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O CORPO DISCURSO DE RENATA CARVALHO

Victor Luvizotto Rodrigues

Primeiras considerações

O objetivo deste texto é analisar a obra Manifesto Transpofágico, da atriz e


dramaturga Renata Carvalho, à luz dos conceitos de liminaridade e teatralidade,
assim descritos pelos autores Ileana Diéguez e Jorge Dubatti. Para tal, será
considerado o contexto no qual a obra foi produzida, após inúmeros episódios que
impediram que o trabalho anterior da atriz, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do
Céu, fosse apresentado em diversas ocasiões.
Partindo da ideia de Dubatti, que diz que a teatralidade é uma política do
olhar, este texto procura analisar os impactos políticos que a obra de Renata e sua
repercussão na sociedade brasileira traçam como característica de seu trabalho.
Também fomentará o debate deste texto a obra da autora Ileana Diéguez,
principalmente quando conceitualiza aquilo que chama de liminaridade e, a partir
deste conceito, procuro compreender a importância fundamental do corpo em O
Manifesto Transpofágico, como fomentador discursivo e dramatúrgico da obra em
questão.
‘ A obra de Butler, principalmente Discurso de ódio e Problemas de Gênero,
também compõem o escopo da análise que procuro aqui traçar, principalmente no
que se refere à maneira como Renata parece responder, artisticamente em
Manifesto Transpofágico, às censuras que sofreu quando circulava com seu
trabalho anterior.

A teatralidade é uma política do olhar

Jorge Dubatti, assim como Josette Féral, nos sugerem que a teatralidade
existe antes do teatro, ou seja, que o teatro faz um uso específico e estético do que
se define como teatralidade. Sendo assim, a teatralidade seria anterior e mais antiga
ao teatro, decodificado como arte e como estética, e estaria, para Dubatti, aliada a
conceitos de uma disciplina específica, denominada por ele como Antropologia do
Teatro. Talvez antes de ser teatro propriamente dito, a teatralidade compõe a vida
humana em suas mais variadas formas e está presente em diversas práticas sociais
humanas.
Este fato é justificado por Dubatti, quando o autor propõe que a teatralidade
seria a capacidade humana de organizar o olhar do outro; a teatralidade seria,
portanto, a construção de uma política do olhar. Neste sentido, o que faz da teoria
de Dubatti interessante segundo o ponto de vista que procuro defender neste texto,
é a dimensão dentro do Poder que a teatralidade passa a atingir, já que ela, para o
autor, geraria ação social ao elencar aquilo que se pode ou não se pode ver; aquilo
que se deve ou não se deve ver e construir, junto de si, uma rede de olhares.
Inicio este texto, portanto, analisando do ponto de vista desta política do olhar
proposta por Dubatti as sanções, tanto judiciais como civis, sofridas pela atriz
Renata Carvalho ao circular com seu espetáculo O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu e como o seu trabalho seguinte, Manifesto Transpofágico pode ter
surgido em resposta a tais sanções. O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu,
que foi dirigido por Natália Mallo e que contava com a atuação de Renata Carvalho,
sofreu diversos episódios de censura, no entanto, o primeiro e mais emblemático
aconteceu em Jundiaí, quando, por uma decisão judicial proferida pelo juiz Luiz
Antonio de Campos Júnior, o espetáculo foi impedido de ser apresentado na
unidade do SESC daquela cidade. Na decisão, o juiz alegou que figuras religiosas
não podem ser “expostas ao ridículo”.1
O Evangelho é uma peça teatral escrita pela dramaturga escocesa Jo
Clifford, que procura reler a Bíblia sob o olhar de Jesus, que retorna à terra no corpo
de uma mulher transgênera. O juiz que censurou a peça em Jundiaí parece ter
exemplificar a ideia de Dubatti sobre a teatralidade, definida por ele como uma
política do olhar, quando associou uma identidade de gênero, ou seja, o fato de
Jesus ser relido como uma mulher transsexual, a uma “exposição ao ridículo” de
figuras religiosas.
O professor Ferdinando Martins (2018), em palestra concedida ao Instituto de
Artes da Unesp em 2018, identifica a retomada intensa de uma prática de censura
moral na sociedade, principalmente depois do processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff, em 2016. Para o professor, o caráter moral da censura

1
https://www.conjur.com.br/2017-set-16/juiz-proibe-peca-representa-jesus-mulher-transgenero
acesso em 21 de outubro de 2021.
está intrínseco a um caráter “político”, pois essa seria uma maneira de gerar
abjeção àqueles identificados como “de esquerda”.
O conceito de abjeção utilizado por Martins em sua fala é debatido por Julia
Kristeva, filósofa e psicanalista búlgaro-francesa. Para ela, a abjeção é tudo aquilo
que é expelido de si e que, ao ser excretado, não chega a se tornar objeto. Judith
Butler (2019), filósofa estadunidense, avança na reflexão sobre a abjeção e procura
compreender o que denomina como corpos abjetos. Para ela, as hegemonias
sociais agem sobre os corpos diferenciando-os entre sujeitos e abjetos.
Essa matriz excludente pela qual os sujeitos são formados requer a produção
simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são
“sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo do domínio do sujeito. O
abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “não-vivíveis” e “inabitáveis”
da vida social que, não obstante, são densamente povoadas por aqueles que
não alcançam o estatuto de sujeito, cujo viver sob o signo do “inabitável” é
necessário para circunscrever o domínio do sujeito. (BUTLER, 2019, p. 22)

A geração de abjeções nada mais é, portanto, que uma estratégia de criação


de diferença, na qual é possível identificar aqueles seres abjetos que precisam ser
calados e censurados. Neste caso, parece que vemos colocada em prática a política
do olhar, defendida por Dubatti, num claro aceno conservador. Sendo tal política
uma estratégia de organização do olhar do outro, elencando aquilo que se deve e
aquilo que não se deve ser visto, vemos Renata e seu trabalho como atriz no
epicentro de tais ações políticas. Observamos uma clara tentativa institucional e civil
- já que o caso de censura prévia aqui descrito foi apenas um dentre muitos outros
que aconteceram em sequência - de organizar (talvez até controlar) olhares de
outros, ao impedir que uma uma atriz travesti representasse uma figura religiosa
como Jesus. É interessante, contudo, a resposta que Renata Carvalho parece
elaborar aos episódios de censura que sofreu com O Evangelho, quando assume a
posição de atriz e dramaturga no seu trabalho seguinte, Manifesto Transpofágico,
que será analisado a seguir neste texto.

Qual a resposta a altura da censura?

Este é meu corpo.

Há um feixe de luz cortando o palco da esquerda para a direita, iluminando o


corpo de alguém, mas escondendo deste corpo a identidade que carrega o rosto. É
possível ver o dorso, talvez as pernas, mas não a cabeça - o corpo, ali, prostrado
diante do público está impedido, por enquanto, de revelar quem é, o que pensa,
como pensa, do que gosta e do que não gosta. O corpo está quase nu, de calcinha.
É magro, tem seios.

O meu corpo (TRAVESTI) sempre chega antes.

Alguém negado a adotar qualquer identidade, que não seja o próprio corpo. A
travesti que carrega seu corpo como uma marca indissociável de si - um receptáculo
de violência, repressão e censura. Um outdoor, um muro ou um letreiro piscante
(que pisca, durante todo o espetáculo a palavra TRAVESTI), que ofusca qualquer
outra possibilidade de ser sujeita.

Meu corpo (TRAVESTI) veio antes de mim, (pausa) sem eu pedir. Ele é mais velho
do que eu. (TRAVESTI)

Ainda assim, um corpo que carrega junto de si um passado, uma


ancestralidade, uma transcestralidade. Um corpo metonímico, uma sinédoque que
carrega, ao mesmo tempo, o fardo e a responsabilidade de contar a sua história, as
suas histórias e as histórias de uma miríade de corpos como este, histórias de
repressão e de glória; de prazer e de amargor; de luta e de combate. Um corpo que
se virá refletido, simultaneamente, na própria história de vida - refletindo sobre sua
infância, sobre sua adolescência e sobre sua profissão - e numa história quase
apagada pela humanidade, daquelas que sofreram e que triunfaram - Roberta
Close, Andréa de Maio e Rogéria, travestis ícones da televisão brasileira, mas
também Bartô, bombadeira que viralizou em vídeos da internet.
Este corpo, que é o mesmo corpo que escreveu todas as palavras que se
ouvem durante todo o espetáculo, por diversas vezes se colocou e se colocará na
encruzilhada dos feixes de luz que escondem o seu rosto para evocar fantasmas
apagados da história tradicional; este corpo contará histórias rechaçadas do teatro
brasileiro; este corpo, visto por centenas de pessoas a cada apresentação que se
compromete a realizar, tentará - e antecipo que conseguirá - reorganizar os olhares
que fitam atentos à peça que assistem. Este corpo é Renata Carvalho, a atriz e
dramaturga de Manifesto Transpofágico, que, poucos anos antes, foi duramente
reprimida ao circular com O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu, na qual
interpretava Jesus, aliando gênero, transsexualidade e religião.
Anteriormente debatida neste texto, a teatralidade como a ação de
organização do olhar do outro parece ter afetado Renata, de modo a impedi-la de
representar Jesus - mas qual é a resposta à altura da censura?

Então, hoje eu resolvi me vestir com a minha própria pele, o meu Corpo Travesti, até
que ele se humanize, se naturalize e acalme os olhos e olhares cisgêneros.

A resposta de Renata é tão - senão, mais - política quanto às represálias que


sofreu ao interpretar Jesus. O que a atriz e, agora, dramaturga propõe é uma outra
organização dos olhares; o que ela opera em Manifesto Transpofágico é a brutal
presença de seu corpo TRAVESTI, que será mirado, olhado, analisado, examinado
e dissecado durante todo o espetáculo. Ademais, a presença do seu corpo evoca a
presença de tantos outros corpos travestigêneres, todos reprimidos e muitos
assassinados ao longo da história brasileira. A partir de si, do seu corpo, a artista
enlaça a história do teatro, domina-a, a traz para junto de si no palco e, com isso,
reorganiza, uma vez mais, o olhar que quem lê seu texto e de quem assiste ao seu
espetáculo - durante a hora e meia de duração da peça, o corpo de Renata será
visto, o corpo de inúmeras travestis será visto e o olhar de todos sobre estes corpos
mudará vorazmente.
Renata veste a própria pele e, de uma maneira absolutamente teatral,
representa a si mesma - e esta pode parecer uma contradição, já que,
costumeiramente, concebemos que teatral seria a representação de algum ente
ficcional, distante aquilo que se é na realidade, prática sistematicamente negada a
Renata quando interpretou Jesus. Nos afirma, no entanto, Ileana Diéguez (2011):

O outro jeito de conceber o fato teatral, como criação cênica onde o texto
dramático é bombardeado", debilitado e não funciona como dispositivo
essencial, também implica outras formas de participação no processo
criativo, especialmente para o ator que já não é só intérprete de uma
personagem, mas criador de uma entidade ficcional, co-criador do
acontecimento cênico ou inclusive performer que trabalha a partir da sua
própria intervenção ou presença, condição que caracteriza os praticantes das
teatralidades que nos interessam. (DIÉGUEZ, 2011, p. 26)
A teatralidade em Manifesto Transpofágico está no próprio corpo de Renata,
também como a afirmação contundente de que este é um corpo digno de estar no
teatro. Ao ocupar uma sala de espetáculos vestida de si e, ao mesmo tempo,
representando aquelas que foram impedidas de entrarem naquela sala, Renata
perfura como uma flecha uma cadeia de inúmeras e simbólicas opressões e faz
eclodir e explodir nos olhares de quem assiste ao seu manifesto uma nova ordem
teatral, fundada em verdadeiros preceitos de humanidade, que escancara, a
fórceps, as portas do teatro para a entrada de uma miríade de seres excluídos deste
espaço.

O Corpo Discurso de Renata Carvalho e o fundamento liminal de Manifesto


Transpofágico

Em consonância com produções artísticas e teatrais mais contemporâneas,


Manifesto Transpofágico, embora seja uma dramaturgia publicada, não elenca o
texto escrito como a estrutura e a fundamentação de sua elaboração, tampouco
parece se preocupar em elaborar uma narrativa ficcional aos moldes de um teatro
mais convencional. Em Manifesto, o corpo de Renata Carvalho, a atriz e a
dramaturga, serve de alicerce para a construção do discurso cênico da peça - o
corpo, aqui, parece adotar, ao mesmo tempo, a função de raiz, que aterra e
alimenta, e de tronco, que estrutura e cresce, mas que faz surgir de si uma série de
galhos e ramificações que compõem uma copa gigantesca e exuberante.
Manifesto não deixa de ser uma obra liminal, segundo o que propõe Diéguez
(2011), já que, segundo a autora, “a liminaridade é uma situação de margem, de
existência no limite, portadora de mudança, proponente de umbrais
transformadores” (DIÉGUEZ, 2011, p. 38). A obra de Renata está, a todo o
momento, tensionando categorias como presença e representação, desejo e
repulsa, abjeto e objeto; Manifesto Transpofágico é uma obra que vive nos limites do
teatro, nos quais o corpo é, a todo momento, interpelado, tensionado, esticado até o
limite de seu significado.

Corpo Expulso. (TRAVESTI) Corpo Excluído. (TRAVESTI) Corpo Afastado.


(TRAVESTI) Corpo Marginal. (TRAVESTI) Corpo Desviante. (TRAVESTI) Corpo
Dissidente. (TRAVESTI)
Corpo, recebe a todo instante do espetáculo, adjetivos. Corpo nunca está só,
está sempre sucedido de alguma palavra, na sua massiva maioria pejorativa. A
construção da ideia de corpo em Manifesto está sempre aliada a um discurso de
ódio, que caracteriza essa palavra e essa matéria a todo momento. Judith Butler
(2021) nos diz que o discurso tem o poder de fundar os sujeitos através da
interpelação de um sujeito sobre o outro: “Seu objetivo [o da interpelação] é
designar e estabelecer um sujeito na sujeição, produzir seus contornos sociais no
tempo e no espaço” (BUTLER, 2021, p.63). Ou seja, para Butler, os discursos de
ódio, as ofensas, as nomeações violentas são também uma ferramenta do poder de
fundarem sujeitos na sua subalternidade.
Corpo, em Manifesto, é, portanto, construído através de das palavras odiosas
comumente associadas aos corpos travestis marginalizados - excluído, marginal,
desviante, abjeto, objeto, dentre outros. Primeiro, evidencia-se o discurso de ódio
responsável por fundar um sujeito - aqui, determinado pelo seu corpo outdoor, que
chega sempre antes - em sua subalternidade. Contudo, sem se atrever a se ater a
este fato, Renata reelabora essa condição, e passa a encarar o seu corpo como um
discurso maior, mais amplo, cujos significados e sentidos são extensivos a outros
tantos corpos iguais ao seu.
O texto em Manifesto é, portanto, o corpo da atriz - também escritora -, que
carrega consigo inúmeros significados e sentidos históricos, materiais, sociais, etc.
Na ideia de colocar-se diante da história das travestis no Brasil, ao evocar nomes
como Telma Lipp e Roberta Close e fatos históricos como a Operação Tarântula,
Renata cria para si um Corpo Discurso, posicionado na liminaridade da cena e da
história, ao mesmo tempo público e privado, individual e histórico. O Manifesto
Transpofágico é uma obra liminar, que elege o corpo como seu principal texto e seu
principal discurso; um corpo metonímico, que, de certa maneira, transfere-se de sua
própria biografia para o bojo de uma história marginalizada, não contada nos livros
de história e relegada à periferia da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Acesso em: 19 jul. 2022.

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