Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Angelene Lazzareti
RESUMO: O presente artigo reflete sobre a escuta e o entre como inspirações para
uma formação artística sensível e porosa. A escuta é compreendida como ação de
corpo inteiro, que possibilita testemunhar e legitimar a existência do outro. O entre é
visualizado como força relacional de produção de singularidades e de fragilidades e,
embora não possa ser estabilizado para ser definido ou dito, pode ser escutado. As
referências deste texto são os estudos de Ivan Flores Arancibia, Jean-Luc Nancy,
Mirna Spritzer, Roland Barthes e Cassiano Sydow Quilici.
Palavras-chave: Entre; Escuta; Formação artística; Corpo; Afetividade;
In between, listening
ABSTRACT: This article reflects about listening and the in between as inspirations for
a sensitive and porous artistic formation. Listening is understood as a full-body action,
which makes it possible to witness and legitimize the existence of the other. The in
between is viewed as a relational force for the production of singularities and
weaknesses and, although it cannot be said or defined, it can be heard. The references
of this text are the studies of Ivan Flores Arancibia, Jean-Luc Nancy, Mirna Spritzer,
Roland Barthes and Cassiano Sydow Quilici.
Keywords: In between; Listening; Artistic formation; Body; Affection;
En el entre, a la escucha
RESUMEN: Este artículo reflexiona sobre la escucha y el entre como inspiraciones
para una formación artística sensible y porosa. La escucha es comprendida como una
acción de cuerpo entero, que permite presenciar y legitimar la existencia del otro. El
entre es pensado como fuerza relacional para la producción de singularidades y
fragilidades y, aunque no se pueda decir o definir, se puede escuchar. Las referencias
de este texto son los estudios de Ivan Flores Arancibia, Jean-Luc Nancy, Mirna
Spritzer, Roland Barthes y Cassiano Sydow Quilici.
Palabras clave: Entre; Escucha; Formación artística; Cuerpo; Afectividad;
Dessa forma, o entre acontece como passagem efêmera que ocorre a cada vez,
no ato do contato, acontece como alteridade sensível, realização das diferenças entre
os estados do corpo. Para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, todo contato é uma relação
de tato e de toque: “o mundo é tecido pelos toques dos corpos- o ar o som, os sensores,
aromas e todas as outras modulações da matéria que tecem incessantemente o tecido
do espaço. Corpos entre si partilhando o seu entre, o seu com, o seu contra”. (NANCY,
2015 p. 46). Estamos sempre expostos aos outros, nos tocando direta e indiretamente,
eis a materialidade das relações. Para tratar do tema, o estudioso desenvolve uma das
noções mais importantes de sua obra: a ideia de ser-entre ou ser-com. Nancy desenha
uma “ontologia do entre” como alternativa à ontologia tradicional a partir da ideia de que
o corpo é o ser da existência como aquilo que acontece entre nós, “o vazio, o espaço, o
tempo, o sentido e a relação (cinco termos cuja conexão pode ser vista sem dificuldades:
eles são a quíntupla determinação do entre-corpo)” (NANCY, 2015 p. 7). O filósofo
enfatiza que a existência é o que partilhamos, não como propriedade que possuímos em
comum, mas como algo que ocorre entre, no com dos corpos uns com os outros, uns
entre os outros.
Trata-se igualmente e talvez ainda mais de uma ontologia do “entre”,
do afastamento ou da ex-posição somente pela qual qualquer coisa
como um “sujeito” pode se dar. Um sujeito, que assim terá dois
caracteres fundamentais: de não ser substância e de estar exposto
aos demais sujeitos (NANCY, 2015 p. 108).
Além das reflexões já expostas, como curiosidade, entre 2015 e 2018, muitos
médicos e cientistas passaram a falar a respeito do interstício como um novo órgão
do corpo humano1. Tal órgão não podia ser visualizado com os instrumentos e
procedimentos adotados anteriormente, mas no presente é possível analisar este
órgão e constatar que seu tamanho no corpo humano é maior do que a pele. Trata-se
1
Este estudo, ainda em fase inicial de exploração, pode ser consultado na seguinte referência: BENIAS, P.C.,
WELLS, R.G., SACKEY-ABOAGYE, B. et al. Structure and Distribution of an Unrecognized Interstitium in
Human Tissues. Sci Rep 8, 4947, 2018.
de uma rede de cavidades instalada sob a pele e sob a parede de vários outros órgãos
conectando todo o corpo. Essa conexão ocorre a partir do fluxo intenso de líquidos
em trânsito livre entre os espaços ocos deste órgão, que se estendem por diversos
outros órgãos e sistemas. No interstício, nesse entre-tecido constituído de buracos,
ocorrem comunicações e interações ainda desconhecidas.
Inacabado (hµigenh) e irresoluto, elástico e envolvente, móvel e
esburacado, viscoso, mas ligeiro, o entre circula sem contornos
precisos de corpo em corpo, de discurso em discurso, de imagem em
imagem. Se respira no ambiente, está na ordem do dia, na flor da pele,
no pedir da boca. Está ali, por todas partes, como uma imagem
flutuante que intercepta, a cada vez vaga e concretamente, as
significações e acontecimentos, as tendências e fenômenos, as
energias e ritmos que organizam nossa cultura. (ARANCIBIA, 2017, p.
36)
À escuta, entre
Neste fragmento, compartilharei algumas reflexões sobre a noção de escuta
como habitante do entre, inspiradas nos pensamentos de Mirna Spritzer, Roland
Barthes, Jean-Luc Nancy e Cassiano Sydow Quilici. Spritzer (2020, p. 1) nos diz que:
“Antes de nascer, a criança ouve. Ouve seus sons, de seu corpo que vai nascendo
aos poucos em meio à água, em meio aos sons filtrados pelo líquido. Sons de sua
mãe, do corpo que lhe dá guarida. Ouve a música das vozes, ouve a passagem do
mundo.” Ainda que escutemos antes de falar, geralmente, o aprendizado da fala
ocupa grande parte de nosso processo de formação na infância, conduzido por nossos
pais e professores. Mas como seria uma aprendizagem da escuta, uma formação
guiada por ela? Como podemos desenvolver diferentes e intensificadas formas de
escuta, que modifiquem, inclusive, as formas de falar e agir? Será possível pensar a
escuta também como acontecimento? Escuta como possibilidade de estar entre?
Escuta como lugar do outro? Escuta como produção de buracos no corpo estruturado?
O que significa, como exercício político, pensar na escuta como lugar de ocupação ou
de poder nos tempos de hoje? Nesse período no qual tantos de nós têm tanto a dizer,
reivindicando legitimamente a fala como lugar da manifestação para os diferentes
temas, mas que, por vezes, quando são todos gritados ao mesmo tempo tornam difícil
o ouvir, será possível realocar o lugar da escuta?
Que status é vinculado à prática da escuta (e aos corpos que escutam versus
os corpos que falam) nos processos de construção (identitária, social, política, cultural,
artística, etc.)? Que vozes escutamos nos discursos perpetuados que difundem o
saber instituído? Que vozes escutamos nos textos e livros que proliferam esses
saberes? Como transformar, a partir da escuta, “a voz” desses documentos em vozes
plurais? Será preciso quebrar as normas de condicionamento perceptivo e expressivo
para explorar diferentes formas de escuta? Talvez tenhamos perdido ou ainda não
tenhamos explorado a capacidade de escutar profundamente, de escutar não só
com os ouvidos, mas com o corpo todo – fato que influencia as nossas
possibilidades de entrar em relação, mas, mais que isso, de escutar as relações
como fenômenos do entre.
Como a forma como escutamos nossos próprios corpos se desdobra na forma
como escutamos os outros corpos? Como a forma como escutamos afeta a forma
como nos dizemos e construímos nossas narrativas e expressividades? Escutamos
os outros desde nossas funções e papéis fixos? Como escutar a partir de uma
perspectiva identitária movente e dinâmica que proporcione a quem diz a mesma
possibilidade de devir? Diante de tantas estruturas que não escutam e que formatam
as formas de ser e de estar no mundo, condicionam e normalizam os modos de entrar
em relação, como estar à escuta?
Sem a pretensão de responder a todas estas questões, e sim no intuito de
deixar que elas reverberem, apresento parte das reflexões concebidas no Grupo de
Pesquisa “Palavra, Vocalidade e Escuta nas Artes Cênicas e Radiofônicas”. No citado
grupo, compreendemos a escuta como princípio artístico, e desafiamos nossos corpos
desejando nos mover pela escuta, escutando com o corpo inteiro. Intuo que essa
forma de escutar com o corpo inteiro e não apenas com os ouvidos, se assemelha à
tentativa de perceber os movimentos e corpos a partir do entre, de escutar os rastros
do entre, de acolher os conflitos produzidos nele, e receber as diferenças que ocupam
o corpo. Spritzer escreve “Poética da Escuta, poética de estar entre” (2020, p.40) ao
tratar de uma noção de escuta criativa e sensível:
Referências
ARANCIBIA, Ivan Flores. De la metaxología. El problema del entre en el pensamiento
contemporâneo. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da
Universidade Autonoma de Barcelona, 2017.
BARTHES, Roland. A escuta. In: O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990.
BENIAS, P.C., WELLS, R.G., SACKEY-ABOAGYE, B. et al. Structure and Distribution
of an Unrecognized Interstitium in Human Tissues. Sci Rep 8, 4947, 2018.
LAZZARETI, Angelene; SPRITZER, Mirna. O corpo-voz entre. Urdimento-Revista de
Estudos em Artes Cênicas, v. 1, n. 28, p. 221-231, 2017.
LAZZARETI, Angelene. ENTRE: a trama dos corpos e do acontecimento teatral. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. 2019.
NANCY, Jean-Luc. À escuta. Belo Horizonte: Chão de feira, 2014.
NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Rio de Janeiro: 7 Letras. 2015.
NANCY, Jean-Luc. Demanda: Literatura e Filosofia. Florianópolis: UFSC; Chapecó:
Argos, 2016.
NANCY, Jean-Luc. Ser singular plural. Madrid: Arena Libros, 2006.
SPRITZER, Mirna. Poética da Escuta. Revista Voz e Cena - Brasília, v. 01, nº 01,
janeiro-junho/2020 - pp. 33-44.
QUILICI, Cassiano Sydow. A solidão colaborativa. In: O ator-performer e as poéticas
da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015, pp. 67-71.
SPRITZER, Mirna. A formação do ator, um diálogo de ações. Porto Alegre: Editora
Mediação, 2010.
SPRITZER, Mirna. Dizer e ouvir. In: IV Reunião Científica da ABRACE, 2007, Belo
Horizonte. Memória Abrace Digital, 2007.