Você está na página 1de 6

Acordei pela manhã sem expectativas para o dia que se seguiria, entretanto tudo que eu

almejava era que chegasse o momento de eu pegar o ônibus e ir de volta para o lugar de
onde eu não deveria ter saído. Levantei da cama. Havia um peso em minhas costas que
me fazia ter dificuldades de me movimentar. Caminhei pelo quarto como se buscasse
motivos para estar ali, de pé. Não os encontrei, mas direcionei a minha motivação para a
mala bagunçada que eu precisava arrumar. Fiz o melhor que pude, peguei todas as
roupas, sujas e limpas e coloquei-as num bolo dentro da estrutura, sem separá-las por
peças ou dobrar. Com dificuldade, fechei o zíper.

Após terminar o trabalho, sentei-me na borda da cama e observei o ambiente ao meu


redor. Tudo ali dizia muito sobre mim, mas talvez fosse uma imagem que eu devesse
deixar para trás. Eu precisava seguir em frente, esquecer tudo aquilo, isolar-me em um
lugar distante daquele universo que não me pertencia. Pensei no que faria quando
chegasse em minha casa. O meu maior desespero era encontrar uma forma de trabalho
que possibilitasse que eu parasse de receber a mesada de papai. Apesar de ser uma
vantagem para mim, eu precisava me desligar de tudo que pudesse me fazer sentir a dor
da culpa, que eu verdadeiramente não tinha.

Eu vivi toda a minha vida tentando lidar com aquele sentimento, sem ter certeza do
porquê dele existir e qual era a sua função na construção da minha identidade.

Lembrei-me dos últimos dias de mamãe naquela casa. Éramos tão unidos, eu sempre me
sentia reconfortado em seus braços. Seus olhos eram meus sóis, sua voz a minha canção
predileta. Eu tinha boas lembranças dela, de como era tê-la por perto. Então tudo se
transformou em dor, e aquela imagem e a história por trás dela, fornecia material para o
meu passado sombrio e que alimentava as minhas feridas, aprofundando-as sempre que
eu tentava chegar perto de qualquer uma delas.

Um barulho gutural escapuliu da minha boca acompanhado de gases, meu estômago


girou e denunciou que precisava de alimentos. Saí do quarto caminhando lentamente,
triste como se numa das minhas pernas estivesse atado uma enorme corrente que tinha
na ponta uma bola maciça e pesada como uma bala de canhão. Desci as escadas, mas
antes de chegar em metade dos degraus, uma voz atrás de mim chamou o meu nome.

— Então você realmente decidiu ir embora hoje — papai quis saber. Seu semblante era
lívido, porém havia algo de carrancudo na forma como se dirigiu a mim.

— É o melhor a ser feito — respondi-o desinteressado e seguir o meu caminho.

— Você pode esperar, não precisa sair daqui assim, ninguém está te expulsando... — ele
tropeçou nas próprias palavras — Eu sei o que aconteceu, ouvi boatos, mas isso não
significa que você precisa fugir. O problema não é seu, totalmente...

— Papai, acho melhor eu ir. Já reservei minha passagem para hoje às dezoito. Eu vou
tentar de alguma forma custear minhas despesas quando chegar em casa, não quero mais
depender do quê...
— Mael, você está exagerando — interveio — eu nunca reclamei do fato de ter que
custear os seus estudos, a sua estadia, o que eu tenho é seu e quando eu me for, vai ser
seu.

Olhei-o nos olhos, entendendo pouco dos motivos que o levavam a falar daquela
maneira comigo. Dias antes ele tinha dito que eu não deveria ter voltado e agora vinha
com aquele discurso cheio de arrependimento e bondade. Puro fingimento. Eu não
conseguia acreditar em mais nada que aquele homem dizia. Grande parte da tristeza que
eu sentia no momento, não era pelo que tinha acontecido comigo e Jove, mas sim pela
minha frustração em saber que nunca poderíamos ser o que deveríamos.

Um silêncio estendeu-se entre nós. Ele comprimiu os lábios como se lamentasse. Moveu
a cabeça negativamente e me deu as costas. Eu segui o meu caminho, anestesiado. Não
deixaria que nada do que ele tinha dito me influenciasse.

Cheguei à cozinha e Raquel estava aprontando o almoço. Peguei o celular para olhar
que horas eram e só então percebi que já passava das dez da manhã. Sentei-me a mesa,
ainda atordoado pela intervenção do meu pai. Coloquei os dois cotovelos sobre o móvel,
espalmei as mãos e coloquei minha face sobre elas. Fechei os olhos, respirei fundo e
quando abri-os novamente, havia uma caixa de cerca de trinta centímetros na minha
frente. Raquel estava parada ao meu lado com seu olhar interrogativo sobre mim.

— O que é isso — indaguei prestando atenção nos detalhes do objeto. Era de madeira e
parecia velho.

— Isso te pertence. Mamãe deixou sob meus cuidados antes de partir e pediu para que
eu te entregasse. Acho que esse é o momento certo — ela concluiu a frase e se afastou
de mim.

Peguei a caixa em minhas mãos e a olhei. Um sentimento desconhecido se apoderou de


mim, e como se eu premeditasse que algo mais aconteceria, meu coração disparou. A
fome que antes eu sentia se dissipou. Levantei-me da mesa, fui em direção ao meu
quarto.

Quando no cômodo, sentei na cama e respirei fundo. Eu tinha poucas lembranças de


dona Inês, mas sabia que ela tinha feito muito por mim quando eu era criança. Ela
tentou substituir a mãe que eu não tive, entretendo o buraco deixado por aquela que eu
amava, nunca se fechou ou cicatrizou.

Alisei a caixa, demoradamente e quando não aguentei mais de curiosidade, abri-a.


Haviam inúmeros envelopes amarelados amontoados dentro do pequeno espaço. O
cheiro do mofo alcançou o meu olfato e eu espirrei compulsivamente. Levantei-me da
cama, fui ao banheiro e lavei meu rosto. Ao olhar no espelho, percebi que os meus olhos
estavam vermelho, assim como a ponta do meu nariz.

Voltei para a cama e peguei novamente a caixa contendo os envelopes. O sentimento


desconhecido se tornou ainda mais presente. Tentei identificá-lo racionalizando o que
sentia. Por que diabos eu estava tão emocionado por receber de presente uma caixa de
uma mulher morta. Abri um sorriso de poucos dentes. Peguei um dos envelopes e retirei
de dentro dele um papel, onde estavam escritas algumas frases. Olhei a letra e achei-a
parecida com a minha. Meus olhos marejaram, meu peito se apertou e eu tive uma
enorme ânsia de levantar e correr.

Não havia data, nem nome na carta, nem no envelope, mas ao ler o seu conteúdo eu
soube de quem se tratava.

***

Meu bebê, príncipe de Tróia. Agora você já deve ser um homenzinho, mas talvez você
ainda não entenda o porquê eu fiz o que fiz, e talvez sinta muito ódio de mim. Eu
também não sei o que seu pai colocou em sua cabeça todo esse tempo, mas só agora me
senti segura o suficiente para escrever para você. Sinto muito por ter te deixado. Eu
não me perdoei por isso, mas era necessário. Sinto muito que você tenha crescido sem
mim por perto, eu quis acompanhar todas as fases da sua vida, mas infelizmente
caminhei em direção oposta ao que tinha que fazer para permanecer contigo. Eu sei
que eu pareço ser dura e cruel contigo, mas essa nunca foi a minha intenção. Perdoe-
me por isso, por tudo isso. Eu te amo imensamente, príncipe de Tróia. Eu te amo.

***

Uma lágrima caiu sobre a folha do papel. Eu me levantei incrédulo, sem a certeza de
que o que eu estava lendo era realmente aquilo. Olhei novamente o papel. Ajoelhei-me
no chão e chorei durante minutos a fio. Foi como se uma bomba explodisse em meu
peito e toda a minha fragilidade fosse exposta.

Voltei para a cama, trêmulo e desesperado. Peguei outros envelopes e passei a ler
compulsivamente o conteúdo das cartas dentro deles.

***

Hoje é seu aniversário, meu amor. E eu estou com muitas saudades. Queria comemorar
este dia contigo, não sei se essa carta vai chegar antes ou depois, mas tudo que eu
desejo para você é muito amor. Não sei se um dia você me perdoará, mas saiba que eu
te amo, te amo infinitamente. Não recebi resposta da carta que mandei anteriormente,
então pensei em três possibilidades, talvez Dona Inês não tenha entregado a você,
talvez ela tenha entregado ao seu pai, e assim como quando entrei em contato com ele e
ele se negou a me deixar vê-lo, provavelmente ele não te entregou a minha carta. Ou
talvez você tenha lido, mas o ódio que sente de mim pelo que fiz é maior que a vontade
de falar com a sua mãe. Mas eu te entendo se for isso, eu entendo mesmo. Eu me
arrependo do que fiz, não por ter deixado seu pai, ter saído da fazenda, ter começado
outra vida, mas por ter deixado você para trás. Feliz aniversário príncipe de Tróia, eu
te amo.

***
A grande maioria das cartas tinham pedidos de perdão, muitas frases de eu te amo e um
aparente arrependimento pelo que ela tinha feito. Eu estava completamente desolado
enquanto lia aquelas cartas. Ainda não sabia o motivo dela ter ido embora, mas aos
poucos algumas coisas se revelavam para mim, mesmo deixando pontas soltas.

***

Meu amor, estou radiante em saber que você tomou a decisão de se mudar para outra
cidade e estudar direito. Você sempre foi muito inteligente, terá um futuro promissor.
Dona Inês me contou tudo, ela tem me dado notícias suas, de como você está. Ela me
contou o motivo de você não me responder e a preocupação dela em entregar as cartas
a você sob a tutela de seu pai. Mas eu continuarei escrevendo, tenho esperança que um
dia tudo isso chegue até você, todo o meu amor, que está guardado aqui no meu peito e
que eu passo um pouquinho da sua imensidão nas palavras que te escrevo. Queria
muito estar contigo, fazer parte dessa fase da sua vida, mas infelizmente estamos muito
longe e há outras questões que me impedem de ir até você. Mas saiba que eu te amo,
hoje, amanhã e sempre. Me perdoa por tudo.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Príncipe de Tróia, meu amor. Hoje eu te vi, talvez você tenha me visto, mas não saiba
que sou eu. Quis falar contigo, mas não pude. Não sei qual será a sua reação de mesmo
querendo muito te abraçar e saber quem é você depois de todo esse tempo sem nos
vermos, a coragem escapou de mim. Mas eu te olhei e te amei. Você continua lindo, um
verdadeiro príncipe. Te amo, talvez um dia nos encontremos.

***

A minha respiração se tornou pesada, tive dificuldades em continuar a ler. Um choro


guardado no canto mais profundo do meu âmago escapou pelos meus olhos em forma
de lágrimas e pela minha boca como soluços. Era um choro alto, infinito. Meu coração
estava em cacos. Eu não sabia o que fazer com aquela dor e com tudo que tinha lido.
Ainda faltavam mais cartas, peguei-as e li-as rapidamente. Apesar das repetições
haviam sempre informações novas, como o fato de papai saber o motivo pelo qual ela
tinha ido embora. Numa das cartas, ela revelava que tentou entrar em contato, voltar a
fazer parte da minha vida, no entanto, o homem não permitiu. Eu gritei, esperneei sobre
a cama, contorci-me de dor e revolta. Peguei todas as cartas e num movimento
impensado lancei-as para os lados.

Subitamente papai apareceu na porta do meu quarto. Seus olhos fixaram-se em mim,
seu semblante era de espanto. Ele se aproximou, dando passos lentos e comedidos.

— O que houve — questionou-me.

— Isso — exclamei e apontei para os papéis no chão.


Ele respirou fundo, acocorou-se e pegou uma das cartas. Rapidamente leu todo o
conteúdo de uma delas.

— Quem te deu isso — quis saber.

— E importa. Você sempre soube o motivo, o porquê e ela quis voltar, mas você não
permitiu.

O homem se levantou em silêncio, fitou-me apreensivo, mas não disse uma única
palavra.

— Por que — interroguei-o.

Levantei-me da cama, andei em sua direção e quanto perto dele novamente perguntei-o.

— Por que

Papai não disse uma única palavra. Ensandecido avancei sobre ele, mas antes que
pudesse socá-lo, ele segurou meus braços e me manteve preso.

— Por que — continuei perguntando.

— Acalme-se! Acalme-se — ele pedia, mas eu não conseguia parar de chorar, gritar e
querer esmurrá-lo.

Raquel apareceu na porta do quarto, provavelmente após ouvir o barulho dos meus
gritos. Quando vi a mulher, encarei-a. Seu semblante era de espanto.

— Onde ela está — direcionei a pergunta para Raquel.

— Do que você está falando — papai quis saber.

Raquel não disse uma única palavra. Eu me esforçava para me soltar dos braços de
papai, mas ele era extremamente mais forte que eu. As palavras escritas na carta
reverberavam na minha mente. Todos aqueles anos eu tinha sido enganado por todo
mundo ao meu redor, papai, dona Inês. Definitivamente ninguém tinha nenhuma
empatia por mim e pelos meus sentimentos.

Hoje eu te vi, talvez você tenha me visto, mas não saiba que sou eu.

A frase apareceu na minha mente, num minuto de epifania e lucidez. A mulher que eu vi
na janela da casa de Raquel e me observava, só podia ser ela. Tinha que ser. Tudo fazia
sentido, o que eu senti a curiosidade, a vontade de se aproximar. E se Raquel tinha o
conhecimento das cartas, ela também sabia onde ela estava.

— Me solte — gritei e usei toda a minha força para me soltar dos braços de meu pai.
Conseguindo o meu intento, passei pela porta, esbarrando-me em Conseguindo o meu
intento, passei pela porta, esbarrando-me em Raquel, quase fazendo a mulher cair.
Desci as escadas apressado. Percebi que logo atrás de mim vinham papai e a mulher.
Coloquei ainda mais velocidade em meus movimentos. Passei pela sala, cozinha,
atravessei a porta que dava para os currais. Ao ver seu Gilson, fui até ele. Tentei ser o
mais sóbrio o possível. Eu não podia pedir-lhe carona, já que sabendo do que se tratava,
provavelmente obedeceria papai e não a mim.

— Gilson, você pode emprestar a sua moto, é rapidinho — disfarcei o embargo da


minha voz.

O homem sorriu ao meu ver.

— Bom dia patrãozinho. Vai dar um rolê — ele quis saber.

Permaneci em silêncio. Gilson olhou no fundo dos meus olhos. Mesmo que não tivesse
sabença do que estava acontecendo, com certeza desconfiou que havia algum problema.
Ele levou a mão ao bolso e pegou a chave. Entrou na minha mão. Corri em direção a sua
moto, que estava estacionada na frente de casa. Papai despontou junto com Raquel na
porta da cozinha.

— Mael, volte aqui — berrou enfurecido.

Gilson a essa altura já não entendia absolutamente nada. Quando alcancei a moto do
homem, pulei sobre ela sem nenhum cuidado. Dei partida no automóvel e guiei-me em
direção a saída da fazenda. O portal que dava para estrada que me levaria à cidade
estava fechado. Ainda sobre a moto, abri-o com dificuldade e usei um dos pés para
empurrá-lo. Assim que passei pela abertura com a moto, o portão fechou-se atrás de
mim e quase me derrubou. Olhei para trás quando já no caminho e vi os rostos de terror
de papai, Raquel e Gilson.

Você também pode gostar