típicos, logo surgindo, novamente, outros de todo incoerentes, em que
não se percebe, de modo geral, elo associativo algum. Nos graus extremos,
notam-se os quadros da excitação, totalmente irracional, da outrora cha-
mada “loucura furiosa”; ou se presenciam estupores absolutamente rígi-
dos e inacessíveis.
A autodescrição que se segue mostra a maneira por que pode apresen-
tar-se a vivência subjetiva num tipo de excitação catatônica:
“Meu estado de ânimo, durante a excitação, não era de fúria; nem dis-
posição especial alguma afinal, que não fosse a de uma alegria motora pu-
ramente animal; não era a excitação maligna, como, por exemplo, a de as-
sassinar; muito longe disto! Era uma coisa de todo inocente. O impulso,
entretanto, parecia uma compulsão, uma obsessão, tão forte que mal po-
dia conter a vontade de pular. Só posso comparar a situação com a de um
cavalo selvagem.... No que diz respeito à memória, durante os estados de
excitação, é boa, em geral, não. chegando, porém, na maior parte das ve-
zes, ao ponto em que se começou. Desperta-se, a bem dizer, a fatores ex-
ternos, como a frialdade do soalho, que faz voltar à situação real. Então, a
gente orienta-se; tudo vê, sem prestar, no entanto, atenção; pelo contrário,
continua-se a dar curso à excitação. Principalmente, não se dá atenção,
absolutamente, às pessoas, apesar de vê-las e ouvi-las. Mas presta-se
atenção, certamente, para não cair— Se nos fazem parar, se nos levam
para a cama, ficamos muito espantados com o que está acontecendo de
repente; magoam-nos, defendem-nos. O equivalente motor já não- se des-
carrega, então, em pulos, mas em arremessos, não significando, porém, de
modo algum, irritação.... Não existe construção mental.... Por vezes, nal-
guns instantes ordeiros, tem-se consciência direta disso. Mas nem sem-
pre! Embora se note que já não se sabe construir mais, frase alguma....
Tenho impressão de que, àquele tempo, havia total decomposição.... Ape-
sar de tudo, não sentia perplexidade, nem insuficiência; não via desordem
em mim; fora é que o caos surgira, aí é que estava.... Nunca senti angús-
tia. À hora do banho, ainda me lembro dos numerosos movimentos de gi-
nástica, dos saltos mortais.... Também me lembro de haver tido muitas
conversas longas, à tarde; sobre o que, todavia, não me lembro mais. To-
das as particularidades me escapam inteiramente.... ideias confusas: tudo
quanto é pensamento tão empalidecido, tão vago, sem nenhuma preci-
são.... Sobre os estados de rigidez: “Não era por si mesmos que os múscu-
los enrijeciam; eu é que os distendia com todas as forças que tinha” (Kron-
feld).

§ 4. A Classificação Das Doenças (Esquema


Diagnóstico).

Embora conheçamos, no particular, certos fenômenos, relações- cau-


sais e conexões significativas etc., apresentam-se-nos configurações das
totalidades mórbidas formando — pode-se dizer — um tecido infinito,
inextrincável. Não deparamos com as configurações mórbidas como se fos-
sem plantas que classifiquemos num ervário. Pelo contrário, o que é uma
“planta” — uma doença — mostra-se, a rigor, muito incerto.
Quando se pergunta: Que é que diagnosticamos? a prática tem respon-
dido, no correr do tempo, pela denominação de sintomas particulares, pe-
las conexões individuais, pelos complexos sintomáticos, relação causais
etc., até que a ideia de unidade nosológica veio a dar ao diagnóstico seu
sentido significativo próprio e, também, irrealizável. O diagnóstico deve
atingir um evento mórbido único, incluindo todos os aspectos, evento que
haja acometido certo indivíduo e que valha por si, sempre preciso, ao lado
de outras unidades determinadas.
Quando projetamos um esquema total das psicoses (o esquema diag-
nóstico), estamos querendo coordenar todos os pontos de vista que discu-
timos como sendo particulares; todavia, mesmo assim esquematizando,
notamos que não funciona; que classificamos temporária e arbitraria-
mente; que existem possibilidades diversas, as quais levam alguns pesqui-
sadores a formular esquemas diferentes; que a classificação sempre se afi-
gura inconsistente, sob o aspecto quer lógico, quer fatual.
Por que, então, se está sempre fazendo e refazendo esta tentativa? Em
primeiro lugar, porque queremos ver, para fins cognoscitivos, o que é que
alcançamos com a ideia de unidade nosológica, no tocante à visão total
das doenças psíquicas em causa: ainda que não tenhamos êxito, pelas
discrepâncias sempre radicais, ficamos conscientes do estado de nosso co-
nhecimento. Em segundo lugar, toda apresentação feita pela psiquiatria
especial precisa fundar-se numa classificação das psicoses, sem o qual es-
quema não lhe é possível dispor seu material. Em terceiro, porque um es-
quema é necessário, como meio de apreender, estatisticamente, grande
número de doentes.

a) Requisitos para o esquema diagnóstico.


O esquema ideal tem de preencher os seguintes requisitos: Há de ser
tal que cada caso só se possa classificar num lugar; que cada caso encon-
tre um lugar; que a classificação seja objetivamente compulsiva, de modo
que observadores diferentes concluam pela mesma classificação dos ca-
sos.
Semelhante esquema só seria possível se todo adoecimento da psique
se pudesse dividir segundo espécies que se excluíssem, reciprocamente,
no caso particular; que subsistissem, de acordo com sua essência, ao lado
umas das outras; e realizassem a ideia de unidade nosológica. Porque este
não é o caso, têm-se de formular =os requisitos, tendo em vista aquele
ideal, da seguinte maneira:
As grandes linhas básicas, as simples linhas básicas hão de apresen-
tar-se decisivamente.
A subdivisão tem de ocorrer na medida da essencialidade para a con-
ceituação total.
Aquilo que, contíguo, se afigura homogêneo precisa colocar-se no
mesmo plano, conforme o significado que tiver (significado do fato, dos
conceitos, da pesquisa metódica). O que for heterogêneo ver-se-á em opo-
sição clara.
Não se pode encobrir coisa alguma que se ignore. O que for contraditó-
rio há de destacar-se. Antes a decisão e, daí, o estímulo do descontenta-
mento do que a aquietação num pseudo-saber da aproximatividade e da
classificação meramente lógica.
Assim, pois, quando formulamos certo esquema diagnóstico, só pode-
mos proceder renunciando a alguma coisa, de início. Em oposição à ideia
de unidade nosológica, temos sempre de preferir um dos pontos de vista
(causa, estrutura psicológica, achado anatômico, curso e êxito); e temos,
em oposição aos fatos, de estabelecer limites onde não os há; donde ser
sempre provisório o valor ordenativo de semelhante classificação. Esta é
uma ficção que preenche sua função, uma vez que, ao tempo, seja relati-
vamente a mais correta. Não existe sistema “natural” em que se possam
classificar todos os casos. Até o mais experimentado dos psiquiatras está
sempre deparando com inúmeras situações que não conhece e que, de iní-
cio, não pode classificar, seja qual for o esquema diagnóstico em que se
baseie (foi o que reconheceram, por exemplo, Gaupp e Wernicke).

b) Linhas de esquema diagnóstico.


Se bem que haja muitos esquemas diagnósticos, as variações entre os
mais recentes parecem reduzir-se. Certas concepções fundamentais se im-
põem com base em conhecimento mais real e talvez pelo efeito concomi-
tante da tendência moderna para as normalizações convencionais. Tenta-
rei resumir no seguinte esquema as ideias básicas atuais:
Grupo I: As doenças somáticas conhecidas com distúrbios psíquicos
1. Doenças cerebrais:
• Ferimentos cerebrais.
• Tumores cerebrais.
• Infecções agudas: meningite, encefalite letárgica.
• Infecções crônicas: paralisia geral, lues cerebral. Escleroso múlti-
pla (?).
• Angiopatias: arteriosclerose, embolia, hemorragias cerebrais.
• Atrofias sistêmicas hereditárias: coreia de Huntington, doença de
Pick, doença de Parkinson.
• Destruições orgânicas relacionadas com a idade: debilidade men-
tal congênita ou adquirida em consequência de processos cere-
brais — Debilidade mental de tipo congênito como defeito cere-
bral. Daí originam-se transições para variações anormais da
constituição (Grupo III).
• Formações regressivas da idade (involução): demência senil, do-
ença de Alzheimer. Daí originam-se transições para o envelheci-
mento anormal, sem processo mórbido específico.
2. Doenças somáticas com psicoses sintomáticas’.
• Doenças infecciosas. Doenças endócrinas (por exemplo, tireogê-
nicas: cretinismo, mixedema, Basedow). Uremia, eclampsia etc.
3. Intoxicações:
• Álcool (estados de embriaguez, alcoolismo crônico, delirium tre-
mens); morfina, -cocaína etc. óxido de carbono etc.
Grupo II: Os três círculos das grandes psicoses
1. Epilepsia verdadeira.
2. Esquizofrenia (tipos: hebefrenia, catatonia, formas paranoides).
3. Doenças maníaco-depressivas.
Grupo III: As psicopatias
1. Reações anormais autônomas, que não se baseiam em doenças dos
Grupos I e II.
2. As neuroses e síndromes neuróticas.
3. Personalidades anormais e seus desenvolvimentos.

c) Explicações sobre o esquema.


1. Caracterização dos três grupos:
aa) As doenças do Grupo I são processos somáticos conhecidos, nelas
se satisfazendo o impulso à descoberta de “unidades nosológicas reais”.
Mas a ideia kahlbaum-kraepeliniana de unidade nosológica coincide, aqui,
com processos cerebrais e unidades somáticas. Posta de lado a ideia, já se
apreende o processo biológico- unitário de causa determinada como uni-
dade nosológica satisfatória.
bb) O segundo grupo abrange as doenças mentais e afetivas que conti-
nuam a ser o grande problema capital da psiquiatria. Nelas se inclui a
grande maioria dos pacientes internados em manicômios. Provisoria-
mente, colocam-se em três círculos: as doenças convulsivas que não per-
tencem a processos somáticos conhecidos (epilepsia), as alienações (esqui-
zofrenia) e as moléstias afetivas (distúrbios maníaco-depressivos).
O que há de comum a estes três grupos é, primeiramente: que da res-
pectiva compreensão se originou a ideia de unidade mórbida. Estas molés-
tias mostram-se ao simples olhar que apreenda o todo do evento psíquico-
biológico. Se nos restringirmos a um fenômeno, quer de natureza somá-
tica, quer de natureza psicológica, privamo-nos da visão desse todo pecu-
liar que, no caso, ocorre; daí a exploração destes círculos haver-se aproxi-
mado mais da ideia de unidade nosológica, em vez de coincidir, como
acontece no primeiro grupo. com um evento somático tangível. Que a pa-
ralisia geral haja servido de modelo de unidade nosológica resultou de ha-
ver-se apreendido mal a ideia.
Comum aos três grupos é ainda, em segundo lugar, o fato de os casos
que neles se incluem não poderem situar-se entre as doenças do primeiro
grupo, nem entre os tipos do Grupo III. Ê de admitir-se, contudo, que mui-
tas destas psicoses tenham fundamento somático, o qual há de vir a reco-
nhecer-se; donde será necessário transferir algumas doenças deste grupo
para o primeiro. Aproximam-se, especialmente, de doenças orgânicas cer-
tos casos do círculo epiléptico e também alguns da área esquizofrênica,
cujo caráter de doença somática e cerebral muitos psiquiatras quase não
põem em dúvida; os casos mais distantes, só se aproximando de maneira
questionável, quando muito, são as psicoses maníaco-depressivas, as
quais também são, decerto, de um modo ou outro, somáticas, mas care-
cem, até o momento, de quaisquer achados anatômicos cerebrais (fre-
quentes na esquizofrenia, embora pouco característicos e não gerais), de-
vendo constituir evento muito menos radical do que a esquizofrenia.
Pode-se indagar se basta a classificação de todas as doenças psíquicas
em doenças somáticas, orgânicas, de um lado, e variações do existir hu-
mano, de outro lado; caso em que todas as doenças do grupo II, intermedi-
ário, ou se incluirão no primeiro grupo (e, então, provavelmente, em sua
maior parte), ou ficarão abrangidas pelo grupo III, constituindo variações
particularmente graves; ou pode-se indagar se o segundo grupo, interme-
diário, não representa um corpo de fatos próprio, real. Nesse caso, não se-
ria uma causa mórbida oculta, ainda ignorada, de tipo somático (cerebral
ou extra cerebral) que determinaria este grupo nosológico; e sim alguma
especificidade que só ocorre no homem e que terá de reconhecer-se, a seu
modo, de forma ainda muito mais nítida do que é possível, em nossos
dias. Na esquizofrenia, em particular, é inevitável esta indagação funda-
mental. A favor de seu caráter somático-orgânico falam: os achados somá-
ticos; os estados somáticos mórbidos evidentemente graves, que se apre-
sentam em certas catástrofes metabólicas e episódios febris; a grande afi-
nidade de muitos sintomas da embriaguez pela mescalina com os sinto-
mas de estados esquizofrênicos agudos; o preconceito de que todas as mo-
léstias sejam, em última instância, somáticas. Falam em contrário: a dife-
rença psicopatológica radical, por exemplo, entre a paralisia geral e a es-
quizofrenia, ou entre a destruição grosseira orgânica e a “alienação”; a ces-
sação das manifestações somáticas nos processos prolongados; a falta de
manifestações orgânicas em muitos casos; a escassa probabilidade de a
paranoia, por exemplo, basear-se no mesmo princípio que as doenças ca-
tatônicas com episódios febris agudos.
O núcleo dos três círculos talvez seja alguma coisa de único dentro da
patologia total. Trata-se de várias modalidades pelas quais se configura o
evento orgânico total; trata-se de processos que são, ao mesmo tempo, so-
máticos e psíquicos, sem predominância nem de um lado, nem de outro.
Não se encontra localização anatômica; nem causa somática, nem causa
psíquica. Os fenômenos são, em sua totalidade, relacionados uns com os
outros e combinados de maneira infinitamente variada. O que mais apai-
xona e mais penetrantemente se investiga. do ponto de vista psicológico, é
o círculo esquizofrênico: não existe processo destrutivo orgânico grosseiro;
o mecanismo de relojoaria não está rebentado, como se dá na paralisia ge-
ral, mas, sim, transtornado de maneira estranha e assustadora, sem dei-
xar, no entanto, de andar. Há produtividade específica nestas moléstias. É
certo que acometem o indivíduo do mesmo modo que outras doenças; ne-
las, todavia, o homem afina com o evento mórbido de forma absoluta-
mente diversa da que se constata no primeiro grupo. Se se quiser caracte-
rizar o que há de excepcional, na esquizofrenia, por exemplo, com base na
grosseria de processos destrutivos, poder-se-á falar em processos psíqui-
cos ou processos biológicos; palavras com que se contorna o enigma, sem
apreendê-lo.
Comum aos três círculos, em terceiro lugar, é que não são psicoses
exógenas, mas endógenas. A hereditariedade é causa essencial do respec-
tivo aparecimento; os círculos hereditários constituem-lhes a realidade
tangível, não se apresentando nítidos ao lado uns dos outros, mas for-
mando multiplicidade que confunde. Todavia, o fato de não se conhecer o
que é que se herda (os gens específicos e as combinações de gens) deu ori-
gem ao conceito provisório de classificação dos círculos hereditários.
Em quarto lugar, é comum: o fato de faltar um achado anatômico cere-
bral que mostre a essência de doença. Nas moléstias maníaco-depressivas,
falta qualquer achado anatômico cerebral; nas esquizofrenias, veem-se
achados frequentes, porém pouco característicos e não gerais; nas epilep-
sias, encontram-se achados anatômicos por lesões convulsivas (do corno
de Amon e outros pontos); nenhuma correlação do processo mórbido se
vê, todavia.
Para compreender a significação destes três círculos, tem-se de saber
por que forma eles surgiram, na história da ciência. Kraepelin, que distin-
guiu o segundo e o terceiro círculos de maneira até hoje válida, foi quem
apreendeu a diferença psicológica da vida psíquica natural e esquizofrê-
nica pela diversidade no curso da moléstia (progressivo e incurável, ou fá-
sico e curável).
• Esquizofrenia: Processo em que acontece alguma coisa que não
se pode fazer retroceder, e que, portanto, é incurável. — Comple-
xos sintomáticos da vida psíquica esquizofrênica — Tendência à
demência.
• Doenças maníaco-depressivas: Fas.es, acessos e períodos da mo-
léstia com cura completa — Complexos sintomáticos da mania e
depressão e dos estados mistos — Êxito sem demência.
A epilepsia é círculo fundamentalmente diverso dos outros dois, com
muito menos transições para eles do que as que existem entre as doenças
esquizofrênicas e maníaco-depressivas, se bem que convulsões também
ocorram na esquizofrenia. Por definição, não existe epilepsia sem convul-
são. Este círculo nosológico caracteriza-se ainda pelos ataques de outros
tipos (ausências, pequeno-mal), pelos equivalentes (disforias) e pelas alte-
rações epilépticas do caráter (perseveração, lentificação, explosividade, de-
mência). Apesar de serem essenciais a este círculo os fenômenos psicológi-
cos, não se baseia, absolutamente, o princípio da delimitação num todo
psicológico, tal qual é a vida psíquica esquizofrênica; ou como são os esta-
dos afetivos e temperamentais que se podem caracterizar nitidamente nas
doenças maníaco-depressivas.
Os três círculos destes grupos não são, pois, em absoluto, equivalen-
tes, embora contíguos. Não significam três processos, nem eventos, nem
transformações vitais da mesma espécie que só se diversifiquem em moda-
lidades; são, sim, concebidos com base em princípios diferentes.
cc) No terceiro grupo é que as tentativas de classificação empreendidas
por vários pesquisadores menos coincidem. O diagnóstico perde-se na de-
terminação de fatos particulares, mecanismos, estados, caracteres etc.
Discutindo o assunto, destacamos, de um lado, as reações, isto é, os
estados reativos e os modos comportamentais; de outro lado as personali-
dades típicas em seus desenvolvimentos biográficos e, intermediaria-
mente, a quantidade de fenômenos ou manifestações que chamamos neu-
róticos, histéricos, psicastênicos, neurasténicos etc. Nesse círculo tipoló-
gico médio, contam-se, sob o ponto de vista dos sintomas objetivos indivi-
duais: as neuroses de órgãos, tiques, gagueira, enurese noturna, hábitos
como a onicofagia, distúrbios do comportamento, como a timidez etc.; sob
o ponto de vista dos distúrbios impulsivos: perversões sexuais, atos impul-
sivos, masturbação anormal, vícios etc.; sob o ponto de vista de modos vi-
venciais específicos recentes e estados variados: neuroses obsessivas, fo-
bias, neuroses de angústia etc.; sob o ponto de vista de mecanismos pecu-
liares: sintomas histéricos, psicastênicos etc.
Porque é difícil conseguir uma classificação que se possa utilizar sob o
aspecto diagnóstico, tendo em vista fenômenos que se confundem e se in-
terpenetram ao infinito; e porque a realidade deles consiste para os psico-
terapeutas, sobretudo, na resistência que opõem à cura, J. H. Schultz ten-
tou obter, a partir dessa dificuldade e nessa resistência mesma, os princí-
pios classificativos mais radicais. Primeiramente, visto que tanta coisa
(quanto ao mais diversa) aparece no mesmo neurótico, variando e mu-
dando por forma qualitativa e gradual, distingue ele a personalidade geral-
mente neurótica das neuroses individuais, que aparecem relativamente
isoladas (e, depois, se desenvolvem nitidamente conforme sua peculiari-
dade, persistindo por longo tempo no mesmo paciente). Segundo: Porque
muitos caracteres, neuroses, reações resistem às tentativas de cura e es-
capam, permanentemente, a qualquer integração na vida social, ao passo
que outras perdem seus sintomas por si mesmos ou sob a influência psi-
coterapêutica, experimentando, no correr da existência, transformações no
sentido de o comportamento ajustar-se à existência, Schultz distingue os
psicopata# incuráveis das personalidades neuróticas curáveis: o critério
em que o diagnóstico se baseia é, portanto, o êxito curativo. — Ambas as
diferenciações parecem-me constituir, como é de presumir constituam
para o próprio Schultz, simplificações eficazes em vista de fins práticos:
para lidar com seres humanos, tudo precisa ter nome. Quando não sabe-
mos, temos de proceder, provisoriamente, como se soubéssemos. É enge-
nhoso e legítimo, em toda prática, tocar, mediante tautologia oculta (o in-
curável resulta da incurabilidade), em profundidades que ainda não são
acessíveis, ou que não o são de modo geral. A tautologia é forma metodoló-
gica básica em metafísica. Em psicopatologia, é inevitável, quando se quer
exprimir a vivência terapêutica que escapa à possibilidade de generaliza-
ção. Mas é, certamente, duvidoso haja alguma coisa de comum aos paci-
entes nos quais a terapêutica é inútil além do insucesso médico (vale tam-
bém, em toda a medicina, o princípio de que as classificações nosológicas
e os diagnósticos pelo êxito terapêutico levam ao erro). Schultz ira, porém,
a seguinte conclusão de sua classificação básica: considera os psicopatas
histéricos e as personalidades histéricas essencialmente diversos, ao
mesmo tempo que separa, dentro do campo total das neuroses, os indiví-
duos com distúrbios impulsivos, os infantis, os pseudologistas etc. em psi-
copatas incuráveis e neuróticos curáveis. As mesmas manifestações, os
mesmos fenômenos (neuroses, reações, caracteres) podem constituir sin-
tomas de um ou de outro.
J. H. Schultz ainda projetou uma classificação das neuroses pelo
ponto de vista da profundidade cora que se enraízam na personalidade.
Assim é que distingue neuroses exógenas estranhas (de condicionamento
essencialmente externo, facilmente curáveis pela remoção da noxa — re-
conformação apropriada do espaço vital); neuroses psicogênicas marginais
(resultantes de conflitos somatopsíquicos) ; neuroses estruturais (ou de es-
tratos'), que resultam de conflitos psíquicos internos; e, por fim, neuroses
nucleares, que se enraízam no próprio caráter e em seus conflitos “au-
topsíquicos”, só sendo curáveis lenta e dificilmente pelo desenvolvimento
caracterial. Em poucas palavras: o que se cura pela reconformação das
condições vitais é neurose estranha; o que se cura por sugestão, exercício
ou treinamento autógeno é neurose marginal; o que, além disso, precisa
de psicocatarse e persuasão é neurose estrutural, ou neurose de estrato;
quando, porém, uma psicologia profunda (Freud, Jung) tem de transfor-
mar o próprio homem, através de procedimento a longo prazo, a fim de cu-
rar-lhe a neurose, nesse caso se trata de neuroses nucleares caracterogê-
nicas (nas quais o homem não tem uma neurose, e sim é ele próprio neu-
rótico) . — Mas também é questionável o diagnóstico que se funda nestas
ideias, às quais subjaz um ponto de visto muito geral, ainda relacionado
com o êxito terapêutico; ponto de vista passageiramente luminoso, mas
que não possibilita sequer, por essa via, a qualquer pesquisa progredir
com resultados tangíveis, porque estas categorias se hão de aplicar con-
forme a medida arbitrária em que se explora o ¡paciente inteiro; e isso em
vasta extensão. Pela concepção de Schultz, todas as neuroses serão, afi-
nal, de um modo ou outro, afinal, neuroses nucleares; e as neuroses mais
sérias também hão de dar origem a meras neuroses estranhas.
dd) Os três grandes grupos são essencialmente diferentes. Falta-lhes o
único ponto de vista unificador supremo, no qual teria de basear-se a clas-
sificação sistemática dos três grupos nosológicos. Muda o ponto de vista
para cada grupo: unidades somáticas, unidades psicológicas e evolutivas,
variações da natureza humana, também mudando, concomitantemente, o
próprio conceito de doença: em cada grupo individual, a ideia de unidade
nosológica permanece sempre incompleta, em favor de um ponto de vista
particular, que vem a tornar-se decisivo.
2. O sentido do diagnóstico nos três grupos. No primeiro grupo, é possí-
vel diagnóstico exato, não havendo, em absoluto, transições de morbidez
para saúde. A doença ou é paralisia geral, ou não é; o distúrbio é somá-
tico. — No segundo grupo, também ainda não há limite preciso entre sa-
úde e morbidez. Os dois grupos delimitam-se entre si; sem precisão, con-
tudo. Variam as concepções básicas no tocante à extensão e delimitação
do círculo em causa. O diagnóstico é psicológico (no caso da epilepsia, pelo
ataque convulsivo, associado ao diagnóstico psicológico). Na maioria dos
casos, embora muitos outros ainda restem, é claro o diagnóstico quanto
ao círculo em que se enquadra a doença. — No terceiro grupo, nem o li-
mite entre os tipos é nítido, nem existe, a cada caso, delimitação precisa
entre saúde e morbidez. O diagnóstico vem a ser tipológico e pluridimensi-
onal, abrangendo, pelo menos, a caracterização do tipo de personalidade,
do tipo dos achados individuais existentes, dos estados e mecanismos.
Resulta que diagnóstico propriamente dito só é possível e necessário
dentro do primeiro grupo. Dentro do segundo grupo, certamente, a maio-
ria dos casos enquadrar-se-á num dos três círculos, conforme a concepção
geral dos psiquiatras modernos, sem que, entretanto, o diagnóstico seja
claro, no todo, e sem que a discussão quanto ao diagnóstico diferencial
leve a qualquer resultado. Dentro do terceiro grupo, só tem valor a análise
fenomenológica, geneticamente compreensiva e causal do caso, tão com-
pleta quanto possível; só vale a apreensão tão precisa quanto possível da
personalidade, de suas reações e biografia, seus desenvolvimentos; o diag-
nóstico; porém, abstraída a integração em agrupamento tipológico múlti-
plo, é impossível.
Por conseguinte, diagnostica-se, no primeiro grupo, de acordo com es-
pécies nosológicas, nas quais um caso se enquadra ou não; no terceiro
grupo, a concepção baseia-se em tipos, muitos dos quais coincidem, se-
gundo os pontos de vista, no mesmo caso. No segundo grupo, pensa-se
em espécies nosológicas, se bem que se lhes- ignore a causa e a essência
precisas; na realidade, porém, ainda nos prendemos muito a tipos.
Conforme a espécie de diagnóstico possível — que só é preciso' no pri-
meiro grupo, referindo-se, nos outros dois, apenas a grandes círculos e
aos grupos totais — varia o peso que se dá à importância do diagnóstico.
Este, no primeiro grupo, permite apreensão* exata por força do conheci-
mento preciso; nos dois últimos grupos, o diagnóstico abre apenas espaço
a grandes círculos, espaço pelo qual, é certo, se conduz a indagação ulte-
rior, sob determinados aspectos; mas no qual a atividade essencial ainda é
a análise do caso particular debaixo de todos os pontos de vista.
3. Primazia diagnóstica dos sintomas na série grupal. O princípio do di-
agnóstico médico é que todos os fenómenos mórbidos devam ser abrangi-
dos num diagnóstico único. Se existem, concomitantes, várias manifesta-
ções ou fenômenos, indaga-se a quais se há de dar a primazia no diagnós-
tico, de modo a se considerarem os outros fenômenos relacionados, de-
pendentes, secundários ou provisórios. Para tanto, é de importância deci-
siva que aqueles fenómenos que ocorrem autônomos nos grupos subse-
quentes de nosso esquema também apareçam nos grupos anteriores e, de-
pois, se reduzam ou a sintomas de outro processo básico, ou a fenómenos
acessórios. Assim é que há neuroses frequentes nas doenças orgânicas; o
quadro inicial da esquizofrenia ou da doença maníaco-depressiva é, por
vezes, puramente neurótico na aparência; a doença obsessiva apresenta-
se não só essencial nas psicopatias, como também acidental na esquizo-
frenia, na encefalite letárgica etc. Diz-se também que fenômenos neuróti-
cos se sobrepõem ao processo básico. Por conseguinte, quando se faz o di-
agnóstico, é sempre o grupo anterior que tem a primazia. Diagnosticam-se
neuroses e personalidades psicopáticas quando não se tem evidência de
processo; e quando não se encontram sintomas somáticos de doença orgâ-
nica em que se possa basear o todo; diagnostica-se processo “esquizofrê-
nico” desde que faltem características somáticas. Mas se existirem estes
sinais somáticos, pensa-se, de início, em atribuir tudo- ao processo somá-
tico (por exemplo, a encefalite). Podemos ilustrar pictorialmente a situação
da seguinte forma: Os sintomas somáticos colocam-se à maneira de pla-
nos, uns por cima dos outros: em cima os sintomas neuróticos (psicastê-
nicos, histéricos); depois, os. maníaco-depressivos; depois, os sintomas
processuais (esquizofrênicos); finalmente, os sintomas orgânicos (psíqui-
cos e somáticos). O estrato mais baixo, ou mais profundo, que se alcança
com a. exploração do caso particular, é que decide o diagnóstico. O que a
princípio, pareceu histeria vem a ser esclerose múltipla; uma neurastenia,
paralisia; uma depressão melancólica, processo etc.
Esta relação primacial no valor diagnóstico dos sintomas coincide com
um restringimento da significação daquilo que se diagnostica: no primeiro
grupo, é, apenas, um elemento da vida inteira, uma moléstia somática,
que nada representa senão um fato particular no meio de tudo quanto
compreende a personalidade total, concebida em termos biográficos e eido-
lógicos. Inversamente, é na totalidade dos pontos de vista pelos quais se vê
o terceiro grupo- que se realiza em mais extensa medida a revelação da
pessoa total, embora tudo que é particular possa ser sintoma de processos
enquadrados no Grupo I.
4. Combinação de psicoses (psicoses mistas). A ideia de unidade noso-
lógica leva a esperar que não se possa diagnosticar, no indivíduo particu-
lar, senão uma doença; devem ser exceções as combinações de psicoses.
Ora, na maioria imensa dos casos, isso- só é válido para os processos or-
gânicos cerebrais, havendo, contudo, também aqui, combinações autênti-
cas: por exemplo, paralisia geral mais tumor; paralisia mais lues cerebral
etc. No caso, associam-se duas espécies mórbidas. Pelo contrário, não só
se admite, como se vê habitualmente, derivarem de vários tipos as carac-
terísticas de um caso; assim é que, no mesmo indivíduo, se encontram ti-
pos caracteriais diversos, reações, neuroses. Pensamos, então, no caso de
haver processo esquizofrênico, em responsabilizá-lo por todos os sintomas;
o que é, no entanto, pressuposição, ou hipótese. Em princípio, não se
pode negar, absolutamente, estejam os três círculos do segundo grupo re-
lacionados uns com os outros por uma forma que não se compara nem à
exclusividade discriminativa do primeiro grupo, nem ao entrecruzamento
quase arbitrário dos tipos que constituem o terceiro grupo. São insatisfa-
tórias todas as concepções que formamos até o momento, falhando a se-
paração em unidades nosológicas ante os casos mistos indissolúveis; o
quadro de misturas e combinações fluidas de muitos gens desconhecidos
torna-se, no entanto, falso quando se pensa nos tipos principais nítidos,
que são maioria; seria irrealizável o retomo à ideia de psicose unitária no
que diz respeito a este segundo grupo. É impossível reduzir os quadros
dos fenômenos psicológicos em suas formas clássicas, e, bem assim, dos
cursos da moléstia, dos círculos hereditários, das configurações somáti-
cas, fisiognomônicas, constitucionais, caracterológicas, a uma unidade
que tudo apreenda e inclua. Tal só se consegue com a exclusão forçada de
certos fatos, sejam quais forem, ou com a criação de um quadro apagado,
no qual haja transições de tudo para tudo. Até o presente, não consegui-
mos alcançar a relação contínua entre os fatos e as unidades nucleares
essenciais da própria realidade, porque ainda são misteriosas tanto a co-
nexão quanto a discriminação dos três círculos. São, exatamente, os psi-
quiatras mais experimentados que têm afirmado com insistência: o que é,
de fato, a epilepsia, o que são os outros dois círculos lhes parece haver-se
tornado mais obscuro do que claro, embora haja aumentado o conheci-
mento preciso das particularidades.
Não é de negar, absolutamente, em princípio, que um processo .se
possa combinar com a doença maníaco-depressiva; ou uma encefalite,
com uma esquizofrenia.
Escreve Gaupp: “Todos nós conhecemos o fato de um paciente fásico
curar-se inteiramente, uma vez cessada a excitação, sem qualquer defeito
que se possa comprovar; com plena compreensão da doença, sem deterio-
ração da personalidade; e, depois, vir, novamente, a apresentar deteriora-
ção esquizofrênica. Também conhecemos o fato de um quadro aparente-
mente catatônico, ou esquizofrênico-dissociativo curar-se com rapidez, re-
aparecer muitas vezes sob a mesma forma, curar-se de novo, sem nunca
levar à demência. Conhecemos os velhos circulares, que vêm a ser, afinal,
incuráveis, e os paranoicos, que jamais demenciam, do tipo de Strindberg.
Estes são os casos que fazem duvidar da discriminação radical entre
psicoses esquizofrênicas e maníaco-depressivas, se bem que ela pareça
ocorrer, na maioria dos casos. Talvez seja possível explicá-la com base em
combinação diversa dos gens, mistura dos gens provenientes dos dois cír-
culos hereditários. Estamos, no entanto, muito longe da certeza.
5. A significação fecunda das discrepâncias. É quando mostra discre-
pâncias que o esquema diagnóstico mais interessante se torna. Se quiser-
mos levar adiante a inquirição, teremos de partir tanto dos casos que na?
se localizam em ponto algum quanto dos grupos nosológicos sem localiza-
ção precisa; ou ainda daqueles em que várias localizações do esquema di-
agnóstico pretendem prender-se a um caso ou a um grupo. É, então, de
importância prática (sem relevância para o conhecimento, todavia) saber
se certos casos ocorrem raramente, ou se são frequentes. Neste sentido,
continua em pauta a indagação concernente à delimitação -das doenças
psíquicas; e isso se deve, por exemplo, à chamada paranoia, que tem im-
portância nosológica teórica, embora sejam raríssimos esses casos. Krae-
pelin definiu a paranoia como sendo “o desenvolvimento insidioso, resul-
tante de causas internas, de um sistema delirante permanente, inabalável,
com conservação absoluta da clareza e ordem ideativa, volitiva e atuativa”.
À indagação quanto a se tais casos realmente ocorrem respondem uns
poucos de modo afirmativo. Há, de fato, homens cuja vida inteira se obser-
vou ao longo de vários decênios, apresentando-se plenamente lúcidos,
com delírio elaborado. Na tentativa de compreendê-los, a discussão de
quase todos os princípios que dizem respeito à formação de unidades no-
sológicas resultou da dificuldade de situá-los no esquema diagnóstico. De
um lado, parecem existir transições para desenvolvimentos da personali-
dade; de outro, para processos esquizofrênicos. Sob o aspecto da estatís-
tica familial, há correlação nítida com o círculo hereditário esquizofrênico
(Kolle). Contrariamente à tendência que alguns pesquisadores mostram no
sentido de classificar esses paranoicos noutra posição e fazê-los desapare-
cer com a formação de grupo à parte, Gaupp mantém-se fiel ao conceito
de paranoia (principalmente, tendo em vista o caso Wagner, por ele estu-
dado, se bem que um tio-avô do paciente fosse esquizofrênico); assim pro-
cede Gaupp, a meu ver, movido pelo instinto de verdadeira intuição — por
assim dizer, defendendo a última posição de alguma coisa que teria de de-
saparecer, mesmo com o aspecto de indagação, se se optasse pela nivela-
ção da paranoia na massa dos grandes grupos nosológicos. Não se resolve,
a esta altura, problema algum, mas se mantêm o espanto e a inquirição.
Escreve Gaupp: “Se empatizei e compreendi Wagner, 'tal qual vários ou-
tros delirantes, foi porque não era esquizofrênico, e sim paranoico; e foi
porque, em seu caso, pude conhecer um indivíduo e sua vida inteira, até
os derradeiros recessos de sua alma, pelo fato de ele. me haver defrontado,
durante um quarto de século, com raro vigor de auto-observação, rara ca-
pacidade de exprimir suas vivências e rara confiança em seu médico”.
d) Trabalho estatístico com auxílio dos esquemas diagnósticos.
Motivo capital para que se projetassem os esquemas diagnósticos foi o
censo estatístico dos pacientes de instituições, policlínicas e consultórios.
Para que fazer esse censo? Em primeiro lugar, para obter objetivação do
material, com fins civis; em segundo, para confrontar, em entendimento
recíproco, os traços básicos da situação real de cada instituição; em ter-
ceiro, para controlar a concepção total sempre válida e testá-la mediante
sua aplicação; enfim, para estabelecer um ponto de partida que servisse
às pesquisas: quando se quer investigar um problema, devem-se poder en-
contrar os casos relevantes no material imenso das histórias clínicas.
Os problemas metodológicos podem resumir-se em poucas linhas: Que
é que se quer contar? A cifra inteira dos pacientes. — De acordo com que
características? — De acordo com a idade, sexo, procedência etc.; de
acordo com inúmeras manifestações individuais possíveis de estabelecer.
Assim fazendo, não se chega, porém, a conclusão alguma; quer-se contar
de acordo com a totalidade das manifestações mórbidas como se fõsse o
essencial; portanto, de acordo com unidades nosológicas. — Mas se não
houver unidades nosológicas, de acordo com que se contará? De acordo
com concepções globais que mais se aproximem das unidades nosológi-
cas. — Visto, porém, serem estas de caráter variado e heterogêneo, como é
que um esquema significativo há de surgir para fazer o censo? Só um es-
quema ilógico, inconsistente é que se obterá, resultante da determinação
alternativa daquilo que realmente se apreende e daquilo que fornecem os
conhecimentos gerais eventuais. Se se quiser apreender e confrontar a
massa dos pacientes de acordo com diagnósticos nosológicos, ter-se-ão de
admitir erros, visto ser claro que um esquema diagnóstico que se haja de
aplicar e executar por forma, coerente, só se poderá estender às doenças
cerebrais tangíveis, às intoxicações em geral reconhecidas, às psicoses so-
máticas; enfim, ao primeiro grupo. Mais ainda: só no todo é que se podem
atingir, mediante apreensão coerente, os grandes grupos; os grupos se-
gundo e terceiro, apenas de certo modo e sem univocidade plena. As dis-
criminações mais, sutis oscilam entre limites bastante amplos.
Daí ser inevitável que queiramos estabelecer, embora constitua justifi-
cação insuficiente, um esquema relativamente “utilizável” para fins “práti-
cos”; associar os diversos pontos de vista e promover um compromisso en-
tre as concepções das várias escolas. Sempre que falhar a contagem de ci-
fras idênticas, faltará firmeza à estatística. Ê, pois, compreensível que,
sempre falhos se apresentando os esquemas, sempre nos estejamos esfor-
çando por outros.
Vamos recordar os requisitos dos esquemas diagnósticos.
• Em primeiro lugar: os esquemas diagnósticos devem ordenar-se
de forma lógica e, pois, conter ou partes claras, ou enumerações
simples e precisas. Qualquer mistura dos pontos de vista mais
diversos leva a confusão, obscurecendo o esquema. Todavia, em
nossos esquemas diagnósticos, a falta de clareza, lógica e elegân-
cia serve não só para conhecermos o que há na generalidade,
mas também para conservarmos presente, de forma sensível,
aquilo que é concreto. Todos os esquemas diagnósticos hão de
ser um tormento para o cientista.
• Segundo: A estatística só tem significação relativamente àquilo
que cada observador sempre reconhece e conta de maneira coe-
rente. Se não for este o caso, como acontece nos círculos dos se-
gundo e terceiro grupos, só resta a esperança de atingir, entre-
tanto, nos limites numéricos consideravelmente flutuantes, certo
núcleo comum; de tal modo que as pesquisas baseadas em sele-
ções assim feitas dentre a massa dos pacientes tenham chances
de encontrar neles o que procuram.
• Terceiro: No esquema diagnóstico, cada caso só pode aparecer
uma vez no lugar único a que corresponde. Daí porque, como ru-
brica diagnóstico-esquemática, só ser utilizável aquilo que se
apresenta, exclusivamente, no indivíduo particular (isto é, existe
ou não). Não sendo isso possível, tem-se de renunciar, em geral,
ao censo nosológico. Se o esquema diagnóstico for deficiente,
deve-se substituí-lo por outros, em que cada caso possa aparecer
com frequência, segundo diversos pontos de vista. Todos os da-
dos que se possam apreender sujeitam-se a enumeração; mas já
não se enumeram doenças.
É das estatísticas de cifras de pacientes fundadas nos esquemas diag-
nósticos que partem investigações importantes-, principalmente, pesqui-
sas genéticas, determinações demográficas sociológicas, descrições nosoló-
gicas com que se ocupa a psiquiatria especial. Em cada uma dessas inves-
tigações, elas não são mais, todavia, do que o ponto de partida, exigindo
sempre determinações estatísticas novas e mais laboriosas.
As investigações feitas em torno da paralisia geral, estendendo-se ao
curso da doença, à distância entre infecção e começo, à distribuição etá-
ria, bem como a certos grupos sociológicos etc., mostram quanto pode ser
instrutivo e inobjetável o trabalho que se faça com processos cerebrais
tangíveis.
Se se seguirem as estatísticas hospitalares e os esquemas diagnósticos
nelas usados, no correr de vários decênios, ter-se-á um quadro instrutivo
do estado da ciência psiquiátrica, das flutuações extraordinárias que têm
sofrido as concepções dominantes e das incertezas consideráveis. Mas
também se verá que se caminha no sentido da unificação crescente das
categorias. O acordo enriquece-se em saber essencial e- também em cog-
nição mais crítica.
4.2.
A VARIEDADE GENÉRICA DO HOMEM (EIDOLOGIA)

a) A ideia do eidos.
A desigualdade dos seres humanos tem fundamento biológico: os ho-
mens são diferentes conforme os sexos, conforme a raça e conforme a
constituição. Em vista deste fato que se constata no conjunto da humani-
dade, pergunta-se: A infinita multiplicidade das diferenças individuais só
resulta de causas múltiplas, apenas diversamente distribuídas (os homens
seriam agregados diversos de elementos casualmente atirados uns contra
os outros); ou há um número limitado de totalidades, nas quais a multipli-
cidade das variações se subordina, necessariamente, a elos conexos de
configurações amplas em que a existência humana se apresenta? O prin-
cípio destas totalidades já não seria um fator causal ao lado de outros; e
sim alguma coisa que seria o traço essencial da totalidade humana. Certa-
mente, podem fatores particulares atuar sobre todas as funções, sobre as
modalidades vivenciais e comportamentais do homem, continuando, po-
rém, a ser, apenas, fatores particulares ao lado de outros. A ideia (metodo-
logicamente subjetiva) de uma totalidade é que nos conduz, a fim de apre-
ender o eidos (com que deparamos objetivamente) na construção da uni-
dade corpo-alma, como sendo o todo estrutural de uma essencialidade
substancial; todo em que estão contidos, ordenados e modificados os di-
versos fatores individuais. Seria bom para uma biologia da personalidade
ver esta totalidade humana enraizar-se no fundamento vital, que varia em
poucas configurações básicas de maior porte.
Esta alternativa — o homem é agregado acidental de fatores individu-
ais, ou todo originariamente específico? — não é alternativa autêntica. O
que há, sim, é que, em dois planos heterogêneos da pesquisa, ora vale,
num, aquele pensamento racional afinal sempre mecânico; noutro, esta
intuição, guiada por ideias, de configurações ou formas. A realização cien-
tífica da visão ideal relativamente à totalidade dirige-se, entretanto, para a
análise racional dos elementos; donde surge um movimento do conhecer,
movimento no qual se tem de evitar o erro para ambos os lados: é errado
pensar que a análise de fatores elementares esgote o - respectivo objeto; e
é errado pensar que o todo da ideia seja, ele próprio, fator que se possa re-
conhecer e dominar como tal.
Indaguemos, pois: Há uma unidade do todo em forma de série finita de
unidades diversas? A resposta é a seguinte: Há em forma de ideias, não
em forma de séries finitas de essências reconhecidas como sendo tais.
Indaguemos ainda: Os princípios destas totalidades talvez não sejam
mais do que achados individuais absolutizados, com força marcante espe-
cialmente intensa para a quantidade de fenômenos psíquico-somáticos?
Ou são, em contraste com todos os achados individuais, princípios de ori-
gem própria, a saber, princípios do todo, sem mera peculiaridade, em ab-
soluto? — A resposta é a seguinte: Aquilo se encontra sempre pela análise
causal, se se descobrir alguma coisa desta ordem (por exemplo, certos
hormônios sexuais, com seus efeitos fisiológicos e morfológicos); e o que ti-
ver sido achado já não será a totalidade; isto, porém, continua sempre no
limite da análise causal.
Entretanto, o que permanece no limite são os princípios das totalida-
des, princípios que se deduzem das ideias; que são em si demonstráveis.
Tudo quanto se pode demonstrar diretamente foi discutido nas partes an-
teriores do livro, de acordo com suas formas básicas. Não se acrescenta, a
esta altura, novidade alguma que seja diretamente demonstrável, e sim al-
guma coisa que procuramos apenas pela ideia e que apreendemos, indire-
tamente, pela coordenação do particular, ou individual.
Por conseguinte, é da natureza da coisa que, procurando o todo, só o
apreendamos sempre pelo particular. O todo foge à análise causal, conti-
nua a ser ideia condutora; não se torna objeto que possuamos de modo
cogniscitivo.
É por isto que, no presente capítulo, nada pode aparecer de que já não
saibamos ou possamos saber, como particular, graças a outros métodos.
O que há de novo é que nos guiamos por ideias como se fossem pontos
virtuais. Seguindo semelhante orientação, não só se verá, de maneira pe-
culiarmente clara, uma relação do muito que há de particular entre si,
mas também se perceberão, mediante a nova maneira de inquirir, muitas
particularidades que, doutro modo, deixariam de considerar-se; particula-
ridades que se podem estabelecer em si com os métodos já discutidos.
Chamaremos eidos do homem aquilo que procuramos pela ideia do
todo.

b) Sexo, constituição, raça.


O ser humano, como ser humano, é, certamente, de natureza igual no
que diz respeito a estruturas essenciais básicas, quer seja mulher, quer
seja homem; mongol ou branco, baixo e gordo ou alto e magro. Mas estas
diferenças são tais que o homem individual não pode ser tudo ao mesmo
tempo; é uma coisa, ou outra. Ou é uma terceira coisa, que se chama mé-
dia, mistura ou transição e que pode ser, conforme as conexões de seu
destino vital nelas fundamentado, o inferior, degenerado, decadente, ou o
superior, amplo, harmônico-vivo; mais ainda: o que se desenvolve em sen-
tido progressivo; daí chamar-se híbrido, bastardo ou mediano; ou ter de
valer, exatamente, como ser humano pleno, com possibilidades aumenta-
das.
Se reduzirmos as diferenças essenciais que existem no todo e também
as concepções vitais a seus tipos básicos, tornaremos, mais uma vez, a
partir de achados especiais, do sexo, da estrutura corpórea (constituição),
dos grupos que, através dos séculos, se engendraram no curso da histria
(raça). Pelo que resulta, parece que só apreendemos, ainda aqui, o particu-
lar em sua peculiaridade, e não o todo do existir biológico humano. O sexo
não parece ser, entretanto, mais que a posse de certos órgãos com as con-
sequências que deles derivam; a estrutura corpórea será uma exteriori-
dade condicionada por fatores causais individuais; a raça será mero fato
da variação por força de circunstâncias externas, processo reprodutivo
que talvez se possa controlar e fazer reverter. Se bem que baste exprimir
claramente estas ideias para ver-lhes a inconsistência, não é por meio de
métodos iguais, como se fossem achados individuais, que se prova haver
na diferenciação sexual muito mais do que mera diversidade particular or-
gânica; que se prova não ser a estrutura corpórea mera exterioridade aci-
dental; que se prova ser a raça variedade da essência. Tudo isso está pre-
sente no todo, se o investigarmos através da peculiaridade, sem jamais
descobri-lo em definitivo.
O sexo é uma polaridade básica de tudo quanto tem vida, fundada na
profundidade existencial. A constituição é a cunhagem do tipo segundo al-
guns rumos humanos básicos que, em geral, determinam no todo a essên-
cia eventual. A raça é resultado sempre histórico da reprodução, na trans-
formação muito lenta, mas constante, da corrente vital; cunhagem even-
tual da variedade da essência, levando à individualização histórico-vital do
existir humano.
As dificuldades que se encontram para esclarecer os traços essenciais
do todo biológico são as mesmas quanto a sexo, constituição, raça. Uma
diferença existe, contudo: Quase todos os seres humanos — excetuados os
raros hermafroditas — pertencem a um ou outro sexo. A grande maioria
dos homens pertence, de maneira nítida, aos grandes grupos raciais dos
brancos, pretos, amarelos, já havendo, porém, muitos elos intermediários
(mesmo sem bastardização); mas de referência à constituição, pelo contrá-
rio, não se reconhece a maioria dos homens como pertencentes, por forma
clara e exclusiva, a esta ou àquela constituição. Não é, todavia, decisiva
para a apreensão dos traços básicos que os indivíduos se situem, nesta ou
naquela classificação; semelhante apreensão é igualmente incompleta
quanto a. sexo, constituição e raça.
Se virmos a biologia da personalidade na unidade de corpo e alma, se a
acompanharmos pelo sexo, constituição e raça, perceberemos que os três
se correlacionam estreitamente de acordo com o tipo da respectiva fatuali-
dade. Podemos dizer, é certo: o sexo e a constituição são, em geral, huma-
nos; o que lhes corresponde tem de encontrar-se em todas as raças; o que
é específico à raça não pode ser específico à constituição; o que é consti-
tuição tem de aparecer nos dois sexos. Surgem, contudo, dificuldades,
quando se quer fazer separação absoluta, porque sexo, constituição, raça
são sempre, no indivíduo, um todo biológico. Embora se possa, com cer-
teza, de modo estrito, separar os pontos de vista, a apresentação concreta
dos traços essenciais dá impressão de não ser raro confundir um com o
outro. Há traços essenciais do sexo que são, ao mesmo tempo, traços
constitucionais (por exemplo, a proximidade do sexo feminino em relação
ao tipo pícnico). Certos traços constitucionais parecem coincidir com al-
guns traços raciais (o tipo leptossômico e a raça “nórdica”). O sexo e a raça
são, por assim dizer, maneiras, ou modalidades da constituição; o que não
impede, quando se expõe a matéria, que se fragmente o todo- em várias
totalidades, cada uma das quais incluindo o homem individual em seu lu-
gar.
As características psicopáticas, as neuroses e psicoses, têm relação
com as três grandes variedades essenciais do homem. Daí nossa exposi-
ção culminar sempre no problema: sexo e psicose; constituição e psicose;
raça e psicose.

c) Os métodos da eidologia.
O que determina esses métodos é o fato de não objetivarem qualquer
singularidade tangível, mas uma ideia. Daí terem de ser indiretos. Levan-
tam-se, reúnem-se, coordenam-se os achados particulares infinitos com
base na ideia de serem manifestações de um todo único, todo este que
abordamos, primeiro, pelo configuramento de tipos; segundo, pela indica-
ção de correlações entre os achados individuais.
1. Na eidologia, pensamos, propriamente, em entidades, mas são só ti-
pos que sempre obtemos. O princípio da construção do tipo não é o princí-
pio real da existência efetiva de um todo, mas a tentativa com a qual eu
ainda indago até que ponto é também efetivo aquilo que construo. Na eido-
logia, pensa-se em entidades como totalidades da unidade corpo-alma,
mas não nos é possível apreender diretamente tais entidades. A eidologia
serve-se da tipologia de modo a atingir, indiretamente, as entidades em
que pensa. Enquanto as tipologias constituem construções, a eidologia
visa aos pontos de orientação substancial com relação à realidade' mesma;
usando tipologias variadas, que se estão sempre projetando, proporcio-
nando perspectivas diversas, a eidologia procura aproximar-nos das es-
sencialidades totais; procura aproximar-nos das forças primárias que se
unificam em todos os fenômenos e, assim, os liga de maneira a formar to-
talidades, dentro do existir humano que podemos apreender. O tipo é
sempre uma totalidade apenas relativa, partindo do princípio eventual
para a visão eventual de certo setor. O eidos pretende ser o próprio todo.
Recordemo-nos da multiplicidade extraordinária, ou mesmo da infini-
dade de tipologias possíveis. Sob o aspecto lógico, pode-se apresentá-las
em pares de contrastes, ou em triplicidades, ou de ainda mais dimensões
e respectivas combinações. — Sob o ponto de vista, material, podem-se
projetar formas de vida, pela construção do comportamento em relação a
setores culturais (ativo, contemplativo, teórico, estético, político-econô-
mico, metafísico, religioso etc.); também pela construção de relações bási-
cas com o mundo e a transcendência (na tipologia das filosofias); mais
ainda: por tipos profissionais, tipos ambientais etc. A esta altura, estamos
sempre construindo alguma coisa que se formou historicamente, alguma
coisa intelectualmente criada em sua multiplicidade. Se quisermos, po-
rém, apreender as variedades originárias, precisaremos encontrar os fun-
damentos biológicos não-históricos de que provém o homem, abstração
feita dos conteúdos; para o que, teremos de contemplar forma e função;
teremos de contemplar aquilo que se obtém na estrutura corpórea e em
todo o somatismo, na experimentação rendimental, na modalidade mór-
bida e em todas as objetividades presentes possíveis de investigar. Aqui se
incluem os tipos que foram desenvolvidos do ponto de vista caracteroló-
gico.
Há muitas tipologias. Quase todas, para aqueles que com elas, traba-
lham e se acostumam, têm alguma coisa de acertado e cômodo. Litigam
umas com as outras, mais por hábito dos grupos científicos, do que por
efeito de convicção penetrante que leve a discussão proveitosa. Essencial é
que dominemos a tipologia, não nos deixemos dominar por nenhuma de-
las; e que determinemos o sentido da tipologia como meio auxiliar, sem
nela ver conhecimento real de espécies em que se classifique o existir hu-
mano.
O que temos a fazer, ante a infinidade de tipologias possíveis, é do-
miná-las metodologicamente, visando à unidade do homem individual e à
unidade do existir humano. Todos os tipos são possíveis em cada homem:
cada homem é, potencialmente, o todo, com acentuação, hierarquia de-
senvolvimento e degeneração que varia ao infinito de homem para homem.
Perdem-se possibilidades com o devenir do curso existencial; possibilida-
des que se acham limitadas, antecipadamente, na constituição. Daí poder-
se dizer também: nenhum homem é tudo.
Se indagarmos por que umas tipologias nos impressionam e por que
razão desprezamos outras, que se nos afiguram indiferentes, diremos que
os padrões de tipos concretos se impõem devido à experiência resultante
da força que tem a respectiva objetividade; que tipos múltiplos, projetados
abstratamente mediante esquemas, atendem à aspiração de ordem e pers-
pectiva, quando fornecem os quadros concretos até então adquiridos den-
tro de uma conexão sistemática. Acima de tudo, porém, o que nos conduz,
secretamente, é o interesse pelas formas humanas'; é certa concepção bá-
sica do homem; é a amplitude e plenitude da visão humana.
2. Ao passo que a tipologia faz sempre evidente ao nosso entendimento
a conexão necessária de muitos -fenômenos, movendo-se, porém, no ideal
a que a realidade só corresponde de maneira mais ou menos aproxima-
tiva, o método das correlações pretende estabelecer, empiricamente, o
grau mais ou menos acentuado com que certos fenômenos se ligam entre
si; isto é, com que frequência aparecem concomitantemente, se se medi-
rem e contarem. Quando a frequência da coincidência é tal que existe em
todos os casos (100%), dá-se ao coeficiente de correlação a grandeza 1; se
a coincidência for tal que corresponda por puro acaso à frequência que é
de esperar, tem-se a grandeza 0; o grau de correlação exprime-se, pois,
por cifras que vão de 0 a 1.
Estas correlações também podem ser compreensíveis — por exemplo,
entre qualidades caracteriais — ou podem dar-nos, incompreensivelmente,
a impressão de se correlacionarem alguns fenômenos que para nós são
heterogênos. Assim é que se procurou encontrar a correlação entre quali-
dades caracteriais pela via estatística, contando a frequência com que
ocorrem. Esta investigação objetiva opõe-se, portanto, àquela subjetiva,
compreensiva, constituindo alguma coisa heterogênea. Que pode ela ensi-
nar-nos? Em primeiro lugar, a frequência da coincidência real de qualida-
des compreensivelmente conexas; em segundo, a frequência da coincidên-
cia de qualidades que não são conexas para o nosso entendimento. Visto
que a questão — o que é “qualidade” — depende inteiramente do trabalho
preliminar da psicologia compreensiva, o cálculo da correlação, neste se-
tor, só é possível com base na mesma. Nos inquéritos feitos até o mo-
mento, as personalidades que preenchem os questionários são as em que
se emprega a psicologia compreensiva; setor no qual o procedimento tem
sido pouco seguido; é, entretanto, universalmente utilizável, tendo sido
usado em testes de inteligência, a fim de descobrir a correlação ou inde-
pendência de vários rendimentos intelectivos; usa-se muito, hoje em dia,
em pesquisas genéticas e é também o procedimento com que se pretende
provar, objetivamente, o que há de correlacionado nas constituições.
O defeito do procedimento mostra-se quando se emprega durante
muito tempo. As primeiras cifras correlacionais produzem quase sempre
forte impressão (ganham-se comprovações reais), mas esta não tarda a en-
fraquecer, quando' se nota, dentro de breve prazo, a infinidade das corre-
lações, as quais parecem, de um modo ou doutro, tudo ligar entre si. Per-
cebe-se, então, que as correlações são de bem pouca valia para o conheci-
mento, a 'menos que se apresentem muito fortes. De fato, como tais, elas
são vazias, pelo fato de sempre exigirem que se explique donde resulta-
ram. Só quando há possibilidades de responder à indagação sobre a base
em que se funda a correlação é que esta se torna interessante.
As tipologias podem convencer pela vivacidade; desiludem pela irreali-
dade. As correlações (na medida em que seja unívoco aquilo que se conta)
convencem pela força probante real, desiludindo, entretanto, pela vacui-
dade.
As correlações podem ser absolutas (coeficiente = 0), ou deste aproxi-
mar-se — caso em que são, naturalmente, da maior significação; ou po-
dem ser relativas (entre 1 e 0) — caso em que se pode perguntar que signi-
ficação têm. Podem basear-se em conexão distante, que não se perceba,
absolutamente como tal nos fatos; por exemplo, relações endócrinas, pos-
síveis de abordar, contudo, de outra forma. Como as correlações estatísti-
cas entre testes individuais e achados individuais são, apenas, estatísti-
cas, não significando vínculo necessário; e como são quase sempre de
pouca força, descobrem-se subordinações, as quais se estão sempre dis-
solvendo, contudo; tanto mais quanto o sentido dos muitos achados indi-
viduais não costuma ter o mesmo peso, nem se coloca no mesmo plano.
d) A colheita de achados.
Todos os procedimentos pelos que se estabelecem fatos têm seu sen-
tido na eidologia, quando os fatos são capazes de variar individualmente.
Especialmente, porém, tem-se utilizado, mediante combinação de “tes-
tes”, o método das provas experimentais de rendimentos para encontrar
traços essenciais elementares que sejam representativos. Já Kraepelin
chamava “qualidades básicas da personalidade” as qualidades que se po-
diam estabelecer por meio de sua curva de trabalho (fatigabilidade, recu-
perabilidade, impulsos etc.). Inquirem-se qualidades formais (não de con-
teúdo) das funções psíquicas, como celeridade, perseveração, distraibi-
lida.de; confrontam-se a capacidade de prestar atenção simultânea a vá-
rios objetos, a maneira de apreender: se se dirige mais para o todo, ou
mais para o particular; a medida em que se confundem formas sob o as-
pecto óptico-geométrico; o grau maior ou menor com que se faz o con-
traste subjetivo entre as cores; a capacidade de reconhecer figuras noutra,
conexão configurativa; a apreensão à leitura taquistoscópica: se se dirige
mais para letras do que para quadros verbais no todo; a predileção de for-
mas ou cores à percepção, a capacidade eidética etc.
Neste particular, obtêm-se sempre achados quantitativos e relacionam-
se-os entre si e com outros. A intenção é descobrir, mediante muitos acha-
dos, alguma coisa que estabeleça correlação: “formas radicais do existir
humano”, “radicais da personalidade” (Kretschmer). Procuram-se encon-
trar qualidades básicas que sejam biológicas e, por isto, essencialmente
iguais, não-históricas, através dos milênios; alguma coisa que seja pene-
trante, presente em toda vivência, comportamento e produção do homem
em causa, se bem que inteiramente inespecífica quanto ao conteúdo. Nes-
tas investigações, subsiste a questão fundamental: se, de fato, esbarramos
nalguma coisa desta ordem, ou se giramos em preliminares infinitas, que
alcançam os instrumentos fisiológicos, mas de forma alguma o próprio ho-
mem.

§ 1. O Sexo

Preliminares biológico-psicológicas

a) O fenômeno primário da sexualidade.


A divisão em dois sexos parece ser traço universal de toda vida.
Quando existem, em graus inferiores, espécies em que não se vê esta divi-
são, dão-se. no curso das gerações, processos de união celular, correspon-
dentes à união ulterior de óvulos e espermatozoides; processos em que
universal é só a polaridade como tal. Há seres vivos inferiores nos quais os
gametos podem funcionar, conforme a situação, tanto como óvulos quanto
como espermatozoides: por conseguinte, como gametos, ainda são bipola-
res. Não se prova, todavia, que o concurso da reprodução sexual seja ne-
cessário, por si, à conservação da vida. À observação da degeneração dos
seres unicelulares (quando se faz cessar, através de muitas gerações por
divisão, a mistura celular) e ao florescimento imediato assim que se resta-
belece a cópula, opõe-se a reprodução assexuada nalgumas plantas, que
pode prosseguir pelo tempo que se queira sem risco de degeneração. A
consequência nada mais é do que a monotonia das formas, a macicez da
mesmidade; por assim dizer, o nivelamento e a insipidez da vida, que sub-
siste sem reprodução sexuada e também sem movimento que lhe altere as
formas. A sexualidade parece ser a fonte da criatividade; e a reprodução
sexuada, artifício da natureza para crear variedade, para desenvolver a
fantasia existencial na realização de possibilidades novas. Assim talvez se
deva compreender que tudo quanto se relaciona com o sexo oferece opor-
tunidades especiais, mas também traz perigos avultados. A bastardização
leva à re-criação de formas vitais, mas também leva à degeneração; por
conseguinte, a mistura pode ser produtiva ou destrutiva. No ser humano,
a sexualidade cria a inquietação, a exaltação máxima e a decadência mais
completa; impregna-lhe a vida de fidelidade ou deslealdade à essência. A
puberdade é idade em que muitas doenças se iniciam, especialmente; em
que tanto o gênio quanto a hebefrenia começam. Todos os fenômenos se-
xuais associam-se a uma quantidade de moléstias psíquicas.
Vamos recordar mais ainda a universalidade da relação sexual. Sur-
preende ver a multiplicidade com que ela se configura concretamente; so-
bretudo, nas plantas. Os órgãos sexuais mais não são do que efeito parti-
cular da sexualidade, efeito pelo qual a reprodução, dependendo do tipo
das formas vitais, se realiza, tecnicamente, de maneira tão diversa; sem-
pre, no entanto, culminando na conjugação de óvulo e espermatozoide. No
espaço biológico desta multiplicidade dos órgãos sexuais, dá-se-nos uma
contemplação que faz mais clara, indiretamente, a sexualidade do homem.
O ponto essencial ao máximo é o seguinte: todos os indivíduos contêm, em
si, originariamente, a possibilidade dos 4ois sexos.
Devem-se distinguir os caracteres sexuais de tipo primário — as -cri-
anças já são nitidamente masculinas ou femininas, antes de funcionarem
as glândulas germinais — dos caracteres sexuais de tipo secundário, que
resultam do funcionamento das glândulas germinais e só aparecem no ho-
mem à puberdade. A morfologia e a fisiologia dos órgãos sexuais não es-
gota, por conseguinte, a sexualidade. A psicologia do impulso sexual e de
suas consequências não esgota a psicologia da vida sexualmente polar.
O que é, propriamente, a sexualidade não se pode dizer: Vida e sexua-
lidade parecem correlacionar-se. Vemo-la em suas manifestações, conse-
quências e realizações unilaterais, sem maior esclarecimento, porém. Não
representam conhecimento as interpretações que se baseiam em “metafí-
sica da sexualidade”.

b) Fatores biológicos das diferenças sexuais.


Encontra-se entre os cromossomas um par de cromossomas sexuais,
que se chama, na parte feminina, XX; na parte masculina, XY. Todos os
óvulos, portanto, levam um cromossoma X; dos espermatozoides, pelo
contrário, a metade leva um cromossoma X e a outra metade um cromos-
soma Y. Da união de um óvulo a um espermatozoide com cromossoma Y
originam-se os machos; de um óvulo a um espermatozoide com cromos-
soma X, as fêmeas. Homem e mulher distinguem-se até em cada célula:
todas as células da mulher têm um par de cromossomas sexuais XX; to-
das as células do homem, XY. Daí por que o homem tem em cada célula
um cromossoma que falta à mulher. A diferença dos sexos não está, as-
sim, somente, na diferença das glândulas germinais, dos órgãos sexuais e
dos caracteres sexuais secundários, mas é — em fator diminuto — univer-
sal.
Doutro lado, os indivíduos de ambos os sexos contêm, em sua primeira
constituição (ou disposição) todas. as possibilidades da espécie, as quais
só se partem em dois sexos no curso do desenvolvimento. Ambos têm as
disposições para os dois tipos de órgãos sexuais, para os dois tipos de
glândula germinais. Só na evolução embrionária é que se forma uma das
duas disposições; a outra degenera a resíduos ínfimos. Esta evolução pode
faltar em casos raros, surgindo hermafroditas autênticos (os quais pos-
suem os dois tipos de órgãos sexuais) ou pode acontecer — nos insetos,
pelo menos — que, após desenvolvimento inicialmente correto de uma fê-
mea, se desenvolvam, no embrião, a partir de certo momento, os órgãos
sexuais masculinos num corpo- que era, originariamente, feminino (ma-
cho de transformação).
Assim, pois, não é fácil, de modo algum, apreender a essência do sexo;
essência que ora parece diferenciação absolutamente fundamental e dis-
criminativa; ora desenvolvimento particular parcial de um todo que, basi-
camente, é suprassexual. Precavendo-nos de considerar penetrado o
enigma do sexo, sabemos, no entanto, que as qualidades dos sexos — na
estrutura corpórea, nas funções, nos impulsos — são reguladas, quando
menos seja, por três fatores que dependem reciprocamente entre si, mas
que não se podem reduzir a um só denominador — primeiro: o jogo de cro-
mossomas das células; segundo, os hormônios das glândulas germinais
(removendo, isto é, transplantando glândulas germinais, Steinach trans-
formou porquinhos da índia jovens de masculinos em femininos e vice-
versa; não só se alteraram forma e força muscular, mas os machos femini-
zados se tornaram tímidos e as fêmeas masculinizadas, combativas), asso-
ciados aos hormônios do lobo anterior da hipófise e do córtex suprarrenal;
terceiro: impulsos partidos do sistema nervoso central, que se mostram
originários do mesencéfalo (resultantes de tumores capazes de produzir
puberdade precoce), ou representando efeitos distantes de processos psí-
quicos sobre o instinto sexual e seu configuramento.
O desenvolvimento sexual realiza-se em passos ou etapas, que consti-
tuem épocas no curso da vida; como é, sobretudo, a puberdade. Os hor-
mônios das. glândulas germinais são os materiais que servem para cu-
nhar os caracteres sexuais secundários (no homem, fixação das formas
corpóreas especificamente masculinas, crescimento dos órgãos genitais
externos, de pelos pubianos e da barba, mudança da voz). Na mulher, a
hipófise produz um hormônio que estimula as glândulas germinais a que
produzam hormônios sexuais. Se se remover a hipófise de um animal,
cessa o amadurecimento sexual. Por que é que ocorre, a certo momento,
esta etapa evolutiva e o que é que a desencadeia, primariamente (pre-
sume-se seja o mesencéfalo secundariamente) — não se sabe. É o mistério
do “relógio interno que acerta a hora”.
O segundo grande passo ou etapa é o climatério da mulher: a regres-
são das glândulas germinais e a cessação da sexualidade, cuja causa deve
estar no ovário. É profunda a transformação de toda a vida somática.
Transforma-se a hipófise, à falha ovariana. A tempestade da desordem en-
dócrina — fundamento frequente de moléstias nessa época da existência
— acalma-se em novo ajustamento da idade. — No homem, é diferente:
conservam-se até o fim da vida a libido e a potência, as quais diminuem,
sem desaparecer, no entanto. O que o homem vivência, em distúrbios va-
somotores, perturbações circulatórias, diminuição da vitalidade (errada-
mente chamado climatério masculino) é o começo da velhice.
c) Diferenças sexuais somáticas e psicológicas.
O sexo é o tipo de estrutura corpórea e constituição mais claro e mais
definido, já se tendo descrito somática e psicologicamente. Embora influa,
por forma ilimitada, sobre o psiquismo, certo é que o homem traz em si,
oculto e permanente, mais que seu sexo, seu ser inteiro, que se configura
num sexo, sem, no entanto, coincidir, em essência, com este sexo. Daí es-
tar-se sempre oscilando entre a sobre estimação e subestimação da impor-
tância que se deva dar ao sexo.
Tem-se esboçado a essência psíquica do masculino e do feminino; têm-
se descrito o verdadeiro homem e a verdadeira mulher — estes são ideais
cujo condicionamento derradeiro está no erotismo. Ou têm-se visto os dois
polos como se fossem polos do existir, de tal forma que o ser humano par-
ticular, quer homem, quer mulher, vem a ser mistura de qualidades mas-
culinas e femininas. Daí resulta, figuradamente, a possibilidade, por
exemplo, de alguém com órgãos sexuais femininos ter natureza masculina
e feminina, tanto em cisão inquieta quanto em síntese harmoniosa, que,
só ela, compõe a plenitude do existir humano.
Em oposição a estas interpretações — que com facilidade variam para
o arbitrarismo — a esta visão artística das formas, têm-se tentado, empiri-
camente, determinar diferenças pela observação e pela enumeração, o
que, diversamente dos tipos constitucionais, deveria afigurar-se fácil,
neste particular, porque quase todos os seres humanos se distinguem,
sem possibilidade de dúvida, em homem e mulher, graças aos órgãos se-
xuais. O resultado é, todavia, pouco satisfatório, visto serem tipos ideais o
tipicamente masculino e o tipicamente feminino, ideais sujeitos a transfor-
mações históricas; jamais tipos médios que resultem da estatística. No
campo do psiquismo, não se demonstram nem diferenças absolutas, que
compreendam cada indivíduo, nem diversidades qualitativas, mas apenas
quantitativas, as quais se mostram a cada um de nós segundo a impres-
são da experiência existencial. A estatística não tem conseguido acrescen-
tar coisa alguma que seja novo, essencialmente, embora possa proporcio-
nar ideias mais precisas. Diferença essencial para a psicopatologia é a
maior emocionalidade da mulher, a maior profundidade de sua capaci-
dade vivencial.
Das diferenças sexuais cujas raízes se encontram na constituição, ou
disposição, hão de separar-se, naturalmente, as diversidades que repou-
sam na situação social eventual da mulher.
É de chamar a atenção que a demarcação das diferenças sexuais con-
tinue a satisfazer tão pouco o conhecimento. Quando cessa a formação
ideal, sujeita a variações históricas e individuais, da masculinidade e femi-
nilidade com base na visão erótica, para vantagem do conhecimento cien-
tífico, uma quantidade de posições diversas opostas surge, contraditórias
entre si e, afinal, abrangendo todas as polaridades da vida psíquica. O que
se forma, por fim, é um aspecto no qual a polaridade sexual vem a ser,
psiquicamente, tal que não se distribui por dois indivíduos de modo a ex-
cluir sempre o contraste, mas, sim, o indivíduo particular traz em si o con-
traste inteiro. Certo é que a realização unilateral desloca para segundo
plano o outro lado, eventualmente diverso. Repousa, contudo, a tensão vi-
tal no fato de conservar-se a polaridade, sem a qual a monotonia, o nivela-
mento, a estreiteza e a mesquinhez arruínam, por forma absolutamente
unilateral, a própria existência; pelo contrário, esta culmina quando a po-
laridade inteira do indivíduo se mantém em constante movimento.

d) O instinto sexual.
Libido, seja em que sentido for, como impulso somático ao prazer e ao
estado de prazer que se relacione. com contatos cutâneos, existe desde o
lactente até a morte. Mas o instinto sexual é produzido, especificamente,
pelos hormônios das glândulas germinais; daí ser radicalmente diverso
antes e após o desenvolvimento das mesmas (puberdade). A criança já
apresenta estados de libido, com ideias correspondentes, mas são incom-
pletas e qualitativamente diversas. No entanto, uma vez feita a experiência
do instinto sexual, parece este subsistir, mesmo que as glândulas germi-
nais cessem de funcionar. Entre os castrados tardios, existem alguns que
conservam absolutamente o instinto sexual e a capacidade de realizar o
ato sexual, conquanto aqueles que são castrados em tenra idade se sin-
tam “frios” sem exceção. Ninon de Lericlos dizem ter mantido atividade se-
xual até os setenta anos. Daí resulta ser o instinto sexual condicionado,
certamente, em sua essência, pelos hormônios das glândulas germinais,
tendo, porém, outras fontes e estrutura complexa. A libido também pode
ser excitada, sem hormônios, pelo sistema nervoso central e autônomo,
bem como pela psique. De modo normal, contudo, esse ciclo hormonial —
seu efeito sobre as glândulas germinais e, principalmente, sobre a psique
— funciona em estimulação recíproca, quando o ciclo é excitado de qual-
quer ponto. O estado de libido é estado excitatório qualitativamente pecu-
liar, que inclui o corpo inteiro; que o modifica em seu sentimento vital de
si mesmo.
Coisa diversa da libido, que, em essência, é sempre igual, vem a ser a
direção do instinto, a direção segundo a qual ele atua e que depende de
pensamentos e experiências. Esta direção do instinto e a maneira por que,
principalmente, se fazem sentir os estímulos (a partir das zonas erógenas
da pele, das sensações visuais, auditivas, olfativas) variam de indivíduo
para indivíduo. E a diversidade repousa em vivências casuais, na fixação
de experiências precoces e primeiras, em associações, hábitos; repousa
também na modalidade dos recalques, talvez enraizando-se em toda a per-
sonalidade somática e psíquica do homem particular.
Fenômeno básico ao homem é o fato de que não possui, como os ani-
mais, uma sexualidade que se satisfaça impulsiva, desinibidamente, em
certos períodos de cio; mas vê sua excitabilidade sexual existindo perma-
nentemente, sujeita a ordens, inibições, restrições forçadas, cujas formas
variam — é certo — extraordinariamente desde os povos naturais até to-
dos aqueles civilizados, sempre presentes, contudo, de qualquer maneira.
Existem, universalmente, discordâncias radicais entre os impulsos que re-
sultam do fato biológico e as exigências sociais, morais e religiosas; discor-
dâncias certamente irremovíveis. Suprimidas, reaparecem, imediatamente,
sob outra forma.
Mas se sua sexualidade se realiza de modo puro, o homem tem ante si
a totalidade de seu existir em corpo-alma. A unidade de corpo e alma, que,
quanto ao mais, é quase sempre problema para sua meditação, apresenta-
se, aqui, sob. o aspecto de destino que o apreende, mas que também é por
ele sempre apreendido; mais importante e decisivo ainda do que mesmo
uma doença que o modifique. Da sexualidade vital ao amor, passando pelo
erotismo cultivado, uma conexão existe, ligando as diferenças de sentido.
Já se tem dito que a sexualidade é universal em seu efeito sobre o corpo e
a alma: o homem caracteriza-se, até as ramificações mais remotas de sua
vida psíquica, por sua sexualidade. Todas as concepções, pensamentos,
rumos impulsivos, todas as vivências podem tomar colorido erótico; mas
não há, aí, evento meramente passivo, porque esta determinante universal
continua a' ser, ao mesmo tempo, material da personalidade que mantém
sua composição e efeito com base em fontes diversas das que se acham na
sexualidade. É daí que se origina, de um lado, a discordância, permanente
— oculta, durante certo tempo, na embriaguez e na felicidade momentâ-
neas — como também se origina uma quantidade de descarrilamentos,
anormalidades, moléstias; de outro lado, realiza-se um configuramento,
que sabe ser erro qualquer isolamento, quer sexual, quer ideal; erro que se
paga caro com sofrimentos, tumultos, paixões mórbidas e desenganos.
O instinto não pode ser igual nos dois sexos. Do mesmo modo que o
corpo é diferenciado sexualmente, assim também o é a vivência erótico-se-
xual.

e) Histórico da investigação concernente à sexualidade e suas anormali-


dades.
A investigação médica sexual só começou, realmente, na segunda me-
tade do século XIX. Seguindo-se a observações particulares iniciais, só en-
tão é que apareceram os estudos amplos e as descrições pormenorizadas
(expostas nos trabalhos de Krafft-Ebing, Havelock Ellis, Moll, Furbringer,
Lõwenfeld, Bloch, Hirschfeld, Rohleder e outros); veio, depois a informação
etnológica: Kraus e outros, por fim, os psicanalistas. Ao lado disso tudo,
foi só no século atual que se realizou a pesquisa biológica dos fatos somá-
ticos do sexo, com seus extraordinários resultados (pesquisas genéticas e
hormoniais). Assim se conseguiram material copioso de fatos e perspecti-
vas amplas sobre toda a sexualidade dos seres vivos, sobre a sexualidade
humana e sobre o amor sexual.
Mais do que simples pesquisa existe nesses movimentos visando à in-
vestigação. É do que dá testemunho a divulgação dos livros médicos sobre
sexualidade, além do fato de isso tudo haver interessado vastos círculos. A
obscuridade, específica ao Ocidente cristão, que velava tudo quanto fosse
sexual engendrou, à época em que a fé esmorecia, embora ainda se con-
servassem certas convenções provindas dos tempos religiosos, uma curio-
sidade que caracteriza esta literatura do século XIX; e com ansiedade de
revelação que, pela psicanálise, se agitou em fantasias irreais. Esse movi-
mento científico mesmo transformou-se em fator histórico da modalidade
por que se realizou a vida sexual. Dissociações, decepções, novas gratifica-
ções, libertação dos instintos e configuramento dos mesmos segundos
pontos de vista que se reconheceram, presumidamente, científicos, relaci-
onados com psicologismo subalterno, vieram a associar-se a esta litera-
tura, que tem, em conjunto — é certo — características muito variadas,
impossíveis de reduzir a um mesmo denominador, mas repulsivas em
larga extensão; características das quais só em nossos dias se hão de ex-
trair, por forma esclarecedora, os verdadeiros resultados investigativos.
As anomalias e doenças psíquicas relacionadas com o sexo devem
apresentar-se conforme uma série de pontos de vista essencialmente di-
versos:
a) A diversidade com que as doenças psíquicas incidem nos dois
sexos.
Kraepelin determinou, mediante estatística de longos anos concernente
a internações em sua clínica, algumas revelações quantitativas não desti-
tuídas de interesse. Em resumo, resulta, com referência à idade: Entre 20
e 25 anos, adoecem mais mulheres do que homens (mais ou menos 60
para 40%); entre 40 e 45, mais homens do que mulheres (cerca de 40 para
60%); acima de 50 anos, a relação é, aproximadamente, a mesma, até que,
na idade avançada, as mulheres voltam a preponderar (por causa de sua
maior longevidade, segundo Kraepelin). Quanto ao particular, os homens
adoecem, preponderantemente, de alcoolismo, paralisia geral, epilepsia;
em psicose maníaco-depressiva, adoecem preponderantemente as mulhe-
res (todavia, a mania é mais frequente nos homens; a depressão, nas mu-
lheres), ao passo que, na esquizofrenia, a participação é a mesma. Kraepe-
lin enfatiza a frequência e a gravidade consideravelmente maiores dos es-
tados de excitação nas enfermarias femininas (avaliando-se pelo uso da
escopolamina e pelo número de banhos contínuos); também enfatiza a fre-
quência muito maior nas mulheres da recusa de alimento e da conse-
quente necessidade de alimentação por sonda.
Nas mulheres, são relativamente poucos os suicídios e poucos, os cri-
mes. Nelas são mais frequentes os estados histéricos, as manifestações re-
ativas e neuróticas.
b) As fases etárias da sexualidade e os fenômenos da reprodução.
Determinam a puberdade, de forma decisiva, o desenvolvimento das
glândulas germinais e as respectivas consequências; revolução esta da
vida somático-psíquica que é o início de doenças mentais. Constitui dis-
túrbio especial a ocorrência extemporânea da puberdade. Existe uma pre-
cocidade maturativa constitucional, valendo^ como base a raça, o clima, a
disposição individual. Não é doença que ocorre, a bem dizer, mas, antes,
desenvolvimento normal, só que a tempo desacostumado. Outra é a situa-
ção quando a causa da puberdade precoce reside na produção prematura
de hormônios pelas glândulas de secreção interna. Distinguem-se uma
puberdade precoce hormonial, em caso de tumores das glândulas germi-
nais, das suprarrenais, e outra nervoso-central, quando há tumor da glân-
dula pineal e do cérebro. Nestes casos, o estado mórbido caracteriza-se
sempre pelo fato de a maturidade psíquica correspondente não acompa-
nhar o amadurecimento somático no sentido do desenvolvimento sexual.
O climatério feminino acarreta, com a atrofia dos ovários, a cessação
da capacidade reprodutiva. O fenômeno determina ainda uma tempestade
passageira no entrejogo das ações endócrinas recíprocas, pela falta dos
hormônios ovarianos; falta que influencia, retroativamente, a hipófise e
todo o sistema endócrino, este, por sua vez, influindo no funcionamento
do sistema nervoso vegetativo. Daí ocorrem, nesse período, frequentes de-
sordens do sistema nervoso vegetativo (distúrbios vasomotores, “ondas de
calor”, alterações da pressão arterial etc.). Ocasionalmente, desenvolvem-
se características masculinas: a voz engrossa, crescem pelos no queixo e
no lábio superior. Também é frequente iniciarem-se psicoses, sem que as
causas reais das mesmas estejam no climatério. Fazem-se mais intensas
as manifestações psicopáticas. Decorridos os anos climateriais, melhoram
as manifestações psíquicas.
A crença popular sobre-estima demais os perigos do climatério. Ces-
sam a capacidade de reprodução e, ao mesmo tempo, a menstruação,
sem, entretanto, desaparecerem, de modo algum, todas as possibilidades
eróticas. O climatério não é, em absoluto, catástrofe para a mulher, pois
correspondem à sua natureza novas possibilidades evolutivas.1 Nem é
“catástrofe biológica para a mulher” (Kehrer). Parte considerável dos aba-
los repousa no comportamento em relação ao processo natural e à suges-
tão da crença popular.
A vida sexual da mulher impõe-lhe exigências contínuas, durante o pe-
ríodo da maturidade, ao contrário do que se dá com o homem. Os períodos
menstruais, manifestam-se, em muitos tipos de doenças psíquicas e esta-
dos psicopáticos, pela piora dos sintomas; às vezes, uma doença só existe
em conexão com o catamênio. Em transições até a normalidade, a mens-
truação acarreta: mau- humor, irritabilidade, tendências paranoides; alte-
rações nervosas geralmente transitórias, logo desaparecendo com o início
da menstruação. Os processos da gestação (gravidez, puerpério, lactação),
juntamente com as modificações de todo o organismo, também acarretam
distúrbios psíquicos, vindo a constituir causa, por vezes, em mulheres
predispostas, de verdadeiras psicoses. Segundo Kraepelin, mais de 14% de
todos os distúrbios mentais das mulheres são psicoses da gestação, sendo
3% psicoses da gravidez, 6,8% psicoses do puerpério, 4,9% psicoses da
lactação. Ora se observam psicoses de tipo amencial, ora fases desenvolvi-
das da loucura maníaco-depressiva; por fim, conexos com o puerpério,
processos demenciais em incepção. Devemos procurar a causa verdadeira
destes fenômenos mórbidos na constituição. O puerpério tem, apenas, sig-
nificação de fator desencadeante. — Entre as anomalias da vida psíquica,
durante a gravidez (hipersensibilidade olfativa, sentimentos de nojo, anti-
patias, instabilidade do humor) e as psicoses gravídicas não existe transi-
ção, de modo que Steiner não notou efeito algum sobre a gravidez em mu-
lheres psicóticas que haviam emprenhado, e sim as mesmas anomalias
que nas mulheres sadias.
c) Distúrbios do instinto sexual.
A quantidade quase inumerável das anormalidades do instinto sexual,
em virtude da direção particular que toma em cada caso, e as formas em
que se realiza dão testemunho da importância deste instinto e da capaci-
dade inventiva do homem. Mas nenhuma das anormalidades se deve à na-
tureza das glândulas germinais, e sim a um configuramento do instinto
por outras conexões; principalmente, psíquicas. É o que prova o fato de a
castração nunca suprimir a perversão que dirige o instinto, mas apenas
diminuir a intensidade da impulsão, a libido. Em consequência da dimi-
nuição da libido, a perversão talvez perca sua agressividade, a incontrola-
bilidade, sem, no entanto, influenciar a perversão em si (Wolf). Dentre as
múltiplas direções que o instinto segue discutiremos, apenas, umas tantas
manifestações que têm importância básica.
1. Masturbação. Quando o instinto sexual é forte e não há possibili-
dade de satisfação natural, principalmente na juventude, a masturbação é
fenômeno normal (masturbação compensatória, Forel). O que se diz dos
efeitos patológicos da masturbação é errado. A masturbação excessiva não
é causa de doença, mas pode ser sintoma da mesma (por exemplo, na he-
befrenia). A significação da masturbação está nas conexões compreensí-
veis, na experiência da derrota e perda da dignidade. Podem daí partir
ideias persecutórias e referenciais (como se os outros, estando informados,
desprezassem, zombassem do indivíduo que se masturba); não é, porém, a
masturbação que causa estas ideias.
2. Perversões. Fala-se em fetichismo quando a excitação sexual se liga
a certos objetos, como sapatos, tranças etc. Fala-se em sadismo e maso-
quismo quando o prazer sexual depende do sofrimento que se inflige, ao
mesmo tempo, ao parceiro ou do sofrimento que por ele é infligido; da
mesma forma se denominam muitas, outras perversões. Além disso,
Freud afirmou a possibilidade de a libido transformar-se em impulsos e
comportamentos aparentemente sem sentido algum, bem como sustentou
haver conexões entre perversão e conduta existencial (o erótico-anal será
pedante, ordeiro, econômico, obstinado e obsessivamente asseado): uma
quantidade de condutas humanas entendem-se como consequência de
perversão do instinto sexual. Pode ser que seja. Todavia, o fato de todos os
homens (com poucas exceções) terem instinto sexual atuante; de ocorre-
rem distúrbios com extraordinária frequência, dando a impressão de des-
vios e desarmonias, e, no entanto, as conversões que chamam a atenção
(complexo de parricídio etc.), com as doenças nervosas correspondentes,
serem raros — este fato prova que, na medida em que sejam verdadeiras
as descrições freudianas, se trata de maneiras peculiares pelas quais se
elaboram as vivências sexuais; maneiras que não são características da
sexualidade humana, e sim de certas disposições, personalidades, situa-
ções. Não. se comprovam as generalizações.
As perversões não são, porém, em si, inevitabilidades meramente con-
gênitas, mas resultados. de experiências, hábitos, inclinações mórbidas
em certas personalidades. Daí serem de analisar- se conforme o caso par-
ticular, corrigíveis em parte, conexas não só com o instinto sexual, mas
com o próprio destino existencial interno do homem. É o que indica o fato
de as perversões terem o caráter de vício (v. Gebsatel), apresentando-se,
em geral, com muito mais força do que o impulso sexual normal.
Embora talvez existam casos em que a direção pervertida do- instinto
sexual não marque, necessariamente, a personalidade total, de forma a
mudar-lhe a essência, certo é, entretanto, que, havendo disposições sexu-
ais anormais, já se constatam variações profundas da constituição essen-
cial em algumas personalidades peculiarmente frias, assexuais, bem como
nalguns homossexuais notavelmente sensíveis, requintados, os quais
veem, contudo, o mundo inteiro sob luz diferente.
3. Homossexualismo. Não se pode — é evidente — considerar os ho-
mossexuais sob um denominador comum. Da homossexualidade aciden-
tal, como compensação (correspondendo à masturbação compensatória),
todas as transições existem até os hábitos, que se enraízam de forma a
constituir perversão. A questão, entretanto, é se existe, além desta, uma
homossexualidade de natureza absolutamente diversa, que se baseie não
na biografia e na prática pervertida, e sim na complexão somática da
constituição sexual.
Haveria uma sexualidade primária — ou originária — que se manifes-
taria na direção do instinto para o sexo masculino ou feminino, indepen-
dentemente de o indivíduo em causa ter glândulas sexuais masculinas ou
femininas. Não são os hormônios das glândulas sexuais que orientam o
instinto (apenas erotizam); a direção do instinto deve ter fundamento na
psique, ou na sexualidade, está a localizar-se no sistema nervoso central,
se é que se localiza. A questão, então, é se é possível da espécie de glându-
las sexuais separar a direção do instinto; ao que responde a teoria dos in-
tersexos de Goldschmidt. Admite este possuírem os fatores da masculini-
dade e da feminilidade valências diversamente fortes, as quais significam a
força com que um ou outro fator da sexualidade prevalece no desenvolvi-
mento somático-psíquico. Quando, então, se cruzam raças com fatores de
valor desigual, aparecem intersexos pelo fato de produzir-se, na evolução
embrionária precoce, uma inversão de sexo, devido à ação de uma valên-
cia mais forte do fator de sexualidade oposto. Uma fêmea originária trans-
forma-se, assim, em macho. O indivíduo tornou-se, então, masculino em
seus órgãos sexuais, tendo, contudo, em suas células o jogo de cromosso-
mas femininos (macho de transformação). Conserva-se a feminilidade ori-
ginária ou primária, apesar de se desenvolverem órgãos sexuais masculi-
nos. A mistura de masculino e feminino depende do momento em que se
deu a inversão. Pode até acontecer, em casos raros, que se desenvolvam
tanto uns quanto outros órgãos sexuais (hermafroditismo de todos os
graus). O homossexualismo autêntico que assim aparece é coisa radical-
mente diversa da alteração hormonialmente condicionada dos caracteres
sexuais; por exemplo, o virilismo nas mulheres, após doenças das glându-
las germinais ou das suprarrenais.
Que o homossexualismo não tenha base nas glândulas germinais, nem
seja hormonial é certo; a castração ou o tratamento com hormônios sexu-
ais não influi na direção homossexual do instinto.
Mas que a teoria de Goldschmidt — plausível para o objeto de suas
pesquisas, os insetos — seja correta para o homem, não se prova. As in-
vestigações amplas de Theo Lang testaram-na com um resultado que, à
primeira impressão, se afigura quase convincente, sem conclusividade ul-
terior, porém. Eis como pensa Lange:
Se uma parte dos homossexuais masculinos são machos de transfor-
mação, deve haver entre os irmãos deles mais homens do que mulheres,
visto que a proporção dos sexos é, em média, de 100 meninas para 105
meninos. Os homens homossexuais que são machos de transformação se-
riam de contar-se, sob o aspecto genético, entre os nascimentos femininos;
nessas famílias, parte dos indivíduos geneticamente femininos ocultar-se-
ia no meio dos casos que, de princípio, se consideram externamente mas-
culinos; e estes faltariam, pois, na cifra das mulheres. A estatística que
terá tomado, como material inicial, homossexuais registrados em várias
grandes cidades veio, então, a mostrar, sem exceção, o forte deslocamento,
que era de esperar conforme a teoria, da proporção entre os sexos dos ir-
mãos para o lado dos homens; o que pareceu confirmar, brilhantemente, a
teoria. Mas Lange pensou ainda da seguinte forma: Os machos de trans-
formação só podem ter filhos femininos, de acordo com sua fórmula ger-
minal XX (que hão de ter como fêmeas primárias). Verificou os filhos de
homossexuais casados: a proporção entre meninos e meninas mostrou-se,
em contrário à expectativa, plenamente normal. Isso se compreenderia, se
os homossexuais casados fossem, sem exceção, homossexuais não-autên-
ticos, o que se exprimiria, a seu turno, no fato de seus irmãos não apre-
sentarem o deslocamento da proporção sexual, como acontece com os ir-
mãos dos homossexuais autênticos. Lang verificou, entretanto, que, tam-
bém no caso, o deslocamento ocorria, embora não fosse tão marcado; em
certos casos, “aproximava-se muito da normalidade”.
d) Efeitos da castração.
Chama-se esterilização a supressão da capacidade reprodutiva pela in-
terrupção cirúrgica dos condutos ovulares ou espermáticos. Nem se altera
o ato sexual, nem se dão, por via causal, consequências somáticas ou psí-
quicas, visto permanecer intata a secreção interna das glândulas sexuais.
Chama- se castração a remoção das próprias glândulas sexuais. Experiên-
cias extensas só há a respeito da castração de homens, distinguindo- se os
castrados precoces (remoção dos testículos antes da puberdade) e os cas-
trados tardios (remoção após a puberdade). Em ambos os casos, o efeito é
radicalmente diverso.
Castrados precoces. Suspendem-se a puberdade e todo o processo nor-
mal de amadurecimento do menino em homem. A voz continua aguda, os
pelos ficam os mesmos que no menino. Não há libido, nem potência. O
corpo, alterado o crescimento normal toma-se peculiarmente longo; braços
e pernas, excessivamente longos (crescimento eunucóide); esbelto na mo-
cidade, gordo na velhice. O desenvolvimento intelectual e mental não so-
fre, mas um sentimento de inferioridade influi sobre o caráter. Afirma-se
que estes castrados se tornam desconfiados, apáticos, covardes e vingati-
vos.
Castrados tardios: Já terminado, o desenvolvimento da puberdade não
retrocede pela castração. Subsiste a libido quase sempre, embora forte-
mente diminuída, a potência conserva-se, muitas vezes. As alterações psí-
quicas não são, de modo algum, unívocas. A atitude em relação à castra-
ção involuntariamente sofrida, por força de lesões, ou afinal consentida
desempenha grande papel. Wolf observou, com certa frequência, o se-
guinte: irritabilidade — diminuída em 7 casos; aumentada, em 19; é fre-
quente melhorarem os estados nervosos, embora a castração traumática
os possa provocar. Wolf estabelece, baseado em suas numerosas observa-
ções, não ser exato que os castrados se mostrem, em geral, indolentes,
apáticos e vegetativos; não existe tipo de castrado entre os que sofrem a
operação após a puberdade, conquanto o médico os reconheça, muitas ve-
zes, à primeira vista.

§ 2. Constituição

a) Conceito e ideia de constituição.


Chama-se constituição, em patologia somática, o todo da vida corpórea
de um indivíduo, ou de um tipo em sua peculiaridade, na medida em que
este todo é permanente. Todas as funções corpóreas têm relações entre si;
o todo infinito destas relações, do qual cada função particular por sua vez
depende, do mesmo modo que o condiciona, é a ideia de constituição. A
expressão visível da constituição é o hábito, o qual se comporta relativa-
mente à constituição “tal qual o complexo sintomático relativamente à do-
ença” (Wunderlich). A ideia de constituição como um todo é indestrutível;
de todas as análises de funções particulares sempre a ela a pesquisa re-
toma.
Se se quiser descrever uma constituição psíquica, estará ela no todo
que se experimenta em unidade indissolúvel com o corpo. A constituição
parece ter a mais estreita relação com conceitos tais como o quanto da
energia psíquica, a dissociabilidade das funções psíquicas, a excitabili-
dade, a fatigabilidade, a força de resistência, a modalidade reacional etc.;
mais ainda, com conceitos tais como a intolerância ao álcool, a idiossin-
crasia; mais ainda: com a consciência de si mesmo baseada no corpo, com
o humor básico; mais ainda: com o hábito fisiognomônico do corpo, com
as modalidades de movimento e apresentação, com o ritmo dos movimen-
tos e dos processos internos.
Estas indicações provisórias necessitam, porém, discussão mais deta-
lhada.
1. O todo único. Se se quiser apreender a constituição, só poderá ser
pelo particular. Quando se acredita haver apreendido um todo de fenôme-
nos somáticos ou psíquicos em sua estrutura, é apenas um todo que se
apreende, e não o todo, o qual parece retroceder quanto mais se penetra e
quanto mais decisivamente se quisera apreendê-lo. Este todo vem a ser,
porém, exatamente, a ideia de constituição, a unidade que contém todo o
particular, que lhe dá seu colorido e significação específicos. Os todos par-
ciais já são, decerto, fatores ordenativos de muitas funções particulares,
eles próprios sendo, por sua vez, elementos da unicidade que tudo
abrange, da constituição única. Se eu chamar constituição “a complexão
corpórea que repousa na totalidade das características e modalidades rea-
tivas somáticas e psíquicas, peculiar ao homem particular” (Johannsen),
ainda não terei, com isso, atingido aquilo que compõe, a bem dizer, a uni-
dade. Pode-se tentar determiná-la, expressamente, por exemplo, da se-
guinte maneira:
aa) A unidade corpo-alma. A unicidade não é nem o somático, nem o
psíquico, e sim o que em ambos se manifesta e o que não é nem. somá-
tico, nem psíquico, mas a própria vida. Esta unicidade baseia-se no in-
consciente, donde influi sobre todas as funções corpóreas e sobre a com-
plexão psíquica.
Entretanto, essa unidade nunca existe para nós no todo. Sempre que
experimentamos uma unidade de corpo e alma — na percepção compreen-
siva da realidade mímica e fisiognomônica, na interioridade imediata de
nossa própria existência, de nossos impulsos e realizações, nos processos
recíprocos de conexões causais somatopsíquicas —‘sempre é uma unidade
especial de tais experiências, não a unidade de corpo e alma no todo. Não
só decompomos, inevitavelmente, na medida em que conhecemos, em
corpo e alma, como decompomos também a unidade-corpo-alma inteira-
mente indeterminada e indeterminável em modalidades eventuais especi-
ais da unidade de ambas.
Mas se decompomos, temos de sintetizar. E a síntese, por sua vez,
ainda vem a ser sempre síntese particular, que não tarda a apontar outras
coisas. O todo, entretanto, nunca se apresenta, afinal, como se fosse al-
guma coisa de novo, que se apreenda diretamente, em que eu me apodere
do objeto, por assim dizer, de um golpe.
bb) A unicidade que tudo penetra, ordena e conduz. Aquilo que faz a
unidade, ou que, constituindo fator de distúrbio ou ausente, impede a
unidade no todo, é sempre atuante em tudo quanto é biológico. Os organi-
zadores no desenvolvimento embrionário, a ordem dos gens do genoma, a
regulação da vida pelo sistema nervoso e pelas secreções internas, produ-
zem a unidade da vida corpórea. Quanto ao psiquismo, são a consciência
do eu, os atos, os objetivos conscientes e inconscientes, as formações con-
figurativas da criação, que compõem a unidade.
Todas estas unidades não são, porém, as unidades do todo. O que se
denomina acordo e harmonia da existência, e, em oposição, desarmonia e
distúrbio tem de ser possível mediante uma unidade que conduza, por sua
vez, todas as unidades possíveis de reconhecer. A esta altura, porém, um
campo se abre sempre à pesquisa. Não se pode apreender, certamente, a
unidade. Ela não existe, em absoluto, na medida de nosso conhecimento.
E se todas as unidades que se reconhecem se vêm a mostrar “absurdas”,
em situações inadequadas, já não conduzindo à vida, mas fazendo-a su-
cumbir, o que ocorre é que a vida se apresenta ao léu, em seu todo. É, no
entanto, impossível que ela caminhe ao acaso e pela simples interação das
unidades “absurdas”; se não impossível, inconcebível.
Esta unicidade que conduz bem poderia coincidir com a ideia de cons-
tituição. Mas continua a ser ideia. Só na Parte VI é que discutiremos o fato
de a unidade do “mesmo” e sua incondicionalidade, embora existencial-
mente cognoscíveis, não se poderem conhecer, por forma empírica, a par-
tir de qualquer origem; e de ainda existirem, antes da unidade, as modali-
dades abrangedoras que escapam à exploração direta.
Característica fundamental da unidade condutora é, em todos os ní-
veis, o fato de ela poder conter as polaridades, contrastes, antinomias das
forças, impulsos, direções e objetivos. Toda unidade que não seja a força
criadora do impulso coeso para nova forma é unidade morta, sem vida.
Constituição é o todo; daí não ser, ela mesma, causa. As causas são
sempre particulares. O que produzem é condicionado pelo todo. O modo
por que a vida decorre, por que as doenças se experimentam, configura-se
na constituição, sem ser por ela causado.
2. Diferença entre as constituições. Quando se analisam os tipos de
constituição, utilizam-se algumas diferenciações das mais gerais:
aa) A cada momento, o indivíduo é uma unidade formada de originário
e adquirido, em sua complexão constitucional. A partir das disposições
originárias, criam-se, no processo vital, através dos. eventos e vivências,
novas aptidões ou disposições. Modalidades reacionais transmitem-se por
herança e estabelecem-se individualmente; mas a maneira pela qual se re-
alizam, eventualmente, de acordo com o perimundo e o destino externo,
isso as modifica por forma retroativa. Se a constituição é a modalidade de
aptidão reacional e, ao mesmo tempo, das capacidades de produção e
adaptação, tem-se que esta constituição se modifica por sua atividade
mesma. Mesmo que, daí, distingamos constituição congênita (herdada) de
constituição adquirida, ambas são, no entanto, a cada momento, um todo.
A constituição é sempre a modificação condicionada pelo destino e pelo
perimundo no sentido da complexão total atual.
bb) Os tipos constitucionais consideram-se, em sua multiplicidade, sa-
dios. São universalmente recorrentes, não variações únicas da espécie hu-
mana dentro de certos limites. Chamam-se, porém, mórbidos quer nos ca-
sos em que, por si, transtornam a vida, ou são incapazes de pleno desen-
volvimento vital, quer nas circunstâncias em que encerram maior aptidão
para certas moléstias. O problema da constituição transforma-se em pro-
blema da patologia pelo fato de levar a que se compreendam as variações
anormais do existir humano &, daí, a que se torne possível pesquisar as
disposições para doenças.

b) História da ideia de constituição.


Durante séculos, a ideia dos quatro temperamentos vigorou em varia-
ções, numerosas: mistura de sucos, estrutura corpórea, hábito, qualida-
des caracteriais, destino, dependência dos planetas tinham certa conexão.
Com Galeno, a ideia. ,é a seguinte: predomina a bílis amarela (estrutura
corpórea têsa, boa irrigação sanguínea — temperamento colérico); predo-
mina a bílis negra, (magreza, pele escura, olhar sombrio — temperamento
melancólico) predomina' o sangue (aparência saudável — temperamento
sanguíneo) predomina a fleuma (palidez, aspecto balofo — temperamento
fleumático). Os artistas do Renascimento criaram representações grandio-
sas destes tipos.
Mas os artistas viam com mais clareza, ou viam mais do que- se podia
fixar, teoricamente, nos antigos tipos. Tal qual viam e pintavam formas ne-
bulosas, antes que uma tipologia científica as distinguisse, assim também
pintavam as cabeças e corpos humanos. Foi só a partir do início do século
XIX que os médicos descreveram, sob nomes diversos e por nova forma,
aquilo que se via evidentemente ou que se apreendia, mais ou menos, com
construções verbais (“Todos os homens são ou sapateiros^ ou alfaiates”;
isto é, hoje em dia: pícnicos ou asténicos). Sempre houve três tipos (por
exemplo, respiratório, muscular, digestivo — ou cerebral, atlético, pletó-
rico). Em quase todos se percebe, sob nomes diferentes, um único con-
traste da mesma ordem entre dois tipos (crescimento longitudinal ou
transversal, tórax, estreito ou largo, tipo asténico ou apoplético etc.). O ter-
ceiro tipo ou. era intermediário (entre dois extremos), ou constituía forma
própria, de terceiro tipo, com características novas (por exemplo, tipo
musculoso, não segundo a largura e a altura da forma total, e sim con-
forme o desenvolvimento muscular e ósseo mais ou menos acentuado). Se-
guindo as descrições, notam-se estes pontos de vista: preponderância de
sistemas orgânicos (ossos, músculos, abdômen, cabeça, membros, caixa
torácica) — gordo, magro e localização especial da gordura — crescimento
longitudinal ou transversal — atitude e tônus (tônico ou hipotônico, estê-
nico ou asténico).
Havia três possibilidades, segundo estas inúmeras tipologias.
1. O sentido da manifestação visível da vida descreve e registra, através
de numerosas observações, a quantidade de variações somáticas da forma
e da função, das displasias e dos desvios causalmente determinados que
se podem reconhecer. Se delas nos fazemos conscientes, aguçamos e exer-
citamos a vista para as formas, cores e movimentos, bem como para as
funções fisiológicas visíveis do corpo. Enumeramos, para exemplificar:
Forma, do crânio: por exemplo, crânio em torre, occiput ausente, tipo
hidrocefálico. — Forma, do rosto: arcos supra-orbitais fortes (como no crâ-
nio do homem de Neandertal), zigomas fortemente proeminentes, perfil an-
guloso, maxila inferior saliente, ou maxila inferior reduzida (ausência de
queixo). — Forma, das orelhas: em asas, desmedidamente grandes, ou pe-
quenas, amorfamente grossas, lóbulo ausente, tubérculos ausentes, ou
tubérculo de Darwin. — Forma do nariz: grosso e informe, desusadamente
pontudo, ponte nasal fortemente retraída. — Formas do tronco e dos
membros: cifose e lordose, dedos retorcidos, atrofias e disformidades, bra-
ços e pernas excessivamente longos, mãos e dedos nodosos, articulações
grossas. — Tecidos: turgor, flacidez e macicez, rosto intumescido, ou rosto
ossudo, sem gordura. — Manifestações vasomotoras e outras vegetativas:
rosto acinzentado ou lívido, acrocianose, pele marmórea, dermografia,
suor. — Pigmentação e pilosidade: nevos, falhas de pelos, sobrancelhas
juntando-se. — Mais ainda: Manifestações que só se veem com exames es-
peciais: as inúmeras variações e desvios fisiológicos, a forma das ramifica-
ções capilares, as impressões digitais, o movimento dos glóbulos sanguí-
neos nos capilares, as anomalias dos reflexos e funções psicofísicas (mo-
dalidades da conservação de imagens, capacidades eidéticas, toda sorte de
testes de rendimento).
2. Reduziu-se o que há de idêntico em todas as classificações ao con-
traste mais abstrato, ou seja, ao contraste entre crescimento longitudinal
e transversal (leptossômico-eurissômico). Foi assim que procedeu Weiden-
reich, fazendo os dois tipos derivarem anatomicamente, tanto sob o ponto
de vista morfológico, como sob o aspecto quantitativo, de uma polaridade
que estaria presente em todas as raças humanas e até nos animais, “apre-
sentando-se como formas evolutivas opostas de uma série de formas
quanto ao mais unitária”. É de maneira não fisiognomônica, mas pura-
mente racional e quantitativa que esta polaridade se mostra convincente
nos grupos humanos, em todo o globo terrestre. Claro que, se nos limita-
mos a este ponto de vista, o mesmo upo se designará ora como raça, ora
como constituição. O mesmo cientista mostra, com base na história:
“Quando demonstrados em certos grupos étnicos, os referidos tipos sem-
pre se interpretam, até o presente momento, como representantes de dois
elementos raciais diversos”; isto é, de um mais nobre e de um mais vulgar;
isso quanto aos japoneses e quanto aos judeus etc. A análise, entretanto,
por mais correta que seja, foge à riqueza da visão total em favor de carac-
terísticas quantitativas formais, deixando inteiramente de lado a ideia de
constituição.
3. Daí haver-se tornado essencialmente mais fecunda a outra via, no
sentido de descrever um tipo constitucional independentemente de qual-
quer esquema pressuposto, mas com base na visão concreta, numa obser-
vação que apreenda e estruture. Foi o que, de maneira notável, fez Stiller,
que descreveu como astenia um todo que se caracteriza pelo aumento da
fatigabilidade, com os fenômenos conhecidos pelo nome de queda (ente-
roptose), atonia do estômago e do intestino, obstipação; mais: hábito que
predispõe â tuberculose. Julgou ele haver encontrado um sintoma carac-
terístico de todo o complexo na costa fluctuans decima (mobilidade não só
das undécima e duodécima costelas, mas também da décima).
Também se discutiu o tipo de infantilismo: a parada das formas e fun-
ções corpóreas no grau evolutivo infantil (por exemplo, amenorreia, hábito
infantil do corpo, crescimento defeituoso, hipoplasia dos órgãos genitais),
com manifestações psíquicas correspondentes.
A descoberta do status dysraphicus por Bremer tem importância escla-
recedora, Bremer reconheceu a base de uma quantidade de anomalias, até
então vistas apenas em observações esparsas de ordem morfológica e fun-
cional, num distúrbio do mecanismo embrionário de fechamento; princi-
palmente, fechamento da medula.
Spina bifída oculta, encurvamento e fissuramento da coluna vertebral,
tórax em funil, pés chatos e ocos, dedos retorcidos, membros demasiada-
mente longos, com desenvolvimento excessivo dos braços, anomalias ma-
márias, acrocianose, distúrbios da sensibilidade e da reflexividade, enu-
rese prolongada na infância, siringomielia. — Esta constituição reconhece-
se pela correlação acentuada de todas as referidas, características entre si;
muitas vezes, constatam-se, apenas, algumas. Se as tomarmos como
ponto de partida e sinais condutores, encontraremos- também quase sem-
pre alguma coisa diferente no mesmo indivíduo, bem como a respectiva
ocorrência na família, com doenças bem nítidas; do grupo neuropático
correspondente aparecendo aqui e ali. — O status; dysraphicus, que desde
logo se impôs, por forma convincente, na medicina exige muito menos do
que a apresentação das constituições humanas totais. Abrange, como
constituição particular (Martius), um1 círculo circunscrito de característi-
cas individuais da complexão corpórea, que se devem atribuir a evento ab-
solutamente determinado do desenvolvimento embrionário. O peito em fu-
nil, por exemplo, considerado, noutros tempos, anormalidade singular,
prova, hoje em dia, “que a análise ampla, feita no sentido da biologia gené-
tica e visando à história, evolutiva, classifica o sintoma individual, aparen-
temente incompreensível, em contexto biológico claro”.
Enfim, caminhou adiante o conhecimento da secreção interna- em
seus efeitos sobre numerosas manifestações somáticas e psíquicas. Mas
embora possível explicar um hábito morfologicamente visível pelas anoma-
lias endócrinas, já não tem sentido falar em' constituição que abranja o
todo infinito da vida somático-psíquica em. seus fundamentos incompre-
ensíveis. Estas anomalias que resultam de distúrbios endócrinos são, por
exemplo, a acromegalia (hipófise), o mixedema (tireoide), o eunocoidismo
(gonadas).
Todas estas pesquisas circunscreveram-se a círculos restritos, tendo
sido Kretschmer, na psiquiatria, quem pela primeira vez fez- sensível toda
a profundidade e amplitude do problema e, ao mesmo- tempo, deu à pes-
quisa o impulso que até hoje se mantém. Foi ele quem, audaciosa e inde-
pendentemente, configurou em forma nova e revalorizou a significação
ampla da antiga teoria dos temperamentos, superando de longe o sentido
das teorias mais restritas sustentadas por seus predecessores do século
passado. É essencial que as concepções psicopatológicas apreendam a sig-
nificação positiva, o sentido e as limitações desta pesquisa, sem esquecer
os erros que nela talvez haja.
c) Personalidade e psicose.
Para a concepção kretschmeriana, ainda houve outra questão de im-
portância decisiva: a saber, o problema da relação entre tipo de personali-
dade e tipo de psicose. Noutros tempos, admitiu-se (Heinroth, Ideler) que
as psicoses, derivassem da personalidade, por efeito ou de pecados, ou de
paixões exuberantes. Ulteriormente, à época em que dominavam os con-
ceitos anatômicos, o problema ficou completamente esquecido, até voltar a
ser discutido intensamente, a partir dos primeiros anos, deste século.
Para nos orientarmos, liquidaremos, primeiro, uns tantos pontos evi-
dentes: que as psicoses humanas são diversas; que uma psicose aparece
por forma atípica, isso e coisas semelhantes atribuem-se, com razão, a
uma disposição individual, a qual é, porém, apenas postulada, sem que se
possa demonstrá-la, absolutamente, de maneira precisa; esta disposição
extrapsíquica não precisa ter nada a ver com aquilo, que chamamos per-
sonalidade. — Mais ainda: é evidente que o conteúdo' de cada psicose de-
pende do conteúdo das experiências vitais anteriores; por exemplo, o delí-
rio ocupacional do sapateiro é diferente daquele de. um taverneiro. — Sa-
bemos também que todas as psicoses são diferentes conforme o nível de
diferenciação da vida psíquica, conforme o grau de inteligência, conforme
o meio cultural e a esfera em que a pessoa vive. É o que se nota até nas
psicoses orgânicas mais graves, como nos casos de Maupassant e Nietzs-
che. — Finalmente, toda doença e também toda psicose é, por assim dizer,
elaborada pela personalidade em causa; o modo por que uma pessoa se
comporta em relação à. sua doença compreende-se pelo seu caráter. —
Não é disso que aqui se trata, mas da questão seguinte: existem conexões
entre certas espécies de personalidade que se possam demonstrar e certas
psicos.es?’
Mesmo esta questão, contudo, ainda é ambígua, porque cada persona-
lidade se modifica no correr da vida. Podemos distinguir as quatro espé-
cies seguintes de alterações.
1. Toda personalidade, enquanto cresce, passa pelos diversos períodos
de vida e há de possuir, a cada momento, as peculiaridades, relacionadas
com a idade respectiva. Na medida, em que concebemos estes tipos de
personalidade como manifestações daquela idade determinada, falamos
em “crescimento da personalidade”.
2. Sobre esta base, pois, realizam-se outros desenvolvimentos pesso-
ais. Dependendo do ambiente, da biografia e de vivências especiais, modi-
ficam-se as personalidades humanas; muitas vezes, de maneira profunda,
sem que se possa atribuir à idade outro papel senão o de pré-requisito.
Chamamos estas modificações que resultam da interação de vivências e
peculiaridades “desenvolvimentos da personalidade”. Servem de exemplos
a amargura que se nota em pessoas dependentes, o embotamento dos que
se dão a trabalhos pesados, condicionados por uma sorte que pesa sobre o
humor.
3. Independentes das fases etárias, ainda há oscilações na forma por
que a personalidade se manifesta, ocorrendo como' fases espontâneas (en-
dógenas). De quando em quando, o temperamento altera-se sem motivo,
aparece incapacidade de trabalhar ou, pelo contrário, atividade excessiva,
ou ainda tendência a manifestações histéricas. São, porém, fases passa-
geiras que variam muito, ocorrendo com o aspecto às vezes, mais de alte-
rações de fenômenos psíquicos individuais; outras vezes, de alterações de
todo o hábito da personalidade.
4. Há de distinguir-se de todos os casos descritos a alteração da perso-
nalidade que se dá para sempre, resultando de um processo, a certa
época.
Os “desenvolvimentos da personalidade” e as “fases” passageiras po-
dem chamar tanto a atenção e variar tanto do costumeiro que as conside-
ramos mórbidas no sentido de desenvolvimento patológico da personali-
dade, ou de psicose.
Daí dividir-se a questão, conforme a relação entre personalidade e psi-
cose, em três itens:
1. A relação da personalidade originária com seu desenvolvimento mór-
bido: Do ciúme desenvolve-se o delírio zelotípico; da inclinação para dispu-
tas, o querulantismo; da desconfiança, o delírio da perseguição. O conceito
é que o desenvolvimento de uma personalidade resulta, compreensivel-
mente, da personalidade que se conhece em sua origem, havendo, por as-
sim dizer, “hipertrofia do caráter”. Existe relação entre um “tipo sensitivo
de caráter” e uma elaboração paranoica de vivências. A frustração sexual
transforma-se, pela vergonha e pelo arrependimento, em ansiedade ante a
possibilidade da divulgação; daí o delírio referencial e, finalmente, perse-
cutório. A fraqueza sexual, a falta de contato com o perimundo trans-
forma-se em delírio de influência e perseguição. A abstinência sexual
transforma-se em delírio erotomano e matrimonial. Apesar, no entanto, da
compreensibilidade, a especificidade da relação e da transformação conti-
nua a ser incompreensível, não ocorrendo as mesmas em todos os indiví-
duos deste tipo caracterial, mas só nuns poucos.
2. A relação da personalidade com a fase. As fases apresentam-se
desde manifestações frequentes ligeiras até psicoses desenvolvidas de tipo
maníaco, depressivo ou outro. Quanto ao problema da relação entre a per-
sonalidade e determinado tipo de fase, possuímos o trabalho fundamental
de Reiss, o qual constatou o seguinte: Formas circulares simples, periódi-
cas e autênticas de doenças afetivas, alterações afetivas de colorido psico-
gênico, quadros de tipo melancólico e depressões com inibição apresen-
tam-se da mesma maneira nos tipos mais diversos de disposição afetiva.
Reiss observou, de modo geral, o fato, quando a disposição é alegre, de
predominarem os estados afetivos maníacos; quando a disposição é mar-
cadamente depressiva, predominam os estados de tristeza; sobretudo, as
disposições afetivas mais marcadas tendem, especialmente, às psicoses da
mesma natureza. As doenças afetivas circulares, pelo contrário, indepen-
dem inteiramente do humor e do temperamento habituais, dando a im-
pressão de serem totalmente estranhas a estes,’ sem qualquer correlação.
3. A relação da personalidade com o processo. A terceira questão é se e
em que extensão a disposição pessoal originária se relaciona com o pro-
cesso. Durante muito tempo, presumiu-se fossem os esquizofrênicos, fre-
quentemente, antes da doença, fechados, dificilmente adaptáveis, sensí-
veis a todas as realidades, egocêntricos (não necessariamente egoístas), tí-
midos, sem equilíbrio, auto- mortificadores, desconfiados, ranzinzas, inse-
guros; muitas vezes, dados a entusiasmos, inclinados ao metafisicismo.
Chamou, depois, a atenção o falo de outras pessoas sadias das famílias
em que alguns membros sofreram processo esquizofrênico terem caráter
aparentemente esquizofrênico (caráter que Kretschmer veio a denominar
esquizotímico, ou, mais próximo à psicose, esquizoide).
Por via anamnésica, Kunkel tentou mostrar a grande frequência de
personalidades ou caracteres desacostumados na infância de esquizofrêni-
cos ulteriores, agrupando, de acordo com Kraepelin: 1) crianças quietas,
tímidas, retraídas, que vivem para si (autistas). 2) irritáveis, sensíveis, ex-
citadas, nervosas e obstinadas (irritáveis,). 3) preguiçosas, pouco inclina-
das ao trabalho, inativas (associais). 4) dóceis, bem-humoradas, escrupu-
losas, crianças-modelo aplicadas, avessas a quaisquer travessuras juvenis
(pedantes). Que existam, aqui, correlações, sejam quais forem, não se
pode negar, embora não seja lícito adscrever a certo tipo caracterial de de-
terminada espécie qualquer probabilidade especial de fazer esquizofrenia.
— Relação entre processos cerebrais conhecidos (paralisia geral e outros) e
a personalidade originária não parece existir em caso algum (jamais con-
fundir com a disposição total).
Além da relação entre personalidade e psicose, pode-se indagar da re-
lação entre tipos de personalidade e anomalias psíquicas particulares,
como ideias obsessivas, fobias, alucinações etc. Friedmann pretende haver
observado ideias obsessivas com frequência especial em indivíduos críticos
e de vontade fraca; Janet acredita haver a relação mais estreita entre a
personalidade psicastênica e todos os sintomas que atribui à psicastenia.
A relação próxima entre o caráter histérico e as manifestações, resultantes
de mecanismos histéricos, tanto somáticas (estigmas) quanto psíquicas
(estados crepusculares etc.) considera-se evidente, dê modo geral.

d) A teoria da constituição de Kretschmer.


Kretschmer levou em conta todos os modos de ver acima para formular
sua nova concepção. Primeiramente, relatarei sua teoria, sem crítica. —
Partindo das psicoses nos dois grandes círculos da esquizofrenia e da lou-
cura maníaco-depressiva, veio ele a notar que se correlacionam com tipos
de estrutura corpórea. Os esquizofrênicos apresentavam, predominante-
mente, o tipo leptossômico; os maníaco-depressivos, ao contrário, o tipo
pícnico. No terceiro grande círculo, dos epilépticos, Kretschmer observou a
predominância do tipo atlético. Trata-se de relação estatística de frequên-
cia, de correlação. Os censos provenientes de diversas regiões e países
dão, certamente, cifras bem diferentes. Em média, servindo-se de dados de
muitos autores, Mauz acha que as cifras percentuais a seguir confirmam,
de modo geral, a tese kretschmeriana.

Relacionam-se com os tipos de estrutura corpórea os tipos de persona-


lidade, temperamento ou caráter (esquizotímico, ciclotímico, viscoso); tipos
estes que Kpetschmer descreveu com vivacidade e precisão inesquecíveis,
revelando-se à visão fisiognomônica, segundo a corporeidade que lhes cor-
responde. Kretschmer também procurou relacionar tanto os caracteres
quanto as psicoses com os tipos de estrutura corpórea segundo correlação
estatística; e reuniu, no quadro seguinte, as qualidades dos dois caracte-
res principais:
Ciclotímicos Esquizotímicos
Psicastesia e humor: Proporção diatésica entre Proporção psicastésica en-
exaltado (alegre) e de- tre hiperestésico (sensível)
pressivo (triste); e anestésico (frio);
Temperamento psíquico: Curva de temperamento Curva de temperamento
oscilante entre a mobili- saltando da subitaneidade
dade e a inércia; à tenacidade; humor alter-
nativamente meditativo e
sentimental;
Psicomotilidade: Proporcional aos estímu- Quase sempre despropor-
los; bonacheria, naturali- cional aos estímulos; re-
dade, moleza; servado, inibido, trancado,
rígido;
Tipo de estrutura corpó- Pícnico. Leptossômico, atlético, dis-
rea afim. plásico e suas misturas.
Ainda se examinam estes tipos de estrutura corpórea mediante testes
psicológicos de rendimento, relativamente a celeridade, modalidades de
apreensão (mais no todo, ou mais no particular), perseveração, motrici-
dade, destreza, afetividade etc. Encontram-se, por sua vez, correlações es-
tatisticamente demonstráveis, que se ajustam perfeitamente ao caráter tal
qual a existência da pessoa o revela, complementando-o e por ele se expli-
cando. No quadro seguinte se reproduzem algumas destas diferenças esta-
tísticas:
Leptossômicos Pícnicos
Maior sensibilidade às formas. Maior sensibilidade as cores.
Mais tendência à perseveração. Menos tendência à perseveração.
Associações mais frequentes: mediatas
e erráticas.
Associações mais secas. Associações mais emocionais dão des-
crições mais pormenorizadas, descri-
ções mais objetivamente reais.
Mais intensos, abstrativos, analitica- Mais expansivos, objetivos, sintéticos,
mente persistentes, com saltos estra- fáceis de abordar e modificar-se.
nhos de pensamento.
Subjetivizantes. Objetivizantes.
Emoções contidas. Emocionalidade ingênua.
Maior celeridade na produção. Menor celeridade (quando se bate com
uma vara numa placa metálica, em
andamento que seja o mais cômodo.
Dificuldade era apressar ou retardar a Facilidade em alterar a celeridade da
produção. produção.
Movimentos finos refletidos. Desleixo e despreocupação nas tarefas
motoras.
Motricidade rígida, insegura, muitas ve- Motricidade fluida, arredondamento
zes desajeitada.' harmonioso dos movimentos.
Escrupulosidade apurada, mais tensão
psíquica.
Vieram-se ainda a estabelecer, experimentalmente, correlações com o
tipo de estrutura corpórea em relação às funções fisiológicas e a reação a
medicamentos.
Também se encontraram correlações entre a estrutura corpórea e as
predisposições somáticas para certas doenças; por exemplo, dos leptossô-
micos para a tuberculose, dos pícnicos para a artrite, o diabetes.
A construção completa-se, enfim, quando se estabelece a correlação de
todos estes achados no curso hereditário (coincidência das formas fenomê-
nicas nos parentes consanguíneos mais próximos). Psicose, personalidade
total do paciente, individualidade dos familiares têm base comum. “Tudo
isso tem fôrma comum. O que irrompe, catastroficamente, nas crises es-
pasmódicas e nos caprichos repentinos de nossos pacientes catatônicos
sob o aspecto de delírio de perseguição, sistemas absurdos, bloqueio de-
sesperado, rigidez pétrea, autismo hostil, negativismo e mutismo, é uma
mesma coisa que impregna, tal qual espírito de família, nas mais diversas
tonalidades, em variantes sadias e psicopáticas, toda a estirpe dos pedan-
tes, dos sovinas prudentes e escrupulosos, dos instáveis que levam a vida
aos saltos, dos inventores, dos meditativos, com sua ansiedade suave e
atemorizada, sua desconfiança, sua taciturnidade; sua misantropia irascí-
vel e ausente. — Se passarmos do ambiente das famílias esquizofrênicas
para o das circulares, estaremos saindo de uma abóbada fria e cerrada
para a claridade solar quente, aberta. Comuns às famílias circulares são
certa bondade, cordialidade e brandura do humor; uma maneira franca,
sociável, humana, que ora se apresenta mais alegre, bem disposta e
jocunda, ativa e intensa, ora mais pacata, suave e quieta; que vai do polo
hipomaníaco- ao depressivo da forma circular, em transição imediata”.
Só quando não se perde de vista a totalidade das relações de caráter e
psicose com estrutura corpórea e funções quer somáticas, quer psíquicas,
é que tudo se consegue compreender. Jamais poderemos abranger as psi-
coses endógenas “sob o aspecto biológico, enquanto as considerarmos na
delimitação de unidades nosológicas. isoladas, soltas de suas conexões he-
reditárias naturais e comprimidas na estreiteza da sistemática clínica”.
Representaremos a conexão do todo no esquema a seguir, onde os ris-
cos significam as relações multilaterais:

É assim que, segundo Kretschmer, se desenvolve o quadro de uma


grande unidade.
Todos os fenômenos psicopatológicos são tomados sucessivamente, de
modo a integrar o todo. Mesmo o todo relativo da personalidade que se
compreende por via puramente psicológica transforma-se em elemento de
um todo vital amplo. O olhar procura uma regularidade biológica, o fator
central, pelo qual se possa apreender, primariamente e de modo unitário,
tudo quanto é somático e tudo quanto é psíquico, o sadio e o mórbido; a
constituição real total do homem, cuja natureza se manifesta até nas qua-
lidades, mais sublimes do caráter, até nas funções corpóreas, todas elas. A
ideia é o todo da constituição e sua variação em todas as espécies do exis-
tir humano, a estrutura corpórea sempre centralizando a atenção; estru-
tura que é a objetividade em que tudo se ajusta, a tudo se refere, se nos
mantemos fiéis ao fundamento da seguinte ideia do conhecimento antro-
pológico: a constituição manifesta-se na estrutura corpórea.
A unidade — para nós, a ideia de constituição — Kretschmer a con-
cebe como alguma coisa hipoteticamente tangível; por exemplo:
Existe alguma coisa comum, semelhante, que só se diversifica em
grau, entre caráter e psicose; por exemplo, entre o negativismo psicótico e
a obstinação caracterial. A psicose não se origina da conexão existencial
como se fosse novidade absoluta. “Para o nosso modo de ver constitucio-
nal, as psicoses ainda não são mais do que pontos nodais singulares, es-
parsos em rede multiplamente ramificada de relações constitucionais nor-
mais, corpóreo-caracteriais”; há “todas as transições e matizes imagináveis
entre saúde e doença”.
Também se há de presumir uma unidade no genótipo da disposição
hereditária. Estrutura corpórea, caráter, psicose, predisposições somáticas
mórbidas “são, apenas, efeitos parciais da massa hereditária total”. Deve-
se admitir um “genótipo total”, básico à formação ramificada total dos fe-
nômenos, ou manifestações.
Ora, a unitariedade deste quadro não se estabelece, em absoluto, na
realidade, por forma imediata e completa. Pelo contrário, “os casos clássi-
cos são raros”. Daí Kretschmer delinear, de acordo com o quadro puro do
todo, as causas das quais, na realidade, só derivam correlações; os casos
variantes talvez sejam até os mais frequentes. Consideram-se estas causas
baseadas na combinação das massas hereditárias e na consequência das
misturas:
1. A mistura. Na estrutura pícnica, “podem apresentar-se variantes que
vão dos elementos formais asténicos aos atléticos”. Chama-se a mistura de
tipos “liga constitucional”. O conceito de liga aplica-se tanto “ao tipo psí-
quico de um indivíduo quanto, em geral, à totalidade de suas disposições
hereditárias e, pois, de sua constituição”. “A parentela mais distante de
quase todos os esquizofrênicos e circulares contém mistura dos dois círcu-
los de personalidade, sempre, no entanto, prevalecendo, em média, nitida-
mente, os tipos correspondentes de personalidade”. Como quase sempre
há mistura, acontece serem certos traços fundamentais mais claros nos
parentes do que no enfermo. A liga pode ser, tanto no indivíduo particular
quanto nas famílias, de tal ordem que a estrutura corpórea combine tra-
ços pícnicos e leptossômicos; aliás, até por forma alternativa, de modo que
no somático se apresente um tipo constitucional; no psíquico, outro; por
exemplo, pode aparecer na estrutura pícnica uma psicose esquizofrênica.
Kretschmer chama estas ligas “entrecruzamentos”.
2. As modalidades em que se realiza ó genótipo herdado. A intensidade
e a direção da manifestação variam. Nem a estrutura corpórea, nem o ca-
ráter, nem a psicose “precisam refletir, completamente, na maneira por
que se apresentam, o genótipo que lhes subjaz”. É de acreditar “que parte
da disposição genotípica penetre mais intensamente o fenótipo ora na es-
trutura corpórea, ora na personalidade, ora na psicose”. “O mesmo agente
biológico que se apresenta, num irmão, quanto ao mais de estrutura píc-
nica, apenas pelo nariz um pouco mais longo e pontudo, pode, digamos,
tornar-se, clara e univocamente, fenotípico sob o aspecto de hábito asté-
nico na irmã”. “No correr da vida, primeiro uma, depois outra constituição
podem-se mostrar predominantes em misturas genotípicas”. Kretschmer
denomina mudança da dominância esta transformação do fenótipo, mu-
dança que possibilita a conversão, no mesmo indivíduo, de um tipo no tipo
oposto.

e) Crítica da investigação constitucional kretschmeriana.


Há quase vinte anos, pouco após a publicação do livro de Kretschmer,
fiz observações críticas, nesta “Psicopatologia Geral”; observações que,
abreviadas em certos pontos, refundidas e objetivamente esclarecidas,
mas sem alteração, ainda reproduzo aqui:
O objetivo de Kretschmer é descobrir relações regulares entre tipos
complexos de estrutura corpórea empiricamente encontrados e tipos psí-
quicos igualmente complexos; certamente, por via estatística, mediante
exibição de correlação numérica.
Como é que encontra estes tipos? Não devem ser “tipos ideais”, mas ti-
pos que se estabeleçam segundo valores médios. Contando grande nú-
mero de asténicos, pícnicos etc. com referência a todas as características
mensuráveis e visíveis, Kretschmer dá um quadro médio. Mas como foi
que selecionou os casos cuja média tomou? Tomou aqueles casos em que,
conforme diz, se podia acompanhar maior número de identidades morfoló-
gicas em maior número de indivíduos. Portanto, pressupôs o tipo, intuiti-
vamente. É o que ele próprio testemunha quando diz dirigir-se sua descri-
ção tipológica, exatamente, não pelos casos frequentes e médios, e sim
“pelos casos mais bonitos”; e serem estes “casos clássicos” “quase resul-
tantes do azar”. É o que testemunha, além disso, quando descreve: ‘Tudo
depende, é certo, de adestramento artístico e seguro de nossa visão”. “Não
caminharemos para diante apenas colhendo medidas singulares, sem
ideia e intuição da construção total. A fita métrica nada vê, porque com ela
nunca chegaremos a apreender os quadros biológicos típicos, o que é
nosso objetivo”. Ou: “A particularidade morfológica nunca é importante se-
não na moldura de grandes quadros totais da estrutura corpórea, quadros
dos quais emergem os tipos”.
O que é que Kretschmer recenseia? Primeiro, toma medidas de corpo e
proporções, estabelecendo quadros relativamente a valores médios. Sabe-
mos que a seleção dos casos medidos e reunidos é condicionada pela in-
tuição subjetiva do tipo pressuposto. Dentre certa massa total, dois obser-
vadores independentes um do outro não selecionam os mesmos indiví-
duos, nem a mesma cifra total de pícnicos etc.... “A classificação dos casos
fronteiriços nunca pode ser exata”, diz Kretschmer. Depois, nem sequer
compara os valores numéricos em todas as direções, mas simplesmente
estabelece os quadros, que daí por diante já não desempenham papel al-
gum. Se o leitor os comparar por sua própria iniciativa, deles não extrairá
coisa alguma específica, realmente. De mais a mais, Kretschmer não des-
creve, apenas, “casos bonitos”, mas acrescenta achados médios, a fim de
enquadrar outros casos no tipo; altura esta a que se dilui sua intuição ini-
cialmente clara de uma configuração unitária. Conta-se, a seguir, a fre-
quência da coincidência dos tipos de estrutura corpórea com o caráter e
as psicoses. O diagnóstico da esquizofrenia e da loucura maníaco-depres-
siva pode vir a ser, em círculo mais restrito, de certo modo idêntico; em
círculos mais amplos, contudo, as perspectivas diagnósticas diferem con-
sideravelmente. Mas assim que Kretschmer inclui os extremamente pro-
blemáticos “neurasténicos esquizoides, psicopatas, degenerados”, cessa
qualquer enumeração em que se possa confiar, de modo geral.
Só se enumeram, pois, totalidades: tipos de estrutura corpórea, tipos
caracteriais, tipos de psicoses; e não características simples, que todos
possam enumerar da mesma maneira. Mas a estatística só tem sentido e
obrigatoriedade quando observadores diferentes encontram as mesmas ci-
fras usando o mesmo material; sem o que, não é mais do que aparência,
quando se quer provar com ela alguma coisa e dependendo da intuição, a
qual, neste caso, seria melhor usar diretamente. Quando se quer recen-
sear, é preciso ter não só características seguramente tangíveis que se
possam contar na realidade, ou por serem nitidamente delimitadas ou por
serem mensuravelmente graduadas e isso de modo a ter, seja qual for o
caso, determinado valor numérico — mas também se tem de proceder
usando controles. De que modo assim fazer mostra o trabalho de Beringer
e Duser, que diz respeito a problema semelhante. Estes dois autores con-
taram características displásicas em esquizofrênicos (o resultado é claro,
embora pouco produtivo). O confronto deste trabalho com o de Kretsch-
mer é instrutivo: em Kretschmer, vemos intuição elevada, que, entretanto,
se oculta e pretende fazer-se valer, erradamente, graças a recursos exatos
aplicados sem crítica, como se fossem baseados na ciência natural; em
Beringer e Duser, o que vemos é a mais clara crítica e pesquisa científica,
sem intuição. Certo é que cabeças como Kretschmer respondem que não
se deve falar, e sim comprovar; ao que se pode replicar: Certamente; e se
reconhecerão os tipos de Kretschmer, porque são evidentes, concretos,
mas não se começará a avaliar, apesar disso, porque a ponderação pura-
mente metodológica sabe de antemão, ser escassa a conclusividade das ci-
fras que assim se obtêm.
O censo de Kretschmer, embora condicionado subjetivamente, não é,
entretanto, arbitrário. Mesmo para essa intuição, mostra a realidade casos
que são quase probantemente objetivos e enumeráveis (os “casos bonitos) ;
além de outros que não parecem ajustar-se, em absoluto (nem com a me-
lhor intencionada das intuições) e da grande massa que existe entre todos
os tipos. Dominar estas discrepâncias reconhecidas é tarefa que cabe à in-
terpretação ulterior; e, aliás, pela transposição de conceitos oriundos da
teoria da hereditariedade (entrecruza- mento, mudança, de dominância),
bem como pela ideia de liga de tipos; diferentes no mesmo indivíduo. Daí
haver-se tornado impossível apresentar qualquer caso que não se possa
interpretar. Caso algum se pode; opor, sob esta forma, à teoria. A ser as-
sim, também não poderá, contudo, a teoria provar-se pela realidade. Há
“plausibilidade” na combinação da biologia genética, da teoria da estru-
tura corpórea, da psicopatologia, da caracterologia; combinação que não
possui alicerce empírico' firme, indubitável, mas sempre permite interpre-
tar (sem caráter impositivo, embora), o quadro que se haja formado intuiti-
vamente, usando- de vocabulário supostamente científico.
Nada haveria a objetar às belas descrições kretschmerianas, criativas
em sua configuração, se tudo não misturassem em roupagem científica
pseudo-exata. Os recursos artísticos e a enumeração confundem-se e insi-
nuam-se uns nos outros. Interessamo-nos no configuramento artístico; e o
leitor versado em ciências naturais, se for pouco crítico, pode aquietar-se e
dar-se por satisfeito com a roupagem, correta. O que se pretende é, de-
certo, encontrar uma síntese em que se reconheça, a todo momento, um
todo novo a partir da realidade. Mas. não se trata, aqui, de síntese, e sim
de mistura de métodos. O livro de Kretschmer não contém sopro algum de
ciência natural que distinga criticamente e se ajuste aos seus fundamen-
tos.
Considero insustentável a teoria inteira (se bem que não absurda em
suas origens), antecipação ingenuamente desenvolta de um conhecimento
dos fatores vitais derradeiros a que se subordina o homem particular — já,
agora, claro, se o virmos como caso. O que há de positivamente valioso no
esforço de Kretschmer (feita abstração da caracterologia e da fisiognomia),
vejo-o na criação do tipo pícnico de estrutura corpórea, que representou
novidade e desde logo se confirmou1 pela evidência e pela experiência (os
outros dois já se conheciam, embora Kretschmer haja ensinado a vê-los de
modo consideravelmente mais apurado).
Ao anotar estas observações, enganei-me num ponto: aquele concer-
nente à fecundidade da premissa e ao sentido da ideia da constituição,
quando pretende, seriamente, estender-se a todas as- conexões causais e
compreensíveis. Àquela época, só a valorei como rendimento da fisiogno-
monia; mais do que isso, apenas percebi o entusiasmo. Considera exatas,
ainda hoje, minhas observações; insuficientes, porém, não afinando, tais
como as formulei, com o> novo esforço de Kretschmer. Também me enga-
nei no fato de não haver previsto o largo efeito da teoria.
Isso talvez se possa — é certo — compreender, em parte, pela circuns-
tância de existir, nos tempos modernos, necessidade maciça, de métodos
concretos com os quais se realizem trabalhos científicos- em série e analo-
gia, sem precisar recorrer a ideias próprias; e pela. circunstância de haver
tendência a associar grandiosidade e pseudo- exatidão à apreensão rápida
e cômoda da verdade. Foi neste sentido que, então, escrevi a bem da por-
menorização psicológica e da precisão empírica, opondo-me ao “falatório
sobre possibilidades” e-recordando os antigos naturalistas, os quais pre-
tendiam reconhecer a “essência” das coisas e aos quais Kepler respondeu,
quando lhe censuravam reconhecer não a essência, mas a mera superfí-
cie: “Apreendo, como dizes, a realidade pela cauda, mas seguro-a na mão;
tu, entretanto, queres tentar agarrar-lhe a cabeça, mesmo que seja só em
sonhos”. Pode acontecer, até em épocas científicas, que uma ilusão (preci-
samente em roupagem científica e fora do campo especializado) venha a
conquistar os mais vastos círculos.
Sem ter sido, no entanto, decisivo, certo é que operou o entusiasmo
franco de uma ideia: o redespertar da antiga concepção do existir humano,
profundamente arraigada, por força de seu configuramento numa plurali-
dade de temperamentos. Basicamente, não há aqui ilusão alguma. Qui-
sera eu, hoje, compreender esta ideia e comprovar-lhe, criticamente, o
efeito, afirmar-lhe o sentido positivo. Daí ser tão necessária a análise crí-
tica quanto a apropriação positiva. Aliás, vim a ter confirmação subse-
quente de minha crítica; mas creio ter chegado a confirmação clara, em-
bora obscuro e insuficiente o ponto de que partira, graças à fecundidade
da pesquisa empreendida neste terreno. Daí não poder convencer-me do
desacerto de minha crítica metodológica; e poder achar-me ainda convicto
da verdade da ideia inicial, a qual, sem dúvida, só compreendo na medida
em que compreendo o sentido que tem o erro e esclareço as inversões fun-
damentais realizadas na teoria kretschmeriana. É por esta via que tam-
bém tendo apreender este fenômeno surpreendente: de os mesmos pesqui-
sadores que aplicam os métodos positivamente e com esforço infinito insi-
nuarem, ao mesmo tempo, observações críticas que parecem destruir o
sentido de tudo quanto fazem.
Em primeiro lugar, temos de repetir e complementar a criticar
1. Crítica da estatística. As antigas objeções subsistem. Os. quadros to-
tais que Kretschmer vê com argúcia tão evidente são' ou configurações fisi-
ognomônicas, que se ligam umas às outras por visão essencial, ou confi-
gurações morfológicas, ligadas por sentido biológico formal. Num caso
como noutro, é impossível recensear, tendo em vista a espécie de objeto —
a multiplicidade fluida das formas humanas, a raridade das formas “pu-
ras”, no sentido tipológico, o caráter “misto” ou intermediário da maior
parte dos indivíduos. Não se pisa no solo firme das unidades que se pos-
sam estabelecer identicamente em cada caso, nem medir quantitativa-
mente pelo grau com que se apresentam. Só se pode recensear aquilo que
observadores diferentes reconhecem como idêntico em presença de carac-
terísticas unívocas e da mesma maneira. Tais não são os tipos de estru-
tura corpórea em suas transições fluídas; menos ainda os tipos caracteri-
ais; as grandes psicoses diagnosticáveis — pelo menos, em limites mais
estritos, são que mais se aproximam. Subsiste a falha em que a seleção
dos fatos não se faz segundo critério unívoco e idêntico por parte dos di-
versos pesquisadores.
Recenseou-se, contudo; aliás, em trabalhos inúmeros, extraordinaria-
mente cuidadosos, tanto na Alemanha quanto noutros países. Seguiram-
se confirmações e refutações; os que confirmaram foram, entretanto, mai-
oria. São, porém, os trabalhos críticos, particularmente aqueles realizados
com a máxima precisão, que convencem, porque associam a consciência
metodológica à exatidão processual.
Os trabalhos confirmatórios divergem muito, contudo, entre si. “O que
chama a atenção” — escreve John Lange — “são as diferenças extraordi-
nariamente grandes das cifras percentuais de que se dá notícia... Trata-se
de discrepâncias tão desmedidas que nem se podem atribuir de modo al-
gum, a casualidades. Conclui-se, sim, não permitir o material cálculos es-
tatísticos da ordem dos que se apresentam”.
Tendo em vista as grandes divergências, exige-se que os pesquisadores
partam do mesmo ponto visando ao mesmo alvo. Kretschmer exige o ades-
tramento da visão; fita métrica e compasso não bastam. Vemos, entre-
tanto, na raiz a antinomia insolúvel. Ou se relaciona o caso, pela visão
adestrada e segundo a impressão geral, a este ou àquele tipo de estrutura
corpórea — e, então, o adestramento da visão impõe que a verdade da pre-
missa decorra do hábito do mestre, vindo a tornar-se bastante indiferente
a mensuração antropológica, que mais não será do que ornamento cientí-
fico — ou se confia na mensuração e se faz a- classificação segundo os ín-
dices antropológicos unívocos que se hajam adotado (ou seja, as propor-
ções escolhidas para certas medidas entre si) — e, então, já não se vê tipo
de estrutura corpórea algum; o que se pode medir tornou-se indiferente; e
passa-se a vagar, desde logo, em meio a massas numéricas infinitas, em
correlações abstratas, sem vigor; perdem-se toda unidade, toda totalidade
amplas.
Nem o costume do mestre é, no entanto, unívoco: não é identicamente
transponível, nem é sempre igual para ele sequer. Kolle descreve exemplos
que mostram, em casos particulares, arbitrariedades drásticas.
Assim, pois, parece impossível apreender estatisticamente os grandes
grupos de estrutura corpórea; a ponto de John Lange escrever: “Kolle mos-
tra, de maneira plenamente convincente, quanta coisa é entregue ao arbi-
trarismo; de forma que já nem se pode compreender por que está sempre
assumindo posição antropológica”. Isso é devido a que, conforme Kolle
mostra com seu esforço infatigável, nem tudo é arbitrário, pois que certas
correlações estatísticas surgiram por esta via, embora não exatas; e pelo
confronto de grupos mais ou menos delimitáveis se descobriram diferen-
ças que se fizeram claras e cuja verdade ou se reconhece, de maneira ge-
ral, ou, quando menos, se aceita para discutir. Se se tomarem os grupos
de maneira mais estrita — por exemplo, a clássica psicose maníaco-de-
pressiva e as esquizofrenias mais graves — verifica-se que a estrutura píc-
nica é muito mais frequente nos maníaco-depressivos do que nos esquizo-
frênicos e do que também nos indivíduos sadios. Mais ainda: que a pro-
porção dos leptossômicos na esquizofrenia — maior, certamente, do que
nos maníaco-depressivos — corresponde, mais ou menos, à proporção da
mesma estrutura corpórea na população sadia. Quando o mesmo observa-
dor faz confrontos desta ordem, as cifras absolutas não podem pretender
validez alguma, mas as relativas podem; e, junto com elas, o quadro total,
se o pesquisador houver procedido sem prevenção. Daí Gruhle concluir,
convincentemente, que Kretschmer só apanhou em seus esquizofrênicos o
tipo da população geral, e não um grupo especial sob o aspecto somático;
e que, ao contrário, existe, realmente, maior participação do tipo pícnico
na psicose maníaco-depressiva; donde surgir um problema, qual seja: se
temos de nos contentar em dizer, com Krisch, que o hábito pícnico repre-
senta para a psicose maníaco-depressiva o mesmo papel que o tipo asté-
nico na tuberculose.
Todavia, as cifras talvez levem mais longe ainda, se não partirmos dos
esquizofrênicos, em geral, mas dos grupos característicos estritos que
nesta constelação se incluem. Foi assim que procedeu Mauz, mostrando,
em interessante trabalho, existir quantidade enorme de leptossômicos nos
hebefrênicos jovens graves que não tardam a demenciar; ao passo que, em
geral, está ausente o tipo pícnico; daí resultando que a estrutura pícnica
melhore o prognóstico para certo paciente. Estas e outras asserções de
Mauz, que recordam facilmente ao psiquiatra casos semelhantes, foram
por ele funda- mentadas sob o aspecto estatístico, de maneira que o resul-
tado se afigura de todo possível, apesar das bases necessariamente inexa-
tas. Não parece existir confirmação igualmente apurada destas teses, pos-
sível, embora, que seja.
Não obstante os resultados que se podem avaliar positivamente, sub-
siste, no todo, o seguinte quadro dos métodos estatísticos, com referência
ao campo da estrutura corpórea-psicose (mais ainda quanto a estrutura
corpórea e caráter): a uma premissa arbitrária seguiu- se procedimento al-
tamente crítico; a inexatidão fundamental não pode, contudo, ser supri-
mida pela exatidão construtiva. Vale ainda, quanto aos tipos, o dito de
Max Schmidt: Se bem que pareçam reconhecer-se cada vez mais, a signifi-
cação deles ainda é duvidosa.
Na aplicação da teoria kretschmeriana da constituição, há ainda ou-
tras cifras de proveniência exata, porque unívocas (tanto quanto se possa
comprová-lo, psicologicamente, por via experimental). A situação é, aqui, a
mesma que quando se parte de meras mensurações com referência à es-
trutura corpórea. Correlações infinitas acumulam-se, que não dão, por si,
quadro algum e que, justamente por não serem em absoluto exatas, tam-
bém nenhuma impressão avultada produzem. Só mediante interpretação
que atinja um quadro caracterial e que sempre permanece pendente é que
os achados adquirem sentido, uma vez feita seleção adequada; particular-
mente, em conexão com a observação total, tal qual a faz o experimenta-
dor com seus casos. Tais observações fornecem muito mais do que aquilo
que resta para terceiros nas cifras dos resultados; é só com elas que o pro-
cedimento se faz realmente interessante para quem as utiliza.
2. As interpretações em vista das discrepâncias (irrefutabilidade e im-
probabilidade). Interpretam-se as exceções dos quadros e cifras que se
preveem e que, de fato, são maioria, por hipóteses cujos conceitos se origi-
nam da teoria da herança; bastardização (liga), mudança de dominância,
entrecruzamento.
Encontram-se as discrepâncias na massa dos casos transicionais, im-
possíveis de classificar por forma adequada; nos quadros que apresentam
psicoses esquizofrênicas com estrutura corpórea pícnica, ou psicoses cir-
culares com estrutura asténica etc. (desde que os elementos que, no caso,
se hão de ter misturado se pressuponham realmente existentes). Também
não se pode negar “haja indivíduos que apresentam, na juventude, hábito
leptossômico e que, perto dos cinquenta, são pícnicos” (Max Schmidt).
A interpretação que se baseia em ligas, entrecruzamentos e mudanças
de dominância é, neste contexto, pura possibilidade ideativa. Estes concei-
tos só têm realidade quando permitem chegar a experimentos que confir-
mem ou refutem. Mais ainda: recorre- se, para interpretar, a efeitos de ou-
tros gens da disposição hereditária, os quais se acrescentam em sentido
inibitório ou estimula- tório; e recorre-se também a influências exógenas
sobre o configuramento individual. A objeção nunca se dirige à possibili-
dade particular. Tudo isto é possível, sim, na. realidade. A objeção é que,
se posso interpretar cada caso com tantos conceitos interpretativos, terei
levado a interpretação mesma ao absurdo, porque, se posso provar tudo,
sou, certamente, irrefutável; em verdade, porém, não faço mais do que ro-
dar com uma quantidade de conceitos meramente repetitivos, sem progre-
dir, apesar do movimento aparente.
3. Tendência à obscuridade dos conceitos e métodos. A teoria de
Kretschmer tende, impressionantemente, a um configuramento holístico
do quadro, configuramento que se realiza de modo convincentemente plás-
tico, acompanhado, porém, da tendência à obscuridade lógica, a ideias
que mais não alcançam senão aproximatividade imprecisa. Assim é que se
fala com desenvoltura em “afinidade” «piando se trata de mera correlação;
por meio do que, a impressão de relação interna se insinua, pela escolha
das palavras e inadvertidamente, numa correlação externa. É certo que
Kretschmer esclarece significar afinidade o fato da frequência comparati-
vamente maior dessa coincidência; e não lhe ser ainda possível, hoje, dizer
coisa alguma sobre as condições internas que a regulam (a estrutura píc-
nica será afim da loucura maníaco-depressiva, em oposição à esquizofre-
nia). Dúvida não há, contudo, de que a obra inteira visa às conexões inter-
nas e de que a atração poderosa da teoria repousa, exatamente, na im-
pressão do todo significativo que emana da ideia de estrutura corpórea e
psicose. Há, nó entanto, permanente mistura de uma coisa com outra; o
que é subjetivamente concreto no fisiognomônico mistura-se com o que é
objetivamente mensurável, sem significado concreto no todo; a enumera-
ção de características e medidas particulares que se podem estabelecer de
maneira idêntica, com a enumeração de totalidades que não se podem es-
tabelecer de maneira idêntica; a correlação que penetra ma afinidade, com
a correlação que penetra no fundamento da correlação; o psíquico, com o
somático; a visão inexata, com a execução exata; a liberdade da perspec-
tiva, com a obrigatoriedade de uma classificação esquemática; a evidência
de visão fisiognomônica ou morfológica, com a evidência da mensuração
científica; a estrutura corpórea no sentido de expressão da totalidade de
um ente humano, com a estrutura corpórea como consequência de certos
efeitos ou distúrbios endócrinos; a observação unívoca, com a interpreta-
ção multívoca; a experiência, com as possibilidades que não se podem pro-
var.
Daí por que a aplicação da teoria não representa síntese autêntica,
quando se apreende o todo; e sim mistura de métodos e confusão de con-
ceitos. Favorecendo a aparente clareza das ideias mais salientes e a cla-
reza real dos quadros observados, deixa-se de superar a obscuridade das
concepções básicas; isso repousa, contudo, numa inversão fundamental,
que se tem sempre feito notar, há milênios, na filosofia e que também
ocorre no campo da psicopatologia.
4. A inversão fundamental: transformação das ideias em entidades (hi-
postase). Todo ser (ou ente) que se conhece e pode ser conhecido tem a
forma de uma objetividade determinada, tangível. As ideias, no entanto, vi-
sam ao todo que se mostra no particular, sem poder ser, contudo, objeto,
nem como evento que se conceba básico, nem como imagem. É só como
esquema da ideia que nos servimos de tipos, imagens, sistemas ideativos;
os quais constituem por este motivo, recurso para a ilustração da via que
leva ao conhecimento no particular, mas sem significar conhecimento, ele
próprio. Ora, se eu objetifico estes esquemas, imagens, ideias num ser,
como se existissem tal qual um objeto, estou, então “hipostasiando” a
ideia; donde perderem as ideias seu impulso como movimento do conheci-
mento no sentido de uma abertura; ao mesmo» tempo, ganho certo pseu-
doconhecimento que não tarda a mostrar- se “inobjetivo”, ou privado de
objetividade.
Daí estar certo Kurt Schneider, quando diz que os tipos de Kretschmer
não são realidade descobertas e quando lhes contesta a pretensão a serem
o suporte constitucional da teoria inteira da personalidade e da psicopatia.
E tem razão Max Schmidt quando» opina servirem os tipos como conceito
de trabalho e como ilustração, mesmo não sendo sínteses fundamentadas,
em absoluto.
Se eu transformo a ideia em concepção hipostasiada do ser, sucumbo
a uma aparência natural, insuprimível, que consigo, porém, compreender
e que, portanto, não me obriga a que me iluda (Kant), mesmo que subsista
ante mim à maneira de pós-imagem.... Mas se me deixo iludir, corro o
risco de perder a ideia a bem de uma entidade presumidamente conhe-
cida. Começo, então, a tratar o conteúdo da ideia como objeto do entendi-
mento; começo a concebê-lo em elementos que se combinam, se mistu-
ram, se entrecruzara; começo a assemelhá-lo cada vez mais a um meca-
nismo — sem deixar, no entanto, de ainda poder ser movimento pela ver-
dade da ideia, verdade que me convencerá de não estar perseguindo fal-
sas-imagens. O importante é superar o auto-malentendido. Só então é que
não haverá o que objetar não só ao que se vê, mas também à formulação
do que se vê; não só à intuição, mas também ao método da pesquisa que
por ela se orienta. Não poderão, neste caso, quaisquer sucessores obtusos
movimentar um mecanismo de pseudoconhecimentos, de maneira a esta-
belecer classificação rápida e cômoda do ser humano. E também será pos-
sível responder à tese de não haver constituição (excetuado o efeito parti-
cularmente condicionado das glândulas endócrinas sobre o corpo inteiro):
Não, não há constituição como fato objetivo, mas como ideia necessária.
Quem observar o homem sem ela terá perspectiva pobre e estreita.
Certa vez, querendo explicar a Goethe, com quem concordava, o sen-
tido da planta primária, Schiller disse que ela era verdadeira, mas era ape-
nas uma ideia; e Goethe respondeu dizendo-se contente de ver a ideia,
contente de que ela fosse realidade. Realmente, o “apenas” aplica-se exclu-
sivamente em contraposição à realidade determinada final dos objetos do
entendimento que pesquisamos diretamente. Mas a ideia é realidade que,
sem a possuirmos, nos guia, nos aparece em imagens, nos atrai em pen-
samentos e esquemas, dá nexo e sentido ao nosso conhecimento.
5. Concepções especiais básicas. Da consciência de havermo-nos apos-
sado da visão do todo origina-se a tendência, de um lado, a ver o todo
(como um em tudo) em meras transições; de outro lado, a contemplar o
todo no esquema. Entre as formulações da teoria kretschmeriana, aquele
primeiro aspecto está na tese da transição entre personalidade e psicose',
o segundo, na tendência a pensar como se houvesse, apenas, duas ou três
espécies de tipos humanos. Nem um aspecto, nem outro está necessaria-
mente ligado à ideia de Kretschmer. Mas, por assim dizer, ambos depen-
dem do mecanismo pelo qual se pensa, desde que se hipostasie a ideia.
aa) Personalidade e psicose. Pela observação do caráter pré- mórbido
dos esquizofrênicos, acreditava-se haver encontrado uma caracterologia
anormal frequente de esquizofrênicos ulteriores. Todavia, embora perma-
necesse questionável a essência da correlação e só se discutisse a exten-
são da respectiva fatualidade, Kretschmer viu não só correlação imprecisa,
mas transição: A psicose será aumento ou exagero de certa variedade
constitucional da personalidade; o que significa muito mais do que predis-
posição de certos tipos de personalidade para determinadas psicoses.
Kretschmer soube apresentar por forma sugestiva a similitude oculta
de manifestações heterogêneas. É essencial, todavia, esclarecer por que
métodos tal acontece. Vamos dar um exemplo: Kretschmer exprime o
traço comum básico entre qualidades fisiológicas, disposições tempera-
mentais, traços caracteriais e manifestações psicóticas em analogias. Tem
de subsistir, no entanto, a questão quanto ao que é, então, que se atinge
como sendo idêntico, seja em que sentido for, urna vez excedida a analogia
ilustrativo-estética. Quando discute o temperamento viscoso e sua correla-
ção com a estrutura corpórea atlética e com a epilepsia, Kretschmer diz:
“Esta viscosidade do curso psíquico aparece, a cada momento, noutras
modalidades fenomênicas — nos movimentos comedidos e calmos, na lin-
guagem parca, na fantasia limitada, na maior persistência, na atenção te-
naz, tanto quanto no equilíbrio da vida emocional, na torpidez e na es-
cassa afetividade, na pouca versatilidade, na atividade intelectual e social
moderada, na fidelidade e na confiabilidade do comportamento social. Há
de considerar-se a viscosidade, o entorpecimento, traço comum básico dos
atléticos”. É evidente que certa imagem sensorial — o entorpecimento —
se ajusta a fatos absolutamente heterogêneos (quais sejam, a lentidão dos
movimentos do corpo e a fidelidade do caráter) ; corretamente, nos dois
casos, mas com sentido ilustrativo sempre diverso. Não se exprime, por
esta via, saber empírico algum do existir humano em suas qualidades bá-
sicas.
Às vezes, parece haver Kretschmer perdido o senso da diferença pro-
funda que existe entre desenvolvimento da personalidade e psicose proces-
sual. A considerar esta última apenas culminação do desenvolvimento da
personalidade em certos pontos nodais de conexões hereditárias, ter-se-ão
de admitir, ao mesmo tempo, os conceitos mais vagos possíveis. Do ho-
mem esquizotímico médio uma série de transições levaria aos psicopatas
esquizoides. Kurt Schneider, opondo-se a este apagamento de fronteiras
mediante transições, estabeleceu: Tivemos de admitir, com base na sim-
ples experiência clínica, não se encontrarem semelhante transições, con-
quanto não se possa considerá-las, a priori, impossíveis em si, segundo
analogia com certas doenças somáticas. Os casos em que se tem dúvida
(se são anormalidade da personalidade, ou psicoses esquizofrênicas) são
absolutamente raríssimos; mas também eles, com o tempo, se podem
quase sempre determinar. Se existe correlação entre personalidade esqui-
zoide e psicose, não há, contudo, transição, e sim salto, tal qual existe do
estado do alcoolismo crônico para o delirium tremens. Tão decisivo é o
salto entre personalidade e psicose esquizofrênica processual quanto é o
salto entre personalidade e psicose maníaco-depressiva. Se correlação
existe, não é, contudo, tal que uma represente forma mais ligeira de outra.
O modo de pensar que pretende apreender a unidade do evento psico-
lógico pela analogia ilustrativa, nela vendo identidade essencial, foi usado,
de forma metódica, por F. Minkowska, em sua análise estrutural (lugar ci-
tado) relativamente à constituição epileptoide (viscosa ou gliscróide). En-
tende ela por estrutura “um princípio configurativo que, em oposição a to-
das as formas da existência viva, é uma primariedade que se externa, por
isso, tanto no comportamento biológico quanto no caracterológico e no in-
telecto-criativo, de maneira coincidente”. Traço fundamental da constitui-
ção viscosa será a lentificação, a estase, a aglutinação (até nos capilares se
lentifica a circulação, condicionando a cor da pele); do represamento surge
o ataque motor. A mesma polaridade mostra-se no comportamento do ca-
ráter, sob. a forma, por um lado, de lentificação viscosa, afetividade con-
centrada, tenaz; por outro lado, de reação explosiva e violenta. No caráter
(frequente, nas famílias de epilépticos, entre os membros sadios), predomi-
nam os traços básicos da viscosidade na maneira por que estes indivíduos
não se apartam da moldura que lhes é originária, apegando-se ao solo na-
tal, preocupando-se com significados familiares e tradicionais, traba-
lhando com escrúpulo, mantendo-se uniformes, concentrando-se afetiva-
mente, incapazes de libertar-se de seu mundo. Quando aparece a doença,
a morosidade cede lugar à excitação; e o represamento, que vai ao máximo
ante os conflitos vivenciais, sem descarga e distensão natural, leva a tur-
vações repentinas da consciência, com perda desta, ansiedade elementar,
estados crepusculares, acompanhados da vivência de forças primárias, vi-
sões religiosas, fim-do- mundo. A psicose epiléptica é grau mais adiantado
da manifestação viscosa em sua polaridade de queda e elevação. Mo ata-
que motor, dão-se a queda somática e a descarga motora; nas ausências,
nos estados crepusculares, na psicose, ocorre o declínio mental, sob a
forma de perda da consciência, elevação aos conteúdos religiosos e cósmi-
cos. Esta polaridade atingiu a autorrepresentação criativa no último qua-
dro de Van Gogh (os corvos voando por sobre o trigal): o trigal quer elevar-
se, a catástrofe é iminente. — Não me parece que se descubra, nestas con-
cepções, qualquer evento biológico ou psicológico básico; e sim jogo no
qual a similitude dos vários fatos entre si, se bem que podendo servir, em
parte, à descrição verbal, se transforma, arbitrariamente, em identidade.
É, precisamente, esta plausibilidade na visão vivamente imediata, associ-
ada ao pressentimento sedutor de um fundamento vital profundo, que en-
gana, neste ponto; o que não diminui a significação das comprovações
descritivas genealógicas.
A correlação entre variação caracterial e psicose processual é problema
extremamente difícil Só chamaremos a atenção para dois pontos:
1. A fatualidade da correlação entre a espécie originária de personali-
dade e a psicose ulterior não é, de modo algum, absoluta. Por mais que se
encontrem, entre os esquizofrênicos, caracteres anormais pré-mórbidos e
caracteres parecidos na parentela, não se pode afirmar que qualquer tipo
anormal de personalidade predisponha ou signifique, como tal, perigo de o
indivíduo tornar-se esquizofrênico. Nem são raros os casos em que proces-
sos psicóticos afetam personalidades sadias.
2. Quando se fazem investigações genealógicas para descobrir a corre-
lação entre caráter e psicose, é fácil deixar-se envolver na ideia de chamar
esquizoide certo tipo pelo fato de aparecer em famílias nas quais há psico-
ses esquizofrênicas; sem, entretanto, considerar o mesmo tipo esquizoide,
caso não haja, na família, psicose alguma. Assim é que Luxenburger diz:
“O psicopata sem afetividade, se o considero como individuo, desligado dos
laços familiares, é variante extrema, inferior, da personalidade pouco afe-
tiva. Se eu descobrir que o pai dele era esquizofrénico, nada impede que o
julgue portador de disposição esquizofrênica e o chame, sob o mesmo
ponto de vista, psicopata esquizoide”. Portanto, a mesma coisa que é, de
uma feita, variação da constituição humana, é, de outra feita, manifesta-
ção da massa hereditária psicótica. Aliás, Luxenburger diz: “A frieza afe-
tiva dos doentes esquizofrênicos é, em essência, alguma coisa diversa da
falta de afetividade dos psicopatas; diversa também da pobreza afetiva da
personalidade correspondente normal”. Mas é só a investigação genealó-
gica que parece mostrar o que existe no caso particular. Seja como for, se-
gundo Luxenburger, “não são de alinhar-se a esquisitice do psicopata,
nem o retraimento do homem nórdico com o autismo esquizofrênico”. A
esquizofrenia “não é variante de uma qualidade pessoal, mas sintoma de
uma doença”.
bb) Dois ou três tipos de homens. A princípio, deu impressão de que a
teoria kretschmeriana, admitindo duas ou três constituições, visava a su-
bordinar-lhes todos os seres humanos. Não foi o que se pretendeu.
Kretschmer pensa com base na sua observação; e descreve os tipos que
viu. Em princípio, nada tem a objetar contra novos tipos, podendo até di-
zer: Descrevam-mos, mostrem-mos! Não se ergueria, certamente, contra
formas novas. Na realidade, não foi do esquema e do sistema que partiu,
mas de sua visão morfológica e fisiognomônica. A seguir, contudo, o* es-
quema tomou forma, inadvertidamente. E, daí por diante, é com o es-
quema que se trabalha, no mundo inteiro, como se representasse a classi-
ficação de todas as variantes humanas.

f) Reconformação da teoria psiquiátrica da constituição por Conrad.


Mostrou-se, afinal, a fecundidade da concepção kretschmeriana no
fato de uma teoria dela poder surgir, na qual viesse a fundir-se e superar-
se a antiga. A teoria da constituição entrou em nova fase graças à obra ex-
celente de Klaus Conrad. Embora seja certo que quase não traz qualquer
investigação nova, mas apenas nova interpretação, nem por isso deixa de
ser essencial relativamente ao setor problemático em que se concebem as
totalidades, porque se pensa em iluminar caminhos pela visão do todo e
em abrir espaços pelas ideias. Na medida em que Conrad parte da teoria
de Kretschmer, bem como dos fatos por ele afirmados, também se lhe
aplica a crítica que fazemos. Conrad, porém, não só modificou, como re-
conformou, radicalmente. Se bem que ruindo em conjunto a teoria, os
achados e configuramentos concretos de Kretschmer permanecem; e tanto
mais claros se apresentam em sua significação concreta e em sua valiosa
peculiaridade quanto não se exageram. Em primeiro lugar, Conrad critica
a estatística tipológica; em seguida, delineia novo esquema de tipos em po-
laridades; por fim, dá a este esquema sua significação própria, mediante
construção hipotética desenvolvimental. Tenho a impressão de serem fal-
sas todas as suas hipóteses genéticas, o que não impede devam interessar
ao máximo, como novo “esquema da ideia”. Surgem questões de grande
porte, conquanto continue pendente qualquer resposta que se possa pro-
var. Relatarei a teoria da seguinte-forma:
1. Discussão crítica da estatística tipológica. Concordando com minha
crítica, Conrad está persuadido de que a elaboração estatística dos proble-
mas tipológicos “é sempre questão de dois gumes”. “Porque estabelecemos
o tipo como conceito classificativo mesmo, não podemos, naturalmente,
tentar prová-lo pela via estatística. Por conseguinte, os valores tipológicos
médios não têm valor probante, mas só ilustrativo”; frase da qual se vê,
uma vez mais, que se parte da forma visível, e não da medida quantitativa;
donde a impossibilidade de querer deduzir das cifras provas exatas.
Os valores médios, porém, são irrelevantes em si, de modo geral, se-
gundo Conrad. O que há de mais essencial no tipo são, para ele, os valores
marginais entre os quais se firma. Mesmo estes valores marginais lhe pa-
recem de pouca importância como grandezas absolutas, visto estar sem-
pre o significado do tipo em sua oposição ao tipo contrário. Concebe-se,
pois, o tipo numa extensão relativa de valores marginais.
O tipo estende-se de um valor marginal externo a outro interno, isto é,
entre o desenvolvimento ideal puro do tipo e o valor médio. Podem-se ver
as cunhagens ideais (valor marginal externo) no caso particular clássico;
os valores médios (valor marginal interno) obtêm-se “com base em cálculos
médios; aliás, com base em coletivos de limites os mais largos possíveis”
(subsiste, aqui, a antiga questão: como decidiremos, no caso particular,
que tomamos como coletivo, se ele deve enquadrar-se ou não?). Os limites,
para Conrad, não são, em absoluto, rígidos; e visto “não ter o tipo, absolu-
tamente, limites rígidos, método algum existe que permita encontrá-los.
Trata-se, apenas, de conseguir, arbitrariamente, é certo, mas por forma
metodologicamente correta, qualquer delimitação?” (sim, mas o arbítrio
metodológico inicial pressupõe critério inconfundível para a classificação
dos casos particulares; ainda que arbitrário, este próprio critério tem de
funcionar da mesma maneira para todos os observadores que o apliquem).
O que diz Conrad das cifras mensurais relativas aos tipos de estrutura
corpórea, ou seja, que têm valor ilustrativo, e não probante, estende-se —
é o que se há de pensar — a todas as cifras em que aparecem correlações
dos tipos enumerados. Todos têm, apenas, valor ilustrativo; daí deverem
avaliar-se conforme o possuam; isto é, conforme promovam ou não a visão
convincente; porque não provam, são indiferentes as cifras meramente
abstratas, as proporções percentuais, as correlações em si; é o que se há
de concluir. Toda a estatística que aqui se aplica não constitui, a bem di-
zer, estatística.
2. Novo esquema dos tipos em polaridades. Conrad está convencido de
que todos os tipos são relativos, particulares e provisórios. Assim é que,
sem prevenção, vê a riqueza das formas humanas. Não há esquema típico
que seja capaz de abranger, totalmente, a variabilidade enorme das formas
corpóreas humanas segundo um só ponto de vista, ou mesmo segundo
duas ou três formas típicas.
Tal abrangimento é tanto menos possível quanto as próprias formas
significativas não são tipos, e sim, apenas, formas móveis, que se hão de
conceber sob o ponto de vista de grandes princípios polares de cresci-
mento. Não são as formas ideais existentes, mas os princípios de que se
originam, que devem, segundo Conrad, determinar a moldura do esquema
típico. 'As estruturas corpóreas leptossômica e pícnica são cunhagens re-
sultantes de um princípio de crescimento polarizado dentro de si. Para o
atlético é outro princípio que se aplica. “Por sua vez, outros tipos podem
resultar de outros princípios de crescimento”.
Os tipos que vimos até o momento, inclusive os displásicos, eram, para
Kretschmer, contíguos ou paralelos; situação insatisfatória esta que ele
elimina com uma classificação gradual. O sentido dos tipos discrimina-se
conforme os princípios de crescimento que lhes subjazem; e exige-se que
só se compare o que for comparável. Assim é que, para Conrad, três gru-
pos principais de estrutura corpórea se apresentam. É comum a todos o
fato de representarem tendências de crescimento, as quais se mostram na
estrutura corpórea total, ou a influenciam. “Até na derradeira conforma-
ção da ponta do nariz, ou do pequeno encurvamento dos dedos manifes-
tam- se tendências desta ordem”. Também lhes é comum o fato de acarre-
tarem manifestações psíquicas ou caracteriais específicas e corresponden-
tes. Todos os princípios de crescimento aparecem em polaridades: entre os
polos enfileiram-se as variantes. São os seguintes os três grupos principais
de estrutura corpórea:
aa) Leptossômico (leptomorfo) e pícnico'. Tendência ao crescimento lon-
gitudinal à custa da largura; ou ao crescimento transversal à custa do
comprimento; mais ainda: metromorfo, crescimento bem proporcionado,
que não se concebe nem como mediano, nem como normal.
bb) Hipoplásico e hiperplásico (ou asténico e atlético}: Tendências de
crescimento que se relacionam com desenvolvimento' deficiente ou exces-
sivo dos tecidos, músculos e ossos. Hipoplásico (asténico): nariz fino, pon-
tudo; zigomas hipoplásicos, mento fugidio; donde parte média e inferior do
rosto curta, ombros estreitos, mãos e pés pequenos; além disso, pele fina e
pilosidade escassa. — Hiperplásico (atlético): nariz grande e largo, zigomas
acentuados, mento saliente; donde parte’ inferior e média do rosto com-
prida; ombros largos, mãos e pés grandes; pele grossa, pilosidade abun-
dante. Também o. tipo metroplásico se inclui nesta polaridade, represen-
tando o crescimento bem proporcionado.
cc) Formas displásicas de crescimento, de origem endócrina (por exem-
plo, obesidade ou emaciação, crescimento eunucóide em altura, constitui-
ção acromegalóide etc.) e tendências dismórficas de crescimento (status
dysraphicus, por exemplo; etc.).
À classificação dos tipos de estrutura corpórea, tanto em Conrad
quanto em Kretschmer, associa-se quantidade correspondente de reações
fisiológicas e psicológicas (conforme se pode testá-las experimentalmente),
além de descrições caracteriais.
À base destas classificações, destacam-se, primeiramente, com o ter-
ceiro grupo, todas as formas de crescimento patogenicamente determina-
das que constituem doenças de causa conhecida. No caso- delas, não se
trata, a bem dizer, de caracteres constitucionais. Em segundo lugar, se-
para-se o que, até o presente, se tem confundido: a saber, separa-se a
forma de crescimento leptossômico, que, forma em si vigorosa, é o polo
oposto à forma pícnica da forma asténica, que, forma em si débil, é o polo
oposto da atlética. Um hipoplásico ainda não é, como tal, leptomorfo, mas
pode vir a sê-lo, além de hipoplásico. O leptomorfo hipoplásico, embora
chamado, até o presente, asténico, encerra uma tendência de crescimento,
a hipoplasia, que não se relaciona, em absoluto, de forma direta, com o
leptomorfismo.
Os três grupos não são contíguos, nem paralelos; mas, sim, cada indi-
víduo se situa, primeiro, na polaridade leptossômico-pícnico; depois, na
polaridade asténico-atlético; finalmente, pode ainda sofrer de uma das for-
mas mórbidas de crescimento do último grupo.
Confrontando os grupos entre si, Conrad caracteriza-lhes a significado
e encontra na polaridade leptossômico-pícnico uma relação de exclusão;
assim, os sinais típicos das variantes extremas não se combinam no caso
particular, mas se suprimem uns aos outros, reciprocamente, como tipos.
Ao contrário, os sinais típicos podem combinar-se na popularidade asté-
nico-atlético. Impulsos de ambas as formas de crescimento podem encon-
trar-se no mesmo indivíduo.
Mais ainda: a polaridade leptossômico-pícnico permanece dentro dos
limites da higidez, mesmo em suas formas extremas; ao passo que a pola-
ridade astênico-atlético pode apresentar transição para a morbidez de am-
bos os lados; isto é, para a fraqueza patológica e para a acromegalia.
Enfim: a polaridade leptossômico-pícnico penetra a espécie humana
tão profundamente que atinge o campo da reação fisiológica e psicológica.
Na polaridade astênico-atlético, “o corte está longe de ser tão profundo”. O
princípio distintivo mostra-se, “simplesmente, em certas constelações ca-
racteriais, que só em grau insignificante codeterminam o todo da consti-
tuição. A distinção também não atinge com profundidade demasiada a es-
fera psíquica. De distinção que compreenda a personalidade inteira em
seus fundamentos quase nunca se pode falar”.
Esta classificação caracteriza-se pela simplicidade e clareza. Daí re-
sulta, na certa, primeiramente, que só os tipos do terceiro grupo é que res-
tam, constituindo manifestações realmente determinadas, compreensivel-
mente delimitadas e, além disso, causalmente unívocas; em segundo lu-
gar: a “transição” dos extremos do segundo grupo para formas mórbidas
(astenia como doença constitucional de Stiller e acromegalia como doença
endócrina definida) é questionável e suscita dúvida quanto a esta polari-
dade; em terceiro lugar: o primeiro grupo dissolve-se em relação polar ge-
ral, indubitável, tal qual a desenvolveu Weidenreich; ao mesmo tempo que
se perdem a rica configuração fisiognomônica e o caráter propriamente
dito de constituição (donde Conrad dizer: o leptomorfo não é tipo constitu-
cional, e sim tendência de crescimento).
Com este esboço, entretanto, mais não demos senão o primeiro passo;
nem atingimos, em absoluto, a ideia básica de Conrad, que só ela, pode
dar a este esquema de classificação sentido, confirmação ou discutibili-
dade.
3. Fundamentação do esquema mediante hipótese desenvolvimental (ou
evolucionista). Os tipos de estrutura corpórea são expressão de tendências
de crescimento, as quais se devem distinguir: em primeiro lugar, conforme
a profundidade com que determinam a vida no todo; Conrad denomina
esta polaridade leptomorfo-pícnico “variante primária” do existir humano;
a polaridade astênico-atlético, “variante secundária”. Isto deve significar
que a posição do indivíduo na primeira polaridade é decidida mais cedo
(portanto, mais profundamente) no desenvolvimento embrionário; a posi-
ção na segunda polaridade é decidida mais tarde e não atinge a mesma
profundidade.
Em segundo lugar, as tendências de crescimento são diversas em sua
polaridade eventual; são polarmente opostas pelo objetivo ou alvo evolu-
tivo que nelas se encerra por forma diversa. É aí que está o fator decisivo.
O anatomista holandês Bolk explicou certos tipos de malformações fe-
tais de semelhança animal por um desenvolvimento levado ao excesso. Os
animais representariam desenvolvimentos extremos que teriam ido dar
num beco sem saída; desenvolvimentos em oposição aos quais o homem
normal teria parado, como todo, em certo grau de conformação que estaria
mais próxima do embrionário. Daí por que não só o embrião humano e o
embrião do macaco teriam muito mais afinidade do que o homem e o ma-
caco, mas também o homem adulto estaria muito mais próximo do em-
brião do macaco que de um macaco adulto é o que Bolk enuncia com a
frase: O homem é, por assim dizer, um macaco que continua embrionário.
A ideia em que se baseia a teoria de Bolk consiste em admitir tendên-
cias de crescimento que se caracterizam por seu objetivo: ou especializa-
ção, ou conservação da flexibilidade, da plasticidade; noutros termos: ou
prosseguimento ao extremo, ou parada em harmonia equilibrada e ampla.
São as ideias básicas de que Conrad se serve, de maneira original, para
compreender os tipos de estrutura corpórea e as constituições. O objetivo
do desenvolvimento já se encerra, por forma diversamente remota, nas
disposições primárias entre limites extremos — entre o crescimento longi-
tudinal e- o crescimento transversal, entre o desenvolvimento asténico e o
atlético; isto é, num ou noutro dos dois limites extremos, ou nas possibili-
dades medianas possíveis. Diferentemente, contudo, das malformações fe-
tais de Bolk, não se trata, aqui, quando se têm em vista os tipos constitu-
cionais, de parada normal, nem de prosseguimento anormal exagerado, e
sim de objetivos normais em certa amplitude de dadas variações polares.
Com a estrutura corpórea também se compreendem as qualidades ca-
racteriais que lhe correspondem como sendo aquelas relacionadas com fa-
ses mais precoces do desenvolvimento (tal qual, por exemplo, se pretendeu
conceber a fêmea da espécie, em oposição ao macho, como sendo forma
desenvolvimental anterior, mais próxima à criança). Daí Conrad conceber
uma grande unitariedade psicofísica, um todo estrutural de soma e psi-
que, cujo tipo se define, geneticamente, em estádio precoce do desenvolvi-
mento embrionário, por vários saltos.
Segundo Conrad, as tendências de crescimento normalmente variantes
caracterizam-se nas respectivas polaridades pela diversidade do “tempera-
mento evolutivo” (ou desenvolvimental) que lhes corresponde; tempera-
mento que é ou conservativo ou propulsivo. Ê a coincidência com um ou
outro temperamento que determina o objetivo estabelecido para a consti-
tuição. O pícnico permanece mais próximo a um estádio precoce e tem afi-
nidade com a criança, ao passo que o leptossômico caminha para estádio
desenvolvimental mais adiantado, distanciando-se da criança. Aquilo que
se mostra nas proporções da estrutura corpórea mostra-se, de maneira di-
versa, mas paralela, na variação psíquica do caráter. O pícnico tem de ser
ciclotímico, porque tanto uma coisa como outra, a estrutura corpórea píc-
nica e o temperamento ciclotímico, se aproximam mais do hábito infantil.
“A estrutura corpórea pícnica e a estrutura caracterial ciclotímica mais
não são do que pontos correspondentes, no processo morfológico, do des-
locamento ontogenético que as proporções sofrem; e, no processo psicoló-
gico, da variação ontogenética da individuação”. Os dois tipos constitucio-
nais polares são, apenas, modalidades desenvolvimentais diversas (ou
seja: conservativa e propulsiva) da mudança de forma, de função e de es-
trutura que ocorre na ontogênese. “Estrutura corpórea e caráter têm de
corresponder-se entre si, pelo fato de serem o resultado de evento evolu-
tivo idêntico”.
Conrad compreende todos os tipos constitucionais em polaridades; e
estas, por sua vez, distingue em polaridade da conservatividade e da pro-
pulsividade; principalmente, as manifestações somáticas: é por isto que os
tipos constitucionais endocrinamente condicionados resultam da reação
tissular a influxos hormoniais, frena- dores (conservativos) ou acelerado-
res (propulsivos). O mesmo se dá quanto à predisposição para certas do-
enças somáticas: os tipos constitucionais hão de conceber-se “como sendo
o meio genotípico especialmente favorável ou desfavorável para o fator pa-
togênico próprio”. Eis a regra fundamental: “As doenças do tipo diatésico
(isto é, reações anormalmente aumentadas) mais frequentemente impri-
mem-se no polo conservativo; as doenças do tipo sistêmico» (ou seja, todos
os processos progressivamente destrutivos), no polo propulsivo das séries
constitucionais”.
Coroa esta consideração desenvolvimental uma última ideia: Onde c
que, pode-se indagar, estão as maiores possibilidades de desenvolvi-
mento? No temperamento conservativo ou no propulsivo? A resposta é a
seguinte: Em nenhum dos dois.- “A variante constitucional picnomorfa-ci-
clotímica, resultando de desenvolvimento conservativo, representa um ‘es-
tádio juvenil’ não-especializado, o qual, faltando um temperamento corres-
pondente de desenvolvimento, não teve desenvolvimento ulterior; a vari-
ante ‘leptomorfa-esquizotímica’ apresenta-se, ao revés, constituindo ‘forma
de velhice’ propulsiva, altamente especializada, que, no entanto, atingiu
semelhante especialização por demais cedo; daí por que — fixando-se pre-
cocemente demais — terá perdido suas possibilidades de desenvolvimento
ulterior. São só as constituições metromorfas-sintímicas, intermediárias
aos dois polos, que representam aquelas formas que terão ainda alcan-
çado — após as duas primeiras grandes etapas evolutivas das primeira e
segunda mudanças morfológicas (isto é, os seis-oito anos e a puberdade) —
o grau da segunda harmonização, podendo, eventualmente, realizar eta-
pas evolutivas ulteriores”. Diz-se da estrutura corpórea, em especial: “En-
tre os dois extremos, só o metromorfo é que ainda alcança o segundo equi-
líbrio, ultrapassando a segunda mudança de forma (quer dizer, a puber-
dade); e alcança, ao mesmo tempo, aquela simetria que se nos apresenta,
no plano da estrutura corpórea, constituindo o equilíbrio ideal (o ideal
helénico da beleza)”.
Desta concepção desenvolvimental resulta uma visão biológica das po-
tencialidades humanas que atinge os limites de toda vida. Não é visão con-
creta que se baseie na perspectiva fisiognomônica, nem na clarividência
caracterológica de Kretschmer; mas visão especulativo-biológica, que
opera com fatos já existentes e vistos, reunindo-os num todo conceptual e
sistemático. De tão clara, excelente, cativante, sedutoramente desenvol-
vida, esta especulação convence o leitor, a cada passo, de sua veracidade.
Não nos iludamos, porém. Em primeiro lugar, os fatos em que a interpre-
tação se fundamenta não são, em absoluto, tão unívocos, nem coinciden-
tes quanto a apresentação sugere, apesar de todas as restrições críticas; a
plausibilidade, e mesmo a fascinação, biologicamente falando, do quadro,
a considerá-lo de longe e no todo, desaparece quanto se tem acesso con-
creto aos fatos. Em segundo lugar, trata-se não do resultado de qualquer
pesquisa nova e convincente, e sim de interpretação de caráter hipotético,
que se serve das mais recentes concepções biológicas; interpretação que
representa “esquematização” (no sentido kantiano) nova da ideia de consti-
tuição. Podem- se fazer ao esquema, todavia (no caso em que se deva
aceitá-lo como conhecimento real), as seguintes objeções:
aa) “Desenvolvimento” ou significa o grande, indeterminado espaço de
possibilidades ilimitadas, ou constitui, pelo fato de representar evolução
definida, um todo realizado, com seus estádios, dentro de um tempo dado.
Quando falamos em estádios, pressupomos um tipo definido de desenvol-
vimento. Se distinguirmos deste tipo, a seu turno, novos tipos, não será
possível explicar corretamente a forma evolutiva que varia a cada mo-
mento como etapa de sua própria totalidade, ou seja, de cada tipo de tota-
lidade a realizar-se. Ou então, não será possível conceber o objetivo do de-
senvolvimento como estádio do mesmo, nem o todo do desenvolvimento
como etapa de si próprio. Qualquer parada de desenvolvimento (que se
pode reconhecer como fixação de um estádio) é patológica. O tipo constitu-
cional não deve ser parada, mas desenvolvimento pleno, cujo tipo se ca-
racteriza por um objetivo, que “corresponde” a um estádio deste desenvol-
vimento; isto não é, porém, mais do que comparação. O sexo feminino
nem se deteve no desenvolvimento, nem está mais perto da criança que o
sexo masculino, embora certas qualidades morfológicas e comprovadas
por testes possam “corresponder” à criança; esta, porém, se for do sexo
masculino, estará mais longe de si mesma do que a mulher adulta. Pode-
se comparar o sexo feminino com a criança, podem-se comparar tipos
masculinos com a mulher, ou constituições com sexos, com estádios in-
fantis, sem jamais esquecer, todavia, que é só comparação que se faz, sem
deduzir da comparação identidade essencial alguma, nem transformar a
correspondência em coincidência. As comparações não geram conheci-
mento causal, e sim concepções que resultam do entrejogo de essências
diversas; no caso em discussão, nenhum conhecimento causal geram, e
sim dão plasticidade à visão de totalidades impossíveis de apreender por
forma precisa e definitiva.
bb) A discriminação entre temperamento conservativo e propulsivo é
ambígua. Devem ser extremos entre os quais está o mediano, o equilibra-
do', são desvios que têm de deixar, entre si, espaço livre ao todo, ao com-
pleto, ao que tem futuro, mesmo que eles estagnem.
Ao impulso de Bolk e em conexão com ideias biológicas amplas (Dac-
qué), chegou-se a uma concepção da vida que vê na criatura humana o
ente único porque terá conservado as possibilidades desenvolvimentais da
existência plena, ao passo que os animais, em meio à imensidade das pos-
sibilidades, desceram, por assim dizer, e se firmaram em estruturas vitais
singulares, já não mais transponíveis. O homem, ao contrário, sendo, em
princípio, equilibrado, flexível, plástico, capaz de tudo conter, tem a vida
sempre presente no todo, abrangendo-a em sua essência mesma — tal
qual o ente existencial mais primário, mais jovem, pode-se dizer. Esta con-
cepção da vida, que lembra a filosofia natural romântica não é, em abso-
luto, saber, e sim visão imprecisa, exprimindo o pressentimento de misté-
rio abismal — Conrad transpõe-na para as constituições da espécie hu-
mana: fixações que se desviam, digamos, para a esquerda e para a direita,
para o leptossômico e o pícnico, para o asténico e o atlético; no meio, o
rumo da vida criadora. A conservação definitiva em estádio precoce não é,
segundo Conrad, conservação das possibilidades de desenvolvimento ulte-
rior, e sim renúncia prematura; a chegada a estádio ulterior não é, em sua
opinião, realização, e sim envelhecimento que fixa o tipo. O mediano, po-
rém, o metromorfo e o metroplástico, também não significa, no entanto —
e isso pode-se objetar — por ser mediano, conservação das possibilidades;
não significa, por ser mediano, criatividade. Não se pode compreender a
maior plenitude, a maior vitalidade, somática ou psiquicamente, com base
na medianidade. Só uma fonte em absoluto diversa é que anima com se-
melhante sentido esta concepção conradiana: a experiência dos desenvol-
vimentos mentais e psíquicos através da contradição, da criação com base
em contrastes, do equilíbrio das antinomias, da dialética da mente.
Quando ouvimos falar no contraste entre os temperamentos conserva-
tório e propulsivo, vários significados se podem deduzir e se usam com
maior ou menor frequência:
1. Se tomo a medida, em geral, num todo desenvolvimental impre-
ciso, que não conheço, mas que talvez se sinta, obscuramente,
como infinitamente realizável — então, o propulsivo é ilimitado
em suas possibilidades futuras.
2. Se tomo a medida num todo desenvolvimental determinado, que
conheço em suas configurações e estádios — então, o propulsivo
é um extremo (ele próprio, no entanto, limitado), que leva ao en-
velhecimento e à morte. Há envelhecimento não só no indivíduo,
mas no curso das gerações.
3. Se tomo a medida num todo desenvolvimental determinado, mas
que ainda se considera, ele próprio, configuração presente que é,
transição da vida para totalidades ulteriores, sempre capazes de
transformação — então, o propulsivo, tanto quanto o conserva-
tivo, são alguma coisa que fixa; e em relação a eles há um medi-
ano que não é só medianidade, é vida que se protege contra tudo
quanto é externo, que se mantém sempre equilibrada; que con-
serva em si todas as possibilidades e, só por isto, encerra em si,
através das gerações, o futuro do acréscimo progressivo.
Para Conrad, é o terceiro significado que predomina; os dois outros,
contudo, estão sempre parecendo envolvidos.
Assim, pois, a propulsão do desenvolvimento (o temperamento propul-
sivo) pode significar:
1) o encaminhamento para diferenciação ulterior e conformação ama-
durecedora do indivíduo em leptossômico e atlético; ou
2) o mesmo acontecimento na sucessão das gerações (envelhecimento
filático), dando formas vitais que, super- diferenciadas e especializadas,
afinal morrem; ou
3) a conservação das possibilidades e a re-formação criadora no indiví-
duo (apesar do envelhecimento); ou
4) o mesmo evento na sucessão das formas vitais através das gerações
(sem envelhecimento).
Em tudo isso, a oposição polar adicional, a opção por um estádio pre-
coce como objetivo definitivo (pícnico e asténico), o temperamento desen-
volvimental conservativo, não significa, em absoluto, conservação das pos-
sibilidades de desenvolvimento ulterior, mas autolimitação, sem processo
senescente, contudo, e, por isto, tanto mais constantemente vivo na su-
cessão das gerações. As probabilidades propriamente de vida estão, para
Conrad, nas tendências evolutivas, a partir da conservação das possibili-
dades e da criação da medianidade equilibrada.
O fato de tocar-se, com a visão total, uma atitude vital interna que de
imediato convence (a conjunção 'dialética dos contrastes, a renúncia à
tranquilidade na limitação, o risco do apoio no infinito) não nos impede de
ver que o livro de Conrad deixa, em absoluto, de esclarecer esta atitude fi-
losófica vital; sobretudo, pesquisando fatos novos que convém adquirir, é
difícil obtê-los mediante estes conceitos imprecisos, amplos e ambíguos. O
que se dá, aqui, afinal, é transposição de verdades básicas psíquico-inte-
lectuais para o morfológico, o somático, o constitucional. Significativa
como ideia, um tanto sumária, como saber esquematizado, a concepção
conradiana, abrindo, embora, um espaço e mostrando-se avessa a qual-
quer dogmatismo estagnador, acarreta o perigo do dogmatismo da impre-
cisão pela hipostasia de sua ideia. É errado admitir a imprecisão da qual
Conrad deduz, a todo momento, juízos totais inteiramente definitivos como
antidogmática.
4. Redução da determinação constitucional eventual a um gen único. À
frase de Max Schmidt: “Nenhum destes tipos pode reduzir-se, com alguma
probabilidade, a qualquer função biológica simples, ou a qualquer princí-
pio biológico simples” Conrad opõe: “Um fator genético único decide se o
desenvolvimento eventual será conservativo ou propulsivo”. As ideias que
Conrad desenvolve, a esta altura, ainda são, decerto, puramente hipotéti-
cas, não servindo de base para investigação alguma, mas dando, com os
conceitos da genética biológica, um quadro engenhoso de possibilidades.
Não há dúvida de que ele tem consciência das dificuldades, quando in-
daga: Não há esperança, ante a quantidade enorme de presumíveis gens
em que se baseia um tipo constitucional, de pensar em explicação gené-
tica?
A resposta funda-se na polaridade dos tipos constitucionais, polari-
dade que se relacionará com a dualidade das características genéticas. O
genetista não pode usar características isoladas, nem grupos de caracte-
rísticas diversas. O que usa é ou a alternativa do aparecimento, como
também a ausência de uma característica; ou então, usa séries variacio-
nais bipolares, que explica pela alteração de um gen em alelos múltiplos. A
alternatividade ou bipolaridade de todas as qualidades não é requisito me-
ramente metodológico, mas se funda, sim, objetivamente, em que a estru-
tura hereditária dos organismos é sempre emparelhada (cada organismo
tem dois pais, não três) e em que t'odos os cromossomas se apresentam
emparelhados. Os tipos constitucionais, na classificação conradiana, são
polares; ajustam-se, pois, à subordinação ao ponto de vista genético. O
gen singular que se procura precisa ter o poder de determinar a posição
do indivíduo na polaridade dos tipos constitucionais.
Mas os tipos constitucionais são, sem dúvida, determinados por gens
extraordinariamente numerosos. “Como é que todos estes gens — per-
gunta Conrad — se ajustam de maneira assim tão preferencial no genoma
particular?” “Não existe, em toda a genética, exemplo de semelhante afini-
dade de gens tão numerosos no genoma particular” (ao que se objeta: mas
o fato desta afinidade não existe, absolutamente; o que existe é o fato, ape-
nas, de uma quantidade de correlações que, além do mais, nem são tão
fortes).
O acoplamento de fatores (coincidência dos gens no mesmo cromos-
soma) não pode servir de base à conjugação das numerosas característi-
cas de um tipo constitucional, visto ser muito pouco provável que o tipo
constitucional se ancore num cromossoma único; além do que, no acopla-
mento, os fatores são “ilimitadamente separáveis, o que não parece ser o
caso, em absoluto, no que diz respeito às constelações aqui existentes” (a
experiência mostra, no entanto, o contrário, sempre que o coeficiente de
correlação é inferior a 1). Daí dever ser de outro caráter o princípio da uni-
dade: é um gen que, por via de decisão ontogeneticamente precoce, deter-
mina a efetividade de todos os outros gens. Não é um gen além de outros,
e sim certo gen na ordem hierárquica dos gens, que conduz a totalidade
dos mesmo, isso fazendo pela determinação do temperamento desenvolvi-
mental. A admitir “um princípio fatorial único em que se baseie a forma-
ção dos tipos”, chega- se à hipótese do gen singular determinante.
Conrad compara as características conjuntas de uma constituição tí-
pica a um padrão, que pode ser, digamos, o colorido da lagarta, ou o colo-
rido das asas da borboleta; compara a base em que se formam os tipos
constitucionais aos gens encontrados pelos biologistas relativamente à di-
reção segundo a qual se forma este padrão pigmentar. Mais não é, entre-
tanto, do que comparação, visto que a diversidade de sentido da distribui-
ção do pigmento — por mais que esta varie — e das qualidades caracteri-
ais (como também das proporções corpóreas) é demasiado radical para
que se possa falar, a esta altura, em alguma coisa que seja a mesma. A
multiplicidade da espécie humana não pode desenrolar-se em series como
os desenhos das lagartas; realmente, o que se tem não é o padrão cons-
tantemente variável, mas certa multiplicidade ilimitada, a se entrecruzar,
de correlações mais ou menos marcadas de qualidades e formas. Pelas
próprias assertivas iniciais de Conrad, as variedades típicas das constitui-
ções humanas representariam, apenas, limites de casos ideais, de acordo
com certos pontos, de vista firmados pelos pesquisadores. Não se cobre,
em absoluto, a multiplicidade fatual, que então se observa, com estes pon-
tos de vista; nem mesmo com a polaridade do temperamento desenvolvi-
mental conservativo e propulsivo; temperamento que, por sua vez, no en-
tanto, é apenas comparação e interpretação, não fato real.
Enfim, o edifício que Conrad construiu não se sustém em seu todo;
constitui sistema de hipóteses que se sustentam entre si, sem o alicerce de
uma experiência em que, de fato, se apoiem; nem têm levado a novas ex-
periências. A construção total há de ruir, provavelmente, sem deixar vestí-
gios, apesar da habilidade com que se ergueu.

g) Sobre o valor positivo das teorias da constituição.


As teorias da constituição incluem-se entre os grandes movimentos
ocorridos na psicopatologia cuja importância excede de muito- o campo
especializado, parecendo confirmar-se por inúmeros trabalhos; não obs-
tante o que, subsiste a controvérsia em torno deles, de modo que, afinal,
de tão repetidos, já não despertam interesse, mas voltam à discussão após
certo tempo; isto pelo fato de que portam um problema eterno. Daí poder-
mos indagar: onde está a verdade em todos os esforços feitos — apesar de
resultados seguros, progresso científico retilíneo não existe; e: onde co-
meça o erro.
Resumiremos, mais uma vez, a resposta que damos:
aa) Verdadeira é a ideia de constituição como sendo o todo da com-
plexão somatopsíquica. Errada é a hipóstase da ideia num ente objetivo
conhecido. Daí por que todo conhecimento se encontra pela via desta
ideia, vindo a transformar-se em determinado conhecimento final, não em
conhecimento do todo. É impossível alcançar a ideia completa, ou. per-
feita; ela continua a representar sempre, no entanto, uma tarefa a cum-
prir. Assim, pois, cada totalidade concebida com clareza já não é a totali-
dade, e sim uma totalidade; sendo totalidade, é particular e é um fato
além de outros. O todo, pelo contrário, retrocede, atraindo e orientando
nosso conhecimento. Se o denominarmos “o todo eventual de uma consti-
tuição individual”, não estaremos errados, mas firmaremos um conceito
que só negativamente permite compreender todas as outras totalidades
tangíveis como provisórias.
Tudo quanto se conhece mais não é do que particularidade, em relação
ao todo; jamais o próprio todo. Daí errarem todas as teorias da constitui-
ção, quando pretendem apreender o todo do existir humano; e quando jul-
gam haver conhecido, radicalmente, o> homem individual pela aplicação
direta (diagnóstica).
bb) De modo especial, distinguimos verdade e erro nas seguintes dire-
ções: verdadeiras são a percepção morfológica e a visão- fisiognomônica
que atinge o psiquismo no morfológico; errada é a hipóstase do que se vê
em objetividades mensuráveis; é a confusão do que se observa com o que
se conta; a aceitação de uma coisa pela outra e a dependentização de uma
à outra.
Verdadeiras são algumas formas que se podem fazer ver; verdadeiras
são as categorias morfológicas e fisiognomônicas que servem para am-
pliar-nos a visão; erradas são as generalizações em leis e valorações a que
se querem subordinar casos particulares como se- fossem totalidades.
Verdadeiros são os casos clássicos apresentados em sua pureza, vi-
sando a orientar-nos a contemplação; errados são os esquemas- que pre-
tendem classificar tudo quanto ocorre num sistema de tipos- adquiridos.
2. A ideia leva a que se vejam fenômenos e fatos, os quais, constituindo
enigmas concretos, apontam o todo sempre a recuar; constituindo noções
finais, ampliam-nos o conhecimento. Toda a verdade da eidologia está na
via das ideias. O que é que se mostra na via da ideia de constituição? Des-
cobrimos rumos, modos de ver surgem, a atenção dirige-se para as corre-
lações universais.
Assim, os métodos biométricos fornecem mais do que cifras e correla-
ções; deles resulta clareza em todas as áreas nas quais se podem estabele-
cer, de modo geral, diversidades biométricas. E pela aplicação respectiva,
surgem experiências concretas que, sem estes métodos, não se lograriam,
embora venham a perder-se, a seu turno, no resultado numérico, se o to-
marmos meramente como tal.
Com a ideia do todo, ganham-se os meios metodológicos da descrição
essencial da estrutura corpórea e do caráter, bem como de todos os fenô-
menos em que os homens se diversificam. Como métodos individuais, cer-
tamente, cabem, por exemplo, na fisiognomônica, na psicologia das cone-
xões compreensíveis etc.; mas é pela ideia do todo que todos estes méto-
dos particulares se impulsionam, se fazem essenciais, se correlacionam
entre si. Seguem-se os rumos nos quais se acham os pontos de vista para
a apreensão das mais profundas diferenças, que nos ensinam a considerar
o essencial e que conformam a multiplicidade em quadros, ou figuras.
Ganham-se totalidades, que, aliás, por sua vez, não tardam a consti-
tuir meros elementos particulares. A constituição determinada já não é a
constituição, afinal, mas fator parcial do todo somatopsíquico.
Busca-se. o sistemático nas correlações universais. Descobrem- se à
visão do todo correlações possíveis ilimitadas. A observação conjunta de
estrutura corpórea e caráter, biologia genética, endocrinologia, psicose e
neurose abre o mais largo horizonte, daí resultando o conhecimento de
correlações parciais e aspectos relativos na via que leva ao todo. Tudo se
interrelaciona.
3. De caminho, formam-se conceitos e modos de ver, que representam
perguntas, sem dar respostas-, perguntas que abrem os espaços das pos-
sibilidade, sem trazer conhecimento preciso. Abrimo-nos ao todo propria-
mente dito naquilo que é atualidade concreta dentro de uma experiência
que se aprofunda, como se tivéssemos, tangivelmente, esse todo; o qual,
porém, nos foge à apreensão, conquanto não resistindo à penetração e ao
avanço constantes.
A atitude básica é esta: o homem individual não se pode subordinar,
como todo, a espécie da existência, ou do ser, exceto sob aspectos eventu-
ais e tendo em vista manifestações particulares de sua essência. Não se
podem classificar os homens; cada ente humano, limitado empiricamente,
de fato, na realização por suas disposições hereditárias e seu perimundo,
é, primariamente, tudo, pelas possibilidades que tem.

§ 3. Raça

Preliminares biológicas.
Quando falamos em raça, não entendemos o conceito de vitalidade e
vigor, mas o de uma variedade biologicamente especial, que se mostra na
morfologia e na fisiognomia do corpo, nas peculiaridades de suas funções
e no tipo de sua vida psíquica. Por conseguinte, raça não é, segundo nós,
a raça vital (que se tem em vista quando se fala em “racial” como predi-
cado valorativo), e sim a raça morfológica ou a raça típica.
Raça é uma peculiaridade humana que se marca pela criação fatual,
mas inintencional, através de longos anos, dando traços básicos à sua es-
sência eventual total; isso da maneira mais fácil de apreender quando se
alinham as diversidades mais acentuadas: brancos, mongóis, negros.
Se se distinguirem as raças numa população mista — e toda popula-
ção histórica é população mista — só poderá isso significar que tais raças
terão existido, algum dia, autônomas antes de misturarem-se. As diferen-
ças dos tipos, que não se podem provar, neste sentido, como raças exis-
tentes, são duvidosas. Podem ser raças que .se hajam deduzido a posteri-
ori sem quaisquer ba_s.es absolutamente obrigatórias; podem ser varia-
ções locais, que se tenham formado na população, sem. vir a transformar-
se em raças separadas; podem ser tipos constitucionais.
É fácil definir a diferença entre raça e constituição; mas nem sempre
há diferença marcada, na aplicação concreta, entre tipos raciais e consti-
tucionais. As raças são formas do existir humano historicamente forma-
das com base em variações e mutações isoladas da espécie humana. As
constituições são variações que impregnam todas as raças, que têm cará-
ter não-histórico, porque essas variações se repetem em sua modalidade
típica.
Preliminares metodológicas.
Sob o ponto de vista metodológico, existe afinidade entre a visão intui-
tiva dos tipos raciais que existem numa população mista e a visão dos ti-
pos constitucionais. Diversamente, porém, dos tipos constitucionais, cujos
casos puros representam um ideal e são, empiricamente, raros, existem
raças que, na realidade, se separam por forma absoluta em sua massa;
raças que se podem investigar sob o aspecto de uma psicologia racial. Não
se compararão, então, decerto, raças puras relativamente ao tipo de dis-
túrbios psíquicos que nelas ocorrem, mas populações geograficamente de-
limitadas. Em certas condições, podem-se confrontar, na mesma área,
duas populações que se tenham misturado relativamente pouco, como os
judeus e a população circundante. Nesse caso, não haverá dúvida quanto
à raça a que pertence a maioria dos indivíduos, na medida em ainda se
queiram chamar raças, em geral, os grupos populacionais em sua diversi-
dade.
Em primeiro lugar, pergunta-se: aquilo que é geralmente humano e
existe antes de qualquer separação em raças impregna, por isto, todas as
raças? Ensina a observação que todas as doenças orgânicas cerebrais —
como a paralisia geral — são universais; além disso, as esquizofrenias, a
epilepsia e a psicose maníaco-depressivo ocorrem em toda parte. Se se
trata de disposições hereditárias próprias à humanidade inteira, ou de dis-
posições hereditárias adquiridas por força de mutações, aparecendo em
toda parte de maneira igual, não se sabe. Se há doenças mentais que sur-
giram em qualquer parte, historicamente, por força de mutações e, depois,
se difundiram geneticamente também não se sabe.
Indaga-se, em segundo lugar, se as mesmas formas nosológicas apre-
sentam, em essência, manifestações diversas conforme as raças. A res-
posta não excede a evidência: há desdobramento mais rico dos conteúdos
nos ambientes culturais mais ricos; os conteúdos dependem da tradição
espiritual; assim é que os chineses ouvem vozes de pássaros e de espíri-
tos; as chinesas são engravidadas por dragões; os europeus sofrem influ-
enciamentos elétricos ou telepáticos.
Em terceiro lugar, inquire-se a frequência diversa da morbilidade em
geral e das várias doenças nas diferentes raças. Só se pode responder, à
falta de estatísticas suficientes, com base em impressões cu em cifras que
não bastam, metodologicamente.
Podem-se mencionar urnas tantas investigações particulares. Quando
se confrontam as populações de áreas geograficamente diversas, a impor-
tância que tem a disposição racial não pode ser separada do meio físico,
das condições sociais e culturais. Possuímos uma quantidade de descri-
ções de psicoses e estados anormais — quase todas breves e pouco objeti-
vas — de toda a superfície da terra. Trata-se, na maior parte das vezes, de
curiosidades e casualidades. Krapelin, por exemplo, observando os ma-
laios de Java, notou muito raramente a depressão na demência precoce
em incepção; poucas alucinações auditivas e poucas ideias delirantes; fre-
quente, no entanto, a deterioração demencial após excitação passageira;
na loucura maníaco-depressiva, quase que só manias; nenhuma depres-
são. Alguns autores falam no chamado amok das índias Holandesas, isto
é, acesso súbito de furor, com impulsos assassinos.
Já são mais seguras as impressões que se têm quanto às diferenças
das populações europeias entre si. Assim, por exemplo, chama a atenção a
tendência dos suábios para os distúrbios afetivos; diz-se também que os
povos germânicos tendem mais para a melancolia do que os eslavos e lati-
nos. São muito nítidas as diferenças estatísticas em relação à frequência
do suicídio, para o qual existe pendor acentuado dos dinamarqueses e, na
Alemanha, dos suábios; entre os eslavos e latinos, o suicídio é menos fre-
quente. Kretschmer verificou que, em Hesse, ao contrário da Suábia,
quase não se encontram as doenças maníacas autênticas, o que corres-
ponde ao cunho pouco marcado dos fatores temperamentais hipomanía-
cos na população hessiana.
O confronto das psicoses dos judeus e da população circundante pa-
rece constituir, até o presente momento, o objeto que mais se presta a pes-
quisas psiquiátricas relacionadas com a raça. Sichel1 observou, entre os
judeus, menos epilepsia e alcoolismo; muito mais loucura maníaco-de-
pressiva (dentre os internados, há quatro vezes mais judeus que não-ju-
deus); mais casos de histeria e psicopatias diversas. Também acentuou a
frequência dos casos “atípicos” entre os judeus, dando origem, errada-
mente, a prognóstico desfavorável, quando, na realidade, se trata de psico-
ses maníaco-depressivas curáveis; dados estes que a maior parte dos au-
tores confirma; J. Lan- 'GE,1 por exemplo, a quem se deve descrição parti-
cularmente bem fundada e objetiva da doença maníaco-depressiva entre
os judeus.

1 Lange, Joh: Munchn. med. Wschr., vol. 68, pág. 1.357 (1921).
4.3.
O CURSO DA VIDA
(BIOGRAFIA)

Toda vida psíquica é um todo como forma temporal. Se quisermos


apreender um indivíduo, temos de possuir a visão de sua vida desde o
nascimento até a morte. O médico somático ocupa-se, como tal, apenas
com doenças passageiras ou crônicas; com uma variedade que pode ser o
sexo ou a constituição, e não com a personalidade total; os psiquiatras, no
entanto, sempre lidam com a vida passada inteira de seus pacientes, em
todas as relações de natureza pessoal ou social. Toda história clínica cor-
reta vai d/ar na biografia. Enraizada no todo existencial, a doença psí-
quica não se pode, dele destacada, apreender. Chama-se bios do indivíduo
esse todo e chama-se biografia a respectiva descrição (na linguagem co-
mum, biografia do indivíduo chama-se seu próprio bios).

a) O material da biografia.
Abrange todos os fatos que se podem conhecer de referência a uma
pessoa. Não existe achado algum que não pertença à biografia; achado al-
gum cujo lugar no tempo ou, quando menos seja, cujo caráter de perma-
nência no curso da vida não seja relevante. Formam a imagem do indiví-
duo as datas calendárias exatas de suas vivências, acontecimentos, ações.

b) A apreensão do bios pela biografia.


A temporalidade dos achados biográficos não significa, apenas, suces-
são regular quantitativa; os membros componentes do bios configuram-se,
sim, forma temporal que este é, de maneira qualitativa. Reconhece-se a
configuração temporal, primeiro, no curso biológico-, depois, na história
vital interna; por fim, no rendimento e na obra do homem. 1) Tudo quanto
vive, seja de que espécie for e, pois, o homem, tem duração existencial tí-
pica que lhe é correspondente — com amplitude considerável de flutua-
ções, mas dentro de limites extremos que nunca se podem exceder e com
idades vitais e crises típicas correspondentes. É a configuração temporal
da espécie humana, seu transformar-se como processo biológico. 2) Sobre
a base deste se realiza um desdobramento interno que constitui desenvol-
vimento único, ligado aos primórdios, às vivências primeiras, às experiên-
cias marcantes. Cada desenvolvimento que parte da ilimitada possibili-
dade inicial vai excluindo possibilidades até que se esgote a possibilidade
da vida individual com a plena realização. Possibilidades rejeitadas, perdi-
das, malogradas, cercam o território estreito daquilo que, realmente, se re-
aliza. 3) Para a história vital interna, são essencialmente importantes os
rendimentos, atos, obras, em que o homem se objetifica pela participação
na generalidade e validez. Todos estes desenvolvimentos ocorrem em deve-
nir quieto, em crescimento e maturação, neles, porém, dando-se as revolu-
ções críticas, neles aparecendo a novidade repentina, neles realizando-se,
aos saltos, os grandes passos.
A biografia, que sempre diz respeito a uma vida humana particular,
única, vê esta implantada em conexões temporais abrangentes: biologica-
mente, na herança; psiquicamente, na família, comunidade, sociedade;
mentalmente, numa tradição objetiva da validez. Daí o aspecto biográfico
levar a perspectiva histórica mais ampla que vê o homem através do
evento abrangente; seu desenvolvimento ontogenético (do indivíduo parti-
cular) no filogenético (da espécie); sua história pessoal, na tradição da hu-
manidade e da história dos povos. Seria bom ver a unidade que tudo com-
preende; ver em que evolui o particular, em que participa, transformando-
se, em que se transforma ele mesmo, isto é, aquilo que ele, por assim di-
zer, representa, reflete, reproduz pela unidade de sua biografia. Não te-
mos, contudo, ciência alguma da história filogenética da psique humana;
quase não sabemos da pré-história psíquica; apenas possuímos conheci-
mento mais ou menos rico da história' de alguns milênios e de nosso pró-
prio povo, além de noções relativas ao desenvolvimento das crianças e a
umas tantas conexões hereditárias. Os aspectos genéticos em grande es-
cala concernentes a um quadro histórico que se expande na obscuridade
pré-histórica, bem como as afirmações quanto ao efeito que tem este
mundo primitivo na psique atual são corretas, certamente, da maneira
mais geral possível, constituindo, porém, fantasias quando expressos de
qualquer forma determinada. A biografia há de restringir-se ao particular,
só dando, a cada momento, os fatos que iluminam a herança e a tradição,
no contexto imediato desta vida particular.

c) Os limites do bios e da biografia.


Na medida em que procuramos a unidade, a conclusão e a realização
de um bios, poucas vidas se encerram, ou se concluem (quase todas as
pessoas morrem prematuramente): vida alguma se completa. É elucidativo
o modo por que consideramos um indivíduo no momento em que morre. A
definitividade transforma-nos sua imagem em totalidade e decisividade.
Enquanto se vive, tudo vale, apenas, “até agora”; ainda há possibilidade,
ainda há uma vida para o futuro, a partir da qual se pode interpretar de
forma nova e diversa a realidade nova, a ação nova e também o que já
passou. Diante do morto, sobressalta a concepção que temos da vida. Mas
se concebemos um indivíduo vivo como se o contemplássemos concluído,
acabado, temos uma inumanidade que suprime o contato adequado com
ele. Por assim dizer, passamos um risco por baixo dele, comportamo-nos
como se o enterrássemos ainda vivo (a mesma coisa se daria, se contem-
plássemos o que está acontecendo como se já fosse passado; ou se nos
distanciássemos da vida como se já fosse história; ou se nos- transferísse-
mos da atividade da participação vital para a passividade da contempla-
ção). Na idealização do homem que morre, sentimos uma duplicidade: a
inconclusividade, particularmente quando estamos diante da morte pre-
matura (“a vida que não foi vivida agita-se e arde — C. F. Meyer) e a irrea-
lização-, vida alguma realiza todas suas possibilidades. Homem algum
pode ser tudo; pode, sim, apenas, em pouco transformar-se, realizando-se;
“completo” o homem só pode tornar-se na compreensão, na contemplação
e no amor de tudo quanto ele próprio não pode ser. A unidade e totalidade
de um bios mais não é, portanto, do que ideia.
O que há numa vida, porém, não se pode, de modo algum, conhecer no
todo pela biografia. A biografia fatual é infinita em sua efetividade, encer-
rando em si tudo aquilo que pesquisávamos em fatos particulares do psi-
quismo, em conexões compreensíveis e causais particulares. Tal qual se
funda em disposições jamais possíveis de abranger, assim também se de-
termina pelos azares da vida, pelas situações em sua constante transfor-
mação, pelas oportunidades e pelos acontecimentos externos. É aí que se
dá aquela elaboração interna, a apropriação ou turvação das coisas, a edi-
ficação ou a destruição da psique e de seu mundo, o abandono ou o pla-
nejamento; atuação interna cuja dialética penetra a historicidade even-
tual. Se tivermos de apreender semelhante vida no todo, precisaremos dis-
tender ao máximo a moldura. Conhecimento algum excede, entretanto, a
empiricidade em que, ao confim de quanto apreendemos claramente, nos
perdemos no pressentimento sem objeto. Diz L. Binswanger, acertada-
mente, pensando na maneira por que os filósofos de Plotino a Schope-
nhauer consideraram a vida humana: “Esbarramos, com eles, na ideia de
uma ordem universal divina, na qual a história vital interna, a função vital
e o acontecimento vital externo mais aparente estão, de igual modo, prede-
terminados e dirigidos. Restou à nossa era desencantada a tarefa de inves-
tigar racionalmente aqueles campos parciais da vida humana.... mas tam-
bém de pesquisar-lhes o sentido metodológico de forma tão’ aguda que
compreendamos o que pretende a ciência em cada um destes campos; o
que é que os faz, aqui, significativos”. Noutras palavras: uma biografia ab-
soluta daria a imagem da essência do indivíduo no todo existencial que o
abrange e suporta. Mas não. nos é possível, no conhecimento empírico,
obter biografia absoluta desta ordem que compreenda, enfim, a unicidade
em sua eterna essencialidade básica mediante o aparecimento do que é in-
finitamente fatual através desta vida. A biografia empírica que pretenda
saber a respeito do homem, e, por assim dizer, o sumarize há de abrangê-
lo em categorias biográficas sempre particulares, que darão, a impressão
ilusória de concludência. Conhecendo, temos de ficar numa biografia
aberta que deixe ainda livre, no todo, aquilo que for real e essencial; a sa-
ber, as profundidades que já não se podem conhecer psicologicamente,
que se podem iluminar filosoficamente. Na biografia em que se relata
aquilo que corresponde ao indivíduo' único é que se consegue o extremo,
porque o que não se pode saber talvez se faça sensível pela narração.

d) Pesquisa orientada pela ideia do bios.


Na via de uma biografia completa, absoluta, referente ao que é, afinal,
único, biografia que nunca se consegue alcançar, surgem-nos categorias
específicas do conhecimento: as categorias biográficas, que nos permitem
ver a totalidade relativa na configuração temporal da vida. São recursos de
que dispõe nossa biografia e que esclarecem, dentro da biografia, a gene-
ralidade. Daí nos comportarmos, no conhecimento biográfico, de maneira
dupla: descrevemos aquilo que se faz acessível na sucessão de um conhe-
cimento biográfico geral; a biografia transforma-se em caso — e tocamos,
fazemos sensível, participamos, internamente, no que este homem único,
ele próprio, é; este homem de quem falamos. Em seguida, já não é, ape-
nas, caso, mas vem a ser visão insubstituível do existir humano em forma
histórica; e, como tal, é inesquecível, realmente única, tenha ou não signi-
ficação histórica objetiva, bastando que se mostre, tal qual é, à nossa con-
templação amistosa. Não há, decerto, coisa alguma em que se pense que
já não se haja tornado geral; mas a descrição, valendo-se destas formas de
pensar, pode revelar aquilo que não se faz geral, e, sim, permanece sim-
plesmente o que é.
As formas de apreensão ou categorias especificamente biográficas
constituem o tema do presente capítulo, possuindo uma peculiaridade que
está no fato de serem dúplices, porque encerram em si tanto os meios com
que fornecem conhecimentos gerais quanto, a possibilidade de orientar a
contemplação para a unicidade como tal.
§ 1. Métodos Da Biografia

a) Colheita do material, arrumação, apresentação.


A coleta de material ajunta a totalidade dos fatos de uma vida: os de-
poimentos dos pacientes, relatos, rendimentos, toda objetificação existen-
cial, quer imediata, quer imediatamente acessível. Não há coisa alguma
dentre aquilo que informa sobre uma vida que não possa servir de mate-
rial biográfico. — A arrumação deste material dá-se de formas variadas, vi-
sando a tornar todas as particularidades prontamente acessíveis, desco-
bríveis, disponíveis. Mas a arrumação especificamente biográfica é a cro-
nológica. Todo trabalho biográfico há de alicerçar-se em acontecimentos,
relatos, cartas etc., datados em arranjo cronológico; alicerce que será, a
cada momento, o mais completo possível. — A apresentação é que é o ver-
dadeiro problema, de acordo com estas preliminares técnicas: em imagem
abreviada, conformada, estruturada, a vida há de fazer-se visível em seu
todo. Nem o simples aglomerado, nem o ajuntamento cronológico do mate-
rial fornece imagem alguma. A questão é a seguinte: como é que se pode
fazer presente o homem em seu todo, em seu mais íntimo; corporeamente,
por assim dizer? Mesmo aquele que está vivo em nossa presença só está
presente nesse momento de sua existência, jamais corpóreo como todo;
este todo só o contemplamos pela condensação de uma totalidade tempo-
ral, se o representamos tal qual o curso vital humano. — A coleta de mate-
rial e a apresentação se excluem reciprocamente. Se as- associarmos, cai-
remos em confusão tormentosa. Para cada indivíduo que nos interesse,
duas coisas necessitamos: a coleta de material estará pronta para nova in-
vestigação em torno do mesmo objeto, o qual está acabado de uma vez por
todas; e a apresentação será configuramento de cada instante, possível de
repetir com base noutras ideias, de maneira que uma série de apresenta-
ções se promovam e se complementem. Prejudica-se a apresentação em
que apareça mero material; sofre a coleta de material que se interrompa
com uma apresentação. A arrumação da realidade já é interpretação e
apresentação, quando se faz segundo pontos de vista tecnicamente exter-
nos de coleta e utilização

b) Casuística e biografia.
Tem sentido inteiramente diverso a descrição de um paciente como
caso de uma generalidade, ou como unicidade ele próprio. Se o que con-
templo é a generalidade, não preciso de biografias totais, mas sim dos fa-
tos que importam a esta generalidade, fatos que descrevo, quanto possível,
para vários casos. Se o que tenho em vista é o homem particular, procuro
representar o todo deste bios; a generalidade me serve como meio de apre-
ensão e apresentação, não como fim. O amor do “caso” não permite que
este subsista mero caso. O espaço interno da visão que tenho das formas
vitais individuais apreende o indivíduo como histórico e insubstituível. A
casuística refere- se ao conhecimento geral; a biografia, ao indivíduo parti-
cular.
Na casuística, é decisivo o ponto de vista que permite escolher aquilo
que é essencial e vale relatar nos fenômenos. Na biografia, a unidade do
todo conexo do indivíduo é que é decisiva, permitindo optar pelo que, con-
forme o ponto de vista, serve à visão do todo.
A significação do indivíduo particular pode ser, ao mesmo tempo, his-
tórica. Entretanto, para o psicopatologista interessado num homem, o par-
ticular apresenta-se sem qualquer significação histórica, sem validez obje-
tiva. Talvez venha ele, ulteriormente, a parecer-lhe representativo, expri-
mindo um tipo ideal.

c) O presente como ponto de partida.


O material biográfico obtém-se, sobretudo, inquirindo e ajuntando do-
cumentos. É só de forma passageira que o observador consegue participar
na vida do outro, em presença eventual. O médico tem seus próprios paci-
entes diante de si, lida com eles, ajuda-os, acompanha-lhes o curso vital
durante tempo mais ou menos longo; e o bios mostra-se-lhe na totalidade
do devenir presente, se lhe é dado perceber. Quanto mais próximo lhe
está, tanto mais pleno e essencial terá de manifestar-se-lhe, tanto mais
oportunidades terá de perceber o que é decisivo. O que se apresenta e tem
de ser inferido apenas, no todo da configuração temporal, do nascimento à
morte, isso se pode experimentar, corporeamente, no evento atual, desde
que o médico, vendo o que acontece, se oriente para o todo da vida pas-
sada e da vida ainda possivelmente futura. Von Weizsâcker chamou-nos a
atenção para o fato de que a experiência do acompanhamento total na ati-
vidade psicoterapêutica se torna tanto mais possível quanto o médico se
transforma, como personalidade, em fator do curso que tomam os eventos
internos da personalidade doente. O psicoterapeuta, transformando-se em
co-ator, participa do destino existencial do paciente e experimenta-lhe. as
crises na realidade da respectiva decisão. Von Weizsâcker pretende aqui
atingir “c percepção biográfica" que sirva de fundamento para nova apre-
ensão.
De modo geral, exprime da seguinte maneira a forma estilística do
evento biográfico: “Uma situação ocorre, uma tendência surge, eleva-se
uma tensão, aguça-se uma crise, irrompe a doença;.com ela, depois dela,
a decisão toma-se: criou-se nova situação, que se estabiliza.” Aconteci-
mento, drama, crise, decisão são, para von Weizsäcker, categorias biográ-
ficas nas quais se compreende “um evento total” (chamado “acaso”,
quanto ao mais), de que já não podemos mais alhear-nos e no qual doen-
ças somáticas (como a amigdalite, etc.) podem também desempenhar pa-
pel essencial quanto à respectiva localização temporal. Von Weizsäcker
constata “o achado de que estas moléstias estão no ponto crucial de crises
biográficas, ou se emaranham, na crise' insidiosa de uma vida inteira—;
de que doença e sintoma assumem o valor de distúrbios psíquicos, atitu-
des morais, energias espirituais; de que, mediante isso, surge na biografia
alguma coisa que parece ser a base comum da participação corpórea, psí-
quica e espiritual da pessoa humana”. O mesmo autor estabelece e limita
o sentido de sua percepção biográfica: “Não cabe aplicar as formas biográ-
ficas de consideração por atacado a toda e qualquer coisa que se encontre
na anamnese ou no achado. O método biográfico não é explicação, mas
uma espécie de percepção observadora. Com ele, não ganhamos, portanto,
novos fatores ou substâncias, quais sejam, por exemplo, os raios X ou as
vitaminas, que não se conheciam antigamente. O que se altera, sim, são
as categorias fundamentais da própria explicação A introdução do sujeito
no método de pesquisa é o ponto em que se instala o deslocamento das
bases”.
Algumas frases como as que se seguem mostram, no entanto, a que
ponto a percepção biográfica pode levar a erro, quando pretende ver de
modo quase arbitrário com material empírico insuficiente: “Também se
sabe e se reconhece que, nas epidemias, um indivíduo particular, psiqui-
camente transtornado, é facilmente acometido e morre, ao passo que ou-
tros permanecem imunes; principalmente, no caso da cólera. A morte de
Hegel e Niebuhr por esta doença seguiu-se à impressão que tiveram da
Revolução Francesa de 1830.”’
Se bem que não se possa deduzir “resultado” tangível algum das expo-
sições de von Weizsäcker — resultado que corresponda ao sentido consci-
ente respectivo — em todo caso, este autor chamou a atenção, dentro da
medicina, para um significado da história clínica que os cientistas esque-
cem facilmente. -Há diferença radical entre o que, numa história clínica,
percebo como caso de uma generalidade (a via do conhecimento) e o que
percebo como sendo aquilo que deparo com o aspecto de atualidade, de
unicidade: o enigma que não posso utilizar em depoimentos gerais (a via
da comunidade existencial, da experiência vital e metafísica), porque nisso
está a essência da comunicação, limitando-se com o conhecimento que
deriva da surpresa da experiência: sou capaz de narrar; não, porém, de
ganhar um saber que se possa generalizar. Daí von Weizsäcker dizer que
“não se podem apreender, conceitual- mente, os estímulos mais importan-
tes”, embora diga, noutro passo: “que não se pode omitir a definição con-
ceituai”. Esta, no entanto, não logrará seu fim, se com ela se pretender
qualquer conhecimento que se queira demonstrar como saber objetivo. A
generalidade que aqui se mostra não é a generalidade de uma compreen-
são, mas, apenas, o comum, pelo qual a filosofia esclarece o que é absolu-
tamente histórico; ou são as categorias com que só pela narrativa se al-
cançam estilo, tipo, forma em caso de êxito; de maneira sempre única, po-
rém, não antecipatória.
Ainda há outra diferença radical entre a imparcialidade do pesquisa-
dor, com a qual, não me deixando dominar por esquemas pressupostos,
me entrego aos fatos, me confio à intuição, depois levando-os à perceptibi-
lidade clara, e, doutro lado, a participação do médico no destino do outro,
situação em que eu mesmo me comprometo com ele, com ele sou arras-
tado; situação em que acasos, singularidades, pressentimentos, possibili-
dades ilimitadamente interpretáveis se tornam, no momento, unívocos,
sob o aspecto metafísico. O que contemplo não o vejo com olhos mera-
mente empíricos da razão; donde só poder narrar e fazer sensível na nar-
rativa aquilo que me pareceu evidente, porém inverificável, pois nunca sei
se existe ou não; jamais posso prová-lo. E a própria pujança da narrativa
enraíza-se na excitação da visão atual: não posso narrar uma segunda vez
da mesma maneira que consegui da outra.

d) A ideia da unidade do bios.


Não há dúvida de que o homem individual é um em toda sua vida, com
o mesmo corpo, embora a matéria constantemente se lhe altere, a forma e
a função constantemente se lhe transformem; com a consciência do eu
que sabe sua unicidade e que recorda o passado como alguma coisa que
lhe pertence. Mas não é a estas unidades formais que visamos quando fa-
lamos na unidade da vida humana; e sim, antes, à unidade no contexto de
todas as vivências, acontecimentos, ações, na essência que se objetifica na
totalidade das manifestações do bios; unidade esta questionável, porém. O
homem dispersa-se, deixa o que lhe acontece dissociar-se, os aconteci-
mentos externos atingem-no como coisas estranhas; esquece, é infiel para
consigo mesmo, muda até em suas raízes. Mas a biografia não pode com-
portar-se, mesmo em presença de melhor unidade, senão separando
aquilo que apresenta. Ligar o que é diverso de modo a formar um todo não
lhe é possível. O que é, no entanto, unidade, pela qual o próprio homem
existente luta, em redor da qual seu biógrafo gira em imagens e ideias —
isto não é, em caso algum, objeto, e sim ideia do conhecimento. A ideia de
unidade mesma mais uma vez estrutura-se. Que ela seja atuante para o
biógrafo é indispensável; mas que o biógrafo medite sobre ela não é neces-
sário. Em todas suas modalidades, ela limita o conhecimento e, ao mesmo
tempo, constitui-lhe a força propulsiva, mantendo-nos os olhos abertos,
impedindo-nos de confinar-nos em unidades prematuras, como se nelas já
possuíssemos o todo.

e) As categorias biográficas básicas.


Conquanto a ideia de unidade não se transforme em objeto, a não ser
nos esquemas formais, a começar pela configuração temporal, mostram-
se, todavia, na via da ideia, as categorias sob as quais apreendemos, de
modo geral, aquilo que se pode apresentar, metodicamente, como biogra-
fia; não a unidade, decerto, mas unidades relativas; categorias que, em
dois grupos, correspondem às conexões causais e compreensíveis. No pri-
meiro grupo, estão as categorias biológicas do curso vital em suas diversas
idades, nas sequências típicas de fases e processos (§2.). No segundo
grupo, estão as categorias históricas, ou estritamente biográficas; por
exemplo, “primeira vivência”, “adaptação”, “crise”, desenvolvimento de
certa personalidade etc. (§3.). Significam estas categorias a generalidade
nas biografias sempre individuais. O que é geral pode-se discutir; o que é
especial tem-se de descrever em concreto. A biografia não é mero uso da
generalidade, mas, sim, descobre a singularidade no ambiente esclarece-
dor da generalidade. O que se pode reconhecer, em geral, nas categorias é
objeto do presente capítulo relativo à biografia.

f) Observação a respeito da biografia literária.


As biografias literárias referem-se sempre a um mundo, a movimentos
e eras espirituais, que num e com um homem se apresentam; ou a rendi-
mentos e obras objetivamente relevantes pelas quais este homem inte-
ressa. Com comportamento desta ordem, observa-se que os autores consi-
deram, muitas vezes, indiferentes certas realidades psicológicas, as me-
nosprezam, ignoram ou interpretam de modo irrealístico. Não se trata
aqui, entretanto, de biografias no sentido em que as entendemos, biogra-
fias cujo objeto -e significado é o bios de certo homem particular. Já nos
aproximamos dele mediante apresentações que, mais do que a forma im-
precisa das “Life and Letters”, representam materiais intercalados de co-
mentários. Mas também elas são menosprezadas pelos literatos, que valo-
ram a biografia apenas como sede da mente objetiva, de suas criações,
desprezando o que é chamado “particular” (no sentido de “privado”). Daí a
carência espantosa de biografias autênticas e realísticas.
Em compensação, as humanidades são da maior importância, no que
diz respeito ao interesse biográfico, pelo material que oferecem. Só de per-
sonalidades históricas existe documentação viva. Nunca obtemos visão tão
ampla dos doentes, criminosos, indivíduos médios quanto a conseguimos
em relação a algumas figuras históricas: Abstraindo inteiramente a pro-
fundidade do conteúdo, Goethe, por exemplo, representa objeto insubsti-
tuível para a observação biográfica capaz de realizar-se num caso exem-
plar, tendo em vista a abundância documental (obras, cartas, diários, con-
versas, narrativas) e a comodidade dos recursos, que têm possibilitado à
literatura goetheana rever e dispor de tudo.

g) Rendimentos biográficos na psicopatologia.


O material mais abundante para a biografia está, decerto, em persona-
lidades que são, ao mesmo tempo, historicamente importantes. O apuro
das histórias clínicas modernas, os esforços das anamneses e catamneses
têm contudo, possibilitado e também, em casos individuais, realizado bio-
grafias de pacientes, biografias consideravelmente pujantes. A tarefa é an-
tiga. Ideler já escrevia “Biografias de Doentes Mentais”. São biografias
aquelas histórias clínicas que não pretendem mostrar um fenômeno, nem
o mero indivíduo como caso mórbido, e sim uma vida (neste sentido é que
Burger-Prinz chama com razão biografia sua patografía de Langbehn). O
ideal dos psicopatologistas são figuras vitais claras, evidentes, representa-
tivas, que constituam tanto “casos” quanto indivíduos; daí interessarem
como ilustração tanto de uma forma mórbida quanto destes homens. O
polo nosológico e o polo biográfico unificam-se.
Se se atentar para a série de biografias psiquiátricas e de histórias clí-
nicas, notar-se-á quanto mudam os interesses que cada época tem e as
formas culturais através das quais se observa e se apresenta. Assim é que,
em certo tempo, fascinaram as figuras sensacionais, principalmente os
criminosos; ou, a outros momentos, as histórias clínicas que diziam res-
peito, apenas, à generalidade eventualmente visada; donde virem a ser
sempre deficientes; depois, a escola de Kraepelin introduziu as descrições
do curso da doença (orientada pela ideia da unidade nosológica; o procedi-
mento constituía método de investigação nosológica e, sem querer, trans-
formava-se em biografia); enfim, pesquisaram-se, nas patografías, as ma-
nifestações constatadas em grandes homens e ampliou-se a visão psicopa-
tológica com a rica discriminatividade que só nesses casos era possível.
Até o momento, o interesse biográfico na psiquiatria tem tido- escasso
desenvolvimento e nenhum reconhecimento que estimule. Poucas são as
histórias clínicas biográficas. Mesmo as histórias clínicas psicoterapêuti-
cas, que deveriam orientar-se, de modo especial, para a ideia biográfica,
são deficientes, em geral. Abstraindo as dificuldades da publicação,
quando o paciente ainda vive, o que se tem produzido, até o presente, é in-
satisfatório: muitas vezes, largo ao infinito; sem maleabilidade; limitado a
prevenções ou preconceitos teóricos; de quando em quando, anedótico;
doutras feitas, relatos sensacionais breves, ou relatos, por assim dizer, de
milagres terapêuticos em acertos afortunados. A biografia tem de mostrar
uma imagem vital positiva com base em visão total e sob todos os aspectos
sequer possíveis; imagem que, sendo particular, seja, ao mesmo tempo,
representativa e que oriente, pela observação concreta, no sentido da reali-
dade atingível à compreensão psicopatológica. Se tivéssemos uma coleção
de quadros biográficos desta ordem, cuidadosamente conformados, pode-
ria ela ser a melhor introdução ao conhecimento psicopatológico. É só pela
apresentação biográfica de casos abundantemente desenvolvidos que se
faz visível aquilo que, segundo conceitos gerais, ainda contém um traço ar-
bitrário e, de certo modo, vazio; aquilo que subsiste oculto no momento do
contato humano temporalmente limitado; aquilo que não se desenvolve
em casos médios...

h) A arte de descrever histórias clínicas.


As histórias clínicas que se apresentam nas publicações científicas ser-
vem sempre para provar teses gerais. É de espantar a maneira descuidada
por -que são, conscientemente, redigidas. Pesquisadores excelentes são,
muitas vezes, negligentes em suas histórias; pelo que talvez não sejam
inúteis algumas indicações:
É importante formar-se para o leitor, a todo momento, uma imagem,
ou um quadro, que se edifique passo a passo, frase a frase, parágrafo por
parágrafo; donde os requisitos seguintes: a cada instante, configurar al-
guma coisa pela apresentação, mas sempre esgotando o que se tem de
apresentar; não repetir a mesma coisa com outras palavras, e sim conden-
sar as repetições que resultarem do material; dar enumerações externas
tão poucas quanto possível (melhor é diferençar o que se obtém com cole-
tas de material de toda sorte e o que se apresenta; não é de boa técnica re-
produzir, simplesmente, diários de pacientes sob cor de pseudo-objetivi-
dade). A concisão acentua a impressão que se tem do quadro. Eventual-
mente, podem-se acrescentar em formas tabelares cronologias e dados
psicográficos. Mas a apresentação que valha terá de criar imagem que o
leitor venha, depois, a ter sempre presente.
Conforme o tema de que se trate, difere a apresentação. As dilações fe-
nomenológicas, os desenvolvimentos compreensivos, a dramaticidade dos
acontecimentos, o desenrolar dos círculos fatuais dos quais emerge um.
salto do curso vital, a exposição de achados somáticos — tudo isto se mo-
dificará de acordo com o material existente e de acordo com os pontos de
vista.
A estrutura de uma história clínica biográfica não pode planejar-se se-
gundo qualquer esquema preconcebido; deve, sim, resultar do material. O
conceito não é senão uma via que leva à apreensão articulada, esta pres-
supondo a entrega de quem observa à realidade total do individuo em
causa. A arte de contemplar, a compulsão das imagens acarretam a dispo-
sição naturalmente emergente; e mais: o sucesso da formulação acertada.
De tão próxima à realidade, a apresentação falará pela observação. O con-
ceito desempenha papel como instrumento de opção e como cognição da-
quilo que se apresenta.
E só a partir do todo e do presente completo que surge o particular.
Daí o trabalho percorrer as etapas que, na coleta do material, passando
pelos ordenamentos técnicos (cronológicos, psicográficos), conduzem à
apresentação acabada. Realizado o primeiro esquema, cresce a sensibili-
dade para a compreensão do material; daí a necessidade final de compro-
vação e reformulação, com referência ao que se tiver esquecido, menospre-
zado, pouco acentuado e não suficientemente registrado.

§ 2. O Bios Como Evento Biológico

A transformação permanente do organismo em seu todo apresenta-se


como consequente às idades e manifesta-se em séries típicas que consti-
tuem um curso: ataques, fases, processos. No homem, o evento biológico,
uma vez que se exteriorize psiquicamente, também se elabora sempre no
psiquismo, representando condição modificadora do evento psíquico e
aparecendo no não-biológico, na mente, que o apreende; com isso, exalta-
se ou inibe-se em seus efeitos. O que é puramente biológico é apenas mar-
ginal à exploração do psiquismo, só se compreendendo com ajuda de al-
guma outra coisa. Por isto, se discutirmos o evento biológico, teremos
sempre de atentar, primeiramente, para o não-biológico, do mesmo modo
que, quando discutimos a história vital, precisamos dar um olhar retros-
pectivo ao que é biológico; biológico sem o qual não pode existir, um mo-
mento sequer, realidade alguma da psique. O biológico, o psíquico e o
mental, radicalmente diversos em seu significado, são, na realidade, indis-
solúveis; os métodos de pesquisa têm de distingui-los e correlacioná-los.

a) A idade.
O fato da alteração endógena do organismo mostra a diferença pro-
funda entre o evento vivo e aquele meramente mecânico na direção ascen-
dente do crescimento, do amadurecimento, na fase maturativa sempre
lentamente transformando-se; e também na direção por fim descendente
da involução. As idades sucessivas distinguem-se segundo qualidades
morfológicas e funcionais do corpo, bem como pela modalidade da vida
psíquica. Todas as doenças assumem, correspondentemente, colorido pró-
prio de acordo com a idade em que aparecem; várias doenças limitam-se,
absolutamente, a certas idades.
1. As fases biológicas etárias. Cada espécie de vida tem duração que
lhe corresponde tipicamente. As tartarugas gigantes podem chegar aos
300 anos; os elefantes, aos 200. O homem chega muito raramente aos
100; talvez, quando muito, aos 108; nunca aos 110 (Putter). A maior parte
dos animais tem vida mais curta; o cavalo vive até os 40. A vida só é imor-
tal pela reprodução. Todos os indivíduos vivos têm de acabar: os unicelu-
lares, pela divisão; os multicelulares, pela morte, que resulta da diferenci-
ação unilateral para fins de divisão do trabalho, porque as células perdem,
diferenciando-se, sua capacidade de trabalho; as nervosas, sobretudo,
perdem-na em absoluto. Todas as células incapazes de dividir-se morrem,
porém, após certo tempo. É como se houvesse no organismo um relógio
interno regulando o processo biológico natural, relógio que, por exemplo,
determina a formação hormonial; que, na puberdade, faz desenvolverem-
se as glândulas germinais; ou que prende a certos prazos o uso das célu-
las incapazes de dividir-se. Não é reversível o processo das transformações
que sofrem as constituições etariamente sucessivas. Nas crises, em espe-
cial na puberdade, dá-se, por assim dizer, uma reorganização das qualida-
des humanas. O que persiste, mudando as formas, não se pode determi-
nar, pois isso mesmo que persiste sofre suas modificações.
Tem-se dividido a totalidade da vida humana em secções, cada uma
delas abrangendo 7 anos (Hipócrates), 10, ou 18 (J. E. Erdmann), ou ou-
tros grupos. Todas as divisões distinguem, fundamentalmente, 3 secções
principais, cujo número aumenta com as transições entre elas e com as
respectivas subdivisões: crescimento, maturidade, involução. Quão possí-
veis são as flutuações nas cifras anuárias mostram os dados relativos à
menarca: entre 10 e 21 anos (14 em média); à menopausa, entre 36 e 56
(em média 46).
É frequente descrever as seções de acordo com as características psí-
quicas das várias idades.
Infância. A vida psíquica da criança caracteriza-se pela rapidez do
crescimento, pelo aparecimento de capacidades e senti- mentos vitais
sempre novos, pela grande fatigabilidade, com capacidade de pronto resta-
belecimento após distúrbios; mais: pela grande capacidade de aprender,
grande influenciabilidade, fantasia extraordinária e mais escasso desen-
volvimento de quaisquer inibições psíquicas; donde resulta que todo
evento psíquico é desmedido, os afetos são intensos, os impulsos incontro-
láveis. Quase todas as crianças e adolescentes são dotadas de capacidades
eidéticas que desaparecem, de modo geral, com a idade.
O que tem, entretanto, de essencial a infância é o fato de modificar-se
rapidamente com o desenvolvimento; o qual não constitui evento regular,
monótono, mas, sim, representa um todo que se organiza, que se mantém
coeso, mesmo ramificando-se, que tende a expandir-se e a concentrar-se.
Quanto ao somático, distinguem-se os períodos de enchimento e estica-
mento, observando-se mudança morfológica típica entre os 6 e 7 anos e,
depois, entre os 12 e 15. Já na criança, o todo não é apenas evento orgâ-
nico decrescimento biológico; dentro deste, é evento psíquico-mental de
elaboração e transformação do patrimônio que já se haja adquirido, da au-
torreferência que disciplina. Contudo, a diferença entre a elaboração e a
conquista repentina de nova potencialidade, entre a exatividade mental e a
possibilidade biológica, não permite, realmente, separar uma coisa da ou-
tra.
Puberdade. Na fase de maturação sexual, um de cujos fatores é o de-
senvolvimento da sexualidade, transtorna-se o equilíbrio- alcançado ao fim
da infância. O desenvolvimento irregular das funções e dos rumos existen-
ciais, o impacto da novidade, a oscilação entre os extremos, manifestando-
se pelo pendor ao desmedido, levam a que o indivíduo não se entenda a si
mesmo, o mundo lhe pareça problemático e de ambos se torne consciente.
Distinguem-se, esquematicamente, várias fases: segundo Charlotte Buh-
ler, a fase negativa (inquietação, desgosto, excitabilidade, tendência para
os movimentos desgraciosos, negação do inundo) e a fase da adolescência
(afirmação da vida, alegria de viver e esperança no futuro, reatamento dos
laços com o mundo, culminâncias dos sentimentos, de felicidade — transi-
ção para a idade adulta). Tumlirz discrimina três fases: a idade da obsti-
nação (negação de tudo), os anos de maturidade (afirmação de si mesmo),
os anos do mancebo e da donzela (afirmação do perimundo). Descrevem-
se (como sendo transitórios) muitos fenômenos da puberdade, quais sejam
o com- prazimento em certos estados de ânimo, a mentira como proteção
da personalidade etc.
Velhice. Quanto ao somático, notam-se empobrecimento líquido, au-
mento da excreção, elevação da pressão sanguínea, diminuição da força
muscular, decréscimo da capacidade vital dos pulmões, diminuição da ve-
locidade de cicatrização de ferimentos, decréscimo do tempo fisiológico in-
terno: dentro do mesmo prazo, ocorre na criança mais do que no velho.
Cada vez se fazem mais numerosos os vestígios da vida passada. Lentifica-
se o metabolismo, porque “quanto mais rápidos o devenir e a morte das
partes, tanto mais jovem o todo”.
A vida psíquica da velhice é quieta, contrariamente à da criança: dimi-
nuem as capacidades, substituem-se pelo grande estoque de patrimônio
sólido. As inibições, os ordenamentos vitais, o autodomínio dão à existên-
cia psíquica alguma coisa amortecida inabalável; ao mesmo tempo que
acontece, muitas vezes, limitar-se o horizonte, perder-se a riqueza psí-
quica, restringirem-se os interesses; tende-se para o isolamento egocên-
trico, a diminuição das necessidades instintivas da vida cotidiana, a acen-
tuação das disposições primárias individuais, até então escondidas por
baixo dos impulsos da vida juvenil: por exemplo, a desconfiança, á ava-
reza, o egoísmo.
Idade e capacidade de rendimento. Conforme os pontos de vista da
psicologia dos rendimentos, têm-se comparado entre si as capacidades
das diversas idades; e tem-se concretizado a afirmação geral de que os
rendimentos diminuem, conceituando-a, em parte, como alteração dos
mesmos. Estabeleceu-se que a capacidade de adaptação rápida já se re-
duz a partir dos 28 anos; que a memória diminui a partir dos 30; à acui-
dade sensorial e a agilidade física, a partir dos 38-40 já começam a sofrer.
Em testes de rendimento concernentes a experiências profissionais e vitais
(leitura de horários de trens, preparação de relatos, cumprimentos de or-
dens), ocorre piora apenas muito lenta a partir dos 50 anos. Quanto mais
papel desempenha a colaboração intelectual, mais se nota diferença entre
o período biológico culminante e a eficiência rendimental. Só no esporte é
que os dois coincidem; para os trabalhadores manuais, a eficiência é má-
xima dez anos a contar do pico biológico; para os trabalhadores intelectu-
ais, vinte anos.
2. Relação biológica entre idade e doença psíquica. Toda doença modi-
fica-se com a idade. Várias prendem-se à idade, os paranoicos, por exem-
plo, nunca são adolescentes; as paralisias são possíveis a qualquer idade;
as esquizofrenias são tanto mais raras na infância quanto mais novo for o
indivíduo. As esquizofrenias que levam a distúrbios da maior gravidade
correspondem, preponderantemente, aos primeiros decênios. A idade dá
um cunho a cada estado mórbido. Estabelecem-se estatisticamente, as re-
lações entre idade e psicose para os doentes internados, distribuindo pelas
diversas idades as cifras de todos os casos, bem como os casos do vários
grupos diagnósticos; e comparando-os com a massa da população geral.
Quase todas as doenças mentais começam entre 20 e 50 anos; após os 55,
a participação percentual dos doentes de primeira vez vai decrescendo em
relação à população geral (Kraepelin). Certos grupos nosológicos acumu-
lam-se em certos decênios. Por que assim acontece é raro estabelecer-se
de modo unívoco. Em parte, não são causas biológicas que desempenham
papel, e sim condições vitais e estilos de vida a que o indivíduo está sub-
metido por motivos sociológicos, nas diversas idades.
Assim, resultam de condições externas os traumas psíquicos que acar-
reta para os jovens o abandono da casa paterna; a necessidade de manter-
se e lutar pela vida com forças insuficientes, nos primeiros anos. Também
desempenham papel especial a maior tensão de todas as energias, as pre-
ocupações e excitações, que a luta pela vida, dos vinte aos trinta anos,
acarreta, até se conseguir segurança. Estes anos em que as forças vitais
são mais intensas também trazem consigo a maior parte das infecções
luéticas e o alcoolismo-. Os conflitos matrimoniais e amorosos são fonte de
perturbações afetivas e, afinal, também de fenômenos mórbidos. Nos últi-
mos anos do terceiro decênio e no quarto, não se pode negar importância
às decepções, existenciais e suas consequências, que afligem quase todos
os seres humanos; sobretudo, para as mulheres mal casadas, a idade
pode s.er fonte simultânea de decepções e várias doenças nervosas. Por
outro lado, o descanso da velhice, a existência segura para muitos indiví-
duos limita os fatores psíquicos morbígenos.
Toda doença modifica-se com a idade.
Infância. Só se podem compreender certos distúrbios nervosos como
exagero das características psíquicas normais que correspondem a deter-
minada idade. A criança, por exemplo, tende “às mentiras patológicas”,
que se originam de sua fantasia desinibida; em particular, tende aos me-
canismos histéricos que correspondem à sua essência; donde se poderem
diagnosticar com benignidade em relação à. vida ulterior. Talvez a perso-
nalidade infantil ainda deva modificar-se fundamentalmente por força de
doenças somáticas, ao contrário do adulto, que sofre esta transformação
apenas mediante psicoses processuais autênticas.1 Nas crianças, já po-
dem dar-se, mesmo com infecções ligeiras, alterações psíquicas sérias; de-
lírios e convulsões, desaparecendo, porém, habitualmente, com a mesma
rapidez e curando-se de todo.
Puberdade e menopausa. Têm importância patogênica as épocas da
vida sexual, a puberdade e a menopausa, que mesmo normalmente se
acompanham de distúrbios notáveis do equilíbrio somático e psíquico. A
imensa maioria das psicoses endógenas não aparece antes da puberdade.
Durante a puberdade, observam-se modificações afetivas obscuras, passa-
geiras, alterações psíquicas marcadas, de bom prognóstico, distúrbios
passageiros do tipo de ataques, epileptiformes mesmo, mas também apa-
recimento dos processos que se acompanham de alteração permanente da
personalidade, com as feições características da “idade ingrata” (tolice, in-
clinação para travessuras, comprazimento sentimental nos problemas
universais). Têm-se conceituado estes fenômenos, que, por vezes, decor-
rem sem manifestações psicóticas agudas que exijam internamento, como
parada do desenvolvimento na fase pubertária. Hecker, entretanto, já con-
siderou estas manifestações como sintomas de processo “hebefrênico” pro-
gressivo.
A menopausa, cessação das regras e involução dos genitais no sexo fe-
minino, acompanha-se de queixas somáticas e nervosas, além de altera-
ção da vida psíquica, mais acentuadas em certas mulheres. Vamos enu-
merar os fenômenos principais:
Palpitações, opressão, “fogacho” na cabeça, quenturas passageiras,
cintilações, vertigens, transpiração anormal, tremores, sensações desagra-
dáveis inúmeras; estados de inquietação e grande excitabilidade, ansie-
dade, sentimentos de peso e atordoamento; insônia, aumento do impulso
sexual e distúrbios psíquicos associados (“a idade perigosa”); alterações do
humor, tendências à depressão etc.
De que o climatério se relacione, de um modo ou de outro, com psico-
ses não se pode duvidar; é obscura, porém, a maneira por que se estabe-
lece a conexão. Descrevem-se como psicoses que aparecem no quinto de-
cênio da vida, principalmente, as melancolias. Têm-se descrito errada-
mente como transtornos climatéricos certas queixas nervosas passageiras
que ocorrem, para os homens, na mesma fase. Não existem distúrbios cli-
matéricos no homem. Trata-se ou de fenômenos relacionados com a ve-
lhice, ou de transtornos neuróticos naqueles indivíduos que não querem
envelhecer.
Senectudes. O exagero das caracterizações desfavoráveis da senectude
parece levar, através de transições — embora deva haver, seja de que
modo for, um salto para a doença propriamente dita, como “processo” —
dos anciães resmungões, tirânicos, aos estados defectuais graves e às des-
truições da demência senil.
É clara a relação entre alterações somáticas e a fase vital correspon-
dente. Tal qual todos os órgãos sofrem alterações regressivas, assim tam-
bém o cérebro: atrofia das células, hiperpigmentação, calcificação, lesões
gordurosas, focos de necrose — encontram-se em numerosos cérebros de
velhos. Todavia, não é unívoca a relação entre o declínio psíquico da idade
e a extensão dessas alterações morfológicas cerebrais. Os graus de um e
outra nem sempre se correspondem. A relação, no caso, é a mesma que no
tocante à correspondência entre sinais somáticos de degeneração e a dis-
posição psicopática. É certo que quanto mais forem os sinais de degenera-
ção, mais prováveis serão as anormalidades psíquicas, sem que, no en-
tanto, se possam daqueles inferir com segurança. Quanto mais elevado é o
grau. de alterações cerebrais, também é mais provável o declínio psíquico
senil; entretanto, também se encontram cérebros com alterações senis
graves em anciães que quase não apresentam transtornos psíquicos.
Deve-se distinguir a alteração especificamente arteriosclerótica da alte-
ração senil da substância ‘cerebral; aquela tem, quanto ao psiquismo, as
mesmas consequências que as doenças orgânicas cerebrais, quando se
chega à destruição secundária extensa da substância.
Tanto o declínio senil quanto a calcificação peculiar à idade podem ins-
talar-se prematuramente. Em vez de evolução lenta, é possível assumirem
caráter absoluto de processo mórbido grave, que leva a quadros semelhan-
tes ao da paralisia geral. Nada sabemos sobre as causas dessa senilidade
anormal.
Das doenças devidas à senectude hão de distinguir-se as doenças na
senectude. Limitam-se cada vez -mais as psicoses que se podem atribuir,
realmente, a processos senis. Talvez seja a demência senil a única doença
da velhice, resultando, principalmente, da herança; as demais doenças
psíquicas senis são “em proporção predominante, padecimentos hereditá-
rios de cunho especial”. Entre os sintomas, preponderam ansiedade, de-
pressão, estados hipocondríacos, inquietação; são raros, no entanto, a ca-
tatonia, as excitações furiosas, as manifestações obsessivas. Na paralisia
geral, descrevem-se o encurtamento do período de incubação, a abreviação
da sobrevida, o aumento dos estados ansiosos, a uniformidade dos qua-
dros hipocondríacos. Na loucura circular, são mais comuns as melanco-
lias; menos frequentes as manias.

b) Séries típicas de curso.


Na curva das idades sucessivas, assinalam-se oscilações temporárias
do estado total (ataque, fase, período) e processos irruptivos, que tudo mo-
dificam e são irreversíveis.
A. Ataque, fase, período. A vida psíquica altera-se em fases que inter-
rompem a existência. Quando estas fases se acentuam, costumam tornar-
se objeto da investigação psicopatológica; quando são breves (minutos a
segundos), falamos em ataques; quando retornam a intervalos de tempo
regulares, com a mesma forma, falamos em períodos. Ataque, fase e perí-
odo são, conceitualmente, endógenos; ignora-se-lhes quase sempre a
causa.
Também se fala em ataques, fases, quando são “desencadeados”, isto
é, quando surgem por força de uma causa externa, que, no entanto, é de
todo insuficiente tanto para nossa compreensão quanto para nossa consi-
deração (o cansaço, por exemplo). A partir daí, todavia, existem transições
até a reação verdadeira; é o caso, por exemplo, das transições da depres-
são puramente endógena, apresentando-se com o aspecto de fase, até (ul-
trapassando aquelas desencadeadas) as depressões reativas que se se-
guem a vivências penosas.
É assim que definimos: fases são alterações da vida psíquica endóge-
nas ou resultantes de causas ocasionais de tipo inconveniente, durando
de semanas a meses, desaparecendo, entretanto, a seguir, de modo que se
restaura o estado anterior. Ataques são aquelas fases de duração muito
breve. As fases são periódicas quando à origem endógena se acresce um
intervalo de tempo regular entre as várias fases individuais e quando
existe grande semelhança das várias fases entre si.
É frequente observar-se um indivíduo acometido por numerosos ata-
ques e fases, estes sendo, porém, muito diversos uns dos outros. Se há
base para admitir que se trate do mesmos processos condicionado ou pela
disposição, ou por fatores patológicos, apenas variando em sua modali-
dade fenomênica por força de circunstâncias diversas, eventualmente
acrescidas, falamos em equivalentes: conceito que, criado por SANp-2
para os ataques e fases da epilepsia, se transpôs para outros tipos de fa-
ses e ataques; por exemplo: as alterações do humor e as doenças afetivas.
Também se consideram equivalentes (principalmente, na epilepsia) os ata-
ques puramente somáticos (pequeno-mal, estados hemicraniais etc.), que
se admite, representem, por assim dizer, a convulsão.
Varia a forma do início e terminação das fases. Há vezes em que evolui
lentamente; outras vezes, de súbito, durante a noite, inicia-se uma psicose
aguda grave (sobretudo, com o caráter de amência); por vezes, o curso é
relativamente regular, talvez podendo representar-se por urna curva; ou
ainda, notam-se oscilações pronunciadas, que vão da confusão completa a
boas remissões, com plena lucidez e aparente saúde (lucida intervalla).
Fases e ataques mais breves são denominados estados excepcionais, a
fim de assinalar o fato de só haverem ocorrido alterações passageiras
numa personalidade cujo estado permanente é de outro tipo, normal ou
anormal; especial, em todo caso.
Ataques, fases e períodos têm conteúdo extraordinariamente diverso.
Daremos perspectiva esquemática desta multiplicidade.
I. Ataques. Ocorrem ataques sob o aspecto de sintoma notável único
nas constituições psicopáticas; e ataques de toda sorte- são manifestação
frequente dos demais diversos processos mórbidos.
1. Nas constituições psicopáticas, nota-se ocorrerem, em forma de ata-
ques, alterações do humor (estados disfóricos) com inúmeros fenômenos
tais como alteração do mundo perceptual, ideias obsessivas etc. Dando a
impressão de precipitação repentina em um estado anormal, não é raro vi-
venciar-se a alteração do humor, subjetivamente, com grande ansiedade.
Janet descreveu esses estados com os nomes “crise de psycholepsie”, ou
“chute mentale”. Kurt Schneider descreve as alterações de humor de curta
duração, rápidas tanto no aparecimento quanto no desaparecimento, que
ocorrem nos “psicopatas afetivamente lábeis”.
Da alteração do estado de ânimo resultam a vadiação sem sentido (es-
tados de fuga), o alcoolismo (dipsomania periódica), o esbanjamento, talvez
ainda a piromania, o roubo e outros atos criminosos em que o humor alte-
rado se descarrega. Posteriormente, as pessoas veem a própria impulsão,
quase insuperável no momento, como se lhes fosse estranha. Durante as
alterações do humor, predomina a angústia ou a atitude niilista (tudo é in-
diferente); ou um impulso impreciso, “como se o sangue batesse”. Podem
seguir-se deserções, vagabundeamentos, excessos”.
2. Especialmente numerosos são aqueles estados do tipo de ataque
nos quadros epilépticos e epileptoides1.
Quanto ao soma, observam-se: o “grande-mal”, o ataque convulsivo
clássico (irrupção repentina, imotivada, muitas vezes com um grito, in-
consciência absoluta; duração de poucos minutos, amnésia completa) ;
“pequeno-mal” (sacudidelas breves em estados momentâneos de aliena-
ção) ; ausências (ataques vertiginosos e perda momentânea da consciên-
cia, sem alteração da postura e sem queda) ; estados narcolépticos (inca-
pacidade de falar e incapacidade de mover-se com segurança, além de al-
teração momentânea da consciência, conservadas, porém, a percepção e a
apreensão); ataques de sono simples; inúmeros tipos de sensações corpó-
reas.
Na área puramente psíquica estão os estados crepusculares, as altera-
ções elementares do humor, os estados com aparência de intoxicação, com
vivências e conteúdos semelhantes aos do envenenamento pela mescalina,
além de algumas esquizofrenias agudas e dos ataques pós-encefalíticos, a
se descreverem dentro em pouco.
3. As crises oculares pós-encefalíticas exemplificam os ataques que
ocorrem em doenças orgânicas conhecidas. Vejamos um caso?
O corpo torna-se pesado; sensação de afrouxamento. Os olhos vão fi-
cando, aos poucos, cada vez mais fixos. O paciente sente que seus movi-
mentos se fazem mais lentos, bem como os das pessoas à sua volta. Os
impulsos cinéticos detêm-se, ou os atos iniciados não podem deter-se.

1 Chamam-se epileotóides os quadros mórbidos que se caracterizam pelos ataques acima descritos e, sobretudo,
por modificações do humor breves, intensas, as quais não se enquadram na epilepsia essencial, levando à altera-
ção da personalidade e à demência: mas que também não se podem classificar noutro grupo nosológico conhe-
cido. Trata-se de denominação convencional.
Caem das mãos os objetos. O ambiente parece achatado, irreal, estranho.
As pessoas movem-se rígidas feito marionetes; ou os objetos parecem
aproximar-se distorcidos. O paciente vê os contornos dos objetos ' duplica-
dos e confusos, brilhando com as cores do arco-íris. Acercam-se, parecem
crescer, oprimem-no, por assim dizer. As paredes do aposento ajuntam-se.
O doente sente limites que quisera romper; vagueia pelo aposento sem
propósito, tenta jogar-se de cabeça contra a parede. É como se um muro
líquido o ameaçasse. Torna-se agressivo contra as pessoas que o cercam,
tenta o suicídio, às vezes. — Enquanto dura o estado, sente vacuidade
mental, obtusidade; ou mil pensamentos lhe voam pela cabeça. — Pode
achar que não é ele próprio quem fala, mas outra pessoa de dento dele;
“Sou eu que uso este nome? — Pouco antes de irromperem as crises, um
tremor da espinha. O paciente mostra-se ansioso, receia enlouquecer.
4. Enfim, são muitos os estados do tipo de ataque nos quadros esqui-
zofrênicos. Por exemplo:
Primeiro: Ataques de “encantamento”, de incapacidade de qualquer
movimento, plenamente conservada a consciência.
Segundo: Kloos descreveu ataques breves de “roubo-do-pensamento”
com alterações concomitantes dos sentimentos corpóreo.
Um doente tombou de repente, enquanto conversava, levantou-se daí a
3 segundos, imediatamente capaz de responder a perguntas: “Perdi a ra-
zão subitamente, desligaram-se-me as ideias de um momento para outro,
tal qual uma corrente elétrica, a cabeça esvaziou-se de todo”. O paciente
teve a impressão de que o corpo se lhe tornava muito leve, quase imponde-
rável; esquecera, por isso, conforme declarou, a maneira de firmar-se nas
pernas, como de costume; pelo contrário, deixara-as afrouxar; daí tombar.
Não perdeu em absoluto a consciência; lembrava-se de todas as particula-
ridades. — Outro doente jogou a bicicleta de encontro a um carro: De re-
pente, sentira-se estranho, como se um raio o houvesse atingido; não pu-
dera mais pensar nem fazer coisa alguma; mas não perdera absoluta-
mente as faculdades mentais. — Esses ataques só acometeram os pacien-
tes em estádios agudos; quase sempre no começo.
Terceiro: Ataques de alteração súbita de todo o estado somático e psí-
quico, durando um a dois dias, que doentes interpretam, muitas vezes,
delirantemente, como envenenamentos. Os pacientes sentem a morte pró-
xima, desmaiam, jazem na cama desesperados, experimentam dores in-
tensas, rolam banhados em suor, atormentados pelo sentimento de de-
samparo. Certos doentes falam em “atordoamentos”. Quarto: Em estados
crônicos, ocorrem à maneira de ataques, durando horas, gritos, furores,
pancadas, prantos, manifestações afetivas vivíssimas: mais ainda: fenôme-
nos “feitos”, “estados de rugido”. Quinto: Com aspecto de taques, não é
raro aparecerem estados afetivos subjetivos; por exemplo: sentimento de
beatitude, como se os pacientes estivessem cercados apenas de santos;
como se alguém estivesse atrás deles, gerando o sentimento venturoso in-
descritível; ou, ao revés, estados angustiosos, sentimentos de abandono,
inquietação torturante. Ao contrário de certos estados meramente psicopá-
ticos, é frequente notarem-se, então, exaltação dos sentimentos, incapaci-
dade de aguentar mais, além de estranheza peculiar. Doentes crônicos
que, de hábito, são absolutamente ordenados e lúcidos, têm, de quando
em quando, estes ataques. Sexto: Há ataques breves de ricas vivências
fantásticas, com alienação completa, mas plena vigília, emergindo de esta-
dos de lucidez normal e quase sempre cessando em um ou poucos minu-
tos. Alguns exemplos ilustrarão tais estados:
O paciente Dr. Mendel teve uma espécie de sonho; não semiadorme-
cido, e sim com os olhos fechados, plenamente vigil, com a consciência
exata de sua situação corpórea. Sentiu-se, de repente, tonto e confuso;
percebeu uma “alteração” e viu, nesse estado de plena vigília, em espaço
imaginário, de modo muito claro, que um criado entrava no quarto com
um copo de vinho, que o paciente recusou. Outra “alteração” deu-se,
vendo, então, de olhos fechados, uma cabeça de morto, que fitou, sorrindo
para ela, sentindo, ao mesmo tempo, sua própria força. A cabeça de morto
estourou, restou uma pós-imagem, semelhante a um olho, não tardando a
desaparecer. Teve a impressão de que sua própria cabeça se tornava ca-
beça de morto. Sentiu sumir a pele do crânio; tremiam-lhe ossos e dentes.
Observou tudo is.so sem medo, tal qual fenômeno interessante. Queria ver
em que ia dar. Em. seguida, de todo repentinamente, tudo cessou. Abriu
os olhos, igual ao que era antes. Todo este estado, com o paciente inteira-
mente vigil, durou 30 segundo, no máximo.
Contou um paciente de Kõppe: “Muitas vezes, vejo homens; de dia,
pretos; de noite, cor de fogo. A coisa começa sozinha; começa a girar, e eu
começo a ver: homens que andam ao longo da parede, deslisando feito um
funeral; não vejo, então, as camas, nem as janelas; tudo está negro, os ho-
mens cor de fogo; o céu está negro também; as estrela, cor de fogo. Mo-
vem-se atrás umas das outras, fazendo caretas, acenando para mim, zom-
bando de mim com momos; às vezes, também pulam e dançam, Parecem
sempre girar em volta de mim, da direita para a esquerda. Também vejo
cobras, que não são mais grossas do que uma palha, movendo-se com
muita ordem; também cor de fogo, à noite. Acontece também de dia: vejo,
então, os homens e as cobras pretos; mesmo quando estou aqui no quarto
junto dos outros, eles me rodeiam. Dura alguns minutos, até eu saber, no-
vamente, que estou aqui, no meio dos doentes. Quando vem, a razão fa-
lha-me; só fica pela metade; vem de repente; de repente, sinto as veias
pulsarem no pescoço e no braço; pulsam até o máximo; escondo-me em
baixo da cama, mas continuo a ver tudo isso. A cama, as cadeiras come-
çam, então, a rodar”.
II. Fases. Em grau mais ligeiro, a disposição psíquica total' oscila tanto
de modo espontâneo quanto pela ação das vivências e dos processos so-
máticos. Assim é que também oscila, permanentemente, a maneira por
que internamente reagimos a impressões e acontecimentos e por que varia
nossa influenciabilidade diante de causas físicas, quais sejam os venenos.
Ora um desgosto nos leva ao desespero, ora nos deixa indiferentes; o ál-
cool ora atua de forma excitante, ora nos faz mal-humorados e sentimen-
tais. Na medida em que não têm base fisiológica (por exemplo, o álcool
atua menos intensamente enquanto se executa trabalho manual do que
quando se está em repouso completo), estas diversidades devem resultar
de oscilações das disposições que são a base direta de nossa vida psíquica
consciente. Se bem que oscilações ligeiras desta ordem não constituam
objeto de tratamento psiquiátrico, delas, entretanto, existem transições
para as doenças graves que aparecem numa ou mais fases, doenças que
de há muito se conhecem; sobretudo, na área da vida afetiva. Visto tratar-
se de fases, o prognóstico final é. sempre favorável. Têm-se observado do-
enças que duram até dez anos (melancolias) e ainda se curam. Certa-
mente, as^ doenças afetivas, os estados maníacos e depressivos são as de-
sordens fásicas que mais chamam a atenção, sem que haja motivo para
considerar essenciais apenas as alterações de humor que acompanham
quase todas as fases. Assim é que se notam fases nas quais são manifes-
tações obsessivas variadas, de modo geral, que ocupam o primeiro plano;
ou a inibição simples sem depressão mais acentuada; ou queixas somáti-
cas sem alteração psíquica que chame a atenção; ou estados psicastênico-
neurastênicos; ou estados afetivos que não se podem, a rigor, enquadrar
na polaridade prazer-desprazer.
Embora se chamem “circulares”, principalmente, as doenças maníaco-
depressivas, as fases e períodos constituem parte formal do curso de
quase todas as moléstias.
III. Períodos. Se formarmos o conceito de periodicidade de maneira es-
trita, matemática, não haverá um só curso psicopatológico que nele se in-
clua. As várias fases não são em absoluto iguais; os intervalos nunca têm
a mesma duração temporal exata. Daí ser arbitrário, nos casos borderline,
falar em periodicidade, ou em fases irregulares.
A periodicidade é a forma por que decorre toda vida psíquica em grau
quase imperceptível. As oscilações que a atenção está sempre sofrendo e
que só se estabelecem pela experimentação; as oscilações da produtivi-
dade na curva diária (por exemplo, o máximo da produtividade pela ma-
nhã e à tarde etc.); a oscilação periódica do humor vital e da eficiência que
todo observador atento percebe em si mesmo — estes casos exemplificam
a periodicidade só em parte conhecida da vida psíquica normal. A periodi-
cidade do sexo feminino no contexto do funcionamento dos órgãos sexuais
é o exemplo mais comum.
Em quase todos os processos psíquicos anormais, certa periodicidade
se mostra; pelo menos em grau ligeiro. Vamos enumerar alguns exemplos:
1. Todas as anormalidades mentais psicopáticas tendem à periodicidade:
os estados obsessivos, a pseudologia fantástica, os estados disfóricos etc.
2. As doenças afetivas graves, que se afiguram, muitas vezes, fases irregu-
lares, também ocorrem por forma periódica. Distinguem-se, então, a folie à
double forme (mania, melancolia, intervalo; mania, melancolia, intervalo
etc.), a folie alternante (mania, melancolia, mania melancolia etc.). 3. Tam-
bém com base em processos mórbidos progressivos desenvolve-se a perio-
dicidade de alguns sintomas. O início' periódico dos processos esquizofrê-
nicos leva, vez por outra, a erros diagnósticos. Mesmo nos estados crôni-
cos terminais se notam excitações periódicas, ataques alucinatórios etc.
Em princípio, certamente, se bem que não no caso particular, pode-se dis-
tinguir semelhante periodicidade da série de brotos do processo, o qual
permite remissões entre os brotos (melhoras) ou intermissões (curas apa-
rentemente completas).
B. Processo. Quando, em contrário ao desenvolvimento existencial que
até o momento se verificou, surge alguma coisa nova, resultando de alte-
ração da vida psíquica, pode ser uma fase. Quando se trata, no entanto,
de alteração permanente da vida psíquica, chamamos o evento processo.
Não esta ainda provado, em absoluto, mas se aceita, provisoriamente,
como princípio heurístico, que se faça distinção principiai entre fases pas-
sageiras e processos que levam a alteração permanente. Justifica a distin-
ção o fato de serem também permanentes, em muitíssimos casos, as alte-
rações psíquicas que se apresentam com traços esquizofrênicos. Talvez
seja sempre este o caso. Nos processos, distinguir-se-á a variação, trans-
formação e distorção singular da personalidade, que cria novo estado, da
progressão contínua, esta última, contudo, cessando num momento ou
noutro e passando para o “estado terminal”.
Por enquanto, cingir-nos-emos ao esquema que separa processo e fa-
ses curáveis. Chamamos brotos aqueles eventos agudos que produzem a
alteração permanente (muitas vezes, em meio a manifestações tempestuo-
sas) e também todos os eventos ulteriores que ainda vêm reforçar essa al-
teração. Permanecendo a alteração, no intervalo entre os brotos, que re-
presentam, de certo modo, nova constituição e nova disposição, fases e re-
ações ocorrem, de modo absolutamente análogo ao comportamento dos
indivíduos normais; fases e reações que, em princípio, certamente, mas
não em todos os casos particulares, se hão de distinguir dos brotos.
Os processos abrangem vasto grupo de doenças mentais, grupo com-
posto de formas em si diversas, essencialmente. Os processos resultantes
de doenças cerebrais orgânicas seguem curso de forma unitária, em certo
sentido. Entre eles incluem-se os já conhecidos processos cerebrais, mais
uma quantidade de moléstias do grupo da demência precoce que ainda
não se podem discriminar. O curso- de tais processos é total e unicamente
dependente dos processos cerebrais; os conteúdos psíquicos são muito va-
riados; mas com um- traço comum, que consiste em surgirem numa vida
psíquica grosseiramente destruída. Nesses processos cerebrais, remissões,
paradas; nalguns casos, talvez, curas.
Ainda são numerosos os processos restantes, formando um grupo que
tem alguma coisa comum em oposição a todos os demais processos cere-
brais, a saber: a alteração da vida psíquica sem destruição, com ocorrên-
cia de uma quantidade de conexões compreensíveis. Nada sabemos que
possamos considerar causa, nesses processos. Ao passo que, nos proces-
sos orgânicos, existe mistura confusa de fenômenos psíquicos que não po-
demos compreender psicologicamente, aqui descobrimos tanto mais cone-
xões quanto mais nos aprofundamos em certo caso; daí por que se desta-
cam, em contraste com os processos orgânicos, que seguem, sob o ponto
de vista psicológico, curso arbitrário e acidental, conexões relativas ao
curso- psicologicamente típicas. Nas formas mais ligeiras dos processos,
tem-se a impressão de que, uma vez apenas na vida, a determinado mo-
mento, o desenvolvimento do curso existencial inteiro do indivíduo haja
dado uma volta, por assim dizer, enquanto a existência normal prossegue
em linha reta — pode-se dizer — e os processos orgânicos se confundem
inextrincavelmente, suprimido qualquer desenvolvimento. Sem estabelecer
qualquer teoria, mas para dizer uma palavra que sirva de designação geral
e justifique o fato de nos ser possível abordar estes processos sob o as-
pecto psicológico, chamamo-los, em oposição aos processos orgânicos,
processos psíquicos, entendendo o conceito marginal, não genericamente.
Em lugar de “processo psíquico”, também se poderá dizer “evento biológico
total”, se biológico não se empregar no sentido de cognoscibilidade deter-
minada. As palavras exprimem o enigma, sem explicá-lo, porém.
Não é possível dar descrição geral destes casos, tal qual se descrevem,
doutra parte, os quadros clínicos. Mais não se pode do- que reunir casos
semelhantes e formar tipos. Na maioria das vezes, encontram-se alteração
notável da personalidade e alteração da vida psíquica, correspondendo em
inúmeros casos — mas não em todos, absolutamente — ao tipo da esqui-
zofrenia bleuleriana. Há casos- em que, no trato do indivíduo, nada se
nota, mesmo à investigação correta. Entretanto, do fato de o indivíduo
aderir a um conteúdo- delirante sem aplicar-lhe traço crítico algum; da
maneira por que esse delírio desempenha papel, do modo por que o paci-
ente se comporta em relação a uma fase aguda anterior — tem-se de con-
cluir pela alteração geral da personalidade e da vida psíquica (é o que
acontece, por exemplo, nos casos supracitados de delírio zelotípico).
Ao passo que, nos processos cerebrais orgânicos, a incurabilidade não
é, em primeiro lugar, geral, nem representa, em segundo lugar, distinção
básica relativamente às doenças curáveis, podemos postular, em princípio
e com mais razão, para os processos psíquicos uma alteração permanente
— que talvez seja tão necessária e fundada, analogamente, no processo
quanto é certo, por exemplo, que o ancião não pode voltar a ser jovem, em
seu desenvolvimento- vital. Aquilo que se haja desenvolvido, quer na su-
cessão existencial natural, quer na proliferação e no desvio anormais, já
não pode retroceder; a esta altura, contudo, perdemo-nos em áreas da psi-
quiatria inteiramente virgens e inexploradas.

§ 3. O Bios Como História Da Vida

O homem tem sempre um passado atrás de si. O que aconteceu ao


corpo, toda doença — deixa vestígios. O que aconteceu à psique, isto é, o
que se tomou consciente, o que se fez e o que se pensou baseia, como re-
cordação, o que se segue. A cada momento, somos o resultado de nossa
história até então vivida. E certo é que o homem a instante algum deixa de
ter pré-história; jamais, é começo no todo; nem objetivamente para a con-
sideração biológica, que lhe aprofunda a pré-história até as conexões ge-
néticas, nem subjetivamente para sua consciência; a partir dó primeiro
ato- de sua consciência de si existe, para ele um antes, tal qual sabemos
de um antes quanto despertamos do sono. O que foi atua no- homem, so-
maticamente e pela memória; o homem é levado e acorrentado por seu
passado; mesmo pelo passado esquecido. No que ele se transforma, é esse
passado que determina, mas também a maneira por que ele o elabora,
visto que o homem é, a cada momento, tanto resultado quanto início e ori-
gem de sua história. Levado por seu passado, apreende possibilidades de
seu futuro. O bios como permanência é, certamente, sempre passado que
se transformou em imagem. O bios como realidade é igualmente futuro
que ainda há de reiluminar, reapropriar, reinterpretar tudo quanto é pas-
sado.

a) As categorias básicas da história existencial.


A compreensão histórica do indivíduo vê, em primeiro lugar, no seu de-
senvolvimento, elementos que se diversificam pelo significado (o desenvol-
vimento no todo é, além do processo biológico, a história existencial psí-
quica, é movimento autorrefletido, tem fundamento existencial); em se-
gundo lugar, esta compreensão utiliza urna série de categorias especiais
(como “primeira vivencia”, adaptação, crise etc.).
1. Os elementos do desenvolvimento no todo. Distinguimos, em primeiro
lugar, o processo vital biológico-, em segundo lugar, a história existencial
psíquica, que ainda não se pode, ela própria, ver; em terceiro, a consciên-
cia autorrefletida, com a qual a história existencial se ilumina, pela qual se
move e, criativa, produz; em quarto, o fundamento existencial da decisão e
aceitação do que é dado para a apropriação penetrante. O primeiro foi ob-
jeto do parágrafo anterior; o segundo é a história existencial, tal qual pode
entendê-la o observador; o terceiro é a maneira pela qual ela se compre-
ende a si mesma, na qual se realiza e desenvolve; o quarto só se pode to-
car marginalmente pela compreensão psicológica, não se pode conhecer,
nem fundamentar, nem postular com boas intenções, nem fazer, nem efe-
tivar; só filosoficamente é que se pode recordar a existência possível e para
ela apelar mediante o esclarecimento. Os quatro elementos estão, na reali-
dade, indissoluvelmente ligados em um só, em solidariedade recíproca, na
qual se excitam modos de ser com significados diversos, mas de tal forma
que só na esfera média preenchem um espaço compreensível; e este con-
fina com o incompreensível, entre a biologia e a existência; mas também
de modo tal que a existência ainda se mostra no biológico e o biológico
ainda fundamenta a existência. Sempre tendemos a compreender e a ex-
plicar por forma demasiadamente simples >e objetivamente o que o ho-
mem é, faz e sabe. Devemos precaver-nos deste pendor errado, pensando,
sim, no enigma básico; principalmente, na transformação do vital no exis-
tencial; isto é, de que maneira a originalidade existencial faz da vitalidade
coisa inteiramente diversa; ou devemos pensar na transformação das cri-
ses em metamorfoses internas; ou no desenvolvimento da produtividade
mental a partir da autorreflexão; ou ainda na consciência histórica da
existência, da qual resulta, pela memória, o futuro.
2. Categorias desenvolvimentais particulares. As estruturas do curso
existencial, encaradas separadamente, permitem esclarecer seu signifi-
cado mediante todos os quatro elementos que acabamos de nomear. Como
tais estruturas, reaparecem com conexões que discutimos sob o aspecto
de compreensibilidade e de causalidade. Destacamos, a esta altura, breve-
mente, algumas categorias que podem ter validez especificamente biográ-
fica.
aa) A consciência como meio de aquisição de novos automatismos. A
consciência é sempre estreita; só pode apreender pouca coisa, á cada mo-
mento que a atenção se irradia. Todavia, aquilo que acontece consciente-
mente pode passar para o inconsciente, pela repetição e pela prática, en-
tão acontecendo automaticamente, a estímulos correspondentes, sem
novo trabalho consciente. O que experimentamos, quando aprendemos a
andar, quando andamos de bicicleta, quando escrevemos a máquina,
acontece analogamente nos eventos psíquicos. A segurança da base in-
consciente, resultante da orientação interna, da confiança e da execução
cotidiana, é que nos suporta a vida presente. Pelo que ora sou, sou res-
ponsável. através de atos inúmeros de minha consciência, no curso de mi-
nha vida; responsável no sentido de que atos livres, em certo momento,
são causa de meu ser-assim atual.
A consciência é, a todo instante, por assim dizer, a fachada de nossa
vida, na qual nos expandimos; ela própria, no entanto, mais não é do que
confim estreito no reino do inconsciente. O que está sempre ocorrendo
nesse confim é simples e é trabalho realizado no que se apreende com
simplicidade. O que daí resulta no inconsciente, estruturando-o com o
correr do tempo, é infinitamente complicado; é o reino de nosso existir e de
nosso poder, que guarda aquilo que se adquiriu na fachada da consciência
e aumenta o que nela, a partir daí, se torna possível. Nessa medida, a
consciência é tanto função do começo permanente, no qual se conquista a
novidade, quanto o espelho do que sempre se está alcançando, o degrau e
o fundamento para o progresso. O curso vital é transição que vai do in-
consciente para novo inconsciente. O confim esclarecedor da consciência
transforma-se, por esta forma, em suas possibilidades. Crescem a possibi-
lidade esclarecedora do momento presente, a amplitude da experiência, a
profundeza do que é vivenciável.
bb) Formação do mundo e criação da obra. Assim que desperta, o ho-
mem não quer viver, simplesmente, daí por diante, mas existir para al-
guma coisa. Quer experimentar um sentido, ou um significado de sua
vida. Daí por que o mundo não lhe é, apenas, perimundo que deva aturar,
e sim tarefa a configurar; daí por que produz, no que lhe é dado, seu
mundo, e mais aquilo que, mesmo sem ele, há de existir para outros. Sua
vida ultrapassa sua existência biológica. O homem cria obras, que conti-
nuam a atuar. O trabalho cotidiano — servir à tarefa do dia — e esta no
contexto profissional, isto é, da continuidade rendimental, realizam-se na
ação, guiados por ideias espirituais; daí se originando a realização da. es-
sência humana. Na tarefa e na determinação, ele sabe-se, ao mesmo
tempo, ativamente criador e submisso ao serviço. Ele próprio determina o
caminho em que se sabe determinado. O comportamento básico do ho-
mem, sua determinação existencial dependem do êxito dessa integração
de sua atividade na coerência das coisas. O homem preenche-se quando
vem a encontrar-se num mundo que ele mesmo cria. A unidade e totali-
dade de seu bios prende-se à unidade e totalidade desse mundo.
O curso da vida estrutura-se pela edificação do rendimento, do mundo
e da obra humanos. O bios do homem determina-se, da maneira mais pro-
funda, pelas possibilidades de sua ação construtiva no mundo em que
cresce. A amplitude de seus horizontes, a solidez de seu solo, os abalos do
todo provêm do mundo do homem, mundo em que nasceu; é daí que re-
sultam a medida em que ele se torna consciente e o conteúdo de sua expe-
riência existencial. As idades têm nesse processo seu significado caracte-
rístico. A infância estabelece o fundamento: o que nela se perdeu e falhou
jamais se pode recuperar; o que nela se destruiu no todo dificilmente se
cura; o que se adquiriu em conteúdos não se pode perder. O que suporta
a velhice é a veracidade da longa experiência existencial; se esta se reali-
zou com seriedade, a velhice pode ganhar, consciente que esteja, nas
transformações do mundo, uma estabilidade e, ao mesmo tempo, uma
profundidade de sofrimento que são, ambas, estranhas à infância.
cc) Irrupções e adaptação. Chama-se adaptatividade a apropriação de
formas vitais para determinado perimundo estável; adaptabilidade que se
pode processar com danos vitais, tal como ocorre nas formas degenerati-
vas, por exemplo, dos insetos ápteros, que sobrevivem em ilhas tempestu-
osas melhor do que os alados. Essa adaptatividade repousa na seleção; os
processos adaptativos dão-se biologicamente através de muitas gerações.
A capacidade humana de adaptação ao perimundo físico tem limites bioló-
gicos, tal qual a de toda vida; as raças que vivem nos diversos climas
adaptam-se de modo diverso. Mas a capacidade, adaptativa do homem é
quase ilimitada, do ponto de vista psíquico-espiritual, pois lhe é possível
superar a estreiteza biológica mediante o planejamento e a organização.
Não é estável o mundo do homem. Mudam situações e ocasiões; a situ-
ação sociológica varia e pode tornar-se catastrófica, em qualquer vida, por
efeito de irrupções, mediante as quais os acontecimentos e as tarefas alte-
ram a- situação. Se quiser conservar sua existência, se quiser preenchê-la,
o homem particular tem de adaptar-se. A capacidade adaptativa varia
muito conforme o indivíduo: desde o ajustamento às circunstâncias, man-
tendo-se uma igualdade essencial interna que se apresenta indestrutivel-
mente constante, até a transformação do próprio caráter. Algumas nature-
zas, semelhantemente a rochedos inabaláveis, dão a impressão de have-
rem superado todas as tormentas; outras, pelo contrário, inteiramente
desprovidas de firmeza, parecem mais nada ser do que eco do ambiente
eventual e das situações. São raras as condições em que a vida pode reali-
zar-se constante em certas áreas vitais, profissões, mundos laborativos; é
mais frequente a necessidade de transformação. O que conforma o bios é
a maneira por que o homem se adapta a um mundo absolutamente lábil;
ou é sua passagem por uma série de perimundos alternantes. A mesma
disposição hereditária pode manifestar-se em personalidades inteiramente
diversas, dependendo do mundo, da tradição, das vivências, acontecimen-
tos e tarefas. Tem-se observado a transformação caracterial pelo efeito de
alteração radical da situação vital; é comum mudar a letra, como expres-
são do caráter, quando se atinge a autonomia profissional.
dd) Primeira vivência. A historicidade da vida significa a irrevocabili-
dade daquilo que, uma vez, se vivenciou, se fez, se experimentou. O que
aconteceu não pode reverter. É pelas trilhas que se percorreram que a vida
se faz real; e, especialmente, pela repetição, quer seja mero costume, quer
seja acentuação do sentido na mesma coisa, mediante apropriação, apro-
fundamento e fidelidade no que se repete. Historicamente, tudo tem uma
primeira vez. A primeira vivência não se pode repetir com seu caráter origi-
nal; é única sua luminosidade reveladora; é específica sua seriedade; a
tudo quanto, é primeiro, uma possibilidade desaparece, porque, a partir
daí, existe uma realidade que exclui outras possibilidades. Diz-se, é certo:
Uma vez não é costume, acentuando, com razão, o significado específico
que tem a segunda vez, repetição e definitividade propriamente que é. Mas
a frase “Uma vez não é costume”, literalmente, é errada, porque todas as
primeiras vivências têm significado decisivo. “Uma vivência que pela pri-
meira vez dá a experiência de certo afeto cria, por assim dizer, a respectiva
capacidade afetiva para toda a vida” (Bleuler). Essa sequência automática
constitui o alicerce do significado existencial, que se desenvolve mediante
a seleção do que se vivencia e mediante a aceitação.
Como tal, a primeira vivência não se há de compreender isoladamente,
mas no contexto biográfico. Seu pós-efeito depende mais de seu signifi-
cado que da intensidade momentânea dos afetos. O que lhe determina as
consequências vêm a ser também o tipo de experiências que o homem
haja tido, a fase evolutiva e o período maturativo em que ela (a primeira vi-
vência) se dá finalmente, sua incidência em fases endógenas anormais ou
na ocorrência de alterações da consciência. São só as primeiras vivências
existencialmente decisivas que alteram, ao mesmo tempo que o homem,
seu mundo. Toda a modalidade vivencial muda, o passado ilumina-se sob
novo aspecto, o futuro mergulha em atmosfera diferente. Chamam-se
traumatismos psíquicos as vivências profundas que vêm puramente de
fora e que se assemelham, em seus efeitos, a corpos estranhos na psique.
ee) Crise. No curso do desenvolvimento, chama-se crise o momento em
que o todo sofre mudança da qual o homem emerge transformado; ou com
decisão recém-originada, ou decaído. A biografia não segue sua marcha
temporal regular, mas estrutura qualitativamente seu tempo e leva o de-
senvolvimento vivencial ao extremo em que é preciso decidir. Só lutando
contra o desenvolvimento c que o homem pode tentar, vãmente, deter-se
no extremo da decisão sem decidir, porque, nesse caso, a progressão fa-
tual da existência dele decidirá. A crise tem seu tempo. Não se pode ante-
cipá-la, nem esquivá-la; como tudo na vida, tem de amadurecer. Não pre-
cisa aparecer como catástrofe aguda, mas pode realizar-se em curso tran-
quilo, externamente inaparente, decisiva em definitivo.
ff) O desenvolvimento mental. A conformação pelo desenvolvimento é
evento mental no qual o homem elabora o que tem experimentado e o que
tem feito. Cada um de seus presentes baseia-se num passado, cujo efeito
configura, inconsciente ou tal qual recordação orientadora, a vida ulterior.
Cada presente resulta de sedimentações numerosas, quer estas consti-
tuam lastro paralisante, quer conduzam a ascensão ulterior, ou se tornem
molas do impulso ascensional. A conformação interna também é ordena-
mento permanente de realidades que já foram, de início, desinibidas; e é
ganho de uma constituição interna pelo configuramento hierárquico de
impulsos vitais, recordações, conhecimentos e símbolos.
Forma básica de desenvolvimento mental é o movimento polar, que,
pelos contrastes, leva à síntese ou à opção; enfim, o desenvolvimento dia-
lético. O desenvolvimento dialético exalta a essência do homem: suas reali-
zações infinitas, na medida em que a elas adere, limitam-no, mas, em con-
trário a esses becos de irreversível fixação, parte o caminho que leva à li-
berdade das realizações amplas, graças à parada entre os contrastes, que
o homem suporta inteiramente, mas em si unifica, em sua tensão.
Mentalmente, podem-se abranger todos os contrastes; sob o aspecto
existencial, porém, é decisivo o ponto em que o homem tem consciência
desses contrastes, que não pode encerrar, mas entre os quais, sim, opta; o
ponto em que a delimitação não restringe, mas aprofunda a historicidade
da existência; em que a perda de possibilidades vem a ser condição para
ascender à realidade propriamente dita.

b) Alguns problemas especiais.


Dentre os inúmeros problemas biográficos selecionamos uns tantos.
1. Importância das épocas de lactância e primeira infância. Os psicana-
listas têm investigado a “pré-história” do homem, ou seja, sua vida antes
da recordação consciente, como época que fundamenta e determina toda a
vida ulterior.
Não têm objeto e, pois, são fantásticas aquelas ideias que dizem res-
peito à época embrionária. Não conhecemos nem sinais objetivos de vida
psíquica do embrião, nem recordação respectiva. O nascimento, como ca-
tástrofe corpórea, na qual a criança recém-nascida recebe a vida, repenti-
namente, pela respiração, na qual tem de modificar sua circulação e atu-
rar os efeitos dolorosos do novo perimundo, deve ser vivência psíquica
igualmente incisiva, a qual se exprime no grito com que se assinala a en-
trada no mundo. Sob o ponto de vista somático, muita coisa acontece
nessa catástrofe; lesões do parto podem dar origem a defeitos permanen-
tes. Mas ninguém sabe de vivência em que se fundem a determinação
existencial e a atitude para com o mundo; ninguém recorda coisa alguma
desta natureza.
O mesmo não se dá quanto à época de lactância, à qual recordação al-
guma chega; deve-se observá-la; deve-se atentar para a expressão do
rosto, o comportamento, o humor dos lactentes. Não é possível sobresti-
mar a importância da atmosfera de amor humano. As crianças que vivem
mesmo em instituições muito bem dirigidas, entregues aos cuidados de
amas, já se desenvolvem, mentalmente, a partir dos quatro meses, pior
que aquelas entregues aos cuidados essencialmente mais irracionais da
própria mãe. Nota-se a expressão indizivelmente atormentada, vazia, dos
petizes criados em casas de expostos, regular e higienicamente organiza-
das. A repercussão desses primeiros meses sobre a vida ulterior inteira,
hipotética embora, é possível.
É provável que os primeiros anos de vida tenham influência inevitável
e determinante, conforme sejam as condições e evidências sociológicas em
que se desenvolvem. Crianças que são, por exemplo, propositadamente ex-
ploradas, desde cedo, mais treinadas que educadas; que crescem, priva-
das da amplitude de uma tradição rica, em horizontes estreitos, jamais po-
derão ter, a seguir, aquela recordação histórica estimulante e poderosa em
que, noutras condições, a vida se baseia. Todo o esquema inconsciente de
uma antecipação existencial da infância e da juventude só pode realizar-
se em condições relativamente seguras e livres, na seriedade de uma
grande tradição que se haja pré-vivenciado no perimundo.
Outra questão é a importância das vivências individuais mais antigas e
das modalidades comportamentais. Freud acentuou muito o efeito das im-
pressões da primeira infância (do período pré-histórico aos quatro anos).
Desvios precoces levariam ao abandono, -ao malogro, à impossibilitação
do curso vital normal. Até que ponto isso é correto, até que ponto se po-
dem, aqui, atribuir disposições psíquicas a aquisições nos primeiros tem-
pos de vida, em vez que atribuí-las a uma disposição inalterável e à he-
rança — não se explica, em absoluto. Este problema — suscitado por
Freud — das reminiscências infantis, se bem que abra perspectivas, tem
sido, até o momento, resolvido quase sem crítica e de maneira pouco con-
vincente, em quase todos os casos individuais. A importância ou a signifi-
cação de vivências pretéritas, principalmente da infância, de um modo ou
outro acessíveis à memória, pode a personalidade sobre-estimá-la com in-
tensidade, retrospectivamente. Conflitos e dificuldades atuais reativarão
vivências há muito esquecidas e, anteriormente, insignificantes; carrega-
das de valores afetivos intensos, revivenciar-se-ão como símbolos sugesti-
vos para as dificuldades atuais; a consciência de a dificuldade atual ser
determinada, irremissivelmente, pelo passado talvez traga até alívio. A es-
cola de Freud chama essa “reocupação” de Vivências há muito esquecidas
com afetos e sua sobrevaloração errônea como fatores causais “regressão”
(em consequência da ideia metafórica do refluxo da energia mental para
conteúdos anteriores da vida psíquica). Jung esclareceu a gênese da so-
brevaloração teórica dos traumatismos psíquicos passados por parte de
médicos e pacientes.
2. Relação biográfica da psique com as fases etárias. O animal realiza
inconscientemente as fases biológicas etárias; o homem sabe sua idade e
comporta-se de acordo com ela, isso fazendo de maneira muito diversa.
Certa valoração típica prefere a mocidade como se fosse a vida propria-
mente dita e menospreza a velhice como decadência; nem sempre, porém,
foi assim, em absoluto. Para os romanos, o pleno amadurecimento, valia e
dignidade humanos começavam aos 40 anos; na indústria moderna, en-
tretanto, é frequente considerar inferior quem já tem mais de 40 anos. In-
fluenciam a valoração os movimentos em voga, tais como “a revolução da
juventude”, o “século da criança”. A concepção que vigora, em média, tem-
se exprimido na frase: Todos querem chegar a ser velhos, mas ninguém
quer ser velho. É o contrário que diz a sentença: Cada idade tem seu valor
próprio, valor que só a ela corresponde. O homem tem uma consciência de
sua idade, daquilo que nela cabe e nela não cabe (infeliz ou enfermo,
quando lhe esbarra de encontro). A quem não realiza o significado peculiar
de sua idade mais não resta senão perceber os padecimentos respectivos.
Há- diferença radical entre o homem apenas sofrer, desejar, experimentar
e apropriar o que lhe é dado, realizá-lo e conformá-lo. Não há acesso, psi-
cologicamente falando, à origem desta última decisão na existência, se
bem que compreendamos os fenômenos dela resultantes.
Envelhecendo, o homem cai na disposição básica segundo a qual já
não pode haver novidade essencial para a vida. Preenchido de sua reali-
dade adquirida, que lhe representa o. paradigma de todo existir humano,
tem de contentar-se com ela. Se não se esclarece o caminho que leva à re-
alização, surgem, por exemplo, a inquietação, que busca ainda outra coisa
diversa, a coisa verdadeira; ou a recusa da velhice, ou a desilusão, que,
simplesmente, com coisa alguma se satisfaz, porque nada espera; que vê
em toda parte insucesso, falência, culpa; que se irrita, se amargura, se en-
furece contra o mundo e os homens. Crescem, para quem envelhece, o
medo da morte, o medo de perder a eficiência, o menosprezo que daí se há
de esperar, a inveja dos que triunfam, a cobiça sexual, a hipocondria etc.
No entanto, o que mede a realidade' alcançada é a extensão da atuali-
dade que recorda a existência inteira; o que leva o homem ao mais alto ní-
vel é a profundidade com que recorda. Dissipa-se, ao contrário, a vida na
pobreza mnêmica, na estreiteza do horizonte existencial, limitado a sema-
nas e meses, apenas, sem passado, nem presente. Desde que a realização,
porém, ocorra, as crises da idade originam a exaltação humana. A alma
cresce ao longo do curso biológico.1 A mulher “torna-se, com os anos,
mais bela”, graças à sua expressão espiritual, enquanto some o encanto
juvenil; a qual subsiste vital, entretanto, em pleno fulgor. O ser humano
torna-se '“sábio”, “prudente”; é na idade mais avançada que o homem con-
quista a perfeição nova e derradeira.
A história existencial, com o decorrer das fases etárias, é única, em to-
dos os casos; não se pode conduzir segundo planos ou programas, mas se
há de adquirir a partir da existência possível. Não há psicologia, nem sa-
ber, nem visão que possa abranger este fundamento. O insucesso, todavia,
mostra-se em fenômenos psicológicos inúmeros, aparecendo os quais sob
o aspecto de distúrbios, se chamam neuroses.
3. A vivência do desenvolvimento. Elemento básico da vivência biográ-
fica está em o homem correr o risco de nela entrar, ou em a ela opor-se.
Tudo quanto vive, e também o ente humano, tem de progredir constante-
mente, até mesmo pela necessidade biológica das fases etárias; processo
este no qual, entretanto, o desenvolvimento intelectual da psique é que é o
humano, podendo-se formular, em geral, de várias maneiras:
aa) O homem tem de entrar nos contrastes, tem de comer da árvore do
conhecimento, de distinguir o bem e o mal, o verdadeiro e o falso; tem de
perder sua inocência. No que o obriga, biologicamente, a' crescer, a ama-
durecer, a tornar-se ente sexual, ai est£ a via que o leva a esses espaços
intelectuais.
bb) Pelo desenvolvimento se chega da possibilidade infinita da moci-
dade à realização finita, restritiva, que exclui possibilidades. A vida tem de
decidir-se, a não ser que paire no nada de possibilidades infinitas, fa-
lhando realmente, pois.
cc) Realiza-se no desenvolvimento uma resolução do que é apenas in-
consciente; desse fundamento amplo e dominador do próprio existir; e isso
se dá pelo esclarecimento, pela elaboração e- superação, pela rejeição e vi-
olência.
O ente humano enfrenta por forma muito diversa esse desenvolvi-
mento, que resulta, era terreno biológico e por intermédio da mente, das
decisões existenciais. A grande conclusão realizativa. pode afigurar-se se-
rena quietude em que urna vida se desdobra e amplia, ou apossamento
que, súbito, se instala na crise — trazendo, inteira, a insatisfação, que
aguilhoa para o progresso, alguma coisa que é sossego e contentamento
profundos, mas também a. dor de possibilidades perdidas. A vivência da
pura vitalidade acarreta o impulso do êxito progressivo, sob o aspecto ren-
dimental, erótico, social, oratório, criativo; a vitalidade acarreta também,
no. entanto, a vivência do retrocesso vital, dos prejuízos, da falência, a não
ser que se instale uma metamorfose da essência; ou que se- possibilite, a
partir de motivos existenciais, nova criação que não se baseie em funda-
mento meramente vital.
Contra todo esse desenvolvimento alguma coisa no homem luta, que, a
tornar-se predominante, dá origem a efeitos vitais ominosos. Luta o ente
humano para não ser adulto, para não envelhecer, para não ser velho,
porque o a que aspira é persistir, parar, demorar-se; é a eternidade que re-
presenta a duração do nunc stans. Não querendo perder as possibilidades
infinitas, luta contra a realização que restringe. Não quer arriscar os con-
trastes, mas conservar" a unida« e tranquila, inquestionável; não quer per-
der o inconsciente protetor e, pois, não quer esclarecer-se. Porque, no en-
tanto, o desenvolvimento sé realiza sempre, na realidade, surge a resistên-
cia, o anseio de retorno à infância, em sentimentos, gestos, conteúdos (re-
gressão, retour à 1’enfance) — retorno ao inconsciente perdido. Quer-se
deixar a individualização, largar tarefas e rendimentos, decisão e conclu-
são; quer-se ser tal qual as plantas e os animais; ou mesmo tal qual a
existência anorgânica; quer-se a entrega, o desaparecimento, de qualquer
maneira, na subordinação e na obediência.

c) A questão psicopatológica fundamental: desenvolvimento de uma per-


sonalidade ou processo?
A investigação do evento biológico básico e do desenvolvimento biográ-
fico compreensível culmina em urna distinção a fazer-se nos tipos de bios:
ou seja, entre o desenvolvimento unitário de uma personalidade (com base
em curso biológico normal das idades e das fases eventuais) e o caráter
não-unitário de uma vida, que se rompe em duas seções pelo fato de, a
certo tempo, haver intervindo um processo no evento biológico; processo
que altera, com a interrupção do curso biológico existencial, a vida psí-
quica, por forma irreversível, incurável.
São critérios biográficos de processo: o aparecimento da novidade em
espaço de tempo curto, temporalmente localizável, a concomitância de sin-
tomas conhecidos variados a esse tempo, a ausência de causa desencade-
adora ou de vivência suficientemente baseada. Falamos, ao contrário, em
desenvolvimento de uma personalidade, desde que possamos compreen-
der, no conjunto das categorias biográficas, o que veio a acontecer, pres-
supondo a normalidade biológica do evento básico. O que é decisivo para a
compreensão são vivências, causas, acontecimentos suficientes; e mais: a
ausência de complexos sintomáticos temporalmente localizáveis, conheci-
dos, de um processo.
O todo — que chamamos desenvolvimento de uma personalidade, em
oposição a processo — origina-se, apenas, naquela disposição específica
que realiza seu curso existencial, sem fases endógenas notáveis e sem des-
vios incompreensíveis dos quais resultem novidades, através da série de
períodos etários. Vamos representar, mais uma vez, os seguintes elemen-
tos:
1) A disposição cresce, evolui, altera-se pelas épocas cronológicas, em
sucessão contínua. As trilhas em que flui a existência humana são certas
necessidades encravadas no organismo total, insuscetíveis de subordina-
ção a umas tantas formas determinadas e delimitáveis, como são os pro-
cessos mórbidos; mas sim alternantes numa quantidade de variações.
2) Esta disposição está, a cada momento, em interação com o meio, as-
sumindo configuração especial, pelo seu destino, de um modo- que pode-
mos compreender, se tivermos conhecimento exato das particularidades.
3) Em particular, a disposição reage a vivências. em correspondência à
sua natureza específica permanente; e elabora-as da forma que lhe é pe-
culiar. É por esta via que compreendemos as concepções formadas, as opi-
niões, as modalidades afetivas; por exemplo, a amargura, o orgulho, o
querulantismo, o ciúme.
Ao produto destes fatores dá-se o nome de “desenvolvimento de uma
personalidade”. — Assim é que conhecemos os desenvolvimentos paranoi-
des do querulante e do ciumento, que, noutros tempos, se confundiram
com processos a eles muito semelhantes, mas que são, por sua essência,
inteiramente diversos. Numa personalidade hipomaníaca, Reiss mostrou
como é possível compreender, pela alteração das condições ambientais e
pela perda prematura da potência sexual, a transformação de uma exis-
tência de comerciante bem sucedido em pregador ambulante frugal, psicó-
tico, isso ocorrendo com o aspecto, por assim dizer, de mera modificação
da fachada, conservado o caráter.
Há grande multiplicidade de bios: Os desenvolvimentos prematuros ou
tardios; os infantilismos negativos que se apresentam sob o aspecto de pa-
rada em etapa mental anterior do desenvolvimento, ou de falha da matu-
ração, ou de esforço contra a realização, de omissão; e os infantilismos po-
sitivos, com o aspecto de conservação do germe e da potencialidade, de
produtividade permanente, de plasticidade da psique que se mantém
aberta; as crianças-prodígio que vêm a decepcionar pela decadência; os
que se paralisam na luta pela vida, que se nivelam na adaptação, que fa-
lham à sua origem (indaga-se o que é perda vital e o que resulta da nega-
ção da conclusão existencial; em outras palavras: o que é curva existencial
endógena e o que é que a decisão historicamente livre põe em movimento);
as conversões, em que se baseia uma vida inteiramente nova; as transfor-
mações caracteriais que ocorrem quando se modificam a situação social e
as condições gerais.' Observam-se alterações catastróficas que as pessoas
sofrem por força de fatalidades radicais e que se desenvolvem, quase im-
perceptivelmente, a partir de começo diminuto, até configurar consequên-
cias totais. A personalidade de cujo desenvolvimento nos ocupamos — di-
versamente do processo — tem de ser pensada, de maneira ampla, como
sendo o todo das conexões compreensíveis, unificado com as incompreen-
sibilidades sadias, de caráter biológico geral.
Notemos, enfim, que todos estes conceitos são esquemáticos e consti-
tuem mais pressupostos momentaneamente vivos que resultados da pes-
quisa. No caso particular, é frequente encontrarmos grandes dificuldades.
Aparecem-nos, por exemplo, indivíduos, cujo curso existencial inteiro ofe-
rece o quadro de um desenvolvimento da personalidade; mas indicam, em
traços particulares, ligeiro processo, o qual dá tonalidade anormal a esse
desenvolvimento. Casos desta ordem, que não são tão raros, não permi-
tem resolver a dúvida: trata-se de mero desenvolvimento da personalidade
ou de processo também?
Na discussão destes problemas, têm-se assumido posições típicas, que
não chegam a tocar no ponto nuclear, ponto que está na diferença entre
processo e desenvolvimento da personalidade. O que têm de comum é que
estendem o significado de “desenvolvimento da personalidade” além de
seus limites e nele incluem, tanto quanto possível, muita coisa que per-
tence aos processos.
1. Tendência a ‘'compreender’’ o processo. É impossível compreender
um delírio autêntico em sua gênese. O conteúdo do delírio pode ser com-
preensível com base na disposição, no ambiente, na vivência, mas o cará-
ter delirante da vivência ainda é a novidade específica que, a certo mo-
mento da vida, se há de acrescentar. É incompreensível o mecanismo pa-
ranoico. Nem sempre é fácil estabelecer a que momento se inicia a para-
noia; presume-se, talvez, uma predisposição paranoica congênita no cará-
ter original, tendo-se sempre mostrado como hábito paranoico e prolife-
rando, afinal, com base em vivências e assumindo a direção da própria
existência. Sejam quais forem as dificuldades no caso particular, devemos
precaver-nos de estender a compreensão além do campo daquilo que é, re-
almente, compreensível. O que aqui se vê é alguma coisa do tipo de con-
vicção psiquiátrica básica; donde a paixão polêmica. No contexto de todas
as tentativas de compreensão da esquizofrenia, tende-se, aqui, a atenuar o
fato processual em sua especificidade.
2. Tendência a conceber o processo como neurose. Quando pensamos,
por exemplo, em neuroses compulsivas — e o mesmo se dá nas neuroses
sexuais — não é raro notar, biograficamente, uma progressão, na qual
certa sintomatologia, a princípio particular, se vai aos poucos apoderando
da existência inteira e acorrentando a personalidade. Um fenômeno que é
em si estranho à personalidade domina-a a ela própria. Trata-se, na reali-
dade, de evento progressivo, em cuja essência não penetramos; talvez de
doença com fundamento biológico. Entretanto, aqui não ocorre o que cha-
mamos “processo” em oposição a “desenvolvimento da personalidade”.
Para isso, a doença não teria de prosperar a partir de uma sintomatologia
particular, e sim de realizar-se no núcleo da existência. Os processos não
são neuroses. Mas — assim se pensa — as neuroses, que J. H. Schulz de-
nomina neuroses nucleares (diversas das neuroses marginais) são doen-
ças da própria personalidade, que evoluem nos conflitos desta consigo
mesma; que progridem e, compreensíveis em larga medida, ainda se apre-
sentam no todo como sendo, apenas, evento incompreensível dado na dis-
posição. Dever-se-ia interpretar o processo por analogia com estas neuro-
ses nucleares. Também a esta altura, contudo, subsiste radical distinção,
difícil de apreender em conceitos definitórios e critérios particulares, em-
bora seja imediatamente evidente à intuição do todo: a neurose é compre-
ensível em sentido fundamentalmente diverso daquele em que se compre-
ende o processo.
3. Tendência a interpretar o processo como transformação existencial. A
incompreensibilidade do processo é o limite da compreensão; não como
existência que porta e realiza a vida, e sim como evento básico, que se há
de pensar, à derradeira, em termos biológicos. O conceito filosófico de
existência é inaplicável à pesquisa psicopatológica objetiva, visto perder,
imediatamente, assim aplicado, seu significado próprio e profundo. Trans-
formação do existir humano não é transformação da existência mesma. A
transformação do Homem todo e seu mundo por força do evento biológico,
quando um curso vital se distorce, e a transformação pela decisão incon-
dicionada da existência são heterogêneas; colocam-se em planos diversos.
Não existe esta última, em absoluto, para o conhecimento psicopatológico.
A irrupção na personalidade, durante um processo, causa a loucura, mas
não leva à incondicionalidade existencial.
É comum a todas as três tendências o fato de negar-se como problema,
numa série de casos, o evento biológico básico, bem como de não reconhe-
cer-se a impressão básica do louco. O problema processual deslisa para a
esfera do compreensível, ou do neuroticamente incompreensível, ou do fi-
losoficamente existencial. Perde-se de vista o fato, em todos os casos, para
conceber o homem como compreensibilidade, como portador de neurose
ou de existência; mas se deixa desaparecer, sempre, a especificidade do
processo. O que importa à clareza do saber empírico é não alargar o con-
ceito de desenvolvimento de uma personalidade além da compreensibili-
dade, mas reconhecer a incompreensibilidade em sua heterogeneidade
múltipla e apreendê-la metodologicamente, de maneira que corresponda à
sua essência eventual. Uma destas incompreensibilidades é o processo.
De grande interesse é a visão biológica daqueles casos que, pelo menos
até hoje, não permitem apreensão alternativa clara: desenvolvimento da,
personalidade ou processo? São as paranoias raras, chamadas “verdadei-
ras”, as doenças obsessivas progressivas, as “loucuras” sem os sintomas
elementares (falsas-percepções, distúrbios do pensamento, vivências deli-
rantes primárias, fenômenos feitos, roubo-de-pensamento etc.); mas talvez
com bloqueios, negativismos (que nem sempre se podem distinguir clara-
mente dos fenômenos ¡neuróticos por efeito de complexos). Se, nesses ca-
sos, não se depara com a distorção biográfica, com o início de síndrome
conhecida, costumam contrapor-se os diagnósticos, mesmo de especialis-
tas experimentados. Onde um vê neurose ou desenvolvimento de um
anancasta, ou psicastenia, outro vê esquizofrenia. Sob o aspecto diagnós-
tico, opõem-se psicopatia e processo, personalidade notavelmente anormal
e transformação esquizofrênica de uma essência antes diversa; mas
opõem-se de tal forma que não só se constatam casos difíceis, mas se tor-
nam questionáveis, por força destes casos, os conceitos básicos; e se lhes
percebem os limites, em cada um «deles.
Betzendahl dá o quadro impressionante de uma paciente que atraiu
parentes e conhecidos para o seu mundo obsessivo e delirante, sem que
jamais tivesse havido diagnóstico com base no quadro de «estado, porque
faltavam os sintomas elementares. A afirmação de sua modalidade exis-
tencial infantil, consistindo em resistência a quaisquer novidade, aliás em
forma de pensamento religioso e rituais supersticiosos, levou, ajudada pe-
los advogados e médicos com os quais aprendeu, desde o início, à luta pe-
los seus direitos e sua saúde, luta que se fez para ela primordial. A paci-
ente subordinou a si mesma todas as pessoas, sem estas mesmas sequer
o perceberem: “O marido deixou-se ludibriar pela reflexão de seu próprio
raciocínio; advogados impressionaram-se com a apreensão erudita dos ar-
gumentos formais que eles próprios expunham; ginecologistas e internis-
tas viram pelas lentes de suas especialidades”. Foi só a visão biográfica do
psiquiatra que conseguiu formar um quadro global, sem dizer, no entanco,
de que doença, realmente, se tratava. Os leigos consideravam-na absolu-
tamente sadia; tomavam seu partido ou zangavam-se com ela. Betzendahl
diagnosticou esquizofrenia (por conseguinte, processo).
Em sua patografía de Langbehn, Burger-Prinz diagnosticou desenvolvi-
mento da personalidade, depois de havê-la descrito, anos antes como es-
quizofrenia clássica.
PARTE 5.
A PSIQUE ANORMAL NA SOCIEDADE E NA HISTÓRIA

(Sociologia e História das Psicoses e Psicopatias)

a) Herança e tradição.
A medicina somática ocupa-se com o homem sob o aspecto, apenas, de
ente natural, investigando-lhe e pesquisando-lhe o corpo tal qual se tra-
tasse de um corpo de animal. A psicopatologia depara, constantemente, o
fato de o homem ser, além disso, um ente cultural. Se o homem tem, de
um lado, suas predisposições somáticas e psíquicas por efeito da herança,
é, doutro lado, no entanto, pela tradição, apenas, que adquire sua vida
psíquica real; tradição que o atinge pelo perimundo da sociedade humana.
Seríamos inteiramente ignorantes, mudos, se crescêssemos sem tradição.
Os surdos-mudos, aos quais falta o órgão sensorial que possibilita o rece-
bimento de influências psíquicas, permanecem na etapa do psiquismo idi-
ota, enquanto não recebem ensino linguístico que se lhes ajuste; ensina-
dos, porém, tornam-se homens plenamente válidos, do ponto de vista psí-
quico. É só pelo que aprendemos, pelo que adquirimos, pelo que imitamos,
pela nossa educação e pelo nosso ambiente que, afinal vimos a ser ho-
mens, psiquicamente.
Mas não é fácil, em absoluto, determinar onde está o limite entre he-
rança e tradição. Diz-se que são só as funções e capacidades que se her-
dam; e toda realização, todo conteúdo vêm do perimundo. São extensos os
meios da tradição, que não abrange, apenas; a língua, mas sim, tudo tem,
por assim dizer, uma linguagem: as ferramentas., a casa, o tipo de traba-
lho, a paisagem, as formas sociais, os costumes, os gestos, as atitudes, as
coisas e uso antigos. Para exemplificar quanto é difícil delimitar, pense-se
no “inconsciente coletivo” de Jung: inconsciente de que se origina o
mundo dos mitos e símbolos, como se fosse alguma coisa universalmente
humana; e que aparece sempre no sonho e nas psicoses, mudando, histo-
ricamente, na consciência pública e nas crenças. Esse inconsciente cole-
tivo é fenômeno histórico ou biológico? Parece histórico, visto que porta a
especificidade humana e que seus conteúdos têm significado histórico.
Vale, contudo, a objeção impressionante de Bumke contra todas estas
ideias, a saber: não se herdam qualidades adquiridas; portanto, caem por
terra todas as afirmações no sentido da aquisição pré-histórica e histórica
de tais símbolos, que viriam a emergir, sem tradição, do inconsciente. —
Mas se o inconsciente coletivo nada mais é do que o fundamento biológico
das potencialidades humanas, que se desenvolveriam historicamente,
tem-se, então, pretendendo encontrar a universalidade humana, de igno-
rar a historicidade — o que é impossível — quando se confrontam os sím-
bolos e mitos de todos os povos. É só formalmente, não em termos de con-
teúdo, que se pode conceber uma universalidade humana não-histórica,
ou pré-histórica. Se excedermos estas lindes, formaremos ideias obscuras;
por exemplo, a afirmação de haver efeitos ecológicos e climáticos de cará-
ter psíquico, capazes de determinar, a partir de profundidades, o conteúdo
essencial dos homens que vivem no local; assim, a alma índia existiria em
todo americano. — Mas se o inconsciente coletivo é, apenas, nome com
que se designem as necessidades objetivas mentais a partir das quais tal-
vez haja surgido o fogo, se tenham fabricado ferramentas semelhantes em
diversos lugares da superfície terrestre e se hajam formado ideias perti-
nentes da mesma ordem — nesse caso, entraremos na velha discussão
dos etnólogos : o que é que, pertencente ao patrimônio cultural, repousa
em elementariedades humanas universais e o que é que repousa em mi-
grações históricas de país a país.
São duas coisas diversas, embora não se possa traçar o limite, pràtica-
mente, por forma tão clara quanto na teoria: a propagação per herança e a
propagação pela história. O que se herda propaga-se no homem, tal qual
no animal, de modo inconsciente e casualmente necessário: o que se
herda pode permanecer tranquilo, à falta de estímulos ambientais corres-
pondentes, mas torna-se visível, novamente, após inúmeras gerações,
desde que o perimundo o ponha em funcionamento; no contexto hereditá-
rio, não há “esquecimento”. Pelo contrário, aquilo que tem base histórica
precisa da tradição, da apropriação continuada, mediante a consciência
que redesperta; somos aquilo em que, como homem, nos tornamos com
base no fundamento histórico real; fundamento que foi colocado, de uma
vez por todas, que é este e nenhum outro; que não é universalidade hu-
mana; essa historicidade, porém, 4 suscetível de perder-se; esquece-se,
quando a tradição perece e também quando as gerações ulteriores já não
dispõem de pontos de referência em restos, documentos, obras. As fun-
ções podem dormir pela falta de uso e, talvez, reviver na psicose e no so-
nho. 0& conteúdos históricos, entretanto, podem ser esquecidos, só se tor-
nando adquiríveis mediante nova conexão com uma tradição fatual. Há,
decerto, a cada momento, possibilidades existenciais humanas que res-
suscitam; mas a forma por que podem despertar, difere, radicalmente, no
que diz respeito à herança e à tradição. Para o que a esta pertence, ocorre,
sem dúvida, esquecimento absoluto, perda irreversível, no contexto histó-
rico.

b) Comunidade.
A tradição, tal qual a vida inteira, do homem, realiza-se em comuni-
dade. O indivíduo encontra sua realização, sua atitude e significado, sua
tarefa, por intermédio da comunidade em que vive. Suas tensões com a
comunidade são uma das origens pelas quais se podem compreender os
distúrbios psíquicos. A cada momento, o homem sente a presença atuante
de sua comunidade. Se esta se faz consciente, racionalizada, organizada e
conformada, fala-se em sociedade.
A vida psíquica humana, na medida em que a comunidade e a socie-
dade a condicionam, na medida também em que cria, na interação social',
formações especiais, constitui objeto da psicologia social, a qual descreve
ou as etapas evolutivas da vida psíquica humana, desde o estado natural
até a cultura 1; ou vai adiante, construindo tipos, ideais, mediante a apre-
sentação, em cada sociedade de relações recorrentes que são necessárias
à nossa compreensão genética (dominação e subordinação, diferenciação
social etc.); ou ainda dá quadros concretos de certos povos. — Só se trata
de psicologia social quando se discutem vivências de indivíduos particula-
res, que exercem ou experimentam efeitos no contata de outros homens. A
investigação científica verdadeira não conseguiu estabelecer, conforme é
de desejar, a separação nítida entre esta consideração psicológica e a soci-
ologia, a qual busca formações certamente surgidas na sociedade, mas
não constituindo conteúdo vivencial de seus membros. A sociologia e a
psicologia colocam-se no mesmo plano, confundindo-se uma com a outra,
pràticamente.

c) A ampliação da psicopatologia desde anamnese social até a elaboração


de material histórico.
O meio social em que vive o homem difere extraordinariamente; que se
admita a mesma predisposição, a vida psíquica em desenvolvimento varia
conforme a diversidade mesológica. Assim também hão de variar, de
acordo com a sociedade e o ambiente cultural em que aparecem, a mani-
festação da predisposição humana anormal e a modalidade fenomênica
das psicoses. Daí por que o psiquiatra precisará sempre, diversamente do
somatiatra, fazer anamnese social fundamental de seus pacientes. Só
quando souber de onde vem o doente, que azares o atingiram, em que si-
tuação se acha, que influências sofreu, é que poderá compreender o caso
especial, o qual, tendo em vista sua predisposição, talvez seja idêntico a
outro em absoluto diverso, aparentemente. Se quiser apreender a base
destas conexões, no caso particular, o psiquiatra necessitará de conheci-
mentos concernentes às várias condições ambientais de que seus pacien-
tes provêm; necessitará penetrar em todas as camadas e meios sequer
possíveis para a vida humana. Faltando-lhe visão adequada, ajudá-lo-ão
as autobiografias que frequentemente se publicam, sobretudo nos meios.
operários. Atualmente, estes meios, quantitativamente predominantes,
ocupam o primeiro plano do interesse. Ê evidente, no entanto, que outros
grupos reclamarão, do mesmo modo, o interesse do psiquiatra, conforme o
tipo de seus pacientes.
Desse conhecimento precisa sempre o psiquiatra, se quiser compreen-
der os pacientes que encontra na clínica. Mas a psicopatologia cada vez
mais se interessa pelos fenômenos psíquicos anormais que raramente ou
mesmo nunca se podem estudar nos. hospitais. Ampliando seu funda-
mento experimental, procura informar-se dos fenômenos psíquicos anor-
mais que ocorrem fora do hospital, na vida pública e nos diversos meios
sociais humanos, que a história humana lhe apresenta. Nisso reside a am-
pliação recente da área experimental da psicopatologia. Há um século,
preocupava-se ela, quase exclusivamente, com os loucos em sentido mais
estrito e com os dementes. No- momento, lotam-se os frenocômios não só
com estes, mas com doentes afetivos, psicopatas, anormais. Já não existe
fronteira entre a psicopatologia de personalidades anormais e a caractero-
logia. Nem a ciência psicopatológica se restringe mais, todavia, ao material
experimental das clínicas, e sim, busca experiências, que não pode fazer
dentro dos muros hospitalares, no material fornecido pelo passado e nas
manifestações psíquicas que o presente oferece fora dos nosocômios. De
mãos dadas com a psicologia, o que ela quer é alargar seus, conhecimen-
tos além de todo o campo das realidades psíquicas, variáveis de indivíduo
para indivíduo.
Dentre os fenômenos sociais atuais, a psicopatologia tem-se interes-
sado, sobretudo, com o estudo dos criminosos, meretrizes, vagabundos e
adolescentes desamparados.
Raramente é que se tem estudado o material histórico. Considerando-
a significação teórica da tarefa e por causa dos conflitos surgidos entre
historiadores e psiquiatras, tentaremos esclarecer a situação: Toda. pes-
quisa psicológica e psicopatológica tende a cindir-se em dois rumos diver-
sos. Após a confusão obscura inicial entre a investigação. compreensiva e
a causai, muitos foram os pesquisadores. — psiquiatras, sobretudo — que
pugnaram pelas explorações exclusivamente causais (biológicas), conside-
rando-as, a elas só, válidas. Para eles, o que vale são, apenas, os proces-
sos cerebrais, a constituição, a fisiologia; mais, ainda: os experimentos pu-
ramente fisiológicos (que excluem ao máximo- possível a vida psíquica) da
psicologia objetiva, bem como a terminologia que apreende em categorias
biológicas os fenômenos mentais. Outros pesquisadores — principalmente
humanistas — viram com desprezo essa psicologia sem alma, “materia-
lista”, voltando-se, de modo exclusivo, para a compreensão das vivências
reais em sua plenitude. Apesar de todos os malentendidos recíprocos, a
batalha, conduziu ao esclarecimento da diversidade (que já se apresentava
teoricamente) das tarefas. Veio o momento em que, não obstante qualquer
discriminação pura de princípios e métodos, se fez possível unificar a pro-
moção de ambas as ciências, ou de ambos os rumos investigativos (tal
qual ocorre na psicopatologia). A investigação compreensiva sempre en-
contra limitação e complementação em achados causais, ao passo que a
investigação causal pode estender-se a áreas em que unidades significati-
vas (só então) lhes podem dar, afinal, os elementos, da inquirição causal
(por exemplo, quando se investiga a conexão entre certos tipos de persona-
lidade, certas psicoses e certos tipos mentais de criação). Limitada a um
dos dois rumos, toda psicopatologia corre o risco de transformar-se ou em
fantasia irreal, ou em fisiologia sem alma.
A psicopatologia compreensiva origina-se, empiricamente, em primeira
linha, no contato pessoal com gente viva. A clínica lhe é fundamento in-
comparável, em confronto com o qual são pobres todos os fundamentos da
psicologia normal. Mas na há psicologia compreensiva, nem psicopatolo-
gia, que se detenha nessa experiência pessoal. É específico a toda psicolo-
gia compreensiva o fato de ela voltar-se para o material da história hu-
mana, a fim de ganhar a visão da existência humana verdadeira, em toda
sua amplitude. Não obstante a dificuldade de lidar competentemente com
material histórico e encontrar, enfim, o material adequado, alguns psico-
patologistas tentaram seguir esse rumo com insucesso evidente. Aqui
existe, no entanto, tarefa de importância infinita. Conquanto a psicopato-
logia ainda não tenha obtido, de. um modo ou doutro, com base em mate-
rial histórico, qualquer conhecimento positivo essencial, não deixa de ser
saudável, em todo caso, para as concepções, globais do psiquiatra, a cons-
ciência dos problemas e dos limites de nossa compreensão. Quando nos
impressionamos diante de antigos mitos e os defrontamos, tal qual defron-
tamos processos psicopáticos ou anormalidades caracteriais, com a con-
vicção de haver, aqui, alguma coisa vivencialmente compreensível e, entre-
tanto, infinitamente remota, temos, pelo menos, a possibilidade de con-
templar com mais profundidade, e, talvez, formar representação viva; fica-
mos, então, precavidos de classificações compreensivas errôneas e simples
no que toca aos nossos pacientes; e precavidos dos rótulos vazios que uma
compreensão mal orientada possa dar ao estado psíquico de épocas intei-
ras.

d) Significado do conhecimento histórico-sociológico.


A investigação dos fenômenos psicopatológicos na sociedade e na his-
tória tem significado pela visão realista da fatualidade humana total. Vê-se
a significação da vida psíquica anormal para a sociedade, para os fenôme-
nos históricos de massas, para a história da civilização para certas perso-
nalidades que influenciaram a história etc. Antes de mais nada, entre-
tanto, ela importa à própria psicopatologia, permitindo ver a significação
que têm as circunstâncias sociais, dos grupos culturais e das situações,
para o tipo e a ocorrência das anormalidades da vida psíquica; ganham-se
experiências com as biografias individuais, experiências a que quase não
tem acesso a prática médica, e com as realidades que já não se apresen-
tam sob o mesmo aspecto em nossa época; exercita-se a concepção que se
tem do homem como homem, quando visto em sua evolução e em sua
condicionalidade históricas. O horizonte histórico-sociológico retroage à
concepção do caso particular, observado na clínica, favorecendo-a.

e) Métodos.
Os métodos que se utilizam nas pesquisas sociológicas e históricas são
os mesmos que servem à psicopatologia, em geral. De modo especial, con-
tudo, pressupõem-se aqui os métodos críticos no trato do material histó-
rico. E, assim sendo, método importante é o comparativo: comparação de
povos, formas culturais, grupos populacionais diversos; este é o campo es-
pecial da estatística.
São dois os objetivos da estatística. Em primeiro lugar, estabelece, sim-
plesmente, pelo censo de manifestações conhecidas, a respectiva frequên-
cia; achados estes que têm importância descritiva e valor prático, mas que
são, quanto ao mais, escassamente interessantes. Em segundo lugar,
busca relacionar entre si, mediante comparação de séries de cifras diver-
sas, vários fenômenos; quais sejam, a frequência de certos tipos caracteri-
ais entre aqueles que cometem determinados tipos de crimes etc. Busca,
desta forma, apreender os fatores de que depende certo fenômeno; inquire
as causas respectivas. Correlacionados, os dados estatísticos dão regulari-
dades iniciais externas, as quais indicam conexões causais básicas; mas
estas ainda não- se demonstram pela regularidade estatística.
Os métodos estatísticos gozam, presentemente, de grande favor. São,
todavia, difíceis de manejar e só podem usar-se, quando se espera que ve-
nham a fornecer dados confiáveis, com grande prudência e espírito crítico.
Quando se faz investigação estatística, formulamos as seguintes indaga-
ções: 1) Que é que se conta? 2) De onde se obteve o material contado? 3)
Com que se vão comparar as cifras encontradas? 4) Como é que se inter-
pretará a regularidade eventualmente encontrada nas correlações numéri-
cas?
Exemplo: Contam-se todos os suicídios (1) de certas regiões: Baviera,
Saxônia etc. (2); comparam-se as cifras suicidais de vários meses e encon-
tra-se a mais alta cifra no começo do verão; comparam-se regiões diversas
e encontram-se, por exemplo, na Saxônia, proporcionalmente à popula-
ção, mais suicídios que na Baviera etc (3); enfim, procura-se interpretar a
regularidade: o início da estação estival, segundo se presume, atua, por fa-
tores múltiplos, como estímulo sobre a vida psíquica, de maneira que esta
se vivencia, segundo os rumos nos quais é originalmente predisposta, com
mais intensidade, mais liberdade, mais atividade: verifica-se que também
os atentados sexuais, os crimes contra os costumes etc. são mais frequen-
tes nessa estação; donde confirmar-se a presunção mencionada. Inter-
preta-se a diferença entre a Baviera e a Saxônia como diversidade de cons-
tituição racial (4). Em relação aos quatro problemas da inxestigação esta-
tística, ainda se hão de fazer, em particular, os seguintes comentários:
1. Que é que se conta? Naturalmente, para obter resultados exatos, só
se pode contar o que for, conceitualmente, tão precisamente delimitável
que qualquer observador saiba a rigor o que é que se conta; só se pode
contar o que se puder reconhecer ou excluir, com suficiente segurança, no
caso particular. Maximamente adequadas, -são- as manifestações objeti-
vas: atos (suicídios, crimes) fatos sociais (casamento, profissão etc.), condi-
ções ambientais (lugar de nascimento, situação econômica dos pais, ilegi-
timidade de nascimento etc.); mais ainda: idade, sexo, etc. Esta estatística
apoia-se em dados puramente objetivos, fatos externos, sem considerar os
indivíduos particulares; outras estatísticas, no entanto, procuram apreen-
der, em seus censos e confrontos, todo o indivíduo com suas qualidades
psíquicas (estatística individual em oposição a estatística de massa). A
esta altura, torna-se muito difícil delimitar e determinar aquilo que se deve
contar. É necessário um trabalho psicopatológico prévio dos mais apura-
dos — quer no que toca a delimitações fenomenológicas, quer se trate de
análises da inteligência e dos tipos de personalidade, quer ainda se cogite
de certas conexões geneticamente compreensíveis — se se quiser esclare-
cer, em geral, quais são os objetos a contar; assim é, por exemplo, quando
se quer formar ideia numérica no tocante à correlação entre certos tipos
caracteriais e certas categorias criminais.
2. De onde provém, o material? É só em casos raros que se pode su-
bordinar à estatística, com base em dados objetivos dos mais grosseiros
(suicídios), um grupo populacional inteiro. Quase sempre tem-se de fazer
seleção (muitas vezes, de grupos muito pequenos), tomando como material
os pacientes de um hospital, os internados num frenocômio, os réus que
comparecem a juízo, etc. Se for comparado' a outro correspondente, esse
material valerá corno amostra, revelando, em pequena escala, as mesmas
correlações que revelariam, em grande escala, o componente patológico,
criminal, etc. da população geral. Na maior parte das vezes, entretanto,
será um material selecionado em determinada direção, não permitindo se
tirem, sem mais, quaisquer conclusões gerais. Daí a crítica do material
constituir um dos fundamentos mais importantes para o julgamento de
trabalhos estatísticos.
3. Com que é que se compara? Podem-se comparar, por exemplo, as
cifras suicidiais da Baviera e da Saxônia; mas não (é claro) as cifras abso-
lutas, e sim, apenas, as percentagens em relação à população total. Nes-
ses casos simples, é difícil errar; em casos complicados, porém, é necessá-
rio ponderar bem aquilo que se há de comparar.
4. Como é que se interpreta? Só quando se interpretam as cifras é que
começa, a rigor, nosso interesse científico. As cifras nos serão tanto mais
valiosas quando mais convincentes falem a favor de certa interpretação.
As interpretações sempre subsistem, porém, até certo ponto, como pre-
sunções, podendo seguir duas vias. Em primeiro lugar, podem ser cau-
sais: a frequência maior de filhos de alcoolistas entre os adolescentes cri-
minosos explicar-se-á, em geral, pelo fato de o alcoolismo paterno, medi-
ante lesão germinal, inferiorizar o filho; ou pela herança, ou pela disposi-
ção psicopática, em que se baseou, no pai, o alcoolismo. Em segundo lu-
gar, as interpretações podem ser geneticamente compreensivas: outros au-
tores “compreendem” o fato estatístico com fundamento no meio alcoo-
lista; pelo que a criança vê, pela falta de educação, vem-lhe a depravação,
que a conduz, pouco a pouco, a um estado psíquico do qual resulta, com-
preensivelmente, o crime.
A crítica que se dirige à interpretação causal e aquela compreensiva
são absolutamente diversas. Vamos dar exemplos que esclareçam. Pre-
tende-se que o humor sombrio dos dias chuvosos outonais seja causa
compreensível de suicídios, de moda presumir ocorram quase todos os
suicídios no outono. Mas a estatística mostra cifra muito mais elevada no
início do verão. Nem por isso, contudo, é errada, no primeiro caso, a cone-
xão compreensível presumida. No caso particular, pode-se provar, com
base na compreensão da personalidade global, que um outono sombria ve-
nha a dar o último golpe. Presumiu-se, porém, erradamente, a frequência
dessa conexão. Em termos gerais: não se demonstram conexões compre-
ensíveis (por exemplo, as influências ambientais, em sua maior parte) por
via estatística, e sim pela compreensão do caso particular; a estatística
apenas demonstra a frequência com que elas ocorrem. Entretanto, quando
se fazem essas investigações patológico-sociais, as conexões causais
nunca se demonstram existentes, de modo geral, pelo caso particular,
mas, sim, mediante censos avultados e mediante proporções numéricas
que suportem crítica. Se uma lesão germinal, devida ao alcoolismo pa-
terno, pode levar a degeneração hereditária, é questão aberta que só se
provará com correlações estatísticas abundantes e convincentes. Nenhum
caso individual pode pesar na balança, nesse sentido. Admitamos, porém
(não existem pesquisas deste tipo), que se hajam recenseado 500 famílias
de alcoolistas; que metade dos filhos tenham nascido antes da irrupção de
alcoolismo paterno, metade depois. Aqueles vêm a revelar-se semelhantes
à população média; estes, no entanto, nascidos após a irrupção do alcoo-
lismo e confrontados com a outra metade, apresentam-se, por suas quali-
dades e seu estilo de vida, extraordinariamente mais anormais, inferiores,
criminosos etc. — Neste caso — aliás, inverossímil — ter-se-ia demons-
trado lesão germinal pelo álcool.
Os exemplos estatísticos a se darem daqui por diante, nesta Parte, não
se subordinam, em particular, a qualquer crítica do tipo que acabamos de
fazer, pois isso nos levaria longe demais. Os exemplos mais não preten-
dem ser do que exemplos. Para qualquer estudo mais exato, remitimos o
leitor, aqui como sempre, aos trabalhos especiais.
Em relação à história, dupla é a tarefa da psicopatologia. 1. No tocante
ao caso particular, quando se cogita de estados e fenômenos psiquica-
mente anormais, o psiquiatra tem de dar seu parecer. 2. No tocante à tota-
lidade do material histórico, tem de ver se pode, por essa via, adquirir co-
nhecimentos de ordem geral que por outra via não se adquirem. Daí os
trabalhos existentes sobre esta questão terem, em parte, o caráter de pare-
ceres históricos: só se aplicam conhecimentos existentes para apreender
um fenômeno que interessa por outros motivos. Em parte, no entanto, os
trabalhos afetaram um problema psicopatológico novo, com características
próprias (por exemplo, a degeneração; a significação criativa das psicoses).

§ 1. A Significação Da Situação Sociológica Da Doença

a) Efeitos causais do ambiente civilizado.


A civilização cria condições físicas que, do mesmo modo que outras
condições naturais, geram estados psíquicos anormais por intermédio do
corpo.
Principalmente, a oferta dos estimulantes e drogas. Discute-se, muito,
neste particular, se o alcoolismo e, com ele, as psicoses alcoólicas têm au-
mentado. Em época mais recente, parece haver-se constatado, pelo con-
trário, diminuição do alcoolismo. Jeske viu diminuição considerável do
número de transtornados em Breslau, relacionada com a taxação da
aguardente de 1909 e com o boicote das bebidas alcoólicas pela social-de-
mocracia. É claro que as doenças variam conforme o tipo dos estimulantes
localmente consumidos; pelos europeus, quanto ao álcool; pelos orientais,
quanto ao haxixe; pelos chineses, quanto ao ópio.
Quanto a saber se, em períodos mais longos — posta de lado, inicial-
mente, a extensão em que influem, neste particular, as condições cultu-
rais — se alteram em suas modalidades fenomênicas as formas nosológi-
cas precisamente delimitáveis, é questão que, decerto, só se pode investi-
gar naquelas doenças cujo diagnóstico se aceita do modo universalmente
válido e unitário, de acordo com características nítidas. É o caso da parali-
sia geral como doença orgânica cerebral e também geral, somaticamente
falando. Joachim, que a investigou estatisticamente, na Alsácia-Lorena,
durante os primeiros decênios do século XX, com referência à modificação
de sua ocorrência e seu curso, notou variação na distribuição das parali-
sias masculinas pelos diversos distritos da região: pequeno aumento da
doença nas camadas populares inferiores; ligeiro ralenta- mento da dura-
ção respectiva; aumento de formas demenciais em relação às agitadas e
depressivas; maior frequência das remissões. São bastante incertos os fa-
tos à base dos quais se tem querido relacionar o aumento da paralisia ge-
ral com o aumento da sífilis ou com o incremento da civilização. Apesar do
trabalho de Monkmõller, ainda são de todo obscuras as correlações cau-
sais. A sífilis sozinha não pode ser a causa, nem a civilização por si só.
Para saber se já havia paralisia geral na antiguidade, temos de saber se já
havia sífilis, ou se esta foi importada da América. Kirchhoff, baseado nal-
gumas fontes, considera provável a ocorrência na antiguidade.
É claro que cada situação social também cria condições físicas peculia-
res, as quais, por sua vez — do mesmo modo, no entanto, que quaisquer
circunstâncias naturais. — influem sobre a saúde. É evidente que certas
profissões são mais ameaçadas do que outras pelo perigo da intoxicação
(chumbo, óxido de carbono, sulfureto de carbono etc.).
A tecnização da vida em geral, no último meio século, tem causado —
pelo menos, nas condições metropolitanas — tal dissolução do ambiente
natural, num perimundo cada vez mais artificial, que as condições vitais
psicofísicas se modificam com efeitos que ainda não se podem perceber; a
ponto de Jores poder dizer, relativamente às endocrinopatias humanas: “A
pessoa vegetativa do homem já não se ajusta às condições existenciais
completamente alteradas. Daí resultar o homem nervoso atual, com sua
disposição especial para distúrbios das regulações endócrinas. As doenças
resultantes destas desregulações são, pois, se não exclusiva, pelo menos
predominantemente, doenças da civilização”.
Ainda está por esclarecer se é passível de modificação a constituição
(tal qual se apresenta na estrutura corpórea, em condições vitais que per-
manecem iguais durante muitas gerações) mediante seleção e mediante
qualquer forma vital física dantes existente. A constituição corpórea lep-
tossômica parece haver predominado nas camadas aristocráticas do an-
tigo Egito, do Japão e do Oriente; bem assim, parece ter sido considerada
a mais nobre (Weidenreich).

b) Situações típicas para o indivíduo.


São inúmeras; e sirvam de exemplos: a dura pressão das condições so-
ciais desesperançadas, dos sofrimentos crônicos; o encargo permanente,
pesando sobre a psique, das preocupações insuperáveis e da luta pelo pão
de cada dia, sem energia, sem impulso, sem objetivo, sem ideal, leva, mui-
tas vezes, a estados de apatia, indiferença, pobreza psíquica extrema. Caso
especial é o tipo do criminoso sempre reincidente, que carrega sua sorte
indiferente, sem esperança, apenas mostrando rancor obtuso e negação
desprazerosa a todas as solicitações que se lhe fazem.
O desenraizamento? tem-se tornado fatalidade cada vez mais frequente
em nosso mundo atual.
Os psicanalistas têm reconhecido o efeito marcante do contexto fami-
lial. O exemplo, o modelo, o ensinamento são atuantes, mas, além disso, a
“coletividade”, a psique grupai com seu poder impositivo. O inconsciente
dos pais influencia os filhos, sem que estes o percebam. “Há um evento
uniforme no contexto corpo-alma- família, tal qual fossem vasos comuni-
cantes”. Por exemplo: “A vida que os pais deveriam viver, se não fossem
covardes, frouxos, transforma-se em encargo para os filhos”.
A força dos instintos varia com as situações. Em condições de vida as-
segurada, com prevalecimento da moral sexual, o instinto sexual pode
crescer desmedidamente; na miséria, diminui a fome; esta e o instinto se-
xual, quando a vida está exposta a perigo prolongado, decrescem até ex-
tinguir-se.

c) Épocas de segurança, de revolução, de guerra.


Traço fundamental da existência anterior a 1914 serviu para interpre-
tar alguns fenômenos anormais: a maior segurança da vida, que havia em
comparação com quase todas as épocas anteriores. Exagerando: antes,
azares radicais, existência perigosa, cada um cuidando de si; agora,
pressa angustiosa e egoística de conseguir vantagens meramente econô-
micas, mesmo estando a vida assegurada e protegida pelas instituições
públicas; antes, difusão da vida laborativa natural, com participação da
personalidade humana; agora, de um lado, a pressão temível e suportada
com ressentimento consciente do trabalho físico obtuso; de outro lado, in-
divíduos abastados, ociosos, sem obrigações nem objetivos; em toda parte,
insatisfação com a vida. O vácuo existencial gera a simulação da vida, a
pseudovida sensacional; enfim, o advento do tipo de personalidade histé-
rica. Á dependência ansiosa de normas morais e convencionais substitui
os valores adquiridos na existência real; gera repressão dos instintos e dos
sentimentos naturais; e a partir daí, suscita, naquelas pessoas predispos-
tas, sintomas histéricos.
São inteiramente diversos deste quadro os fenômenos de que temos re-
latos quanto à vida psíquica em épocas de exaltação: após a peste do sé-
culo XIV, durante a Revolução Francesa e depois da Revolução Russa.
Parte dos fenômenos também se observou, em nosso país, a partir de
1918. Esses abalos afetivos profundos que atingem a generalidade parecer
ter efeitos absolutamente diversos dos abalos que ocorrem no indivíduo.
Notaram-se, de modo amplo, grande indiferença pela vida (aumento dos
duelos, despreocupação com situações perigosas, renúncia à vida sem as-
pirações ideais), enorme sede de prazeres e desinibição sem freio.
Dizia-se, noutros tempos, que a cifra de psicoses e suicídios diminui
em tempo de guerra. No começo, fala-se menos em nervosismo. “Quando a
vida está em jogo, o nervosismo cessa” (His). Bonhoeffer observou, de refe-
rência aos internamentos na Charité, que os distúrbios alcoólicos diminuí-
ram acentuadamente e que algumas psicopatias masculinas aumentaram
durante a guerra; aumento este que mostra — como diz Bonhoeffer —
atingir poucas exceções o acréscimo de reações psicopáticas, relativa-
mente aos milhões de seres humanos sujeitos às mesmas influências. A
imensa maioria das pessoas não adoece, devendo a constituição desempe-
nhar papel decisivo. Quanto às depressões, Kehrer notou que “o acréscimo
inaudito de preocupações, privações, lutos e pavores que atuou, durante a
guerra, sobre os que ficaram em casa não levou a qualquer aumento dos
estados depressivos”.
Durante a Primeira Guerra Mundial, fizeram-se inúmeras observações
no exército. Tornou-se a estabelecer a. evidência de que não há psicoses
de guerra nem neuroses de guerra específicas. Foram só as turvações agu-
das da consciência e as neuroses em geral que ocorreram, suscitando dis-
cussão animada e intensa. Viu-se, por forma drástica e em número jamais
observado, o efeito do desgaste psíquico, do medo, além dos efeitos da exa-
ustão. Se bem que o número de doenças deste tipo fosse, percentual-
mente, pequeno, a cifra absoluta foi, no entanto, elevada. A discussão re-
feriu-se, sobretudo, à distinção entre o psicogênico e o meramente somá-
tico; por trás dela, existiu, conforme os pontos de vista filosóficos, a ten-
dência a descobrir culpa e má-vontade, ou o pendor a admitir tudo como
doença sem culpa alguma. Pôde-se ver a cegueira de um para tudo quanto
fosse extra- consciente, causalmente necessário; o humanitarismo senti-
mental impelindo outro, que mal percebia as forças semiconscientes ou
inconscientes em fuga para a doença; outros ainda analisavam, tranquila-
mente objetivos, com base em todos os pontos de vista, as conexões: A im-
portância do fator psíquico nas neuroses se vê do fato de não haver (ou de
só haver muito poucas) neuroses entre os prisioneiros de guerra, abstra-
ção feita daquela distimia típica que se descreve com os nomes de “pás-
saro cinzento”, “doença do arame farpado”. — Wittig mostra, exemplifi-
cando-o com autonarrações, o efeito da guerra sobre jovens eticamente in-
feriores.

d) Neuroses de renda.
As neuroses de renda servem para exemplificar, de certo modo, com a
segurança que a experiência possibilita, o fato de poderem certas condi-
ções sociológicas darem origem a determinadas doenças. Só após a legisla-
ção de acidentes dos anos 80 do século XIX é que essas doenças teriam
aparecido; não teriam existido sem tal legislação; apenas o desejo de obter
(indenização é que se traduziria em toda sorte de queixas, após lesões li-
geiras, fossem quais fossem, ou após acidentes graves, em pessoas predis-
postas e com ajuda dos mecanismos histéricos; mecanismos que — in-
conscientes para o indivíduo — visariam, apenas, à obtenção de uma
renda ou indenização (histeria de renda). Liquidada em definitivo a ques-
tão, as queixas desapareceriam. A questão não é, porém, tão simples, em
absoluto. Sob o nome de “neuroses de renda” resumem-se queixas de tipo
muito diverso, que só têm em comum o fato de aparecerem em seguida a
acidentes; principalmente, lesões cranianas. Entre elas há uma quanti-
dade em que não se pode constatar desempenhe papel o desejo de indeni-
zação como fator causai; quantidade que ocorre exatamente da mesma
maneira, ainda que não se cogite, em absoluto, de indenização (no caso de
pessoas que não têm seguros, ou de pacientes de meios abastados). Entre
as demais, certo é que o desejo de indenização desempenha papel; papel
de um fator entre outros, porém. Haveria neuroses de renda mesmo sem
legislação de acidentes; seriam, entretanto, menos numerosas e menos se
cogitaria delas; esse fator do desejo de indenização não coloriria o quadro;
e alguns indivíduos não adoeceriam, absolutamente; outros se curariam
mais depressa. O estudo das neuroses de renda tem para o clínico mo-
derno interesse especial. A vasta literatura, com as diversidades opinativas
inconciliáveis, ensina por que modo, na ciência médica, uma maneira de
ver puramente somática se opõe ao raciocínio psicológico; e por que ma-
neira os preconceitos que pretendem tudo explicar com demasiada simpli-
cidade, à base de certo ponto de vista, conflitam com o discernimento ana-
lítico.
Nos últimos decênios, o problema — que, ao tempo em que se escreve-
ram as linhas acima, era ocasional — veio se tomando cada vez mais pre-
mente. Von Weizsäcker declarou: A neurose de renda ou neurose jurídica
é fenômeno social de primeira ordem; é cena que faz parte do advento de
nova sociedade; trata-se de doença mais social que qualquer outra.
e) Trabalho.
A capacidade de trabalho e a disposição para o trabalho são seria-
mente afetadas pelas doenças psíquicas. A curva de trabalho mede a ca-
pacidade individual de produção. A terapia pelo trabalho é um meio de
modelar por forma tão favorável quanto possível os fenômenos psíquicos.
Hoje em dia, as questões relacionadas com a aptidão para o trabalho se
tornaram problemas práticos de importância (testes de aptidão para certas
profissões). Há pesquisas que se ocupam com a questão da aptidão de cer-
tos grupos humanos do tipo anormal para determinadas tarefas profissio-
nais. Da mesma forma por que a psicologia, como psicologia aplicada, se
coloca a serviço de objetivos vitais técnicos — questões de vocação, au-
mento da capacidade de trabalho — assim também pode a psicopatologia
apresentar-se “aplicada”, quando, por exemplo, responde a indagações so-
bre se certos tipos humanos — digamos, crianças expostas — são aptas
para o serviço militar; ou sobre como valorar a capacidade que têm certos
tipos de pacientes para trabalhar ou para ganhar a vida.

f) Educação.
A importância evidentemente grande das situações e condições sociais
para a vida psíquica, a utilização terapêutica destas possibilidades dá
sempre interesse à velha questão do significado e dos limites da educação.
É indubitável que a imagem psíquica de uma época e dos homens que
compõem uma população se determina, de maneira ampla, pela educação,
conforme a cada momento se realize. De tempos imemoriais se têm con-
traposto ambas as posições extremas e erradas, no tocante a esse fato,
que só se formula de maneira geral: “Tudo resulta da educação” e “Tudo é
inato”. — Ou então: “Pode-se fazer tudo do homem pela educação” e “Só se
pode fazer do homem uma coisa diferente através da herança, na sequên-
cia das gerações”. — “Dai-nos a educação”, dizia Lessing, “e mudaremos o
caráter da Europa em menos de um século”. A isso opõe-se a concepção
de que o que é inato é inalterável; e de que a educação apenas pode dissi-
mular. — Evidentemente, porém, nenhum dos dois lados tem razão. A
educação só consegue, é certo, desenvolver aquilo que existe na disposi-
ção, segundo a possibilidade; não pode modificar a essência inata. Nin-
guém conhece, porém, as potencialidades humanas que dormem na cons-
tituição. Daí poder uma educação fazer aparecer aquilo que ninguém ja-
mais suspeitara. O efeito que qualquer educação nova produz é, por isto,
imprevisível; e ela há de ter efeitos em que nunca se pensara. O fato bá-
sico de que o homem se torna aquilo que é, a cada momento, pela tradição
e de que a manifestação da disposição supostamente igual se pode modifi-
car, extraordinariamente em poucos séculos, pela modalidade da consci-
ência; de que, também, povos inteiros parecem modificar seu caráter —
tudo isso dá alto significado à educação. Seus limites não se podem traçar
antecipadamente, mas sim observar, a cada momento, no caso concreto.

§. 2, Investigações Sobre Populações, Profissões,


Classes, Grupos Urbanos, Rurais E Outros.

A população total. A demografia estabelece quantos doentes e quantos


dentre os grupos nosológicos particulares se encontram dentro da popula-
ção total. Na Alemanha, verificou-se (Lenz, 1936): 2-3% de débeis mentais,
1/2% de imbecis, 1/4% de idiotas; ao todo, portanto, 3-4% de retardados
entre todos os nascimentos; destes, mais ou menos 20-30% tendo resul-
tado de noxas externas. Na população total, encontra-se (Luxenburger)
0,9% de esquizofrênicos (a metade internada); 0,4%-0,5% de maníaco-de-
pressivos. Como fenômeno coletivo, pois, é a debilidade mental que de-
sempenha o papel mais importante; depois, a esquizofrenia.
A distribuição pelos estratos sociais. As famílias dos maníaco-depressi-
vos pertencem, percentualmente, mais aos estratos superiores; as dos dé-
beis mentais e epilépticos, mais aos estratos inferiores; as dos esquizofrê-
nicos estão entre uns e outros, mais perto dos estratos superiores. Os ti-
pos de constituição atlética supõe-se sejam mais frequentes nos estratos
inferiores.
A investigação estatística sobre a distribuição da inteligência apoia-se
em boletins escolares e testes mentais. Quanto mais baixo o estrato social,
menor é, em média, o rendimento escolar (Brem); são os filhos de universi-
tários e professores primários que detêm, em média, as graduações mais
altas.
A interpretação dos achados cinge-se, sobretudo, à seleção do patrimô-
nio hereditário. Dá-se, segundo Conrad, um “processo de afrouxamento”:
Os epilépticos descem e o patrimônio hereditário deles acumula-se nos es-
tratos populacionais inferiores. O epiléptico tende a decair socialmente,
forçado a escolher o cônjuge, quase sempre, entre os defeituosos de qual-
quer tipo; daí acumularem-se as cargas, as quais, em conjunto, formam
um círculo condicionado sociológica, não biologicamente; não um “círculo
constitucional”, e sim um “círculo conubial” (os epilépticos das classes in-
feriores têm em sua prole muito mais tipos defectuais — debilidade men-
tal, psicoses, status dysraphicus etc. — do que os epilépticos das classes
superiores).
Enquanto aqueles cuja aptidão excede a média ascendem, os estratos
inferiores cada vez se- apresentam mais pobres no que diz respeito a indi-
víduos que partilhem do cabedal hereditário. As classes superiores repro-
duzem-se menos; as inferiores, mais. Subsistindo os demais fatores, pois,
há tendência do patrimônio hereditário excelente a reduzir-se cada vez
mais, na população total, baixando o nível geral.
Profissões. A particularidade dos fenômenos psíquicos anormais resul-
tantes da profissão e da atividade existencial nunca foi investigada de ma-
neira exata. Assim como se conhecem os tipos profissionais entre as per-
sonalidades normais; assim como se pode ^reconhecer como tal, de imedi-
ato, um médico, um negociante, um oficial, um professor; assim como a
respectiva peculiaridade se revela na escrita — assim também as manifes-
tações assumem colorido peculiar nas psicoses do clérigo, do professor, do
oficial. — também se podem considerar bastante evidentes as alterações
psíquicas que se originam da excitação dos negócios bancários e bolsísti-
cos (a grande tensão, a necessidade de tomar decisões rápidas, apesar do
risco avultado), da posição oprimida das preceptoras, da existência prole-
tária etc. Há estudos sobre as psicoses no exército e na marinha, bem
como no proletariado. Os censos de Römer mostram ser no meio rural que
menos ocorrem doenças; pais, entre aqueles que se dedicam, independen-
tes, às profissões-liberais.
Estado civil. O estado civil tem relação com a cifra nosológica (estatís-
tica das internações), visto que, percentualmente, adoecem muito mais
solteiros do que casados, ao passo que os divorciados e viúvos, contados
em conjunto, excedem só um pouco a média; dentre os divorciados, po-
rém, muitos adoecem em percentagem notável.
Meios urbano e rural. O confronto da frequência relativa das formas no-
sológicas particulares na grande cidade e no meio« rural mostra, especial-
mente, duas diferenças (confronto da cifra das internações): os danos ma-
teriais da grande cidade geram aumento anormal das psicoses alcoólicas e
da paralisia geral (sequela da sífilis); as condições difíceis de vida, com
suas noxas psíquicas, originam frequência muito maior de psicopatas (his-
teria etc.). Entretanto, os frenocômios das regiões agrícolas superlotam-se
com as doenças essencialmente endógenas do grupo de demência precoce
e da loucura maníaco-depressiva. Também chama a atenção o fato "de se
internarem nas grandes cidades relativamente muito mais epilépticos e re-
lativamente mais dementes (demência -senil, arteriosclerose, idiotia).
Cepas e povos. A distribuição nas áreas geográficas mostra diferenças
consideráveis; mais na doença maníaco-depressiva que na esquizofrenia.
Segundo Luxenburger, os maníaco-depressivos, são raros na Suíça, nas
regiões setentrionais da Alemanha, na Escandinávia; frequentes, entre-
tanto, na Francônia, na Renânia, na Itália, em partes dos Estados Unidos.
Kretschmer quase não encontrou doença maníaco-depressiva entre os
hessianos, ao contrário dos suábios.
Religiões. O censo relativo às religiões mostra que a maior cifra de do-
enças está entre os adeptos' das várias crenças.8

§ 3. Comportamento Associai E Antissocial

A atitude social é considerada, acertadamente, traço básico do ente


humano; a respectiva modalidade, traço caracterial relacionado com a ín-
dole individual. Considera-se polaridade importante a extroversão, a socia-
bilidade, a franqueza em oposição à introversão, ao retraimento (autismo),
à taciturnidade.
Jung fala em extrovertidos e introvertidos: Kretschmer propõe o cará-
ter ciclotímico ao esquizotímico. Do lado ciclotímico, viu, por sua vez, pola-
ridade entre a confiança em si ingênua, com iniciativa ampla, e a modéstia
com indecisão; do lado esquizotímico, entre o pensamento idealista e o
comportamento brutal, antissocial, aquele indo da conduta reformista, or-
ganizatório-sistemática à atitude obstinada, caprichosa, suspeitosa, a
ponto de tornar-se misantrópica.
O comportamento social dos doentes mentais e dos indivíduos psiqui-
camente anormais não é, pois, absolutamente unitário, nem passível de
redução a fórmulas. Até dentro da mesma forma nosológica, os indivíduos
comportam-se de maneiras inteiramente diversas. Um psicótico grave, um
indivíduo atacado de processo mórbido pode ainda isolar-se completa-
mente de todo convívio humano e terminar sua existência vegetativa iso-
lada. Mas quase todos os indivíduos que consideramos psiquicamente
anormais costumam ser também anormais em seu comportamento social;
o que tem até servido de critério do conceito de doença. A grande maioria
das pessoas psiquicamente anormais é associai; relativamente poucas são
antissociais.
a) O comportamento associal.
Das várias formas do comportamento associai destacamos dois tipos:
1. Para o grande círculo dos loucos em sentido mais estrito, que se
classificam, conjuntamente, como esquizofrênicos, é característico, de
certo modo, o fato de desligarem-se da sociedade humana, seja de que
maneira for. Constroem dentro de si um mundo novo, no qual vivem a
maior parte do tempo; mesmo que ao observador superficial pareçam mo-
ver-se no mundo real. Partilhar com quem quer que seja ó reino dos senti-
mentos, vivências, ideias delirantes que só a ele são próprios não lhes é,
em absoluto, necessário. São autossuficientes, cada vez mais desligando-
se dos outros homens; nem com outras pessoas sofrendo da mesma forma
nosológica se relacionam melhor. Tem-se dito, com razão, que esses doen-
tes nos são mais estranhos do que um selvagem distante. No entanto, o
paciente não é, em geral, absolutamente consciente de sua associabili-
dade, vivendo em seu mundo com a consciência de viver em mundo real.
Esses homens que se desligam — em casos típicos — sem percebê-lo e
sem sofrer com isso, sempre formaram grupo social morto. Em graus mais
ligeiros do distúrbio, vegetam como vagabundos, quando provêm de clas-
ses desfavorecidas; como excêntricos, no caso de serem abastados.
2. Tipo inteiramente diverso de associabilidade, que se combina, aliás,
nos processos em incepção, com aquele acima descrito, desenvolve-se sob
a forma de incapacidade, subjetivamente sentida com muito padecimento,
de tratar com outras pessoas, de ajustar-se, de movimentar-se sem cons-
trangimento, de acordo com a situação. Todo convívio é torturante, de
modo que o indivíduo prefere retrair-se, prefere ficar inteiramente só; o
que o atormenta muito, porque conserva o impulso social, anseia pela
convivência, pela comunidade, pelo amor. Sua incapacidade social tam-
bém chama, (entretanto, a atenção alheia. Pela sua maneira de ser, ora
canhestra, tímida, ora excessiva, grosseira, informal, descontrolada, choca
a todos, a ponto, porque sente a reação, de retrair-se ainda mais. Esta
forma de associabilidade tem muitas conexões compreensíveis depende de
uma série de “complexos”; pode desaparecer em condições favoráveis, ou
levar ao isolamento pleno num aposento, do qual nunca mais se sai, tal
qual acontece em processos demenciais. Ocorre em todos os tipos caracte-
riais: tanto em naturezas realmente grosseiras, indiferenciadas, quanto
naquelas delicadas, capazes de sentimentos profundos; liga-se a muitas
outras fraquezas psíquicas e pode existir quer como fase transitória, quer
como aspecto da constituição permanente; pode desenvolver-se esponta-
neamente, ou representar reação clara a situações desfavoráveis; enfim,
aparece como expressão das formas nosológicas mais diversas.

b) O comportamento antissocial.
Deparamos com os doentes antissociais quando vemos os criminosos,
a maioria pertencendo às constituições anormais; a minoria, aos proces-
sos mórbidos. Entre os doentes de esquizofrenias, aparecem — principal-
mente, no início — elementos antissociais; bem assim, entre os portadores
de paralisia geral. É muito raro haver antissociais no grupo da loucura
maníaco-depressiva.
A investigação do crime tem-se desenvolvido em três fases, que, no mo-
mento atual, significam outros tantos rumos de inquirição legitimamente
paralelos. De início, inquiriram-se criminosos individuais, os quais davam
impressão de anormalidades, desvios da média, casos raros. Primeiro,
aprendeu-se, por esta forma, o encadeamento dos processos psíquicos,
com a respectiva caracterização clássica, sempre repetindo-se menos ní-
tida, menos desenvolvida; depois, apreenderam-se também conexões de
tipo psicologicamente compreensível, raramente ocorrendo e quase sempre
entendendo-se erradamente — de maneira demasiado intelectualista (psi-
cologia das envenenadoras, das criminosas nostálgicas etc.); finalmente,
investigou-se a maneira por que o processo mórbido influencia o i caso
particular. Em muitas das descrições, a simplicidade da compreensão psi-
cológica, própria do autor, deixa de satisfazer o leitor. Leva a erro, princi-
palmente, muitas vezes, a redução a um instinto, (a uma paixão, tal qual a
interpretação intelectualista, de bom grado praticada, que de simboliza-
ções e complexos pretende elevar a pensamento consciente demasiadas
coisas da vida psíquica e dos encadeamentos não-percebidos dos instin-
tos. Todavia, tem-se sedimentado material extraordinariamente valioso, in-
substituível, em muitas dessas descrições. Também se tem procurado
configurar a psicologia compreensiva do delinquente, praticada e ampliada
em descrições individuais, de maneira geral e sistemática; sirva de exem-
plo o livro por demais subestimado de Krauss.
A segunda fase afastou-se do estudo compreensivo individual. Caracte-
rizada pelo método estatístico, procurou investigar as causas e correlações
dependenciais do crime mediante o estabelecimento de proporções regula-
res de grandes séries numéricas. Forma especial .¡que é de aplicação da
estatística moral, ela investiga, sobretudo, com base no material numérico
das grandes estatísticas oficiais, as relações do delito e certas formas de-
linquenciais com a estação do ano, a idade, os preços do trigo etc.8 Delas
se depreende, por exemplo, serem o roubo e a fraude mais frequentes no
inverno; todos os crimes para os quais contribuem a excitabilidade e a irri-
tabilidade psíquica (atentados sexuais, agressões físicas, ultrajes), são
mais frequentes no verão; entre o nível dos preços do trigo e a frequência
dos roubos existe certo paralelismo etc. É quase sempre difícil ajuizar e in-
terpretar estas correlações numéricas. Ao pendor a explicá-las de forma
demasiada simples é adversa a crítica que aponta para a grande multipli-
cidade de fatores coadjuvantes e que não permite ajustar qualquer parale-
lismo, de maneira simples e absoluta, a dependências causais. É bem pos-
sível que a dependência bilateral de uma série de fatores ignorados dê ori-
gem a uma relação regular.
A interpretação é difícil porque só se enumeram fatos, sem coisa al-
guma saber dos delinquentes. No desejo de atingir as conexões reais, pro-
fundamente situadas, buscaram-se inquirir, por sua vez, em terceira fase,
os próprios criminosos, os indivíduos todos. Já não se selecionaram, po-
rém, como na primeira fase, casos individuais, raros, de cunho clássico, e
sim tomaram-se para investigar todos os doentes internados de um hospi-
tal e outro material como um todo, a fim de conhecer os criminosos mé-
dios, os delinquentes habituais, que são os mais importantes para a polí-
tica criminal. :Estes trabalhos, embora operem, necessariamente, com ci-
fras muito menores, têm a vantagem de saber exatamente o que recen-
seiam e de poder inquirir muito mais correlações, porque os inquéritos de
individualidades inteiras é que fundamentam os censos {estatística indivi-
dual, em oposição à estatística coletiva da segunda fase). Gruhle tentou,
aqui, investigar e contar não só as características até então habituais, tan-
gíveis, objetivas, mas também trazer ao campo da estatística (estatística
da personalidade) o tipo caracterial, a disposição pessoal, a compreensão
psicológica, a fim de ver se a base da associabilidade seria o meio ou a dis-
posição.
O psiquiatra intervém, a fim de pronunciar-se, pela comunicação dos
fatos, em questões de política criminal, instituição de penas, penitencia-
rismo. Os fins a se alcançarem são estabelecidos pelas sociedades e pelas
concepções predominantes; a psicologia aplicada tem de dizer se e por que
vias se atingirão esses fins.
Cientista que é, o psiquiatra também há de dar a informação- franca
que for verdadeira, quando parecer impossível qualquer ‘"solução” de difi-
culdades indesejáveis da vida real. Trágico será o quadro derradeiro, sem
possibilidade de ajustamento harmônico. É o que me parece ter Wetzel
apontado, de maneira singularmente clara, com referência a uma perso-
nalidade anormal, um “querulante”. Uma luta pelo direito que durou deze-
nas de anos e em que as autoridades foram insuportavelmente importuna-
das, o queixoso às vezes ilegalmente tratado, e em que a pretensão do ho-
mem anormal nada tinha de criminosa, terminou com seu suicídio, que foi
por ele assim anunciado nos jornais: “Von Hausen quis, a vida inteira, ser
útil à pátria. Destino indizivelmente penoso extinguiu-lhe, sem êxito, a
existência”.

§ 4. Psicopatologia Da Mente

A mente não pode adoecer e nesta medida é absurdo o título- acima.


Mas a mente é levada pela existência. As doenças existenciais têm conse-
quências para a realização da mente, a qual pode ser inibida, deslocada,
transtornada; pode também ser favorecida e- possibilitada de maneira sin-
gular.
Mais ainda: os fenômenos psíquicos anormais são interpretados a par-
tir da mente, cuja apreensão os modifica. É muito diverso- se sei que es-
tou submetido a minhas paixões, como passiones animae naturais; ou se
me reconheço culpado, interpretando o que faço e sinto como mau e peca-
minoso; ou se creio estar exposto à ação de deuses e demônios, por eles
possuído; ou se penso estar perturbado, enfeitiçado, magicamente, por ou-
tras pessoas. Assim também, o comportamento segundo o qual o homem
domina seus distúrbios psíquicos diverge, fundamentalmente conforme a
interpretação que sua mente dá ao que faz: como expiação, como autoedu-
cação filosófica, como ato ritual, como oração, como iniciação- em misté-
rios.
As conexões e a unidade do mundo mental estão fora da psicologia. A
psicopatologia mais não pode do que pesquisar alguns aspectos dos fenô-
menos de realização mental sob vários pontos de vista; aspectos que agru-
pamos da seguinte maneira: primeiro, notamos as investigações empíricas
concernentes a material concreto* particular (patografías e pesquisa dos
efeitos de devoções); segundo, discutimos algumas questões gerais que daí
emergem; terceiro, damos uma olhada a um setor que está sempre no pri-
meiro plano do interesse: psicopatia e religião.
a) Investigações empíricas.
1. Patografías: Chamam-se patografías aquelas biografias cuja finali-
dade é apresentar ao psicopatologista aspectos interessantes do psiquismo
e esclarecer-lhe a significação dessas manifestações e fenômenos para a
gênese das criações do indivíduo em causa. Entre as inúmeras patogra-
fías, destacam-se as obras de Moebius e Lange; mesmo as quais, entre-
tanto, excedem os próprios limites, quando interpretam, com recursos in-
suficientes, o valor do rendimento artístico, ou seja, quase sempre dimi-
nuindo-o. Embora haja probabilidade de descobrir traços catatônicos num
poema, não se conclui daí seja o poema ruim e incompreensível. Se o psi-
copatologista julga a respeito, está dando, como diletante, seu juízo subje-
tivo, que talvez não interesse a quem quer que seja, mas irrita alguns. A
patografia é assunto delicado. Conhecimentos que mereçam confiança exi-
gem introvisão psicopatológica básica e capacidade para fazer crítica histó-
rica; bem assim, respeito e certa prudência, que não significam, no en-
tanto, silêncio são requisitos que não se devem desprezar de qualquer
apresentação patográfica. Ê ridículo trabalhar em patografia com material
deficiente (por exemplo, sobre Jesus, Maomé).
O que se fica sabendo pela patografia de homens importantes e, sobre-
tudo, mediante o vulto do material biográfico concreto que só assim se ob-
tém, é importante, retrospectivamente, para a própria psicopatologia. Pela
patografia, que promove e aprofunda a observação, se pode ver o que não
aparece nos pacientes comuns e naqueles internados. É aconselhável que
todo psicopatologista forme conhecimento concreto de certas existências
importantes pela leitura de boas patografías.
2. Exercícios devotos. Em todas as grandes culturas, chinesa, indu,
ocidental, os místicos, os filósofos e os santos desenvolveram certa prática
espiritual que, apesar de suas ricas dimensões e da extraordinária diversi-
dade de seu conteúdo, têm em comum certos traços fundamentais de me-
canismos psíquicos. Existe uma técnica de atividade íntima no estado de
consciência, que consiste em praticar a reconformação e transformação da
consciência; prática que J. H. Schultz investigou usando padrões empíri-
cos modernos. Distinga-se desta base empiricamente universal a fé que
movimenta esses mecanismos, fé que, só ela, lhes dá significado efetivo,
quer histórico, quer pessoal; e distinga-se também a auto- concepção
dessa realidade através de certa metafísica que, por sua vez, vem- a deter-
minar, retroativamente, os conteúdos da vivência. Os procedimentos psi-
quiátricos modernos consistem, em parte, nos mesmos métodos, mas pre-
tendendo encontrar neles, dentro de um mundo sem fé, apenas técnicas
cuja base imediata é a “fé” na ciência; a se interpretarem, pois, através de
teorias psicológicas.

b) Questões gerais.
1. A questão da significação criadora da doença. É de inquirir empiri-
camente que formas nosológicas têm significação positiva, e não mera-
mente destrutiva. Nas patografías de personagens eminentes, sempre se
indaga se as criações respectivas se produziram apesar da doença, ou me-
diante ela, entre outros fatores (por exemplo, os rendimentos das fases hi-
pomaníacas, os conteúdos artísticos que se notam nos estados depressi-
vos, as experiências metafísicas das vivências esquizofrênicas). Daí o pro-
blema que surge nos acontecimentos históricos: o processo mórbido foi,
apenas, destrutivo, ou contribuiu para uma criação positiva.
2. Conexão entre forma mórbida e conteúdos mentais. Veem-se na his-
tória cosmologias mentais para cuja existência e desenvolvimento concreto
talvez contribuam certas doenças psíquicas< específicas, afins com elas,
conforme mesmo hoje se pode observar. É verdade que essas cosmologias
mentais podem ocorrer muito bem sem que haja qualquer enfermidade.
Mas talvez os produtos mórbidos cooperem na respectiva evolução fatual.
Conquanto não se possa prová-lo em caso algum, por falta de material,
tem-se, no entanto, impressão de que o mundo gnóstico se relaciona com
vivências dos doentes compulsivos. As narrativas que se fazem, no mundo
inteiro, de viagens da alma através dos universos celestes e infernais lem-
bram experiências esquizofrênicas. É certo que, atualmente, semelhantes
estados esquizofrênicos não têm importância. As pessoas afetadas va-
gueiam sem influenciar quem quer que seja com suas vivências mórbidas;
e todos as desprezam, considerando-as malucos, criaturas incômodas,
que melhor estariam internadas. Talvez haja sido diferente, outrora, numa
ou noutra época. Por vezes, certas ideias mitológicas e supersticiosas dão
impressão de que não poderiam ter surgido, em absoluto, se não se co-
nhecessem essas formas vivenciais peculiares da demência precoce. E
também certas formações mentais que se agrupam em torno do delírio
mágico fazem pensar em parte nisso, faltando, porém, qualquer investiga-
ção a respeito de tais questões.
3. Avaliação dos indivíduos doentes no curso da história da civilização.
É fora de dúvida haverem alguns doentes desempenhado papel histórico',
haverem sido respeitados e usados como xamãs, ou venerados como san-
tos; terem sido vistos com temor, como se fossem possuídos de Deus; ha-
verem servido de guias, porque considerados excepcionais, altamente
apreciados. Mesmo em épocas recentes têm-se visto, em áreas rurais, do-
entes do grupo da demência precoce representar papel, graças às suas vi-
vências psicóticas, como fundadores de seitas religiosas (Maliovanni na
Rússia). De modo algum esses indivíduos são considerados “doentes”; pelo
contrário, aquilo que chamamos mórbido se interpreta como sendo dom
espiritual puro. Mas também há vezes em que os indivíduos da mesma ca-
tegoria são desprezados como tolos, afastados e eliminados como posses-
sos perigosos; ou passam despercebidos.
O mesmo não se dá na poesia e na arte, onde o doente é apresentado
frequentemente como enfermo e, ao mesmo tempo, desenvolvido como
símbolo de profundo mistério humano. Filocteto, Ajax, Hércules realizam
sua tragédia na loucura; Lear, Ofélia são loucos; Hamlet simula a loucura;
Dom Quixote é quase um esquizofrênico típico. De modo especial se repre-
senta com insistência a vivência do sósia (E. T. A. Hoffmann, E. A. Poe,
Dostoievski). Mas em Goethe a loucura quase não tem papel e, quando
aparece, é figurada irrealisticamente (Margarida no cárcere), se a compa-
ramos com o realismo de Shakespeare e Cervantes.
Velásquez pintou idiotas. Os “bobos” eram mantidos nas cortes princi-
pescas e. falavam livremente. Durer gravou a melancolia; Hans Baldung
Grien desenhou o homem saturnino como tipo da tortura melancólica.
Podem-se multiplicar consideravelmente os exemplos, mas não é pos-
sível subordiná-los a interpretação única, comum e exaustiva. Certo, no
entanto, é haver, muitas vezes, qualquer background oculto que correlaci-
ona a doença e as possibilidades humanas mais- profundas; que correlaci-
ona a loucura e a sabedoria.

c) Psicopatia e religião.
Podem-se investigar os tipos nosológicos e ver que vivências religiosas
neles se observam. Assim é que se mostram os fenômenos contemporâ-
neos. Ou vê-se, na história, quais foram os homens religiosos importantes
que apresentaram traços anormais; e de que modo a doença mental e a
histeria desempenharam papel; especialmente, de que maneira se hão de
conceber, sob o aspecto psicológico, alguns fenômenos. religiosos. Ou in-
quire-se o comportamento prático de padres e pastores em relação a indi-
víduos cuja atitude religiosa se enraíza, e se colore segundo a moléstia; in-
quire-se que ajuda a religião dá aos doentes. Enfim, superado o empi-
rismo, pode-se indagar de que modo se realizaria um significado interno
na coincidência entre religião e loucura; pode haver interpretações no sen-
tido de que, quando se discute o extremo do existir humano, também
possa, a extremidade de seu estado existencial vital basear experiências-
significativas. Pode-se salientar o fato de todos os movimentos religiosos e
de todas as igrejas atuantes se caracterizarem, justamente, sob o ponto de
vista empírico-sociológico, de modo quase sempre inconsciente, raras ve-
zes consciente, pela absurdez dos conteúdos místicos (Kierkegaard acen-
tuou o Credo quia absurdum de Tertuliano; o luteranismo rejeita a razão e
tende à promoção do absurdo; ao passo que o catolicismo, desde São To-
más de Aquino, repudia o absurdo e nega sejam absurdos seus conteúdos
místicos; pelo contrário, o que supera a razão, o conteúdo revelacional, de-
ve' distinguir-se daquilo que contraria a razão, isto é, o absurdo).

§ 5. Aspectos Históricos

No século XIX, quando as comunicações no globo terrestre acarreta-


ram conhecimento mais íntimo de todos os povos e ao mesmo tempo que o
interesse histórico procurou apreender os estados do passado e o passado
como tal, investigando-lhe as tradições de mais remoto alcance, também
se esboçou um quadro histórico- geográfico das doenças, quadro geral,
abrangendo, num todo, clima, raça, gênio local e regional, destino histó-
rico. A partir daí, vieram a destacar-se, ulteriormente, os estudos geopsi-
cológicos e psicológico-raciais, além da investigação histórica (por exem-
plo, se a sífilis apareceu pela primeira vez no século XV, se já não existia,
se veio da América); mais ainda, surgiram alguns aspectos históricos e
umas tantas considerações de ordem universal concernentes ao destino
biológico do homem.
A análise das condições sociais e históricas em que os homens vivem
mostra que os fenômenos -psíquicos mudam com a alteração dessas con-
dições. Deve-se pensar numa história das doenças que se ajusta à mol-
dura da história social e cultural, ensinando de que maneira mudam os
quadros das moléstias cientificamente idênticas; sobretudo, de que ma-
neira as neuroses têm seu estilo temporal, florescendo em certas situações
e noutras quase não ocorrendo. A visão dá transformação fundamental-
mente possível já se volta para as descrições concretas de casos mórbidos
individuais, para as biografias vindas de outras épocas. Mesmo sem esta-
belecer confronto metódico, o psiquiatra entrega-se, simplesmente, aos
quadros concretos em que mais sente do que sabe no tocante à diversi-
dade dos tempos. Não é só o modo por que uma forma mórbida se apre-
senta em personalidades diferenciadas e mais altamente dotadas que aqui
se vê plenamente vívido, mas também a maneira por que se manifesta em
personalidades cujas condições se desconhecem, cuja situação é estranha.
Infelizmente, é escasso o material desta ordem.
O interesse histórico dos estudos psicopatológicos vai de par com o in-
teresse pelas regras gerais do evento humano. Comparam- se as épocas,
comparam-se os povos civilizados e os povos primitivos, a fim de, primei-
ramente, reconhecer o que é comum, o que é contínuo, não obstante ma-
nifestar-se diversamente (por exemplo, a histeria); em seguida, a fim de
apreender a especificidade de certos estados (por exemplo, daqueles arcai-
cos); finalmente, a fim de pesquisar rumos básicos do processo histórico
(por exemplo, o problema de degeneração).

a) A cultura e a situação histórica como determinantes do conteúdo da


doença psíquica.
É evidente que o conteúdo das psicoses provém do patrimônio espiri-
tual daquele grupo humano em que o doente surge. Noutros tempos, o de
que mais se falava, no delírio, eram transformações em animais (licantro-
pia), demoniomania (delírio de possessão) etc.; hoje em dia, mais se fala
em telefone, telegrafia sem fio, hipnose e telepatia. Antigamente, o diabo
cutucava as costelas; hoje, os doentes são maltratados por aparelhos elé-
tricos. As vivências delirantes de um filósofo culto assinalam-se pela ri-
queza e profundidade dos significados, ao passo que as de um homem
simples se movimentam no território da conformação fantástica de fábulas
e superstições.
Certos conteúdos ideativos e místicos que, no mundo da civilização
técnica moderna, se têm de considerar sintomas prováveis de doença
mental não o são, em absoluto, nos meios rurais de amigas tradições; pelo
contrário, constituem objeto do folclore.
O ambiente espiritual, as concepções e valorações dominantes têm sig-
nificado que consiste no fato de engendrarem certas anormalidades psí-
quicas e não permitirem que outras se desenvolvam. Determinados tipos
de personalidade ajustam-se a uma época e ajustam-se entre si. Nota-se
de que modo se agrupam as personalidades nervosas ou histéricas. Al-
guns grupos caracterizam-se, precisamente, pela associação de anormais
e doentes mentais: a Legião Estrangeira, as colônias naturistas e vegetari-
anas, as uniões de fanáticos da saúde, espíritas, ocultistas, teósofos. Nos
grupos da Grécia antiga em que se praticava o culto dionisíaco, também é
de presumir que se atraíssem os portadores de dons histéricos, tal qual
estes sempre são chamados a desempenhar papel, quando elementos orgí-
acos se propagam a círculos mais amplos. Krapelin atribui a quantidade
das autorrecriminações infundadas observadas em nossos pacientes oci-
dentais e raramente ocorrendo nos javaneses ao nível cultural europeu,
em que o sentimento de responsabilidade representa papel mais relevante.
A certas épocas, em situações que promovam a comunidade masculina
e a exaltam por força de concepções filosóficas, o homossexualismo de-
sempenha papel que, noutras épocas e situações, é de todo indiferente, ou
se despreza, ou se condena.
Os fenômenos histéricos, que, na Idade Média, tiveram significação
histórica de não pequena monta, cada vez mais retrocedem no mundo mo-
derno. Inversamente, as esquizofrenias jamais tiveram maior importância
nos tempos medievais, pelo que até o momento sabemos; nos últimos sé-
culos, entretanto, têm assumido maior relevo (Swedenborg, Hölderlin,
Strindeberg, Van Gogh).
Os anos próximos a 1918 aguçaram a visão da importância que têm os
psicopatas em tempos agitados. Nas épocas revolucionárias, certas perso-
nalidades anormais destacam-se, passageiramente, em maior número.
Não são elas, decerto, que fazem a revolução, nem que constroem seja o
que for; as situações, sim, são tais que permitem se desdobrem com certa
liberdade essas predisposições, durante alguns momentos. “Nos tempos
frios, nós as submetemos a perícias; nos tempos quentes, elas nos domi-
nam”, diz Kretschmer?

b) História da histeria.
A histeria tem uma história; e suas manifestações drásticas, através de
convulsões, alterações da consciência (sonambulismo), realizações tea-
trais, atingem pontos culminantes no correr dos tempos — manifestações
estas que se modificam na forma de acordo com as situações e com as
concepções gerais. Os fenômenos grandiosos que Charcot e seus discípu-
los, no século passado, detalhadamente observados (e também engendra-
dos, contudo, inconscientemente), são vistos rara histeria foi claramente
reconhecido. Mostra a história como fenômeno básico o uso de um meca-
nismo em si mesmo permanente (mecanismo que aparece numa minoria
de indivíduos, sob a forma de doença ou de dom histérico), o qual é posto
a serviço de movimentos, concepções, fins culturais de natureza muito di-
versa. Daí por que há muito mais do que a mera histeria a observar na to-
talidade eventual desses fenômenos históricos; mesmo dentre as manifes-
tações mórbidas atuantes a histeria desempenha o papel principal, ape-
nas; seguem-se-lhe, vez por outra, a esquizofrenia e outras manifestações
mórbidas. Nos fatos históricos que consideramos, trata-se de tudo quanto
se chama, conforme o ponto de vista, superstição e magia, milagre ou en-
cantamento; possessão, epidemias psíquicas, bruxaria, instituição artifi-
cial de estados orgíacos, espiritismo.
1. Possessão. Todos os povos e todas as épocas acreditaram na possi-
bilidade de espíritos (demônios e anjos, diabos e deuses) entrarem nos ho-
mens e deles se apoderarem. As doenças do corpo explicavam-se, então,
por influência dos demônios; principalmente, as mentais e, nesse caso,
mais que quaisquer outras, aquelas em que o homem parecia transfor-
mar-se noutra pessoa; em que a voz, a atitude, a expressão do rosto e o
conteúdo do que dizia davam impressão de outra personalidade; em que
essa alteração cessava também repentinamente. No sentido próprio e mais
estrito, fala-se, entretanto, em possessão quando o próprio doente vivencia
o fato de ser, ao mesmo tempo, duas criaturas, de realizar duas modalida-
des emocionais absolutamente heterogêneas, com dois eus. Entende-se
ainda como possessão a vivência daquelas personalidades alucinatórias
estranhas que se dirigem ao enfermo falando e gesticulando; enfim, tam-
bém se consideram possessão certos fenômenos obsessivos e tudo quanto
se sente como estranho. É claro que a possessão não passa de teoria pri-
mitiva e que a realidade em que se fundamenta esta ideia varia considera-
velmente. Em particular, os estados de possessão com alterações (posses-
são sonâmbula) são muito diversos daqueles em que a consciência se
mantém clara (possessão lúcida); no primeiro caso,’ o que há é quase sem-
pre histeria; no segundo, esquizofrenia.
2. Epidemias psíquicas. Já de há muito se conhece e espanta o fenô-
meno das epidemias psíquicas da Idade Média, fenômeno a que, em tem-
pos modernos, coisa alguma parece corresponder de maneira absoluta. Só
se lhes podem comparar os fenômenos que ocorrem em todos os povos
primitivos da Terra, os quais são acessíveis, por efeito de sua grande su-
gestibilidade, a epidemias psíquicas. Nas cruzadas de crianças, milhares
de petizes agruparam-se (dizem que até 30.000), puseram-se a vagar, bus-
cando a Terra Santa, abandonando o lar e os pais com uma paixão que
freio algum pôde conter; e acabaram miseravelmente dentro de pouco
tempo. Foi, sobretudo, nas épocas que se seguiram às grandes epidemias
de peste do século XIV, mas também noutras, que irrompeu, em diversas
partes da Europa, o frenesi coreico a que inúmeras pessoas não tardaram
a sucumbir. Tratava-se de estados de excitação convulsiva, de danças or-
gíacas com vivências teatrais alucinatórias, seguidas de amnésia parcial
ou total; por vezes, acompanhadas de timpanismo abdominal, que se com-
batia mediante forte compressão com panos. — Enfim, nos séculos XVI e
XVII, disseminaram-se as epidemias dos conventos, em que se viram frei-
ras possuídas, coletivamente, pelo diabo, assumindo evolução dramática
com a agitação dos exorcismos e do retorno demoníaco. Quando o bispo
ordenava a interdição do convento e a segregação das monjas, a epidemia
cessava sem mais tardar, espalhando-se célere, porém quando combatida
em público pelos padres exorcistas. Todas essas epidemias podem identifi-
car-se, conforme os sintomas 'individuais nelas descritos, com fenômenos
essencialmente histéricos, de conteúdo variável segundo o ambiente e as
concepções vigentes. Por que é que as houve em certos tempos e não em
todos? Por que é que já não mais ocorrem? Pode-se responder que essas
epidemias 'ainda ocorrem atualmente, se bem que em medida mínima;
mas que já não se espalham; pelo contrário, sufocam-se no germe pelo
fato de que não lhes correspondem as concepções e expectativas das mul-
tidões, nem quaisquer crenças ou temores supersticiosos. ~É certo existi-
rem pequenos grupos espíritas nos quais se dão fenômenos histéricos;
mas o público em geral apenas sorri, com superioridade racionalística, de
tais abusões. São certas épocas particulares — podemos admitir — que,
por força de suas vivências peculiares, de suas concepções religiosas e dos
impulsos e finalidades -que elas ateiam — são certas épocas particulares
— dizíamos — que desencadeiam mecanismos, tranquilos noutras, os
quais se transformam em instrumento utilizado por determinadas áreas
culturais, subsistindo, entretanto, noutras ocasiões, como fenômenos con-
siderados meramente mórbidos e isolados.
3. Bruxaria. O pesadelo da caça às bruxas pesou sobre a Europa du-
rante três séculos, desde o fim da Idade Média. Num mundo dominado
pelo medo, as ideias oriundas de tempos remotos ganharam força que hoje
nos é difícil compreender; isso pela influência da política eclesiástica do
combate à heresia (tanto do lado dos católicos quanto dos protestantes) e
sob o estímulo do sadismo. A realização de procedimentos baseados em
puras irrealidades só foi possível mediante as realidades da histeria e da
sugestão. Sempre existiram, no entanto, homens que percebiam a verdade
através do delírio, pois não há espírito de época que a todos se imponha.
Quando, porém, alguma coisa se transforma em fenômeno maciço, nada
consegue o poder do indivíduo esclarecido e honesto. Há certas insinua-
ções culturais e políticas difíceis de compreender, nas quais os mecanis-
mos básicos, sempre presentes, da sugestibilidade, da histeria, do impulso
à mortificação alheia e à automortificação, ao sofrimento e à aniquilação,
pela gratificação mesma que proporcionam, vencem todas as resistências.
4. Instituição artificial de estados orgíacos. Relacionados, certamente,
pelo respectivo mecanismo psicológico, são os estados orgíacos intencio-
nalmente induzidos que se observam, particularmente difundidos, em to-
das as partes do mundo e em certas épocas. Os estados extáticos dos cu-
randeiros e bruxos, o furor dos derviches, as orgias dos bárbaros, bem
como os ritos dionisíacos dos gregos e coisas do mesmo jaez, tudo são fe-
nômenos que se interrelacionam, de algum modo, sob o ponto de vista psi-
cológico. Talvez haja entre' eles tipos diversos, mas é só o que podemos di-
zer. Por enquanto, temos de satisfazer-nos com a observação de fenôme-
nos individuais concretos.
No exemplo dos estados orgíacos tem-se ilustração nítida da ideia geral
de que a investigação meramente psicológica de um fenômeno não é deci-
siva nem para a respectiva influência histórica, nem para o valor que lhe
atribuímos. O fenômeno extático que é, psicologicamente, igual ou seme-
lhante pode afigurar-se-nos, de um ponto de vista; revelação profundís-
sima da religiosidade humana; doutro, processo indiferente, inibitório,
"meramente” patológico; tal qual, noutro campo, o mesmo fato psicológico
ora representa o fundamento de criações espirituais valiosas, ora constitui
a base de “ideias sobrevaloradas”; por exemplo, a convicção de haver-se
inventado o motu-contínuo. Compare-se a admirável exposição que Nitzs-
che fez sobre a embriaguez dionisíaca em sua obra “Geburt der Tragödie”
(Nascimento da Tragédia).
5. Espiritismo. Os fatos psíquicos subsistiram com outra forma no cep-
ticismo do mundo moderno, onde a superstição já não mais se insere em
conexões religiosas e onde os possessos e as bruxas já não se submetem a
exorcismos, nem a processos judiciais. De acordo com o caráter científico
da época, passaram a interessar à medicina, incluindo-se, por vezes, no
mundo da histeria, ou valendo como conteúdo de pseudociências — ocul-
tismo, parapsicologia, espiritismo, que pretendem investigar a realidade do
sobrenatural como se fosse coisa natural. Daí os antigos fenômenos have-
rem sofrido dupla transformação: como fatos psicológicos, foram pesquisa-
dos cientificamente com a confusão permanente entre evento fisiológico-
psicológico espontâneo e artefatos criados pela situação ou pelo observa-
dor; e vieram a dar, simultaneamente, em expediente para a pesquisa de
um sobremundo que se ajusta ao espírito da época, sobremundo de espíri-
tos, demônios, efeitos distantes ocultos, clarividência etc.

c) Psicologia das massas.


Aquilo que se apresenta, de forma especialmente drástica, na epidemia
psíquica, bem como em fenômenos corpóreos — a difusão de atitudes psí-
quicas pelo contágio inconsciente — é o que sempre ocorre nos fenômenos
de massa da fé, do comportamento, da ação, na “opinião pública”. Temos
aqui um setor em que os fatos exercem efeito histórico extraordinário,
efeito que se expõe, básica e exemplificativamente, num livro excelente. É
evento fronteiriço à morbidez, pela supressão de inibições, pelo apaga-
mento da crítica, nivelando atos psíquicos, levando o indivíduo, tal qual
material de forças despersonalizadas, a ações criminosas ou heroicas ex-
tremas, a ilusões e alucinações comuns, a cegueira inconcebível. A massa
não pensa, nem quer, mas vive em imagens e paixões. Esses poderes das
massas opõem-se à comunidade, porque, na massa, o homem desaparece
e nem compreende, a seguir, ele próprio, como foi possível haver colabo-
rado no evento fugaz, momentâneo; na comunidade, um povo configura-se
que se desenvolve consciente de si mesmo, construindo uma continuidade
histórica. Os poderes da massa, utilizados como meio, podem descontro-
lar-se e sobrepujar aquele que os desencadeia, se não tiver presença de
espírito que lhe permita governar, tal qual o hipnotizador, os meios de su-
gestão.
A massa é uma “psique coletiva”, com sentimentos e impulsos comuns
do indivíduo que, como personalidade, desaparece. Nela vivencia-se o “nós
todos”, sem “eu”. Na prática de atos comuns, -ela possui a violência irre-
sistível do momento; é crédula, não critica, não tem sentimento algum de
responsabilidade; mas é também influenciável e rapidamente mutável,
propensa a “psicoses de massas”, a excitações desmedidas, a ações violen-
tas (pânico, saques, assassinatos). Como membro da massa, o homem
comporta-se e procede por forma de que jamais seria capaz tendo em vista
sua individualidade pessoal e sua tradição histórica. Transforma-se em
autômato sem vontade, com sentimento de força exaltado. “O céptico
torna-se crente; o honrado, criminoso; o covarde, herói”.

d) Estados psíquicos arcaicos.


Nos poucos milênios da história, têm ocorrido, certamente, alterações
marcadas das condições gerais, dos conteúdos religiosos, dos ambientes,
dos costumes, do saber e do poder. Apesar de tudo, a disposição básica do
homem não parece haver-se modificado, através dos tempos, de maneira
que se possa demonstrar. Diferença muito mais profunda existe em rela-
ção aos povos primitivos, que têm permanecido fora das grandes culturas,
China, índia e Ocidente; e cujos restos os etnólogos têm estudado durante
o respectivo declínio definitivo. Pretende-se ver, aqui, uma existência hu-
mana que deve relacionar-se com aquela que precedeu nossa história. Não
se pode duvidar de que toda a nossa história repousa em fundamentos co-
locados na pré-história; de que se desenvolveu a partir de realizações ar-
caicas, as quais ainda a dominam. Em que consistem, todavia, é difícil
conceber.
Exemplo: Não existe a aversão ao incesto (rejeição do comércio sexual
entre pais e filhos e entre irmãos) entre os animais; só existe na humani-
dade; universalmente, porém (com poucas exceções, que vêm a ser infra-
ção consciente da vedação em. si geral: em certas famílias soberanas).
Donde provém essa aversão? Evidentemente, associa-se aos próprios fun-
damentos do existir humano tanto quanto a comunidade, a linguagem e o
pensamento, a legalidade dos usos e costumes. Não há observação empí-
rica que atinja essas origens do existir humano.
A pré-história do homem já pressupõe esses fundamentos. Por longo
tempo, no entanto, deve haver vigorado um estado psíquico muito remoto
relativamente ao nosso, isto é, àquele que tem vigorado através dos poucos
milênios históricos; estado psíquico cuja analogia com o dos povos primiti-
vos se julgou encontrar. Etnólogos e sociólogos que os têm estudado1 pro-
curaram evidenciar, pela apresentação de dois tipos de pensamento e
consciência, o que é que distingue do nosso esse mundo dos primitivos.
Enquanto nós pensamos de maneira determinada, claramente conscien-
tes, nitidamente delimitados, distinguindo tudo de tudo — objeto e sujeito,
realidade e fantasia, as coisas entre si etc. — com referência permanente à
realidade empírica, existe um “pensar” diverso, alógico, pré-lógico, -que é
imagístico, intuitivo, significativo, simbólico; que substitui tudo por tudo,
representativamente; um pensar que mistura imagens, de modo que fenô-
menos de origem a mais heterogênea se transformam, infindavelmente
móveis, em imagens; um pensar que toma a decompor o que é empirica-
mente particular em relações e significados heterogêneos; enfim, essa al-
ternância proteiforme das configurações vem a constituir a realidade
mesma, desaparecendo como realidades tanto o espaço quanto o tempo,
ou antes, nem sequer tendo ainda nascido, como ainda não nasceram as
categorias da realidade e do pensamento lógico.
Mas, se confrontarmos os conteúdos concretos da vivência psicótica,
os modos de pensar, as categorias peculiares dos objetos, todos estes fan-
tasmas em sua confusão à primeira vista caótica, todo esse simbolismo,
essa magia e essa imagística, depararemos com paralelos assombrosos
dos mitos, ideias e maneira de pensar dos primitivos. Uma coisa e outra
têm, por sua vez, afinidade com o sonho, o que levou Nietzsche a escrever:
“Arbitrário e confuso, o sonho está sempre alternando as coisas, com base
nas semelhanças mais fugazes; com a mesma arbitrariedade e confusão,
no entanto, os povos criaram suas mitologias poéticas.... Todos nós nos
assemelhamos, no sonho, a esses selvagens.... no sono e no sonho, torna-
mos a percorrer os caminhes da humanidade primitiva”.
Emminghaus, em seu tempo, tratou sucintamente dos “equivalentes
étnico-psicológicos dos distúrbios psíquicos”, citando vasta bibliografia et-
nológica, arqueológica e psicopatológica. A escola de Freud (Jung, sobre-
tudo) comparou o mito com a psicose. A seguir, Reiss e Storch tentaram o
mesmo confronto — sempre no caso da esquizofrenia. Existem, decerto,
semelhanças impressionantes no conteúdo, na conexão significativa dos
conteúdos e imagens. Seria bom que pudéssemos compreender a doença
psíquica a partir do psiquismo dos primitivos e, por sua vez, compreender
esse psiquismo com base no doente que, hoje, observamos. Para tanto, de-
veria ajudar a teoria segundo a qual a doença (como o- sonho) consiste na
supressão de inibições; daí resultaria que a primitividade, por sua vez, ha-
via de emergir das camadas mais profundas do inconsciente. Não se reali-
zaram, contudo, as grandes esperanças que se tinham posto nesta ordem
de considerações. O pensamento arcaico do estado de consciência primi-
tivo é alguma coisa essencialmente diversa da doença psíquica. É o resul-
tado de uma evolução coletiva e serve à comunidade fatual, ao passo que o
pensamento esquizofrênico isola o homem e o segrega da comunidade. O
pensamento imagístico dos primitivos ocorre na comunidade de uma cul-
tura que ainda se acha escassamente evoluída como- pensamento racio-
nal; o pensamento esquizofrênico realiza-se a despeito de suas possibilida-
des ideativas racionais existentes na civilização a que o doente pertence. O
confronto que vem a encontrar analogias entre o primitivo e o esquizofrê-
nico só seria fecundo se permitisse ver e reconhecer a especificidade não
só de ambos os estados, mas daquilo que caracteriza todo ato do pensa-
mento imagístico, bem como o conteúdo das imagens. Reconhecer-se-ia
tanto- a heterogeneidade do estado de consciência do esquizofrênico, da
primitivo, daquele que sonha (heterogeneidade que, quanto ao mais, é
clara), como também a diversidade entre os conteúdos e os atos, do psi-
quismo. Neste particular, todavia, coisa alguma se ganhou. A mera enu-
meração das semelhanças não tarda a fazer-se tediosa, após o espanto ini-
cial; tanto mais quanto do mesmo passo, em cada caso particular, se per-
cebe a dissemelhança.
Temos, pois, de indagar:
1) As vivências esquizofrênicas foram uma das fontes de concepções e
ideias, primitivas? Não se pode, de modo algum, responder.
2) De que modo se compara o pensamento dos primitivos com o dos
esquizofrênicos? Sadio, evidentemente, falta-lhe a característica das vivên-
cias esquizofrênicas primárias, ou dos processos psíquicos esquizofrêni-
cos.
3) Que é que se chama “re-emergência” de imagens arcaicas, mitos,
símbolos, possibilidades e forças enterrados, perdidos na civilização? É te-
oria muito vaga, impossível de verificar-se; ou é conexão que, até o mo-
mento, não se pode explorar mais do que se tem explorado; afirmação
magnífica e infundada, que se repete com material sempre diverso, sem
progressos para o conhecimento.
Se se conceber o pensamento dos primitivos tal qual o apresentam os
etnólogos, ter-se-á um esquema capaz de prestar também serviço à descri-
ção do pensamento esquizofrênico. Podem-se, por essa via, encontrar pa-
ralelos notáveis também entre os rendimentos, as vivências situacionais
que ocorrem quando há debilidade mental por efeito de lesões cranianas e
o pensamento dos primitivos; mas não se poderá encontrar, realmente,
além da descrição baseada em categorias semelhantes, qualquer significa-
ção que implique conexão verdadeira entre a primitividade e a doença.

e) A psicopatologia nas diversas culturas.


Na medida em que se conhecem, os fenômenos psicopatológicos são os
mesmos nas três grandes culturas da Ásia Oriental, índia e Ocidente.
Muda o conteúdo de acordo com as concepções vigentes. As manifestações
são idênticas mesmo nos desvios neuróticos individuais.

f) O mundo moderno e o problema da degeneração.


Há mais de um século surgiram as visões de decadência que previam o
fim da cultura ocidental, o declínio da Europa e dos europeus, ou a deca-
dência do homem, em geral. Dentro deste contexto, cabe à psicopatologia
ver: 1) O que é que se pode determinar, no mundo moderno, de referência
a alterações das manifestações mórbidas. — 2) Se há qualquer coisa que
se possa chamar “degeneração” e se é de estabelecer-se que haja crescido,
no mundo moderno.
Têm-se obtido resultados estatísticos sobre o aumento do número de
doentes psíquicos internados, dos suicídios e da criminalidade.
1. Pela estatística dos Estados civilizados europeus duplicou ou tripli-
cou em toda a parte, desde 1850, a cifra das pacientes internados, calcu-
lada percentualmente em relação à população total. Não se segue daí haja
crescido a cifra relativa das doenças mentais que tenham ocorrido em ge-
ral. Nunca se internaram em hospitais, nem hoje se internam, absoluta-
mente, todos os doentes mentais. Talvez o aumento da cifra dos pacientes
internados se relacione, apenas, com o fato de que, atualmente, se inter-
nam mais psicóticos; as doenças mentais teriam permanecido, percentual-
mente, as mesmas em relação à população total. Embora não seja possível
resposta decisiva, a maioria dos psiquiatras considera mais provável esta
última interpretação. Romer observou haver-se verificado em Badén, nos
anos 1904-910, aumento considerável de todas as internações, sem au-
mento relativo mais acentuado, contudo, das primeiras. Os motivos que
explicam a maior frequência de internações são os seguintes: a) A possibi-
lidade vital para os indivíduos mentalmente menos dotados e para as per-
sonalidades anormais é muito mais difícil nas condições de uma cultura
técnica adiantada do que naquelas em que se oferecem possibilidades vi-
tais mais fáceis, ou seja, nas- culturas menos adiantadas, tecnicamente;
ao que corresponde o fato de se internarem, hoje em dia, nas grandes ci-
dades, relativamente mais psicóticos do que no campo; além de constatar-
se aumento das internações correlacionado com a densidade demográfica.
Onde a vida é mais difícil e onde exige mais do indivíduo, os familiares li-
vram-se de seus doentes mentais mais depressa que no campo, onde um
imbecil pode ser alimentado e mantido com mais facilidade; e pode até
produzir trabalho útil, vez por outra. Às mesmas circunstâncias, às exi-
gências maiores da existência, à difusão da instrução primária pode atri-
buir-se o papel tão grande hoje desempenhado nas discussões pelos dé-
beis mentais e pelas crianças retardadas, ao passo que a frequência da de-
bilidade mental parece não se haver notado, em absoluto, noutras épocas.
— Além deste motivo principal, talvez ainda interfiram: a melhoria dos
hospitais, o aumento da confiança neles, a extensão crescente da noção de
doença psíquica conforme a ajuízam círculos mais amplos da população, o
decréscimo do temor que inspiram os psiquiatras, os quais são muito
mais procurados, sobretudo nas cidades, pelo homem moderno- do que
pelo homem de outras épocas, o qual via na consulta uma espécie de sen-
tença de morte.
2. O suicídio, como tal, não é, certamente, sinal de anormalidade psí-
quica, mas a maioria dos suicidas pertence aos tipos de personalidade es-
tudados pela psicopatologia, ou sofre de doenças tangíveis; donde resulta
que a estatística suicidai mede, em certo grau, a frequência dos estados
psíquicos anormais. A partir de 1820, a cifra dos suicídios em relação à ci-
fra da população total aumentou de mais de 50%; além do que, a curva da
frequência mostra oscilações: aumenta com o encarecimento da vida, du-
rante as crises econômicas etc.; diminui nos tempos de guerra. A presun-
ção que mais se ajusta à interpretação destas relações numéricas é a se-
guinte: os indivíduos cuja constituição não se tenha diferenciado sofrem,
quando se alteram as condições culturais, maior quantidade de golpes;
golpes tais que são presa de estados afetivos desesperados e desvalidos,
sucumbindo a psicoses reativas, depressivas e outras; é mais frequente
precipitarem-se em situações nas quais a vida se afigura, daí por diante,
vazia, desesperançada, insuportável. As alterações culturais fazem que se
manifestem com mais frequência as formas reativas dependentes da cons-
tituição.
Quanto à relação entre a frequência do suicídio e as condições cultu-
rais, é interessante a estatística suicidial entre os judeus, que vivem em
condições diversas, comparadas com a população vizinha de católicos e
protestantes:
Para 1 milhão de almas, os suicídios chegaram ao seguinte, na Prús-
sia:

Os suicídios são coisa muito rara na população judia da Europa. Ori-


ental que permanece em sua terra e entre os judeus da Europa Ocidental
antes da emancipação. As cifras mostram a forte influência do meio
(exemplificando-se, em parte, pela religião, que obstaria o suicídio).
3. Justificam-se as mesmas interpretações em relação à curva ascen-
dente do aumento da criminalidade. O aumento das necessidades sociais,
levando a que se manifestem certas constituições criminosas, a aplicação
mais estrita das leis e coisas parecidas parecem bastar como explicação.
A estatística só pode apreender os sinais mais grosseiros de alteração
do psiquismo; pelo que, ora nos voltamos para o confronto de épocas di-
versas, dizendo respeito mais ao qualitativo, ou repousando na mera im-
pressão de. alterações frequenciais. A esta altura, apenas nos é dado indi-
car, com alguns exemplos, o que cabe fazer, quando assim se investiga;
em vez de expor os resultados respectivos — que quase hão existem.
Muito se discute a modificação de todo o estilo de vida que o desenvol-
vimento da cultura técnica, no século XIX, acarretou: em toda a parte,
aceleração do ritmo, agitação pressurosa, desassossego e ansiedade sem-
pre carregados de responsabilidade (sem qualquer caráter metafísico, po-
rém); falta de aprofundamento meditativo, substituído pela ânsia fatigada
de gozos, que produzem novos e fortes estímulos, sem pós-efeito psíquico
íntimo; grande aumento das exigências que se fazem à capacidade de tra-
balho e à resistência etc. Os indivíduos envolvidos nessa mudança do es-
tilo de vida sofrerão, mais que antigamente, de cansaço crônico e dos sin-
tomas neurasténicos que o acompanham. Mesmo que a disposição origi-
nária não lhes mude, os homens tomam-se, no presente, manifestamente
neurasténicos, ao passo que, nas condições pretéritas^ mais quietas,
aquela disposição permanecia latente.
Daí repetir-se muito, nos primeiros anos do século XX, ser o nervo-
sismo a forma nosológica típica da época, a qual apareceria com frequên-
cia enorme relativamente a outros tempos. O norte-americano Beärd foi o
primeiro a descrevê-lo, resumindo-lhe as formas, sob o nome de neuraste-
nia. Nada se pode dizer, em termos numéricos, sobre a frequência das ma-
nifestações neurasténicas no passado e no presente. A leitura de antigos
escritores médicos, mostra que os sintomas particulares também se co-
nheciam com outros nomes, noutros tempos.
A impressão geral, hoje em dia, de referência às neuroses, é a seguinte:
as histerias têm diminuído acentuadamente; muitas manifestações histé-
ricas quase desapareceram (ataques e contraturas); as neuroses obsessi-
vas, pelo contrário, aumentam enormemente.
A teoria da degeneração: Tentamos indicar, no pressuposto de uma
constituição ou disposição inalterada, a significação que tem, conforme a
época -e o ambiente cultural, a mudança de condições sociais para o fato
da diversidade das anormalidades psíquicas. Resta, porém, a questão: Não
se modifica também — sob a influência da cultura, ou sem essa influência
— no curso das gerações, a própria raça, em sua disposição psíquica?
Para o psicopatologista, é particularmente importante a indagação especí-
fica seguinte: No curso das gerações, a disposição hereditária para a anor-
malidade psíquica e para a doença mental diminui ou aumenta? Uma
raça “degenera” sob a influência da evolução cultural? Não há degenera-
ção quando, sob a influência de certo ambiente, os indivíduos desenvol-
vem plenamente sua predisposição nervosa sempre existente. Só há dege-
neração quando esse desenvolvimento mais pleno se transmite, hereditari-
amente, à prole, independente do ambiente. Mas se a prole, eventual-
mente transferida para outras condições de vida, se mostrar tal qual as
gerações anteriores, ter-se-á uma prova contra a degeneração. Bumke pro-
vou que não somos obrigados a admitir qualquer degeneração crescente
sob o efeito de condições culturais especiais. Trata-se sempre, apenas, de
in-, fluências sobre os indivíduos vivos, influências que atingem a estes,
mas não se transmitem.
O exemplo mais saliente que faz sempre pensar na existência da dege-
neração sob influências culturais é o destino das famílias de educação su-
perior. As opiniões divergem de maneira marcada. De um lado, pretende-
se não ocorrer degeneração hereditária; trata-se do efeito ambiental, que
afeta toda geração ulterior já a partir da infância; ao amolecimento, esqui-
vança a esforços, indolência, vida irregular, limitação deliberada da prole,
acasos etc. atribuir-se-ia o resultado. Doutro lado, pretende-se que se
trate de alterações hereditárias: tal qual certos animais não procriam em
cativeiro, o mesmo se daria com as famílias a que aludimos: têm base real
os romances que apresentam uma constituição nervosa inata a crescer de
uma geração para outra. Mas, atualmente, é impossível decidir a questão.
Outro exemplo de degeneração humana pela cultura poderia ser o caso
raro em que se vê, numa raça, a transição rápida para condições sociais
inteiramente diversas. Seria o caso dos negros americanos após a abolição
da escravatura. Antes da libertação, supunham-se 169-175 doentes men-
tais para um milhão de negros; poucos anos após a libertação, 367; daí a
vinte anos, 886.1 Interpretação plausível afigura-se impossível, tendo em
vista o material escassamente conhecido e também a impossibilidade de
comprová-lo criticamente.
O problema da degeneração como acréscimo hereditário de fenômenos
patológicos relaciona-se com aquele das causas que modificam os povos
primitivos pelo contato com a civilização. Fala-se nos efeitos do álcool, do
amolecimento, do fastio vital, do suicídio, dos abortos etc. Raças diversas
parecem haver reagido de modo inteiramente diverso. Extinguir-se não é a
mesma coisa que degenerar.
É à pesquisa genética que cabe responder em que medida a teoria de
degeneração tem base real. Não se consegue discernir um processo total e
inevitável que se possa chamar degeneração; processo este que constitui
ideia fantástica, antecipadora de investigação ulterior.
PARTE 6.
O TODO DO EXISTIR HUMANO

Às asserções empíricas das cinco primeiras partes acrescentamos uma


sexta e última, que não nos aumenta o conhecimento, mas suscita refle-
xões sobre questões filosóficas básicas; reflexões que parecem tão impor-
tantes que não se podem omitir. Embora já não se insiram no domínio do
conhecimento psicopatológico mesmo, não deixam de relacionar-se com a
psicopatologia.

§ 1. Retrospecto À Psicopatologia

a) Objeções ao plano de minha psicopatologia


Há objeções possíveis que, de fato, implicam aceitação, embora expri-
mam de forma negativa o que tem para nós sentido positivo.
1. “Esta psicopatologia não dá quadro algum do todo que seja con-
creto, objetivo; pelo contrário, tudo se desmembra ou se -mantém rigida-
mente contíguo; a multiplicidade do material e dos pontos de vista con-
funde; não se vê surgir quadro algum do existir humano mórbido.” Esta
forma da estrutura fundamental resulta, porém, do fato de não nos dei-
xarmos levar por ponto de vista algum que não tenha validez geral; grupo
algum de fatos que não seja a realidade própria. Em contrário à tendência
de uma dogmática do existir que se exprime numa edificação do todo, rea-
lizamos uma sistemática metodológica. O que nos parece constituir a
questão significativa é se a estrutura respectiva é clara e o modo por que
se pode melhorar.
2. “São incessantes as discussões lógicas, em lugar da apresentação,
simplesmente, da própria coisa. Carrega-se a investigação de materiais su-
pérfluos e improdutivos, investigação que, empírica, deveria subsistir me-
lhor.” — Mas estas discussões servem, precisamente, à clareza empírica,
ensinando a fazer distinções, a fim de possibilitar o reconhecimento claro
da diversidade em relações recíprocas. A própria empiricidade só se faz ní-
tida quando tenho consciência lógica e metodológica de sua apreensão.
3. “Fala-se tanto em compreensibilidades; esta compreensão psicoló-
gica não é ciência; foge à prova, visto tratar-se de discussões não-empíri-
cas de possibilidades psicológicas. E fala-se sempre na incompreensibili-
dade e, afinal, na incognoscibilidade; aliás, de modo tal que parece estar
nisso o essencial”. — Mas é, claramente, a consciência metodológica que
permite tomar consciente cada método, determinar-lhe o sentido científico
em si e aquele que resulta da apresentação de sua realização na pesquisa;
e ainda caracterizar, afinal, os métodos filosóficos que já não pertencem ao
tema, eles mesmos, porque deles não se origina, de maneira imediata,
qualquer resultado investigativo empírico. Para nós, a questão significativa
é se conseguimos evitar, em geral, as confusões e as misturas; e se conse-
guimos manter-nos alertas para a pluridimensionalidade dos esforços ci-
entíficos, bem como para o próprio ser humano, no todo. O fato de subsis-
tir, afinal, à margem de nosso saber uma consciência do existir a que, pre-
cisamente, só um esclarecimento filosófico acede vem a ser a base tran-
quila de uma posição fundamental metódica, sistemática, em vez de trans-
formar- se em coroamento do saber total puramente dogmático; base que,
indiretamente, se esclarece na investigação multilateral. Quando conhece-
mos, estabelecemos aquilo mesmo que, marginal ao conhecimento, não é
acessível ao conhecimento; mas que só pelo conhecimento é sensível.
As possíveis objeções que enumeramos provêm de padrões aos quais
nosso livro se opõe.

b) A necessidade de integração de nosso conhecimento do homem e o


quadro da psicopatologia.
A ciência exige abordagem sistemática e holística, recusando o que é
esparso. Infinitos que são os achados psicopatológicos, infinita que é a
multiplicidade terminológica das linguagens que usam os pesquisadores
— chegando à incompreensibilidade mútua — tanto mais urgente se faz
mostrar o que é que sabemos, realmente, no todo.
Não se atende à necessidade de integração com referências resumitivas
dos conhecimentos especializados, porque os mesmos não se acham em
plano semântico comum, nem pressupõem qualquer moldura de conheci-
mento básico comum.
Também não se atende a essa necessidade mediante um esquema, por
assim dizer, da edificação do existir humano, para mostrar, depois, por
que forma tudo que sabemos se insere como conhecimentos de partes ou
membros desse edifício do existir humano. O homem é incompleto em sua
essência; nele mesmo, é inacessível ao conhecimento.
A integração, ou síntese, só é pertinentemente possível pela estrutura-
ção de nosso conhecimento do homem conforme se desenvolvem as moda-
lidades básicas de nossas concepções, de nosso pensamento e respectivas
categorias; isto é, de nossos métodos. Em esquema metodológico desta or-
dem, a ciência alcança os objetos na medida em que, como tais, são aces-
síveis. Todavia, se quisermos atingir tal limite, teremos de sentir-nos à
vontade além dele. Porque é só por nós mesmos que experimentamos o
que o homem é — ou seja, em nosso trato com seres humanos e o mundo,
com a filosofia e as ciências, com a história — ou porque é necessária em
nós uma base de que vivemos, quando investigamos seres humanos, essa
base — nós mesmos — há de estar presente, a todo momento, como ins-
trumento de nosso conhecimento; base que decide do espaço, da pleni-
tude, da profundidade a que vai nosso saber. É erro querer organizar tec-
nicamente, no todo, o conhecimento do homem, como se qualquer um pu-
desse tê-lo, sem mais; como se semelhante conhecimento fosse possível de
nivelar-se a um plano. O que se organiza, sim, é o conhecer, a fim de apre-
ender o homem em todas suas dimensões, a todos os planos possíveis da
cognoscibilidade. Essa estruturação buscará salientar, certamente,
quanto puder, a simplicidade dos grandes traços básicos, as ideias condu-
toras fundamentais pelas quais o saber particular se articula coerente-
mente e se faz acessível à observação.
Nesta conformidade se há de configurar, necessariamente, o quadro da
psicopatologia científica. O conhecimento que temos é fragmentário
quando termina em enumerações e paralelismos esparsos; ainda é frag-
mentário na multiplicidade das totalidades. A multiplicidade bruxuleante,
nós não a toleramos, porém, e, sim, buscamos ordenar o que não é possí-
vel abranger, do mero agrupamento ao conhecimento causal (só este é que
possibilita a modificação eficaz, o destaque, o impedimento, a predição) e à
visão compreensiva. Nas vias diversas que levam ao espaço ilimitado do
ser humano real, vamos encontrar determinados fatos que objetificam
uma realidade humana; relacionamos uns aos outros os fatos encontrados
e vemos que, apesar de toda distinção radical do sentido que têm, eles
ainda devem ligar-se num fundamento comum, visto serem relacionáveis
uns aos outros; vemos os intrinca- mentos e correlações infindáveis da fa-
tualidade. Aquilo que, sob certo ponto de vista, é elementar será composto
sob outro aspecto. Tal qual não existe um todo singular, também não exis-
tem elementos absolutos; o que se afigura simples talvez se origine de con-
dições complicadas; o que se desenvolve por forma complicada talvez afi-
nal se esclareça, em sua simplicidade, a quem pesquisa.
Para saber de que modo se edifica, se ordena e se articula todo este co-
nhecimento, é necessária a síntese de tudo quanto conhecemos; e esta
síntese — repetimos — só é possível metodologicamente, e não como teoria
do existir humano; é síntese que não se assemelha ao mapa de um conti-
nente, e sim, ao plano que permita explorá-lo. Mas o homem como todo,
ao contrário do continente geográfico, não está à disposição de nosso co-
nhecimento, porque se distingue da existência de qualquer objeto, por
maior que seja, pelo fato de sua excepcionalidade, em toda a natureza,
como ser livre. Daí haver, afinal, um ordenamento sistemático dos méto-
dos, e não um esquema total. Às modalidades conceituais de todos os ca-
pítulos deste livro não introduzem síntese tal que apreendam, em seu con-
junto, o homem no todo; não resulta, afinal, existir humano básico que
empiricamente se reconheça; o que antes subsiste em aberto é o próprio
existir humano, bem como c conhecimento a seu respeito.
Daí julgarmos errado procurar estabelecer e fixar, na psicopatologia,
cientificamente, um princípio do todo como ponto de partida para o conhe-
cimento e a prática, em vez de reconhecer, por uma visão básica de fé, o
espaço infinito da cognoscibilidade. Por exemplo, Tu Binswanger erra, filo-
sófica e cientificamente, quando pretende investigar o homem pelo aspecto
de determinada ideia; quando rejeita o “conceito conglomerativo” do ser
humano como unidade corpórea- psíquica-mental que consistiria na sín-
tese de vários métodos (ou seja, das ciências naturais, da psicologia, da fi-
losofia) e exige uma “ideia pré-ordenada”, que, para ele, é “a ideia ontoló-
gico-fundamental da existencialidade”. Em primeiro lugar, esta formulação
confunde o método do esclarecimento existencial com o conhecimento, ao
mesmo tempo privando-o de sua essência elevada, compulsória, conjura-
tória; em segundo lugar, estatui para a psicopatologia uma base absoluta-
mente inadequada. Não erra menos Prinzhom, quando diz: “Não são os
métodos, e sim os traços fundamentais de uma teoria que diga respeito à
vida, à constituição, à herança e à personalidade que devem ser familiares
ao médico, de tal modo que o determinem em seu trato com os seres hu-
manos”. Prinzhorn pretende, com isso, erigir em princípio do conheci-
mento total e da prática certas modalidades particulares do conhecimento,
que absolutiza em sentido filosófico; o terreno é, no entanto, por demais
estreito; a filosofia, questionável.

c) Retrospecto às totalidades e a questão do todo singular.


Em todas as partes e capítulos deste livro, o objeto de nossa investiga-
ção foi sempre a polaridade de fatos particulares e de um todo a que o fato
se relaciona. Não há coisa alguma singular que não mude por efeito de ou-
tra singularidade e do todo; nem há coisa alguma inteira quê não exista
por efeito da singularidade. O todo é o fundo; é, realmente, a medida que
orienta e limita tudo quanto é particular; é condição de que necessitamos
para conceber, objetivamente, a particularidade. Essas totalidades não se
apresentaram de forma única, e sim, se especificaram em cada campo da
investigação. Recapitularemos sucintamente:
1. O todo momentâneo, no qual ocorrem os fenômenos vivenciados,
foi o estado de consciência. O todo rendimental repousou na uni-
dade integrativa do organismo, tornou-se, sob forma de pensa-
mento, "consciência geral", chamou-se função básica, chamou-se
forma atual do curso da vida psíquica e, com o aspecto de totali-
dade das capacidades rendimentais, inteligência. — O todo da
unidade corpo-alma (em estruturas neurológicas, hormoniais,
morfológicas) constitui pressuposto da análise somática. — Para
a psicologia da expressão, o todo é linguagem de uma essência,
que se caracteriza por seu nível de forma ou de desenvolvimento;
o mundo e a mente existem como totalidades em que participam
a ação e o comportamento individual, bem como a obra.
2. O todo das conexões compreensíveis foi o caráter.
3. O todo das conexões causais foi apreendido nas teorias.
4. As totalidades da apreensão clínica foram as ideias; da unidade
nosológica, do eidos (constituição etc.), do bios (como todo da
configuração vital temporal).
5. O todo da comunidade e história do homem foram o estado so-
cial, as formas objetivas da cultura, a época, o espírito comunal
tal qual se apresenta no povo, no Estado, na massa.
Se contemplarmos esta série de esquemas básicos do todo, o que, pri-
meiro, nos chama a atenção é a multiplicidade; nenhum todo é o todo;
cada totalidade é uma entre outras, é uma totalidade relativa. Em segundo
lugar, vemos o pendor universal a absolutilizar a totalidade eventual, a
nela atingir o existir psíquico próprio; ou, quando menos, seu centro, sua
onidominância. Há em toda absolutização uma verdade que só é destruída
pela absolutização. O todo eventual tende a valer como o todo derradeiro.
A psique é consciência e mais nada — o todo rendimental é a única objeti-
vidade, o único objeto da ciência; a unidade corpo-alma é a realidade
mesma; o mundo e a mente são o absoluto, no qual participará a reali-
dade psíquica; o caráter é a essência da psique; sua compreensibilidade é
seu existir; as teorias, apreendem a verdadeira realidade; as conexões cau-
sais são a substância das coisas; o corpo é tudo e a alma mais não é que
epifenômeno dos processos cerebrais; o homem é, apenas, estação inter-
mediária das conexões hereditárias — a realidade da clínica são as unida-
des nosológicas, as constituições, o todo vital temporal como unidade; o
homem é função da sociedade e da história.
Como tais, são errôneas todas estas absolutizações. A mera multiplici-
dade, se a representamos efetiva e concretamente, mostra bem claro que
uma totalidade da vida psíquica jamais é o próprio todo. Conhecer o ho-
mem é a mesma coisa que viajar pelo oceano infinito para descobrir conti-
nentes; cada vez que se toca uma praia, uma ilha, aprendem-se certos fa-
tos, mas se suprime o conhecimento ulterior com a afirmação de estar, por
assim dizer, no centro das coisas; e as teorias são exatamente bancos de
areia nos quais, encalhamos sem ganhar, de fato, terra firme. Daí por que,
em nossa exposição, sempre fizemos sentir os limites da totalidade even-
tual; as totalidades são sempre perspectivas particulares no existir hu-
mano, são aspectos individuais de sua manifestação. Que é, todavia, o
todo do existir humano, o todo único ou singular? As. muitas totalidades
ajuntam-se para edificá-lo? Ou o todo do existir humano não passa de
uma palavra sem objeto? Responderemos que o todo singular do existir
humano não vem a ser para nós objeto; e que a reflexão filosófica escla-
rece por que razão isso não é possível. Dentro em pouco, tentaremos dar
algumas indicações a respeito, nos parágrafos concernentes à essência do
homem. Falha o esquema de um existir humano no todo; revela-se-lhe
logo* a particularidade na medida em que é real; revela-se em nova forma
a fragmentariedade do homem, embora este pareça único. Todas as totali-
dades são tipos de totalidades em sua fragmentariedade. Em vão se tenta
apreender o homem no todo, todo no qual se clarifiquem, teoricamente, to-
das as totalidades até o momento- apreendidas como elementos e mem-
bros. De cada vez que apreendemos o todo, ele mesmo esquiva-se e o que
nos resta é um esquema especial de todo, uma modalidade total entre ou-
tras. Eis porque é errônea não só a absolutização de uma totalidade, mas
também a absolutização que pretenda abranger o todo humano real com
todas as totalidades que, até agora, apreendemos.
Daí resulta considerarmos errada a pretensão de qualificar como ter-
reno especial de pesquisa e ensino o todo do existir humano. A cognoscibi-
lidade esgota-se em particularidades e nas totalidades sempre especiais.
Não há antropologia que a isso acrescente qualquer conhecimento novo;
nem pode haver “teoria específica do homem para uso do médico” — an-
tropologia médica, que, afinal, equivale à antropologia filosófica, esta não
sendo teoria que apresente objeto adequado, mas processo infinito de
nosso próprio esclarecimento, a que também servem aquelas investigabili-
dades particulares do ser humano que nos ocupam neste livro.
A unidade do indivíduo total, no que diz respeito ao conhecimento, em
nada mais reside senão procurar relações entre tudo quanto se conhece
no homem; ou seja, na ideia da totalidade das relações cognoscíveis.

d) Retrospecto aos enigmas concretos.


Em quase todos os. capítulos, deparamos com enigmas, isto é, não
questões provisórias e sim enigmas fundamentais para o nosso método de
conhecimento. Aquilo que é misterioso mede-se por uma compreensibili-
dade. Não se explica um fato com base nessa compreensibilidade, porque
talvez se insira noutro tipo de compreensibilidades para o qual haja outros
mistérios. Daí cada mistério levar a que se reconheça a falência de uma
modalidade de compreensão e, do mesmo passo, a que se busque outra
modalidade para a qual aquele fato não é misterioso, mas básico de uma
compreensão. Os enigmas estão sempre no limite de uma modalidade cog-
noscitiva.
Estes enigmas são a característica de todo conhecimento. Todo saber
desvela uma ignorância que não é provisória, mas específica. Assim nas
ciências inorgânicas: por exemplo, as leis e achados gerais da química não
explicam a distribuição fatual da matéria no espaço; digamos, a circuns-
tância de o enxofre acumular-se na Sicília. O mesmo quanto às ciências
biológicas: as conexões físico-químicas vitais (fisiologia) não explicam a
forma (morfologia) no todo, a intimidade de uma vivência, a finalidade, e
vice-versa. Existe um todo, que, no entanto, não se explica pelo conheci-
mento da particularidade. Mais ainda — há um enigma na compreensão
das conexões teleológicas de todas as funções biológicas necessárias à
existência e reprodução da espécie: a inutilidade das estruturas formais
que são muito mais variadas, nas plantas, do que é necessário à adapta-
ção topográfica (Gõbel). As conexões biológicas (fisiológicas e morfológicas)
não explicam o fenômeno primário da expressão dos animais (o fato de
uma interioridade transformar-se em exterioridade compreensível); por
sua vez, a finalidade biológica não explica a casualidade de numerosos fe-
nômenos expressivos.
Temos interesse pelos enigmas concretos que dizem respeito ao conhe-
cimento do homem, no qual reaparecem, em geral, os enigmas da vida; a
esta altura, porém, da vida que constitui fundamento do existir humano.
Alguns exemplos:
1. Curtius e Siebeck falam no enigma da constituição. “A constituição
é conceito amplo, que encerra, ao mesmo tempo, um juízo' médico e um
Juízo sobre a personalidade total e sua situação. Não se pode compor a
constituição a partir de fragmentos que se destaquem da relação do do-
ente com seu perimundo. Daí não poder a consideração constitucional
acompanhar nossa investigação costumeira de análise e inquirição gené-
tico-causal. Uma tensão existe que não se pode resolver.... A consideração
constitucional jamais poderá reduzir a investigação que nos leva a procu-
rar causas e conexões individuais tangíveis; deve, sim, ensinar-nos a si-
tuar corretamente todas as relações individuais que estabeleçamos. É as-
sim que nos mostra a limitação do diagnóstico bacteriológico, cuja impor-
tância, todavia, nunca lhe é lícito desconhecer.” Avulta o enigma da cons-
tituição quando pretende abranger a personalidade total e não apenas o
evento somático.
2. Os limites da investigação genética novos enigmas apresentam.
Tudo é hereditário, na medida em que a disposição (ou constituição) here-
ditária represente o fator decisivo para a vida psíquica total do homem,
juntamente com o perimundo. A explicação esbarra, todavia, concreta-
mente, em certas limitações:
1) “Como é que os gens são capazes de produzir, no desenvolvimento
individual, aqueles fenômenos dos quais constituem a base hereditária —
não se sabe (embora se conheçam alguns efeitos hormoniais). Mesmo, po-
rém, que se encontre o vínculo entre a genética e a história desenvolvi-
mental (a ontogenia), entre os gens e os organizadores, ainda assim se
apreendem, apenas, conexões dentro dos pressupostos da vida; pressu-
postos que têm. caráter mecânico, que não são, eles mesmos, vivos; mas
não se apreende a própria vida. Como é que os gens são capazes de pro-
duzir fenômenos psíquicos que se inserem, entretanto, em sua totalidade,
no contexto da tradição e da educação, da existência cultural e histórica
— isso foge sequer a presunções. Não há quem duvide, certamente, de que
a realidade mental se enraíze até suas derradeiras ramificações em funda-
mentos biológicos; mas estes jamais explicam o que é em si mental, ainda
que seja clara sua relação com a psique e a mente.
2) A unidade do indivíduo pressupõe a unidade do todo de um equipa-
mento genético, alguma coisa que já não se pode apreender como gen; o
que se apreende nas conexões hereditárias é, por assim dizer, um material
do evento biológico, mas não a unidade eventual.
3) Há constituições que não são herdadas, nem herdáveis, apesar de
congênitas. Pertence ao indivíduo alguma coisa que não se encontra nas
conexões hereditárias.
4) Contemplando o caráter pessoal do homem, sua liberdade e espiri-
tualidade, sentimos’ um “ser ele mesmo” insubstituível; seja como for, um
indivíduo único.
Em certo ponto decisivo, a partir de uma origem própria, por assim di-
zer, teologicamente falando, cada homem é “criado”; não é, apenas, inter-
mediariedade da modificação de qualquer material hereditário. Ainda que
se conceba a mente como realidade objetiva, mesmo no contexto de fatos
naturais (família altamente prendada), não se pode concebê-la como resul-
tado desses fatos. E o homem, como indivíduo — pelo menos, segundo en-
sina a filosofia alemã desde Nikolaus Cusanus — espelha o todo, a atuali-
dade do mundo em pequena escala, insubstituível e ^singular. Em vez de
diluir-se numa soma de fatores hereditários (o que é correto relativamente
ao material de seus pressupostos e requisitos), o indivíduo é “criado por
Deus diretamente”.
3. Quando concebemos a vida psíquica em seus rendimentos, o ho-
mem como sendo a totalidade de suas capacidades produtivas, esbarra-
mos em uma limitação que consiste na circunstância do haver alguma
coisa que perturba a regularidade das conexões rendimentais, que lhes
restringe a calculabilidade. Abstração feita de uns tantos testes rendimen-
tais cujo sentido é puramente fisiológico (relacionados com a psicologia da
percepção, da fatigabilidade, da memória), quase todos os rendimentos se
realizam em forma de execuções mentalmente condicionadas. Mas
quando, ao revés, queremos compreender os rendimentos como mentais,
esbarramos no limite de condições biológicas que suportam, restringem,
perturbam uma realização suscetível de imaginar-se por forma puramente
mental. Se, fazendo psicologia, mentamos um evento natural, é só medi-
ante realidades mentais e psíquicas que o atingimos; realidades as quais,
no entanto, não se mentam como elas mesmas, e sim como índices de ou-
tro evento. Em toda realidade que a psicologia apreende já há a presença
da mente e do espírito; daí sempre resulta o enigma concreto: o que' é a
mente, como atua? As respostas que se lhe dão mais não fazem do que
acentuá-lo, sem resolvê-lo. Assim, podemos dizer: A mente, que é alguma
coisa transcendente à natureza, serve-se do corpo para realizar-se através
dele, para através dele falar e desenvolver-se no mundo; está separada
(Aristóteles) do todo corpo-alma, mas não existe separada; existe, sim,
apenas, na exteriorização pelo corpo, usando o sistema nervoso como -ins-
trumento; ou é (segundo Klages) o demônio que destrói a vida.
4. Discutimos os limites da compreensão em relação ao evento bioló-
gico e em relação à existência. Em toda compreensão da realidade do ho-
mem existe o enigma concreto, consistindo em que o compreensível, apa-
rentemente ilimitado em si, em si concluso, é permanentemente condicio-
nado em sentido inverso, apontando para algo outro, que nem o origina,
nem o limita.
5. A unidade de um bios prende-se aos inúmero acasos, que o afetam
no correr do tempo. Compreendemos o homem pela sua aptidão, pela ma-
neira por que apreende as oportunidades ocorrentes, por que as utiliza. O
limite vem a ser sempre, contudo, o acaso, que introduz interpretação ab-
solutamente diversa, inverificável no sentido de validez geral: como destino
e providência, como linguagem multívoca da divindade (por exemplo, na
autocompreensão de Kierkegaard). Menta-se a unidade do bios fundada
num todo a que pertencem, como membros, os acasos.
6. O enigma concreto — mentados em separado que sejam corpo e
alma — existe em todo movimento dos braços. Quando quero pegar na
pena, como é que consigo que o braço e os dedos façam os movimentos
correspondentes? Alguma coisa que é puramente psíquica, exprime-se na
motricidade; é a única situação do mundo em que “a magia” <é real: tra-
dução imediata, direta, do mental no sensório-espacial. O enigma da ex-
pressão — a exteriorização de uma interioridade, e isso em forma compre-
ensível — e também o enigma da linguagem vão-se acrescendo à medida
que se constatam esses fenômenos. E no confim dos mesmos fatos que
são, por sua vez, tangíveis, está a interioridade, que não se exprime, mas
talvez se comunique; e a interioridade que também não se exprime em co-
municação alguma é real naquilo que, sendo único, não se pode objetificar
nem repetir, não existindo, pois, para o conhecimento, embora sendo real.
Se contemplarmos a totalidade dos enigmas concretos, deduziremos,
abstratamente, alguns princípios: a saber, as maneiras por que sempre se
encontra a alteridade no limite; alteridade que chamamos o infinito, o in-
divíduo, o abrangente.
1. Surge o enigma, no limite eventual da investigação, pela investi-
gação mesma; ou seja, naquele ponto em que seu objeto sofre
combinações inúmeras, infinitas.
2. O enigma é o limite que representa o indivíduo como tal; indiví-
duo que se tem de explicar em função de si, e não de outro. Nem
no todo se pode aprendê-lo: individuum est ineffabile. Embora
articulado, como ente biológico, em conexões hereditárias e,
como ente psicológico, na comunidade e na tradição cultural —
por assim dizer, na intersecção de duas linhas, o cabedal heredi-
tário e o perimundo — ele não é mera etapa destes, e, sim, de
um modo ou doutro, ele mesmo, único, por si, concretamente
histórico como plenitude do presente, como onda incomparável
singular na infinidade do mar e, ao mesmo tempo, espelho do
todo.
3. O enigma é o limite nunca transformado em objeto como- se
fosse o abrangente; em que e a partir de que, entretanto, está
aquilo que vemos como objeto.
Não é só do conhecimento do existir humano que emergem estes três
limites, diversos pelo sentido; limites com que deparamos, á pesquisa,
quando percebemos a nitidez dos enigmas concretos. Mas é no homem
que coincidem e se preenchem, de maneira peculiar, com aquilo que cha-
mamos liberdade. Conhecemos, em nós próprios o que, entretanto, não re-
conhecemos, nem experimentamos alhures a não ser pela comunicação
com outros indivíduos. O que não existe para o conhecimento torna-se, no
entanto, indiretamente sensível no conhecimento do existir humano medi-
ante incalculabilidades, irregularidades, distúrbios que inquirimos quando
queremos. apreender o homem de maneira suficiente, puramente objetiva.
Mas é para a liberdade autoexperimentada que se volta o esclarecimento
filosófico. Faremos aqui os seguintes comentários, apenas:
1. Na medida em que o evento empírico é necessariamente cognoscível
segundo certas regras e na medida em que se podem apontar empirica-
mente certos fatos, não- há liberdade. A negação- da liberdade é significa-
tiva, empiricamente, mas também limitada ao terreno da objetividade em-
piricamente cognoscível. É inútil — e faz suspeitar da própria liberdade —
tentar provar a liberdade com base na experiência obrigatória. A liberdade
não e objeto do conhecimento investigativo. A alternativa não é eu assi-
nalá-la empiricamente ou não, e sim eu querer ou não assumir a respon-
sabilidade pela frase “Não há liberdade alguma” e suas consequências.
2. O homem não vive e vivência apenas, mas sabe disso. Na atitude em
relação a si mesmo pode a si mesmo ultrapassar-se. O que eu sei já não
sou meramente; mas, sim, pelo meu saber, aquilo que eu sei de mim
mesmo torna-se outro. Todo existir empírico, que eu sou, tem de esclare-
cer-se de referência à minha liberdade: de que modo esta nele existe; de
que modo ele pode transformar-se pela apropriação; de que maneira atua
para servir ou limitar a liberdade.
3. A liberdade está, formalmente, presente em toda compreensibili-
dade. Tanto quanto compreendo, reconheço liberdade implícita. A negação
radical da liberdade levaria a renunciar à compreensão.
4. A experiência dos limites e o reconhecimento da liberdade têm ocor-
rido com frequência, mas ao mesmo tempo, têm vindo a transformar-se
em ponto de partida para novo erro: para a conversão da liberdade em ob-
jeto ulterior do conhecimento, em fator do evento. Ideler, por exemplo, for-
mulou, com acerto, que “a liberdade moral é conceito originado da razão,
antecedente a toda experiência e nascido de uma necessidade interna;
conceito que está fora do campo da investigação empírica.” Mas Ideler
aplicou erradamente esta frase filosófica, pretendendo conceber a origem e
a evolução das doenças mentais com base na luta entre a livre autodeter-
minação e a paixão; o que fez foi objetificar a liberdade em fator dentro do
evento natural. Desta forma, contrapondo-se ao princípio que, por um mo-
mento, reconhecera verdadeiro, não só restringiu a liberdade, como a in-
verteu, com todas as consequências para um psiquiatra que se extravia
em sua concepção do ser humano. É errado colocar lado a lado natureza e
liberdade (vida e mente) como se fossem fatores no mesmo plano; como se
ambos interatuassem um sobre o outro. O que acontece, realmente, é que
uma forma conceituai sempre encontra limites: seja ciência natural, seja
compreensão e, junto com esta, iluminação; não, entretanto, para incorpo-
rar novos fatores de esclarecimento, e sim para perceber sua própria limi-
tação, no todo, ante o existir. Assim é que a causalidade esbarra na liber-
dade e vice-versa; assim é que a compreensão esbarra na incompreensibi-
lidade, quer se trate da causalidade biológica, quer da existência mesma.

§ 2. A Questão Da Essência Do Homem

Os retrospectos à psicopatologia levaram à questão da essência do ho-


mem, questão a que têm respondido a biologia, a antropologia, a teologia,
e a filosofia. Tema vastíssimo, limitar-nos-emos a comentá-lo com umas
poucas observações, que tiro de outros escritos meus, nos quais se encon-
tram a exposição e a fundamentação do que vai aqui brevemente esbo-
çado.1

a) A atitude filosófica básica.


Vamos expor, numa série de frases curtas, os pressupostos sob os

1 Para esclarecer a ideia da essência do homem, são importantes, sobretudo, Platão, Sto. Agostinho, Pascal, Kant,
Kierkegaard, Nietzsche.
quais (e só sob eles), se pode representar de forma significativa a essência
do homem.
1. Dizemos, por exemplo: O homem existe, a qualquer momento, como
um todo. Caminha, como indivíduo, pelo mundo, é uma coisa — este
corpo — no espaço; isso constitui, porém, a modalidade conceituai mais
externa. Se eu trato, digamos, o homem como sendo esse todo corpóreo,
aniquilo o próprio homem, que se transforma, corpo que é, num pedaço de
matéria, a qual preenche o espaço; alguma coisa que pode servir, talvez,
como peça de uma máquina etc. Mas se eu vejo o homem como esse corpo
particular, sou levado, sem mais tardar, mesmo concebendo biologica-
mente o todo corpóreo, por uma quantidade de tangibilidades que nunca
são o todo. Nada no homem é diferente do que ocorre em qualquer ente
vivo, mesmo uma planta, mesmo o mundo total. Assim que se concebam
para fins de conhecimento, todos esses objetos se dilaceram. O todo mais
não é do que ideia e muitas- ideias existem.
2. Teríamos o todo singular se pudéssemos preencher o sentido de uni-
dade; sentido este que, entretanto, é múltiplo; por exemplo: o objeto singu-
lar é o objeto que tenho, a qualquer momento, quando penso, diante de
mim (a unidade formal de tudo quanto se possa pensar). — O indivíduo
singular é uma unidade infinita: se tivermos de conhecê-lo, ele se partirá
em muitas modalidades de individualidade; quando o conhecermos, per-
derá sua unidade em favor dessas unidades que é. — A existência singular
é pensamento filosófico que, em ideação transcendente, usa a singulari-
dade no esclarecimento da incondicionalidade da existência. Quando co-
nhecemos, apreendemos unidades; nunca, entretanto, a unidade final,
nem a do indivíduo, nem a da existência.
3. Quando conhecemos, possuímos todo o existir na cisão sujeito-ob-
jeto, apenas, isto é, como objeto de nossa consciência, tal qual se apre-
senta, cindido, a esta consciência em geral; e não tal qual é em si. É por
isto que, na realidade empírica, só temos o existir na forma por que se nos
apresenta, dentro das categorias da consciência, como fenômeno que
ocorre nas muitas modalidades básicas da experiência, da explicabilidade,
da compreensibilidade.
4. Porque conhecemos fenômenos e não o existir em si mesmo, esbar-
ramos, quando conhecemos, em limites que fazemos sensíveis mediante
conceitos marginais. Os conceitos marginais (por exemplo, “existir em si”)
não são vazios, e sim podem preencher- se mediante uma realidade pre-
sente; não dizem respeito a um objeto, mas àquilo que me suporta e me
abrange com toda a objetividade.
5. As modalidades daquilo que é abrangente não se conhecem, decerto,
mas se esclarecem. O abrangente é o existir em si (mundo e transcendên-
cia), ou o abrangente que nós somos. Inverte-se nossa ideia basicamente
quando queremos transformar o abrangente em objeto e, por sua vez,
tratá-lo como alguma coisa possível de conhecer. Nosso pensamento pode
tocar e representar mais do que lhe é possível transformar em objeto do
conhecimento; representação esta que não nos aumenta o saber objetivo,
mas nos ensina a ver em seus limites o sentido e a aplicabilidade desse
saber. É do abrangente que emerge diante de nós, vem a nosso encontro,
toda objetividade, mostrando o existir em perspectivas e aspectos de tipo
necessário e geralmente válido; por conseguinte, cognoscível. Mas o abran-
gente, mostrando-se no fenômeno do conhecimento progressivo cada vez
mais rico e mais variado, sempre reflui e permanece inobjetivo em si
mesmo.
6. O abrangente que temos de esclarecer é de variados tipos (o existir
em si e o existir que somos). Representar o abrangente que somos (existir,
consciência em geral, mente — razão e existência mesma) é fundamental
para a filosofia do existir humano.
7. A consciência do abrangente recalca para a profundidade o conheci-
mento do fenômeno. O cognoscível, movendo-se sempre no fenômeno, é de
primeiro ou segundo plano. Para a consciência filosófica, todo cognoscível
possui, por assim dizer, uma linguagem, uma espécie de código, cuja es-
cuta impulsiona para diante nossa ânsia de saber. “É assim”, “Isso acon-
teceu”, “Há isso” são expressões que manifestam este espanto quando se
ouve.
8. Como em todas as ciências, também na psicopatologia nos cabe fa-
zer sensíveis os limites, ver os enigmas concretos, a fim de, por uma parte,
percebermos o espaço livre multilateral da investigação científica em cada
um de seus métodos possíveis; e a fim de, por outro lado, não ultrapassar-
mos os limites da ciência, quando avaliamos e utilizamos os respectivos
resultados. Só então, exatamente pela ciência, é que podemos, quando es-
barramos nos limites, sentir o abrangente de maneira única, insubstituí-
vel, além de evitar a esquematização por sua vez erroneamente racional
desse abrangente.
A posição filosófica, e não um saber filosófico dogmático, é decisivo
para a teoria e a prática quando lidamos com o homem.
b) A imagem, do homem.
Nos métodos de investigação do existir humano, não emerge qualquer
imagem unitária do homem, e sim muitas imagens, cada uma com força
que lhe é peculiar, impositiva. A investigação empírica, a apreensão com-
preensiva do homem, o esclarecimento filosófico têm sentido diverso. É
erro proceder, quando se conhece o homem, como se todos os conheci-
mentos a seu respeito estivessem num só plano, como se tivéssemos antes
nós o homem como objeto, que seria singular e cujo existir conheceríamos
como um todo, em suas causas e efeitos.
Quando se indaga se a multiplicidade do conhecimento do homem é
provisória e se pode, em princípio, ser elevada a uma vasta unidade
abrangente, a resposta é: A investigação fatual tem ensinado que a multi-
plicidade metodológica só se separa com mais nitidez, de referência à sua
diversidade de significação, pela experiência dos respectivos resultados;
mais ainda: ensina que o que, decerto, se procura e se encontra, quando
se pesquisa, são relações multilaterais daquilo que se diversifica; não é,
entretanto, o princípio da unidade que se descobre, e sim apenas emergem
ideias de unidades relativas. Tudo isso é, filosoficamente, concebível, por-
que, na medida em que se pode investigar, empiricamente, o homem como
objeto do conhecimento, não há liberdade humana. Mas, na medida em
que vivenciamos, atuamos, investigamos, somos livres em nossa autocer-
teza e, por isso, há mais coisas' investigáveis do que aquelas acessíveis à
nossa investigação. O próprio doente, transformado em objeto, não é livre,
como tal, mas vive, como ele mesmo, se aceitamos a liberdade num sen-
tido ou noutro. Noutras palavras: Se houvesse conclusão empírica do ho-
mem, divisão completa de seu existir como existir possível de investigar,
liberdade alguma haveria. Se, tendo em vista as divisões que estamos
sempre fazendo do homem em partes, componentes, membros, fatores, in-
dagamos por que é que as há, só estas e não outras, a resposta é a se-
guinte: Talvez haja ainda várias outras; há, certamente, outras divisões. A
multiplicidade dos métodos e aspectos, a fragmentação do existir humano
como objeto da investigação, a inconclusividade é a verdade fundamental
do conhecimento do homem no todo. Falha quem tentar apreender o ho-
mem no todo de maneira conclusiva e geral, porque cada coisa que se
apreende é finita, isolada, não é o próprio homem.
Têm surgido muitas imagens do existir humano: A consciência como
palco em que ocorrem certos fenômenos, capaz, palco que é, de apresentar
vários estados, ou cenas. — A estruturação da psique vivenciante em per-
cepção, representação, ideação, sentimento, instinto, vontade (ou em mais
ou menos membros). — A vida como arco reflexo, que a estímulos externos
responde para fora, afinal, com retroefeitos, numa edificação interna com-
plicada, mediante -seleção e transformação. — O todo como aparelho pro-
dutivo. — A vida num mundo que, com ela, se configura num todo. — A
essência básica do homem como auto-objetificação pela expressão, pelos
atos, pelo mundo, pela obra. — Sua estrutura como unidade de conexões
compreensíveis ou causais. — Seu existir como existir biológico (antropo-
logia), como configuramento cultural (história), como materialização histó-
rica do indivíduo (esclarecimento existencial). — O todo formado de corpo
e alma (dualismo), de corpo, alma, mente (trialismo), da unidade corpo-
alma (monismo). — As variações das possibilidades humanas básicas
numa multiplicidade de constituições e caracteres.

c) Esquema filosófico do abrangente que nós somos


A questão concernente ao que é, propriamente, o homem sempre le-
vou, dentro da psicopatologia, às totalidades. Entretanto, cada totalidade
que se nos apresenta, no processo investigativo, se a medimos pelo abran-
gente do existir humano, é um fenômeno; assim se dá com relação à per-
sonalidade, quando falamos nela como caráter compreensível, típico. Os
esquemas — todos eles — do existir humano que vemos de maneira obje-
tiva e com que operamos cientificamente não são o abrangente, mas nele
se contêm, por ele são envolvidos.
A tendência moderna da psicopatologia é afrouxar todas as unidades e
totalidades. A questionabilidade da unidade nosológica foi o primeiro
passo. As unidades das constituições e dos bios são igualmente questioná-
veis. Mas que é que podem substituir as ideias, antigamente válidas, da
totalidade? É inútil falar em elementos novos, componentes, radicais, áto-
mos, gens psíquicos, pois não se chega ao todo como construção destes
elementos, sempre surgindo uma realidade ulterior no espaço do abran-
gente. Se esclarecermos esse espaço do abrangente, realizaremos uma in-
teriorização daquilo que somos e podemos ser, mas não ficaremos sa-
bendo o que é. Se falarmos nisso, poderemos ser tentados a tomar, por
sua vez, aquilo que se disse como teoria dos componentes do existir 'hu-
mano. Vamos assinalar, brevemente, para o fim de precaver-nos desta ilu-
são, quanto é inobjetivo apreender o abrangente que somos pela multipli-
cidade dos espaços em que nos encontramos.
Independentes de nós, são reais o abrangente do mundo (segundo o
conceituou Kant, o mundo não é objeto, mas ideia; o que conhecemos está
no mundo, nunca é o mundo) e o abrangente da transcendência. Nesse
abrangente, o homem atinge o existir, que é real mesmo sem ele, mesmo
que não saiba desse existir; mas só é real conforme lhe aparece em geral,
na cisão sujeito- objeto da consciência e conforme lhe fala. Tem outro sen-
tido o abrangente entendido como o abrangente que somos nós próprios:
1. Somos existência, isto é, somos vida num mundo, como tudo
quanto vive. O abrangente daquilo que vive torna-se objeto nos produtos
da vida, nos quais, porém — quer seja forma corpórea, função fisiológica,
conexão estrutural de base hereditária da vida inteira, quer seja ferra-
menta, ação, construção humanas — a vida mesma nunca se esgota; e
sim subsiste o abrangente do qual tudo isso se origina. O existir preenche-
se em sua manifestação pelo fato de nele se introduzirem, por ele serem
portadas ou sujeitas a seu serviço as modalidades do abrangente que se
seguem.
2. Somos consciência em geral, isto é, participamos na validez geral,
que permite ao sujeito saber em formas, na cisão do existir em sujeito e
objeto, toda a objetividade. Só o que aparece nessa consciência é que é
existir para nós. Somos abrangente no qual tudo que existe pode ser men-
tado, sabido, conhecido, tocado, ouvido, dentro das formas objetivas.
3. Somos mente, isto é, a totalidade eventual, que as ideias- guiam, de
conexões compreensíveis em nós mesmos e naquilo que produzimos, faze-
mos e pensamos.
Estas três modalidades do abrangente que somos engrenam-se entre
si, mas sem coincidir, apenas roçando uma na outra. São as modalidades
em que constituímos puras imanências; na objetificação e subjetificação
deste abrangente aparecemos, adequada e empiricamente, como objeto da
investigação biológica e psicológica; com o que, entretanto, não nos esgo-
tamos, porque vivemos a partir de uma origem que ultrapassa a existên-
cia, à medida que esta se torna, empiricamente, objetiva; que ultrapassa a
consciência em geral e a mente; e isso como existência possível e como ra-
zão propriamente. Essa origem de nosso ser, que escapa à investigação
empírica de toda sorte e só se esclarece pelo autoesclarecimento filosófico,
manifesta-se: 1) na insuficiência que o homem experimenta em si, porque
nele há permanente inadaptação à sua existência, ao seu saber, ao seu
mundo mental; 2) na incondicionalidade a que ele se submete como se
fosse seu próprio ser, ou como se fosse aquilo que a este ser é compreensí-
vel, é válido, é dito; 3) no impulso incessante para a unidade, porque o ho-
mem nunca está satisfeito com certa modalidade do abrangente por si,
nem com todas elas juntas; aspira à unidade básica, à unidade que, só
ela, é existir e eternidade; 4) na consciência de uma recordação inapreen-
sível, como se houvesse existido desde o começo da criação, como “se par-
tilhasse de uma ciência com a criação” (Schelling); ou ainda como se pu-
desse lembrar-se de alguma coisa vista antes de qualquer existir universal
(Platão); na consciência da imortalidade, que não é sobrevivência em outra
forma, mas ocultamente atemporal na eternidade, a qual se lhe apresenta
com o aspecto de modo de prosseguimento contínuo no tempo.

d) A incompletabilidade do homem.
Nem o esclarecimento filosófico leva a qualquer esquema unívoco do
homem. Pelo contrário, na interiorização transcendente do abrangente, ele
se mostra sempre através de várias origens; daí permanecer sua aspiração
à singularidade que ele não é, nem possui. É nisso que reside o incomple-
tamento ou a fragmentariedade do homem, esta impondo complementação
a partir de outra origem que fundamente e inteire, em oposição a todas as
origens abrangentes do indivíduo. É o que não se consegue, temporal-
mente, senão pelas desilusões antecipativas, porque a imposição só pode
realizar-se no tempo mediante uma fé que não possui, não vê, mas confia,
no contexto' da tradição religiosa dos entes que o indivíduo ama e venera.
Pelas modalidades do abrangente — em cada uma delas, a possibili-
dade ilimitada — e pela multiplicidade respectiva, compreendemos a aber-
tura do existir humano, que é, ao mesmo tempo, sua incompletabilidade.
Não é no esquema objetivo de sua essência, e sim nesta sua possibilidade
infinita, em suas lutas inevitáveis, em suas insolubilidades, que vemos a
essência do homem.
1. O homem como possibilidade aberta. O homem é “o animal não defi-
nido” (Nietzsche), o que deve significar: Os animais realizam sua vida em
trilhas pré-designadas, uma geração tal qual a outra, bem equipada na es-
pecialização de sua forma vital peculiar. Mas o homem não é forçado a
uma trilha definitiva fatal; é sim, plástico e capaz de transformações infini-
tas. Ao passo que os animais vivem seguros em sua existência, confiante-
mente levados por seus instintos onipotentes, o homem porta em si uma
insegurança. Porque nenhuma modalidade vital absolutamente definitiva
o predetermina, ele tem oportunidades e riscos, engana-se, são poucos
seus instintos, é, por assim dizer, “doente”, deixado^ a uma opção que tem
de fazer livremente.
É como se todos os animais, desde tempos remotos e mediante- rendi-
mentos especializados culminantes, tivessem entrado num beco do qual
não mais pudessem sair, por assim dizer, enquanto o homem teria conser-
vado a possibilidade total. Daí dizer-se a seu respeito que é, basicamente,
tudo (Aristóteles escreve que a alma, a bem dizer, é tudo). Nele sempre
ainda pode atuar o fundamento mais distante de que proveio. Se, por força
dessa plasticidade, é incompleto, nem por isso sua imperfeição deixa de
conter algum futuro. O homem ainda é capaz, pelo seu fundamento, de al-
guma coisa que não sabe; pode, ludicamente, antecipar e iluminar o cami-
nho a seguir com objetivos verdadeiros, fantásticos e utópicos.
Capaz de tudo abranger em sua possibilidade, não se determina em
sua essência. Não é possível reduzi-lo a um denominador^ visto não obe-
decer a qualquer especialização. Não se pode subordiná-lo a uma espécie,
porque, a rigor, espécie alguma se lhe assemelha.
Sempre que se determina, deixa de ser, determinado que é, o homem
inteiro. Em tudo quanto se determina, o homem coloca- se em situação tal
que é como se fizesse certa tentativa de que pudesse retroceder, pelo fato
de subsistir a possibilidade na base de sua essência; não no indivíduo
particular, é certo, naquele que se identifica com sua realização, quando
possui conteúdo, mas no indivíduo como ente que se sucede através das
gerações.
2. O homem, na luta consigo mesmo. O fato de o homem não ser um
ente definido, que realiza univocamente seus círculos predeterminados,
mostra-se na maneira por que está em luta consigo mesmo. Ele não é a
mera síntese necessária de contrastes, conforme esta se realiza em tudo
quanto vive; não é, apenas, o movimento sintético-dialético, necessário e,
como tal, compreensível, da mente; é, sim, luta radical a partir de suas
origens mesmas. Por conseguinte, hão de ver-se configuramentos de sua
luta numa série de passos que correspondem a toda vida, chegando, por
fim, à humanidade propriamente dita:
aa) O homem, como vida, está nas tensões entre constituição e peri-
mundo, substância e forma, interioridade e exterioridade.
bb) O homem, na sociedade, está nas tensões entre vontade individual
e vontade coletiva; esta última, na tensão entre vontade humana e von-
tade social.
cc) O homem, como pensamento, está na tensão entre sujeito e objeto,
si-mesmo e coisa, bem como nas antinomias inevitáveis em que a razão
falha.
dd) O homem, como espírito ou mente, está no movimento construtivo
que se faz através de contrastes. A contradição é o aguilhão que impulsi-
ona seu movimento criativo; contradição em todos os modos da vivência,
da experiência e do pensamento. A negatividade impregna sua manifesta-
ção mental, sem ser, no entanto, destruição, mas forma de produção pelas
superações e sínteses do devenir em evolução.
ee) Como vida, pensamento e espírito, o homem planeja, ordena com
consciência, disciplina-se. Sua vontade permite-lhe fazer de seu peri-
mundo e de si mesmo o que quer; vontade que, em luta permanente com a
resistência, destrói quando, vontade formal, mecaniza e apaga a vida
mesma das origens. Estando a serviço dos conteúdos abrangentes, o ho-
mem transforma-se, grandeza da vontade, em manifestação do indivíduo
que se produz na luta.
ff) Nem no mundo, nem para o indivíduo existe a síntese de todas as
possibilidades. Antes, pelo contrário, toda realização genuína prende-se,
de um modo ou doutro, a uma decisão. Medida pela seriedade de seme-
lhante decisão — que, optando, também exclui e que faz do homem, ao
decidir, alguma coisa incondicionada — qualquer outra luta é tal qual
mero primeiro plano, como se fosse jogo vital na rica plenitude de seus
movimentos. Só quando o homem domina, pela decisão, uma resolução
que se incorpora à sua essência é que é — existencialmente — homem.
gg) O autoesclarecimento da decisão pode exprimir-se, apenas, pela
consciência em geral e pela mente, nas antíteses do pensamento. Mas a
via da decisão não está na opção entre duas possibilidades iguais que se
têm à disposição; e, sim, na opção com o aspecto de escolha já feita; as
antíteses mais não são do que meio de interpretação. Entretanto, a via da
decisão não é, apenas, síntese que equilibre possibilidades; não é concilia-
ção no todo, mas conquista na luta contra alguma coisa diferente. É a his-
toricidade concreta, que haja fixado base e objetivo antes e depois de
quaisquer contrastes, contrastes nos quais ela, interpretando-se, tenha
separado o existir, durante um momento.
Estas antíteses de sentido existencial são aquelas da fé e da descrença,
do abandono e da obstinação, da lei do dia e da paixão da noite,1 da von-
tade de viver e da ânsia de morrer.
Na decisão sempre há, absoluto, o contraste entre bom e mau, verda-
deiro e falso. Não se questionam, aqui, no que diz respeito à temporali-
dade, estes contrastes (porque exprimem a incondicionalidade). Entre-
tanto, não os concebemos como o absolutamente derradeiro no próprio
existir; mas, apenas, como o derradeiro para o homem na existência tem-
poral; o homem pode, todavia, sentir os seus limites e, interiormente, ten-
der para aquele ponto em que cessa tudo quanto o obriga à decisão incon-
dicionada no fenômeno temporal; isto é, tender para esse símbolo e essa
garantia do existir eterno no tempo.
3. A finitude do homem e seu autoesclarecimento. Em parte alguma o
homem está por si só, mas dependendo de alguma coisa outra. Como exis-
tência, depende de seu perimundo e de sua procedência. Quando conhece,
precisa da visão que deve ter-lhe sido dada (o mero pensar permanece va-
zio). Quando realiza seu existir, está preso a tempo limitado, a força limi-
tada, a resistências; tem de apreender a finitude para tornar-se real, tem,
por esta forma, de especializar-se, nunca pode completar-se. Tem de apar-
tar-se da vida, depois de criar os pressupostos que lhe são necessários
para sequer poder começar. Sendo si-mesmo, não se cria a si próprio: tem
de ser presenteado, sem saber de onde. Não é livre por si mesmo, mas é
mediante a liberdade que sabe da transcendência pela qual é livre no
mundo. O homem só pode produzir-se apreendendo alguma coisa dife-
rente; só pode conhecer- se mentando e conhecendo alguma outra coisa;
só pode confiar em si confiando nalguma outra coisa, a transcendência;
daí por que o tipo de homem se determina pelo que ele sabe, pelo que crê.
Mas o homem não é só finito: ele sabe de sua finitude. Não se basta a
si mesmo como ente finito. Quanto mais claramente sabe, quanto mais
profundamente vivencia, experimenta a finitude e, ao mesmo tempo, a fa-
lha radical de toda forma de sua existência e sua atuação. Igualmente não
lhe bastam, como tais, todas as outras coisas finitas, que, em suma, se
chamam mundo. Todo existir mundano, por mais fundamente que o apre-
enda, por mais intensamente que nele participe, o deixa, entretanto, insa-
tisfeito.
Todavia, o fato de o homem sentir em toda parte essa finitude e de ela
não lhe bastar, indica uma possibilidade oculta em sua essência: deve ha-
ver uma raiz de seu existir outra que não seja a raiz apenas de sua fini-
tude. Se não tivesse pré-ciência daquilo que não é possível saber, faltar-
lhe-ia o anseio da procura. O homem procura o próprio existir, a infini-
tude, a alteridade. Só pode satisfazê-lo o fato de que isso existe.
Já o existir humano pode dar-lhe esta satisfação, desde que uma infi-
nitude se manifeste no fenômeno finito. O homem conhece a satisfação
profunda da experiência mundana, do trato com a natureza; sabe ler o
seu código, satisfaz-se penetrando no conhecimento do cosmos, encon-
trando o ser-assim. O mundo existe sem o eu, embora ele seja sempre, na
medida em que sei, fenômeno que se apresenta entre as condições do exis-
tir para a consciência.
Na direção transcendente da certeza existencial, vale para ele, de uma
forma ou de outra, a frase: Deus existe. A história da religião equivale à
história das ideias pelas quais o homem procurou atingir a divindade; e
nada mais nos pode ensinar senão estas ideias como tais. O próprio ho-
mem sabe, no entanto, que não cria com suas ideias, mas que subsiste
aquela primeira afirmativa: Deus existe. Em suas falhas, foi o que bastou
ao homem, como no caso de Jeremias. A finitude humana aquieta-se com
a fé na existência de Deus.
Perder-se-ia, entretanto, a consciência de si mesmo na dialética errada
que em si se conclua: o homem é Deus criador, criado por Deus; esta afir-
mativa permanece no círculo da imanência para a qual é válida a frase er-
rada: o homem é tudo.
4. O infinito no finito e a falha de qualquer finitude do homem. A cons-
ciência de sua finitude impele o homem a romper através de tudo quanto é
finito. Mas cada passo que dá é condicionado pela finitude; é só na medida
em que busca a finitude e a apreende que se torna real. No entanto, sendo
falsa para ele, ao mesmo tempo, toda finitude, não é dado fixá-la, mas tem
de ultrapassá-la. Não há dúvida de que pode retroceder de qualquer fini-
tude particular — este é o sinal formal de sua infinitude; mas precisa sem-
pre permanecer, decididamente, numa finitude (a finitude que brilha na
sua decisão e que, simultânea, se toma mais do que finita) — este é o sinal
de sua finitude; e só ela lhe permite realizar sua existência no tempo.
Há para ele, então, uma duplicidade: a possibilidade infinita fala no
homem, partindo de seus fundamentos, protege-o contra que se perca em
sua finitude; mas também lhe impõe a encarnação na finitude, encarna-
ção que realiza sua decisão de fixar-se em identificação absoluta no
tempo.
Não há unificação do homem com seu mundo, sua atuação, seu pen-
samento, sua finitude que não ultrapasse esta última, ao mesmo tempo. O
fato de ele estar preso a uma finitude leva a que toda finitude como tal
deva falhar em relação ao homem. Vamos dar exemplos:
aa) Os conteúdos de fé religiosos e filosóficos. O homem só pode com-
preender sua vinculação à existência mediante ideias e pensamentos;
mesmo, porém, o que se lhe afigura conteúdo de suas ideias e pensamen-
tos não é, como tal, o existir. O que ele crê tem de mostrar-se-lhe através
de ideias e pensamentos; sem os quais afunda no niilismo. Todos os pen-
samentos e ideias precisam, no entanto, decompor-se, por sua vez, por-
que, como tais, o iludem.
Assim, pois, não há fé religiosa sem esteios sensoriais tangíveis, sem
assertivas dogmáticas. Quem não vive com estas, considerando-as verda-
deiras e reais, não crê; não basta ver em tudo símbolo e interpretação, se
estes não forem uma realidade mais efetiva, se não forem a realidade
mesma em oposição à realidade meramente empírica do existir no mundo.
Entretanto, basta que os conteúdos sensoriais e dogmáticos se enrijeçam
em realidade fixa, como se fossem a realidade empírica, para que se su-
prima a fé viva, porque a substitui um saber ilusório. Dar finitude aos
conteúdos de fé é tão indispensável quanto é necessário elevar essas fini-
tudes a alguma coisa que as transcende, alguma coisa pela qual -elas se
decompõem, finitudes que são.
É desta forma que a fé filosófica se exprime em sentenças, ou frases.
Toda filosofia que se realiza acaba reduzindo a possibilidade infinita do ho-
mem à finitude das posições (pontos de vista). É por isto que, desde Pla-
tão, a filosofia viva se exprime pela finitude de posições, finitude que as
penetra e atravessa como tais, movimentando-se de maneira a superar to-
das as posições.
bb) Idade e morte. Como ser vivo, o homem está sujeito às fases do
crescimento, maturação, envelhecimento e, bem assim, à morte. Mas esta
sequência das idades pode conter no homem, do mesmo passo, o processo
de sua liberdade que aparece no tempo, pois que, diversamente do arre-
dondamento em círculo, encerrando-se o qual o homem morre farto de vi-
ver, há, simultâneo, um evento que, embora ligado ao processo biológico,
não termina em si, e sim pode afigurar-se progressivo, por mais avançada
que seja a idade. O velho, decadente sob o ponto de vista biológico, pode
ser, essencialmente, “juvenil”; pode estar ainda começando, empreen-
dendo, esperando, escutando. Portanto, a vida do homem finito asseme-
lha-se, pelo fundamento de sua infinitude, a um processo psíquico purifi-
catório. Seguem-se à percepção criativa e ao esquecimento fácil da moci-
dade a cautela da maturidade que se recorda e a pureza potencial da ve-
lhice. Todas as idades não são mais do que meio para lograr essa percep-
ção, edificando-se umas sobre as outras, não se dissolvendo, mas se con-
solidando por uma unidade que a todas transcende. A percepção do existir
pela realização histórica de uma psique que enfrenta riscos desde o pri-
meiro passo na realidade, que se engana e se recupera, que sempre se faz
mais clara, mais profunda, mais resoluta — esta é a vida que não se con-
clui com a sequência das idades, mas as atravessa, levando-as à consciên-
cia daquilo que, de fato, as abrange.
O homem acha-se com sua finitude na infinitude. Não pode subsistir
duradoura no tempo coincidência alguma de uma e outra; é só o momento
que constitui as sedes onde ambas se encontram, a fim de saltar, nova-
mente e sem demora, para o fenômeno finito. É por isto que todo procedi-
mento e pensamento humano nunca deixa de estar a serviço de alguma
coisa que não pode apreender, alguma coisa sobre a qual atua e pela qual
é absorvido e subjugado, quer se chame destino, quer providência.
É arrogância da filosofia querer penetrar essa alteridade, querer buscar
uma via pela qual o homem consiga, por assim dizer, pegá-la, primeiro co-
nhecendo-a e, depois, planejando e agindo.
Pela filosofia, o homem pode ver os estigmas do existir mundano e de
si mesmo, a inconclusividade e incompletabilidade; não pode, entretanto,
transformar em finitude aquilo que para ele é sempre infinitude, nela per-
manecendo, aceitando a finitude e falhando porque existe nessa situação.

e) Resumindo em poucas palavras nossas discussões.


I. Princípios relativos ao existir humano
1. O homem não é, apenas, uma espécie animal, nem uma espécie de
criatura puramente espiritual que não conhecemos e que, em tempos pas-
sados, se julgava angélica. Antes, pelo contrário, é único, participando da
série dos entes vivos e da série dos anjos, pertencente a ambas e de ambas
diverso. Tem sua posição própria que a teologia e a filosofia sempre afir-
maram e que só nos tempos modernos se negaram. Nas manifestações de
sua existência, vai até a animalidade; na base de sua essência, até a divin-
dade, como transcendência pela qual se sabe dado em liberdade.
2. O homem é o abrangente que nós somos: existência, consciência em
geral, mente — razão e existência. E é a via que leva à unidade de todas as
modalidades desses abrangentes.
3. O homem é possibilidade aberta, incompleta e incompletável. Daí
ser sempre mais alguma coisa e outra coisa que não aquilo que realizou
por si.
4. O homem realiza-se em determinados fenômenos, atos, pensamen-
tos, símbolos; e volta-se sempre, por sua vez, contra cada um destes fenô-
menos que se tornaram determinados, contra suas próprias determina-
ções. Quando já não rompe as formas fixadas, passa a nivelar-se a uma
espécie de medianidade e abandona o rumo do existir humano.
5. Opõem-se à ascensão do homem, em seu íntimo, três formas de re-
sistência: 1) A matéria que lhe é interior, sentimentos, estados, instintos,
alguma coisa dada que tende a subjugá-lo. 2) Um processo permanente de
encobrimento e distorção de tudo quanto sente, pensa, quer. 3) Uma va-
cuidade da não-realização. — Contra estes três tipos de resistência ele
luta: Como material, submete-se a um trabalho interno, conformando,
disciplinando, praticando-, habituando-se. Ao processo de ocultamento e
distorção opõe o esclarecimento, a claridade e luminosidade interna. Pro-
cura esquivar-se à vacuidade pela ação interna, isto é, estabelecendo para
si mesmo bases da decisão, que, repetindo-se, pode fixar-se, mesmo em
tempos difíceis.
II. Princípios relativos ao sentido e à possibilidade do conheci-
mento do existir humano
1. O que o homem é mostra-se em três níveis: a) Nos rumos de sua in-
vestigabilidade objetiva, como criatura que aparece no mundo, mostra-se
como realidade empírica, b) Nas modalidades do abrangente, esclarece-se
pelas suas origens, c) Na unidade — procurando e falhando — toma-se
consciente de onde provém e para onde vai. Só no primeiro nível é que é
acessível à investigação científica.
2. Para fins de investigação empírica, o homem é construído, teorica-
mente, em fatores, partes, elementos, componentes, funções, forças, nas
quais consiste. Se, além disso, é possível um esclarecimento filosófico do
existir humano, pode o mesmo constituir um fundo para aquele conheci-
mento sempre particular do existir humano empírico, sem ser, porém, co-
nhecimento em si mesmo. Tratar as ideias esclarecedoras como conheci-
mento objetivo é distorção básica da filosofia em pseudociência.
3. Ao passo que em parte alguma do mundo há para o nosso- conheci-
mento um existir em si, o homem está certo de si mesmo. Diversamente
do cosmo inorgânico, cujo conhecimento ainda paira, em princípio, tanto
quanto a psicologia do homem (embora mais unitário e mais sistemático
do que esta última, sob o ponto de vista metodológico), o homem tem sem-
pre consciência de si mesmo, ultrapassando qualquer conhecimento que
adquira de si. Ao passo que o conhecimento esbarra em limites de todos
os lados, limites nos quais já coisa alguma se pode apreender, dá-se que,
quando nos conhecemos a nós mesmos, esbarramos em limites nos quais,
com base noutra origem, alguma coisa é acessível, que será a realidade ig-
norada.
4. Quando investigamos o homem, não somos apenas espectadores de
alguma coisa que nos é estranha, mas seres humanos mesmos. Somos
nós próprios que investigamos, quando investigamos o outro. Não inte-
ressa somente saber de umas tantas coisas, mas o fato é que só ficamos
sabendo pelo nosso próprio existir humano. A existência em si do homem
está sensivelmente presente quando chegamos ao limite da cognoscibili-
dade, tanto naquele que conhece quanto naquele que é conhecido. O li-
mite entre o saber científico e o esclarecimento filosófico está naquele
ponto em que o objeto já não se menta como realidade psicológica, e sim
torna-se meio de uma transcendência para o inobjetivo. É, por exemplo, o
limite entre a psicologia compreensiva e o esclarecimento existencial.
5. O homem como todo nunca se torna objeto do conhecimento. Não
há sistema do existir humano. Seja qual for a totalidade em que pensemos
apreender o homem, este nos escapa. Todo conhecimento do homem
ocorre em aspectos particulares; de cada vez, mostra uma realidade, não,
porém, a realidade do homem; é flutuante, não definitivo.
6. O homem é sempre mais do que sabe e pode saber de si e do que
qualquer outro sabe dele.
7. Homem algum se pode abranger inteiramente', não há um só de que
se possa fazer juízo definitivo total. O que é indispensável, pràticamente,
no trato com os indivíduos e para fins sociais, porque se tem de tomar de-
cisões, vale em tais situações, em tais relações de autoridade; vale para
fins de responsabilidade, mas por si só não representa base que valha
para o conhecimento. Por exemplo: eu não posso passar um traço, diga-
mos assim, embaixo de um indivíduo e fazer a soma que me permita co-
nhecê-lo tal qual é. Encarar um ser humano como se fosse um objeto,
apreendê-lo no todo pelo conhecimento científico equivale a prejulgar. Daí
dizermos: “Prouvera a nós não perder a consciência da inexaustibilidade e
da misteriosidade de cada indivíduo psicótico particular, mesmo em rela-
ção aos casos que pareçam os mais corriqueiros.”
§ 3. Psiquiatria E Filosofia

a) O que é ciência.
Só é pura a psicopatologia na medida em que permanece ciência. Mas
é evidente que, desde tempos remotos, a psicopatologia tem dado lugar a
discussões, asserções, requisitos e modalidades práticas de conduta que,
embora sob a roupagem da ciência, carecem de caráter científico. É em
vista desta situação que o psiquiatra indaga: O que é ciência?
A ciência é conhecimento geralmente válido, impositivo. Funda-se em
métodos conscientes, possíveis de ser comprovados por quem quer que
seja; e refere-se sempre a objetos particulares. Quando tem um resultado,
este se estabelece factualmente; não pela mera aceitação que a moda im-
ponha, mas de maneira geral e permanente. O que se conhece cientifica-
mente pode demonstrar-se e provar-se de tal maneira que nenhum ser
pensante capaz de apreender a situação em geral consiga fugir à compul-
são da verdade. Mas há malentendidos que perturbam esta clareza dos fa-
tos científicos.
1. Em nome da ciência, há quem se satisfaça, erradamente, com a
mera conceitualidade, com o procedimento lógico-metódico, o simples es-
clarecimento das ideias. Estes são, decerto, requisitos necessários da ciên-
cia, mas, uma vez existentes, ainda não constituem ciência real, plena,
porque falta a objetividade de uma fatualidade experimentada. Quando se
confunde o mero pensamento com o conhecimento objetivamente preen-
chido, a ciência se perde em elucubração vazia e, ao mesmo tempo, na in-
finitude das possibilidades.
2. Identificam-se, erradamente, ciência e ciência natural. Alguns psi-
quiatras, particularmente, acentuam o caráter científico-natural da meto-
dologia que adotam, principalmente nos setores em que falta esse caráter:
na compreensão fisiognômica, nas conexões compreensíveis, na caractero-
logia. Ora, a ciência natural limita-se à natureza como fenômeno somático
que se faz causalmente tangível. Certo é que a ciência natural serve de
base e constitui elemento essencial da psicopatologia, como servem, igual-
mente, as ciências humanas; nem por isso deixa a psicopatologia de ser
científica; é cientifica, sim, de outra maneira.
A ciência assume formas extraordinariamente diversas: conforme o
método, variam o objeto e o significado. Ê erro opor um ao outro, é erro
exigir de um o que só o outro pode dar. A atitude científica inclina-se para
qualquer das vias, apenas impondo aqueles critérios gerais: validez univer-
sal, introvisão convincente (demonstrabilidade), clareza metódica, discuti-
bilidade significativa.

b) As modalidades da ciência na psicopatologia.


Nas diferentes partes e capítulos deste livro, caminhamos em planos
científicos diversos. Respondemos nos quatro capítulos da primeira parte,
à indagação científica que fizemos quanto aos fatos demonstráveis; o tipo
heterogêneo destas objetividades, tentamos vê-lo discriminativamente. Em
seguida, mostramos o abismo que há entre a psicologia compreensiva e as
ciências naturais, quando separamos a compreensão genética (Segunda
Parte) e a explicação causal (Terceira Parte). Foi possível esclarecer a con-
ceituação das totalidades mediante ideias pelas quais se podem apreender
fatos especificamente objetivos em novos contextos.
O todo do existir humano, se queremos conhecê-lo, exige a aplicação
de todos estes métodos, se bem que com todos eles não se o abranja.
Qualquer fixação da abordagem científica em determinado tipo de de-
monstratibilidade restringiria a psicopatologia. Não é lícito pretender nive-
lar a ciência a um só plano de cognoscibilidade regular. Conhecimento de
caráter científico é possível seja por que via for de método específico.

c) A filosofia na psicopatologia.
Mas onde é que ficam as discussões inúmeras, não científicas, quer da
psicopatologia tradicional, quer da contemporânea? Vamos eliminá-las
simplesmente, por incabíveis? De modo algum, pois exprimem alguma,
coisa que é inevitável, ou seja, a filosofia influencia toda ciência viva; sem
filosofia a ciência só pode ser estéril, inverídica; quando muito, correta.
Há psiquiatras que dizem não querer sobrecarregar-se de filosofia, que
afirmam não ter sua ciência nada a ver com a filosofia. Nada há que dizer
em contrário, na medida em que a correção das noções científicas em ge-
ral — mesmo na psiquiatria — não se baseia, nem se nega pela filosofia.
Mas a exclusão da filosofia seria funesta para a psiquiatria. Primeiro:
Aquele que não tem consciência de uma filosofia cai, sem perceber, em
seu pensamento e vocabulário científicos, confundindo-os quer científica,
quer filosoficamente. Segundo: Porque o conhecimento científico não é de
um só tipo (principalmente na psicopatologia), é preciso distinguir as mo-
dalidades cognicionais, esclarecer os métodos, o sentido que tem a validez
das asserções, bem como os critérios da experimentação — e isso exige ló-
gica filosófica. Terceiro: Para ordenar o conhecimento num todo e esclare-
cer o existir total, do qual emergem os objetos investigáveis, é preciso sem-
pre orientar-se pelo pensamento filosófico. Quarto: Só pela clareza da cor-
relação entre a compreensão psicológica (como meio de investigação empí-
rica) e o esclarecimento filosófico existencial (como meio de apelar para a
liberdade e conjurar a transcendência) é que pode surgir uma psicopatolo-
gia científica pura que preencha todo seu alcance possível, sem, no en-
tanto, exceder seus limites. Quinto: O destino do existir humano, veículo
de interpretação metafísica, permite sentir a existência e ler o código da
transcendência, mas qualquer argumento que se baseie em uma discus-
são sempre indemonstrável nesse campo (discussão que pode ser da
maior importância para o homem) é estranho à ciência e turva a psicopa-
tologia científica. Sexto: A prática do trato com os indivíduos e, pois, tam-
bém da psicoterapia exige mais do que conhecimento científico. A atitude
interior do médico depende do tipo e do grau de seu autoesclarecimento;
da força e da clareza de seu desejo de comunicação; da presença de uma
fé substancial que oriente, que se comunique, que tenha conteúdo.
Por conseguinte, a filosofia cria o espaço no qual todo saber se realiza,
ganha medida e limite, encontra terreno em que manter-se e tornar-se
prático, além de receber conteúdo e significação.
O psicopatologista, se quiser conservar livre esse espaço e firmar-se,
tem de precaver-se contra as absolutizações que pretendem considerar
únicos válidos certos métodos de pesquisa; e que pretendem ver em certas
objetividades o existir propriamente dito; portanto, tem de tomar partido
pela compreensão genética contra o biologismo, o mecanicismo, o tecni-
cismo, sem ignorá-los no quadro da validez que possuem. Mas também há
de precaver-se da absolutização do conhecimento científico no todo, a fim
de conservar livre a consciência e, ao mesmo tempo, a possibilidade atu-
ante das origens que dão sentido à prática. Assim colocando-se, estará do
lado das discriminações, oposto às confusões; estará do lado das sínteses,
oposto aos isolamentos. Estar-se-á opondo às confusões entre ciência e fi-
losofia, médico e salvador; mas também estará opondo-se ao isolamento,
que não discrimina, mas joga uma coisa contra outra.
Em resumo: Quem pretender excluir a filosofia e deixá-la de lado por
irrelevante, será obscuramente vencido por ela, daí resultando aquela
massa de ruim filosofia que aparece nos estudos psicopatológicos. Só
quem sabe e domina os fatos é que pode manter a ciência pura e, ao
mesmo tempo, dentro do contexto da existência humana que se exprime
na filosofia.

d) As posições filosóficas básicas.


A reflexão filosófica parte, não só dos enigmas fundamentais que se
apresentam ao conhecimento empírico (§1), como das insolubilidades da
prática (§5). Tanto a veridicidade quanto a origem do filosofar impõem a
consideração destas insolubilidades, ao passo que o pressuposto inquesti-
onado de que tudo se pode conhecer e calcular de forma ordenada, ou, em
todo caso, ajustada, em princípio, com boa vontade e conhecimento pro-
gressivo, não só constitui antifilosofia, como falta de crítica científica con-
sequente.
Como é que se realiza o filosofar, isso não se pode mostrar na psicopa-
tologia mesma. Só quero apontar, mais uma vez, umas tantas posições
básicas, que não são acessíveis, certamente, à comprovação científica no
sentido empírico e matemático, mas se inserem no setor filosófico, que
permanece formal; daí alcançar validez universal. Nem desenvolvemos
aqui estas bases, mas apenas damos as posições como tais:
1. O existir mesmo não é objetividade que se apreende adequada e su-
ficientemente; é, sim, o abrangente sempre inobjetivo, a partir do qual es-
tes objetos se nos apresentam à consciência na cisão sujeito-objeto.
2. A ciência está restrita à objetividade. A filosofia realiza-se em pensa-
mentos objetivos, que não se referem a estes objetos como tais, mas,
transcendendo, se tornam conscientes do abrangente.
3. O abrangente é ou o que somos (como seres humanos, consciência
em geral, mente, razão e existência mesma), ou o existir no todo (mundo e
Deus).
4. As ciências fornecem, pelos seus conhecimentos, o trampolim para
os pensamentos transcendentes, só no saber científico mais completo é
que se experimenta o não-saber real; e no não-saber a transcendência se
realiza mediante métodos filosóficos específicos. As ciências, porém, ten-
dem a encobrir, pelas cognoscibilidades, o existir mesmo; tendem a fixar-
nos nos primeiros planos, nas infinitudes; a produzir a absolutização de
concepções finitas em suposto conhecimento do existir mesmo; a levar-
nos a esquecer o essencial, a restringir-nos a visão livre de fenômenos, vi-
vências, imagens e ideias através de determinações racionais; a paralisar-
nos a psique com os elementos conceituais fixos, por força de excessivo es-
tudo e conhecimento. É errado, todavia, queixar-nos de que sabemos de-
mais, de que o saber paralisa a vida. Não precisa ser assim, a menos que
as ciências sejam mal compreendidas e distorcidas.
5. O erro fundamental de nosso conhecimento é a inversão de ideias fi-
losóficas em saber supostamente objetivo de alguma coisa; inversão que
ocorre tanto no pensamento cotidiano quanto nas ciências; por exemplo,
quando se inverte o esclarecimento existencial em saber psicológico, ou a
liberdade em fator de existência empírica; ou quando se processa a errô-
nea tematização do existir humano no todo, visto que este continua a ser
sempre o abrangente que somos, retrocedendo para trás de qualquer obje-
tificação ou sistematização mesmo nas totalidades mais amplas, que se
transformam em conteúdo cognicional. Não podemos, contudo, mentar,
arbitrariamente, o abrangente como se fossem objetos nas categorias do
evento, da causalidade, da substância, da força etc., apesar de nos servir-
mos, usualmente, quando falamos nelas, destas expressões que devem ser
ressalvadas desde logo.

e) A confusão filosófica.
Se nos deixarmos dominar, inadvertidamente, pela filosofia, confundi-
remos o conhecimento científico e, do mesmo passo, a atitude mental in-
terna. São confusões infinitas, que, por isso, só discutiremos de forma
exemplificativa.
1. Quando se dá aquela inversão das ideias concernentes ao transcen-
dimento filosófico (que pode ser transcendimento especula- tico em consci-
entização existencial, ou esclarecimento existencial, ou apelo à transcen-
dência) em opinião objetiva e determinação, em indicações e finalidades
declaradas, o que acontece é que, por exemplo, as ideias relativas à vida
que se processa em contrastes se transformam em sofistica descaracteri-
zada; a auto-observação psicológica se transforma, pelo esclarecimento
existencial, em egocentrismo subjetivo; os códigos existenciais transcen-
dentemente lidos tornam-se objetos sensoriais à disposição da supersti-
ção; a meditação filosófica sobre a eternidade vem a dar na inconsistência
da negação temporal e histórica etc. O transcendimento verdadeiro ocorre
sempre na elevação daquilo que é objetivamente significativo ao que é
transcendente; na elevação da inverdade decaída ao objeto finalmente co-
nhecido e ao movimento mental processando-se na infinitude do que é fi-
nito.
De quando em quando, surge na psicopatologia um movimento intelec-
tual que pretende forçar o conhecimento no todo mediante esquema gran-
dioso, pelo qual se presumem a apreensão das energias psíquicas mais
profundas e o conhecimento dos fenômenos em seus fundamentos. Sob o
aspecto de construções particulares, estes esquemas, chamados teorias,
representam meios limitados que auxiliam o esclarecimento; sob o aspecto
de concepções globais, com pretensão a valor autônomo, são, realmente,
filosofia. Vestidos com a roupagem própria às ciências naturais e à psico-
logia, de acordo com o caráter positivista do século passado, todos eles
consistem, do ponto de vista metodológico, em elaboração interpretativa
de toda realidade; fugindo a quaisquer alternativas da decisão, não po-
dem, por isto mesmo, provar-se, nem refutar-se. São próprias de tais mé-
todos, em primeiro lugar, a repetição infinita das mesmas coisas (tautolo-
gia); em segundo lugar, a circularidade dos argumentos (círculo vicioso);
por fim, o fato de se basearem em arbítrio eventual que, por sua vez, se
pode sempre admitir, para o caso concreto, com fundamento nos princí-
pios gerais. Ora, chama a atenção o fato de estas formas lógicas, que não
podem ter enquadramento científico, por serem errôneas, poderem, no en-
tanto, constituir, do mesmo passo, formas metódicas de exposição da ver-
dade filosófica. Porque o que dizem é inacessível à comprovação científica,
o critério de verdade que acaso tenham está alhures: não pretendem elas
possuir, exatamente quando são verdadeiras, qualquer conhecimento ob-
jetivo, nem qualquer saber impositivo; comprovam-se pelo existir humano
que nelas se compreende; caracterizam-se pelo conteúdo que se exprime
circularmente (toda grande filosofia pensa desta maneira, mas também
toda aquela desvaliosa, qual seja a materialista: o inundo é, como fenô-
meno, produto do cérebro; o cérebro é parte do mundo; portanto, o cére-
bro produz-se a si mesmo); firmam sua verdade no caminhar criativo que,
através da infinitude, ruma para a atualidade historicamente concreta do
existir.

f) Concepção do mundo na roupagem do conhecimento.


Não são os psiquiatras, mas os psicoterapeutas que sucumbem, fre-
quentemente, à tentação de transformar sua doutrina em movimentos
místicos; e suas escolas, em seitas, por assim dizer. Há, decerto, os psico-
terapeutas importantes, absolutamente independentes, livres; mas para a
maior parte a coesão é necessidade, porque só ela lhes permite ganhar al-
guma coisa que se assemelhe a autoridade objetiva em cujo nome atuem e
mediante a qual consigam formar o sentimento de conhecimento absoluto
e de superioridade em relação a outras seitas. O exemplo célebre do pas-
sado é Freud, com o movimento por ele fundado e orientado.
Em 1919, caracterizei este movimento da seguinte maneira: Na medida
em que a psicanálise contém algum sentimento de autenticidade e veraci-
dade, Freud influencia a concepção que muitos têm do mundo. Mas nos
grandes reveladores de si mesmos (Nietzsche, Kierkegaard), eles experi-
mentam esse sentimento de modo mais profundo, mais espiritual. Freud
não se pode comparar com os referidos psicólogos; mantendo-se, pessoal-
mente, em plano posterior, deixa de envolver-se, quando diz que devemos
analisar nossos sonhos e que tal será a maneira pela qual se há de com-
preender a psicanálise; quando interpreta sonhos alheios e continua a ser,
ele mesmo, uma personalidade inescrutável, se bem que, em sua principal
obra sobre os sonhos, informe sobre sonhos próprios inócuos e os inter-
prete dentro de certos limites. 'Sobretudo, porém, as deduções freudianas
compreensíveis são particularmente desprovidas de espiritualidade: é
quase sempre com base no que há de mais grosseiro que a psicanálise
compreende. A maioria dos seres humanos, aqueles meramente sensuais,
o homem metropolitano de psiquismo caótico reconhecem-se na psicologia
de Freud. Em vez de recorrer para a vitalidade e a sexualidade, pode-se re-
correr para a espiritualidade do homem e desta forma desenvolver sua psi-
cologia. Freud vê o que resulta do recalque sexual; por vezes, de maneira
extraordinariamente aguda; jamais, no entanto, inquire o que resulta do
recalque espiritual.
Entre a psicologia compreensiva e a personalidade que para ela se
volta existe conexão estreita. O de que sempre se indaga, neste particular,
é o homem que vê, que afirma, que rejeita. A luta das concepções compre-
ensivas torna-se luta de personalidades, que “se compreendem” mutua-
mente e, por esta via, pretendem apreender e, ao mesmo tempo, destruir
as teorias errôneas alheias. O próprio Freud lança mão disso, quando
julga da seguinte maneira a resistência dos psicólogos e psiquiatras às
suas teorias: “A psicanálise pretende promover o reconhecimento consci-
ente daquilo que está recalcado no psiquismo; todo aquele que a ajuíza é,
ele próprio, um indivíduo que possui esses recalques, que talvez só a custo
os contenha. Daí por que na psicanálise há de suscitar nele a mesma re-
sistência que desperta no doente, resistência que facilmente se disfarça na
rejeição intelectual. Tal qual se dá em nossos pacientes, podemos consta-
tar, muitas vezes, em nossos adversários um influenciamento afetivo
muito visível da capacidade de julgar no sentido de menosprezo.” Este pro-
cedimento estratégico insere-se na psicologia compreensiva. Assim é que
um psiquiatra respondeu — conquanto de modo incomparavelmente mais
vulgar — que a psicanálise é superstição e psicose de massas. A luta em
que se procura penetrar mutuamente no psiquismo pessoal podo ser mali-
ciosa; talvez constitua luta pelo ganho de poder e superioridade. Também
pode ser luta dentro do amor, pode vir a criar a mais profunda relação in-
terumana. A psicologia freudiana parece adaptar-se, predominantemente,
àquele primeiro tipo de luta. O que importa é quem é que, na situação psi-
canalítica, se impõe ao outro; a comunicação não se faz, na realidade, em
nível igual.
Dever-se-ia aplicar a psicanálise ao próprio Freud; dever-se-ia penetrar
nessa personalidade, a fim de compreender o mundo intelectual de seme-
lhante psicologia; o que é impossível. Não se vê o homem com nitidez em
suas obras. Os seus escritos mostram uma personalidade retraída, em
oposição ao exagero franco de alguns dentre seus discípulos, aos quais, no
entanto, foi ele quem forneceu o material. Não renega esses discípulos é
responsabiliza-se em parte por eles. É comedido em comparação com eles,
por mais que as teses do próprio Freud surpreendam e arrisquem. Sua ex-
posição é elegante, por vezes fascinante. Evitando qualquer recurso à filo-
sofia, Freud, que jamais se apresenta como profeta, suscitou, realmente,
interesse filosófico universal. Para alguns neuróticos, gozadores estéticos,
fanáticos e para quantos aspiram à superioridade mediante a psicologia,
convém tuna visão do mundo que resida na liberdade de certos grilhões
em que outros se criem, na permissividade, no cepticismo e na resignação.
É preciso ver os freudianos para compreender que forea-se tendências se
ocultam nas respectivas obras. Mas o próprio Freud mantém-se pessoal-
mente inescrutável; é sempre um psicólogo compreensivo que, ao contrá-
rio de todos os outros grandes psicólogos da história, se mantém oculto.
Sociologicamente, pela modalidade de sua organização associativa,
pela anatematização dos discípulos renegados, o freudianismo assumiu,
em geral, a forma de instituição sectária; transformou-se em fé enroupada
na ciência; e com uma fé não se discute. Mas é possível aprender alguma
coisa em indivíduos com os quais não se pode discutir. Em seu todo, o
freudianismo é um fato pelo qual se toma geralmente claro o seguinte: as
seitas psicoterapêuticas têm de transformar-se, como tais, nalguma coisa
do tipo de sucedâneos religiosos, sua doutrina, vindo a dar em dogma de
salvação, sua terapia em redenção. Seitas desta ordem entram em concor-
rência injustificada, porque enganadora, primeiro, com a ciência medica-
mente baseada e, segundo, com aquele amor humano não sectário, que,
quase sempre de fundamentos cristãos, pretende ajudar a tolos, a mostrar
um caminho a desamparados, jamais renunciando à esperança, apesar do
realismo com que encara o homem; que quisera ser benéfico no terreno da
possibilidade e considera até o impossível possível por obra de Deus; ter-
ceiro, concorrem com a filosofia autêntica, com a seriedade de ação in-
terna, cujas vias Kierkegaard e Nietzsche não provaram (isto é impossível),
mas esclareceram. Essas seitas, vistas no contexto histórico, são indife-
rentes, porque impotentes. Dentro da psicopatologia são perigosas sob o
aspecto filosófico: seus efeitos tendem ora para o niilismo, ora para o fana-
tismo violento, ora para o arbitrarismo céptico; sempre, afinal, têm in-
fluência desastrosa, existencialmente falando. Não é, porém, em absoluto
necessário que a psicoterapia se apoie em concepções que levem a forma-
ções sectárias. Ao contrário, para uma psicoterapia que tenha suporte ci-
entífico e filosófico é vital não se deixar seduzir por seja qual for funda-
mentação sectária.
Crítica interessante de Freud (afigura-se-me aparentada, objetiva-
mente, com a minha, fazendo, porém, valoração inversa) foi desenvolvida
por Kunz, o qual reconhece em Freud uma forma metodologicamente nova
de conhecimento psicológico, forma “que, é certo, Nietzsche, já usara”.
“Nela a ‘humanidade’ do homem já fora questionada, metodicamente, de
um. modo que só ocorrera, até então, indireto e não-sistemático, nas
obras de Kierkegaard e Nietzsche. Duvida-se, fundamentalmente, da ver-
dade e da evidência da autointrospecção; e em seu lugar se coloca o que
se poderia chamar preservação existencial”. Não se trata daquilo que al-
guém sabe de si e declara, nem de que maneira alguém se ‘interpreta’ a si
mesmo — tanto mais quanto é próprio do homem, universalmente, enga-
nar-se a seu próprio respeito sem deliberação — e, sim, daquilo que ‘ele é’.
E o 'existir humano’ não é, em absoluto, unívoco, transparente, claro,
mas, antes, por seus fundamentos mesmos, questionável, ambíguo, obs-
curo. Daí por que o conhecimento adequado se teria de obter pela supera-
ção da resistência. Ora, esta realidade básica da psicanálise teria sido mal
compreendida pelo próprio Freud, na interpretação que deu à sua obra. É
por aí que se há de apreender o papel peculiar da teoria psicanalítica; pri-
meiramente, sua força persuasiva, que não é a de um conhecimento bioló-
gico nem empírico”. “Como os psicanalistas experimentam a verdade da
análise por modo que excede de muito em pujança e força persuasiva a
evidência usual das concepções logicamente formuladas — porque a ver-
dade existencial, experimentada na comunicação pessoal atua com força
que tudo supera — torna-se-lhes difícil renunciar a elas em presença da
evidência lógico-formal incomparavelmente menor”. Mas também é fato
que os psicanalistas não são mais propensos que seus adversários a dei-
xar desenvolver-se a realidade básica, a qual tenta fazer-se aqui evidente:
“Não podem suportar o fato que tem lugar em toda análise: o afrouxa-
mento da existência humana inteira; daí precisarem de nova segurança, e
esta função é a limitação do conteúdo teórico da doutrina que preenche.”
Kunz distingue ainda entre Freud e o conjunto dos analistas que são seus
discípulos ortodoxos: “É por acaso seja sempre apenas o Freud ‘não anali-
sado’ que abra o horizonte da psicanálise, jamais os adeptos ‘analisados’...
Por que é que são perseguidos tão acerbamente os discípulos que ousam
ter opinião própria? As necessidades e primeiros planos objetivos não po-
dem encobrir inteiramente a tendência ao domínio que se oculta na aná-
lise. Toda soberania- na atitude que se toma em relação à psicanálise há
de levar, forçosamente, à questionabilidade; quer dizer, à perda do poder,
coisa, portanto, que nem Freud, nem seus discípulos suportam.” A dog-
matização da teoria serve não só, por conseguinte, à segurança em face do
evento que aqui se introduza — como em toda psicologia e filosofia exis-
tencial — mas, sobretudo, de instrumento para o impulso ao poder, o qual
não se relaciona em si, necessariamente, com a psicologia, nem com a ten-
dência existencial. E a consequência é a seguinte: “O conteúdo da teoria
psicanalítica não tem sequer metade da segurança a que os analistas —
Freud excetuado — sempre, a cada momento, pretendem em face de paci-
entes e adversários e dentro de seus próprios círculos.”
Não posso acompanhar Kunz, quando reconhece a psicanálise como
evento existencial na comunicação pessoal. Ao ocupar-se com Freud deta-
lhadamente, há alguns decênios, encontrei, apenas, o princípio inexisten-
cial, niilístico, que se me afigurou, ao mesmo tempo, anticientífico e antifi-
losófico. Posteriormente, só li Freud e seus adeptos uma vez ou outra, em
amostras que confirmaram minha opinião. É difícil, entretanto, convencer
outras pessoas com estas valorações penetrantes. Quem quer que seja ca-
paz de ver em geral vê de um golpe, por assim dizer.

g) Filosofia existencial e psicopatologia.


O desejo de que a psicopatologia não perca de vista o existir humano
tem atraído a atenção para os impulsos existenciais ou dissolutivos da
existência que operam nos movimentos sectários da psicoterapia. Quando
se estudam esses movimentos místicos, não se indaga do que é correto e
errado (indagação que é discutível), mas do que é verdadeiro ou não; neste
caso (discutindo-se superficialmente e, de fato, em vão), responde-se à in-
dagação pela decisão da fé própria ou pela convicção de ideias. Talvez al-
guns psiquiatras sejam por demais tolerantes quando admitem; outros,
demasiado apressados quando rejeitam sem esclarecimento. Num caso e
noutro, trata-se de questões para as quais a psicopatologia não tem res-
posta, mas apenas pode apreender, essencialmente, e distinguir da ciên-
cia. Outra coisa é quando, depois de voltar-se para os esforços atuais da
filosofia expressamente existencialista, o psiquiatra utiliza ideias filosófico-
existencialistas como meio de conhecimento psicopatológico e as eleva a
elemento da própria psicopatologia. Este é um erro científico.
1. Esclarecimento existencial e psicologia compreensiva. Discutimos a
posição intermediária da psicologia compreensiva, da qual resulta que
ideias psicológicas compreensivas se tornam ambíguas; podem constituir
a via pela qual se chega a um conhecimento empírico-psicológico; e este
mais não serve do que para permitir estabelecer fatos, dispor de um co-
nhecimento e com ele alcançar efeitos pela aplicação a certas organiza-
ções; ou podem ser a via que leva a esquemas de possibilidades significati-
vas, que nos permitam apelar, despertar, graças a um espelho, o que co-
chila inconsciente e proceder pela incitação a realizações mentais, a atos
internos, à compreensão de símbolos. No primeiro caso, procedemos cien-
tífica, impessoalmente; no segundo, filosófica, pessoalmente. As ideias psi-
cológicas nunca são, como tais, a forma de comunicação de conteúdos
místicos; são recursos da filosofia como esclarecimento existencial; e dei-
xam de sê-lo na filosofia, quando apelam para a transcendência.
O pensamento que esclarece a existência — voltado para a psicologia
compreensiva — é, ele mesmo, impulso a esta psicologia. Inversamente,
todo psicólogo faz, na prática, filosofia esclarecedora da existência num ou
noutro momento, queira ou não, saiba ou não, embora a filosofia existen-
cial não seja, de modo algum, campo da psicologia.
2. Ontologia e teoria psicológica da estrutura. Na corrente do pensa-
mento esclarecedor da existência, a partir de Kierkegaard e Nietzsche, Hei-
degger tentou criar uma moldura ideológica sólida, que qualificou como
“ontologia fundamental” e elaborou ramificando-a nos “existentialia” (em
analogia com as “categorias” das objetividades existentes); existentialia es-
tes — o estar- no-mundo, o estado de ânimo, a ansiedade, a preocupação
ou o cuidado — que se referem ao ôntico; e este constituirá o pressuposto
de que vivenciamos (e como vivenciamos). e nos comportamos — quer es-
tejamos próximos às origens propriamente ditas, quer tudo se passe em
modalidade dissimulada, diluída, distorcida do “homem” comum, inautên-
tico.
Não obstante o valor das explanações heideggerianas concretas, tenho
para mim que, em princípio, sua tentativa é erro filosófico. De fato, Heide-
gger leva quem o lê não a que filosofe, mas a que descubra o esquema to-
tal do existir humano; estrutura teórica que não serve para ajudar a exis-
tência historicamente real do indivíduo (para elevação e preservação de
uma prática existencial em que confie); e, sim, para velar as coisas, a seu
turno; o que vem a ser tanto mais funesto quanto a existência real se pode
frustrar e perder a seriedade com o uso de frases o mais próximas possível
da existência.
O que aqui nos interessa, todavia, é que aplicar esta ontologia da exis-
tência à psicologia pode ter, quando muito, o valor da teoria (inquirindo o
que com ela se possa ganhar em conhecimento empírico), ou de eventual
construção para conexões compreensíveis particulares; não, entretanto, o
valor de teoria psicológica da estrutura referente ao ente humano; teoria
que possa absorver, iluminar e ordenar todo nosso conhecimento psicopa-
tológico.
Quando Kunz considera “a psicologia existencial capaz tanto de uma
teorização quanto de uma objetivização”, eu lhe oponho o seguinte: o exis-
tencial, precisamente, não se torna objetivo; se se tornar objetivo, estará
falsificado, filosoficamente. Mas quando saúda “no enraizamento existen-
cial, a indagação científica da essência humana”, concordo com Kunz,
que, a esta altura, está exigindo do pesquisador, e não dos métodos e con-
teúdos da pesquisa.
A psicologia faz do psiquismo objeto, existência; a ontologia, porém, faz
também a mesma coisa, factualmente; e isso na medida de sua solidez
conceituai; tanto mais, ao revés, quanto ela mesma fez da inobjetividade
um princípio. Quanto mais dominam a ontologia a demonstração, a expo-
sição, a estruturação, e não o método do espelhamento esclarecedor, da
penetração evocativa na liberdade, da suspensão instável na conceituação
de um círculo “irônico” — tanto mais ela vem a ser teoria do existente.
As obras dos autores que aplicam esta ontologia à psicopatologia pare-
cem-me, decerto, tocar, por sua vez, no que é filosoficamente essencial —
tratando-o, porém, como objetificado, conhecido e descoberto; com o que a
filosofia se perde, sem que adquiramos conhecimento real algum. A meu
ver, ocorre, por vezes, um teologizar e um filosofar de fôlego curto, que se
extravia em conhecimento suposto. O que não encontro aí, todavia, é a re-
ação decisiva às ideias e métodos que encobrem, filosoficamente, o existir
humano, o destroem, até excluem; reação, enfim, ao “diabo” na psicologia.
3. Distinção de quatro áreas de pensamento metodicamente específi-
cas. Resumindo, teremos de distinguir:
aa) Esquemas de possibilidades da psicologia compreensiva (cf. Cap. 1
da Segunda Parte); são ambíguos.
bb) Levam pela compreensão, através de fatos significativos objetivos
(expressão, atos, comportamento, obras) a conhecimentos de conexões ge-
néticas da fatualidade empírica.
cc) Ou levam, como meio de pensamento esclarecedor, ao apê- lo filo-
sófico (via que também na prática médica se segue).
dd) Com expressões psicológicas e admitindo um transcendi- mento fi-
losófico às origens do que existe no existir, ganha-se uma ontologia, a qual
falsifica pela ambiguidade o filosofar, embora sempre realize o apelo à
transcendência numa dogmática do existir; leva erradamente, porém, me-
diante um pseudo-saber, a que se perca, se contorne, se combata, de fato,
o filosofar vivo, responsável; esta ontologia extravia a psicologia, quando se
pensa haver com ela adquirido um saber básico para a concepção do exis-
tir humano e de todos os fatos psicológicos. Em verdade, no decênio e
meio destas tentativas de aplicação, a psicopatologia não lucrou qualquer
conhecimento novo, excetuadas algumas boas descrições.
4. A questão objetiva não é questão de instância. A necessidade de fa-
zer estas distinções significa que o pesquisador não deve misturar os mé-
todos e finalidades, de maneira a atingir, seja por que via for, onde possí-
vel, a clareza máxima e o conhecimento inquestionável. Não quer dizer
que, por exemplo, o psicologista deva renunciar ao esclarecimento existen-
cial, nem o filósofo à psicopatologia. Não se trata de roubar a uma ciência
certa parte que a integre, mas da clareza dentro desta ciência. Daí não de-
verem questões terminológicas desviar nossa atenção da essência da
coisa: pode-se mesmo chamar psicologia grande parte da filosofia; o que,
então, importa é, só e decisivamente, a diferença dos métodos, do sentido
e do objetivo dentro do campo inteiro da “psicologia”.

h) Interpretação metafísica do adoecimento.


Assombra-nos o fato das psicoses. São enigmas do próprio existir hu-
mano e sua realidade interessa a todo homem. Que isso exista, que o
mundo e o existir humano sejam tais que isso venha a ser possível e ne-
cessário não só nos espanta, mas nos horroriza. Esta perplexidade é uma
das fontes de nossa ânsia de saber psicopatológico.
Interpretação metafísica da doença não é conhecimento psicopatoló-
gico. Se se compreende, religiosa e moralmente, como culpa e explicação;
se se valora como extravio da natureza no mundo (“Se Deus houvesse pre-
visto isso, não teria criado o mundo”); se se interpreta como teste confir-
matório, sinal constante da fraqueza humana, como lembrete de sua nuli-
dade — tudo isso são maneiras de exprimir a perplexidade, e não de com-
preender. Tais interpretações se fazem para sossegar o homem a respeito
do fato realmente insuportável; algumas servem para a autovaloração de
uns tantos pacientes, ou consolando-os, ou agravando-lhes o estado.
Ora, há interpretações, principalmente das alterações esquizofrênicas,
que variam entre a descrição das vivências reais e a respectiva interpreta-
ção metafísica, de modo que quem lê as tentativas neste sentido tem de
distinguir: O que é descrição real, o que se pensa, teoricamente, como fun-
damental, o que é interpretação metafísica e existencial? Percebem-se a
flutuação entre empirismo, teoria e filosofia, bem como o que há de pene-
trante e exasperador nessa confusão pelo seguinte exemplo:
No começo da esquizofrenia — assim é que fala o autor — o doente é
arrebatado do abrigo da comunidade a nova, insubstancial modalidade
existencial. Daí compreender-se que um deles diga: “O mais primitivo sen-
timento de ser eu mesmo está perdido”; ele sente-se “escorraçado, funda-
mentalmente, de seu próprio corpo”. “O pensamento é ilimitado, o eu é
mero espectador”. “Os pensamentos assumem vida própria”. O autor, após
a descrição, dá a seguinte interpretação: O mundo anterior é arrancado ao
paciente, já coisa alguma significa para ele. A alteração do humor básico,
expressão de alteração do estar-no-mundo, abre-lhe um mundo novo, en-
quanto declina aquele que havia antes. O doente vivencia o nada, a menos
que encontre uma casa no abrigo do delírio. A nova realidade do mundo
que se constitui em alucinações e delírios é peculiarmente insubstancial;
daí não valer para o enfermo como real no sentido da realidade anterior.
Na verdade, porém, este mundo faz-se existencialmente significativo para
ele, na medida em que lhe pareça efetivo. A vida suspende-se para o indi-
víduo, o futuro ainda se desenvolve apenas como se fosse vida onírica an-
tecipada, e não como perspectiva de autorrealização. A vida ainda pode
fluir em revelações e êxtases, mas já não se desdobra para o futuro. Só
resta ainda existência como- percepção profunda de si mesmo no insula-
mento de uma vida que se tornou descontínua. Entre-: - tanto, o paciente
ainda compreende, de um modo ou doutro, alguma coisa que não é com-
preendida, mas é esclarecida pelo próprio passado. Assim é que o esquizo-
frênico tem sua existência numa irrealidade insubstancial. Sua modali-
dade existencial, pairando oniricamente, arremessou-o do mundo em que
confiava para um mundo instável. Já não tem abrigo, nem na comuni-
dade, nem no estar-em-si-mesmo, vivenciando o aniquilamento de sua
existência histórica como aniquilamento de seu sentido vital, como derro-
cada universal.
Quem reflete na situação fatual e no destino radical do doente, tal qual
um e outro se afiguram ao indivíduo sadio, subordina-se, pelas declara-
ções individuais de certos pacientes e pelos conteúdos de suas vivências
delirantes, a uma compreensão global que não representa, em absoluto, a
autocompreensão real ou verdadeira dos enfermos, mas desenvolve o que
há de terrífico no quadro, conforme o indivíduo sadio o vê.

§ 4. Os Conceitos Saúde E Doença

a) A questionabilidade do conceito de doença.


Toda a gente usa, os conceitos, sadio e doente, para julgar fenômenos
vitais, rendimentos, entes humanos. Espantam, muitas vezes, a ingênua
segurança com que se usam estes dois conceitos e, ao mesmo tempo, a
aversão ansiosa que inspiram. As pessoas arrogam- se a faculdade de
usar, escarninhas, as categorias psiquiátricas e- acoimar os psiquiatras de
ignorantes natos, os quais constituiriam uma espécie de “Inquisição” ape-
nas sem o sanguinarismo desta. Por vezes, afigura-se de bom tom encarar
com desprezo “o aspecto psiquiátrico”; mas aquele mesmo que proclama
seu menosprezo pode falar, de outra feita, em “degenerado” e “mórbido”,
referindo-se a certas personalidades, fenômenos psíquicos ou rendimentos
intelectuais.
Se se ajuntarem os exemplos que ilustram este tipo de aplicação do
conceito “doente”, menos ainda se saberá quanto ao que significam sadio e
doente. Quem emprega estes conceitos, quem se vê acuado por perguntas,
costuma, afinal, apontar para a medicina, a qual estabelece e tem estabe-
lecido, empírica e cientificamente, o que é “doente”. Não é disto, porém,
que se trata. O que 'significa sadio e doente, em geral, é o que menos preo-
cupa o médico, o qual lida, cientificamente, com inúmeros processos vitais
e com doenças definidas. O que significa doente em geral depende menos
do juízo médico que do juízo do paciente, bem como daquelas concepções
que vigoram no ambiente cultural particular, isto não se percebe na
grande massa das doenças somáticas, mas se percebe muito nas doenças
psíquicas. O mesmo estado psíquico leva certo indivíduo, com o rótulo de
doente, ao psiquiatra; outro, com o rótulo de culpa, pecado, ao confessio-
nário. Os médicos têm discutido, ardorosamente, a questão de doença ou
saúde, se se trata ou não de' doença, no que diz respeito às chamadas
neuroses traumáticas, aos estados que se seguem a acidentes, a se ressar-
cirem com indenizações. Em casos tais, o juízo “doente” do indivíduo inte-
ressado’ conflita, pelo jogo de interesses materiais, com o juízo “sadio” da
sociedade; e este contraste debate-se na cabeça dos médicos periciais; afi-
nal de contas, sem resultado.

b) Conceito de valor e conceito de média.


Se, dentre a massa de aplicações que o conceito de doença tem encon-
trado, procurarmos o que há de comum no conteúdo conceituai, jamais
veremos um mesmo existir, ou um mesmo evento que se chame doente.
Pelo contrário, o fato de assim exprimir-se um juízo de valor é a única
coisa que há de comum. Doente implica a ideia de nocivo, indesejado, infe-
rior, sob um ponto de vista ou-, outro, o qual nunca é, entretanto, de
modo algum, o mesmo.
Se se quiser afastar o conceito de valor e evitar juízos valorativos, ter-
se-á de procurar um conceito existencial empírico; como tal há o conceito
de média; isto é, o que é próprio da maioria, o que é-médio — isso é sadio;
o que é raro, o que varia ou se desvia em certa medida da média — isso é
doente. Ver-se-á, no entanto, que o conceito de média não resolve em ab-
soluto o problema.

c) O conceito de doença na medicina somática.


Nos processos somáticos, é relativamente simples a situação concreta;
vida, longevidade, capacidade reprodutiva, capacidade física de produzir,
força, fatigabilidade escassa, nenhuma dor, um estado no qual se percebe,
constantemente, o menos possível do corpo, a não ser o sentimento praze-
roso da existência — tudo isso é, evidentemente, tão desejado por todos
que o conceito de doença no somatismo é amplo e constante. Ora, a ciên-
cia médica não consiste, apenas, em elaborar estes conceitos de valor e
formular qualquer conceito geral de doença, do mesmo modo que não lhe
cabe o encargo de inventar um remédio para todos os casos. O médico não
se torna absolutamente mais hábil pelo fato de alguma coisa, seja o que
for significar, em geral, doente. Seu trabalho consiste, sim, em estabelecer
o que é que existe, quando se apresenta certo estado e certo evento con-
creto, de que é que depende, de que forma é que decorre, por que é que é
influenciado. Em vez do conceito geral de doença, que é mero conceito de
valor, ele cria certa quantidade de conceitos existenciais e eventuais (por
exemplo, lesão, infecção, tumor, diminuição ou aumento de secreções en-
dócrinas etc.). Porque a indagação proveio, originariamente, do conceito
geral de valor e porque se lhe associa, permanentemente, pela tarefa tera-
pêutica do médico, este denomina doenças todos os conceitos existenciais
por ele criados e dos quais se exclui, a rigor, qualquer valoração.
A transposição do conceito de doença, como conceito de valor, para
uma série de conceitos existenciais levou, afinal, regressivamente, a despir
também quanto possível o conceito geral de doença de qualquer valorativi-
dade. É conceito existencial empírico o conceito de média: chamar-se-á
“sadio” a média; os desvios da média — aí dando-se à média certa ampli-
tude convencional — chamarise-á “doente”. Esta será uma consideração
existencial pura. Porque se vê a vida, primeiro, como estado e, depois,
como processo (totalidade do curso vital), assim se distinguirão, entre os
desvios da média, de um lado, aqueles que dizem respeito ao estado (por
exemplo, anomalias anatômicas, como malformações, falta de pigmento da
íris, etc., além de anomalias fisiológicas, como pen- tosúria); doutro lado,
aqueles que se relacionam com o curso da vida (serão os processos móbi-
dos propriamente ditos). Nesta medida estará excluída qualquer valoração
e poder-se-á separar o conceito de doença do paciente, como mero con-
ceito de valor, daquele da medicina, que é uma soma de conceitos existen-
ciais, baseados na ideia de média. Talvez fosse útil, tendo em vista sempre
a prática, a reintrodução do conceito de valor numa divisão secundária,
conforme resultado do seguinte diagrama (baseado em ALBRECHET).

No momento, pois, o conflito conceituai parece resolvido satisfatoria-


mente; não, contudo, definitivamente, por causa das seguintes dificulda-
des lógicas:
1) Há fenômenos vitais na maioria dos homens, como, por exemplo, a
cárie dentária, que, embora sejam medianos, se chamam doença.
2) Há desvios da média na longevidade, na força física e na capacidade
de resistência pouco habitual que, entretanto, nunca se chamam doença.
Ao lado de “doente” e “desvio indiferente”, ter-se-ia de introduzir terceira
categoria, ou seja, a “super-saúde”.
3) Na realidade, quase nunca se estabelece a média na vida do corpo
humano. Determinações medianas desta ordem restringem-se a medidas
anatômicas e quase mais nada. O que é média quase nunca se sabe.
Se refletirmos no exposto e lembrarmo-nos daquilo em que o médico
pensa, não poderemos deixar de reconhecer o seguinte: Quando o médico,
pensando cientificamente, fala em “desvios”, quase nunca quer referir-se,
realmente, à média, e sim a um conceito ideal. Ele não pressupõe, por
exemplo, conceito normativo definido de saúde; mas orienta-se por uma
ideia normativa, quando chama doença, por exemplo, a cárie dentária. É
conceito normativo desta ordem, e não conceito de média, que o conceito
de saúde vem a ser por sua vez; quer dizer, ele é, ao mesmo tempo, con-
ceito de valor. O conhecimento do corpo humano não pressupõe, porém,
este conceito de valor, mas o tem diante de si como ideia: quanto mais se
conhecem, no particular, as correlações entre órgãos, estruturas, funções,
tanto mais aquele que tem conhecimento apreende a ideia. Conhecê-la
completamente seria a mesma coisa que conhecer completamente a vida.
A saúde é, em primeiro lugar, um conceito de caráter grosseiro, de valor
ações derradeiras, quais sejam a vida, a eficiência etc. Quanto mais perce-
bemos as conexões finalísticas na vida do corpo — o conhecimento bioló-
gico propriamente dito, tanto mais caminhamos da teleologia grosseira
para uma teleologia mais refinada e tanto mais claro se faz o conceito de
saúde como conceito biológico normativo, sem que este se esclareça por
completo.
A origem da medicina empírica a partir de um conceito geral de valor e
o objetivo colocado em conceitos existenciais empiricamente encontrados
vêm, de quando em quando, a conflitar, como é natural. Isso acontece, so-
bretudo, em virtude do fenômeno básico pelo qual o homem se sente do-
ente, sabe de seu estado mórbido (ou quer saber)’ e toma atitudes em rela-
ção à sua doença. Certo é que, falando mais amplamente, o sentir-se-do-
ente coincide com um achado somático objetivo. O fato de, ao mesmo
tempo, se seguir uma atitude do doente: o fato de ocorrer um salto de sua
percepção de qualquer distúrbio — que menospreza como indiferente —
para a formação do juízo “Estou doente”; e o fato de este, por sua vez, po-
der referir-se a uma deficiência local particular de saúde no todo, ou expri-
mir uma consciência da doença no todo — tais são fatos biograficamente
importantes, mas incidentais para a doença somática. São só os casos
fronteiriços que acarretam o conflito. Das duas uma: ou o achado sem
consciência da doença, ou sem consciência correspondente da doença
(carcinoma gástrico inicial, glioma da retina): neste caso, é só pela colabo-
ração do juízo clínico que o doente forma a compreensão médica, sem que
haja base suficiente no sentimento, na disposição, na percepção própria;
ou o sentimento da doença sem achado; neste caso, procuram o médico
pessoas que se sentem gravemente enfermas; o médico nada encontra,
chama-as nervosas e manda-as ao psiquiatra. Em todos esses casos fron-
teiriços, nos quais o clínico não vê coincidirem tipo e grau do achado e tipo
e grau do sentimento da doença, apresenta-se o encargo solucionável, em
princípio, de encontrar a consciência adequada da doença pela cooperação
do juízo médico.
Inteiramente diversa e realmente problemática é a situação das doen-
ças mentais: ou falta achado somático, ou a inadequação da atitude do
paciente insere-se na essência da moléstia; ou mesmo o desejo da doença
dá origem a sintomas específicos.

d) O conceito de doença da psiquiatria.


As discussões sobre o conceito de doença apresentam bem pouca im-
portância na medicina somática; são reflexões para quem goste de ques-
tões de princípio. Na psiquiatria, contudo, estas questões assumem
grande importância para a teoria e a prática.
1. Aplicação de conceito de valor e conceito de média. No campo psí-
quico, multiplicam-se os conceitos de valor, de modo que, afinal, abran-
gem todos os valores sequer possíveis, estes mesmos se tornando proble-
máticos. Aqui muito menos ainda do que no somático se pode falar em
conceito unitário de “doente”. Também é possível — e tem-se feito isso —
pensar na vida psíquica em termos de média, excluindo qualquer valora-
ção. No campo psíquico, entretanto, nunca se conhece, realmente, a mé-
dia senão pelos resultados finais os mais grosseiros, tais como rendimen-
tos escolares. Quando ajuizamos se alguma coisa é “doente” partimos da
média, no terreno psíquico, muito menos ainda do que no somático. En-
tretanto, se formularmos os conceitos normativos, estaremos falando,
além daqueles biológicos (da conservação da vida e da espécie, liberação
da dor etc.), naqueles outros que são: proveito social (utilidade, adaptabili-
dade, disciplina), capacidade de ser feliz e contente, integridade pessoal,
acordo de qualidades, constância de atributos, desenvolvimento perfeito,
acorde e harmonioso.
A multiplicidade destes conceitos de valor leva a que o limite daquilo
que se concebe como “psiquicamente doente” esteja sujeito a flutuações
muito maiores do que a delimitação quase constante, pelo contrário, do
somaticamente doente. Já a aplicação do conceito de doença em geral ao
psiquismo se tem feito em muito menor escala que em relação ao soma.
Não seriam fenômenos naturais, a se conhecerem empírica e causalmente,
que aqui existiriam, e sim demônios, ou culpa e expiação. A seguir, conce-
beram-se como doentes, apenas, idiotas e furiosos; mais adiante ainda,
melancólicos; no decorrer dos últimos séculos, todavia, alargou-se mais
ainda o círculo e, certamente, de maneira decisiva, conforme o ponto de
vista da utilidade social. O aumento enorme que sofreu o número de fre-
nocômios funda-se em que certos homens já não podem viver nas condi-
ções mais evoluídas da civilização moderna, a qual exige cada vez mais
rendimentos sociais; poderiam ser alimentados, colaborar uma vez ou ou-
tra, sem o jugo, porém, da aparelhagem social. Daí por que este ponto de
vista psicologicamente externo, acrescido aos pendores antissociais de cer-
tos indivíduos, passou a ser -decisivo para a administração policial, no to-
cante à delimitação da doença. Outros limites residem no tocante à situa-
ção econômica dos doentes, em clínicas psiquiátricas, sanatórios, consul-
tórios médicos.
Assim é que o conceito “doente” abrangeu e abrange as realidades psí-
quicas mais heterogêneas. “Doente” é conceito depreciativo, geral, compre-
endendo todos os valores negativos possíveis. Quando se diz “doente”, de
maneira ampla, coisa alguma se implica no terreno psíquico, porque a ex-
pressão abrange o idiota e o gênio; abrange todos, os homens; e não nos
ensina que certo indivíduo esteja psiquicamente enfermo, a não ser que
vejamos determinadas manifestações e fenômenos concretos que se pas-
sem, em sua psique.
O, fato de sempre se confundirem na palavra doença conceitos de valor
e conceitos existenciais leva a enganos aparentemente quase inevitáveis:
em primeiro lugar, designa-se como doente alguma coisa que representa
valor negativo; a seguir, emerge a consciência de que a doença é um modo
de existir e o juízo assume caráter empírico-diagnóstico. Entre os leigos,
particularmente, vigora sempre a ideia grosseira de o indivíduo ser doente
ou não (resíduo da antiga teoria demoníaca sob forma racional); com o ju-
ízo doente, que repousa em mera valoração subjetiva, julga-se, após algum
tempo, possuir conhecimento real.
Wilmanns exprimiu em conversa, com uma frase jocosa, a natureza
paradoxal do conceito de doença: “Normalidade é a debilidade mental li-
geira”. Logicamente expresso, isso quer dizer: Segundo um conceito nor-
mativo de aptidão intelectual, a maioria dos seres humanos é ligeiramente
débil mental. A média, o atributo da maioria é que é, porém, o padrão de
sanidade; portanto, a debilidade mental ligeira é saúde. Mas a debilidade
mental é designação que se aplica à morbidez. Portanto, o mórbido é nor-
mal; portanto, sadio = doente. Daí concluir-se pela dissolução deste par de
conceitos, se tiver de repousar em conceito de valor e em conceito de mé-
dia.
Por fim, o conceito de doença psíquica, que vem a ser, no entanto, con-
ceito de deficiência, surpreende pelo fato de abranger fenômenos que são
de valorar-se e se valoram de maneira positiva. A análise patográfica de
certas personalidades destacadas mostra que a doença não só interrompe
e destrói; que, apesar dela, não só alguma coisa se produz, mas que a do-
ença é requisito de certos rendimentos e que nela se podem apresentar a
profundidade e a abismalidade do existir humano.
Não exporei as demais paradoxalidades do conceito doença, resultan-
tes da compreensão de “doente”, com acento valorativo negativo, no campo
psíquico, de um todo unitário. Cientistas que somos, queremos saber: que
fenômenos são possíveis na psique humana? Médicos, indagamos: que
meios há para promover o que há — e é muito variado — de desejável na
vida psíquica? Nem num caso, nem no outro precisamos do conceito de
“doente em geral”; e a esta altura já sabemos que coisa alguma existe
desta ordem que seja geral e unitária.
O que foi dito pode resumir-se da seguinte maneira: Na concepção ge-
ral, muito costumeira até entre médicos, concepção que atribui importân-
cia fatual à indagação “Isto é mórbido?” um resíduo existe daquelas anti-
gas ideias, segundo as quais as doenças eram entidades especiais que se
apoderavam dos homens. Pode-se dizer: será isto um fenômeno desfavorá-
vel sob tal ou qual ponto de vista? Ou: será isto um fenômeno que, presu-
mida ou seguramente, acarretará outros mais desfavoráveis ainda (o co-
meço de um processo que leve à morte, a perda de capacidade etc.)? O fato
de eu chamar “mórbida”, em geral, alguma coisa não me faz, porém. pro-
gredir. Não obstante o que, a indagação geral “Isto é mórbido?” ainda con-
tinua a formular-se frequentemente, a fim de valorar a resposta, negativa
como aquietamento e a resposta afirmativa, simplesmente, como escusa
moral; ou a fim de reduzir certo valor; em ambos os casos, de maneira
igualmente errônea.
2. Ideias especulativas sobre doença e saúde em geral. Embora sa-
bendo que a simples doença e a simples saúde não são conceitos que se
possam preencher de modo unívoco, deter-nos-emos, um instante, em
certas ideias que operam com estes conceitos gerais. Não possuem elas,
decerto, qualquer valor cognoscitivo, mas nos abrem espaço e atitude que
não nos podem ser indiferentes, quando pensamos no todo do existir hu-
mano.
aa) Doença no horizonte biológico e doença no homem. Se nos colocar-
mos no horizonte biológico mais amplo, veremos a origem das doenças: 1)
no fato de todos os seres vivos viverem uns dos outros, atacando-se e de-
vorando-se, conforme se nota, entre outros exemplos, na existência dos
parasitas e bactérias; 2) nas alterações radicais do perimundo, pelas quais
um tipo de vida se vê sujeito a exigências excessivas, sem possibilidade de
ajustamento; nas mutações, que se apresentam desfavoráveis em certa si-
tuação. Na vida como tal insere-se o estado de doença. O perigo- para a
vida resulta de sua permanente provação; provação que origina sua exal-
tação e enriquecimento de maneira ilimitadamente- múltipla. Entretanto,
a semelhante provação hão de ajustar-se as perdas que se dão no declínio
da realização, nas feiuras e preocupações estáveis (porque se ajustam a
certo perimundo, mas só a este), na falência mesmo do mais belo êxito
momentâneo. Pelo- estado de doença não se encontram apenas as exce-
ções vitais que discriminam; mas, sim, ele é parte da própria vida como
elemento de sua ascensão, como risco superável. Tal qual se desenvolve, a
vida experimenta a simultaneidade constante de êxito e falência, acerto e
desacerto.
É neste todo biológico que reside o especificamente humano. O homem
é exceção dentre os seres vivos. É a maior abertura da possibilidade, a
oportunidade máxima e, no entanto, ao mesmo tempo, o maior perigo. Os
pensadores têm sempre concebido o existir humano no todo como estado
de doença, quer moléstia vital, quer desordem e lesão primevas de sua na-
tureza, provenientes do- pecado original. Concordam Nietzsche e os teólo-
gos, embora em sentido muito diverso.
Não é, pois, acaso hajam os poetas representado em forma de loucura
e símbolos a essência do existir humano, suas possibilidades máximas e
mais temíveis, sua grandeza e sua decadência; por exemplo, Cervantes em
Don Quixote, Ibsen em Peer Gynt, Dostoievski no “Idiota”, Shakespeare no
Rei Lear e Hamlet (os poetas extraem traços reais da esquizofrenia, da his-
teria, da debilidade mental, das psicopatias); nem é acaso reconheça o
mundo inteiro haver uma sensatez dos loucos. Certas frases de psiquia-
tras como Luxenburger mostram alguma coisa do conhecimento que, pelo
estado de doença, se obtém a respeito daquilo que é especificamente hu-
mano: “A esquizotimia é a problemática humana em si. E isso tudo está
na amplitude com que varia a norma, sem exageros que teriam de cha-
mar-se psicopáticos, nem distorções, que teriam de chamar-se psicóticas”.
Já se vê, de modo geral, o otimismo em relação à saúde como sendo a es-
sência humana, da qual se realizam, normalmente, a harmonia, a medida,
a correção e a perfeição.
Chama a atenção o fato de a loucura haver despertado não só horror,
mas veneração. O “mal sagrado” — epilepsia — foi considerado efeito de-
moníaco ou divino. Diz Platão: “Ora, os maiores benefícios, nós os recebe-
mos de uma loucura que, no entanto, devemos ao fator divino... Segundo
o testemunho dos antigos, a loucura divina é muito mais esplêndida que o
mero entendimento humano”. Nietzsche despreza os indivíduos que escar-
necem e lastimam, conscientes de sua própria saúde, os euros báquicos
dos gregos, a embriaguez dionisíaca, considerando-os “desordens popula-
res”: “Nem imaginam os infelizes quanto a saúde deles pareceria cadavé-
rica, espectral, aos homens de então”. E é assim que o mesmo pensador
julga os procedimentos do filisteu culto: “Por fim, inventa ainda para seus
hábitos, opiniões, aversões e pendores a fórmula universal “saúde”, rejei-
tando, por suspeitá-lo de enfermiço e excitado, tudo quanto lhe perturba o
sossego”. “Quer dizer, é circunstância fatal que o espírito costume descer
com simpatia especial até os doentes e os insanos, ao passo que o filisteu
filosofa quase sempre sem espírito, se bem que de forma absolutamente
sadia”. Platão e Nietzsche não se referem à doença como sendo menos que
a saúde, apenas destruindo; e, sim, como sendo acréscimo, exaltação, cri-
atividade. Esta loucura é mais que saúde. Pergunta Nietzsche: Não haverá
neurose da saúde? Entretanto, se atentarmos para a abismalidade que há
no homem; se não nos preocuparmos com quaisquer pressupostos da
possibilidade de uma ordem cósmica correta, de um existir humano ideal-
mente perfeito, de uma visão do mundo que seja a única verdadeira, nesse
caso a loucura e a psicopatia adquirem significado humano; e são uma re-
alidade em que se mostram essas possibilidades; possibilidades que o in-
divíduo sadio a si mesmo oculta; de que se esquiva; de que se preserva.
Mas o indivíduo sadio cuja psique se haja aberto ao que é marginal inves-
tiga dentro do psicopatológico o que ele próprio pode ser; ou o que lhe é
essencial na distância, na estranheza, e lhe parece ser a linguagem que
vem dos confins. O temor e a veneração de certas modalidades da doença
não constituem apenas fato histórico da superstição, mas têm permanente
significado.
Disse Novalis: “Nossas doenças são fenômenos que constituem eleva-
ção de uma sensação, a qual pretende adquirir mais forças”. E um psiqui-
atra moderno escreveu: “A neurose não é simples fraqueza, mas pode re-
presentar, veladamente, o predicado de nobreza do homem” (G. R. Heyer).
O amor de um administrador nosocomial pelos doentes entregues à sua
guarda talvez se possa compreender, em conexão com a ideia da significa-
ção da doença humana, com a seguinte descrição, tão paradoxal, feita por
Jessen numa reunião de cientistas realizada em Kiel, a 21 de agosto de
1846: “Já conheci e tratei, como médico, de 1.500 doentes mentais; tenho
vivido entre eles e com eles mais do que com gente sã. Se tivesse de ajui-
zar o valor moral dos loucos em comparação com o daqueles que passam
por sadios, seria em favor dos primeiros. Declaro, livremente, que tenho
mais estima pelos doentes mentais em geral do que por outras pessoas; -
que me apraz viver entre eles; que, na sociedade deles, não me faz falta o
convívio das pessoas sãs; e digo mesmo que me parecem, em parte, mais
naturais e sensatos do que julgo serem os indivíduos em geral”. Só poderia
adoecer da mente, em geral, quem possuísse sentimentos profundos, na
opinião do mesmo médico. Daí a certeza “de que é muito mais honroso que
vexatório para qualquer pessoa ser acometido por doenças mentais”.
bb) Saúde. Estabelecer um conceito de saúde parece não ter sentido se
se pensa no ente humano como existir inconcluso. Há uma série de defini-
ções gerais:
A mais antiga é a de Alcmeón e de muitos que se lhe seguiram, até
hoje: saúde é a harmonia de forças opostas. Para Cícero, é a relação recí-
proca correta dos estados d’alma. Hoje em dia, tem-se visto a saúde, reite-
radamente, na via que medeia entre os contrastes, via na qual estes se
mantêm ligados uns aos outros unidos em sua tensão.
Em oposição a tudo quanto pende para o entusiasmo, a exceção, o pe-
rigo, os estoicos e epicuristas dão valor supremo à saúde. Para o epicu-
rista, ela está no contentamento absoluto, dentro da satisfação moderada
de todas as necessidades. Os estoicos consideravam doença qualquer pai-
xão, qualquer ardor dos sentimentos; a doutrina moral deles era, em certa
extensão, terapia, que consistia em destruir as doenças da alma em bem
de uma ataraxia sadia.
Os psiquiatras contemporâneos veem a saúde na capacidade “de reali-
zar a possibilidade inata do destino humano (von Weizsäcker) — mas seria
preciso saber o que é isso; ou identicamente: no encontro de si mesmo, na
autorrealização, no ordenamento completo c harmonioso dentro da socie-
dade.
A estas definições de saúde correspondem as concepções de doença;
1) como decomposição em contrastes, isolamento de contrastes, desar-
monia de forças;
2) como afeto e suas consequências;
3) como inverdade; por exemplo, fuga para a doença, evasão, oculta-
mento (esta última concepção, sobretudo, tem sido muito discutida).
V. von Weizsäcker escreve: “Quando o indivíduo tem de fazer da do-
ença uma virtude, quando a reação moral se torna sintoma patológico,
ocorre uma espécie de falsificação de sentido, que estimula a crítica a
nossa consciência da verdade”. “O neurótico realiza um ocultamento, que
revela pelo seu sentimento de culpa. Em doentes orgânicos não-neuróti-
cos, temos visto, muitas vezes, acenderem-se sentimentos de culpa; por
exemplo, no estágio prodrômico, pela maneira por que lutam consigo mes-
mos para ver se podem ceder ou não; na convalescença, para saber se
ainda estão doentes”. Daí achar o mesmo autor “que a saúde tem a ver
com a verdade; a doença, com a inverdade”. Faz lembrar as ideias dos psi-
quiatras antigos: Só a culpa enlouquece, jamais a inocência (Heinroth); a
perfeição moral e a saúde mental seriam a mesma coisa (Groos), isto é,
quando o impulso inato para o bem se desenvolve livremente, evento so-
mático algum dá lugar à doença mental. Aqui também se insere a concep-
ção de Klages: A psicopatia é o sofrimento causado por autodecepções vi-
talmente necessárias.
A estas maneiras de ver contrapõe-se a frase de Nietzsche: “Saúde em
si não existe”; mais ainda, a desconfiança nietzscheana em relação a todo
conceito de saúde que seja unívoco, retilíneo, otimista. Von Weizsäcker dá
a entender alguma coisa no sentido da paradoxalidade dos adoecimento
humano, quando se refere a que “a doença grave significa, muitas vezes, a
revisão de toda uma época vital”; vale dizer, aquilo que a doença é pode
ter, noutro contexto, significado “curativo”, “criativo”; ou quando, doutro
lado, “acentua a lei segundo a qual a supressão de um mal abre espaço
para outro” A harmonia dos contrastes é um ideal que, ao mesmo tempo,
restringe; não é conceito do existir, nem possibilidade realizável. Da atara-
xia e do contentamento resulta um empobrecimento psíquico; como resul-
tam distúrbios daquilo que se menosprezou e deixou passar.
3. A estruturação do conceito psiquiátrico de doença. Não há “loucos”
como espécimes próprios, disse Griesinger. Em vez de considerar sumaria-
mente o adoecimento psíquico em geral, deve-se, antes, estruturá-lo. É por
isto que o psiquiatra não dá valor algum ao juízo corrente “doente”. As re-
alidades heterogêneas com que depara, ele as ordena segundo conceitos
existenciais, como, por exemplo, aquele que distingue, em certo quadro,
entre estado permanente ou estádio de um processo. No consultório mé-
dico e no frenocômio, tratam-se numerosas pessoas que não sofrem de
qualquer processo mórbido, e sim de variação desfavorável da respectiva
constituição; que sofrem do respectivo caráter. A esta altura, nossa ciência
começa, realmente, com a caracterologia e no campo do “normal”. Desde
que designemos certas personalidades como doentes no campo psíquico,
mais não nos resta senão estabelecer um limite prático em relação a todas
as variações individuais.
aa) Os pontos de partida para a definição do adoecimento psíquico. O
conceito de doença caracteriza-se, no campo psíquico, pelo fato de a ati-
tude do paciente em relação à doença, seu sentimento da doença, sua
consciência da doença, ou a ausência absoluta de uma coisa e outra não
constituírem dado adicional, relativamente fácil de corrigir, como no caso
das moléstias puramente somáticas; mas constituírem, sim, certo ele-
mento sempre peculiar do próprio adoecimento. Em muitos casos é só o
observador que considera doente os indivíduos em causa, não este a si
mesmo.
Para o observador, o ponto de partida está em seja qual for modalidade
da incompreensibilidade; quer se dê transposição de conexões compreen-
síveis mediante mecanismos anormais; quer ocorra “alienação”, isto é,
ruptura radical das possibilidades de comunicação, ou ameaça derivada
de motivos incompreensíveis. As discriminações diagnósticas baseiam-se
na distinção do tipo de incompreensibilidade: sintomas leves, que ainda
não parecem mórbidos em absoluto ao leigo, podem indicar processo des-
trutivo dos mais graves; manifestações muito sérias (estados de excitação,
a que se dá o nome de fúria) podem ser sintomas de histeria relativamente
inócua,
Para o doente, o ponto de partida é um sofrimento, ou de seu próprio
existir, ou de alguma coisa que, afigurando-se estranha, na existência lhe
irrompe. Mas indaga-se: a forma por que se dá esse comportamento do do-
ente em relação a si mesmo é universalmente humana para todos os indi-
víduos, no sentido de saber se e como ele se dominará? Para o indivíduo
em causa, a morbidez está num desvio dessa anormalidade, resultando da
novidade (não existia antes), bem como do conteúdo e tipo da vivência.
Não se pode confiar nesses pontos de partida para a definição do adoe-
cimento. Não existe coincidência alguma entre as manifestações inicial-
mente percebidas e a essência, a gravidade, o rumo que toma o evento pa-
tológico. Daí por que o psicopatologista penetra em fundamentos mais
profundos pela multiplicidade metodológica de suas observações, consta-
tando a ocorrência simultânea das manifestações, a modalidade em que
evolui a doença etc. Afinal, três conceitos de doenças emergem, atual-
mente (vimo-los na classificação tripartite do esquema diagnóstico da pág.
741).
bb) Os três tipos do conceito psiquiátrico de doença. Define-se a do-
ença: 1) como processo somático; 2) como evento sério, que pela primeira
vez irrompe numa vida sadia, alterando o psiquismo; evento para o qual se
presume, mas não se conhece base somática; 3) como variação do existir
humano, muito distante da média e, decerto, inoportuna, de um modo ou
doutro, para o doente ou seu ambiente; por conseguinte, exigindo trata-
mento.
1. O psiquiatra parece livre das dificuldades do conceito de doença;
quando encontra, essencial à enfermidade, um processo somático que se
pode estabelecer e definir como tal. Ê a atitude médica que, fundada nas
ciências naturais, só conta com o somático para decidir. A psicopatologia
mais não é que meio de encontrar sintomas do físico; é à fisiologia que a
pesquisa médica visa, não à psicologia. Como médicos, temos a ver com o
corpo. “Se houvesse alguma coisa que fosse doença da mente, nada pode-
ríamos fazer para remediá-la” (Hughlings Jackson, citado segundo Sittig).
Só serão mórbidos aqueles fenômenos psíquicos que repousam em proces-
sos cerebrais mórbidos. Há, de fato, um setor das moléstias cerebrais or-
gânicas em que é necessário investigar fundamentos somáticos; e em que
o sintoma psíquico é, ele mesmo, sintoma de distúrbio físico. Subsistem,
entretanto, as dificuldades, que não são poucas. Nem na quarta parte dos
pacientes internados conhecemos o fundamento orgânico da doença. Não
existe coincidência entre a gravidade das alterações cerebrais e a -gravi-
dade da moléstia. E há doenças somáticas muito sérias em que a mente e
o psiquismo se conservam claros até a morte.
2. A maior parte das psicoses nos três círculos hereditários não apre-
senta doença somática de tal natureza que por ela se possa diagnosticar a
própria psicose. Por isto, o conceito de doença se liga, neste particular,
primária e exclusivamente, às alterações psíquicas. É certo serem muitos
os casos em que se encontram fenômenos somáticos fundamentando a
presunção de que o todo resulte de qualquer evento somático a descobrir-
se um dia ou outro. Faltam, no entanto, tais fenômenos em muitos casos.
Daí ser provável que certas doenças somáticas se venham a excluir desse
campo e a subordinar-se ao conceito do primeiro grupo. Subsistirá, con-
tudo, um campo que se terá de conceber autônoma e, pois, talvez mais
claramente que hoje.
Quando investigamos essas doenças, prazer-nos-ia — tal qual seria o
caso do primeiro grupo — descobrir “funções básicas” do evento psíquico
cujo transtorno permitisse compreender a multiplicidade das manifesta-
ções. Não se descobriria, certamente, por essa via, o processo somático,
mas se encontraria o que há de específico e, em oposição à saúde, o que
há de novo; principalmente, na esquizofrenia. Usando recursos puramente
psicológicos, descobrir-se-ia alguma coisa da essência da doença (não se
poderia deixar de recorrer a ideias teóricas). “Esta consideração pura-
mente funcional da vida psíquica, que, além de beneficiar a investigação
da esquizofrenia, constitui fundamento novo para a psicopatologia, não
tem precedente na história da psiquiatria” (Gruhle). Se, desta forma, se
conseguissem resultados indubitáveis, definir-se-ia o conceito de doença
deste grupo pelo transtorno de funções básicas. Não se alcançou, até o
momento, semelhante objetivo, subsistindo uma quantidade de teorias ao
lado das descrições.
3. Pela terceira modalidade do conceito de doença — as variações que
importunam o existir humano — nada se encontra e nada se espera que
seja fundamento somático em forma de doença orgânica. O corpo repre-
senta aí o mesmo papel que em qualquer psiquismo sadio. Nem é essa
morbidez, em princípio — apesar do abismo que separa a saúde e o meca-
nismo neurótico — novidade alguma, relativamente ao estado hígido ante-
rior, se bem que possa introduzir desenvolvimentos ruinosos para o psi-
quismo. São atributos fundamentais da existência humana, que na exce-
ção se mostram mais clara, mais efetiva, mais temivelmente do que na
maioria dos casos. Deste campo foi que se originou a frase: “O existir hu-
mano é doença”. (Ou: “Existir é estar doente”.).
Se se conhece de forma concreta o terceiro grupo, também se esclare-
cem, retroativamente, as doenças psíquicas de causa orgânica. ;Em tudo o
existir humano participa como tal; as concepções fundadas nas ciências
naturais são indispensáveis, mas não bastam; e aqui se percebe um
abismo entre o homem e o animal.

§ 5. O Significado Da Prática Médica

Este livro ocupa-se com o conhecimento psicopatológico. Cabe ainda


refletir sobre o significado da prática médica, quando se pensa no todo do
existir humano: Que é que ela pode ser em relação ao existir humano?

a) Correlação entre conhecimento e prática.


Exige-se da psicopatologia que sirva à prática médica; e não é raro re-
criminá-la por não fazê-lo. Deve-se ajudar o homem doente, o médico
existe para curar; sua missão prejudica-se muito facilmente, se pensar
apenas na pura ciência, porque o conhecimento em si de nada servirá; e
do mero conhecimento resultará o niilismo terapêutico. A questão será,
apenas, saber que fenômeno ocorre, reconhecê-lo e predizer-lhe mais ou
menos o curso, deixando o paciente entregue a quaisquer cuidados, sem
esperança de poder realmente ajudá-lo. Será um perigo em relação às psi-
coses graves e às variações inatas da personalidade.
A isso opõe-se a vontade otimista que quer ajudar. Sejam quais forem
as circunstâncias, alguma coisa deve-se fazer e tentar. Acredita-se na
cura. Não interessa o conhecimento que não sirva a fins curativos. Fa-
lhando a ciência, confia-se na arte própria, na sorte, e, pelo menos, cria-se
uma disposição de cura, mesmo que não passe, talvez, de atividade tera-
pêutica vazia.
Tanto o niilismo quanto o êxtase terapêutico são irresponsáveis. Em
ambos os casos, falta o espírito crítico: quando a passividade se justifica
erradamente com a alegação de que nada se pode fazer e, bem assim,
quando uma atividade cega pretende possam a vontade e o entusiasmo,
apenas, produzir benefício; o que interessa à prática médica é poder, e não
saber. Todavia, a prática eficaz só pode fundar-se, afinal, no conhecimento
que seja o mais claro possível.
Inversamente, a prática médica vem a tornar-se meio para aquisição
de conhecimento, não produzindo só aquilo que, eventualmente, se pre-
tende, mas também aquilo que não se espera. Assim é que certas escolas
terapêuticas criam, sem querer, os fenômenos que elas curam. No tempo
de Charcot, houve uma quantidade de fenômenos histéricos que quase de-
sapareceram do mundo quando se desvaneceu o interesse por eles; do
mesmo modo, foi quando predominava a terapia hipnótica, originada de
Nancy, que se viram na Europa os fenômenos de hipnose com abundância
jamais constatada a partir daí. A cada escola psicoterapêutica, com suas
maneiras de ver filosóficas, técnicas, psicológicas correspondem os pacien-
tes que lhe são típicos; Os sanatórios dão origem a produtos da vida sana-
torial. Não se pretende nada disso; o que se quer é corrigir, assim que se
percebem essas conexões.
Resta o fato básico de que a intervenção e a experiência terapêuticas
de efeito e contraefeito no contato dos doentes possibilitam formar conhe-
cimentos que de modo algum seriam possíveis à mera observação, quando
se temem os riscos da tentativa terapêutica. “Temos de tratar para ganhar
conhecimento mais profundo”, diz von Weizsãcker.
Pelas intenções curativas e pelas experiências formadas só na ativi-
dade terapêutica logra-se um esquema psicopatológico que orienta, anteci-
padamente, os conhecimentos no sentido do objetivo prático; que com
base neste avalia e ordena. É por isto que os compêndios de psicoterapia
são, em parte, compêndios de psicopatologia; limitados, é certo, pelo hori-
zonte prático, mas complementando, essencialmente, a psicopatologia teó-
rica na medida em que informam sobre experiências.

b) As relações dependenciais de toda prática médica.


A terapia, a psicoterapia e, mais, todo o comportamento médico em re-
lação ao doente e aos indivíduos anormais dependem do Estado, da reli-
gião, das condições sociológicas, das tendências culturais que vigoram em
certa época, como dependem, primária, mas não unicamente, das condi-
ções dos conhecimentos científicos aceitos.
O Estado fundamenta ou conforma, com sua política, as relações hu-
manas básicas, a organização dos socorros, dos seguros, da utilização dos
recursos, além de dar; e recusar direitos. Se não fosse o Estado, não exis-
tiria interdição, nem internação de pacientes em instituições fechadas.
Toda prática médica acompanha-se de uma vontade que deriva, afinal, de
confirmações e requisitos legais. Em todo consultório médico há uma situ-
ação de autoridade efetiva que, acentuada pela clínica, depende da autori-
dade legal. Se o Estado não- estatui, sempre resta a necessidade de um
poder resultante de autoridade, o qual se ganha pessoalmente.
A religião ou a falta desta é requisito para o estabelecimento de objeti-
vos no contato' terapêutico. Quando se associam na mesma crença, o mé-
dico e o paciente reconhecem uma instância de que emanam decisões der-
radeiras, juízos, rumos a seguir: que condiciona a possibilidade de certas
medidas psicoterapêuticas. Faltando esse vínculo, substitui-se à religião
uma filosofia secular; o médico assume funções sacerdotais, forma-se, por
assim dizer, a ideia de confissão mundana, de consulta pública a respeito
de assuntos espirituais. Derrubada a instância objetiva, a psicoterapia ar-
risca-se a deixar de constituir um meio, apenas, para tornar-se produto de
uma filosofia mais ou menos obscura; absoluta ou camaleonicamente
cambiante: séria ou teatral — sempre, no entanto, pessoal e privada.
A comunidade nalguma coisa objetiva — símbolos, crenças, convicções
filosóficas de qualquer grupo — é requisito para a coesão profunda entre
os indivíduos. É muito raro que os homens confiem uns nos outros, pes-
soalmente, de maneira inabalável; que experimentem sua sorte como
sendo a transcendência a mostrar-se na comunidade do destino. Iludem-
se muitos setores da psicoterapia moderna que, tendo em vista, precisa-
mente, as neuroses e psicopatias, julgam possível esperar o máximo: a re-
alização de um ser- si-mesmo próprio, o desenvolvimento amplo da razão,
a plena humanidade harmónica em forma pessoal. A psicoterapia vincula-
se à realidade de uma crença ou convicção comum; faltando a qual e, daí,
precisando o indivíduo particular valer-se ao máximo de si mesmo, a psi-
coterapia torna-se supérflua para todo aquele a quem bastam seus rendi-
mentos; deixando o indivíduo de corresponder, dentro de uma atmosfera
de descrença, é fácil ela transformar-se em expediente que encobre a reali-
dade.
Das condições sociológicas dependem as inúmeras situações dos indi-
víduos. O nível financeiro de certa camada, por exemplo, influi nas medi-
das terapêuticas que custam tanto dinheiro como tempo, pelo fato de exi-
girem aprofundamento demorado no psiquismo do doente em causa.
A ciência cria o pressuposto do conhecimento, que, só ele, permite al-
cançar os fins desejados; mas a ciência mesma não os fundamenta, em-
bora forneça os meios de realizá-los. Se for autêntica, suas afirmações têm
validez geral e são, ao mesmo tempo, críticas, porque ela sabe o que sabe e
o que não sabe. A execução da prática médica, mas não a fixação de seus
objetivos, depende da ciência.
A prática médica pode ser tentada a esquivar-se a essa situação, ou
seja, à dependência da ciência e à insuficiência desta como fundamento
único da ação. Numa época em que vigora a superstição da ciência, esta
serve para encobrir fatos insolúveis. Casos em que a decisão depende da
responsabilidade são resolvidos pela ciência, que diz o que é correto, com
base num conhecimento geralmente válido, mesmo que não saiba, na rea-
lidade: nela se fundamenta aquilo que deve depender de outras contingên-
cias. É o que acontece quando o médico não estabelece distinções nítidas
e quando não se exprime com clareza, em muitos casos de neurose por
acidente, em várias perícias relacionadas com a responsabilidade, em
muitas diretivas terapêuticas.
Pode acontecer que, sob a forma de pseudociência, se exprima aquilo
que não se sabe, mas apenas se quer; aquilo que apenas se pretende, se
deseja e se acredita. A ciência adapta-se aos fins da prática médica. Daí
resultam esquemas conceituais dentro da prática que aquieta, obscurece e
assegura, levando a uma terapia que ajuíza, decide, permite e veda. A con-
formação da ciência torna-se convencional, ajusta-se ao cientificismo no
procedimento terapêutico, tal qual o teologismo de outros tempos.
Assim, pois, dentro de toda prática médica, encontraremos limite entre
aquilo que se fundamenta suficientemente nos pressupostos em geral váli-
dos do conhecimento e que é possível fazer (além de dever ser, realmente,
reconhecido e vigente) — de um lado — e aquilo que se baseia numa reli-
gião (concepção do mundo, filosofia), ou na sua ausência, de outro lado:
daí parte a diretiva ou a falta de diretiva da ação, seu estilo ou sua indeci-
sividade, sua atmosfera ou seu colorido específico.

c) A prática médica externa (medidas e ajuizamento) e a prática interna.


Os doentes mentais podem romper toda ordem, podem aterrorizar ou
alarmar as pessoas que vivem à sua volta. Tem-se de fazer alguma coisa
com eles. São de duas naturezas as atitudes que se adotam em relação a
eles. No interesse da sociedade, têm-se de torná-los inofensivos; no inte-
resse dos doentes, tem-se de tentar-lhes a cura.
A segurança pública impõe, em muitos casos, a internação dos pacien-
tes, a fim de impedir que pratiquem atos violentos, além do desejo de
afastá-los de nossas vistas. Diversificam-se as formas de segregação, pro-
curam-se maneiras humanitárias de realizá-la, para aquietar os parentes
e a consciência social. A conceituação e interpretação da loucura, que é
fato básico dentre as realidades humanas, tenta encobri-la, involuntaria-
mente. Certas instituições e concepções visam à simplificação e à elimina-
ção, de modo a libertar dessa realidade a visão adequada, a substituir-lhe
uma interpretação acomodatícia e a harmonizar tudo de acordo com as
possibilidades.
O interesse do paciente exige uma terapia. Por si mesma, a internação
é necessária; por exemplo, a fim de impedir que se suicide, a fim de ali-
mentá-lo e, mais adiante, a fim de executar as medidas terapêuticas possí-
veis.
É pacífico, na prática, o pressuposto de que se sabe o que é doente e o
que é sadio. Quando isso, realmente, tem validez geral, quando se compre-
ende de forma idêntica, na maioria das doenças somáticas, nas psicoses
orgânicas, como a paralisia geral, e nas formas psicóticas mais grosseiras
e graves — não existe problema; este existe, porém, no vasto campo dos
casos mais ligeiros e, sobretudo, das psicopatias e neuroses.
No caso particular, quando se tem de tomar decisão prática, c de im-
portância especial saber se deve julgar-se certo indivíduo doente ou sadio.
Da maneira por que as coisas ocorrem nas diversas épocas e situações,
isso é problema de poder, além de subordinar-se à extensão dos conheci-
mentos científicos em vigor.
A questão assume, regularmente, importância especial quando se trata
de julgar “a livre determinação da vontade dos criminosos”. É sempre de
ordem prática a demarcação precisa da livre determinação da vontade, ou
responsabilidade. Não pode a ciência manifestar-se sobre a liberdade com
base num conhecimento técnico; só pode manifestar-se a respeito de fatos
empíricos; por exemplo, se um doente sabe o que faz, e se tem conheci-
mento de que isso ou aquilo é proibido; por conseguinte, se existe nele ar-
bítrio para a ação e consciência da punibilidade. No tocante à livre deter-
minação da vontade, a ciência só pode ajuizar de acordo com regras, con-
vencionais determinadas, que recusam ou concedem liberdade a certos es-
tados psíquicos possíveis de estabelecer empiricamente. A propósito do
significado de liberdade, Damerov escrevia em 1853: “Poucos dentre os
loucos (1.100) que, segundo se sabe, estiveram no hospício local, até
agora, eram ou são absolutamente responsáveis, a qualquer tempo, por
seus atos.” Segundo esta opinião, só a análise individual do estado de fato
é que permitiria excluir a livre determinação da vontade; jamais o simples
diagnóstico nosológico. Mas pelas regras convencionais o procedimento é
diverso. Assim, por exemplo, mesmo na embriaguez alcoólica normal das
mais sérias, considera-se responsável o indivíduo; na embriaguez anor-
mal, não. O diagnóstico de paralisia geral em si exclui a responsabilidade.
Ilustrarei as dificuldades práticas com dois breves exemplos de minha pró-
pria atividade pericial, antes da primeira Grande Guerra.
Um carteiro rural, que sempre cumprira regularmente suas obriga-
ções, cometeu pequeno furto. Tendo-se ouvido dizer que estivera uma vez
internado, foi submetido a exame médico. A consideração da história mór-
bida anterior levou a concluir no sentido de broto esquizofrênico nítido.
Porque dispôs dessa história anterior, a perícia pôde reconhecer com segu-
rança que certos sintomas era esquizofrênicos. O diagnóstico era claro.
Pela lei em vigor, a esquizofrenia (demência precoce), tal qual a paralisia
geral, era motivo bastante para afastar a responsabilidade (ainda não exis-
tiam as confusões em torno do conceito de esquizofrenia e de sua evolução
para a normalidade). O perito, com base no seu diagnóstico, considerou
doente o carteiro, que se apresentava lúcido, mas indubitavelmente en-
fermo, merecendo, pois, enquadramento no art. 151 do Código Penal. O
Procurador Público indignou-se, para espanto de todos, inclusive do pe-
rito, mas o automatismo da lei vigente levou à absolvição.
Um pseudologista típico, sujeito a acessos de suas capacidades fanta-
sistas, havia cometido, mais uma vez, uma série de fraudes. No tribunal,
de que participava o célebre criminalista von Lilienthal, descrevi, durante
três quartos de hora, o curso da vida romanesca e dos crimes do réu; mos-
trei também que o comportamento delituoso se limitava a certos períodos;
que dores-de-cabeça acompanhavam os acessos, etc.; conclui tratar-se de
um histérico, que representaria uma variação da natureza humana, mas
não sofreria de processo mórbido. Em seu caso, não se poderia excluir a
responsabilidade; pelo menos, no início da prática fraudulenta. Entre-
tanto, a impressão de necessidade interna, talvez atuando sobre a sensibi-
lidade do tribunal pelo vigor da descrição, levou os juízes a absolver o réu,
contra o parecer do perito.
De todas estas medidas e ajuizamentos, há de distinguir-se a psicote-
rapia, a tentativa de ajudar o individuo pela comunicação psíquica, de in-
vestigar-lhe a intimidade da maneira mais profunda possível, de encontrar
rumos que levem à cura. Procedimento outrora incidental, a psicoterapia
tornou-se, de alguns decênios para cá, problema clínico de vasto alcance.
É necessário firmar princípios claros antes de julgar, quer negativamente,
quer com entusiasmo excessivo.

d) Vinculação com os estádios do tratamento médico geral.


O significado da ação clínica desenvolve-se em diversos planos. Vamos
pensar nos estádios em que se realiza a ação terapêutica. Cada estádio es-
barra num limite em que falha o efeito e em que, por isso, é necessário
saltar para outro estádio.
aa) O médico remove, cirurgicamente, um tumor; abre um furúnculo,
dá quinino contra a malária, salvaram contra a sífilis; casos estes em que
trata técnico-causalmente, restabelece, por meios mecânicos e químicos,
conexões da organização vital transtornadas. É o campo da terapia mais
eficaz e possível de penetrar em seus efeitos, limitada pela vida no todo.
bb) O médico submete a vida a certas condições dietéticas, ambientais,
de repouso ou esforço, exercício, etc. Nestes casos, organiza a situação de
modo que o indivíduo se ajude a si mesmo, no todo. Trata do paciente
como se fosse um jardineiro, cuidando, estimulando e, isso fazendo, expe-
rimentando, modificando seu procedimento conforme o resultado. É o
caso da terapia como arte racionalmente regulada, baseada em senti-
mento vital instintivo, limitada pelo fato não só de ocorrer uma vida no ho-
mem, mas de este ser uma psique que pensa.
cc) Em vez de apenas recuperar o corpo, individualmente, com sua téc-
nica, sua terapêutica, o médico vê no doente um ente racional. Não trata
dele como objeto, mas com ele se comunica. O paciente tem de saber o
que lhe está acontecendo para ajudar o médico a corrigir a doença como
se fosse alguma coisa estranha; a doença torna-se objeto para o médico e
o paciente em comum; como ele mesmo, aquele que é tratado fica fora do
jogo, embora promova, juntamente com o clínico, o êxito do tratamento
causai e da terapia organizada. Mas o paciente também quer saber o que
lhe está acontecendo. Considera parte de sua dignidade informar- se. O
médico reconhece esse direito e comunica sem reserva o que sabe e o que
pensa, deixando que o cliente aplique e elabore esse conhecimento da
forma que queira. O limite está no fato de o homem não ser um ente em
cuja razão se possa confiar, mas uma psique que pensa, cujas ideias influ-
enciam profundamente a existência vital do corpo.
O temor e a expectativa, a opinião e a observação, têm efeito incalculá-
vel sobre a vida corpo, O homem não enfrenta seu corpo de maneira sim-
ples e livre. Por isso é que o médico, informando o paciente, influencia o
próprio corpo. É caso ideal raro aquele que ocorre quando certo indivíduo
influencia apenas favoravelmente o próprio corpo, apesar de todas as in-
formações e possibilidades opinativas que se lhe dão. Daí resulta não po-
der o médico dizer, simplesmente, ao enfermo o que sabe e pensa, mas,
sim, deve subordinar as informações que dá à consideração de que não le-
sem o paciente, não o deixem indefeso, não o levem a fazer delas uso tal
que o prejudique vitalmente.
O caso ideal do indivíduo que possa saber tudo preencherá os seguin-
tes requisitos: ter a capacidade de suspender, criticamente, o conheci-
mento objetivo, não o deixando tornar-se absoluto: ou seja, o indivíduo
deve ver naquilo que se presume inevitável o que ainda resta de discutível
e possível, tal qual ocorre em relação a tudo quanto é empírico; naquela
evolução que se presume quase certamente favorável, ainda deve perceber
o que resta de arriscado. Sabendo da ameaça permanente, deve poder pla-
nejar para o futuro tudo quanto tem base correta, sem deixar de viver o
presente, mesmo tendo em vista o declínio. A ansiedade, ou o medo não
podem dominá-lo, quando, doente, o homem é capaz de saber o que saber
é possível. Como isso é excepcional, se é que sequer ocorre, o médico vem
a defrontar outras tarefas terapêuticas: em vez de manter-se em comuni-
cação absoluta com o paciente, mediante a informação, terá de vê-lo na to-
talidade de sua unidade corpo-alma.
dd) O tratamento dos indivíduos enfermos como unidade corpo-alma
leva a aporias constantes. O paciente é um ente humano e, como tal, tem
direito a saber, mediante comunicação desconstrangida, o que lhe está
acontecendo. Falha, porém, por causa de sua ansiedade, que inverte todo
o sentido do seu conhecimento e se torna funesta, desastrosa por seus
efeitos; com o que, o homem perde o direito de saber. Essa situação distor-
cida não é, porém, definitiva, teoricamente; o homem talvez possa amadu-
recer a ponto de vir a constituir aquela exceção capaz de adquirir o autên-
tico conhecimento. É daí que a psicoterapia há de ajudar, quando o paci-
ente se vê colocado entre a sujeição e o verdadeiro existir humano.
Semelhante psicoterapia pode realizar-se inconscientemente para o
médico e o paciente: aquele restringe suas informações e lhes dá cunho
autoritativo; este obedece, não pondera, confia cegamente na certeza do
que lhe é dito. A autoridade e a obediência removem a ansiedade, isso
tanto no médico quanto' no paciente. Ambos aquietam-se numa pseudo-
segurança. O médico pode, consciente da relatividade de todo conheci-
mento objetivo, sentir-se inseguro; donde advém prejuízo imediato para
sua autoridade, cuja máscara lhe protege o sentimento de segurança. Mas
se o médico, que tem posição superior, comunica criticamente seu saber e
seu poder, assim renunciando à sua autoridade, aumenta a ansiedade do
enfermo e o terapeuta já não poderá trabalhar nessa situação particular,
se for absolutamente honesto. É por isto que, instintivamente, tanto o mé-
dico quanto o paciente aderem à autoridade como sendo alguma coisa que
tranquiliza. A sensibilidade, do médico, quando neste não se crê e se se-
gue de maneira absoluta, e a sensibilidade do doente, quando o médico
não se apresenta inteiramente seguro, condicionam-se reciprocamente.
O estado inconsciente em que se realiza esta psicoterapia pela autori-
dade torna-se consciente, quando o médico dirige seus planos no sentido
do todo unitário corpo-alma e só então desenvolve uma psicoterapia multi-
lateral. Deixa de haver a comunicação sem reserva entre duas criaturas
pensantes; e o médico interrompe-a, sem que o doente perceba, para o
bem mesmo deste, porque a limita. O terapeuta distancia-se internamente
(sem mostrá-lo, porque não lhe é lícito), transforma, novamente, o ser hu-
mano total em objeto seu, visando àquilo que considera ser o tratamento
eficaz, no qual toda palavra é controlada. O médico já não diz livremente
ao enfermo o que sabe e pensa, mas toda frase, todo plano, toda ação tera-
pêutica há de calcular-se, em princípio, conforme seu efeito psíquico. O
médico passa a estar absolutamente distante do enfermo, enquanto este
julga sentir-se tão próximo a ele quanto a qualquer outro ente humano. O
médico transforma-se em. função do processo terapêutico.
As modalidades desse procedimento desenvolvem-se com amplitude
extraordinária, indo de recursos rudes a planos filosóficos sublimes. A
chamada “terapia derrubadora”, o malabarismo elétrico, a imposição de
mudança de ambiente, como também a hipnose e, por fim, os comandos
autoritários constituem receitas de ataque drástico e de êxito frequente em
relação a certos sintomas. Entretanto, estes procedimentos só têm na prá-
tica utilizabilidade restrita, incapazes que são de maior desenvolvimento e
aprofundamento. Nos métodos da psicologia profunda, da “psicanálise e
da psicossíntese” e suas variantes, empregam-se procedimentos sublima-
dos, cujo efeito sempre dissimula alguma coisa baseada na crença da ver-
dade de uma teoria.
O limite de todas estas psicoterapias está, em primeiro lugar, na im-
possibilidade fatual para o médico de distanciar-se simplesmente, porque
sempre interfere a subjetividade (pela simpatia ou pela antipatia); e há
também o fato de que, presente para o fim do influenciamento psíquico
mesmo, ele tem de estar presente vitalmente e com sua energia mental
própria; tem, portanto, de mais ou menos acreditar naquilo que o paciente
crê. Em segundo lugar, temos a impossibilidade fundamenta] de objetificar
o homem como- todo e de transformá-lo em objeto do tratamento. Aquilo
em que o homem se transforma, quando se objetifica, nunca é ele próprio.
Mas aquilo que ele é e se torna vem a ser, afinal, essencial para o desen-
volvimento ou a cura de suas manifestações neuróticas. Em relação ao
próprio ente humano, à sua existência possível, o médico só pode atuar
dentro da realidade histórica, na qual o paciente deixa de ser um caso,
mas na qual um destino se realiza com e por seu esclarecimento. O ho-
mem transformado em objeto pode ser tratado pela técnica, pela enferma-
gem, pela arte; mas o homem como ele mesmo só pode descobrir-se na co-
munidade do destino.
ee) Daí haver, derradeiramente, para a relação médico-paciente, a co-
municação existencial, que excede qualquer terapia, isto é, qualquer coisa
que se planeje e metodicamente se encene. Portanto, todo tratamento é
absorvido e limitado por uma comunidade de dois “eus” como entes racio-
nais, que vivem uma existência possível. Por exemplo, nem se colocam en-
tre as regras que resultam da suposta visão do homem em geral o silêncio
e a fala, nem estes são deixados ao seu próprio sabor, como se o ente hu-
mano pudesse simplesmente ouvir e, depois, ser entregue a si mesmo. Em
plena liberdade, ambas as partes indagam e inquirem a realidade concreta
da situação, sem suscitar qualquer tutela, nem imposição abstrata. A esta
altura, é culpado tanto quem se cala como quem fala, quando vigora a
pura razão e não a comunidade de destinos. Médico e paciente são ambos
seres humanos; e como tais, são companheiros de destino. O médico não
é simples técnico, nem mera autoridade, mas existência mesma, criatura
humana transitória, tal qual seu paciente. Já não há soluções definitivas.
O limite está em que os homens como companheiros de destino só o
são no conteúdo de um existir que se chama transcendência. Não é a exis-
tência apenas subjetiva que liga os seres humanos, não é a existência
como tal, visto que a existência é, no homem, aquilo que, decerto, está li-
vre no mundo, mas que em si depende da transcendência que lhe dá ori-
gem.
Se se pensar no significado da terapia médica dentro da série dos está-
dios discutidos, até aquele ponto a que ela para em bem de um comporta-
mento que abranja todos os homens, comportamento que oriente a tera-
pia, mas não a conduza, a ela mesma — o conhecimento e o comporta-
mento do psiquiatra (psicoterapeuta) ganham significação própria no todo
da arte médica. É só ele que, por força de sua especialidade, considera o
homem consciente e metodicamente: o homem como um todo, não um
todo de seus órgãos corpóreos, nem o corpo total, sem atenção para o res-
tante. Só ele é que se habitua a considerar a situação social, o ambiente, o
destino e as vivências do paciente; e a pensar em todos, conscientemente,
quando estabelece seu plano terapêutico. Na medida em que sejam psiqui-
atras, os médicos estão à altura de seu encargo total.
O que, final é decisivo, ocorre no doente chama-se “revelação”. O paci-
ente pode esclarecer-se sobre si mesmo, primeiro, recebendo a comunica-
ção de seu conhecimento e sabendo particularidades a seu próprio res-
peito; segundo, vendo-se, por assim dizer, num espelho e aprendendo a
conhecer-se; terceiro, fazendo-se transparente, na ação interna, pelo ma-
nifestar-se; quarto, preservando e cumprindo sua revelação na comunica-
ção existencial. O processo esclarecedor é traço essencial básico da psico-
terapia, mas não pode ser simplificado, porque constitui um todo estrutu-
rado, que leva a erro quem tomar um estádio por outro. E esse processo,
como revelação do ente humano, ultrapassa de muito aquilo a que a psi-
coterapia tem acesso; leva à realização filosófica do homem.
Numa formulação extrema, a terapia diversifica-se, radicalmente, con-
forme o médico se guie pelo que o indivíduo é, de fato; conforme procure
promover em todos os graus o processo de esclarecimento e atue como
parceiro de uma revelação na comunicação; ou segundo dirija seus esfor-
ços curativos, com a ajuda das ciências naturais, somática ou psicologica-
mente, para os mecanismos mórbidos. Pode dar-se que do esclarecimento
resulte a cura dos mecanismos mórbidos, pelo fato de estes talvez só atua-
rem quando o processo humano interno tem suas possibilidades existen-
ciais falsificadas. Mas os mecanismos mórbidos podem atuar mesmo fora
desse contexto, ou até no contexto de uma ascensão autêntica — então
necessitando, fundamentalmente, de pontos de ataque que não sejam
aqueles da psicologia profunda, nem da psicoterapia.
A polaridade mais profunda dentro da terapia é, portanto, a seguinte:
ou o médico se volta para o evento biológico que as ciências naturais per-
mitem investigar; ou visa à liberdade do homem. Erra o médico que, cui-
dando do existir humano total e contemplando o homem, o submerge no
evento biológico, do mesmo modo que erra quem inverte a liberdade hu-
mana num ser-assim tão empírico quanto a natureza, possível de usar-se,
tecnicamente, como recurso terapêutico. Da vida eu posso tratar; para a
liberdade apenas posso apelar.

e) Os tipos de resistência no homem.


A decisão do doente de submeter-se à psicoterapia. Existe no homem
uma resistência tríplice, que é, primeiro, a resistência absoluta de alguma
coisa que não se pode modificar, mas apenas conformar-se externamente;
segundo, a resistência de uma coisa que é internamente plasmável; ter-
ceiro, a resistência do que é, originariamente, tal qual. Ao primeiro tipo
pode dirigir-se alguma coisa que se assemelha ao adestramento dos ani-
mais; ao segundo, a educação e a disciplina; ao terceiro, a comunicação
existencial. Todo homem esbarra, dentro de si mesmo, com essas resistên-
cia, adestra-se, educa-se, contempla-se em comunicação esclarecedora.
Mas se entra em relação com outra pessoa, esta será, na primeira modali-
dade (adestramento), mero objeto; na segunda (educação), acha-se o ho-
mem em comunicação relativamente franca, se bem que a distância, da
qual resulta um comportamento planejatório, educativo; na terceira, ele
está presente, como ele mesmo, em nível de igualdade e reciprocidade com
o outro, ao qual se associa plenamente pela comunidade de destinos. O
adestramento é manobra que não tem em vista a alma; a educação serve-
se dos conteúdos espirituais, dos motivos que residem numa discussão
em condições autoritárias. A comunicação existencial é esclarecimento na
reciprocidade, cujo germe permanece histórico, não implicando qualquer
noção geral que se aplique ao caso individual; mesmo que seja real, não se
pode utilizar como instrumento terapêutico de que se possa dispor de
qualquer modo que se queira.
Há no homem, apesar de necessitado de ajuda, aversão não- só relati-
vamente à psicoterapia, mas também em relação a qualquer tratamento
médico. Existe nele alguma coisa que preferiria autoajudar-se. Essas re-
sistências internas quisera ele vencer sozinho. Daí haver dito Nietzsche:
“Quem dá conselhos a um doente adquire- um sentimento de superiori-
dade em relação a ele, quer sejam aceitos, quer sejam menosprezados. É
por isto que certos doentes irascíveis e orgulhosos detestam quem os
aconselha mais ainda do que a própria doença”.
As coisas facilitam-se sempre que o paciente, em comum com o mé-
dico, trabalha sobre a doença como se fosse qualquer coisa alheia a am-
bos, porque, então, sua consciência de si mesmo se equipara à do médico
relativamente ao distúrbio. Mas se a psique tem de declarar-se precisada
de tratamento, a rejeição torna-se fundamental. Psiquicamente, o homem
sente-se diverso em absoluto do que se sente quanto ao soma. A resistên-
cia da individualidade dispõe-se a entrar em comunicação amistosa, em-
bora combativa, com outra individualidade, não se submetendo, porém, a
qualquer dependência ou diretiva capaz de determinar-lhe a vida interna
sem que ela mesma o perceba (diversamente da diretiva que se aceita,
quando se trata da maneira externa de atuar e produzir). Tal tratamento
pressupõe ou a consciência da fraqueza humana, que sabe precisar, em
geral, dessa diretiva interna e a que não repugna entregar-se à pessoa de
um guia espiritual de sua própria individualidade: assim pensando, o indi-
víduo não se rebaixa em absoluto, quando permite acontecer aquilo de
que todos os entes humanos necessitam; ou o tratamento pressupõe uma
consciência específica da doença: por julgar que minha psique está do-
ente, estou resolvendo tratar-me psiquicamente, porque quem adoece pre-
cisa de terapia.
Sabemos, entretanto, da multivocidade do conceito de doença. Julgar
estar doente pode significar, por exemplo: não poder superar um evento
psíquico, expor-se a falhas rendimentais, sofrimentos, incapacidade de
responsabilizar-se pelas respectivas falhas, impulsos, sentimentos, atos.
A decisão que leva o indivíduo a reconhecer-se psiquicamente enfermo
implica, a bem dizer, capitis diminutio. Aquelas manifestações psíquicas
que, sob este aspecto, são questionáveis não se assemelham ao resfriado,
à pneumonia, nem à paralisia geral, aos tumores cerebrais; nem à demên-
cia precoce ou à epilepsia; mas, sim, ainda permanecem no domínio da li-
berdade. A necessidade de tratamento importa aqui em reconhecimento
da perda da liberdade, quando, de fato, a liberdade se mantém, ao mesmo
tempo que afirma, contraditoriamente, seus direitos. No entanto, se, ao
fim de uma série de fenômenos psíquicos, a irresponsabilidade vem a re-
sultar da escravidão da vontade, limita-se, necessariamente, desde o iní-
cio, a possibilidade de confiar no indivíduo em causa, de entregar-lhe
qualquer tarefa importante, de colaborar com ele por forma sensata. Daí a
repulsa natural que todo homem autônomo, realista ou crente, opõe às di-
retivas psicoterapêuticas que penetrem na profundidade da alma e visem
ao ente humano total. Quando, porém, são possíveis certas técnicas psico-
terapêuticas, o homem total não parece atingido, como acontece na hip-
nose, no treinamento autógeno, na ginástica e vários outros processos;
nesses casos, não se tem em vista a alma humana, e sim, realmente, um
recurso psicotécnico sem qualquer outro objetivo que se apresente como
final (por exemplo, a remoção de certas queixas somáticas). Mesmo então,
todavia, cabe indagar, tendo em vista o lado psíquico dessas técnicas, se o
recato e a autoestima individual permitem o uso de tais recursos.
Em todo caso, não se pode negar que implica, realmente, uma decisão
aquela que leva o indivíduo a submeter-se à psicoterapia; implica uma op-
ção existencial, quer para o mal, quer para o bem.
f) Objetivos e limites da psicoterapia.
Que é que o doente quer quando vai ao psiquiatra? Qual é para o mé-
dico o objetivo do tratamento? A “saúde”, em sentido indeterminado. “Sa-
úde”, para uns, é disposição vital despreocupada, otimista, serena; para
outros, é consciência da presença divina constante, com o sentimento de
repouso e abandono, de confiança no mundo e no futuro; outros ainda
sentem-se sadios quando toda a miséria de suas vidas, todos os atos que
eles mesmos menosprezam, embora praticando-os, todo o vício de suas si-
tuações se acham dissimulados por ideais enganosos e interpretações que
embelezam. E talvez não seja pequeno o número daqueles cuja saúde e fe-
licidade dependem, sobretudo, do tipo de tratamento que o Doutor Relling
(no Pato Selvagem, de Ibsen) usava, assim se referindo a um de seus paci-
entes: “Minha preocupação é conservar nele a mentira vital”; ou, quando
escarnecia a “febre de justificar-se”: “Tirem do homem comum a mentira
vital, e tirar-lhe-ão, ao mesmo tempo, a felicidade”. Se bem que a veraci-
dade seja uma das vias da terapia recomendável — ponto de vista que
adoto sem restrições — é errado supor que a inveracidade leve à doença.
Há indivíduos cuja vitalidade prospera de maneira excelente através da in-
veracidade em relação a si mesmos e ao mundo. Daí tornar-se tanto mais
basicamente necessário meditar sobre o que é cura e também sobre quais
são os limites de quaisquer esforços psicoterapêuticos, embora impossível
responder em definitivo a estas indagações.
1. A questão de o que é cura. Toda terapia pressupõe, tacitamente, que
se sabe o que é cura. Nas doenças somáticas, não há problema, em geral,
neste particular; a situação, entretanto, é inteiramente outra quanto às
neuroses e psicoses, relacionando-se a cura, insolúvel, mas não univoca-
mente, em absoluto (e contendo verdade e falsidade), com aquilo que se
chama fé, concepção filosófica, moral. É fictício limitar-se o médico ao que
vigora em comum para todas as concepções filosóficas e religiões como
sendo o valor objetivamente desejável, a saúde.
Exemplo: J. H. Schultz discute a finalidade da terapia a propósito dos
“estados autógenos de relaxamento” que investigou e que “independeriam
da atitude filosófica”, visto que, para a psicoterapia, o homem, é a medida
de todas as coisas”; os estados autógenos de relaxamento serviriam “à au-
torrealização peculiar, adequada à vida”; “a autorrealização do paciente”,
“o desenvolvimento e configuramento do status humano pleno, livremente
harmônico” seria a principal tarefa da psicoterapia; o relaxamento autó-
geno promoveria “pela introvisão autodeterminada, o trabalho pessoal-
mente adequado sobre a personalidade de cada um”. Como são questioná-
veis, multívocas semelhantes formulações! Esses estados de relaxamento
praticam-se, há milênios, na técnica da ioga, em todos os métodos de me-
ditação mística, nos exercícios devotos dos jesuítas. A diferença está, en-
tretanto, no seguinte: O significado existencial de uma experiência, al-
guma coisa incondicionada e absoluta é que era o objetivo, não uma téc-
nica psicológica, nem o homem em sua constituição empírica, que se pres-
supõe imanentemente aperfeiçoável. Deixando de lado todo conteúdo mís-
tico dessa ordem, Schultz conserva, apenas, a técnica (que, por causa
disso, foi o primeiro a investigar empiricamente, de forma pura e metó-
dica); daí perder de vista os efeitos profundos sobre a consciência existen-
cial do homem, bem como a origem das experiências metafísicas; ainda
mais: o entusiasmo vital, a seriedade amarga da existência. Todavia, limi-
tando-se ao efeito clínico empírico, Schultz usa, sem querer, aquelas fór-
mulas do objetivo terapêutico que, substituindo antigos impulsos místi-
cos, pressupõem certa concepção filosófica (a qual seria, mais ou menos, a
do individualismo burguês, desviada do plano do humanismo, goetheano,
de que J. H. Schultz se distancia muito, certamente). As formulações
schultzianas visam, enfim, ao homem, conquanto de maneira realmente
vaga.
Se a isso opusermos a frase de van Weizsäcker: “Justamente, o destino
final do homem jamais pode ser objeto da terapia; seria blasfêmia”, estare-
mos ante a imprecisão do objetivo, assim expressa: “Podemos fazer muito,
quando conseguimos deter o evento mórbido em certos limites, em deter-
minadas trilhas”; ,e von Weizsäcker sabe que não se determina o objetivo
terapêutico só pela ciência, ou só pelo humanismo, mas, sim, e de ma-
neira muito tangível, por coisa diversa, ao dizer: “Se quisermos assumir a
atitude puramente humana, os limites desta tocarão na ordem social”.
O objetivo dos esforços psicoterapêuticos também se designam pelas
expressões saúde, capacidade de trabalho, capacidade de produção e ca-
pacidade de gôzo (Freud); integração na comunidade (Adler); alegria cria-
tiva, capacidade de ser feliz. A imprecisão e a multiplicidade das formula-
ções mostra, exatamente, quanto são discutíveis.
Os procedimentos psicoterapêuticos não podem abstrair os motivos fi-
losóficos, quando fixam seus objetivos. Pode-se dissimulá-los, pode-se
confundi-los caoticamente, mas não se consegue desenvolver procedi-
mento terapêutico algum puramente médico por direito e com fundamento
próprios; e isso se aplica até quando se têm em vista fenômenos isolados.
Por exemplo: em geral, considera-se objetivo evidente da cura a eliminação
da ansiedade; ao que se opõe a frase muito justa de von Gebsattel; “Se é
certo que desejamos uma vida sem medo, é duvidoso que desejemos, real-
mente, uma vida sem ansiedade. A nosso ver, muitos homens vivem livres
de ansiedade precisamente por falta de fantasia e, a bem dizer, por po-
breza interior; mas essa liberdade significa o avesso- de uma perda mais
profunda da liberdade, de modo que o homem possuidor do eros paidago-
gos talvez deva encarregar-se de despertar a ansiedade e, desta forma,
uma humanidade intensa”.
Em Prinzhorn, encontramos finalidades fixadas de modo diverso,
quando, a certa altura, afirma a indispensabilidade do caráter sectário das
escolas psicoterapêuticas (doutra feita, entretanto, vê o futuro da psicote-
rapia fundindo-se na prática da medicina interna). Prinzhom declarou im-
possível uma psicoterapia que fosse filosoficamente autônoma. Atribuindo
ao psicoterapeuta. encargos dos mais elevados, considera-o- “mediador
entre o insulamento ansioso e o todo existencial, a nova comunidade, o
mundo, talvez Deus”; mas esse mediador o psicoterapeuta pode ser ou por
singularidade pessoal, afigurando-se independente, inobjetivo, sem autori-
dade em cujo nome atue ou fale; ou pode sê-lo- por “sua participação
numa comunidade fechada, cultural, de tipo eclesiástico, nacional, polí-
tico” única capaz de dar resposta decisiva quando se inquire a autoridade.
“A despersonalização só se logra pela invocação a um poder superior em
cujo nome atua o terapeuta. O caráter sectário das escolas psicoterapêuti-
cas não representa, pois, desvio, e sim realização de um desenvolvimento
inevitável”.
2. Limites da psicoterapia. O objetivo do tratamento tem de determi-
nar-se segundo aquilo que é possível obter. A psicoterapia tem limites in-
superáveis; dois são os principais:
aa) A terapia não pode substituir o que só a própria vida traz. Por
exemplo, é só pela comunicação amorosa num destino vital comum, atra-
vés das fases etárias, que se consegue a transparência da autorrealização,
enquanto o esclarecimento que se dá no processo psicoterapêutico se
mantém objetivo, restrito, teórico e autoritativo. Só a integração na reci-
procidade é capaz de realizar aquilo que jamais se consegue pelo exercício
da atividade profissional repetida em favor de muitas pessoas. Mais ainda:
a vida mesmo é que traz consigo tarefas de responsabilidade, trabalho sé-
rio que terapia alguma pode dispor artificialmente.
bb) A terapia tem em vista o ser-assim originário de um homem que
ela não pode modificar. Enfrento meu ser-assim, em minha liberdade,
como sendo alguma coisa que posso modificar ou transformar aceitando-
a; mas a terapia do outro há de contar com alguma coisa que não é modi-
ficável. Há uma característica da essência permanente: aquilo que é inato.
É verdade que não podemos dizer em definitivo, no caso particular, o que é
isso; mas é experiência básica do médico o fato de haver uma resistência
insuperável contra a qual, na medida em que o ser-assim constitui 'sofri-
mento, falha toda tentativa terapêutica; toda ela é inútil em relação a esse
ser-assim. A atitude psicoterapêutica só pode ser honesta quando reco-
nhece tal situação. Esclarecer o que é imodificável, reconhecê-lo e alçá-lo
ao plano da diagnosticabilidade é o que impulsiona sempre o psicopatolo-
gista sério, quando se mantém tenso entre o que tem de aceitar como fato
e o que pode eliminar por sua ação; no que, entretanto, resta um vasto
território para o comportamento relativamente ao ser-assim: ou ele se vela,
se encobre (a terapia visa ao aquietamento e ao engodo); tomam-se medi-
das “ut aliquid fiat”; não se cura uma doença; cria-se a atmosfera de ajuda
compassiva, ajuda-se a mentira vital, evita-se “a proximidade excessiva”
do homem; ou então, adota-se conduta franca, procura-se fazer que o ho-
mem em seu ser-assim se compreenda de maneira que lhe convenha; não
se pensa em redimi-lo, mas em esclarecê-lo; o a que se visa é encontrar
uma forma de vida, mesmo para o psicopata, para qualquer tipo de perso-
nalidade. Quando a anormalidade é, realmente, essencial, talvez se apli-
que a frase de Nietzsche: “A cada ente humano, a cada desventurado, a
cada malvado, a cada existência excepcional corresponde uma filosofia
própria”. Do ponto de vista terapêutico, vem a resignação final à paciência,
mesmo em relação aos indivíduos mais estranhos e furibundos: a “bran-
dura psiquiátrica”.
Se tivermos em mente a realidade do perimundo e a fatualidade do ser-
assim próprio como limites dos esforços terapêuticos, veremos a terapia
tornar-se, afinal, tarefa filosófica. Preferindo o esclarecimento à dissimula-
ção, ela tem de ensinar a modéstia e a renúncia, bem como a aceitação
das possibilidades positivas: tarefa que não se pode executar nem psicoló-
gica, nem medicamente, e sim mediante atitude de crença filosófica na
qual se associem médico e paciente.

g) O papel pessoal do médico.


No trato do médico com o paciente, realiza-se, conforme vimos, uma si-
tuação de autoridade, que pode ser benéfica. Nos raros casos em que se
alcança a comunicação autêntica, esta logo se perde outra vez, se não se
renunciar de modo absoluto à autoridade. Entretanto, quando a autori-
dade é conveniente, como se dá quase sempre, jamais poderá o médico
transformar em superioridade absoluta aquela que resulta de sua situação
física, sociológica, psicológica, como se o paciente já não fosse um ente
humano tal qual ele próprio. A atitude de autoridade, exatamente como
qualquer atitude científica, é parte apenas, não o todo da atitude clínica
em relação ao doente.
Quando se trata de psicoterapia, a necessidade do envolvimento pes-
soal do médico é tão séria que só se satisfaz em casos isolados, se é que
jamais se satisfaz. Von Weizsäcker formula-a da seguinte maneira: “S
quando a natureza do médico é tocada, infectada, excitada, assustada,
abalada; só quando a doença se transfere para ele, nele continua, se refere
por sua consciência a si mesmo, só quando isso acontece e nessa exten-
são, é que ele pode superá-la”.
Mas a comunicação se distorce quase sempre pelas necessidades típi-
cas do paciente. Uma das maneiras pelas quais se estabelecem as relações
interpessoais, maneira que vem a ser importante para o psiquiatra, é
aquela que Freud chamou “transferência”: transferência de sentimentos
respeitosos, amigáveis, mas também hostis, para o médico. No tratamento
psicoterapêutico, essa transferência é inevitável, constituindo escolho peri-
goso, quando não se reconhece e se supera. Muitos médicos se aprazem
na situação de superioridade que os pacientes lhes outorgam; o esforço de
muitos outros no sentido de eliminar toda essa transferência, essa sub-
missão e dependência, essa unilateralidade de um relacionamento que
toma colorido erótico, quando querem criar aquele que é o único desejável
— da comunicação compreensiva ao mesmo nível — falha ante as necessi-
dades elementares dos doentes que querem um salvador amado.
O psiquiatra que sente sua responsabilidade fará de sua própria psico-
logia (a psicologia do médico) objeto de reflexão consciente. Não há, certa-
mente, entre médico e paciente relacionamento unívoco: a informação téc-
nica, a ajuda amistosa ao mesmo nível, a autoridade das prescrições, tudo
isso tem significado variável, essencialmente. É frequente haver luta entre
médico e paciente: às vezes, luta pela supremacia; às vezes, luta pela cla-
reza. Só é possível qualquer esclarecimento profundo quando parte de
uma autoridade absoluta, em que se crê, ou que se funde na reciproci-
dade, de modo que o médico deva investigar-se a si mesmo tanto quanto
investiga o paciente.
Não é mediante exposição teórica objetiva que se dirá o que- pode ser o
psiquiatra atual. Não poderá deixar de ser filósofo; e o é consciente ou in-
conscientemente, disciplinada ou caoticamente, metódica ou acidental-
mente; séria ou ludicamente; de maneira absoluta ou dependendo de con-
junturas sociológicas. O modo por que- ele é só se explica pelo exemplo, e
não pela teoria; não é possível subordinar a regras a arte da ação terapêu-
tica, do comércio com o doente, da gesticulação e da atitude. Nem se ante-
cipa de que- maneira se mostram historicamente e se tornam eficazes a
razão- e o humanitarismo, a discrição e a franqueza. A possibilidade- mais
ampla de todas exprime-se na sentença hipocrática: iatros philosophos
isotheos.

h) Tipos de atitude psiquiátrica.


A índole do psiquiatra bem sucedido corresponde, forçosamente, às ne-
cessidades e exigências dos indivíduos “nervosos”, porque é a massa dos
pacientes que decide quem é “bem sucedido”, e não “o valor”, nem “a exa-
tidão” da conduta e da opinião clínicos; daí não haverem sido os psiquia-
tras, e sim os bruxos, sacerdotes e fundadores de seitas, curandeiros, con-
fessores e guias espirituais, que mais sucesso lograram no passado.
Citem-se como exemplos os “exercitia spiritualia” de êxito tão marcado,
instituídos por Santo Inácio de Loiola, verdadeiro tratamento psíquico, vi-
sando a dominar pela vontade todas as emoções., afetos, pensamentos,
bem como a provocá-los e recalcá-los. São de efeito extraordinário a téc-
nica da ioga e os exercícios budistas de meditação. Modernamente, “o mo-
vimento da cura espiritual”, nos Estados Unidos, e as curas de Lourdes ti-
veram “sucesso” (na opinião popular) bem maior do que todos os esforços
psiquiátricos. A alguns — e são poucos — ajuda a filosofia estoica, fortifi-
cando-lhes a “saúde” própria; a outros — menos numerosos ainda — a
impiedosa honestidade nietzscheana para consigo mesmos.
Todos esses movimentos assinalam também insucessos, além de êxi-
tos. Relatam-se casos de “loucura religiosa” resultantes dos “exercitia spi-
ritualia”; sobe-se que pessoas não adequadamente constituídas podem
descarrilar com as teorias de Nietzsche. A psicanálise freudiana leva a fra-
cassos visíveis, piora de sintomas, sofrimentos tormentosos, mas isso é
próprio a todos os métodos psicoterápicos que se aplicam- por atacado:
para certo tipo de paciente convém tal método, para outro, outro. Aquilo
que tem êxito em certa época caracteriza os indivíduos que vivem nela.
Caracteriza-se a época atual pelo fato de os psiquiatras fazerem o que
outrora se realizava com base na fé. O fundamento médico, é certo, dá o
colorido permanente, com seu cabedal derivado das ciências naturais,
mas o médico sempre exerce também, queira ou não, efeito psicológico e
moral. Hoje em dia, a tendência é atribuir ao médico cada vez mais encar-
gos; estes cabiam, noutras épocas, aos sacerdotes e aos filósofos; daí ha-
verem surgido diversos tipos de médico. Faltando a unidade de uma fé, as
necessidades dos pacientes e dos clínicos dão lugar a muitas possibilida-
des, dependendo a conduta do médico não só de suas concepções filosófi-
cas e daquilo que pretende, nelas baseado, alcançar, como também da
pressão que a índole do doente sobre ele exerce, sempre sem que o per-
ceba. Daí existirem, evidentemente, diversos tipos de psicoterapeutas.
Podemos destacar certo grupo como formado por tipos extraviados. As-
sim é que há o cabeçudo crédulo que, seja qual for o caso, jura pelos seus
métodos sem base (eletricidade, hipnose, hidroterapia, pós e pílulas) e que
logra êxito universal pelo efeito de sua personalidade enérgica, nas situa-
ções em que é possível a sugestão grosseira. Há também o embusteiro,
que, desonesto para consigo mesmo e para com os doentes, satisfaz em si
e nos clientes, dentro do relacionamento psicoterapêutico, todas as neces-
sidades possíveis (sentimento de poder, impulsos eróticos, sensaciona-
lismo). Tom e estilo peculiar se notam nas obras que provêm desse grupo:
teorias fantásticas que menosprezam todas as opiniões alheias; orgulho
derivado da posse ingênua ou atrevidamente afirmada da verdade própria;
tendência ao pateticismo e à magnificência, repetição infinita de asserções
simples, maneira de formular sentenças definitivas que liquidam qualquer
contradição.
Há ainda o médico honesto, que se restringe, conscientemente, ao so-
mático e, no entanto, sem querer, graças à razão, atua educativamente; e
tanto melhor quanto não pensa nisso. Temos ainda o céptico, que, de for-
mação científica multilateral, vê a verdade sem disfarce, mas sempre duvi-
dando dos conhecimentos que possui; este é um médico que aconselha,
alivia, instrui, sem penetrar muito, sem revolver profundezas.
Característico do psiquiatra que, nesta era das ciências naturais, deve
ter o êxito mais decisivo, permanecendo entre as paradoxalidades de suas
funções, mas tocando em todas as dimensões psíquicas, vejo o seguinte
quadro: Sua base firme são a medicina somática, a fisiologia e as ciências
naturais; daí vigorar, em relação ao paciente, uma atitude de observação
empírica e de valo ração objetiva; de maneira geral, uma concepção racio-
nal da realidade. Esse médico não sucumbirá à mistificação, nem se aban-
donará a qualquer dogma, fanatismo, a coisa alguma que seja definitiva.
Nem terá convicções básicas, como não terá saber do saber; pelo que, há
de tratar todas as frases, fatos, procedimentos, terminologias de forma a
vê-los, em geral, num plano uniforme da ciência; não pensará com base
em qualquer sistema rígido; e isso considerará uma vantagem, descul-
pando-se com sua atitude empírica ou com o valor presumidamente heu-
rístico mesmo de certas ideias arbitrárias. A autoridade da ciência com-
pensará para ele a perda de quaisquer outras. Vivendo em atmosfera de
conciliação multilateral e tolerância, desfeita só em casos raros, nos quais
se rebela assim que alguma força lhe ameace a profissão, não existe para
ele afirmativa que seja plenamente absoluta. Na tolerância de uma dispo-
sição céptica fundamental, o que lhe é essencial é o gesto eficaz; e a pró-
pria ciência torna-se gesto; as ideias científicas testam-se pelo sucesso que
tenham no perimundo, com os pacientes, daí resultando a opção pela apli-
cação respectiva. O médico atua, pois, como se fosse autêntico ator, em-
bora inconsciente, mas ajustado à situação. Em relação ao peso das posi-
ções filosóficas, uma lhe parece verdadeira, mas a outra também utilizá-
vel, não menos verdadeira, O cepticismo profundo permite-lhe, conforme o
caso e a situação, deixar ao ente humano pobre, necessitado, enfermo al-
gum espaço mesmo para o sonho que rejubila e para os conteúdos místi-
cos; o próprio embuste é visto, porque inevitável, como possível de contro-
lar e até usar sensatamente. Daí a atitude solene a que se acresce o sor-
riso céptico, a dignidade com ironia, a cordialidade que encanta, a atenção
a tudo quanto é alheio. Médicos deste tipo constituem transição do mundo
passado da fé e da cultura para a vida positivista, materialista: naquele,
ainda se acomodam à tradição, vivendo, por isso, de um capital que cada
vez mais mingua; na existência nova, porém, sabem encontrar seus ru-
mos; razão pela qual não é possível em absoluto subordiná-los a qualquer
princípio; aparentemente, contudo, talvez se possa enquadrá-los nos pres-
supostos contemporâneos: êxito, utilidade, cientificismo, procura de técni-
cas e gestos sempre eficazes; hesitamos quando julgamos vê-los não como
eles mesmos, ,e sim apenas como profissionais, no trabalho intenso, sem
envolvimento absoluto. É como se uma centelha do conhecimento infinito
ganhasse forma neles, “no próprio centro do tempo”, na transição de uma
época para outra.
Se se buscar o ideal do psiquiatra, ou um tipo que associe a base cien-
tífica do céptico à força de uma personalidade atuante e à seriedade da fé
existencial, poder-se-á pensar nas palavras de Nietzsche, embora se sinta
nelas alguma coisa de equívoco:
“Não há, atualmente, profissão que permita elevar-se tanto quanto a
do médico; principalmente, depois que os médicos do espírito, os. chama-
dos “guardas de almas” já não ganham com suas artes conjura- tórias o
aplauso geral e os indivíduos cultos os evitam. Hoje em dia, para alcançar
a formação intelectual mais alta, não basta ao médico conhecer os méto-
dos melhores e mais modernos, nem estar exercitando neles, nem saber
tirar conclusões sutis quanto a causas e efeitos, conclusões das quais ad-
vém a celebridade para quem faz diagnósticos. Além disso, o médico pre-
cisa ter eloquência que se ajuste a cada indivíduo e lhe ilumine o coração;
virilidade cuja presença afugente' a pusilanimidade (verme que devora to-
dos os enfermos); flexibilidade- diplomática com que atue entre aqueles
que precisam de alegria para curar-se e aqueles, que devem (e podem) dar
alegria quando se acham sãos; o médico precisa ter ainda a esperteza de
um detetive e de um advogado; precisa compreender os segredos da alma
sem traí-los — enfim, o bom médico há de possuir, atualmente, os artifí-
cios e os privilégios de todas as outras classes profissionais. Assim equi-
pado é que será capaz de ser um benfeitor para a sociedade inteira”.
Não depende da formação científica o tipo de psiquiatra que um mé-
dico vem a tornar-se, nem aquele tipo que se considera “ideal”. Absoluta-
mente indispensável ao psiquiatra é uma formação somato-médica e psi-
copatológica que seja científica tanto numa direção quanto noutra; base
esta sem a qual será mero charlatão; com a qual, entretanto, ainda não
será psiquiatra. A ciência mais não é do que meio auxiliar, muita coisa
tendo de acrescer-se. Entre os pré-requisitos pessoais, desempenham pa-
pel a amplitude do horizonte, bem como a capacidade de saber, vez por
outra, menosprezar qualquer julgamento de valor; de sacrificar-se, de não
ter preconceito algum (capacidade só encontrada em certos indivíduos
que, quanto ao mais, possuem valores originários sólidos e personalidade
marcada); finalmente, o psiquiatra será humanamente caloroso e essenci-
almente bondoso. Claro que um bom psiquiatra só pode ser fenômeno
raro; e mesmo então costuma ser bom apenas para certo círculo de pes-
soas às quais se ajusta. Não há um psiquiatra para todos: mas as circuns-
tâncias obrigam o médico, impõem-lhe o dever de tratar de todos aqueles
que nele confiam, fato este que não o levará à imodéstia.

i) A nocividade da atmosfera psicológica.


Aqueles que têm uma fé ou uma filosofia realizam seu esclarecimento,
inintencionalmente, dentro do contexto de seu desempenho objetivo, guia-
dos por conteúdos e ideias, pela verdade e por Deus. A reflexão sobre si
mesmo pode constituir um meio, quando se segue essa via; mas nunca re-
presenta força autônoma, e, sim, faz-se efetiva mediante, apenas, o existir
que apreende esse meio. Mas se a autorreflexão, como consideração psico-
lógica, se transformar em atmosfera vital, faltará ao homem a base em que
se firme, porque a realidade de sua vida psíquica não é, em si, o- existir, e
sim a- sede de sua experiência. A psicoterapia tende, às vezes, perigosa-
mente, a fazer do homem particular, em sua realidade psíquica, objetivo
final. O indivíduo que faz de sua alma um Deus, por ter perdido mundo e
Deus, encontra, afinal, o nada.
Ficará faltando a pujança arrebatadora das coisas, dos conteúdos mís-
ticos, das imagens e símbolos, das tarefas, do absolutismo do mundo. Pela
via da autorreflexão psicológica, é impossível alcançar aquilo que só a en-
trega ao existir permite. Daí a diferença radical entre a eficácia dos exercí-
cios psíquicos de objetivos psicológicos, praticados pelos psiquiatras, e os
exercícios historicamente dirigidos a Deus ou à existência conforme os
praticam os sacerdotes, os místicos, os filósofos de todos os tempos; daí a
diferença entre as confidências e. revelações que se fazem ao médico e a
confissão ante o padre. A realidade transcendente é decisiva, a esta al-
tura. Nunca há conhecimento psicológico, tal qual é possível à alma pos-
suir, nem há esforço dirigido à criação de alguma coisa almejada que a re-
alize em mim mesmo. O homem tem de preocupar-se com as coisas, e não
consigo mesmo (ou consigo mesmo apenas como meio); com Deus, e não
com a fé; com o existir, e não com o pensar; com aquilo que ama, e não
com o amor; com o desempenho, e não com a vivência; com a realização, e
não com as possibilidades — a segunda alternativa há de ser sempre tran-
sição, nunca objetivo em si mesma.
Na atmosfera psicológica, desenvolve-se uma atitude vital egocêntrica,
mesmo quando se pensa e se quer o conteúdo; o homem como sujeito de
tudo isso torna-se medida de todas as coisas. Uma relativização existen-
cial resulta da absolutização do conhecimento psicológico, que constitui,
então, conhecimento suposto do próprio evento.
O que daí resulta é um descaramento específico, um pendor a alargar
as entranhas da alma; uma possibilidade de dizer aquilo que no próprio
dizer se destrói; uma curiosidade em relação a certas vivências, uma ne-
cessidade de impor-se ao outro indivíduo, que é tomado como realidade
psicológica.
Percebe-se o desasseio existente na atmosfera psicológica em oposição
ao asseio do médico que lida, apenas, com as ciências naturais; que, igno-
rando o psiquismo, perde muita coisa, certamente; mas que faz terapia
clara e eficaz, em seu campo; aquele desasseio opõe-se também ao asseio
da fé pujante, que faz o possível dentro do cognoscível, levando e subme-
tendo a Deus o que resta, sem presunção de conhecimento psicológico,
sem violência, nem desonra.
Entretanto, tem-se de conhecer o perigo que há na psicologia, a fim de
superá-lo. Sem constituir jamais finalidade em si mesma, quanto ao que
estudam e ao que pretendem, a psicologia e a psicoterapia são uma via a
seguir, desde que a consciência se ache altamente desenvolvida.

j) A organização pública da psicoterapia.


A hospitalização dos doentes mentais levou a que se formassem peque-
nos mundos, de século e meio para cá. Os psiquiatras pensaram em redu-
zir o mal ao mínimo, tanto para os pacientes-quanto para a sociedade. Daí
tomarem-se as doenças do sistema nervoso objeto dos cuidados de clíni-
cas próprias e de neurologistas. Relação mais estreita entre as neuroses e
psicoses endógenas, de um lado, e as moléstias neurológicas conhecidas,
de outro lado, não existe, entretanto; muito menos, na prática, existe rela-
ção com quaisquer outras doenças somáticas. A psicoterapia, sem ordem,
nem princípio, começou a ser praticada, acidentalmente, por psiquiatras,
neurologistas, internistas. Só há alguns decênios é que, de fato, se fez da
psicoterapia tarefa vital. Surgiu o status dos psicoterapeutas, quase sem-
pre médicos, assistidos por psicólogos, de outra formação cultural. Come-
çaram a aparecer revistas de psicoterapia especializadas e houve congres-
sos de psicoterapeutas com mais de 500 participantes. Foi novidade bá-
sica a criação, em Berlim, no ano de 1936, do “Deutsches Institut fur
psychologische Forschung und Psychotherapie” (Instituto Alemão de Pes-
quisa e Psicoterapia Psicológica), sob a direção de M. H. Gõring. Daí cami-
nhou a psicoterapia para sua institucionalização.
Realizando-se publicamente, a psicoterapia há de manter-se como
parte autônoma da prática médica — o que impõe as seguintes condições:
o exercício da profissão se sujeita a requisitos que lhe assegurem o melhor
cumprimento; possibilitam-se a formação e o ensino; promovem-se os co-
nhecimentos psicológicos necessários, em conexão metódica com a clínica.
Segue-se daí: unificam-se os esforços até o momento esparsos; o que se
haja aprendido de início, trabalhando em separado, o que se tenha desen-
volvido em pequenos círculos ou escolas, configura-se num todo. O Insti-
tuto busca promover o intercâmbio e a reciprocidade de todos os esforços
do conhecimento e das possibilidades psicoterapêuticas. Harmonizam-se
contrastes, elabora-se o que há de comum em toda psicoterapia, ou seja, a
unidade de pensamento. Uma policlínica atende cada vez mais às necessi-
dades da prática médica, formando base ampla para pesquisa pela elabo-
ração regular das histórias clínicas. Grande número de biografias real-
mente psicoterapêuticas talvez se possa obter, desta maneira, pela pri-
meira vez.
A falha principal dessa instituição está em que se afasta da clínica psi-
quiátrica. Os psicoterapeutas que não tenham, por experiência própria,
conhecimento fundamental das psicoses e do trato respectivo, nos hospi-
tais e na sociedade, podem cometer erros fatais de diagnóstico, além de
sucumbir facilmente às fantasias e absurdidades tão abundantes na lite-
ratura. Se não houver informação bem fundamentada sobre a realidade
das psicoses, se não se buscar conhecê-las com paixão, toda imagem do
homem e, pois, toda antropologia será falha em face dá realidade, pois que
a compreensão do ser humano nos obriga tanto a parar ante à realidade
impenetrável do que é incompreensível quanto a abrir-nos à liberdade pos-
sível. Só perceberemos aquela limitação pela psiquiatria; e só pela filosofia
nos libertaremos para esta abertura. Não pode a psicoterapia viver de sua
própria origem.
Vimos que, embora enraizada na medicina, a psicoterapia fato histó-
rico transborda do campo médico, constituindo fenômeno de’ uma época
sem fé, no sentido da tradição eclesiástica. Hoje em dia, a psicoterapia não
se ocupa só com os neuróticos, mas com >o homem em dificuldades espi-
rituais e pessoais. Não pela tradição, decerto, mas pelo significado, relaci-
ona-se com a confissão, a catarse mental, a guia espiritual das eras da fé,
impondo e prometendo a todos, em geral. Não sabemos ainda em que irá
dar.
Como toda empresa humana, a psicoterapia também acarreta riscos
específicos: em vez de apontar ao aflito os caminhos da cura, pode trans-
formar-se numa espécie de religião, semelhante às seitas gnósticas de há
milênio e meio. Pode vir a constituir a sede em que se instale o sucedâneo
da metafísica e do erotismo, da fé e da vontade de poder, da realização de
impulsos inescrupulosos. Aparentando exigir muito, pode, realmente, ni-
velar e trivializar a psique.
Apesar de todos os riscos, a psicoterapia dispõe, entretanto, para de-
fender-se, do significado ou sentido de seu conhecimento, porque o psico-
terapeuta consciente percebe com a máxima clareza seus erros e, pois, é
tanto mais culpado quando a eles sucumbe. Todavia, só a institucionaliza-
ção é que pode desenvolver fórmulas de desenvolvimento, estabelecer esta-
tutos e prescrições, mediante os quais não só se realize, de modo amplo, a
tradição da teoria e da arte, mas também se previnam os riscos.
É de esperar que, com o tempo, uma ideia construída à base da prática
e da reflexão se elabore no concernente à realidade psicoterapêutica insti-
tucionalmente conformada. Isso compete àqueles que participam ativa-
mente na psiquiatria. A esta altura cabem, apenas, umas tantas observa-
ções fragmentárias que incitem à meditação. Conscientes que somos das
extraordinárias possibilidades oferecidas pela psicoterapia, procuramos
estabelecer distinções precisas. Não se pode esboçar quadro algum de
qualquer realidade tal qual seja ou haja sido; só é possível apontar alguns
pontos de que parta a construção — com o que se tocam possibilidades
extremas; só o pensamento que se desenvolva ao máximo segundo linhas
diretivas simplificadas é que pode servir de instrumento para a inquirição
da realidade eventual.
A dificuldade fundamental está em que, nessa prática visando ao todo
do existir humano, o médico tem de ser mais do que médico apenas, de .
modo que a meditação se oriente por um ponto de vista radicalmente di-
verso e mais amplo do que aquele puramente psicopatológico.
1. A necessidade de autoesclarecimento do psicoterapeuta. Seria er-
rado exigir do médico que faça em si mesmo o que deve fazer no doente,
que prove sua arte em sua própria pessoa — isso quanto às doenças so-
mático-causais; o médico pode tratar excelentemente de uma nefrite num
paciente seu, sem deixar de ser bom pelo fato de menosprezá-la e tratá-la
mal em si mesmo. No terreno psíquico, as coisas são, diferentes. O psico-
terapeuta que não se esclarece a si mesmo também não poderá esclarecer
acertadamente o enfermo, porque a maneira, segundo a qual atua estará
deixando que atuem dentro de si, permanentes, impulsos não percebidos,
inobjetivos. Esta a razão por que, de há muito, se exige que o médico se
investigue psicologicamente, conforme foi erigido em. requisito básico, de
algum tempo para cá. Jung formulou-o da seguinte maneira (abreviada-
mente):
“A relação entre médico e paciente é relação pessoal dentro do quadro
impessoal do tratamento médico.... O tratamento resulta de influencia-
mento recíproco. Nele tem lugar o encontro de dois entes humanos que,
além de sua consciência talvez determinada, trazem consigo uma esfera
imprecisamente extensa de inconsciência.... Se, enfim, se formar uma as-
sociação, ambos mudam.... Inconscientemente, o enfermo influencia o mé-
dico e produz modificações no inconsciente deste.... Efeitos que não se po-
dem formular senão pela velha ideia da transferência da doença para uma
pessoa sadia, a qual, então, terá de dominar, com sua saúde, o demônio
da enfermidade.... Foi reconhecendo este fato que o próprio Freud admitiu
o requisito por mim estabelecido: de que o próprio médico deve ser anali-
sado: requisito que implica estar o médico na análise tanto quanto o paci-
ente.... A psicologia analítica exige, pois, aplicação retroativa ao próprio
médico do sistema no qual ele acredita; e isso com o mesmo rigor, firmeza
e tenacidade que o médico impõe ao paciente.... É impopular o requisito de
que o médico se modifique para ser capaz de modificar também o doente,
porque se afigura impraticável, em primeiro lugar; depois, ocupar-se con-
sigo mesmo implica certa prevenção; em terceiro lugar, custa muito, às ve-
zes, ao médico preencher — ele mesmo — todas aquelas expectativas que
dirige aos seus pacientes. . O desenvolvimento mais recente da psicologia
analítica destaca a personalidade do próprio médico como fator curativo
ou seu reverso.... O médico já não pode >esquivar-se às suas próprias difi-
culdades pelo fato de tratar das dificuldades alheias”.
Daí surgiu o requisito da análise didática. Quem não se tiver subme-
tido, obstinadamente, à análise psicológica profunda por outro médico —
mais ou menos 100/150 horas durante um ano ou mais — não estará ca-
pacitado para discutir como especialista, nem para praticar a psicoterapia.
“Não queremos aprender nos pacientes, e sim em nós. Não queremos des-
cobrir e conduzir aquilo que é o que o homem possui, afinal, de mais im-
portante sem nos conhecermos e nos esclarecermos, de certo modo. Deve-
mos isso aos nossos pacientes”. Daí por que a análise didática se torna
parte essencial da formação dos futuros terapeutas. Defende-se com desu-
sada intensidade este requisito, embora existam psiquiatras notáveis que,
ao que se saiba, jamais se sujeitaram a qualquer análise psicológica pro-
funda. A este respeito, cabe distinguir:
aa) O autoesclarecimento é requisito verdadeiro, indispensável. Indaga-
se, apenas, de que modo ele pode realizar-se e se há necessidade imediata
da ajuda alheia, isto é, dada por alguém que promova, profissionalmente,
mediante honorários, o desvelamento das profundezas psíquicas. Não é lí-
cito confundir a autorrevelação com. métodos interpessoais de análise.
Nem se pode assegurar o que resultará da existência. Não é possível con-
trolar, nem atestar o que ocorre, único e singular, na ação interna. Daí pa-
recer conveniente ponderar se o requisito da realização do autoesclareci-
mento não se deve cingir ao máximo a possibilidades optativas. O indiví-
duo há de decidir se se confiará à análise psicológica profunda feita por
outro, ou se receberá estímulos indiretos, no contato interpessoal; ou se,
em conexão com as grandes construções revelacionais (por exemplo
“Krankheit zum Tode”, de Kierkegaard), conseguirá o esclarecimento de
sua existência histórica; ou ainda, se fará tudo ao mesmo tempo. No caso
de poder transformar-se o que há mais íntimo nalguma coisa possível de
controlar; no caso de aderir-se ao pressuposto de haver sempre, entre os
psicoterapeutas autorizados, alguns aos quais um jovem se queira abrir e
confiar em absoluto, existe o perigo de indivíduos muito categorizados se
absterem dessa profissão; e talvez sejam os mais independentes, os mais
humanos, os mais sadios, capazes de fazer progredir a psicoterapia teórica
e prática. Os fundadores da formação psicoterapêutica institucional de-
vem indagar de si mesmos (o que fazendo, hão de libertar sua aspiração
ao autoesclarecimento psicológico da respectiva tradição escolar) se,
quando reclamam a análise didática, não escondem, às vezes, a imposição
de uma afirmação de fé, e também qualquer coisa que remonta às forma-
ções sectárias; isso, e não a ideia de uma eficácia terapêutica geral, pú-
blica. Ou ainda: talvez aqui se interprete mal a ideia do autoesclareci-
mento necessário, permanente, do psicoterapeuta, na fixação a determi-
nada fórmula que, a seu turno, varia entre a análise, com a presença im-
pessoal do psicoterapeuta colocado por detrás, e a comunicação pessoal
frente a frente. Confirmar-se-ia o que presumo, se se viesse a exigir a aná-
lise _ ou tratamento didático de acordo com esta ou aquela escola e de
acordo com as diversas modalidades terapêuticas, dentre as quais o estu-
dante optasse. Far-se-iam as pazes com a mesma característica dos trata-
dos de tolerância interconfessionais, onde cada uma das seitas espera, se-
cretamente, tornar-se a única verdadeira, afinal, e também a única domi-
nante. Ficaria, assim, claramente exposta a peculiaridade filosófica da
análise didática em causa; e o procedimento inteiro viria a constituir suce-
dâneo de movimentos místicos.
Se se quiser fugir à estreiteza de concepções filosóficas afinal privadas,
exigir-se-á, certamente, a análise didática, mas não a sua. indispensabili-
dade como requisito da formação psicoterapêutica. Restará, então, ape-
nas, com caráter obrigatório o autoesclarecimento do psicoterapeuta, pro-
cesso que, no entanto, não pode ser controlado, objetivamente, nem com-
provado ou estabelecido por outros. O conteúdo da. teoria institucional-
mente transmitida estará naquilo que é em geral acessível, objetivamente
válido, embora tudo dependa, na prática e de maneira decisiva, das perso-
nalidades que manejam a teoria.
Toda profissão requer a proteção de certa tradição. Uma profissão que
se está formando tem suas possibilidades abertas ou limitadas pela opção
de sua organização inicial. A meu ver, a opção pela análise didática como
critério discriminativo, logo de início, para admissão na estreiteza de vá-
rias escolas que se excluem e só por oportunismo se toleram, levaria, afi-
nal de contas, a que se extinguisse1 essa profissão. É vital para a psicote-
rapia conseguir alcançar a profundidade, em que possa basear-se, da tra-
dição relativa ao conhecimento prático do ente humano, desde Platão até
Nietzsche, a fim de exceder os limites, de profissão estritamente médica.
Noutras palavras: Todo movimento intelectual tem seu conteúdo determi-
nado pelos homens aos quais se refere como sendo seus fundadores. Win-
ckelmann criou o nível a que se mantém até hoje a arqueologia, se bem
que- a maior parte de suas teses haja caducado: a nobreza de sua perso-
nalidade, a profundidade de suas ideias foram decisivas. Mas não- pode-
mos iludir-nos: sobre Freud, Adler, Jung, movimento algum pode- fundar-
se capaz de colocar-se no plano que se requer da psicoterapia. Nem supe-
rando-os. se consegue encontrar o caminho a seguir (porque- se depende
daquilo que se combate); este só se encontra, sim, pela apreensão positiva
da verdade contida na antiga tradição. A experiência atual permitiria à
prática psicoterapêutica, que ora está fundamentando- a transição deci-
siva, reconhecer e apossar-se dessa tradição. Os psicoterapeutas têm de
criar uma obra que ainda não existe como totalidade de qualquer teoria
com pretensão a validez. Enfim, não existe apelo a vivências, nem a certo
número de tipos humanos aos quais correspondam métodos diversos,
dado o fato de colapsar, nessa singeleza imprecisa, a criação compreensiva
que vê e mostra a verdade. Essa verdade, desde que apreendida na pro-
fundidade da tradição e realizada com configuração moderna, revelaria,
por si mesma, o que há de válido, de insuficiente, de acidental, de destru-
tivo nos autores das velhas gerações, que ainda influenciam bastante a
psicoterapia moderna, por eles movimentada anônima ou expressamente.
bb) Tem-se de distinguir entre psicologia profunda esclarecedora e téc-
nicas psicológicas. A prática da psicologia profunda implica envolvimento
com relação a conteúdos e concepções cuja vivência se marca filosofica-
mente e sempre atua de modo inconscientemente sugestivo, haja ou não
haja consciência plena; a prática como tal já envolve- consentimento. Pelo
contrário, as técnicas psicológicas que se aplicam com fins curativos (hip-
nose, treinamento autógeno, exercícios, etc.) dão lugar a experiências es-
pecíficas, que, por assim dizer, se ganham mediante instrumento novo. É
lícito exigir que as técnicas psicológicas que eu pretendo aplicar a outras
pessoas eu as experimente e execute comigo mesmo; e, decerto, com a co-
laboração e direção de um especialista. Mas quando essas técnicas são
postas de lado em bem do contato histórico-pessoal, que, tendo em vista
seu significado, não se pode tornar arbitrário (nem, portanto, jamais cons-
tituir técnica, propriamente dita, sejam quais forem as reflexões metodoló-
gicas), temos inversamente de tomar o máximo cuidado para não confun-
dir uma coisa e outra. Seremos circunspectos ante a profundidade do in-
consciente, se quisermos realizar trabalho proveitoso, fecundo; evitare-
mos- a tecnicização de modo, a manter contato com a nossa própria natu-
reza. Não nos é lícito esperar que os requisitos pessoais da profissão psico-
terapêutica resultem do aprendizado formal, porque eles impõem muito
mais coisas, entre as quais algumas que estão certamente fora de qual-
quer aprendizado.
2. Indivíduos neuróticos e indivíduos sadios. No lugar citado sobre a
necessidade de o médico retroanalisar-se, Jung prossegue:
“A autocrítica e autoinvestigação, que se associa, indissoluvelmente, à
questão em tela, exigirá concepção da alma inteiramente diversa, daquela
que vigorava até agora, meramente biológica, porque a alma, humana....
não é só o doente, mas também o médico, não é só o objeto, mas também
o sujeito.... O que era, antigamente, terapêutica médica torna-se método
de autoeducação.... assim, a psicologia, analítica rompa os grilhões que a
acorrentavam, até nossos dias, ao consultório médico- — para preencher
aquela grande lacuna que sempre constituiu a inferioridade espiritual das
culturas ocidentais. em relação às orientais. Mais não conhecíamos do que
submissão, sujeição psíquica.... Quando toma o próprio médico para ob-
jeto, a psicologia originariamente médica deixa de ser mero processo tera-
pêutico para doentes. Agora, ela trata de gente sadia, cuja doença pode
ser, quando muito, o sofrimento que a todos nós atormenta”.
Jung falava, é claro, de alguma coisa que já acontecia. Tudo, porém,
que podia afigurar-se fraqueza ou erro da terapia, o psiquiatra suíço
transmudava em força e tarefa. Tanto mais urge, por conseguinte, não es-
quecer certas diversidades radicais de significado.
aa) Diferença entre neurose e saúde. Só pequena minoria de pessoas
são neuróticas; a maioria é sadia.
Em sua obra sobre os indivíduos inibidos, Schultz-Heneke descreve al-
guma coisa que é universal, quando distingue manifestações de natureza
mais grosseira: “Só uma fração dos seres humanos as conhece: significam
sofrimento; quase sempre se sentem como mórbidas.... Talvez cada ho-
mem em dez vivencie uma vez (pelo menos; de maneira rudimentar), essa
consequência mórbida da inibição; quase sempre, contudo, num ou nou-
tro breve período de sua vida. Há bem uma dúzia dessas manifestações.
Em regra, o homem normal sofre- uma só delas, quando pertence àqueles
dez em cem. Por conseguinte, sempre há, dentre cem indivíduos, um que
conhece certa vivência mórbida, a qual já terá estado nele uma vez, transi-
toriamente.... É por isto que pouco adianta aquele que sofre falar em suas
manifestações mórbidas: ninguém as compreende.... O doente tem de ir ao
médico”. Schultz-Hencke avalia “em meio-milhão, talvez, os alemães aos
quais só se pode dar assistência com artilharia pesada”.
Estas frases sobre a frequência das neuroses visam a avaliar a gran-
deza aproximada da respectiva incidência. Implicam elas as seguintes con-
clusões:
Existe diversidade essencial entre o fenômeno neurótico e o psiquismo
sadio, acessível a todos. A maior parte dos homens ignora os fenômenos
neuróticos por experiência própria; daí não compreendê-los.
Há transições entre neurose e saúde, na medida em que manifestações
neuróticas individuais também ocorrem numa minoria de pessoas sadias;
e, aliás, quase sempre episodicamente. Não significa, pois, esta transição
serem todos os homens um pouco neuróticos, mas, sim e apenas, haver
manifestações isoladas passageiras em indivíduos que quanto ao mais são
sadios; diga-se, também, contudo, o seguinte: fenômenos neuróticos espo-
rádicos afetam só pequena minoria de indivíduos; a maior parte dos ho-
mens não os conhece, em geral, e aqueles poucos que os conhecem po-
dem, além disso, ser considerados sadios, na maior parte das vezes.
Dúvida essencial não cabe, a bem dizer, quanto a qualquer destas te-
ses; mas a terceira afirmação não é indubitável no mesmo sentido: os fe-
nômenos neuróticos seriam consequência de dificuldades psíquicas que
todo indivíduo sadio conhece e supera. As angústias psicológico-existen-
ciais seriam, afinal, humanas e não neuróticas. É incontestável que as di-
ficuldades gerais da vida desempenham papel essencial na maior parte
das neuroses. Mas da falência ante a angústia vital, da falta de autoescla-
recimento, da desonestidade e autoilusionamento, da prática de atos re-
prováveis — não resultam, em absoluto, neuroses, e, sim, inferioridades
individuais características; há diferença entre os inúmeros homens exis-
tencialmente deteriorados, que são, no entanto, sadios, e os neuróticos; ou
entre baixeza e doença. Para a neurose ocorrer, tem de acrescer-se alguma
coisa decisiva, específica da neurose: a disposição especial dos mecanis-
mos psíquicos, só dos quais resulta a neurose pela falência ante a angús-
tia vital; e os quais possibilitam a neurose mesmo que haja autoesclareci-
mento e sinceridade. Pode-se dizer, às vezes, de um neurótico: “É nervoso,
mas com decência”. Não é só a baixeza extrema, mas também a seriedade
autêntica da ascensão que pode ocasionar fenômenos neuróticos, quando
funcionam certos mecanismos.
bb) Diferença entre terapia e assistência na angústia. Todos os homens
precisam autoesclarecer-se e, ao mesmo tempo, auto- aquietar-se na ação
interna; superar as dificuldades vitais, renunciar e recusar livremente,
aceitar a realidade existencial que lhes é dada. Mas é só aquela minoria
neurótica que precisa de terapia. É diverso o sentido, de um lado, entre a
liquidação de problemas vitais, o amadurecimento, o existencializar-se e,
de outro lado, a cura de uma neurose; na mesma ordem de ideias entre a
assistência que se dá ao angustiado e a terapia médica.
O encontro de rumos na angústia, o comportamento em relação a si
mesmo — isso é tarefa que pode caber a qualquer indivíduo sadio; sendo
maiores as dificuldades, o outro indivíduo — mesmo ma figura do psicote-
rapeuta — pode iluminar os caminhos. A cura dos fenômenos neuróticos,
porém, exige medidas especificamente médicas, dentro das quais aquela
modalidade de assistência humana comum pode ter significado incalculá-
vel: em certos fenômenos neuróticos, o processo de autorrealização pode
levar, do mesmo passo, à cura da neurose. A psicologia profunda coincide
em seus limites com o esclarecimento existencial; e precisa da proximi-
dade e amizade pessoais numa singularidade histórica de cada momento.
A psicoterapia medicamente limitada, pelo contrário, representa a aplica-
ção de técnicas de certo tipo; permanece largamente impessoal, pode-se
repetir e aprender.
Ao passo que entre os indivíduos sempre se dá e pode dar-se a comu-
nicação independente de qualquer manipulabilidade ou disponibilidade ci-
entífica, comunicação na qual a realização individual se faz pela revelação,
o psicoterapeuta tem, nas neuroses, menos e mais a fazer; menos do que
comunicação existencial (por mais benéfica que seja esta para o neurótico
e por mais que lhe seja humanamente indispensável, se tiver de curar-se),
porque não é de processar-se conforme plano ou propósito, nem profissio-
nalmente; e mais do que comunicação existencial, na medida em que
atuem medidas comprovadas pela experiência, além de técnica especiali-
zada.
A esta altura, cabe uma indagação prática. Seria ridículo receber hono-
rários pela prestação da comunicação existencial, porque os honorários
têm razão de ser quando se cogita de serviços baseados em certo conheci-
mento e em capacidade ensinável possíveis de aplicar geralmente e repetir
do mesmo modo. Em qualquer terapia médica ¡todavia, pode acontecer —
são raros os casos — que uma comunicação existencial venha a estabele-
cer-se, sem intenção nem propósito definidos, entre médico e paciente; a
mesma coisa se passa, em princípio, na psicoterapia. A comunicação é,
em tais casos, alguma coisa que se acresce, que não se pode buscar nem
dar por dinheiro. Daí não ser possível transformar em princípio nem fim
da psicoterapia tudo quanto acontece entre dois entes humanos, frente a
frente, na aplicação da psicologia profunda, ou no esclarecimento existen-
cial. Existe algo que é possível em todas as relações humanas; algo que as
sustenta, quando se tornam essenciais e vitais; algo, porém, que está fora
do do ut des (eu dou para que tu dês),
cc) Universalização da psicoterapia. As discriminações acima não im-
pedem de considerar adequada a prestação do serviço terapêutico a quais-
quer indivíduos que se achem envolvidos em dificuldades profissionais ou
transtornos familiares, domiciliares; que não saibam resolver, ou se vejam
incapazes de solucionar problemas educacionais concernentes aos filhos.
Mesmo para pessoas sadias há complicações que precisam resolver-se. O
conhecimento metódico e a capacidade técnica manejados por indivíduos
capazes podem ser úteis, ainda que não se tenham em vista fenômenos
psicopatológicos: por vezes, de maneira mais feliz e mais duradoura que-
no caso das neuroses. Tal qual faz milagres uma palavra sensata, no mo-
mento justo; tal qual, vez por outra, a introvisão pode fazer cair escamas
dos olhos, assim também um guia de almas- talvez consiga prestar serviço
considerável, até mesmo dentro de contextos institucionais. O que pode
ocorrer nessas situações é imprevisível.
Isso acontecendo, entretanto, sai-se da psicoterapia médica e- inter-
vém-se nas dificuldades que afetam os indivíduos sadios, na medida em
que é possível dar-lhes a assistência; daí ser indispensável esclarecer, afi-
nal, o significado ou o sentido dessa intervenção. Há um dito que mostra a
aversão atual de todo indivíduo sadio a¡ qualquer tratamento; dito empre-
gado quando se quer ajudar a alguém que se recusa: “Se ele tivesse sequer
um sintoma (isto é, manifestação neurótica) pelo qual se pudesse tratá-lo
em geral!
Seria um risco para a clareza psicoterapêutica, se se viesse a. estabele-
cer a necessidade básica da psicoterapia para todos os seres, humanos,
deixando ela de constituir apenas uma solução, ou saída, em 'caso de an-
gústia: a angústia que a psicoterapia envolve seriai comum a todos os ho-
mens. Semelhante concepção levaria ao descomedimento, porque o ser
humano se assiste a si mesmo na comunicação com o próximo, com os
entes mais queridos, dentro do- contexto de seus conteúdos místicos, tais
quais o mundo lhe oferece. Só na angústia — por exemplo, quando lhe
falta a comunicação autêntica, quando rompe com o perimundo, quando
perde toda a fé dentro de um mundo esvaziado — só nessa angústia é que
resolve voltar-se para um estranho, pagando-lhe honorários, revelando-se-
lhe de um modo que lhe viola o recato, este só se suspendendo por força
da situação angustiante. Ainda não se resolveu o problema da conforma-
ção segundo a qual se realizará a institucionalização da assistência psico-
terapêutica, quando se tem em vista distinguir a psicoterapia médica do
aconselhamento e orientação» psíquicos, no sentido humano universal; ou
seja, universalizar-sé-á. a psicoterapia como tratamento espiritual para to-
dos? Ou se estabelecerão limites para a psicoterapia, restringindo-a às
neuroses e? pressupondo o juízo “doente”?
3. A personalidade do psicoterapeuta. Muito se requer do psicotera-
peuta: sabedoria superior, bondade esclarecida, esperança inextinguível
deve possuir. Só o autoesclarecimento constante de personalidades basi-
camente ricas pode levar a este ideal, pelo qual se mantém a humildade
do saber quanto às limitações do existir humano e às próprias. Assim que
a psicoterapia se institucionalizar, que assumir status por força de um
treinamento e uma formação, ter-se-á de indagar o que fazer e de criar
oportunidades para a atuação de personalidades eminentes. A formação, a
seleção, o controle hão de criar restrições; ao menos, para eliminar os in-
capazes. Isso é tanto mais necessário quanto indivíduos transtornados,
neuróticos, curiosos, podem invadir essa profissão que ainda se está for-
mando, que ainda não se acha consolidada por tradição sólida alguma.
aa) Estabelecimento do padrão. Se é que há futuro para a psicoterapia,
contemplar-se-á de que maneira ela se realiza ao máximo segundo figuras
humanas representativas. A personalidade desempenha papel central na
psicoterapia, papel de uma especificidade que a distingue de outras ativi-
dades. Mas não existe ainda o modelo pessoal; e mesmo este teria suas
deficiências e limitações, peculiares; nunca seria de imitar-se, podendo,
sim, constituir orientação e origem de estímulo para os psicoterapeutas
que se lhe seguissem. Porque falta, então, o modelo pessoal como exemplo
público, modelo cuja vida inteira se possa acompanhar, tem-se de discutir
em abstrato o que é que se há de exigir. Tratamos disso nos parágrafos
acima; agora, destacaremos, exemplificativamente, alguns requisitos espi-
rituais e éticos.
Contra o sectarismo. A psicoterapia precisa fundar-se na fé, mas ela
mesma não a cria. Este o motivo por que o psicoterapeuta há de ser tão
sincero que, em primeiro lugar, resista ao pendor — quase inevitável, con-
forme ensina a experiência — de formar com base na psicoterapia uma te-
oria filosófica e constituir comunidades sectárias a partir do círculo de psi-
coterapeuta, discípulos e pacientes.
De certa feita, perguntei ao médico que tratava de uma histérica, se
não convinha chamar um psicoterapeuta; e ele me respondeu: “Não, mi-
nha paciente é uma cristã praticante”. Esta alternativa não vale, certa-
mente, de maneira tão absoluta, mas vale em relação a tudo quanto tem
característica filosófica nos escritos psicoterapêuticos. A psicoterapia que
se torna sectária não pode vir a constituir qualquer- tratamento publica-
mente institucional: configurar-se-á, durante certo' tempo, nalguns círcu-
los privados, mas se desvanecerá, a menos que certo psicoterapeuta se
torne fundador triunfante de nova religião. Só um padrão subsiste que se
possa opor à formação de seitas, ao agrupamento em redor de mestres ve-
nerados com exclusão de quaisquer outros, às tendências psicoterapêuti-
cas místicas; e este padrão- é o seguinte: clareza quanto à secularização
da crença que vigora, em geral, a certo tempo; reconhecimento das gran-
des tradições religiosas, na medida em que ainda sobrevivem; cultivo den-
tro de si mesmo de uma atitude filosófica básica, que servirá para adquirir
conhecimento em geral, visão do mundo e capacidade; clareza quanto ao
fato de essa atitude dever visar à autocriação em cada psicoterapeuta indi-
vidual. O psicoterapeuta tem de ser um homem que confie em si mesmo.
Contra o desprezo dos homens. É bem possível que o tipo de suas ex-
periências e a necessidade de certas, medidas levem o psicoterapeuta a
desprezar os outros homens, passando, então, a sentir-se tal qual um do-
mador de feras, que hipnotiza os pacientes e exercita os relutantes. Pode
haver duas situações: de um lado, os neuróticos cuja doença se configura
de modo a compor a nobreza de um homem e cujo desejo de tratar-se é
puro e decente, porque não visa a, fins ocultos (possibilita que se amem os
neuróticos nos quais se manifesta um existir humano profundo) ; doutro
lado, os neuróticos que não se tornam eles mesmos, que se mantêm medi-
ante uma mentira vital, que não conhecem realidades nem valores, mas os
usam e abusam com vistas a obter outras coisas (podem inspirar aversão
pelo ser humano, em casos extremos). O psicoterapeuta só pode salvar-se
do desprezo pelo homem mediante sua atitude básica de disposição a aju-
dar os outros indivíduos como seres humanos; serve-lhe a consciência das
fraquezas e descarrilamentos próprios, das próprias falhas que tem sem-
pre presentes à memória; sem excluir, no entanto, o conhecimento das
possibilidades de êxito, das probabilidades originárias que salvam e liber-
tam. Quem escolhe a profissão de psicoterapeuta há de saber quanto são
difíceis as experiências a enfrentar; há de estar certo de seu amor pela hu-
manidade.
Contra a unilateralidade alienadora do tratamento. Existe risco de o
médico ver no cliente de quem está tratando alguma coisa diversa do que
ele mesmo é; de trabalhar nele como se fosse um objeto da natureza com o
qual nada tem a ver. Mas o homem só pode ajudar com o que possui den-
tro de si quando se encontra a si mesmo, psiquicamente, no outro. Por
isto, o psicoterapeuta terá de fazer-se a .si mesmo objeto de sua psicolo-
gia; na mesma extensão e na mesma profundidade, pelo menos, em que
as requer do paciente.
bb) Admissão à formação. Tendo em vista a dificuldade da profissão e o
nível dos requisitos pessoais, convém que o acesso à psicoterapia se su-
jeite a condições tão rigorosas de ensino, experiência existencial, validação
prática quanto àquelas a que se subordina o exercício da profissão mé-
dica, da qual a psicoterapia em geral não deverá separar-se. Para realizar
a tarefa de ajudar a quem sofre psiquicamente, não pode manter-se, toda-
via, o requisito da formação médica como base única possível. Todas as
profissões que promovam trabalho intelectual e autodisciplina intensa, ex-
periência vital e simpatia humana, podem valer como fundamento; mas só
indivíduos amadurecidos podem ocupar-se com a psicoterapia. Que o tra-
tamento somático das neuroses compete aos médicos é fato tão certo
quanto aquele de que eles podem pedir ajuda a indivíduos não-médicos; e
de que, com a ampliação da psicoterapia a pessoas sadias, também os in-
divíduos sem formação médica poderão granjear importância crescente.
cc) A formação. Parece essencial indagar sobre que tradição espiritual
se há de basear um estudo psicoterapêutico, além da experiência prática a
adquirir de maneira imediata. É provável que a psicoterapia só venha a al-
cançar o plano que lhe cabe quando voltar às fontes profundas do conhe-
cimento do homem, além de abastecer-se nos psicoterapeutas do meio-sé-
culo passado, os quais, de modo geral, se restringiram às neuroses e
pouco mérito filosófico tiveram: a imagem do homem é de formar-se em
antropologia que se alimente na filosofia grega, em Santo Agostinho, Kier-
kegaard, Kant, Hegel e Nietzsche. Ainda não se firmou, até hoje, padrão
intelectual e psicológico; oscila ainda extraordinariamente o nível. São os
maiores dentre os homens que podem determinar a imagem do homem e
cunhar a modalidade segundo a qual se fale em alma; são eles que têm de
ensinar e usar os conceitos com que o indivíduo possa esclarecer-se a si
mesmo.
dd) Controle. Qualquer organização ou instituição pode, quando muito,
exercer controle externo, para impedir que os psicoterapeutas se extraviem
e, ulteriormente, exclui aqueles que não servem.
1. Dando oportunidades, a institucionalização opor-se-á ao nivela-
mento de convenções recíprocas e à dissipação dos esforços individuais
esparsos. Deve-se facilitar a solidão circunspecta de que resulta a quali-
dade, deixando espaço o mais livre possível à iniciativa individual; a vali-
dação resultará da porfia sensata entre os psicoterapeutas, os quais de-
vem verificar aquilo que fazem (na medida em que é verificável); devem
conversar entre si, explicar-se pela discussão, submeter-se à crítica de
seus trabalhos e esquemas científicos e exercê-la sem restrição.
2. A intimidade da psicoterapia acarreta riscos específicos que nin-
guém vê mais claros do que o próprio psicoterapeuta. Rumores malévolos
ocasionais podem, uma vez comprovados, revelar deslises individuais; mas
bastarão para testar o requisito seguinte: àquele que, uma vez sequer, no
contexto de sua prática psicoterapêutica, tiver comércio sexual com qual-
quer paciente já não será lícito praticar a psicoterapia.
Outro requisito poderia fazer-se: Aquele que, homem ou mulher, faz
psicoterapia com pessoas do outro sexo deveria ser casado: o que talvez
seja possível ao sacerdote católico pela autoridade de uma transcendência
mística nem sempre é de esperar-se, em média, dos psicoterapeutas secu-
lares. Semelhante requisito parece pretender resolver o problema de ma-
neira demasiado simples, pois o casamento não garante a moral; e o celi-
batário pode ser irrepreensível. O nível psíquico que se há de exigir do psi-
coterapeuta não se pode considerar decisivo pelo fato de ele ser casado, se
bem que o matrimônio talvez o estimule.
O problema que, a esta altura, defrontamos mais se toca do que se dis-
cute na teoria psicoterapêutica da “transferência”. A pessoa do psicotera-
peuta não pode deixar, em absoluto, de assumir função decisiva em rela-
ção ao paciente, dentro do processo psíquico. Sua tarefa consiste em asso-
ciar essa função pessoal a uma distância inabalável; consiste em manter a
objetividade e a exclusão da pessoa privada do psicoterapeuta dentro da
indiscrição peculiar e inevitável do esclarecimento psicológico profundo. O
que há de atuar pessoalmente é uma impessoalidade. Mesmo o contato
social do psicoterapeuta com o paciente é prejudicial; o relacionamento
entre ambos, para realizar-se limpidamente, limitar-se-á ao trato psicote-
rapêutico; e os riscos são evidentes, se não se conseguir tal distancia-
mento. Tudo se perde assim que a veneração pelo portador da orientação
espiritual salvadora se contamina com elementos de desejo erótico ou
atração particular mútua. Se jamais, surgir uma teoria segundo a qual a
união carnal da mulher com o psicoterapeuta, este encarregando-se de sa-
tisfazê-la, constitua a alavanca para a cura (em termos corriqueiros: cons-
titua a transferência mais eficaz e a respectiva solução), nesse caso a psi-
coterapia se transformará no mais requintado expediente de sedução. O
estudo histórico das seitas gnósticas mostra as transformação infinitas
que sofre o papel do psicoterapeuta como médico, salvador ou amante.
APÊNDICE

Discutidos que foram, sistematicamente, os pontos de vista sob «os


quais se conhecem as anormalidades da vida psíquica, procuraremos
ainda formar, em apêndice, brevíssima visão de coisas práticas e históri-
cas. Falaremos do exame dos doentes, do tratamento respectivo, do prog-
nóstico; feito o que, daremos uma vista ¿’olhos ao passado da ciência psi-
copatológica.
§ 1. Do Exame dos Doentes
a) Generalidades. Quando se examinam doentes, têm-se de combinar
coisas opostas: de um lado, entregar-se à individualidade do paciente e
deixá-lo que a exprima verbalmente tal qual é; de outro lado, examinar
com base em pontos de vista firmes e visando a alvos definidos. Se se des-
cuidar isto, mergulhar-se-á num caos de particularidades; se se descuidar
aquilo, encaixar-se-ão os casos mórbidos individuais nos poucos quadros
petrificados que se aprenderam, já não se verá nada de novo, forçar-se-ão
as situações. O ideal para quem pesquisa é riqueza de pontos de vista fir-
mes, sem deixar de saber adaptar-se ao caso individual.
Daí resulta que quem examina não pode estar preso a questionários
pré-fabricados que apenas se executam, conquanto para certos objetivos
umas tantas perguntas fixas facilitem o exame. Os questionários são re-
cursos para o principiante que precisa escrever histórias clínicas sem dis-
por de conhecimentos gerais suficientes; também servem como referências
mnêmicas. O que há, porém, de melhor e mais importante para o médico é
o estímulo que o doente presente e seus sintomas exercem sobre ele. O
médico tem de variar suas perguntas. Aquilo que se vê num indivíduo, o
que até o momento se notou, ao acaso ou propositadamente, a situação«
cm que ò paciente se acha, seu estado de consciência e outras coisas exi-
gem, até certo grau, que, examinando o paciente, se recriem as perguntas
apropriadas. Daí não se dever abordar o doente com esquemas pré-fabri-
cados de perguntas; e, sim, saber, apenas, sobre que particularidades ca-
berá, de um modo ou doutro, esclarecer-se, que pontos de vista se hão de
considerar, quando se faz o exame. É o que nos ensinam toda a psicopato-
logia geral e, sobretudo, a análise de tipos mórbidos individuais na psiqui-
atria especial. As perguntas só são boas quando se tem riqueza de conhe-
cimentos gerais; os esquemas conceituais e o arcabouço de nosso saber
conceituai são verdadeiros órgãos sensoriais que orientam o nosso interro-
gatório. Se, por um lado, a variação do exame individual é uma arte e,
pois, de recriar-se para cada caso, de outro lado se estabelecerá que a co-
municação daquilo que se encontra, caso tenha validez, é ciência, reque-
rendo conceitos firmes, a se usarem constantemente. Por conseguinte, é
erro grave formar ad hoc, para cada caso, conceitos psicopatológicos pró-
prios, sem nitidez natural, a se esquecerem logo no caso seguinte. Criador,
sempre mudando no exame de um indivíduo para outro, o psicopatolo-
gista há de aderir, contudo, quando comunica aquilo que encontrou, a
conceitos sólidos, só estabelecendo novos com prudência e disposto a que
perdurem.
b) Os métodos de exame. O primeiro e sempre o mais importante mé-
todo de exame é a conversa com o doente, que se realiza de maneira muito
variada. A capacidade de conduzi-la sistematicamente, adaptando-a, de
maneira sempre nova, ao caso individual, é um dos requisitos do psiquia-
tra habilidoso. Só sabe perguntar bem aquele que exclui sua atitude pró-
pria não só na expressão verbal, mas também em todo seu comporta-
mento. Aquele que pretende “conservar” sua “posição”, sua autoridade
“médica”; aquele que usa os gestos do saber superior quase nunca obtém
a necessária simpatia. É preciso ter personalidade bastante para poder en-
tregar-se completamente e colaborar, de certo modo, com o paciente. É
preciso saber renunciar ao “ponto de vista” próprio, tanto ao falar como
em todo o comportar-se, em toda a atitude. Se se quiser fazer bom interro-
gatório, também se deve dizer o menos possível, deixando que o doente
fale. Enquanto se conversa, dá-se atenção à conduta e aos gestos do paci-
ente: às muitas manifestações expressivas, ao tom da voz, a um sorriso, a
um olhar, a tudo quanto, inconscientemente, vem a formar nossa impres-
são. Utiliza-se a primeira impressão que se teve no encontro com o indiví-
duo, alguma coisa que nunca mais se repetirá, alguma coisa que é repen-
tina, única; que, às vezes, nos dá uma sensação só mais tarde confirmada.
A psicanálise procura enriquecer os resultados pelo relato de sonhos e
pela livre-associação, observando-se todas- as manifestações expressivas
simultâneas.
O trato com indivíduos mentalmente anormais tem de ser aprendido.
Ao começar um exame, o médico evitará tudo quanto- possa inspirar aver-
são ou repulsa ao paciente. Usar-se-á de amabilidade neutra, ouvir-se-á
com atenção, ajudar-se-á o paciente nalguns cursos de ideias e julgamen-
tos, sem deixar que interfiram opiniões próprias; não se rejeitará como
sem importância coisa alguma que o doente considere relevante. Os valo-
res que o médico- possuir serão inteiramente postos de lado.
Além dos métodos da conversa simples, que têm o mais alto- signifi-
cado, assumem importância especial diversos meios auxiliares. Procura-se
formar material objetivo pela anamnese dos familiares e do ambiente; tam-
bém se procura obter biografia confiável com base em documentos de toda
sorte e testemunhos. Ê ainda muito valioso; às vezes, o exame de cartas,
autobiografias e outros- produtos dos doentes. Se estes têm disposição e
capacidade, pede-se-lhes que descrevam por escrito suas vivências psicóti-
cas. Para complementar os resultados da conversa, serve o teste de inteli-
gência segundo determinado esquema: descrição de figuras, repetição' de
pequenas histórias etc. Em casos raros, aplicam-se experiências psicológi-
cas verdadeiras. O exame físico é, naturalmente, necessário em todos os
casos, embora seja raro levar a resultados essenciais para o julgamento da
doença psíquica; por exemplo, quando há distúrbios cerebrais orgânicos
ou psicoses sintomáticas.
c) Os objetivos do exame. Mediante dados objetivos e, bem assim,
narrativas dos pacientes, procuramos formar biografia completa do ho-
mem total, com referências psíquicas, sociológicas, somáticas; também
procuramos obter conhecimentos dos conteúdos de seu psiquismo. Sem
levar o doente a que se auto-observe, sem fazê-lo, em geral, pensar em si
nem em sua psique, esforçamo-nos por que a conversa se oriente de tal
modo que se fiquem sabendo suas ideias, seus conceitos, suas convicções,
suas maneiras de ver a situação relativamente ao meio em que vive. Sem-
pre se busca, aquilo que é essencial sob qualquer aspecto psicopatológico;
por exemplo, aquilo que indica perseguição, prejuízo. Todo pormenor que
talvez pareça insignificante ao doente e que este só produz acessoriamente
pode vir a ser, uma vez ou. outra, ponto de partida para a inquirição cor-
reta.
A biografia e os conteúdos são o que o principiante costuma investigar
espontaneamente. Sabemos que ainda nos falta, talvez, a metade mais im-
portante do exame. Para conseguir clareza fenomenológica, temos de ori-
entar os pacientes, na medida em que sejam capazes, para a forma de
suas vivências psíquicas; conduzi-los à auto-observação, a fim de saber al-
guma coisa sobre as modalidades subjetivas de suas' vivências, não ape-
nas sobre os conteúdos destas. Estimula-se o doente a confrontar estados
vivencia- dos diversos. Utilizamos o juízo psicológico dos pacientes, que
são, a esta altura, os verdadeiros observadores; assim se obtêm dados, por
exemplo, sobre alucinações, vivências delirantes, anomalias da consciên-
cia da personalidade etc.
Só se atingem todos os objetivos até o momento descritos quando os
pacientes se acham relativamente lúcidos; eles têm de querer informar e
têm de poder fixar-se. Se a lucidez não for completa, defrontar-nos-á, é
claro, a tarefa que temos de cumprir, seja qual for o caso, em todo exame:
a descrição e a análise do estado momentâneo, do quadro de estado. O es-
tado de consciência, a atenção, o curso das ideias etc., tudo isso procura-
remos estabelecer por meio de perguntas adequadas, recursos experimen-
tais (por exemplo, mostrando figuras)1. Não serão raras as vezes em que
tenhamos de contentar-nos com o registro das manifestações espontâneas
dos pacientes e com a descrição do respectivo comportamento, quando
não logramos formar, em caso de psicoses agudas, um relacionamento
propriamente dito com o enfermo.
d) Pontos de vista sob os quais se ajuízam os resultados do exame.
Sempre indagamos se os dados fornecidos pelos doentes são corretos, se
são confiáveis. É frequente constatar serem falsos os dados que obtemos.
A desonestidade intencional, as deformações despercebidas da memória,
os recalques inadvertidos desempenham papel destacado, de maneira que,
sempre que possível, devemos controlar objetivamente os dados. Os ele-
mentos fenomenológicos sofrem com a incapacidade psicológica dos paci-
entes, com o escasso interesse que mostram; daí termos de renunciar, na
maioria dos casos, ao esclarecimento completo. A simulação de doença
mental é rara. Pelo contrário, os componentes simulatórios influem, sobre-
tudo, nas psicoses histéricas (por exemplo, nalgumas psicoses carcerárias
reativas); componentes que desaparecem com a evolução da psicose. Mais
frequente é a dissimulação, o oculta- mento de sintomas mórbidos: o pa-
ranoico crônico protege seu sistema delirante, porque sabe que todos o
consideram mórbido; o melancólico esconde o desespero profundo sob
aparência quieta, sorridente, a fim de parecer curado e conseguir ocasião
para o suicídio.
Quando se examina o doente, as perguntas sugestivas desempenham
papel especial. São as perguntas cujo conteúdo já encerra o que se quer
saber; perguntas, a que só se precisa responder “sim” ou “não” (por exem-
plo: “Às vezes, quando acorda, tem impressão de que foi despertado por al-
guém?”). Em sentido mais estrito, são perguntas nas quais já se sugere a
resposta “sim” ou “não” (por exemplo: “Tem dores de cabeça?”). Têm-se
proibido, formalmente, perguntas desta ordem. O que se tem aconselhado
é fazer apenas perguntas de ordem geral: Como é que o doente se sente,
que foi que vivenciou, como foi, o que aconteceu depois; de cada vez que o
paciente dê alguma coisa positiva, é só usando essas perguntas de ordem
geral que se deve estimulá-lo a que conte mais. Este é, certamente, em nu-
merosos casos, o único meio de exame cujos resultados se comprovem;
não em todos os casos, porém. Tal qual acontece em muitas outras situa-
ções, o correto, nesta, não está em evitar um instrumento perigoso, e sim
em utilizá-lo de acordo com o fim visado. Tem-se de saber utilizá-lo,
quando se fazem perguntas sugestivas, e têm-se de avaliar as respostas
criticamente. Todavia, quem quiser examinar sem perguntas sugestivas fi-
cará sabendo muito menos. Abstraído o caso em que se pretende investi-
gar diretamente a sugestionabilidade, é possível, em muitos casos (por
exemplo, com esquizofrênicos), indagar tranquilamente dos diversos fenô-
menos que ocorrem nas alucinações, do estado de consciência em geral,
dos sentimentos etc., sem precisar recear respostas sugeridas. Muitos do-
entes não são simplesmente sugestionáveis; e conforme o grau de sugesti-
onabilidade se há de usar de mais ou menos prudência. É claro que com
indivíduos pronunciadamente sugestionáveis, sobretudo os histéricos, se
evitarão quase por completo as perguntas sugestivas.
Ao final do. exame e valorando todos os resultados, procura-se chegar
ao diagnóstico de um grupo nosológico particular. Só a psiquiatria especial
poderá ensinar quais são aqui os numerosos elementos a considerar. Cita-
remos, exemplificativamente, um ponto geral, que desempenha papel
quando se diagnosticam processos incuráveis e que, sobretudo, diz res-
peito à técnica do exame.
Deixa-se que os doentes contem detalhadamente suas vicissitudes e vi-
vências, inquirem-se pontos obscuros, assim percorrendo a vida e, sobre-
tudo, os anos que fazem suspeitar de uma doença em incepção. Partici-
pando interna e compreensivamente, notam-se conexões sem nitidez, que
vêm, afinal, a fazer-se incompreensíveis. Anotam-se, confrontam-se umas
com as, outras, tornam-se- compreensíveis, mais adiante, ou acumulam-
se e acabam coincidindo a certas alturas. Ter-se-á, então, encontrado a
característica mais vívida e mais notável da doença mental propriamente
dita; característica que não se exibe em sintoma claro, mas que se apre-
ende a posteriori, de maneira impressionante, formando lacuna sensível
do entendimento. Mesmo que dessa “vivência da incompreensibilidade” já
resulte relativa segurança subjetiva de um “processo”, procurar-se-ão sin-
tomas elementares individuais que confirmem e comprovem; achar-se-ão
em quase todos os casos. Os. “processos silenciosos”, os processos assin-
tomáticos nunca permitem, segurança de diagnóstico correto.
Com base no exame, escrever-se-á a história clínica. Quanto ao modo
por que escrevê-la, variam muito as opiniões. O requisito geral é que se-
jam objetivas. Não se formularão juízos e conclusões vazias, nem catego-
rias esquemáticas, mas se reproduzirão os fatos de maneira vívida e con-
creta. Dá-se, entretanto, que qualquer descrição de certo indivíduo, para
ser completa, constituirá tarefa infindável e, pois, insolúvel; daí ter-se de
fazer seleção quando se descreve. Uma boa história clínica que se oriente
pela seleção correta nos fornece o caso individual concreto, no-lo esclarece
multilateralmente; as histórias clínicas mal feitas obrigam-nos, antes de
mais nada, a abstrair coisas dispensáveis, supérfluas, indiferentes, a eli-
minar o refugo das observações irrelevantes, a fim de formar a custo, com
o resto, qualquer quadro. Ora, a seleção, embora dependendo, em grande
parte, da arte pessoal, é favorecida pelo estudo consciente dos pontos de
vista psicopatológicos, uma vez que os médicos partilhem os mesmos con-
ceitos. Quanto mais claros os pontos de vista, mais será multilateral a his-
tória - clínica, ao passo que, obscuros aqueles, será fácil o psiquiatra
afundar em suas descrições e exposições, vindo, afinal, a escrever histó-
rias clínicas infindáveis, talvez menosprezando o que houver de mais es-
sencial, sob o aspecto psicopatológico. Uma boa história clínica há de ser
sempre longa, mas uma longa história nem sempre é boa. Além da prá-
tica, só há um meio de aprender a escrever histórias clínicas: o estudo
multilateral da psicopatologia científica. O psicopatologista mostra o que é
na história que redige. O que sabe, o que apreende, a forma por que reage,
o que inquire não lhe caracteriza só o entendimento, mas a própria índole.
§ 2. Das Tarefas Psicoterapêuticas
O objetivo do trabalho científico é, além de satisfazer a necessidade de
conhecimento, a aplicação prática dos resultados à melhoria dos recursos
com que alcançar nossas finalidades vitais. Daí se origina o impacto vio-
lento das ciências naturais, impacto que não deriva tanto do aprofunda-
mento conceituai, nem do acréscimo de nosso conhecimento quanto da
importância que têm seus resultados para podermos dominar a causali-
dade natural, quando visamos a objetivos práticos; seria bom conseguir
coisa idêntica com os estudos psicológicos e psicopatológicos. Na reali-
dade, porém, pouco é o que fazemos em confronto com as ciências natu-
rais. Conquanto os conhecimentos psicopatológicos constituam, real-
mente, um dos pré-requisitos da terapia psiquiátrica, não é só e preponde-
rantemente que esta, para fins didáticos, deriva de tais conhecimentos;
mas é, antes, uma parte que se serve da ciência como meio. A arte pode,
sim, ser desenvolvida e enriquecida; pode transmitir-se pelo contato pes-
soal; mas quanto a seus recursos técnicos é só em extensão restrita que se
pode apreender e aplicar identicamente.
Do êxito de uma terapia é de concluir-se que ela própria realizou o
efeito desejado; e, mais ainda: do efeito terapêutico se inferirá o tipo da do-
ença. Infelizmente, porém, ambas as conclusões são ilusórias.
Ensina a experiência que quase todos os recursos ajudam, durante
certo tempo, num sentido ou noutro. Aplica-se, em geral, o que Gruhle es-
tabelece, no tocante ao êxito curativo da trepanação na epilepsia essencial,
quando vê serem tão frequentes os resultados fatais quanto os favoráveis:
“Quando se abre o crânio, muitos epiléticos reagem bem, isto é, ra-
reiam os ataques e também melhora a vitalidade psíquica geral, que é,
muitas vezes, baixíssima. Mas foi a impaciência de certos operadores am-
biciosos que deu publicidade por demais precipitada a essas experiências.
Quer dizer, dentro de algum tempo, os ataques reapareceram, na grande
maioria dos casos. A mera trepanação — é fácil compreender — não re-
move a causa, mas diminui a irritabilidade e, pois, a disposição convul-
siva, naqueles casos em que as oscilações tensionais têm efeito especial...
Noutros casos, o efeito da trepanação é idêntico, apenas, ao de qualquer
outra operação; ou seja, é frequente observar que toda operação (por
exemplo, de apendicite) tem efeito favorável sobre a evolução da epilepsia.
Médicos experimentados sabem muito bem que mesmo em casos anti-
gos... de quando em quando, se pode determinar alívio essencial dos pade-
cimentos com qualquer intervenção.... com dieta hipossódica, puramente
vegetariana; com o tratamento vigoroso pela água fria; com uma purgação
forte durante uns cinco dias, uma sangria pesada, uma purgação associ-
ada a restrição alimentar etc.... mas só por breve período”.
Se se indagar por que é que quase se pode acreditar em êxitos- tera-
pêuticos arbitrários, várias respostas são possíveis: Tende-se, muitas ve-
zes, a acentuar os casos favoráveis e a esquecer os insucessos. Ocorrem
os efeitos quando uma doença, ou uma fase está, declinando, seja qual for
o caso. Não se pode sobre estimar a proporção em que atua a sugestão,
mesmo que nem médico, nem paciente nela pensem. Além dos belos efei-
tos terapêuticos que se podem repetir e calcular, porque se lhes conhece a
conexão, há os- efeitos terapêuticos baseados em golpes felizes, os quais
logram êxito uma vez, mas não se podem repetir identicamente. Isso re-
sulta do seguinte:
Nem sequer a conexão causai do evento biológico constitui efeito unili-
near, mas, sim, ocorre em processos circulares que se intrincam, que sub-
jazem a diretivas complicadas, mas que se edificam em estratos- e hierar-
quias, por assim dizer. Assemelham-se-lhes as conexões compreensíveis
do psiquismo, que se desenvolvem em polaridades e círculos. Em relação a
esse evento que nunca se visualiza no seu todo, é frequente comportarmo-
nos, terapeuticamente, apesar de todo nosso saber, tal qual amadores em
relação a um aparelho que não entendemos, realmente: tenta-se movi-
mentá-lo, nota-se um defeito, consegue-se resultado com um golpe feliz;
muitas vezes, após inúmeras manobras mal sucedidas; outras vezes, ao
primeiro instante. Assim também, quando se observa o indivíduo doente,
apreende-se, de súbito, uma perspectiva plena, de possibilidades, talvez
fundada em qualquer conhecimento, escapando, porém, ao cálculo que se
possa repetir exatamente. Afinal, não se pode dizer como foi, nem qual foi
o ponto decisivo que determinou o êxito. Nem uma vez se consegue repetir
a mesma coisa que já se fez. Observando criticamente, sente-se espanto
com o sucesso obtido, porque não se sabe como foi que se fez. Necessaria-
mente, faltam os testes controlativos. Na terapia desta ordem, todo saber é
influenciado por um instinto, que contém mais pressentimento do que sa-
ber consciente.
É, pois, extremamente ilusório utilizar o êxito terapêutico* como meio
de conhecimento; sobretudo, na psicoterapia. A sentença dos médicos an-
tigos de que não se devem formar conclusões com base em resultados feli-
zes tem validez tanto maior na psicoterapia. A pesquisa exige a considera-
ção desapaixonada do insucesso tanto- quanto do sucesso; o que é evi-
dente, na certa, em toda medicina. Na psicoterapia, entretanto, é de dese-
jar uma publicidade decisivamente mais clara do insucesso. É em demasia
que se leem julgamentos aproximativos e se veem, além dos casos brilhan-
tes, as estatísticas baseadas em categorias vagas; por exemplo, “melho-
rado” etc.
Daremos uma vista d’olhos à ação médica com base em alternativa trí-
plice: a ação visa ao indivíduo e sua cura (terapia propriamente dita); ou à
prole através das gerações (eugenia); a terapia é ou somática ou psíquica;
realiza-se voluntariamente (terapia consultorial, ou ambulatorial), ou em
instituições fechadas (terapia hospitalar).
a) Terapia e eugenia. Aquilo que o homem se toma é condicionado por
sua disposição ou constituição e por seu perimundo. O que depende do
perimundo no indivíduo sofre a influência da terapia; o que depende da
constituição sofre a influência da eugenia.
Quase tudo quanto é condicionado pela disposição precisa do peri-
mundo para realizar-se; por isto, a terapia estende-se à disposição na me-
dida em que esta depende do perimundo. É o caso, em certa extensão,
mesmo nas psicoses endógenas, conforme se vê pelos gêmeos univitelinos:
quando um deles é, por exemplo, esquizofrênico, o outro não se toma es-
quizofrênico, apesar disso, em pequeno número de casos. Tem de haver no
perimundo aquilo que exalta ou inibe uma disposição dessa ordem. Se se
pudesse distinguir uma coisa da outra, orientar-se-ia o tratamento de tal
maneira que não aparecesse disposição alguma indesejável; o que é ideal
utópico. Na realidade, a terapia vem a encontrar seu limite factualmente
intransponível no ser-assim do indivíduo particular, em sua disposição,
que é, em grande parte, patrimônio hereditário. Nas psicoses endógenas
graves, esse limite é tão insuperável que nele se baseia a desesperança es-
pecífica sempre a irromper na terapia das psicoses e a criar o niilismo te-
rapêutico. Embora nada se possa fazer, em inúmeros casos, pelos homens
nascidos com essa disposição, pode-se, contudo, pensar no que será de fa-
zer-se para que nasçam quanto menos possível homens assim. Foi Galton
quem projetou um programa no sentido de assegurar a substância heredi-
tária melhor possível das gerações futuras; programa que chamou “euge-
nia”. Se bem que apenas acessoriamente, Nietzsche já pensara nos médi-
cos como “benfeitores de toda sociedade”, porque “criadores de uma aris-
tocracia da mente e do corpo (pelo fato de promoverem ou impedirem ca-
samentos.)” Só o poder de Estado é que pode tomar medidas efetivas para
orientara a procriação: medidas segundo as quais os médicos teriam auto-
ridade para aplicar os resultados confiáveis da pesquisa genética; isto é,
para impedir que procriassem os portadores das piores disposições heredi-
tárias. Ê de presumir que isso nunca passe de tentativa: o dano daí resul-
tante será pior do que a vantagem conseguida.
Também é só pela intervenção do Estado que se logram medidas pre-
ventivas realmente eficazes e significativas na luta contra o álcool, as dro-
gas tóxicas (morfina, cocaína etc.) e a sífilis.
b) Tratamento somático. Há diferença de sentido entre a terapia so-
mática e a psíquica. Quando se tratam doenças somáticas, o objetivo é
claro: a recuperação no sentido biológico; os pontos de vista da medicina
somática não mudam, quer se pense num animal, quer no ente humano.
Mas assim que pretendemos atuar sobre a psique humana, o objetivo
deixa de ter a mesma clareza; e temos de indagar, conscientemente: Que é
que queremos obter, realmente, neste caso? — Mais ainda: os métodos de
tratamento somático utilizam conexões causais extraconscientes, a fim de
atuar sobre os fundamentos da vida psíquica e, por meio deles, sobre esta
mesma; os métodos de tratamento psíquico visam à psique, guiando-se
pelas conexões geneticamente compreensíveis e também podendo produ-
zir, indiretamente, modificações somáticas.
Na prática, é comum os dois métodos unificarem-se, porque' um acar-
reta o outro; mas é radical a diversidade de sentido.
Naturalmente, o médico trata, em primeiro lugar, as causas somáticas
dos distúrbios psíquicos, desde que lhe sejam conhecidas e acessíveis à
intervenção. Consideram-se, então, não só processos com sede no cérebro
e no sistema nervoso, mas também todas as queixas orgânicas e estados
somáticos gerais.
Selecionando exemplos de tratamento somático, mencionamos a epi-
lepsia, cujos ataques se atenuam com os brometos, o luminal etc.; a arte-
riosclerose cerebral, que se trata, a igual da arteriosclerose de outros ór-
gãos, com medidas higiênicas e dietéticas; a sífilis cerebral, que melhora
às vezes, essencialmente, com a terapia específica. As curas de engorda e
as medidas dietéticas com que se tratam indivíduos asténicos também
melhoram, certas vezes, o estado psíquico. Atenuam-se com os opiáceos
os estados de ansiedade; com escopolamina, os de excitação etc.
É extremamente difícil ajuizar, criticamente, o efeito do tratamento so-
mático.
Nos neuróticos, o tratamento somático não só é questionável neste
sentido, muitas vezes, como nem sequer é indiferente. Não é raro o perigo
de o médico sugerir ao paciente, sem querer, uma atenção desmesurada
para o corpo; daí não ser pouco frequente certos tratamentos meramente
somáticos provocarem pioras de estados psicopáticos e neuróticos (“O mé-
dico como causa de doença”, “doença iatrogênica”).
Do máximo interesse foram, nos últimos tempos, os recentes métodos
somáticos de tratamento das psicoses graves. A paralisia geral, até então
incurável, pode ser detida e curada (com defeito) mediante a terapia da
inoculação da malária, introduzida por Wagner-Jauregg. Para diversos ou-
tros estados mórbidos tem-se mostrado útil a convulsoterapia (terapia pelo
choque): exemplo, o eletrochoque (Cerletti-Roma); que produz uma convul-
são com êxito terapêutico. Cura-se a esquizofrenia, assombrosamente,
usando o processo desenvolvido metódica e cuidadosamente que consiste
no choque pela insulina ou pelo cardiazol; ainda não são unívocas as pu-
blicações; sobretudo, quanto a efeitos que perdurem. As depressões circu-
lares curam-se com o choque cardiazólico. Na terapia da paralisia geral,
pode ser que as altas temperaturas do corpo destruam os espiroquetas da
sífilis, ou pode haver ação específica do plasmódio. Quanto ao efeito da
convulsoterapia, ainda é obscuro. O que se ousa tentar, hoje, em matéria
de meios radicais, vê-se na remoção cirúrgica, em casos de esquizofrenia,
de parte do lobo frontal, daí resultando aquietarem-se os doentes, alguns
trabalharem, outros apassivarem-se por fraqueza dos impulsos.
Digno de nota é o que diz Bonhoeffer, em seu estudo histórico das má-
quinas giratórias, curas revulsivas, queimaduras a ferro aquecido ao rubro
e muitos outros processos coercitivos aplicados terapeuticamente em prin-
cípios do século XIX. “Não duvidemos do efeito real desses tratamentos vi-
olentos. É provável que se tratasse de efeitos convulsivos semelhantes aos
que ora se conseguem por via medicamentosa com a insulina e o cardi-
azol”. Bonhoeffer considera os psiquiatras de então tão hábeis e críticos
quanto os atuais; e acha que esses métodos se baseavam na desesperança
relativamente aos doentes agitados e às condições insuficientes de inter-
namento; tais métodos representariam tentativas “de harmonizar métodos
medievais de compulsão e castigo com a consideração médica e humana
que pouco a pouco progredia”; seriam “medidas coercitivas tomadas den-
tro de uma atitude fundamental humana”. — Daí resulta que a desespe-
rança da psicoterapia atual, na era da quimioterapia, tenta ao máximo ver
o que se pode obter, dentro de configuração diferente. — Boss rastreia
através dos tempos dois princípios básicos da terapia das psicoses: ou a
energia, os estímulos positivos, a sedução da vida, o embelezamento do
ambiente; ou então: intervenções drásticas, o apavoramento até a beira da
morte, métodos que ameaçavam a vida, tentativas de sufocação, submer-
são a ponto de pôr em perigo a vida, torturas-chibatadas, escaldamentos,
esfomeamento, purgações, provocação de vômitos. Na última série dos mé-
todos com os quais se espera intensificar tanto mais “o instinto de conser-
vação dos pacientes” quanto mais se ameaça o organismo, Bonhoeffer ali-
nha o choque insulínico.
São escassos os meios de que dispomos para tratamentos somáticos
curativos eficazes, visto não sabermos coisa alguma a respeito de causas
somáticas decisivas, na imensa maioria das anormalidades e doenças
mentais.
c) Psicoterapia. Chama-se psicoterapia todos os métodos de trata-
mento que atuam sobre a psique ou o soma, usando de recursos dirigidos
à psique e sempre requerendo a cooperação da vontade dos pacientes. O
campo da psicoterapia estende-se à grande massa dos psicopatas e dos
doentes mentais ligeiros; a todos os indivíduos que se sentem enfermos e
que sofrem com seus estados psíquicos; quase sempre também às doen-
ças somáticas a que é tão frequente se sobreporem sintomas nervosos em
relação às quais a personalidade tem de assumir uma atitude interna. Em
todos estes casos, dispomos dos seguintes modos de influenciamento psí-
quico:
1. Métodos de sugestão. Sem apelar para a personalidade do doente,
utilizamos os mecanismos da sugestão a fim de produzir certos efeitos
concretos: eliminação de sintomas particulares e sequelas somáticas, me-
lhora do sono etc. Em estado hipnótico, ou em vigília, fazemos o paciente
acessível à sugestão e convencemo-lo daquilo que queremos obter. Tudo
depende da vivacidade e intensidade das ideias a que se estimula o do-
ente; bem como da compulsão vital exercida pelo médico. A fé do paciente
ajuda e resultados reais não tardam a alcançar-se.
Incluem-se no influenciamento sugestivo, embora muitas vezes sem
que médico nem paciente saibam, grande número de medidas medica-
mentosas, eletro-terapêuticas e outras com as quais, de há muito, se ob-
têm resultados brilhantes em pacientes psíquicos e nervosos. É ' indife-
rente prescrever água com açúcar, água colorida de azul, pílulas tônicas;
fazer, realmente, passar uma corrente elétrica pelo corpo, ou apenas apa-
rentar a manobra, mediante aparelhagem complicada. O paciente tem de
estar convencido da significação da medida; é só o que importa. Tem de
acreditar no poder da ciência, ou na capacidade e saber da personalidade
médica forte, autoritária.
2. Métodos catárticos. Na medida em que os pacientes sofrem do pós-
efeito de suas vivências e na medida em que seus sintomas particulares
são manifestações desse pós-efeito, os afetos que dão origem às queixas
têm de ser trazidos, de uma maneira ou de outra, à “abreação”. Breuer e
Freud desenvolveram esse tratamento psicanalítico, dele fazendo um mé-
todo cuja elaboração posterior, feita por Freud, não precisa ser aceita, no
particular, se se reconhecer o princípio básico. Deixamos que os pacientes
falem, ajudamo-los a seguir o rumo certo, quando parecem calar alguma
coisa essencial, mostramo-nos compreensivos e damos-lhes a garantia de
que não os julgaremos moralmente. Tais “confissões” aliviam, muitas ve-
zes. Há casos individuais nos quais vivências inteiramente esquecidas
(cindidas) podem tornar-se conscientes; e nas quais cessa, desde logo,
certo sintoma anormal, somático ou psíquico. Frank elaborou um método
pelo qual, em meio-sono hipnótico, se despertam e se trazem à abreação
vivências esquecidas pelos pacientes.
3. Métodos de exercícios. Assim se chamam certas práticas pela repeti-
ção das quais o doente trabalha sobre si mesmo, de acordo com determi-
nadas prescrições, levando, indiretamente, a modificações desejadas da
atitude psíquica, além da aquisição de capacidades.
aa) Ginástica. Divulgam-se, hoje em dia, várias formas de exercícios fí-
sicos. Sobre o psiquismo inconsciente, sobre as atitudes involuntárias e os
estados internos atuam ou a vontade e a consciência — quase sempre -
com escassa força — ou o desempenho de certas atividades (ritos mágicos,
atos religiosos, solenidades etc.). Procuram-se produzir essas modificações
do psiquismo inconsciente mediante uma modalidade objetiva, ajustada à
descrença moderna, ou seja, mediante exercícios físicos. Pelo relaxamento
e afrouxamento, ou pela tensão e afirmação da corporeidade em que vive
uma alma, esta mesma também se modifica.
Para os ocidentais atormentados, em constante atividade, vivendo em
tensão exagerada, os exercícios relaxadores são da máxima importância.
Muitos terapeutas dão valor aos exercícios respiratórios: a respiração, na
inspiração e na expiração, é, por assim dizer, símbolo da aceitação do peri-
mundo e da irradiação nele; a prática respiratória consciente deve libertar
a psique, fazê-la confiar-se ao mundo.
bb) O treinamento autógeno, metodizado por J. H. Schultz, visa a um
efeito da vontade sobre a vida somática e psíquica do próprio indivíduo;
primeiro, pela comutação do estado de consciência; depois, pela autossu-
gestão no “autorrelaxamento concentrativo”.
4. Métodos de educação. Quanto mais o paciente se submete, por ne-
cessidade, à 'autoridade e direção do médico, tanto mais a relação médico-
paciente pode assumir o caráter de educação. Leva-se o paciente de seu
ambiente habitual para um hospital, balneário, sanatório. Certa disciplina
realiza-se, diretamente, graças a medidas orientadas por uma autoridade,
dando-se ao paciente regulamentação completa de seu modo de vida. Ele
tem de saber, hora por hora, o que há de fazer, cumprindo estritamente o
programa.
5. Métodos que se dirigem à própria personalidade. Quando a responsa-
bilidade pelo efeito do tratamento é colocada na personalidade do doente,
ele mesmo devendo tomar decisões finais, segundo julgue melhor, e sendo
direta sua atuação, o método é fundamentalmente diverso de todos até
agora expostos. Mais simples na forma, é, no entanto, humanamente fa-
lando, mais significativo do que todos acima mencionados; é o que menos
se sujeita a regras, dependendo de tato e nuanças.
aa) O médico comunica seu conhecimento psicopatológico, instrui o
paciente sobre o que, realmente, há com ele. Se o doente — por exemplo,
ciclotímico — se esclarece sobre o caráter fásico de suas queixas, serve-lhe
isso para livrar-se de falsos temores e serve-lhe para compreender a causa
extraconsciente de fenômenos que talvez o atormentem de modo exclusi-
vamente moral.
bb) O médico fundamenta e convence: atua sobre as valo- rações e
concepção do mundo que tem o paciente. Fala-se, então, em métodos de
persuasão.
cc) O médico dirige-se à vontade. Num caso, estimula o esforço de von-
tade; noutro, estimula a rejeição de um autodomínio mal colocado. O co-
nhecimento discriminativo entre os fenômenos que, em certa extensão,
são acessíveis ao autodomínio aqueles que não o são (por exemplo, mani-
festações obsessivas) é decisivo. Para o observador consciencioso, é obs-
curo, não poucas vezes, distinguir, de um lado, quando a vontade pode e
deve intervir e quando, de outro lado, essa intervenção piorará a situação,
seja de que modo for; caso em que o relaxamento talvez seja mais necessá-
rio.
Sabemos que nossa vida consciente mais não é, por assim dizer, que a
camada superior de um reino vasto e profundo do evento sub- e extra-
consciente. Influenciar essa vida psíquica inconsciente, conduzir seus efei-
tos, dar-lhes livre curso ou inibi-los — é nisso que consiste a autoeduca-
ção. Conforme o tipo de vida psíquica, fazem-se necessários métodos opos-
tos. De um lado, relativamente a inibições e influxos oriundos de princí-
pios de tipo convencional, hão de estimular-se o abandono ao inconsci-
ente, a capacidade de esperar, a obediência a instintos e sentimentos; hão
de desenvolver-se germes que cochilam no inconsciente. Ou ter-se-á, pelo
contrário, de educar a vontade de modo a criar inibições e recalques,
quanto certas - áreas do inconsciente se hajam ampliado a custo de ou-
tras e desequilibrado o indivíduo. Assim é que influenciamos, de um lado,
no sentido da atividade, do esforço; doutro, lado, no sentido do abandono,
da distensão, da confiança no inconsciente próprio.
Quase sempre o homem está colocado ante si mesmo, ante seu próprio
inconsciente. É raro um paciente estar identificado plenamente, por assim
dizer, com seu inconsciente, com seus instintos e sentimentos. O mais co-
mum é a personalidade achar-se em luta com seus próprios fundamentos.
A compreensão, no caso particular, deste antagonismo da personalidade
relativamente ao próprio inconsciente é indispensável quando se quer
exercer influenciamento claro. Não vêm ao psiquiatra aqueles indivíduos
cujo inconsciente se assinale pela regularidade, pela segurança, pela pu-
jança de sentimentos e impulsos emergentes; e que sabem estar em har-
monia com seu inconsciente; mas, sim, aqueles cujo inconsciente se acha
confuso, inseguro; que se encontram em luta com seu inconsciente, con-
sigo mesmos; que, por assim dizer, estão sentados em cima de um vulcão.
dd) O autoesclarecimento é requisito do comportamento inteligente e
eficaz para consigo mesmo. O médico quer ajudar o paciente a compreen-
der-se, caso no qual se fala em métodos analíticos; são, quando menos,
inócuos; muitas vezes, excitantes; por vezes, traumatizantes. Há ocasiões
em que se pergunta: Quem é que pode arriscar-se a iluminar a alma indi-
vidual até os seus fundamentos, se não tem segurança antecipada de que
o indivíduo ê capaz de não perder o equilíbrio, de viver de sua própria ori-
gem, quando libertado; ou de que, no caso de impotência humana, pode
dispor de meios providenciais benfazejos, oriundos de uma instância obje-
tiva, prontos para ajudá-lo?
Neste caso, sendo a razão filosófica que orienta, tudo depende da per-
sonalidade do psiquiatra e de sua visão do mundo. Daí resultam, porém,
dificuldades e conflitos tais que o médico individual tem de tomar decisões
apenas por força de convicções instintivas, e não com fundamentação ci-
entífica.
Já que relanceamos uma vista pelos métodos psicoterapêuticos, tente-
mos ainda uma consideração comparativa; primeiramente, quanto à ma-
neira por que se procura promover a cura pela modificação da situação vi-
tal.
O procedimento mais grosseiro e mais extenso é a mudança, de meio.
O doente é tirado do ambiente habitual, subtraído aos atritos e dificulda-
des cotidianos que se acumularam em seu mundo, exposto a novos estí-
mulos e impressões. Vê-se se adianta, de o paciente ganha forças e, de-
pois, melhora, pelo descanso e pela meditação, pela mudança e libertação
temporária do mundo que o atormenta. O médico não tem atuação interna
alguma.
A ergo terapia ou laborterapia coloca a psique e o soma em condições
vitais naturais — ao contrário da existência vazia, do abandono a si
mesmo — que ligam o doente ao mundo; as energias que o doente possui
hão de consertar, pela atividade, as funções transtornadas.
A assistência social, desde que realmente possível, modifica a situação
vital pela diminuição dos danos. Ajuda, além dela e quando não é possível,
o aconselhamento com referência à situação vital e ao comportamento de
todos os interessados.
Em segundo lugar compararemos a maneira por que os pacientes vi-
venciam os conteúdos, no trato com o psicoterapeuta. A simples tomada-
de-conhecimento, meditação e ponderação do que se disse não produz
efeito algum. Os conteúdos, interpretações, conceitos, finalidades têm de
ser vivenciados, sob pena de não atuarem. E isso ocorre de várias manei-
ras.
As ideias transformam-se, como se fossem imagens, em modo de pen-
sar vívidos; só assim atuam na sugestão vigil e na hipnose. Quem sugere
deve conseguir que tome forma aquilo que diz; que interesse à imaginação.
Os objetivos devem ser desejados. Alguma coisa compulsiva, irrejeitá-
vel, há de surgir na tendência a comportar-se de tal ou qual maneira. Isso
se dá pela solicitação impositiva, pelo comando coercitivo; eventualmente,
de modo grosseiro, pela ordem mais breve possível, pelo grito.
Deve-se crer nos símbolos como imagens arcaicas e tê-los presentes
como conteúdos. A satisfação específica que resulta da revelação da indivi-
dualidade real fortalece a base da consciência existencial; base esta que
modela a atitude interna e a disposição vital. O terapeuta transforma-se
em profeta de uma fé, quando segue esta via.
Quando se aconselha e se instrui o paciente sobre o conceito da reali-
dade, do mundo que o cerca e de si mesmo, é importante que seja ele
quem decide “sim” ou “não”. Não adianta saber; adianta, sim, ver as coisas
e querer dominá-las; haver reconhecimento e aceitação. É a responsabili-
dade que decide o que o indivíduo apropria e o que rejeita. Sua decisão
existencial é a origem derradeira de qualquer rumo vital. Nenhum psicote-
rapeuta verdadeiro é capaz de fazer isso. O mais que consegue é desenvol-
ver, na comunicação e mediante o intercâmbio da conversa, as possibili-
dades de que derivam oportunidades incalculáveis para o despertar do pa-
ciente.
Em Macbeth, o médico exprime simplesmente uma verdade rude.
Quando aquele, lhe pergunta pela rainha:
“Como vai a doente, doutor?”:
O Médico: Está menos enferma. Senhor,
Do que atormentada por fantasias densas,
Que o sossego lhe roubam.
Macbeth: Expulsa-as...
Não podes medicar um espírito que sofre?
Arrancar da memória um pesar arraigado?
Mágoas apagar escritas no cérebro?
E mediante qualquer doce antídoto
Fazer que se olvidem, varrer do seio abafado a substância venenosa
Que o coração oprime?
O Médico: Nesse caso, é o doente
Que tem de medicar a si mesmo...
d) Internação e tratamento hospitalar. Tendo em vista a grande
quantidade de doentes mentais em sentido estrito, o que se pretende não
é, propriamente, a cura racional, e sim a proteção do enfermo e da socie-
dade mediante o internamento e cuidados terapêuticos dentro das possibi-
lidades.
É comum dar-se o internamento contra a vontade dos doentes; aí, o
psiquiatra já assume posição diferente da dos outros médicos em relação
ao paciente. Pela ênfase consciente de seu ponto de vista puramente mé-
dico ante este, procurará o clínico reduzir ao mínimo a diferença. O doente
acha-se, porém, convencido, de que está sadio, em muitos casos; avesso,
pois, aos esforços psiquiátricos.
Fora do hospital, ponderar-se-ão, sobretudo, o risco de suicídio e a pe-
riculosidade social do paciente. Destes dois elementos, em primeiro lugar,
e, depois, das condições familiais, da possibilidade da prestação de cuida-
dos é que dependerá a decisão: o paciente fica em casa, ou é levado para
um hospital? O que lhe convém é um hospital fechado ou aberto? Se ficar
em casa, é necessário instruir e orientar os parentes.
No hospital, realizam-se os métodos somáticos de tratamento, cujo ob-
jetivo é a cura: o tratamento acima mencionado da paralisia geral, da es-
quizofrenia e também o tratamento das doenças orgânicas. Não é grande,
porém, a extensão das possibilidades curativas. Não sendo possível a cura
direta, o médico cria, indiretamente, condições quanto possível favoráveis;
não é raro esgotar-se-lhe a atividade em cuidados de solidariedade hu-
mana. As- medidas que toma podem classificar-se em dois grupos:
1. Já desde o internamento, o médico pensa na situação social do paci-
ente e reflete nos passos que há de dar para o bem dele e da família.
2. Nos estados agudos, principalmente quando há excitação, o médico
procura aliviar a situação do paciente com calmantes. O repouso prolon-
gado no leito, os diversos medicamentos, o banho- contínuo têm-se mos-
trado úteis. A eliminação de qualquer estímulo abranda os sintomas da
fase aguda. Mas não se demonstra aceleramento da cura com o uso des-
ses recursos indiretos. Frequentemente, no entanto, se reduzem as rea-
ções patológicas pela transferência para outro ambiente.
3. Nos estados crônicos das doenças mentais, a tarefa consiste em sal-
var o mais que for possível o psiquismo do paciente, desde que a influên-
cia ambiental o permita. Noutros tempos, quando apenas se trancavam e
acorrentavam os doentes, criavam-se estados demenciais dos mais graves,
alterações animalescas, estados caricaturais, os quais não ocorrem
quando se dá ao paciente lúcido oportunidade para confirmar suas res-
tantes funções psíquicas. Daí por que, modernamente e em larga medida,
se encaminham os doentes mentais para o trabalho; sobretudo, trabalho
agrícola e manual. Fundam-se colônias, nas quais se cria uma maneira de
viver suportável e também útil para aqueles estados terminais incapazes
de servir à vida social. Os doentes movimentam-se dentro dos limites de
suas possibilidades psíquicas; normalmente, a bem dizer, sem chegar
mais aos estados extremos que se observavam dantes e que compõem
para o leigo o quadro da loucura. “Não é na cura dos curáveis, mas nos
cuidados que elevam e estimulam a mente dispensados aos incuráveis que
está a mais bela característica dos frenocômios”, disse Schule. Atribui-se
ao trabalho, quanto é possível, importância destacada, a ponto de dizer-se:
O trabalho forma, pela fixação de objetivos, um sentimento de obrigação;
fortifica-o sentimento de si mesmo, conduz o impulso inquieto dos doentes
por vias tranquilas, estabelece as inibições necessárias e preserva do afun-
damento nos estados de ânimo mórbidos. (Nitzsche).
4. Klãsi elaborou e habilmente aplicou medidas especiais para fazer to-
mar acessíveis certos doentes que se isolavam, para resolver algumas obs-
tinações empedernidas e para modificar estados terminais aparentemente
impossíveis de mudanças. O que importa é levar ao doente alguma corsa
nova que o estimule. Foi assim que aquele psiquiatra conseguiu remover
bloqueios catatônicos por meio de situações surpreendentes. Teve bom
êxito com suas nercose contínua.
A psicoterapia intensiva não é possível nas doenças mentais em sen-
tido estrito. Temos de limitar-nos ao tratamento benévolo do paciente e às
artes exemplarmente desenvolvidas e expostas por Klãsi. Isto fazendo, é
importante saber que, nos psicóticos agudos, aparentemente inacessíveis,
fechados em si, existe, vez por outra, extraordinária sensibilidade e capaci-
dade de apreender nuanças; entretanto, há inúmeros outros casos nos
quais a indiferença dos pacientes é tão grande que vem a ser ilusório qual-
quer relacionamento psíquico com eles; falha qualquer tentativa de con-
tato amistoso. Nesses casos, seria ridícula a psicoterapia.
5. Questão frequentemente difícil é o momento da alta. Na esquizofre-
nia, acontece terem as altas precoces efeito surpreendentemente favorá-
vel;1 mas não se lhes pode prever o resultado. São especialmente perigo-
sas as melancolias que se curam; ao que parece, os doentes estão sadios,
apresentam aspecto propositadamente jovial, insistem pela alta, para se-
suicidarem assim que liberados.
6. Com os débeis mentais, psicopatas, abandonados ocupam- se a pe-
dagogia curativa e a educação assistencial. Os hospitais são por si um
mundo, possuindo “mentalidade”, ou “espírito”, que depende da atitude
dos diretores e médicos, bem como da tradição correspondente às ideias
básicas em vigor; o ambiente hospitalar cria um mundo. A ordem que nele
prevalece determina a figura que as doenças assumem. Há diferença mar-
cada entre os antigos hospitais rurais, aos quais um médico vinha de
quando em quando para controle, ficando os pacientes entregues a seu
mundo próprio, e os enormes frenocômios modernos, higiênicos, sim, mas
não proporcionando aos doentes, apesar de seu asseio, sequer um espaço
psíquico pessoal. Há diferença real entre os hospitais onde a massa dos
pacientes fica entregue à inatividade e aqueles que dão ocupação quase a
cada internado. Seria interessante uma descrição histórica concreta des-
ses mundos hospitalares; como também interessaria uma coleção de ob-
servações feitas pelos pacientes relativamente ao efeito que sobre eles o
hospital exerce.
Subsiste sempre o fato básico da coação. Tem-se de suprimir o risco
que oferecem os doentes violentos, agitados, furiosos. Antigamente, conse-
guia-se isso com grilhões e trancamento, além de outras medidas que lem-
bram mais torturas do que terapia. Embora se considere grande passo à
frente o fato de Pinel haver “libertado os doidos das correntes”, embora o
desenvolvimento do tratamento hospitalar, no século XIX, tenha, certa-
mente, eliminado quadros repulsivos, viram-se, no entanto, substituírem-
se às correntes as injeções de escopolamina e os banhos contínuos; nem
se suprimiram inteiramente as camas gradeadas e as células solitárias.
Jogou-se fora o velho acervo de instrumentos de tortura, modificou-se o
espírito do hospital; mas não se aboliu o princípio básico da coação.
O poema de uma paciente (encefalítica, 1924, relatado por M. Dorer
em 1939) dá ideia da atmosfera de uma clínica, numa secção moderna
destinada a agitados.
Lívido clarão irradia do teto,
Iluminando rostos pálidos, suarentos;
Espelha-se em luzidias maçanetas,
Tornando fantásticas as cortinas.
Frases soltas, murmúrios, gemidos,
Breves gritos, rugidos de furor, escárneos...
Dentre esse caos sinistro de vozes,
A voz que ainda pode consolar soa, às vezes, de uma enfermeira.
§ 3. O Prognóstico
Predizer o que acontecerá com um paciente é pràticamente importante.
Os circunstantes querem sabê-lo, é daí que partirá a orientação para a
conduta a tomar. Nem no mundo, nem na psiquiatria é possível predizer
de modo concreto e, ao mesmo tempo, seguro o que há de acontecer no
caso particular. Às vezes, contudo, somos capazes de fazer predições pràti-
camente importantes, com probabilidade preponderante a seu favor; pre-
dições estas que se baseiam nos conhecimentos da psiquiatria especial; e
que seriam tanto mais nítidas quanto mais dispuséssemos de casos análo-
gos possíveis de acompanhar biograficamente. Existem, entretanto, alguns
pontos de vista gerais para o prognóstico.
a) Perigo de vida. Em primeiro lugar, pergunta-se: O paciente sofre de
doença cerebral que se possa estabelecer, somaticamente, pelos sintomas
neurológicos? Neste caso, o prognóstico depende da doença somática. Na
paralisia geral, a morte sobrevém à doença a qualquer momento; em mé-
dia, após cinco anos do início; muitas vezes, antes disso; outras ainda, de-
corrido muito mais tempo. Hoje em dia, detém-se a paralisia geral pela
malarioterapia, conquanto não seja possível fazer retroagir certas lesões
destrutivas já evoluídas.
No caso de psicose sintomática, o prognóstico depende também da do-
ença somática, da moléstia infecciosa, da intoxicação etc.
Tratando-se de psicoses agudas, admite-se, em geral, que a morte pode
nelas ocorrer quando existem doenças somáticas concomitantes; princi-
palmente, cardiopatias. Os esforços dos estados de excitação, a piora de
queixas somáticas resultante dos estados depressivos relacionam-se com
a situação. A morte resulta, às vezes, da própria psicose aguda (no grupo
da esquizofrenia). À dissecção, causa alguma se encontra; ou se encontra,
por exemplo, edema cerebral; ou se terá observado antes emagrecimento
excessivo.
Em todos os estados melancólicos, o prognóstico é determinado pelo
perigo de suicídio; perigo que só o tratamento hospitalar consciencioso
pode suprimir.
b) Curável ou incurável. Quando o prognóstico não implica o êxito le-
tal em consequência da moléstia, ter-se-á de saber se o paciente se curará,
ou se é incurável; ou se são de esperar as recidivas.
Entre as doenças não-neurológicas, distinguem-se os grandes círculos
dos processos e das psicoses maníaco-depressivas. Os processos são, por
sua essência, incuráveis; o estado anterior nunca se restabelece, por mais
que as manifestações agudas retrocedam; sempre subsiste um resíduo de
alteração permanente. As psicoses maníaco-depressivas são curáveis, em
princípio; a personalidade anterior pode restabelecer-se. Pràticamente, po-
rém, esta distinção implica muito pouco, no caso individual, com relação à
direção do curso da doença. Certos esquizofrênicos restabelecem-se, algu-
mas vezes, de tal maneira que se podem considerar pràticamente sadios,
mesmo após psicoses agudas muito graves; pelo contrário, pode acontecer
que doentes maníaco-depressivos fiquem — e não é raro — tão mal que
não se recuperem, necessitando hospitalização longa. Bleuler distinguiu,
por isso — e com muito acerto — o prognóstico de direção e o prognóstico
de extensão. Embora possamos presumir a que direção o curso da doença
tende, não podemos dizer até que ponto ele irá nessa direção, nem com
que rapidez prosseguirá. A psiquiatria kraepeliniana cometeu, no passado,
o erro prático de conceber logo o prognóstico de direção por forma tão de-
sesperançada que levou a surpresas quanto ao curso real da doença; erro
que vinha a ser maior ainda, quando, num caso, por exemplo, de cicloti-
mia benigna, se diagnosticava uma hebefrenia.
A duração das psicoses agudas de alguns meses a metade de um ano é
habitual; frequente até um ano. Quanto mais se prolonga a psicose, pior o
prognóstico. Há casos, entretanto, em que os doentes se restabelecem ape-
sar da longa duração do estado mórbido. Chama a atenção o fato de as
melancolias involutivas ainda poderem curar-se após dez anos, segundo
as pesquisas de Dreyfus. Em certos casos, há curas tardias surpreenden-
tes; por vezes, no climatério; por vezes, ligadas a doenças somáticas graves
(erisipela e outras infecções de todos os tipos).
Para o prognóstico do curso da esquizofrenia, há uma série de indica-
ções particulares. Tem validez quanto às psicoses agudas o dito: Quando o
peso corpóreo aumenta regularmente e quando, nas mulheres, a menstru-
ação se reinstaura, sem que se apresente melhora considerável do com-
portamento psíquico, significa isso transição para um estado crônico incu-
rável.
Mauz estabeleceu uma série de fatos impressionantes quanto ao prog-
nóstico. Chamou “catástrofe esquizofrênica” a desintegração grave defini-
tiva dentro de dois a três anos após a irrupção da doença; desintegração
que só ocorre em 15% dos internamentos esquizofrênicos; quase exclusi-
vamente, na idade de 16 a 25 anos. O tipo de estrutura corpórea pícnico
exclui essa desintegração catastrófica; o astênico reforça a possibilidade
respectiva. Quase todas as demências graves aparecem, ao mais tardar,
três a quatro anos após a irrupção da doença (98%). A desintegração defi-
nitiva dá-se quase sempre com o terceiro broto. Se não se der após o ter-
ceiro broto, quase não será de esperar a demenciação grave. BRINER en-
controu a perspectiva melhor de boa remissão nos catatônicos agitados
(um terço, porém, morre no ataque agudo); a perspectiva pior, nos casos
de paranoia.
Para o prognóstico da histeria e das neuroses, a probabilidade de me-
lhora existe na idade avançada. KRAEPELIN enumera da seguinte ma-
neira a idade de seus histéricos, no começo do tratamento:

Daí resulta que só poucos começam a tratar-se na idade mais avan-


çada. Como os histéricos quase sempre tornam à vida comum, Kraepelin
deduz que os distúrbios respectivos se ajustam, em larga extensão, na
idade mais madura; seja como for, é só em pequena escala que ainda exi-
gem tratamento frenocomial.
§ 4. História da Psicopatologia como Ciência
Não é na história da assistência psiquiátrica e dos hospitais; nem
ainda na prática médica que vamos falar — mas, sim, na história da ciên-
cia psiquiátrica, das formações conceituais e dos rumos investigativos que
visaram ao conhecimento da realidade psíquica, sem preocupação com as
necessidades práticas.
Nas ciências naturais, os trabalhos de tempos passados têm interesse
quase puramente histórico. Estão superados; com eles nada mais se
aprende. Nas ciências humanas, os trabalhos mais importantes têm, além
do valor puramente histórico, um valor permanente, que não se pode su-
perar. Dentro da psiquiatria, vamos ‘encontrar de forma menos nítida o
contraste quanto à importância que tem a história da ciência para a ciên-
cia contemporânea.
Enquanto se refere à ciência das doenças cerebrais, à anatomia, às pa-
ralisias, a história da psiquiatria constitui mera história, interessando
apenas aos amadores. Mas quando se ocupa com a evolução da psicopato-
logia propriamente dita, quando descobre as teorias que, outrora, existiam
de referência à fenomenologia, às conexões compreensíveis, aos caracteres
típicos, às formas fenomênicas objetivas da loucura etc., a história da psi-
quiatria pode oferecer alguma coisa permanentemente significativa. Diver-
samente de quem pesquisa na medicina somática, o psicopatologista não
pode deixar de estudar as produções mais importantes do passado; e o
fará, muitas vezes, com a consciência de estar aprendendo o que não se
acha em livro algum dos mais recentes, ou, pelo menos, exposto de melhor
maneira; estará, então, vendo que vale mais a pena ler o psiquiatra emi-
nente do que a bibliografia em geral. Considerar a história sob este as-
pecto e — tanto quanto podemos conhecê-la — apresentar as melhores
obras dos antigos psiquiatras é ao que visa o retrospecto aqui tentado, que
subsiste incompleto quanto ao mais.
Até fins do século XVIII, a psiquiatria tem interesse quase apenas his-
tórico, ou filosófico, constituindo parte da história da medicina. O século
XVIII já produz uma quantidade de obras; a quase todas, no entanto, são
precursoras, conquanto já mostrem conhecimento surpreendentemente
grande.
É digno de nota o fato de os doentes mentais, através de milênios de
alta civilização intelectual e no contexto de todo adoeci- mento espiritual,
não haverem constituído nem problema específico- para o conhecimento,
nem tarefa com que a prática médica se haja ocupado de maneira metó-
dica. Adotaram-se medidas relativamente a distúrbios mais sérios, bem
como uma terapia do caso individual, sem apreender as questões no todo.
É só de dois séculos para cá que a realidade das doenças mentais — esse
limite do existir humano — se apreende em sua gravidade; realidade ora
reconhecida metodicamente por forma que excede de muito e em muitos
aspectos todas aquelas vigorantes no passado; percebida em seu signifi-
cado filosófico para a concepção do mundo; e apresentada concretamente,
na multiplicidade de fatos impressionantes.
a) Prática médica e conhecimento. Quase todos os conhecimentos
da psicopatologia partiram da prática. O que se vê e se faz na clínica psi-
quiátrica, na atividade psicoterapêutica, nos consultórios médicos — não é
o que fornece, decerto, o material inteiro de nosso conhecimento a respeito
do indivíduo anormal. Mas é aí que se concretizam e verificam todos os co-
nhecimentos essenciais. As situações em que ocorre uma realidade e os
fins objetivos a que se visa, quando elas são tratadas, bem como as tarefas
que se propõem condicionam a possibilidade do conhecimento. As concep-
ções gerais vigentes ao tempo dão a moldura e, bem assim, os preconcei-
tos que impulsionam o conhecimento em certa direção e o limitam noutra.
Cada ciência caracteriza-se por sua sociologia própria, isto é, pela maneira
por que se realiza a pesquisa, segundo as condições sociais e os respecti-
vos objetivos. O caso é o mesmo, em larga medida, para a psicoterapia. O
desejo de proteger e ajudar levam à prática e nesta só é que se forma o co-
nhecimento. Instituições, hospitais, clínicas, certas tarefas subvenciona-
das produzem a ciência e a literatura científica, tanto imediatamente para
um fim particular quanto mediatamente, constituindo alicerce intelectual
da atividade autônoma. Basta ir a um congresso psiquiátrico para notar
quanto as tarefas relativas a profissão e status — certamente com razão —
ocupam o primeiro plano e despertam o interesse, se bem que os docu-
mentos tenham conteúdo puramente científico; e quanto a paixão autô-
noma do próprio conhecimento ocupa somente a poucos.
1. Psiquiatria hospitalar e psiquiatria universitária. Em séculos passa-
dos, os doentes mentais — somente enfermos graves, agitados perigosos
— foram internados junto com criminosos e vagabundos. O ponto de vista
puramente médico e o objetivo a que visava — a cura possível e a assistên-
cia humanitária — só veio a realizar-se por completo, na Europa, durante
o século passado, conquanto tenha havido precursores no século XVIII. O
princípio chegou a tal extremo que acabou tomando-se discutível e exi-
gindo delimitação: A absolutização do conhecimento médico-científico do
homem, que passou a constituir conhecimento do homem total, levou, por
forma gradual, a que se incluísse todo existir humano no campo dessa
avaliação; e levou a que se fosse cada vez mais alargando o círculo daque-
les que eram exculpados por motivo de exclusão da responsabilidade. Na
prática, jamais conseguiu a terapia constituir procedimento exclusivo: a
disciplina e a segurança continuaram a ser consideradas indispensáveis,
realmente. Mas foi apenas o princípio da concepção médica e da humani-
zação do tratamento psiquiátrico que conduziu à fundação dos hospitais
especializados; com o que, pôde prosseguir, metodicamente, a evolução da
ciência psiquiátrica.
Com o aspecto de psiquiatria hospitalar desenvolveu-se nossa ciência
durante o século XIX, fomentada pelos mais eminentes médicos; fato esse
que dá à maioria das personalidades psiquiátricas dos primeiros dois ter-
ços do século certo colorido comum, apesar de todas as diversidades filo-
sóficas. Em todos os escritos deles se nota certo humanitarismo, dando,
às vezes, impressão de sentimentalismo; certa acentuação da tarefa assis-
tencial, curativa e, de quando em quando, uma dignidade pastoral; de par,
entretanto, com eficiência robusta no trato das dificuldades da psiquiatria
e da administração hospitalar. Esses psiquiatras que, longe do convívio
social, viviam, em comum com seus pacientes, possuíam certo nível geral
de formação intelectual, sem, todavia, profundidade verdadeira. Aderiam
de bom grado a ideias e conceitos dos filósofos e psicólogos, elaborando-os
na psiquiatria de forma obscura; do que resultaram pontos de vista vagos,
sim, mas grandiosos, além de grande experiência, embora desordenada.
Essa psiquiatria hospitalar acabou com a escola de Illenauer (Schule, Kra-
fft-Ebing). A partir daí, deixou de existir qualquer rumo cientificamente
próprio nas publicações hospitalares, exclusão feita, talvez, de umas tan-
tas personalidades conhecidas apenas em círculos estreitos. No correr do
século XIX, o trabalho psiquiátrico científico foi produzido, pelos médicos,
de forma crescente, nas universidades e respectivas clínicas, o que veio
dar à ciência colorido novo. Preponderantemente fomentada por homens
que já não viviam de manhã à noite com seus doentes, entrou nos labora-
tórios, quer de anatomia cerebral, quer de psicopatologia experimental,
tornando-se mais fria, detalhada, impessoal, inculta, perdendo-se em nu-
merosas particularidades, mensurações, enumerações, achados, despo-
jando-se do que tinha de plástico e configurado. Subsistiram, no entanto,
certas vantagens: a saber, que se tornou ciência mais pura; que se enca-
minhou, em muitos setores, para uma evolução contínua; e que se am-
pliou extraordinariamente o campo da pesquisa. Ao passo que a psiquia-
tria de há cem anos se preocupava, havia séculos, essencialmente, apenas
com idiotas, dementes graves e loucos, a psiquiatria subsequente de tal
modo estendeu o campo da vida psíquica, por ela estudado, que, no mo-
mento atual, inclui em suas tarefas investigativas até as variações indivi-
duais da personalidade humana. A psiquiatria ultrapassou os estabeleci-
mentos fechados, passando para os consultórios médicos e pretendendo
cooperar com trabalhos valiosos até em problemas sociológicos. Corres-
pondendo a essa extensão do setor da pesquisa, também se alargaram as
relações com outras ciências. Dantes, a psicopatologia restringia-se, so-
bretudo, a pesquisas puramente médicas; interessava-se pelo cérebro e
gânglios abdominais; dava-se paralelamente a especulações estéreis, influ-
enciadas por ideias metafísico-filosóficas: nos últimos tempos, pelo contrá-
rio, as relações com as pesquisas psicológicas ampliaram-se. De início, era
quase só à psicologia experimental que se prestava atenção. Desde o co-
meço do século XX, iniciaram-se as experiências no sentido de garantir à
psicologia não só essa influência limitada, mas também outra que atin-
gisse multilateralmente a psiquiatria. As relações sociológicas começaram
a tornar-se mais vivas nas pesquisas criminalísticas; e continuam ainda a
ampliar-se. — Não se pode dizer o que advirá, futuramente, dessas modifi-
cações revolucionárias da ciência psiquiátrica, com base nas relações en-
tre a psiquiatria universitária e a psiquiatria hospitalar. Os próprios hospi-
tais têm-se modificado extraordinariamente, com a emergência de proble-
mas administrativos e tarefas técnicas. De qualquer modo, a psiquiatria
hospitalar, conforme forem seus recursos e seu material, será chamada a
prestar trabalho científico cuja importância não levará desvantagem em
relação ao seu passado glorioso; só ela poderá formar, no convívio estreito,
regular, prolongado com os doentes, as personalidades capazes de forne-
cer, baseadas em sua rica observação, biografias mais sutilmente apura-
das dos pacientes; capazes também de desenvolver uma empatia que pe-
netre e apreenda mais fundamente as conexões psíquicas mórbidas.
2. Psicoterapia. Só com o desejo de ajudar é que se vê o que, real-
mente, existe, haja resistência, haja sucesso. O resultado é, decerto, mul-
tívoco e, por isso, não pode fundamentar qualquer conhecimento nítido
sem investigação mais séria. O sono no templo da antiguidade, no Egito,
na China, curava; como curavam a imposição das mãos e outras práticas
mágicas, no mundo inteiro. Mas o que se cura, como se dá a cura, quando
é que o procedimento falha — para responder a estas indagações é neces-
sária a pesquisa metódica, a qual só veio a ter êxito duradouro no século
XIX. A partir daí, muitos conhecimentos se devem à prática psicoterapêu-
tica.
No século XIX, houve um fenômeno que, retrospectivamente, ainda se
afigura grandioso e instrutivo: o desenvolvimento dos conhecimentos rela-
tivos ao hipnotismo, rejeitados, embora, por quase todos os eruditos. Com
o pressuposto errado da existência de um fluido, que devia transmitir-se
tal qual magnetismo animal, desenvolveu-se a teoria de Mesmer; teoria er-
rada, mas levando a efeitos curativos realmente grandes. Um discípulo de
Mesmer, Puységur, chamou o estado de sono provocado por passes mag-
néticos “sonambulismo” (1784). Faria descobriu que a simples fixação dos
olhos e a voz imperiosa de outra pessoa produziam esse sono (1819).
Braid reconheceu que o estado de sono então criado era semelhante ao
sono natural e achou que era de atribuir-se não a um fluido, mas ao can-
saço sensorial (1841); enfim, Liébault ensinou que o sono e a hipnose são
de essência semelhante e que a hipnose não era provocada nem por fluido
magnético algum, nem pelo cansaço sensorial, e sim pela sugestão. Char-
cot concebeu os estados hipnóticos como histeria artificial, ao passo que
Liébault e sua escola de Nancy os consideravam mecanismo comum a to-
dos os seres humanos. O hipnotismo tornou-se popular (se bem que a ci-
ência acadêmica continuasse a tê-lo como charlatanismo) nos anos 80,
quando b hipnotista dinamarquês Hansen apareceu em público. Foi com
Forel e outros que o hipnotismo veio a ganhar consideração científica. Os
achados fatuais a que levou têm sido, desde então, reconhecidos e enri-
quecidos.
Até hoje, a psicoterapia suscita ideias novas. De tempos remotos, man-
tém-se-lhe o traço próprio: a saber, procurar conhecimento científico, com
o desejo simultâneo de ajudar, mas sempre pendendo a ameaça da sedu-
ção do charlatanismo e do curandeirismo crédulo de profetas e milagrei-
ros. Até hoje, ela ensina fatos que a atitude médica mais atenta à terapia
somática se esquece de relacionar com a psique.
b) De Esquirol a Kraepelin (século XIX). A psiquiatria do século XIX,
que se prolongou até o século XX — “a velha psiquiatria” — afigura-se-
nos, hoje em dia, alguma coisa historicamente encerrada. Depois de ter
assentado o fundamento sobre o qual se firma, até o presente, toda a psi-
copatologia já não é mais, em seu todo, a nossa psiquiatria, porque certas
evidências comuns a todos os rumos daquela era deixaram de valer para
nós. Entretanto, no que diz respeito à imponência da visão geral e à quan-
tidade de descobertas empíricas, não temos, até hoje, nada que se- lhe
compare.
1. Esquirol. Nos primórdios do desenvolvimento contínuo’ da ciência
psiquiátrica, destaca-se a personalidade de Esquirol. cujos pontos de vista
e observações dominaram por muito tempo a psiquiatria. Em primeira li-
nha, narrador excelente, fino observador, homem que vivia com os doen-
tes, foi quem, além disso, colocou os fundamentos da estatística habitual
(idade, sexo, relações com as estações do ano, mortalidade etc.); também
descobriu uma série de regularidades que até hoje se aceitam: o curso da
psicose em remissões e intermissões, a importância do peso do corpo (di-
minuição do peso nas psicoses agudas, aumento na cura, prognóstico
mau quando o peso aumenta sem cura concomitante da doença psíquica).
Esquirol foi diretor do grande manicômio de Charenton, perto de Paris.
Vamos rever o desenvolvimento ulterior da psiquiatria não cronologica-
mente, mas expondo algumas tendências opostas e intersecionantes.
2. Narradores e analisadores. Através da história da psiquiatria, nota-
se o contraste avultado de duas tendências: uns tiram sua força da descri-
ção, ou narração; outros, da análise. Os que fazem descrições: Esquirol,
Griesinger, Kraepelin ajuntam-se sob este ponto de vista, da mesma forma
que se agrupam os analisadores: Spielmann, Nemmann, Wernecke. É
claro que não existe contraste absoluto entre os pesquisadores: Wernicke
também produziu excelentes descrições, como Kraepelin deu análises; não
obstante o que, o contraste das tendências subsiste. O narrador procura
comunicar ao leitor uma imagem vívida, concreta, servindo-se da lingua-
gem corriqueira, sem elaboração conceituai. Há em seu método alguma
coisa de artístico: trabalha com conceitos que lhe foram proveitosos, mas
que não podem ser levados adiante de maneira sistemática. Foi assim que
Hecker e Kahlbaum viram a hebefrenia; foi assim que Kraepelin deu o
quadro da personalidade histérica; e Bleuler, da esquizofrenia. O analisa-
dor não projeta quadro algum: pressupõe que se tenha a visão clara; mas
não quer essa visão geral, que se esmiuça em transições para todos os la-
dos; quer, sim, conceitos firmes dos fenômenos psíquicos anormais; quer
decompor o quadro e possibilitar, por este meio, a caracterização segura
do caso individual, além do reconhecimento e identificação exatos. Pensa
mais do que apenas vê e tudo quanto vê elabora, de imediato, mental-
mente. Mata o evento psíquico vivo, a fim de obter conceitos tão nítidos
quanto pedras esculpidas. Para conseguir isso, tudo quanto adquire é
base sobre a qual possa trabalhar metódica, sistematicamente. Depende, é
certo, de concepções, mas estas se conformam, para ele, em conexões sis-
temáticas, ao passo que o narrador, depois de apresentar a vida psíquica
conforme a vê, cria, sim, um quadro plástico, sem colocar, porém, base al-
guma que sirva para edificação ulterior. Daí não tardar a parar, enquanto
o analisador conserva sempre suas tarefas sistemáticas, sempre está inda-
gando mais. As descrições qualquer um pode compreender de imediato e
apreender com facilidade, enquanto as análises já exigem preparação pe-
nosa para serem compreendidas; sobretudo para quem nelas quer colabo-
rar. Daí o êxito amplo dos narradores e o insucesso dos analisadores. Na
história da psiquiatria, está sempre emergindo a necessidade de conceitos
claros. Quem os procura — e são a única fonte de pesquisa fecunda —
pratica de todos os lados, quando visa à análise metódica, psicologia e filo-
sofia. A incompreensão vulgar mostra-se na busca de uma terminologia
comum, constante, como se esta não fosse evidente e singela quando ape-
nas aquilo que se tem de nomear se apresenta claro à observação e ao ra-
ciocínio.
Entre os narradores estão muitos dentre os antigos psiquiatras hospi-
talares: Damerov, Jesen (pai e filho), Zeller e outros. O. mais brilhante, o
que mais sucesso teve foi o clínico Griesinger. Passando de leve pelos pro-
blemas verdadeiros, em exposição ágil e eloquente, dá, sobretudo, descri-
ções e produz apenas elucubrações breves, fáceis de apreender. São vívi-
dos, seus quadros totais, mas sem análises claras nem precisas. As pala-
vras servem-lhe de material com que edifica e anima suas concepções;
conceito firme algum se lhes associa. Os representantes mais importantes
da escola de Illenauer são Schule e von Krafft-Ebing (este último manteve-
se fiel à psiquiatria hospitalar, apesar de haver-se tornado professor uni-
versitário). Schule escreve com certo sentimento, o sentimento da cultura,
e o sentimento da personalidade curativa do médico. Sua linguagem ima-
ginosa é semeada de observações filosóficas. Agradam-lhe as palavras es-
trangeiras bem escolhidas e é frequente exprimir suas opiniões em símbo-
los conceituais complicados. Baseado em experiência extraordinária do
trato diário com os pacientes, sabe descrever os quadros sintomatológico
de um modo que resvala, muitas vezes, para o detalhamento; não só apre-
senta tipos, mas uma quantidade de nuanças, variações, transições. Kra-
fft-Ebing é mais sóbrio, mais ágil, partilhando as opiniões básicas de
Schule.
3. Somatistas e psicologistas. Outro contraste configura- se variada-
mente através de toda a história da psiquiatria: de um lado, houve abor-
dagem puramente médica, inteiramente firmada sobre o. corpóreo: de ou-
tro lado, atitude preponderantemente psicológica. Ambas as tendências
ainda eram, há cem anos, cheias de construções dogmáticas. O ponto de
vista médico edificou mitologias em torno da relação entre os fenômenos
psíquicos e certos processos somáticos imaginários; sobre o ponto de vista
psicológico pesava uma consideração filosófica, moralizante. Uma e outra
tendências foram-se purificando cada vez mais, à medida que se desenvol-
viam, dos seus acessórios construtivos e filosóficos; tanto quanto a descri-
ção e a análise, as atitudes somatistas mantêm-se, atualmente, lado a
lado.
Preso inteiramente a vínculos filosófico-metafísicos e teológicos, vemos
Heinroth, com sua teoria dos distúrbios mentais como resultantes do “pe-
cado”. Ideler “compreendeu” *a loucura por forma demasiado psicológica;
muitas vezes, de maneira trivial; concebeu a maior parte dos distúrbios
mentais como “paixões exuberantes”, às quais opôs parte menor, que seria
de etiologia somática. Spielmann tenta uma análise psicológica com base
na psicologia de Herbart. Nele os elementos construtivos já retrocedem um
pouco mais. Psicólogo arguto e crítico foi, enfim, Hagen, que encarou cer-
tos problemas com um êxito tal que alguns de seus ensaios ainda são fun-
damentais.
Quanto à abordagem somática — que pretendia, por exemplo, explicar
a melancolia a partir de distúrbios dos gânglios abdominais — passare-
mos; por ela de alto. O primeiro psiquiatra que fez do corpo, por forma crí-
tica e significativa, objeto principal de seu interesse foi Jakobi. Na sua opi-
nião — segundo a qual o processo cerebral, materialmente perceptível (e,
em todos os casos, presumido) é o “essencial” das doenças mentais — na
opinião de Jakobi, dizíamos, todos os processos psíquicos, todas as for-
mas de loucura, tipos de personalidade etc. são, apenas, “sintomas”; por
este modo de ver, não existe estado de loucura autônomo. Há, somente,
doenças cerebrais e de doenças cerebrais só temos conhecimentos reais
na medida em que se reconhecem como sintomas de moléstias do cérebro.
Porque sabia muito pouco deste último, Jakobi voltou suas observações,
principalmente, para todas as demais funções corpóreas, a que atribuiu
importância extraordinária, excessiva na gênese da loucura. O ponto de
vista somático foi, posteriormente, sustentado com veemência por Mey-
nert, cientista que nos enriqueceu os conhecimentos reais da estrutura do
cérebro, sobre ela, porém, criando uma construção fantástica da conexão
dos sintomas psicológicos com destruições de fibras, afluxo sanguíneo aos
vasos cerebrais etc. Pelas mesmas trilhas movem-se as teorias construti-
vas de Wemicke, teorias com as quais este cientista sobrecarregou suas
excelentes análises psicológicas. Em. nossos dias, tem-se esclarecido cada
vez mais que a pesquisa do cérebro segue seu rumo puramente empírico
próprio, pelo qual se rejeitam todas as construções desta ordem. A ques-
tão da relação entre alterações- cerebrais conhecidas e alterações psíqui-
cas, conhecidas (teoria da localização) é, atualmente, investigada de modo
meramente empírico, nos poucos setores em que é lícito formulá-la; mas
de maneira alguma constitui fundamento da psicologia científica.
4. Wernicke e Kraepelin. Há meio século, Emminghaus1 recapitulou e
conciliou os diversos rumos psiquiátricos e a quantidade dos fatos e opini-
ões até então encontrados. A Allgemeine Psychopathologie deste autor
ainda continua a ser o trabalho de referência mais útil a quem quiser ori-
entar-se a respeito da literatura passada. Com as exposições gerais de
Emminghaus, Schule e Krafft-Ebing, poderia parecer que a psicopatologia
atingira certa conclusão. A impressão é que, baseada, nelas, se introduzira
até certa mediocridade em muitos círculos da psiquiatria científica. As ca-
tegorias estabelecidas eram cômodas; e tudo quanto se observava podia-se
reduzir a elas.
O novo movimento intelectual partiu, de um lado, de Wernicke; de ou-
tro lado, de Kraepelin. Quando estes surgiram, o mundo psiquiátrico tra-
dicional fechou-se-lhes. Os movimentos novos parecem, de início, aos que
defendem os antigos pontos de vista constituir alterações meramente for-
mais do conhecimento já existente, com o acréscimo de argumentos insus-
tentáveis. Costumam-se eles dizer: O que aí é novo não é exato; o que é
exato não é novo. O rendimento produtivo que consiste em conceber
aquilo que se conhece de maneira mais profunda e mais conexa, sob no-
vos aspectos, dá-lhes a impressão de mero reagrupamento do que já se
sabe. A evolução ulterior inverteu, porém, a relação. As antigas aquisições
só se transmitem na forma pela qual Wernicke e Kraepelin as admitiram.
Um e outro impuseram-se; e o compêndio de Kraepelin tornou-se o mais
lido de todos os livros sobre psiquiatria. Suas concepções foram as primei-
ras a colocar o pensamento psiquiátrico em base comum. Um acaso (aci-
dente) pôs fim prematuro, infelizmente, à atividade de Wernicke, espírito
superior que poderia ter elevado a discussão psiquiátrica em geral a nível
mais alto. Desta forma, Kraepelin foi aumentando sua influência, de ano
para ano, sem adversário e sem correção equivalente; e estendendo-a a
quase todos os campos da psiquiatria.
Wernicke foi o criador de obra brilhantemente elaborada, talvez das
mais importantes da psiquiatria pela sua altitude intelectual. Sua estru-
tura básica tirou-a, é certo, da psicologia da associação e da teoria da afa-
sia, que enriqueceu com suas descobertas e estabeleceu sobre nova teoria
geral. No entanto, graças a uma visão originalmente pujante e analítica,
enriqueceu a psicopatologia com muitos conceitos, hoje incontroversos,
como a capacidade de fixação, a perplexidade, o delírio de explicação, as
ideias sobrevaloradas etc.; e com complexos sintomáticos nitidamente es-
truturados; como a presbiofrenia etc. O que diz é quase sempre original e
estimulante, preciso’ e desafiador.
Kraepelin sustentou com desusada energia a ideia, baseada em Kahl-
baum, da unidade nosológica; durante algum tempo, conseguiu fazer que
se lhe reconhecesse a validez. Foi ele quem estabeleceu um dos rumos
mais fecundos de investigação no estudo da biografia completa dos doen-
tes mentais. Seu mérito consistiu em introduzir, com base nos trabalhos
de Wundt, a psicologia experimental na psicopatologia; e, sobretudo, em
haver fundado a farmacopsicologia, bem como a pesquisa e análise da
“curva de trabalho”. O pensamento kraepeliniano básico manteve-se sem-
pre, porém, somático, pensamento que Kraepelin, como a maioria dos mé-
dicos, considera o único possível, em medicina; não só o primacial, mas o
absoluto. Nas discussões psicológicas de seu compêndio — parte delas ex-
celente — acertou, por assim dizer, sem querer: considerou-as buchas
provisórias, à espera de que a experimentação, a microscopia e o tubo de
ensaio tornassem tudo objetivamente investigável.
5. Figuras individuais independentes. O brilho das concepções psiquiá-
tricas gerais que tiveram eficácia histórica ligada à posição social impor-
tante e à atividade prolongada de seus criadores sempre se associa a cer-
tas prevenções. Como fatores corretivos, apontam-se, no desenvolvimento
científico, grandes individualidades, “outsiders”, que disseram, críticos in-
dependentes implacáveis, o que havia, realmente; e fizeram, de seu lado,
descobertas às vezes muito importantes. Neste sentido, a história da psi-
quiatria — à qual faltam, em geral, personalidades geniais, na qual são ra-
ras aquelas significativas — há de lembrar um homem que se manteve
fora da linha oficial de desenvolvimento — P. J. Mõbius; autêntico sábio,
com pontos de vista notáveis; observador dotado de capacidade psicológica
marcada, além de experiência neurológica saliente, Mõbius viu uma série
de tipos nosológicos (por exemplo, a acinesia algera), fomentou a teoria da
degeneração, criou a patografia. Sobretudo, no entanto, foi crítico honesto
e eficaz, que lutou contra a mitologia cerebral e contra a pseudo-exatidão,
inclinando-se, antes de mais nada, para o concreto e possuindo o senso
do que importa e do que não importa. Intelectualmente, tai- vez haja sido
chão, de quando em quando, devido ao sentimento- de segurança do mé-
dico realista que considera cientificamente objetivos mesmo seus juízos
valorativos de tipo subjetivo, restrito; como se percebe, por exemplo, em
sua patografia de Nietzsche.
6. A psiquiatria alemã e francesa. Falamos da psiquiatria alemã; da es-
trangeira, a que se lhe segue em importância é a francesa, essencialmente.
Talvez a melhor maneira de compreender a diferença entre a psiquiatria
alemã e a francesa consiste em voltar ao contraste entre os narradores e
os analisadores. Aqueles precisam ter mais intuição vívida, mais plastici-
dade artística; estes, mais intelecto penetrante, mais autorreflexão crítica.
É com estes pré-requisitos psicológicos que talvez se relacione, no tocante
aos dois rumos investigativos, o fato de os franceses haverem produzido
coisa mais fina na narração; e os alemães, coisa mais profunda na análise.
Como a psiquiatria descritiva, no entanto, prevaleceu largamente na Ale-
manha, daí resulta a grande significação histórica da psiquiatria francesa,
à qual muito deve a alemã. Esquirol assentou a base da psiquiatria descri-
tiva de maneira modelar. Dele derivam, direta ou indiretamente, as descri-
ções dos psiquiatras que vão de Griesinger a Kraeft-Ebing, e mesmo Krae-
pelin. Morel e Magnan apreenderam por forma menos precisa, conceitual-
mente falando, do que intuitiva a importância da hereditariedade e da de-
generação; viram os tipos de distúrbios mentais degenerativos e encontra-
ram, do mesmo passo, a diferença fundamental entre psicoses endógenas
e exógenas. A psiquiatria francesa mais recente alicerçou, de modo geral, a
psicopatologia das neuroses (histeria, psicastenia, neurastenia). Quem
mais brilhantemente a promoveu foi Janet.
Todos os trabalhos franceses exerceram influência na Alemanha; in-
fluência que, entretanto, sempre foi de natureza a estimular o trabalho
próprio. A descoberta originária dos aspectos novos é de atribuir-se aos
franceses; mas a autocrítica escassa que lhes é própria e lhes possibilita
desenvolver com mais facilidade pontos de vista gerais em criações literá-
rias fez suas obras ficarem sempre incompletas, no sentido científico. Os
alemães aderiram-lhes às ideias, limparam-nas de acessórios fantasistas,
aprofundaram os conceitos, realizaram pesquisas objetivamente fecundas.
Apesar de tudo, porém, continuaram devedores dos franceses pelas gran-
des revoluções que estes lhes apontaram.
Na preocupação com os conceitos, na minúcia da investigação paci-
ente, na coerência realista e no arrebatamento ideativo, os alemães deram
sua contribuição, A pureza metodológica de Jakobi, Spielmann, Neumann,
a argúcia analítica de Wernicke, a concepção kahlbaumiana sobre a uni-
dade nosológica não vieram da França, nem tiveram contrapartida nesse
país.
c) A psiquiatria moderna. Não se pode ver historicamente a cena
atual, mas pode-se sentir a profundidade da lenta revolução- que tem
ocorrido nos últimos decênios.
Entre uma época e outra, encontram-se homens eminentes, que, por-
tadores da tradição, se mostram, entretanto, especificamente modernos
pela imparcialidade e disposição a aceitar todas as possibilidades. Alta-
mente cultos e dotados de capacidade crítica apurada, representam, por
assim dizer, uma consciência sempre presente dos. tempos: promovem a
atitude científica, a adesão à experiência, sem. deixar, porém, de encorajar
o pensamento e a investigação próprios, sem privar de autonomia seus
discípulos. Lucidamente cépticos e, pois, tolerantes, nem por isso deixam
de entusiasmar-se pelos movimentos que recriam o todo. Possuem, enfim,
personalidade marcada; daí não terem sucessores. Em vez de meus pró-
prios mestres — Nissl e Welmanns — nomearei dois homens que me são,
pessoalmente, remotos.
Bonhoeffer, dotado de visão segura, inclinado ao empirismo' detalhado
e atento aos traços básicos essenciais, criou numerosos conhecimentos
novos; muitos dentre, seus trabalhos têm valor per- durativo (psicoses al-
coólicas, psicoses sintomáticas, esclarecimento do psicogenismo etc.). É
característico o fato de que jamais apresentou o setor total, como quase
todos os psiquiatras eminentes, mais antigos; seus trabalhos são impreg-
nados de humildade ante os enigmas de maior porte.
Gaupp, discípulo tanto de Wernicke quanto de Kraepelin, aberto desde
o início a todos os rumos da pesquisa, não é de conhecer-se apenas por
seus livros, mas por seus inúmeros artigos e críticas, com os quais acom-
panhou a marcha da psiquiatria durante quase meio século; a meu ver,
sua influência excede de muito aquela que de imediato se percebe. Sua
clareza e apuro estilísticos, sua crítica positiva, que apanha tudo quanto é
digno de consideração, foram benéficas. Seu pensamento atuou, em certa
medida, através de seus discípulos.
Não se pode ordenar de maneira unitária tudo quanto ocorreu, em ma-
téria de ciência, nos últimos quarenta anos. Por volta de 1900, começou a
sentir-se o efeito da psicanálise freudiana. As observações e tendências vá-
lidas que chamavam a atenção para o inconsciente e o subconsciente fo-
ram defendidas e promovidas por Bleuler, que, com sua penetração e pu-
reza críticas, salvou e incorporou à consciência geral da psiquiatria cientí-
fica o que havia de sustentável nas teorias de Freud.
Os grandes movimentos de pesquisa biológica (genética, endocrinolo-
gia) ampliaram o horizonte e conquistaram considerável quantidade de fa-
tos novos.
Desde o aparecimento de “Körperbau und Charakter”, de Kretschmer
(1921), remodelou-se o conceito da constituição humana".
Mas todas estas referências individuais, por mais importante que lhes
seja o conteúdo, não chegam a caracterizar suficientemente a era da psi-
quiatria moderna. Coisas novas se encontram, porém através de dispersão
extraordinária dos interesses, com fragmentação cada vez maior em de-
partamentos que pouco se interessam uns pelos outros. É no aspecto so-
mático e cérebro- patológico que se fazem as descobertas mais importan-
tes. Ao espírito antipsicológico, que cada vez mais avulta a partir daí, con-
trapõe-se uma reação enérgica -e, por sua vez, de quando em quando ex-
cessiva, no sentido de esforços psicológico-metafísicos. Não vigoram abso-
lutizações de sistemas teóricos amplos, mas vigoram, aqui e ali, absoluti-
zações de alguns pontos de vista e conteúdos cognitivos deles originados.
Desaparecem as personalidades eminentes dos pesquisadores cujas- esco-
las hajam marcado a ciência. É cada vez mais difícil manter-se em dia com
o aumento enorme da literatura em revistas e livros dos inúmeros autores;
como é cada vez mais difícil acompanhar essa atividade gigantesca, que
não chega a configurar um todo. Só a uma crítica escolada na produção
geral da psiquiatria antiga é que será possível descobrir o que há de boa
qualidade no fluxo da produção inculta.
Percebe-se a falta de uma visão geral que prevaleça (e que se poderia
impor dentro dos livros de texto) na contestabilidade da reedição do com-
pêndio de Kraepelin; sobretudo, no volume Allgemeine Psychiatrie de Joh.
Lange (1927). Apesar da melhor vontade e dos conhecimentos gerais que
possuímos, parece impossível inserir os novos movimentos psicopatológi-
cos na moldura do passado.
O que há de novo na situação são a imparcialidade e a amplitude hoje
possíveis. Pode-se abstrair qualquer teoria, qualquer ponto de vista; pode-
se experimentar ilimitadamente, sob qualquer ângulo. Luta-se contra o
passado, contra as evidências tradicionais; as pesquisas tornam-se ousa-
das e desinibidas, indo até as terapias surpreendentes, novas e eficazes,
da paralisia geral e da esquizofrenia. A falha que a situação apresenta,
pela ausência de visão global, é apenas característica negativa do que há
de positivo. Fundamental é a questão seguinte: surgirá nova visão global
dogmática, ou que é que aparecerá em seu lugar? O que pretendi, desde
1913, foi contribuir mediante sistematização metodológica.
d) Impulsos e formas do progresso científico. Tal qual as demais ci-
ências, a psicopatologia não progride a passos regulares. Não se instalam
automaticamente, em absoluto, as ideias. Por exemplo, Kant (em sua an-
tropologia) reconheceu a impossibilidade de explicar psicologicamente as
psicoses (o indivíduo teria “enlouquecido de amor”): seria erro imaginar
como adquirido aquilo que se herdou, “como se o próprio desgraçado ti-
vesse culpa”. Sem falar sequer nas confusões em que incorreram médicos
mais recentes, as próprias opiniões de Esquirol quanto à etiologia psíquica
constituem, de algum modo, retrocesso.
Faz-se aos saltos o progresso do conhecimento: de um momento para
outro, percebem-se novos campos de pesquisas e, dentro de tempo relati-
vamente curto, atinge-se um limite que, a princípio, não se ultrapassa. As-
sim é que as situações intelectuais em que os interessados julgam poder
dispor à vontade dos novos conhecimentos, bastando estender a mão, al-
ternam com outras situações em que tudo se suspende e outra coisa não
se faz senão repetir o que se sabe.
1. Impulsos e objetivos. O desejo da novidade em si, da originalidade, é
quase sempre infecundo. A novidade é dom que aparece de um momento
para o outro, oferecendo-se àquele que trabalha com tenacidade e contem-
pla, espontaneamente vivo, tudo que depara, “em que pensa sem cessar”.
Necessária, em primeiro lugar, é a apropriação da tradição, porque
ninguém jamais inicia, mas se exercita na confirmação reiterada do que já
se conhece; daí é que para a geração subsequente surge, sem querer, a
novidade, aquilo que só agora é possível. Essa apropriação da tradição há
de sempre ocorrer em extensão total, reconhecido que seja seu conteúdo
em material mórbido presente: é assim que se aprofunda e se amplia a
tradição, tal qual desperta a visão própria. O ajustamento com os cientis-
tas passados, como se estes fossem um presente único, leva o conheci-
mento total ao nível que só então lhe é possível alcançar.
Novidade real é a abertura de um mundo de fatos a que, até o mo-
mento, não se tinha acesso; é a invenção de um método aplicável e fe-
cundo. É máxima a ascensão quando esta trilha da descoberta é a pri-
meira que se percorre. O fato de realizar-se, então, uma sobrevaloração da
novidade é condição psicológica da investigação.
Da crítica resulta impulso ulterior: ou seja, aquele que consiste em
querer familiarizar-se com todas as possibilidades e com todos os fatos,
tradicionais e presentes. Procura-se o contato com todo saber em sua pe-
culiaridade; e procura-se compreender o conhecimento da respectiva espe-
cialidade dentro do contexto do conhecimento global. Dois objetivos são,
então, válidos: Quer-se possuir, conscientemente presente, em seus traços
fundamentais, o todo eventual da psicopatologia; isto é, quer-se a forma-
ção científica na profissão, e não apenas certa soma de conhecimentos.
Busca-se realizar, conscientemente, a. atitude filosófica básica, que funda-
menta e suporta o conhecimento. Aqui se inserem, entre outras coisas, o
conhecimento dos métodos, a discriminação do sentido das inquirições, a
informação sobre a relação entre o conhecimento e a prática e entre a prá-
tica e as motivações extracientíficas.
2. A origem dos movimentos científicos. As concepções básicas que têm
posto em novo movimento a ciência não costumam ser, em absoluto, cla-
ras, de início. Há uma confusão de métodos e temas, cujo intrincamento
talvez lhes condicione a força. Daí resulta uma relação multilateral entre a
concepção e os fatos até então sabidos. A aspiração total e mais a obscuri-
dade lógica e metodológica produzem um efeito de feitiço: é o caso da uni-
dade nosológica de Kraepelin, da teoria da esquizofrenia de Bleuler, da
psicanálise freudiana e da teoria kretschmeriana da constituição. Caracte-
riza-as e caracteriza a essência de nossas tentativas esclarecedoras o fato
de todas estas teorias aparecerem em várias passagens de nosso livro; e de
a respectiva totalidade haver precisado desmembrar-se em seus compo-
nentes lógicos.
Tudo quanto é criativo costuma ser absolutizante. Mas quem cria ex-
perimenta o entusiasmo, a fecundidade; a ruína, não. São só os sucesso-
res que pagam pelo entusiasmo; que se esvaziam, se tornam fanáticos, se
interessam pelo patrimônio e pela disputa em si mesmos; pelo poder que
se conquista com um saber de fácil aquisição.
Outro tipo de pesquisador é aquele que se mantém razoável, que deixa
o espaço livre. Pequeno pela força criativa, quando descobre conhecimen-
tos radicalmente novos e quando cria um movimento mental -vigoroso, é
capaz de formar a atmosfera em que prospera a criatividade. Sua capaci-
dade de ver o que é positivo, sua imparcialidade crítica, sua esquivança a
quaisquer absolutizações são alentadoras. E é estrito em relação à veraci-
dade e à condição humana; é a média que serve de padrão.
Ideal raro é o pesquisador criativo cuja capacidade de descobrir não
lhe paralisa a crítica, mas a exalta, porque suas próprias descobertas são
metódicas e porque seu saber o faz modesto no tocante ao significado do
que descobre. Pesquisador desta ordem foi Fr. Nissl, a quem devo não só a
oportunidade de ter podido ver como um pesquisador autêntico vive,
pensa, procede; mas também o fato de haver-me dado possibilidade de
trabalhar, embora avesso aos meus esforços; de ter-se interessado por
eles, se bem que apaixonadamente adverso; e de haver-se deixado em
parte convencer, além de não regatear-me consenso, quando eu obtinha
êxito. Em sua clínica, aprendi que nada há de mais importante para quem
se esforça por saber do que o espírito de um lugar, ou de uma casa.
Quando uns poucos homens interessados em discutir se reúnem constan-
temente, surge movimento real, desde que o chefe, pela seleção ou sorte,
encontre os indivíduos cujos padrões inabaláveis sejam o respeito natural,
o tato seguro, a honestidade; padrões que, não sendo estáveis, facilmente
se perdem, quer seja tirânica a direção da clínica, quer a discussão se es-
tabeleça em liberdade, de igual para igual.
3. Correntes científicas correspondentes à época. Quando se comparam
os compêndios do último meio-século, é espantoso ver que enorme mu-
dança podem sofrer as concepções gerais e a linguagem, dentro de tempo
relativamente curto. Mas, em meio a toda a confusão dos numerosos es-
forços, sempre há uma linguagem predominante — o que depende, em
parte, das concepções científicas em vigor e em parte da linguagem co-
mum à época e aos seus interesses (a maneira de descrever dificuldades
de vida e conflitos difere inteiramente de 1900 para 1930). Daí dever-se
distinguir, também na psicopatologia, o que é conhecimento real, perma-
nente, em sentido científico (conhecimento que tem de ser tanto compulsi-
vamente exato quanto essencial e importante); o que, pelo contrário, mais
não é do que maneira de falar variável com a moda (neste caso, a modifi-
cação do jargão vale por progresso do conhecimento e as formações ver-
bais valem por ideias novas); e o que constitui atitude básica na concepção
do homem e do mundo (na consciência filosófica). Parte dos esforços cien-
tíficos não resulta, em absoluto, de interesse pelo saber. A crença que os
contemporâneos têm na ciência é que vem a servir de padrão, quando
para o êxito na profissão médica também se exige comprovação pelo traba-
lho científico próprio. Para satisfazer essa necessidade sociológica, há indi-
víduos menos honestos que produzem trabalho científico puramente deco-
rativo.
4. Medicina e filosofia. Não se pode duvidar de que as ideias filosóficas
(e teológicas) vigorantes sempre hajam exercido influência modeladora so-
bre a ciência. Muitos psiquiatras da primeira metade do século XIX adota-
ram a filosofia natural de Schelling, com sua teoria da polaridade e da
analogia entre os órgãos e a psique; Spielmann inspirou-se em Herbart;
psiquiatras ulteriores sujeitaram-se à filosofia materialista e positivista.
Hoje em dia, toda a medicina percebe essa dependência ou relação. Lei-
brand expõe, historicamente, a teologia médica. Schumacher, em seus es-
tudos sobre a medicina da antiguidade, parte da seguinte posição: Cada
época da medicina tem sua maneira de pensar própria; e esta maneira de
pensar é determinada, parcialmente, pelo conteúdo, forma e expressão
das tendências filosóficas que vigoram a cada momento. — Só se pode
compreender a medicina de uma época se se reconhecer quanto é pene-
trada pelo cabedal espiritual filosófico.
Por mais verdadeira que seja esta posição para a concepção histórica,
nem por isso se deixa de acentuar, novamente, a autonomia da ciência por
si mesma em relação àquela posição. A medida real da investigação cientí-
fica há de ser o fato substancial válido e permanente. Podemos indagar até
que ponto os pressupostos filosóficos terão jamais levado a descobertas ou
as terão obstado; ainda mais: podemos indagar que épocas e tendências
se terão caracterizado pela dependência filosófica, em vista de descoberta
alguma se haver realizado com elas vigentes; enfim, com que extensão a
linguagem corrente de uma época, a discussão do que se haja aprendido
não-cientificamente, as maneiras de pensar e proceder terão estilo unitário
que as impregne; e até que ponto este foi determinado pelas grandes filo-
sofias ou nelas culminou. Não podemos evitar uma atitude filosófica bá-
sica em relação à ciência em geral; mas isto não implica que devamos ficar
parados numa filosofia. Certos conhecimentos, uma vez adquiridos, são
independentes de qualquer filosofia; e conhecimento científico só é aquilo
que, independente da filosofia, da opinião e da visão do mundo, vale para
todos, é geral e obrigatório. O importante, pois, é se existe na atitude filo-
sófica básica a vontade absoluta de saber, assim impelindo a que se sigam
as vias da ciência, ou se há filosofia que sujeite o saber a certas condições;
as quais inibirão ou. aniquilarão, infalivelmente, a marcha das descober-
tas científicas.
SUMÁRIO

PREFÁCIO ............................................................................................................................................................. 3
INTRODUÇÃO....................................................................................................................................................... 9
§ 1. Delimitação Da Psicopatologia Geral........................................................................................................ 9
a) Psiquiatria como profissão prática e psicopatologia como ciência.......................................................................... 9
b) Psicopatologia e psicologia ....................................................................................................................................... 11
c) Psicopatologia e medicina somática. ........................................................................................................................ 12
d) Metodologia, Filosofia. .............................................................................................................................................. 13
§ 2. Alguns Conceitos Fundamentais.............................................................................................................. 15
a) Homem e animal........................................................................................................................................................ 15
b) A objetivação da alma. .............................................................................................................................................. 18
c) A consciência e o inconsciente. ................................................................................................................................. 18
d) Mundo interior e mundo ambiente. ........................................................................................................................ 21
e) A diferenciação da vida psíquica............................................................................................................................... 23
f) Visão retrospectiva. .................................................................................................................................................... 26
§ 3. Preconceitos E Pressuposições................................................................................................................. 26
a) Preconceitos. .............................................................................................................................................................. 27
b) Pressuposições........................................................................................................................................................... 33
§ 4. Métodos .................................................................................................................................................... 35
a) Métodos técnicos. ..................................................................................................................................................... 36
b) Métodos lógico-concretos de apreensão e pesquisa. ............................................................................................ 39
c) Desvios lógico-formais inevitáveis, que constantemente têm de ser vencidos.................................................... 45
d) A dependência dos métodos psicopatológicos de outras ciências. ....................................................................... 52
e) Exigência impostas aos métodos; crítica metodológica e metodologias inadequadas. ...................................... 53
§ 5. A Tarefa De Uma Psicopatologia Geral E Sinopse Do Presente Livro. .................................................. 55
PARTE 1. OS FATOS PARTICULARES DA VIDA PSÍQUICA ................................................................................. 72
1.1. OS FENÔMENOS SUBJETIVOS DA VIDA PSÍQUICA MÓRBIDA (FENOMENOLOGIA) .................................. 74
SEÇÃO 1. FENÔMENO PARTICULARES DA VIDA PSÍQUICA ANORMAL. ............................................................ 77
a) A estruturação do contexto de relações dos fenômenos. ...................................................................................... 77
b) Forma e conteúdo dos fenômenos. ......................................................................................................................... 78
c) Transições entre os fenômenos. ............................................................................................................................... 79
d) A divisão dos grupos de fenômenos. ....................................................................................................................... 80
§ 1. Consciência Do Objeto.............................................................................................................................. 80
a) Anomalias da percepção. .......................................................................................................................................... 81
b) Caracteres anormais da percepção. ......................................................................................................................... 83
c) Divisão da percepção. ................................................................................................................................................ 85
d) Falsas-percepções...................................................................................................................................................... 86
e) Anomalias de representação; falsas-recordações................................................................................................... 99
f) Cognições corpóreas. ............................................................................................................................................... 103
§ 2. Vivência Do Espaço E Do Tempo. .......................................................................................................... 104
a) O espaço. .................................................................................................................................................................. 106
b) O tempo.................................................................................................................................................................... 108
c) O movimento............................................................................................................................................................ 115
§ 3. A Consciência Corpórea.......................................................................................................................... 116
a) Membros amputados. ............................................................................................................................................. 118
b) Distúrbios neurológicos........................................................................................................................................... 118
c) Sensações corpóreas, percepções da forma do corpo, alucinações dos sentidos corpóreos etc. .................... 119
d) Sósia. ......................................................................................................................................................................... 122
§ 4. Consciência Da Realidade E Ideias Delirantes. ..................................................................................... 123
a) O conceito de delírio................................................................................................................................................ 125
b) Vivência delirantes primárias.................................................................................................................................. 128
c) A incorrigibilidade. ................................................................................................................................................... 136
d) Elaboração delirante................................................................................................................................................ 139
e) Ideias delirantes autênticas e ideias deliroides. .................................................................................................... 139
f) O problema das ideias delirantes metafísicas. ....................................................................................................... 140
§ 5. Sentimentos E Estados De Ânimo .......................................................................................................... 141
a) Alterações dos sentimentos corpóreos.................................................................................................................. 144
b) Alteração dos sentimentos de energia e rendimento .......................................................................................... 145
c) Apatia ........................................................................................................................................................................ 145
d) O sentimento da falta de sentimento. ................................................................................................................... 146
e) Alteração da tonalidade afetiva na apreensão de objetos. .................................................................................. 146
f) Sentimentos sem objetos. ....................................................................................................................................... 148
g) Como nascem mundos de sentimentos sem objeto. ........................................................................................... 151
§ 6. Impulso, Instinto E Vontade. .................................................................................................................. 153
a) Ações impulsivas. ..................................................................................................................................................... 153
b) Consciência da inibição da vontade. ...................................................................................................................... 156
c) Consciência de impotência da vontade e sentimento de força. .......................................................................... 156
§ 7. Consciência Do Eu. .................................................................................................................................. 158
a) Atividade do eu. ....................................................................................................................................................... 159
b) Unidade do eu.......................................................................................................................................................... 163
c) Identidade do eu. ..................................................................................................................................................... 164
d) Consciência do eu em oposição ao exterior. ......................................................................................................... 165
e) Consciência de personalidade. ............................................................................................................................... 166
f) Personificações dissociadas (cindidas). ................................................................................................................... 168
§ 8. Fenômenos Reflexivos. ........................................................................................................................... 171
a) Vida psíquica elementar e vida psíquica mediada pelo pensamento.................................................................. 172
b) Distúrbios dos instintos e das funções orgânicas. ................................................................................................. 173
c) Fenômenos compulsivos. ........................................................................................................................................ 174
SEÇÃO 2. O TODO MOMENTÂNEO: O ESTADO DE CONSCIÊNCIA ................................................................... 180
§ 1. Atenção E Oscilações Da Consciência ................................................................................................... 184
a) Atenção..................................................................................................................................................................... 184
b) Oscilações da consciência. ...................................................................................................................................... 187
c) Turvações da consciência. ....................................................................................................................................... 188
d) Aumentos da consciência. ...................................................................................................................................... 188
§ 2. Sono E Hipnose........................................................................................................................................ 189
a) Sonho. ....................................................................................................................................................................... 189
b) Adormecer e despertar. .......................................................................................................................................... 191
c) Hipnose. .................................................................................................................................................................... 192
§ 3. Alterações Psicóticas Da Consciência .................................................................................................... 192
a) Designamos por torpor os estados intermediários que vão da consciência à inconsciência. ........................... 193
b) Turvação da consciência: ........................................................................................................................................ 193
c) Alteração da consciência. ........................................................................................................................................ 193
d) O estado de consciência que assinala a aura, antes dos ataques epilépticos..................................................... 194
§ 4. As Formas Das Conexões Vivenciais Fantásticas.................................................................................. 194
1.2. OS RENDIMENTOS OBJETIVOS DA VIDA PSÍQUICA (PSICOLOGIA DO RENDIMENTO) ............................ 204
a) Psicologia subjetiva e objetiva. ............................................................................................................................... 204
b) O esquema neurológico básico do arco reflexo e o esquema psicológico básico de tarefa e rendimento. .... 204
c) O antagonismo dos dois esquemas básicos. .......................................................................................................... 208
d) Psicologia da associação, do ato e da configuração.............................................................................................. 211
e) A sequência das totalidades.................................................................................................................................... 216
f) A experimentação na psicopatologia? .................................................................................................................... 217
SEÇÃO 1. OS RENDIMENTOS INDIVIDUAIS ....................................................................................................... 222
§ 1. Percepção ................................................................................................................................................ 222
§ 2. Apreensão E Orientação......................................................................................................................... 225
§ 3. Memória .................................................................................................................................................. 227
a) Amnésias. ................................................................................................................................................................. 229
b) Distúrbios da capacidade de reprodução, do cabedal mnêmico e da capacidade de fixação. ......................... 230
c) Falsificações da memória. ....................................................................................................................................... 234
§ 4. Motricidade ............................................................................................................................................. 235
a) Distúrbios motores neurológicos............................................................................................................................ 235
b) Apraxias .................................................................................................................................................................... 236
c) Distúrbios motores psicóticos. ................................................................................................................................ 236
§ 5. Linguagem............................................................................................................................................... 242
a) Distúrbios articulatórios. ......................................................................................................................................... 244
b) Afasias....................................................................................................................................................................... 245
c) Distúrbios psicóticos da fala .................................................................................................................................... 250
§ 6. Pensamento E Juízo ................................................................................................................................ 255
a) Como rendimento psicológico ................................................................................................................................ 256
b) Fenomenologicamente ........................................................................................................................................... 257
c) Em conexões geneticamente compreensíveis....................................................................................................... 257
d) O delírio apresenta-se, em seu todo. ..................................................................................................................... 257
SEÇÃO 2. O TODO DOS RENDIMENTOS............................................................................................................. 260
§ 1. A Base Psicofísica Dos Rendimentos ..................................................................................................... 260
a) Funções psicofísicas básicas. ................................................................................................................................... 261
b) O Rendimento Laborativo. ...................................................................................................................................... 267
c) Tipos de Rendimentos Individualmente Variáveis. ............................................................................................... 269
§ 2. O Curso Presente Da Vida Psíquica........................................................................................................ 271
a) Fuga-de-ideias e Inibição do Pensamento. ............................................................................................................ 271
b) A Confusão. .............................................................................................................................................................. 277
§ 3. A Inteligência........................................................................................................................................... 278
a) Análise da Inteligência. ............................................................................................................................................ 278
b) Tipos de demência. .................................................................................................................................................. 281
c) Exame da Inteligência .............................................................................................................................................. 286
1.3. OS SINTOMAS DA VIDA PSÍQUICA NOS FENÔMENOS SOMÁTICOS CONCOMITANTES E CONSECUTIVOS
(SOMATOPSICOLOGIA)................................................................................................................................. 289
Observações Preliminares Sobre Corpo E Alma........................................................................................... 289
a) A separação de corpo e alma .................................................................................................................................. 289
b) A correlação de corpo e alma ................................................................................................................................. 290
c) A integração de corpo e da alma em geral. ........................................................................................................... 291
d) A coincidência de corpo e alma, como fato possível de investigar...................................................................... 293
e) As áreas de pesquisa em que se vê a relação corpo-alma. .................................................................................. 295
§ 1. Os Fatos Psicossomáticos Básicos ......................................................................................................... 296
a) Sensações corpóreas. .............................................................................................................................................. 296
b) Fenômenos somáticos concomitantes permanentes. ......................................................................................... 298
c) Sono .......................................................................................................................................................................... 302
d) Efeitos somáticos da hipnose. ................................................................................................................................ 306
§ 2. Os Distúrbios Somáticos Em Sua Relação Com A Psique. .................................................................... 307
a) Grupos principais dos distúrbios somáticos psiquicamente condicionados. ...................................................... 308
b) Origem dos distúrbios somáticos. .......................................................................................................................... 314
§ 3. Achados Somáticos Nas Psicoses .......................................................................................................... 321
a) Peso do corpo........................................................................................................................................................... 321
b) Cessação das regras. ................................................................................................................................................ 322
c) Achados de distúrbios endócrinos. ......................................................................................................................... 323
d) Pesquisas fisiológicas sistemáticas para conhecimento de quadros somatopatolóficos típicos. ..................... 323
1.4. OS FATOS OBJETIVOS SIGNIFICATIVOS ...................................................................................................... 327
SEÇÃO 1. EXPRESSÃO DA PSIQUE NO CORPO E NOS MOVIMENTOS (PSICOLOGIA DA EXPRESSÃO) ........... 331
a) Fenômeno somático concomitante e expressão psíquica. .................................................................................. 331
b) A compreensão da expressão. ................................................................................................................................ 333
c) Técnicas de investigação. ........................................................................................................................................ 336
d) Revisão...................................................................................................................................................................... 338
§ 1. Fisiognomia ............................................................................................................................................. 338
§ 2. Mímica..................................................................................................................................................... 350
a) Tipos de movimentos corpóreos. ........................................................................................................................... 350
b) Princípios da compreensão mímica. ...................................................................................................................... 352
c) Observações psicopatológicas. ............................................................................................................................... 353
§ 3. Escrita. ..................................................................................................................................................... 355
SEÇÃO 2. A EXISTÊNCIA DO HOMEM EM SEU MUNDO (PSICOLOGIA DO MUNDO) ..................................... 357
§ 1. Achados Individuais Do Comportamento No Mundo. ......................................................................... 359
a) Comportamento. ..................................................................................................................................................... 359
b) Conformação do mundo. ........................................................................................................................................ 361
c) Modo de vida............................................................................................................................................................ 362
d) Atos. .......................................................................................................................................................................... 362
§ 2. A Transformação Do Mundo. ................................................................................................................ 364
a) O mundo esquizofrênico. ........................................................................................................................................ 367
b) O inundo do doente obsessivo. .............................................................................................................................. 369
c) O mundo dos homens com “fuga-de-ideias”......................................................................................................... 372
SEÇÃO 3. OBJETIVAÇÃO NO CONHECIMENTO E NA OBRA (PSICOLOGIA DA OBRA) ..................................... 374
§ 1. Achados Individuais Das Obras Criativas. ............................................................................................. 375
a) A fala. ........................................................................................................................................................................ 375
b) Os produtos literários dos doentes ........................................................................................................................ 377
c) Desenhos, arte, trabalhos manuais. ....................................................................................................................... 379
§ 2. A Totalidade Da Mente Na Concepção Do Mundo .............................................................................. 381
a) Realizações radicais. ................................................................................................................................................ 382
b) Perspectivas específicas dos doentes. ................................................................................................................... 382
c) Observações de relevância filosófica dos doentes. ............................................................................................... 385
PARTE 2. AS CONEXÕES COMPREENSÍVEIS DA VIDA PSÍQUICA ................................................................... 387
a) Compreensão e explicação. .................................................................................................................................... 388
b) Evidência da compreensão e da realidade (compreensão e interpretação). ..................................................... 389
c) Compreensão racional e empática. ........................................................................................................................ 390
d) Limites da compreensão, ilimitação da explicação. .............................................................................................. 391
e) Compreensão e inconsciente.................................................................................................................................. 392
f) A pseudocompreensão. ........................................................................................................................................... 393
g) Sobre os tipos da compreensão, em conjunto (compreensão intelectual, existencial, metafísica). ................ 394
h) De que modo a compreensibilidade psicológica se move entre as objetividades compreensíveis e o
incompreensível. ................................................................................................................................................... 398
i) Tarefas da psicopatologia compreensiva. ............................................................................................................... 401
2.1. CONEXÕES COMPREENSÍVEIS .................................................................................................................... 403
§ 1. As Fontes De Nossa Capacidade De Compreender E A Tarefa Da Psicopatologia Compreensiva. .. 403
§ 2. Conexões Compreensíveis Do Conteúdo ............................................................................................... 406
a) Os impulsos, seu desenvolvimento e transformação psíquicos. ......................................................................... 406
b) O indivíduo no mundo............................................................................................................................................. 417
c) Os símbolos do conhecimento básico. ................................................................................................................... 423
§ 3. Formas Da Compreensibilidade ............................................................................................................. 434
a) A tensão contrastante da psique e a dialética do respectivo movimento. ......................................................... 434
b) Círculos da vida e da compreensibilidade.............................................................................................................. 440
§ 4. A Autorreflexão ....................................................................................................................................... 443
a) A reflexão e o inconsciente. .................................................................................................................................... 443
b) A autorreflexão impulsionadora da dialética psíquica.......................................................................................... 445
c) Estrutura da autorreflexão. ..................................................................................................................................... 446
d) Exemplos de autorreflexão no efeito respectivo. ................................................................................................. 447
§ 5. As Leis Fundamentais Da Compreensão Psicológica E Da Compreensibilidade. ............................... 452
a) A compreensão empírica é interpretação. ............................................................................................................ 453
b) A compreensão realiza-se no círculo hermenêutico. ........................................................................................... 454
c) O que se opõe é de imediato compreensível. ....................................................................................................... 455
d) A compreensão é inconclusiva. .............................................................................................................................. 455
e) A interpretabilidade infinita. ................................................................................................................................... 456
f) A compreensão é iluminação e desmascaramento. .............................................................................................. 457
2.2. CONEXÕES COMPREENSÍVEIS EM MECANISMOS ESPECÍFICOS .............................................................. 463
a) Conceito de mecanismo extraconsciente. ............................................................................................................. 463
b) Conteúdo compreensível e mecanismos............................................................................................................... 464
c) Mecanismos gerais constantemente presentes e mecanismos que são postos em movimentos por vivências
psíquicas................................................................................................................................................................. 464
d) Mecanismos normais e anormais. ......................................................................................................................... 466
SEÇÃO 1. MECANISMOS NORMAIS ................................................................................................................... 467
a) Relações vivenciais................................................................................................................................................... 467
b) Pós-efeito de vivências anteriores.......................................................................................................................... 470
c) Os conteúdos oníricos. ............................................................................................................................................ 474
d) Sugestão. .................................................................................................................................................................. 479
e) Hipnose. .................................................................................................................................................................... 481
SECÇÃO 2. MECANISMOS ANORMAIS .............................................................................................................. 485
§ 1. Reações Vivenciais Patológicas ............................................................................................................. 488
a) Distinção entre reação, fase e broto. ..................................................................................................................... 489
b) A tríplice direção da compreensibilidade das reações.......................................................................................... 490
c) Discussão dos estados reativos. .............................................................................................................................. 495
d) O efeito curativo dos traumatismos emocionais. ................................................................................................. 499
§ 2. Pós-Efeito Anormal De Vivências Anteriores ........................................................................................ 500
a) Hábitos anormais. .................................................................................................................................................... 500
b) Efeitos dos complexos. ............................................................................................................................................ 502
c) Compensações. ........................................................................................................................................................ 503
d) Tendências desintegrativas e integrativas. ............................................................................................................ 505
§ 3. Sonhos Anormais .................................................................................................................................... 506
a) Os sonhos das doenças somáticas.......................................................................................................................... 506
b) Os sonhos anormais das psicoses........................................................................................................................... 506
c) O conteúdo dos sonhos anormais. ......................................................................................................................... 508
§ 4. A Histeria ................................................................................................................................................. 509
§ 5. Conteúdos Compreensíveis Das Psicoses .............................................................................................. 518
a) Ideias deliroides. ...................................................................................................................................................... 519
b) Ideias delirantes na esquizofrenia. ......................................................................................................................... 519
c) A incorrigibilidade. ................................................................................................................................................... 520
d) Classificação dos conteúdos delirantes.................................................................................................................. 521
2.3. A ATITUDE DO PACIENTE EM RELAÇÃO À DOENÇA .................................................................................. 525
a) Comportamento compreensível à irrupção da psicose aguda (perplexidade, consciência da alteração). ...... 525
b) Elaboração após o curso da psicose aguda............................................................................................................ 527
c) Elaboração da enfermidade em estados crônicos................................................................................................. 528
d) O Juízo do doente a respeito de sua doença. ........................................................................................................ 532
e) A vontade de adoecer (o desejo da doença). ........................................................................................................ 538
f) Sobre o significado e as possibilidades da atitude em relação à doença. ............................................................ 540
2.4. O TODO DAS CONEXÕES COMPREENSÍVEIS (CARACTEROLOGIA) ........................................................... 543
§ 1. A Limitação Do Conceito ........................................................................................................................ 543
a) O ser do caráter........................................................................................................................................................ 543
b) O devenir do caráter................................................................................................................................................ 545
c) O caráter compreensível e a incompreensibilidade. ............................................................................................. 545
§ 2. Os Métodos Da Análise Caracterológica............................................................................................... 547
a) Consciência das possibilidades de descrição verbal. ............................................................................................. 548
b) Os conceitos da caracterologia são aqueles da psicologia compreensiva. ......................................................... 549
c) Tipologia como método........................................................................................................................................... 550
§ 3. Tentativas De Classificação Caracterológica Básica. ........................................................................... 551
a) Figuras singulares, individuais. ................................................................................................................................ 552
b) Tipos ideais. .............................................................................................................................................................. 552
c) Construção do caráter de modo geral. ................................................................................................................... 553
d) Tipos reais................................................................................................................................................................. 555
§ 4. Personalidades Normais E Anormais .................................................................................................... 556
I. Variações Do Existir Humano..................................................................................................................... 557
a) Variações das constituições caracterológicas básicas. .......................................................................................... 557
b) Variações da energia psíquica (neurasténicos e psicastênicos). .......................................................................... 559
c) Caráteres reflexivos.................................................................................................................................................. 561
Ii. Transformação Da Personalidade Em Consequência De Processos. ..................................................... 564
a) Demência por processo orgânico cerebral. ........................................................................................................... 564
b) Demência epilética. ................................................................................................................................................. 565
c) Demência esquizofrênica. ....................................................................................................................................... 565

PARTE 3. AS CONEXÕES CAUSAIS DA VIDA PSÍQUICA (PSICOLOGIA EXPLICATIVA) ..................................... 567


a) A simples relação causal e sua dificuldade. ........................................................................................................... 567
b) Mecanismo e organismo......................................................................................................................................... 569
c) Causas endógenas e exógenas. ............................................................................................................................... 571
d) Evento causal como evento extraconsciente. ....................................................................................................... 574
e) Contra a absolutização do conhecimento causal. ................................................................................................. 579
f) Revisão do conhecimento causal. ........................................................................................................................... 581
3.1. EFEITOS DO PERIMUNDO E DO CORPO SOBRE A VIDA PSÍQUICA ............................................................ 582
§ 1. Efeitos Do Perimundo ............................................................................................................................. 582
a) Hora do dia, estação, tempo, clima. ....................................................................................................................... 583
b) Fadiga e esgotamento. ............................................................................................................................................ 584
§ 2. Venenos (Tóxicos) ................................................................................................................................... 586
§ 3. Doenças Orgânicas ................................................................................................................................. 589
a) Doenças internas. .................................................................................................................................................... 589
b) As doenças endócrinas. ........................................................................................................................................... 591
c) As psicoses sintomáticas.......................................................................................................................................... 596
d) O morrer. .................................................................................................................................................................. 599
§ 4. Processos Cerebrais ................................................................................................................................ 600
a) As doenças cerebrais orgânicas. ............................................................................................................................. 600
b) Sintomas gerais e específicos.................................................................................................................................. 600
c) História do problema da localização....................................................................................................................... 602
d) Os grupos de fatos essenciais concernentes ao problema da localização. ......................................................... 605
e) As questões fundamentais do problema da localização....................................................................................... 617
f) A questionabilidade da localização do psiquismo .................................................................................................. 620
3.2. HERANÇA ..................................................................................................................................................... 623
§ 1. As Antigas Ideias Básicas E Seu Esclarecimento Pela Genealogia E Pela Estatística ......................... 623
a) O fato básico da hereditariedade. .......................................................................................................................... 623
b) A visão genealógica. ................................................................................................................................................ 624
c) Estatística. ................................................................................................................................................................. 624
d) Herança constante e inconstante........................................................................................................................... 627
e) A questão das causas do primeiro ou novo aparecimento de doenças mentais. .............................................. 629
§ 2. O Novo Impulso Dado Pela Teoria Biológica Da Herança (Genética) ................................................. 634
a) Estatística da variação. ............................................................................................................................................ 635
b) Genótipo e fenótipo. ............................................................................................................................................... 636
c) As leis de Mendel. .................................................................................................................................................... 637
d) A substância hereditária está nas células. ............................................................................................................. 639
e) A mutação. ............................................................................................................................................................... 641
f) Limitações críticas. .................................................................................................................................................... 642
g) Resumo dos mais importantes conceitos básicos. ................................................................................................ 642
§ 3. A Aplicação Da Genética À Psicopatologia. .......................................................................................... 644
a) As ideias diretivas básicas........................................................................................................................................ 644
b) Dificuldades metodológicas. ................................................................................................................................... 648
c) Investigações sobre a hereditariedade das psicoses. ............................................................................................ 650
d) Investigações em torno da hereditariedade dos fenômenos psíquicos.............................................................. 652
e) A ideia dos círculos hereditários. ............................................................................................................................ 653
f) A investigação dos gêmeos. ..................................................................................................................................... 658
g) A questão da lesão germinal. .................................................................................................................................. 660
h) A importância da aplicação da genética à psicopatologia, apesar dos resultados até o momento negativos. 661
§ 4. O Retorno A Uma Estatística Empírica De Caráter Provisório ............................................................. 662
3.3. SOBRE O SENTIDO E O VALOR DAS TEORIAS.............................................................................................. 665
§ 1. Caracterização Das Teorias.................................................................................................................... 665
a) A essência das teorias. ............................................................................................................................................. 665
b) As ideias fundamentais em psicopatologia. .......................................................................................................... 666
§ 2. Exemplos De Formações Teóricas Em Psicopatologia ......................................................................... 670
a) Wernicke................................................................................................................................................................... 670
b) Freud......................................................................................................................................................................... 674
c) Psicopatologia genético-construtiva....................................................................................................................... 677
d) Confronto das teorias acima relatadas. ................................................................................................................. 684
§ 3. Crítica Do Pensamento Teórico Em Geral ............................................................................................. 685
a) O modelo das teorias científico-naturais. .............................................................................................................. 685
b) O espírito do pensamento teórico. ........................................................................................................................ 686
c) Os erros fundamentais das teorias. ........................................................................................................................ 688
d) Inevitabilidade das ideias teóricas em psicopatologia. ......................................................................................... 689
e) A atitude metodológica em relação às teorias. ..................................................................................................... 690

PARTE 4. A CONCEPÇÃO DA TOTALIDADE DA VIDA PSÍQUICA ..................................................................... 692


a) A tarefa. .................................................................................................................................................................... 693
b) A ramificação em três tarefas. ................................................................................................................................ 694
c) O que se alcança quando se tenta cumprir a tarefa e o que não se consegue. .................................................. 695
d) O entusiasmo pelo todo e o erro............................................................................................................................ 696
e) O conhecimento do homem como caminho para a abertura do existir humano, propriamente dito. ........... 697
f) A pesquisa guiada por ideias.................................................................................................................................... 698
g) Métodos da tipologia............................................................................................................................................... 698
h) O psicograma. .......................................................................................................................................................... 700
4.1. A SÍNTESE DOS QUADROS MÓRBIDOS (NOSOLOGIA) .............................................................................. 701
§ 1. Pesquisa Guiada Pela Ideia De Unidade Nosológica ............................................................................ 702
§ 2. As Distinções Fundamentais No Campo Geral Das Doenças Mentais ................................................ 713
I. Diferenças de Estado ................................................................................................................................................ 713
II. Diferenças conforme a Essência ............................................................................................................................. 714
§ 3. Os Complexos Sintomáticos ................................................................................................................... 724
a) Quadro de estado e complexo sintomático........................................................................................................... 724
b) Pontos de vista pelos quais se formam complexos sintomáticos. ....................................................................... 724
c) Significação real dos complexos sintomáticos. ...................................................................................................... 728
d) A teoria de Carl Schneider das associações de sintomas esquizofrênicos. ......................................................... 729
Apresentações Particulares ......................................................................................................................................... 736
c) Os complexos sintomáticos dos estados afetivos anormais................................................................................. 742
d) Os complexos sintomáticos da vida psíquica “alienada”...................................................................................... 745
§ 4. A Classificação Das Doenças (Esquema Diagnóstico). ......................................................................... 752
a) Requisitos para o esquema diagnóstico................................................................................................................. 753
b) Linhas de esquema diagnóstico.............................................................................................................................. 754
c) Explicações sobre o esquema. ............................................................................................................................. 755
4.2. A VARIEDADE GENÉRICA DO HOMEM (EIDOLOGIA) ................................................................................. 768
a) A ideia do eidos. ....................................................................................................................................................... 768
b) Sexo, constituição, raça. .......................................................................................................................................... 769
c) Os métodos da eidologia. ........................................................................................................................................ 771
d) A colheita de achados.............................................................................................................................................. 775
§ 1. O Sexo ...................................................................................................................................................... 775
a) O fenômeno primário da sexualidade.................................................................................................................... 775
b) Fatores biológicos das diferenças sexuais. ............................................................................................................ 777
c) Diferenças sexuais somáticas e psicológicas. ......................................................................................................... 779
d) O instinto sexual. ..................................................................................................................................................... 780
e) Histórico da investigação concernente à sexualidade e suas anormalidades..................................................... 782
§ 2. Constituição ............................................................................................................................................ 789
a) Conceito e ideia de constituição. ............................................................................................................................ 789
b) História da ideia de constituição. ........................................................................................................................... 792
c) Personalidade e psicose........................................................................................................................................... 796
d) A teoria da constituição de Kretschmer................................................................................................................. 799
e) Crítica da investigação constitucional kretschmeriana. ........................................................................................ 803
f) Reconformação da teoria psiquiátrica da constituição por Conrad. .................................................................... 817
g) Sobre o valor positivo das teorias da constituição. ............................................................................................... 829
§ 3. Raça ......................................................................................................................................................... 831
4.3. O CURSO DA VIDA (BIOGRAFIA).................................................................................................................. 835
a) O material da biografia. ........................................................................................................................................... 835
b) A apreensão do bios pela biografia. ....................................................................................................................... 835
c) Os limites do bios e da biografia. ............................................................................................................................ 836
d) Pesquisa orientada pela ideia do bios. ................................................................................................................... 838
§ 1. Métodos Da Biografia ............................................................................................................................ 839
a) Colheita do material, arrumação, apresentação. .................................................................................................. 839
b) Casuística e biografia. .............................................................................................................................................. 839
c) O presente como ponto de partida. ....................................................................................................................... 840
d) A ideia da unidade do bios. ..................................................................................................................................... 842
e) As categorias biográficas básicas. ........................................................................................................................... 843
f) Observação a respeito da biografia literária........................................................................................................... 843
g) Rendimentos biográficos na psicopatologia. ......................................................................................................... 844
h) A arte de descrever histórias clínicas. .................................................................................................................... 845
§ 2. O Bios Como Evento Biológico ............................................................................................................... 846
a) A idade. ..................................................................................................................................................................... 847
b) Séries típicas de curso. ............................................................................................................................................ 853
§ 3. O Bios Como História Da Vida................................................................................................................ 861
a) As categorias básicas da história existencial. ......................................................................................................... 862
b) Alguns problemas especiais. ................................................................................................................................... 867
c) A questão psicopatológica fundamental: desenvolvimento de uma personalidade ou processo? .................. 871

PARTE 5. A PSIQUE ANORMAL NA SOCIEDADE E NA HISTÓRIA ................................................................... 877


a) Herança e tradição. .................................................................................................................................................. 877
b) Comunidade. ............................................................................................................................................................ 879
c) A ampliação da psicopatologia desde anamnese social até a elaboração de material histórico. ..................... 879
d) Significado do conhecimento histórico-sociológico. ............................................................................................. 882
e) Métodos. .................................................................................................................................................................. 882
§ 1. A Significação Da Situação Sociológica Da Doença ............................................................................. 886
a) Efeitos causais do ambiente civilizado. .................................................................................................................. 886
b) Situações típicas para o indivíduo. ......................................................................................................................... 887
c) Épocas de segurança, de revolução, de guerra. .................................................................................................... 888
d) Neuroses de renda. ................................................................................................................................................. 890
e) Trabalho.................................................................................................................................................................... 891
f) Educação. .................................................................................................................................................................. 891
§. 2, Investigações Sobre Populações, Profissões, Classes, Grupos Urbanos, Rurais E Outros................. 892
§ 3. Comportamento Associai E Antissocial ................................................................................................. 894
a) O comportamento associal. .................................................................................................................................... 895
b) O comportamento antissocial. ............................................................................................................................... 896
§ 4. Psicopatologia Da Mente ....................................................................................................................... 898
a) Investigações empíricas........................................................................................................................................... 899
b) Questões gerais........................................................................................................................................................ 900
c) Psicopatia e religião. ................................................................................................................................................ 901
§ 5. Aspectos Históricos ................................................................................................................................. 902
a) A cultura e a situação histórica como determinantes do conteúdo da doença psíquica................................... 903
b) História da histeria. .................................................................................................................................................. 904
c) Psicologia das massas. ............................................................................................................................................. 908
d) Estados psíquicos arcaicos. ..................................................................................................................................... 908
e) A psicopatologia nas diversas culturas. .................................................................................................................. 911
f) O mundo moderno e o problema da degeneração. .............................................................................................. 911

PARTE 6. O TODO DO EXISTIR HUMANO ....................................................................................................... 917


§ 1. Retrospecto À Psicopatologia ................................................................................................................ 917
a) Objeções ao plano de minha psicopatologia ......................................................................................................... 917
b) A necessidade de integração de nosso conhecimento do homem e o quadro da psicopatologia. .................. 918
c) Retrospecto às totalidades e a questão do todo singular..................................................................................... 920
d) Retrospecto aos enigmas concretos. ..................................................................................................................... 923
§ 2. A Questão Da Essência Do Homem ....................................................................................................... 928
a) A atitude filosófica básica. ....................................................................................................................................... 928
b) A imagem, do homem. ............................................................................................................................................ 931
c) Esquema filosófico do abrangente que nós somos ............................................................................................... 932
d) A incompletabilidade do homem. .......................................................................................................................... 934
e) Resumindo em poucas palavras nossas discussões. ............................................................................................. 940
§ 3. Psiquiatria E Filosofia.............................................................................................................................. 943
a) O que é ciência. ........................................................................................................................................................ 943
b) As modalidades da ciência na psicopatologia. ...................................................................................................... 944
c) A filosofia na psicopatologia. ................................................................................................................................... 944
d) As posições filosóficas básicas. ............................................................................................................................... 946
e) A confusão filosófica. ............................................................................................................................................... 947
f) Concepção do mundo na roupagem do conhecimento. ....................................................................................... 948
g) Filosofia existencial e psicopatologia...................................................................................................................... 952
h) Interpretação metafísica do adoecimento. ........................................................................................................... 955
§ 4. Os Conceitos Saúde E Doença ................................................................................................................ 957
a) A questionabilidade do conceito de doença.......................................................................................................... 957
b) Conceito de valor e conceito de média.................................................................................................................. 958
c) O conceito de doença na medicina somática. ....................................................................................................... 958
d) O conceito de doença da psiquiatria. ..................................................................................................................... 961
§ 5. O Significado Da Prática Médica ........................................................................................................... 971
a) Correlação entre conhecimento e prática. ............................................................................................................ 971
b) As relações dependenciais de toda prática médica. ............................................................................................. 972
c) A prática médica externa (medidas e ajuizamento) e a prática interna. ............................................................. 974
d) Vinculação com os estádios do tratamento médico geral. .................................................................................. 976
e) Os tipos de resistência no homem. ........................................................................................................................ 981
f) Objetivos e limites da psicoterapia. ........................................................................................................................ 984
g) O papel pessoal do médico. .................................................................................................................................... 987
h) Tipos de atitude psiquiátrica. .................................................................................................................................. 989
i) A nocividade da atmosfera psicológica. .................................................................................................................. 992
j) A organização pública da psicoterapia. ................................................................................................................... 994

APÊNDICE ....................................................................................................................................................... 1009


SUMÁRIO ....................................................................................................................................................... 1048

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