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VAN GOGH
WLADIMIR ALVES DE SOUZA
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a Vida . a Obra
1955
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A memória de meu pai
"L:a [asnille maqnijique ct lamcniable des uer-
'<'cu:\:"est le sel de Ia terre. Ce S01lt eux et uoti pas
d'outres que oni [oudé lcs rcliqions et composé lcs
chefs d'oeuurcs. Jamais le monde ne saura iout ce
qu'il lcur doit, ni Sl!1'tOUt cc qu'ils ont souffert pour
/c fui doniier ...
MARCEL PROCST
INTRODUÇÃO
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Uma das características da era contemporânea é a do ar-
tista que escreve sôbre arte e sôbre si mesmo. Ingres, Dela-
croix, Cézanne, deixaram o seu pensamento estético em textos
que contribuem, em parte considerável, para a compreensão da
sua pintura.
Julgamos do maior interêsse, entre os pintores do nosso
tempo, a figura de Vincent Van Gogh, tanto pelo valor excep-
cional da sua contribuição na evolução final do impressionismo,
como pelo que ela representa, face a algumas das mais im-
portantes correntes estéticas do Séc. XX. Por outro lado, a
complexa personalidade de Van Gogh compreende o "pintor-
poeta", cujas confissões, idéias e sonhos, surgem, através de
vasta correspondência, trazendo a marca de um gênio extraor-
dinário, consumido pela urgência e pela abundância da fôrça
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-- --- ~-------
A VIDA
INFÂNCIA
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Não há dados seguros sôbre a sua infância. Êle parece,
entretanto, ter sempre sido um solitário, nunca tomando parte
nos brinquedos dos irmãos. "Passeava sozinho, conta sua irmã.
Êles não ousavam segui-Ia. Ia ao rio, e pescava insetos aquá-
ticos. Espetava-os numa caixa branca onde escrevia o nome de
cada animal, muitas vêzes em latim. Conhecia os lugares onde
crescem as flores dos campos. Herborizava, chorava, sonha-
va" e) Imaginamo-Ia, deitado, por vêzes, na relva, a cismar
diante do longo cortejo das nuvens, ou, ainda, a caminhar,
sem destino, ao sabor da descoberta e do imprevisto.
Temperamento estranho o dêsse menino! Alternando longas
horas de devaneio mudo com freqüentes cenas de violência e
rebeldia, trazia já em si o gérmen da revolta e do protesto.
Conta-se que, um dia, sua avó, tendo vindo de Breda passar
alguns dias em Zundert, presenciou uma das explosões 'do jovem
Vincent. Sem maiores explicações, a digna senhora agarrou-lhe
o braço, e com dois tapas nas orelhas escorraçou-o da sala.
Isto determinou um drama familiar com a mãe, logo pacifi-
cado pela intervenção paterna, pois o pastor Van Gogh, "pelo
fim da tarde, atrelou um carro, e levou as duas senhoras a pas-
sear por entre as urzes em flor. E elas se reconciliaram, conclui
a Sra. Theo, na magnificência de um suntuoso crepúsculo". (2)
ADOLESCÊNCIA
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Em Julho de 1869, tendo completado 16 anos, começa a tra-
balhar, a pedido do rico tio Vincent, que vivia ,repousadamente,
em Princenhage, antigo negociante de objetos de arte, na su-
cursal de Haya da casa Goupil. Eis mais um Van Gogh num
ramo de comércio tradicional na família. Pontual no trabalho,
consciencioso no cumprimento de suas obrigações, pouco a
pouco se lhe vão abrindo a inteligência e a imaginação, em con-
tacto com as obras de arte da galeria e as visitas aos museus.
Em 1873, Theo parte para Bruxelas, a trabalhar também
na sucursal da firma Goupil. Aos 15 anos já é um rapaz sério,
cheio de bom senso e boa vontade. Pela identidade do tra-
balho estreitam-se, assim, os laços entre os dois irmãos.
LONDRES
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mentin, Diaz e Corot, entre muitos outros, aparece, também,
Eugêne Boudin. Até que ponto, nesse tempo, Van Gogh terá
conhecido o pré-impressionista Boudin, as suas paisagens da
Bretanha, de Normândia e da Holanda, e o sentido anunciador
de sua pintura?
Em Londres, porém, onde está instalado numa pensão
familiar, Vincent vai sentir a primeira e trágica decepção.
A filha de sua hospedeira é uma linda loura, alegre e
jovial, Ursule Loyer. Ursule cuida de crianças, na pequena
pensão, e Vincent que aos poucos sente crescer dentro do peito
uma paixão ardente pela jovem, chama-a ''l'ange aux poupons".
Começa a cortejá-Ia, criando na imaginação todo um mundo de
ilusões, alimentadas pelos sonhos quotidianos de uma união pró-
.xíma . Porém, sem que êle soubesse, Ursule está noiva, há mais
de um ano, dum rapaz, que então trabalhava no país de Gales .
.À intolerável ansiedade que o faz sofrer, pela timidez, sucede
um momento de arrebatamento, no qual Vincent, desajeitada-
mente, propõe casamento a Ursule. A resposta é uma risada
sonora e divertida, e os planos mais secretamente acariciados
caem, dolorosamente, por terra. Mas Vincent, que se acreditava
correspondido, não se quer convencer, torna-se, finalmente,
agressivo, até que, repelido brutalmente, tem de abandonar o
quarto e recalcar o sofrimento.
DÚVIDAS
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de um período, em sua vida, em que começam a fermentar
sentimentos de frustração e dúvida de si mesmo.
Depois de uma permanência de algumas semanas em Hel-
voirt, Vincent volta a Londres, em companhia de uma irmã.
Porém, a atmosfera londrina lembra-lhe os sofrimentos ainda
próximos. É o início de sucessivos conflitos com a clientela e com
os patrões. Vincent, decididamente, começa a sentir a mesqui-
nhez da sua vida de comerciante, fadado a vender uma mer-
cadoria que despreza e a bajular o mau gôsto do público. Parte
então, a trabalhar na sucursal de Paris.
Há dois anos, já, que êle se corresponde com Theo. Numa
carta refere-se a uma visita à exposição Corot e aos Museus do
Louvre e do Luxemburgo. Em Julho de 1875 escreve a Theo:
"Aluguei um pequeno quarto em Montmartre, de que havias de
gostar. É pequeno, mas abre para um jardimzinho recoberto
de hera e parreira". (1) O quarto tem as paredes forradas com
gravuras de Ruysdael, Rembrandt, Philippe de Champaigne,
Corot, Bonnigton, Troyon, e muitas outras, cuja lista comunica
a Theo.
LEITURAS
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Porém, a vida continua. O trabalho é quotidiano e ener-
vante. Pelo fim do ano, Vincent parte, bruscamente para a Ho-
landa, volta a Paris, torna a partir para Etten. E é, finalmente,
depois de todos êsses avatares, despedido do emprêgo. Tenta
nova ocupação, empregando-se como preceptor numa escola na
Inglaterra, em Ramsgate, e depois em Isleworth, onde ajuda o
ministro metodista Jones na redação de sermões. Será ainda um
fracasso, desta vez, como pregador. E' despedido por incapaci-
dade, e pelo aspecto rústico e desajeitado que apresenta.
o PASTOR
INICIAÇÃO PASTORAL
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admissão ao seminário de Teologia da Universidade. A sua
carta de 27 de julho de 1877 a Theo se queixa das lições de
gregodo helenista Mendesda Costa, nas tardes de verão, quentes
e pesadas, ao mesmo tempo que lembra os campos de trigo do
Brabante. Um dia almoça um pedaço de pão sêco e um
copo de cerveja, e comenta: " ... é um meio recomendado por
Dickens àqueles que estão no ponto de se suicidar, como sendo
particularmente indicado para desviá-los dêsse projeto durante
algum tempo." (1)
A correspondência com Theo é, nessa época, bastante con-
fusa. Mixto de citações e comentários de textos sacros e de
pintura. A Bíblia, Dickens e Michelet, a Odisséia, Rembrandt,
t e Jules Breton se misturam com os anseios de se tornar
bom pregador: "Deve-se amar o quanto se puder, pois aí
reside a verdadeira fôrça, e aquêle que muito ama realiza
gnllldes coisas... " Mais adiante diz: "Quanto mais procuramos
qualificar num. certo terreno de atividade ou de ofí-
, adotando um. modo de pensar e de agir relativamente in-
deJJeD1dente, e mais nos conformando com regras fixas! tanto
firme se tornará o caráter, não sendo preciso para isto
ujnhar nosso espírito. É bom fazer essas coisas porque a
é curta e o tempo passa depressa. Se nos aperfeiçoarmos
wna só coisa e bem a compreendermos,adquirimos além disso
a compreensão e o conhecimento de muitas outras". e).
Vincent se sente tomado por um profundo ardor religioso.
asceu para dar tudo de si, busca sua verdadeira vocação, sem
compreender ainda que lhe está reservado trazer ao mundo, não
a palavra da redenção pela presença divina, mas a revelação
da alma humana pela pintura.
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Assim é que se lança, de corpo e alma no estudo. Mas, para
que tanto latim e tanto grego? Não seria possível levar a pa-
lavra de Deus aos humildes, com simplicidade, e de coração
aberto?
o BORINAGE
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formidávele terrível tarefa, até que um dia a miséria, a doença,
velhice consumam sua obra: a morte, consolação suprema.
Pela noite as tavemas se enchem, e o álcool faz esquecer
pouco da tragédia da vida. À madrugada seguinte, através
bruma fria e pegajosa, dentro da escuridão, o negro formi-
gwdro humano se escoa, por entre os caminhos lamacentos, as
torres de elevadores e as linhas aéreas, a mergulhar no seio da
o trabalho continua.
paisagem tétrica, não desprovida de grandeza hu-
l.:J_.lt chega, corretamente vestido, ainda afeito aos há-
1lâll1OI. De Mons parte para Pâturages e logo a seguir
tro da mineração. Vai começar uma vida de
ltacto com a miséria negra. Aí viverá cêrca de
pouco, suas boas roupas vão desaparecendo.
IfJlfler6ftis tudo que possui. Deixa o quarto limpo
•• CllCUlp&.l3, primitivamente, em casa de um casal,
~'<1JWIlI& cabana infecta, dormindo sôbre palha
é o mesmo dos mineiros. Compar-
1II1êr1as, tomou-se agora um dêles. E todos o
_.~-.. re&Illei'to.
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de .que me sucede ar-
CONTINUAR SEMPRE
CUESMES
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uma série de desenhos: "rabisquei um desenho que representa
homens e mulheres catadores de carvão, indo ao fosso, pela
manhã, na neve, por um atalho ao longo de uma cêrca de es-
pinheiros, sombras que passam, vagamente perceptíveis no cre-
púsculo; ao fundo se esbatem contra o céu as grandes constru-
e)
ções da jazida e o "terril"."
Há, já nesses primeiros desenhos, alguns dos elementos que
caracterizarão sua arte; o sentimento da realidade e a imensa
compaixão humana. Porém, o artista é humilde, cheio de dúvida,
da técnica.
o VAGABUNDO
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-
cansaço, com os pés magoados e feridos, trocando por pedaços
de pão duro alguns desenhos.
Nessa grande miséria sente voltar a-energia interior e'
diz: "seja como fôr, sairei de mais essa dificuldade, e reto-
marei o lapis" (1).
Alguma coisa resta dessa penosa excursão: as aldeias dos
tecelões. "O homem do fundo do abismo, de proiundis, é o car-
voeiro: o outro, de ar sonhador, quase abstrato, quase sonâm-
bulo, é o tecelão" (2) .
Em Outubro de 1880, Vincent se instala em Bruxelas, onde
começa a trabalhar, e encontra o pintor Alexandre Van Rap-
pard, de quem se torna amigo, e a quem escreverá durante cinco
anos.
Rappard é o artista aristocrata, Vincent é o vagabundo mi-
serável. Porém, seus pontos de vista coincidem. Buscam o
mesmo ideal de verdade na observação. dos motivos populares.
Impossível trabalhar, no seu pequeno aposento do boule-
vard du Midi. A casa de Rappard lhe está aberta, e é lá que
desenha. Qualquer modêlo lhe serve: operário, menino de rua,
soldado, paisagem . "Nem um só dia sem uma linha", como
dizia Gavarni. e).
K.
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outra decepção mais grave o espera. O encontro com a prima
K. (Kee) , viúva, com um filho, que lhe parece encarnar, por fim,
o ideal da mulher sonhada .. Sua imaginação exaltada constrói,
imediatamente, a quimera de um lar, no qual possa trabalhar,
amparado por uma afeição ardente e durável. Mas êle é feio,
desgracioso, de maneiras bruscas, e a prima Kee não concorda
com seus projetos, rejeita-o, violentamente, com uma recusa ca-
tegórica e definitiva. "Não, não, nunca". Kee não pode esquecer
a memória do marido morto e não sente nenhuma atração por
êsse estranho primo, de cabelos de tôgo e olhar ardente.
A carta de setembro, escrita por Theo, é um testemunho do-
loroso do esfôrço feito por Vincent para se fazer amar. E o
trabalho continua, persistente. As "Cabanas perto de Nuenen",
hoje no Museu Boymans, datam dessa época.
MAUVE E HAYA
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PRIMEIRA ENCOMENDA
Pela primeira vez parece que o destino vai lhe ser favorável.
Mauve o recebe bem, aconselha-o, e em janeiro de 1882 êle re-
//y cefe a primeira encomenda, do tio Comelius Marinus: doze
pequenos desenhos a pena, representando vistas de Haya, a
dois e meio florins cada.
Êsses dias representam, para Vincent, alguma coisa de mi-
lagroso. A simpatia de Mauve, que o faz pintar a aquarela, as
primeiras encomendas, isso, para êle, habituado a receber ape-
nas a indiferença ou a repulsa, é quase inacreditável. E envia
a Theo as palavras de Millet: "A arte é um combate - na
arte se deve arriscar a pele. Trata-se de trabalhar como vários
negros: preferiria nada dizer a me exprimir fracamente". (1)
Para conseguir progressos na técnica encontra métodos
compreensivos de perspectiva no "Guide de l'A. B. C. du Dessin",
de Cassagne, e fica em êxtase por ter conseguido desenhar o in-
terior de uma cozinha, com o fogão, a cadeira e a mesa, tudo em
seu lugar. Há no seu ingênuo entusiasmo todo o sabor de uma
descoberta.
Porém, o gênio rebelde não tarda a se manifestar. No in-
verno daquele ano, um dia, Vincent entra em conflito com
Mauve. O primo famoso lhe impõe a cópia de uma moldagem
de gêsso, e como a crítica, diante do resultado, seja um pouco
acerba, surge uma troca de palavras desagradáveis. Vincent,
irritado ,exclama: "eu sou um artista !", afirmando, veemente-
mente, o seu díreáto de expressão. E, num rasgo de violência,
atira o gêsso ao chão, fazendo-o em pedaços. Mauve, homem
calmo e refletido, chocado pela brutalidade do primo, encara-o,
severamente, e diz: "és um perverso, teu caráter é mau! " .
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SIEN
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«Parece-me que cada homem que /velha o couro dos seus sa- /,;)
patos, teria agido da mesma forma". E tem então um pensa-
mento de admirável bondade: "ela nunca viu o que é bom,
como pode ser boa?" e).
As coisas, porém, vão mal. A mãe de Christine é uma velha
proxeneta, bêbada e crivada de vícios. E, ao cabo de ano e meio
de martírio e miséria em comum, Sien sai definitivamente de
.sua vida.
"TERRA LAVRADA"
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SCHEVENINGEN
PRIVAÇÕES
DRENTHE
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firmemente decidido a levar por diante a sua concepção da
pintura, pintando na terra de Drenthe, seus campos de tojo
e de trigo, seus cemitérios.
De madrugada, uma vez, tem a sensação de ver "os verda-
deiros Corot", mergulhados na doçura e no mistério da névoa
argentina da manhã. e).
Noutra ocasião êle contempla um rebanho de carneiros,
conduzido pelo pastor ao aprisco. É o crepúsculo. No largo ca-
minho lamacento, por entre as altas árvores meio despidas pelo·
outono, avança, lentamente, o rebanho, formando corpo com
a terra lodosa, entre montes de palha e de turfa. Abre-se a
porta do abrigo, como uma negra caverna, onde bruxoleia uma
lâmpada de azeite. A porta se fecha. A noite está presente,
na paz e no silêncio.
É como um sonho, que leva Vincent a esquecer de tudo,
até de comer.
NUENEN
·27
Nuenen é uma pequena povoação, nos campos brabanteses,
próximo a Etten: duas fileiras de casas, marginando a estrada
'para Eindhoven.
-os TECELÕES
.MELANCOLIA
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A sua sensibilidade cromática se impressiona pela busca do
azul. Azuls claros e escuros nas fôlhas e nas sombras em opo-
sição aos tons dourados ou avermelhados dos trigais. O azul
da roupa dos camponeses, severamente tramado com negro,
mais belo ainda quando velho e usado, justo o necessário para
fazer cantar os alaranjados sutis da pele, constitui, para os seus
olhos, tema para longas meditações.
MARGOT
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"ARDAPPELETER"
DEFORMAÇÕES
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ANTUÉRPIA
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PARIS
o IMPRESSIONISMO
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e a virtuosidade da execução, os japoneses exercem grande in-
fluência na nova criação espacial de um Lautrec, de um Degas,
de um Seurat. Van Gogh não se furta a essa influência. As
suas telas daí em diante o revelarão. O "Pont d'Asniêres' é
bem característico dessas novas tendências. E, pouco a pouco,
à grafia japonesa êle infunde o delírio da côr, de uma côr iri-
sada, cintilante pela pujança dos contrastes e a riqueza da
matéria.
A vida com Theo, em Paris, se inicia sob bons auspícios.
Theo sonha com a possibilidade de "lançar" os impressionistas,
porém o público não compreende as audácias dos novos, e a
firma Goupil nem quer ouvir falar nesses loucos.
Por êsse tempo Vincent encontra Seurat, Signac, Pissarro,
Degas, e, finalmente, Gauguin. Expõe alguns quadros em casa
do "pêre" Tanguy. O seu trabalho, febril e fecundo, (mais de
200 quadros pertencem a essa fase parisiense), não o impede
de elaborar os planos de uma espécie de república de artistas,
trabalhando em comum, como num falanstério. Lautrec lhe
falou do sul da França, da Provença, cuja luz extraordinária
transfigura as coisas. Ali os artistas se poderiam reunir, pondo
os bens em comum e trabalhando numa grande obra coletiva.
Os planos, porém, não surtem efeito. Por outro lado, o gênio
irascível de Van Gogh, o absintismo, fazem alternar períodos de
excitação violenta e de depressão, e, apesar da infinita paciência
e bondade de Theo, um dia, subitamente, Vincent parte para
o Sul.
ARLES
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ritante, que induz à violência e aos maus preságios. Porém, já
tinha êle dito, uma ocasião, a Emile Bernard, que no sul da
França é que se deveria instalar o atelier do futuro.
Nos campos cobertos de neve começam a florir as amen-
doeiras. E ao lado de um trabalho imenso e incessante, re-
começa a correspondência com Theo. Preocupa-o a circuns-
tância de que a sua pintura não encontra amadores. Sente-se
um pêso morto para o irmão, porém a tarefa que tem a de-
sempenhar não lhe dá tréguas. Escritas em francês, as cartas
revelam, dia a dia, as suas preocupações, os seus tormentos, a
alegria da luz e da côr. Instala-se numa casa amarela, sua
côr favorita, e continua a pensar na velha idéia da coopera-
tiva de pintores. Depois de muito sacrifício consegue atrair
o seu amigo Gauguin.
O bom Theo é inesgotável. Não basta .sustentar Vincent.
Deverá também suportar as despesas com Gauguin. Êste está
doente, abandonado, em Pont-Aven, na Bretanha, e não tem
sequer recursos para pagar as dívidas e a viagem. Ao chegar a
Arles, Gauguin encontra o amigo esgotado pelo excesso de tra-
balho, e com os nervos à flor da pele, porém, alegre pelas espe-
ranças que lhe sorriem. Parece a Vincent que um primeiro
passo decisivo está dado, para a cooperativa de pintores que
sonha fundar, e a casa amarela se alegra com a chegada do
grande amigo.
Contudo os dois temperamentos divergem por completo.
Gauguin é irônico, sarcástico, acredita em sua superioridade,
julga-se realmente o iniciador de Vincent, enquanto êste é hu-
milde e sofredor, impetuoso e susceptível das maiores violências.
A ascendência de Gauguin é forte, e tirânicamente exercida.
Nas discussões sai sempre vencedor, o que, progressivamente,
vai oprimindo Vincent.
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Não conseguem entrar em acôrdo, quanto às idéias sôbre
arte. Enquanto Gauguin admira Rafael, Ingres, Degas, Vincent
os detesta, e conserva a fidelidade de sempre a Daumier, Millet
e Rousseau, desprezados irônicamente por Gauguin.
/~ Após um/visita ao Museu de Montpellier, em que os dois
se extasiam diante dos Delacroix da sala Bruyas as altercações
recomeçam, a respeito de Rembrandt. "A discussão é de uma
eletricidade excessiva, e às vêzes saímos de cérebro cansado,
·comouma bateria elétrica depois da descarga" e). Ao cabo de
dois meses a crise está próxima.
Na ante-véspera de Natal, Gauguin termina o retrato, já co-
meçado, de Vincent. Não é' a melhor de suas obras, e o modêlo
não' se reconhece, talvez porque já nêle exista, estampado, o
facies da loucura. À noite, no café, sem qualquer motivo, brus-
camente, quando ambos tomam seu absinto, Vincent atira o
copo à cabeça de Gauguin, que consegue desviar o golpe, e, em
seguida, agarra-o pelo braço e o arrasta para casa.
Nessa noite, Gauguin, dormindo, entrevê confusamente,
alguém que o espreita, imóvel. É Vincent, mudo, e de olhar
fixo. O outro se levanta, encara-o com firmeza. Vincent vai
se deitar, sem dizer paiavra, e dorme, esmagado por um sono
de chumbo.
A TRAGÉDIA
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ta-se, e depara com Vincent, de olhos esgazeados, empunhando
uma navalha aberta. Guaguin fita-o com severidade. Vincent
dá meia volta e corre para casa, onde, de um golpe, corta a
orelha esquerda, embrulha-a cuidadosamente em diversos trapos
e vai levá-Ia de presente a uma prostituta conhecida, num
bordel, com um bilhete: "Aqui está uma lembrança minha".
Volta para casa e se deita, tendo deixado uma lâmpada acesa
na janela.
Passa a noite desacordado. Pela manhã, o bairro está em
reboliço. A mulher, ao receber o estranho presente desmaiou e
amotinou a casa de tolerância. Chamada a polícia, as investi-
gações conduzem a Vincent e Gauguin. Êste último passara a
noite num hotel, para evitar complicações. É prêso e levado à
casa amarela, onde está Vincent, deitado, enfraquecido pela he-
morragia, porém perfeitamente lúcido. Esclarecido o caso,
apesar das súplicas do amigo, Gauguin parte para Paris, en-
quanto o bom Theo, chega, avisado do que acontecera.
HOSPITAL DE ARLES
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para casar, em Paris, e de lá escreve, inquftto pela falta de no- .i/
tícias. I /
ST-RÉMY
AUVERS
37
-sur-Oise, a 6 quilômetros de Pontoise. Lá vive o Dr. Gachet,
psiquiatra, amador de pintura e amigo dos artistas. Ali Vincent
terá confôrto, assistência e compreensão.
Depois de tantos anos de sofrimento, por fim uma boa no-
tícia. Theo lhe anuncia a venda de um quadro: "A parreira
vermelha", única tela vendida em tôda a vida do pintor. Ao
mesmo tempo Albert Aurier escreve sôbre a obra de Víncent
um longo e expressivo artigo, análise cheia de profunda sim-
patia humana e compreensão estética.
DR. GACHET
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exalta e intima o médico, com olhar alucinado, a que dê ime-
diatas providências para proteger o quadro. Gachet se sente
ameaçado pela terrível expressão da loucura, porém promete
tudo, na esperança de que a crise se desvaneça.
OS CORVOS
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sôbre a camisa. Num supremo esfôrço êle se atira à cama, o'
rosto voltado contra a parede.
Assim o encontra o hospedeiro Ravoux, que, não o tendo-
visto descer para jantar, vem avisá-lo . Vincent se volta, mostra.
o peito sangrando, e diz: "Quiz me matar, mas errei o tiro."
Ravoux, apavorado, manda avisar o médico de Auvers, o Dr. Ma-
zery, porém Vincent pede a presença do Dr. Gachet, que, logo
prevenido, chega, aflitíssimo, segura suas mãos, toma-lhe o
pulso. Pouco há que fazer. O caso é gravíssimo. Porém, a ro-
busta constituição do pintor possa, talvez, reagir. O doutor pede-
lhe o enderêço de Theo. Vincent nega-se a dá-lo , Não
sofre. Sua serenidade é imensa, diante da proximidade da
morte. Pede um cachimbo. Outro, e mais outro. E fuma, e
cisma. Talvez lhe desfilem diante dos olhos, nesses segundos
essenciais, o espectro enfumaçado dos mineiros do Borinage, os
campos de Brabante, e a floresta molhada pelo sôpro da bor-
rasca, húmida e sombria após a chuva, reanimada pelo vôo das:
gralhas. Talvez, seus olhos queimados pela luz meridional vejam,
a girar, lentamente superpostos, como grandes discos luminosos,
os girassóis de ouro.
Theo chega, desolado, implora uma palavra, uma expli-
cação. É o próprio transbordamento do amor humano de Vin-
cent que o interroga e que o' suplica. É o infinito da bondade
diante do gênio criador. Dos lábios de Vincent saem, como
num murmúrio, as palavras que significam a condenação da
injustiça eterna: "a miséria não acabará nunca."
Vincent agoniza, sem sofrimento. Últimas imagens fu-
gidias desfilam diante de seus olhos: "Aluguei um pequeno
quarto, em Montmartre, do qual gostarias muito. É pequeno,.
mas dá para um jardimzinho, recoberto de hera e de parreiras".
Como tudo está, agora, distante! Um cansaço imenso o invade,.
40
o último cansaço. Sobe-lhe pelos membros lassos, fecha-lhe os
olhos, para sempre.
Sôbre o trigal, descem, do céu de chumbo, 'os corvos do des-
tino, a colher, na tempestade, os derradeiros grãos de sol.
(1) Gustave Coquiot, ap. P. Courthion, Genebra, Pierre Cailler, Ed. 1947.
41
II
A NEUROSE
43
timável, uma conclusão que fixasse o diagnóstico do mal, e
esclarecesse o papel que êste poderia ter desempenhado na evo-
lução da arte de Van Gogh. Não é nossa pretensão dar ao es-
tudo dêsse assunto, orientação fora do terreno da história da
arte. Preferimos conservar ao palpitante mistério do problema,
as incógnitas que constituem alguns dos seus dados de maior
fascínio.
Entre os elementos de que podemos dispor, para a forma-
ção de um critério psicopatológico, temos de considerar o teste-
munho dos contemporâneos do artista, a sua correspondência,
e as diferentes teses posteriormente apresentadas pelos espe-
cialistas .
44
CORRESPONDÊNCIA
TESES
45
gico fim do artista. Miséria, alcoolismo, privações, agravados
pela incompreensão dos contemporâneos, dúvidas terríveis, até
o encontro consigo mesmo, sentido místico e mórbido da sua
dedicação aos humildes, tantos e tantos fatores que obscurecem e
x. dedicação aos humildes, tantos são os fatores que obscurecem e
O exame das teses principais nos levará a classificá-Ias em
quatro grupos:
1.0) - tese da epilepsia.
2.°) - tese de um processo paralítico de fundo sifilítico,
(sífilis contraída dessas "femmes à quarante sous").
3.°) - tese da esquizofrenia.
4.°) - tese das perturbações solares.
Além dessas, outras teoriàs ou outros dados têm intervido
na questão, principalmente o problema do alcoolismo.
No caso da primeira tese, os mais notáveis partidários re-
conhecem que não há caracterização perfeita dos sintomas epi-
lépticos. Mesmo o diagnóstico de epilepsia não convulsiva não
é totalmente satisfatório, segundo Beer, desde que, além de
outros sinais sintomáticos, falta o principal: amnésia e perda
total de consciência. Apesar disso, o diagnóstico não está longe
da verdade, pois os estados alternados de elação e depressão, os
paroxismos da agitação motora, parecem confírmá-lo ,
Entre os partidários da hipótese da epilepsia, além dos mé-
dicos de Arles (os Drs. Urpar, Rey) , e de St. Rémy (Dr.
Peyron), encontramos os Drs. Thurler, Doiteau e Leroy, e
Evensen ..
THURLER
46
picos". E, também, que "a obra de Van Gogh foi a vitória par-
cial do seu "eu" (vontade consciente), sobre o outro "eu" (de-
lírio)". e)
JASPERS
47
A opinião de Jaspers é de que se trata nitidamente de esqui-
zofrenia. O seu estudo é dos mais interessantes, tanto pela alta
categoria do filósofo e psiquiatra, como pela clareza de argu-
mentação. Êle declara: " ... a comparação entre Hoelderlin e
Van Gogh se revelou rica em ensinamentos. Êsses dois homens,
tão essencialmente diferentes um do outro, não o são apenas
pelas condições disparatadas de esferas de atividade. O lado
etéreo, ideal, de Hoelderlin se opõe exatamente ao lado ter-
restre, ao realismo de Van Gogh. Ambos se adaptam penosa-
mente, porém Hoelderlin é delicado, excessivamente suscep-
tível, enqua.nto Van Gogh, mais vigoroso, reage violentamente,
quando irritado ou acuado. Essa dessemelhança entre suas duas
naturezas não exclui certas analogias, no momento em que
entra em jôgo a esquizofrenia, o que torna tais analogias ainda
mais notáveis. Analogia no desenvolvimento: um estágio pre-
liminar, assinalado por certa excitação interior, por preocupa-
ções filosóficas; o paciente se sente mais seguro de si próprio,
menos preocupado com o efeito que produz; é impressionante a
mudança na produção artística, que parece crescer e alcançar
um cume, aos olhos, tanto do autor, como do público. Êsse es-
tágio é seguido por uma primeira crise aguda da psicose, que
se vai renovar em intervalos cada vez mais próximos. Porém,
essas crises trazem apena.sum débil prejuízo à atividade cria-
dora que continua, trazendo, em parte, elementos novos. Du-
rante todo êsse período, há uma forte tensão entre a vivacidade
das impressões sofridas na psicose e o esfôrço de estilização que
as disciplina. Uma resistência desesperada se opõe às fôrças
deletéreas que progridem lentamente. Os dois artistas têm, en-
tão, uma visão mística do mundo; experimentam a evidência
dessa realidade mística, o que faz que ela se íncarne, para cada
um dêles, dentro de aparências ideais ou, realistas. A arte e a
vida se impregnam, para êles, ainda mais do que nos primeiros
48
tempos, com um sentido que se pode chamar metafísico ou re-
ligioso. As obras perdem o seu polimento. A "grosseira mon-
tagem", em Hoelderlin, tem seu equivalente, em Van Gogh, na
crueza agressiva de certas telas. O que se chama sentido da
vida, da natureza, do universal, se tornou, em ambos, mais real,
mais atual, mais cheio de significação metafísica.
"Porém, no mundo da esquizofrenia, tudo é possível. Muitos
outros fantasmas o habitam. Não vemos apenas surgir no início
da doença um demônio libertador; vemos, também, os efeitos
mais terríveis de empobrecimento e tôda espécie de devastações;
à paranoia, em sua pureza inicial, sucedem os automatismos".
Como se pode verificar, por essa página notável de Jas-
pers, a tese da esquizofrenia pode ter fundamento, no caso de
Van Gogh, reservas feitas de que não se trata de um caso puro
e perfeitamente caracterizado daquela psicose. Jaspers, aliás,
é o primeiro a sentí-lo, e a compreender a impossibilidade de
se reduzir os casos conhecidos de artistas esquizofrênicos a um
denominador comum.
HOLSTIJN
49
"Maison Jaune", os "Girassóis" etc.) , do que a hipótese de, "pri-
vado da possibilidade, primeiro, da transferência hétero-eró-
tíca, e, depois, da homo-erótica, êle mergulhar na psicose, de-
pois do recal que da sua libido". Há sempre perigo em se atri-
buir ao artista sentimentos ou impulsos que êle seria o primeiro
a não reconhecer, intenções explícitas ou implícitas que, fora
do terreno da simples hipótese, dificilmente se mantêm de pé.
A preferência pelo amarelo, de que o próprio Van Gogh dá ra-
zões suficientes, constitui, a nosso ver, o amor pela luz pura,
representada pela mais luminosa das côres. Tudo, na claridade
deslumbrante da Provença, seus campos crestados, suas estradas
ardentes, seu firmamento cintilante, convidava o pintor a ex-
primir o delírio da luz. e)
GACHET E GREY
50
Grey, que também acredita numa insolação crônica, causa da
famosa xantopsia e do delírio. Tôdas essas idéias se ressentem
bastante da infância da psiquiatria. Aliás, o Dr. Beer, criticando
o diagnóstico póstumo de Grey diz: " (O médico) ... asseverou
que Van Gogh era sifilítico - o que nunca foi provado - e fez
um diagnóstico de "meningo-encefalite difusa, de forma disfar-
çada, e, de certo modo, incaracterística", que não parece ter
sido paralisia geral e definitiva. Van Gogh nunca mostrou si-
nais de demência (perda das faculdades intelectuais)".
BEER
(1) Joachim Beer - Diagnosis of the Tragedy. Arts News Annual - 1950.
51
traços pouco marcantes como estigmas de degeneração, tais
como assimetria facial e acentuada deformação craniana, com-
pletam o retrato dos sintomas que apresenta a psicopatia cons-
titucional de Van Gogh". E, mais além: "sem desejar estender,
indevidamente, a classificação de esquizofrenia, devemos adian-
tar a opinião que êsse pintor de gênio sofreu de uma psicopatia
constitucional, com ataques que vão crescendo de intensidade
através de sua vida. A hereditariedade mórbida, manifestada
pelo irmão de Vincent, fornece uma base para a teoria de que
a moléstia do pintor não foi adquirida, tal como esquizofrenia,
porém uma doença degenerativa".
Aliás, é também Joachim Beer, quem, analisando a crise
da orelha cortada, assevera: "Tendo já sofrido em Amster-
dam perturbações mentais, o seu cérebro não podia resistir a
uma exaltação mórbida. As insolações, o nervosismo e o excesso
de trabalho que se impôs, trouxeram acessos de loucura, que
existiam nêle em estado latente." e)
Como se pode depreender do estudo de Beer, êste não define
com clareza a sua posição, limitando-se a assinalar uma "psi-
copatia constitucional", de origem hereditária. Parece, aliás, que
a maioria dos autores que investigaram o problema, fizeram-
no levando em consideração. mais o seu aspecto medical, do que
propriamente os complexos fatores da personalidade do artista,
e, também, as condições sociais em que se desenvolveu a sua
vida tão dolorosa. À pura e simples patografia de Van Gogh se
devem, conseqüentemente, incorporar tantas e tão diversas ou-
.tras causas, que contribuiram, senão para determinar, pelo
menos para acelerar e condicionar a evolução da crise e seu
trágico destêcho ,
52
DUAS ORDENS DE FATORES
,
Em face das teorias expostas, parece-nos que se devem con-
siderar, em conjunto, os diferentes fatores que conduziram Van
Gogh à loucura, considerando o caso, preliminarmente, no seu
aspecto patológico, e, depois, em face dos agentes exteriores,
condições de existência e choques emocionais.
EPILEPSIA
53
apenas a continuação do que se passara com diversos membros
de sua família." e)
Além dêsse testemunho, que nos parece capital, acresce o
fato, que contraria a opinião de Beer, da ausência de amnésia.
Esta se produziu, por mais de uma vez, inclusive no dia em
que Van Gogh é encontrado, deitado e desacordado, entre Ta-
rascon e St. Rémy, com o rosto dentro de uma vala.
ESQUIZOFRENIA
A LUTA VITAL
54
Sien, grávida de um filho, que talvez seja seu. Alternância de
entusiasmo e depressão, relativamente à sua própria obra. Todos
êsses fatores, já de per si, mostram algumas faces do intrin-
cado problema que é a personalidade de Van Gogh.
O que é incontestável é a reação de sua hipersensibilidade,
especialmente diante da rejeição persistente que parece acom-
panhá-lo por tôda a vida. "Van Gogh despertava o riso pelo
seu modo de ser e de se comportar, pois agia, pensava, sen-
tia e vivia de modo diverso dos rapazes de sua idade ... Ti-
nhasempre uma expressão ausente, grave ou melancólica. Po-
rém, quando ria, fazia-o com gôsto, e todo o seu rosto se ilu-
minava e)".
É realmente extraordinária a fôrça espiritual do seu tem-
peramento. Êle tem a certeza de estar destinado a uma elevada
missão, embora não saiba ainda qual possa ser. Há uma Iôrça
irresistível que o anima, através de tôdas as desilusões, de tôdas
as repulsas e rejeições que a vida lhe reserva. É, por conse-
guinte, um forte. "Um louco? Não, porém, um ser muito
complexo. Como homem, êle se encontra desarmado diante da
vida: sem a compreensão e a ajuda do irmão, teria certamente
naufragado. Mas, como artista, é terrivelmente independente,
quer tornar-se pioneiro de uma arte nova, é persistente, cioso
de sua independência, e, para mantê-Ia, sabe lutar e sofrer com
uma coragem inegualada". e).
INTERMÉDIO PASTORAL
55
crífícío e dedicação, superá-Io. Custará a descobrir que essa
competição não tem sentido, e que não nasceu para a vida pas-
toral. Seria, para nós, difícil concordar com a tese de Holstijn, de
que existia em Van Gogh o complexo de Edipo, embora se saiba
que sempre foi o preferido de sua mãe.
Um outro sentimento, profundamente comovente, que bri-
lha nessa vida como um puro diamante, é a sublime dedicação
de Theo, bem como a amizade dos dois irmãos. Theo com-
preende que o seu destino é associar-se ao trabalho de Vincent,
e que deve sacrificar-lhe tudo. Desde cedo êle se dá conta que
a pintura do irmão não é "vendável", mas não cessa, por isso,
de fornecer os parcos recursos que lhe permitirão subsistir,
embora com as maiores privações ,através de todos os contra-
tempos. A união é tão perfeita, que, após a morte de Vincent,
o elo se parte, e Theo sobrevive apenas seis meses.
o REVOLTADO
56
falso passado, julgando ser tradicional o que nada mais era '1
I
o INCOMPREENDIDO '
o ISOLADO
57
Aurier que não escreva mais artigos sôbre a minha pin-
tura, diga-lhe, com insistência, que, primeiro, êle está enganado
comigo, e, depois, que me sinto excessivamente desgostoso para
enfrentar a publicidade. Fazer quadros me distrai, porém
se ouço falar disto, sinto-me mais triste do que êle possa ima-
ginar". (1)
Não é isso demonstração de falsa modéstia ,ou falta de gra-
tidão por quem, finalmente, o compreende e aprecia. É, no
fundo, o sentimento de inutilidade que lhe desperta essa estima
tardia, bem como a certeza de que sua obra já pertence ao fu-
turo.
Mesmo depois da morte, a má sorte persegue sua memória.
Quando em 1897, Ambroise Vollard organiza uma das pri-
meiras exposições de suas obras, - cêrca de sessenta telas, pro-
venientes de Amsterdam, além de numerosos desenhos e aqua-
relas -, o resultado é pouco animador. "O preço dos quadros
mais importantes, como o célebre "Champ de Coquelicots", diz
Vollard, não alcançava quinhentos francos. O público não
se mostrou muito entusiasmado. Não eram chegados os bons
tempos ... Lembro-me, entretanto, de um casal, que parecia par-
ticularmente interessado. Subitamente, o homem, segurando
a mulher pelo braço: "Você,,que pretende sempre que a minha,
pintura doi nos olhos ,então! que diz você desta ?" (Z).
o REJEITADO
58
cente. o artista não é, necessàriamente, um neurótico, porém
não tardará a sê-Io , O seu desajustamento, ao mesmo tempo
que a riqueza das idéias picturais, cria uma atmosfera de
ânsia crescente para a angustiante conquista do absoluto. Daí,
ao mesmo tempo, a revolta contra a sociedade que o ignora, a
sua concentração sôbre si mesmo, e a sensação de que o tempo
que lhe resta é pouco, e de que é necessário trabalhar, trabalhar
sem tréguas, até que se apague, definitivamente, a chama
vital.
CONFLITO INTERIOR
59
os dois Maris, Willem e Jaap, Van der Weele, Bilders, Leys,
entre outros, são os seus preferidos. Desde cêdo êle coleciona
gravuras e reproduções, obras de tendências opostas ou valores
desiguais, (1) em que se encontram representados artistas in-
gleses, Green, entre outros, e desenhistas do "Punch", junto
com Millet, Breton, Gavarni, Doré, Lançon.
Ao mesmo tempo que êsses artistas, cuja fama, em boa
parte, desapareceu, mergulhada no esquecimento, os seus deuses
são Rembrandt, Delacroix, Dupré, Monticelli. Isso nos faz
sentir que, através dêsse caos aparente, o artista busca uma de-
terminada ordem de sensações que é "a sua própria", alguma
coisa que lhe compete dizer. E é, nesse sentido, extrema-
-mente interessante considerar as cópias livres, verdadeiras cria-
ções, da época de St. Rémy. Delacroix, Millet, Doré, lhe ser-
-vem de "suporte" para realizar obra essencialmente pessoal,
em que as formas, ainda reconhecíveis do original ,aparecem
transformadas em elementos plásticos de uma simbologia au-
tônoma. Após a descoberta da "pintura clara", novos entusias-
mos aparecem: Manet, Monet, Renoir, Pissarro, Seurat, Signac
e Gauguin.
A DUPLA PERSONALIDADE
o ALTRUÍSTA
61
Devemos compreender, conseqüentemente, que à margem
dos fatores próprios do temperamento do artista, muito con-
tribuíram para o seu trágico destino, as causas devidas às con-
dições sociais e econômicas em que viveu. Desde 1885 queixa-se
de "mal estar físico". Seus modestíssimos recursos quase não
lhe permitem comprar alimento. A maior parte é absorvida
pelas telas e tintas. É o drama da fome, complicado pelo abuso
do álcool. Quando partiu para Arles êle se sentia" ... magoado,.
quase doente, quase alcoólico, à fôrça de procurar estimulantes".
E, também, "estava seguramente a ponto de apanhar uma pa-
ralisia quando deixei Paris ... Quando deixei de beber, e reduzi
o fumo, quando comecei a refletir, em vez de procurar esquecer,
meu Deus! quanta melancolia, e que abatimento!" (l) Entre-
tanto, o alcoolismo vai recomeçar em Arles, contribuindo para
tornar o problema mais agudo ainda. Queixa-se de dores de es-
tômago, contraídas em Paris, "em grande parte devido ao mau
vinho, de• que bebi muito" e) . Mas é, principalmente, o absinto
que agravará o seu estado, e será o principal responsável pelos
fenômenos epileptiformes posteriormente observados. Veneno
terrível, criador de tantas psicoses, o absinto opera em Van
Gogh uma terrível devastação, ao mesmo tempo que ergue
muito alto o tom da sua pintura, nos amarelos deslumbrantes.
dos girassóis.
ALCOOLISMO
62
não se dá ou não se quer dar conta do seu estado" ... agora
podes compreender que, se o álcool foi, certamente, uma das
grandes causas da minha loucura, isto veio, então, lentamente,
deveria voltar também lentamente ... " (8)
Parece-nos que o problema psicológico de Van Gogh deve
ser considerado sob os seus diferentes ângulos, e não apenas
com a preocupação evidente, por parte da maioria dos seus
comentadores, em lhe apor um rótulo. Esquizofrenia, catatonia,
epilepsia, não explicam, no nosso modesto' entendimento, senão,
parcialmente, a neurose do artista. Êle é o grande isolado, porque
não se pode adaptar, e o meio rejeita quem não compreende e o
ultrapassa. Por êsse motivo a sua correspondência é uma es-
pécie de solilóquio, dá-nos a impressão de alguém a falar alto,
para si mesmo, numa solidão sem fim. A existência de Theo, no
fundo, não o preocupa muito, embora o seu amor fraternal seja
imenso e comovente, e êle sente perfeitamente divididas as duas
tarefas. Compete-lhe pintar, pintar sempre até a morte. • Ao
irmão cabe simplesmente sustentá-lo. Sabe que o seu destino
é sublime, mas não ignora o esfôrço que exige o humilde dever
do seu associado.
Porém, mais significativa e elucidativa ainda, do que a pre-
ciosa correspondência, pelas intenções tão claramente manifes-
tadas, é a própria obra, em que os elementos do subconsciente
afIoram, sem contrôle da vontade do artista.
EVOLUÇÃO DA TÉCNICA
63
matéria. O quadro mantem ainda uma estrutura perceptível,
um esqueleto de perspectiva, que estabelece um ponto de con-
tacto com a realidade. Porém as formas se tornam tumul-
tuosas, simbólicas, eruptivas como as bolhas de um "solfatare".
O ritmo linear ondula, vertiginosamente, num balancear in-
quietante. O grafismo pontilhado, vermiculado, arrasta, em tor-
velinho, árvores, figuras, céu, e terra, numa fusão ardente de
esmaltes liquefeitos. No auto retrato azul, do Louvre, doado pelo
Sr. Paul Gachet, a massa pictural se enrola e desenrola em vo-
lutas, o que dá ao quadro a estranha expressão de olhos pers-
crutadores e angustiados, culminando nos próprios olhos do
modêlo.
A REPRESENTAÇÃO OCULAR
(1) Experimental Studies in Psychiatric Art. Faber & Faber. London, 1953.
64
A simbologia ocular não se pode, contudo, aplicar a Van
Gogh senão com certas restrições, embora a "Noite estrelada",
o "Café de Nuit", os "Ciprestes" possam, a nosso ver, constituir
exemplos bastante claros.
Sejam quais tenham sido os fatores que levaram Van Gogh
à loucura, não temos, porém dúvida em afirmar:
CONCLUSÕES
65
entretanto, tornar-se um neurótico, em virtude de condições
constitucionais, ou em consequência de fatôres adquiridos, ou,
ainda, mercê de problemas complexos de vida, em conflito com
uma hipersensibilidade em perpétua vibração. E' nesse sentido,
a nosso ver que se pode enquadrar o apaixonante problema psi-
cológico de Van Gogh, resultando da soma de fatôres diversos:
epilepsia, esquizofrenia, dupla personalidade, precárias condi-
ções de existência, e conflitos com o grupo social.
I.
66
III
PERÍODOS E INFLUÊNCIAS
1880
67
carreira paterna, a busca de si mesmo, que tantos dissabores
lhe trarão, vão sendo gradativamente substituídos, absorvidos
por aquilo que o destino lhe reserva. O que julgava poder
conseguir no plano da vida religiosa, isto é, a dedicação a um
ideal humanitário, êle o realizará no plano da criação artística.
O primeiro período da obra de Van Gogh se estende a 1886.
É a fase da pintura escura. A paleta do pintor é cheia de bistre,.
betume, negro, acre, terras, que lhe dão um aspecto de pro-
funda melancolia, a própria tristeza do ser humano diante do
destino. Millet e os pintores de Barbizon, bem como os holan-
deses Mauve, Maris, Israêls, são os seus principais modelos.
Porém, é de notar-se que sempre desponta, de forma evidente,.
a forte personalidade do artista. Desde os primeiros desenhos
o traço é robusto, possante, incisivo, numa grafia .não cur-
siva, mas reticente, em golpes curtos e nervosos. As cópias --
como, por exemplo, a do "Semeador" de Millet - são livre-
mente interpretadas. Van Gogh visa menos os efeitos de claro
escuro, modelado, anatomia, do que a fôrça expressiva.
A pintura começa, na obra de Van Gogh, cronolàgicamente,
depois do desenho. Êle tem de vencer as dificuldades da técnica
por si próprio, pois que o auto didatismo está na base do seu
temperamento. Em novembro de 1880, por exemplo, êle se con-
fessa satisfeito por ter desenhado a bico de pena um esqueleto
completo, em 5 fôlhas de papel Ingres, copiado de um manual
de anatomia artística. e)
Isso lhe custou muito esfôrço, como
escreve a Theo: "Podes ver que continuo com certa energia, e
essas coisas não são fáceis, exigem tempo, e, principalmente,
muita paciência." e).
68
"L'EFFRAY ANTE VÉRITÉ"
Com .tudo isso, não se pode dizer que Van Gogh sofra, pro-
fundamente, alguma influência por parte dos artistas que es-·
tima e admira. Melhor será verificar que é um "certo modo"
de expressão própria que investiga, nos seus modelos, e observar
que, nessa época, êle fala, constantemente, de Gavarni, Dau-
mier, Henri Monnier, Gustave Doré, de Groux, e, precisamente,
êle encontra, nos desenhos dêsses artistas a "effrayante verité"
que êle busca.
Dentro da "maneira escura" do primeiro período, podería-
mos admitir épocas diversas, como a dos mineiros do Borinage,
dos tecelões de Nuenen, culminando nos "Ardappeleters".
Porém, esta obra capital é, no fim de contas, o ponto conclusivo
de uma fase de gestação em que os estudos de tipos, as natu-
rezas mortas, as paisagens, concorrem para aquêle resultado
final.
Para Van Gogh a pintura é um veículo de atividade espi-
ritual, a afirmação de uma verdadeira missão. As suas idéias
de uma espécie de república de artistas, organizados sob forma
corporativa, pintando em conjunto, em algum sítio do sul da
França, representam uma tendência a dar à pintura um verda-
deiro sentido social. Tem a idéia perfeitamente nítida do
que lhe compete fazer. A princípio, sente-se angustiado, cheio
de escrúpulos, por viver às custas de Theo, sem que nunca se
consiga vender um só quadro seu. Pouco a pouco, porém, com-
preende a coisa de forma diversa. Há muito tempo. para en-
contrar amadores e pouco para pintar. Não importam a fome,
as privações, os sacrifícios, e, entre êle e Theo, o que existe, é,
em verdade, uma associação sólida, na qual os sacrifícios são
partilhados, a fim de que possa surgir, sôbre a terra, uma obra.
impregnada de imenso significado universal.
69
EXPRESSA O PELA CÕR
PARIS 1886
70
tons rompidos, uma nota de violeta ao lado de ocre luminoso
e um toque de azul ao lado de uma terra tendendo para o ala-
ranjado. Os dois retratos do "Pêre Tanguy", o da coleção
Edward G. Robinson e o do Museu Rodin, constituem uma ho-
menagem à arte japonesa, estabelecendo um contraste propo-
sitado entre os "à plats" do fundo e a forte construção em pin-
celadas curtas e justapostas da figura central.
A lição de Pissarro, de Lautrec, de Seurat e Gauguin, en-
tre outros, foi rápidamente absorvida, e, não diremos superada,
mas· que já serviu para mostrar a Van Gogh os seus meios
próprios e o seu verdadeiro caminho.
o IMPRESSIONISMO
.A PROCURA DA LUZ
73
encontro, surgirão telas cada vez mais intensas pela côr. Des-
lumbrado pela descoberta da luz, Van Gogh se deixa atrair e se
volta para ela, tal como as grandes heliânteas de ouro que mais
tarde tornará imortais.
Uma das telas dêsse período parisiense, o "Quatorze Juillet
à Paris" realiza um tema luminoso dentro do objetivo procurado,
e, pela intensidade de tons puros, já traz resolvidas as buscas
futuras da pintura dos "Fauves".
Van Gogh considera que a sua permanência em Paris não
é mais oportuna ao fim de 1887 e, em Fevereiro do ano seguinte,
busca a Provença.
ARLES
74
"Urna das numerosas telas em que representou a ponte de
l'Anglois data dessa época. E' a da Galeria Wildenstein, em
Nova York: "uma ponte levadiça, com um carrinho amarelo e
grupo de lavadeiras, um estudo em que os terrenos são alaran-
e) .
jado 'vivo,a herva muito verde, e o céu e a água azuis" Ainda
aqui é o "seu" Oriente que Van Gogh encontra, pelo uso dos
tons puros e a grafia recortada em elementos plásticos autô-
nomos. As áreas coloridas se justapõem com decisão, os amare-
los de cromo desenhados sôbre o azul, os vermelhos dentro dos
verdes, e modulações secundárias sustentando a festa cromática
das complementares.
De uma rápida viagem a Saintes-Maries de Ia Mer, pequena
povoação próxima a Arles, Van Gogh traz diversos estudos: con-
junto da velha igreja fortificada, barcos sôbre a areia, óleos e
aquarelas de um colorido exaltado, em que se sente a proxi-
midade do sol africano.
"LA MOUSMÉ"
75
A família do carteiro Roulin, de quem se tornou amigo, e
que estima pela sua simplicidade e sinceridade, é pintada por
Van Gogh, numa série de retratos, de técnica tôda peculiar. O
modelo é tratado com um sentido simultâneamente decorativo,
(pelo brilho das côres e pelo arabesco), plástico-autônomo (pela
inserção de elementos de fundo, e o contorno energicamente es-
quematízado) , o que nos faz pensar em alguns casos, como no
do retrato de Roulin, ou melhor ainda no do "Zouave", nas
composíções e retratos de Matisse.
o CONSCIENTE E O SUBCONSCIENTE
76
CÓR E SÍMBOLO
GIRASSÓIS
77
E' ainda o amarelo que faz cantar a "casa de Vincent, em
Arles", amarela, sôbre um céu azul puro. As indicações valem
como elemento indispensável à unidade.
OS "CAFÉS"
78
ruas escuras, a pintar, transportando o seu material às costas
com um chapéu sui-generís, e velas plantadas acesas em
torno da copa. E' a noite arlesiana que êle transpõe para a
tela, noite densa e profunda, povoada por miríades de astros,
como pérolas, rubis, opalas e diamantes, sôbre o fundo de co-
balto escuro.
A comunhão com a natureza, de quando em quando, é per-
turbada pelo terrível mistral, que varre, então, a terra crestada,
enchendo o ar de estranhos agouros. Porém, "que compensa-
ção, quando há um dia sem vento. Que intensidade das côres,
que ar puro, que vibração serena" e).
GAUGUIN
79
AS "CADEIRAS"
o ESPAÇO
80
cachimbo", com a cabeça envolta em ataduras e a carapuça de
pelúcia. A repartição da superfície pictural é, aqui, evidente,
pela oposição de tons puros, com raro modelado. Subsistem,
em movimento, nesse conjunto inquietante, a perfuração dos
olhos, vivos como verrumas, e o arabesco da fumaça do cachim-
bo' ràpidamente indicado, em toques levemente empastados. A
côr alcança, nessas obras, pela primeira vez na história da pin-
tura' não apenas um sentido simbólico, mas uma verdadeira
construção espacial. Com Cézanne - sem nenhuma dúvida -,
mas também com Van Gogh, o cubismo já encontra, esboçadas
por instinto, as linhas essenciais das pesquisas futuras para
a destruição do espaço convencionado pela Renascença.
"BERCEUSES"
81
•
retratos do pessoal do asilo, podemos contar diversas cópias,
segundo Delacroix, Millet, Daumier, Doré e Rembrandt, bem
como o reaparecimento das flores e das paizagens, num sentido
diferente das obras anteriores.
OS CIPRESTES
, .~ AUTO-RETRATOS·
83
à maneira do pintor, mas também quanto à sua evolução mental.
O olhar é inquieto, a expressão veemente e angustiada, todo o
aspecto de uma consciência em luta contra a tragédia de viver.
O "auto-retrato" do Louvre, o último de todos, e que é, de certa
forma, o mais importante, como suma pictural, é tratado em
tons claros, em azuis esverdeados, sôbre os quais ressaltam os
tons alaranjados da barba ruiva e a forte construção da cabeça,
sumàriamente tratada. Há nesse retrato, espantoso pela ver-
dade psicológica e pela riqueza do efeito cromático, obtido com
um mínimo de recursos, um parentesco com a "Noite estrelada".
A mesma grafia ondulante, a mesma dominante azul, o mesmo
sentido das formas, enrolando-se sôbre si próprias.
AUVERS
((LA PAYSANNE"
85
Nessas obras, algumas das quais ainda não reproduzidas em li-
vro, se afirma a tendência à serenidade, à contemplação, através
do deslumbram ente de um colorido untuoso e fulgurante.
E não é sem emoção que referimos a última tela, "Os corvos
sôbre o trigal", pintada, angustiosamente, antes do suicídio. Ex-
trema tensão na perspectiva invertida da paizagem, e violento
contraste, entre os azuis agoure iros do céu, os amarelos cintilan-
tes do trigal e os vermelhos e verdes do que seriam caminhos,
marcam o fim da evolução pictural do artista. Efetivamente,
Van Gogh deveria ter sentido que não podia ir mais além. Sua
missão estava terminada, restava-lhe apenas partir, definiti-
vamente. Seu último estôrço, sua última notação permanecem
como um testamento de pintor, apesar de tudo.
---~-----_.
IV
A TÉCNICA
87
de análise que reclama e comporta, bem como o exame das con-
dições materiais, que permitiram, num dado momento da his-
tória, o aparecimento de uma sinfonia, .de uma estátua, ou de
um quadro. Integrada, assim, na sua época, sem prejuizo da
substância espiritual que contém, a obra artística aparece apoia-
da em bases de matéria mais ou menos perecível. Quem nos po-
derá mostrar, na integridade inicial a Acrópole de Atenas, tal
como apareceu aos olhos do homem do V Século A. C. ? Quem
nos falará dos afrescos de Giotto, ou de Piero della Francesca,
ainda na juventude com que se puderam extasiar os seus con-
temporâneos. Como pareceria a tragédia Shakesperiana, re-
presentada no Bull Theater, com os meios limitados da época?
Isto nos conduz a considerar a obra poética ou musical,
renovando-se incessantemente, através da interpretação, como
uma unidade capaz da ressurreição indefinida, desde que pode
sôbreviver pela transmissão oral. ,
Para atravessar os séculos, as artes plásticas necessitam,
ao contrário, de certas condições materiais, sem as quais não
conseguiriam romper o limbo, ou desapareceriam na bruma im-
penetrável das conjecturas e das restituições hipotéticas; seja
exemplo a pintura grega. No caso da pintura de cavalete)
meio de expressão relativamente recente, presenciamos 'a ruína
progressiva de obras que deveriam ser, inicialmente, frescas de
colorido. Quem nos assegura, para tantas sublimes criações da
pintura uma perenidade comparável, por exemplo, à da escul-
tura egípcia? Os grandes primitivos têm resistido à ação des-
truidora dos séculos, em melhores condições do que tantos pin-
tores mais recentes. A pressa da execução, o emprêgo de tintas
não secativas, como o betume, tem operado em tantas ;;>bras
mais novas, devastações cujos efeitos não podemos ainda avaliar.
Por êsse motivo é impossível esquecer o papel desempenha-
do pela técnica na criação pictural. Pela compreensão do "mo-
88
dus faciendi" do artista, podemos julgar, não só do processo em-
pregado, mas, também, penetrar nos segredos da sua persona-
lidade. Não se trata apenas da identificação de tais ou tais
tintas, óleos, vernizes ou substratos utilizados, mas também da
densidade dos empastamentos ou transparência das veladuras,
do nervosismo ou serenidade da pincelada, da construção dos
fundos, sôbre os quais o artista superpõe, pacientemente, cama-
das em veladura ou pasta lançada diretamente à tela, no fogo
da improvização.
A macrofotografia, a fotografia em luz rasante, os raís X,
revelam aspectos do quadro, insusceptíveis de serem apreciados
a olho nú, e trazem uma contribuição preciosa para a compre-
ensão dos resultados finais da pintura.
A análise técnica da obra de Van Gogh é extremamente in-
teressante' como confirmação do que se conhece das suas inten-
ções e dos seus processos. Sôbre poucos artistas se possuem
dados técnicos tão precisos, revelados através da correspon-
dência. Em inúmeros casos é possível confirmar, com os recursos
da ciência atual, o que as cartas descrevem.
Não se pode deixar de considerar a abundância da pro-
dução de Van Gogh, durante os dez anos em que se exerce a
sua atividade artística. O "Catalogue raisonné de l'oeuvre de
Van Gogh", de J. B. de Ia Faille, que data de 1928, identifica
mais de 1.600 telas, desenhos e aquarelas. E' uma obra imensa,
mormente se considerarmos o prazo em que foi criada, e os ter-
ríveis obstáculos que o artista teve de vencer. Na febre de pro-
duzir, por vêzes, dois quadros são pintados num só dia. A parte
que se pode atribuir à improvisação, nessa fecundidade, deve
ser, contudo, reduzida pelo fato de que a facilidade dos últimos
anos resulta de longa e penosa experiência, de mestria laborio-
samente conquistada.
89
~----
OS DESENHOS E AQUARELAS
90
ALINHA
91
vivo, com um modelado mais enérgico, marcando fortemente as
sombras. Disso resultou um belo estudo, que despertou o entu-
siasmo geral, salvo do professor, que considerou o trabalho como
uma desconsideração pessoal.
A arte de Van Gogh resulta de um tremendo esfôrço inicial,
de uma longa e penosa conquista, através de árduos estudos .
.Perspectiva, anatomia, proporções do corpo humana, são devo-
radas ansiosamente. O pintor possui, dentro de si, alguma coisa
que êle busca, e cujos elementos vai, aos poucos, reunindo,
.à medida do seu aparecimento.
A CIÊNCIA DA ARTE
92
FECUNDIDADE
A GRAFIA
93
formas, mas em extrair delas um conteúdo sensível e a delimi-
tação de zonas plásticas, desagregadas por um estranho ven-
daval ou consumidas por um incêndio imaginário.
Os efeitos tentaculares que se podem observar, por exemplo.
nos desenhos de St. Rémy, especialmente na representação das
formas vegetais, são conseguidos pelo uso de um instrumento
extremamente simples: a caneta de bambú. Entre os objetos ge-
nerosamente doados ao Louvre pelo Dr. Paul Gachet, se encon-
tram algumas dessas canetas; trata-se de um simples bambú,
aparado em bísel, a "plume de roseau", adaptável ao traço ro-
busto e impaciente do artista, exigindo porém uma singular se-
gurança e mestria.
AS AQUARELAS .
94
As aquarelas de Van Gogh nos fazem lembrar as expressões
ele Hugo von Hoffmannsthal, e)
quando, em 1901, visitou a
exposição de Van Gogh, a de Bernheim Jeune: "Indo de um
quadro a outro, sentia o que os unia, a vida íntima que desa-
brochava na côr, e as relações das côres entre si; via-as viver
uma pela outra, e, sempre, havia uma, misteriosamente vigo-
rosa, que sustentava tôdas as outras". É'precisamente êste fato,
- de que na pintura de Van Gogh as côres se subordinam a
uma dominante básica, - que dá ao quadro a densidade da
composição tonal, a sólida integração cromática, na fixação, em-
bora, de efeitos contraditórios. Por êsse poder mágico do ins-
tinto de colorista, Van Gogh consegue criar algo de inédito, de
nunca visto na pintura, algo em que a côr se torna chama e
braza, envolve a forma e a incendeia sem a consumir.
II
A PINTURA
{
Falar da técnica pictural de Van Gogh implica o conhe-
cimento do que o próprio artista informa nos seus escritos.
Efetivamente, sabemos pela correspondência, não apenas a data,
- às vêzes precisa -, das obras, mas, também, a escôlha do tema
e sua execução. Além disso, o artista assinala, à medida do de-
senvolvimento da obra, a sua concepção da côr, as suas obser-
vações sôbre a p.intura do passado e a contemporânea, o que põe
a correspondência, quer do ponto de vista técnico como crítico,
num plano tão importante quanto o "Diário" de Delacroix, em-
bora o espírito seja muito diverso.
(1) Hugo Von HoffmannsthaI - Ecrits en prose. Editions de Ia Pléíade,
traduction de E. H. Paris, 1927.
95
PER!ODOS TÉCNICOS
AS 3 CÔRES
96
côr através de tons que são quase valores. O seu temperamento
de colorista é contido por uma disciplina sóbria e severa, embora
haja, em carta da mesma época, uma frase que nos faz supor
uma espécie de presciência -das harmonias ígneas de Arles:
" . .. eu sinto que há coisas de côr que surgem em mim quando
pinto, que antes não possuia, coisas largas e intensas ... " e)
A análise dos "Comedores de batatas", obra capital do pri-
meiro período, que podemos considerar, de certa forma, como
a suma pictórica desta fase, nos mostra um interior escuro,
sombras modeladas em -azul. A influência de Rembrandt e de
Hals é manifesta, porém, a grafia nervosa, acentuada pelas luzes
contrastadas, quase sem modelado, a expressão atormentada-
mente caricata das figuras, nos sugerem uma aproximação - ao
primeiro contacto imprevista, - com a pintura de Goya, ou,
melhor ainda, de Magnasco. e).
A comparação dêsse último pintor com o Van Gogh da pri-
meira fase, poderá demonstrar o perigo da influência que se
costuma, por vezes, assinalar na obra de certos artistas. Evi-
dentemente, Magnasco foi desconhecido de Van Gogh. Êste-
nunca se refere àquele, e é de todo improvável que tivesse con--
tem plado, alguma vez, obra do mestre barroco genovês. A apro--
ximação que ora fazemos não tem outro objetivo senão assina-
lar, em dois artistas diversos no tempo e no espaço, bem como-
no espírito, uma semelhança técnica bastante curiosa, pela na-
tureza do grafismo rugoso e contrastado. Se, em Magnasco, a
expressão é singularmente fantástica, e não desprovida de ele-
gância e movimento, em Van Gogh o espírito é totalmente di-
ferente, as figuras são grosseiras, massiças, feitas de um magma.
espesso, denso, imóvel.
97
'APASTA
OS TONS
98
uma severa disciplina, dentro de uma riqueza cromática, ate-
nuada embora, na qual já se anunciam, aqui e ali, as fanfarras
coloridas da Provença. Van Gogh é, assim, o pintor em busca
da luz, e não resistirá à atração do sol meridional.
Antes da chegada a Paris, êle desenvolve uma longa
teoria sôbre as côres, especialmente o problema do negro e do
branco, "Já se disse, justamente, mais de uma vez, falando de
Millet, Rembrandt, e, por exemplo Israéls, que êles são mais
harmonistas do que coloristas. Dize-me agora: o preto e o branco
podem ser empregados ou não? São por acaso frutos proibidos?
)
.o BRANCO E O NEGRO
"Creio que não. Franz Hals possui, pelo menos, vinte e sete
negros. Branco? Sabes perfeitamente os quadros extraordi-
nários feitos por alguns coloristas modernos, intencionalmente;
branco sôbre branco. Que quer pois dizer: não se deve? Dela-
croíx chamava a isso repousos, e os empregava como tais. Não
se deve ser parcial, pois é possível empregar todos os tons, desde
que estejam no lugar apropriado e em relação com o resto, o
que é evidente.
" ... Não, o preto e o branco têm sua razão de ser e sua
significação, e os que pensam ocultá-los não encontram saída:
"O mais lógico, certamente, é considerá-los neutros: o
branco, a mais alta combinação de vermelho, azul, amarelo o
mais luminoso possível; o negro, a mais alta combinação de ver-
melho, azul, amarelo o mais escuro; nada tenho a contestar
nessa asserção, e ela me parece verdadeira.
99
"Portanto o luminoso e o pardo, o tom no que se refere ao
valor, está em relação direta com esta 4.a escala do branco ao
preto.
"Temos, com efeito:
Soma:
OS IMPRESSIONISTA.S
100
cialmente subsidiária ..do sol, despertam nele, e fazem desabro-
char, as qualidades inatas do colorista.
Na fase brilhante da pintura clara, os tons são voluntá-
riamente exacerbados, levando em conta que, com o tempo,
deverão atenuar-se. Além disso, os quadros são lavados, para
retirar o excedente de óleo, e, em alguns casos, o próprio artista
prepara as tintas, moendo o pigmento em grãos não muito fi-
nos, para reduzir a absorção excessiva do óleo.
Desde os primeiros estudos de Paris, a paleta se transfigura,
numa resultante de luz, como se a sombra tivesse levantado o
seu véu triste e noturno. A frescura e a limpidez dos tons vêm,
assim, renovar e transformar a visualidade do pintor.
A MANEIRA CLARA
101
ANALISE DOS CIPRESTES
102
A PINCELADA
103
técnicas, é, por êle, adaptada às suas próprias condições de
sensibilidade.
E é por essa pintura de tons puros e vibrantes, que se irá
abrir, para a arte do nosso tempo, um dos caminhos fecundos.
que lhe estava reservado trilhar.
104
- ------~--'
v
RESSONÂNCIAS
105
A TEORIA DA CÔR
O POST-IMPRESSIONISMO
106
A EXPOSIÇÃO DE 1901
((FAUVES"
107
Dufy. o lado trágico e mórbido da pintura de Van Gogh nao
penetrou a fundo nesses artistas essencialmente sadios.
Matisse, por exemplo, que acaba de falecer, após uma vida
longa e fecunda, é o artista de obra tranquila, reflexiva. Sua
arte é requintada, meditada, e, sob a aparente facilidade, re-
sulta de longa e exaustiva elaboração. E' o anti-tumulto, por ex-
celência, dentro das mais extraordinárias nuanças e incríveis
oposições de tons. O seu poder de luminosidade cromática fez
dizer a Picasso: " ... il porte le soleil dans le ventre". E, por outro
lado, a sua finura natural o conduz a um certo aristocratismo
sensível.
Derain é, por sua vez, o enorme e robusto homem do povo,
estuante de saúde. Suas audácias iniciais o levarão, mais tarde,
a outras harmonias mais tranquilas, de onde não estará, por
vêzes, ausente, a influência da pintura espanhola com seus tons
.sombrios.
Vlaminck, após a fase "fauve", evoluirá, dentro de uma téc-
.nica de violentos empastamentos, para uma pintura escura, de
caráter nórdico, evocando as imagens holandesas de Van Gogh.
Paisagens urbanas, feitas de lama e neve, dramática desola-
ção, que se integrará, por êsse aspecto, na grande corrente ex-
pressionista. Quanto a Braque, sua arte severa e equilibrada,
vai, desde cedo, abandonando as rútilâncias do "fauvismo", para
se integrar numa busca de construção intelectual, dentro_ da
corrente cubista, ao mesmo tempo que sua paleta vai se atenuar,
em harmonias de gríseos, ocres, negros, e tons extremamente
finos.
A mensagem cromática de Van Gogh vai se esbatendo
em acordes cada vez mais matizados. Marquet e Dufy, êste,
especialmente, conservarão dela um "rappel", expresso no liris-
mo da côr, dando origem às imagens irradiantes da alegria vital.
_E Friesz não encontrará, na parte subsequente de sua obra, tô-
108
nica superior à das magníficas orquestrações que assinalam a
sua fase "fauve".
A CÔR PURA
109
briado pelas harmonias que finalmente percebe e abraça, na sua
totalidade, cai, fulminado, e deixa, unicamente, o trágico teste-
munho do bilhete que trazia, ao peito, no dia da morte: " ... nous
ne pouvons faire parler que nos tableaux". "Mon travail à moi,
j'y risque ma vie et ma raison y a fondré à moitié ... " C).
OS EXPRESSIONISTAS
110
exigências de ordem plástica e compósitiva. O gosto pela au-
to- introspeção, através de inúmeros auto-retratos faz, da pin-
tura expressionista, um verdadeiro "Speculum hominis". O
drama, expresso com tanta violência de paixão, não decorre da
idéia de escola, porém é consequência da neurose universal que
inquieta os espíritos do tempo. Os mais autênticos expressio-
nistas são neuróticos (Munch, Van Gogh, Kirchner, Pascin,
Soutine), e representam a renovação da luta eterna entre o es-
pírito nórdico, a sondar as profundezas do desespero humano, e
o espírito latino e mediterrâneo, preciso, tranquilo, bem assen-
tado em bases de pensamento claro, a pesquisar as relações racio-
nais dos valores plásticos.
E' bastante eloquente o fato de que os grandes expressio-
nistas, sejam, quase todos, homens do norte, ou de regiões em que
~I o Oriente penetrou, aty<résdo homem da estepe, com seu fatalis-
mo e sua metafísica do desespero vital. Austria, Noruega, Bél-
gica, Lituânia, Alemanha, Bulgária, Holanda, Russia, são países
onde nascem êsses artistas, que trouxeram para a tela a expres-
são trágica da existência: Kokoschka, Munch, Ensor, Soutine,
Nolde, Kirchner, Pascin, Van Gogh, Vlaminck e Segall.
Por uma coincidência apreciável, renovando o conflito "clás-
sico - barroco", vem de Espanha o maior dos pintores do dra-
ma humano. A fase "azul", de Picasso, e mais tarde "Guerni-
ca", 'a cruel "Mulher chorando", o "Crânio de boi", e tantas.
telas de inaudita violência, formarão, novamente, a ponte es-
tética Ibéria-Centro e Norte Europa ..
Vale também citar, agora, na pintura brasileira, o caso de
Portinari, cujos "Retirantes" e "Enterros" podem ser compreen-
didos como magnificos exemplos do expressionismo contempo-
râneo, sem que seu forte sabor brasileiro lhe diminua o sentido.
universal.
111
A vida trágica de Van Gogh tem atraido o interêsse como-
vido da época atual, no que possui de conteúdo emocional pró-
prio. Deve-se considerar, entretanto, que a importância dessa
. vida decorre da magnitude de uma obra, que exprime, essen-
cialmente, o conflito eterno do Ser com o Meio social e consigo
mesmo.
Feita de sofrimento e sacrifício, a obra de Van Gogh, im-
pregnada de presença humana, vazada em linguagem universal-
mente inteligível, não permanecerá como criação da loucura,
porém, ao contrário, como o triunfo luminoso da Consciência
sôbre o espírito das trevas, "Modus" novo de entendimento da
Natureza, através do Espaço e do Tempo.
/-
112
BI BLlOGRAFIA
CATÁLOGOS
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CORRESPOND~NClA
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íNDICE
PÁGs.
Introdução 7
A Vida 9
A Neurose 13
Períodos e Influências 67
A Técnica 87
Ressonâncias IaS
Bibliografia . 113
•
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