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No entre, à escuta

Angelene Lazzareti

RESUMO: O presente artigo reflete sobre a escuta e o entre como inspirações para
uma formação artística sensível e porosa. A escuta é compreendida como ação de
corpo inteiro, que possibilita testemunhar e legitimar a existência do outro. O entre é
visualizado como força relacional de produção de singularidades e de fragilidades e,
embora não possa ser estabilizado para ser definido ou dito, pode ser escutado. As
referências deste texto são os estudos de Ivan Flores Arancibia, Jean-Luc Nancy,
Mirna Spritzer, Roland Barthes e Cassiano Sydow Quilici.
Palavras-chave: Entre; Escuta; Formação artística; Corpo; Afetividade;

In between, listening
ABSTRACT: This article reflects about listening and the in between as inspirations for
a sensitive and porous artistic formation. Listening is understood as a full-body action,
which makes it possible to witness and legitimize the existence of the other. The in
between is viewed as a relational force for the production of singularities and
weaknesses and, although it cannot be said or defined, it can be heard. The references
of this text are the studies of Ivan Flores Arancibia, Jean-Luc Nancy, Mirna Spritzer,
Roland Barthes and Cassiano Sydow Quilici.
Keywords: In between; Listening; Artistic formation; Body; Affection;

En el entre, a la escucha
RESUMEN: Este artículo reflexiona sobre la escucha y el entre como inspiraciones
para una formación artística sensible y porosa. La escucha es comprendida como una
acción de cuerpo entero, que permite presenciar y legitimar la existencia del otro. El
entre es pensado como fuerza relacional para la producción de singularidades y
fragilidades y, aunque no se pueda decir o definir, se puede escuchar. Las referencias
de este texto son los estudios de Ivan Flores Arancibia, Jean-Luc Nancy, Mirna
Spritzer, Roland Barthes y Cassiano Sydow Quilici.
Palabras clave: Entre; Escucha; Formación artística; Cuerpo; Afectividad;

Desde os processos de constituição e formação na infância, geralmente


passamos por um aprendizado da fala, nossos familiares e professores nos ensinam a
falar como um importante foco da expressão. E, com o decorrer do desenvolvimento,
sobretudo nas formações artísticas (das artes performativas), exercitamos e estudamos
diferentes técnicas vocais e especificidades do aparelho fonador. Mas como aprendemos
a escutar? Como seria uma aprendizagem da escuta? Refiro-me a uma escuta que não
se faz apenas com os ouvidos, mas com o corpo todo. Como pensar um corpo que está
à escuta e que se abre ao entre dos corpos uns com os outros? Uma escuta que se abre
às diferenças e atritos que habitam os espaços-tempos entre os corpos? Acredito que o
estudo das noções de escuta e entre evocadas nas questões colocadas pode contribuir
para uma formação artística sensível e porosa. Nesse intuito, compartilharei alguns
estudos dessas noções desenvolvidas em minha tese de Doutorado em Artes Cênicas,
titulada “ENTRE: A trama dos corpos e do acontecimento teatral” (PPGAC-UFRGS),
temas também investigados no Grupo de Pesquisa “Palavra, Vocalidade e Escuta nas
Artes Cênicas e Radiofônicas”, coordenado pela artista e pesquisadora Mirna Spritzer.
No citado estudo e nas investigações do referido grupo de pesquisa, almejei tocar
a noção de entre a partir do desejo de falar sobre essa esfera, mas, sobretudo, de escutá-
la. Desejei escutar o entre dos corpos uns com os outros a partir do esforço de
permanecer entre e fazer emergir os acontecimentos próprios desse espaço de leis
autônomas e agentes efêmeros. As temáticas vocalidade e escuta, investigadas por
Spritzer, foram importantes alicerces para pensar o entre, pois ambas são habitantes do
espaço intersticial. Já o universo da escuta, especificamente, torna-se um paradigma
corporal para o entre, contribuindo para uma formação artística sensível, ética e afetiva.

Como pensar o entre?


O entre pode ser pensado de distintas formas: tanto em relação aos entre-lugares
que pulsam em nosso próprio corpo a partir do cruzamento entre memórias, saberes,
culturas, elementos orgânicos e subjetivos (o corpo é a relação entre suas diversas
partes); quanto aos espaços-tempos, movimentos e forças que pulsam entre os corpos
uns com os outros (entre um corpo e outro, entre eu e você, entre nós), compreendendo
que este entre plural compõe os corpos singulares. Apresento esta noção complexa com
base em meus estudos inspirados nos pensamentos dos filósofos Ivan Flores Arancibia
e Jean-Luc Nancy.
O entre não é apenas o laço de união entre os sujeitos, mas um lugar de acesso,
de contato e de diferenciação, um espaço-tempo efêmero feito de contágios e atritos
visíveis e invisíveis, que se constroem singularmente na exposição dos corpos e na
interação poética de diversas camadas. O entre faz aparecer o vínculo, a distância e a
diferença, é o movimento do contato e da transformação: entre um estado e outro, entre
a voz e a escuta, entre um dia e outro, entre um gesto e a sua percepção, entre um corpo
e outro, entre uma palavra e outra, entre uma coisa e outra. Também é preciso frisar que
o entre não é pacífico, por isso não deve ser romantizado ou utilizado como resposta
pronta para dar fim a questões complexas que exigiriam profundos investimentos
filosóficos. O entre pressupõe uma política, é o lugar do contato, do atrito entre as
diferenças, não há acordo simples, e sim contaminação como movimento inerente e vital
de desordem e deslocamento. Segundo o estudioso do entre, o filósofo chileno Ivan
Flores Arancibia:
O que caracteriza nossa época é o deslocamento do ser pelo entre.
Este deslocamento pode definir-se como um “acontecimento sísmico”.
Um acontecimento sísmico produz deslocamentos de terreno e
dinamismos energéticos; não produz campos, paradigmas ou
epistemes, senão uma instabilidade aberta, [...] não se trata somente
de resgatar o entre ou o intervalo no mundo, senão de pensar desde
o entre a desordem do mundo. (ARANCIBIA, 2017, p. 47-48)

Para pensar o entre é preciso também, de certa forma, produzi-lo. Quando


pensamos na relação entre os corpos para tratar do entre como o produzido por eles
nessa relação, partimos, primeiro, do lugar dos corpos como produtores que fazem o
entre existir e, quando chegamos ao entre produzido, ele necessariamente se
desestabiliza e desfaz. Isso, pois o entre produzido pelos corpos é dependente desses
corpos, não se deixa captar como elemento isolável de seus suportes ou produtores: não
existe em si de forma independente, existe distinto em cada ato de relação e não
continua fora dela. O entre não se deixa enfocar, fixar, definir – nada se apropria, pois
nele nada se conserva ou continua – esse é o motor estrutural em questão nesse tema:
“o entre se transformou no esquema que condensa e faz inteligíveis os fenômenos e
acontecimentos que impregnam nossa época. Ao mesmo tempo, sem dúvida, inexiste
como tal.” (ARANCIBIA, 2017, p. 21).
Refletindo sobre Aristóteles, Arancibia diz: “Nossa palavra ‘entre’, diferente do
between ou do zwischen, tem sua origem na palavra latina inter, cuja proveniência
remota é ‘o lugar de transformação que possuem os corpos’. No inter ressoam os ruídos
interiores do entre”. (ARANCIBIA, 2017, p. 97). Aristóteles pensa a transformação a partir
de sua meditação sobre a sensação da temporalidade, em que o entre é pensado,
justamente, como elemento temporal – o que denota diferença entre um tempo e outro,
fazendo do ser, presença no presente. O entre, como motor alterador dos estados no
tempo será, portanto, necessariamente conflituoso pois ele está “na contrariedade onde
se transformam os elementos, afirma Aristóteles” (ARANCIBIA, 2017, p. 106). Para que
ocorra uma transformação, é necessário atrito entre diferentes estados em movimento
de passagem de um estado para outro, alterações anímicas e ações de mutação. Se a
ideia de permanência é pacífica, a mutação é conflituosa, o entre está justamente no
lugar do conflito em que há a transformação dos elementos. Ou melhor, o entre se dá
como esse conflito, produzindo fragilizações nos corpos envolvidos.
O entre é ainda a ação de entrar em contato, “a carne é o entre do tato”
(ARISTÓTELES apud ARANCIBIA, 2017, p. 105). Nessa perspectiva, todo contato é
externo e interno ao mesmo tempo, trata-se de uma trama membranosa que, ao mesmo
tempo em que coloca os corpos em relação, opera transformações neles:
A pergunta final que estrutura o problema do entre em Aristóteles é a seguinte:
qual é o efeito do entre? se dirá que esta é talvez a pergunta mais simples: a
sensação. [...] A membrana, o antro do entre, produz a distorção, transfiguração,
transformação ou variação das formas (µetaschµatizestai). Escassamente
utilizado no corpus aristotélico, o termo µetaschµatizestai se encontra definido
na Física: µetaschµatizestai constituiu um dos modos em que se diz (ou se
manifesta) o “chegar a ser”, o “devir”, a “mudança a um novo estado” (gignesqai).
(ARANCIBIA, 2017, p. 107).

Dessa forma, o entre acontece como passagem efêmera que ocorre a cada vez,
no ato do contato, acontece como alteridade sensível, realização das diferenças entre
os estados do corpo. Para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, todo contato é uma relação
de tato e de toque: “o mundo é tecido pelos toques dos corpos- o ar o som, os sensores,
aromas e todas as outras modulações da matéria que tecem incessantemente o tecido
do espaço. Corpos entre si partilhando o seu entre, o seu com, o seu contra”. (NANCY,
2015 p. 46). Estamos sempre expostos aos outros, nos tocando direta e indiretamente,
eis a materialidade das relações. Para tratar do tema, o estudioso desenvolve uma das
noções mais importantes de sua obra: a ideia de ser-entre ou ser-com. Nancy desenha
uma “ontologia do entre” como alternativa à ontologia tradicional a partir da ideia de que
o corpo é o ser da existência como aquilo que acontece entre nós, “o vazio, o espaço, o
tempo, o sentido e a relação (cinco termos cuja conexão pode ser vista sem dificuldades:
eles são a quíntupla determinação do entre-corpo)” (NANCY, 2015 p. 7). O filósofo
enfatiza que a existência é o que partilhamos, não como propriedade que possuímos em
comum, mas como algo que ocorre entre, no com dos corpos uns com os outros, uns
entre os outros.
Trata-se igualmente e talvez ainda mais de uma ontologia do “entre”,
do afastamento ou da ex-posição somente pela qual qualquer coisa
como um “sujeito” pode se dar. Um sujeito, que assim terá dois
caracteres fundamentais: de não ser substância e de estar exposto
aos demais sujeitos (NANCY, 2015 p. 108).

A participação opera, nesse pensamento, como exposição compartilhada, em


que afetamos e somos afetados. Este com, não se trata de um aspecto comum no
sentido de igual a todos, que legitima uma definição fixa e, por consequência, a
exclusão das demais. Não se tratará de igualdade, mas de partilha, interdependência,
copertença e, sobretudo, diferença. Desse modo, o plural precede a singularidade e a
torna possível por um diferir entre singularidades. Qualquer orientação de si e do
mundo com o processo de elaboração de sentidos se dá como fruto das relações entre
os corpos-sujeitos. Para o filósofo, surge, assim, outra existência fora do “eu mesmo”,
na qual participam “você e eu” não em relação de comunhão, mas de interatuação, de
modo que a relação com o outro faz parte da orientação sobre si. Logo, o corpo, junto
ao que ele é ou pode ser, não pode ser tido como posse. As relações nos constituem
ao mesmo tempo em que nos destituem.
Nesse pensamento, o entre é compreendido como o movimento de
proximidade e distância, vínculo e diferença, contato e transformação, apresentando-
se a partir de seu caráter de deslocamento (de proximidade e afastamento) e
alteração. Nancy elucida que o espaço entre que se abre na relação dos corpos entre
si é a forma de acesso do sujeito a si mesmo, pois é o modo como se percebe e
diferencia. O entre dos corpos uns com os outros não é apenas partilha voltada ao
plural, mas também a forma de acesso a si como singular. Trata-se de uma trama que
se abre entre os corpos, que os vincula e diferencia. Nessa trama, nos tocamos e
somos tocados, como uma membrana dupla que compõem os corpos se estendendo
pelo tecido do espaço. Essa trama sem nome ou dono, não pode ser estabilizada. Ao
abrir os corpos uns aos outros, o entre causa rachaduras nos “contornos” antes
definidos, a trama atravessa os corpos tornando as fronteiras movediças e fluidas,
suscetíveis a invasões e fugas. Esta força de rasgo causa indeterminações e
fragilidades nos corpos, por impedir a estabilização ou a continuidade imune dos
elementos tocados pela trama.
O ser ou o entre compartilha as singularidades de todos os
surgimentos. A criação tem lugar em todas as partes e sempre- mas
não é esse o único acontecimento, o advenimento, senão a condição
de ser cada vez o que é, ou de não ser o que é mais que <cada vez>,
surgindo singularmente a cada vez (NANCY, 2006 p. 32).

Além das reflexões já expostas, como curiosidade, entre 2015 e 2018, muitos
médicos e cientistas passaram a falar a respeito do interstício como um novo órgão
do corpo humano1. Tal órgão não podia ser visualizado com os instrumentos e
procedimentos adotados anteriormente, mas no presente é possível analisar este
órgão e constatar que seu tamanho no corpo humano é maior do que a pele. Trata-se

1
Este estudo, ainda em fase inicial de exploração, pode ser consultado na seguinte referência: BENIAS, P.C.,
WELLS, R.G., SACKEY-ABOAGYE, B. et al. Structure and Distribution of an Unrecognized Interstitium in
Human Tissues. Sci Rep 8, 4947, 2018.
de uma rede de cavidades instalada sob a pele e sob a parede de vários outros órgãos
conectando todo o corpo. Essa conexão ocorre a partir do fluxo intenso de líquidos
em trânsito livre entre os espaços ocos deste órgão, que se estendem por diversos
outros órgãos e sistemas. No interstício, nesse entre-tecido constituído de buracos,
ocorrem comunicações e interações ainda desconhecidas.
Inacabado (hµigenh) e irresoluto, elástico e envolvente, móvel e
esburacado, viscoso, mas ligeiro, o entre circula sem contornos
precisos de corpo em corpo, de discurso em discurso, de imagem em
imagem. Se respira no ambiente, está na ordem do dia, na flor da pele,
no pedir da boca. Está ali, por todas partes, como uma imagem
flutuante que intercepta, a cada vez vaga e concretamente, as
significações e acontecimentos, as tendências e fenômenos, as
energias e ritmos que organizam nossa cultura. (ARANCIBIA, 2017, p.
36)

A partir das reflexões propostas, o entre habita o corpo a partir da série de


tramas, como tecidos intersticiais que o compõe de formas visíveis e invisíveis,
subjetivas e objetivas. Para pensar o corpo é preciso considerar tanto os vazios,
quanto os intervalos entre os distintos estados. Trata-se, talvez, de pensar o vazio (o
espaço oco) também como corte no corpo estruturado. Ao mesmo tempo, o entre
pulsa no espaço-tempo entre os corpos uns com os outros. Nessa última instância,
pode ser compreendido como uma força que se abre entre os corpos e que também
os abre uns aos outros, os singulariza, esburaca, perfura e ocupa. Como corpos,
estamos e somos entre. Intuo que no entre, os corpos deixam rastros como restos que
habitam os espaços. Há marcas que restam entre os corpos, marcas libertas de datas
e de nomes próprios. Esses rastros e marcas podem ser sentidos se escutados. É
necessário, ao pensar o entre, aceitar que há contágio e cocriação entre os corpos
que não se completam em si mesmos como unidades acabadas, mas perdem a si por
estarem expostos, abertos e fora, uns com os outros, plurais e singulares. Os
habitantes moventes do entre são, além de corpos, coisas, espaços, tempos, vozes,
gestos, memórias e, também rastros, pulsações, forças, atritos, restos. Pela
impossibilidade de estabilização e fixação desses elementos, o entre não pode ser
dito ou definido, mas, intuo, o entre pode, sim, ser escutado.

À escuta, entre
Neste fragmento, compartilharei algumas reflexões sobre a noção de escuta
como habitante do entre, inspiradas nos pensamentos de Mirna Spritzer, Roland
Barthes, Jean-Luc Nancy e Cassiano Sydow Quilici. Spritzer (2020, p. 1) nos diz que:
“Antes de nascer, a criança ouve. Ouve seus sons, de seu corpo que vai nascendo
aos poucos em meio à água, em meio aos sons filtrados pelo líquido. Sons de sua
mãe, do corpo que lhe dá guarida. Ouve a música das vozes, ouve a passagem do
mundo.” Ainda que escutemos antes de falar, geralmente, o aprendizado da fala
ocupa grande parte de nosso processo de formação na infância, conduzido por nossos
pais e professores. Mas como seria uma aprendizagem da escuta, uma formação
guiada por ela? Como podemos desenvolver diferentes e intensificadas formas de
escuta, que modifiquem, inclusive, as formas de falar e agir? Será possível pensar a
escuta também como acontecimento? Escuta como possibilidade de estar entre?
Escuta como lugar do outro? Escuta como produção de buracos no corpo estruturado?
O que significa, como exercício político, pensar na escuta como lugar de ocupação ou
de poder nos tempos de hoje? Nesse período no qual tantos de nós têm tanto a dizer,
reivindicando legitimamente a fala como lugar da manifestação para os diferentes
temas, mas que, por vezes, quando são todos gritados ao mesmo tempo tornam difícil
o ouvir, será possível realocar o lugar da escuta?
Que status é vinculado à prática da escuta (e aos corpos que escutam versus
os corpos que falam) nos processos de construção (identitária, social, política, cultural,
artística, etc.)? Que vozes escutamos nos discursos perpetuados que difundem o
saber instituído? Que vozes escutamos nos textos e livros que proliferam esses
saberes? Como transformar, a partir da escuta, “a voz” desses documentos em vozes
plurais? Será preciso quebrar as normas de condicionamento perceptivo e expressivo
para explorar diferentes formas de escuta? Talvez tenhamos perdido ou ainda não
tenhamos explorado a capacidade de escutar profundamente, de escutar não só
com os ouvidos, mas com o corpo todo – fato que influencia as nossas
possibilidades de entrar em relação, mas, mais que isso, de escutar as relações
como fenômenos do entre.
Como a forma como escutamos nossos próprios corpos se desdobra na forma
como escutamos os outros corpos? Como a forma como escutamos afeta a forma
como nos dizemos e construímos nossas narrativas e expressividades? Escutamos
os outros desde nossas funções e papéis fixos? Como escutar a partir de uma
perspectiva identitária movente e dinâmica que proporcione a quem diz a mesma
possibilidade de devir? Diante de tantas estruturas que não escutam e que formatam
as formas de ser e de estar no mundo, condicionam e normalizam os modos de entrar
em relação, como estar à escuta?
Sem a pretensão de responder a todas estas questões, e sim no intuito de
deixar que elas reverberem, apresento parte das reflexões concebidas no Grupo de
Pesquisa “Palavra, Vocalidade e Escuta nas Artes Cênicas e Radiofônicas”. No citado
grupo, compreendemos a escuta como princípio artístico, e desafiamos nossos corpos
desejando nos mover pela escuta, escutando com o corpo inteiro. Intuo que essa
forma de escutar com o corpo inteiro e não apenas com os ouvidos, se assemelha à
tentativa de perceber os movimentos e corpos a partir do entre, de escutar os rastros
do entre, de acolher os conflitos produzidos nele, e receber as diferenças que ocupam
o corpo. Spritzer escreve “Poética da Escuta, poética de estar entre” (2020, p.40) ao
tratar de uma noção de escuta criativa e sensível:

Essa concepção de escuta criativa, de corpos em estado de escuta como


plataformas da criação, ocupa boa parte de meus estudos e pesquisa. [...] O
fascínio que emana da escuta pode ser uma forma de devaneio. Esse sonhar
acordado que nos move para dentro de nós e nos mantém atrelados ao agora.
Que nos conecta à memória e à imaginação. Que nos posiciona no entre.
(SPRITZER, 2020, p. 43).

A pesquisadora trata da ideia da escuta como corpo: “Há um dizer no corpo.


Um corpo palavra, portanto um corpo também no ouvir” (SPRITZER, 2007 p. 1). Ao
tratar das noções de escuta e da vocalidade como corpos, a autora trabalha sobre
uma compreensão que ultrapassa a perspectiva instrumental e utilitária que esses
fenômenos poderiam adquirir. Trata-se de um corpo de voz e de escuta e não de um
corpo que “tem” uma voz e que “tem” uma escuta como instrumento “para” alguma
coisa, e que, portanto, deve ser trabalhado e compreendido de acordo com esse fim
específico. As potencialidades criativas do corpo que é voz e que é escuta atingem
outro patamar para exploração e percepção, no qual é considerado aquilo que excede
o processo vinculado à noção tradicional de comunicação. Ultrapassa assim, a ideia
de transmissão de informações, atingindo outras possibilidades de experiência a partir
de formas relacionais distintas. Uma perspectiva menos utilitarista de corpo contribui
para o afrouxamento de condicionamentos perceptivos e expressivos sobre a ideia de
eficiência, por exemplo. A escuta, como fenômeno, é mais do que a capacidade de
“ouvir bem” algo que foi dito, trata-se de um campo de experiência complexo,
envolvendo processos sensíveis e a geração de saberes próprios que não pertencem
ao rol de utilidades.
Segundo Roland Barthes, o ouvir está ligado a um ato fisiológico do ser, já o
escutar é um ato psicológico que mescla percepção, apropriação e criação de
sentidos. Ainda, conforme o estudioso: “A escuta da voz inaugura a relação com o
outro” (BARTHES, 1990, p. 224). Assim, é possível refletir sobre a escuta como uma
ação ativa e criativa, onde ocorre o encontro entre o que diz e o que escuta, como
uma atenção aberta ao intervalo que se abre entre os corpos.
Escutar alguém, ouvir sua voz, exige por parte do observador, uma atenção
aberta a esse intervalo entre corpo e o discurso. O que é oferecido para ser
ouvido por essa escuta é exatamente o que o indivíduo não diz: a trama
inconsciente que associa seu corpo como espaço de seu discurso: trama
ativa que ritualiza na palavra do indivíduo a totalidade de sua história.
(BARTHES, 1990 p.224)

Tal afirmação é convergente com os pensamentos de Jean-Luc Nancy, que


defende que todo dizer é, antes de qualquer coisa, uma manifestação de existência:
antes da coisa que é dita há um corpo que diz e que se diz ao dizer, se diz existente
quando diz, e, assim, quer e sabe poder ser escutado – deseja que a sua existência
seja percebida e sentida. O que seria sentir, escutar a existência de alguém?
Seguramente, é preciso estar entre para tocar essa possibilidade.
O que se trata de ouvir, não é o que a palavra quer dizer, no sentido em que
essa vontade teria já produzido a realidade acabada de sua intenção ou de
seu desejo. É preciso, antes de qualquer outra coisa, ouvir esse desejo ele
mesmo: é preciso ouvir o <querer-dizer> [...] Em todo dizer, o querer dizer,
antes de dizer alguma coisa, se diz primeiramente como querer, e esse
querer, antes de querer alguma coisa, se quer primeiramente como poder-se-
dizer, ou seja, como poder se chamar e se responder (NANCY, 2016 p. 214).

Escutar o desejo (o querer-dizer) antes de escutar a coisa dita é realizar uma


abertura para receber o outro, e, ainda, para testemunhar a sua existência e, por isso,
poder reafirmá-la. Assim, pode-se afirmar que a escuta faz aparecer o entre e que
estar entre dá lugar a escuta. Logo, estar entre a partir da escuta é testemunhar e
legitimar a existência do outro, testemunhar as diferenças, e testemunhar o desejo e
o direito de ser do outro. Testemunhar, ainda, o contato, o atrito, o vínculo, a diferença
e a alteração dos corpos a partir da relação estabelecida entre eles. Esta concepção
faz par com a noção de Poética da Escuta, desenvolvida por Spritzer:
por Poética da Escuta, entendo a concepção da forma artística sonora que
nasce da disponibilidade da escuta como estado que legitima o outro e que
constitui a vocalidade como presença corpórea e inequívoca. Poética que
reverbera a percepção dos modos de escuta sensível e ativa. E que revela o
som e o silêncio como acontecimentos no entre do dizer e ouvir. Parto então
da ideia e do gesto de criação artística pela escuta. Incluir, desse modo, o ato
da escuta como fundamento da construção de narrativas do que somos e
fazemos. Não apenas como humanidade, e, portanto, seres em relação, mas
também como artistas em ação. Narrar o entre dos gestos artísticos. Pôr-se
à escuta como corpo. Corporificar o tempo da escuta como tempo que acolhe
a possibilidade de contracenar. (SPRITZER, 2020 p. 35)
A professora anuncia que “a escuta ocupa o espaço” (SPRITZER, 2007, p. 1),
talvez seja também correto afirmar que a escuta é um espaço a ser ocupado, que algo
nos ocupa quando escutamos. Escutar algo é deixar que a coisa escutada entre, entre
em nossos ouvidos e poros da pele, viaje por nossas aberturas, entre elas, por
buracos, partes e carnes sensíveis, carnes íntimas; é deixar que o outro entre, que
seja entre em nossas entranhas, que ressoe. É aceitar ecoar com ela – ser eco com
a coisa escutada: se deixar tocar, antes de entender, sentir o toque, tocar o sentido,
fazer sentido com, agora sim, entender, mas, talvez não. O que acontece, então? O
que se escuta se torna gente dentro da gente? É digerido? Dissolve-se entre os
espaços ocos do corpo como no interstício? Pode infiltrar nossas células? Causar
doenças? Transmitir pestes, como falava Artaud? Contaminar os corpos de forma
irreversível?
Se há através da ideia de gesto vocal uma identidade na voz, um timbre e uma
impressão singular, é possível refletir a respeito de uma identidade da escuta, já que
refletimos sobre corpos de escuta? Quem sou em meu corpo-escuta? Dizemos
comumente que uma criança nasce quando grita. Isso é dito por que ela grita ou por
que escuta o seu próprio grito? No livro “À escuta” (2014, p. 70), Nancy explica que “a
ressonância é, ao mesmo tempo, a escuta do timbre e o timbre da escuta”. Ainda,
desenha a ideia de um corpo que está à escuta como um gesto receptivo de espera
por um segredo:

‘Estar à escuta’ consistiu primeiramente em estar colocado num local


escondido de onde pode surpreender-se uma conversação ou uma confissão.
Escuta designou um lugar a partir de onde se escuta em segredo. ‘Estar à
escuta’ foi uma expressão de espionagem militar antes de voltar, pela
radiofonia, ao espaço público, não sem permanecer também, no registro
telefônico, um assunto de confidência ou de segredo roubado. [...] E o outro
aspecto, indissociável, será: o que é então ser à escuta, tal como se diz ‘ser
no mundo’? E o que é existir segundo a escuta, para ela e por ela, o que é
que da experiência e da verdade aí se põe em jogo? O que é que aí se joga,
o que é que aí ressoa, qual é o tom da escuta ou o seu timbre? Seria a própria
escuta sonora? (NANCY, 2014 p. 15).

A partir da inspiração em Nancy, estar à escuta sugere um ato corporal, envolve


o corpo todo e pode ser aqui pensado como um gesto de receber e de doar no mesmo
ato. Mais do que entender uma mensagem, estar à escuta, então, é estar à espera de
alguém ou algo que está vindo. Esse movimento de vinda, também nos faz chegar (de
forma distinta) nesse mesmo processo: vamos até os nossos ouvidos, poros e
fronteiras e abrimos a porta (mesmo que não haja uma porta) para o outro, e ainda, é
preciso que entremos junto com ele para que ele possa entrar. Assim, escutar é um
acesso duplo, a nós e aos outros. Vamos até o fora para receber e, logo, entramos;
se antes estávamos dentro, retornamos – é somente dirigindo-se ao fora que é
possível, então, realizar algum tipo de retorno. Nessa perspectiva, há um complexo
processo que, ao mesmo tempo em que nos inclina ao fundo de nós, lança-nos ao
fora: abre-nos antes de nos fazer voltar. “Estar à escuta é estar ao mesmo tempo fora
e dentro, é estar aberto de fora e de dentro, de um ao outro, portanto de um no outro”
(NANCY, 2014 p. 30). Portanto, para escutar, é necessário estar entre o fora e o
dentro, estar entre um e outro, reafirmando esse fenômeno como um lugar de acesso,
de contato e de diferenciação, escutar é estar entre um espaço-tempo efêmero feito
de contágios e atritos visíveis e invisíveis. Assim como faz o entre, a escuta abre os
corpos ao fora, o que produz tensões e alterações significativas no corpo.
Estar entre envolve partilhar a exposição dos corpos, no mesmo sentido, o
sujeito à escuta de Nancy pode ser aqui pensado como alguém também sujeito a, no
sentido de exposto a, disposto a: escutar. A partir dessa compreensão, a ação da
escuta ultrapassa o sentido da audição e pode ser refletido como disposição afetiva
de corpo inteiro. Refiro-me a uma escuta não fixamente localizada, mas escuta como
acontecimento, movimento de forças que envolve diferentes aspectos da
corporeidade. Tratando-se da formação artística de um corpo sensível, estaria o
artista dedicado a um espaço de abertura no qual ser afetado e permitir se afetar é
tão poderoso e importante quanto o desejo de afetar o seu público.
Este corpo, por outro lado, teria na escuta a capacidade de ativamente afetar,
ainda que pensemos comumente que o poder está na fala e com quem fala. É preciso,
portanto, reivindicar o poder da escuta como ação também política. Escutar pode
afetar o outro, há pessoas que escutam com uma espécie de força que pode
transformar. Sentir-se profundamente escutado é uma experiência extrema. O que se
escuta não é o que estamos dizendo, mas a nossa existência, o segredo, o desejo de
ter nosso ser sentido, testemunhado, escutado por alguém. Não é o que essas
pessoas dizem, mas como escutam, são os seus corpos-escuta que tornam cada
gesto intenso. Um corpo que não diz uma palavra sequer pode ser escutado, espaços,
objetos, plantas, situações, podem ser escutados a partir da perspectiva de escuta
como acontecimento de reconhecimento e de legitimação de existências, ou de escuta
como gesto fisiológico e psicológico, envolvendo percepção, apropriação e criação de
sentidos e presenças. É possível, então, pensar também a respeito de um repertório
de escuta em se tratando do campo artístico, no qual os artistas intensificam suas
capacidades não de dizer, mas de escutar aos corpos, aos espaços, aos objetos,
culminando na possibilidade de uma ideia de criação artística concebida não por fala,
mas por escuta.
Um repertório de escuta, que nos faz reconhecer espaços, vozes e sons. É
um acervo de sensações, emoções, timbres, cores, agudos e graves, matéria
prima para o ator. [...] Assim, a escuta é repertório de trabalho para o ator e
é, ao mesmo tempo, repercussão desse trabalho (SPRITZER, 2010 p. 3).

Esse trabalho contribui para a proposição da formação de um corpo de arte que


está à escuta, um corpo que é afetivo, que aguarda a vinda do outro e recebe-se na
vinda do outro, portanto, respeita-o como a si, sabe que a vinda do outro é a
possibilidade da vinda de si a si, trata-se de uma condição. Como um repertório
poético dinâmico e em constante construção, torna necessária a abertura de espaços
para a escuta. Abrir espaço, às vezes, é também um gesto de força; deixar-se ocupar
pode ser doloroso, produz contágios, causa a demolição de muitas certezas e
aspectos subjetivos que pareciam fixos. Deixar-se ocupar, desse modo, pode ser
pensado como um exercício para compreender de formas sensíveis o “poder-ocupar”
(ocupar a si, ocupar ao outro, ocupar ao mundo).
A partir das inspirações compartilhadas, estar à escuta no entre, para o artista,
é aceitar o risco de ser afetado, profundamente, de tocar esse lugar de afetação como
experiência limite: de sentir o que é, para um corpo, sentir. Logo, a compreensão sobre
sentir expande-se, pois a forma como nos permitimos ser tocados é premissa para
formas singulares de tocar, escutar profundamente e com o corpo todo é premissa
para formas singulares e profundas de agir e de dizer. Compreendendo que um corpo
que não se escuta terá condições reduzidas de escutar o outro e, ainda, ao entender
que a forma como nos escutamos influencia significativamente a forma como nos
expressamos e como escutamos o outro, faz-se necessário que escutemos o nosso
próprio corpo como exercício continuado.
Quando se trata de escutar o corpo no processo de formação artística, refiro-
me também a escuta dos saberes do corpo (todo corpo é sábio), compreendendo que
a memória como processo se desdobra em aprendizagem corporificada, logo, em
saber corporal. Escutar os próprios pés, por exemplo, evoca ecos sobre os trajetos já
trilhados, compreendemos que os pés “sabem” caminhar, correr e saltar (portam a
memória desse saber), e que escutar as distintas velocidades e intensidades dos
toques dos pés no chão revela muito de nós. Ao mesmo tempo, escutar os pés do
outro nos ensina a reconhecer e a legitimar as diferentes formas de construir trajetos
e de caminhar por eles, gera possibilidades de singularização e de contágio, amplia
repertório.
Infelizmente, nossa relação com o próprio corpo é muitas vezes terceirizada e
modulada pela exigência do alto desempenho relativo aos modelos instituídos de
corporeidade plena. Pouco escutamos o ritmo de nossos órgãos, as alterações na
respiração, a ciclicidade de alguns processos ou os padrões comportamentais e
camadas culturais introjetados. A escuta traz a possibilidade não apenas de conhecer
o corpo e os outros corpos, mas também de, a partir desse reconhecimento,
experienciar possibilidades outras de se relacionar, caminhar, respirar, etc. O aumento
sensível da consciência corporal, da propriocepção e da interocepção, não a partir do
desenvolvimento de técnicas visando um virtuosismo específico, mas pautado pela
escuta, pode contribuir não apenas para um corpo que se machuca menos, pois
compreende os ritmos, limites e possibilidades de si, mas também para a formação
de um artista sensível que acolhe a diversidade constitutiva de cada corpo. Insisto
nesse ponto, pois reconhecer as diferenças como constituintes, pode se desdobrar no
reconhecimento das vulnerabilidades e precariedades como partes integrantes dos
corpos, como espaços de saber e de potencial artístico, e não como elementos que
devam ser superados ou reparados. Assim, podemos pensar em ideias formativas
sensíveis e diversas, que não objetivem reforçar os modelos instituídos de corpo pleno
e estável, de excelência, desempenho e normalidade.
Assim como o entre pressupõe uma política, por ser o lugar do contato e do
atrito entre as diferenças, também é possível pensarmos em uma política da escuta,
na qual se estabelece a alteridade, a partir da legitimação das existências e diferenças
e do acolhimento dos contágios produzidos em cada relação plural e singular. Ao
refletir sobre o trabalho do artista sobre si mesmo, o professor Cassiano Sydow Quilici
discute sobre as formas de estar junto no processo criativo. Quando formamos
coletivos ao compartilhar processos de criação e aprendizagem, mesmos que mudos,
os corpos integrantes portam discursos: promovem formas de estar juntos,
apresentam modelos de corpo, instituem poderes de ação entre si e realizam um “nós”
que possui partes visíveis e invisíveis. Quilici reflete sobre a possibilidade da
disposição lado a lado dos artistas, como “presença que não se sobrepõe e que
testemunha o que germina ainda informe em cada um. [...] Uma ética da atenção e da
escuta, do acolhimento que abre espaço e discerne o acontecimento. Uma
hospitalidade cuidadosa ao estrangeiro, que reconhece fronteiras e diferenças.”
(QUILICI, 2015, p.71).
Nesse sentido, o professor discute sobre a necessidade de um trabalho
continuado do artista sobre si, de modo que as fronteiras rígidas do “eu” e os modelos
fixos de sujeito possam dar lugar à fluxos criativos atravessados por movimentos de
intensas e sutis qualidades, trabalhando sobre a ética da escuta como princípio de
hospitalidade ao estrangeiro.
Como a criança que ainda se espanta com a formiga, a escritora não vive
completamente dentro do mundo sociabilizado. Outros mundos se abrem
para ela, microscópicos e pululantes. Ela participa de vários coletivos,
humanos e não humanos. [...] Artaud dizia que o teatro deve ser, acima de
tudo, um lugar onde o homem se refaz. Cada homem se refaz a partir do
ponto em que se encontra. Pode-se passar a vida sem saber onde se está,
sem ser ferido pela “inquietude de si”. É possível apenas criar condições
propícias ao aflorar das questões e movimentos necessários. Algo assim
como um processo colaborativo voltado, num primeiro momento ao trabalho
do artista sobre si mesmo. Se o trabalho é real e prossegue, a própria imagem
de um “si mesmo” sólido e substancial talvez comece a fraquejar: abertura do
“corpo vibrátil” (Suely Rolnik), porosidade às forças do mundo. O pretenso
“eu”, atravessado pelos movimentos microscópicos de dentro e de fora,
lentamente dissolve suas rígidas fronteiras. A escritora sonha então que as
paredes do seu quarto se transformam numa “geléia viva” (Clarice Lispector).
(QUILICI, 2015, p. 68-69)

A partir dessa importante reflexão, podemos pensar o entre também como o


espaço-tempo das interações entre diferentes coletividades, humanas e não
humanas. Escutar o entre, nesse sentido, é perceber, acolher e criar sentidos e
presenças a partir do toque e do atrito entre diferentes forças, formas, coisas, corpos,
temperaturas, pulsões, sensações, etc. Ao tratar-se da formação artística, é o caso de
compreendermos a possibilidade de criar entre, de criar com coletividades humanas
e não humanas, e não sobre elas. Escutar as diferentes coletividades das quais
fazemos parte é reconhecer e legitimar as existências desses espaços coletivos,
desdobrando-se em ações de interdependência, responsabilidade e ética. Aqui,
desejo refletir sobre a escuta como ação de corpo inteiro: a pele escuta, os pés
escutam, os olhos escutam, os cabelos e órgãos escutam, no sentido de uma escuta
como reconhecimento e legitimação das múltiplas existências, materialidades e forças
com as quais vivemos coletivamente, as quais participam, de diferentes formas, da
constituição dos nossos corpos e dos processos artísticos empreendidos por nós.
O entre que se abre na criação artística envolvendo coletividades humanas e
não humanas não é pacífico, possui atrito, é feito de conflito, trata-se de uma zona de
exposição, de contato e contágio com as diferenças em relação (contato e alteração).
Não se trata de entender, pois não há senso comum em questão, não há igualdade.
Escutar é estar entre. É uma possibilidade de estar com, de criação compartilhada, de
contato feito de tato e contágio, zona de comunicação semântica e não semântica. A
escuta é um estado de disposição, de abertura, de direcionamento ao entre como uma
força desconhecida. Estar à escuta é manter uma ação de abertura e expectativa sem
objetivo fixo, de maneira receptiva ao que as relações podem produzir no atrito. Se
falamos para expressar, intuo que escutamos para conhecer, logo, um corpo que está
à escuta, que se move a partir dela, explora neste movimento a possibilidade de
conhecer a si e ao mundo (de conhecer a si ao conhecer o mundo e de conhecer ao
mundo ao conhecer a si como parte do mundo). Mover o corpo a partir da escuta para
conhecer, acolher, reconhecer existências, legitimá-las, para, então, criar com elas.
Como desdobramento, podemos refletir sobre uma poética na qual se cria não para
se expressar unicamente, mas para conhecer.
A partir daí, o que significa comunicar-se? É claro que pode haver ali duas
“subjetividades”, trocando endereços e tentando construir palavras-ponte
entre os abismos que as separam. Elas interpretam o tal drama intersubjetivo.
Mas quando o “sujeito” já dissolveu um tanto no próprio abismo, quando ele
já desconfia de sua própria consistência, as fronteiras são mais tênues e as
misturas mais sutis. O que acontece “entre” é mais forte do que as
polaridades. Não há nada a ser ostentado e nenhum território a ser defendido.
A falsa fragilidade da situação abriga uma estranha intensidade. (QUILICI,
2015, p. 70)

O entre é tão infinito e ativo quanto os seus habitantes. Ao escutar, nos


posicionamos entre, o que nos destitui de nós e nos faz retornar a nós mesmos
incessantemente, demolindo contornos rígidos, desdobrando-se na fragilidade de
noções fixas de corpo e identidade. O entre é a interrupção de qualquer continuidade,
causa inúmeras indeterminações no meio, como força fragilizadora que mobiliza
aspectos e elementos corporais. Escutar, nessa perspectiva, é aceitar a
vulnerabilidade dessa zona de atrito como uma característica constituinte de cada
sujeito (vulnerabilidade como elemento constituinte dos corpos, e não como problema
que deva ser superado, silenciado ou reparado). Essa compreensão pode contribuir
para uma formação mais preocupada com a sensibilidade e com outras
compreensões sobre vulnerabilidades, do que com a construção de um corpo virtuoso
e potente. A partir dessa reflexão, podemos pensar a escuta como uma ação de
disposição ao entre como força relacional de produção de singularidades e de
fragilidades. Em relação a formação artística, interessa o fenômeno do testemunho
das existências, memórias, saberes, diferenças, corpos. Trabalhar sobre o entre e a
escuta como temas de experiência na formação artística faz da criação poética um
campo de sensibilidade, ética e afetividade.

Referências
ARANCIBIA, Ivan Flores. De la metaxología. El problema del entre en el pensamiento
contemporâneo. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da
Universidade Autonoma de Barcelona, 2017.
BARTHES, Roland. A escuta. In: O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990.
BENIAS, P.C., WELLS, R.G., SACKEY-ABOAGYE, B. et al. Structure and Distribution
of an Unrecognized Interstitium in Human Tissues. Sci Rep 8, 4947, 2018.
LAZZARETI, Angelene; SPRITZER, Mirna. O corpo-voz entre. Urdimento-Revista de
Estudos em Artes Cênicas, v. 1, n. 28, p. 221-231, 2017.
LAZZARETI, Angelene. ENTRE: a trama dos corpos e do acontecimento teatral. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. 2019.
NANCY, Jean-Luc. À escuta. Belo Horizonte: Chão de feira, 2014.
NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Rio de Janeiro: 7 Letras. 2015.
NANCY, Jean-Luc. Demanda: Literatura e Filosofia. Florianópolis: UFSC; Chapecó:
Argos, 2016.
NANCY, Jean-Luc. Ser singular plural. Madrid: Arena Libros, 2006.
SPRITZER, Mirna. Poética da Escuta. Revista Voz e Cena - Brasília, v. 01, nº 01,
janeiro-junho/2020 - pp. 33-44.
QUILICI, Cassiano Sydow. A solidão colaborativa. In: O ator-performer e as poéticas
da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015, pp. 67-71.
SPRITZER, Mirna. A formação do ator, um diálogo de ações. Porto Alegre: Editora
Mediação, 2010.
SPRITZER, Mirna. Dizer e ouvir. In: IV Reunião Científica da ABRACE, 2007, Belo
Horizonte. Memória Abrace Digital, 2007.

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