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ANTOLOGIA

POÉTICA
Poemas religiosos
Org. Felipe P. Santos
Antologia
Poética
Poemas religiosos
SUMÁRIO
Apresentação........................................................................ 05
Quinhentismo......................................................................... 06
Ao Santíssimo Sacramento............................................................. 07
A Santa Inês........................................................................................ 11
Poema à Virgem............................................................................... 13
Jesus na Manjedoura...................................................................... 18
Barroco.................................................................................. 19
Soneto a Nosso Senhor................................................................... 20
Ao braço do Menino Jesus............................................................. 21
O Poeta na ultima hora da sua vida.......................................... 22
Ao dia do Juízo.................................................................................. 23
A Inconstância dos bem do mundo............................................. 24
A Nosso Senhor Jesus Christo com actos de Arrependido
e Suspiros de Amor........................................................................... 25
À Conceição Imaculada de Maria Santíssima....................... 26
Buscando a Cristo............................................................................ 27
A Maria Santíssima........................................................................... 28
Ao Santíssimo Sacramento estando para comungar............ 29
Arcadismo............................................................................. 30
Caramuru: Fragmentos I............................................................... 31
Caramuru: Fragmentos II.............................................................. 32
Sobre os Autores................................................................... 33
Sobre o organizador............................................................ 34
"Suportamos tudo isso,
por amor dos eleitos"
Padre José de Anchieta
Apresentação
A Antologia que agora encontra-se em suas mãos é fruto de uma
pesquisa minuciosa acerca dos poemas escritos durante os períodos do
Quinhentismo, Barroco e Arcadismo. Destaca-se os autores como: Padre
Antônio Vieira, Gregório de Matos e Frei Santa Rita Durão.
Os poemas e sonetos presentes nesta Antologia expressa em sua
característica geral a religiosidade manifestada pelos autores
mencionados anteriormente. Não trata-se apenas de textos religiosos,
mesmo que sejam de cunho devocional, mas apresentam ainda
características próprias de cada autor, bem como as suas manifestações
particulares, seja pela grande devoção do Padre Vieira por a Virgem
Maria, seja ainda pela expressão de arrependimento e súplica presente nos
sonetos de Gregório de Matos, ou ainda pela grande forma de manifestar a
visão de crenças através do uso de figuras culturais como faz o Frei Santa
Rita Durão em seu poema épico, Caramuru.
Essa antologia foi atribuída a seus principais autores do período
colonial, cujo tivessem alguma ligação com o tema abordado. Todavia, a
produção literária de cada período vária de acordo com o que seus autores
viveram em suas respectivas épocas. Sabe-se que o Quinhentismo e o
Barroco são responsáveis pela grande produção religiosa, diferente do
Arcadismo, que tem como fundo as questões voltadas para a natureza,
mitologia e contemplação da criação, resultando numa produção escassa
sobre religiosidade. Não estranhe ao se deparar com os fragmentos
escolhidos e mencionados no ultimo período, pois mesmo que distanciem
de um foco narrativo, carregam características próprias, cujo o eu-lírico-
autor questiona, coloca em prova e que não deixa claro uma religião ou
crença, mesmo utilizando de figuras simbólicas presentes na fé católica.
Ademais, desejo uma ótima leitura com imersão e devoção aos poemas
selecionados, e que traga boas sensações em vosso coração, caro(a)
leitor(a).

Felipe Pereira dos Santos


Organizador | Graduando em letras - IFAl

5
I
POEMAS SELECIONADOS

Quinhentismo
Ao Santíssimo
Sacramento
Padre José de Anchieta

Oh que pão, oh que comida, Ele dá vida imortal,


Oh que divino manjar Este mata toda fome,
Se nos dá no santo altar Porque nele Deus é homem
Cada dia. Se contêm.

Filho da Virgem Maria É fonte de todo bem


Que Deus Padre cá mandou Da qual quem bem se embebeda
E por nós na cruz passou Não tenha medo de queda
Crua morte. Do pecado.

E para que nos conforte Oh! que divino bocado


Se deixou no Sacramento Que tem todos os sabores,
Para dar-nos com aumento Vindes, pobres pecadores,
Sua graça. A comer.

Esta divina fogaça Não tendes de que temer


É manjar de lutadores, Senão de vossos pecados;
Galardão de vencedores Se forem bem confessados,
Esforçados. Isso basta.

Deleite de enamorados Que este manjar tudo gasta,


Que com o gosto deste pão Porque é fogo gastador,
Deixem a deleitarão Que com seu divino ardor
Transitória. Tudo abrasa.

Quem quiser haver vitória É pão dos filhos de casa


Do falso contentamento, Com que sempre se sustentam
Goste deste sacramento E virtudes acrescentam
Divinal. De contino.

7
Todo al é desatino Por caber dentro de nós
Se não comer tal vianda, Vos fazeis tão pequenino
Com que a alma sempre anda Sem o vosso ser divino,
Satisfeita. Se mudar.

Este manjar aproveita Para vosso amor plantar


Para vícios arrancar Dentro em nosso coração
E virtudes arraigar Achastes tal invenção
Nas entranhas. De manjar,

Suas graças são tamanhas, Em o qual nosso padar


Que se não podem contar, Acha gostos diferentes
Mas bem se podem gostar Debaixo dos acidentes
De quem ama. Escondidos.

Sua graça se derrama Uns são todos incendidos


Nos devotos corações Do fogo de vosso amor,
E os enche de benções Outros cheios de temor
Copiosas. Filial,

Oh que entranhas piedosas Outros com o celestial


De vosso divino amor! Lume deste sacramento
Ó meu Deus e meu Senhor Alcançam conhecimento
Humanado! De quem são,

Quem vos fez tão namorado Outros sentem compaixão


De quem tanto vos ofende?! De seu Deus que tantas dores
Quem vos ata, quem vos prende Por nos dar estes sabores
Com tais nós?! Quis sofrer.

E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Desta vida.

8
Quem viu nunca tal comida Deixado para memória
Que é o sumo de todo bem, Da morte do Redentor,
Ai de nós que nos detém Testemunho de Seu amor
Que buscamos! Verdadeiro.

Como não nos enfrascamos Oh mansíssimo Cordeiro,


Nos deleites deste Pão Oh menino de Belém,
Com que o nosso coração Oh Jesus todo meu Bem,
Tem fartura. Meu Amor.

Se buscarmos formosura Meu Esposo, meu Senhor,


Nele está toda metida, Meu amigo, meu irmão,
Se queremos achar vida, Centro do meu coração,
Esta é. Deus e Pai.

Aqui se refina a fé, Pois com entranhas de Mãe


Pois debaixo do que vemos, Quereis de mim ser comido,
Estar Deus e homem cremos Roubai todo meu sentido
Sem mudança. Para vós

Acrescenta-se a esperança, Prendei-me com fortes nós,


Pois na terra nos é dado Iesu, filho de Deus vivo,
Quanto lá nos céus guardado pois que sou vosso cativo,
Nos está. que comprastes

A caridade que lá Com o sangue que derramastes,


Há de ser aperfeiçoada, Com a vida que perdestes,
Deste pão é confirmada Com a morte que quisestes
Em pureza. Padecer.

Dele nasce a fortaleza, Morra eu, por que viver


Ele dá perseverança, Vós possais dentro de mim;
Pão da bem-aventurança, Ganha-me, pois me perdi
Pão de glória. Em amar-me.

Pois que para incorporar-me


E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Me mudais.

9
Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.

Enquanto a presença tarda


De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Deste pão

Seja minha refeição


E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
De minha alma.

Ar fresco de minha calma,


Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Doce beijo.

Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
De perder.

Pois não vivo sem comer,


Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Doce amor.

Comendo de tal penhor,


Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Com vos ver.

Amém.

10
A Santa Inês
Padre José de Anchieta

Cordeirinha linda, Vinde mui depressa


como folga o povo ajudar o povo,
porque vossa vinda pois com vossa vinda
lhe dá lume novo! lhe dais lume novo.

Cordeirinha santa, Vós sois, cordeirinha,


de Iesu querida, de Iesu formoso,
vossa santa vinda mas o vosso esposo
o diabo espanta. já vos fez rainha.

Por isso vos canta, Também padeirinha


com prazer, o povo, sois de nosso povo,
porque vossa vinda pois, com vossa vinda,
lhe dá lume novo. lhe dais lume novo..

Nossa culpa escura


fugirá depressa,
pois vossa cabeça
vem com luz tão pura

Vossa formosura
honra é do povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Virginal cabeça
pola fé cortada,
com vossa chegada,
já ninguém pereça.

11
II Ó que doce bolo,
que se chama graça!
Não é d’Alentejo Quem sem ele passa
este vosso trigo, é mui grande tolo,
mas Jesus amigo
é vosso desejo. Homem sem miolo,
qualquer deste povo,
Morro porque vejo que não é faminto
que este nosso povo deste pão tão novo!
não anda faminto
deste trigo novo. III
CANTAM:
Santa padeirinha,
morta com cutelo, Entrai ad altare Dei
sem nenhum farelo virgem mártir mui formosa,
é vossa farinha. pois que sois tão digna esposa
de Iesu, que é sumo rei.
Ela é mezinha
com que sara o povo, Debaixo do sacramento,
que, com vossa vinda, em forma de pão de trigo,
terá trigo novo. vos espera, como amigo,
com grande contentamento.
O pão que amassastes
dentro em vosso peito, Ali tendes vosso assento.
é o amor perfeito
com que a Deus amastes. Entrai ad altare Dei,
virgem mártir mui formosa,
Deste vos fartastes, pois que sois tão digna esposa
deste dais ao povo, de Iesu, que é sumo rei.
porque deixe o velho
pelo trigo novo. Naquele lugar estreito
cabereis bem com Jesus,
Não se vende em praça Pois ele, com sua cruz,
este pão de vida, vos coube dentro no peito,
porque é comida ó virgem de grão respeito.
que se dá de graça.
Entrai ad altare Dei,
Ó preciosa massa! virgem mártir mui formosa,
Ó que pão tão novo pois que sois tão digna esposa
que, com vossa vinda, de Iesu, que é sumo rei.
quer Deus dar ao povo!

12
Poema à Virgem
Padre José de Anchieta

Minha alma, por que tu te abandonas ao profundo sono?


Por que no pesado sono, tão fundo ressonas?
Não te move à aflição dessa Mãe toda em pranto,
Que a morte tão cruel do FILHO chora tanto?

E cujas entranhas sofre e se consome de dor,


Ao ver, ali presente, as chagas que ELE padece?
Em qualquer parte que olha, vê JESUS,
Apresentando aos teus olhos cheios de sangue.

13
Olha como está prostrado diante da Face do PAI,
Todo o suor de sangue do seu corpo se esvai.
Olha a multidão se comporta como ELE se ladrão fosse,
Pisam-NO e amarram as mãos presas ao pescoço.

Olha, diante de Anás, como um cruel soldado


O esbofeteia forte, com punho bem cerrado.
Vê como diante Caifás, em humildes meneios,
Aguenta mil opróbrios, socos e escarros feios.

Não afasta o rosto ao que bate, e do perverso


Que arranca Tua barba com golpes violento.
Olha com que chicote o carrasco sombrio
Dilacera do SENHOR a meiga carne a frio.

Olha como lhe rasgou a sagrada cabeça os espinhos,


E o sangue corre pela Face pura e bela.
Pois não vês que seu corpo, grosseiramente ferido
Mal susterá ao ombro o desumano peso?

Vê como os carrascos pregaram no lenho


As inocentes mãos atravessadas por cravos.
Olha como na Cruz o algoz cruel prega
Os inocentes pés o cravo atravessa.

Eis o SENHOR, grosseiramente dilacerado pendurado no tronco,


Pagando com Teu Divino Sangue o antigo crime!
Vê: quão grande e funesta ferida transpassa o peito, aberto
Donde corre mistura de sangue e água.

Se o não sabes, a Mãe dolorosa reclama


Para si, as chagas que vê suportar o FILHO que ama.
Pois quanto sofreu aquele corpo inocente em reparação,
Tanto suporta o Coração compassivo da Mãe, em expiação.

Ergue-te, pois e, embora irritado com os injustos judeus


Procura o Coração da MÃE DE DEUS.
Um e outro deixaram sinais bem marcados
Do caminho claro e certo feito para todos nós.

ELE aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,


Ela o solo regou com lágrimas tremendas.
A boa Mãe procura, talvez chorando se consolar,
Se as vezes triste e piedosa as lágrimas se entregar.

14
Mas se tanta dor não admite consolação
É porque a cruel morte levou a vida de sua vida,
Ao menos chorarás lastimando a injúria,
Injúria, que causou a morte violenta.

Mas onde te levou Mãe, o tormento dessa dor?


Que região te guardou a prantear tal morte?
Acaso as montanhas ouvirão Teus lamentos?
Onde está a terra podre dos ossos humanos?

Acaso está nas trevas a árvore da Cruz,


Onde o Teu JESUS foi pregado por Amor?

Esta tristeza é a primeira punição da Mãe,


No lugar da alegria, segura uma dor cruel,
Enquanto a turba gozava de insensata ousadia,
Impedindo Aquele que foi destruído na Cruz.

Mãe, mas este precioso fruto de Teu ventre


Deu vida eterna a todos os fieis que O amam,
E prefere a magia do nascer à força da morte,
Ressurgindo, deixou a ti como penhor e herança.

Mas finda Tua vida, Teu Coração perseverou no amor,


Foi para o Teu repouso com um amor muito forte!
O inimigo Te arrastou a esta cruz amarga,
Que pesou incomodo em Teu doce seio.

Morreu JESUS traspassado com terríveis chagas


ELE, formoso espírito, glória e luz do mundo;
Quanta chaga sofreu e tantas LHE causaram dores;
Efetivamente, uma vida em vós era duas!

Todavia conserva o Amor em Teu Coração, e jamais


Evidentemente deixou de o hospedar no Coração,
Feito em pedaços pela morte cruel que suportou
Pois à lança rasgou o Teu Coração enrijecido.

O Teu Espírito piedoso e comovido quebrou na flagelação,


A coroa de espinhos ensanguentou o Teu Coração fiel.
Contra Ti conspirou os terríveis cravos sangrentos,
Tudo que é amargo e cruel o Teu FILHO suportou na Cruz.

15
Morto DEUS, então porque vives Tu a Tua vida?
Porque não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não levou o Teu espírito,
Se o Teu Coração sempre uniu os dois espíritos?

Admito, não pode tantas dores em Tua vida


Suportar, aguentando se não com um amor imenso;
Se não Te alentar a força do nascimento Divino
Deixará o Teu Coração sofrendo muito mais.

Vives ainda, Mãe, sofrendo muitos trabalhos,


Já te assalta no mar onda maior e cruel.
Mas cobre Tua Face Mãe, ocultando o piedoso olhar:
Eis que a lança em fúria ataca pelo espaço leve,
Rasga o sagrado peito ao teu FILHO já morto,
Tremendo a lança indiferente no Teu Coração.

Sem dúvida tão grande sofrimento foi à síntese,


Faltava acrescentá-lo a Tuas chagas!
Esta ferida cruel permaneceu com o suplício!
Tão penoso sofrimento este castigo guardava!

Com O querido FILHO pregado a Cruz Tu querias


Que também pregassem Teus pés e mãos virginais.
ELE tomou para SI a dura Cruz e os cravos,
E deu-Te a lança para guardar no Coração.

Agora podes, ó Mãe, descansar, que possui o desejado,


A dor mudou para o fundo do Teu Coração.
Este golpe deixou o Teu corpo frio e desligado,
Só Tu compassiva guarda a cruel chaga no peito.

Ó chaga sagrada feita pelo ferro da lança,


Que imensamente nos faz amar o Amor!
Ó rio, fonte que transborda do Paraíso,
Que intumesce com água fartamente a terra!

Ó caminho real com pedras preciosas, porta do Céu,


Torre de abrigo, lugar de refúgio da alma pura!
Ó rosa que exala o perfume da virtude Divina!
Jóia lapidada que no Céu o pobre um trono tem!

16
Doce ninho onde as puras pombas põem ovinhos,
E as castas rolas têm garantia de suster os filhotinhos!
Ó chaga, que és um adorno vermelho e esplendor,
Feres os piedosos peitos com divinal amor!

Ó doce chaga, que repara os corações feridos,


Abrindo larga estrada para o Coração de CRISTO.
Prova do novo amor que nos conduz a união!
Porto do mar que protege o barco de afundar!

Em TI todos se refugiam dos inimigos que ameaçam:


TU, SENHOR, és medicina presente a todo mal!
Quem se acabrunha em tristeza, em consolo se alegra:
A dor da tristeza coloca um fardo no coração!

Por Ti Mãe, o pecador está firme na esperança,


Caminhar para o Céu, lar da bem-aventurança!
Ó Morada de Paz! Canal de água sempre vivo,
Jorrando água para a vida eterna!

Esta ferida do peito, ó Mãe, é só Tua,


Somente Tu sofres com ela, só Tu a podes dar.
Dá-me acalentar neste peito aberto pela lança,
Para que possa viver no Coração do meu SENHOR!

Entrando no âmago amoroso da piedade Divina,


Este será meu repouso, a minha casa preferida.
No sangue jorrado redimi meus delitos,
E purifiquei com água a sujeira espiritual!

Embaixo deste teto que é morada de todos,


Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.

17
Jesus na Manjedoura
Padre José de Anchieta

– Que fazeis, menino Deus,


Nestas palhas encostado?
– Jazo aqui por teu pecado.

– Ó menino mui formoso,


Pois que sois suma riqueza,
Como estais em tal pobreza?

– Por fazer-te glorioso


E de graça mui colmado,
Jazo aqui por teu pecado.

– Pois que não cabeis no céu,


Dizei-me, santo Menino,
Que vos fez tão pequenino?

– O amor me deu este véu,


Em que jazo embrulhado,
Por despir-te do pecado.

– Ó menino de Belém,
Pois sois Deus de eternidade,
Quem vos fez de tal idade?

– Por querer-te todo o bem


E te dar eterno estado,
Tal me fez o teu pecado.

18
II
POEMAS SELECIONADOS

Barroco
Soneto a Nosso Senhor
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,


Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinquido
Vos tem a perdoar mais empenhado.

Se basta a voz irar tanto pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada


Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história.

Eu sou, Senhor a ovelha desgarrada,


Recobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

20
Ao braço do Menino Jesus
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

O todo sem a parte não é todo,


A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.

Em todo o Sacramento está Deus todo,


E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.

O braço de Jesus não seja parte,


Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,


Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.

21
O Poeta na
ultima hora da sua vida
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,


Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro.

Neste lance, por ser o derradeiro,


Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro.

Mui grande é vosso amor, e meu delito,


Porém, pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,


Que por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.

22
Ao dia do Juízo
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

O alegre do dia entristecido,


O silêncio da noite perturbado
O resplendor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido!

Rompa todo o criado em um gemido,


Que é de ti mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.

Soa a trombeta da maior altura,


A que a vivos, e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d’outros ventura.

Acabe o mundo, porque é já preciso,


Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo

23
A Inconstância
dos bem do Mundo
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

Nasce o Sol e não dura mais que um dia,


Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?


Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,


Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,


E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

24
A Nosso Senhor Jesus Christo com actos
de Arrependido e Suspiros de Amor
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,


É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha à vaidade,


Vaidade, que todo me há vencido;
Vencido quero ver-me, e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.

Arrependido estou de coração,


De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.

Luz, que claro me mostra a salvação,


A salvação pertendo em tais abraços,
Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.

25
À Conceição Imaculada
de Maria Santíssima
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

Para Mãe, para Esposa, Templo e Filha,


Decretou a Santíssima Trindade
Lá da sua profunda eternidade
A Maria, a quem fez com maravilha.

E como esta na graça tanto brilha,


No cristal de tão pura claridade
A Segunda Pessoa humanidade
Pela culpa de Adão tomar, se humilha.

Para que foi aceita a tal Menina?


Para emblema do Amor, obra piedosa
Do Padre, Filho, e Pomba essência trina:

É logo conseqüência esta forçosa,


Que Estrela, que fez Deus tão cristalina
Nem por sombras da sombra a mancha goza.

26
Buscando a Cristo
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

A vós correndo vou, braços sagrados,


Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados


De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,


A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,


A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

27
A Maria Santissima
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

Como na cova tenebrosa e escura,


A quem abriu o original pecado,
Se o próprio Deus a mão vos tinha dado,
Podíeis vós cair, ó Virgem pura?

Nem Deus, que o bem das almas só procura,


De todo vendo o mundo arruinado,
Permitira a desgraça haver entrado
Donde havia sair nossa ventura.

Nasce a rosa de espinhos coroada,


Mas se é pelos espinhos assistida,
Não é pelos espinhos magoada.

Bela Rosa, ó Virgem esclarecida!


Se entre a culpa, se vê, fostes criada,
Pela culpa não fostes ofendida

28
Ao Santíssimo Sacramento
estando para comungar
Gregório de Matos Guerra: O boca do inferno.

Tremendo chego, meu Deus, vossa idéia inescrutável.


Ante vossa divindade, Eu confuso neste caso
que a fé é muito animosa, entre tais perplexidades
mas a culpa mui cobarde. de salvar-me, ou de perder-me,
À vossa mesa divina só sei, que importa salvar-me.
como poderei chegar-me, Oh se me déreis tal graça,
se é triaga da virtude, que tenho culpas a mares,
e veneno da maldade? me virá salvar na tábua
Como comerei de um pão, de auxílios tão eficazes!
que me dais, porque me salve? É pois já à mesa cheguei,
um pão, que a todos dá vida, onde é força alimentar-me
e a mim temo, que me mate. deste manjar, de que os Anjos
Como não hei de ter medo fazem seus próprios manjares:
de um pão, que é tão formidável Os Anjos, meu Deus, vos louvem,
vendo, que estais todo em tudo, que os vossos arcanos sabem,
e estais todo em qualquer parte? e os Santos todos da glória,
Quanto a que o sangue vos beba, que, o que vos devem, vos paguem.
isso não, e perdoai-me: Louve-vos minha rudeza,
como quem tanto vos ama, por mais que sois inefável,
há de beber-vos o sangue? porque se os brutos vos louvam,
Beber o sangue do amigo será a rudeza bastante.
é sinal de inimizade; Todos os brutos vos louvam,
pois como quereis, que o beba, troncos, penhas, montes, vales,
para confirmarmos pazes? e pois vos louva o sensível,
Senhor, eu não vos entendo; louve-vos o vegetável.
vossos preceitos são graves,
vossos juízos são fundos,

29
III
POEMAS SELECIONADOS

Arcadismo
Caramuru
Fragmentos Selecionados | Frei Santa Rita Durão

Um Deus (diz), um Tupá, um ser possante


Quem poderá negar que reja o mundo,
Ou vendo a nuvem fulminar tonante
Ou vendo enfurecer-se o mar profundo?
Quem enche o Céu de tanta Luz brilhante?
Quem borda a Terra de um matiz fecundo?
E aquela sala azul, vasta, infinita,
Se não está lá Tupá, quem é que a habita?

(Caramurú, Canto III, estrofe V)

A chuva, a neve, o vento, a tempestade


Quem a rege? a quem segue? ou quem a move?
Quem nos derrama a bela claridade?
Quem tantas trevas sobre o Mundo chove?
E este espírito amante da verdade,
Inimigo do mal, que o bem promove,
Cousa tão grande, como fora obrada,
Se não lhe dera o ser, quem vence o nada?

(Caramurú, Canto III, estrofe VI)

Nem mais a espada e bomba pavorosa


Se ouvirá na Marinha e sertão vasto,
A voz só do Evangelho poderosa,
Simples, sem artifício, indústria ou fasto:
A semifera gente viciosa
No jugo conterá de um temor casto;
E às mãos dos seus apóstolos se avista,
Com as armas da Cruz feita a conquista

(Caramurú, Canto VIII, estrofe LXXVI)

31
Caramuru
Fragmentos Selecionados | Frei Santa Rita Durão

E na Ilha do Corvo, de alto pico


O vejam numa ponta colocado,
Onde acene ao país do metal rico,
Que o ambicioso europeu, vendo indicado,
Dará lugar, que ouvida nele seja
A doutrina do Céu e a voz da Igreja.

(Caramurú, Canto I, estrofe LXIII, 3-8)

Contam que, quando aos nossos cá pregava,


Poder mostrara tal nos elementos,
Que às ondas punha lei, se o mar se irava,
E de um aceno só domava os ventos:
Os matos se lhe abriam, quando entrava,
E os tigres feros, a seus pés atentos,
Pareciam ouvir, como a outra gente,
Festejando-o co’a cauda brandamente.

(Caramurú, Canto III, estrofe LXXXIII)

Sofrem riscos, trabalhos, fomes, frios,


Sem recear os bárbaros insultos:
Penetram matos, atravessam rios,
Buscando nos terrenos mais incultos
Com imensa fadiga e pio ganho
Esse perdido, mísero rebanho.

(Caramurú, Canto X, estrofe LVI, 3-8)

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SOBRE OS AUTORES

Padre José de Anchieta (1534-1597) foi um padre jesuíta


espanhol. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II e canonizado
pelo Papa Francisco, em 3 de abril de 2014.
Foi chamado o Apóstolo do Brasil, pela identificação com seus
discípulos aos quais dedicou sua vocação missionária e o seu
talento literário. Aprendeu as primeiras letras em casa e em
seguida, ingressou na escola dos dominicanos.
Aos 14 anos, em companhia de seu irmão mais velho, José de
Anchieta foi para Coimbra e ingressou no Real Colégio das
Artes, onde estudou humanidades e filosofia. Em 1550, se
candidatou ao Colégio dos Jesuítas de Coimbra, e em 1551 foi
recebido como noviço.

Gregório de Matos (1636-1695) foi o maior poeta do Barroco


brasileiro. Desenvolveu uma poesia amorosa e religiosa, mas se
destacou por sua poesia satírica, constituindo uma critica a
sociedade da época, recebendo o apelido de "Boca do Inferno".
Gregório de Matos Guerra nasceu em Salvador, então capital
do Brasil, na Bahia, no dia 23 de dezembro de 1636. Filho de pai
português e de mãe brasileira foi criado no meio de uma família
rica e influente de senhores de engenho. Foi aluno do Colégio da
Companhia de Jesus onde estudou Humanidades.

Santa Rita Durão (1722-1784) foi um religioso brasileiro.


Poeta e orador foi um dos grandes representantes da poesia
épica brasileira na época da colonização.
Santa Rita Durão ou Frei José de Santa Rita Durão nasceu
em Cata Preta, nos arredores de Mariana, em Minas Gerais, no
ano de 1722. Estudou com os jesuítas no Rio de Janeiro. Foi pra
um seminário na Europa e nunca mais voltou ao Brasil

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SOBRE O ORGANIZADOR

Felipe Pereira dos Santos é Graduando do curso de Licenciatura


em Letras e suas respectivas literaturas no IFAL - campus
Arapiraca. Atualmente bolsista de Iniciação à Docência - PIBID,
e também pesquisador na mesma instituição.

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