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Ana Paula Tavares - a poética do espaço

Figura 1Ana Paula Tavares - foto (...)

© Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske


Por gentileza citar conforme consta no final desse trabalho.  
* Página original JUNHO/2015 | ** Publicação revisada, ampliada e atualizada SET...

Nota: pagina em atualização. Grata!

Alphabeto
Dactilas-me o corpo
de A a Z
e reconstróis
asas
seda
puro espanto
por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem, pequenas
as cicatrizes
- Paula Tavares, em  "Ritos de passagem". Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985,
Cadernos Lavra & Oficina, 55, p. 32.

Ana Paula Ribeiro Tavares (poeta, prosadora e historiadora) nasceu no Lubango, província


da Huíla, Sul de Angola,  em 30 de Outubro de 1952. Passou parte da sua infância naquela
província, onde fez os seus estudos primários e secundários. Obteve o seu bacharelado em
História pela Faculdade de Letras da Universidade de Luanda em 1973. Formou-se em
História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1982, com um Mestrado
em Literatura Africana pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1996.
Doutorada em Antropologia (Etnografia) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, com uma tese intitulada 'História, Memoria e Identidade:
Estudo sobre as sociedades e Lunda e Cokwe de Angola'.

É coordenadora do Grupo de Investigação 2 do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas


e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Culturas e Literaturas e
Culturas Africanas de Língua Portuguesa).

Nos últimos anos tem desempenhado diversas atividades profissionais: foi professora de
História em Angola desde 1973; delegada do Ministério da Cultura no Kwanza-Sul, Angola,
de 1978 a 1980; Técnica Superior do Museu Nacional de Arqueologia, em Benguela,
Angola, de 1980 a 1983; Diretora Nacional do Património Cultural em Luanda, de 1985 a
1987; Diretora do Gabinete Técnico da Secretaria de Estado da Cultura, em Luanda, de
1987 a 1991; Professora Assistente da Universidade Católica
Portuguesa, em Lisboa, de 1994 a 2000, entre outros cargos.

Participou em inúmeros encontros científicos nacionais e internacionais


(conferências, seminários e workshops) e integrou comissões,
nomeadamente a Comissão de Reestruturação da Universidade
Agostinho Neto, a Comissão para a reestruturação do Ministério da
Cultura e para a preparação de uma proposta para a criação do Ministério da Cultura de
Angola e a Comissão para preparação do projeto para fundação de uma Faculdade de
Ciências Sociais em Angola.

É autora de várias publicações científicas e de obras literários, nomeadamente poesia,


crónicas e romance. Foi distinguida com o Prémio Literário Mário António, da Fundação
Calouste Gulbenkian (2004), com o Prémio Nacional de Cultura e Arte, em Literatura
(Luanda, 2007) e com o Premio Internazionalle Ceppo/Pistoia, Firenze (2013).

As suas obras literárias publicadas são: Ritos de passagem (1985), O sangue da Buganvília
(1998), O Lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos
(2003), A cabeça de Salomé (2004), Os olhos do homem que chorava no Rio, em parceria
com Manuel Jorge Marmelo (2005), Manual para amantes desesperados (2007), Como
velas finas na terra (2010).

Participou do filme 'Cartas para Angola' (2011), dirigido por Coraci Ruiz e Júlio Matos. Trata-
se de um documentário notável construído entre os dois lados do Atlântico, focando Brasil,
Angola e Portugal.

“A Huíla desempenhou um papel particular em «termos» de cheiros, sons, cores, canções


que me marcaram muito do ponto de vista estético. Essa era procura. Por outro lado, eu vivi
esse tempo no limite entre duas sociedades completamente distintas – e talvez não tenha
conseguido compreender nenhuma das duas. Por isso tentei reflectir e escrever sobre
partes de uma e partes de outra que me marcaram fundamentalmente. A Huíla, tal qual era
na minha juventude, era o limite entre duas sociedades bem distintas: a sociedade europeia
– é uma cidade com muitas características europeias: uma cidade de planalto, onde faz frio,
e verde... E, por outro lado, uma sociedade africana que era ignorada pela cidade
europeia.” In: Michel Laban. Angola. Encontro com Escritores. Porto, Fundação Eng. António
de Almeida, 1991, II vol. p. 849.

Ao falar sobre a “Literatura angolana no feminino”, Inocência Mata refere-se


à “maturidade que a escrita etnograficamente ritualística de Paula Tavares
expressa... desde o título, passando pela significação do texto pictórico da capa
o macro-poema de cada obra anuncia um intenso lirismos – poesia lírica no
sentido de conter uma experiência individual e uma subjectiva postura mental
perante a realidade do mundo.” Mais adiante a crítica literária diz: “há um apelo
à imaginação, pelo recurso a imagens sinestéticas (Mistura de imagens
sensoriais, como na poesia de Paula Tavares, principalmente na citação de
Figura 33Ana Paula Tavares - foto: Buala

frutos para simbolizar as características femininas)...” In: Inocência Mata. Literatura


Angolana: Silêncios a Falas de Uma Voz Inquieta. Lisboa, Mar Além, 2001, p. 113, 116.

As coisas delicadas tratam-se com cuidado


(Filosofia cabinda)

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
e outro, que me lembre
mal existe

Hoje levantei-me cedo


pintei de tacula e água fria
o corpo acesso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado

Paula Tavares, em "Ritos de passagem". Luanda; União dos Escritores Angolanos, 1985, p.
30-31.

“A lírica de Paula Tavares reunida (incompletamente) em «Ritos de Passagem» coloca, logo


desde esse título, o problema da feminilidade e, com ele, o problema de uma literatura
feminina. Metaforicamente falando nos serve, também, para estudarmos a ‘passagem’ da
literatura ainda formada no regime colonial à de poetas amadurecidos após a independência
do país. Mas, ao apelar para tradições locais (e do Sul, neste caso), o verso da Paula
Tavares reinsere-se clara e assumidamente na linha de cruzamento dos discursos
«ocidentais» (da Europa e Estados Unidos, em primeiro lugar) com os africanos.” In:
Francisco Soares. Notícia da Literatura Angolana. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2001, p. 250.
:: Fonte: União dos Escritores Angolanos/ Pallas Editora / Clepul (acessado em 16.6.2015).

Figura 4Ana Paula Tavares, por Fabiana Miraz de Freitas


Grecco

Perguntas-me do silêncio
eu digo

meu amor que sabes tu


do eco do silêncio
como podes pedir-me palavras
e tempo
se só o silêncio permite
ao amor mais limpo
erguer a voz
no rumor dos corpos

- Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 29.

PRÊMIOS
2004 - Prémio Mário António de Poesia 2004, da Fundação Calouste Gulbenkian, pelo livro
"Dizes-me coisas amargas como os frutos".
2006 - Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, pelo livro "Manual para amantes
desesperados". 
2013 -  Premio Internazionalle Ceppo/Pistoia, Firenze - Itália.
"A oralidade é meu culto. As mães embalam os filhos cantando ou dizendo palavras nas
nossas línguas todas. Se os meus textos puderem ser lidos em voz alta fico muito
contente."
- Ana Paula Tavares, em "A oralidade é meu culto”, entrevista a Ana Paula Tavares, in
AUSTRAL nº 78/ Buala, por Pedro Cardoso. novembro, 2010. (acessado em 16.6.2015).

Figura 5Ana Paula Tavares - foto: (...)

OBRAS DE ANA PAULA TAVARES

Poesia
Ritos de passagem. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985; 2ª ed., Lisboa:
Editorial Caminho, 2007, 70p.
O lago da lua. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Dizes-me coisas amargas como os frutos. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.
Ex-votos. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
Manual para amantes desesperados. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. 
Como velas finas na terra. Lisboa: Editorial Caminho, 2010. 

Crônicas
O sangue da Buganvília. Praia: Centro Cultural Português, 1998.
A cabeça de Salomé. Coleção Outras Margens. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, 144p.

Romance
Os olhos do homem que chorava no rio. [em co-autoria com Manuel Jorge
Marmelo]. Colecção O campo da palavra. Lisboa: Editorial Caminho, 2005.

PUBLICAÇÕES NO BRASIL

Amargos como os frutos. [Poesia reunida].  Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

Meu corpo é um grande mapa muito antigo


percorrido de desertos, tatuado de acidentes
habitado por uma floresta inteira
um coração plantado
dentro de um jardim japonês
regado por veias finas
com um lugar vazio para a alma.
- Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Caminho, 1999, p. 45.

Figura 6Ana Paula Tavares - foto: Júnior Aragão

POEMAS ESCOLHIDOS DE ANA PAULA TAVARES


A Anona
Tem mil e quarenta e cinco
Caroços
Cada um com uma circunferência
À volta

Agrupam-se todos
(arrumadinha)
No pequeno útero verde

Da casca
- Ana Paula Tavares, em "Ritos de passagem". Luanda: União dos Escritores Angolanos,
1985.

A abóbora menina
Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela desaguam todos os rapazes.
- Ana Paula Tavares, em "Ritos de passagem". Luanda: União dos Escritores Angolanos,
1985.

Amargos como os frutos


Amado, por que voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal


a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito

 Onde deixaste a tua voz


 macia de capim e veludo
 semeada de estrelas

Amado, meu amado,


o que regressou de ti
é a tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas

como os frutos. 
- Ana Paula Tavares, em "Dizes-me coisas amargas como os frutos". Lisboa: Editorial
Caminho, 2001, p. 9.

Figura 7Ana Paula Tavares - foto:


(...)

Canto de nascimento
Aceso está o fogo
prontas as mãos

o dia parou a sua lenta marcha


de mergulhar na noite.

As mãos criam na água


uma pele nova

panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar

Uma dor fina


a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças deleite
que o vento trabalha manteiga

a lua pousada na pedra de afiar

Uma mulher oferece à noite


o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas

As velhas desfiam uma lenta memória


que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras

Uma mulher arde


no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.

Esta mulher arde


no meio da noite perdida
colhendo o rio
enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite.
- Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.

Compraste o meu amor...


Compraste o meu amor
Com o vinho dos antigos
Sedas da Índia
anéis de vidro
Sou tua, meu senhor
À segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira
E também preparo funje aos sábados
Não não me peças o domingo
Todos os deuses descansam
E sei também das concubinas
O horário de serviço
- Ana Paula Tavares, em "Como veias finas na terra". Lisboa: Editorial Caminho, 2010.

É sempre à noite que mais dói...


É sempre à noite que mais dói
Dizia-me o amigo
Chega a febre
O cheiro ácido do pântano
O silêncio gelado dos nossos mortos
A presença inquieta dos outros
O lento movimento das dunas
- Ana Paula Tavares, em "Como veias finas na terra". Lisboa: Editorial Caminho, 2010.

Mukai (I)
Corpo já lavrado
equidistante da semente
             é trigo
             é joio
             milho híbrido
             massambala
resiste ao tempo
        dobrado
        exausto

sob o sol
que lhe espiga

 a cabeleira. 
- Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 30.

O cercado
De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó
Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe


quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe


se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado
- Ana Paula Tavares, em "Dizes-me coisas amargas como os frutos". Lisboa: Editorial
Caminho, 2001.

O lago da lua
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
No lago branco da lua
misturei meu sangue e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
o mel dos dias claros.
Neste lago deposito
minha reserva de sonhos
para tomar. 
- Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 11.

Para onde eu vou...


Para onde eu vou
Ferve a luz
Debaixo dos tectos
Há ontem e amanhã
Amores com pele de líquen
Sonhos azuis pelas esquinas
Ali não é preciso nada
Guardamos o lugar
Com palavras
Olhamos uns para os outros
E vamos, cada vez mais pobres
Tapar o sol com a peneira
- Ana Paula Tavares, em "Como veias finas na terra". Lisboa: Editorial Caminho, 2010.
Tratem-me com a massa
“Amparai-me com perfumes, confortai-me com maçãs que estou ferida de amor...”
                                                               Cântico dos Cânticos

Figura 8Ana Paula Tavares - foto:


(...)

Tratem-me com a massa


de que são feitos os óleos
p’ra que descanse, oh mães
Tragam as vossas mãos, oh mães,
untadas de esquecimento
E deixem que elas deslizem
pelo corpo, devagar
Dói muito, oh mães
É de mim que vem o grito.
Aspirei o cheiro da canela
e não morri, oh mães.
Escorreu-me pelos lábios o sangue do mirangolo
e não morri, oh mães.
De lábios gretados não morri, oh mães
Encostei à casca rugosa do baobabe
a fina pele do meu peito
dessas feridas fundas não morri, oh mães
Venham, oh mães, amparar-me nesta hora
Morro porque estou ferida de amor 
- Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 12-13.

Vieram muitos
"A massambala cresce a olhos nus"

Vieram muitos
à procura de pasto
traziam olhos rasos da poeira e da sede
e o gado perdido.

Vieram muitos
à promessa de pasto
de capim gordo
das tranqüilas águas do lago.
Vieram de mãos vazias
mas olhos de sede
e sandálias gastas
da procura de pasto.

Ficaram pouco tempo


mas todo o pasto se gastou na sede
enquanto a massambala crescia
a olhos nus.

Partiram com olhos rasos de pasto


limpos de poeira
levaram o gado gordo e as raparigas.
- Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.

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