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Ao partir, eu retornaria a mim mesma.

Longe, finalmente estrangeira - os frutos e a


polpa de ser estrangeira, estrangeira até para
ASSIA minhas próprias memórias e meu futuro.
Vazia, nascente. Partir!

DJEBAR:
RELEITURAS
Going away would return me to myself.
Far away, a foreigner at last - the fruits
and the pulp of being foreign, a foreigner
even to my memories and my future.
 Vacant, nascent. To leave!

Assia Djebar, The Tongue's Blood does


not Run Dry: Algerian Stories
Quero lhes falar aqui do meu encontro com esta grande
escritora argelina, de como a descobri – no meio de
minhas andanças e pesquisas sobre escritoras do mundo
‘pós-colonial’ e após ter lido muito a escritora e socióloga
marroquina Fatima Mernissi, quem já tinha aberto meus
olhos para experiências muito distantes das minhas...

"A bagagem mais preciosa dos estrangeiros é sua


diferença. E se te concentrares no divergente e no
dissemelhante, também terás revelações". 
Fatema Mernissi, falando do que aprendeu da avó Yasmina, que
viveu sua juventude num ‘harem rural’ do Marrocos, era
analfabeta e a estimulou a estudar e ‘criar asas’.
Ao refletir sobre a obra da Djebar, trago junto a
dimensão subjetividade da minha leitura, isto é,
da minha identificação com o que dela li, sendo
que, ao iniciar meu projeto, pouco sabia da
história e cultura do lugar onde ela nasceu e se
criou, que habita nela mesmo quando ‘foge’ para
outros lugares; muito menos eu tivesse ouvido
Nós e nossas escritoras: falar sobre a Argélia desde uma perspectiva, ou
as relações que olhar, de mulheres.

descobrimos, as
Assim, vale perguntar sobre o que apreendemos,
relações que tecemos. nestas viagens pelas terras da literatura, e
especificamente, a viagem que ela nos propicia...
““As mulheres ... podem realmente criar novos
enredos para as mulheres? Ou elas são
prisioneiras demais do passado, condenadas a
Ferramentas da teoria literária repetir as mesmas histórias de sempre? As
feminista: mulheres podem moldar as narrativas de acordo
com seus próprios desejos e propósitos? Ou a
not (just) the same old stories! trama é mais uma armadilha patriarcal do que
um impulso em direção à liberdade? ”

Rita Felski, Literature after feminism.


• Muito debatida, inclusive na conversa com o
conceito mais recente e proveniente de
intelectuais latino-americanos, de
decolonialidade; a realidade argelina, junto
com a indiana, alimentaram fortemente esta
(Pós) colonialidade: vertente do pensamento crítico
contemporâneo, muito interdisciplinar mas
tendo origem nos estudos literários,
principalmente.
debates • Dentre os autores mais ‘clássicos (primeira
geração): Said, Hall, Spivak
contemporâneos • Shohat, Seshadri- Crooks, Alina Sajed..
Longa lista...
• Gênero e sexualidades como focos que tem
ganho cada vez maior centralidade.
Escritoras magrebinas: muito além dos orientalismos

Gerações pioneiras: Fatema Mernissi (1940-2015), de Fez, Marrocos,


e Assia Djebar ( pseudónimo literário de Fatema Zohra Imalayen,
argelina, 1936-2015)
Mernissi: Sociologia e literatura. A escrita de si ... e de todas.
Mapas de Argélia e do
Mediterrâ neo.
• “...la Méditerranée, car elle est frontière, ne
peut avoir aucune essence originaire, aucune
nature intime, aucun destin qui lui serait propre :
le seul contenu capable de donner une
configuration concrète à la frontière
méditerranéenne est ce qui à chaque fois
parvient à en faire la concrétude factuelle des
processus historiques” (Caterina Rea, p.51)

• Pourgouris sobre o mediterrâneo como um


Modernismos espaço literário e histórico que é marcado, no
modernismo, por uma posição de ‘Outro’, isto é,
mediterrâ neos representado de maneira ‘orientalista’, exotizado
ou mesmo ‘não (realmente) moderno’. Os países
fora do eixo ‘cosmopolita’ ficam, nisso, com
estatuto dúbio. Para Pourgouris, a Argélia de
Camus e a Grécia de Elytis nos revelam diversas
contradições que emanam destas
hierarquizações, que dizem respeito à
configurações históricas e coloniais de relações
de poder, ao imaginário ocidental de vários
séculos de evolução, e da dificuldade em lidar
com o semelhante e o diferente, o geral e o
particular, fora de esquemas binários.
• Camus (escritor pied noir ), Elytis (poeta
modernista grego), dois escritores que
desenvolvem na sua obra, uma relação
estética espacial com o mediterrâneo; Said
discute muito o primeiro, (as limitações
colonialistas da) sua construção do
mediterrâneo como uma alteridade; no
Topos e escrita (o segundo caso, é bem diferente – um poeta que
procura dar valor ao mediterrâneo moderno,
mediterrâneo equidistante das armadilhas do olhar
argelino) hegemônico europeu e dos seus compatriotas
que procuram um modernismo grego mais
aliado a Paris/Londres etc.
• Assia: o ‘branco da luz’ de Argélia, um topos
singular, associado e terra mãe, onde também
residem as forças (socio-culturais) que se
juntam para imobilizar o feminino
Um país • Conquista francesa de Argélia: 1830-1847.
• Guerra de independência: 1954-1962

que luta • De Franz Fanon e Camus a Djebar e Yasmina


Khadra: narrativas sobre a pesada herança do
colonialismo, e as trágicas tentativas de livrar-

para se dele, tentar construir algo melhor...

ser...
• No livro de Yasmina Khadra, Ce que le jour
doit a la nuit, que abrange a época anterior à
revolução anti-colonialista assim como a
explosão da guerra, e seu percurso, vemos
emergir, através da história de um jovem
argelino, não só um retrato das injustiças
colonialistas, mas também dos profundos
conflitos e lutas pelo poder ao interior do
Revoluçõ es traídas, próprio movimento de emancipação, desde o
início marcado pela rivalidade de dois grupos
intelectuais e principais (FLN, MNA), assim como dos
conflitos ao interior dos corações dos jovens.
artistas
• Em Algerian White (memória), Djebar fala
perseguidos principalmente de pessoas que fizeram parte
da vida dela, durante um período muito
conturbado do seu país, e que faleceram, em
grande parte, direta ou indiretamente, por
conta da perseguição. Em contos e romances,
também abordou a traição das mulheres por
um regime que vai se tornando cada vez mais
islamista.
• Fatima-Zohra Imalayen (30 junho 1936 –
fevereiro 2015), conhecida como  Assia Djebar (
Arabic: ‫ ) آ[سيا جبار‬foi uma romancista, tradutora e
cineasta argelina. A maior parte da obra dela trata
dos obstáculos que as mulheres eram obrigadas a
encarar na sociedade argelina. Destaca –se sua
perspectiva feminista, sua associação com os
movimentos de mulheres que escrevem. Seus
romances têm claro foco na criação de uma
genealogia das mulheres argelinas, e sua posição
política é tão anti-patriarcal quanto anti –colonial. A
consideram uma dos mais eminentes escritores do
Norte da Africa. Recebeu em 1996 Neustadt
International Prize for Literature para a totalidade da
sua obra. No ano 2005, foi eleita membro da
Academia Francesa de Letras, sendo a primeira
pessoa de origem magrebina a alcançar esta
distinção.. Foi muitas vezes nomeada para concorrer
ao Prêmio Nobel de Literatura.
• (fonte:
https://en.wikipedia.org/wiki/Assia_Djebar
Dela eu já li:

Trilogia ‘autobiográfica’:
1 Fantasia: an Algerian cavalcade. 1985. fr &
inglês.

2 A sister to Scheherazade. .

3 So vast the prison (romance). 1995, fr.


1999, tradução língua inglesa.
------------------------------
Algerian White (memórias) 1995. fr.; 2000,
tradução língua inglesa.

Femmes d’Alger dans leur appartement


(nouvelles).
1980, 2002 2ª edição, com ‘novela’ adicional.
Foto: Miriam Adelman
The tongue’s blood does not run dry
“Je – nous”* :
Mulheres (extra)ordinárias.
• “Agora que cheguei a este ponto da minha história,
não tenho escolha a não ser fundir minha vida com a
de outra mulher. O corpo de todo homem serve para
indicar a encruzilhada na qual nós mulheres giramos,
vendadas, descontroladas, estendendo as mãos, uma
em direção à outra? Sister to Scheherazade, p. 76

• « Ce qui rend l'autobiographie au pluriel de Djebar


différente de celle de ses homologues francophones
masculins est qu'elle écrit une autobiographie
collective spécifiquement féminine : témoignages de
femmes dans la guerre, (histoires des femmes de sa
famille. » (Ali, p. 45)

• *« L'écriture autobiographique est forcement une écriture rétrospective où votre


"je" n'est pas toujours le je, ou c'est un "je-nous" ou c'est un "je" démultiplié’
• (Djebar, em entrevista com Gauvin)

Foto: Miriam Adelman 2020


‘A lingua em
que se • Árabe, berbere, francês: escolhas e/ou destinos?

escreve’ :
uma grande • A convivência destas três línguas na história
recente da Argélia diz respeito a outra, muito
mais longa. Uma história feita de viagens e
questão lutas, dominações e subordinações, nomadismos
e colonização, mudanças e instabilidades...
A língua materna
•“A língua berbere, um
idioma afro-asiático, é
um caldeirão de
história e cultura do
país. Ele sobreviveu à
maioria das línguas da
Antiguidade, como o
grego antigo, o latim, o
fenício e o egípcio.
Costumava ser escrito,
mas agora é
principalmente oral” ”. Foto: Miriam Adelman

•http://jardinmajorelle.com/a
ng/introduction-to-berber-cul
ture
Línguas que mulheres falam
•   
“ Enquanto cresço, pouco antes de minha terra natal
desvencilhar-se do jugo colonial - enquanto o homem ainda
tem direito a quatro esposas legítimas, nós, meninas, grandes
e pequenas, temos ao nosso comando quatro idiomas para
expressar o desejo […] : francês para missivas secretas;
árabe para nossas aspirações sufocadas em relação ao Deus-
pai, o Deus das religiões do Livro; Líbico-berbere, que nos
leva de volta aos ídolos pagãos - deuses-mãe - da Meca pré-
islâmica. A quarta língua, para todas as mulheres, jovens ou
velhas, enclausuradas ou semi-emancipadas, continua sendo
a do corpo; o corpo que aos olhos de vizinhos e primos
precisa permanecer surdo e cego, para que não possam
encarcerá-lo completamente; o corpo que, em transe, dança
ou vocifera, em rompantes de esperança ou de desespero,
revolta-se e - incapaz de ler ou escrever-, busca algum
recinto desconhecido como destino para sua mensagem de
amor ".

• Assia Djebar
ASSIA DJEBAR E A RE-ESCRITA DA HISTÓRIA NO FEMININO

Nancy Ali, Sorbonne/Paris IV (ARTIGO DISPONÍVEL através da página da autora, www.academia,edu)

“Em L'Amour, la fantasia [Fantasia, uma cavalgada argelina], Assia Djebar estende
uma mão às mulheres sem voz, analfabetas da guerra da Argélia, transmitindo seus
testemunhos orais dentro do texto escrito por ela em língua francesa.
Argumentamos que Djebar negocia um lugar específico entre uma autobiografia
anônima e uma autobiografia coletiva, para poder escrever uma autobiografia
feminina em uma sociedade que desaprova o uso do pronome de primeira pessoa
para uma mulher. Abordamos o papel da autora como contadora de histórias:
revisitando os arquivos franceses da conquista da Argélia, Djebar dá voz às histórias
das mulheres silenciadas. Exploramos como escrever para Djebar é uma forma de
desabrochar em vida, não apenas para ela, mas também para as mulheres da Argélia
cujas histórias ela inscreve na narrativa da História. Ao fazer isso, ela reescreve a
História, como uma espécie de palimpsesto feminino.”
‘Vaste est la prison’:
metáforas para a vida e os
corpos das mulheres
argelinas.

•Quem é a protagonista? Como ela vive


sua corporalidade, sua sexualidade, sua
relação com outras mulheres, e com
homens? Como é que ela fala sobre? E
como é que fala sobre a história de seu país
-retratada aqui, inicialmente, como uma
Argélia pós-independência, onde ainda se
vive o otimismo?

Foto: Miriam Adelman 2020


Como inscrever com sangue que flui ou que acaba de fluir
Com o cheiro, talvez
Com o vô mito ou o catarro, facilmente.
Com o medo que constitui seu halo.
Escrever, é claro, mesmo um romance...
Sobre a fuga.
Sobre a vergonha.
O sangue do escrever Mas com o sangue: seu fluir, sua textura, seu jorro , sua casca que
ainda nã o secou?
(final do livro, Vaste est la prison – trecho Pois é, como conseguiria falar de você, Argélia?
traduzido por mim, da versã o em língua E se um dia eu cair, dando passos para atrá s por sobre o buraco?
inglesa)
Me deixe, derrubada para trá s, mas com os olhos abertos.
També m nã o me coloque em baixo da terra ou no fundo de um
poço que secou.
Em lugar disso, n’á gua.
Ou nas folhas do vento.
Que possa continuar contemplando o cé u da noite.
Sentindo o cheiro da grama que mexe.
Sorrindo nos raios de cada risada.
Vivendo, com meus pé s que dançam indo primeiro.
Apodrecendo suavemente.
Para mim o sangue é cinza branca.
É o silêncio.
É o arrependimento.
O sangue não seca. Simplesmente evapora.
Não chamo você de mãe, Argélia amarga.
Isso o escrevo,
Isso o choro, voz, mão, olho.
O olho que na língua de nossas mulheres é uma fonte.
Teu olho dentro de mim, fujo de você, esqueço você, Ô avó de tempos
desaparecidos!
Contudo, na tua esteira,
‘Fugitiva e nem o sabia”, dizia de mim mesma.
E a partir daí, fugitiva e sabendo disso.

(cont)fot O caminho de toda migração é fuga.


Sequestro sem sequestrador.
Nenhum ponto final no horizonte,
Apagando dentro de mim cada ponto de partida.
A origem some.
Mesmo o novo começo.
Fugitiva que o percebe na metade da fuga.
Que escreve para pôr cerco à perseguição sem fim.
O círculo que cada passo abre, fecha de novo.
Foto: Miriam Adelman Mortes para frente, o antílope cercado.
Argélia a caçadora, engolida em mim.
• 
Homenagem
I imagine the streets of Oran
(For Assia)

there is rain washing this


  chance of desert,  aroma
of oasis and pine.  there
is a winter white which in the
fugitive sunlight could be warning,
  could be
       warming, could
                     almost be the white
of yr blanched algiers
walls, and blue doorways
   adorned with a chain of bells
   and a fine yellow script
and white veils blowing along the
street, imperceptible patter of feet
over ancient cobblestone -
       as if there were no one 
       inside, nothing but air
       and muted desire, as if 
there were never
a boat at the dock,
a light at the end
of the tunnel.
o f th e tun n el .
Referencias teóricas. Rita Felski Literature after feminism 2003.
Fatima Mernissi. Scherazade goes West
Fawzia Afzal-Khan & Kalpana Seshadri-Crooks,
The Pre-occupation of postcolonial studies. 2000.
Marinos Pourgouris, Mediterranean Modernisms.
2011.
Caterina Rea, “Mediterranee comme frontiere :
ordre symbolique, materialisation des corps et
immigration” artigo.
Edward Said, Orientalismo.
Nancy Ali. “Assia Djebar et la réécriture de
l’histoire au feminin’. artigo 2015.

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