Você está na página 1de 6

TRABALHO A PARTIR DO SARAU

Poema: Os Escravos, de Manuel de Lima.

Aluna: Rosana da Costa Aniceto Guerra

É lindo de ver como a cultura africana vem tomando o lugar que lhe é de
direito dentro das escolas brasileiras, ainda que timidamente. A Base Nacional
Comum Curricular (BNCC, 2018), orienta que a prática de leitura de obras
africanas e afro-brasileira devem ocupar um espaço no Ensino Médio. Nada mais
justo uma vez que a história do Brasil e da África estão entrelaçadas, não pela
forma que gostaríamos uma vez que o início desse entrecruzar tenha acontecido
de forma deplorável através da escravidão.

Nas escolas brasileiras sempre se estudou poetas brasileiros e por aqui


temos o nosso poeta dos escravos, Castro Alves. Em seus versos, o autor
buscou retratar as consequências humanas da escravidão, amoldando o seu
discurso à luta abolicionista. Em muitos de seus poemas o poeta mostra ao
Brasil, de forma impactante, a realidade da época da escravidão, todo o
sofrimento, toda a dor, e quão desumano era o regime. Navio Negreiro é
considerada a obra mais chocante do autor, ela mostra a realidade dentro dos
navios que transportavam escravos.

Em tese, estuda-se a questão da escravidão ou até mesmo textos que


falam sobre a negritude, na maioria das vezes, através da lente de autores
brasileiros, comumente brancos. Doravante, vamos transportar para uma arte
feita por um autor que está do outro lado – Manuel de Lima.

O autor angolano, Manuel de Lima, nasceu em 1935 na província de Bié


e ainda na adolescência seu pai o enviou para Portugal para que pudesse
estudar. Em Lisboa licenciou-se em direito e posteriormente doutorou-se em
Letras na Suíça. Já residiu em Portugal, França, Canadá, e no Brasil. No poema
abaixo, o autor usou a força das palavras para dar voz a dor de um povo que por
muito tempo se calou, o seu povo:
Escravos
de Manuel Lima

Os homens acharam-se de peito


ao relento,
sem terra,
sem caminho,
sem destino,
homens sozinhos
acorrentados no terreiro
com os caminhos incógnitos do universo
traçados nos rostos atónitos,
homens de peito
ao relento,
quissanjes dispersos
nas insónias do mar.

Vale reverberar que o escritor Manuel de Lima, embora tenha nascido


muitos anos depois da escravidão, tenha vivenciado o seu país em guerra, ou
seja, o povo ainda em sofrimento. A autoria do poeta, “Os Escravos”, insere-se
no ciclo da negritude e dialoga sobre a condição do negro e da riqueza cultural.

A condição do negro vai sendo desenhada em todo o poema - “ Os


homens acharam-se de peito ao relento, sem terra, sem caminho, sem destino,”
nesses versos, observam-se a repetição da palavra “sem” indicando privação da
terra, do caminho e do destino. “Homens sozinhos acorrentados no terreiro”, já
é uma imagem que alude à escravidão. Enquanto que no fragmento, “homens
de peito ao relento, quissanjes dispersos nas insónias do mar.” Sugere que esse
homem disperso nas insônias do mar é um homem que não reconhece a terra
onde habita, denotando outros sacrifícios, ele está espalhado pelo mar, perdido
nas insônias. Insônia não é algo bom, ela pode ser causada por preocupações,
por medo e por angústias, ou seja, esse homem está sofrendo.

A riqueza cultural está sinalizada no verso doze do poema através da


palavra “quissanjes”. De acordo com a Wikipedia,
“o kisanji ou quissanje é um instrumento musical angolano, mais
precisamente um lamelofone, sendo classificado nos idiofones.”
A evocação desse instrumento que era tocado em rituais africanos fica
responsável por conectar à riqueza cultural que o eu lírico vivia antes do
momento de dor e humilhação à lembrança que restou, e esse referido som que
outrora embalava momentos felizes, agora embala “homens de peito ao relento”
que estão como quissangens dispersos pelo mar.
O mesmo passado histórico entoado por Castro Alves, poeta brasileiro, é
retratado por Manuel Lima, poeta angolano anos depois, não deixando o mundo
esquecer que esse evento desumano e cruel aconteceu e nas entrelinhas,
advertindo para as consequências que são perceptíveis mesmo tendo passado
mais de um século da escravatura. A pobreza e a discriminação que afetam os
negros que foram deixados à margem da sociedade, em muitos casos, são um
reflexo direto do preconceito.
Levando em consideração que o texto literário nunca é ingênuo, leva o
leitor a criticidade, infere-se que a leitura de Literatura Africana pode ser um
importante mediador entre culturas e identidades, despedaçando muitos
preconceitos e arquétipos que, historicamente, estão incrustados na sociedade.
O autor Antonio Candido, disserta sobre a literatura como direito de todos:

Entendo aqui por humanização o processo que confirma no homem aqueles


traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição
do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções,
a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A
literatura desenvolve em nós uma quota de humanidade na medida em que
nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante. (CANDIDO, 1995. p. 249).

Nesse sentido, a inter-relação entre literaturas e culturas, contribui para a


percepção da complexidade do mundo mencionada por Candido. Manuel de
Lima escreveu sobre a mesma temática de Castro Alves anos depois, deixando
ao leitor a visão do negro sobre esse período de desumanização de um povo,
ofertando a possibilidade de conhecer os dois lados da história.
Ressalta-se que o estudo dessa literatura não deve ter apenas um viés de
raça e etnia, o texto precisa ser discutido como qualquer outra literatura, juntando
todos os elementos, mas priorizando o texto. Anos de colonização e
branqueamento cultural causaram um desvio eurocêntrico, favorecendo a
literatura brasileira e portuguesa, esquecendo-se das literaturas africanas que
também são de língua portuguesa. O momento agora é para correção desse
desvio que de certa forma vai resultar em enriquecimento cultural.
Referências:

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1995, p. 235-263.

LIMA, Manuel. Escravos. In: FREUDENTHAL, A.; MAGALHÃES, B; PEDRO H.;


PEREIRA, C. V. (Orgs.). Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do
Império 1951-1963. Angola; S. Tomé e Príncipe. I Vol. Lisboa: UCCLA
(União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa), 2014. p. 225.

Poesía Africana. Antônio Miranda, jan. de 2009.


<http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/angola/manuel_guedes_d
os_santos_lima.html> Acesso em: 11 de jul. de 2022.

TOPA, Francisco; VISHAN, Irena (coord.). Manuel dos Santos Lima, Escritor
Angolano Tricontinental. <https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/17371.pdf >
Acesso em: 11 de jul. de 2022.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Kisanji

“A literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato que escreva sobre a sua
raça dentro do significado do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo
os problemas que a concernem: religião, sociedade, racismo. Ele tem que se assumir como
negro.”

Ironildes Rodrigues

“[...] será negra, em sentido restrito, uma literatura feita por negros ou descendentes
assumidos de negros, e, como tal, reveladora de visões de mundo, de ideologias e de modos
de realização que [...] se caracteriza por uma certa especificidade, ligada a um intuito claro
de singularização cultural.”

Domício Proença Filho

https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/17381.pdf

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/angola/manuel_guedes_dos_santos_lim
a.html

Você também pode gostar