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DESCOLONIZADA
(FLUC-CLP/FCT)
Em nós
(Agostinho Neto)
COMPETIÇÃO
A poesia que circulava entre os intelectuais africanos não era produzida apenas
com o intuito de satisfazer egos humanos ao nível meramente estético e deleitoso da
arte. A arte e o artista africanos mantêm a primazia da militância política e, segundo
Frantz Fanon, “nesta situação, a reivindicação do intelectual colonizado não é um luxo,
mas uma exigência de programa coerente. O intelectual colonizado que situa a sua luta
no plano da legitimidade, que quer apresentar provas, que aceita despir-se para exibir
melhor a história do seu corpo, está condenado a essa submersão nas entranhas do seu
povo” (Fanon, 1961: 206). Numa entrevista cedida a Michel Laban, a “Tia” (como era
afetivamente tratada pelos seus conhecidos) recorda que houve uma série de
acontecimentos históricos que fizeram com que os estudantes tomassem uma maior
consciência da necessidade de abarcarem os problemas mundiais para poderem resolver
os problemas internos dos países africanos, como, por exemplo, “o facto dos negros
participarem na Segunda Grande Guerra, as modificações sociais que houve, as
consequências da revolução francesa, da revolução socialista de Outubro, da criação das
Nações Unidas, da declaração de independência dos povos… Todas essas forças
levaram a dar uma consciência que levou à criação da negritude, que propiciou a
emancipação no sentido lato” (Laban, 2002: 67). Propagam-se na densa e visceral
matéria poética os ecos das milhões de vidas aferrolhadas, das imensuráveis vicissitudes
do colonialismo, do sangue todo derramado nos séculos da Guerra do Mato, das
gloriosas batalhas pela libertação dos contratados, da luta pela (re)conquista do solo
pátrio e da busca pela (re)definição e afirmação de uma identidade negra – masculina e
feminina - livre do domínio do colonizador.
O artigo intitulado “Mundo negro” foi publicado pela primeira vez no jornal A
voz de São Tomé, II, 13 (16-1-1948, pp. 1 e 3), e é o primeiro contributo desse tipo
escrito por uma mulher africana que reivindicou a consagração efetiva de um
sentimento de orgulho e das qualidades de “ser” negra, ou seja, os futuros pressupostos
doutrinários dos feminismos africanos. Não se pode afirmar que Alda Espírito Santo
seja uma precursora dos feminismos africanos, apesar de o diálogo com o texto e com a
sua obra literária apontar diversas vezes para essa hipótese de interpretação. O texto é
um convite, como diria Chinua Achebe, à crítica da vida enquanto crítica da linguagem
e à crítica da raça enquanto contradição daquilo que é “a ideia de uma mesma
humanidade, de uma semelhança e proximidade humana essencial” (Achebe, 2014:
100). Note-se a ética da mensagem negritudinista do texto, como na seguinte passagem:
“O negro vive e sente como nenhum povo de outra raça. Não é inferior. É que não
existem povos inferiores, mas sim inferiorizados. Existe em todo o homem
possibilidades de se guindar à altura do génio; portanto a ideia de povos inferiores, fica
relegada a segundo plano… Os negros não são inferiores. Eles são homens. Debrucemo-
nos sobre a poesia negra…” (Santo, in Laranjeira, 2000: 1-3). A negritude, com a sua
estética apropriada, encontra-se já na produção poética da juventude, no período de
1942 até 1952, em poemas, como, por exemplo, «Canto negro» (Santo, 2012: 40):
CANTO NEGRO
Os cantos de guerra
Do vosso batuque.
(…)
O vigor da sua escrita, caraterizada por marcas textuais que denotam literalmente
a presença de uma precoce descolonização da mentalidade, impulsionaria à reflexão
sobre a condição do negro e da negra no mundo e os convocaria para a libertação da sua
gente dos grilhões da inferioridade, para isso conclamando o canto de Langston Hughes,
um grande poeta negro norte-americano. No momento de apelar à consciencialização
das mulheres, convoca Costa Alegre e o seu poema intitulado “A negra”, para dignificar
e enaltecer a beleza e a gentileza da mulher negra. Numa explícita evocação, a
revolucionária pró-feminina afirmou: “Negras, negras, que passais por essas estradas
fora do meu torrão natal, vós que passais aos bandos, a caminho da feira, com vossos
quimonos e saias entoando com cadência o vosso crioulo bem soante, sois ‘a negra’ do
poema de Costa Alegre” (Santo, in Laranjeira, 2000: 1-3).
Saliente-se que, embora Alda Espírito Santo tenha nascido em São Tomé, foi
também em Portugal que cresceu e se desenvolveu, obtendo uma formação cultural,
intelectual, política e humanística. A sua mãe era professora, o seu pai, funcionário dos
Correios, e a sua casa estava cheia de livros, o que, para a menina Alda - que muito
gostava de ler -, constituiu um autêutico maná. Quando ia à rua, a palaiê (a mulher que
estivesse a vender no mercado) falava em crioulo e as senhoras portuguesas - que iam
para fazer compras -, desferiam muitos insultos por causa da escolha da língua materna,
o que as obrigava ao uso do português, pois, caso contrário, podiam ser preteridas no
momento da venda. Para além de não haver, no espaço público, tolerância quanto ao uso
do crioulo, nas casas familiares era proibido pelos pais, pois, para um filho-da-terra
ascender social e economicamente, havia a necessidade de aprender bem o português.
Um dos muitos poemas pró-femininos, intitulado «Às mulheres da minha terra», é um
verdadeiro manifesto, sentido e marcado pelo distanciamento dos mundos, de um lado
estando as palaiês, as sanguês, as lavadeiras, as mães negras, as negritas, enquanto do
outro, a poetisa. A vida das mulheres nativas de São Tomé (incluindo a autora), por
mais que deslizasse pelos mesmos rios e desembocasse no mesmo mar, nunca se
tocaria, pois Alda nunca falaria “no (…) crioulo cantante” delas (Santo, 1978: 81). Ora,
a língua portuguesa tornar-se-ia, muito cedo, a sua língua emprestada, vindo mesmo a
ser ensinada pela professora Alda. A língua do colonizador seria o veículo de expressão
da mulher viajada e sabedora, da poetisa santomense, da militante ativa dos movimentos
de libertação, da camarada revolucionária contra a repressão do sistema colonial.
No seu regresso a São Tomé, no ano de 1953, depois de ter estado em Portugal
desde o ano de 1947 (o mesmo em que Neto chegou a Coimbra), a sua atuação não se
prenderia somente com a necessidade de emancipação da população santomense, mas
tornar-se-ia uma figura presente na vida política e social do seu país, uma distinta
autoridade nacional. Na esfera cultural, Alda Espírito Santo é um nome emblemático da
poesia africana (escrita em língua portuguesa) e dos nacionalismos africanos,
(re)conhecida e valorizada pelo ativismo na militância política e por ter sido uma das
raras mulheres na liderança da resistência dentro e fora de São Tomé e Príncipe. No ano
de 1996, foi-lhe atribuída a presidência do fórum das Mulheres de São Tomé e Príncipe
(FMS), cargo que ocuparia até 2010. Com a conquista da independência, para além do
exercício de cargos políticos, fundou e presidiu à União Nacional de Escritores e
Artistas de São Tomé e Príncipe (UNEAS), criada em 1987, onde se dedicaria ao
incentivo e autonomização da atividade artística, literária e cultural no país. Essa
confiança do povo traduziu-se na atribuição de importantíssimos papéis, como, por
exemplo, atuando no Ministério da Educação e Cultura do Governo de Transição, no
Ministério da Educação e no Ministério da Informação e Cultura Popular. A dedicação e
a entrega às causas dos seus concidadãos foram alguns dos motivos para que tivesse
sido escolhida para o exercício da Presidência da Assembleia Popular.
Foi com grande empenho que trabalhou para a criação de um novo espaço na
comunicação social santomense - acessível a todo o público internacional -, onde
houvesse uma maior visibilidade para as reivindicações dos direitos das mulheres, que
se manteriam, mesmo depois da independência, subjugadas e exploradas pelo poder
exercido, na sua grande totalidade, por homens.
Alda Espírito Santo não nos deixaria muitas edições ou publicações, pois a PIDE
obrigou-a a desfazer-se constantemente dos seus escritos. A tónica do seu discurso seria
materializada através de poemas, ensaios e artigos publicados inicialmente pela Casa
dos Estudantes do Império, pelo Centro de Estudos Africanos e por jornais
santomenses. De sua lavra, são O coral das ilhas (1976), Mataram o rio da minha
cidade (2002), Mensagens do solo sagrado (2006), Contos do solo sagrado (2006),
Mensagens do canto do ossobó (2006), Tempo universal (2008), O relógio do tempo
(2008) e a consagrada coletânea de poemas É nosso o solo sagrado da terra. Poesia de
protesto e luta (1978), livro que legitima a sua incontornável presença no cânone da
literatura santomense, lugar que já havia sido conquistado com a publicação esparsa dos
seus poemas e que representa a sua identidade revolucionária e o compromisso com a
luta contra a opressão da humanidade.
BOIS, W. E. B. Du, As almas da gente negra, Rio, Lacerda, 1999 [tradução, introdução
e notas de Heloísa Toeler Gomes].
LABAN, Michel, São Tomé e Príncipe. Encontro com escritores, Porto, Fundação
Engenheiro António de Almeida, 2002.
LARANJEIRA, Pires (com a colab. de Inocência Mata e Elsa Rodrigues dos Santos),
Literaturas africanas de expressão portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta,1995.
MARX, Karl & Friedrich Engels, Obras escolhidas, tomo I, Lisboa/Moscovo, Ed.
“Avante!”/Ed. Progresso, 1982.
MATA, Inocência, Diálogo com as ilhas. Sobre cultura e literatura de São Tomé e
Príncipe, Lisboa, Colibri, 1998.
SANTO, Alda Espírito, É nosso o solo sagrado da terra. Poesia de protesto e luta,
Lisboa, Ulmeiro, 1978.
SANTO, Alda Espírito, É nosso o solo sagrado da terra, 2º ed., póstuma, São Tomé e
Príncipe, UNEAS, 2010.
SANTO, Carlos Espírito, Alda Espírito Santo. Escritos, Lisboa, Colibri, 2012.