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NARRAR
DZIANGA DIA MUENHU, A MODERN AFRICAN WAY OF NARRATING
Estefânia Francis Lopes*
RESUMO: Se por um lado, a forma moderna africana de narrar apresenta extensão e ritmo
pertinentes ao mundo contemporâneo, por outro, exibe, em sua maioria, a tentativa de enraizar-se no
patrimônio tradicional africano. Dessa forma, de identidade híbrida, o conto em África, sem recusar
a herança oral coletiva, acaba por revelar traços particulares de cada escritor do continente, como
buscaremos explanar neste texto por meio de narrativas breves do escritor angolano Boaventura
Cardoso.
Ao permitir-se experiências de forma e estilo, podemos dizer que, a escrita boaventuriana, ao mesmo
tempo que explora caminhos e rompe com a escrita formal de origem europeia, volta-se para o
tradicional angolano a partir do uso de uma linguagem expressiva e próxima da oralidade.
Identificamos também uma interpenetração entre os gêneros conto, crônica e poesia, na coletânea
Dizanga dia Muenhu, primeiro livro do autor, que, com título em quimbundo, demarca a voz de
quem fala e de onde fala.
PALAVRAS-CHAVE: Contos angolanos, Boaventura Cardoso, escrita moderna
ABSTRACT: If on the one hand, the modern form of African narrate presents relevant and extension
to the contemporary world, on the other hand, displays, in your most, attempting to take root in
traditional African heritage. Thus, hybrid identity, the tale in Africa, without rejecting the oral
heritage, turns out to reveal traces of each writer on the continent, as we will seek to explain this text
through brief narratives of the Angolan writer Boaventura Cardoso.
By enabling experiences of form and style, we can say that, writing boaventuriana, at the same time
exploring ways and breaks with the formal writing of European origin, back to the Angolan from the
traditional use of an expressive language and close to orality. Also identified an interpenetration
between the genres, chronic and poetry, the Dizanga dia Muenhu, the author's first book, which,
with title in Kimbundu, demarcates the voice who talks and where talks.
KEYWORD: Angolan tales, Boaventura Cardoso, modern writing
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Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, FFLCH/USP.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5243978433769253
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invenção, diferencia-se do conto oral tradicional, que tem raízes profundas nas culturas
africanas, a que este último comporta o conhecimento exemplar, conserva a harmonia e
a coesão da comunidade e, pela sua invariabilidade, mantém os laços entre as gerações
passadas, os antepassados e os vivos.
A forma moderna africana de narrar apresenta, todavia, em sua maioria, a
tentativa de enraizar-se no patrimônio tradicional africano, lembra a autora ao evocar o
escritor nigeriano Chinua Achebe, em sua antologia African short stories, sobre a
identidade híbrida do conto em África que, sem recusar a herança oral coletiva, acaba
por revelar traços particulares de cada escritor do continente.
A narrativa curta “tem a extensão e o ritmo apropriados” às exigências do
mundo moderno em constante transformação e, por isso, para Afonso, “o conto aparece
como um texto de predileção para exprimir o olhar do escritor africano face a [esse]
mundo” (2004, p. 68), como “um testemunho da degradação das condições de vida e
das relações humanas sentidas pelos povos africanos” (Ibid., p. 69).
Podemos dizer que as narrativas curtas boaventurianas estão mais próximas da
“identidade híbrida” identificada por Chinua Achebe. Ao permitir-se experiências de
forma e estilo, Cardoso, ao mesmo tempo que explora caminhos e rompe com a escrita
formal de origem europeia, volta-se para o tradicional angolano seja a partir de uma
“pesquisa intensiva de uma linguagem próxima das potencialidades da fala”
(MARTINHO, 2005, p. 135), ou ao “pôr uma história”, como o narrador de “Nostempo
de miúdo”, retomando e recriando na escrita valores referentes à oralidade.
Há uma polifonia constante nesse conto, que inicia in media res na voz do
locutor, dos meninos e da torcida. Mais adiante, no quinto parágrafo, sabemos se tratar
de um narrador que narra em primeira pessoa a experiência vivida dos tempos de
miúdo, no ano de 1961, quando havia toque de recolher para os habitantes da terra,
como marca o recorrente “sessenta e um quente”, e decide “pôr a história”: Gente de
paz, a pedido de seus interlocutores,
Traquinice no tempo das férias? Eh! Se vos conto, me pagas quê então? Bem.
Era uma vez…, não me lembro mais. Ih! Não faz mais truques, pá. Conta lá,
pá. Gente de paz, é a história que vou pôr. Aconteceu nos tempos das
confusões um dia, palavra d’honra. Ninguém si ri. (CARDOSO, 1982, p. 28,
grifos do autor)
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(SECCO, 2005, p. 108). Publicada no pós-independência a primeira edição da coletânea
é de 1977, pelas Edições 70, e a quarta edição, de 1988, pela União dos Escritores
Angolanos (UEA). No Brasil, há uma publicação de 1982, da Editora Ática, na coleção
Escritores Africanos, coordenada pelo professor Fernando Mourão.
Assim, parte dos contos foi escrito no período colonial em Angola, “período
marcado pela imposição do colonizador e a negação do homem angolano em sua
dignidade” (CAETANO, M., 2000, p. 102). Ainda segundo Marcelo Caetano, o escritor
Boaventura Cardoso,
Como homem das letras, contradiz radicalmente a escritura lusitana […] a
inserção crítica (e desconstrutiva) de imagens e mensagens do sistema
colonial rompe com a organização concêntrica ocidental, ao interromperem o
ordenamento estético, literário e político europeu. (Ibid., p. 102)
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primeiro parágrafo do conto, o ritmo provém da repetição do som do s reiteradamente,
bem como a rima em “-inho” e “-ão” na sílaba final de algumas palavras:
Senhora na porta aberta Sol rindo, gesticula só. Cabeça remoinho de
confusão vive. Bastião na sala sozinho só na admiração dos quadros de
Picasso sem que percebe nada. Traços, brincadeira kandengue [infantil]
parecem, quem vai mesmo dizer aquilo é pintura nas mãos de mais-velho?
(Ibid., p. 31, grifos nossos)
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sente desconfortado ali, o hábito não tem. Porcaria só, no kamusseque dele
Cazenga adonde saíra zunindo. Miséria nas casas dentro e fora também é
mundo, mas a esperança duma vida outra está crescer crescendo, crescendo
risos na boca e nos olhos. (Ibid., p. 31, grifos nossos)
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Ao refletirmos um pouco mais sobre a estrutura do conto boaventuriano
identificaremos alguns aspectos, levantados por Julio Cortázar (2004), como noções de
significação, de intensidade e de tensão; da profundidade e da noção de limite
condensados em uma imagem ou em um acontecimento que ganha densidade a partir do
tratamento literário dado pelo autor. Somados às questões formais, os assuntos presentes
nos contos revelam tensões forjadas na narrativa a partir de “captação de flagrantes” no
cotidiano dos angolanos. Aproximando-se, desta forma, do gênero crônica, como aponta
Maria Aparecida Santilli (2005, p. 128),
Desde logo me havia parecido que os contos de Dizanga dia Muenhu (A
lagoa da vida) marcam-se como instâncias de captação de flagrantes. Cenas
densas, deslocamentos breves, algumas alterações de quadros bastam para
Boaventura Cardoso forjar um texto. São, por excelência, contos de situação,
em que outras matérias de mais largos enredos aí se põem no plano de
reserva, do potencial que, na estreita dimensão do conto, não cabe extensiva
ou ostensivamente mostrar e dizer. São textos que frequentemente se
constroem nas fronteiras da crônica.
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Como evidencia o excerto a seguir,
Palavrosamente as quitandeiras caçoaram a mulher da Baixa, desaparecendo.
Nos kimbundos delas escondiam toda a fúria contra o colonialismo que não
podiam falar na língua da senhora abertamente. Anos de opressão se
transformavam em liberdade nas falas quimbundas.(CARDOSO, 1982, p. 26)
Como observa Laura Padilha (2007, p. 211), Cardoso sabe ouvir os mais-
velhos e explicita “a ‘fonte’ de onde emana o contar letrado angolano e, nele, o seu, em
especial”:
Fiéis à cultura banto, na forma de conceber o texto oral e de o narrar,
assumimo-nos como o contador africano, na sua exuberante expressividade
dramatizadora, na sua preferência pela linguagem-espetáculo, tornando-a
uma polifonia de linguagens idiomáticas, gestuais, de imitação de sotaques de
personagens, dos seus estados de espírito. (CARDOSO, 2004 apud
PADILHA, 2007a, p. 212)
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