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Mondin – Cosmologia – Tradução parcial e adaptada.

Preâmbulo
A cosmologia é – entre todas as disciplinas filosóficas – aquela mais estreitamente
ligada à ciência, de modo particular à física. De facto, o seu território coincide exatamente
com o da física, mas o mesmo não acontece com a sua perspetiva. Com efeito, se a física
tem em vista as leis do cosmos, a cosmologia tem como objetivo as causas últimas do
cosmos.
Até ao início da época moderna, ou seja, até ao advento da ciência experimental,
quase todo o território da física era ocupado pela cosmologia ou filosofia da natureza.
Posteriormente, com o avanço das várias ciências naturais (química, física, física
quântica, física atómica, nuclear, etc.) o território da cosmologia reduziu-se
progressivamente até ficar diminuto.

Sumário da história da cosmologia

Os Pré-Socráticos
A cosmologia tem a honra de ser primeira das ciências filosóficas. Todas as outras
– gnosiologia, ética, política, metafísica, antropologia – vieram depois dela. A cosmologia
nasce com intuitos mais metafísicos do que que físicos. O problema com que Tales,
Anaximandro e Anaxímenes se defrontam é um problema eminentemente metafísico:
como explicar a unidade daquilo que é múltiplo? Qual é o princípio primeiro e supremo
de todas as coisas? A sua resposta é que toda a natureza procede de um único princípio:
a água para Tales, o ar para Anaxímenes, o ápeiron para Anaximandro.
Pitágoras, ao estabelecer o número como princípio, abandona o plano naturalista
e transfere a pesquisa para o plano inteligível, ainda que apenas matemático. Por outra
parte, esta solução supre a necessidade, não só da causa material, mas também da causa
formal do universo corpóreo de modo que o monismo indiferenciado subjacente à solução
iônica é substituído por uma solução pluralista.
O problema da natureza é também tratado de modo indistinto da metafísica pelos
dois grandes antagonistas do séc. VI a. C.: Parménides e Heráclito. Mas a problemática é
enriquecida: o problema da realidade corpórea como externa e espacial e, ao mesmo
tempo, como móvel e temporal, manifesta-se na aporia do ser e do devir. Todavia, no

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monismo ontológico parmenidiano todos os problemas da natureza material (composição,
multiplicidade, devir), são mais eliminados do que resolvidos. Por sua vez, Heráclito,
com a sua reivindicação do movimento, não se consegue opor de modo eficaz à influência
da tese eleática (da linha de Parménides) que dominará os sucessivos desenvolvimentos
da filosofia.
Os atomistas abandonam o abstratismo de Parménides e propõem uma explicação
da natureza baseada diretamente na experiência, formulada com conceitos empíricos e
não com termos abstratos. Demócrito sustenta ao mesmo tempo a imutabilidade do ser e
a realidade do devir. O ser é constituído pelos átomos, que são parcelas indivisíveis e
invisíveis, eternas e imutáveis; não têm qualquer qualidade, exceto a impenetrabilidade;
diferem entre si apenas pela figura e pela dimensão. O movimento é a causa do devir, o
qual, fazendo os átomos encontrarem-se no vazio, junta-os de vários modos dando assim
origem às coisas.

Platão
A filosofia da natureza de Platão rege-se por três princípios fundamentais: as
Ideias, que servem como modelos; o Demiurgo, que serve de causa eficiente; e o vazio
(kora), que serve de recipiente. O Demiurgo, contemplando as Ideias, plasma a matéria,
preenche o vazio e deste modo produz o mundo material. Terminada a formação do
mundo, o Demiurgo infunde-lhe a alma universal, que tem como função vivificar o
mundo, sem a necessidade de uma contínua intervenção do Demiurgo.
Platão examina e discute vivamente em vários diálogos a questão das relações
entre mundo sensível e mundo inteligível. Esta relação é por ele concebida, ora como
imitação (mimesis), ora como participação do sensível no ideal.
Ainda que genial e fascinante, a cosmologia platónica acaba por ser demasiado
estática; explica muito bem a multiplicidade, as afinidades e a ordem, mas não explica o
devir.

Aristóteles
Aristóteles é o pai da cosmologia, assim como de tantas outras disciplinas. De
facto, na sua Física dá-nos uma sistematização de todos os conceitos fundamentais que
respeitam a esta disciplina, enriquece-a com novos conceitos e propõe doutrinas que serão
para sempre marcos da história da cosmologia.

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Segundo Aristóteles, a caraterística primária das coisas naturais é o movimento, o
devir. O movimento é aquilo que distingue as coisas naturais das coisas imutáveis e
eternas (estas são objeto de estudo da Metafísica). Portanto, a Física é essencialmente
estudo do devir. Nos primeiros quatro livros desta obra, Aristóteles explora a natureza do
movimento, enquanto nos últimos quatro estuda os principais géneros de movimento e
procura as suas causas últimas.
Aristóteles parte da constatação de que os seres da natureza são, total ou
parcialmente, movido (como mostra a experiência). Ora, ser movido significa mudar,
sofrer geração e corrupção. Portanto, conclui Aristóteles, o termo natureza designa coisas
que têm em si mesmas o princípio do movimento ou do repouso (espaço, aumento e
diminuição, alteração).
A física aristotélica constitui como que uma ontologia do devir, isto é, uma análise
do ser no devir em todos os seus aspetos. O horizonte do devir é o ser, e o devir é inerente
(como uma espécie de vida) às coisas que existem.
Para Aristóteles, as teorias dos seus predecessores sobre o devir (Parménides, que
o negava, e Heraclito, que reduzia tudo a um perpétuo devir) não são admissíveis. No seu
entender, a explicação do movimento requer dois princípios: a matéria e a forma. O devir
é a passagem da matéria de uma forma para outra forma.
A matéria é o substrato requerido por qualquer mutação, seja acidental (local,
qualitativa, quantitativa), seja substancial (geração, corrupção). Na mutação substancial,
o conceito de matéria como potência é pensado na sua pureza de absoluta indeterminação,
ou seja, de poder substância, à qual a forma confere todas as
determinações/características. A forma é precisamente “a razão pela qual a matéria passa
uma determinada coisa”. A matéria e a forma não existem nem podem existir uma
separada uma da outra, mas apenas em conjunto. O conjunto consiste numa substância
particular.
A forma é o princípio de determinação ontológica da coisa; mas é também
princípio de determinação lógica, ou de inteligibilidade. Por seu turno, a matéria,
princípio de indeterminação, é raiz de ininteligibilidade. A doutrina cosmológica de
Aristóteles reflete-se, desta forma, na doutrina gnosiológica.

Estoicismo
O Logos irradia a sua força na matéria sob a forma de sementes. Estas,
desenvolvendo-se, dão origem aos indivíduos. As sementes propagadas pelo Logos na

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matéria são fragmentos do próprio Logos. No indivíduo, a razão seminal desempenha a
mesma função que a forma na conceção aristotélica. Na ação que exerce sobre a matéria,
o Logos tem por finalidade a perfeição do cosmos, e esta é atingida lentamente, através
de um processo de evolução. Seguindo leis bem determinadas, o Logos conduz o mundo
a um grau de perfeição sempre maior. Uma vez atingido o maior grau de perfeição, o
Logos põe tudo em chamas e reconduz tudo ao seu ponto de partida. Na reconstrução do
universo, o Logos segue sempre a mesma ordem; deste modo, tornam a acontecer os
eventos acontecidos nos ciclos precedentes, sem uma modificação significativa. Tudo
acontece segundo o fado, que é também providência.

Santo Agostinho e São Tomás


O elemento novo e decisivo da cosmologia dos pensadores cristãos é o teorema
da criação, uma doutrina de origem bíblica, mas que para os autores cristãos adquire uma
valência filosófica de importância capital.
O teorema da criação comportas três verdades fundamentais: 1) o mundo material
é produzido diretamente por Deus, sem a intervenção de qualquer Demiurgo; 2) é
produzido segundo um plano ideal conhecido pela Mente divina (o Verbo de Deus); 3)
não há uma matéria preexistente da qual o mundo seja feito ou na qual sejam implantadas
as formas das coisas, pois que a própria matéria é criada diretamente por Deus.
Com a introdução do teorema da criação, toda a cosmologia sofre uma profunda
transformação. Contudo, enquanto Agostinho faz uso deste teorema para reestruturar a
cosmologia platónica, Tomás utiliza-o para dar um novo arranjo à cosmologia
aristotélica.
Segundo Agostinho, Deus criou um mundo destinado a desenvolver-se no tempo;
criou as coisas do nada, segundo as ideias-arquétipo que se encontram no Verbo, o Filho
de Deus, e imprimiu nas coisas rationes seminales (razões seminais), que contêm todas
as virtualidades que se desenvolveriam e atuariam na história do universo. Tal como na
semente de uma árvore estão presentes, de modo invisível, todas as partes da árvore que
se desenvolverão sucessivamente, assim todos os diferentes corpos estiveram presentes
no mundo, desde o seu início, sob a forma de sementes.
Aquilo que atormentou Agostinho durante muito tempo foi o problema do mal.
Os maniqueus tinham resolvido este problema fazendo do Mal um princípio primeiro e
coeterno contrário ao Bem. Agostinho soluciona esta questão concebendo o mal como

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privação do bem. Tal privação resulta dos limites intrínsecos de toda a criatura ou da
perversão da vontade das criaturas dotadas de inteligência (anjos e seres humanos).
Portanto, o mal não tem origem em Deus, mas na criatura. Mesmo não tendo
origem n’Ele, Deus, na sua omnipotência e omnisciência, reconduz o mal à ordem geral
das coisas, fazendo com que dele se possa extrair algo de bom.
Para São Tomás, o eixo de toda a cosmologia é também a criação. No entanto,
seguindo Aristóteles, São Tomás reconhece ao mundo um dinamismo próprio que
desparecera em Santo Agostinho. Todas as coisas, graças à sua forma, são também
princípio de ação. Para explicar a natureza dos corpos, Tomás retoma a teoria hilemórfica
de Aristóteles. No entanto, recusa-se a fazer do hilemorfismo a linha de demarcação entre
o Criador e as criaturas. Para salvar a distinção entre Criador e criaturas não é necessário
fazer uso da distinção entre matéria e forma. É mais adequado usar a distinção entre
potência e ato: a composição de ato e potência é própria de todas as criaturas (ex: anjos,
alma humana); a composição de forma e matéria diz respeito à física (ex: animais, pedras,
etc). A composição nos anjos é de essência e ato de ser, não é de matéria e forma (o anjo
não tem matéria, é só forma – na Medievalidade, os anjos eram frequentemente
designados no vocabulário filosófico e teológico como Inteligências). O elemento
material está totalmente ausente nos anjos.

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