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Busca de Intercessores à violência contra mulheres: elementos para uma clínica feminista

Este artigo objetiva discutir a ideia de intercessores, própria da perspectiva


cartográfica (Deleuze & Guattari). Trata-se de acompanhar um processo a atendimento
de mulheres que buscaram o recurso da lei Maria da Penha, que se realizou por um
grupo experimental que utiliza o que chamaremos aqui de psicologia da diferença. A
ideia de intercessor faz parte da rede conceitual da filosofia da diferença e nos permite
testemunhar o processo de desterritorialização realizado pelo grupo.

Introdução

Os Intercessores são criações que permitem exprimir algo inexprimível sem


eles. Criando territórios habitáveis e mais adequados para um grupo ou um povo que
através deles se constitui (Deleuze, 1992-2008), os intercessores permitem falar em
nome próprio, no singular. O nome próprio, aqui, “não é a marca constituída de um
sujeito, é a marca constituinte de um domínio, de uma morada” (Deleuze e Guattari,
1997, p. 123) que se pode cartografar.

A cartografia, numa definição provisória de que faremos uso, é um


delineamento que “acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de
certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam
para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes
tornaram-se obsoletos” (Rolnik, 2007, p. 23). Esse recurso começa com a enumeração
dos afetos.

Recuperamos aqui de Spinoza (2009) a noção de afeto e, em certo sentido, a


origem da cartografia. Afeto (affectus) tem a ver com a extensão, com o corpo e
resulta da mistura deles, da afecção. Os encontros entre corpos geram afetos que são,
para ele, derivados de três afetos primários: desejo, alegria e tristeza. Mas, mais do
que isso, “affectus em Spinoza é a variação” (Deleuze, 1978, p.3).

A variação dos afetos é no sentido de que ora eles envolvem alegria e


aumentam a potência de agir, ora envolvem tristeza e diminuem essa potência. Amor,
desprezo, ódio, segurança, reconhecimento, etc. são exemplos de afetos que Spinoza
nos dá. É pelos afetos, e somente por eles, que nossa mente se conhece a si própria e
nosso corpo, sabe que este existe e percebe os corpos exteriores ao nosso. Somos
capazes de conhecer tantas coisas quanto o número de maneiras em que nosso corpo
pode ser arranjado, afetado (Spinoza, 2009).

Salientamos que, para a compreensão da maior parte dos conceitos da


psicologia da diferença, é importante pensar menos em termos de estrutura, função,
forma e conteúdo - centrais em outras epistemes -, e mais em termos de movimento,
como na variação dos afetos. “Os afetos são devires” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 42).
Os afetos do nosso corpo são, segundo esta ética de que estamos falando,
nossa essência, no sentido não do que a gente é, mas do que somos capazes de fazer e
de suportar (Deleuze, 1980); nossa capacidade de afetar e ser afetado e os limites
dessas capacidades. É “o que pode o corpo?”, famosa pergunta de Spinoza cuja
resposta compreende os elementos da cartografia: a latitude e a longitude. Para
Deleuze e Guattari, “Chama-se latitude de um corpo os afetos de que ele é capaz
segundo tal grau de potência, ou melhor, segundo os limites desse grau. A latitude é
feita de partes intensivas sob uma capacidade, como a longitude, de partes extensivas
sob uma relação” (1997, p.42).

Latitude são afetos de que se é capaz de ser afetado e envolve, pois, a


sensibilidade do corpo. Disso decorre que os corpos em redomas, sedentários, não
terão a mesma sensibilidade que os migrantes e nômades ou, dito de outro modo,
serão de outra latitude radicalmente diferentes deles. Já a longitude de um corpo é
traçada pelos corpos que o compõem, “os conjuntos de partículas que lhe pertencem
sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros
segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado desse
corpo” (Idem).

Também os corpos são compreendidos em termos de movimento. Distinguimos


um corpo do outro “pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão”
(Spinoza, 2009, p. 62). Essa individuação do corpo constitui sua longitude, que com a
latitude são traçadas não num plano cartesiano, mas num plano de consistência, de
imanência.

[definir plano de imanência ou]

A esse modo de individuação, diferente da individuação dos sujeitos e dos


objetos, é o que em Mil Platôs chama-se hecceidade:

Um corpo não se define pela forma que o determina, nem como uma
substância ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que possui ou
pelas funções que exerce. No plano de consistência, um corpo se
define somente por uma longitude e uma latitude: isto é, pelo conjunto
dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de
movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão (longitude); pelo
conjunto de afetos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau
de potência (latitude). Somente afetos e movimentos locais,
velocidades diferenciais. (...) Latitude e longitude são os dois
elementos de uma cartografia. (Deleuze e Guattari, 1997, p.47)

Em nossa busca de intercessores no trabalho de atendimento a mulheres que


denunciaram seus agressores à Lei Maria da Penha, permanecemos atentas aos
momentos e aos elementos que apontaram para o processo de desterritorialização,
isto é, as diferenças que se apresentaram na repetição da norma.
À medida em que, em certo sentido, o que se repete é a diferença (Deleuze,
1988), corremos o risco de transitar entre os territórios, quaisquer que sejam,
atribuindo-lhes uma espécie de igualdade de valor. Com Donna Haraway (1995),
propomos a localização como critério para uma objetividade. Isso significa que, ao
mesmo tempo em que assumimos a inexistência da neutralidade, criticamos o
relativismo da verdade, isto é, a concepção segundo a qual tudo e nada é a mesma
coisa, já que é construção aleatória do “jogo de linguagem”. [consultar a crítica da
wittig a barthes]

A esse respeito, Passos e Benevides (2000), também com base em Deleuze


(1992-2008), propõem justamente um conceito de intercessor para demarcar uma
posição crítica e escapar da ameaça de uma indiferença e um relativismo que tudo e
nada valorizam. A definição de Deleuze, apropriada pelos autores, é a seguinte:

Não há indiferença no trabalho com os conceitos quando sabemos que


são operadores de realidade. Neste sentido, eles nos chegam como
ferramentas. Um conceito-ferramenta é aquele que está cheio de força
crítica. Ele está, portanto, cheio de força para produzir crise,
desestabilizar. É assim que entendemos a ideia de “intercessor”
(Deleuze, 1990/1992). O conceito é um intercessor quando é capaz de
produzir tal tipo de efeito. (...) Os intercessores, como bem já nos
apontou Deleuze (1990/1992), interessam-nos pelos movimentos, não
pelo que se passa antes deles, ou pelo que os causa, mas pelo que se
dá “entre”, pelo que está se dando. (Passos e Benevides, 2000, p. XX)*

No interior de uma clínica transdisciplinar, sustentam ainda a possibilidade de a


analista funcionar, ela própria, como intercessor. Discutiremos mais adiante essa
possibilidade, sobretudo no caso de um homem e uma clínica feminista. Por ora
desdobraremos o conceito em questão e sua relação no interior da cartografia.

Intercessor

Se, ainda no dizer dos autores anteriormente citados, intercessor “é uma noção
funcionalista cujo sentido não pode ser apreendido senão no interior de uma certa
operação – operação de encontro, contágio, cruzamento que desestabiliza e faz
diferir” (Passos e Benevides, 2000, p. XX) sua função acompanha cada cartografia, na
medida em que cada uma é diferente da outra.

A função intercessora é melhor explicitada num exemplo concreto e, sem


pretensão de sobrecodificação, vemos na escrita, tal qual ela devém em Anzaldúa, um
exemplo perfeito de intercessor. Está tudo lá, no porque ela é levada a escrever:

Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma


também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o
mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco
nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca
meus apetites e minha fome. (Anzaldúa, 2000, 232)

Vemos aí a função de criação de um território mais afeito a ela que escreve.


Diante do peso que vem a ser no cotidiano, ser uma mulher negra, mesmo nos meios
feministas. Diante da tristeza que lhe é infligida a partir de uma marca corporal (a cor
da pele, a genitália). O que expressa nos escritos que faz, expressa para exprimir o que
não está escrito no seu entorno, no “mundo real”. A criança em “Acerca do ritornelo”
coloca ordem no caos cantarolando:

“Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando.


Ela anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como
pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o
esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio
do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que
canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um
salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela
arrisca também deslocar-se a cada instante.” (Deleuze e Guattari,
1997, p. 116)

Outras duas funções intercessoras aparecem na justificativa de Anzaldúa, em


sua carta às mulheres escritoras do então terceiro mundo. A produção da verdade
sobre si e, com isso ou ao mesmo tempo, a produção de si. Um processo de
falsificação, “a potência do falso” que vai “produzir o verdadeiro” (Deleuze, 1992, p.
162). Nas palavras da autora:

Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para


reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me
tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir,
preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os
mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora.
Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer
não é um monte de merda. (ANZALDÚA, 2000, p. 232)

Na produção de si e no domínio de si, não se trata de um “si” referente a uma


pessoa, um sujeito, um cogito que desenha um perfeito círculo dentro do qual se
encontra um eu e fora do qual se encontra o mundo. As linhas que a escrita
intercessora desenha são de um território existencial, feito de expressões, marcas
qualitativas que “constituem um ter mais profundo que o ser. Não no sentido em que
essas qualidades pertenceriam a um sujeito, mas no sentido em que elas desenham
um território que pertencerá ao sujeito que as traz consigo ou que as produz.”
(Deleuze e Guattari, 1997, p. 123). É o ethos de passagem.

A passagem, proporcionada pela escrita, de um estado de “profetiza louca ou


uma pobre alma sofredora” com sua tristeza para outro estado, mais suportável, mais
valorado. Passagem entre territórios existenciais - que compreendem “o meio, as
relações sociais e a subjetividade humana” (Guattari, 1990, p. 8) - que são o em-casa,
de onde Anzaldúa diz: “corto e colo e cubro o chão com meus pedaços de papel.
Minha vida espalhada em pedaços pelo chão.” (Anzaldúa, 2000, p. 233).

O movimento intercessor, a passagem entre territórios - de um velho para o


que se cria - envolve um medo capaz de impedi-lo. Coragem é o afeto que permite agir
apesar do medo, ou dos medos: medo de que a vida não consiga perseverar e se
desagregue - o medo ontológico de morrer; medo de perder a credibilidade, a validade
e o valor - o medo existencial de fracassar; e medo de se perder, de perder o eu - o
medo psicológico de enlouquecer. (Rolnik, 2007)

Mas contra os medos e suas paralisias, os intercessores, não só para substituir


o medo pela amiúde recomendada prudência, mas também

“Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com


as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me
importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência.
Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um
medo maior de não escrever”. (ANZALDÚA, 2000, p. 232)

Eis outra função intercessora, de contradiscurso. É dizer que o território que se


cria não vinga sem fazer revide aos regimes majoritários. Por isso os intercessores são
sempre múltiplos, ainda que ditos no singular e precisam ser múltiplos e fabricados em
série. “Sem eles não há obra” (Deleuze, 1992, p. 160).

[devir-animal, devir-mulher]

Áudio-visual como intercessor

O equipamento de áudio-visual – câmera, equipamento de edição – funciona


como intercessor na medida em que possibilitam a construção de uma narrativa de si
que pode vir a constituir uma emancipação dos saberes, sobretudo saberes de si. Isso
não exclui o coletivo, uma ver que elas, nesse compartilhar, no encontro, percebem a
similaridade das narrativas.

O produto audiovisual é composto, digamos, pela justaposição das falas


individuais, mas aparecem numa composição, um só corpo individuado, quando
unidos num filme. Essa é justamente uma distinção do trabalho de escuta clínica
tradicional, pois as diversas narrativas, construídas coletivamente, têm como efeito a
produção de uma matriz simbólica que evidencia representações que antes estavam
submergidas pelo discurso hegemônico, que naturalizada e essencializada o que é ser
mulher.
Então esse processo de emancipação a qualquer coisa que nos oprime, em um
processo de liberação a toda uma matriz simbólica que nos determina e nos atravessa,
como se fosse uma segunda natureza nossa. A composição pesquisadoras-mulheres-
equipamento foi suficiente potente para produzir, nesses encontros, uma narrativa
algo capaz de fazer frente a essa matriz. Isso é intercessor.

O ato de filmar é um ato político, pois ele de distancia do ser passivo e neutro,
centrado na personalidade e na intimidade; sua expressão no mundo passa a ser então
uma ação coletiva, com implicações coletivas. O ato de se filmar implica toda uma
responsabilidade dos seus gestos e sua vida. É colocar uma ordem no mundo, como a
escrita é para Anzaldúa.

A ferramenta áudio-visual pode funcionar como intercessor, pois nesse


material se revelam os elementos diferenciais, aqueles elementos que escapam
àquelas formas hegemônicas de representação do mundo, que são como sementes de
contra-discursos. São discursos emancipadores, que não se revelariam de forma
alguma dentro dos limites de uma abordagem privatista.

A função intercessora da ferramenta áudio-visual acontece quando permitem a


liberação da potência das mulheres, sistematicamente impedida pelos vários tipos de
violência a que são submetidas. O que pode um filme? Isso dependerá da rede de
relações que ele estabelecer. (exemplo da Lucilene assistindo a fala da Conceição)

A “câmera” (e com esta palavra designamos todo o precesso, experiência,


aparelhagem e produto áudio-visual) é a igualdade das inteligências, como diria
Ranciere (referências).

Este trabalho foi um exercício de improvisar, que segundo Rancière é “a virtude


primeira de nossa inteligência”, a virtude poética. Segundo ele, “a improvisação é o
exercício pelo qual o ser humano se conhece e se confirma em sua natureza de ser
razoável, isto é, de animal ‘que faz palavras, figuras, comparações para contar o que
pensa a seus semelhantes’. A virtude de nossa inteligência está menos em saber do
que em fazer. ‘Saber não é nada, fazer é tudo’. Mas essa fazer é, fundamentalmente,
ato de comunicação”.

Notas
*Para um maior aprofundamento veja Os Intercessores

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do


terceiro mundo. Estudos Feministas, ano 8, 2000, p. 229-236.
DELEUZE, Gilles. A potência O direito natural clássico. [Tradução de Emanuel Ângelo
da Rocha Fragoso]. Transcrição de aula ministrada em dezembro de 1980.
DELEUZE, Gilles. Cours Vincennes. [Tradução de Francisco Traverso Fuchs]. Disponível
em: <http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?
cle=194&groupe=Spinoza&langue=5>. Acesso em 15 jan. 2012. Transcrição de aula
ministrada em 24 jan. 1978.
DELEUZE, Gilles. Os Intercessores. In: _____.Conversações. São Paulo: Editora 34,
1992-2008.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia v. 4. São
Paulo: editora 34, 1997.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o
privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5), p.07-41, 1995.
PASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina. A construção do plano da clínica e o conceito de
transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 16, n. 1, 2000.
RODRIGUES, Heliana de B. Conde. A história oral como intercessor- em favor da
dessujeição metodológica. Estudos e Pesquisas em Psicologia, ano 10, n. 1, 2010.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo.


Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.
SPINOZA, B. Ética. [Tradução de Tomaz Tadeu] São Paulo: Autêntica, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual.

Os territórios existenciais; começam com uma expressão e terminam pela perda de


sentido, obsoletos para efetuação dos afetos, das intensidades.

É no sentido de que são primeiramente expressivos que os “si” anteriormente


mencionados (verdade de si, domínio de si e produção de si) a que os intercessores se
relacionam não se referem a uma individualidade ou individuação calcada no cogito
catesiano. Pois as expressões intercessoras, que originam o território,
Intercessor, como entendemos, é a série de criações que constituem um
território novo, mais afeito ao grupo que através dele se constitui.

Esse território não vinga sem revide aos regimes hegemônicos, sem a
falsificação destes. Grosso modo, intercessor é (1) uma série de criações e (2) não
posso me exprimir sem ele e nem ele sem mim e (3) é devir-algo, remete ao devir (e
aqui tem mais coisa mas que não sei dizer ao certo) e (4) é potência do falso que vai
produzir o verdadeiro e (5) é o “instrumento” pelo qual a minoria se opõe às ficções
hegemônicas e [6] é instrumento do movimento sem-lei, da diferença, contra as
opressões.

Quando corpos quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são


forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou se, numa outra
hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus
diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento
uns aos outros segundo uma proporção definida, diremos que esses
corpos estão unidos entre si, e que, juntos, compõem um só corpo ou
indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos.
(Spinoza, 2006, p. 64)

[para a conclusão, mostrar como a valorização do singular pela imanência, do corpo e afetos
na cartografia se relaciona com os feminismos][concluir com “dupla captura”]

Pontos de Conexões Possíveis

Clínica Política-Feminista

A violência conjugal tem os feminismos como principais correntes


teóricas que explicitam e ajudam a compreender a problemática e são
virtualmente capazes de elaborar métodos e orientar práticas que buscam
solucioná-la em suas especificidades.

Percebemos, com os estudos feministas, que os modelos existentes de


intervenção clínica - ainda que através da pressuposição de uma neutralidade
clínica (NAVAZ; KOLLER, 2006) - não bastam e até mesmo reforçam os
esquemas de subjugação feminina, da qual a violência de gênero é
sintomática.

Os atendimentos psicológicos que entendem uma causalidade psíquica,


circunscritos na esfera privada, intimista e familiarista, se mostram incapazes
de responder de maneira efetiva à complexidade do problema. Uma clínica
feminista é aquela capaz de dar um sentido coletivo à experiência de violência,
uma clínica plena, tanto quanto possível, de consequências políticas (TIMM et
al, 2011).

Recorreremos ao conceito de Intercessor para delinearmos as bases ou


a conexões a partir das quais nós podemos formular um modelo de intervenção
clínica capaz de ajudar a extinguir o exercício de tal violência, habilitando as
mulheres ao seu enfrentamento e combate. Porque entendemos, com Passos
e Benevides (2000), que os conceitos não somente representam, como
também operam a realidade e que um conceito é intercessor quando é capaz
de desestabilizar, produzir crise. A crise é necessária para a mudança de
paisagem e, neste caso, para a saída de um cena intimista de culpa e
violência.

Intercessores são criações sempre múltiplas - ainda que não ditas no


plural (RODRIGUES, xxxx) - e que permitem falar em nome próprio, no
singular; instrumentos capazes de fazer frente aos discursos dominadores,
despotencializadores; qualquer coisa com que se tenha uma relação simpática,
qualquer coisa que se devém para produzir um “novo”. (DELEUZE,
conversações e diálogos)

Essa concepção de intercessor coaduna com a ideia de alegria em


Spinoza (2009), na medida em que se refere ao aumento de potência de um
corpo, em oposição à tristeza, ou seja, qualquer paixão que envolva diminuição
de potência de agir, através da qual os corpos são dominados. A naturalização,
como a da posição do feminino na cultura, é consequência de paixões tristes,
cujas inspirações são necessárias ao exercício do poder. (DELEUZE, 1978).

Aceitamos a proposta de pensar o corpo como potência, na utilização de


recurso áudio-visual para uma clínica política-feminista. E por este vetor contar
o que se passou, pois intercessor é “uma noção funcionalista cujo sentido não
pode ser apreendido senão no interior de uma certa operação – operação de
encontro, contágio, cruzamento que desestabiliza e faz diferir” (2000, p. XX).

Neste trabalho objetivamos discutir uma experiência de pesquisa que consiste em utilizar
ferramentas de áudio-visual como dispositivo de intervenção, a fim de acompanhar seus efeitos
na vida de mulheres que passaram por uma experiência de violência doméstica-familiar e por
uma oficina experimental no Fórum da cidade de Sobradinho, no Distrito Federal. A fim de
decodificar a experiência, buscamos autores que funcionariam nesta passagem: Deleuze, Gloria
Anzaldúa, Jacques Rancière, Luce Irigaray e Spinoza. Este cruzamento teórico ganha corpo e dá
corpo a experiência singular da oficina experimental e a produção de documentário, cujos
efeitos discutiremos mais afrente. [falar da pesquisa] [prática e teoria] [introdução, violência]
[conclusão que a gente tira do trabalho] explicar o “experimental” do processo, não o
experimental do cinema, mas experimental da intervenção]

Nós Desatadas: um processo


No fórum de sobradinho, cidade satélite de Brasília, foi realizado um atendimento
psicológico em grupo, com mulheres que chegaram lá pela Lei Maria da Penha. O grupo
aconteceu semanalmente, num período de três meses, em dois momentos distintos: um
primeiro momento de atendimento psicossocial nos moldes da proposta da pesquisa, dentro
da perspectiva de clínica-política feminista; em um segundo momento, foi oferecido um curso
de capacitação e edição de imagens, que resultou num documentário produzido pelas
mulheres.

No grupo foi feito um atendimento com atravessamento pedagógico feminista, como


uma vertente capaz de politizar a violência sofrida pelas mulheres participantes. Na medida
em que eram expressas nos seus discursos formas de intimidação comum entre elas, as
pesquisadoras atuavam no sentido de politizar aquilo que antes era entendido como privado,
dando historicidade às formas hegemônicas de poder. Buscou-se criar um espaço de reflexão
que possibilitasse que elas saíssem da dimensão privada e intimista.

As questãos mais evidentes trabalhadas foram: o isolamento gradativo, que leva a um


controle social da mulher, privando-a das redes sociais; o ciúme patológico, suspeição
permanente, atribuição de intensões infundadas, não reconhecimento da alteridade da
mulher, extorsão de confissões, ameaças e violência física; aviltamento, expressões
depreciativas, desdém, observações desagradáveis no sentido de manipular a mulher sem que
ela tenha consciência disso e levando-a a perder a confiança de si; humilhações, rebaixamento,
ridicularização com presença de componente sexual, que dão origem à vergonha; intimidação,
ameaça de morte, de sequestro dos filhos, avisos que despertam medo na mulher;
indiferenças às demandas afetivas, rejeição e desprezo.

Refletir sobre esses pontos permitiu pensar e discutir sobre o ciclo da violência –
agressão-desculpas-reconciliação -, em que as mulheres tendem a renunciar do próprio desejo
para satisfazer o companheiro e a naturalização desse processo na cultura. Nesse
compartilhamento houve uma criação de vínculo entre as mulheres, de confiança e mesmo
cumplicidade, permitindo elas saírem do universo privado para o universo público. O que criou
condições para a proposta de um trabalho coletivo entre elas, a oficina de áudio-visual.

A oficina não teve um caráter diretivo, mas tão-somente instrumentalizante. A


mulheres assumiram o protagonismo deste trabalho, assumindo os papéis de produtoras,
diretoras e editoras do produto final: Nós Desatadas. Os encontros tiveram seu início no
fórum, momento em que estas se apropriaram dos recursos e aprenderam a operar o
equipamento de filmagem: do manuseio a aquisição da linguagem cinematográfica como
ferramenta de aproximação das suas narrativas, transformando suas experiências em
instrumento de luta e resistência.

Posteriormente, os trabalhos da oficina tiveram andamento nos lugares em que as


mulheres decidiram como os mais adequados para a filmagem do que elas gostariam de
narrar. No caso, suas casas e ambiente de trabalho. Seguiu-se deste momento, a etapa de
edição, na ilha de edição do Laboratório de Saúde Mental, Ética e Estética da UCB. Fase em
que as mulheres assistiram o material captado e escolheram o que definiram como sendo o
mais apropriado para a montagem da história a ser contada. Por fim, agendou-se um dia de
projeção do filme no fórum, momento em que as mulheres tiveram a oportunidade de se
colocarem como espectadoras da própria obra.

Áudio-visual como intercessor: o que se passou?

Duas maneiras distintas e coexistíveis de contar o que se passou é pela identidade das
experiências - sua estrutura comum - e pelos devires que se passam. Uma razoabilidade e uma
afetação. Uma história estruturada, histrutura, e um devir-mulher.

A proposta da pesquisa, de encontrar elementos diferenciais no discurso e a partir


deles uma fenda, uma saída da cena de violência, uma tristeza.

Teoria >> nossa proposta é ir de encontro >> o que a gente atingiu >> a falha, onde quer
chegar

Vítima no atendimento >> potencialização com a proposta e com as câmeras, autonomia,

Áudio-visual como intercessor

Unimultiplicidade

O equipamento de áudio-visual – câmera, equipamento de edição – funciona


como intercessor na medida em que possibilitam a construção de uma narrativa de si
que pode vir a constituir uma emancipação dos saberes, sobretudo saberes de si. Isso
não exclui o coletivo, uma ver que elas, nesse compartilhar, no encontro, percebem a
similaridade das narrativas.

O produto audiovisual é composto, digamos, pela justaposição das falas


individuais, mas aparecem numa composição, um só corpo individuado, quando
unidos num filme. Essa é justamente uma distinção do trabalho de escuta clínica
tradicional, pois as diversas narrativas, construídas coletivamente, têm como efeito a
produção de uma matriz simbólica que evidencia representações que antes estavam
submergidas pelo discurso hegemônico, que naturalizada e essencializada o que é ser
mulher.

Então esse processo de emancipação a qualquer coisa que nos oprime, em um


processo de liberação a toda uma matriz simbólica que nos determina e nos atravessa,
como se fosse uma segunda natureza nossa. A composição pesquisadoras-mulheres-
equipamento foi suficiente potente para produzir, nesses encontros, uma narrativa
algo capaz de fazer frente a essa matriz. Isso é intercessor.

O ato de filmar é um ato político, pois ele de distancia do ser passivo e neutro,
centrado na personalidade e na intimidade; sua expressão no mundo passa a ser então
uma ação coletiva, com implicações coletivas. O ato de se filmar implica toda uma
responsabilidade dos seus gestos e sua vida. É colocar uma ordem no mundo, como a
escrita é para Anzaldúa.

A ferramenta áudio-visual pode funcionar como intercessor, pois nesse


material se revelam os elementos diferenciais, aqueles elementos que escapam
àquelas formas hegemônicas de representação do mundo, que são como sementes de
contra-discursos. São discursos emancipadores, que não se revelariam de forma
alguma dentro dos limites de uma abordagem privatista.

A função intercessora da ferramenta áudio-visual acontece quando permitem a


liberação da potência das mulheres, sistematicamente impedida pelos vários tipos de
violência a que são submetidas. O que pode um filme? Isso dependerá da rede de
relações que ele estabelecer. (exemplo da Lucilene assistindo a fala da Conceição)

A “câmera” (e com esta palavra designamos todo o precesso, experiência, ap


arelhagem e produto áudio-visual) é a igualdade das inteligências, como diria Ranciere
(referências).

Este trabalho foi um exercício de improvisar, que segundo Rancière é “a virtude


primeira de nossa inteligência”, a virtude poética. Segundo ele, “a improvisação é o
exercício pelo qual o ser humano se conhece e se confirma em sua natureza de ser
razoável, isto é, de animal ‘que faz palavras, figuras, comparações para contar o que
pensa a seus semelhantes’. A virtude de nossa inteligência está menos em saber do
que em fazer. ‘Saber não é nada, fazer é tudo’. Mas essa fazer é, fundamentalmente,
ato de comunicação”.

O grande medo é o medo de ficar sozinha, de não dar conta, de achar que precisa da
tutela de um homem, de alguém que cuide. Elas não se percebem como cuidadoras. Daí a
emancipação.

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