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UNIVERSIDADE DA SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

Disciplina: FLC0177 – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa II

Profa. Dra. Rosangela Sarteschi

Escolha uma entre as duas questões propostas:

Questão 1:

1. Antigos e fortes como podemos notar, os laços estão vincados, materializando-se na condução
da História, na formação cultural e na fisionomia viva das gentes que habitam esses dois lados do
Oceano Atlântico. Iniciadas sob a égide da violência, as relações entre o Brasil e os países africanos
moveram-se também por outras águas, cuja dinâmica requer atenção para que se compreenda
melhor também a complexidade dos canais identitários que nos ligam. E, para a compreensão mais
funda de toda essa situação, afirmamos que a leitura das Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa pode ser um caminho para se perceber que as rotas inauguradas pelo tráfico
instauraram vias de mão dupla, que foram revitalizadas pelos escritores africanos desde o século
passado. A partir de seus textos, pode-se depreender o que eles não hesitam em confirmar em
entrevistas e depoimentos: a força do Brasil como uma das matrizes da utopia que seria
fundamental na formação da consciência nacionalista que aqueceu as lutas de libertação nos
países de língua portuguesa.
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique – Experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2005, p. 265/266

2. […] o papel exercido pela literatura brasileira no processo de formação dos sistemas literários
dos países africanos de língua portuguesa deve ser examinado de forma a ressaltar as tensões,
escolhas e projetos que recobrem questões como a do sistema de produção colonial, as relações ali
engendradas e a da literatura nacional.
[...]
Ocorre que sob o sistema colonial a tradição é fraturada, na medida em que na lógica colonial a
existência de um sistema literário autônomo, do colonizado, significaria não apenas uma maneira
própria de representação de si e do outro, a negação dos modelos tecno-formais da literatura da
metrópole mas, principalmente, a negação do domínio colonial. Nesse sentido, a formação dos
sistemas literários dos países africanos de língua portuguesa articular-se-á, necessariamente ao
projeto de nação [...]
(MACÊDO, Tania. A presença da literatura brasileira na formação dos sistemas literários dos países
africanos de língua portuguesa. São Paulo: Via Atlântica 13, 2009, pp. 123-152.

3. Data de muito tempo o diálogo poético estabelecido entre as literaturas africanas de língua
portuguesa e a literatura brasileira. No entanto, só a partir do final da década de 1940 que esse
diálogo adquire maior intensidade. E isso se dá em decorrência, sobretudo, dos anseios que
passam a nortear o fazer dos poetas africanos, os quais, naquele momento, encontravam-se
empenhados em preencher os vazios provocados pelo processo de desterritorialização
implementados pelo sistema colonizador, por meio do qual sua língua, suas matrizes míticas e
seus costumes foram rechaçados e substituídos impositivamente pelos da cultura alheia. Esta é a
razão pela qual eles de identificaram com as propostas dos modernistas brasileiros de reagirem,
de modo sistemático, aos paradigmas socioculturais vigentes, calcados no quadro de referências
1
herdadas da cultura colonizadora. Como Oswald de Andrade, eles sentiram a necessidade urgente
de transformar o tabu em totem, ressacralizar o que fora dessacralizado e transformar, portanto, o
valor oposto em valor favorável.
Assim motivados, iniciaram um processo de reencontro com sua terra, com seu povo, enfim, com
eles próprios, criando, segundo, Manuel Ferreira, “sua razão de ser na expressão das raízes
profundas da realidade social nacional entendida dialeticamente”(Ferreira, s/d., p.33).
Valorizar, naquele momento, o local, o cotidiano, como o fizeram os modernistas brasileiros – e,
dentre eles, Manuel Bandeira -, foi para os poetas africanos uma forma de, por meio do registro da
singularidade, assinalar a sua diversidade no concerto das nações, sobretudo das nações de língua
portuguesa. Afinal, valorizar o cotidiano é pressuposto básico para a existência de qualquer
cultura.
(DANTAS, Elisalva. “África-Brasil – entrelaces poéticos” In: SECCO, SALGADO & JORGE (org). África,
escritas literárias; Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ/UEA, 2010, p. 223

Escolha pelo menos dois poemas para análise e problematização


comparativa a partir de, pelo menos uma, das reflexões acima. Não
esqueça de apontar os diálogos com o Brasil.
Poemas

a. Canto de Farra

Quando li Jubiabá
Me cri António Balduíno.
Meu primo, que nunca o leu,
Ficou Zeca Camarão.
Eh, Zeca!

Vamos os dois numa chunga


Vamos farrar toda a noite
Vamos levar duas moças
Para a praia da Rotunda!
Zeca, me ensina o caminho:
Sou António Balduíno!

E fomos farrar por aí,


Camarão na minha frente.
Nem verdiano se mete:
Na frente Zé Camarão,
Balduíno vai no trás.

Que moça levou meu primo!


Vai remexendo no Samba
Que nem a negra Rosenda:
Eu praqui olhando só!

Que moça que ele levou!


Cabrita que vira os olhos.
Meu primo, rei do musseque:
Eu praqui olhando só!

Meu primo tá segredando:


Nossa Senhora da Ilha
Ou que outra feiticeira?
2
A moça o acompanhando.

Zé Camarão a levou:
E eu para aqui a secar
E eu para aqui a secar.

ANTONIO, Mario. “Canto de Farra” publicado primeiro em CHINGUFO (p. 21), e


depois nos 100 poemas (p. 46), com data de 1952.

b) Castigo p’ro comboio malandro

Esse comboio malandro


passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

o comboio malandro
passa

Nas janelas muita gente:


ai bô viaje
adeujo homéé
nganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda p'ra vender

hii hii hii

aquele vagon de grades tem bois


múu múu múu

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato.

Tem bois que morre no viagem


mas preto não morre
canta como é criança:
Mulondo iá Késsua uádibalé
uádibalé uádibalé uádibalé...
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
3
Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
já queimou o meu milho,

Se na lavra do milho tem pacaças


eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem quiombos
eu tiro a espingarda de quimbundo
e mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
- deixa! -
ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo, muito fumo mesmo.
Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos para empurrar
eu vou
mas não empurro
- nem com chicote -
finjo só que faço força
Comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho.

JACINTO, António “Castigo p’ro comboio malandro”. Boletim CEI. Mensagem,


Ano III, 1960, pp. 25/27

c) Metamorfose
Ao Poeta José Craveirinha

quando o medo puxava lustro à cidade


eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade

os jacarandás explodiam na alegria secreta de serem vagens


e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa

a Mãe não era ainda mulher


e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e a metáfora
mas agora morto Adamastor

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tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze

as rótulas já não tremulam não e a sete de Março


chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia
de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando
a natureza e o chão no parnaso das balas

falemos da madrugada e ao entardecer


porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo

enquanto os tocadores de viola


com que latas de rícino e amendoim
percutem outros tendões da memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho

das crianças que olham os casacos e riem


na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
AOS GRITOS

PATRAQUIM, Luís Carlos. In: Antologia Poética. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011, pp.
18-19

d) Poema para Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra.


C.D.A.
É útil redizer as coisas
as coisas que tu não viste
no caminho das coisas
no meio de teu caminho.

Fechaste os teus dois olhos


ao bouquet de palavras
que estava a arder na ponta do caminho
o caminho que esplende os teus dois olhos.

Anuviaste a linguagem de teus olhos


diante da gramática da esperança
escrita com as manchas de teus pés descalços
ao percorrer o caminho das coisas.

Fechaste os teus dois olhos


aos ombros do corpo do caminho
e apenas viste apenas uma pedra
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no meio do caminho.

No caminho doloroso das coisas.

MAIMONA, João. “Poema para Carlos Drummond de Andrade”. In: Quando se ouvir os
sinos da semente, 1993
Questão 2:

1. A identidade negro-brasileira mira também o amanhã, por conta de ser animada por um
ímpeto renovador. Ela opera para deixar de ser o que foi forçada a ser para tornar-se uma
dimensão liberada, um território conquistado no campo da cultura e do imaginário
nacional, em que as premissas racistas sofrerão contínuos ataques poéticos visando à
reversão de suas mentiras impostas como verdades desqualificadoras dos atributos físicos
e culturais da população negro-brasileira (CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo:
Selo Negro, 2010, p. 103).

2. Assim, a literatura negra se constrói não como um discurso da gratuidade, ou


unicamente da realização estética, mas para expressar a consciência social do negro.
Nesta medida, a literatura negra se aproxima da linguagem mítica que recupera a
origem e narra a emergência do ser. Como o mito, a literatura negra também nasce da
ruptura que se cria entre o homem e o mundo, originando-se do esforço de superar essa
fragmentação. Ao recordar o que foi esquecido, ela recupera o mundo perdido (BERND,
Zilá. O que é negritude. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 53).

3. Quanto a nós brasileiros, será produtivo repensarmo-nos, hoje, pela imagem que, de
nós, a nós retorna do outro lado do Atlântico, do outro nicho de transformações culturais
nas quais as nossas transformações culturais vieram a se implicitar.
Por outro lado, em vez de enfatizarmos a simples contiguidade dos fenômenos culturais –
mais especificamente os literários, e da poesia – parece fecundo concentrarmo-nos nas
variações que certos protótipos de nossa comum ancestralidade viriam gerar. (SANTILLI,
Maria Aparecida. Paralelas e Tangentes – entre literaturas de língua portuguesa. São Paulo:
Arte & Ciência, 2003, p. 138.

Escolha pelo menos dois poemas da seleção abaixo para análise e


problematização comparativa a partir de, pelo menos uma, das
reflexões acima.

Poemas

a. Genegro
(intertextualidade intencional com o poema de Solano Trindade “Quem tá gemendo”)

Gemido de negro
Não é poema
é revolta
é xingamento
É abismar-se

Gemido de negro
é pedrada na fronte de quem espia e ri
É pau de guatambu no lombo de quem mandou dar
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Gemido de negro
é acampamento de sem-terra no cerrado
É o punho que se fecha em black power

Gemido de negro
é insulto
é palavrão ecoado na senzala
É o motim a morte do capitão

Gemido de negro
é a (re)volta da nau par ao Nilo

Gemido de negro....
Quem tá gemendo?
ALVES, Miriam. “Genegro” In: Cadernos Negros 25, 2002, p. 124.

b) Quem tá gemendo?
Quem tá gemendo
Negro ou carro de boi?
Carro de boi geme quando quer.
Negro, não.
Negro geme porque apanha.
Apanha pra não gemer...

Gemido de negro é cantiga


Gemido de negro é poema...

Geme na minh’alma,
A alma do Congo,
Do Níger da Guiné,
De toda África enfim...
A alma da América...
A alma Universal...

Quem tá gemendo?
Negro ou carro de boi?

TRINDADE, Solano. “Quem tá gemendo?” In: Poemas antológicos, São Paulo:


Nova Alexandria, 2008, p. 158.

c) Terra Minha
“Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá”
Gonçalves Dias

Quando eu te reconheci,
havia um rio entre nós,
desde então sigo cantando
no leito da tua voz.

Quando eu te reencontrei,
já era marcado a ferro,

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sem ao menos perceber
o poder do próprio berro.

Passa por mim esse slide


como um cinema secreto,
como se dessa paisagem,
fosse meu próprio alfabeto.

Me lanço por entre mares,


por caminhos que nem sei...
para no fim retornar
ao ponto que iniciei.

Mesmo listando ao presente


as memórias do futuro,
acabo por te encontrar,
cada vez que me procuro.

MARANHÃO, Salgado. “Terra minha” In: A cor da palavra. Rio de Janeiro: Imago e
Fundação Biblioteca Nacional, 2009, p. 180.

d) Cravos vitais

escrevo a palavra
escravo
e cravo sem medo
o termo escravizado
em parte do meu passado

criei com meu sangue meus quilombos


crivei de liberdade o bucho da morte
e cravei para sempre em meu presente
a crença na vida

CUTI. “Cravos vitais” In: Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 38.

e) Luanda

ou por que uma cidade habita num homem

Os homens são banidos de sua terra e tornam


com o tempo mais velho: são homens crescidos
e sua vontade revendo a árvore que o vento
concebeu em suas ausências: um oceano não adia
um homem de sua árvore e a experiência que o
amplia ensina-lhe a orientação do mundo.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. “Luanda” In: CHAVES, Rita, SECCO, Carmen & MACÊDO,
Tania (org). Brasil África – como se o mar fosse mentira. São Paulo: Ed. Unesp, Luanda:
Edições Chá de Caxinde, 2006, p. 430.

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