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Um novo saber e uma nova filosofia - a imanência e a esquizoanálise

A esquizoanálise oferece uma contribuição especial às redes e a seu funcionamento, exatamente


por sua visão filosófica. Para apresentá-la temos, pois, que fazer uma incursão na filosofia que
lhe dá embasamento. Para entendermos a questão principal de sua ajuda que é no âmbito de
como ser humano e de como o mundo está constituído. Sua visão de constituição do homem e
do mundo já é um encontro de fluxos e já é uma rede; o homem tem isso de saída, uma potência
de fluir de partes que se encontram, e perde-o (felizmente não definitivamente) à medida que se
insere numa sociedade com uma produção de registro individualista.

A filosofia tem com proposta perguntar: o que existe, e como conhecemos o que existe?
Através dessas perguntas, vai se posicionando diante das atividades diárias da vida, e vai
criando conceitos que se tornam ação, nas lides em geral. Não são perguntas desligadas da vida
como muitos pensam (Deleuze,1992).

Como resposta a estas perguntas feitas pela filosofia, a imanência vai nos dar um interessante
caminho de um tipo de homem, que é feito de mil pedaços, que vive encontros em si próprio e
vive encontros com seu entorno, seja esse entorno de pessoas ou de coisas.

A filosofia da imanência remonta ao século VII AC, com os pré-socráticos. Retoma seu fluxo,
com os estóicos no séc.III AC; continua com Espinoza, no séc. XVI, com Nietzsche, no século
XIX, e na segunda metade do séc. XX, 1970, mais precisamente, Gilles Deleuze (1925-1995) e
Felix Guattari (1930-1992 ) retomam toda essa seqüência de filósofos para montar a
esquizoanálise. (Morreram recentemente, nos anos 90).

Vejamos em que consiste a esquizoanálise, e a imanência, e em que nos pode ajudar, ou o que
tem a ver com nosso tema (embora já tenhamos aludido a vários conceitos seus, ao longo deste
trabalho, o que foi permitindo entrever a afinidade desta proposta, com o nosso tema).

Às perguntas da filosofia, a imanência através da proposta desses filósofos vai nos dar
diferentes respostas.

Os pré-socráticos, que aparecem no séc. VII AC, respondem: existe uma substância única,
causa em si mesma de si mesma e início de tudo o mais que existe; ela gera tudo. Physis é

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formada pelo sufixo sis e pela raiz verbal phy; na voz ativa significa produzir; na voz média
significa crescer.

G.Bornheim diz que physis,

“Designa o processo de surgir e desenvolver-se; e abarca a fonte originária das coisas, aquilo a
partir o qual se desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento;
realidade subjacente às coisas de nossa experiência; o que é primário, fundamental e persistente,
em oposição ao que é secundário, derivado e transitório” (G.Bornheim, 1989:12).

Cada filósofo pré-socrático escolhe uma substância inicial: a água, o apeyron (o ar), o ar, o
fogo, os quatro elementos como sinônimos de um vir a ser com um elemento comum a tudo.

Resumindo physis: é o que por si brota, emerge; é início de tudo e esse início está dentro da
própria physis; é início, é fluxo ou força. O psíquico e as idéias pertencem à physis.

“Tudo está cheio de deuses” diz Tales de Mileto, cheio de alma, de forças. A physis tem um
princípio inteligente, que se conhece por suas manifestações: o logos, a inteligência, o espírito,
o pensamento.

Physis não significa natureza, mas tudo o que existe. O objeto e a causa do corpo são um só: a
Physis (Fuganti, 1990). A vida ativa afirma o pensamento; o pensamento afirma a vida. A vida
aflora dos corpos, das partículas.

Para nosso percurso de trabalho das redes, constatamos que: das partículas (Physis) de cada
rede, e de cada partícula (Physis) das ONGs fluem fluxos e encontros. Tudo é Physis nesta
concepção: ONGs, comunidades, partículas destas, redes, partículas destas últimas, códigos do
sistema, códigos de inovação, etc.

Os estóicos como Zenão, Cleanto, Crisipo, surgem no séc. III AC. As categorias de
movimento, de instabilidade perpétua estão na Physis, nos corpos (como os pré-socráticos) e é
sua característica principal.

Fuganti (1990) diz que liberam uma nova dimensão a superfície. Em vez de procurar o
elemento que é comum a vários corpos para caracterizar um corpo ou vários corpos como
faziam os pré-socráticos, procuram sempre o movimento, a categoria de causa (contra Platão,
que coloca a causa dos corpos, nas idéias) como vinda de dentro do próprio corpo, como uma
analogia da força vital; e procuram os encontros desse movimento que geram os incorporais

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que são resultantes que se rebatem sobre a superfície: são os sentidos gerados, por exemplo,
após uma idéia-palavra-corpo-som-ação-, encontrar-se com o corpo-ação-agir de alguém, e
criar como resultado o incorporal- “rapidamente” -, agir rapidamente. São os atributos dos
corpos e o sentido da linguagem, o lêkton, são os acontecimentos (Garcia-Roza, 1990). Lêkton
é o que é expresso pelo verbo e designa acontecimentos e não coisas (Bréhier,1997).

Portanto, os estóicos liberam a superfície, como uma nova dimensão, autônoma para a vida e
para o pensamento, é onde estão os acontecimentos, como atributos, como sentido da
linguagem. A profundidade é o ser que são os corpos e só estes existem. A superfície é extra-
ser, é resultante. Uma falsa profundidade é a mente psicológica; outra é a altura transcendente
dos corpos; mente e transcendência são idéias e sentidos que resultam de algum encontro, são
superfície, são extra-ser.

Fuganti contrapõe estes conceitos a:

“Platão e Aristóteles querem recalcar a profundidade mais e mais e organizar uma superfície
inteiramente submetida à ordem dos modelos, através da parte boa da matéria, isto é, da parte
dócil da matéria que se deixa regular e limitar para tornar-se boa imagem ou cópia. Platão
concebe a profundidade como uma matéria louca e rebelde - a parte má da matéria ou das
imagens -, um devir enlouquecido que nega tanto o modelo das alturas como a cópia das
superfícies reguladas; a profundidade é um fluxo desmesurado, a hybris, que quer insinuar-se na
superfície em forma de simulacro, ameaçando dissolver a ordem das cópias, os limites, as
regulações harmônicas da superfície organizada e voltada para o bem. É por isso que ele quer
recalcar a profundidade, acorrentá-la nos confins das cavernas da terra e dos oceanos tal como
os titãs - encarnação do caos e do mal - o foram. Nietzsche dirá, ao contrário, que nunca se
penetra o suficiente, pois atrás de uma caverna existem infinitas outras e o que se descobre nesse
mergulho não é a desordem, a ilusão, a irrealidade como quer Platão, mas a exuberante riqueza e
a fantástica realidade deste mundo, reino do acaso e do imprevisível” (Fuganti, 1990:47).

Trazem a proposta dos corporais, a matéria em encontros, e a negação dos incorporais ou


sentidos gerados como um princípio, início ou transcendência; ou seja, os sentidos atribuídos
não são o princípio, ou início como geralmente se pensa, mas são resultantes de encontros de
corpos; isto porque os incorporais são atributos, maneiras de ser dos corpos numa superfície.
Por isso se traduzem por verbos e as causas se traduzem por substantivos.

O que vem primeiro são os corpos, e seus fluxos, e as palavras e seus fluxos, que produzem
incorporais, atributos, que são idéias e sentidos. Os seres, quando se encontram, geram uma
centelha, fazem emergir um extra-ser, não é ser, é quase ser, algo que não existe; só o que
existe são os corpos, mas são reais: são atributos ou acontecimentos incorporais. Estes têm duas

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faces: uma, se atribui ao corpo como acontecimento, e outra se atribui à linguagem como
sentido (Garcia-Roza, 1990).

Corpo é o que existe em termos elementares ou afetivos, o mesmo que Espinosa vai dizer no
séc. XVII, que é aquilo que existe em termos de afetar e ser afetado. Corpo é definido como
lugar de duas potências: paixão e ação

Os estóicos pensam em termos biológicos e vitais. Todo corpo possui a sua própria essência,
mas essa essência é fluxo, única, singular, não genérica, mas sempre diferentes umas das
outras. Fuganti diz que “a essência de um corpo é definida como uma potência, uma tensão”
(Fuganti,1990:49).

A potência quer agir nas fronteiras, ultrapassar seus limites; por isso os estóicos inventam uma
ética com base nessas potências singulares da vida e do pensamento. Ético é permitir a potência
ocorrer, a seguir o encontro ocorrer, e finalmente aparecer o sentido do encontro. Nesse
encontro os corpos se penetram mutuamente, e se misturam. Os corpos são compostos de
qualidades e matérias ativas, ou seja, potência de afetar os outros e ser afetado, de receber ação
de outros corpos. Já Nietzsche fala disso como força ativa e força reativa.

O afeto é o encontro, afetar e ser afetado, e se efetua no encontro. Fogo e ferro; um avermelha o
outro, mas os dois não perdem a natureza de cada um. São os bons encontros. Os maus
encontros nos decompõem. Isto funda a ética do que cada corpo pode. Não há nada bom em si,
mas dependem da relação, do encontro.

Desejo é o encontro das causas, é aliança de qualidades ativas, que afluem. Só há desejo,
quando há agenciamento dessas potências ativas. A liberdade se potencializa, quando um corpo
efetua sua potência.

“Desejo é o encontro das causas, é a aliança das qualidades ativas. Só há desejo quando
acontece o agenciamento dessas potências afetivas. O desejo é o próprio agenciamento ou
relação. É por isso que você pode afirmar que ao desejo nada falta, seus objetos não são
fantasmas, nem tampouco ele os produz. O desejo não é uma consciência da falta marcada por
um signo, que revelaria a presença da ausência do objeto desejado. O desejo não é Édipo, não é
uma asma infinita, uma sofreguidão sem-fim que emerge no nada da falta. Ao desejo nada falta,
ele é pleno de si mesmo, pois não existe previamente ao seu objeto, mas nasce simultaneamente
com seu duplo objeto. O desejo emerge no meio, é um elemento relacional, uma liga de fluxos.
Se ele tem objeto, este é o próprio fluxo. O desejo não se aloja na “substância” de nenhum dos
termos ligados por ele.” (Fuganti,1990:55-56). (Grifo do autor).

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Os estóicos liberam a virtualidade que é real, e não a possibilidade. Potência virtual do ser. O
sentido virtual do ser só ocorre se emergir o desejo. Toda produção de realidade vem da
invenção que agencia desejo e pensamento. Agenciamentos inéditos são produção (Garcia-
Roza,1990).

Assim como estes filósofos, podemos embasar no próprio fluir do ser humano, as razões para
nos encontrarmos, sabendo que os encontros são das partículas que nos compõem a todos, são
entre si, e que o ser, o sujeito já é um encontro em seu desejar e em seu fluir. A subjetividade
só se realiza em suas partículas, nos encontros e no agenciamento. As ONGs e as comunidades
só se realizam nas redes, nos encontros, como estamos vendo, e se o fizerem estarão
devolvendo ao mundo, aos pedaços, às partes, algo que lhe é devido, que é seu e que ficou
desconhecido de si, expropriado por um saber oficial.

Os atomistas trabalham com os átomos que compõem o universo, que têm fluxos próprios;
estes têm itinerários curvos e desvios, clinamen, que propiciam encontros ao acaso.

Novamente os encontros...

Espinosa (Deleuze,1970) diz que tudo é uma substância única com causa em si mesma,
provida de atributos e modos. Tudo é corpo também com potência de afetar e potência de ser
afetado. Espinoza vai introduzir e/ou ampliar o conceito de encontros, bons e maus encontros,
os que constróem e os que desagregam. Afetar e ser afetado.

Se nos conectarmos com as redes novamente, podemos dizer que o bom encontro constrói redes
e o mau encontro desagrega-as. Como são afetadas? E como afetam? É a pergunta de Espinosa.

Nietzsche trabalha a potência dos corpos e o valor dos valores (Deleuze,1976). Nietzsche vai
construir os conceitos de potência do ser humano; de sentido; de valor; vai introduzir a crítica
dos valores, uma filosofia de marteladas; analisar o valor dos valores. E vai introduzir também,
a filosofia da força, da potência, vista como produção, força que se apropria de uma quantidade
de realidade e age sobre ela. O ser humano tem desejo de potência. Duas potências ao se
encontrarem são ativas, e não uma passiva e a outra passiva. Teoria das forças.

Quanto ao sentido, ele é atribuído e é múltiplo; uma força flui, se apropria de algo e dá sentido
a esse algo. Nietzsche trabalha ainda, a diferença; a existência; a estética; a tragédia. Escolhe a

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tragédia para que haja uma vida alegre, e haja um herói alegre e múltiplo. Ao propor a ação, a
força ativa, critica as forças reativas, que são o ressentimento, a má consciência (interiorização)
e o ideal ascético; são formas de negação, em lugar de positividade.

A crítica dos valores é feita, permanentemente por Nietzsche (Deleuze,1976); Deleuze e


Guattari transformam essa crítica em auto-análise e autogestão dos grupos, a crítica dos valores
através de tudo que é feito. Essa crítica faz-nos tomar uma distância em relação a tudo que
vivemos, e não tomarmos nenhuma idéia ou valor como um dado de saída; questionamentos
para as redes encarregarem-se deles.

Partindo destes filósofos temos como conclusão, várias desconstruções de que surgem as
partículas: desmontagem do sujeito e do mundo; desmontagem da cisão natureza e sociedade;
desmontagem da cisão eu/ outro; desmontagem do superior e inferior; desmontagem da cisão e
da superioridade da idéia sobre a matéria; desmontagem da idéia como extra-matéria;
desmontagem do ceticismo com a razão; desmontagem das essências e acidentes.

Deleuze e Guattari montaram e acoplaram muitos conceitos desses filósofos, num


enfeixamento que produziu a esquizoanálise, numa amplitude multidisciplinar incomum.

A imanência fala de fluxos que saem da própria matéria, e mais, que esses fluxos são
origem/fonte de tudo e idéia de tudo, ou seja, idéias de vir a ser, o devir, o virtual, o momento
onde tudo pode vir a ser. Há o momento, onde tudo ainda é possível. Fluxos, movimento, devir,
corrupção dos seres, instabilidade perene.

Esta proposta de fluxos em milhares de átomos vindos do ser humano e da realidade, mostra a
possibilidade do novo, da diferença e onde nem tudo é já encodificado, nem tudo é
representado ou significado; é a produção de produção (Guattari e Deleuze, 1972).

Já a produção de registro ou socius é o local de apresentação dos códigos vigentes, já prontos à


nossa volta.

Propõem a Physis, a natureza que é plena de potências, constróem uma ética com base nessas
potências singulares da vida e do pensamento, na estética. E constróem um conceito, que
Deleuze vai usar, que é a produção, que é onde o mundo dos fluxos está posto, sendo que esse

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fluir é a produção de produção (nomenclatura de Deleuze e Guattari 1972) ; há territórios com
átomos de onde fluem os fluxos, produção de fluxos.

Os fluíres dos átomos encontram-se entre si, gerando acontecimentos, que são do âmbito do
novo, da diferença. Desejo-máquina é exatamente essa produção de fluxo, e geração de
acontecimentos. Máquina é engrenagem que gera fluxo (Deleuze e Guattari, 1972).

Temos, pois, os conceitos de diferença, o novo e mais a proposição filosófica dos encontros dos
fluxos; são encontros que propiciam o acontecimento, o sentido. Redes são, portanto, encontros
que produzem acontecimentos efeitos. Há que mudar a ótica dos participantes, preparando-os
para uma visão mais leve, menos impositiva a si próprios, que é o chegar todos juntos e
propiciar algo a todos, sendo que o resultado vai ser uma terceira coisa inesperada e nova.

As redes podem usufruir destes conceitos, primeiramente através da auto-análise dos valores
veiculados e vividos; produzindo encontros; produzindo o aflorar de forças ativas; percebendo
ou captando os afetos, isto é, os afetar e ser afetado pelos fluxos. Tudo isto é o que produz o
acontecimento.

A esquizo-análise tem essa proposta de reunir, levantar o arsenal de potências, produzir e


analisar, sempre. A subjetividade como um agenciamento de conexões (isto já é redundância) e
multiplicidades será ou estará em mutação nesses encontros e terá oportunidades de ter enorme
alegria, como quer Nietzsche, com seus encontros, ao viver encontros, ao gerar o
acontecimento; o gerar é no encontro, e a mudança é no encontro, e a produção é no encontro
também.

Unindo tudo isto estão Deleuze e Guattari: a superfície de produção com seus fluxos, a
superfície de registro com os códigos do instituído, a superfície de consumo com os encontros e
os acontecimentos gerados no encontro, os territórios de saberes diversos, as territorializações,
e desterritorializações - passar de um código a outro, entrar e sair do código vigente -, os
rizomas de saberes, de pessoas, de fluxos, de conexões de todos os tipos. Os fluxos se conectam
ou se encontram. As subjetividades não são imóveis, elas mudam a cada momento nos
encontros. Tudo é rizoma ou se faz rizoma.

O que impede tais conexões de ocorrerem ou de serem percebidas como tal? O macro. O
sistema vigente, com seus códigos individualistas, monetários, psicologizantes - indivíduo a

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partir de uma concepção de eu como modelo de leite condensado -, códigos estanques,
filosofias já prontas, aceitas como verdades, o medo da mudança. E o medo da perda de
regalias, e de interesses pessoais de poder estável “ Trata-se de sistemas de conexão direta entre
as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias
psíquicas que de4finem a maneira de perceber o mundo...” (Guattari,1986:27)

5.3.2 Rizoma e o Mil Platôs

O rizoma opõe-se a raiz; ele é o não uno, é a multiplicidade. A raiz é a lógica binária, é o uno,
tronco, que se torna dois; incluído na raiz está a raiz pivotante, a lógica pivô (múltiplo com
centralização de um pivô ou tronco); a divisão não é mais de dois, dicotômica, mas é mais
numerosa, lateral e circular ( ex. dado por Deleuze e Guattari -o livro com seu eixo e suas
folhas), mas permanece acentralizado. Temos na árvore uma unidade principal (tronco ou
pivô), e passa-se a três, quatro, cinco ramos. O pivô suporta raízes secundárias. A raiz pivotante
e a raiz dicotômica não compreendem a multiplicidade, pois são centralizados. Um segundo
tipo é o sistema radícula ou raiz-fasciculada, é uma pseudo-multiplicidade; a raiz principal
abortou e vem se enxertar nela uma multiplicidade de raízes; perde-se o pivô.

O segundo tipo de conexão é o sistema-radícula ou raiz fasciculada. A raiz principal aborta, se


destrói e enxerta-se nela multiplicidades de raízes secundárias com grande desenvolvimento.
Está presa numa estrutura, que se reduz em leis combinatórias. Este sistema não rompe com o
dualismo realmente, há uma mais alta unidade, de ambivalência, de sobredeterminação.

Finalmente, o rizoma é n-1, subtrai-se a unidade à multiplicidade. O rizoma com haste


subterrânea é bem diferente dos dois anteriores; bulbos, tubérculos são rizomas. Ele tem
“formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas
concreções em bulbos e tubérculos” (Deleuze e Guattari 1995).

Os dois autores começam estudando os livros raiz e rizoma e alastram estas formas para toda a
botânica, vida animal e conexões em geral.

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As características do rizoma são:

1o Princípio- conexão- qualquer ponto de um rizoma pode ser ligado a qualquer outro e deve
sê-lo.

2o Principio - heterogeneidade- cadeias diversificadas se conectam, e não só verbais a verbais


como aprendemos na lingüística vigente:

“... num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico:
cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos,
cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc, colocando em jogo não somente regimes de
significados diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. Os agenciamentos coletivos
de enunciação funcionam, com efeito, diretamente nos agenciamentos maquínicos, e não se
pode estabelecer um corte radical entre os regimes de signos e seus objetos” (Deleuze e
Guattari, 1995:15). (grifos do autor).

Um setor não pode sobrecodificar um outro setor. Cada setor encontra-se com outros setores
diretamente, e tem seus próprios sentidos, não atribui sentidos aos demais setores.

3o Princípio- multiplicidade- o múltiplo tem que ser substantivo; se for adjetivo, estamos na
falsa multiplicidade, ou estamos numa arborescência.

“Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, lingüísticos,
mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem
universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas
especiais” (Deleuze e Guattari, 1995:16).

Se há mais e mais conexões num rizoma, o plano de consistência ou local e espaço de


agregamento, cresce. O rizoma ao crescer se desterritorializa de suas semiótocas sempre pelo
fora; este fora parece uma contradição, mas significa que há uma grade de multiplicidades e
surgem linhas de fuga em relação às semióticas instaladas no rizoma até o momento. A linha de
fuga marca dimensões finitas e outras menos; é um plano em aberto.

4o. Princípio- de ruptura a-significante- um rizoma pode ser quebrado em qualquer lugar;
entrar e sair em qualquer linha ou linha segmentada de segmentaridade, onde é organizado; são
inúmeras linhas.

As linhas de segmentaridade organizam-se de muitas formas que podem ser micro-fascismos;


mesmo depois de linhas de fuga ocorrerem após rupturas, estes microfascismos ou
ressurgências de édipos podem se organizar novamente.

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“As linhas não param de remeter umas às outras” (...).“Como é possível que os movimentos de
desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos, não estivessem em
perpétua ramificação, presos uns aos outros? A orquídea se desterritorializa, formando uma
imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa, sobre esta imagem. A vespa se
desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da
orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem
rizoma em sua heterogeneidade. Poder-se-ia dizer que a orquídea imita a vespa cuja imagem
reproduz de maneira significante (mimese, mimetismo, fingimento, etc.). Mas isto é somente
verdade no nível dos estratos - paralelismo entre dois estratos determinados cuja organização
vegetal sobre um deles imita uma organização animal sobre o outro. Ao mesmo tempo trata-se
de algo completamente diferente: não mais imitação, mas captura de código, mais-valia de
código, aumento de valência, verdadeiro devir, devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da
vespa, cada um destes devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a
reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma
circulação de intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe. Não há
imitação nem semelhança, mas explosão de duas series heterogêneas na linha de fuga composta
de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de
significante” (Deleuze, Guattari, 1995:18).

É como um livro que faz rizomas com o mundo, e não é uma cópia ou representação do
mundo.

5o Princípio- cartografia - Um rizoma é estranho a eixo, ou a estrutura, não se justifica por


nenhum modelo. É aberto a todos os pontos como uma cartografia. Um inconsciente não se
reproduz, mas se constrói como uma cartografia.

6o. princípio- de decalcomania - o eixo genético e estrato profundo são princípio de decalque,
reprodutíveis ao infinito. Rizoma é mapa e não é decalque; mais ainda, é cartografia.

“Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não
reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o
mapa se opõe ao decalque, é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada
no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele
contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua
abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma” (Deleuze, Guattari,
1995:22).

Mas os autores invertem e dizem que é preciso projetar o decalque sobre o mapa. O decalque
traduz o mapa em imagens. E é preciso re-ligar os decalques aos mapas, relacionar as raízes aos
rizomas.

Rizoma é mapa e não decalque, ou cartografia, mas é necessário cuidado com a divisão
bom/mau, dualismos, alertam os autores. Mapa tem redundâncias como os decalques. As linhas
de fuga vão reproduzir funções que tinham por função desfazer, mesmo divergindo. Rizoma é
produzir e reproduzir.

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5.3.3 Desterritorialização

Para vivermos em redes são imprescindível desterritorializações. Os Rizomas são redes, ou as


redes são rizomas sempre desterritorializantes. As redes não podem ser árvores, nem radículas,
nem pivôs. Rizoma e rede são sinônimos de multiplicidade. Para se viver sem tronco ou sem
pivô, é necessário muito treinamento em auto-análise. Viver encontros e encontros rizoma.
Perceber afetares e elaborar e conviver, sem temor. O afetar é riqueza porque ser afetado é
modo e é acontecimento, é confirmação de um encontro. Tudo isto é decorrência, é
acontecimento da desterritorialização.

Os impedidores de movimento são: a raiz, o significado que remete ou representa o


significante, o aparelho de estado, o sedentarismo, o macro, o molar, a terrritorialização,
estratos, segmentaridade.

A facilitação passa por máquinas de guerra, nomadismo, rizomas, linhas de fuga, o micro, o
molecular, a desterritorialização. Nomadismo é algo de que Mafesoli diz:

“De minha parte, tenho falado de “violência totalitária”. Violência feita às pessoas, violência
feita à natureza. Violência que pode ser temperada mas que nem por isso é menos real.
Violência que conseguiu “enervar” o corpo social, fazer com que alterasse seu procedimento até
torná-lo amorfo, indeciso e totalmente dúbio para a vontade. É a violência dos bons sentimentos,
dando uma proteção em troca da submissão. Não há então com o que se espantar se
progressivamente o sentimento de pertencer, ate mesmo o de cidadania ou de responsabilidade,
tendem a se esbater. Desde que o momento em que alguns homens políticos, tecnocratas, gente
com poder de decisão de todo tipo, dirigem e organizam a vida social em lugar de seus diversos
protagonistas, estes se tornam uma coisa estranha com a qual não é preciso se preocupar
coletivamente.A regulamentação da “Circulação”, a boa gestão das disfunções ou dos acidentes
que ela não deixa e induzir permanecem, de antiga memória, a preocupação essencial do poder.
E, quer se trate de um ponto de vista individual ou social, do mito de Ëdipo, com as
conseqüências, aos errantes contemporâneos, o poder se empenha para que tudo “funcione
perfeitamente”. Quer dizer que tudo seja bem canalizado e nada escape ao controle (...) “Não se
trata neste caso de uma atitude marginal ou um tanto sonhadora. A errância não é, de jeito
nenhum, exclusividade de alguns. Mas, como Mr.Jourdain fazia prosa sem o saber, todo mundo
pratica a errância quotidianamente. Pode-se mesmo dizer que o homem pós-moderno está
impregnado disso. A fim de domesticar o termo, foi possível falar de mobilidade. Essa
mobilidade é feita das migrações diárias: as do trabalho ou as do consumo. São também as
migrações sazonais: do turismo e das viagens, sobre as quais é possível prever um importante
desenvolvimento. É ainda a mobilidade social ou os deslocamentos maciços de populações
induzidas pelas disparidades econômicas. Tudo isso é muito vulgar, mas contém em si uma
importante dose de aventura” ( Mafesoli, 2001:23-29).

Raquel Corrêa Ferreira

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IN: “Redes na Contramão do Capitalismo - Redes e Rizomas”

Monografia apresentada ao Instituto de Educação


Continuada - IEC da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais - PUC como requisito para obtenção
do título de pós-graduação em Gestão do 3º Setor.

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