Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
@ coo8, Pepetela
Revisõo
Lídia Freitas
Paglnoçdo
Segundo Capitulo
lmpressão e acabamento
Os seus grandes romances sugerem uma continuiddde
Gráfica Manuel Barbosa & Filhos entre gerações, uma harmonização de diferenças rluma
mesma totalidade. Esta urgência de pertença, esse con-
r." edição: Maio de zooS
Edição, MHL.ooz.zoo8 torno que contém e esbate diferenças é, afinal, Angola.
Depósito legal, 273 938/oB A ideia de angolanidade está presente em toda a sua obra
ISBN, 978-989-9559?-3-8
mas de forma tão natural que não a condicionâ do ponto de
Distnbuiçdo vista literário. Pepetela está a escrever não sobre Angola. Ele
Sodiliwos estd, escreí)end,o Angola, essa que há mas que ainda não existe,
Telef. zr 38r 56 oo I Fax zr 387 6z Br
à sonhada e a geradora de sonhos.
geral@sodiliwos.pt
r5
f!
PEPETELA
Pepetela
r6
O MOLEQUE PAROU DE MASTIGAR. Ficou sus-
penso, a boca cheia da jinguba surripiada na
panela que estalava sobre a fogueira. Avoz da
mãe repetiu o chamamentot
- Candimba, vem aqui.
O miúdo levantou-se, engolindo rapida-
mente a massa de jinguba e saliva. Apro-
ximou-se êm passo lento, mãos nos bolsos
dos calções, cabeça baixa. Mamã me viu
roubar na panela e vai castigar? O sem-
blante da mulher aquietou-o. Não tinha os
olhos que fazia quando descobria uma falta.
Era então para um recado, só podia ser.
E ele preferia estar descansado à sombra
da mandioqueira, vigiando a mãe: à espera
t9
CONTOS DE MORTE
PEPETELA
2r
2O
PEPETELA CONTOS DE MORTE
tudo acompanhado de muitos berros. Miúdo - Mas eu sei. Eu sei! Juro vai sair mulato.
Candimba achou ele não era como as outras - E depois? E se fui eu que o fiz? Éscasada
pessoas, nele avoz é que acompanhava os ges- com o teu homem, não tenho nada com
tos. Mariana chorava, de costas para a porta, isso.
tapando a boca com o antebraço. O moleque O moleque já percebera tudo. Fez-se
ouvia-a suplicar, mais pequenino, encostado à porta. A mão
- Sô Ferreira, meu marido vai saber. Filho apertava nervosamente a caneca de lata. Viu
sai mulato, Chico vê logo não é dele. Ele me Mariana erguer decididamente a cabeça,
mata, Sô Ferreira... passar os dedos pela barriga inchada, falar
- Quero lá saber! Que culpa tenho eu? com raiva:
Agora avia-te... Ora bolas! Que provas tens - Sô Ferreira prometeu. Te dou vestidos,
que o filho é meu? Ainda nem nasceu! Como vais mesmo na cidade, vais pra minha casa.
é que podes saber? Te tiro da sanzala, te dou comida boa, te dou
- Sei, sim, juro com Deus. Senti mesmo! pulseiras e brincos. Sô Ferreira prometeu,
Miúdo Candimba esqueceu a jinguba na jurou mesmo. Teu filho vai ser meu no papel,
boca aberta, os assustados olhos tudo perscru- Ihe dou educação. Não vai ser menino de
tando. Não percebia bem a conversa. Embora sanzala, não. Agora já lhe dei tudo que que-
já falasse aos companheiros acerca dessas ría, jâ se deitou comigo, m'abandona. Não
coisas proibidas, ainda era muito pequeno quer saber mais de mim!
para compreender imediatamente. Mas sen- - Então? Prometi? Alguém ouviu? Só tu
tia algo de terrível nas palavras trocadas. mesmo. Vai dizer no teu marido, vê Iá se ele
- Ouve 1á. julgas que me levas assim? acredita. Digo-lhe que é mentira, que foste
Como podes ter sentido? Como se eu fosse tu que me pediste, que vocês todas querem
parvo... O filho é do teu marido, dormiste é dormir com os brancos. Vai na polícia, se
com ele muito mais vezes do que comigo. eles acreditam em ti ou em mim.
,, z3
Eq*il*KA
Pf]PBTEI,A OONTOE DM MORTT]
24 1J
PEPETELA CONTOS DE MORTE
para trás e ficou espiando, assustado, espe- Coelho não percebe palavras, percebe os ges-
rando o próximo gesto. O miúdo não se tos e as carícias, é como as crianças.
mexeu. Via a Mariana chorando, suplicando Ouviu a mãe chamá-lo em alta grita,
e chorando, a barriga inchada, as mãos a inquirir por ele às vizinhas, sair de casa. Foi
tremer. E o comerciante rindo o seu riso de talvez à venda procurá-lo. Mas não voltou.
gengivas desdentadas, vermelhas como os Miúdo Candimba não se deu âo trabalho de
olhos do coelho. Jogou com raiva o punho responder, de se mostrar. Queria estar só,
fechado. Mas falhou o golpe e o animal esca- contemplando o novo amigo, aquele animal-
puliu-se para perto das galinhas. zinho branco que parecia tão meigo. Queria
O despeito fez as lágrimas correrem, vaga- fugir às gentes com seus dramas e rancores,
rosas, na face escura do moleque. E o coelho fechar-se na concha dos seus sonhos infan-
observando-o. Miúdo Candimba, de repente, tis. E sentia o íntimo cheio de paz e ternura,
julgou-o penalizado com sua dor. Comoveu- esquecido já da revolta que há pouco experi-
-se. Era apenas um pobre animal sem culpas, mentara.
que o estimava, afinal. O coelho não fugiu à Miúdo Candimbavoltou a ter consciência
carícia da mão infantil. Deixou-se afagar e os do mundo ao escutar grande gritaria ali pe rto.
olhos vermelhos adoçaram-se. Miúdo Can- Levantou-se com uma última carÍcia ao ani-
dimba estendeu-se no chão de terra batida, mal, afastou as moitas e deitou uma olhada
insensívelà humidade transpirada pelo solo. para o sítio onde a mãe preparava a jinguha.
Ficou assim, perdida a noção do tempo, avista Deserto. Os gritos vinham da esquerda.
fixa na bola hranca que se mexia. Arrepen- O moleque atravessou a cerca, entrou na rua
deu-se, em breve, do murro que lhe enviara. e na luz do Sol. Dirigiu-se à casa para que
Pensou em pedir-lhe desculpa, justificar a concorriam as mulheres e as crianças. Acasa
acção com o estado'de espírito provocado pela de Mariana. Lá chegado, percebeu imedia-
cenadaloja. Decidiu-se, porém, anão oÍazer. tamente o que se passara, Mariana morrera.
z6 ,n
PE PETE LA CONTOS DE MORTE
zB 29
PEPETELA CONTOS DE MORTE
acreditava, a que ninguém sequer prestava lhos, desde o pêlo branco, incmstava-se no
atenção. Viu-se miserável e inútil, um bichi- seucérebro de menino. M'enganaste, coelho.
nho pequeno que para nada serve. Um boneco Mariana matou-se, espetou a faca mesmo
talvez, um boneco semvalor nem preço. no coração. Morreu num mar de sangue.
Virou as costas aos curiosos observa- As lágrimas caíam dos olhos do moleque. Me
dores do espectáculo mórbido, foi cami- deramteu nome, Candimba mesmo, mas não
nhando para casa. Devagarinho, afogando sou igual na ti. Não tenho os olho vermelho,
o despeito e a revolta nas pedras da rua. pêlo branco. Não sou como tu. Pensei a gente
Atravessou a cerca, aproximou-se do tabu- ia ser amigo, te fiz festa. Mariana se matou!
Ieiro de jinguba. Hoje não iria vender a Meteu a mão no holso dos calções, tirou o
guloseima. Nunca mais gritaria pela cidade, canivete. Abriu-o e a lâmina luziu. Agarrou
cinc'ostões cada pacote. Mesmo que mor- no pescoço do animal com o braço esquerdo.
ressem de fome. Nem que a mãe xingasse, O coelho não tentou escapulir. Então, Ienta-
nem que a mãe lhe chapasse. Mexeu os mente, reflectidamente, Miúdo Candimba
bagos com a mão distraída, não se tentou enterrou-lhe a lâmina no peito.
a tirar nenhum. Viu as moitas que limita- Ficouvendo o pequeno corpo estremecer,
vam a capoeira, encaminhou-se para elas. o sangue esvaindo-se, manchando de ver-
Afastou os ramos com lentidão. O coelho melho o pêlo branquinho. A mancha alas-
branco fitou-o com seus olhos vermelhos. trando, alastrando, correndo para as patas,
Iguais aos de Sô Ferreira. O animal deixou- para o chão de terra batida. Depois um estre-
-o aproximar, um pouco receoso. Mas não meção mais violento . E os olhos ficaram rígi -
fugiu. Talvez esperasse mais uma carícia, dos, enormemente abertos, fitando-o fir-
lembrando da anterior cena de ternura. memente. Miúdo Candimba não encontrou
Miúdo Candimba sentiu-se enganado. uma acusação naquele eterno olhar. Pousou
Uma vergonha vinha desde os olhos verme- delicadamente o corpo no solo. Ajoelhou-
3o 3r
l
l
PEPETELA
Lisboa, r962
(in << Poetas e Contistas Africanos>>,
Brasiliense, São Paulo, r963)
O CAIXAO DO MOLHADO
3z