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1

LITERATURA PORTUGUESA
TROVADORISMO
(SÉC.XII-XV)

***
A arte amatória medieval
Lo vers es fis e naturaus
e bos celui qui be l´enten;
e melher es, qui.l joi aten.

A canção é autêntica e sincera,


capaz de honrar àquele que a compreenda bem;
Mas melhor é para aquele que aguarda
as alegrias do amor.

Bernart de Ventadorn (1150-1180)


Tradução de Segismundo Spina.

Os primeiros registros escritos da Literatura Portuguesa são em verso. As produções


do primeiro período medieval, que se estende dos séculos XII ao XV, são agrupadas no
movimento literário conhecido por Trovadorismo.1 A expressão deriva do verbo provençal

1
Costuma-se dividir o período medieval em dois momentos. O primeiro momento, entre 1189 ou 1198 e
1434, circunscreve no campo da poesia as composições líricas e satíricas e, na prosa, as novelas de cavalaria.
No segundo período medieval, entre 1434 e 1527, fase de transição para o Classicismo, ganha destaque a
publicação do Cancioneiro Geral, compilado por Garcia de Resende e impresso em 1516, e o início e
afirmação do teatro português com Gil Vicente.
2

trobar, que exprimia o poetar da época enquanto ação de compor, de inventar, de criar.2 Em
consequência, chamavam-se trobador o poeta que criava, instrumentava e, por vezes,
entoava suas próprias composições poéticas. As cantigas também eram criadas e divulgadas
pelo Segrel, o trovador profissional, que ia de corte em corte acompanhado pelo Jogral
(dançarino, acrobata, mímico). Chamava-se Menestrel, o músico.
D. Dinis (1261-1325) é considerado um dos mais notáveis trovadores medievais. As
suas cantigas evidenciam um dos momentos mais altos da poesia no sentido da apropriação
do instrumento verbal e de sua adequação ao dizer poético. D. Dinis leva a bom termo o
desejo de todo trovador medieval, a saber, a plena realização da aliança entre motz el son,
entre a palavra e música. Leiam-se os primeiros versos da cantiga de amor de sua autoria:

Quer'eu en maneyra de proençal


fazer agora hun cantar d'amor,
e querrei mûit'y loar mha senhor,
a que prez nen fremosura non fal,
nen bõdade; e mays vos direy en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mays que todas las do mundo val.3

2
Segismundo Spina, em A lírica trovadoresca, livro indispensável aos estudiosos da poética medieval, sugere
que dentre tantas etimologias propostas, a mais aceitável se associa a uma tese litúrgica da poesia
trovadoresca. Assim, trobar seria o vocábulo tropare, “decalcada sobre tropo – interpolação, adição ou
introdução de texto literário e musical numa peça da liturgia. Daí tropare – fazer tropos, compor (um poema,
uma melodia), inventar, descobrir” (SPINA, 1996, p.407).
3
“Quero fazer agora uma canção de amor ao modo provençal. E quero louvar a minha senhora, a quem honra
nem formosuras não faltam, nem bondade; e mais vos direi ainda: tanto Deus a fez cheia de virtudes, que no
mundo não há outra igual.”.
3

Manuscrito que integra o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (B 520b)


disponível em http://cantigas.fcsh.unl.pt/

De imediato, surgem as perguntas: como este fragmento textual chegou até nós se foi
escrito há cerca de 700 anos atrás? Em que língua foi escrito? O que significa compor um
“cantar d´amor” ao modo provençal? Enfim, o que se compreende por “amor” e qual a
importância de se estudar textos medievais?
Ora bem, a referida estrofe e as demais composições da lírica trovadoresca medieval
encontram-se preservadas em três compilações manuscritas chamadas de Cancioneiros. Se
o mais antigo é o Cancioneiro da Ajuda, composto de 310 cantigas (acredita-se compilado
entre os séculos XIII e XIV), o mais completo é o Cancioneiro da Biblioteca Nacional,
formado de 1647 manuscritos de cantigas líricas e satíricas. O nosso interesse se volta para
o Cancioneiro da Vaticana, assim designado por ter sido encontrado na Biblioteca do
Vaticano; o mesmo contém 1205 cantigas de vários autores, dentre os quais D. Dinis e suas
137 cantigas.4

4
Você pode acessar todas as cantigas de D. Dinis pelo projeto Cantigas Medievais Galego-Portuguesas
disponível em <http://www.cantigas.fcsh.unl.pt/>. Afora uma galeria de iluminuras do medievo, glossário e
os textos manuscritos, você encontrará as cantigas e a biografia do chamado Rei-Trovador, bem como a
“totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses”. Consulte também a base
de dados do Portal Galego da Língua, disponível em <http://www.agal-gz.org/modules.php?name=Biblio>
4

Os poemas recebiam o nome de cantigas (ou, noutras variações, de canções e de


cantares)
pelo fato de o lirismo medieval associar-se intimamente com a música: a poesia era cantada,
ou entoada e instrumentada. Letra e pauta musical andavam juntas de molde a formar um
corpo único e indissolúvel. Daí compreender que o texto sozinho, como o temos hoje,
apenas fornece uma incompleta e pálida imagem do que seriam as cantigas quando cantadas
ao som do instrumento, ou seja, apoiadas na pauta musical. (MOISÉS, 1997, p.15).
Portugal, que a partir do século XII se firmou como reino independente, mantinha
laços econômicos, sociais e culturais com a Galiza e tais relações favoreceu o surgimento
de uma língua de traços específicos: o galego-português. Isso justifica o fato de que a
produção literária da época tenha sido elaborada nessa variação linguística.
As cantigas medievais se dividem em composições líricas e satíricas. No primeiro
caso, situam-se as Cantigas de Amor e as Cantigas de Amigo. Já as composições satíricas
se dividem em Cantigas de Escárnio e de Maldizer. Se as cantigas líricas versam em geral
sobre o amor, ou sua ausência, nas cantigas satíricas faz-se a crítica a pessoas,
comportamentos, ou instituições do mundo feudal. Caso a crítica seja velada, indireta,
temos uma cantiga de escárnio, enquanto a zombaria direta, agressiva, contundente, com
expressões de baixo calão, define uma cantiga de maldizer.
Interessante notar que os critérios que diferenciavam tais modalidades da poética
trovadoresca galego-portuguesa foram sistematizados na chamada Arte de Trovar, redigida
no século XIII, que se encontra anexa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Leia-se:

E porque algüas cantigas hi ha en que falam eles e elas outrosi, por en he bem de
entenderdes se som d’amor, se d’amigo; por que sabede que, se eles falam na
prima cobra e elas na outra, he d’amor, porque que se moue a rrazon d’ela, como
vos ante dissemos; e, se ela's falam na primeira cobra, he outrosi d’amigo; e se
ambos falam en hua cobra outrosi he segundo qual deles fala na cobra primeiro.5

Em síntese, o que define uma Canção de Amor ou de Amigo é a voz do poema


presente na primeira cobra ou estrofe. Se a voz que abre o poema é a de um eu-lírico
masculino, o mesmo é classificado como uma Canção de Amor, a exemplo da composição
de D. Dinis, que revela consciência artesanal ao revelar o modo do seu fazer poético, uma
vez que pretende tecer uma canção à maneyra de proençal, o que gera toda uma expectativa
de leitura. A estrofe é reveladora das regras da arte que chegam a Portugal no século XII
oriundas da região da Provença (na região sul da França medieval), palco por excelência do
esplendor do trovadorismo. O trovadorismo à provençal não só se difundiu para o
continente europeu, como também influenciou o lirismo europeu dos séculos vindouros.

5
“E como há algumas cantigas em que falam tanto eles como elas, por isso é importante que entendais se são
de amor ou de amigo, porque se falam eles na primeira cobra e elas na outra, é de amor, pois move-se
segundo a argumentação dele (como vos dissemos antes); e se falam elas na primeira cobra, então é de amigo;
e se falam ambos em uma cobra, então depende de qual deles fala primeiro na cobra” (Tradução de Yara
Frateschi Vieira). Disponível em http://cantigas.fcsh.unl.pt/artedetrovar.asp, acesso em 09/08/2016.
5

Na cantiga Quer'eu en maneyra de proençal, ao revelar a firme disposição de louvar a


“mha senhor”, a quem não faltam honra, formosura e bondade, D. Dinis cede à descrição
física e moral da mulher previstos pelas regras da arte do tempo. E se o trovador mantém
em sigilo a identidade da sua “musa”, respeita as condições impostas pelo código do amor
cortês, com que se ocultava o nome da dama.6 Em suma, o sentimentalismo hiperbólico
típico dos trovadores medievais se exibe nesse encarecimento ao feminino: ela é um
verdadeiro prodígio criado por Deus, uma coleção de excelências, logo, inigualável perante
as demais.
Importante observar, também, que ao enaltecer uma dama de eleição (“mha senhor”),7
o sujeito poético comporta-se como um vassalo diante do seu suserano. Assim, uma forma
de organização social é sugerida a partir do texto poético. Noutras palavras, o ritual
amoroso da Cantiga de Amor reproduz a relação senhor e vassalo típico do medievo. As
palavras de Segismundo Spina são esclarecedoras para que pretende compreender eesse
período: “transposição do esquema social criado pelo feudalismo, o amor se tornou um
“serviço” (culto) prestado pelo trovador à sua dama, como compromisso que se estabelecia
entre o senhor e vassalo8. É o que explica o respeito constante, a moderação, a sublimação
do amor em ânsia incorpórea, a mais completa submissão do trovador diante da Mulher.

6
A señal (segredo amoroso) é um imperativo categórico desse tipo de composição. Nas palavras de Spina:
“esse recato que – que procurava evitar toda e qualquer forma de publicidade – tornou-se o responsável
também pela penúria do retrato físico da mulher. Estas de diluía nas caracterizações genéricas e descoloridas,
pobreza pictórica que levou alguns a interpretarem erradamente como resultante da penúria do material
expressivo que a língua fornecia aos primitivos trovadores” (SPINA, 1996, 403).
7
A expressão “mha senhor” era uma forma de tratamento utilizada pelo trovador e denotava “minha senhora”.
Lembrar que no medievo, o termo senhor se associava a senhorio, que significava tanto uma propriedade
territorial quanto os meios de que dispõe um senhor feudal “para se apropriar do rendimento do trabalho
realizado por homens sob o seu domínio” (FRANCO JÚNIOR, 1995, p.192).
8
SPINA,1996, p.363. Em A lírica trovadoresca, o autor apresenta-nos um quadro bastante dos aspectos mais
relevantes da mensagem poética do Amor Cortês à provençal. Embora longa, vale a pena a citação: “Do
princípio de que o Amor é fonte perene de toda Poesia, e de que o amor é leal, inatingível, sem recompensa
(porque a dama é sans merci) decorre todo o formalismo sentimental dessa poesia:

– a submissão absoluta à sua dama;


– uma vassalagem humilde e paciente;
– uma promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade;
– o uso do senhal (imagem ou pseudônimo poético com que o trovador oculta o nome da mulher
amada);
– a mesura, prudência, moderação, a fim de não abalar a reputação da dama (pretz), pois a
inobservância deste preceito acarreta a sanha da mulher;
– a mulher excede a todas do mundo em formosura (de que resulta o tema do elogio impossível);
– por ela o trovador despreza todos os títulos, todas as riquezas e a posse de todos os impérios;
– o desprezo dos intrigantes da vida amorosa;
– a invocação de mensageiros da paixão do amante (pássaros);
– a presença de confidentes da tragédia amorosa.” (1996, p.25)
6

Tais elementos estão associados a uma das principais concepções medievais sobre o amor,
o que se convencionou chamar amour courtois ou “amor cortês”. 9
Em resumo, o fragmento textual de D. Dinis ganha interesse enquanto poema-síntese
do formalismo sentimental que condiciona a Canção de Amor, uma das mais cultivadas
manifestações líricas do medievo em Portugal. É a consciência artesanal do Rei-trovador
que assegura a qualidade estética desses versos tecidos ao gosto provençal.
A seguinte composição de D. Dinis, sendo inequivocamente de Amor, é uma
verdadeira obra-prima da poesia medieval.

En gran coyta, senhor, gran coyta: grande sofrimento


que peyor que mort’é,
vivo, per bõa fé, per bõa fé: na esperança
e polo voss’amor
esta coyta sofr`eu
por vós, senhor, que eu
Vy polo meu gram mal,
e melhor mi será
de morrer por vós já
e, pois me Deus non val, non val: não me socorre
esta coyta sofr’eu
por vós, senhor, que eu

Polo meu gram mal vy,


e mays mi val morrer
ca tal coyta sofrer, ca: do que
poys por meu mal assy
esta coyta sofr’eu
por vós, senhor, que eu

Vy por gram mal de mi,


poys tam coytad’ and’ eu.

Aqui, D. Dinis faz uso das técnicas da composição poética mais comuns ao lirismo
trovadoresco, a saber: o refrão, o paralelismo, a atafinda e a fiinda. O refrão ou estribilho,
fragmento poético ao qual se regressa ao final de cada estrofe (esta coyta sofr`eu ⁄ por vós,
senhor, que eu) sugere a existência de um coro ou de um solista. O refrão se encadeia à
estrofe seguinte pelo processo de encadeamento ou atafinda, e isso permite que o lamento

9
Sobre as especificidades do amor cortês, vale consultar o artigo “A propósito do chamado amor cortês”,
publicado em Idade Média, idade dos homens, de Georges Duby. Como escreve o autor, esse amor, os
historiadores da literatura corretamente o chamaram cortês. Os textos que nos fazem conhecer suas regras
foram todos compostos no século XII em cortes, sob a observação do príncipe e para corresponder a sua
expectativa. E completa: “as regras do “amor delicado” vinham reforçar as regras da moral vassálica”, o que o
leva a assinalar as correspondências entre o que essas canções expõem e “a verdadeira organização dos
poderes e das relações da sociedade (1989, p.59-65). E não seria forçoso dizer que esse formalismo
sentimental, que torna a arte amar uma etiqueta cerimoniosa de corte, em consequência, em signo de distinção
da nobreza, ajuda a explicar aquele famoso verso de Camões: Amor “é servir a quem vence o vencedor”.
7

plangente do eu-lírico se desenvolva sem interrupção até o final da cantiga que é rematada
com um dístico ou estrofe de dois versos. Conforme a Arte de Trovar medieval tratava-se
da fiinda. Leia-se:

As fiindas são coisa que os trovadores sempre costumaram pôr no fim das suas cantigas,
para concluírem e acabarem melhor nelas os argumentos (razones) que disseram nas
cantigas, chamando-lhes "fiinda", porque quer dizer conclusão de argumento. E essa fiinda
podem fazê-la de uma ou de duas ou de três ou de quatro palavras (versos).10

Afora o refrão, em En gran coyta, senhor observa-se também o uso do paralelismo,


entenda-se, um processo repetitivo que envolve versos com a mesma estrutura sintática
e/ou semântica no corpo da composição, no caso: Vy polo meu gram mal/ Polo meu gram mal
vy.
No aspecto temático, D. Dinis retoma os lugares-comuns típicos da Cantiga de Amor.
Embora o foco não esteja voltado à celebração das virtudes da Donna, sua idealização é
evidente. Aqui, a coyta, para utilizar uma expressão de Caetano Veloso, a “queixa”11
derivada do tormento passional do sujeito poético masculino se associa ao olhar. O olhar é,
por certo, janela da alma. Não surge como o responsável pela transmissão do amor ao
coração, antes disso, expressa a perdição do eu lírico. Vale lembrar que o olhar como causa
do tormento amoroso é uma constante, não só na lírica medieval, mas circunstância típica
da tópica amatória da poesia romântica luso-brasileira.12 Aliás, há uma multiplicidade de
exemplos, não só na poesia e na prosa, mas também na música que atestam a presença do
medievo na contemporaneidade, o que também justifica a importância de um olhar atento
sobre a poética trovadoresca medieval.
Por ora, considerando os propósitos de se observar conexões intertextuais entre o
contemporâneos e o medievo, vale dizer que na composição de Caetano Veloso,
curiosamente intitulada de “Queixa”13, se pode constatar a presença de traços típicos do
lirismo amoroso trovadoresco. A queixa, alimentada pelo drama sentimental dolorosamente
vivido pelo eu-lírico masculino, é derivado de uma recusa, melhor, de um amor não
correspondido. Trata-se de um amor sem recompensa (sans merci), o que leva o sujeito
poético à sandece, à perturbação dos sentidos, outro sintoma comum da erótica
trovadoresca.
Em “Queixa”, o “trovador” contemporâneo refere um “amor delicado” na sua
composição, o que nos remete ao fin´amors, o amor cortês, refinado, ao gosto provençal.

10
MONGELLI, 2003, p.147. Nas palavras de Yara Frateschi Vieira: “A Arte de trovar, anônima e
fragmentária, que se encontra aposta ao atual Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, antigo
Cancioneiro Colocci-Brancuti, é o único documento dessa natureza de que dispõe a lírica galego-portuguesa
dos séculos XIII e XIV. Segundo o seu último editor, não é improvável que tenha sido redigido pelo Conde
Barcelos, filho de D. Dinis (...)”. Disponível em <http://periodicos.ufes.br/reel/article/viewFile/3270/2497>,
acesso em 09/08/2016.
12
Como sugestão de leitura, citamos os poemas “Este inferno de amar”, de Almeida Garrett e “Olhos verdes”,
de Gonçalves Dias.
13
In: Cores e Nomes, 1982. Confira o vídeo do compositor entoando essa canção no sítio
http://br.youtube.com/watch?v=u1_oF5MrViQ, acesso em 11 de janeiro de 2012.
8

Em respeito ao segredo amoroso (señal), não se revela o nome da dama de eleição que é
apenas chamada de Senhora, a exemplo do que ocorre nas Cantigas de Amor de D. Dinis.
Enfim, faz-se uso dos processos compositivos típicos da palavra cantada, a saber, o refrão
(Princesa⁄ surpresa⁄ Você me arrasou) e do paralelismo (Um amor assim delicado⁄ Um amor
assim violento).
Voltemos. Como vimos, D. Dinis manipula com habilidade as condições de
possibilidade do formalismo sentimental trovadoresco na cantiga iniciada pelo verso En
gran coyta, señor. Notar a constância tímida e submissa do amante que se revela no seu
triste lamento a render vassalagem amorosa, sem citar nomes, para preservar a reputação da
mulher louvada; a moderação e respeito constantes; a ausência de lascívia ou da celebração
do amor carnal. Em vez do prazer dos sentidos ele prefere cantar a ausência do contato
físico, numa palavra, a coyta d`amor. As palavras de Rodrigues Lapa definem com
perfeição, não só este poema, mas as especificidades do lirismo trovadoresco à portuguesa:

“O amor, entre nós, é uma súplica apaixonadamente triste. E não há nada que exprima tão
bem esse caráter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar
um dom, que não chega jamais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário
precioso da poesia pura: tudo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa.
É uma voz que vem dos longes da alma. A emoção não se pulveriza em cintilações da
forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até o fim substancialmente o
mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isso dá à cantiga d’amor um
cunho de obsessão, de monotonia pungente...” (LAPA, R.,1973, p.132).

Antes de concluir essa breve apresentação sobre as condições de possibilidade da


lírica medieval, vale destacar que esses lugares comuns ou estilemas ― o olhar como causa
da coyta amorosa, o morrer de amor, o lamento plangente de sujeito poético masculino, a
vitimização do eu, o retrato idealizado do feminino ―, comparecem no texto considerado
inaugural da Literatura Portuguesa, a controversa “Canção da Ribeirinha” (1189 ou 1198),
atribuída a Paio Soares de Taveirós, cujo manuscrito se encontra no Cancioneiro da Ajuda:

No mundo nom me sei parelha


mentre me for como me vai,
ca ja moiro por vós - e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia me levantei,
que vos entom non vi fea!

A esse tipo de cantiga então se chamava cantiga de maestria (meestria), talvez por
ser feita com mais “arte”, ou melhor, a composição era mais dificultosa uma vez que, ao
não apresentar paralelismo ou refrão, solicitava a elaboração de um número maior de
versos. Como se lê na primeira estrofe do poema, o sujeito poético afirma que desconhece
quem no mundo se pareça com ele, enquanto continuar a viver tão infeliz. Sua tristeza
decorre de uma paixão avassaladora despertada por uma mia senhor “branca e vermelha”,
talvez, em alusão a cor da pele do rosto feminino e dos seus cabelos, o que o leva a
9

amaldiçoar o dia em que tomou conhecimento de sua formosura. O que define este estado,
senão a coyta d´amor?
Contudo, se a primeira estrofe nos dá elementos para classificá-la como Canção de
Amor, na segunda estrofe, certo desvario de apaixonado e o tom irônico da sua fala
sugerem um questionamento desse formalismo sentimental:

E, mia senhor, des aquel di’, ai!,


Me foi a mi muin mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
d’aver eu por vós guarvaia,
pois eu mia senhor, d’alfaia
nunca de vós ouve nem ei
valía d’ua correa.

A vassalagem paciente e humilde típica do lirismo amoroso medieval compreendia


quatro estágios, a saber, o do suspirante (fenhedor), o do suplicante (precador), o do
namorado ou amigo (entendedor) e o do amante (drudo). Os diferentes graus de
vassalagem amorosa variavam de acordo com a intimidade entre o trovador e a dama
(SPINA, 1996, p.25) e são bastante ilustrativos do caráter educativo de tais composições.
No artigo “A propósito do chamado amor cortês”, publicado em Idade Média, idade dos
homens, Georges Duby afirma que a celebração do amor cortês visava uma finalidade
didática: “o amor cortês ensinava a servir e servir era o dever do bom vassalo” (1989, p.59-
65).
Se na cantiga En gran coyta, señor, de D.Dinis, o sujeito poético ultrapassa a
condição de mero fenhedor (tímido ou suspirante) e assume a posição do precador, o
estágio do suplicante, na cantiga atribuída a Paio Soares de Taveirós, diante da recusa ou
indiferença da mulher, resta ao sujeito poético lastimar a sua condição. Ele sugere na sua
queixa que não foi aceito pela dama nem elevado à condição de drudo, o que não o torna
merecedor do galardão ou recompensa, sequer uma correa, uma tira de couro, alguma coisa
trivial e sem valor. Notar que correa também pode significar chicote. A meu ver, no sentido
figurado, pode-se dizer que ele anseia por uma palavra, mesmo que ofensiva... Mas nada
recebe, salvo a amargura feita de silêncio e indiferença, o que o leva à sandece, como
dissemos, algo previsto dentre os sintomas mais comuns à erótica trovadoresca.14
Então, caberia perguntar se ao sugerir a identidade da mulher (filha de don Pai
Moniz), ao desmerecê-la por conta da sua ingratidão ou insensibilidade perante a coyta do
apaixonado, ao se abolir o necessário respeito e a moderação, se ainda assim se pode pensar
a “Canção da Ribeirinha” como Canção de Amor?
Massaud Moisés (1997, p.16-19), num feliz estudo sobre essa cantiga, sugere que o
verso “quando vos vi en saia” significa “em que vos vi sem manto”, ou na intimidade.
Nesse sentido, identificando um “à vontade próximo da ironia e do desrespeito”, afirma

14
Dentre os quais se podem mencionar “a perturbação dos sentidos (que atinge às vezes a loucura)”, “a perda
do apetite, a insônia, o tormento doloroso, a doença e a morte como solução do seu tormento passional; e às
vezes certo masoquismo, certo prazer na humilhação e no sofrimento amoroso” (SPINA, 1996, p. 25).
10

tratar-se dum cantar dúbio, que pode ser compreendido simultaneamente como de amor e
de escárnio, pois conta com elementos de ambos os tipos. Daí propor a designação para
essa cantiga de escárnio de amor.
Contudo, os estudiosos da literatura portuguesa referem a ausência de uma terceira
estrofe, usual nesse tipo de cantiga ou canção (de cansó, forma principal da lírica
provençal), o que faz dela uma obra aberta ao encanto numeroso das leituras. Enfim,
importa pouco saber se a “Canção da Ribeirinha”, segundo consta, dedicada à Maria Paes
Ribeiro, “amiga” do rei D. Sancho I (1154-1211) é, de fato, o primeiro ou o mais antigo
texto que restou do Trovadorismo. Aliás, há quem diga que a Cantiga de Amigo “Ai eu
coytada, de D. Sancho I, também dedicada à fremosa Dona Maria, igualmente merece o
atributo de texto inaugural. À guisa de remate, afora destacar o virtuosismo técnico a que
chegaram os trovadores medievais, cabem aqui as palavras de Ezra Pound, para o qual
qualquer “estudo da poesia europeia será falho se não começar por um estudo da arte da
provença”15 e, vale, acrescentar, dos seus desdobramentos em Portugal e na Galícia.
Talvez a leitura dessas composições possa haver causado algum estranhamento,
tanto pelo fato de terem sido compostas em galego-português, quanto pela ênfase na
questão amorosa. Afinal, a imagem que nos chega do medievo é a da “idade das trevas”,
das cruzadas, da intolerância religiosa, da barbárie, da superstição e por aí vai. No entanto,
convém não esquecer que o medievo deixou como herança ou legado, a invenção dos
óculos, do calendário, do jogo de xadrez, do carnaval, do arado, do carrinho de mão, dos
botões da camisa, do garfo, da escrita cursiva, da tipografia, dos livros, da universidade, das
raízes do Estado moderno, enfim, do próprio Ocidente, o que nos condiciona a aceitar a
noção de que “o que há de mais vivo no presente é o passado”.
Bibliografia

1. DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São
Paulo, Companhia das Letras, 1989.
2. CAMPOS, Augusto. Verso, reverso, controverso. São Paulo, Perspectiva, 1988
3. D.DINIS. Cancioneiro. (Org.) Nuno Júdice. Lisboa, Editorial Teorema, 1998
4. MONGELLI, Lênia Márcia; VIEIRA, Yara Frateschi. A estética medieval. Direção
de Massaud Moisés. Cotia: Íbis, 2003.
5. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo, Cultrix,
1997
6. MONGELLI, Lênia Márcia. Vozes do trovadorismo galego-português/ Lênia
Márcia Medeiros Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval, Yara Frateschi
Vieira. Cotia: São Paulo, Íbis, 1995
7. RAMOS, Maria Ana. Cancioneiro da Ajuda. Reimpressão da Edição diplomática
de Henry H. Carter. Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 2007.
8. SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo, Edusp, 1996.
15
Leia-se: “Qualquer estudo da poesia europeia será falho se não começar por um estudo arte de Provença”,
proclamava Pound em 1913. E Augusto de Campos acrescenta: “E se isso é verdadeiro para a poesia europeia
e passou a sê-lo, depois de EP (Ezra Pound), até para a poesia norte-americana, quanto mais para a poesia de
língua portuguesa, ela própria possuidora de uma notável tradição trovadoresca, descendente da matriz
provençal (...)”. CAMPOS, Augusto. Verso, reverso, controverso. São Paulo, Perspectiva, 1988, p.9.
11

9. SARAIVA, A.J.e LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto, Porto


Editora, 2001.
10. TAVANI, Giuseppe. A Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de
Lisboa. Edição crítica e Fac-símile. Lisboa, Edições Colibri, 1999.

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