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LITERATURA PORTUGUESA
TROVADORISMO
(SÉC.XII-XV)
***
A arte amatória medieval
Lo vers es fis e naturaus
e bos celui qui be l´enten;
e melher es, qui.l joi aten.
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Costuma-se dividir o período medieval em dois momentos. O primeiro momento, entre 1189 ou 1198 e
1434, circunscreve no campo da poesia as composições líricas e satíricas e, na prosa, as novelas de cavalaria.
No segundo período medieval, entre 1434 e 1527, fase de transição para o Classicismo, ganha destaque a
publicação do Cancioneiro Geral, compilado por Garcia de Resende e impresso em 1516, e o início e
afirmação do teatro português com Gil Vicente.
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trobar, que exprimia o poetar da época enquanto ação de compor, de inventar, de criar.2 Em
consequência, chamavam-se trobador o poeta que criava, instrumentava e, por vezes,
entoava suas próprias composições poéticas. As cantigas também eram criadas e divulgadas
pelo Segrel, o trovador profissional, que ia de corte em corte acompanhado pelo Jogral
(dançarino, acrobata, mímico). Chamava-se Menestrel, o músico.
D. Dinis (1261-1325) é considerado um dos mais notáveis trovadores medievais. As
suas cantigas evidenciam um dos momentos mais altos da poesia no sentido da apropriação
do instrumento verbal e de sua adequação ao dizer poético. D. Dinis leva a bom termo o
desejo de todo trovador medieval, a saber, a plena realização da aliança entre motz el son,
entre a palavra e música. Leiam-se os primeiros versos da cantiga de amor de sua autoria:
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Segismundo Spina, em A lírica trovadoresca, livro indispensável aos estudiosos da poética medieval, sugere
que dentre tantas etimologias propostas, a mais aceitável se associa a uma tese litúrgica da poesia
trovadoresca. Assim, trobar seria o vocábulo tropare, “decalcada sobre tropo – interpolação, adição ou
introdução de texto literário e musical numa peça da liturgia. Daí tropare – fazer tropos, compor (um poema,
uma melodia), inventar, descobrir” (SPINA, 1996, p.407).
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“Quero fazer agora uma canção de amor ao modo provençal. E quero louvar a minha senhora, a quem honra
nem formosuras não faltam, nem bondade; e mais vos direi ainda: tanto Deus a fez cheia de virtudes, que no
mundo não há outra igual.”.
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De imediato, surgem as perguntas: como este fragmento textual chegou até nós se foi
escrito há cerca de 700 anos atrás? Em que língua foi escrito? O que significa compor um
“cantar d´amor” ao modo provençal? Enfim, o que se compreende por “amor” e qual a
importância de se estudar textos medievais?
Ora bem, a referida estrofe e as demais composições da lírica trovadoresca medieval
encontram-se preservadas em três compilações manuscritas chamadas de Cancioneiros. Se
o mais antigo é o Cancioneiro da Ajuda, composto de 310 cantigas (acredita-se compilado
entre os séculos XIII e XIV), o mais completo é o Cancioneiro da Biblioteca Nacional,
formado de 1647 manuscritos de cantigas líricas e satíricas. O nosso interesse se volta para
o Cancioneiro da Vaticana, assim designado por ter sido encontrado na Biblioteca do
Vaticano; o mesmo contém 1205 cantigas de vários autores, dentre os quais D. Dinis e suas
137 cantigas.4
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Você pode acessar todas as cantigas de D. Dinis pelo projeto Cantigas Medievais Galego-Portuguesas
disponível em <http://www.cantigas.fcsh.unl.pt/>. Afora uma galeria de iluminuras do medievo, glossário e
os textos manuscritos, você encontrará as cantigas e a biografia do chamado Rei-Trovador, bem como a
“totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses”. Consulte também a base
de dados do Portal Galego da Língua, disponível em <http://www.agal-gz.org/modules.php?name=Biblio>
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E porque algüas cantigas hi ha en que falam eles e elas outrosi, por en he bem de
entenderdes se som d’amor, se d’amigo; por que sabede que, se eles falam na
prima cobra e elas na outra, he d’amor, porque que se moue a rrazon d’ela, como
vos ante dissemos; e, se ela's falam na primeira cobra, he outrosi d’amigo; e se
ambos falam en hua cobra outrosi he segundo qual deles fala na cobra primeiro.5
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“E como há algumas cantigas em que falam tanto eles como elas, por isso é importante que entendais se são
de amor ou de amigo, porque se falam eles na primeira cobra e elas na outra, é de amor, pois move-se
segundo a argumentação dele (como vos dissemos antes); e se falam elas na primeira cobra, então é de amigo;
e se falam ambos em uma cobra, então depende de qual deles fala primeiro na cobra” (Tradução de Yara
Frateschi Vieira). Disponível em http://cantigas.fcsh.unl.pt/artedetrovar.asp, acesso em 09/08/2016.
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A señal (segredo amoroso) é um imperativo categórico desse tipo de composição. Nas palavras de Spina:
“esse recato que – que procurava evitar toda e qualquer forma de publicidade – tornou-se o responsável
também pela penúria do retrato físico da mulher. Estas de diluía nas caracterizações genéricas e descoloridas,
pobreza pictórica que levou alguns a interpretarem erradamente como resultante da penúria do material
expressivo que a língua fornecia aos primitivos trovadores” (SPINA, 1996, 403).
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A expressão “mha senhor” era uma forma de tratamento utilizada pelo trovador e denotava “minha senhora”.
Lembrar que no medievo, o termo senhor se associava a senhorio, que significava tanto uma propriedade
territorial quanto os meios de que dispõe um senhor feudal “para se apropriar do rendimento do trabalho
realizado por homens sob o seu domínio” (FRANCO JÚNIOR, 1995, p.192).
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SPINA,1996, p.363. Em A lírica trovadoresca, o autor apresenta-nos um quadro bastante dos aspectos mais
relevantes da mensagem poética do Amor Cortês à provençal. Embora longa, vale a pena a citação: “Do
princípio de que o Amor é fonte perene de toda Poesia, e de que o amor é leal, inatingível, sem recompensa
(porque a dama é sans merci) decorre todo o formalismo sentimental dessa poesia:
Tais elementos estão associados a uma das principais concepções medievais sobre o amor,
o que se convencionou chamar amour courtois ou “amor cortês”. 9
Em resumo, o fragmento textual de D. Dinis ganha interesse enquanto poema-síntese
do formalismo sentimental que condiciona a Canção de Amor, uma das mais cultivadas
manifestações líricas do medievo em Portugal. É a consciência artesanal do Rei-trovador
que assegura a qualidade estética desses versos tecidos ao gosto provençal.
A seguinte composição de D. Dinis, sendo inequivocamente de Amor, é uma
verdadeira obra-prima da poesia medieval.
Aqui, D. Dinis faz uso das técnicas da composição poética mais comuns ao lirismo
trovadoresco, a saber: o refrão, o paralelismo, a atafinda e a fiinda. O refrão ou estribilho,
fragmento poético ao qual se regressa ao final de cada estrofe (esta coyta sofr`eu ⁄ por vós,
senhor, que eu) sugere a existência de um coro ou de um solista. O refrão se encadeia à
estrofe seguinte pelo processo de encadeamento ou atafinda, e isso permite que o lamento
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Sobre as especificidades do amor cortês, vale consultar o artigo “A propósito do chamado amor cortês”,
publicado em Idade Média, idade dos homens, de Georges Duby. Como escreve o autor, esse amor, os
historiadores da literatura corretamente o chamaram cortês. Os textos que nos fazem conhecer suas regras
foram todos compostos no século XII em cortes, sob a observação do príncipe e para corresponder a sua
expectativa. E completa: “as regras do “amor delicado” vinham reforçar as regras da moral vassálica”, o que o
leva a assinalar as correspondências entre o que essas canções expõem e “a verdadeira organização dos
poderes e das relações da sociedade (1989, p.59-65). E não seria forçoso dizer que esse formalismo
sentimental, que torna a arte amar uma etiqueta cerimoniosa de corte, em consequência, em signo de distinção
da nobreza, ajuda a explicar aquele famoso verso de Camões: Amor “é servir a quem vence o vencedor”.
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plangente do eu-lírico se desenvolva sem interrupção até o final da cantiga que é rematada
com um dístico ou estrofe de dois versos. Conforme a Arte de Trovar medieval tratava-se
da fiinda. Leia-se:
As fiindas são coisa que os trovadores sempre costumaram pôr no fim das suas cantigas,
para concluírem e acabarem melhor nelas os argumentos (razones) que disseram nas
cantigas, chamando-lhes "fiinda", porque quer dizer conclusão de argumento. E essa fiinda
podem fazê-la de uma ou de duas ou de três ou de quatro palavras (versos).10
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MONGELLI, 2003, p.147. Nas palavras de Yara Frateschi Vieira: “A Arte de trovar, anônima e
fragmentária, que se encontra aposta ao atual Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, antigo
Cancioneiro Colocci-Brancuti, é o único documento dessa natureza de que dispõe a lírica galego-portuguesa
dos séculos XIII e XIV. Segundo o seu último editor, não é improvável que tenha sido redigido pelo Conde
Barcelos, filho de D. Dinis (...)”. Disponível em <http://periodicos.ufes.br/reel/article/viewFile/3270/2497>,
acesso em 09/08/2016.
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Como sugestão de leitura, citamos os poemas “Este inferno de amar”, de Almeida Garrett e “Olhos verdes”,
de Gonçalves Dias.
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In: Cores e Nomes, 1982. Confira o vídeo do compositor entoando essa canção no sítio
http://br.youtube.com/watch?v=u1_oF5MrViQ, acesso em 11 de janeiro de 2012.
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Em respeito ao segredo amoroso (señal), não se revela o nome da dama de eleição que é
apenas chamada de Senhora, a exemplo do que ocorre nas Cantigas de Amor de D. Dinis.
Enfim, faz-se uso dos processos compositivos típicos da palavra cantada, a saber, o refrão
(Princesa⁄ surpresa⁄ Você me arrasou) e do paralelismo (Um amor assim delicado⁄ Um amor
assim violento).
Voltemos. Como vimos, D. Dinis manipula com habilidade as condições de
possibilidade do formalismo sentimental trovadoresco na cantiga iniciada pelo verso En
gran coyta, señor. Notar a constância tímida e submissa do amante que se revela no seu
triste lamento a render vassalagem amorosa, sem citar nomes, para preservar a reputação da
mulher louvada; a moderação e respeito constantes; a ausência de lascívia ou da celebração
do amor carnal. Em vez do prazer dos sentidos ele prefere cantar a ausência do contato
físico, numa palavra, a coyta d`amor. As palavras de Rodrigues Lapa definem com
perfeição, não só este poema, mas as especificidades do lirismo trovadoresco à portuguesa:
“O amor, entre nós, é uma súplica apaixonadamente triste. E não há nada que exprima tão
bem esse caráter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar
um dom, que não chega jamais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário
precioso da poesia pura: tudo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa.
É uma voz que vem dos longes da alma. A emoção não se pulveriza em cintilações da
forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até o fim substancialmente o
mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isso dá à cantiga d’amor um
cunho de obsessão, de monotonia pungente...” (LAPA, R.,1973, p.132).
A esse tipo de cantiga então se chamava cantiga de maestria (meestria), talvez por
ser feita com mais “arte”, ou melhor, a composição era mais dificultosa uma vez que, ao
não apresentar paralelismo ou refrão, solicitava a elaboração de um número maior de
versos. Como se lê na primeira estrofe do poema, o sujeito poético afirma que desconhece
quem no mundo se pareça com ele, enquanto continuar a viver tão infeliz. Sua tristeza
decorre de uma paixão avassaladora despertada por uma mia senhor “branca e vermelha”,
talvez, em alusão a cor da pele do rosto feminino e dos seus cabelos, o que o leva a
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amaldiçoar o dia em que tomou conhecimento de sua formosura. O que define este estado,
senão a coyta d´amor?
Contudo, se a primeira estrofe nos dá elementos para classificá-la como Canção de
Amor, na segunda estrofe, certo desvario de apaixonado e o tom irônico da sua fala
sugerem um questionamento desse formalismo sentimental:
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Dentre os quais se podem mencionar “a perturbação dos sentidos (que atinge às vezes a loucura)”, “a perda
do apetite, a insônia, o tormento doloroso, a doença e a morte como solução do seu tormento passional; e às
vezes certo masoquismo, certo prazer na humilhação e no sofrimento amoroso” (SPINA, 1996, p. 25).
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tratar-se dum cantar dúbio, que pode ser compreendido simultaneamente como de amor e
de escárnio, pois conta com elementos de ambos os tipos. Daí propor a designação para
essa cantiga de escárnio de amor.
Contudo, os estudiosos da literatura portuguesa referem a ausência de uma terceira
estrofe, usual nesse tipo de cantiga ou canção (de cansó, forma principal da lírica
provençal), o que faz dela uma obra aberta ao encanto numeroso das leituras. Enfim,
importa pouco saber se a “Canção da Ribeirinha”, segundo consta, dedicada à Maria Paes
Ribeiro, “amiga” do rei D. Sancho I (1154-1211) é, de fato, o primeiro ou o mais antigo
texto que restou do Trovadorismo. Aliás, há quem diga que a Cantiga de Amigo “Ai eu
coytada, de D. Sancho I, também dedicada à fremosa Dona Maria, igualmente merece o
atributo de texto inaugural. À guisa de remate, afora destacar o virtuosismo técnico a que
chegaram os trovadores medievais, cabem aqui as palavras de Ezra Pound, para o qual
qualquer “estudo da poesia europeia será falho se não começar por um estudo da arte da
provença”15 e, vale, acrescentar, dos seus desdobramentos em Portugal e na Galícia.
Talvez a leitura dessas composições possa haver causado algum estranhamento,
tanto pelo fato de terem sido compostas em galego-português, quanto pela ênfase na
questão amorosa. Afinal, a imagem que nos chega do medievo é a da “idade das trevas”,
das cruzadas, da intolerância religiosa, da barbárie, da superstição e por aí vai. No entanto,
convém não esquecer que o medievo deixou como herança ou legado, a invenção dos
óculos, do calendário, do jogo de xadrez, do carnaval, do arado, do carrinho de mão, dos
botões da camisa, do garfo, da escrita cursiva, da tipografia, dos livros, da universidade, das
raízes do Estado moderno, enfim, do próprio Ocidente, o que nos condiciona a aceitar a
noção de que “o que há de mais vivo no presente é o passado”.
Bibliografia
1. DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São
Paulo, Companhia das Letras, 1989.
2. CAMPOS, Augusto. Verso, reverso, controverso. São Paulo, Perspectiva, 1988
3. D.DINIS. Cancioneiro. (Org.) Nuno Júdice. Lisboa, Editorial Teorema, 1998
4. MONGELLI, Lênia Márcia; VIEIRA, Yara Frateschi. A estética medieval. Direção
de Massaud Moisés. Cotia: Íbis, 2003.
5. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo, Cultrix,
1997
6. MONGELLI, Lênia Márcia. Vozes do trovadorismo galego-português/ Lênia
Márcia Medeiros Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval, Yara Frateschi
Vieira. Cotia: São Paulo, Íbis, 1995
7. RAMOS, Maria Ana. Cancioneiro da Ajuda. Reimpressão da Edição diplomática
de Henry H. Carter. Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 2007.
8. SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo, Edusp, 1996.
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Leia-se: “Qualquer estudo da poesia europeia será falho se não começar por um estudo arte de Provença”,
proclamava Pound em 1913. E Augusto de Campos acrescenta: “E se isso é verdadeiro para a poesia europeia
e passou a sê-lo, depois de EP (Ezra Pound), até para a poesia norte-americana, quanto mais para a poesia de
língua portuguesa, ela própria possuidora de uma notável tradição trovadoresca, descendente da matriz
provençal (...)”. CAMPOS, Augusto. Verso, reverso, controverso. São Paulo, Perspectiva, 1988, p.9.
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