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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS
Estudos Literários II
Prof. Fernando Fábio Fiorese Furtado

LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas medievais galego-
portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Consulta
em 05 out. 2013. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>.

SOBRE AS CANTIGAS [MEDIEVAIS GALEGO-PORTUGUESAS]

1. Dados gerais sua congénere provençal, desde logo pela criação


de um género próprio, a cantiga de amigo.
As cantigas trovadorescas galego-portuguesas No total, e recolhidas em três grandes cancio-
são um dos patrimónios mais ricos da Idade Média neiros (o Cancioneiro da Ajuda, o Cancioneiro da
peninsular. Produzidas durante o período, de cerca Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Biblioteca
de 150 anos, que vai, genericamente, de finais do Vaticana), chegaram até nós cerca de 1680 canti-
século XII a meados do século XIV, as cantigas gas profanas ou de corte, pertencentes a três géne-
medievais situam-se, historicamente, nas alvores ros maiores (cantiga de amor, cantiga de amigo e
das nacionalidades ibéricas, sendo, em grande parte cantiga de escárnio e maldizer), e da autoria de
contemporâneas da chamada Reconquista cristã, cerca de 187 trovadores e jograis. Da mesma época
que nelas deixa, aliás, numerosas marcas. Tendo e ainda em língua galego-portuguesa, são também
em conta a geografia política peninsular da época, as Cantigas de Santa Maria, um vasto conjunto de
que se caracterizava pela existência de entidades 420 cantigas religiosas, de louvor à Virgem e de
políticas diversas, muitas vezes com fronteiras vo- narração dos seus milagres, atribuíveis a Afonso X.
láteis e frequentemente em luta entre si, a área ge- Tendo em comum com as cantigas profanas a lín-
ográfica e cultural onde se desenvolve a arte trova- gua e eventualmente espaços semelhantes de pro-
doresca galego-portuguesa (ou seja, em língua ga- dução, as Cantigas de Santa Maria pertencem, no
lego-portuguesa) corresponde, latamente, aos rei- entanto, a um tradição cultural bem distinta, moti-
nos de Leão e Galiza, ao reino de Portugal, e ao vo pelo qual não integram a presente base de da-
reino de Castela (a partir de 1230 unificado com dos.
Leão).
Nas origens da arte trovadoresca galego- 2. A língua
portuguesa está, indiscutivelmente, a arte dos tro-
vadores provençais, movimento artístico nascido O Galego-Português era a língua falada na faixa
no sul de França em inícios do século XII, e que ocidental da Península Ibérica até meados do XIV.
rapidamente se estende pela Europa cristã. Com- Derivado do Latim, surgiu progressivamente como
pondo e cantando já em língua falada (no caso, o uma língua distinta anteriormente ao século IX, no
occitânico) e não mais em Latim, os trovadores noroeste peninsular. Neste sentido, poderemos di-
provençais, através da arte da cansó, mas também zer que, mais do que designar uma língua, a ex-
do fin’amor que lhe está associado, definiram os pressão Galego-Português designa concretamente
modelos e padrões artísticos, mas também generi- uma fase dessa evolução, cujo posterior desenvol-
camente culturais, que se irão tornar dominantes vimento irá conduzir à diferenciação entre o Gale-
nas cortes e casas aristocráticas europeias durante go e o Português atuais. Entre os séculos IX e XIV,
os séculos seguintes. Acompanhando, pois, sem no entanto, e com algumas pequenas diferenças
dúvida, um movimento europeu mais vasto de ado- entre modos de falar locais, a língua falada ao norte
ção dos modelos occitânicos, a arte trovadoresca e ao sul do rio Minho era sensivelmente a mesma.
galego-portuguesa assume, no entanto, característi- E nem mesmo as fronteiras políticas que por mea-
cas muito próprias, como explicitaremos mais dos do século XII se foram desenhando, e que con-
abaixo, e que a distinguem de forma assinalável da duziram à formação de um reino português inde-
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pendente ao sul, parecem ter afetado imediatamen- Convém, pois, ter presente, que quando falamos
te esta unidade linguística e cultural, cujas origens de poesia medieval galego-portuguesa falamos
remontam à antiga Galiza romano-gótica. Da menos em termos espaciais do que em termos lin-
mesma forma, a extensão do novo reino português guísticos, ou seja, trata-se essencialmente de uma
até ao extremo sudoeste da Península (que se de- poesia feita em Galego-Português por um conjunto
senrola, até 1250, ainda no movimento da chamada de autores ibéricos, num espaço geográfico alarga-
reconquista cristã), é um processo que pode ser do e que não coincide exatamente com a área mais
entendido, nesta primeira fase, como um alarga- restrita onde a língua era efetivamente falada.
mento natural desse espaço linguístico e cultural
único. Assim, como escreve Carolina Michaëlis de 3. Os autores
Vasconcelos, comentando este sentido alargado
que dá ao termo Galego-Português: “Tal extensão As cantigas galego-portuguesas são obra de um
de sentido justifica-se pela uniformidade da língua conjunto relativamente vasto e diversificado de
desde o extremo da Galiza até ao extremo do Al- autores, que encontram nas cortes régias de Leão,
garve, apenas com algumas variantes provinciais, de Castela (ou de Castela-Leão) e de Portugal, mas
dentro de um tipo comum; e também pela grande também eventualmente nas cortes de alguns gran-
semelhança de modos de viver, sentir, pensar, poe- des senhores, o interesse e o apoio que possibilita a
tar – uniformidade e semelhança que falam elo- sua arte. Não se trata, no entanto, de um mero pa-
quentemente a favor da afinidade primitiva de lusi- trocínio externo: na verdade, e de uma forma que
tanos e galaicos”[Vasconcelos: 1904, II, 780]. não mais terá paralelo nos séculos posteriores, os
Na verdade, pode dizer-se que, paralelamente à grandes senhores medievais ibéricos não se limi-
independência do reino de Portugal, é a progressiva tam ao mero papel de protegerem e incentivarem a
e lenta deslocação do centro político da Hispânia arte trovadoresca, mas são eles próprios, por vezes,
cristã do noroeste galego-leonês para Castela (no- os seus maiores, ou mesmo mais brilhantes, produ-
meadamente após a conquista de Toledo em 1085 tores. Como é sabido, dois reis, Afonso X e o seu
e, posteriormente, a conquista de Sevilha em 1248) neto D. Dinis, contam-se entre os maiores poetas
que conduzirá gradualmente à rutura desta unidade, peninsulares em língua galego-portuguesa, num
ao potenciar o desenvolvimento das duas línguas notável conjunto de autores que inclui uma parte
que mais imediatamente correspondiam a entidades significativa da nobreza da época, de simples cava-
políticas autónomas, o Português e o Castelhano. A leiros a figuras principais. Ao lado deste conjunto
partir desse momento, que poderemos situar, de de senhores, designados especificamente trovado-
forma genérica, em meados do século XIV, o Ga- res, e para quem a arte de trovar era entendida,
lego-Português deixa de ser uma designação opera- pelo menos ao nível dos grandes princípios, como
cional: de facto, e ao mesmo tempo que a Galiza uma atividade desinteressada, encontramos um não
entra culturalmente no período que habitualmente menos notável conjunto de jograis, autores oriun-
se designa por “séculos escuros”, com um caste- dos das classes populares, que não se limitam ao
lhanismo acelerado das suas elites e sem verdadei- papel de músicos e instrumentistas que seria soci-
ra produção cultural em língua própria, o Português almente o seu, mas que compõem igualmente can-
assume a sua identidade linguística e cultural autó- tigas, e para quem a arte de trovar constituía uma
noma, partilhando a partir de então com Castelhano atividade da qual esperavam retirar não apenas o
(e, até certa altura, com o Catalão) o espaço cultu- reconhecimento do seu talento mas igualmente o
ral ibérico. respetivo proveito.
O período que medeia entre os séculos X e XIV Se bem que o percurso de alguns trovadores, até
constitui, pois, a época por excelência do Galego- pelo seu estatuto de figuras públicas, seja bem co-
Português. É, no entanto, a partir de finais do sécu- nhecido, em relação a muitos outros, e também em
lo XII que a língua falada se afirma e desenvolve relação à maioria dos jograis, os dados biográficos
como língua literária por excelência, num processo de que dispomos são escassos ou mesmo nulos. Na
que se estende até cerca de 1350, e que, muito em- base de dados o leitor encontrará, no entanto, uma
bora inclua também manifestações em prosa, al- curta biografia de cada um, com os dados que a
cança a sua mais notável expressão na poesia que investigação conseguiu apurar até ao momento.
um conjunto alargado de trovadores e jograis, ga- Caso surjam novos dados decorrentes dessa inves-
legos, Portugueses, mas também castelhanos e leo- tigação, de resto atualmente bastante ativa, eles
neses, nos legou. irão sendo gradualmente disponibilizados.
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4. Os géneros os trovadores e jograis galego-portugueses terão


seguido, muito embora adaptando-a ao universo
A Arte de Trovar subjacente às cantigas profa- cortês e palaciano que era o seu. Desta forma, a
nas galego-portuguesas é a matéria de um pequeno voz feminina que os trovadores e jograis fazem
tratado anónimo transcrito nas páginas iniciais do cantar nestas composições remete para um univer-
Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Muito embora so definido quase sempre pelo corpo erotizado da
nos tenha chegado truncada nos seus capítulos ini- mulher, que não é agora a senhor mas a jovem
ciais, esta Arte de Trovar, mais prático-didática do enamorada, que canta, por vezes num espaço aber-
que propriamente teórica, fornece-nos um quadro to e natural, o momento da iniciação erótica ao
que genericamente se adequa às cantigas que che- amor. Desta forma a velida (bela), a bem-talhada
garam até nós, nomeadamente quanto aos géneros (de corpo bem feito) exterioriza e materializa de
maiores cultivados por trovadores e jograis. formas várias, formas essas enquadradas numa
Assim, os principais géneros da poesia galego- vivência quotidiana e popular, os sentimentos amo-
portuguesa profana são a cantiga de amor (canto rosos que a animam: de alegria pela vinda próxima
em voz masculina), a cantiga de amigo (canto em do seu amigo, de tristeza ou de saudade pela sua
voz feminina) e a cantiga de escárnio e maldizer partida, de ira pelos seus enganos – os sentimentos
(cantiga satírica, respetivamente com ou sem equí- que o trovador ou o jogral lhe faz cantar, bem en-
voco). Paralelamente a estes três géneros princi- tendido. Compostas e geralmente cantadas por um
pais, os trovadores e jograis cultivaram ainda, se homem (se bem que possa ter havido igualmente
bem que de forma esporádica, alguns outros géne- vozes femininas a cantá-las), as cantigas de amigo
ros, como a tenção (disputa dialogada), o pranto põem em cena um universo feminino alargado, do
(lamento pela morte de alguém), o lai (composição qual fazem ainda parte, como interlocutoras da
de matéria de Bretanha) ou a pastorela (narrativa donzela, a mãe, as irmãs ou as amigas. Formalmen-
de um encontro entre o trovador e uma pastora). te, as cantigas de amigo recorrem frequentemente a
Género de registo aristocrático, a cantiga de uma técnica arcaica de construção estrófica conhe-
amor galego-portuguesa segue muito claramente o cida como “paralelismo”, a apresentação da mesma
universo do fin’amor provençal (sobretudo o da ideia em versos alternados, com pequenas varia-
fase mais tardia), num modelo que não é apenas ções verbais nos finais desses mesmos versos, e
formal mas que retoma também uma “arte de são quase sempre (em 88% das cantigas conserva-
amar” que define, em novos moldes culturais e das) de refrão.
sociais, as relações entre o homem e a mulher, ou, O terceiro grande género cultivado pelos trova-
na terminologia usada pelos trovadores à exaustão, dores e jograis galego-Portugueses é o satírico, ou
entre o poeta servidor e a sua senhor (o chamado seja, as cantigas de escárnio e maldizer, que repre-
“amor cortês”, numa terminologia pouco exata, sentam mais de um quarto do total das cantigas que
mas que se tornou tradicional). De forma retorica- chegaram até nós. No já referido pequeno tratado
mente elaborada, a cantiga de amor apresenta-nos sobre a Arte de Trovar que abre o Cancioneiro da
assim uma voz masculina essencialmente senti- Biblioteca Nacional, o seu anónimo autor define-
mental, que canta a beleza e as qualidades de uma as, genericamente, como cantigas que os trovado-
senhora inatingível e imaterial, e a correlativa coita res fazem quando querem “dizer mal” de alguém,
(sofrimento) do poeta face à sua indiferença ou estabelecendo em seguida uma diferença no que
face à sua própria incapacidade para lhe expressar diz respeito ao modo: assim enquanto que nas can-
o seu amor. Se bem que decididamente influencia- tigas de maldizer a crítica seria direta e ostensiva,
da pela cansó provençal, como se disse, a cantiga nas cantigas de escárnio a crítica seria feita de mo-
de amor galego-portuguesa assume, no entanto, do mais subtil, “por palavras cobertas que hajam
algumas características distintas, desde logo o facto dous entendimentos” (ou seja, num registo de dupla
de ser em geral mais curta e de frequentemente (em leitura, o “equívoco”, ou hequivocatium, nas pala-
mais de metade dos casos conservados) incluir um vras do mesmo anónimo autor). Ainda que estes
refrão (quando a norma provençal é a cantiga de dois modos sejam, de facto, detetáveis nas cantigas
mestria, ou seja, sem refrão). conservadas, a nível terminológico esta distinção
Num registo bem mais popular ou burguês, a pode considerar-se, no entanto, mais teórica do que
cantiga de amigo é um género autóctone, cujas prática: com efeito, os trovadores utilizam muitas
origens parecem remontar a uma vasta e arcaica vezes a designação genérica “cantigas de escárnio
tradição da canção em voz feminina, tradição que e maldizer” para designarem este género, que cla-
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ramente se distingue dos outros dois, e que pode- faz nas suas margens), enquanto a outra (V) se des-
remos classificar simplesmente como satírico. Tra- tinaria eventualmente a qualquer oferta. Para além
ta-se, de qualquer forma, e na esmagadora maioria destas três grandes recolhas trovadorescas, chega-
dos casos, de uma sátira pessoalizada, ou seja, diri- ram ainda até nós algumas folhas volantes com
gida a uma personagem concreta, cujo nome, de cantigas, duas delas importantes, já que incluem
resto, surge geralmente referido logo nos primeiros notação musical, o Pergaminho Vindel e o Perga-
versos da composição. Acrescente-se que, embora minho Sharrer (de que adiante se falará).
a Arte de Trovar não o refira explicitamente, nesta De resto, as questões em torno da tradição ma-
arte “dizer mal” trovadoresca (de bem “dizer mal”) nuscrita das cantigas galego-portuguesas não são
o riso é igualmente um elemento fundamental. Te- fáceis de deslindar e continuam a suscitar interro-
maticamente, as cantigas de escárnio e maldizer gações (e pesquisa). Ao que tudo indica, terá sido
abarcam um vastíssimo leque de motivos, persona- D. Pedro, conde de Barcelos, trovador e primogéni-
gens e acontecimentos, em áreas que vão dos com- to bastardo de D. Dinis, o compilador das cantigas
portamentos quotidianos (sexuais, morais) aos que chegaram até nós (através dos apógrafos italia-
comportamentos políticos, devendo muitas delas nos), talvez o seu compilador final, se aceitarmos,
ser entendidas como armas de combate entre os como crê Giuseppe Tavani, que já na corte de
vários grupos e interesses em presença. Formal- Afonso X se teria realizado uma primeira compila-
mente, as cantigas satíricas tendem a ser de mes- ção [Tavani: 1986, 65-66]. Seja como for, nunca
tria, embora quase um terço das conservadas (31%) será demais realçar o mérito do notável trabalho
incluam um refrão. quinhentista de Angelo Colocci, trabalho sem o
qual a nossa visão da lírica galego-portuguesa se
5. Os manuscritos teria de restringir ao Cancioneiro da Ajuda, ou
seja, às cerca de 310 composições de amor já refe-
No seu essencial, conhecemos as cantigas pro- ridas, em lugar das cerca de 1680 de todos os géne-
fanas galego-portuguesas através de três manuscri- ros de que dispomos atualmente.
tos. O mais antigo, datável de inícios do século
XIV (e, portanto, o único que será contemporâneo 6. A música
da última geração de trovadores), é o Cancioneiro
da Ajuda (A), rico manuscrito iluminado, mas que Cantiga ou cantar, implica que o texto poético
é também o mais incompleto, já que contém apenas se cantava. A forma como o texto era publicamente
310 composições, na sua esmagadora maioria de apresentado, pressupondo uma emissão melódica e
um único género, a cantiga de amor. Descoberto na uma audiência, tinha consequências quer na con-
biblioteca do Colégio dos Nobres em inícios do cepção do poema, quer na sua recepção. A inter-
século XIX, e hoje guardado na Biblioteca do Pa- mediação musical impõe que o texto se desvele e
lácio da Ajuda, em Lisboa, pouco sabemos sobre as se saboreie pouco a pouco, a sua continuação re-
suas origens ou sobre o seu percurso. Trata-se, de servando uma e outra surpresa, sugerindo uma ou
qualquer forma, de um manuscrito que ficou mani- outra associação; e simultaneamente carrega-o de
festamente inacabado, como é muito visível nas sinais retóricos e tonalidades afetivas, que prepa-
suas iluminuras, muitas delas com pintura incom- ram, enquadram e condicionam a reação do ouvin-
pleta ou mesmo com figuras apenas desenhadas (o te. A eficácia da atuação trovadoresca dependia,
mesmo se passando com as iniciais). Os outros pois, quer da bondade do casamento entre poesia e
dois manuscritos, conhecidos como Cancioneiro música, quer de uma receptividade educada, soci-
da Biblioteca Nacional (B, também chamado Can- almente diferenciada e diferenciadora.
cioneiro Colocci-Brancuti, o mais completo, guar- A cantiga trovadoresca como um todo dependia,
dado em Lisboa, na BNP) e Cancioneiro da Vati- para a sua circulação, sobretudo da memória e do
cana (V, guardado na Biblioteca Apostólica Vati- bom ouvido, quer dos autores quer dos jograis que
cana), são manuscritos copiados em Itália, nas pri- os serviam e, na invenção, os imitavam. Com a
meiras décadas do século XVI, sob as ordens do vinda de França e entronização de D. Afonso III, é
humanista Angelo Colocci, e a partir de um canci- provável que se tenha introduzido a ideia de que,
oneiro anterior, muito certamente medieval, hoje em recolhas de cantigas exemplares, a música, à
desaparecido. Uma das cópias mandadas fazer por imagem do texto, podia ser escrita recorrendo a
Colocci (B) destinar-se-ia a uso próprio (como uma notação o mais moderna possível, permitindo
parecem comprovar as numerosas anotações que a sua visualização e fácil reprodução. Foi neste
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espírito que se copiaram as cantigas de Martim A partir da década de 1950, o declínio da moti-
Codax no Pergaminho Vindel (folha volante ou vação nacionalista em Portugal deixou o campo
bifólio central de um caderno, encontrada pelo li- livre para a afirmação, em diálogo com os autores
vreiro madrileno Pedro Vindel em 1913 e posteri- medievais, de poéticas sonoras individuais (Lopes-
ormente por ele vendida) e as de Dom Dinis no Graça, ou, mais recentemente, Eurico Carrapatoso,
Cancioneiro perdido de que sobra somente um fra- entre outros), enquanto as edições de Rodrigues
gmento, o Pergaminho Sharrer (nome do seu des- Lapa e as modernizações textuais de Natália Cor-
cobridor, o académico Harvey Sharrer, que o loca- reia abriam espaço para a composição de versões
lizou na Torre do Tombo em 1990). O mesmo deve em idiomas musicais mais populares (como as pro-
ter sucedido a centenas de cantigas; o Cancioneiro tagonizadas por Amália, Zeca Afonso e José Mário
da Ajuda foi preparado para receber pautas, mas Branco). Entretanto, o desenvolvimento da musico-
ficou incompleto, e até hoje não se encontraram logia aplicada às fontes mais antigas e a gradual
outras fontes medievais. emergência de um movimento de interpretação de
A redescoberta, no século XIX, da tradição líri- música medieval com instrumentos antigos fizeram
ca galego-portuguesa baseou-se, como antes se surgir, quer propostas de reconstrução musical de
disse, em cópias italianas do início do século XVI cantigas profanas a partir da reutilização de melo-
(Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Biblio- dias medievais de outra proveniência (contrafacta),
teca Apostólica Vaticana), que não reproduziram a quer múltiplas gravações tentando recriar um am-
música presumivelmente preexistente. Só com a biente sonoro trovadoresco, a partir das melodias
edição de fotografias do Pergaminho Vindel, em originais, de contrafacta ou de recriações “ao estilo
1915, se tornou clara a dimensão da perda. A partir medieval”. A par destes desenvolvimentos, o mo-
de então, o crescendo nacionalista em Portugal, derno nacionalismo galego apropriou-se, por sua
primeiro em plena época republicana, depois du- vez, da tradição lírica do século XIII, produzindo a
rante o Estado Novo, levou à revalorização da he- partir dela múltiplas expressões musicais, de cará-
rança literária mais antiga, que habitualmente se ter mais historicista, mais erudito, ou mais popular
apresentava misturando trovadores medievais com (Amancio Prada, Uxía, Xurxo Romani). Este com-
autores quatrocentistas recolhidos no Cancioneiro plexo panorama está a partir de agora refletido na
de Resende e até com a obra lírica de Camões. Este riqueza e variedade dos conteúdos musicais que
interesse levou vários compositores (Tomás Borba, aqui acolhemos e divulgamos, e que estão abertos a
Ruy Coelho, Frederico de Freitas, Cláudio Car- novas atualizações.
neyro, Croner de Vasconcelos, Filipe Pires, Victor
Macedo Pinto...) a propor novas versões musicais
de textos Galego-Portugueses medievais, fosse
como forma de divulgação, como tentativa de criar
uma tradição nacional de “lied”, ou como exercício
de diferenciação sonora de um património.

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