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CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL
1º Mundo = capitalismo
2º Mundo = socialismo
3º Mundo = países colonizados por qualquer um dos dois; países pobres + os
neocolonizados, a p. do início do século XX. Com a unificação da Alemanha e da Itália
= fragmentação da África e influências sobre a Ásia.
Influências da Filosofia
Allan Kardec = codifica a Doutrina Espírita, que tem por fim ensinar ao ser humano que
todos nós somos espíritos encarnados num corpo material ou carnal. Fundamenta em
três bases: a Filosofia, a Religião e a Ciência. (O Livro dos Espíritos)
Influência da Física
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estão conectadas, uma pode ser transformada em outra pelo fator C²que é a velocidade
da luz multiplicada por ela mesma.
Influências da Psicanálise
Freud (Sigmund) = a descoberta pelo “eu” nas camadas mais profundas que habita o
ser: o inconsciente e o subconsciente. (A interpretação dos sonhos, além de outras
obras)
Jung (Carl Gustav) = “inconsciente coletivo” camada mais profunda da psique. Herança
dos materiais que se vão acumulando na mente coletiva. É onde residem os traços
funcionais, como se fossem imagens virtuais, que seriam comuns a todos os seres
humanos. Arcabouço de arquétipos= estruturas inatas que servem de matriz para a
expressão e desenvolvimento da psique.
Fonte: pessoal.educacional.com.br/up/4660001/7250801/Simbolismo.doc
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CARACTERÍSTICAS DO SIMBOLISMO
Fonte: MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix 1994, pp. 258-260.
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Acontece, porém, que as vaguidades interiores são mais facilmente evocáveis
pela música, graças ao seu caráter in-objetivo e a-descritivo: daí que os simbolistas
procurassem o apoio da música para expressar poeticamente o inefável. Quando a
sondagem interior atinge estratos ainda mais fundos, dá-se o encontro involuntário entre
o subconsciente individual e o que Jung viria a chamar inconsciente coletivo: o artista
desvela uma assombrosa identidade entre o conteúdo de seu subconsciente e o conteúdo
do inconsciente do povo a que pertence inalienavelmente. Por isso, ao procurar exprimir
suas vivências, ele está simultaneamente procurando comunicar todo um conteúdo
espiritual coletivo nele refletido, como se se tornasse porta-voz de multidões inteiras
que passam a vida sem descobrir-se por dentro, ou sem poder verbalizar os dados de seu
"eu" profundo quando conseguem captá-lo. Mas o poeta, agora, o alcança. Daí se
entender que os simbolistas explorem temas do quotidiano burguês e pacato, ou temas
folclóricos e nacionais.
Quando a autoescavação chega mais longe, o poeta sente-se irmanado não só a
um povo histórica, cultural e geograficamente delimitado, mas a uma comunidade de
cultura e mesmo a uma religião: deriva desse mergulho num imenso mar interior, a
predileção pelos temas medievais e místicos. Com efeito, opera-se uma espécie de
segunda renascença da Idade Média durante o século XIX, e o reingresso nas zonas de
misticismo, cavalaria andante, etc., pois o poeta se dá conta de que, afinal, dormem no
seu subconsciente as vivências históricas ali depositadas lentamente ao longo dos
séculos pelo povo a que pertence.
Por outro lado, seus estados de alma, porque caóticos e vagos, se aparentam de
verdadeiros estados místicos, como se de repente o poeta entrasse em transe e fosse
descortinando um mundo de verdades puras e eternas: os simbolistas cultivam o Vago,
o Oculto, o Mistério, a Ilusão, a Solidão numa "torre de marfim"1, que lhes permita
sondar o mais além das aparências da realidade tangível. Tudo isso implica que
recuperem a crença na Teologia e na Metafísica, antes escorraçadas pelo Positivismo.
No tocante à métrica, defendem o verso livre, os metros sonoros, coloridos, evocativos,
com sinestesias, isto é, imagens compostas da colaboração de todos os sentidos (vejam-
se do soneto "Correspondências" de Baudelaire, os dois primeiros versos do primeiro
terceto: "Há perfumes frescos como carnes de crianças. / Doces como oboés, verdes
como os campos"), tudo convergindo para o ritmo, logo para a musicalidade do verso.
É, em suma, a busca da "poesia pura", isenta de qualquer contágio do mundo material,
como criação dum mundo melhor apenas entrevisto na "floresta de símbolos", um
mundo que apenas se pode intuir por vias místicas ou metafísicas.
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Simbolicamente, a torre evoca Babel, porta do céu, fixada na Terra com o fim de restabelecer o elo
primordial com o (os) deus(es); pela brancura, conotar-se-ia com a pureza e o poder quase incorruptível
do marfim. Contudo, embora construída com o propósito de elevar o homem à divindade, a torre acaba
por perverter-se no seu contrário, símbolo do orgulho humano.
O conceito de torre de marfim é largamente difundido no século XIX (por Sainte Beuve, por exemplo), no
contexto antipositivista de reacção a uma certa tendência romântica para atribuir à arte um fim utilitário.
Literariamente, o termo aproxima-se do princípio da arte pela arte, exemplificado no Parnasianismo, que
dita os moldes de uma nova estética voltada para a sublimação da beleza. Neste ponto, Baudelaire, entre
outros, defende que a poesia não tem outro objectivo senão ela mesma já que a arte é um mundo de
perfeição fora deste mundo.
O poeta compreende que a realidade é imperceptível aos sentidos e o verdadeiro conhecimento exige, por
isso, que desvie o olhar de tudo quanto o rodeia para descer dentro de si, onde mora o ideal desejado. A
poesia torna-se, assim, elevação divina da alma do poeta, só possível numa espécie de vida contemplativa
na procura desse absoluto. Surgem, naturalmente, elites intelectuais, associadas a um certo dandismo
estético, isoladas sobre si mesmas, mas numa abertura para o infinito que radica no próprio “eu”.
Fonte:
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=47&Itemid=2
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Em suma
1. Predominância da emoção.
2. O objeto deve estar subentendido, não mostrado claramente – daí o "símbolo".
3. Musicalidade (através de aliterações, assonâncias e outras figuras de estilo).
4. Referências a cores.
5. Presença de motivos religiosos; a poesia representaria uma espécie de ritual.
6. Sonho e imaginação.
7. Espiritualismo.
8. Subjetividade.
9. Culto da forma, com influências parnasianas.
10. Uso da figura de linguagem chamada sinestesia, que representa a fusão de
sensações (beijo amargo, cheiro azul).
11. Abordagem vaga de impressões subjetivas e/ou sensoriais (Impressionismo),
sobretudo na pintura.
SENSAÇÃO
MINHA BOÊMIA
(FANTASIA)
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Interpretação profunda de um texto bíblico; por extensão de qualquer texto.
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Lembra Ezra Pound: o poeta é antena da raça (ABC DA LITERATURA)
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Onde, rimando em meio a imensidões fantásticas,
Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas
E tangia um dos pés junto ao meu coração!
VÊNUS ANADIÔMENA
Charles Baudelaire
CORRESPONDÊNCIAS
(As flores do mal. Traduzido por Ivan Junqueira. RJ. 1985)
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Como ecos lentos que a distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.
Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
Fonte: GOMES, Álvaro Cardoso. Poesia simbolista. São Paulo: Global, 1985, p. 10
A MÚSICA
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal". Tradução Delfim Guimarães
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SPLEEN
Charles Baudelaire, In As Flores do Mal. Tradução Delfim Guimarães
TÉDIO
Charles Baudelaire, In As Flores do Mal. Tradução Delfim Guimarães
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O tédio, fruto infeliz da incuriosidade,
Alcança as proporções da imortalidade.
— Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,
Do que granito envolto em terror inconsciente.
ANGÚSTIA
BRISE MARINE
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POEMAS DE PAUL VERLAINE
Fonte : https://escamandro.wordpress.com/2013/03/30/8-poemas-de-paul-verlaine-em-3-tradutores/
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poeta. A melódica e romântica “Canção de outono” é, sem dúvida, o seu poema mais
famoso e musicado em mais de uma voz (de Charles Trenet e Leo Ferré a uma banda
contemporânea de shoegaze chamada Les Discrets), enquanto as cores urbanas de “A
voz dos botequins” (especialmente como traduzido por Guilherme de Almeida, puxando
para o tom mais popularesco) e o tom irônico de “Colóquio sentimental” (cujo diálogo
me lembra, com o perdão da referência tosca, coisas que diriam o personagem do Al
Bundy da sitcom Married with Children) sejam o que, talvez, nos chame mais a
atenção. (...)
Não por acaso esses poemas foram traduzidos mais de uma vez, e mais ou
menos no mesmo período, ao que tudo indica. Tenho em mãos aqui uma edição antiga,
de 1945, que achei por acaso num sebo (completa com dedicatória assinada por alguém
já bem velhinha ou falecida agora), intitulada Poesias Escolhidas, de seleção e tradução
de Onestaldo de Pennafort (1902 – 1987), juntamente com outro volume (de 1944), de
traduções de Guilherme de Almeida (1890 – 1969), reeditada pela ed. Hedra. O que é
curioso é que me parece que ambos os tradutores se focaram, com frequência, sobre os
mesmos poemas (convém comentar, no entanto, que a seleção de Pennafort é mais
extensa, mas talvez menos instigante que a tradução de Guilherme de Almeida, na
minha opinião).
Daí a ideia para esta postagem: contrapor 2 traduções para cada um desses 8
poemas. No último caso, como Pennafort não traduziu o “Arte poética”, para não
desfazer a dinâmica de manter as traduções sempre em dupla, contrapus a tradução de
Guilherme de Almeida com a de Augusto de Campos (retirada do volume O
Anticrítico). Portanto, 8 poemas, 3 tradutores. Uma introdução razoável, acredito, a
quem tiver curiosidade pelo poeta.
Adriano Scandolara
(NESTA RECOLHA, NÃO COLOCAMOS TODOS OS TRADUTORES)
CHANSON D’AUTOMNE
Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure;
Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.
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CANÇÃO DE OUTONO (tradução de Guilherme de Almeida)
Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.
E soluçando,
Pálido quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
De outrora.
E vou à-toa
No ar mau que voa,
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta.
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ARTE POÉTICA (tradução de Augusto de Campos)
A Charles Morice
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PRINCIPAIS POETAS SIMBOLISTAS PORTUGUESES
EUGÉNIO DE CASTRO
Fonte: MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1994, pp. 265-268.
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O termo decadentismo descreve uma sensibilidade estética que ocorre no fim do século XIX e se
contrapõe ao realismo e ao naturalismo. Sua origem refere-se mais diretamente ao modo pejorativo como
é designado um grupo de jovens intelectuais franceses que compartilham uma visão pessimista do mundo,
acompanhada de uma inclinação estética marcada pelo subjetivismo, pela descoberta do universo
inconsciente e pelo gosto das dimensões misteriosas da existência. Os versos do poeta Paul Verlaine
indicam como o grupo incorpora positivamente o termo, dando a ele conotação diferente da original: "Je
suis l'empire à la fin de la décadence" ["Sou o império no fim da decadência"]. Os escritores e poetas
simbolistas dos anos 1880 e 1890 são considerados os primeiros expoentes do decadentismo. O
simbolismo, corrente de timbre espiritualista, encontra expressão nas mais variadas artes, pensadas
em estreita relação de umas com as outras.
O objetivo das diferentes modalidades artísticas é a manifestação da vida interior, da "alma das coisas",
que a linguagem poética - mais do que qualquer outra - permite alcançar, por trás das aparências. A
poesia simbolista de Gérard de Nerval e Stéphane Mallarmé, por exemplo, sonda os mistérios do mundo e
o universo inconsciente por meio de sugestões, do ritmo musical e do poder encantatório das palavras. É
possível compreender o simbolismo e o decadentismo como desdobramentos do romantismo, alimentados
pela reação ao cientificismo que acompanha o desenvolvimento da sociedade industrial da segunda
metade do século XIX. Contra as associações frequentes entre arte, objeto e técnica, e as inclinações
naturalistas de parte da produção artística, os simbolistas e decadentistas sublinham um ideal estético
amparado na expressão poética e lírica. Fonte:
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Insubmissos (1889) e publica o Oaristos6 (1890), cujo prefácio audacioso e petulante
logo provoca escândalo e chama a atenção dos moços para a moderna literatura em
Língua Francesa. Daí por diante, dedica-se ao magistério, principiando pelo secundário,
e finalizando pelo universitário (Faculdade de Letras de Coimbra), a partir de 1914,
quando já começa a gozar dum largo prestígio literário, que se mantém mais ou menos
vivo até 1944, data de sua morte em Coimbra.
As circunstâncias propiciaram a Eugénio de Castro ser, paradoxalmente, o
introdutor em Portugal dum estilo poético, como é o Simbolismo, que de forma alguma
se coadunava com seu temperamento e seus inatos pendores artísticos. Tanto é assim
que, mesmo desde Oaristos (1890), nele se manifestava a atração por um barroquismo
de linguagem algo estranho àquilo que constituía o forte da estética simbolista. Esse
barroquismo, explicável por deficiente e intelectual assimilação dos recursos
decadentistas, e ligado ao culto declarado das formalidades que se associam ao
longínquo modelo camoniano, através do exemplo próximo de Castilho e do soneto de
recorte nítido e solene, só se acentua com o passar dos anos de apego ao movimento
simbolista, sendo mais do cérebro que da sensibilidade, já se mostrava vulnerável na
primeira obra com a qual introduziu o novo gosto em Portugal.
O abalo desencadeado pelo Oaristos prossegue nas Horas (1891), onde Eugénio
de Castro permanece às voltas com alguns expedientes formais caros à poesia
decadentista e simbolista. No prefácio, ainda se patenteia a mesma preocupação de
impressionar escandalosamente: "Silva esotérica para os raros apenas: abertas as
eclusas, corvetas, como catedrais flutuantes, seguindo inéditos itinerários por atlânticos
virgens; terraço ladrilhado de cipolino e ágata, por onde o SÌMBOLO passeia,
arquiepiscopal, arrastando flamante simarra bordada de Sugestões, que se alastra, oleosa
e polícroma, nas lisonjas; concerto de adequadas músicas, implorativas ou morosas, raro
estridentes; complicadas decorações de legenda velha mantelando o pudor dos episódios
simples; preces dum herege arrependido, votos castos dum antigo libidinoso, pesadelos
e irreligiosas hesitações dum recente convertido. Tal a obra que o Poeta concebeu longe
dos bárbaros, cujos inscientes apupos, - al não é de esperar, - não lograrão desviá-lo do
seu pobre e altivo desdém de nefelibata7." Sente-se, porém, no prefácio e nos poemas de
Horas um clima de artificialidade, fruto sem dúvida do cerebrino prazer de escandalizar,
em flagrante contraste com a aristocrática tendência para o comodismo e a
discriminação poética de fundo academizante e burguês. Em suma: o novo da poesia
decadentista e simbolista brigava ardorosamente contra a tendência inata de Eugénio de
Castro para a contensão clássica ou o formalismo da tradição.
Em 1894, publica duas obras em que manifesta claramente a superação do
prurido simbolista: Interlúnio e Silva. A primeira, aparecida no mesmo ano mas depois
da outra, constitui uma espécie de intervalo à António Nobre: certamente por contágio
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_ver
bete=4624
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S.m. Conversa particular e íntima entre pessoas casadas. P.ext. Conversa amorosa e familiar.
Não confundir com: aoristo. (Etm. do grego: oaristús.úos/ oaristys.yos). http://www.dicio.com.br/oaristo/
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Os poetas simbolistas eram chamados de “nefelibatas”. Essa palavra tem origem no mito greco-romano
de “Nefele”, nuvem mágica à qual Júpiter deu a forma da deusa Juno para enganar e punir Ixião.
Ixião foi rei dos lápitas, na Tessália. Após ter esposado Dia, filha do rei Deioneu, recusou ao soberano os
ricos presentes que lhe havia prometido e acabou por matá-lo, lançando-o num fosso cheio de brasas.
Culpado de perjúrio e sacrilégio por ter matado um parente, Ixião despertou o horror e o desprezo de
todos. Júpiter, comovido com suas lamentações, levou-o ao Olimpo, serviu-lhe néctar e ambrosia e
conferiu-lhe imortalidade. Mas Ixião, traidor por natureza, tentou seduzir Juno, esposa de Júpiter. Júpiter
então criou uma nuvem com a forma da deusa. Ixião uniu-se a essa nuvem, dando origem aos Centauros.
Raquel Naveira. In: http://poeticaecotidiana.blogspot.com.br/2011/03/nefelibatas.html. Vide TORRE DE
MARFIM.
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do poeta do Só, Eugénio de Castro transfere sua pose e demagogia literária para outras
zonas, feitas mais de "literatura" que duma autêntica vivência dos temas escolhidos:
além da Lua, serem-lhe de inspiração "o sino do cemitério", a morte, a podridão, as
casas abandonadas, a solidão, almas penadas, as bodas negras ("cheio de sangue e pus,
duma donzela / Na boca virgem, o Cancro ri, às gargalhadas".), etc. Niilismo e
pessimismo, como o próprio poeta reconhece no prefácio à segunda edição da obra
(1911), confessando que tais "versos foram escritos numa passageira mas violenta fase
de exaltação moral". É possível que sim, mas a observação não desmente o caráter
"literário" e à António Nobre dos poemas de Interlúnio.
Por outro lado, com Silva se acentua a tendência academizante encarnada numa
de suas metamorfoses oitocentistas, o Parnasianismo, com tudo quanto trouxe de frieza,
o culto do marmóreo e das formas raras e descritivas. Significa que o "inspirado" que
Eugénio de Castro equivocamente pareceu e desejou ser nos primeiros livros, cede lugar
ao "artista" e ao artesão, que sempre foi. Desse modo, ganha corpo e começa a
predominar em sua poesia um declarado neoclassicismo, em tudo oposto às suas
pretensões simbolistas: para realizá-las, Eugénio de Castro precisava viver
autenticamente a liberdade criadora preconizada pelo Simbolismo, e possuir algo como
um senso divinatório do Universo. Mas era incapaz de fazê-lo, por uma espécie de
impossibilidade constitucional, caracterizada pelo endurecimento da sensibilidade
poética para com a essência das coisas, que favorecia o engurgitamento dos sentidos
sempre que se tratava de apreender cromatismos e sinestesias. Dir-se-ia um esteta
voluptuoso de forma, cor, som e movimento, que por acidente escolheu a palavra para
meio de expressão, como podia ter escolhido as tintas, a pauta musical, etc.
Assim, apesar de alguns momentos de realização simbolista, pela presença do
vago e do simbólico, o poeta caminha inteiramente para o neoclassicismo parnasiano,
depois de Bel-kiss (1894), Tirésias (1895), Sagramor (1895), Salomé e Outros Poemas
(1896), A Nereide de Harlém (1896), O Rei Galaor (1897), Saudades do Céu (1899) e
Constança (1900).
Esta última talvez seja sua maior obra, graças ao frêmito de lirismo e a simpatia
pela desgraçada mulher de D. Pedro I, preterida por Inês de Castro e injustiçada pela
tradição, que pendia para sobrestimar a amante de seu marido. Nessa fase, os motivos
bíblicos, interpretados sem maior comoção, isto é, com frio esteticismo, dividem o
terreno com o pastoralismo, a mitologia clássica, e outros componentes de origem
greco-latina, como o elogio pagão e epicúreo da existência, etc.
Dali por diante, sobretudo em poemas narrativos (como “O Filho Pródigo”,
1910; “O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis”, 1916) e em obras de fim de vida (Canções
Desta Negra Vida, 1922; Cravos de Papel, 1922; Descendo a Encosta, 1924; Chamas
Duma Candeia Velha, 1925 e Últimos Versos, 1938), o poeta cultiva igualmente um
espiritualismo sentimental algo padronizado e superficial, insuficiente para erguer-lhe a
poesia a maiores alturas, se bem escreva, então, do melhor de sua obra.
Feito o balanço, Eugénio de Castro, além do papel histórico que representou,
qualificou-se como senhor de autêntica vocação de esteta da palavra, embora
desamparada de "sopros" mais originais e mais amplos. A sua poesia, fidalga como ele,
faltam as inquietações que fazem as grandes obras poéticas. Há nela um comedimento
de raiz que não permite voos mais ousados, e que origina um lirismo bem comportado e
aristocraticamente afetado. Não obstante essas limitações involuntárias (pois o poeta
não é o que deseja ser, mas é o que é), e não obstante o isolamento em que se encontra
relativamente às correntes literárias contemporâneas, logrou soluções felizes que
tiveram carreira na poesia moderna. Este o seu mérito, para além de ter sido um exímio
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versejador. O melhor de sua obra localiza-se em Constança e nos Sonetos Escolhidos
(1946).
Se mais alto não subiu é também porque, formando-se numa época de transição
e polêmica, se pôs, a partir de certo momento, à margem da nova poesia inaugurada pela
perturbadora presença de Baudelaire. Tornou-se uma "ilha" de Classicismo numa
quadra já definitivamente preocupada com o libertarismo individual que conduz à
aterradora tomada de consciência da condição humana e ao desejo de tentar exprimi-la e
compreendê-la.
Nesse sentido, conquanto superiormente dotado de recursos expressivos, esteve
aquém de seus dois companheiros de geração, António Nobre e Camilo Pessanha.
POEMAS
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Amor se mostra nesta dor que abrigo:
Quero triste viver, pois vos não vejo,
Nem sequer muito ao longe vos lobrigo.
TRÊS ROSAS
In Antologia Poética
Sempre, mas sobretudo nas brumosas
Horas da tarde, quando acaba o dia,
Quando se estrela o céu, tenho a mania
De descobrir, de ver almas nas cousas.
O ANEL DE CORINA
In Camafeus Romanos
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EPÍGRAFE
In: Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim
UM CACTO NO POLO
Julguei que nascia o sol à meia-noite; e que uma boca muda me falava; e que
esfolhavam lírios sobre o meu peito; e que havia uma novena ao pé do jardim da
Aclimação.
Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de tênue que era, não de sombra; e o
fogão não aqueceu o quarto húmido; e o doente teve uma recaída.
E na alcova branca entrou a Dama expulsa, cujo corpo é d´âmbar e cera e todo
recendente de um matrimónio aromal de mirra e valeriana, a Dama dos flexuosos e
vertiginosos dedos rosados. (espécie de erva/ondulosos)
E seus cabelos de czarina eram claros como a estopa e finos como as teias de
aranha; e seu ventre alvo, de estéril, era todo azul, todo azul de tatuagens.
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CAMILO PESSANHA
Fonte: MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1994, pp. 273-277.
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O título pode referir-se à fragilidade da vida e da condição humana, para o fluir inexorável do tempo,
que não deixa que nada se fixe na retina (poema “Imagens que passais pela retina”). São estes os grandes
temas da obra: a efemeridade de tudo quanto passa, a perda, a inutilidade do que se faz ou vive.
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/clepsidra
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crer que vários deles não chegaram a ser escritos, ou melhor, transcritos. Em 1944,
publicou-se um volume, China, com artigos vários de Camilo Pessanha acerca da
cultura chinesa.
Diferindo essencialmente dos demais poetas do tempo, Camilo Pessanha
enquadra-se de modo nítido, justo, na estética simbolista. Nele o Simbolismo se realiza
em todas as suas características fundamentais. A obra poética de Camilo Pessanha se
autentifica, em princípio, pelo alto sentido abstrato, vago, difuso, próprio de quem, por
ser simbolista nato e possuir um temperamento ultrassensível, se sente inadaptado à
existência, que só lhe causa desengano e dor. O poeta, contudo, deseja fugir, aplacar a
dor que a pouco e pouco se transmuta em Dor, mas sabe que a Dor é, paradoxalmente,
tudo quanto possui, pois, "sem ela o coração é quase nada", como confessa, no primeiro
soneto de "Caminho", a ponto de sentir saudades desta dor que em vão procura "do
peito afugentar bem rudemente". Cria-se uma ambivalência de sentimentos que constitui
o cerne de sua poesia. Quando tal ambivalência se alarga, deparamo-nos com um poeta
ansioso por "Deslizar sem ruído, / No chão sumir-se, como faz um verme", isto é,
regressar a um estado de inércia que, prolongado, significa restabelecer condições de
bem-estar peculiares a um estágio anterior ao nascimento, num limbo ou numa espécie
de não-vida. Qualquer coisa como saudade de haver pertencido a um diverso tipo de
realidade, descarnado de sua condição humana e reduzido então a um desejo vago, ou
ser informe antes de vir ao mundo. Ou, ainda, desejo búdico dum nirvana para aplacar
um doloroso sentimento schopenhaueriano da existência.
Por outro lado, a ânsia da inquietante certeza de continuar amanhã, do futuro,
traz-lhe a preso à perturbadora presença da Dor. Nasce daí a abulia, a doença da
vontade, que resulta de tudo já existir no poeta como íntima e arraigada emoção que não
se exterioriza, ou se exterioriza, como desalento perante qualquer gesto concreto,
prático, ao aderir à realidade que só angústia e estranheza lhe causa. Em consequência,
brota um denso pessimismo sem melancolia, sutil, despido de angústia ou de estertores,
fruto de profundo sentimento de decadência, de diluição. Esboroa-se o mundo em
derredor, porque o "eu" do poeta se vai desmanchando aos poucos, à medida que os dias
passam e, aumenta a sensação de inócuo e de inutilidade cósmica. A própria vida é
inútil. O poeta, dotado de agudíssima sensibilidade, que se conhece e se autoanalisa, só
encontra motivo de ser naquilo de que foge tanto: a Dor, causa e efeito, princípio e fim.
É, por isso, o poeta da Dor refinadamente subtilizada e diafanizada, a ponto de
se tornar ídolo: "Porque a dor, esta falta d`harmonia (...) Sem ela o coração é quase
nada".
O processo, desenvolvido até o limite, arrasta-o a uma espécie de delírio
próximo da loucura, provocando-lhe a íntima suspeita de que tudo é caos e alogicidade.
Estranheza total que o convida a introjetar-se mais, perder-se e refugiar-se num
monólogo que sabe anódino ou oriundo da incrível Dor de existir sem remédio, sem
causa, sem justificativa.
Trazendo para a Literatura Portuguesa tal subtileza, requintadamente artística
mas vivencialmente humana, Camilo Pessanha refletia com nitidez aquele clima de
degenerescência geral na Europa, de que o Simbolismo e o Decadentismo eram as mais
evidentes expressões literárias. Ao mesmo tempo, sua poesia encontra motivos em seu
caso pessoal, o que faz acreditar ter o "exílio" (os vários anos do Oriente) exercido
enorme influência em seu espírito, tanto mais próximo da atmosfera simbolista do
tempo quanto mais afastado e mais só se encontrava o poeta. Dir-se-ia que Camilo
Pessanha seria um poeta simbolista mesmo sem o Simbolismo, tal a purificação que
alcançou operar numa poesia, como a Portuguesa, tirada ao declamatório e ao
sentimentalismo piegas, quando não ao formalismo vazio de tantos neoclássicos.
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Entenda-se, porém, que se trata dum poeta medularmente português: doutra forma não
compreenderemos o núcleo sentimentalmente filial da sua poesia, próprio de um
hipersensível ansioso de aconchego materno, mas que o recusa por sentir-lhe a força e o
império, e porque deseja cultivar a Dor, com prazer masoquista. Se colocarmos de um
lado a Pátria, a Mãe, a infância e o perene sentimento de saudade, e de outro, o culto da
Dor, teremos estabelecido a equação tipicamente Portuguesa do dilacerante drama de
Camilo Pessanha. Já no poema "Inscrição", que serve de pórtico ao volume, se patenteia
a insuperável dependência do poeta para com tudo quanto lhe informara o espírito e a
sensibilidade: "Eu vi a luz em um país perdido." Se entendermos por "país perdido"
mais do que Portugal, isto é, a infância conjugada a um sentimento de pátria, não à coisa
pátria, e despido o adjetivo "perdido" de qualquer ideia polêmica, - patenteia-se às
claras o fulcro dramático da poesia de Camilo Pessanha.
Doutro lado, seus recursos de linguagem, traduzindo o desmoronamento do "eu"
e do Cosmos, liquefazem-se, simplificam-se, despem-se da lógica tradicional e revestem
uma sintaxe psicológica, interior, musical, de quem elabora o poema por automatismo, à
procura das expressões capazes de sugerir tudo quanto lhe vai na alma. A palavra, nele,
torna-se transparente, reduzida aos sons e aderida à própria sensação, o que impede o
julgamento preciso e direto de seu conteúdo. Tudo isso, mais o à-vontade, acompanhado
de surpreendentes alianças gramaticais em apoio do enquadramento de intuições
nascidas em planos diferentes (presente, passado, futuro; a cor, a música, o olfato, etc.),
formando sinestesias contínuas e subtis, fazem dele um dos Maiores poetas da
Literatura Portuguesa, e permitem ver em sua poesia alguns dos caminhos perseguidos
por um Ferrando Pessoa ou um Mário de Sá-Carneiro. Servem como exemplo relativo a
este último os versos já referidos em que Camilo Pessanha fala de seguir "a medo na
aresta do futuro"; quanto a Fernando Pessoa, que lhe reconheceu o influxo sobre sua
personalidade, e conhecia-lhe versos de cor, leia-se o seguinte: Porque o melhor, enfim
É não ouvir nem ver... Passarem sobre mim E nada me doer! Cessai de cogitar, o
abismo não sondeis. Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
Pelo que aí vai, compreende-se perfeitamente que o justo e merecido prestígio de
Camilo Pessanha tenha aumentado de uns anos para cá, no conceito da crítica e dos
leitores: em oposição a António Nobre, é um poeta cuja profundidade só se oferece
lentamente ao leitor, exigindo-lhe paciência de espeleólogo. Doutra forma, perde-se
tudo quanto ele pode revelar, ao contrário de António Nobre, que logo nos contagia com
a transbordante carga emocional de sua poesia, mas, por isso mesmo, cujo fascínio logo
desaparece. A dificuldade que Camilo Pessanha põe ao acesso em sua intimidade
significa a doação duma poesia autêntica e original, que perdura longamente no espírito
do leitor. Assim é o grande poeta, assim é Camilo Pessanha.
(...)
Camilo Pessanha é um dos principais poetas da Literatura Portuguesa, conforme
a perspicaz percepção de Moisés (2000, p. 411). Seu ato de criação poética se aproxima
mais de dois dos maiores expoentes do modernismo português, Mário de Sá-Carneiro e
Fernando Pessoa, pelas próprias referências que esses dois autores lhe fazem quer pela
semelhança de alguns temas, quer pelas estruturas poéticas que lhes são em certo grau
semelhantes. O próprio Moisés (2000, p. 412) afirma que Camilo Pessanha “progride no
25
sentir e no esboçar um pensamento em torno das sensações, e na forma empregada para
o dizer, a meio caminho para chegar a Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro”.
Seria impróprio considerar Camilo Pessanha como o influente principal da
poética de Sá-Carneiro, diante da maneira veemente como Pessoa a descarta, porém
mais impróprio ainda seria fechar os olhos diante da leitura de algumas poesias de Sá-
Carneiro e não perceber nelas uma certa similitude temática com as poesias de
Pessanha.
Embora negue a influência direta da obra de Pessanha na criação de Sá-Carneiro,
Fernando Pessoa reconhece a obra de Pessanha como uma “fonte contínua de exaltação
estética”, mas faz questão de deixar evidente que nem tudo o que há em sua obra remete
à obra de Pessanha. Tal expressão surge numa carta enviada por Pessoa a Camilo
Pessanha, provavelmente em 1915, na qual Pessoa disserta, para informação de
Pessanha, sobre a revista Orpheu, e lhe pede que permita a inserção, em lugar de honra
do 3º número de alguns de seus admiráveis poemas. Fato é que Camilo Pessanha foi um
poeta que conseguiu com sua obra antecipar a muitos dos temas da estética modernista
como, por exemplo, o interseccionismo até a problemática da cisão do eu. Contudo, “a
tradição lírica de Portugal não o inibiu nem lhe condicionou a dicção. Esta, dir-se-ia
brotar duma inconfundível fonte íntima e pessoal” (MOISÉS, 2000, p.411).
O título da única obra de poemas escritos por Camilo Pessanha, Clepsidra, traz
em sua composição dois planos que se articulam nos campos dos significante e
significado, um concernente ao plano denotativo e o outro referente ao conotativo.
No plano denotativo, a palavra clepsidra tem sua origem no grego (kleps-udra)
cujo verbo kleptô (roubar, enganar, dissimular) e o nome udor (água, em várias
acepções e, muito concretamente, água da clepsidra), e significa relógio de água para
marcar o tempo atribuído aos oradores. É a partir desse primeiro plano que se
estabelece o segundo, o plano conotativo ou simbólico. Designando no plano denotativo
a ideia de marcação do tempo correspondente à passagem da água no relógio, a palavra
adquire no plano conotativo a acepção de todo o escoamento do tempo em nossas vidas.
A concepção significativa sugerida pelo título dessa obra de Pessanha ganha
dimensões no plano conotativo que vão além da imagem de escoamento do tempo
captada numa primeira instância. Para isso cumpre observar que o som final da palavra
clepsidra (- IDRA) se associa à palavra hidra (que é uma variação do termo grego udra)
sendo na língua oral quase impossível não associá-lo à Hidra num plano mitológico.
Sabe-se que a Hidra é uma serpente marinha gigantesca com sete ou nove cabeças que
nascem à medida que são decepadas e isso era para os antigos símbolos da inutilidade
da vontade e do esforço humanos. A Hidra simboliza em suas múltiplas cabeças, os
vários vícios do homem e sua fragilidade perante eles (CHEVALIER; CHEERBRANT,
1999, p. 492).
A atividade poética revelada por Camilo Pessanha traz em seu interior a
manifestação de um eu que parece não estar em consonância plena com o Universo
(GOMES, 1977), entendido como uma realidade a ser representada pela linguagem
poética, mas antes o concebe como um produto ao qual esse eu em pleno ato consciente
do fazer literário o toma não apenas para representá-lo num plano objetivo como faziam
os realistas, ou tampouco o toma como um elemento a ser instrumento de pura vazão de
arroubos subjetivos, a exemplo dos românticos. O eu em Pessanha faz uso de sua
experiência cognitiva no ensejo de elaborar uma formulação mais adequada do
Universo (acepção acima assinalada) para assim revelar todos os seus matizes. Logo,
“como que desintegrado interiormente, o poeta entrevê o Universo estilhaçado em
espasmos de som, de luz, de cor,- de sensação-, ou como se o espaço fosse o reino do
caos, onde boiam farrapos de seres, coisas e sensações, tudo se mistura” (MOISÉS,
26
2000, p. 412). Daí a dor, essa falta d’harmonia, “ser-lhe o tema fundamental, pois sem
ela o coração é quase nada” (MOISÉS, 2000, p. 412).
A escrita cumpre na relação entre o eu e o Universo na poética de Camilo
Pessanha uma função primordial de elemento materializador de conteúdos preexistentes
que apreendidos pelo eu serão transformados, posteriormente, por seus conhecimentos
já adquiridos. Destarte, o ato de escrever constituirá na poesia de Pessanha um ato
contínuo de atribuir ao signo um novo significado, de modo que o ato de escrever será
sempre um ato de reescrever, e viver constituir-se-á sempre um reviver, ao passo que o
ato de ver se tornará um novo rever de imagens que a rigor guardarão em sua duração,
mesmo que efêmera, o plano em que o eu e o Universo se encontram e comungam.
Na elaboração de sua obra poética, Pessanha assenta sua força criadora no
princípio da ambiguidade (OLIVEIRA, 1979). Tal recurso se manifesta em sua poesia
como um elemento cuja utilização se assenta em induzir o leitor a acreditar que sua
poesia é algo desprovida de inteligência e significado, recursos que são empregados em
princípio como meio de se alcançar a felicidade. Contudo, o recurso da ambiguidade
revela, na verdade, uma poesia acentuadamente elaborada do ponto de vista intelectual.
Veja-se o exemplo dessa força criadora num fragmento do soneto Caminho:
Pode parecer à primeira vista que esse poema não comunica mais do que uma
necessidade de sentir um sentimento que todos prefeririam não sentir: a dor. A imagem
primeira que sugere a confusão causada pela dor (Porque a dor, esta falta d’harmonia)
isolada de seu contexto não desperta no leitor uma sensação mais do que natural de
repulsa pelo sentimento da dor. Porém, quando essa imagem se associa às imagens dos
demais versos (“Sem ela o coração é quase nada/ Um sol onde expirasse a madrugada/
Porque é só madrugada quando chora”) a dor adquire outro significado que
anteriormente não se poderia lhe atribuir, ou seja, do sentimento à dor, que antes seria
evidentemente ignorado, passa a ser visto como algo benéfico e até essencial para a
formação do indivíduo. Neste caso, a recusa da dor constituiria em restringir ao homem
a oportunidade de elevar seus conhecimentos para além das formas aparentes e
limitadas da realidade.
Para um poeta como Camilo Pessanha, a problemática do olhar não receberia em
sua obra tratamento efêmero ou mesmo insignificante. Isso porque os sentidos, como
acreditavam os poetas simbolistas, eram os meios pelos quais o indivíduo alcançaria a
mais elevada condição de apreensão e, por conseguinte, de expressão da realidade
verdadeira (aquela que está além do plano empírico). Assim, os olhos, que são os órgãos
da visão, adquirem um lugar de privilégio na elaboração da obra de Pessanha, uma vez
que são eles os responsáveis pela obtenção mais completa da imagem, mesmo sendo ela
ainda a mais impura.
O fato de a visão representar o elemento por excelência no processo de
apreensão e transfiguração da realidade, ocorre porque é ela que sonda, investiga,
analisa, reconstrói o universo por via do intelecto, ou seja, a ela se atribui o poder de
interpretar o universo em todos os seus ângulos, revelando-lhe suas dimensões mais
ocultas ou sua verdade absoluta. O desejo e o prazer se manifestam na poesia de
Pessanha de modo raro, sugerido quando muito, funcionando, neste caso, como um
27
pretexto ou uma metáfora de algo que está além da pura conjugação amorosa como, por
exemplo, a oposição da vida com a morte e o triunfo da primeira sobre a segunda.
A temática do desejo em Pessanha assume caracteres singulares que não deixa
de remeter o leitor para aquele desejo romântico que Goethe descreveu n’Os
Sofrimentos do Jovem Werther, ou seja, o desejo (amor) não pela amada (o objeto de
seu desejo), mas pelo próprio desejo de amar em si. Isso se dá porque o eu presente em
alguns poemas de Pessanha polariza o texto e ao agir assim, incide quase
exclusivamente na sua própria dimensão ética e intelectual. Entretanto, o tu (que em
princípio deverá ser o objeto de desejo) está lá, embora sua voz não seja ouvida. Tal fato
leva-nos a inferir que nesse apagamento do tu, exista a tentativa de manifestar o eu de
maneira mais absoluta. Assim, o desejo torna-se mais desejo de si mesmo, desejo de
revelar-se a si próprio e não desejo de um objeto exterior.
28
O outro eixo temporal concernente ao futuro é o tempo vindouro que causa no
eu-lírico reserva e até certo pavor: “Tenho sonhos cruéis; n’alma doente/ Sinto um vago
receio prematuro./ Vou a medo na aresta do futuro” (PESSANHA,1994).
A razão pela qual esse eu lírico receia o tempo vindouro não pode ser precisada.
Certo é que tudo o que ele quer é que o tempo futuro não chegue, ou melhor, que o
tempo presente não se esvaia. Se pensarmos no fato de que o eu poético assinala a
marcação desse tempo pelos caminhos de sua consciência, ver-se-á, assim, que fica
menos obscura a metáfora que a única palavra do texto demarca.
Além dessa confrontação dos tempos, Pessanha utiliza outro recurso interessante
na elaboração desse poema: atribui às palavras um valor que lhes está além do plano
sintático ou semântico, confere-lhes um plano de valor que alcança o signo, ou seja, é a
palavra-signo. Assim, ele atribui à palavra dor no âmbito do poema, um valor não só
linguístico, mas um valor que transcende o dado linguístico e alcança o nível do
simbólico:
“Porque a dor, esta falta d’harmonia,/ Toda a luz desgrenhada que alumia/ As
almas doidamente, o céu d’agora” (PESSANHA,1994).
A dor se constitui na consciência desse eu um elemento que vai além do mero
desejo sensitivo e ascende à condição de signo, de um elemento imprescindível à
constituição desse ser, pois “Sem ela o coração é quase nada” (PESSANHA,1994).
Tudo isso se ajusta como luva na observação de Moisés (2000, p. 412): “o
pansofrimento pode estar vinculado ao pessimismo de Schopenhauer; e, de outro, que
não se trata de dor amorosa, mas de dor existencial, madura, adulta, viril”. Bosi (2000,
p. 9) admite que a apreensão do ser e o tempo da poesia significa “compreender uma
linguagem que combina arranjos verbais próprios com processos de significação pelos
quais sentimentos e imagem se fundem em um tempo denso, subjetivo e histórico”.
Apreciemos, pois, à luz de tal prerrogativa, o poema pessanhiano intitulado Inscrição:
O primeiro elemento que chama atenção nesse poema é o fato de sua estrutura
corpórea ser reduzida, uma vez que todo ele é composto somente por quatro versos.
Embora isso seja evidente, não seria escusado dizer que o seu campo semântico
transcende os limites aparentes que sua estrutura física possa sugerir. Desse modo, a
consciência lírica do eu poético que emerge no âmbito desse poema faz sua voz vibrar
num tom melancólico altissonante no qual ela deixa transparecer todo seu desânimo e
descrédito diante de si (enquanto ente pertencente a uma realidade) e por si próprio
(enquanto indivíduo consciente de sua condição existencial). A consciência de si que é
expressa por essa consciência lírica constitui o fulcro anímico que alimenta o poema. É
interessante observar que essa consciência lírica se autodefine, ou melhor, se
autorreconhece após uma revelação presenciada num lugar “perdido”: “Eu vi a luz em
um país perdido.” Posteriormente a essa visão, vem a revelação plena da essência dessa
consciência do eu: “A minha alma é lânguida e inerme.”
Outro elemento a ser considerado no processo de autodefinição do eu-poético se
assenta no uso dos adjetivos que são empregados com o propósito de estabelecer uma
ligação semântica entre o qualificativo de país (perdido) e os qualificativos da alma
desse eu (lânguida e inerme). Lemos (1981, p.57) chama a atenção para essa
aproximação semântica entre os qualificativos do eu e do lugar (país) entendendo-a
29
como um elemento indicador de um estado de ânimo ausente e inerte na figura do eu.
Após expressar a essência de sua alma e manifestar um certo descontentamento por
aquilo que lhe é intrínseco, o eu responde à sua condição de ser, manifestando o desejo
de habitar o mundo no qual sua existência seja ação e força motora: “Oh! Quem pudesse
deslizar sem ruído! /No chão sumir-se, como faz um verme...”.
O desejo de habitar nesse mundo de ação é tão intenso no eu-poético que ele faz
uso do vocábulo verme para expressar, num plano conotativo, que até os seres mais
insignificantes desse mundo são dotados com a capacidade de se movimentarem.
Entretanto, o vocábulo verme no corpo do poema se configura como um vocábulo
plurissignificativo cujo plano conotativo ampliado designa aí a presença da morte. O
signo da morte é um elemento que se faz mais evidente no campo significativo do
poema quando se percebe que a ideia expressa pelo título, Inscrição, remete para pedras
tumulares (os epitáfios), como observa Lemos (1981, p. 57). Destarte, fica o simbolismo
do poema alicerçado na base antitética: movimento (que pressupõe força anímica, e
logo, presença de vida) e inércia (que pressupõe a ausência anímica, logo a morte).
Esse pequeno poema (em sentido formal) é capaz de exemplificar como os
poetas simbolistas, como Pessanha, conseguiam apreender em poucas palavras questões
de ordem existencial e filosófica tão conflitantes e discutíveis e elevá-las a um patamar
de significação profundo e animado com uma singular beleza. É inegável que o
movimento simbolista legou aos meios intelectuais e acadêmicos europeus no final do
século XIX um novo modo de apreender a realidade e expressá-la segundo caracteres
expressivos que tendem mais para a sugestão e, nesse caso, para sua recriação do que
propriamente para representação ou retratação.
POEMAS
1. INTRODUÇÃO
A herança clássica da poesia lírica é a necessidade de uma expressão individual. Entre
os gregos, as poesias eram feitas para serem cantadas com acompanhamento musical.
Os instrumentos usados habitualmente para acompanhar a poesia eram a flauta e a lira,
instrumento musical de cordas.
A poesia lírica entre os romanos sofreu grande influência da lírica grega. Apesar do
caráter imitativo dessa poesia, a poesia lírica romana consegue a criação de um mundo
imaginário, via palavras.
O verso medieval da região da Provença (sul da França), produzido entre os séculos XI
e XIII, ligado ainda à música mas já também à escrita, trabalhava a língua no esquema
de tonicidade e ao mesmo tempo fazia perdurar o aspecto da duração das sílabas. A
poesia provençal demonstra que o elemento musical deve ser intrínseco ao próprio trato
com as palavras; essa deu uma especial atenção ao caráter melopaico da linguagem.
E é, justamente, através da interrelação da expressão individual, da sensibilidade de
captar pelos sentidos imagens da realidade e agrupá-las em signos linguísticos, que este
estudo se propõe a demonstrar o enlace da poesia com a música, em uma das obras de
Camilo Pessanha.
Camilo Pessanha – poeta português simbolista – prima pela composição de seus poemas
ao reproduzir por palavras as sensações, as emoções e até mesmo a introspecção nos
recônditos da alma despertada pelo real – ao som de uma viola. Além de registrar os
30
sentimentos, o poeta articula o próprio texto para representar a “coisa” – a viola e o som
que dela emana.
2. SIMBOLISMO (...)
3. CAMILO PESSANHA: musicalidade
VIOLA CHINESA
Viola – instrumento de corda análogo ao violão na forma; e à guitarra no som; com dez
ou doze cordas dispostas duas a duas (Dicionário Michaelis, 1998).
Viola – espécie de violino de maiores dimensões, afinado uma 5ª abaixo do violino e
uma 8ª acima do violoncelo. Sem dispor da variedade de timbre do violino, tem em
comum com este o mecanismo do som e os pormenores de técnica, sendo em
sonoridade mais melancólica, mais patética, mais sombria e austera, um tanto nasal.
Formato: bojuda e circular (Dicionário Aurélio, 1986).
4.2. Versos
A partir da construção dos versos em estrofes, notamos a semelhança entre a disposição
das cordas na viola e a disposiçao dos versos no corpo do poema: 3 quartetos com 4
versos cada, perfazendo o total de 12 versos, que equivale ao número de cordas da viola.
As cordas da viola são agrupadas em duplas e o som se dá pela fricção dessa dupla.
Note-se o último e único verso isolado dos demais, finalizando o poema, com idêntico
discurso do 1º verso. Esse fenômeno promove a circularidade do poema, representa
imageticamente o signo viola (redondo e bojudo). Conforme definiu R. Jakobson
(1973:10): “versus quer dizer retorno, um discurso que comporta regressos.”
31
4.3. Métrica e ritmo
Os versos que compõem o poema Viola chinesa são estruturados nos moldes a que se
denomina “octossílabos” (versos com 8 sílabas poéticas, com pontuação predominante
na 2ª, na 5ª e na 8ª sílaba).
Ao lon go da vio la mo ro sa
Vai a dor me cen doa par len da
4.4. Ideograma
Antes de adentrarmos aos recursos linguísticos responsáveis pela composição melopaica
do poema em estudo, faz-se necessário configurar o contato de Camilo Pessanha com a
cultura chinesa, visto que o poema Viola chinesa aproxima-se do ideograma chinês,
conforme definiu Ezra Pound (1998:26): “o ideograma chinês não tenta ser a imagem de
um som ou um signo escrito que relembra um som, mas é ainda o desenho de uma
coisa... O ideograma significa a coisa ou a ação ou situação ou qualidade, pertinente às
diversas coisas que ele configura”.
Observa-se que o estudo dos elementos composicionais desse poema, que vimos
expondo até aqui, nos levam à relação entre o objeto – viola e o desenho da ideia
“viola” – instrumento de corda, bojudo e redondo – no tecido das palavras do poema.
4.5. Melopeia
Nas duas primeiras estrofes do poema Viola chinesa, o poeta explora os fonemas nasais,
produzindo uma musicalidade que se espalha por todos esses versos.
32
Não se entenda aqui “mas” com valor adversativo, e sim, figura que marca o impacto do
som da viola no inconsciente do “eu-lírico”.
Observe-se o valor e o efeito sequencial das consoantes no verso: a fricção entre as
consoantes velares (k, r) e as sibilantes (c, z, s) materializam o choque, o atrito e a
confusão na qual se encontra o “eu-lírico”. Note-se ainda o vocábulo “ofenda” cuja
silaba /fen/ é formada pela passagem do ar entre o lábio inferior e a borda dos incisivos
superiores. Notadamente, pela construção mencionada, o poeta iconiza a passagem de
um estado de espírito a outro. Ainda que não defina esse estado, ele o sugere; cria um
símbolo: simbolização de um sentimento vago e indefinido despertado pelo som da
viola no coração (na anima) do “eu-lírico”.
4.6. Rima
Outro aspecto relevante a ser considerado na leitura e análise do poema é a organização
das palavras pelo processo de rimas: morosa x fastidiosa; minuciosa x morosa;
melindrosa x dolorosa. Todos adjetivos derivados de substantivo, cujo sufixo é
indicador de “abundância; cheio de”. E as rimas: parlenda x atenda; prenda x parlenda;
ofenda x distenda, palavras de diferentes classes gramaticais – verbos e substantivos. Os
versos constituem-se de verbos de ação e o sufixo latino “enda” no substantivo indica
resultado da ação. A articulação desses vocábulos assemelha-se à articulação no interior
do “eu-lírico”. Configura, ainda, a ação exterior – som da viola – sobre a alma repleta
de minúcias, melindres e fastio.
8. CONCLUSÃO
Os recursos de que nos servimos para lançar luz no estudo do poema Viola chinesa,
aliados à comparação entre um elemento e outro – poema e viola – são suficientes para
visualizarmos metaforicamente o culto da Dor. Engendramos aí o estado de inércia –
estado não real do “eu-lírico”. Os vocábulos “adormecendo” e “amadornado”
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confirmam o que ora afirmamos. Observe-se que ambos trazem no radical a palavra
“dor”. Mesmo meio inconsciente, em estado de dormência, a dor está no centro, no
âmago da alma; o “eu-lírico” pode senti-la. Trata-se, portanto, de um momento diáfano,
ou seja embora a opacidade e/ou a nebulosidade que tange o real, esta dá passagem ao
som e permite que se perceba e sinta a dor. As palavras “adormecendo” e “amadornado”
condensam o estado de espírito e o estado físico do “eu-lírico”: dormência,
semiconsciência e dor.
À medida que a conversa morre, fica no ar apenas o som da viola. Visto o “eu-lírico”
estar aberto aos estímulos sensoriais, ainda que “amadornado”, o som desperta-lhe
emoções vagas e indefinidas.
A fricção do som sobre o “seu coração” provoca-lhe uma inquietação; mesmo sentindo-
a não consegue defini-la; apenas sente dor “nua agitação dolorosa”. Em “sem que o meu
coração se prenda”, o advérbio “sem” sugere ausência – o “eu-lírico” está como que
ausente do mundo real. O termo “meu coração” configura-se como metonímia – a parte
do todo. Todo ele (eu-lírico) é angústia e fugacidade.
A construção “enquanto nasal” parece centralizar todo esse estado de semiconsciência e
as ações simultâneas nesse dado momento.
Observe-se a semelhança da disposição das cordas da viola – 2 a 2 – cujo som é
produzido pela fricção entre cada par de cordas à fricção do som da viola no coração do
“eu-lírico”. A sua inquietação é o resultado da fricção desses dois elementos – som e
espírito. Não obstante, ele é capaz de definir o som da viola pela audição, mas, em
contrapartida, incapaz de definir seus próprios sentimentos.
O poema apresenta no final um verso monístico “ao longo da viola morosa...”, o qual
sugere que a dor do “eu-lírico” se prolonga (veja as reticências que acompanham o
verso); deixa-o solitário, sem contudo compreender seu mundo interior, mesmo em
momento de total introspecção e motivado por fatores exteriores. Esse verso retoma o
primeiro verso, criando assim noção de circularidade – processo de uma vida vazia e
fastidiosa.
A noção de circularidade é criada, ainda, através das vogais “o” e “a”, nas palavras que
compõem aquele verso. E se volvermos o olhar para as rimas dos adjetivos – sufixo
“osa” -, concluímos ser a vida do “eu-lírico” desprovida de alegrias, mas uma vida cheia
de dor, de fastio e melindre.
A máxima da arte poética está no registro de impressões vagas de um momento,
instigada pelo som da viola e a representação, via palavras, desse som – o verdadeiro
enlace da poesia com a música. Todo o processo de inquietação por que passa o “eu-
lírico” está palpável, materializado no poema.
Portanto, conforme bem definiu Ezra Pound (1998:40): “grande literatura é
simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”.
6. BIBLIOGRAFIA
BENSE, Max. Poesia natural e poesia artificial. In: Pequena estética. São Paulo: Perspectiva,
pp 181-187.
CARA, Salete de Almeida. A herança clássica – entre a música e a palavra. In: A poesia lírica.
São Paulo: Ática, 1998, pp. 18-19.
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Scipione, 1995, pp. 34-40.
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1999.
__________. O que fazem os poetas com as palavras. In: Teoria da literatura e da crítica.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 10.
MICHAELIS: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos,
1998.
34
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1997.
NOVO Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1968.
PASSONI Célia A. N. Clepsidra / Camilo Pessanha. São Paulo: Núcleo, 1989.
PIGNATARI, Décio. Comunicação poética. São Paulo: Cortez& Moraes, 1977, p. 18.
POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 1998.
SACCONI, Luiz Antonio. Nossa gramática. Teoria e Prática. São Paulo: Abril, 1997.
OUTROS POEMAS
IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais, (tipo de planta; erva)
E o vago medo angustioso domina,
- Porque ides sem mim, não me levais?
VIOLONCELO
(A Carlos Amaro)
Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Convulsionadas.
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos.
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro.
Que ruínas, ouçam...
Se se debruçam,
Que sorvedouro! (turbilhão)
Lívidos astros,
Solidões lacustres... (relativo a lago)
Lemes e mastros...
35
E os alabastros (espécie de mármore branco)
Dos balaústres! (coluna)
Urnas quebradas.
Blocos de gelo!
Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Despedaçadas...
INTERROGAÇÃO
9
Cântico dos Cânticos 1:5: “Eu sou morena, porém formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de
Quedar, como as cortinas de Salomão. (...) Formosas são as tuas faces entre os teus enfeites, o teu
pescoço com os colares. Enfeites de ouro te faremos, com incrustações de prata. (...) Enquanto o rei está
assentado à sua mesa, o meu nardo escala o seu perfume. O meu amado é para mim como um ramalhete
de mirra, posto entre os meus seios. (...) Eis que és formosa, ó meu amor, eis que és formosa; os teus
olhos são como das pombas. Eis como és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito é verde.
As traves da nossa casa são de cedro, as nossas varandas de cipreste.”
36
Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
CANÇÃO DA PARTIDA
CREPUSCULAR
37
As tuas mãos tão brancas d'anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
--- É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.
EM UM RETRATO
ESTÁTUA
POEMA FINAL
PAISAGENS DE INVERNO
NO CLAUSTRO DE CELAS
39
VÉNUS - I
ANTÓNIO NOBRE
Fonte: MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1994, pp. 269-273.
Nasceu no Porto, em 1867. Depois dos primeiros estudos, segue para Coimbra
com o intuito de estudar Direito, mas desgosta-se do ambiente acadêmico, sobretudo do
trote de iniciação, que lhe causa profundo vexame. Em consequência, refugia-se na sua
"torre de Anto", longe do bulício e das sebentas. É já, nessa altura, um poeta
hipersensível, todo voltado para dentro de si e para os distantes anos da infância em sua
cidade natal. Reprovado duas vezes, segue para Paris a fim de levar a cabo seu intento
de bacharelar-se, o que finalmente consegue, não sem grandes sofrimentos morais.
Esses anos parisienses são-lhe de grande importância, particularmente do ângulo
poético: sua poesia amadurece e frutifica num volume, o Só, publicado em 1892, sob a
inspiração do Simbolismo Francês, sobretudo de Verlaine, graças à consanguinidade de
temperamento e sensibilidade. Já nessa altura, senão antes, começam a aparecer-lhe os
primeiros sintomas da tuberculose. De volta a Portugal, revisita os lugares queridos da
infância em busca de saúde, que sente fugir-lhe progressivamente. A conselho médico,
vai à Madeira, à Suíça e a Nova Iorque: tudo em vão, pois a moléstia lhe havia minado
de vez o débil organismo. Regressa definitivamente aos penates, à espera da morte, que
sobrevém no mesmo ano em que falece Eça de Queirós: 1900. Morre com apenas trinta
e três anos.
Ao falecer ainda moço, António Nobre deixava publicado um único livro, o Só
(1892), e alguns inéditos que vieram a constituir dois volumes, as Despedidas (1902) e
os Primeiros Versos (1921). Dotado de estranha e refinada sensibilidade, que o fazia um
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esquizoide e um alfenim, facilmente se deixava atingir pelas pessoas com as quais era
obrigado a entrar em contacto e pelas circunstâncias adversas que teve de enfrentar pela
vida fora. Desse modo, na essência mesma de sua hipersensibilidade era um romântico
acabado. Sua cosmovisão comprova-o nitidamente: sentimental, emotivo, introspectivo
até onde alguém pode ser, exilou-se totalmente da realidade circundante e passou a
viver isolado, em sua "torre de Anto" real ou fictícia, entregue a um solipsismo doentio
e narcisista.
Esse narcisismo denotava um temperamento passivo, feminoide, e uma
debilidade psíquica e física, que o tornavam presa fácil das emoções mórbidas e da
tuberculose que o vitimou. Mais ainda: fazia-se acompanhar duma nota de
autocomiseração logo transformada numa melancolia e num tédio ensombrados pela
presença da Morte, ao mesmo tempo desejada e odiada. Por sua vez, a
autocontemplação enche-se de ternura e de piedade consoladora, e gera um pessimismo
de derrotado antes de lutar, próprio de quem contempla a inexorável passagem das horas
sem poder interromper-lhe a progressão, e, pior ainda, tem a dolorosa sensação de que a
vida se esvai inutilmente, antes de ser vivida.
O resultado é que o poeta acaba vendo tudo através duma cortina de lágrimas,
tomado dum sentimento ambíguo e entristecedor: a um só tempo, desadora a vida
porque esta lhe parece schopenhauerianamente um fio ininterrupto de dores, e lastima
abandoná-la. Dela recebe não só amarguras, mas também um gozo estético e afetivo, no
amor da Mulher ("Purinha": "Aquela que, um dia, mais leve que a bruma,/ Toda cheia
de véus, como uma Espuma,/ O Senhor Padre me dará para mim"); na contemplação
comovida da terra natal e no encontro, em plenitude enternecida, de seus familiares
("Viagens na Minha Terra"); no congraçamento com os deserdados da fortuna, nos
quais o poeta enxergava irmãos de dores e aflições ("Males de Anto": "Aos pobrezinhos
enxugava-lhes o suor./ A minha bolsa pequenina de estudante,/ Era pros pobres."); e no
encontro de outros valores espirituais. Mas o voltar-se para fora é ainda como se
estivesse flectido para dentro de si, pois o poeta incorpora os seres e as paisagens que
contempla como se fossem emanações orgânicas do seu "eu" hipertrofiado às raias de se
tornar do tamanho do mundo.
Entretanto, ao debruçar-se absortamente em seu mundo interior, António Nobre
realiza uma espécie de amarga reflexão sentimental de sua via-crucis dolorosa até a
cova, sob o acalanto da Morte, do Fado inamovível ("A Morte, agora, é a minha Ama /
Que bem sabe acalentar!"). E ao meditar a sua obsessão, o poeta desintegra-se
paulatinamente, como se bastasse lembrar para diminuir, em vez de aumentar, o espaço
que o separa do Nada temido, odiado e a um só tempo esperado. Como se nota,
desencadeia-se um movimento em espiral que envolve toda a poesia de alguém que se
julgava "o poeta-nato, o lua, o santo, o cobra!", um poeta pessoalíssimo, senhor dum
individualismo narcisista que o afastou de Maior influência constrangedora: um poeta
portuguesíssimo, pela retomada da tradição que remonta à Idade Média e pelo culto
enternecido da paisagem e da gente Portuguesa.
Dessa forma, para António Nobre iam convergindo várias linhas poéticas em
curso no seu tempo: algumas delas vinham do Romantismo, concentradas na atitude da
pose e da vaidade em feminino, da artificialidade e da máscara teatral, herança de
Garrett, seu mestre em dandismo e em poesia de requinte e finura: "Ora, às ocultas, eu
trazia / No seio, um livro e lia, e lia, / Garrett da minha paixão...". Ao seu
neogarrettismo se juntava a presença de notas trazidas pelos ventos novos do
Simbolismo (as vaguidades, as sinestesias, o mistério das coisas, o gosto do oculto, do
supersticioso, as atmosferas neblinosas, etc.). Ainda se observa em António Nobre
qualquer coisa da poesia do quotidiano realista, mas, como sempre, acomodado ao seu
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peculiar feitio de sensitivo incapaz duma rebeldia heroica: "Olha! Estudantes, dando o
braço às raparigas, / Caras de leite, olhos de luar, tranças d'estrigas".
Entenda-se, porém, que tudo isso constituem forças estimuladoras da atmosfera
literária em que António Nobre se formou, e não influência despersonalizadora: o poeta
só aceitava os estímulos externos que lhe correspondiam às mais íntimas propensões de
romântico por natureza e sensibilidade. Em suma: era demasiado egocêntrico para
seguir outros caminhos que não os descortinados por sua intuição, faculdade que nele
parece coincidir com o chamado sexto sentido feminino, tão aguçada é no registro de
vibrações mínimas da sensibilidade. Por conseguinte, torna-se difícil encaixar no
Simbolismo um poeta dessa categoria, ainda para mais preso medularmente ao solo
natal, a ponto de exclamar nas "Viagens na Minha Terra": "Ó paisagem etérea e doce, /
Depois do Ventre que me trouxe, / A ti devo em tudo que sou!".
A esse portuguesismo garrettiano, telúrico e apaixonado, vincula-se outra
característica de António Nobre: poeta estritamente emocional (com todas as restrições
e sentidos que implica tal classificação); nele a razão ou a inteligência exerce pouca ou
nenhuma influência. Pletórico de emoção, para ele o mundo; é Portugal, "essa doida
terra", "cheia de Cor, de Luz, de Som": uma visão estética, portanto, e emotiva,
semelhante à da mulher, para não dizer que prolonga a do menino de "olhos tão doces"
que foi. António Nobre vive obcecado com a infância, seu "paraíso perdido": "Menino e
moço, tive uma Torre de leite, / Torre sem par!"
Tudo isso, mais o seu ensimesmamento de hipersensível alheio aos ruídos da
vida literária, ajuda a explicar que não alcançasse em vida a nomeada de Eugénio de
Castro.
Entretanto, soube realizar o que o outro não pode: graças à anarquia de base que
lhe punha romanticamente a alma em torvelinho, colaborou para libertar o sentimento
poético da opressão das preceptivas e códigos literários, aceitos consciente ou
inconscientemente por quase todos. Essa como incapacidade para aderir às normas, esse
inconformismo natural, tornou-o verdadeiramente um precursor da poesia moderna,
pelo menos nalguns aspectos de sua obra. António Nobre promoveu, em poesia, a
revolução de linguagem levada a efeito por Garrett: introduziu-lhe o tom narrativo, oral,
coloquial quase prosaico, numa arritmia às vezes acompanhada do emprego de versos
assimétricos.
Está certo que estes, Eugénio de Castro os empregava desde o Oaristos, mas sem
convicção, como se praticasse um mero exercício de expressão poética. Em António
Nobre, ganham um travo moderno, graças ao à-vontade do poeta, que nos dá a
impressão de criar seus poemas à medida que fala, em vez de construí-los
artesanalmente, no silêncio de seu gabinete de trabalho.
O tempo constitui outra força-motriz da poesia de António Nobre, em que
também se patenteia seu cariz moderno: tempo quase sempre passado, indicativo dum
poeta volvido para as lembranças autobiográficas, no culto mórbido da saudade. Por
isso, o saudosismo é outra marca de sua poesia: pode-se dizer que todos os poemas do
Só, obra que mais de perto interessa, pois o resto ou é póstumo ou corresponde às
primícias do poeta, tem como fulcro a saudade.
Mais importante que o tempo-saudade para aferir da modernidade de António
Nobre é o tempo-duração, que já se vislumbra em sua poesia: em mais de um passo, o
poeta fala do fluir irremediável do tempo e articula suas lembranças em dois planos
pretéritos, como é o caso por exemplo de "António" ou da "Lusitânia no Bairro Latino",
planos esses correspondentes à noção de que o tempo transcorre não em linha reta mas
em ondas que abarcam simultaneamente o presente, o passado e mesmo o futuro.
Tudo isso revela um poeta moderno: poeta "inspirado", espontâneo, abriu caminho em
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Portugal para o reconhecimento da poesia como "ciência demoníaca", na esteira de
Baudelaire, de cuja fascinante revolta não ficou totalmente alheio. A poesia de António
Nobre respirava pureza e primitividade pouco frequentes, qualidades suficientes para
abrir trilhos novos na poesia contemporânea e tornar-se prenúncio claro da deificação
do ato poético, preconizado e realizado pelo grupo do Orpheu, especialmente por Mário
de Sá-Carneiro, tão emotivo e hipersensível quanto o autor do Só. Criticamente, este
último provoca menos vibração intelectual que Camilo Pessanha, mas, se nos dermos à
leitura de sua poesia sem preocupações de ordem crítica, e sim com o intuito de
conviver com a beleza que gera emoção estética, - então haverá poucos poetas
portugueses que se lhe comparem.
POEMAS
SONETO
In Belos Ares, 1889
Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam vagarosos, como os Rios,
Sucedem-se uns aos outros, igualmente.
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LADAINHA
ELEGIA
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Cantai, cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu lar desenterrai
Todas aquelas ilusões antigas
O MEU CONDADO
SÊ DE PEDRA
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PAZ
(Versão original. Paris, 1891; p. 58)
E a Vida foi, e é assim, e não melhora.
Esforço inutil, crê! Tudo é illuzão...
Quantos não scismam n'isso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!
A PROSA SIMBOLISTA
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1994, pp. 277- 283.
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deixando de criar obras que se classifiquem naturalmente num dos três rótulos
tradicionais: conto, novela e romance. Em seu lugar, cultivam a chamada prosa poética
ou o poema em prosa, ou comunicam às suas histórias e narrativas uma atmosfera de
autêntico lirismo. Como é imediato perceber, no primeiro caso trata-se simplesmente de
poesia expressa numa forma que, à falta doutro nome, chamamos de prosística. Todavia,
se aceitarmos um conceito de poesia que atente para a essência e não para a forma do
poema, ficará claro que pouca diferença faz que seja em verso (ou em linhas
descontínuas, simétricas, formando unidades chamadas estrofes), ou em prosa (ou em
linhas contínuas, formando unidades denominadas parágrafos), o meio expressivo
escolhido pelo poeta para a comunicação de seu mundo emocional. Portanto, o poema
em prosa é ainda poesia, e poesia simbolista. O outro caso é de contos, novelas e
romances em que o aspecto poético se hipertrofia conforme a história narrada, chegando
mesmo a reduzir a um mínimo inconsistente a fabulação e tudo o mais que a cerca
(personagens, atos, gestos, etc.). Nesse caso, quanto mais poético - e portanto mais
próximo do Simbolismo -, menos é conto, novela e romance; e vice-versa. No decurso
do Simbolismo, encontramos uma coisa e outra com a natural predominância da
segunda.
(...)
RAUL BRANDÃO
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1994, pp. 283-287.
Raul Germano Brandão nasceu na Foz do Douro, em 1867. No Porto cursa, entre
1888 e 1896, a Escola do Exército. Graduado, segue para Lisboa na continuidade do
serviço das armas, ao mesmo tempo que se entrega ao jornalismo e à vida literária,
atividades que não abandona de todo até o fim da vida. Reformado em 1912, recolhe-se
para a quinta da Casa do Alto, mas continua a escrever e ocasionalmente a visitar
Lisboa. Falece em 1930.
Raul Brandão inicia sua carreira literária em 1890, com Impressões e Paisagens,
uma coletânea de contos à maneira naturalista, em torno da vida amoral e trágica da
gente do povo. O interesse pelos humildes ainda continua nas reportagens que publica
no Correio da Manhã entre 1895 e 1896, mas já agora sob o influxo do Decadentismo,
que começara a se verificar em 1893, quando o escritor lança um folheto intitulado
Nefelibatas. Na obra seguinte, o romance que tem por motivo a História de um Palhaço
- Vida e Diário de K. Maurício (1896), mais tarde refundido com o título de A Morte do
Palhaço e o Mistério da Árvore (1926), Raul Brandão adere francamente ao clima
neurótico e decadente do fim do século XIX, em que a sensibilidade coletiva e
individual, aguçada ao extremo do delírio, faz acreditar no definitivo e absoluto caos
cósmico, na deliquescência de todos os valores, no extermínio do homem sobre a face
da Terra ou, ao menos, no esboroamento de todas as civilizações: em suma, o
Apocalipse. Uma vasta psicose, afinal, sintonizada com o Decadentismo, a teoria da
degenerescência de Max Nordau, e enriquecida com a descoberta deslumbrada do
misticismo da alma russa, morbidamente expresso em arte e então a seduzir grande
número de leitores em Portugal. Tolstói e sobretudo Dostoievski passam a ser
avidamente lidos nessa altura, de envolta com tardias influências do macabro
hoffmanniano e poeano. O sentimento de caos derradeiro correspondia à instalação
duma terrível angústia, em decorrência de perderem sentido, para certas camadas
intelectuais dos fins do século, as "certezas" do Positivismo. No seu diário, K. Maurício
escreve: "Singulares criaturas devem nascer por este fim de século, em que a metafísica
de novo predomina e a asa do sonho outra vez toca os espíritos, deixando-os alheados e
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absortos. A necessidade do desconhecido de novo se estabelece. A ciência, que por
vezes arrastara a humanidade, que a supunha capaz de ir até ao fim - bateu num grande
muro e parou. Que importam o princípio e o fim?" Sente-se a derrocada de tudo quanto
construíra o cérebro humano, e de repente entra a faltar a muitos espíritos a base mínima
para suportar a dilacerante sensação de inutilidade da vida humana. K. Maurício,
alterego de Raul Brandão, poeta alucinado por uma extremista sensibilização da vida, é
ao mesmo tempo vítima e porta-voz do desmoronamento que chega a parecer total e
irremediável: "o drama de K. Maurício foi este - ter vivido tudo e nunca ter vivido; ter
conhecido a vida através dos livros e não saber dar um passo na vida. Habituou-se a
sonhar e ter medo de viver". Ele próprio reconhece-o e confessa-o: "O sonho é o único
refúgio que me resta." Ao fim de contas, trata-se da egolatria, dum pagão da decadência,
soterrado pelas ruínas dum mundo cujo desmonte ele acelera com seus gestos de
renúncia, passividade e fuga da realidade: "Virei já do avesso todos os sonhos, esgotei-
os, fui tudo em imaginação e não no fui na prática, falho de energia. Imaginei ser Deus e
imaginei ser árvore." Em tudo quanto constitui o drama de K, Maurício existe um pouco
de "literatura", na medida em que só é parcialmente verossímil o seu decadentismo,
quer dizer, verossímil como símbolo dum estado de coisas muito real e vivo no último
quartel do século XIX; o modo, porém, como o herói vive seu drama e o modo como o
escritor o focaliza contém inverossimilhança, ou algo parecido com afetação "artística",
e, portanto, falsa.
Entretanto, quando esse clima de neurótica expressão psíquica se exaltar, ou
seja, quando se atenuar o traço "literário" em favor do exame direto das realidades
sociais contemporâneas, Raul Brandão cria uma trilogia que constitui o melhor de sua
obra, A Farsa (1903), Os Pobres (1906) e Húmus (1917), e mais tarde o Pobre de Pedir
(1931), dentro do mesmo clima. Nessas obras, que pendem entre o romance e o poema
em prosa, exacerba-se o trágico sentimento de que a existência é inócua, gratuita e plena
de dor. No diálogo que o homem trava com o Cosmos, gera-se o "espanto", a impressão
fantasmagórica de que a vida não tem finalidade alguma, pois jamais se alcança o
mínimo de realização concreta ou de entendimento capaz de justificá-la, como se o
mundo fosse apenas habitado por espectros e fantasmas, sub-homens que formam um
"enxurro humano" a ulular medonha e tragicamente. No mundo desses seres rastejantes
só há lugar para o gemido, para a dor, rainha schopenhaueriana.
Como impedir-lhe a presença imperativa, o domínio soberano e despótico? "Pelo
sonho," respondem todos, na esteira do poeta K. Maurício, mas agora guiados por um
autêntico sentimento da infinita miséria humana. Por outro lado, o sonho é não-vida, é
fuga, e fuga da realidade concreta, tornando-se ele próprio a única "realidade nesta noite
quieta e caiada, com uma mancha vermelha de polo a polo", visto que "o único mundo
real é o mundo irreal". Resultado: cai-se num círculo vicioso nessa procura estéril duma
razão para a sem-razão da vida, dum apoio para o abandono em que vivem, até que, por
fim, descreiam da vida e de Deus; da primeira, por desnecessária e vazia, e porque "é
uma tragédia esplêndida, com todos os seus crimes, sonhos, ódios", do segundo, porque
não dá nem razão nem suporte à primeira, pois "a beleza não existe - existe a dor; Deus
não existe - existe a dor". Mergulhado num turbilhão, agrilhoado à vida como um
verdadeiro galé à mercê da injustiça, o homem reduz-se ao humilhado e ofendido
dostoievskiano, que só pode salvar-se "pregando o Amor. Só o Amor nos pode salvar",
pois "por cada homem que amontoa oiro, há cem criaturas morrendo no desespero e na
aflição".
Daí a frequência, na obra de Raul Brandão dessa fase, sem dúvida a mais
significativa de sua carreira, daquilo que constitui o "enxurro humano": sonhadores,
meretrizes, vagabundos, líricos, alucinados, ansiosos, "criaturas a quem um montão de
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desgraças torna ainda mais ridículas: a ruína, a miséria, e a fome". A própria natureza
exala gemidos secretos clamando por um pouco de paz, de felicidade impossível. A
injustiça social lança para as vielas aqueles que muito esperam da vida e não se
revoltaram nem bajularam os senhores e os poderosos. Todos pedem a Deus para
suavizar sua Dor, mas é inútil. Assim, percebe-se o transcendentalismo a se jogar contra
o niilismo enraizado, levando todos para a nauseante, obsessiva e angustiosa sensação
de que não vale a pena viver: "Aquela porta aberta para a tragédia e para o escárnio fica
em frente do Hospital. As mulheres dos ladrões e dos soldados moram ao pé da dor. As
paredes negras e húmidas - mãos ao roçarem-nas deram-lhes aflição, gritos abalaram-
nas - foram construídas do mesmo sonho e da mesma pedra de que é feita a vida." Toda
essa sinfonia de vozes apocalípticas que choram, pedem, suplicam, guarda amor aos
humildes e aos injustiçados, para os quais o mundo só oferece descrença integral, visto
lhe faltar a menor certeza para oferecer em troca da miséria humana.
Na última fase, Raul Brandão, como que encontrando a rota própria e
desenvolvendo intuições latentes nas obras anteriores, logo transformadas em
convicções, evolui para o Cristianismo. Este último estágio corresponde a uma vida
interior serena, equilibrada, graças ao aplacamento da revolta e à consciência de que é
preciso aceitar o inexorável das coisas. É então que escreve Pescadores (1923), As Ilhas
Desconhecidas (1927) e as Memórias (3 vols., 1919, 1925, 1933), onde, a par do
encontro com os valores ingênuos da existência, ardorosamente desejados e procurados
nas fases anteriores, passa a vibrar com o mundo das coisas e seres primitivos cheios de
pureza, num naturismo que não esconde o melancólico e desalentado balanço de uma
vida inquietada por trágicas visões e, ao mesmo tempo, uma revalorização comovida da
paisagem Portuguesa, naquilo que tem de mais autêntico e pitoresco.
O estilo de Raul Brandão, porque dúctil, hipermetafórico e ondulante, mais
próximo da poesia que do romance, acompanha as fases evolutivas de sua carreira
literária.
Mais poeta que ficcionista (ou prosador), graças à sua linguagem estruturalmente
poética, pelo jogo das imagens, pelo metafórico, pelo metafísico, pelo lírico, pelo ritmo
emocional, pelo alógico e, sobretudo, pela liberdade expressiva, como se escrevesse
sem qualquer esforço de composição, ao jactos, numa incessante ebulição, a transmitir,
em escrita automática, um delirante e onírico espanto do mundo, Raul Brandão tornou-
se quem melhor realizou a tendência fundamental da prosa simbolista, acabando por ser
o mais importante prosador do Simbolismo português e dos maiores do nosso idioma.
O MISTÉRIO DA ÁRVORE
In Raul Brandão, Obras Completas, Círculo de Leitores
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limosas e no espectro da árvore levantada diante do Palácio. Tudo que era vivo fugira de
ao pé dele, porque o Rei mandava punir a mocidade e o amor, e dez léguas à roda o país
tinha sido assolado pelos seus guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo
no seu reino. Nem uma folha nem uma ave — nem um sinal de vida. De pé unicamente
a árvore, desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de
forca.
No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores
desertos, lentos ou precipitados, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando
pouco a pouco as lajes duras do chão. Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o
ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de
horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...
Sucedeu que veio a Primavera e todas as árvores, para lá do território assolado,
estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no
azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se naquela
terra praguenta, ela envolta na poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao
seu olhar. Eram pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados com a Primavera,
cobrindo a terra erma, que calcavam de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Flores
esvoaçavam pela sua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos
muros, de propósito para os ver passar.
Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estremecia. Só o Rei no Palácio
deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Queria
todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor que trespassava a terra e os bichos, a
própria morte que tudo transforma, lhe pareciam abominação e afronta. Odiava a vida.
Mas deitava-se e sentia palpitar as fragas: os montes eram seios duros, as árvores
cabelos ao vento. Para não ver, encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra,
e sozinho ficava então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era
seca e hirta — fora-o sempre — e os seus frutos cadáveres ou corvos. À passagem de
Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte diante da vida
e do amor, a árvore trágica que havia séculos que servia de forca.
Um dia o Rei soube que dois seres felizes haviam transposto as fronteiras e
mandou-os logo prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos
sapos dos caminhos que pareciam extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite
magnética cheia de murmúrios, no vento que atirava para o castelo ramos de árvores
luminosos. Punha-se de ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez
falar, iam enfim falar...
Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles entrou um bafo novo:
cheiravam a sol e à lama dos caminhos e pegava-se-lhes húmus aos pés descalços. A
vida rompeu por aquele túmulo dentro e, pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em
lugar da foice simbólica, pela primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore.
Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram extraordinariamente belos, mas
deles irradiava uma força imensa — daquela moça sardenta, com resquícios de palha
pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam
pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se. Atreviam-se num país que ele mandara
assolar para que nunca mais diante de seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e
do amor!
Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e depois fez um gesto aos
carrascos, que logo se apoderaram deles e os levaram. Sorriam-se os mendigos cheios
de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o que se passava em
volta — olhos nos olhos, mãos nas mãos...
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Noite negra, o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos
esfarrapados arrastavam-se pelo céu. A árvore onde os dois haviam sido enforcados mal
se distinguia no escuro; mas de lá vinha um frémito, a sua agonia talvez, e uma
claridade, os seus corpos decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas — por baixo das cinzas
latejava a vida. Toda a terra parecia fermentar. Ouvia murmúrios. Se as árvores
falassem!, se as árvores e as coisas dissessem tudo que sabem! A água chalrava. Perdia-
se em fios pela terra. Mas então ele não mandara secar as fontes? Vozes, mais vozes
ainda no escuro, a voz baixinha e humilde das árvores cheias de folhas que o vento
chegava umas para as outras... Mas então ele não mandara despir para sempre as
árvores? Pior... Mais fundo ainda, no negrume opaco da noite, o sussurro da vida —
como se ele não tivesse mandado espezinhar a vida!... Encostado à muralha, passou a
noite absorto. As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos afligia-o... Porque não iria
ele também ser a macieira, mendigo, húmus?, transformar a dor em felicidade?, beber o
sol arrastado na aluvião da vida? Oh, como odiava a mocidade, a ternura, os lábios
moços que se beijam!...
Só a árvore esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore que no seu reino servia de
forca.
Ficou até de manhã de olhos postos naquele fantasma triste e enorme, negro
como as ideias negras que tecia, seco como a sua própria alma — a árvore desmedida
que no seu reino servia de forca... Começaram os cerros a tingir-se de violeta, as árvores
a azular, e a forca, em que se absorvia, a destacar-se de entre a névoa, a árvore
esgalhada e imensa que havia séculos perdera a seiva e a vida.
Súbito ficou imóvel de espanto. Aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o
galho em que se pendiam enforcados cheiinho de flor. Dura e má como as pragas
juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra assolada não pudera produzir. Era
nada, quase nada, algumas flores miudinhas prestes a sumirem-se ao primeiro sopro —
era dor estreme e sonho estreme. Nos seus braços haviam sido enforcados muitos des-
graçados e as suas raízes mortas pelas lágrimas de aflição. Tolhida com os gritos, não
bebia água nem sugava húmus. Vira passar homens, Primaveras e reinados, sem se
comover, mão arrepelada a amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a transformações de
solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre petrificada como a morte — e
naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em ternura,
como se nela se concentrasse toda a paixão, a Primavera e o noivado da terra — a
árvore maldita que desde séculos servia de forca.
TRECHO DE K. MAURÍCIO
Espera!... Espera!... Vou sonhar e vou criar à minha vontade a atmosfera para
viveres comigo.
Foi noutro tempo, num tempo em que me parece que era sempre Maio, e longe
de todos os corações gelados e dos sorrisos postiços. Havia árvores, árvores com
grandes cabelos verdes soltos, um caminho que eu tantas vezes andei, de coração
inquieto...
Vivíamos juntos e amávamo-nos, nesse sítio arredado e melancólico, com
grandes árvores, uma antiga casa fidalga, e a vida livre, primaveras a noivarem, paz,
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invernos bravios sonhando ao pé do lume, e livros de poetas. Tempo lindo, saímos
ambos: às vezes em Maio, no ar fino e doirado, as árvores deitam a primeira flor como
um cândido sorriso ou um coração que pela primeira vez estremece. Levava um livro
comigo e Hélia escutava. As minhas palavras animavam a paisagem: davam alma às
coisas, às árvores, às águas das lagoas. Toda a minha alma se desprendia ao pé dela e a
emoção espalhava-se pelas coisas. Aquecia. Ao ver grandes árvores, chorava: as árvores
davam-me a impressão de me achar entre amigos a quem tudo se confia: sentia-me bom.
Contava-lhes o que as pedras sofrem, o que as coisas sofrem. Líamos ou olhávamos as
montanhas. Descobriam-se carreirinhos entre os pinheiros bravos: lenhadores rachavam
árvores; um bom homem montado no seu burro partia; uma nuvem lilás errava quase a
desfazer-se no céu. Para onde? Para onde? Onde iam dar todos os misteriosos carreiros
da floresta? Como quereríamos ser a nuvem, partir, seguir todos os caminhos por entre
os pinheiros, ser lenhadores, o saloio que lá vai no trote alegre do burro e que alguém
num lar espera, as próprias árvores, a luz, a água que corre, a chuva, o sol; desfazermo-
nos nas coisas, ser, com a mesma alma, a alma das montanhas e das ervas humildes...
A casa tinha uma varanda de pedra e era lá que te encontrava sempre, com o teu
sorriso triste e o olhar doce e resignado. É certo, amei-te, como porventura tenho amado
todas as criaturas que encontro na vida, tristes, humildes e cansadas... O amor em mim é
tecido de piedade. Nunca as mulheres triunfais me fizeram bater o coração como as
pobres criaturas melancólicas, feias, arredadas, cujos sorrisos têm mágoas e cujos
olhares são velados pelas lágrimas... Tenho vontade de as consolar e de as beijar. Será
por humildade? Será por egoísmo, porque me sinto, eu próprio, assim encolhido e
doente, incapaz de beijar com sofreguidão lábios rubros de vida e de saúde, lábios
jovens? Ou porque o amor que sabe a lágrimas me tenta?...
Espera... Não és apenas uma mera criação de sonho... Quando escrevo, sozinho,
fechado, acontece amiúde estar com medo de voltar a cabeça para trás: tenho a certeza
absoluta de que está alguém comigo, a olhar para mim...
Hoje beijaste-me.
Nesta hora aflitiva do crepúsculo, quantas criaturas, transidas pela vida, se põem
a tecer quimeras, sonhos fugidios, nuvens!... Da terra começa a sair o hálito violeta da
sua evaporação: nas almas se criam ténues figuras de sonho, de ilusões queridas. Tenho
vontade de chorar e ainda hoje me não aconteceu desgraça... Alguns criam espectros
negros e desesperados, a outros vem Hélia, de mãos febris estendidas, beijá-los na boca.
Dir-me-ás com o teu sorriso de mágoa: — Sonho, é sonho tudo!... — Como se eu não
tivesse a certeza de te ir encontrar no infinito, pois que nada se perde senão a vã
realidade! Tenho muitas vezes, até irem altas as estrelas, cismado em ti, amor; criei-te
de lágrimas, de aspiração, de tudo o que em mim próprio é imortal; e agora és tu mesma
que, aqui ao meu lado, me contas a alma desta história.
Sonhar! Mas eu já não posso sonhar só isto. Preciso de sonhar mais — de um
sonho sem limites que me satisfaça.
Dias há em que me deito na cama e não tenho mais vontade de me levantar.
Olho em roda. Toda a vida me parece aborrecida e vazia. A minha falta de energia
exaspera- me. Estou gasto e com rugas aos trinta anos. Estou cansado e esgotado, sem
imaginação e sem nervos. Aflige-me não ter sido jovem, não ter vivido como os mais, e
insulto a minha quimera que me parecia de ouro, por quem me esgotei, para afinal a
encontrar gelada e fugidia... Errei o caminho: não era por aqui.
Voltar à realidade? Mas eu cheguei ao ponto em que desconheço a realidade. A
realidade tem para mim formas monstruosas. Ainda falo como os outros — ainda falo
mas como num sonho. Titubeio. Caminho à pressa pelas ruas, para me meter dentro do
meu cubículo. E não me larga a impressão daquele beijo que me deste e que me devorou
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até ao fundo da alma, deixando-me na boca uma frescura deliciosa que nunca mais
passa.
Petrificado. Uma luz pastosa, uma toalha de luar, atmosfera feita de sons
magoados, estendida sobre a planície seca, lisa até ao infinito. De súbito, como um riso
que se estanca apavorado, o som cessou, ficando no ar uma inquietação vaga, um terror
de vida suspensa. A luz espalha-se para o fundo, como uma nódoa que se alastra e come
a treva; subia pelas coisas, descia, esbranquiçada, mole e a flutuar, esparralhada... Num
soluço de claridade senti que alguém vinha: não podia olhar, voltar-me, encerrado na
prisão da minha capa de pedra. Fazia esforços para mexer um dedo, um dedo apenas.
Dizia-me: — Estou a sonhar! Estou a sonhar, sossega! — e parecia-me, que, enfim,
como quem ergue uma torre, conseguira abrir uma fresta de pálpebra, pois que, mar
represo que encontra saída, um esguicho daquela mesma luz esbranquiçada se me
precipitara com ruído no crânio... E outra vez me beijaste. Tenho-o na boca, o teu beijo
delicioso e gelado.
Poema 1
CAMINHO
CAMINHO
III
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Esmaiece na messe o rumor da quermesse...
- Não ouves este ai que esmaiece e esmorece?
É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos...
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Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves
Suaves...
Fontes impressas:
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix,
1997.
__________. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1994.
SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 16. ed.
Porto: Porto Ed., [s.d.].
Fontes eletrônicas:
http://www.mensagenscomamor.com/poemas-e-poesias/poemas_antonio_nobre.htm
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/portugal/camilo_pessanha.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/eug01.html
PROPOSTA DE REFLEXÃO
1. Após a leitura do primeiro excerto teórico (pp. 4-5) e da leitura atenta dos poemas de
Camilo Pessanha, Eugénio de Castro e de António Nobre (ACIMA), comente e
demonstre algumas características simbolistas em cada um dos poemas.
2. “... sob a rubrica de simbolistas enfeixavam-se poetas de várias tendências, algumas
delas contraditórias, suficientes para nos dar a ideia de que o Simbolismo não constituiu
um movimento nem uniforme nem estático, nem dirigido como foi o Realismo: à mercê
dos individualismos mais diversos e das oscilações estéticas e filosóficas do tempo, foi
vário e múltiplo em qualquer estágio de sua evolução. De tal forma que os poetas
portugueses receberam o nome de ‘nefelibatas’, isto é, de pessoas que andam nas
nuvens, e o nefelibatismo tornou-se uma espécie de adaptação portuguesa ao
Decadentismo e do Simbolismo francês”. Esse trecho, extraído de A literatura
portuguesa, de Massaud Moisés (pp. 261-262), caracteriza o Simbolismo em Portugal.
No poema X, de Eugénio de Castro, o nefelibatismo é bem evidente. Aponte os
versos/as estrofes em que isso fica claro.
3. Leia o conceito de poesia de Stéphane Mallarmé, poeta simbolista francês: “Nomear
um objeto equivale a suprimir os três quartos de prazer da poesia, que é feito de
adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, eis o sonho”. Como essa máxima se relaciona com
Simbolismo? Tome como exemplos os três poemas lidos nesta ATIVIDADE.
4. “Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade.” Esta é a conclusão melancólica do texto
bíblico “Eclesiastes” (XII, 8), sobre a pequenez das coisas deste mundo. Compare a
citação bíblica e o poema de António Nobre, “Vaidade, tudo vaidade”. Considere a
forma e o conteúdo do poema.
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