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ALDA ESPÍRITO SANTO: NEGRITUDINISTA, PRÓ-FEMININA E

DESCOLONIZADA

Clariane Crippa e Pires Laranjeira

(FLUC-CLP/FCT)

Em nós

a terra verde de São Tomé

será também a ilha do amor

(Agostinho Neto)

A época de maior vigor da produção poética de Alda Espírito Santo entrelaça-se


ao momento da afirmação ideológica de caráter negritudinista dos estudantes,
inteletuais, pensadores, poetas, contistas, etc., das colónias portuguesas e autores dos
principais textos doutrinários, cujo conteúdo fundamenta e legitima o programa político
dos movimentos de libertação nacional e dos nacionalismos africanos, ou seja, a sua
obra liga-se historicamente às obras desses poetas e políticos fundadores, como, por
exemplo, Amílcar Cabral, Vasco Cabral (ambos do PAIGC), Agostinho Neto, Mário
Pinto de Andrade (ambos do MPLA) e Marcelino dos Santos (FRELIMO).

Francisco José Tenreiro, Agostinho Neto, Noémia de Sousa e José Craveirinha


consagraram-se como os impulsionadores da Negritude, da criação de uma estética
negritudinista, num período em que a “literatura ultramarina”, com muita intensidade,
produzia um discurso do exotismo e da mistificação das culturas tradicionais africanas.
Temos agora de acrescentar a esses nomes o de Alda Espírito Santo, que, até ao
momento, não tem sido incluído nesse naipe fundador dessa estética, nos Cinco
países. Para Alda Espírito Santo, “a negritude era uma afirmação necessária porque os
povos africanos eram tidos como povos inferiores. Era necessário que os africanos
tomassem consciência da sua identidade. A diáspora das Américas, do mundo todo e
todas as forças progressistas estavam a favor de um mundo novo, de uma mudança, e
tudo o que demonstrasse que era abertura, atraía-nos” (Laban, 2002: 67). Segundo
Frantz Fanon, “os cantores da «negritude» não vacilaram em transcender os limites do
continente. Desde a América [EUA], vozes negras vão repetir esse hino com uma
crescente amplitude. O «mundo negro» surgira e Busia, do Gana, Birago Diop, do
Senegal, Hampaté Ba, do Mali, Saint-Clair Drake, de Chicago, não temeram em afirmar
a existência de laços comuns, de linhas de força idênticas” (Fanon, 1961: 207-208).

A cumplicidade entre Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo foi de grande


intensidade, trabalhando muitas vezes em conjunto. Infelizmente, pelo peso imposto
pela censura, esse trabalho teve de ser escondido e encontra-se, até ao presente
momento, inacessível para estudos e investigações.

A afirmação da negritude dar-se-ia durante as décadas de 40 e 50. Frantz Fanon


escreveu, na obra intitulada Os condenados da terra: “em África, a literatura colonial
dos últimos vinte anos não é uma literatura nacional, mas uma literatura de negros. O
conceito de «negritude» por exemplo, antítese afectiva, senão lógica, desse insulto que o
homem branco fazia à humanidade. Essa «negritude» oposta ao desprezo do branco
revelou-se, em certos sectores, como a única capaz de suprimir proibições e maldições.
Como os intelectuais da Guiné ou do Quénia se viram confrontados, antes de mais, com
o ostracismo global, com o desprezo sincrético do dominador, a sua reacção foi a de
admirar e elogiar. À afirmação incondicional da cultura europeia, sucedeu a afirmação
incondicional da cultura africana. Em geral, os poetas negros opuseram a velha Europa
à jovem África, a razão aborrecida à poesia, a lógica opressiva à natureza gritante; por
um lado rigidez, cerimónia, protocolo, cepticismo, por outro, ingenuidade, petulância,
liberdade, mesmo exuberância. Mas também irresponsabilidade” (Fanon, 1961: 207-
208).

Note-se, por exemplo, a relação que se pode estabelecer entre Sagrada


esperança (1974), de Agostinho Neto, e É nosso o solo sagrado da terra (1978), e
tenha-se em conta também a clara influência dos preceitos teóricos e éticos de Amílcar
Cabral, como os que são expressos em A arma da teoria. A poesia representa a união
dos países “irmãos” pelo elo dos poetas, engajados na criação de uma corrente de
consciencialização dos povos do mundo todo e unidos na luta geral pela libertação.
Agostinho Neto remeteu o poema “Massacre de São Tomé” Para a ilustre amiga Alda
Graça (como também era conhecida), em fevereiro de 1953, e esta dedicou o poema
“Voz negra das Américas” a Angela Davis (ativista negra dos EUA, nas décadas de 50 e
60), tendo escrito também um poema em memória de “Deolinda Rodrigues”, a
guerrilheira angolana morta em combate, além de dedicar um “Requiem para Amílcar
Cabral”. Os poemas “A renúncia impossível”, de Agostinho Neto, e “Competição” (ver
mais adiante), de Alda Espírito Santo, ilustram a sintonia dos seus pensamentos e
estados de (des)ânimo, onde a negação da cultura ocidental e a aversão ao colonizador
europeu manifesta-se veemente e violentamente como nunca antes acontecera. Essas
triangulações – dizendo em linguagem futebolística – ou, transtextualidades, entre
Amílcar, Neto, Viriato, Andrade, Alda, Tenreiro, Noémia, Craveirinha e outros fica
ainda melhor documentada ao emparelharmos trechos, por exemplo, de “A renúncia
impossível” (Neto) e de um ensaio inédito de Alda, dado à estampa por Carlos Espírito
Santo. Escreve Neto, com ironia amarga: “Explorai o proletariado/ou dai-lhe de
comer/isso é convosco./Continuai com os vossos sistemas políticos/ditaduras,
democracias” (Neto, 2016: 149-150). E Alda, num ensaio manuscrito: “Democracia,
fascismo, monarquia, para nós negros, até ao dia de hoje nada representam. São
palavras ocas e vãs (…)” (Santo, 2012: 123). O poema “Competição”, juntamente com
outros, dados à estampa por Carlos Espírito Santo, pode, pois, ser mais conhecido, para
reforçar o retrato negritudinista de Alda Espírito Santo no conjunto dos pares:

COMPETIÇÃO

Não quero já a Europa a endeusar-me a vida

Não quero a capa falsa cedida por favor.

Já não quero roçar os meus casacos

Nas poltronas dos cinemas,

Nem viver o progresso da gente incolor

Usando os figurinos deste espelho baço

Cimentado por mim, mas mofando de mim.

Sim, nos alicerces do colosso europeu,

Eu me vejo numa leva infinda de escravos

A erguer impérios, a misturar meu próprio sangue


Para criar o monstro da civilização

Que hoje, hoje no dealbar dos tempos

Me reduziu a escória e fixa os meus destinos.

Por isso hoje com os pés bem assentes

Neste pedaço da Europa, não me quero trair,

Aceitando a esmola duma migalha de pão

Que não é minha.

Eu quero e exijo as cartilhas dos mestres africanos

Eu quero mostrar à Europa a bandeira triunfal

Da África livre, que adubou a Europa.

(Santo, 2012: 94)

A obra literária de Alda Espírito Santo compõe-se de poesias, ensaios e artigos


que podem ser considerados como integrantes da vanguarda do pensamento pós-
colonial, com as suas ideias descolonizadas como base para o florescimento de uma
distinta mentalidade não inferiorizada pela raça, pela cor, pela classe social ou pelo
género. Ao lado de Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos ou António
Domingues (artista plástico), Alda Espírito Santo tornar-se-ia um dos pilares dos ideais
da “Grande Marcha”, dos movimentos nacionais de libertação dos países africanos.

A intelligentzia africana reunia-se clandestinamente na casa da tia Andreza


(local onde posteriormente seria fundado o Centro de Estudos Africanos), na casa de
Francisco José Tenreiro e na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, para ler
poesia (Alda e Neto liam, por exemplo, Nazim Hikmet e Pablo Neruda), estudar,
declamar, refletir e discutir sobre os assuntos sociais, políticos, económicos e culturais
de todos os povos negros espalhados pelos cinco continentes e dos seus respetivos
territórios em África. Esses encontros serviam sobretudo para arquitetar ideais e ideias
para uma necessária e urgente revolução cultural e de libertação dos subjugados povos
africanos pelo poder colonizador de Portugal. Segundo Frantz Fanon,
“inconscientemente talvez os intelectuais colonizados, frente à impossibilidade de se
enamorarem da história presente do seu povo oprimido, de se maravilharem com a
história das suas barbaridades actuais, decidiram ir mais longe, descer mais baixo e, não
o duvidamos, com excepcional alegria descobriram que o passado não era de vergonha,
mas de dignidade, de glória e de solenidade” (Fanon, 1961: 205).

Poesia engajada, combativa e de cariz nacionalista, de denúncia, protesto e


reivindicação, que se afirma como uma (re)definição da identidade e da cultura, neste
caso em particular, da identidade e da cultura caracterizadas pela santomensidade, que
pode ser entendida como discursos socioculturais da nacionalidade em formação,
fundamentação e solidificação comunitária.

A poesia que circulava entre os intelectuais africanos não era produzida apenas
com o intuito de satisfazer egos humanos ao nível meramente estético e deleitoso da
arte. A arte e o artista africanos mantêm a primazia da militância política e, segundo
Frantz Fanon, “nesta situação, a reivindicação do intelectual colonizado não é um luxo,
mas uma exigência de programa coerente. O intelectual colonizado que situa a sua luta
no plano da legitimidade, que quer apresentar provas, que aceita despir-se para exibir
melhor a história do seu corpo, está condenado a essa submersão nas entranhas do seu
povo” (Fanon, 1961: 206). Numa entrevista cedida a Michel Laban, a “Tia” (como era
afetivamente tratada pelos seus conhecidos) recorda que houve uma série de
acontecimentos históricos que fizeram com que os estudantes tomassem uma maior
consciência da necessidade de abarcarem os problemas mundiais para poderem resolver
os problemas internos dos países africanos, como, por exemplo, “o facto dos negros
participarem na Segunda Grande Guerra, as modificações sociais que houve, as
consequências da revolução francesa, da revolução socialista de Outubro, da criação das
Nações Unidas, da declaração de independência dos povos… Todas essas forças
levaram a dar uma consciência que levou à criação da negritude, que propiciou a
emancipação no sentido lato” (Laban, 2002: 67). Propagam-se na densa e visceral
matéria poética os ecos das milhões de vidas aferrolhadas, das imensuráveis vicissitudes
do colonialismo, do sangue todo derramado nos séculos da Guerra do Mato, das
gloriosas batalhas pela libertação dos contratados, da luta pela (re)conquista do solo
pátrio e da busca pela (re)definição e afirmação de uma identidade negra – masculina e
feminina - livre do domínio do colonizador.

Alda Espírito Santo, através da sua postura combativa, tornou-se parte de um


movimento organizado de afirmação da identidade literária da santomensidade, porém,
mais do que instituir uma literatura da insularidade santomense, corroboraria a criação
de uma luta pró-feminina de cariz político-ideológico muito próximo das ideias do
marxismo. Apesar de ter sido presa pela PIDE, em 1965 (em Caxias, perto de Lisboa), e
de constantemente censurada pelo sistema colonial, fez-se instrumento para denunciar
os abusos coloniais em solo pátrio, a mortalidade infantil, as questões da mestiçagem, a
alienação cultural, o analfabetismo, a miséria extrema, a precariedade do trabalho
agrícola nas roças, as monoculturas do cacau e do café, a vil existência de um “Estado”
dentro do Estado, as condições desumanas de vida e de trabalho que eram impostas aos
contratados, as terríveis consequências psicológicas e sociais do racismo, além da
exploração da mão de obra feminina e da subalternidade imposta às mulheres nativas.

A sua poesia encontra-se muito próxima do que Gayatri Spivak, na teoria da


subalternidade, denomina como uma escrita pró-feminina. Veja-se no poema “Pela vez
primeira” (Santo, 1978: 141), onde a voz das subalternas é tida como um importante
constituinte e indispensável fundamento para uma sociedade igualitária e independente,
onde a mulher, livre dos ditames desumanizadores de uma sociedade patriarcal,
machista e misógina, vê-se finalmente empoderada de todas as suas conquistas, direitos
e liberdades. Essa mesma poesia pode ser considerada como uma precursora das
orientações ideológicas da teoria pós-colonial, oriundas de uma mentalidade
antecipadamente descolonizada e apresentada como um convite à libertação das mentes,
dos corpos, dos vetos e do “solo sagrado da terra”. “Dona” Alda, com a sua poesia
negritudinista, pró-feminina e descolonizada, inaugurou uma nova época para o povo
santomense, proclamou não só a independência da Nação, como também levantou a
bandeira da emancipação da mulher e da autonomização do povo santomense,
libertando-o das correntes de longos séculos de escravidão e subserviência.

O artigo intitulado “Mundo negro” foi publicado pela primeira vez no jornal A
voz de São Tomé, II, 13 (16-1-1948, pp. 1 e 3), e é o primeiro contributo desse tipo
escrito por uma mulher africana que reivindicou a consagração efetiva de um
sentimento de orgulho e das qualidades de “ser” negra, ou seja, os futuros pressupostos
doutrinários dos feminismos africanos. Não se pode afirmar que Alda Espírito Santo
seja uma precursora dos feminismos africanos, apesar de o diálogo com o texto e com a
sua obra literária apontar diversas vezes para essa hipótese de interpretação. O texto é
um convite, como diria Chinua Achebe, à crítica da vida enquanto crítica da linguagem
e à crítica da raça enquanto contradição daquilo que é “a ideia de uma mesma
humanidade, de uma semelhança e proximidade humana essencial” (Achebe, 2014:
100). Note-se a ética da mensagem negritudinista do texto, como na seguinte passagem:
“O negro vive e sente como nenhum povo de outra raça. Não é inferior. É que não
existem povos inferiores, mas sim inferiorizados. Existe em todo o homem
possibilidades de se guindar à altura do génio; portanto a ideia de povos inferiores, fica
relegada a segundo plano… Os negros não são inferiores. Eles são homens. Debrucemo-
nos sobre a poesia negra…” (Santo, in Laranjeira, 2000: 1-3). A negritude, com a sua
estética apropriada, encontra-se já na produção poética da juventude, no período de
1942 até 1952, em poemas, como, por exemplo, «Canto negro» (Santo, 2012: 40):

CANTO NEGRO

Negras bamboleando tetas roliças

Negros suando, cavando nas minas

Cantai: Não curveis ó massas de ébano

Cantai aos carrascos

Cantai aos verdugos

Os cantos de guerra

Do vosso batuque.

(…)

Cantai, ó negros, as esperanças de vossas mulheres

E o futuro de vossos filhos

Sem jugos nem grilhões.

(Santo, 2012: 40)

Num outro ensaio inédito, Alda confirma assertivamente (repare-se no


pleonasmo necessário, quando se trata de negritude: “negros, de pele negra”) a questão
da raça e da negritude, comprovando-se que a teoria e a ideologia não deixavam de
sustentar a novidade dessa elaboração estético-literária: “Somos negros, de pele negra e
de alma negra. Desprezamos a velha retórica da ‘alma branca’, com que nos querem
favorecer. Temos alma negra, porque a alma é pensamento, as nossas ideias
concatenadas, e nosso pensamento não é senão a ideologia negra… Possuímos alma
negra, pigmentação negra e somos gentes negras” (Santo, 2012: 151) (negrito nosso).

O vigor da sua escrita, caraterizada por marcas textuais que denotam literalmente
a presença de uma precoce descolonização da mentalidade, impulsionaria à reflexão
sobre a condição do negro e da negra no mundo e os convocaria para a libertação da sua
gente dos grilhões da inferioridade, para isso conclamando o canto de Langston Hughes,
um grande poeta negro norte-americano. No momento de apelar à consciencialização
das mulheres, convoca Costa Alegre e o seu poema intitulado “A negra”, para dignificar
e enaltecer a beleza e a gentileza da mulher negra. Numa explícita evocação, a
revolucionária pró-feminina afirmou: “Negras, negras, que passais por essas estradas
fora do meu torrão natal, vós que passais aos bandos, a caminho da feira, com vossos
quimonos e saias entoando com cadência o vosso crioulo bem soante, sois ‘a negra’ do
poema de Costa Alegre” (Santo, in Laranjeira, 2000: 1-3).

Alda Neves da Graça do Espírito Santo, natural do arquipélago de São Tomé e


Príncipe, nasceu no dia 30 de abril de 1926 e faleceu nas vésperas de completar 84 anos,
em 9 de março de 2010. Residiu numa povoação chamada Chácara, localizada na cidade
de São Tomé (veja-se o poema «Se esta estrada falasse», que começa com o seguinte
verso: “Noite quieta na Chácara…” (Santo, 1978: 73)), onde faria os estudos até ao
quarto ano primário. Seria enviada pelos pais, já com uma década de idade, para um
colégio de freiras no norte de Portugal, onde cursou o ensino médio (no Colégio de
Nossa Senhora da Bonança) e continuaria a viver até formar-se como professora na
Escola do Magistério Primário, em Vila Nova de Gaia.

Saliente-se que, embora Alda Espírito Santo tenha nascido em São Tomé, foi
também em Portugal que cresceu e se desenvolveu, obtendo uma formação cultural,
intelectual, política e humanística. A sua mãe era professora, o seu pai, funcionário dos
Correios, e a sua casa estava cheia de livros, o que, para a menina Alda - que muito
gostava de ler -, constituiu um autêutico maná. Quando ia à rua, a palaiê (a mulher que
estivesse a vender no mercado) falava em crioulo e as senhoras portuguesas - que iam
para fazer compras -, desferiam muitos insultos por causa da escolha da língua materna,
o que as obrigava ao uso do português, pois, caso contrário, podiam ser preteridas no
momento da venda. Para além de não haver, no espaço público, tolerância quanto ao uso
do crioulo, nas casas familiares era proibido pelos pais, pois, para um filho-da-terra
ascender social e economicamente, havia a necessidade de aprender bem o português.
Um dos muitos poemas pró-femininos, intitulado «Às mulheres da minha terra», é um
verdadeiro manifesto, sentido e marcado pelo distanciamento dos mundos, de um lado
estando as palaiês, as sanguês, as lavadeiras, as mães negras, as negritas, enquanto do
outro, a poetisa. A vida das mulheres nativas de São Tomé (incluindo a autora), por
mais que deslizasse pelos mesmos rios e desembocasse no mesmo mar, nunca se
tocaria, pois Alda nunca falaria “no (…) crioulo cantante” delas (Santo, 1978: 81). Ora,
a língua portuguesa tornar-se-ia, muito cedo, a sua língua emprestada, vindo mesmo a
ser ensinada pela professora Alda. A língua do colonizador seria o veículo de expressão
da mulher viajada e sabedora, da poetisa santomense, da militante ativa dos movimentos
de libertação, da camarada revolucionária contra a repressão do sistema colonial.

No norte de Portugal, onde passou uma parte significativa da sua formação no


ensino médio, não teve contato com outros negros e era observada, pejorativamente,
como um “animal” pelos habitantes das zonas por onde circulava. Foi somente depois
de estar formada no Magistério, quando estudava e vivia em Lisboa, que aprendeu o
crioulo, não de modo profundo, evitando escrever nessa língua. Na metrópole
portuguesa, começou a desbravar e a reconstruir a sua identidade, contatando com
outros estudantes africanos, que, assim como ela, ansiavam por se (re)desenhar e se
(re)conhecer como seres humanos, pertença de uma só humanidade, porém com
especificidades raciais, culturais e sociais.

No seu regresso a São Tomé, no ano de 1953, depois de ter estado em Portugal
desde o ano de 1947 (o mesmo em que Neto chegou a Coimbra), a sua atuação não se
prenderia somente com a necessidade de emancipação da população santomense, mas
tornar-se-ia uma figura presente na vida política e social do seu país, uma distinta
autoridade nacional. Na esfera cultural, Alda Espírito Santo é um nome emblemático da
poesia africana (escrita em língua portuguesa) e dos nacionalismos africanos,
(re)conhecida e valorizada pelo ativismo na militância política e por ter sido uma das
raras mulheres na liderança da resistência dentro e fora de São Tomé e Príncipe. No ano
de 1996, foi-lhe atribuída a presidência do fórum das Mulheres de São Tomé e Príncipe
(FMS), cargo que ocuparia até 2010. Com a conquista da independência, para além do
exercício de cargos políticos, fundou e presidiu à União Nacional de Escritores e
Artistas de São Tomé e Príncipe (UNEAS), criada em 1987, onde se dedicaria ao
incentivo e autonomização da atividade artística, literária e cultural no país. Essa
confiança do povo traduziu-se na atribuição de importantíssimos papéis, como, por
exemplo, atuando no Ministério da Educação e Cultura do Governo de Transição, no
Ministério da Educação e no Ministério da Informação e Cultura Popular. A dedicação e
a entrega às causas dos seus concidadãos foram alguns dos motivos para que tivesse
sido escolhida para o exercício da Presidência da Assembleia Popular.

Foi com grande empenho que trabalhou para a criação de um novo espaço na
comunicação social santomense - acessível a todo o público internacional -, onde
houvesse uma maior visibilidade para as reivindicações dos direitos das mulheres, que
se manteriam, mesmo depois da independência, subjugadas e exploradas pelo poder
exercido, na sua grande totalidade, por homens.

Alda Espírito Santo não nos deixaria muitas edições ou publicações, pois a PIDE
obrigou-a a desfazer-se constantemente dos seus escritos. A tónica do seu discurso seria
materializada através de poemas, ensaios e artigos publicados inicialmente pela Casa
dos Estudantes do Império, pelo Centro de Estudos Africanos e por jornais
santomenses. De sua lavra, são O coral das ilhas (1976), Mataram o rio da minha
cidade (2002), Mensagens do solo sagrado (2006), Contos do solo sagrado (2006),
Mensagens do canto do ossobó (2006), Tempo universal (2008), O relógio do tempo
(2008) e a consagrada coletânea de poemas É nosso o solo sagrado da terra. Poesia de
protesto e luta (1978), livro que legitima a sua incontornável presença no cânone da
literatura santomense, lugar que já havia sido conquistado com a publicação esparsa dos
seus poemas e que representa a sua identidade revolucionária e o compromisso com a
luta contra a opressão da humanidade.

As suas poesias de solidariedade e libertação encontram-se incluídas nas mais


diversas publicações, como, por exemplo, em Mário Pinto de Andrade e Francisco José
Tenreiro, Poesia negra de expressão portuguesa (1953), Mário Pinto de Andrade,
Antologia da poesia negra de expressão portuguesa (1958), Alfredo Margarido, Poetas
de São Tomé e Príncipe (1963), João Alves das Neves, Poetas e contistas africanos
(1963), Nova soma de poesia do mundo negro, na revista Présence africaine (1966),
Mário Pinto de Andrade, Literatura africana de expressão portuguesa, vol. 1, Poesia
(1967), Antologia temática de poesia africana (1975), Manuel Ferreira, No Reino do
Caliban II (1976), Carlos Alves das Neves, Antologia poética de São Tomé e Príncipe
(1977), Cremilda A. Medina, Sonha Mamana África (1988), Manuel Ferreira, 50 Poetas
africanos (1989) e Inocência Mata, O coro dos poetas e prosadores de São Tomé e
Príncipe (1992).

A obra intitulada A Poesia e a vida. Homenagem a Alda Espírito Santo,


publicada em abril de 2006, quando “Dona” Alda Espírito Santo fez 80 anos, foi
concebida por Inocência Mata e Laura Padilha, sob a coordenação da primeira, com o
patrocínio do Governo de São Tomé e Príncipe, através do Dr. José Viegas, Ministro da
Juventude e Desporto (Ministério da Administração Territorial, Juventude, Mulher e
Família). A publicação das homenagens a Alda Espírito Santo materializa assim a
dimensão e o valor da sua obra literária. Para a comemoração dos 80 anos da poetisa,
Inocência Mata apresentaria uma série de poemas cinzelados pela pena de poetas não
menos consagrados, como, por exemplo, Agostinho Neto, Conceição Lima, Paula
Tavares, Odete Semedo, Dina Salústio e Amadeu Espírito Santo (seu primo, falecido
em 2002). Outros contributos enriqueceram o livro. Veja-se o caso de Natália
Umbelina, com seus textos escritos para o efeito, e Deolinda Adão, com a cedência de
uma entrevista feita com “Dona” Alda. O apoio incondicional de Pepetela, Conceição
Barata, com a disponibilização de esparsas fotografias, de José Ribeiro, da Editora
Ulmeiro, que autorizou a publicação integral dos poemas presentes em É nosso o solo
sagrado da terra (1978), as pinturas de Ismael Sequeira e Lívio Morais, o editor
Fernando Mão de Ferro, além de Manuel Rui, Boaventura Cardoso (escritor e Ministro
da Cultura de Angola), Roberto de Almeida (que, como escritor, assina Jofre Rocha), o
Professor Eugeniusz Rzewuski (embaixador da Polónia em Angola e São Tomé e
Príncipe), a União dos Escritores Angolanos e a editora Chá de Caxinde, que se
disponibilizaram (de outros modos) para efetivar essa homenagem.

Na senda das homenagens, dar-se-ia a 2ª edição, póstuma, da coletânea de


poemas É nosso o solo sagrado da terra, publicada pela UNEAS, em São Tomé, no ano
de 2010. Segundo Nazaré Ceita, Diretora Nacional da Cultura, viria à luz do dia como
uma “celebração do ideário de uma poetisa, celebração da vida de uma grande mulher,
de uma grande cidadã, de uma grande combatente da liberdade, de uma grande
humanista” (Santo, 2010: 35). Esta edição contou com o patrocínio de Joaquim Rafael
Branco, Primeiro-Ministro da República Democrática de São Tomé e Príncipe. Pelas
mãos de Francisco Costa Alegre publicou-se (com o apoio de patronos, como, por
exemplo, o Instituto Camões, a Companhia Santomense de Telecomunicações e o
MLSTP/PSD) uma Moção de Homenagem intitulada Alda Graça Espírito Santo. De lá
no Água Grande a mataram o rio da minha cidade, dedicada aos ídolos nacionais e,
segundo o autor, com o intuito de “acarinhá-los e preservá-los à medida que surgem no
ciclo da identidade que (…) faz reconhecê-los como ídolos” (Alegre, 2008: 8).

Todas estas importantes contribuições trazem na sua génese um profundo cariz


elogioso e de gratidão, porém, não é só de forma exortativa que a sua poesia deve ser
entendida, lida e analisada, devendo-se reter a sua importância como mulher, poetisa e
africana que se torna parte indissociável da (re)construção da história do povo
santomense e da (re)escrita da história das mulheres africanas. Ela é aquela que, a
partir de um canto com mulheres dentro, de exaltação do silêncio e da palavra,
transforma-o em arma para a revolução cultural e dá voz às mulheres
subalternizadas (pelo domínio português e outros) de São Tomé e Príncipe e de
África.

No seu percurso histórico-literário, Alda Espírito Santo surge como autora do


Hino Nacional; contudo, apesar de haver consenso com relação à autoria do Hino,
Francisco Costa Alegre faz referência ao seguinte fato: “Independência Total que surge
na transformação do hino de combate, de iniciação e de apelo afetivo e fraterno dos
momentos áureos da pré-independência, exortava o slogan militante: “Dependêxa Totali
sa kwa ku pôvô mêcê!” (“A Independência Total é a aspiração do Povo”) (Alegre, 2008:
61). Ora isso leva-nos a considerar que este hino se construiu a partir da transformação
do canto de exaltação e de protesto, manifestação gritante da militância política e do
movimento de libertação santomense, transformado depois em hino nacional, através do
poder dos versos de uma mulher, tornando-se um eco da libertação que há séculos o
povo santomense almejava.

Finalmente, Carlos Espírito Santo publicaria o livro Alda Espírito Santo.


Escritos (2012), uma antologia de poemas, contos, ensaios, cartas, telegramas e
documentos escritos entre 1942 e 1952, no período da sua juventude, um ano antes do
seu regresso a São Tomé e Princípe. Saliente-se que o ideário e os temas dos poemas da
juventude de Alda Espírito Santo coincidem – como se deixou claro - com o ideário e
com os temas dos poemas de Agostinho Neto, José Craveirinha e Noémia de Sousa,
que, por sua vez, ter-se-iam inspirado ou coincidiam com a poesia de Francisco José
Tenreiro, o primeiro poeta (com publicação de livro) da negritude em língua portuguesa,
autor de Ilha de nome santo (1942) e Coração em África (1967).
BIBLIOGRAFIA

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ALEGRE, Francisco Costa, Alda Graça Espírito Santo, de lá no Água Grande a


mataram o rio da minha cidade, São Tomé e Príncipe, UNEAS, 2008.

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BUTLER, Judith, Trouble dans le genre. Le féminisme et le suberversion de l’identité,


Paris, La Décoverte, 2010 [1990].

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LARANJEIRA, Pires, A negritude africana de língua portuguesa, Porto, Afrontamento,


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