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A Baixada
Fluminense e
a Ditadura na
Baixada
Resenha de SALES, Jean; FORTES,
Alexandre (Orgs.). A Baixada
Fluminense e a Ditadura Militar:
movimentos sociais, repressão e
poder local. Curitiba: Editora Prismas,
2016. 304p.

Gabriel d o Nasci mento Si l v a


Graduado em História pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ), mestre em História política pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), doutorando
em História pela UFRRJ e professor das redes estadual de
ensino do Rio de Janeiro e municipal de Seropédica
gabrielrural@me.com

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Em abril de 1964, os militares chegaram novamente ao poder político no


Brasil. A denominação dessa “chegada” como um golpe parece hoje ser con-
senso, salvo em alguns hilários personagens políticos que buscam se pro-
mover e angariar votos dos setores mais reacionários da sociedade à custa da
polêmica insustentável na defesa de uma revolução, em 1964. Já a caracte-
rização do período que perdurou vinte e um anos é um debate árduo, entre-
tanto, provavelmente, não muito interessante para quem se preocupa mais
com as agências humanas no tempo e no espaço. A produção coletiva orga-
nizada pelos professores do Instituto Multidisciplinar em Nova Iguaçu da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Jean Sales e Alexandre Fortes,
intitulado A Baixada Fluminense e a Ditadura Militar, caminha pela segunda
perspectiva citada.
Publicado em 2016, pela editora Prisma, a obra conta com a con-
tribuição de oito pesquisadores que trilham suas carreiras acadêmicas pela
afirmação da Baixada Fluminense como locus de produção de conhecimento
histórico tanto do local, como desta localidade em relação ao global. Neste
sentido, não elucidam fatos isolados ou descolados da realidade nacional.
Trabalham com a importância da Baixada, ou a especificidade dela, dentro do
contexto mais geral da política brasileira. São artigos resultantes das disser-
tações e teses dos autores defendidas recentemente, o que nos coloca frente à
procedimentos teórico-metodológicos modernos e diversificados. Os temas
enunciam a riqueza histórica da região, pois não se resumem simploriamen-
te à disputa entre governo de um lado e oposição e resistência de outro.
Contudo, ao pensarmos no conjunto dos diversos capítulos que
compõe esta obra, aquele debate sobre a denominação do período nos acen-
de mais uma vez no pensamento. O próprio livro, tendo como horizonte a
Baixada Fluminense, nomeia a paisagem como uma Ditadura Militar. Ape-
sar disso, na grande parte dos textos, percebermos as movimentações civis,
quando não sustentando politicamente os militares, no caso, por exemplo,
das famílias Abraão e Sessim, em Nilópolis, ao menos se rearticulando em
função deles, como no caso exemplar da rotatividade política local, em Nova
Iguaçu. Para além de incorrer nessa batalha conceitual, que mais interessa
ao purismo dos cientistas políticos, difícil não concordamos, no mínimo, que
esses vinte um anos foram muito claramente um regime político de exceção
no país. Ainda que seja possível haver elementos de comparação, não apenas
com outras regiões, mas até com outras temporalidades na história do Brasil,
mesmo assim, este foi um momento bastante singular e distinto. Em tem-
pos de exceção, novas articulações, alianças, estratégias, resistências e mais

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uma série de outros aspectos são almejados em prol da sobrevivência política


de qualquer sujeito dessa história. De uma forma geral, todos os diferentes
capítulos, que versam sobre os mais variados temas da Baixada Fluminense
na Ditadura Militar, acabam convergindo para a compreensão de como este
regime de exceção provocou a necessidade de reorientação e reorganização
de seus agentes, movimentos, partidos, sindicatos e instituições. Justamen-
te por isso, também, são histórias profundamente marcadas pelas disputas
no campo político.
Embora haja bastantes ressalvas ante à possibilidade de se analisar
uma dita historiografia da Baixada Fluminense, fato é que este livro se co-
loca numa importância ímpar para o alargamento da historiografia sobre a
Ditadura Militar, no que concerne ao entendimento pormenorizado de como
se operou, na prática, no cotidiano e na realidade concreta dos indivíduos, os
diferentes vetores da macro política brasileira. Para a região estudada, este
foi um período crucial de estruturação de forças e modelos que, impressio-
nantemente, ainda se encontram em total vigência no atual cenário político,
mesmo com especificidades tingidas ao longo da Nova República. Chega-
-se ao ponto de termos, em algumas cidades, os mesmos personagens e as
mesmas referências políticas. Evidente que este quadro presente desperta o
olhar atento ao seu processo de construção, o que também justifica, em par-
te, esta predominância do entendimento pelo campo político nos diferentes
autores da obra.
Uma exceção se encontra no primeiro capítulo de Felipe Ribeiro, por-
que busca uma articulação entre o social e o político para compreender a re-
lação imbricada do mundo rural e urbano nas memórias dos trabalhadores
em Magé. Há, em sua narrativa, um sentido apurado das análises que supera
a dicotomia clássica entre espaços geográficos tradicionalmente observados
de formas distintas. Além de iluminar ações e resistências dos trabalhadores
diante da perseguição e repressão da ditadura, também trabalhou com os diá-
logos e articulações desses personagens com suas lideranças. Aqui reside um
fato que merece destaque, pois resgata a atuação política de uma personali-
dade emblemática, tanto do senso comum, como de uma certa bibliografia
especializada no tema da violência na região: Tenório Cavalcante. É bastante
sintomática a forma como outras produções procuraram resumir toda a sua
carreira política à ação violenta. Tal fato causa até constrangimento ao per-
cebermos, por Felipe Ribeiro, que tempos antes do golpe de 1964, ele teria
se aproximado inclusive dos comunistas. Longe de se afirmar uma ligação
ideológica, afinal se tratava mais adequadamente de possibilidades eleito-

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rais para Tenório, todavia, empobrece e estigmatiza a região resumir toda


sua linha de ação à assassinatos ou atentados, ainda que estes tenha existido
conjuntamente. O que se entende melhor com o autor são outras diversas
maneiras de agência política de Tenório que, não necessariamente, eram uma
afirmação pelo uso indiscriminado da violência como estratégia política.
A questão da memória dos trabalhadores, suscitada pelo autor na sua
construção narrativa, revela uma separação entre os camponeses e operá-
rios. Os dois grupos têm visões distintas em relação ao saudosismo de qual
período seria o de uma organização mais aguerrida e combativa. Interessan-
te é notar que o marco para a distinção desses momentos nos dois grupos é o
mesmo: o golpe de 1964. Essas memórias, para além de demonstrar as proje-
ções do presente ao passado, foram analisadas para a produção do conheci-
mento histórico ao serem cruzadas com informações advindas dos jornais e
até documentos oficiais da Câmara Municipal de Magé.
O capítulo seguinte pertence a Abner Sótenos. Sua história política
analisa, em especial, o movimento associativo de bairros pelo olhar da co-
munidade de informação e da comunidade de segurança durante o que ele
aludiu como distensão da Ditadura Militar. Ao que se depreende de sua nar-
rativa, o citado movimento associativo, denominado na época de MAB (mo-
vimento de amigos do bairro), surge a partir da própria documentação ofi-
cial desses aparelhos repressores dos militares. Uma vez tendo o governo se
mobilizado para desarticular as comunidades de segurança e informação, na
segunda metade da década de 1970, começaram a efervescer, na sociedade,
os novos movimentos sociais. Nessa conjuntura, os militares da «linha-du-
ra», conforme denomina o autor, agem no sentido de demonstrar os poten-
ciais subversivos daqueles movimentos, até como uma legitimação de sua
própria existência repressora. No caso da Baixada Fluminense, os militares
estiveram na espionagem sistemática do MAB e, por consequência, da Dio-
cese de Nova Iguaçu, em especial a Pastoral Operária. É importante salientar
que, pela pesquisa feita por Abner Sótenos, a ideologização comunista do
MAB seria resultado dos estreitamentos do movimento com os religiosos
provenientes da Pastoral Operária. Superando, evidentemente, a visão que
os militares possuíam do processo vivido na abertura política, o autor traça
outro entendimento sobre as relações entre diocese e movimentos sociais,
considerando a Igreja como um advento construído sob os novos tempos do
Concílio Vaticano II, das conferências de Medellin e Puebla e do desenvolvi-
mento da Teologia da Libertação. Já para o caso específico do MAB, havia nele
qualidades inerentes que se contradiziam com o próprio regime da época,

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fazendo com que as lutas sociais impulsionassem a distensão para a cons-


trução democrática da sociedade brasileira.
Por que a Igreja Católica seria mencionada pela Ditadura Militar
como o elo subversivo dos movimentos sociais? Ainda que não seja exata-
mente esta a questão central do terceiro capítulo elaborado por Alexander
Gomes, seu trabalho ilumina o processo de vinculação entre religião e po-
lítica na diocese de Nova Iguaçu, que tão bem poderia elucidar os motivos
da questão citada acima. Não seria, na verdade, uma descoberta relevante
afirmar apenas que os católicos da Baixada Fluminense influíam sob a polí-
tica por seus preceitos religiosos. Não apenas foi assim tradicionalmente no
Brasil, como ainda é assim em muitas outras partes. A novidade está, antes,
no tipo de visão teológica que amadurece na diocese, o que faz a necessi-
dade de explicitá-la logo como um projeto teológico-político. Contudo, ao
invés de analisar a questão como um processo relacionado a um movimento
de construção coletiva e social por diferentes vetores e escalas de análise, o
autor privilegiou a trajetória e a memória do bispo diocesano Dom Adriano
Hipólito. Logicamente, a centralidade do bispo para nortear as perspectivas
gerais da diocese são essenciais, já que se trata do responsável direto do Papa
pela condução do catolicismo na região. Assim, percebeu-se que a afinidade
política de D. Adriano com as preocupações democráticas da sociedade fez
com que o contexto mais geral, pelo qual passava o catolicismo no mundo,
ganhasse mais ressonância na Baixada do que em outras dioceses, talvez.
Assim, nas análises deste autor, o Concílio Vaticano II, as conferências de
Medellín e Puebla e a Teologia da Libertação são alguns dos marcos essen-
ciais para a compreensão do caráter teológico-político da diocese. Porém, o
traço mais peculiar que também marcou, moldou ideias, práticas e formou
a memória dos católicos foi a relação com a Ditadura Militar. O resultado
dessa relação nada harmoniosa resultou no sequestro do bispo Dom Adriano
Hipólito, em 1976, e o atentado com uma bomba no altar da Igreja Matriz da
cidade de Nova Iguaçu, em 1979.
Na quarta parte, encontra-se as narrativas de Allofs Daniel Batista
sobre as várias sucessões de cargos executivos municipais que ocorreram
logo após a instauração da Ditadura Militar. Num espaço curto de tempo,
onze prefeitos se substituíram em apenas onze anos, de 1964 a 1975. Talvez
esta seja uma das partes mais reveladoras do quanto um regime de exceção
pode desnortear até antigas lideranças experientes. No geral, pela leitura,
não se depreende alguma linha que atravesse de forma uníssona os motivos
pelos quais os prefeitos eram cassados ou depostos. Foi trabalhado mais a

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instabilidade e a ausência de uma normalidade que não permitia a criação


de um modus operandi do jogo político. Diferentes acusações de corrupções
poderiam levar a câmara de vereadores a cassar um prefeito. Talvez seja im-
portante salientar que o autor buscou analisar uma cultura política de uma
determinada elite política. Por conta deste horizonte teórico sobre entendi-
mento político, esquivou-se de observar como outros grupos, ou mesmo a
sociedade em si, vivenciam todo este processo. Por essas questões teóricas,
não houve maiores pesquisas além dos próprios anais da câmara de vereado-
res e do jornal Correio da Lavoura.
O quinto capítulo, de Luiz Bezerra, trabalha com as relações entre
contravenção, escola de samba e ditadura militar. Mais uma vez estamos
de frente com uma pesquisa que, além de enriquecer o conhecimento so-
bre como os militares articularam seu poder na prática política para fun-
damentar sua hegemonia na sociedade, supera, enormemente, a produção
bibliográfica local que estigmatiza a Baixada numa relação até simplória da
violência como estratégia política. Não se nega a existência da violência, mas
o estabelecimento do poder familiar em Nilópolis teve, conjuntamente, que
lançar mão de outras estratégias, como o controle da escola de samba Beija-
-flor. Foi imprescindível para as famílias Abraão e Sessim estarem no co-
mando da escola não apenas por conta da contravenção, mas também para
sustentação de seu prestígio social e o apoio dos militares na sua liderança.
Não é possível, pela lógica histórica, presumirmos que um grupo se susten-
taria mais de cinquenta anos no poder local devido somente à sua repressão
violenta. Vale destacar a coragem, de certa forma, do autor, em pesquisar
não só pelos arquivos escritos, mas primordialmente pelas memórias dos
sujeitos que vivenciaram o período. Essa é uma questão delicada que envolve
o poder político presente, afinal, a cidade continua sob o comando dos gru-
pos que se afirmaram na Ditadura Militar.
Mais uma vez, enfatiza-se que a violência e a repressão não está
sendo negada por nenhum dos trabalhos. Prova disso é o sexto capítulo que
narra a história do comunista guerrilheiro Getúlio Cabral, em Duque de Ca-
xias, pesquisada por Giselle Siqueira. Ao observarmos a trajetória deste mili-
tante, fica notório a frágil sustentação de que a tortura ficou circunscrita aos
centros urbanos. Não se pode argumentar que a Baixada ficou alheia à resis-
tência e à repressão nos tempos de exceção. A narrativa da autora resgata o
debate histórico da anistia ampla, geral e irrestrita que, na prática, permitiu
aos militares salvaguardarem as instituições militares e, primordialmente,
os agentes envolvidos na tortura e assassinatos de militantes. Se, por um

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acaso, concordarmos que aqueles sujeitos, como Getúlio Cabral, participa-


ram de atividades que possam, talvez, ser enquadradas como simples crimes
comuns ao assaltarem bancos ou cometerem assassinatos, desconsiderando
mais uma vez que aquele regime era de exceção, por outro, temos de admitir
que estes já tiveram sua culpa penalizada com a própria vida. Já aqueles mi-
litares torturadores e, também, assassinos, gozaram ou gozam da liberdade
e, por vezes, até da exaltação criminosa de deputados na tribuna legislativa
federal de nosso país.
No sétimo capítulo, de Adriana Serafim, a diocese de Nova Iguaçu
ressurge numa narrativa mais complexa. Aquele projeto teológico-político
democrático trabalhado por Alexander Gomes não pode fazer crer que a ins-
tituição seria monolítica. A fomentação do projeto de Igreja engendrado pelo
bispo não veio sem nenhum tipo de oposição e reação. Ao pesquisar os em-
bates entre D. Adriano e padre Valdir Ros, percebe-se que a disputa foi além
da formação de vocações na Baixada. Estava em jogo a luta pela condução
teológica da diocese que acendia em si toda a carga tensionada da políti-
ca de sua época. No episódio, podemos entender claramente que se colocar
em solidariedade com os movimentos sociais na luta pela redemocratização
não faria com que o bispo rompesse, em nenhum momento, com a hierar-
quia da instituição. Ao contrário, D. Adriano fez uso de todos os instrumen-
tos materiais e simbólicos para fazer valer a sua autoridade frente ao padre
que chegou a ameaçar a unidade da diocese de Nova Iguaçu. Tal fato é uma
contribuição importante para a historiografia reavaliar conceitualmente a
pertinência das palavras progressistas ou conservadores na denominação
dos grupos católicos. Afinal, D. Adriano, do ponto de vista clerical, não se
eximiu em lançar mão da obediência e de aparatos simbólicos litúrgicos para
enfatizar sua autoridade, o que facilmente poderia ser classificado como
conservador. Mesmo assim, não se pode tranquilamente desconsiderar que
tenha sido progressista no trato com o corpo laico do catolicismo ao dotá-lo
de capacidade organizacional e decisória em muitas questões da Igreja.
No último capítulo, de Adriana Ribeiro, temos uma contribuição
inestimável para a memória da Baixada Fluminense. Provavelmente, pelo
livro propor observações empíricas, a opção por publicar uma entrevista de
um militante da Ala Vermelha pode parecer uma oportunidade desperdiçada
pela autora para se colocar dentro do conhecimento histórico sobre a Bai-
xada Fluminense. Contudo, ao registrar as próprias palavras de João Pedro
Neto na publicação, a autora demonstra uma grandeza acadêmica louvável.
Este militante tem uma história exemplar que cria uma identificação rápida

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e direta com a memória de diversos outros atores sociais da militância na


Baixada. Presumo que vale o registro da emoção que certo militante de Nova
Iguaçu sentiu, na ocasião do lançamento deste livro no Instituto Multidis-
ciplinar da UFRRJ, quando viu o companheiro de outrora eternizado, quem
sabe, nas páginas de uma obra que, com certeza, se torna leitura obrigatória
para quem deseja respirar o perfume agridoce do conhecimento histórico da
Baixada Fluminense durante o regime de exceção conduzido pelos militares
durante vinte e um anos. Se esta emoção não for considerada algo relevan-
te ou importante para a História, talvez seja adequado repensarmos nosso
comprometimento ético na construção deste conhecimento.
Espera-se ter ficado explícito que os comentários enumerados de cada
parte da obra não objetivaram a enunciação das teses defendidas por cauda
autor, mas tão somente demonstrar a importância que essa produção coletiva
tem para a historiografia da Ditadura e da Baixada. Concentradas no enten-
dimento político dos processos históricos, com uma gama de fontes diversas,
faz repensar muitas questões clássicas e caras para a imagem da região e as-
cende novos debates ainda muito necessários. Poderíamos dizer lacunas ou
silêncios. De qualquer forma, alguns aspectos da realidade foram desaperce-
bidos, ao que parece mais em virtude das orientações teórico-metodológicos
do que pela escolha específica dos objetos que justificaria algumas ausências.
A primeira ausência é em relação a cor dessas histórias. Não se pode
ser leviano ao se afirmar a composição da população da Baixada, já que os da-
dos do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) podem
ser questionáveis considerando seus métodos e, também, por não haver, de
fato, pesquisas conhecidas que levem em consideração a região como um
todo. E, sobre a localidade, esbarraríamos em outro problema do qual não se
propõe aqui traçar debate que é a definição limítrofe da região que efetiva-
mente compõe a Baixada Fluminense. Contudo, desconsiderar ou não cami-
nhar por esse esforço de perceber as diferenças entre brancos e negros cria
a sensação de ausência de uma parte importante da sociedade que é negra.
Não se alude a tal aspecto pelo entendimento dos fatores sociais e culturais
que formam a branquitude ou a negritude, pois o cerne são as relações com o
período de exceção da política brasileira. Mesmo assim, não há uma questão
política que seja, de uma determinada maneira, pautada por uma população
com costumes desse grupo de pessoas? Para citar um exemplo que se tem
conhecimento e para debatermos um pouco com Alexander Gomes e Adria-
na Serafim, é recorrente na documentação oficial da diocese as referências
a forte presença da religiosidade afro-brasileira na região, nas décadas de

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1970 e 1980, tão ou mais vastas que o próprio movimento neopentecostal


daquele momento. Por outras palavras, a diocese não esteve alheia à forte
cultura afro-brasileira e, sabendo que D. Adriano dialogava constantemente
com outras lideranças religiosas, surge a dúvida se determinado projeto teo-
lógico-político não levava em consideração essa cultura no momento em que
se afirmava no seio dos movimentos sociais que eram heterogêneos. Prova-
velmente, o projeto de Igreja tinha determinada característica justamente
por conta da composição social de seu corpo laico negro.
Sobre o trabalho de Luiz Bezerra fica ainda mais evidente essa ausên-
cia. Longe de querermos caricaturar o estabelecimento da escola de samba
Beija-Flor de Nilópolis, mas se o objetivo era perceber como essa escola arti-
culou socialmente o prestígio das famílias Abraão e Sessim com a ditadura e
com a comunidade, como não considerar que se buscou justamente a afirma-
ção de um traço tão evidente da cultura afro-brasileira? Ao escolherem uma
perspectiva específica de entendimento político, essas questões citadas até
aqui passam desapercebidas pelos três autores, causando a primeira ausência.
A segunda ausência, importantíssima, que perpassa a todos os auto-
res são as mulheres negras, como já implícito na questão anterior, e brancas.
Mais uma vez a crítica da especificidade que carrega esse grupo de pessoas
para a conformação de um determinado horizonte político e não outro se faz
necessário. Todavia, pode-se aprofundar o argumento para além das supo-
sições e dúvidas que traz essa ausência. Primeiro porque não há desconfiança
de que as mulheres participaram de todos os processos aludidos. Segundo,
porque elas gritam nas próprias documentações trabalhadas pelos autores.
Qual era o papel das mulheres sabendo que eram predominantes na
indústria têxtil? Por que não aparecem na narrativa de Felipe Ribeiro? Elas
não teriam tido importância política nas organizações sindicais e agrárias?
E se não tiveram, por que não tiveram? Se eram predominantes no trabalho
e não na representação, isso não diz nada sobre que tipo de norte político se
tinha com a ditadura?
No trabalho de Abner Sótenos, essa questão fica ainda mais eviden-
te. As mulheres são entrevistadas, mas, na documentação da repressão, os
potenciais subversivos são homens. As mulheres não foram perseguidas?
Ou não eram ameaça para os militares? Mas Dilcéia Nahon também não es-
teve no mesmo movimento que seu marido citado pela comunidade de in-
formação? Em toda a década de oitenta, apenas um homem ocupou o cargo
de presidente do MAB (movimento privilegiado pelo autor). O fato de ser
predominantemente de mulheres não dava identidade a este movimento que

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se propunha representante das classes subalternas? Para citar um exemplo,


ainda passível de pesquisa, a pauta de acessibilidade à água, que foi bandei-
ra do MAB durante boa parte da década de 1980, pode ter sido privilegiada
pelo fato das mulheres conviverem mais de perto com os problemas de sua
escassez nos afazeres domésticos, como cozinhar e lavar roupas. Se fossem
conduzidos por homens, outras pautas poderiam ter sido enfatizadas em de-
trimento daquela. Outra vez os referenciais teóricos não possibilitaram ob-
servar, na própria documentação pesquisada, a agência feminina.
No trabalho de Allofs Batista se encontra as duas ausências e mais
uma latente: a sociedade civil. Não se trata de deslegitimar o objeto em si,
mas de perceber que todas as movimentações daquela dita cultura política do
poder local só efetivamente foi possível pelo desprendimento da necessidade
de diálogo da elite política com a sociedade civil. Ficam todas as dúvidas dos
procedimentos jurídicos e políticos que permitiram a exclusão da sociedade
civil, incluídos aí os negros e as mulheres negras e brancas, fazendo das elei-
ções um teatro dispensável para a ascensão ao poder executivo.
Possivelmente, o fato de todos esses trabalhos terem sido feitos na
segunda década do século XXI tem uma explicação, mais para a preferên-
cia do entendimento político do que pelas ausências. Na prática, a história
política nunca deixou de ser produzida, mas nesses tempos o seu sentido e
alargamento se encontra em alta para a explicação de diversos fenômenos
pelos quais passam o país. E, na Baixada, o fato de muitas lideranças e forças
políticas estarem presente há quarenta ou cinquenta anos no poder, muitas
vezes com as mesmas práticas políticas, causa muito interesse por seu en-
tendimento. Talvez seja importante avançarmos para outras trincheiras que
poderiam enriquecer ainda mais o próprio entendimento do político.
O regime de exceção não foi uniforme ao longo dos anos e nem se
cristalizou homogeneamente na sociedade. Entendemos, com esta obra, que
diferentes grupos se movimentaram numa relação direta com circunstân-
cias inéditas da história do país e, por isso, se articularam de acordo com as
possibilidades da época. Mas o vetor dos militares não foi o único a influir sob
os movimentos. A configuração dos grupos na sua fundação, composição,
identidade e solidariedade são imprescindíveis. Por outras palavras, talvez
seja necessário recorrermos mais à história social da Baixada na Ditadura
para termos um pleno entendimento do sentido e amplitude do político.

Recebido em 28/07/2017
Aprovado em 20/09/2017

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